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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
SATIRICON: AS ORIGENS DO ROMANCE E DO
REALISMO SATÍRICO
José Alexandre Ferreira Maia
RECIFE/2005
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JOSÉ ALEXANDRE FERREIRA MAIA
SATIRICON: AS ORIGENS DO ROMANCE E DO
REALISMO SATÍRICO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal de Pernambuco, como trabalho
de conclusão para obtenção do grau de
doutor em Letras e Literatura, sob a
orientação do Professor Doutor Ricardo
Bigi de Aquino
Recife;2005
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AGRADECIMENTOS
Pessoas e instituições contribuíram para a realização desta tese de doutorado. Desse
modo, gostaria de primeiro agradecer começando pelo Orientador Professor Ricardo Bigi
de Aquino cuja postura acadêmica tem sido um exemplo para todos nós, pois, dotado de
grande saber, se fez humilde e receptivo às nossas observações, mas nos advertindo sobre o
consenso acadêmico, sempre mais exigente, sempre mais crítico. Ao Poeta, Ensaísta e
Professor Ângelo Monteiro a quem devo o esclarecimento de alguns conceitos gregos. Ao
professor Francisco Soares que foi o primeiro a considerar meu projeto viável e foi meu
orientador em Évora. Ao Prof. João Sedycias pela pequena, mas importante contribuição.
Ao Secretário Eraldo através do qual estendemos nossos agradecimentos aos docentes e
funcionários do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística da Universidade
Federal de Pernambuco. E, por fim, à CAPES pela Bolsa Sanduíche que me possibilitou o
estágio em Évora, Portugal.
DEDICATÓRIA
Dedico a realização deste esforço a minha
esposa Wânia e a meus filhos Fernando e Iá
Niani
“O pensamento nas suas formas lógicas, comuns
a nós (...) surgiu entre os gregos e tem sido, a
partir dessa época, considerado como a única
forma possível de pensamento. Tem ele, sem
dúvida alguma, um valor determinante para nós
(...) e quando o empregamos nas especulações
filosóficas e científicas, liberta-se de toda a
relatividade histórica e tende para os valores
incondicionados e duradouros, numa palavra,
para a verdade; ou melhor, não apenas tende
para ela como atinge o Duradouro, o
Incondicionado e o Verdadeiro”. (Snell)
RESUMO
Obra provavelmente escrita no século I d.C., o Satiricon é abordado nestes estudos
como resultante da ação das mesmas forças histórico-pragmáticas e estético-ideológicas
que condicionaram o aparecimento e a evolução dos gêneros literários na Antiguidade.
Através desta abordagem foi possível observar que a evolução dos gêneros seguiu dois
rumos que coincidiram com a divisão aristotélica do drama helênico, em tragédia e
comédia. A partir dos princípios adotados na criação do drama é possível compreender a
existência de pelo menos duas espécies de realismo: 1- o realismo trágico de caráter
idealista teve como sua principal fonte o mito; a Tragédia conheceu seu pleno
desenvolvimento no século V a.C. em Atenas; 2- O realismo cômico que teve como fonte a
própria realidade; a Comédia mimetizou o homem comum e se desenvolveu ao longo das
transformações que as cidades gregas sofreram, e se desenvolveu entre os romanos no
século II a.C. Além dos gêneros miméticos a evolução do realismo fez aparecer os gêneros
teóricos escritos principalmente em prosa. O romance antigo é um gênero que apresenta
uma estrutura híbrida e teria nascido da fusão desses gêneros em resposta às novas
demandas estético-ideológicas que surgiram com a decadência da Hélade e com a ascensão
das monarquias alexandrinas e de Roma. O Satiricon, classificado aqui como romance
satírico, é uma importante obra mimética que exemplifica com clareza a evolução do
realismo cômico em contraste com o realismo trágico.
Palavras-Chaves: literatura latina, romance, realismo, sátira.
ABSTRACT
This study approaches the Satiricon, a literary work written probably in the 1st
century A.D, as a product of the action of the same historical-pragmatic and aesthetic-
ideological forces that made possible the origin and evolution of the literary genres of
Antiquity. Through this approach, it becomes possible to observe that the evolution of the
genres followed two paths that coincide with Aristotle’s division of Greek drama into
Tragedy and Comedy. From the principles used in the creation of drama, it is possible to
understand the existence of at least two kinds of realism: 1) Tragic realism, that has an
idealistic character, whose main source is Myth, and which has its most pronounced
development in the 5th century B.C in Athens; and 2) Comic realism, whose main source is
reality itself as it mirrors the lives of ordinary men; this genre developed during the
transformation of Greek cities and during the rise of Rome in the 2
nd
century B.C. The
evolution of realism gave rise not only to mimetic genres but also to theoretical genres that
were written in prose. The ancient romance is a genre that presents a hybrid structure; it
was born from the fusion of the genres as an answer to the new aesthetic-ideological
demands that came into being during the fall of Greece and with the rise of Rome and the
Alexandrian monarchies. The Satiricon is classified here as a Satiric Romance and it is an
important mimetic literary work that illustrates the evolution of comic realism in contrast
with tragic realism.
Key word – Literature, romance, realism, satyre.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
10
PARTE I
ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS
GÊNEROS LITERÁRIOS E DO REALISMO HELÊNICO.
16
1. Os gêneros literários e o realismo na Antigüidade Helênica 17
2. Os gêneros literários e a crise do realismo helênico 39
3. Os gêneros literários e o realismo românico-helenístico 54
4. Os gêneros literários e o realismo da Idade de Prata 71
5. O Satiricon, os gêneros helenísticos e o realismo satírico 87
PARTE II
UM EXAME DOS RECURSOS ENUNCIATIVOS
DE CONFIGURAÇÃO DO REALISMO SATÍRICO
104
1. A Preservação Milenar dos Fragmentos 105
2. Ordem dos Fragmentos e Resumo dos Capítulos 108
3. Análise dos recursos enunciativos do realismo satírico 118
CONCLUSÃO
157
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
165
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem um fim precípuo: examinar as condições pragmáticas e histórico-
literárias que levaram à criação do Satiricon, a fim de identificar os princípios estéticos e
ideológicos que motivaram seu aparecimento. Este exame nos levou às origens de um
gênero literário, o romance antigo que passou a representar na história da literatura
ocidental um grande passo na evolução do próprio realismo moderno
1
.
Nosso empenho foi procurar as causas primeiras que levaram os antigos, partindo
de uma visão mítico-idealista do mundo, a desenvolver uma estética realista
2
e a criar
gêneros que atendessem a este gosto. Foi tentar também compreender como os gêneros
literários se comportaram em relação
3
, na ocasião desse longo processo, às transformações
da sociedade grega que evoluiu de rústicas comunidades agrárias, orais, para uma
complexa sociedade política, refinadamente letrada.
4
Na evolução do realismo helênico examinamos mais acentuadamente a variação
helenística considerando seu hibridismo e identificamos uma nova postura intelectual, uma
nova forma de conceber o próprio realismo helênico. Para compreender estes fatos,
levantamos várias hipóteses que nos conduziram a épocas históricas remotas. Nossa
principal suposição era de que a ideologia deste novo realismo, isto é, as idéias realistas
que se apropriaram do fazer artístico-literário na Antigüidade helenística e românica,
nasceram da crise do realismo helênico, e os fatos que marcaram esta passagem
apareceram junto com a prosa filosófica, historiográfica e oratorial.
No século V a.C., encontramos exemplos do realismo grego no drama dionisíaco,
quando a comédia e a tragédia passaram a ser a forma polida dos festejos em homenagem
ao deus, promovendo os ritos que representavam a paixão de Dioniso. O próprio drama,
1
Realismo homérico, ático, helênico, helenístico, românico-helenístico, românico, satírico, moderno, etc
denotam variações das tensões estético-ideológicas que geram e engendram os gêneros literários e culturais.
São como estilos de épocas, realidades fantasiosas que os artistas e ideólogos avidamente perseguem.
2
A estética mítica, que se opõe à realista, está radicalmente vinculada às crenças e aos mitos, manifesta-se
através de gêneros culturais ritualísticos que de tempos em tempos são rememorados. Estes gêneros muitas
vezes servem de modelo a um certo realismo idealista ou romântico.
3
Aristóteles é o primeiro a analisar essas relações históricas entre os gêneros, a compará-los. Ele também é o
primeiro a observar relações estruturais quando afirma que o herói trágico nasce por metamorfose do herói
épico. Cf. Aristóteles ( 1966: 54)
4
Cf. Ohweiler ( 1990: 37)
11
apesar de se utilizar, principalmente na tragédia, de fontes míticas para a criação dos seus
personagens e suas intrigas, vai reconstituir o mito no tempo e no espaço da experiência
real. Atestamos, dentro dos limites de nosso discernimento, que o realismo grego
fundamentou-se na dialética entre a realidade sócio-histórica e a fantasia mítico-religiosa
na constituição da ordem (kósmos) e engendrou uma arte que deu forma e realidade a um
mundo semiologicamente estruturado
5
, rico em memória mítica. Esta arte manteve viva a
chama do pritaneu greco-romano. Por muito tempo, os mitos, com suas fantásticas
imagens, povoaram os gêneros literários; os mitos eram a fonte das “belas artes”. Mas
depois vemos que o que vai despertar interesse ideológico e estético no realismo
helenístico é a imitação das ações dos homens comuns, por isso vão predominar os gêneros
mais propícios a mímesis cômica.
O realismo grego, entretanto, foi muito mais do que uma realização estética. Como
uma ideologia de Estado
6
, deu condições à criação de uma sociedade amplamente
identificada consigo mesma, consciente dos seus valores, produto de uma transformação
política profunda do homem grego antigo, que entronou a liberdade e depôs os reis. Nossa
pesquisa procurou acompanhar os momentos mais importantes e espetaculares dessa
transformação: a evolução desse realismo através dos gêneros literários até a criação do
Satiricon.
Acompanhando passo a passo a evolução do realismo, chegamos à Nova Comédia,
pontual exemplo de realismo helênico tardio, digno representante das transformações nele
vividas; última expressão do classicismo ático, que, de uma maneira ou de outra,
prescreveria os novos rumos da literatura. Certamente foi preciso nos aproximar dessa
produção porque, no conjunto das obras, podemos detectar um complexo de tensões
estético-ideológicas que justifica a ascensão marcante do realismo satírico
7
. Gosto que vai
confundir-se com a decadência moral da sociedade política e identificar-se com a
ressurreição da monarquia e com o profundo hibridismo da época românico-helenística.
Com o mesmo princípio condutor da Nova Comédia, ou seja, representando a idéia
de que o mundo estaria sob a regência de Eros, surge o romance grego
8
. Também nos
5
A nossa hipótese é de que esse mundo constitui um espaço semiótico original que resultou num grande
sistema de significação, isto é, numa semiosfera “fora da qual é impossível a existência da própria semiose”
A semiosfera na qual inserimos o Satiricon denominamos românico-helenística Cf. Lotman (1996: 24)
6
No âmbito das cidades-Estado.
7
Cf. Nota 1
8
Principal variante do romance antigo.
12
debruçamos sobre esta produção, mesmo porque se trata de um gênero cosmopolita que
exprime uma ideologia egocêntrica - apesar da forte influência asiática - muito importante
para nós, porque se relaciona formal e conceitualmente com o Satiricon, onde Eros é
substituído por Príapo. A partir desta oposição, foi possível chegar à distinção entre um
realismo erótico, de caráter idealista, e um realismo priápico, de caráter satírico.
No nosso trabalho, o esforço foi todo concentrado na tentativa de compreender as
relações intrínsecas entre o gênero literário e o contexto de sua realização fenomenológica,
seu nascimento como atividade artística institucionalizada e ideologicamente constituída.
A busca das origens do romance nos levou ao coração do fenômeno literário, ao âmago de
suas causas, às suas fontes míticas e estético-ideológicas.
A evolução do gosto realista, no helenismo, passou a ser representada, no drama,
com o aparecimento da Nova Comédia e, na épica, com o surgimento do romance, ao lado
de casos excepcionais – como o da epopéia Os Argonautas de Apolônio de Rodes (295-
215 a.C.).
9
No mundo helenístico a epopéia já não respondia ao interesse literário geral por
possuir uma estrutura de grandes dimensões e por veicular um imaginário mítico, naquele
momento distanciado das transformações sociais e históricas que despertavam maior
interesse ao homem mediterrâneo alexandrino.
10
No período helenístico a arte literária seguiu registrando os diversos momentos
desta transformação estética. O Satiricon surge no momento agudo da helenização
mediterrânica quando a inteligência artística encontra-se sem saída; não havia outro
caminho a seguir a não ser a sátira
11
, pois nada havia a fazer em termos de “belas artes” ou
de configuração de grandes gêneros, ou seja, a sátira era a única saída para mimetizar os
aspectos daquela desordem estético-ideológica, à qual chegou o mundo helenizado sob o
poder romano. O que nos surpreende no Satiricon é a graça, ou a elegância, com a qual
esse novo gosto é representado, produto do hibridismo helenístico e românico que marcou
o mundo antigo. De qualquer forma, o que nos interessa no Satiricon é exatamente sua
complexidade, seu paradoxo sustentado a cada enunciação, quando as várias personagens
enunciam-se com máxima autoridade em um ambiente discursivo, ou melhor, em um
contexto histórico-mimético gerado pela natureza própria do gênero literário, no caso em
9
“O interesse pela aventura heróica aparece em Apolônio como puramente arqueológico, sem ressonância
em seu espírito. A erudição geográfica, mitográfica, é um estorvo inútil do qual não salta nenhum lampejo
de poesia” Cataudella (1954: 279)
10
Ver a polêmica com Calímaco. Cf. Cataudela (1954: 279)
11
É esta hipótese que vamos analisar
13
questão, do romance satírico, movendo os sentidos do leitor como uma câmera em direção
à cena satírica perfeita. Os personagens, que dialogam freqüentemente, através do inquam,
inquit constituem uma galeria de seres verbais gerados e rebus
12
, com traços que
denunciam indivíduos totalmente desprovidos de virtude, flagrados em suas escandalosas
abjeções, profundamente marcados pela ironia, inscritos no texto. Este conjunto de
intenções nos interessa bastante, porque acreditamos estar sempre presente onde quer que o
romance satírico se manifeste.
Para chegar às origens do romance, tentamos definir os outros gêneros para poder
distingui-lo em sua especificidade. Antes de tudo, optamos em defini-lo como gênero
formalmente híbrido
13
, fruto da fusão da prosa filosófica e historiográfica com elementos
da epopéia, do drama e do variado lirismo mélico antigo, com seus epigramas e elegias e,
ainda, com o enxerto de gêneros menores como a fábula milésia. Este hibridismo chama-
nos a atenção por conta da relação entre o gênero e a totalidade da qual faz parte.
O gênero do discurso, como o concebemos, é uma emanação natural da língua
codificada em texto, é o seu bilhete de identificação, em meio à diversidade discursiva,
extremamente difusa: uma multiplicidade de sistemas significativos semioticamente
pulverizados. O que salva
14
o texto, em todas as épocas e em todas as sociedades, é sua
distinção como um gênero. Sua realização pragmática depende do conjunto de regras que o
gênero impõe como condição de seu pleno uso. Qualquer texto realizado fora de seu
ambiente genérico é mero objeto, um signo desprovido de representação e de sentido. Um
texto sem gênero é um texto nu ou morto, é um texto laboratorial, uma peça de anatomia
15
.
Para muitos estudiosos, a complexidade dos textos literários reside na sua difícil
regularidade formal, mas tudo não passa de um engodo, ou de uma certa cegueira científica
que não vê que o bom e verdadeiro texto
16
literário é aquele que sempre vai encontrar sua
própria regularidade enunciativa
17
; desta regularidade depende a plausibilidade de seu
conteúdo e a beleza de sua forma. É essa regularidade que o autor se propõe construir.
12
Das coisas, dos acontecimentos, ou seja, da realidade.
13
Diversidade de formas discursivas
14
O que possibilita o usufruto social do texto.
15
Trata-se de pura hipótese: o texto sem contexto. Seria o texto de uma língua intraduzível, ou seja, códigos
inacessíveis, entretanto há textos que são empregados como mera locução, são extraídos de seu contexto
original a fim de serem analisados cientificamente. Há também o texto sui generis que a crítica
contemporânea tenta enquadrá-lo como poético.
16
Do ponto de vista estético-ideológico.
17
A regularidade enunciativa é o princípio da co-enunciação e também está sujeita às tensões estético-
ideológicas e às leis pragmáticas.
14
Deste modo estruturada, tal regularidade enunciativa vai também gerar uma comunidade
de leitores co-enunciadores ( Cf. Maingueneau 1996: 32 ), preocupados em fruir
intelectualmente deste kósmos enunciativo. O bom texto seja ele literário ou não, deve ter
esse potencial co-enunciativo. É evidente que todo texto escrito pode tornar-se perene, e o
mesmo ocorre com o texto oral gravado, entretanto somente o texto que se faça repetir por
muito tempo e que está sempre gerando em torno de si outros textos, terá estabelecido seu
gênero. E isto não ocorre apenas com o texto literário. Isto não ocorreu só com o romance
e a poesia.
A teoria do romance que defendemos deve diferir, em muitos aspectos, da teoria
marxista, e pode não corresponder à tradição que vê o romance surgir no alvorecer da
Europa moderna, isto é, por volta do século XVIII. Minha pesquisa remonta ao romance
antigo
18
, mas não é possível compreender este gênero sem conhecer a transformação do
pensamento grego: seu apogeu, sua crise e seu legado. O Satiricon, como o entendemos, é
o fechamento do ciclo de evolução do realismo satírico, porque levou o realismo
helenístico a suas últimas conseqüências, à sua saturação; e isto terá sido inédito na
Antigüidade.
É importante reconhecer que a imaginação mítica transformou-se em imaginação
realista
19
. E este longo processo vai desde a fabulação heróica das epopéias até as
narrativas que vieram a ser inventariada como romance grego e até o Satiricon e o Asno de
Ouro. Tentamos apontar no Satiricon: 1º- a enunciação perfeita do gosto realista, 2º- a
criação de um retrato verbal de uma sociedade em pleno declínio estético e ético.
Foram confrontadas versões não latinas, mas os originais são extraídos dos livros de
Marmorale (1961) e de Ernout (1967). Procuramos abordar as controvérsias mais comuns a
respeito do Satiricon envolvendo autoria e data de edição.
O gosto realista na Antigüidade, em seus vários aspectos, surgiu, portanto, como
resultado de antagonismos sociais e estéticos profundos e adotou o gênero romanesco pelo
18
Romance grego e latino. Gual (1976: 33) cataloga os romances conservados da Antigüidade em vários
grupos: 1-Romances de Viagens Fabulosas; 2-Romances Românticos; 3-Romances Cômicos; 4-Romance de
Reencontros Fortuitos.
19
O realismo helênico surge primitivamente com Homero. Mas a imaginação mítica em Homero ainda é a
fonte de sua mimesis. A tragédia é o gênero onde são mais fortes as tensões entre mito e realidade. Mas na
comédia clássica a imaginação realista tem seu primeiro grande momento ao denunciar os perigos da arte de
burlar os mitos. Sobre o papel desempenhado por Aristófanes Cf. B. Snell (2001: 118 ): “Aristófanes não
exerceu influência na poesia, mas sobre a crítica da poesia, sobre as discussões estéticas, sua influência
ainda hoje é sentida nos estudos da poesia”
15
seu caráter híbrido e instável. No Satiricon, o realismo, enquanto ideologia e estética, não
mais encontra alento nas vicissitudes da Fortuna ou nos caprichos de Eros, mas na paródia
satírica dos gêneros romanescos. Nossa visão se insere em uma pragmática dos gêneros
que se esforça para compreender a complexidade dos discursos enunciados pelo gênero,
que de algum modo se perpetuam. Por trás desta perpetuação, está a tensão entre o
ideológico e o estético.
PARTE I
ORIGEM E EVOLUÇÃO DOS
GÊNEROS LITERÁRIOS E DO REALISMO HELÊNICO.
17
1. Os gêneros literários e o realismo na Antigüidade Helênica
Antes de nos determos na tentativa de focalizar os gêneros literários na Antigüidade
Helênica, comecemos por tentar delimitar a própria noção de gênero. A complexidade que
atualmente envolve este termo obriga-nos a redimensioná-lo. Antes de tudo, vamos
analisar a natureza estético-ideológica dos gêneros literários colocando-nos ao lado de uma
observação teórica que tenta analisar os fatores pragmáticos presentes na construção do
fenômeno literário como fatores determinantes de seu êxito lingüístico e social.
Maingueneau (1996: XI) concebe o “gênero literário vinculado a uma atividade
enunciadora”. Porém, tal método de abordagem complementa-se com as pontuais
observações de Lukács( 2000) e Bakhtin (1997) acerca dos gêneros, Maingueneau (1995:
65) observa que:
“As correntes pragmáticas tornaram a reflexão sobre os gêneros um eixo
principal de qualquer abordagem dos enunciados. Qualquer enunciação constitui
um certo tipo de ação sobre o mundo cujo êxito implica um comportamento
adequado dos destinatários, que devem poder identificar o gênero ao qual ela
pertence”.
E, para melhor explicar esta hipótese, cita a seguinte afirmação de Bakhtin.
1
“Aprendemos a moldar nossa palavra nas formas do gênero e, ouvindo a palavra
de outro, sabemos de imediato, desde as primeiras palavras, pressentir seu
gênero, adivinhar seu volume, a estrutura composicional dada, prever seu final,
em outras palavras, desde o início, somos sensíveis ao todo discursivo (…). Se
os gêneros do discurso não existissem, se não os dominássemos, se
precisássemos criá-los pela primeira vez no processo da palavra, se
precisássemos construir cada um de nossos enunciados, o intercâmbio verbal
seria impossível.”
Com o intuito de delimitar pragmaticamente a noção de gênero literário
encontramos nestas palavras o essencial. A particularidade dos gêneros literários é que eles
existem, ou passaram a existir, como resultado de um acordo regido sob leis de enunciação
e co-enunciação
2
. As sociedades, de acordo com sua escala cultural, ou melhor, - no caso
1
(In Maingueneau 1984: 285)
2
“Evocamos o papel decisivo desempenhado pelo destinatário na produção e na interpretação dos
enunciados. É claro que quando elaboram seus textos os autores tem em mente um certo tipo de público, mas
faz parte da essência da literatura a obra poder circular em tempo e lugares muito afastados dos de sua
produção” (Maingueneau 1996: 31)
18
específico dos gêneros literários - de acordo com sua condição de sociedade letrada ou
iletrada, adotam leis específicas de reconhecimento e seleção daquilo que deve ou não ser
enunciado, daquilo que, de uma maneira mais adequada, represente suas especificidades
étnicas e institucionais bem como seus anseios estéticos e ideológicos. Na sociedade
moderna, a análise dos gêneros literários parece insuficiente para demarcar valores
relevantes, pois os meios comunicacionais e artísticos se diversificaram sob a marca trans-
histórica do hibridismo. Por conta disso, devemos pensar não só em termos de gêneros
literários, mas também na esfera dos gêneros culturais. Entretanto acreditamos que, ao
pesquisar o comportamento dos gêneros literários na sociedade antiga, estaremos dando
um passo criterioso para o acesso a essa espécie de Semiologia Cultural
3
ciência que
emerge no hibridismo das sociedades contemporâneas.
Na Antigüidade, a noção de gênero (
ειδο
s ) foi primeiro desenvolvida por
Aristóteles (2003: 23) para ser utilizada como recurso de identificação da atividade poética
e da especificidade dos textos poéticos os quais haviam adquirido importância capital na
constituição da cidade grega (pólis). A epopéia e o drama foram os gêneros escolhidos pelo
filósofo para dar início aos estudos metódicos dos gêneros literários, embora Platão (2000:
293) já houvesse enunciado a preocupação com a atividade poética, pondo em questão sua
legitimidade, sob o olhar crítico da dialética. Entretanto Platão não se preocupou em
formular um método para o estudo sistemático dos gêneros literários, como depois fez
Aristóteles
4
.
Atualmente a noção de gênero do discurso vem sendo debatida em estudos que
levam em conta o gênero como um fato social
5
, mas a seriedade dos que iniciaram a
ousada tarefa de se acercar dos gêneros literários, para neles encontrar seu fim social e sua
lógica interna, como fez Aristóteles, deve ser respeitada. Gênero é um conceito muito
amplo que, aplicado à literatura, pode oferecer um esclarecimento sobre a própria
manifestação social da linguagem. A complexidade desta manifestação que é tecida por
uma série de variantes (psíquicas, sociais e lingüísticas) presentes na constituição dos
signos lingüísticos e na organização dos sistemas semiológicos, e sua difícil separação,
podem tornar a configuração dos gêneros literários extremamente difusa. Sendo difusa, ela
3
Cf. Lotman
4
Antes de Platão Gorgias já escrevera se referindo à tragédia: “a poesia não é senão linguagem metricamente
ordenada e as emoções que ela suscita não são diferentes das emoções suscitadas pela oratória”Cf. Lombardo
(2003: 37)
5
Cf. Bazerman (2003)
19
ocorre da maneira descrita acima por Bakhtin, mas a sociedade não se dá conta de seu
emprego social. Os elementos envolvidos na configuração e composição dos gêneros não
têm consciência plena desse envolvimento, pois o escritor faz uso de um repertório não só
de palavras ou de estruturas frasais que orbitam nas fronteiras entre a conversa espontânea
e os diálogos institucionalizados, mas de palavras e estruturas frasais organizadas para um
registro mais marcante, mais fundador de um pensamento ou de uma mensagem e este ato
deve ser aceito, mesmo que inconscientemente, por uma comunidade de leitores. Na
verdade, realiza-se uma atividade discursiva que vai além da esfera comunicacional e
atinge as fronteiras da realização sócio-histórica. Como afirma Bazerman (2003: 125):“Os
gêneros são o que as pessoas reconhecem como gêneros em qualquer momento do tempo.
Podem reconhecer os gêneros por nomeação, institucionalização e regularização explícitas,
através de várias formas de sanção social e de recompensa”.
Por isso, associamos o gênero literário à memória, redefinida aqui pelo seu
potencial co-enunciativo; e o opomos à conversa natural e espontânea, ou melhor, a
gêneros efêmeros, eventuais e cotidianos
6
, que emergiram na história moderna de maneira
avassaladora, tornando-se até mesmo a fonte original dos próprios gêneros literários -
diferentemente do que ocorreu nos primórdios da invenção dos gêneros.
Verifiquemos, em relação a estes fatos, como os escritores modernos fundem os
gêneros literários aos gêneros efêmeros e como eles passam a transcrever o ritmo deste
diálogo no drama, no romance, no conto e na lírica (poesia). Os discursos efêmeros
tornaram-se a matéria-prima da literatura moderna. Ao contrário do que aconteceu na sua
origem, os gêneros literários encontram hoje seu momento mais difuso, mais crítico, mais
realista, por terem apagado as fronteiras entre eles próprios e os discursos efêmeros, que
são a matéria prima da imaginação realista moderna.
Por conta desse excessivo realismo contemporâneo, os gêneros literários perderam
o caráter primordial - o de ocupar lugar de destaque ao enunciar as aspirações humanas
mais elevadas
7
dentro de regras de composição calcadas na tradição do gênio individual e
coletivo – e atualmente mesclaram-se de tal maneira ao discurso efêmero e a outros
gêneros discursivos ou culturais que quase não se distinguem deles, a não ser pela
transgressão significante remanescente dos gêneros tradicionais. Isto desperta real interesse
6
Os gêneros primários. Cf. Bakhtin /Bazerman (2003: 125-6))
7
Ideal Helênico
20
para a Ciência Literária, que busca atualmente delimitar as fronteiras entre o diálogo
natural, os discursos rituais e os gêneros literários.
A tarefa principal que nos foi imposta desde que nos preocupamos em abordar a
questão do romance antigo sob o ponto de vista científico-literário foi tentar compreender a
forte tensão estética e ideológica presente na problemática dos gêneros.
Acreditamos ser possível atestar que o que torna, hoje e sempre, um discurso
literariamente apropriado
8
, e socialmente adequado é uma concessão estético-idelógica
perpetrada por grupos sociolingüísticos dominantes. Assim o que deve ser feito para saber
se um gênero literário qualquer é realmente digno de ser concebido como tal é, em
primeiro lugar, saber se o autor teve a intenção de realmente investir em um gênero
literário, depois saber se a obra textual provoca reações psicológicas identificadas com o
prazer e a emoção nos indivíduos de determinada sociedade, isto é, se provoca sensações
estéticas, e, por fim, saber se essas reações são legitimadas por um sistema de valores
dominante, ou seja, por uma ideologia dominante.
Acreditamos que, na Antiguidade, os gêneros literários surgiram do mesmo
impulso criativo que ocasionou o desenvolvimento das outras artes: surgiu a necessidade
de comunicar e propagar de forma artística, isto é, sob forte tensão estético-ideológica, os
mitos que fundaram a sociedade política, ou seja, a sociedade formada pelos habitantes das
cidades. Foram os gêneros literários, entre tantas invenções, importantes instrumentos,
responsáveis pela revolução realista promovida pelos gregos
9
.
Extraídos, em primeiro lugar, da caótica e nebulosa estrutura verbal dos mitos –
que podem ser tomados como textos primordiais
10
- os gêneros literários logo passaram a
funcionar como portadores de uma comunicação dotada de grande inteligência e beleza,
possibilitando uma harmônica relação entre o poeta e a sociedade politizada,
principalmente a partir do século VIII a.C., século de Homero e de Hesíodo.
Foi através da ação instauradora e perpetuadora dos gêneros literários que o homem
grego fez enunciar a diversidade do seu pensamento. Acreditamos que, mesmo hoje,
8
O que torna um discurso em gênero literário.
9
Cf. Gombrich (1995: 77)
10
Um contra-ponto em relação aos gêneros primários de Bakhtin
21
distanciados como estamos da Antigüidade, através dos estudos dos gêneros literários é
possível aferirmos a dimensão ampla de seu espírito controvertido e agônico
11
.
Terão sido os gregos os primeiros a realizar a grande transformação sofrida pela
linguagem, quando aprimoraram a escrita alfabética. Eis o passo fundamental para o
aparecimento dos gêneros literários: com a necessidade de registrar a memória dos feitos
dos deuses e dos grandes reis, a escrita se desenvolveu entre os egípcios e os
mesopotâmios, mas só entre os gregos, e provavelmente num momento anterior entre os
fenícios e os semitas, a escrita ganhou a configuração alfabética como a conhecemos
hoje
12
.
O alfabeto (grego, semítico ou fenício) possibilitou o registro dos sons da
linguagem e a sua perpetuação. Entre os gregos pré-homéricos, foi difundida uma forma
discursiva oral que aliava os nomes dos deuses a grandes feitos (narrados de forma
memorialística), e fazia propagar a fé na legitimidade do culto aos mortos e aos ancestrais.
Os autores dessas formas discursivas eram homens que se habilitavam a uma espécie de
dupla função nas sociedades pré-homéricas: por um lado, como Orfeu, introduzem a
melodia na sílaba e, por outro lado, como Demódoco (e o lendário Homero), são tocados
pelo dom das Musas, a Memória; assim procuravam imitar ritmicamente , através da língua
motivada por essa arte duplamente concebida, a natureza das coisas. Os poetas primordiais,
os rapsodos, bardos ou aedos pré-homéricos, foram os primeiros a conceber o ritmo
poético; foram os primeiros a dar uma estrutura regular às misteriosas e diáfanas narrativas
míticas.
O advento de Homero pôs fim ao ciclo puramente rapsódico
13
e fez surgir o ciclo
épico com a utilização da escrita. Intimamente ligado à elevação da pólis, o gênero épico
teve um papel preponderante na constituição de um espírito civilizador. As virtudes
heróicas personificadas pela voz ordenada ritmicamente, codificada em versos escritos
pareciam espelhar o anseio por uma ordem política. A invenção do hexâmetro parece estar
intimamente ligada à elevação social da cidade. Foi o primeiro passo para a criação da
epopéia, sendo assim, o primeiro passo para a criação dos gêneros literários e para a
democratização da escrita.
11
Muitos já o fizeram: Coulanges (1998), Vernant (1999), Snell. (2001)
12
Cf. Desbordes (1995: 121)
13
Período pré-literário.
22
No capítulo sobre a origem da poesia, Aristóteles (2003: 30) conjectura que deve
haver duas causas que lhe deram origem: a primeira teria sido a tendência instintiva à
imitação e a segunda seria o gosto da harmonia e do ritmo. Assim a mímesis
14
reconstituiria o kósmos real através da língua elaborada ritmicamente. Vindo do período
anterior a Homero, de acordo com Aristóteles (2003: 31) não há nenhum poema deste
gênero. Homero teria sido o criador não só do hexâmetro, mas também o inventor do metro
jâmbico.
Nesta divisão aristotélica das obras de Homero, observam-se duas linhas de
evolução dos gêneros literários imitativos, duas formas, portanto, de conceber o texto
artístico. Uma diz respeito à tradição trágica que vê, na imitação das elevadas ações
heróicas, o aperfeiçoamento da natureza humana; a outra diz respeito à tradição cômica,
que está centrada no próprio homem e vê na imitação das ações deste homem ordinário,
motivos de riso e censura. Enfim, ambos os caminhos parecem ter o mesmo escopo: o
aprimoramento do ser humano como indivíduo pertencente a uma sociedade politicamente
organizada e lingüisticamente consolidada.
A organização política da cidade grega é acompanhada por uma série de avanços na
forma de representação artística. Gombrich (1995: 78) observa que toda herança egípcia e
mesopotâmia serão amplamente estudadas e reformuladas pelos gregos: “os gregos
começaram a usar os próprios olhos. Uma vez iniciada essa revolução, nada mais a
sustaria
15
”.
Essa revolução não se limitou às artes visuais. Não é determinado, com clareza, o
momento histórico em que o homem grego veio a se tornar o mais vigoroso exemplo de
homem criativo, entre os antigos. Que invenção revolucionária possibilitou as outras?
Como se desenvolveram tamanha inteligência e criatividade? As invenções, com as quais
os gregos deram início a uma civilização fundamentada no “bom senso” e no “bom gosto”,
formam um complexo ideológico e estético jamais compreendido de todo
16
.
O gênero literário foi uma dessas invenções cheias de potencial deflagrador de
inteligência e criatividade. A genialidade dos poetas gregos (Téspis, Árion, Ésquilo,
Crates) fez, por exemplo, desenvolver o drama, a partir da epopéia, e expôs aos olhos do
14
Cf. Hambúrguer (1975: 3)
15
Evolução do realismo helênico
16
Bom senso e bom gosto derivados do ideal da kalokagathia, belo fisicamente e bom no sentido moral. Cf.
Lombardo (2003: 15)
23
cidadão a complexidade das ações humanas no seu convívio direto com as leis originadas,
não na vida presente, mas em um passado remoto, mítico, cuja memória, agora recuperada,
principalmente na ação do herói trágico e na fala do coro, promoveria a coerência das
estruturas políticas recentemente engendradas pela pólis grega dos séculos VI, V e IV a.C..
No século V a.C., os gêneros dramáticos passariam a se despir do traço fabuloso da
epopéia - apesar de ainda persistir a fábula mítica na tragédia - para dar relevo à vida na
sua forma mais concreta e realista. Entretanto o mito continuaria a ser a matéria de
imitação que espelharia melhor as contradições do novo regime. O que mais assombrava o
homem grego de então era a descoberta do realismo e o choque entre este realismo e a
crença nos mitos. Os heróis e os deuses que ocupavam parte considerável da estrutura
psicológica das cidades, pois estas teriam mesmo nascido pela ação deles, eram agora
chamados a entrar em cena diante do olhar especulativo do homem grego. F. Châtele
(1983: 20) descreve bem este quadro:
Enquanto nos séculos que se convencionou chamar homéricos a narrativa se
organiza à volta a personagens divinas, ficando as personagens humanas
reduzidas elas próprias a essências, de acordo com um estatuto de quase
dependência, na época clássica (século V), o homem, como cidadão guerreiro,
que fala e que luta, aparece como parte integrante de seu destino. Nesta época
mudam de sentido e de estilos os gêneros culturais: de fundamentalmente
religiosa, a tragédia se torna uma cerimônia cívica; a comédia passa do burlesco
à crítica política. Outros robustecem-se como a historiografia: as descrições
lendárias e as genealogias míticas cedem lugar a paisagens e a costumes
analisados e descritos com precisão, a seqüências de acontecimentos
escrupulosamente contadas.
Apesar de fortemente marcada por esta mudança de sentido, a tragédia como
gênero mimético chega a se confundir com a própria mitologia. Entretanto, como ressalta
J-P Vernant (1999: xxii)
As tragédias, bem entendido, não são mitos. Pode-se afirmar, ao contrário, que o
gênero surgiu no fim do século VI quando a linguagem do mito deixa de
apreender a realidade política da cidade. O universo trágico situa-se entre dois
mundos e essa dupla referência ao mito, concebido a partir de então – como
pertencente a um tempo já decorrido, mas ainda presente nas consciências, e aos
novos valores desenvolvidos tão rapidamente pela cidade de Pisístrato, de
Clístenes, de Temístocles, de Péricles, é que constitui uma de suas
originalidades e a própria mola da ação.”
Ao conceber a pragmática dos gêneros literários, na Antigüidade, não há como não
levar em conta a complexa importância que este gênero e seu objeto de imitação principal,
o mito, tinham para os gregos. Era, na realidade, uma preocupação de todas as sociedades.
24
Neste sentido, é importante observar que na sociedade grega a realização do espetáculo
dramático era uma preocupação do Estado.
“A tragédia não é apenas uma forma de arte, é uma instituição social que, pela
fundação dos concursos trágicos, a cidade colocava ao lado de seus órgãos
políticos e judiciários. Instaurando sob a autoridade do arconte epônimo, no
mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem as
assembléias ou os tribunais populares, um espetáculo aberto a todos os cidadãos,
dirigido, desempenhado, julgado por representantes qualificados das diversas
tribos, a cidade se faz teatro.” (J. P. Vernant 1999: 10).
A instituição de festivais, obrigação do arconte epônimo, perpetuou-se mesmo
durante a hegemonia do cosmopolitismo helenístico. Perpetuou-se entre os romanos
também, sobretudo na forma de evergetismo ou mecenato. Estes fatos marcam a
superioridade institucional do drama em relação aos outros gêneros literários na forma de
expressar o realismo emergente. Sabe-se, entretanto, que o drama não foi o gênero
fundador dessa incrível revolução da cultura antiga, que podemos rotular de realismo
grego. Homero foi o grande gênio organizador desse kósmos lançado à luz de um
espetáculo trazido pela plasticidade dos versos. O precursor do drama trágico por exemplo,
foi, segundo a opinião de Margot Berthold, (2001: 104) o bardo de Homero, Demódoco,
que entoava seus cânticos sobre os favores e a ira dos deuses para com os heróis, em
banquete, pois “quando seu apetite e sede estavam satisfeitos, a musa inspirava o bardo a
cantar os feitos de homens famosos” (Odisséia, VII). O drama pode diferir em vários
aspectos da epopéia e do Margites homéricos, mas são espécies de um mesmo gênero que
faz da enunciação verbal instrumento de uma arte. Uma primeira diferença entre o drama e
os textos homéricos é o meio utilizado para tornar esta enunciação socialmente
reconhecida. Demódoco e Homero, como a história ou a lenda têm relatado, viajavam
pelas terras mediterrânicas cantando seus versos, enunciando os feitos dos deuses e heróis,
fazendo-os falar, tornando-os artisticamente vivos. O meio teatral, com o qual é veiculada
a enunciação dramática, em muito se assemelha ao desempenho do bardo homérico. Mas
os recursos que a poesia encontrou no teatro tornaram, naquele momento específico, a
épica homérica obsoleta.
Homero, Hesíodo e uma plêiade de poetas que brilharam por seus versos
personalizados, como Arquíloco, Safo, Alceu (Séc VII a.C), por exemplo, caracterizaram o
apogeu da figura do poeta, como inventor e propagador dos seus versos. O movimento
lírico na Grécia foi um momento em que ficou evidente a figura do poeta numa sociedade
25
que deixaria de lado sua origem agrária e passaria a viver preponderantemente a
experiência urbana. A épica deu relevo à figura do poeta que trazia em sua boca não só os
feitos guerreiros, mas também as informações mais atualizadas dos feitos daqueles que
seriam os ancestrais comuns - todos aqueles povos que agora se confinavam em cidades,
mas fortemente presos a seus heróis pela religião.
A mensagem e a expressão lírica, diferentemente, revelam uma outra realidade. Os
poetas querem mostrar virtudes mais palpáveis, a lírica é essencialmente encomial e
exortativa, pois seus autores apontam as virtudes dos deuses e dos heróis nos cidadãos e
em si próprios. Por certo, os conflitos políticos, os conflitos de classe e as transformações
sociais exigiam esta nova atitude. O gênero lírico expressou - e representou bem - o perfil
corrosivo do poeta; o choque entre ele e o tirano fica evidente na enunciação desta voz que
pode dar relevo a um cidadão tanto por suas virtudes quanto pelos seus vícios. A lírica
ficou mais próxima da comédia, enquanto a épica foi especialmente ligada à tragédia. Esta
aproximação entre gêneros fica evidente, pela forma de utilização do texto poético que
expressava um sentimento e enunciava uma mensagem ao espírito coletivo, ou seja, à
sociedade política que naquele momento se consolidava.
O teatro calou o poeta como enunciador habilidoso, como um cantor de seus
próprios versos, mas em contrapartida tornou-o mais responsável perante a sociedade,
porque esta o autorizou a se apropriar dos mitos e dos ritos religiosos e o credenciou a
desenvolver a encenação e o espetáculo.
Quando falamos em teatro grego já estamos lidando com o sistema político
firmemente constituído sob a liderança de cidades como Atenas. A cidade realizava seus
festivais e seus concursos sob ampla deferência do Estado e da sociedade civil. E para ela
migravam os poetas mais criativos do mundo helênico. Seus concursos realizados duas
vezes por ano nas Dionísias e nas Lenéias fizeram o drama alcançar seu apogeu sobre as
outras manifestações de gêneros literários. Entretanto, a filosofia, a historiografia, a
logografia motivarão discursos através dos quais as idéias serão veiculadas por uma
elocução que marcaria uma forte diferença entre os textos miméticos ou poéticos e os
textos lógicos ou teóricos: poesia e teoria seriam as duas formas antagônicas de enunciar o
realismo grego, os gêneros poéticos através do teatro levavam as massas a uma
consagração coletiva dos mitos, renovando sua força no seio de uma sociedade já
experimentada no realismo das cidades; os gêneros teóricos, por sua vez, vinham conflitar
26
através de enunciações indagadoras e explicativas, a natureza diversa do ser humano e sua
relação com o universo. O kósmos imitado pela poesia tem uma natureza mítica, o kósmos
abstraído pela teoria tem uma natureza lógica.
Esta distinção entre gêneros poéticos e gêneros teóricos é fundamental para que
sejam esclarecidas as implicações pragmáticas da origem dos gêneros literários híbridos. A
conveniência de enunciação desses vários gêneros estava determinada por fatores
históricos e até biológicos que nos escapam; entretanto é possível antever uma relação
sintetizadora entre as tumultuadas forças sociais antagônicas, que se debatiam
intensamente, funcionando como instigadoras naturais do potencial intelectual e criativo
dos habitantes da Hélade, principalmente na diversificação dos gêneros literários. Estes
embates de forças ideológicas e estéticas deixam claro que a civilização grega não era um
todo homogêneo; era, na realidade, formada por vários grupos étnicos e lingüísticos, com
amplo predomínio dos indo-europeus (aqueus, iônios, dórios, eólios e áticos).
O grande problema do realismo grego era conjugar essas forças na criação de uma
sociedade de cidadãos livres, prontos a darem seu importantíssimo contributo para o
aproveitamento de todos. O realismo grego propagava uma espécie de solidariedade
universal que passou mesmo a ser designada posteriormente como um desajeitado
“humanismo grego”. Por isso os gregos se distinguiram amplamente, em realizações
estéticas e ideológicas, dos outros povos, principalmente na literatura e nas artes.
Cataudella ( 1954: 1-2 ) considera que duas coisas distinguem nitidamente a literatura
grega das outras: por tratar-se de um fenômeno natural criador de gêneros literários e pela
sua estreita vinculação com os acontecimentos da vida social. Para este historiador, os
gêneros literários constituiriam a mais forte expressão das características de cada estirpe
grega: “os jônios se associam à épica, à elegia, ao jambo e às primeiras manifestações da
prosa; os eólios, à lírica monódica; os dórios, à lírica coral; os áticos ao drama e à prosa
oratória e filosófica.”
Neste sentido, os textos escritos na Antigüidade – que na modernidade, incluímos
no conjunto da Literatura Greco-Romana - definiram as regras de enunciação dos próprios
gêneros literários. Estes gêneros podem ser vistos como produtos de duas modalidades de
uso da língua escrita, uma, que usava a língua como imitadora de imagens, fundamentada
na memória épica; outra que usava a língua como formuladora de conceitos, baseada no
raciocínio lógico. Os gêneros que surgiram com o emprego da primeira modalidade foram
27
a epopéia, e o drama; e os que derivaram do emprego da segunda modalidade foram a
historiografia, e a filosofia. Estes seriam os gêneros puros que iriam distinguir-se
sistematicamente dos gêneros impuros: a prosa platônica, a retórica e a lírica.
Esta distinção estava também, coincidentemente ou não, relacionada com a
estruturação do texto em verso ou em prosa. O próprio Aristóteles (2003:24) já advertia
que não era o emprego do verso ou da prosa que condicionaria os gêneros miméticos.
Entretanto, na maioria dos casos, os textos miméticos eram escritos em verso e os textos
teóricos eram escritos em prosa.
Os versos elaborados sistematicamente foram em princípio inventados pelos poetas
míticos, mas só Homero, com a Ilíada e a Odisséia, realizou historicamente um ato
discursivo fundador e perpetuador. Os gêneros literários seriam todos derivados desta fonte
primordial que funcionou, além de tudo, como material didático e, por muito tempo, foi o
principal instrumento utilizado pelos educadores na configuração da paidéia. No período
clássico do realismo grego, a atividade de escrever ligava o autor a seu discurso e o seu
discurso a um ato social. Todo texto, não só o texto dramático, estava destinado a um
acontecimento: festividades públicas, como as cerimônias familiares e sociais, celebrações
atléticas, solenidades religiosas e atividades pedagógicas. Dirigia-se ao povo, ou pelo
menos a comunidades mais ou menos vastas dentro dele. Era uma literatura destinada à
recitação e ao canto (cf. Cataudella: 8). Isto esclarece o fato de que os gêneros literários, na
Antigüidade, se desenvolveram e se diversificaram, mas não perderam seu vínculo com o
passado mítico coletivo.
Desde remotíssimas épocas, todo acontecimento de importância social era
acompanhado por um canto ou uma narrativa. Antes de Homero, havia, sem sombra de
dúvida, uma elaboração poética. Mesmo não tendo deixado nenhum vestígio filológico, é
possível deduzi-la. O que a nosso ver reforça esta dedução, além da certeza de que as obras
de Homero não teriam surgido ex-nihilo, é o repertório de gêneros populares encontrado
entre os romanos, uma série riquíssima de nênias, epitalâmios, canções, hinos
17
, produzida
desde a fundação da cidade. Acreditamos que estes gêneros populares se assemelhem aos
breves cantos líricos de natureza religiosa ligados à tradição relativa a autores míticos,
17
Cf. Bickel.(1987:343)
28
como Orfeu
18
, Panfo, Museu, Lino, reproduzidos ou apenas mencionados nos poemas
homéricos.
Estes poetas personificam uma ampla tradição de transmissão oral da poesia
micênica e pré-homérica. Entretanto, como constata Toynbee (1981: 42),
“Nenhum exemplar dessa matéria-prima sobreviveu (nem poderia sobrevivê-lo,
considerando-se que tal material nunca foi reduzido à escrita em qualquer de
suas formas pré-homéricas). Temos de desenvolver o exame retrospectivo a
partir do produto final de Homero, que já estava redigido pelo menos no século
VI a. C. A Poesia homérica, tal como a conhecemos, é um centão de fórmulas
métricas pré-fabricadas. A composição improvisada teria sido impossível se não
estivessem armazenados na mente do poeta-menestrel um número e variedade
suficiente dessas fórmulas métricas para permitir-lhe encadear de improviso um
poema em verso hexâmetro.”
Devemos levar em conta a existência do profundo parentesco entre os gregos e os
romanos (cf. Coulanges: 1998: 7). Roma foi fundada no século homérico, mas esperou
muito tempo, aproximadamente cinco séculos, para conhecer uma versão da epopéia em
latim. Enquanto na Grécia estes cantos líricos, que classificamos de gêneros proto-
literários, passavam a ser mencionados como mero intertexto, em Roma eles ainda estavam
em plena atividade. O que podemos concluir com esta analogia é que, em primeiro lugar, o
gênero épico nasceu a partir da elaboração de textos populares e anônimos de natureza
lírico-religiosa, que classificaríamos como pré-literários; em segundo lugar é que, antes de
Homero, outros poetas teriam existido e teriam derivado seus poemas desses textos
populares; e por fim que Homero, ao vincular seu nome aos seus poemas, legitimou a
autoria literária e inaugurou a tradição da autoridade poética.
Até mesmo os autores dos gêneros teóricos traziam as marcas residuais da
autoridade poética. No século V a.C. a tradição da autoridade do poeta foi estendida para o
pensador, porém, muitas vezes de forma deturpada ou corrompida. Sócrates, por exemplo,
foi um filósofo que nada escreveu, alertando, assim, para o perigo do mal-uso da
habilidade de escrever e do emprego corrompido da autoridade dos poetas e dos
pensadores. Platão, por sua vez, desautorizou o poeta imitador e credenciou o filósofo
escritor. Como escritor, Platão investiu no diálogo simpósico, o gênero de discurso em
prosa que melhor atendia às requisições do realismo do século. A prosa dialética estava,
porém, infiltrada por forte contradição. Servindo-se do recurso do diálogo mimético, Platão
18
Existem os poemas sacros que teriam sido escritos pelo próprio Orfeu. Cf Harvey 1998: 368)
29
forjou uma imitação diferenciada do drama e da epopéia e fez surgir o germe do diálogo
romanesco. “Na realidade Platão forneceu a toda posteridade o modelo de uma nova forma
artística, o modelo do romance”. (Nietzsche 2005: 105)
No livro A República (Platão 2000: 11), e nas obras do ciclo socrático, é Sócrates e
não Platão quem narra, em primeira pessoa, os acontecimentos que deram azo ao diálogo,
no qual Sócrates participa. Este longo texto inicia-se com a seguinte narração:
Fui ontem ao Pireu com Glauco, filho de Aríston, com o objetivo de fazer
minhas orações à deusa, e, ao mesmo tempo, com o desejo de ver de que
maneira celebravam a festa, pois era a primeira vez que a faziam.
Esta prosa, assim iniciada, não é um relato verídico do próprio autor, mas um relato
fictício de um narrador fictício. Platão enuncia seu discurso através de uma imitação, em
muito semelhante à que utiliza o poeta épico-dramático. Seus personagens dialogam
exaustivamente, o que revela, em primeiro lugar, uma habilidade verbal impressionante e,
em segundo lugar, uma lógica inflexível. Atentemos para como Mumford (1998: 178)
entende O Banquete: “Ali, uma estrutura racional articulada e lógica mantinha contidos os
sorridentes desafios e as palavras ruidosamente pronunciadas, as apaixonadas declarações
e o abandono entontecedor da libação apenas para permitir que a tensão estética aluísse ao
fim”. Temos aí um exemplo cabal de prosa mimética, que pode ter repercutido na
concepção de outro gênero ao mesmo tempo imitativo e prosaico, como o romance.
Na trajetória seguida pela evolução dos gêneros miméticos, a tragédia termina
cedendo o lugar de destaque à comédia. Muitos fatores levaram a isto, entre eles o papel
que o mito vai desempenhar na concessão de personagens e fábulas para a realização do
drama trágico. Eurípides (480-406 a.C) talvez tenha sido o primeiro trágico a experimentar
o desinteresse do cidadão ateniense em relação aos assuntos míticos. Suas tragédias eram
respostas ao apelo realista crescente. Segundo J. Gassner ( 1997: 68)
o povo simples começou a aparecer em suas peças e seus heróis homéricos
socialmente superiores, eram com freqüência personagens anônimos ou
desagradáveis. Seus Agamemnon e Menelau são, positivamente, anti-heróis,
como se Eurípides desejasse mostrar aos espectadores o que eram na realidade
os heróis militares convencionais.
As peças de Eurípides encerram, praticamente, o ciclo das grandes tragédias. “A
legião de dramaturgos menores do século V (…) não imprimiram qualquer marca
30
particular no teatro” e os dramaturgos do século IV foram “meros arrivistas bem
sucedidos” ( Gassner: 1997: 83 ). A ênfase realista de Eurípides foi o canto de cisne da
tragédia. Seu apelo à realidade, entretanto, chamou a atenção do cidadão ateniense para a
comédia, que passou a ser o gênero mais adequado aos reclames estéticos e ideológicos
que insistiam em desestabilizar a tradição dos mitos como fonte dos gêneros miméticos.
A comédia desponta, então, colocando em cena aqueles personagens que a massa
de espectadores, naquele contexto de transformação política e social
19
, queria ver em cena
proferindo suas falas. A língua da comédia é a língua ferina da sátira, mas afinada com o
mesmo gênio criador que inventavam as falas para deuses e heróis trágicos, apenas com a
diferença especulativa da gênese mimética, que substituiu os tons elevados do epos mítico,
de tradição homérica, pela ênfase do deboche satírico dos jâmbicos de tradição satírica.
Aristófanes ((~448-380 a.C) foi talvez o primeiro a responder aos apelos estéticos e
ideológicos ao apresentar, na cena e no diálogo, “pessoas ordinárias a fim de as censurar”
(Aristóteles 2003: 31). Só a partir de suas peças podemos ver de maneira sistemática,
reunidos num mesmo texto, vários elementos do mais primitivo realismo satírico;
elementos dramáticos e enunciativos.
“Aristófanes gostava de dirigir sua habilidade artística para a política corrente;
adorava terçar armas com os grandes homens de sua época, crivando de flechas
venenosas, como que num show de gracejos maliciosos num cabaré, seus
calcanhares de Aquiles. As obscenidades com as quais o “impudente favorito
das Graças” empreendia seu trabalho de “castigar o povo e os homens
poderosos” , as rudes piadas fálicas, os coros de passáros, rãs e nuvens – tudo
vale-se da herança cultual das desenfreadas orgias satíricas, das danças animais
e das festas de colheitas”( Berthold 2001: 120).
Aristófanes é o poeta - na trilha da evolução do realismo - sobre o qual vão cair
todos os méritos da reformulação do espírito satírico, impregnado no gosto popular, mas
que havia sido abafado pelo rumor pesadíssimo das enunciações trágicas. Seu prestígio
cresce com o crescimento dos anseios da população ateniense por assuntos mais realistas.
É ele quem vai fazer da comédia o veículo enunciativo mais marcante da história da
literatura realista. Sua atividade literária é a prova cabal de que os gêneros literários
miméticos têm a opção gratificante de caracterizar personagens de qualidade e condição
19
“Em As Rãs, Aristófanes presta testemunho das tensões artísticas e políticas do final do século V, dos
conflitos internos da polis fragmentada e do reconhecimento de que o período clássico da arte da tragédia
havia se convertido em história”. (Berthold 2001: 113)
31
inferiores às do homem comum sem afetar a qualidade das enunciações e do espetáculo
dramático.
Na época de Aristófanes, Atenas está envolvida na Guerra do Peloponeso (431-
404), disputa que só encontra explicação na baixeza dos novos interesses da democracia
helênica, que passa a viver a maior de suas crises, ou mesmo a sua derradeira crise, já que
o domínio de Esparta significou um retrocesso. E a entrada em cena da monarquia
macedônica, no teatro político das velhas poleis, recrudesceu a ponto de, em um século,
elas tornarem-se inexpressivas cidades do império alexandrino. Neste contexto de crise,
como descreve Cautadela (1956: 185 ),
Atenas conhece êxitos e derrotas, prosperidade e miséria; Aristófanes vive a
vida de sua cidade com a paixão do cidadão, com os ódios e suspeitas, a
maledicência e a oposição, as amizades e as esperanças que eram o alimento dos
espíritos naquela época inquieta e impregnada de acontecimentos.
Este é um contexto propício à sátira, diferentemente do que se sucedera no século
anterior, quando o drama e a lírica estavam totalmente dominados pelo sentimento
religioso que só a épica e os mitos poderiam expressar. A consolidação da democracia
ateniense significou também a consolidação do gênero trágico. O sentimento religioso era
ainda alimentado pelos hexâmetros de Homero e Hesíodo (Séc. IX- VIII a.C). Poetas que
já haviam tecido, entre as polis, laços estreitos e duradouros, mesmo que a rivalidade entre
elas tivesse sido grande entrave para a unificação de uma provável nação grega.
Atenas, lar ancestral da prodigiosa deusa, senhora da guerra e da sabedoria, era
também a sede de um progresso intelectual e artístico, que as sociedades civilizadas
posteriores jamais alcançariam. A convivência harmônica entre democracia e religião só
foi possível porque os atenienses tiveram a grande inspiração de manter os deuses em seus
templos, ou melhor, de transferi-los para edificações mais dignas e mais compatíveis com a
grandeza espiritual que os deuses e os heróis representavam. O Parthenon seria um grande
exemplo desse sentimento estético-religioso, mas seriam os teatros que se tornariam as
edificações mais notáveis para abrigar este espirito de união entre o humano e o divino.
O teatro era o lugar onde os deuses falavam e, para dar voz a esses deuses, os
artistas faziam seus esforços. Durante praticamente todo o século V a.C., todos os anos, as
tragédias e as comédias atraíam a atenção dos cidadãos da Hélade. “A multidão reunida no
theatron não era meramente espectadora, mas participante, no sentido mais literal. O
32
público participava ativamente do ritual teatral, religioso, inseria-se na esfera dos deuses e
compartilhava o conhecimento das grandes conexões mitológicas.” (Berthold 2001:103-4).
A importância que as conexões mitológicas adquiriram naquele momento de
consagração guerreira e política da Hélade, e principalmente da própria Atenas, foi
fundamental para o investimento artístico da tragédia durante as Dionisíacas. O que ocorria
nestas festas era uma verdadeira comoção coletiva promovida pelo casamento hierogâmico
entre os ideais políticos e estéticos. Neste período retorna a idéia de que o poeta é o
“guardião da memória coletiva simbolizada pelas Musas (…) o poeta inspirado reforça os
poderes visualizantes de sua arte.” (G. Lombardo 2003: 19).
O poeta trágico, e sua “imitação de uma ação elevada” (Aristóteles: 1999: 43),
entretanto, em pouco tempo, tornar-se-ão objeto dos gracejos jocosos da comédia de
Aristófanes. Este foi impiedoso com os homens notáveis da democracia ateniense. Era um
conservador que defendia os deuses e condenava as tendências subversivas. Para
compreender o espírito conflitante de Aristófanes é preciso compreender o espírito da
comédia. Como descreve Berthold (2001: 120-1):
O concurso de comédias, que acontecia em parte no festival das Lenéias, em
parte na Grande Dionisíaca de Atenas, não era, como o concurso trágico, uma
prova de força pacífica. Era um tilintante cruzar de espadas, em que cada autor
afiava a sua lâmina no sucesso do outro.” Aristófanes, além de rivalizar com
seus colegas de drama, foi um grande crítico dos filósofos acusando-os de
possuírem “arrogante desprezo pelo povo” e de serem “ateus obscurantistas”.
O problema da comédia se distanciava muito do papel estético-ideológico da
tragédia na consolidação dos interesses das classes aristocrático-democráticas que haviam
dominado toda a Ática. A comédia instigante e provocadora não correspondia aos
interesses das classes mais instruídas. O desafio do comediógrafo era tornar relevante,
esteticamente, a mímesis inferior dos cortejos fálicos. Que outro efeito buscaria a comédia,
comparado ao da catarse trágica, senão o riso provocado pelo caráter lúdico da sátira. A
ascensão da comédia e o papel de Aristófanes nesta ascensão são fatos que desencadearam,
no espírito antigo, uma verdadeira transformação nos anseios estéticos e nos interesses
ideológicos; um novo panorama se desenhava. O realismo corrosivo de Aristófanes,
similar a de líricos, como Arquíloco, o ataque direto e implacável às personalidades, a
incorporação de elementos dramáticos tragicômicos, marcariam fortemente as concepções
estéticas do século IV, período que se tornaria o último estágio do que denominamos
33
realismo ático. É interessante analisar o que diz Margot Berthold sobre o caráter deste
polêmico poeta e dr
amaturgo:
Pouco se sabe sobre a formação e a vida de Aristófanes. Parece ter nascido por
volta de 445 a. C. e ter vindo do demos ático de Cidatena. Viveu em Atenas
durante toda sua vida criativa, ou seja, da época em que escreveu sua primeira
peça, Os Banqueteadores (427), até o ano em que escreveu a última, A Riqueza
(Plutus, 388). Das quarenta comédias que sabemos terem sido compostas por
ele, conservam-se apenas onze. Cada uma de suas peças é porta-voz de uma
idéia apaixonada, pela qual o autor batalha com impetuosa militância. Na obra
de Aristófanes, passagens de agressividade crua alternam-se com estrofes corais
da mais alta beleza lírica. Subjacente à sua ironia mordaz e às suas alfinetadas
de escárnio havia uma preocupação premente com a democracia. Ele sustentava
que o seu destino somente poderia ser confiado a pessoas de inteligência
superior e de integridade moral. De maneira similar, fez pressão para que a
guerra fratricida entre Atenas e Esparta chegasse ao fim.
Esta bela passagem revela a alma do verdadeiro pai do realismo satírico. A
ambigüidade da enunciação satírica é análoga ao espírito controvertido do comediógrafo.
Preocupado com as coisas ideologicamente mais sérias, investe no gênero artístico que
nada tinha a ver com a seriedade. É este o espírito que tentamos identificar na evolução do
realismo helênico e no legado que deixou para as sociedades que se ergueram sobre as
ruínas do apogeu helênico.
A controvertida experiência da catarse cômica está diretamente associada ao
conteúdo mimético de suas enunciações. Acreditamos que a percepção da imitação
(mimesis) é antes de tudo uma intuição das “maravilhas” do mundo (kosmos), mas nunca a
sua plena realização. Essa intuição possibilita um aprendizado prazeroso, que aprimorará o
gosto pela gnoseologia da mimesis. G. Lombardo (2003: 94), ao analisar a perspectiva
aristotélica sobre a imitação , considera que
Antes de ser um instrumento da arte poética, a imitação é efetivamente um
instrumento que nos ajuda a satisfazer a nossa tendência para o conhecimento e
a experiência estética, enquanto capacidade de admirar o belo por si mesmo,
concorre para distinguir o nosso comportamento dos outros animais dotados de
sensibilidade” e acrescenta: “menos duráveis nas massas, (…) o desejo e o
prazer do conhecimento mimético cativam mais tenazmente as minorias
educadas, de tal modo que as possibilidades de adquirir um saber por meio da
imitação variam ao longo de uma escala proveniente dos graus mais elementares
do homem comum aos níveis mais depurados do homem instruído e,
especialmente, do filósofo. Depende esta escala exatamente, o coeficiente
intelectual da catarse: mais baixo numa recepção de massa; mais alto, numa
recepção seleta.
34
De fato, é nesta escala que nos apoiamos para refletir sobre o caráter ambivalente
do realismo cômico e de suas sátiras. Na escala catártica, a comédia se dirigiria à massa,
entretanto, ao contrário do que seria deduzido por Aristóteles, a comédia de Aristófanes e
suas enunciações se dirigiam ao espírito crítico dos experimentados espectadores
atenienses. A língua de Aristófanes nada deixa a dever ao dialeto trágico. Os especialistas
comprovam que Aristófanes usou com maestria os trímetros jâmbicos e outras variantes
líricas. Construiu seus personagens com total expressividade e trouxe, para a cena, os
discursos que melhor descreviam o pensamento do homem comum de sua época. Com este
mesmo diapasão, satiriza o filósofo, o tirano, o poeta e os costumes pervertidos do povo
dos demoi áticos e da própria Hélade, que cada vez mais se afastavam do grau mais alto da
escala catártica. Esse estado de coisas, mergulhado, então, numa profunda crise espiritual e
política, começa a substituir a harmonia do realismo mítico - que sintetizava a beleza e o
bem-estar clássicos - por uma euforia dionisíaca, propensa ao hibridismo, sinal da ascensão
de um - cada vez mais efetivo - realismo de massa.
Configura-se então uma transformação no próprio realismo ático. A comédia
passaria então a ser o gênero mimético da transição para o realismo alexandrino ou
helenístico. Esta transformação não se realizou de fato na essência do mundo helênico, não
mexeu profundamente com seus princípios estéticos e ideológicos. É importante
compreender que a história antiga se caracteriza pela existência de longos períodos de
uniformização estética e ideológica. Gombrich (1999: 65-6), em relação à arte egípcia, por
exemplo, constata que:
O estilo egípcio incorporou uma série de leis bastante rigorosas, e todo artista
tinha que aprendê-las desde muito jovem (…) mas assim que dominasse todas
essas regras, dava-se por encerrada a sua aprendizagem. Ninguém queria
aprender coisas diferentes, ninguém lhe pedia que fosse “original”. Pelo
contrário, era provavelmente considerado o melhor artista aquele que pudesse
fazer suas estátuas o mais parecidas com os belos monumentos do passado. Por
isso aconteceu que, no transcurso de três mil anos ou mais, a arte egípcia mudou
muito pouco.
No caso grego e no caso dos gêneros literários, o conjunto de regras e as leis
incorporadas formavam as bases do realismo helênico. As transformações que o realismo
helênico sofreu, ao longo de vários anos, foram motivadas pelo espírito inconformado
deste realismo que buscava a todo custo, e com maior liberdade e veemência, dar às formas
artísticas um tratamento realista e original. Mesmo assim o realismo grego também teve
35
sua longevidade. Embora pontuado pela diversidade, este realismo teria se perpetuado sob
a rubrica do helenismo até o advento e a ascensão do cristianismo.
Os gêneros literários na Hélade, do século VIII ao IV a.C., podem ser enumerados com
certa regularidade cronológica e geográfica, iniciada, na Jônia, pelos poemas homéricos, e
terminada na Ática, pela Nova Comédia, como atesta Cataudela (1954). Para melhor
analisarmos o comportamento de cada gênero neste período, tentamos ordená-lo da
seguinte forma:
1° de acordo com a estrutura métrica do enunciado: verso ou prosa;
2º- de acordo com a matriz enunciativa: monódico ou coral (polifônico);
3º- de acordo com o kósmos representado: mimético ou teórico;
4º- de acordo com o efeito catártico: cômico ou trágico; e
5°- de acordo com a verossimilhança: realista ou mítico.
A partir desta classificação procuramos definir os gêneros puros e os gêneros
híbridos que protagonizaram o realismo helênico: a épica, a lírica coral e a lírica monódica,
a tragédia e a comédia, a historiografia, a sofística, a logografia e a dialética platônico-
aristotélica.
O problema da enunciação literária nos remete ao problema da língua oral e escrita
e de sua evolução. Havelock (1996: 13) esboça algumas questões que consideramos
pontuais. Para ele, os poetas seguem regras formulares, características da composição oral
que era, por definição, uma composição rítmica, logo, poética:
Os termos “poético” e “poesia”, tal como nós os pensamos, equivalem a
“letrado” e “arte da escrita”. Constituem exemplo de um modo de falar que
transporta para o que é nomeado um juízo de valor, derivado, neste caso, do
sistema de valores de uma cultura escrita. Poesia é o nome de um uso ideal da
linguagem, superior, em certos aspectos, aos poderes expressivos da prosa.
Conquanto seja certo que esta última pode vir a tornar-se uma linguagem
artística (como no romance, para dar apenas um exemplo), a prosa, em geral, é
muito mais usada como linguagem de informação e instrução, de história, lei,
tecnologia e coisas do gênero; e seu valor se estima primariamente em termos de
conteúdo. Caso lhe acrescente estilo, um tanto melhor; mas enquanto a forma
estilizada é a essência da arte poética, vem a ser apenas incidental, no vasto
domínio da composição prosaica.
É verdade que a preocupação de Havelock é se situar em torno da apreciação
antropológica da realização da poesia, mas suas observações são importantes para que
36
tenhamos em mente a lembrança de que ambos os modos, verso ou prosa, possibilitaram o
emprego artístico, embora a poesia, formulada em verso, seja mais representativa de uma
sociedade predominantemente oral e a prosa, ao contrário, seja um fenômeno próprio de
sociedades letradas.
A matriz enunciativa foi profundamente polifônica no drama, na lírica coral e na
prosa platônica, mas Simônides (~556- ~468 a.C) e Píndaro (~522-? a.C) , por exemplo,
deram à lírica monódica uma sustentação exemplar com suas odes píticas e encomiais.
Heródoto (~480-~425 a.C), Tucídides (~460-400 a.C) e Xenofontes (~430-~355 a.C)
foram também grandes criadores de uma prosa mimética monódica e desencadearam toda
uma tradição historiográfica.
Nos séculos V e IV a. C. as relação entre texto escrito e audiência eram regidas
pelas instituições e pela demanda da sociedade por discursos cada vez mais eruditos que
designassem o espírito estético e ideológico emergente. Mas já no século IV, com o
desmantelo do sistema das pólis e a fundação das cidades helenísticas, a vida política
esvaziou-se e o interesse dos cidadãos pela instrução foi substituído pela busca evasiva do
entretenimento. A arte e os gêneros literários miméticos, principalmente, acompanharam
essa demanda, enquanto a prosa teórica arregimentou todas as problemáticas filosófica,
histórica e política.
Os poetas dramáticos depois de Aristófanes mantiveram o gênero ainda em voga.
Mas a sátira de Aristófanes deu lugar a uma orientação satírica diferente: “A comédia
agora retirava-se das alturas da sátira política para o menos arriscado campo da vida
cotidiana. Em vez de deuses, generais, filósofos e de chefes de governo, ela satirizava
pequenos funcionários gabolas, cidadãos bem de vida, peixeiros, cortesãs famosas e
alcoviteiros” (Berthold 2001: 124). Este tipo de comédia foi designado como Comédia
Média e teve vigência durante praticamente todo o século IV; e, de certa forma, foi
extremamente profícua. No final deste século, entretanto, a comédia conheceu um grande
autor que passou a figurar como expoente de um gênero conhecido como Comédia Nova.
Seu nome era Menandro (342-292 a.C), que ao lado de Difilo (Séc.IV a.C.) e Filemon
(~361-263 a.C.), foi o responsável por quase toda produção dramática de interesse.
Com a Nova Comédia encerra-se o vasto período Ático. Atenas, depois da derrota
contra Esparta, já não sustenta mais o seu brilho hegemônico. Durante estes vários séculos,
os gêneros literários tiveram um desempenho marcante na formação de uma mentalidade
37
que teve como centro irradiador a pólis. Podemos dizer que os gêneros literários desde
Homero e Hesíodo acompanharam, ou até mesmo comandaram, as várias transformações
que se desenvolveram nestes núcleos urbanizados.
F. Coulanges (1998: 253) inicia a análise histórica dessas revoluções refletindo
sobre a estabilidade das organizações urbanas - sem dúvida, durante o período conhecido
como Idade Média dos gregos, que se estende do século XII ao século VIII a. C.- que
antecedeu a essas revoluções.
Nada podemos imaginar mais solidamente constituída do que a família do
mundo antigo, com os seus deuses, o seu culto, o seu sacerdote e o seu
magistrado. Nada de mais vigoroso existiu que esta cidade, que tinha em seu
seio a sua religião, os seus deuses protetores e o seu sacerdócio independente,
que dominava tanto a alma como o corpo do homem e, infinitamente mais
poderosa que o Estado de nossos dias, reunia em si as duas autoridades hoje
partilhadas entre o Estado e a Igreja. Se existiu alguma sociedade constituída
para durar, esta foi uma delas. No entanto, como em tudo o que é humano, teve a
sua série de revoluções.
O fato é que a desautorização política e religiosa dos reis, sacerdotes e magistrados,
a dissolução da família, da gens, a entrada das classes populares na cidade e a consolidação
da democracia, em seu conjunto, culminaram no sistema estético e ideológico que
passamos a designar por realismo helênico.
Todo esse sistema vigorou grosso modo do século VIII ao século IV a.C.; no
entanto as revoluções não param aí. O século III a.C. vai conhecer o retorno da monarquia,
através da consolidação do império de Alexandre e sua conseqüente divisão; e, em seguida,
testemunhará o início da expansão do Império Romano.
A Nova Comédia chama-nos bastante atenção por conta de sua importância na
concepção da trajetória de uma evolução do realismo helênico e pode nos oferecer um
quadro onde parece ser mais clara a composição estético-ideológica dos gêneros literários.
O que ocorreu com a sociedade helênica após a intervenção do pequeno reino grego
da Macedônia foi uma transformação de mentalidade flagrante. Como diz L. Mumford
(1998: 211):
os contemporâneos de Menandro tinham perdido os rudes costumes de aldeia, e
exigiam perfumes, pequenos objetos de arte como as delicadas estatuetas de
Tangara, e uma culinária volumosa e requintada, conforme testemunha Aulo
Gélio. Procuravam eles pequenas elegâncias para se consolarem de uma vida
politicamente vazia.
Uma dessas pequenas elegâncias seria a própria comédia. O público de Menandro
talvez estivesse experimentando uma forte sensação de que o drama, agora, deveria
38
produzir não mais do que um pequeno repertório de suas cotidianas atividades e
enunciações. Não faziam grandes exigências de um realismo que colocasse em cena as
ações relevantes quanto à condição de existência política e religiosa. A mímesis agora está
voltada para essas exigências de gosto e de interesse sociais, que não mais se confundiam
com os interesses políticos, e sim econômicos. O problema não era mais fazer parte
daquilo que teria sido o ponto alto da carreira de qualquer cidadão ateniense, da pólis como
um todo e das realizações pan-helênicas que consagrariam pequenas cidades migratórias
como Olímpia , Delfos, Cós, Elêusis
20
e até mesmo a própria Atenas. Agora a sociedade
grega estava dividida entre ricos e pobres e mergulhara numa crise que iria acarretar, não o
seu desaparecimento, mas a perda total da condição de cidade-Estado independente. O
realismo da Comédia Nova fez nascer uma concepção dramática que, segundo Gassner
(1997: 106), faz de Menandro o verdadeiro pai da comédia. As suas peças encerram um
universo facilmente mimetizado. “Cada personagem possuía sua marca distintiva e era
provido de complexas motivações; os escravos tanto quanto os mestres eram dotados de
personalidades distintas e, dentro dos limites da estória romântica, suas personagens
comportavam-se com uma plausibilidade que até então não preocupara os escritores de
comédia”. O realismo das suas peças recai sobre todo seu conjunto, desde a definição dos
caracteres, com sua conduta plausível, até seu desenlace, que reconduz as coisas (res) a
seus lugares de origem. Este realismo romântico e alusivo condiz efetivamente com a
observação que Aristóteles fazia desse tipo de comédia. O ridículo dessas peças não está
caracterizado nos vícios e na torpeza nua e crua da alma que se deixa corroer pela sua
condição de ser inferior e pela sua fealdade. Também não há mais deuses ou qualquer
criatura sobrenatural que possa intervir concretamente no destino humano. Há apenas a
motivação erótica e visceral de reagir aos caprichosos equívocos da Fortuna alegorizada.
A Nova Comédia, como última expressão do realismo ático, pode também ser vista
como a primeira manifestação da plausibilidade luxuriosa e hedonística que os homens das
cidades helenísticas depois irão exigir de seus artistas e escritores. Atenas se comportará no
mundo helenístico como qualquer outro município subjugado a forças imperiais, mas sua
distinção será mantida e ela passará a funcionar como uma espécie de cidade universitária,
para onde irão acorrer muitos dos homens que darão continuidade à consolidação do
realismo helênico.
20
Cf. Mumford (1998: 150)
39
2. Os gêneros literários e a crise do realismo helênico
Os gêneros literários que ajudaram a configurar o realismo helênico constituem
modelos definitivos: o legítimo repertório da literatura clássica. A identificação estético-
ideológica do realismo helênico com os gêneros literários dará lugar a uma literatura
identificada com um realismo híbrido e individualista, amplamente complexo que
desenhará num futuro próximo o traço característico mais marcante de toda a cultura
românico-helenística. Os sucessos políticos e militares de Alexandre Magno
desencadearam também a derrota e a consagração daquele repertório. De Homero a
Menandro, a literatura, como atividade vinculada intimamente aos impulsos vitais da
cidade helênica, também sofreu grande impacto quando esses impulsos deram sinais de
esgotamento. As cidades gregas não chegaram a conhecer seu total aniquilamento, mas
chegaram a ver suas instituições mais elementares sofrerem profundas mudanças. O
declínio político da cidade depois da morte de Alexandre se tornou inevitável. As palavras
de Jean Touchard (1959: 69) sobre esse acontecimento são suficientemente esclarecedoras:
Alexandre morre em 323 a.C. Mas quinze anos bastaram para transformar o
aspecto político da baía Oriental do Mediterrâneo: essas transformações e os
seus efeitos sobreviveram à partilha do Império Macedônico. Nesses territórios,
agora pelo menos sumariamente unificados, a cidade grega iria decair a partir de
então como forma política; no Oriente predominam as monarquias; na Grécia
continental, a cidade terá a sua vida limitada, antes de desaparecer por completo
no século II, a uma existência precária, com uma autonomia quase sempre
fictícia. Prevalecerá é certo, como mecanismo municipal, e em tal sentido
tenderá até a difundir-se no Oriente helenizado, mas deixou, completamente de
ser esse organismo vigoroso e exclusivo que mobilizava numa autonomia
fecunda as forças materiais e espirituais dos cidadãos.
O vínculo institucional entre o poeta e a cidade já começa a ser desfeito desde a
época de Menandro, mas esse rompimento só veio interferir profundamente na criação
literária com a ascensão da kosmopólis helenística. As cidades helenísticas não
preservaram os princípios que possibilitaram a coesão da pólis grega. Mas a herança
helênica é amplamente difundida em cidades como Alexandria, que como assevera
Touchard:
40
É uma cidade grega em tudo menos no conteúdo político que aquela teria. Os
seus habitantes são súditos não cidadãos; mais indivíduos do que membros de
uma comunidade política. A submissão política e o individualismo ético passam
bruscamente a predominar. É por isso que as idéias de um Ésquilo
maratomaníaco ou de um Platão obcecado pela salvação da cidade perdem o
significado ou adquirem um outro muito diferente para leitores privados daquilo
que suscitara as suas obras: o espírito cívico. É portanto uma literatura grega
muito diferente, embora oculta sob as mesmas aparências, que vai continuar a
literatura clássica.
A literatura não desaparece com o espírito cívico, mas adquire um novo
significado. A ideologia que substitui o civismo pan-helênico e a democracia ática tem
uma profunda inclinação individualista. Este mesmo senso comum desenraíza os cidadãos
cosmopolitas e os livra das obrigações civis. Os gêneros literários forjados no realismo
ático sobreviveram a esta nova feição do jogo político adaptando-se a regras similares. As
cidades helenísticas passaram a se organizar como o lar de afortunados e desafortunados.
Pobres ou ricos, os habitantes dessas cidades eram todos súditos de um império antes de se
aperfeiçoarem como cidadãos. O exemplo de Menandro é pontual, a sua indiferença
política era em princípio enunciada pelos seus personagens: moralmente presos aos seus
afetos e desejos; sabedores, mais do que nunca, de que estariam sujeitos aos caprichos do
amor e da sorte. Sua nova comédia, mesmo não tendo alcançado sucesso imediato, terá
deixado um importante legado à posteridade helenística, ou seja, um gosto muito duvidoso.
A crise do realismo helênico pode ser notada justamente na concepção deste drama
que mimetiza fábulas e intrigas nascidas pela ação de jovens apaixonados, cuja união
contraria agudos preconceitos. Além do efeito cômico, essas comédias descobrem o prazer
do “final feliz”. Uma resposta por certo às lições de Epicuro (321-270 a.C) e Aristóteles.
Pois tal como assevera Gassner (1997: 25): “A qualidade repousante e hedonista das peças
tem afinidades com a filosofia da felicidade ensinada pelo grande Epicuro, contemporâneo
e concidadão de Menandro. Em Atenas estava também Aristóteles, o filósofo do “justo
meio-termo” – princípio cardeal de toda a genuína alta comédia, na qual os pecados da
extravagância e do excesso são sumariamente punidos pelo ridículo.”
O público de Menandro encontra no ridículo das paixões o equivalente ao idílio
bucólico de Teócrito (?-~270 a.C) e aos apelos eróticos de Calímaco (310-? a.C). Depois
de Menandro, os gêneros literários passarão a servir a esses espíritos propensos a responder
aos mais ardilosos caprichos do amor com uma dignidade inviolável, e passará a
representar a principal característica do paganismo e do realismo helenístico sob evidente
41
influência de um pensamento híbrido bastante difundido, religiosamente sincrético e
filosoficamente estóico-epicurista.
A cidade helenística teve que suportar toda espécie de hibridismo, mas ela já
nasceu preparada para isto, basta verificarmos o papel central de Alexandria. Nesta cidade
externamente superior a pólis erudita, o indivíduo experimentava uma nova sensação em
seu espírito. Segundo Mumford (209),
Exceto nas ciências físicas, nas disciplinas escolásticas mais quantitativas e na
produção de bens materiais, nada prosperou na cidade pós-helênica. Enquanto
aumentava a organização, a riqueza e a tecnologia, as finalidades ideais da
cidade não mais encontravam expressão na vida cotidiana. O próprio espírito
passava fome, não por falta de alimentos, mas pelo fato de ser super alimentado
com uma nutrição avitaminada e estéril. O museu e a biblioteca ganharam
precedência sobre a vida e a experiência: o academismo substituiu o equilíbrio
orgânico da academia original; o recolhimento e a classificação tornaram-se as
principais avenidas da atividade intelectual. A proliferação do conhecimento
desvitalizado, do conhecimento tratado como um substituto da ação responsável,
e não como um instrumento da vida, recebe seu nome, apropriadamente da
grande metrópole de Alexandre. O “alexandrismo” elevou tal conhecimento a
alturas apenas rivalizadas pelas produções suavemente vazias incentivadas pelas
grandes fundações educacionais de nossa própria época.
Eis o ambiente ideal para se promover toda espécie de hibridação. Na religião, por
exemplo, houve uma série de sincretismos outorgados pelo próprio Alexandre, que
pensava nos gregos como verdadeiros semideuses superiores inclusive aos macedônios.
Alexandre foi o iniciador desta nova ordem sistematicamente submetida à fusão de
elementos helênicos com elementos orientais: egípcios, semíticos, babilônios e indianos.
Ele que fora motivado por vários fatores lançou-se numa vitoriosa campanha militar
civilizadora que estabeleceu os ditames de uma nova orientação cultural, estética e
ideológica.
Assistiu-se a um processo de aculturação que se tornou o divisor de águas entre
estas duas espécies de realismo que tinham em comum a essência mítica dos gêneros
culturais. Entretanto, o que essa nova versão de helenismo possuía de mais distinto era o
emprego dos gêneros literários. Os poetas e escritores mudaram a sua feição procurando se
acomodar à nova feição da cidade. Os gêneros literários não interessavam mais como
veículo de uma enunciação carregada de significado político e conteúdo religioso pronta
para satisfazer aos anseios mais elevados de reflexão moral e estética. Os escritores haviam
descoberto o estilo e a erudição. Para Cataudella (1956: 251),
42
A mudança de condições foi proveitosa aos estudos científicos e
eruditos, algumas ciências – a astronomia, a matemática, a geografia -
vieram a progredir de maneira marcante, como nunca havia ocorrido até
então, e surgiram outras, como a filologia, que levou a cabo um trabalho
imponente de comprovação crítica e de exegese de textos; enquanto
alguns gêneros como a filosofia e em parte a história, perdiam em geral
seu caráter literário.
Os gêneros literários passariam a ganhar uma especificidade que pode indicar uma
crise flagrante do realismo nascido na pólis helênica. Isto se torna mais evidente ainda na
perda de sua relevância política e social:
A poesia se tornou cada vez mais distante da existência da cidade e da realidade,
deixou de adaptar-se às ocasiões que a vida prática lhe havia oferecido em outro
tempo, quando a poesia clássica, dramática e coral, havia sido complemento
necessário das solenidades religiosas e civis, e havia acompanhado, nas demais
formas da lírica, os numerosos acontecimentos da vida familiar e social. (Cf.
Cataudella: 251)
O traço distintivo entre o realismo ático e o realismo alexandrino é a pragmática
dos gêneros literários; a prática literária na cidade-Estado, na pólis, estava sujeita a uma
intrigante relação até hoje mal compreendida. Havia fortes laços religiosos, políticos e
sociais que condicionavam o fazer literário. Tanto o público quanto os autores sabiam que
os gêneros literários eram produto de uma herança cultural e de uma verve espiritual, com
a qual eles se identificavam profundamente. Entretanto foi dentro da própria cidade
helênica que se deu o grande choque entre o realismo homérico, que propunha uma
reformulação estética do mito, com o realismo ático, que explorou o mito de maneira
crítica, sem medir as conseqüências desse esforço intelectual. Conseqüências estas que
provocaram a crise generalizada do pensamento grego que, entretanto vai gerar o espírito
que medrou e vigorou no mundo helenizado ou helenístico.
Nas cosmopólis alexandrinas, esses laços vão deixar de existir e o poeta, sem
perder de vista seu valor ancestral, terá seu lugar junto aos reis eruditos e a mecenas ou
evérgetas
21
que não pouparão recursos para tê-los ao lado. A importância capital que o
poeta tinha na cidade helênica será substituída por uma mera função secundária de
arrivista. De Homero a Menandro verificamos um declínio estético-ideológico numa
escalada que vai desde a concepção de um kósmos edificante que se caracteriza por uma
21
Alto dignatário que patrocinava as liberalidades nas urbes que administrava. A grande maioria dos
anfiteatros, essas enormes riquezas petrificadas por mecenas que assim punham a sua marca definitiva na sua
cidade. Cf. ( Áries & Duby 1989: 114)
43
temporalidade e uma espacialidade perpetuadoras, a um kósmos banal, fugidio e sem
profundidade, dos personagens da Nova Comédia. Esses gêneros miméticos, entretanto,
desempenharam um papel preponderante no processo de helenização dos povos orientais e
- através de Roma - dos povos ocidentais. A língua grega ganhou um formato híbrido e
comum designado pela koiné dialekthós. Nesta nova configuração lingüística o grego
recebe empréstimos das línguas semíticas, babilônicas, latinas e egípcias.
O que houve com os gêneros miméticos parece guardar profunda relação com o que
houve com a própria língua grega ática. Desta língua os falantes nativos, que sobreviveram
ao alexandrismo da koiné, tornaram-se escravos de seu congelamento. A função destes
escravos filólogos anagnostas era sustentar o valor primordial desses gêneros, dessas obras
sob a égide de um vínculo original. Ao final das contas os escravos gregos foram os
grandes agentes de propagação do helenismo literário. Entretanto todos os esforços que
envidaram não foram suficientes para manter a força original, nem da língua nem dos
gêneros que a perpetuavam. Os gêneros miméticos, que realmente podem ilustrar o período
helenístico, são os gêneros híbridos, que assinalamos no primeiro capítulo. Houve ainda
neste mesmo período uma verdadeira multiplicação de gêneros teóricos, que, sem dúvida,
atendiam melhor a uma demanda individualista de erudição e cientificidade.
Como já vimos, foi na maioria das atividades humanas que a helenização deixou
sua marca e se propagou por toda a bacia mediterrânica, chegando a se estender ao extremo
dos dois hemisférios. Toynbee (1984: 58) diz magistralmente que “Em sua extensão
máxima, o helenismo se havia expandido em roupagens latinas até às ilhas Britânicas e o
Marrocos, a oeste, e a leste, em roupagem budista até o Japão”. É espantoso o grau de
fusão e assimilação que os vários povos não-helênicos alcançaram em relação ao que
podemos entender por helenismo. Toynbee, por sua vez, entende que todo esse alcance
torna patente o potencial espiritual do povo helênico, isto é, dos gregos. Para ele “a religião
foi o único campo de atividade em que o helenismo falhou significativamente. Tampouco
foi bem sucedido na tecnologia. Mas nas artes plásticas, na arquitetura, na literatura e na
filosofia foi predominante.” ( 1984: 58 )
A religião helênica, na verdade, dentro da própria pólis, já havia adquirido duas
faces rigorosamente distintas; como religião de Estado foi peça importante no
estabelecimento da ordem que havia destituído a monarquia, entretanto fez um grande
esforço para manter a autoridade dos basileus e eupátridas. Por outro lado, como religião
44
tradicional e popular, foi mantida por força da magia e dos mistérios, dos oráculos e dos
rituais. Sócrates e o teatro grego representam bem o conflito entre estas duas frentes em
que a religião da Hélade se debatia. A herança deste debate foi recebida no seio da
cosmopólis. Só que, por um lado, o evergetismo, sustentado pela aristocracia, oficializou o
culto da divindade dos reis que governavam plenamente com máxima autoridade; por outro
lado, a religião popular adequava-se aos mais exaltados sincretismos, enquanto seitas e
cultos dionisíacos proliferavam entre as massas.
Se a religião fracassou entre os helênicos foi devido ao verdadeiro expurgo sofrido
pelos mitos. A religião antiga - que se caracterizava principalmente pelo culto aos mortos,
sustentado pelos laços sagrados que os homens tinham com os deuses patriarcais - foi, ao
longo de vários séculos, desde Homero e Hesíodo, dessacralizada. Essa dessacralização,
contudo, não foi plena, mas a competição ideológica entre a filosofia e a poesia, de um
lado, e a religião e os mitos, do outro, no espírito dos homens do mundo helenístico, foi
notoriamente vencida pelo lado que melhor atendeu aos anseios materialistas da época. A
crise espiritual no seio da cultura helênica, portanto, não abalou totalmente as estruturas
estético-ideológicas que asseguravam a manutenção do helenismo, mas deu amplas
margens para o sincretismo religioso.
Obviamente a literatura, a filosofia e, mais eficazmente, as artes plásticas, como
ressalta Toynbee, salvaguardaram os elementos significantes do helenismo e ampliaram
mundialmente sua esfera semiológica. Que elementos significantes seriam estes?
Basicamente o acervo composto pelas obras dos grandes autores - poetas e artistas que
deram aos mitos uma nova indumentária estético-ideológica. É exatamente aí, no que diz
respeito aos mitos, que as artes vão manter vivas figuras e personagens que protagonizaram
a mitologia. Zeus e os deuses olímpicos continuavam a consumir as chamas dos templos e
continuavam povoando o imaginário da complexa sociedade helenística.
Os gêneros literários ainda encontravam seus temas na mesma fonte, a partir da
qual Homero e Hesíodo haviam forjado seus hexâmetros. A épica e o drama helenístico
não foram além da mera reprodução da épica homérica e da didascália. Entretanto os
poetas mais destacados buscaram novas maneiras de ajustar essas figuras a um realismo
alegórico amplamente diferenciado do realismo lógico dos escritores gregos. A Fortuna
(Týche) e o Amor (Erós) encabeçarão o cortejo alegórico dos deuses hipostasiados em sua
substância, mas enriquecidos em suas formas sensuais e plásticas. O Zeus fertilizador que
45
deu início às grandes dinastias fundadoras era substituído pelo Zeus simpósico, apaixonado
por Ganimedes.
A vida sensual e exuberante das kosmopólis fervilhava e os gêneros literários
contribuíam em muito para a propagação desta forma estilizada de viver. Helenizar-se era
antes de tudo escolher e adotar uma forma elegante de viver. Aos poucos os povos não-
helênicos iam se dando conta da relevância da educação helênica. Obviamente já não se
tratava de um reconhecimento do valor cívico-religioso do conteúdo educacional que
ensinava a importância do respeito aos pais, à polis e aos deuses, mas sim de uma aceitação
e um reconhecimento puro e simples da superioridade do conteúdo cultural dos gregos.
A ordem mundial instituída por Alexandre fez acender no espírito da época uma
chama de helenismo que varria as fronteiras dos grandes impérios e consolidava uma
espécie de religião sincrética universal. O mero contato de outras civilizações com o
helenismo já provocava determinada fusão. Os gêneros literários assimilaram esse
sincretismo que, de alguma maneira ou de outra, não era compatível com a nova
intelligentsia forçosamente erudita e artificiosa, e passaram a enunciar exatamente, através
de um realismo evasivo, os motivos da disseminação da nova ordem cosmopolita.
Desprovida dos motivos que haviam alimentado a literatura grega – a religião, a pátria e a
política – como observa Cataudella ( 1956 251-2)
a poesia tentou compensar a falta de verdadeira inspiração e se fez erudita (...) se
fez moralizadora, cuidou principalmente da perfeição da forma – compreende-
se a razão de os poetas cultivarem indiferentemente vários gêneros – pagou seu
tributo à época com uma certa tinta áulica e bajuladora, buscou a imitação da
realidade em um mundo fictício de idealizações campestres, imitou os grandes
modelos da épica, mas adaptando-os ao transformado espírito daquela época,
precipitou o processo de aburguesamento iniciado por Eurípides, passando da
praça pública ao interior da casa e achando novos campos na vida íntima e no
amor; perdeu em subjetivismo, sem compensar mais que em mínima parte, com
seu caráter reflexo, a energia criadora das melhores épocas.
O redimensionamento da concepção aristotélica dos gêneros passou a significar um
desafio para os poetas. Restavam a eles a imitação dos modelos - que passam a ser
designados por clássicos – numa mostra de habilidade intelectual rigorosamente formalista.
Perpetua-se a forma helênica, mas não seu conteúdo. A literatura separada da religião se
fixa, contudo, na frivolidade individual, provocando por certo o que Cataudella chama de
aburguesamento. Este processo arrasta consigo, além do pedantismo da forma, próprio das
sociedades burguesas, o desgaste espiritual. A helenização parecia sugerir a incorporação
46
dos verdadeiros elementos que motivaram a literatura clássica, mas o que na verdade
acontecia era o registro da substituição do realismo sóbrio do aticismo pelo realismo
esnobe e alegórico do alexandrismo.
Além de investirem em vários gêneros, os poetas buscavam o virtuosismo formal.
Cataudella (1954: 252) vê como aberrações as poesias figurativas que dispõem os versos
de tal maneira que, com seus contornos, desenham um objeto qualquer: altar, asa, ovo,
flauta. É famoso O Ovo de Simias, mas vejamos como J.P. Paes (1995: 109) analisa sua
estrutura:
Tem seu ponto de partida numa sinédoque: o efeito assume metaforicamente o
ser da causa. Vale dizer: O trilo do rouxinol-fêmea ao desovar converte-se ele
próprio em ovo. Num ovo-som, ou melhor dizendo, num ovo-metro: para os
gregos que não usavam rima, o metro ou ritmo regular era a característica
formal mais saliente da poesia, embora Aristóteles advertisse na Poética, que,
por si só, ele não era condição suficiente.
O verso, para Aristóteles, não era o elemento fundamental na constituição dos
gêneros poéticos, mas para os poetas alexandrinos revelar tal habilidade em compô-los -
mesmo se esses versos não perfizessem uma enunciação de relevante conteúdo - era o
princípio motor de sua estética. Ou, melhor dizendo, os poetas alexandrinos, de uma
maneira geral, não tinham a preocupação de prover seus versos com enunciações de
conteúdo cosmogônico ou cívico-religioso, mas tinham a intenção de fazer versos
estritamente locucionais, ou seja, os versos eram inusitadas massas verbais que ganhavam
forma através do ritmo e dos metros. O realismo alegórico helenístico era, em larga
medida, exuberante na forma - multiplicavam-se os gêneros que melhor respondiam aos
anseios dos poetas e da sociedade. A poesia tornava-se, cada vez mais, refém da retórica.
Não é difícil comprovar a veracidade desses fatos se levarmos em conta o caráter
documental das antologias que, reunindo epigramas escritos ao longo de pelo menos
dezessete séculos, registraram a evolução da lírica helênico-helenística. A configuração
final destas antologias é a Antologia Palatina, composta de 15 livros, 3700 epigramas e
mais de 22000 versos
22
. Os epigramas foram aí reunidos sob critério temático. Dada a
antigüidade do epigrama como gênero literário, que literalmente seria traduzido como
“sobrescrito”, não descartamos sua dimensão pragmática. A transformação que sofreu o
epigrama não foi diferente da que sofreu qualquer gênero originado no período de
22
Cf. Paes (1995: 113)
47
evolução do realismo grego. O caráter cívico-religioso, com o qual procuramos distinguir
os gêneros do realismo grego, está longe de fazer parte das características dos poemas
epigramáticos desta antologia, embora seus temas indiquem situações reais, mas, na sua
grande maioria, essas conjunturas são fictícias.
Como assegura Paes (1995: 119) “ O epigrama clássico deu forma literária à
simplicidade e à sobriedade das antigas inscrições.” Contudo, observa que no período
alexandrino,
no domínio da epigramística, a sobriedade emotiva do período clássico cede
lugar à livre expressão dos sentimentos, com o que o gênero assume as funções
da poesia lírica e se torna hegemônico. Os numerosos poetas que a ele se
dedicaram pertenciam a duas escolas distintas: a jônica e a dórica. A primeira
era mais refinada e versátil que a outra. Não só cultivou todas as modalidades de
epigrama como lhe agilizou a dicção e lhe diversificou o escopo. Ela passa a
servir para a narração e a descrição, o monólogo e o diálogo dramático, o
preceito de moral e reflexão filosófica, a crítica de costumes e a sátira pessoal, a
lisonja aos poderosos e a homenagem fúnebre, o louvor dos prazeres e a
confidência amorosa. ( cf. Paes: 121)
Os epigramas representam bem, na sua diversidade, o espírito que se apossou do
helenismo entre os séculos III e I a.C, principalmente porque seria o gênero que melhor se
adequaria ao realismo romântico já experimentado pelos contemporâneos de Menandro.
Devemos aceitar que os grandes temas helênicos – fundamentados na religião e na política
- sobreviveram nas penas desses escritores desprovidos de verdadeiro talento, desses
poetas que haviam perdido seu legítimo contato com o público e se esforçavam apenas
para fazer desses grandes temas um mero adorno de suas sensações. Mas os deuses e os
heróis para esses homens instruídos, intelectuais esterilizados por doutrinas filosóficas
moralistas e iconoclastas, como o estoicismo e o epicurismo, nada mais eram do que meros
objetos de erudição estética. Revelar-se possuído por Eros e favorecido pela Fortuna – e
enunciar isto com habilidade poética – tornou-se a marca dos grandes poetas. Entre os mais
representativos dessa época, Calímaco aparece não só como o grande mentor de uma
poesia concisa não totalmente desprovida de beleza, mas também como defensor assíduo
da brevidade e hábil criador de epigramas. De uma forma ou de outra, os epigramas
mantinham a tradição e a força espiritual dos antigos poetas; Calímaco empregou-os
consciente de que havia escolhido a forma mais adequada para motivar a simulação de
acontecimentos necessários ao ensejo poético. Os epigramas, pela sua antigüidade,
mantinham o espírito primordial, mas os helenistas o empregaram de uma maneira própria.
48
Cataudella ( 1956: 253 ) constata que continuavam “os epigramas verdadeiros, funerários e
votivos, mas também e, com maior freqüência para ocasiões fictícias, variando
engenhosamente de temas, logo acabavam por converterem-se em tradicionais e
retóricos.” O poeta helenístico era um artífice hábil com as palavras, mas não era detentor
de mensagens proféticas, misteriosamente belas, e nem apresentavam um universo em
pleno vigor de sua espiritualidade, como os antigos aedos homéricos. Na verdade, o
epigrama tem sua origem nas inscrições votivas, em estelas mortuárias, isto é, remonta às
crenças antigas, e inspirado nelas o epigrama atendia a necessidades práticas da religião.
Entretanto os hábeis poetas do helenismo usaram o epigrama para atender a necessidades
práticas da própria poesia, do próprio fazer poético. Era usado para expressar mensagens
banais de apreço, de amor, de descrença; para descrever objetos artísticos, aos quais
atribuíam a beleza.
Os outros gêneros em verso não possuíam a força enunciativa do epigrama, que era
um acontecimento verbal por excelência, por isso não despertavam mais o interesse dos
poetas, exceto no caso da nova comédia entre os romanos e de uma épica, que repercutiu
apenas como uma prova de habilidade no uso do hexâmetro homérico, não por outra razão,
mas sim por certo virtuosismo.
A extrema complexidade do mundo helenístico obriga-nos a refletir a respeito da
sobrevivência dos gêneros literários primordiais. De fato, eles sobreviveram, mas sofreram
profundas transformações. No drama foi o próprio poeta dramático que perdeu toda sua
importância perante a sociedade helenística e entre os seus administradores, como
comprova Berthold (2001: 130) “Enquanto no século V, a grande era do drama clássico,
os poetas haviam sido os favoritos declarados e confidentes dos reis, príncipes e chefes de
Estado, no século IV foram substituídos pelos atores”. Este fato que já havia sido notado
por Aristóteles na Poética não impediu, no entanto, que o teatro adquirisse grande força
externa, nomeadamente, na sua arquitetura. Licurgo já havia concluído o teatro de Dioniso
e em muitas outras cidades foram construídas também grandes casas de espetáculos.
A partir daí o gênero dramático se separaria profundamente da mímesis heróica das
fábulas homéricas e áticas que davam o tom de seriedade que a tragédia e a comédia
clássica de Aristófanes possuíam, como prova o destino da tragédia, que deixou de ser
representada para ser lida. Quanto à comédia, só a mais nova versão aperfeiçoada por
Menandro ainda conseguiu adeptos, inclusive entre os romanos, que lhe deram novo
49
fôlego, tornando-se este gênero fundamental na helenização dos latinos. Todavia os
gêneros primordiais perpetuaram-se, ganharam a função de modelos. Podemos dar uma
grande lista de escritores épicos – imitadores do modelo homérico - que seria encabeçada
por Apolônio de Rodes, autor de Os Argonautas, epopéia escrita no século III a.C. e
encerraríamos com Nono de Panopólis, com seu poema As Dionisíacas, escrito quase
setecentos anos depois, no século IV d. C, perpetuando Homero. Os gêneros em verso
realmente sobreviveram, mas aos poucos foram se tornando cada vez mais distantes das
massas. Por mais que fossem imitados, muitas vezes até com certa maestria, não passavam
de mera imitação. A oralidade que havia tornado original a dicção de Homero e Hesíodo, e
que havia sido aprimorada pelos poetas líricos e trágicos, já não existia mais. A sociedade
letrada do helenismo, os cidadãos instruídos de Alexandria, no máximo aceitavam a
condição de audiência especializada. Como objeto estético-ideológico a epopéia nada mais
acrescentava ao espírito predominante naquele contexto, pois a enunciação épica tornou-se
vazia, o aedo e os heróis tornaram-se tão distantes da experiência do homem comum, que
só o fato de mencioná-los já soava pedante.
Os gêneros literários em prosa, por sua vez, também se diversificaram. Os
discursos teóricos tornaram-se extremamente especializados e a erudição pseudocientífica
associou-se à retórica e à eloqüência. Os pensadores – e Epicuro sem dúvida é o mais
notável deles - perseguiam o curso do conhecimento acumulado no realismo helênico, mas
viviam o momento da aguda transformação dos sólidos valores da polis, este que foi o
exato momento do reconhecimento do valor da reflexão filosófica nos assuntos humanos e
divinos, que para os homens instruídos tornava dispensável a religião; mas foi também o
momento de entender que, para chegar à felicidade, o conhecimento abstrato por si só não
bastava, era preciso vivê-lo com a energia do corpo. Estóicos e epicuristas se debatiam,
mas em um ponto concordavam: a necessidade de dominar as sensações voluptuosas da
alma delimitada em um corpo sólido, ao mesmo tempo débil e frágil. O prazer sóbrio ou a
feliz austeridade, o hedonismo dos epicuristas e o rigor dos estóicos triunfaram juntos na
semiosfera helenística. Foram eles na verdade grandes condutores do helenismo.
Principalmente na figura desses escravos aticistas - mais filólogos do que filósofos - estava
a massificação, ou melhor, a difusão do helenismo.
Todavia o fato literário mais marcante no que diz respeito à prosa foi o
aparecimento do romance grego. Essa prosa mimética parece ter nascido para atender
50
imediatamente às exigência do tempo, tempo de profundo hibridismo. O romance é o
gênero mais representativo do hibridismo estético-ideológico, espiritual e material sofrido
pelo helenismo, no choque com as culturas periféricas, choque a partir do qual o helenismo
começou a se desenvolver na sua ampla extensão geopolítica. Não se sabe muito sobre a
origem deste gênero, mas deve remontar aos Contos Milésios recolhidos por Aristides de
Mileto (Séc II a.C). A prosa híbrida possivelmente nasceu na Ásia Menor. Mileto é, por
certo, a sua pátria, já que o indício mais remoto do aparecimento da prosa híbrida é a
referência a Cadmo de Mileto (Séc VI a.C) que escreveu, em prosa, uma narrativa
intitulada Fundação de Mileto. Isto quer dizer que já desde o período arcaico o gênero
romanesco começa a se esboçar.
O caráter licencioso dos Contos Milésios já parece revelar um forte indício da
vocação híbrida do gênero; entretanto os escritores helenísticos tiveram de adequá-lo aos
ditames do novo realismo. Realismo que oferecia aos leitores uma nova possibilidade de
fruição literária. Uma nova concepção da épica homérica, do drama ático, da lírica
elegíaca, da historiografia, da prosa simpósica, dos vários gêneros que configuraram o
realismo clássico.
Bakhtin (1990: 215), a respeito do romance grego, que é uma das três espécies do
romance antigo, adverte-nos que:
Todos os elementos do romance (...) sejam os de enredo, os descritivos ou os
retóricos, não são de modo algum novos: todos eles encontravam-se e foram
desenvolvidos em outros gêneros da literatura clássica: os temas de amor
(primeiro encontro, paixão à primeira vista, saudade) foram desenvolvidos na
poesia de amor helênica, outros temas (tempestades, naufrágios, guerras, raptos)
são desenvolvidos pela epopéia clássica, alguns temas (reconhecimento)
exerceram papel substancial na tragédia, os temas descritivos foram
desenvolvidos no romance geográfico clássico e nas obras historiográficas, por
exemplo as de Heródoto, e as reflexões e discursos em gêneros retóricos. Pode-
se avaliar de forma variada o significado da elegia amorosa, do romance
geográfico, da retórica, do drama e do gênero histórico-geográfico no processo
de nascimento (gênesis) do romance grego, mas não se pode negar o conhecido
sincretismo dos aspectos de gênero no romance grego. Ele utilizou e fundiu em
sua estrutura quase todos os gêneros da literatura clássica.
O romance grego e os demais exemplos de prosa híbrida se configuram como o
gênero das grandes aventuras amorosas. Todavia os obstáculos estéticos dessa
configuração parecem ter sido superados pelos autores. Este gênero deveria ocupar os
baixos níveis da escala catártica, pois tratava-se de um gênero periférico, mas podemos
apostar que já nasceu fadado a se tornar um gênero ascendente. Que gênero seria mais
51
adequado ao realismo helenístico, nascido na kosmopólis? Que gênero estaria mais
conforme aos apelos estético-ideológicos do processo de mundialização do helenismo?
Maria P. Futre ( 1990: 223) atesta firmemente que aquele mesmo romance grego aparece
numa “comunidade exaurida e enlanguescente, ameaçada de desintegração, onde
subitamente o indivíduo adquire uma nova dimensão, uma dimensão cosmopolita, que o
condena a ser um eterno viajante.”
Além do fato de ser um gênero que dá relevo ao pathos amoroso lançado numa
espacialidade e numa temporalidade que guardam intricadas relações – e, por isso mesmo,
espacialidade e temporalidade que guardam profundas relações com o realismo – as quais
foram amplamente analisadas por Bakhtin, o romance é também um gênero que se dirige a
um novo tipo de leitor, um leitor que busca uma espécie de deleite privado e individual. A
leitura privada não é uma prática muito comum na Antigüidade pagã, mas o romance, pela
sua natureza, parece antecipar a prática cristã da leitura privada e silenciosa.
O romance, apesar de designado como grego, é contemporâneo das guerras
românicas. Confrontos que darão força a Roma para subjugar o mundo e ao mesmo tempo
ser subjugada pelo helenismo. O sincretismo greco-romano, ou mesmo o hibridismo
românico-helenístico, é o que há de mais notável em toda a história antiga. Foi um sistema
ideológico, mítico-religioso no qual os romanos fundiram muito sabiamente a arte e a
política que consolidaram e atestaram sua supremacia. O projeto político dos romanos
conquistadores era investir amplamente em um realismo ideal, ou seja, o de helenizar-se.
Procurava, com isso, associar suas conquistas ao destino oracular da cidade: o de ter sido
fundada para dominar o mundo.
O realismo do romance, por sua vez, enseja uma composição discursiva ideal: a
criação cosmogônica de uma fábula, que muito herda da fábula homérica, mas que é agora
fortemente marcada pela presença de elementos da prosa historiográfica, da prosa platônica
e da dramaturgia da Nova Comédia, além de forte expressão da lírica elegíaca. É esta
genial mistura de elementos dos gêneros que tornam o romance uma rede discursiva
composta de enunciados que na sua auto-realização consolidam um kósmos idealizado,
rico em motivos e fábulas helênicas. O helenismo é a forma e o conteúdo desse kósmos; a
longínqua e artificial beleza do realismo helênico está agora sob o efeito da magia do amor
e das intempéries da sorte. Embora difuso e extremamente artificial, o espírito da criação
do romance não alteraria a configuração estético-ideológica do realismo helênico. Aquilo
52
que seria o traço mais característico do helenismo: o realismo alegórico, perpetuador da
beleza helênica, fundido às tradições orientais, processando um amplo e profundo
hibridismo, onde os deuses continuam agindo, ou melhor, atuando sob as mais diversas
formas de emprego verbal e de ritos.
Este realismo é o mesmo que Roma projeta em suas conquistas, o mesmo que
projeta em seu destino: subjuga os povos, mas é subjugada pelo helenismo. A consciência
que, depois de Augusto, se instalou entre os românicos, isto é, o realismo que atraiu toda a
dinâmica estético-ideológica para assegurar os caminhos do hibridismo românico-
helenístico, se confundia com a própria política de Roma. Depois de Augusto Roma não
pode mais seguir outro caminho a não ser o da helenização e do evergetismo universal do
império.
O escritor de romance parece buscar um leitor típico desse circuito antagônico de
signos, dessa semiosfera genesicamente híbrida. Neste universo, pleno de fusões, o
romance já parece se dirigir ao leitor atomizado. Ora, podemos imaginar uma audiência
remanescente aos espectadores da tragédia ática, esta sim, escrita agora para ser lida, não
mais representada; ou mesmo uma gama cada vez maior de espectadores da comédia, que
em Roma até meados do século II a. C. era muito popular. Mas qual seria a audiência para
este gênero? Certamente as cortes das cosmópolis helenísticas, ou as mansões romanas,
com toda certeza, mas não as tribunas, os teatros, ou os fori. Mas será que este grupo seleto
que seria a audiência dos romances, não seria formado, na verdade, por leitores também
individualizados? Os poetas eram sempre convidados para os banquetes, para enriquecer
com a brevidade e a precisão de um epigrama, os encontros simpósicos ou inaugurais. Mas
o que dizer dos escritores da prosa híbrida, com sua segmentação amplificada do tempo e
do espaço: teriam lugar entre os convivas dessa elite um tanto quanto ébria e desatenta?
Para responder a estas questões recorramos a estas palavras de Gual (1976: 46)
O romance, por sua nova relação com seu público, inaugura uma função literária
diferente das funções da literatura anterior. Se trata de uma literatura de evasão,
dirigida a um público muito indefinido, mas de uma forma especial: se dirige a
um leitor isolado e convida a uma diversão privada por seu universo de ficção.
Esse caráter privado e apolítico da relação com seu público se reflete em seu
próprio conteúdo.
53
Se esta for a natureza pragmática do romance – dirigir-se a leitores que buscam
deleites privados - vê-se que se trata de um gênero que, mesmo em plena Antigüidade, já
possuía características que agradam extremamente ao gosto moderno.
Na modernidade, sob a rubrica de literatura, os gêneros literários se dirigem a um
leitor idealizado, um co-enunciador solitário, em busca do deleite que a leitura de gêneros
literários pode provocar. Esse leitor “moderno” já existia na Antigüidade, quando era
lançado, como os heróis protagonistas, em fábulas tão cheias de artifícios que poderiam
designar a sua própria experiência, o seu profundo desenraizamento e a sua imensa
solidão? “Esta solidão do personagem novelesco, errante por um mundo hostil e cheio de
acontecimentos, traduz um sentimento do leitor a quem a obra se dirige que tende a
identificar-se com o protagonista”. (Gual1976: 47):
Mas a diferença fundamental entre romance antigo e os gêneros modernos é que a
força das fabulações do romance antigo, deste controvertido realismo iria muito além de
sua própria natureza; além de ter-se constituído como gênero literário, manteve profundas
relações com rituais de magia e com outros gêneros culturais híbridos.
Da forma em que se apresentava perante o seu tempo, este gênero só poderia
ocupar, em princípio, o lugar mais baixo da escala catártica. Mas como não poderia deixar
de ser, o romance antigo iria se aperfeiçoar, buscando o seu lugar e sua perpetuação.
Esta nova forma de encarar o deleite artístico-intelectual dos gêneros literários,
como um direito privado, não existia na Hélade. No apogeu de Atenas e da sua
dramaturgia, os poetas trágicos – que buscavam seus assuntos no fabulário geral da
tradição homérica, em louvor a Dioniso, sob o crivo de reconhecida genialidade -
enunciavam as paixões de deuses e heróis ao povo que assistia a tudo tomado de êxtase.
Todos riam nas comédias e choravam nas tragédias; e naquele momento procuravam
tornarem-se dignos daquela formidável catarse coletiva. Os gêneros literários não
conheciam outro papel a não ser o de promover o elo estético-ideológico entre o cidadão e
a cidade.
Tal quadro não iria se repetir no mundo helenístico, nem tampouco no mundo
românico-helenístico, embora, neste último, o realismo ideal românico, sob o patrocínio de
Augusto e Mecenas, tentasse ressuscitar o espírito das cidades-Estado, em Roma. Todavia,
jamais o homem românico-helenístico pôde reviver a experiência elevada do habitante
privilegiado das pólis áticas.
54
3. Os gêneros literários e o realismo românico-helenístico
A literatura latina terá sido um fenômeno à parte no movimento helenístico. A
simples realização de uma literatura em língua latina – na semiosfera helenística, onde a
língua grega era a única empregada na criação dos gêneros literários – já é uma evidência
da sua exceção. O esforço intelectual de Lívio Andronico (284-204 a.C), ao traduzir a
Odisséia para o latim, em versos saturninos, veio coroar uma tradição amplamente variada
de textos escritos nessa língua; as origens dessa tradição remontam à criação do próprio
alfabeto latino. Este imenso repertório escrito em um latim extremamente tosco ao longo
de vários séculos remontam à era mítica da fundação de Roma e reincorporam os mitos do
reinado de Saturno na Itália, região para onde teria ido o deus depois de destronado por
Júpiter. Trata-se de um conjunto relativamente rico de gêneros folclóricos: dramáticos,
musicais e literários; constituíam-se de primitivas fórmulas de juramento e prédicas
religiosas; de pedidos aos deuses para interceder sobre as colheitas, para consolar os
mortos e animar os casamentos, e eram proferidos nos funerais, nas colheitas, nos
casamentos, nestes últimos com encenações satíricas e versos licenciosos, como os
fesceninos. Esse repertório constituiu um valioso substrato protoliterário que guarda
profunda semelhança com o ambiente discursivo pré-homérico e que ajuda a reforçar a
idéia de que Homero tinha à sua disposição uma tradição não só oral, mas também de
textos escritos, cujos vestígios estariam registrados em epigramas votivos escritos sobre
túmulos, objetos funerários e monumentos.
Talvez por conta desse repertório, o êxito logrado pelo escravo filólogo de Tarento
seria a prova de que a helenização poderia ocorrer sem que os romanos precisassem abrir
mão do emprego da própria língua, na grande tarefa de compor gêneros literários dignos da
grandeza que os romanos fantasiariam e realizariam para sua cidade. O feito de Lívio
Andronico provocou uma espécie de efeito homérico no ânimo dos romanos, muito mais
vivo e producente do que o legado pitagórico e oratorial de Ápio Cláudio Cego (Séc. IV a.
C). Na verdade havia à disposição dos poetas e escritores latinos todo o repertório proto-
literário, de caráter mítico-religioso, e todo o legado cultural dos tempos saturninos.
55
Os pioneiros da literatura romana tiveram ao seu alcance esta tradição que serviu de
substrato inteligível no momento em que se tornou a fusão do gênio românico ao gênio
helênico inevitável. A maneira como se processou esse caso de hibridação é algo que só é
possível explicar se levarmos em conta o parentesco e a afinidade desses gênios. Ao que
parece, a superioridade dos gregos, em algum momento, deve ter incomodado os romanos;
entretanto, talvez para fazer frente a um provável complexo de inferioridade intelectual,
este reconhecimento incitou-os a fazer um imenso esforço na construção de uma literatura
própria e até mesmo no aperfeiçoamento estético e ideológico de uma arte que de agora em
diante, é forçada a uma complexa fusão românico-helenística. Roma é uma cidade helênica
desde a sua fundação; além disso, a sua posição periférica na semiosfera helenística de
uma hora para outra mudou totalmente e passou a ocupar o centro de um mundo onde
vigorava a koine grega, mas o latim, seguindo um destino prescrito pela sibila de Cumas,
traduziu todo conteúdo helênico-helenístico acomodando-o ao seu próprio conteúdo.
Os gêneros gregos renascem nas obras dos escritores de Roma que, deslumbrados
com esse legado, pareciam enxergar grotescamente a cidade como centro de uma nova
Hélade. Atraídos pelos rumores literários, com certeza provocados pela atuação de Lívio
Andrônico, que já nos Ludi Romani apresentava suas tragédias e suas comédias (esses
espetáculos constituiriam o germe embrionário da helenização), convergiram para Roma os
poetas de toda Itália, entre eles Névio (~270-~199 a.C), Plauto (254-184 a.C) e Ênio (239-
169 a.C) e que, sem dúvida, foram os principais tradutores do helenismo em Roma e
fincaram definitivamente as bases da literatura romana. Névio, com o emprego de
saturninos, escreveu tragédias, com motivos gregos e latinos, as fabulae praetextae.
Escreveu também uma epopéia histórica, Bellum Punicum, gênero que trazia uma grande
novidade: a fusão da fábula mítica a narrativas de acontecimentos históricos recentes:
temos aí um dos primeiros lampejos do gênio românico, no curso de sua helenização.
Todavia, o reconhecimento de que Homero deveria ser recuperado em língua latina ocorre
principalmente com o êxito literário da epopéia Annales, de Ênio, construída em
hexâmetros dactílicos, que a despeito de algumas falhas, como o excesso de espondeus,
atendeu completamente aos requisitos formais elementares do gênero. Entretanto variou
bastante, seguindo os passos de Névio, na sua opção por temas romanos e, desse modo,
demarcou definitivamente uma peculiaridade estilística própria dos romanos, a adoção de
elementos formais rítmicos rigorosamente helênicos na concepção dos gêneros poéticos.
56
Neste sentido, êxito maior ainda foi o de Plauto que, com a sua genial versatilidade,
fez seus personagens helênicos pronunciarem um latim entre bárbaro e polido, mas pleno
do espírito híbrido dos romanos. O sucesso de Plauto é atestado pela extensão de sua obra,
chegando a um montante de, pelo menos, 130 peças. A comédia nova plautina ajustou-se
como uma luva ao realismo rudimentar dos latinos, um realismo próprio dos cidadãos da
nova urbs romana, eufórica adoradora da Venus Victrix, que passaria a receber as honras
do triunfo em guerras combatidas em duas frentes, contra o bárbaro semítico, isto é, os
púnicos, e contra Pirro (~318-272 a.C) e os herdeiros de Alexandre. Na época dessas
conquistas o teatro helênico foi rapidamente levado para Roma, que passaria a conhecer as
exigências, os rigores e a polidez da urbanidade do teatro grego, mas Plauto conseguiu
preservar os traços que o gosto romano requeria.
Gassner ( 1997: 110 ) considera Plauto antes como um aperfeiçoador do teatro
romano e não, apenas, como um mero reprodutor da comédia ática. Para ele Plauto
imprimiu um estilo verdadeiramente romano, oportunamente adequado à transformação de
Roma em urbs helênica.
Roma começava sua conquista triunfal do mundo e o vigor do trabalho do
comediógrafo é o vigor romano, assim como suas cruezas são as de uma nação
que pôs a belicosidade e o poder político acima da cultura. Seu diálogo não era
uma simples tradução do polido Menandro, mas a linguagem coloquial,
grosseirona e pesada do acampamento militar e da praça do mercado. Sua
energia picante, que de longe supera a de Menandro, brota da era marcial de um
império em expansão.( Gassner: 111)
Plauto conheceu o sucesso porque realizou o casamento entre a tradição agreste e
mística dos romanos e a novidade civilizadora do helenismo. É ele, sem dúvida, o grande
mentor do realismo românico, o pai natural daquela inteligência criadora que fez o romano
rir de seus próprios defeitos e instigou uma consciência artística similar àquela que encetou
o espírito criador do realismo satírico.
Para identificar o realismo de gosto itálico e vê-lo como um sentimento ligado aos
gêneros mais enraizados no espírito do hibridismo etrusco-romano, como a sátira, e, ao
mesmo tempo, como um gosto que deu condições à primazia da comédia e do drama em
Roma, examinemos algumas reflexões de Ernst Bickel ( 505-6 ). Lembra ele que:
Em primeiro lugar, não é casual que da totalidade da poesia dramática da época
arcaica, que Lívio Andrônico inaugurou, (...) com uma tragédia e uma comédia,
só foi conservada a poesia cômica de Plauto e de Terêncio. Isto nos diz
claramente onde estavam postas as preferências do povo romano. Em segundo
57
lugar, se deduz que ao longo de toda produção poética da literatura romana se
manifesta a oposição do gosto itálico à tragédia helênica (...) Em terceiro lugar
os primórdios pré-literários do drama itálico desembocam no burlesco e no
cômico, no mordaz e no satírico, nas atelanas e nas fesceninas.
Todos os elementos de um gênero primordial, designado como drama itálico,
revelam a predominância de um gosto afinado à comédia e são suficientes para comprovar
que a helenização, com todo seu acervo estético-ideológico, fez os romanos descobrirem
sua própria vocação para a arte. As exigências de refinamento cultural e cívico que a
fantasia helênica cultivava forjaram as condições para a invenção de um gênero
essencialmente românico, ou seja, a sátira. Os gêneros helênicos homéricos foram,
comprovadamente, o principal alvo de investimento dos escritores latinos, nos primórdios
da sua helenização. Todavia, no conjunto do que poderíamos chamar de literatura latina,
nenhuma forma foi mais originalmente latina do que a sátira. Lucílio (180-102 a.C), o
criador da sátira, solucionou para os romanos - ou pelo menos para uma parcela da
intelligentsia romana - o problema da helenização, superando os riscos da perda total do
próprio caráter; e acendeu a luz de um realismo capaz de compreender as perdas
expressivas que um hibridismo como a helenização poderia provocar. A sátira inaugurada
por Lucílio foi, sem dúvida, a maior novidade, em termos de gêneros literários, na
helenização de Roma; tanto no que diz respeito à sua concepção – em meio a gritantes
apelos de originalidade - como também no que diz respeito ao seu aproveitamento, por
Horácio (65-8 a.C), Pérsio (34-62 d.C), Marcial (40-104 d.C) e Juvenal (~70-? d.C), em
épocas distintas.
Todavia não foi só na reformulação da Nova Comédia e na criação da sátira que os
romanos foram originais; os outros gêneros helênicos e helenísticos também tiveram suas
versões em latim: a epopéia, a tragédia, a historiografia, a oratória, a filosofia, a lírica
elegíaca, a lírica didática, o romance, a fábula. De Lívio Andronico a Petrônio há um
amplo cânone de autores romanos que foram bastante felizes ao imprimirem suas marcas a
estes gêneros. Trata-se de uma literatura escrita para o restrito, mas exigente público de
leitores latinos, primeiramente circunscritos na Itália, depois por toda Europa Ocidental e
norte da África. Cada gênero recebeu o tratamento que a fantasia romana e a língua latina
possibilitaram. A imitação pura e simples deve ter gerado uma órbita certamente extensa
de epígonos, mas é também certo que, no caso dos autores mais dignos, a emulação com os
modelos clássicos ou helenísticos deu-se em pé de igualdade.
58
Não é fácil calcular a dificuldade que tiveram os escritores de língua latina ao
competir com escritores que escreviam em grego. Talvez os gregos que eram acolhidos por
Roma, a exemplo de Lívio Andronico, reconhecessem uma certa solidez na expressão do
Latim. O que teriam ensinado Panécio (~180-~110 a.C) ou Políbio (~202-120 a.C), senão
que a língua latina tinha seu lugar e sua missão ao lado do povo romano? O testemunho de
Políbio poderia ter funcionado como uma espécie de selo sobre a questão românico-
helenística, pois como ressalta Cataudela ( 291), Políbio
Assistiu à realização de um dos maiores fenômenos do mundo antigo, o avanço
do domínio romano, no espaço de cinqüenta e três anos, sobre toda terra
habitada; observou de perto, e admirou sem reservas, o espetáculo que lhe
oferecia a imensa potência de Roma em todos os campos, o político, o militar,
etc.
Políbio parece ter visto com certa clareza o que estava para acontecer com o mundo
político e cultural dominado pelos romanos, e apesar de ter convivido estreitamente, em
Roma, com uma sociedade intelectualmente helenizada, jamais ele – na verdade, nenhum
dos intelectuais e embaixadores gregos que visitaram Roma –incitou aos romanos a adoção
definitiva do grego como língua literária ou política.
A helenização, entretanto, encontrou em Roma uma resistência que ao longo dos
anos possibilitou uma espécie de querela entre o antigo e o novo. Depois do
desaparecimento de Terêncio (~185-159 a.C) – o outro êmulo de Menandro em Roma - e
da dissolução do ciclo dos Cipiões, seguiu-se um período de refração criativa marcado pela
política despótica de Sila (138-78 a.C) e pela ressurreição do nacionalismo inspirado na
imponente figura de Catão (234-149 a.C). A oratória jurídica e a atelana nacional foram os
gêneros de maior destaque. Êxito justificado, talvez, pelo rigor da censura recrudescida
nesta época, que considerava a influência helênica nociva. O espírito dessa época não
aspirava precisamente a uma arte superior, e a severidade dos censores acarretaria uma
interrupção na atividade literária e um retrocesso cultural a uma Idade Média que viria
durar quase um século e que adotava como fonte criativa os longínquos anos saturninos. O
nacionalismo orientado para o gosto rigorosamente romano, que predominou nessa época,
é expresso principalmente pela oficialização da atelana, gênero para o qual estão voltadas
as fantasias da existência de um caráter nacional.
Esse nacionalismo em nada melhorou a vida cultural de Roma, mas deve ter sido
decisivo na revolução cultural que estava por vir. A crítica política desse período fez
59
renascer um vigoroso aticismo tanto na prosa quanto na poesia que fez do latim uma língua
adaptada aos gêneros e pronta para se tornar uma língua clássica. A imitação dos áticos e
dos helenistas alexandrinos tornou-se inevitável. A sobrevivência cultural do helenismo
dependia de uma escolha entre o espírito bárbaro do estilo etrusco das fesceninas e atelanas
e a forma direta e precisa do comedimento ático. A semente lançada por Lívio Andronico,
o seu papel de Homero entre os latinos, resulta finalmente em uma concepção artístico-
literária bem mais próxima do realismo ático idealista do que do realismo satírico dos
romanos.
A expressão mais bem formulada deste realismo idealista está na prosa de Cícero
(106-43 a. C) que, na filosofia e na oratória, atingiu o máximo de expressividade; ele foi
realmente genial, ao promover uma emulação dos modelos gregos desses gêneros. Na
filosofia Cícero formula uma série de códigos políticos plasmados sob o platonismo
enriquecido com as lições dos mestres helenísticos como Filão e Diodotos.
23
Na oratória
adota o estilo combativo de Demóstenes (382-322 a.C), mesclado a um carregado pathos
asiático. Este realismo ciceroniano, fundamentado no exercício da releitura crítica do
helenismo, agora visto como algo já dignamente adaptado às vocações puras e legítimas do
espírito romano, muito mais hábil do que o grego para impor uma ordem e mantê-la, está
muito distante do realismo satírico. Na verdade, o esforço hercúleo de Cícero na
formulação desse realismo idealista não foi em vão. Conhecedor astucioso do gênio
romano, combateu incansavelmente os seus defeitos, defendendo a depuração profunda e
sistemática de seus valores. Cícero é um defensor eloqüente do helenismo doutrinário. Na
verdade, é ele quem melhor exemplifica a eficiência da contaminação da paideia helênica
entre escritores não helênicos, exemplo este tomado, não só pelos poetas da Idade de Ouro
romana, mas também por helenistas de todas as épocas, medievais, renascentistas e
modernos.
O helenismo doutrinário de Cícero e seu caráter monumental e retumbante não
foram, entretanto, o único libelo do helenismo entre os romanos. Em meio a um contexto
político marcado por grandes conflitos entre a plebe e a aristocracia senatorial, - onde
Cícero muitas vezes foi favorecido principalmente pelo emprego de sua retórica refinada -
César e Salústio, seus adversários políticos, preencheram a lacuna que restava na prosa
clássica romana com uma historiografia cheia do espírito do gênero que Tucídides e
23
Cf. Harvey (1998: 113)
60
Heródoto haviam aperfeiçoado. Tanto César (102-44 a.C) como Salústio (86-35 a.C)
deram a esse gênero uma valorosa contribuição: a observação dos fatos e a análise objetiva
de suas causas, a descrição psicológica dos personagens históricos, a retórica sem rodeios e
a alusão direta ao tempo histórico vivido eram condutas próprias adotadas por estes dois
escritores.
A prosa românica atingiria seu cume com o conjunto da obra destes geniais
prosadores e seu alcance foi tão esplêndido que ofuscou a criatividade poética de jovens
itálicos que não tinham seus olhos voltados para as questões políticas internas, nem para o
drama de seus conflitos, mas, ao contrário, deram total atenção à vitoriosa política externa
e seus ganhos culturais. O cosmopolitismo de Roma é a tônica desta nova orientação
poética. Acompanhemos estas observações de Bickel (1987: 151-152)
Extraordinários êxitos na política exterior podem induzir também uma nova
nação a novos empenhos no terreno literário. No caso da expansão romana para
o Oriente durante o século I a. C. há de acrescentar que o golpe político caiu
sobre países e populações em que cada um deles pode aprender qual teria a
capacidade receptora para a cultura. Assim o transcurso da história política
acarretou a entronização do influxo grego com potente energia. A fusão com os
gregos teve dessa vez uma intensidade tão grande como no período do
florescimento arcaico. Mas a literatura helenístico-alexandrina aparece agora,
em primeiro plano para os romanos, mais do que antes. Na poesia, Calímaco e
Euforião foram para os romanos tão importantes como foram no período de
apogeu arcaico Eurípides e Menandro.”
A juventude itálica logrou, sem dúvida, desse novo influxo do helenismo, agora
marcado pela profunda influência dos poetas alexandrinos. Com esses últimos, levados por
reconhecidíssima afinidade espiritual, e sem dúvida pela experiência comum do
hibridismo, os românicos aprenderam a desenvolver “um gosto pelo delicado, concreto e
diminuto, pela técnica sutil e pela crítica afiada, pelo rebuscamento das formas literárias e
pelo ensaio.” (Bickel: 153) Esses jovens poetas, principalmente Catulo (84-54 a.C) e
Lucrécio (~99-~55 a.C), realizaram com sucesso a tarefa de manter a tradição iniciada por
Énio e Lucílio, e venceram os obstáculos impostos pelo ofuscamento da prosa. Catulo
acomodou o alexadrinismo a suas peculiaridades e idiossincrasias forjadas na vivência
cultural das tradições itálicas. Mesmo empregando os jâmbicos epigramáticos, o conteúdo
do seu lirismo fazia acender no espírito dos leitores, entusiasmados como ele pelo fascínio
do ritmo alexandrino, o gosto pelos cantos nacionais. Assim é que Catulo recupera, com
certo esmero técnico, a tradição nascida da fusão das culturas itálicas e se torna talvez o
mais autêntico reformulador do verso latino. Roma tornava-se também uma cosmopólis,
61
com o agravo de ser agora o poderoso centro da imensa semiosfera híbrida do mundo
helenístico. O sonho arcaico de ver Roma como uma cidade ática, centro de uma Hélade
imaginária, era substituído por essa impulsão estético-ideológica, marcada pelo luxo e pela
sensualidade, pelo excesso e pelo arrebatamento, pela corrupção e pelo relaxamento.
Catulo carregou o espelho mimético que fez Roma cantar novamente seus amores e seus
mortos, suas crenças e seus valores, sem o constrangimento do complexo de inferioridade
que sua origem híbrida e bárbara poderia suscitar.
Lucrécio também deu sua contribuição para consolidar o esplendor do verso latino.
Seu complexo poema didático dirigido a um jovem de origem patrícia acerca do
epicurismo foi um marco decisivo no influxo do helenismo. Ao investir em um gênero que
teve sua origem nos primórdios da civilização helênica com Hesíodo, superou toda
expectativa do público itálico e fez Roma reconhecer um outro papel no cenário da cultura
internacional. Lucrécio, na sua polêmica contra a religião e contra a ignorância, tentou
demonstrar que as realizações humanas são superiores às dos deuses e que o sentimento
religioso era fruto da ignorância e da superstição. Não seria o caso de Roma abandonar
seus deuses, mas de reconhecê-los como meras invenções humanas, como pregava
Epicuro. Ao passar essas lições ao jovem Mêmio
24
, através de versos hexâmetros cheios de
expressão, carregados de um pathos que oscila entre o delírio da criação poética e a frieza
dos axiomas epicuristas, Lucrécio congrega as forças de um gênio criativo que é pura
novidade entre os romanos.
Se estivermos em busca da descrição mais objetiva possível de um realismo
românico-helenístico, não podemos deixar de atentar para todas as suas arestas e vertentes.
Devemos ter em mente um mosaico construído pelo encaixe de peças de várias cores e
formatos, cada uma delas trazendo o nome dos autores romanos, que a seu bel-prazer
investiram em gêneros vários e com isso construíram este imenso complexo que é a
literatura latina. O realismo românico-helenístico é na realidade um choque de extremos. É
possível destacar duas vertentes que logo no início postularam as bases do
desenvolvimento de uma sociedade lingüística que, em busca de se perpetuar, encontra, na
apropriação de gêneros culturais alienígenas, sem abrir mão dos seus próprios gêneros, o
caminho definitivo da sua sobrevivência. A primeira vertente que apontamos é a idealista
que reedita o sonho helênico; o princípio que sustenta é o da apropriação dos gêneros
24
Cf. Ribbeck (s/d) in O Epicurismo. Rio de Janeiro Ed. Globo
62
helênicos de maneira a não deixá-los sofrer máculas estético-ideológicas do substrato
românico. A segunda é exatamente a que denominamos satírica, cujo princípio é o da fusão
dos gêneros helênicos ao substrato itálico. Entretanto devemos esclarecer que esta
bifurcação do realismo românico-helenístico é abstrata, na prática são apenas tendências,
porque o que ocorreu, na maioria esmagadora dos casos, foi a composição de um sistema
cultural complexo extremamente híbrido que só pode ser compreendido se tivermos em
mente o entrelaçamento dessas duas tendências.
Catulo e Lucrécio, contemporâneos de Cícero, César e Salústio, por suas diferentes
maneiras de conceber os valores literários, são figuras pontuais na configuração geral do
quadro estético-ideológico do realismo românico-helenístico. O didatismo de Lucrécio, ao
mesmo tempo iconoclasta e alegórico, e a sensualidade comensalista da melhor poesia de
Catulo demarcam bem as fronteiras dessas duas vertentes.
Mais uma vez é preciso lembrar que o helenismo foi avassalador na Antigüidade;
fundiu-se a várias culturas bárbaras sobrepujando-as. Em cada uma delas introduziu seu
realismo artístico-filosófico e, no tocante aos gêneros literários, fez prevalecer a língua
grega. O caso romano foi especial, principalmente pela distinção que o latim adquiriu,
tornando-se uma língua emuladora do grego literário.
Nos momentos finais da república romana, numa época de grande efervescência
cultural e de uma política recheada de conflitos e traições, as fantasias romanas, totalmente
fundidas às fantasias helenísticas, caminhavam livremente para seu momento mais
fecundo. A morte de César desencadeou uma nova crise e a guerra civil continuava. Na
batalha de Áccio, com a vitória de Otávio, foi selado um novo rumo político para Roma: a
instituição da segunda monarquia, designada difusamente como Império Romano. Os
primeiros anos dessa monarquia foram caracterizados pelo armistício, quando foi
assegurada a famosa Pax Augusta que proporcionou aos Romanos um ambiente
extremamente favorável às realizações literárias.
O processo que vamos descrever é fundamental para a compreensão dos impulsos
motivadores da produção literária na Idade de Ouro latina. Acreditamos que, de uma
maneira geral, os gêneros literários e, por extensão, os gêneros culturais são gerados por
uma espécie de fantasia coletiva criadora. Os gêneros codificam essas fantasias que, no
momento propício, devem ser decodificadas. No que tange à literatura, o êxito dos gêneros,
63
que corresponde à sua adequação aos apelos da sociedade, está sujeito a uma série de
condições pragmáticas.
A primeira delas é a de se constituir fisicamente como um aparato comunicacional,
isto é, os gêneros literários codificam a língua ordinária numa forma padronizada. O autor,
ou o emissor, propõe essa codificação a partir de um nome código ( epopéia, tragédia, ode,
elegia, etc ) a uma entidade receptora, o leitor, ou o público, a sociedade que deve estar
apta para sua decodificação – neste sentido, ele se insere no seu tempo, no seu contexto de
produção.
A segunda condição é ter potencial co-enunciativo, ou seja, o gênero deve
ultrapassar a sua esfera comunicativa e adquirir uma dimensão histórico-pragmática; o
emissor e o receptor, ou seja, o autor e o leitor tornam-se partes constituintes da
mensagem. Neste caso ele se perpetua, transcende sua época e conquista novas esferas de
comunicação. Ele é mais do que um mero ato de linguagem, é na realidade um macroato de
linguagem específico
25
.
A terceira condição é conseguir a adequação estético-ideológica necessária para seu
pleno uso. O êxito de um gênero é medido pela sua capacidade de ser plenamente usado.
Isto se dá necessariamente quando atende aos gostos e interesses da sociedade em que está
inserido. Este êxito dá-se, portanto, quando o gênero se transforma no próprio
acontecimento, quando encontra seu momento propício, o de sua realização social: a sua
leitura, a sua encenação, a sua interpretação, a sua crítica, a sua tradução, a sua editoração,
a sua inserção em concursos, a sua catalogação bibliográfica e até mesmo a sua venda.
Esses são os acontecimentos que realizam o êxito de um gênero.
No período de Augusto, alguns gêneros literários atingiram pleno êxito. Durante
meio século, Roma foi palco de grandes acontecimentos literários. As razões que levaram a
este excelso momento da Antigüidade podem nos dar as pistas para a compreensão da
complexidade das relações pragmáticas entre gênero e sociedade, no entendimento do que
podemos designar por tensão estético-ideológica.
A inserção definitiva de Roma na semiosfera helenística e a consolidação de sua
literatura pelos prosadores e pelos neotéricos deram azo para que, com o final da crise
política interna, Roma se tornasse a maior cidade dessa imensa rede. Similar ao que
25
Cf. Maingueneau (1995:66)
64
acontecera com Alexandria, Pérgamo e Antióquia, Roma se tornou um grande centro de
especulação helênica. Porém, para além de ser uma cidade helenística, a Roma de Augusto
procuraria incorporar as antigas qualidades de Atenas. Este plano muito bem administrado
pelo Príncipe divino obteve êxito imediato e, enquanto esteve vivo, Augusto fez Roma
conhecer uma época de grande esplendor. A atividade artístico-intelectual dessa época
aprofundou-se de forma tão peremptória na semiosfera helenística que consagrou seus
modelos como clássicos e inaugurou um novo sistema estético-ideológico que séculos
depois seria consagrado sob a alcunha de arte românica. A herança deste romanismo fez-
se sentir por todo Mediterrâneo Ocidental e Norte da Europa, principalmente quando
fundiu-se ao cristianismo.
Tal aprofundamento só foi possível porque a política reformadora de Augusto criou
uma atmosfera extremamente propícia à fecundação dos gêneros helênicos. O Ciclo de
Mecenas, este que era mais do que um evergeta sírio, africano ou macedônico, representa
os vários grupos de cultivados senhores e senhoras que se reuniam para dar vazão aos
deleites literários elegantes e mais do que isso, esforçavam-se para patrocinar o bem-estar
(otia) dos poetas para que criassem suas obras livres de preocupações materiais. O
mecenato é o elemento consubstanciador deste poderoso sistema de produção cultural.
Sobre esta questão analisemos estas palavras de (Cataudela: 1956 ):
A vida espiritual na Roma de Augusto recebeu uma proteção centralizada
mediante outro procedimento que há de se somar ao da fundação de bibliotecas
públicas. Originou-se o mecenato, fenômeno que é mais do que uma proteção a
talentos artísticos dispensada por personalidades honradas. O mecenato é um
fenômeno da vida social que surgido das especiais circunstâncias da Roma literária
no tempo de Augusto, haveria de ser um modelo para todos os tempos em
condições parecidas de vida. Em torno de personalidades muito poderosas política
e financeiramente se formaram ciclos de poetas e sábios, que encontraram
certamente nelas o socorro material a sua situação econômica, mas também a caixa
de ressonância do aplauso e da crítica para sua produção literária.
O mecenato é um fenômeno que está na ordem da evolução das relações intrínsecas
entre o poder e a arte, na Antigüidade. Relações que têm suas origens na mitologia, mas
que historicamente aparecem nas primeiras formações das monarquias urbanas, cujo
estágio posterior seria o da cidade-Estado, ou polis. Nas monarquias urbanas, é o rei ou o
tirano que acolhe o aedo. Sua última versão seria a lendária figura de Homero, que também
seria a primeira figura do poeta nacional, vencedor de concursos promovidos pelo Estado
na figura do arconte epônimo. Atenas conheceu o esplendor desse sistema. Com o seu
65
declínio, Alexandre torna-se o grande benfeitor das artes; seguindo seus passos, os
Ptolomeus embelezaram Alexandria, e seus exemplos foram seguidos pelos
administradores das grandes e pequenas kosmopolis helenísticas. Em Roma o Estado foi o
primeiro a reconhecer a importância das tragédias e das comédias. Surge ao mesmo tempo
o famoso Ciclo dos Cipiões que, com certeza, foi o potente núcleo embrionário dos ciclos
mecênicos.
Essa relação de harmonia entre a arte e a política caracteriza intrinsicamente a
Antigüidade Helênica como um todo. Na verdade seria o princípio da própria helenização.
A literatura helênica serviu a Alexandre e aos evergetas, como vai servir aos romanos,
principalmente na chamada Idade de Ouro. Não havia mais o que discutir sobre a
finalidade da arte literária, sua missão era clara. A sua difusão significava a difusão dos
valores da própria civilização universal que ganhava novo brilho com a instituição do
Império Romano. Esta regra do conluio entre literatura e política, a certa altura, vai valer
também para algumas épocas modernas, mas nunca com o caráter intrínseco da
Antigüidade, pois ela se confunde com a própria helenização e, no caso do Ocidente, com a
romanização celto-germânica.
Augusto e Mecenas puseram Roma em estado de graça, as fantasias românico-
helenísticas se acenderam e o esforço intelectual foi grandioso. Virgílio, Horácio, Ovídio e
Tito Lívio são o símbolo emblemático desse esforço. Mas para melhor compreender como
se configurou definitivamente o realismo satírico é necessário fazer uma pequena análise
da Epistula ad Pisones, obra escrita por Horácio, que, com sua argúcia, sintetiza todo o
arcabouço estético-ideológico do realismo helênico. Com o visível pretexto de domesticar
o ímpeto dos jovens poetas e mesmo de assegurar-lhes um método para não cometerem
erros imperdoáveis na confecção de suas obras literárias, Horácio resume o espírito do
realismo que surgiu com a mímesis homérica e se manteve em sua época como a receita
viva para a criação dos gêneros literários. Desse modo, Horácio menciona toda a tradição
dos gêneros literários, os hexâmetros de Homero, os jambos de Arquíloco, os cantos
corais, a origem da tragédia e da comédia. Não obstante seu empenho em valorizar os
gêneros tradicionais, menciona com certa ênfase o drama satírico. Sobre esse estranho
interesse de Horácio, Dante Tringale (1993: 86) explica:
A carta não faz uma mera exposição sobre o teatro, ele se propõe, na verdade,
revolucionar o teatro, em função de suas idéias estéticas e dos ideais políticos de
Augusto. No seu programa de reformas, a volta ao drama satírico representava o
ponto de partida de um verdadeiro teatro que distinguia tragédia e comédia, sem
66
separá-las. A tragédia convencional levava às últimas conseqüências o trágico,
exagerando o patético e abusando da catástrofe de modo a inundar as cenas de
violência e morte; a comédia convencional, no afã de se afastar da tragédia,
degenerava em grosseria. Segundo Horácio, a tragédia devia apenas manter-se
num nível razoável de gravidade e a comédia num nível aceitável de alegre
divertimento e não havia razão para isolar uma coisa da outra, sem contudo
confundi-las. Elas poderiam conviver lado a lado no palco. Ora, esse objetivo de
conciliação e equilíbrio difícil de se atingir parecia ter acontecido no drama
satírico, onde o sério se harmoniza com o divertimento sem quebra da
dignidade.
Na verdade Horácio não escreveu peças dramáticas, mas é possível compreender
que os princípios que defende para o drama, gênero que certamente é do interesse dos
Pisões, são os mesmos que aplica em sua obra, toda ela composta em versos, constituída de
odes, epodos, sátiras e epístolas. A originalidade de Horácio na concepção dessa estética
“revolucionária” é o que, sem dúvida, o consagra como o grande mestre do realismo
românico ou satírico, cujos preceitos postulou amplamente na exposição das suas teses
sobre o drama, das quais se pode deduzir que “ O drama satírico corresponde ao ideal
estético de Horácio de misturar o sério com o jocoso, num nível de equilíbrio.” (Tringalle:
87). Digamos que seus princípios poderiam ser aplicados a qualquer gênero, inclusive - se
fosse do seu conhecimento - ao romance e ao conto.
Por essa via acreditamos ser possível enxergar uma ligação entre Horácio e
Petrônio, mas a existência de um vínculo direto entre eles seria impossível comprovar, a
não ser que se executasse um grande esforço. Todavia existe uma série de aproximações
entre Horácio e Petrônio, que daria margens a muitas especulações. Na verdade é possível
fazer paralelos entre aspectos pitorescos da vida de cada um deles. Um primeiro confronto
seria a relação tensa que tanto um quanto o outro manteria com o poder: Horácio com
Augusto e Petrônio com Nero. A convivência estreita que tiveram com os Imperadores
pode tê-los forçado à escolha do refúgio e do disfarce satírico; quanto a Petrônio, havia
uma situação extremamente perigosa, talvez por isso a sua atividade literária não era do
conhecimento do imperador, pelo menos como romancista. No caso de Horácio a tensão
seria resolvida pelo próprio poeta que, com sua habilidade, soube associar sua origem
vulgar a um sério estudo sobre a arte literária. Tornou-se tão necessário à causa de
Augusto, que este não viu outra saída a não ser aceitá-lo em seu ciclo. No caso de Petrônio
a tensão só foi desfeita com sua morte. Nero poderia suportar um homem nobre cheio de
refinamento, espirituoso, satírico, envolvente, um poeta frívolo e elegante, mas jamais
poderia aceitar que este homem fosse um escritor de um romance crítico denunciador de
67
suas atrocidades, de seu ridículo papel de imperador, de sua personalidade degenerada e de
seu sanguinário despotismo.
Se no governo de Augusto poetas como Horácio ganharam notoriedade, nos
governos de seus sucessores os poetas foram alvo de dura perseguição política
26
. Mecenas
e Augusto afinaram o coro de seus apelos à ordem universal, recém inaugurada por Roma,
com os gênios de Horácio e Virgílio (70-19 a.C). Ambos foram vítimas da política de
confisco de Augusto, mas, oportunamente, ambos irão agregar-se aos ciclos notórios de
Mecenas e de Polião, que encerravam o ambiente ideal para a atividade literária: escritores
geniais e um público refinadíssimo. Mas suas obras não se restringiram apenas a este
circuito. Em Roma já existia um público erudito, típico das cosmopólis helenísticas, um
tipo de leitor, que - o próprio Horácio seria um deles, forjado sob a rígida tutela de seu
magister Orbílio (~112-~17 a.C) - buscava instrução e notoriedade. A publicação das
obras e a sua divulgação atestavam já a existência de um complexo sistema de co-
enunciação. Horácio e Virgílio tiveram suas obras amplamente difundidas entre os
romanos, pois eram abundantes as referências sobre os dois.
Então o que dizer do obscurantismo a que foram submetidos os autores que vieram
depois deles? Com a morte de Augusto, Tibério ainda tentou manter viva a ardente chama
do casamento entre a política e a arte, mas ele veio a descobrir depois que os grandes ciclos
formados por pessoas tão ilustres iriam se transformar em verdadeira ameaça para o
império
27
. Além disso, a figura de Ovídio (43 a.C-18 d.C) já antecipava uma certa
mudança no quadro harmonioso da convivência de Augusto com grandes poetas. O mais
moço deles trazia em sua carreira uma ousadia que iria criar depois um certo ruído nos
planos de Augusto, ao imprimir a frivolidade do artificialismo helenístico e os excessos de
seu hibridismo nos gêneros literários; talvez, isto lhe tenha custado o exílio. O fracasso
pessoal de Ovídio se deu porque ele fechou os ouvidos aos ditames formais e morais do
classicismo românico de Augusto. Os motivos que o levaram ao exílio nunca foram
esclarecidos, de fato, mas é possível acreditar que tamanha desavença entre o imperador e
o poeta tenha surgido também por motivos estético-ideológicos: Ovídio teria enunciado em
seus versos algo não favorável ao regime imposto por Augusto? As fantasias de Ovídio
26
As razões dessa perseguição não estão muito claras, mas não há outra explicação a não ser o despostismo.
Fedro foi perseguido por Sejano, este por sua vez advertia ao imperador sobre o perigo dos escritos de
Fedro.( Cf. Morrisset & Thevenot 1950: 869)
27
A aristocracia se tornou uma ameaça ao império porque Tibério, assim como os imperadores claudianos
que o sucederam, temia que dali pudesse surgir uma oposição legítima ao seu governo.
68
extrapolavam as linhas programáticas da política cultural de Augusto, porque seu espírito
estava fortemente marcado pela experiência do hibridismo cosmopolita de Roma e suas
inclinações helenísticas pareciam levá-lo aos canais das perversões e das intrigas
palacianas. Na sua juventude teria acomodado suas fantasias eróticas aos gêneros clássicos,
algumas elegias e uma tragédia que lhe garantiram o sucesso literário e o acesso ao ciclo de
Messala. Todavia a certa altura, estes gêneros deixaram de o seduzir e, em vista disso,
deixou-se levar pelos arroubos estéticos da fantasia helenística. Neste ponto ele contrariaria
a política de Augusto. Os poemas de Ovídio simplesmente não poderiam compor a lista
dos gêneros educativos que asseguravam o culto à personalidade do Imperador e à
grandeza do Império. Sua obra mesclava licenciosidade e artificialismo, muito acima ou
muito abaixo da aurea mediocritas fundamentada por Horácio.
Nas Metamorphosis, obra-prima que guardava profundamente o caráter transitório
de um classicismo ático para um cosmopolitismo helenístico, Ovídio revela seu gênio
exuberante e excessivo narrando aproximadamente 250 lendas de transformações de
deuses e heróis em seres vários da natureza: animais, árvores, rochas; remonta à origem
dos tempos, ou seja, desde a mítica Idade de Ouro até a transformação de César em estrela.
Ovídio, por abusar da liberdade, conhecedor que era do seu gênio, malogrou perante
Augusto, talvez porque não pudesse conter seus impulsos helenísticos, talvez porque na
vida pessoal não tivesse conhecido a moderação. Ovídio, ao adotar os princípios estético-
ideológicos que motivaram as Metamorfoses, já parecia antecipar a diversificação na
escolha desses princípios por parte dos autores da Idade de Prata. Embora este idealismo
anacrônico de Ovídio que já havia outrora dominado os poetas helenísticos, fosse
transformado, entre os escritores do período argênteo, em um realismo forjado pelas
perigosas circunstâncias políticas.
Com a dissolução dos ciclos dos notáveis como o de Mecenas, os imperadores da
dinastia julio-claudiana voltam a ser poderosos evérgetas e os poetas, com seus gêneros
mais diversos, passaram a ser vistos como pessoas não muito caras ao seu regime
despótico. A mímesis poética descobre uma antiga função, exclusivamente vivida pela
comédia clássica: a denúncia política. Esse reencontro, ocorrido sob um pano negro de
terror e desconfiança, de medo e delações, foi o provável motivo para o aprimoramento de
um novo tipo de realismo. Uma resposta bem elaborada aos desmandos políticos dos
69
césares foi a prática mais comum, em meio a uma diversidade de emprego de gêneros
literários.
Uma análise dos resultados da política de Augusto leva-nos a crer que uma de suas
maiores realizações foi a propagação, via Ocidente, de uma semiosfera exclusivamente
românica. Roma é uma cidade helenística, é verdade, mas as urbes ocidentais na Hispania,
na Gallia e na Africa foram extremamente receptivas aos gêneros culturais românicos,
tornando-se, assim, núcleos da mais alta expressão desse sistema difundido pelos romanos,
através do processo conhecido historicamente como romanização. A Pax Augusta, como
slogan do ambicioso projeto político instituído por Augusto, ocasionou a expansão da
semiosfera românico-helenística e estabeleceu Roma no centro das hibridações culturais e
lingüísticas. O latim será a língua da parte ocidental do império, pois não podendo
competir com a língua grega, terá encontrado nas províncias do Mediterrâneo Ocidental o
ambiente lingüístico de sua propagação.
Um outro resultado da política de Augusto foi a consolidação do realismo
românico, ou melhor, do romantismo, que teve Virgílio como seu maior arauto. Entretanto,
apesar de consolidado, com a morte de Augusto caíram por terra os seus fundamentos, pois
a política de Augusto não encontrou continuidade entre os seus sucessores, tendo
desembocado numa política de despotismo e terror. Sobreviveu, contudo, a tradição do
Latim como língua literária, que teria agora outra estrutura estético-ideológica forjada num
ambiente de forte tensão político-literária. É o que talvez explique a produção literária de
Fedro (Séc I a.C-Séc I d.C) ao encontrar na fábula esôpica o gênero mais adequado a uma
situação discursiva extremamente tensa. Este escravo grego libertado por Augusto, viveu
sob os auspícios de Tibério, talvez divertindo sua corte com este gênero tão cheio de
humor e ironia. A fábula esópica não seria o gênero literário no qual um poeta, àquela
altura da evolução da tradição literária romana, deveria investir para conquistar o público,
já devidamente instruído para fruir os grandes gêneros. Os motivos estéticos e ideológicos
que levaram Fedro a escolher tal gênero teriam sido os mesmos que levaram a literatura da
Idade de Prata a se configurar através de gêneros mais afetados pelo retoricismo reinante
do que pela criatividade mimética, isto é, a decadência das letras. Sêneca (~4 a.C-65 d.C)
por si só representaria esse autor extremamente eclético. Seria um grande tragediógrafo
sem ser, no entanto, um dramaturgo. Este fato particular que envolve as tragédias de
Sêneca pode esclarecer a transformação vivida por este gênero tão refinado, mas pode
70
esclarecer não apenas a atmosfera estético-ideológica reinante, mas também o ambiente
desfavorável às expressões mais elevadas, flagrante sinal do contexto que condicionou a
recuperação de gêneros antigos, consideradosde segunda categoria, como a fábula esópica,
o romance grego, a epopéia românica e a sátira.
No teatro a situação ficou mais grave ainda. Reinavam os gêneros miméticos de
baixo escalão: o mimo e a pantomima. Tudo leva a crer que as lições de Horácio
28
não
criaram raízes no coração dos jovens romanos. Todo o preceituário do idealismo românico
de Augusto, de uma forma ou de outra, não se estabeleceu como uma paidéia romana ou
um sistema educacional propriamente dito. É neste ambiente educacional confuso que
Sêneca escreve nove tragédias, apenas para serem lidas, pois nunca foram encenadas.
Vislumbra-se um ambiente hostil aos gêneros das “belas letras”, do bom gosto e do
refinamento das formas clássicas. Entretanto, parodoxalmente, gera-se uma circunstância
propícia a um realismo mais refinado, a uma mimetização - dos costumes e dos fatos
históricos - mais objetiva e crítica. As fábulas de Fedro, o romance satírico de Petrônio, a
epopéia de Lucano (39-65 d.C), as mais ousadas elaborações retóricas de Sêneca e Quinto
Cúrcio (Séc. I d.C), as sátiras de Juvenal e Marcial foram os gêneros que traduziram bem,
da forma mais adequada possível, o espírito da época argêntea que buscava sua expressão
sob a ameaça despótica dos Césares.
28
Contidas na Epístola aos Pisões
71
4. Os gêneros literários e o realismo da Idade de Prata
A evolução do realismo antigo, da maneira como a concebemos, apresenta várias
etapas circunscritas no âmbito da criação artístico-literária. Cada uma delas pontua
sazonalmente a relação que o homem antigo historicamente manteve com o fazer artístico.
Na Grécia e em Roma a evolução dos gêneros artísticos seguiu a evolução do realismo, ou
seja, deu continuidade à descoberta cada vez mais ampla da realidade como produto
humano. Sendo assim, empregamos “realismo” como um termo que designa uma série de
condutas pragmáticas (estéticas e ideológicas), a partir das quais o homem na Antigüidade
greco-romana elaborou seus gêneros culturais.
O resultado do trabalho de elaboração desses gêneros culturais na Hélade,
principalmente a partir do século homérico, foi o estabelecimento de uma semiosfera, na
qual o homem da pólis incorporou o signo estético-ideológico de onde partiria toda a
semiose
29
possível da época. Os gêneros literários foram gerados para serem usufruídos de
modo extremamente diverso pela comunidade semiológica. Comunidade na qual foram
moldados e com a qual interagiam.
O grande mérito do artista antigo foi tornar estes artefatos culturais algo singular,
monumental e duradouro, um acontecimento histórico pleno de significação. Entretanto só
o realismo grego foi capaz de imprimir na obra de arte literária um significado realmente
humano, elaborado à medida dos interesses e das veleidades humanas. A partir daí é que,
acreditamos, todos os gêneros artístico-culturais passaram a veicular uma tensão semiótica,
ou seja, estético-ideológica capaz de produzir nos homens as simulações das experiências
requeridas para sua realização plena como ser humano, ou no mínimo, como indivíduo da
pólis.
O realismo grego foi uma espécie de luz que raiou sobre o espírito do homem
antigo e iluminou a natureza e as coisas de tal modo que aguçou indefinidamente os
sentidos humanos e aprimorou sua capacidade de imitar, ou melhor, de criar modelos
plásticos e verbais que se assemelhavam através da mímesis aos aspectos mais perceptíveis
da natureza das coisas e ao mesmo tempo fez o homem antigo desenvolver a capacidade de
29
Cf. Lotman (1996: 24)
72
calcular e raciocinar, o que possibilitou uma aproximação metafísica entre a imitação e o
cálculo; isto é, possibilitou uma assimilação da natural ordem cósmica (phýsis) gerada
pelos deuses, à fantasiosa ordem humana (techné), gerada pelos próprios homens.
Fantasiosa porque, via de regra, todo gênero cultural que o ser humano produz é fruto da
sua fantasia
30
. Fantasia que já entre os gregos fez gerar os gêneros literários produzidos
pela imitação e pelo cálculo.
Além da imitação construtiva, os gêneros literários buscam a formulação de uma
enunciação analítica, desconstrutiva, nascida do raciocínio lógico. Isto quer dizer que o
realismo moldou, por um lado, a imagem do homem como resultante do cruzamento de
enunciações proferidas pelas complexas construções do discurso de imitação, e por outro
lado, apresentou o homem na sua forma puramente verbal mais abstrata, através de
enunciações moldadas no discurso lógico. Em suma, o realismo inventado pelos gregos
apresentou verbalmente o reflexo e a medida do homem interior e exterior do mundo
greco-romano e foi veiculado através de uma enorme coleção de gêneros que possuíam,
indefinidamente, características construtivas e desconstrutivas.
Além disso, não existe uniformidade na representação mimética nem na
representação lógica desse homem antigo. Faz-se necessário, portanto, compreender a
natureza de cada gênero e que relação cada gênero literário teria com esse enquadramento
dos tipos humanos. Nos gêneros literários artísticos, o realismo antigo se configurou
através da dinâmica de todas essas espécies de discursos enunciadores das “reais” medidas
do homem, medidas eminentemente verbais, elaboradas pela versificação ou pela
disposição da prosa. Para compreender a relação entre a natureza dos gêneros e as várias
medidas do homem que o realismo concebia, passemos a descrever, de maneira sucinta, os
gêneros mais importantes.
1- A epopéia, que teve sua vigência no período homérico e que teve um grande
lampejo no período de Augusto, é de natureza mítico-heróica. Sua fantasia remonta uma
ordem onde se realizam viagens e batalhas envolvendo os heróis primordiais e as forças
divinas. O herói épico é um homem à medida de um deus. Desafiador ou cumpridor dos
numina, das vontades celestiais, ele é um guerreiro aventureiro divino e o efeito catártico
de sua mímesis levou os gregos e os romanos a cultivarem sentimentos cívico-patrióticos.
30
Castoriades (1985: 71) apresenta passagens do Livro O Tratado da Alma de Aristóteles : (III, 7):”E para a
alma pensante os fantasmas são como sensações...É por isso que a alma nunca pensa sem fantasma”.
73
2- A tragédia, que teve sua vigência no período ático, é também de natureza épico-
mítica, mas o herói trágico não é um guerreiro, é um pai, um marido, um filho, uma vítima
das tramas do destino, torna-se homicida, suicida, parricida, matricida, etc. Que efeitos
catárticos poderiam advir da representação dramática e da enunciação dialógica desses
assassinos e vítimas, seres de grande nobreza acometidos pela desgraça? A purificação das
paixões - a mais elevada katarsis, segundo Aristóteles - é o que provocava a tragédia.
3- A comédia, por sua vez projetou o homem à medida de seus traços mais
realistas. O homem da comédia não é mais um herói preso aos fios dos desígnios dos
deuses ou de quaisquer forças divinas, nem tampouco é um nobre. Na comédia, enuncia o
homem comum atrapalhado e indeciso. Movido por um egoísmo impiedoso, fere seus
próximos e se imiscui com eles, mas procura sempre se redimir. A Comédia Antiga faz
enunciar satiricamente o jargão das profissões mais instruídas, esboçando até invectivas
pessoais, enquanto a Comédia Nova reproduz as conversas e os mexericos das ruas e das
alcovas. Os tipos da comédia antiga são os pais dos personagens do realismo satírico. O
principal efeito catártico da comédia é o cultivo à sobriedade numa tentativa de evitar os
vícios que tornam o homem comum ridículo.
4- O gênero lírico que desde sua criação por Arquíloco sempre se renovou era de
natureza híbrida, enunciou um realismo cuja medida era o próprio poeta. O homem lírico
pode incorporar o heroísmo épico, as paixões trágicas, as paixonites cômicas. Pode mesmo
ir além dos gêneros artísticos e enunciar opiniões “científicas” sobre temas diversos. O
homem lírico revive o aedo homérico, mas sempre lançado numa arena hostil e
conflituosa, sua medida é a medida de seus versos. Todas as sensações podem ser
experimentadas na brevidade lírica, o poeta lírico é o homem cuja alma é atenta aos vários
sentimentos que as palavras podem enunciar.
5- O gênero romanesco de natureza híbrida não mais mimetizou o homem da polis.
O homem romanesco é cosmopolita, uma figura resultante de uma complexa relação que
fez mesclar o homem cômico e o homem épico: ele ultrapassa os limites impostos pela
natureza cenográfico-dialógica da comédia e é ampliado na expansão cronotópica da
narrativa épica. No romance, a natureza heróica do homem épico funde-se à natureza
cômica do homem comum, que se torna um mero joguete dos deuses, principalmente da
Fortuna e do Amor. Teoricamente o efeito catártico do romance é imprevisível. Não há o
74
culto ao civismo pátrio da epopéia, não há o expurgo das paixões trágicas, não há as lições
de sobriedade da comédia. No romance há o culto desinteressado da arte pela arte.
Todavia, na Antigüidade, somando-se ao êxito dos gêneros artísticos, devemos
assinalar a importância dos gêneros preponderantemente lógicos e retóricos; se por uma
lado ocorreu um intenso processo de mescla entre os gêneros literários, por outro lado,
ocorreu também uma competição entre eles. O homem construído pelos gêneros artísticos
foi desconstruído pelos gêneros críticos: o gênero historiográfico desconstruiu o homem
épico; o gênero filosófico desconstruiu o homem dramático; o gênero retórico desconstruiu
o homem lírico; o gênero apologético desconstruiu o homem romanesco.
Nos gêneros críticos, a tensão estético-ideológica é também bastante ativa porque
apesar de sua enunciação apresentar o homem abstraído em conceitos, a retórica, por
exemplo, procurou preservar o potencial estético do discurso. Seu enunciado não veicula
necessariamente um efeito catártico, nem de civismo, nem de purificação, nem de
sobriedade, fala ao intelecto sugerindo o cálculo das medidas do homem político ou
cosmopolita. Os gêneros críticos promovem o cálculo dos efeitos catárticos veiculados
pelos gêneros miméticos, pois compartilham da mesma medida da realidade humana. A
descosntrução é na verdade um desdobramento abstrato, enquanto o realismo artístico
emprega a palavra para imitar um kósmos de natureza mítica ou real, o realismo crítico
31
usa a palavra para definir o homem destituído das fantasias ou máscaras produzidas pela
mímesis.
Por fim, a representação realista do homem antigo foi garantida pelo caráter
coletivo dos gêneros literários. Cada gênero encontrava os meios de sua realização e o
ambiente institucional necessário ao seu pleno usufruto. Exceto no caso do romance, a
cidade antiga acolheu, ao longo de sua evolução, uma imensa gama de gêneros literários.
Além dos locais onde esses gêneros circulavam: teatros, escolas, bibliotecas, palácios,
casas de notáveis, praças e tribunas, havia ainda um rudimentar, mas eficaz, processo de
editoração
32
. Supomos que no caso do romance seu êxito dependeu totalmente desse
processo editorial.
31
O Demônio de Sócrates, segundo Nietzsche (2005: 101), o raciocínio que Sócrates defendia contra os
instintos artísticos.
.
32
Os exemplares eram raros, não havia produção em massa. Cf. W. Martins (2001)
75
Esse resumo do realismo antigo não pretende reduzir toda a complexidade da
semiosfera antiga a essas simples relações de contigüidade e verossimilhança entre os
gêneros literários e o homem como medida das coisas. Nossa intenção é encontrar um
caminho que possa nos conduzir a uma das faces desse complexo sistema de signos,
seguindo as pistas que os próprios autores deixaram, através de enunciados estruturados
em gêneros. Nosso interesse é distinguir, sobretudo, o realismo satírico no emaranhado dos
gêneros literários e localizar o homem satírico através do enunciado mimético que o
desenha.
O realismo satírico não utilizou apenas um gênero como veículo de suas
enunciações carregadas de tensões estético-ideológicas. Vários gêneros acomodaram o
realismo satírico. Porém, antes de enumerá-los devemos compreender a evolução desse
espírito que, nascido na Antigüidade, tem permanecido e se renovado ao longo dos anos.
Para compreender este espírito que se caracteriza como um agudo realismo, tentaremos
fazer uma análise do termo sátira que passou a designar uma certa variedade de gênero
literário. Dois étimos são atribuídos a este nome: o grego
σατυροι
( satyroi ) e o etrusco-
latino satura. Anterior a estas duas formas deve haver uma outra que possa esclarecer a
coincidência fonética que teria por sua vez produzido as variações satira e satiricus do
latim.
O elemento grego se refere aos personagens mitológicos, perseguidores das ninfas;
o próprio Zeus teria se transformado em um deles para fecundar Antíope. Trata-se de
machos híbridos, caprinos e humanos geralmente, que na época histórica, através de
máscaras, se agregavam ao cortejo dionisíaco e vão aparecer também nas encenações das
paródias realizadas após as encenaçõesdas tragédias durante os festivais cantando os
ditirambos
33
. Terão estas figuras paródicas sofrido a grande transformação estético-
ideológica que evoluiu a ponto de resultar na criação dos personagens da comédia ática?
Por certo, o espírito da paródia será o mesmo que produzirá a mofa e o escárnio e motivará
a invectiva pessoal da comédia de Arístófanes, no período ático; dos textos satíricos de
Menipo de Gádara (Séc. III a.C) e das composições poéticas dos cínicos, no período
helenístico; como também das sátiras romanas de Ênio a Juvenal; mas só podemos provar
isto se levarmos em conta a existência de um realismo específico, isto é, o realismo
satírico.
33
A Sátira de Eurípedes foi a única do gênero que sobreviveu. Esse drama emprega um coroformado por
Sátiros
76
O elemento latino satura aparece como a forma feminina do adjetivo satur, que
quer dizer saciado e farto. Campo semântico que comporta satis, que também pode
significar esgotado, exaurido. Uma das formas substantivas designa, por sua vez, um prato
de cozinha, um bolo talvez, ou um prato de oferenda ritualístico, lanx satura, produto da
mistura de variados frutos. Uma outra forma é a locução adverbial per saturam
34
;
originalmente é uma expressão jurídica que designa a apreciação conjunta de vários
assuntos e que vai aparecer tardiamente na titulação das obras de Ênio e Lucílio e no título
da Apocolocyntosis de Sêneca. Além do mais, no próprio Satiricon, vamos encontrar o
adjetivo substantivado satureus (nas formas do genitivo saturei e do ablativo satureo ) que
designa uma bebida com poderes medicamentosos.
Em vista desses dados, o realismo satírico - ou simplesmente a palavra sátira -
estaria relacionado com o hibridismo e a paródia e, por fim, com a crítica social, a censura
e a invectiva pessoal. O hibridismo está presente na figuração dos sátiros e na composição
dos pratos de comida, ou bebidas medicamentosas; a paródia surge com a introdução
destes elementos híbridos no complexo dramático; a crítica social nasce da paródia que
seria um tipo de mímesis secundária e depreciativa; e da crítica surgem a censura e a
invectiva pessoal, formuladas por Árquíloco e Aristófanes e aperfeiçoadas pelos
alexandrinos e pelos romanos.
Desse modo, para enumerar os gêneros que teriam veiculado o realismo satírico,
apresentamos o seguinte roteiro:
1- A Sátira ditirâmbica, cujo coro era formado por Sátiros
2- A comédia ática de Aristófanes, que emprega a invectiva pessoal, o onomasti
komodein, burla que nomeia a pessoa;
3- A silografia, poesia de escárnio que havia alcançado vitalidade durante o helenismo na
poesia filosófica;
4- A sátira menipéia, poesia popular moralizadora dos cínicos, criada por Menipo de
Gadara que viveu no começo do séc. III a.C.;
5- Os Jambos de Calímaco;
34
Cf. Bickel (1987: 541)
77
6- As Saturae de Ênio que aí não emprega a invectiva pessoal, mas se configura através
do emprego mesclado de vários gêneros;
7- A obra de Lucílio, Saturae que foi reconhecida sob a alcunha de Poemata ou Sermones
per Saturam, composta de metros diversos (principalmente o hexâmetro) e de
invectiva pessoal;
8- As Menippeae de Varrão, assim nomeadas pelo próprio autor, como assegura Aulo
Gélio, que seguiram os modelos das sátiras cínicas;
9- A Apocolyncitosis Divi Claudi per Saturam de Sêneca, onde está narrado o julgamento
de Cláudio por Augusto entre os mortos;
10- Os Sermones per Saturam de Horácio, mais conhecidos como Sátiras;
10- O Satiricon de Petrônio, que será analisado per saturam na segunda parte deste
trabalho;
11- As Sátiras de Pérsio, Marcial e Juvenal, que consolidaram o gênero inventado por
Lucílio;
12- E A História Verídica de Luciano, que escrita em grego trata de satirizar os gêneros
pagãos.
Todas essas manifestações do espírito satírico
35
evidenciam uma evolução que os
romanos imprimiram, até alcançar o aperfeiçoamento do próprio gênero que passou a ser
designado como sátira. Gênero criado por Lucílio, aperfeiçoado por Horácio, e que teve
grandes representantes ao longo da Idade de Prata. As características do realismo satírico,
entretanto, não foram exclusividade da sátira epigramática ou lírica, nem do drama, nem do
romance; nem tampouco foi exclusividade dos gêneros miméticos; além das sátiras cínicas,
as epístolas aforísticas e moralistas de Sêneca seriam um exemplo de um esboço de uma
sátira filosófica entre os romanos. Os embates estético-ideológicos na chamada Idade de
Prata, principalmente no principado de Nero, tornariam esse fato evidente. A contradição
inerente a esta época e o ambiente propício à sátira são apresentados por Bignone (1952:
337) de modo esclarecedor:
35
Cf. Bickel (1987: 539 e segs)
78
Os historiadores modernos mais recentes têm razão, em grande parte, ao criticar os
historiadores mais antigos deste período do império, sobretudo Tácito, pelo fato de
escrever a história dessa época com a visão voltada sobretudo para Roma e para a
corte imperial e sombreá-la toda com a tirania e a iniqüidade do pior dos
imperadores; esquecendo com freqüência que a grande criação de Roma, o
império, nunca foi mais próspero que esta época nem gozou de tão longos períodos
de paz, como nunca houve sob a república; e que ainda os piores imperadores
fizeram leis sábias e humanas; que as províncias tiveram, em geral, governadores
muito mais capazes e preocupados com o bem de seus provinciais do que haviam
sido os Verres, que não foram poucos, da época republicana. Mas o historiador da
literatura, que neste momento vive quase que exclusivamente em Roma, e se
alimenta da vida de Roma, que gravita sobretudo na esfera cortesã, cujos maiores
escritores como Sêneca, Lucano, Petrônio, estão intimamente ligados à corte
imperial e são vítimas dela, não pôde deixar de fixar o olhar em Roma e na corte,
como natural e necessário fundo da literatura dessa época.
Fixando o olhar sobre este contexto, acreditamos encontrar as tensões profundas
que acarretariam no desenvolvimento pleno do realismo satírico. Para melhor explicar esse
desenvolvimento, partimos da constatação de que o casamento feliz entre a arte literária e o
poder – que vigorou no período de Augusto –deu lugar a uma relação extremamente tensa.
Praticamente será impossível manter o elevado espírito criador de uma literatura edificante.
As fantasias tão bem elaboradas pelo Imperador Augusto e pelos afetados escritores da
Idade de Ouro, que culminaram numa epopéia esplendidamente construída, numa lírica
pessoal emuladora da lírica helênica e, por fim, numa historiografia que em nada deixava a
dever aos textos do grande Tucídides, não encontraram mais o alimento que as nutria: um
ambiente político propício; e deram lugar a um realismo muito mais preocupado em se
esquivar, através de paródias cínicas ou satíricas, das desconfianças dos sanguinários
imperadores. Embora a maioria deles tenha se tornado vítima da truculência do império.
Alfred Gudeman ( 1942: 191 ) reconhecendo vivamente o declínio do espírito de
criação literária, apresenta as três causas principais que geraram o ambiente literário
decadente da Idade de Prata:
1- Histórico-literária
2- Psíquica
3- Retórico-formal
Sobre a primeira causa ele esclarece que “com a exceção da fábula e do epigrama
todos os gêneros literários em verso e em prosa, uns já antes, como o drama, a sátira e a
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oratória, outros na época de Augusto, haviam alcançado um nível de perfeição
insuperável”. Tais gêneros seriam imitados, mas tal imitação teria se convertido em
maneirismo. Para ele o que rege esta transformação é uma lei de evolução literária,
segundo a qual os apogeus da criação espiritual não gozam de ampla estabilidade e são
seguidos por uma decadência.
A segunda causa está condicionada diretamente pelas circunstâncias políticas.
Desde Tibério “o poder pessoal foi adquirindo caráter cada vez mais despótico,
conduzindo em breve à repressão sem escrúpulo de toda manifestação independente, falada
ou escrita.” Ao longo de um pouco mais de um século, de Tibério a Adriano, o despotismo
fez várias vítimas. São exceções nesta série interminável de tiranos apenas os imperadores
Vespasiano, Tito, Nerva e Trajano.
O predomínio alcançado por uma retórica dogmática, rotineira, opressora de toda
independência que veio a exercer uma espécie de despotismo espiritual foi, segundo
Gudemann, o que houve de mais funesto na Idade de Prata. Para ele, poucos escritores
escapam de tão má influência da retórica e só um soube de modo magistral adaptá-la a seu
profundo conteúdo ideológico: Tácito (~55 d.C-~117 d.C).
A Idade de Prata é, sem dúvida, uma época de grande controvérsia literária e
política; além do mais, os próprios imperadores foram homens dotados de grande talento
artístico-intelectual. Como destaca Gudemann:
Os próprios Césares, com poucas exceções, foram homens dotados de grande
ilustração, e muitas vezes, ainda que dentro de estreitos limites, se dedicaram à
literatura. Alguns como Cláudio no domínio da história, e Nero no da poesia
possuíram, ao que parece, qualidades de escritor que ultrapassaram o nível
comum. No geral,o mostraram antipatia pela cultura superior, na verdade, a
fomentaram em parte.
No parágrafo seguinte aponta o que para nós traz uma informação especialmente
importante:
A instituição de certames poéticos e oratórios, como os de Nero, as
chamadas Nerônia e Juvenália e do célebre Agon capitolino e das
Quinquatria Minervae de Domiciano foi considerada por alguns benéfica
para as letras. Mas como os participantes desses certames deviam levar
em conta as tendências e os caprichos da corte, e no tempo de Nero
estavam inclusive expostos à inveja e aos ciúmes deste poeta coroado,
tais instituições literárias poderiam alguma vez despertar e espoliar
talentos adormecidos, mas nunca ocasionar frutos esplêndidos; seja
como for, nenhuma das obras coroadas nestes certames chegaram à
posteridade, pois inclusive Lucano e Estácio, de quem, entre outros
sabemos que concorreram a eles, devem sua celebridade póstuma
justamente a poesias que não foram recitadas em tais festas.
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Ambientes como estes que deveriam favorecer ao florescimento de gêneros capazes
de atender ao gosto refinado dos imperadores, tornavam-se, contraditoriamente, favoráveis
a uma literatura desprovida de grandes valores. Entretanto não devemos nos dar por
satisfeitos e devemos procurar entender por que os escritores mais geniais tiveram de
instituir, sob todos os riscos, ambientes particulares, onde suas enunciações pudessem
circular sem a ameaça de tão gritante despotismo.
A decadência da Idade de Prata pode ser explicada pela lei defendida por
Gudemann, mas sua justificação mais provável, a nosso ver, está mais estreitamente
relacionada a causas estético-ideológicas, similares às que ele rotulou de psíquicas; e
mesmo a retorização excessiva deve também se justificar por isto. A produção e a evolução
literária, para nós, atende a demandas culturais que surgem em vista de uma conjunção de
fatores: psicológicos, sociais e lingüísticos, que afetam a realização pragmática dos
gêneros literários. A pragmática, como a entendemos, procura levantar as razões que levam
os indivíduos e as sociedades a adotarem determinados gêneros como manifestações de sua
própria identidade. No exame que elaboramos, tentamos focalizar os resultados da ação
desses três fatores que entram na criação e na evolução dos gêneros literários.
1- O fator psicológico está diretamente relacionado ao grau de envolvimento
pessoal ( emocional e intelectual ) do escritor com as fantasias e as crenças coletivas. A
literaturade Homero, haja vista as dificuldades de defini-lo como um autor histórico, pode
ser considerada como um primeiro passo para a evolução psicológica dessas fantasias, que
nos seus primórdios não passavam de fabulações míticas ou fórmulas votivas. Entretanto a
literatura é tão mais rica e esplêndida quanto maior for a afinidade entre essas fantasias e a
elaboração independente dos gêneros; elaboração que em princípio só diz respeito ao autor.
2- O fator social implica em antagonismos entre grupos sociais que confrontam suas
fantasias em busca de uma melhor adequação entre essas mesmas fantasias e as forças
materiais, conduzindo estas à criação das instituições literárias. O choque dessas fantasias
acarreta fusões de gêneros culturais: o apagamento de uns, o aparecimento de outros.
3- O fator lingüístico depende do potencial enunciativo que a língua, adotada pelo
escritor, possui. O potencial enunciativo é medido pela disposição oral e escrita, que só os
gêneros, já reconhecidos pelo grupo social dominante, podem sustentar. Todos esses
fatores reunidos constituem o que denominamos de demanda estético-ideológica da criação
cultural e artístico-literária.
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Como compreender então, através da conjunção destes fatores, a decadência da
Idade de Prata em relação à Idade de Ouro? Será que 1-as fantasias coletivas da
semiosfera românico-helenística foram suprimidas pelos imperadores, 2-os antagonismos
sociais foram suprimidos pelo Império e 3-o potencial enunciativo do Latim foi reduzido
aos artifícios da retorização adulatória ou acusatória? Em parte, foi o que aconteceu,
todavia a complexidade da realização literária manifesta, sobretudo, na variedade de
gêneros que, em verso e em prosa, surgiram ou ressurgiram nesta época, torna difícil
qualquer afirmação sobre o sucesso de seus autores.
Na verdade, lograram êxito aqueles autores que melhor conseguiram assegurar, para
si próprios, espaços adequados para o livre fluxo da realização literária. Em primeiro lugar,
os fatores psicológicos que podemos mencionar não estão apenas relacionados à loucura
divina dos imperadores. É verdade que o precioso vínculo de Júlio César a Vênus, e a
religiosa enunciação desse laço proferida pela própria deusa nos magníficos versos de
Virgílio, mais do que um orgulho cívico que poderia ser exemplar, tanto para os sucessores
do divino César, quanto para os cidadãos romanos, fizeram suscitar um tipo de fantasia que
beirou o ascetismo patológico. Os efeitos psicológicos dessa loucura fizeram-se sentir na
recepção dos gêneros mais vigorosos da tradição românico-helenística. Tradição que agora
deverá conhecer o seu momento mais cruciante, principalmente na fábula de Fedro; na
prosa aforística de Sêneca; na epopéia de Lucano, na sátira de Pérsio e no romance de
Petrônio (só para citarmos os prováveis contemporâneos do Satiricon), e que aí soube
conjugar os valores psicológicos, sociais e lingüísticos remanescentes desses gêneros à
tendência retorizante da época.
O potencial lingüístico enunciativo dos vários recursos retóricos - sob a influência
da retórica ciceroniana, que já se configurava como uma síntese românico-helenística dos
estilos ático e asiático; sob a influência dos preceitos horacianos que tentariam manobrar
os excessos do artificialismo; e sob a grave influência dos hexâmetros argumentativos de
Virgílio na sua didascália e na sua epopéia - iria viabilizar um complexo semiológico
heterogêneo, que aqui e ali se manifestaria sob esse véu retórico e desenharia um quadro
estético-ideológico fragmentado que, por sua vez, inviabilizaria a comunicação dos autores
entre si e dos gêneros com a sociedade. Havia apenas um potencial co-enunciativo, que só
se realizaria, publicamente, na posteridade. Via de regra, isto explicaria o obscurantismo
que encobriu a figura controvertida de Petrônio e sua provável obra.
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Na realidade o quadro que descrevemos acima não passa de um esboço do contexto
histórico-literário, no qual o realismo satírico fincou definitivamente raízes no espírito da
literatura européia antiga e moderna. Com o aparecimento do romance latino de Petrônio,
estabeleceu-se um complexo enunciativo genérico que se perpetuou sem, no entanto,
deixar claro seu rastro, mas que hipoteticamente pode ser levantado, pois como escreveu
Leoni ( S/D: 13 ):
Sob o aspecto lingüístico, o Satiricon é uma das obras mais importantes da
literatura latina; aliás, muitas vezes a importância lingüística une-se à beleza
artística: estilista, Petrônio escreve de modo simples, claro, vivo, natural,
maleável, atraente, digno dos melhores escritores de Roma; e também quando
parodia as expressões solenes e épicas, mostra a sutileza de linguagem
empregada pelos melhores humoristas. É um narrador de raça: pensemos num
Voltaire, porém mais pitoresco, ou num Rabelais, mais aristocrático; ou num
Anatole France, menos filósofo. O nome de Anatole France nos lembra também
um outro ponto de contacto entre a obra de Petrônio e a literatura picaresca, que
o romancista francês reviveu na sua “Rôtisserie de reine Pédauque”. E estas
lembranças confirmam, ainda mais uma vez, que o Satiricon deve ser
considerado como um verdadeiro romance, não uma simples sátira.
Petrônio transferiu o realismo satírico para um gênero de origem helenística que
entre os românicos ainda não havia sido devidamente emulado. Mas tal gênero de caráter
híbrido, mesmo não tendo encontrado entre os românicos uma recepção historicamente
visível, acomodou-se ao espírito realista satírico que os românicos já haviam aperfeiçoado.
A Idade de Prata teria sido a época em que os germes da sátira teriam encontrado,
pelo menos de maneira incompleta, condições de se desenvolver sem que ficassem sujeitos
à rigorosa censura dos imperadores, cujas personalidades resumiam a semiosfera
românico-helenística. Isto é, por um lado, havia uma concentração de poder na pessoa do
imperador - e por isso mesmo a existência de um eficiente sistema de pressão estético-
ideológica - e, por outro lado, havia uma dispersão, ou uma descentralização dos núcleos
de realização pragmática dos gêneros literários, isto é, desapareceram os ciclos mecênicos,
ou, pelo menos os que resistiram haviam perdido sua função original.
Como já vimos, não foi Petrônio o único a inovar ao investir em um gênero ainda
não experimentado pelos romanos. Fedro foi também um que agiu do mesmo modo ao
investir na fábula esópica. Mas, no geral, todos os grandes escritores procuraram inovar de
algum modo, mesmo tendo adotado gêneros já consagrados na semiosfera românico-
helenística. Curiosa é a figura de Lucano, sobrinho de Sêneca, por ter rivalizado com o
próprio imperador poeta. Como lembra Bignone ( 1952: 352 ):
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Nero, cantor que se acompanhava de cítara, poeta de artificiosos versos
neotéricos, condutor de quadrigas no circo, queria levar a Roma todo o
esplendor da cultura e da vida artística gregas, e também aquela emulação que
havia visto surgir na Grécia, a porfia entre os maiores líricos trágicos:
Simônides, Baquílides, Píndaro, Ésquilo, Sófocles, Eurípides. Com o seu nome (
Neronia ) estabeleceu no ano 60 d. C. concursos de poesia e eloqüência, nos
quais tomaram parte os maiores gênios de Roma. Lucano participou e venceu
com um poemeto elogiando Nero; e o povo aplaudiu aquele jovem de vinte anos
( como nos dizem seus antigos biógrafos ) a um novo Virgílio.
As honras recebidas por este jovem poeta levaram-no a viver lado a lado com o
imperador, mas isto terminou custando-lhe caro: “ Lucano viveu no esplendor da corte e
esse esplendor o ofuscou e o fez perder-se” (Bignone 1952: 352). Logo seria proibido de
apresentar-se em público como orador e poeta. Para vingar-se compôs uma epopéia que,
ainda que guardasse profundas relações temáticas com a obra de Ênio, inovou em vários
aspectos, com a clara intenção de depreciar diretamente a figura de Júlio César e
indiretamente o Império. Por isso foi condenado a uma morte similar à de Petrônio: “fez-se
abrir as veias e morreu recitando versos compostos em outros tempos” (Bignone 1952:
353).
Claro está que o ambiente literário era extremamente controverso: havia em Roma
uma atmosfera de esplendor cultural artístico-literário capaz de fazer renascer o brilho dos
gêneros da literatura helênica; por outro lado a sombra da loucura dos imperadores impedia
que esse brilho atingisse sua plenitude. Petrônio, ao contrário de Lucano, não foi rival do
imperador, as especulações que surgem a partir do texto de Tácito colocam-no ao lado do
imperador como um poeta medíocre, frívolo, hábil apenas em opinar a respeito das
elegantiae da corte. Sem dúvida tratava-se de um disfarce que usava para que pudesse
viver em meio tão hostil aos talentos explícitos.
No caso de Lucano foi diferente, ele travou uma luta aberta contra o regime mesmo
que em princípio tenha utilizado o recurso da adulação ao imperador. Como
detalhadamente analisa Bignone
Se o gênero não era adequado a essa época, o tema era. Seu avô, Sêneca, o
Velho, havia narrado as guerras civis com ânimo livre de partidarismos cesáreos,
e com esse espírito haviam escrito Asínio Polião, Tito Labieno, Cremúcio
Cordo, vítima de Sejano. “Pompeiano” dizia-se ser Augusto a Lívio, que deve
ter sido uma das principais fontes de Lucano; pompeianos se declararam Sêneca,
o filósofo, e Quintiliano. Os imperadores que sucederam deixavam, geralmente,
escrever mal contra os Césares que lhes haviam precedido, excelente meio para
deixar que se desafogassem as paixões políticas; e Nero havia iniciado seu
principado sob a direção de Sêneca, com sentimentos altamente liberais. Lucano
havia tomado suas precauções na primeira redação do poema, repudiava as
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guerras fratricidas, mas exaltava o principado de Nero, Dom divino que Roma
havia pago com tanto sangue; que a Roma recompensava daquele horror
vergonhoso. Versos de grossa adulação que não honram sua memória e se
esforçava para apresentar os dois grandes antagonistas da guerra, César e
Pompeu com trágica imparcialidade, e deixava a trágica dúvida, sobre quem
recairia a culpa de haver “rompido o sagrado pacto do império.”
A epopéia de Lucano desenha um plano estético-ideológico diferente de todas as
outras obras que representam o gênero. Mesmo imprimindo a marca da grandiloqüência, e
seguindo uma tradição iniciada por Névio, inaugura um novo espírito na epopéia romana.
Sua fábula está de acordo com a lógica de construção épica do realismo romano, o fato que
focaliza é a guerra civil que arrastou os romanos àquela nova monarquia. Todavia, ao
contrário de Névio, Ênio e Virgílio, Lucano não cantaria feitos gloriosos de uma Roma que
ergueu suas muralhas destinada a promover a justiça universal, nem estaria movido pelo
sentimento cívico patriótico de uma república infalível, que havia motivado seus
predecessores; mas, em tom de lamento, ele agora prantearia o destino de Roma, e ao invés
de se dirigir a um público capaz de absorver, mesmo que forçosamente, a fantasia de uma
Roma gloriosa - como no caso do período de Augusto em relação à epopéia de Virgílio -
endereçava suas enunciações épicas ao imperador e ao mundo amordaçado que o divino
comandante controlava. A escolha da guerra civil como tema parecia estar bem afeito à
época e à mensagem ao mesmo tempo acusatória e adulatória que queria expressar.
Todavia, talvez até pelo irônico êxito na construção dessa genial mensagem poética,
contrapondo-se à loucura sanguinária do imperador rival nas letras, algo previsível
aconteceu, foi condenado à morte.
A epopéia de Lucano atende bem aos reclames desafiadores e contraditórios de uma
provável retomada do vigor literário, que renascia na imaginação de um imperador
enlouquecido pela poesia e pelo poder. O próprio Nero, como um grande mecenas,
incorpora o choque estético-ideológico. No seu espírito, a arte e a política devem se
encontrar confusamente enredadas travando uma estranha batalha. Mas tudo indica que seu
orgulho, alicerçado no imenso poder, superou seu gênio literário. A rivalidade entre
Lucano e Nero era sem medida. Este teria escrito uma pequena epopéia, Illiaca, que
celebrava o heróico incêndio de Tróia, e Lucano, desafiando-o, escreve uma outra com
tema análogo, Illiacon, que celebrava Heitor. Esse jogo de provocações poderia ter sido
frutífero, se levarmos em conta o ardor literário de ambas as partes. Todavia o que resultou
desses conflitos foi uma violência brutal e avassaladora. Neste ambiente de flagrante
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ambigüidade, de grande tensão estético-ideológica onde as emoções e as idéias eram
confrontadas nos certames das Nerônias e de outros eventos discursivos, Lucano havia sido
aclamado como um novo Virgílio, mas algum tempo depois é denunciado como traidor.
Este confronto direto com o imperador talvez se justifique pela juventude de
Lucano, que ingenuamente outorgou a seus enunciados uma força enunciativa ricamente
elaborada, como se pode inferir por sua epopéia, mostrando-se hábil em vários outros
gêneros helenísticos - escreveu até mesmo uma tragédia, Medéia - desgostando o
imperador. Suas obras eram dirigidas principalmente àquele público que acedia aos
torneios literários organizados sob os auspícios do imperador. Talvez, por ter contraído
aquela ânsia apaixonada de competição contra o seu perigoso e traiçoeiro rival, produziu
exaustivamente essas enunciações sem avaliar os riscos. Em Lucano, não é difícil constatar
a verve de um grande gênio e espírito criativo que dominava o ofício das letras. Devemos
considerar sua epopéia como um monumento literário colocado ao lado das grandes
epopéias, de Homero e de Virgílio, pois foi também um aedo mutatis mutandis que pôs em
cheque caprichosamente o culto à personalidade divina dos Césares. O interessante é que
em menos de um século foi possível confrontarem-se duas mímesis tão dispares: em
Virgílio, César é um deus da civilização e da paz, em Lucano, César é um tirano cego pelo
poder e pela fama. Como esclarece Gudemann ( 1942: 207), Lucano, na tentativa de
depreciar a figura de César,
foi muito mais além do que um historiador, que é sempre suave em seu juízo;
não sentiu escrúpulo para glorificar Pompeu, falseando fatos históricos, como
por exemplo: antes da batalha decisiva põe um discurso na boca de Cícero
quando esse se encontrava, naquele momento, muito longe do teatro da guerra,
em Dirraquio. O “grande” Pompeu é para ele a encarnação do ideal republicano,
César é um criminoso sem escrúpulos, o causador de todos os infortúnios que a
triste guerra civil fez cair sobre Roma.
Não é à toa que apontamos a obra de Lucano - com a qual ele enfrentou
abertamente a rivalidade de Nero - como um marco renovador da própria enunciação épica,
foi um aedo indesejável, desafiador e denunciador das fraquezas morais e poéticas do
imperador e de seus nobres descendentes. Sua epopéia não mimetiza um kósmos
impregnado de enunciações proferidas por seres divinos, deuses, adivinhos e heróis; na sua
obra, ao contrário, a lógica e o acaso comandam os acontecimentos dos personagens
históricos. Aí identificamos um inusitado realismo, em princípio, estranho ao espírito da
épica homérica e virgiliana, mas que os romanos já procuravam desde Névio. Lucano
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habilmente, revelando um dom incontestável, mesmo ainda muito jovem, realiza uma
epopéia que denuncia - quando a sua tradição é exortar o seu culto – a ruína dos valores
cívicos e religiosos. Lucano mimetiza de maneira grandiloqüente e apaixonada as causas
históricas desse mal que arrebatou a república.
No Satiricon a guerra civil aparece sob uma ótica também extremamente realista.
Naquele pequeno excerto de uma provável epopéia, é visível a intenção de mimetizar um
mundo arruinado a fim de contrastar com a fantasia épica da grandeza de Roma. Este
contraste revela que a situação exigia atitudes novas diante dessa fantasia que só
alimentava uma máquina de corrupção, totalmente avessa ao conjunto dos ideais morais e
políticos dos romanos. ( Cf. Rocha Pereira 1989: 319 )
Por todo os ângulos é possível enxergar, na Idade Argêntea, a falência das boas
relações entre literatura e poder. Justamente aí, a literatura antiga passou a conhecer o novo
procedimento estético-ideológico que, de certa maneira, só iria encontrar seu apogeu na
modernidade com o declínio do cristianismo. O realismo antigo, através de seus gêneros
culturais mais representativos - literatura, filosofia e artes plásticas - encontrou de fato, ao
longo de pelo menos oito séculos, um meio propício ao seu desenvolvimento, mas os
embates ideológicos entre este realismo e as fantasias cristãs, iniciados no primeiro século
de nossa era, fizeram com que ele recuasse até atingir seu relativo desaparecimento, já que
estas manifestações estético-ideológicas já não encontravam, no final do século II d.C.
,mais aceitação entre os grupos letrados. As fantasias cristãs começavam a ganhar corpo na
imaginação das massas românicas e helenísticas empobrecidas, e também de romanos ricos
desiludidos com o império, que irão se desvincular da vida urbana em busca de uma
realização religiosa capaz neutralizar os ânimos do helenismo pagão. Esses grupos
perderiam totalmente a identificação com as fantasias helênicas que nasceram nas pólis.
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5. O Satiricon, os gêneros helenísticos e o realismo satírico
Segundo Enzo Marmorale (1961: V), o Satiricon teria adquirido o formato atual a
partir de um trabalho de redução e seleção a que foi submetido numa data muito imprecisa
entre os século IV e VII d. C., vários séculos depois de sua primeira edição, feita
presumivelmente por Nero. São fragmentos dispersos dos livros 14, 15 e 16 que tinham por
título Libri Satirarum , forma latina ou Libri Satyricon, forma grega. Trata-se, portanto, de
preciosos pedaços de um provável romance, através dos quais é possível medir a grandeza
do tesouro literário em sua totalidade. Os livros 14 e 16 já eram conhecidos no século IX e
compõem os estratos breves contendo exatamente as partes precedentes e seguintes à Ceia
de Trimalcião ( Cena Trimalchionis ); no final do século XIII aparecem os estratos longos
contendo parte muito maior do que a primeira e parte da própria Cena. Em 1420 Poggio
Bracciolini encontra na Inglaterra um códice contendo a Cena completa, que ele definiu
como o livro 15.
Teria sido o próprio Nero a sugerir tamanho corte, ou teriam sido os copistas do
século IV forçados a fazê-lo por questões morais? O que ocultariam os outros fragmentos
desse romance? Invectivas pessoais, licenciosidades intoleráveis, relatos de crimes
hediondos ( stupri ), exortações à prática de perversões impensáveis, como o canibalismo,
por exemplo, enunciações carregadas de cupidez e luxúria? Todas essas possibilidades
teriam encantado o gênio perverso de Nero, embora o imperador pudesse reconhecer nestas
imagens a revelação de suas depravações. Porém, a contar pelo tom satírico vigente nos
livros que restaram, todas essas monstruosidades não passariam de inofensivas elegantiae
escritas para divertir o intelecto do imperador e de sua corte acostumada à luxúria e ao
refinamento.
A submissão do romance de Petrônio a esta seleção, da qual só nos restaram os
estratos, parece ter sido fundamental para sua perpetuação, porque o teria tornado mais
leve, para ser usufruído por uma comunidade de leitores mais ampla e cristianizada. Os
excertos que restaram foram transcritos em códices e depois foi criada para eles uma
tradição editorial a partir do século XV, com a edição de Francisco Puteolanus, chegando
ao século XX com as edições de Alfred Ernout e de Enzo Marmorale.
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Ambas as edições trazem referências amplamente analisadas das ambigüidades e
das lacunas que surgiram desde as primeiras tentativas de dar uma seqüência lógica e
sintática aos fragmentos encontrados nos codices. Ao longo desses séculos o que parecia
ser algo extremamente caótico foi aos poucos se configurando como uma estrutura
coerente que, pelo menos, indicava a existência de um texto romanesco.
É deste texto hipotético que primeiro tentaremos nos assenhorear antes de
passarmos definitivamente à análise dos fragmentos. Os problemas da autoria e data de
publicação do Satiricon nos remetem a uma polêmica extremamente longa que não mais
interfere nas reedições atuais. Todavia não há como não mencioná-la e até mesmo, não há
como não tomar partido. Nesse sentido, deveríamos seguir os indícios da autoria de Caio
Petrônio Árbitro, que havia sido procônsul da Bitínia e cônsul de Roma, no governo de
Nero. As observações à sua personalidade e aos seus escritos, feitas por Tácito, não
deixariam dúvida. Estão transcritas nos capítulos XVIII e XIX do livro XVI de seus Anais.
O que vamos apresentar são as últimas palavras com as quais menciona seus escritos.
( Petrônio ) não adulou com os pequenos textos, como os outros que pereceram,
nem a Nero, nem a Tigelino ou outro poderoso qualquer; mas descreveu com
exatidão as perversões do príncipe sob nomes de depravados e de prostitutas e a
notícia de cada estupro; e depois de selado enviou a Nero; e quebrou o anel para
que no futuro não colocasse ninguém em perigo.
“Ne codicillis quidem, quod plerique pereuntium, Neronem aut Tigellinum aut
quem alium potentium adulatus est; sed flagitia principis sub nominibus
exoletorum feminarumque et novitatem cuiusque stupri prescripsit atque
obsignata misit Neroni; fregitque anulum ne mox usui esset ad facienda
pericula”
Através desta curta passagem, poderíamos com certeza dizer eis o homem e eis a
obra. Os pequenos textos ( codicili ), certamente, já vinham sendo escritos e lidos há algum
tempo, talvez secretamente, mas tudo faz crer que o próprio Nero já houvesse tido o prazer
de conhecê-los, antes mesmo daquele último envio, provavelmente, dos últimos
fragmentos ainda não lidos pelo príncipe. De qualquer forma estes pequenos textos
estariam fadados a desaparecer, não só porque seriam interpretados como descrição exata (
perscriptio ) das depravações do príncipe, mas porque o príncipe jamais contribuiria para a
glória póstuma de um desafeto seu.
Podemos dizer com certeza, fiando-nos no testemunho de Tácito, que estes
pequenos textos existiram, mas não podemos dizer com certeza o que aconteceu com eles e
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se entre eles estariam os fragmentos conhecidos por Libri Saturarum Petroni Arbitri ou
Libri Satyricon Petronii, o nosso atual Satiricon. Em todo caso, mesmo não sendo possível
comprovar tal pertinência, acreditamos que só uma tradição, mantida de modo sub-reptício,
poderia atribuir a estes fragmentos a autoria de um desconhecido chamado Petrônio
Árbitro, que teria vivido também em época desconhecida, que foi depois reconhecido
como aquele cônsul mencionado por Tácito. Tradição seguida pelos copistas moralistas
que teriam feito desaparecer os outros livros anteriores e posteriores aos livros 14, 15 e 16.
Em vista desses fatos duvidosos algumas perguntas requerem respostas, como por
exemplo: o que teria acontecido aos treze livros que deveriam anteceder os três livros
selecionados? Seriam os dezesseis livros realmente a totalidade dos pequenos textos que o
Petrônio de Tácito teria enviado a Nero? Ou seja, haveria mais de 16 livros? Como
justificar o silêncio imposto a esses escritos, já que não há ocorrência de edições e não há
qualquer menção, ou qualquer comentário sobre sua existência, durante pelo menos
trezentos anos?
Uma tradição se impôs e tentou responder a essas questões assumindo ares de
respostas definitivas. Embora estruturada sobre hipóteses e especulações não
documentadas, essa tradição resultou na composição de um texto que mesmo fragmentado
adquiriu o estatuto de gênero literário. Trabalhos filológicos cotejaram os fragmentos,
palavra por palavra, e deram uma forma definitiva ao romance que foi plenamente aceita
pela tradição. E é dentro desse princípio que o Satiricon vem sendo editado ao longo de,
pelo menos, cinco séculos, mesmo sob a duvidosa autoria do Petrônio de Tácito.
Tentaremos acrescentar novos elementos a essa tradição, antes porém vejamos
como Bignone ( 1952: 372) a acolhe nesta sentenciosa passagem:
Já é opinião comum que o Petronius arbiter elegantiarum de Tácito é o mesmo
Petrônio Árbitro, de quem nos chegaram os manuscritos, cheios de lacunas, um
singularíssimo romance de costumes, em prosa e em verso, cuja época todos os
indícios nos indicam ser a de Nero; obra de um escritor que direciona à vida o
mesmo olhar cético e alegre do Petrônio de Tácito; que tem um estilo de vida do
Petrônio neroniano, estilo de elegante simplicidade e de refinamento vicioso, de
conhecimento descomplicado do mundo em todas as suas torpezas e baixezas e
de gozador de seus breves prazeres; grande senhor da arte sem se vangloriar por
isso; com um menosprezo aristocrático que é sua graça.”
A tradição defendida por Bignone entende que o estilo dos excertos se ajusta ao
estilo de vida do Petrônio de Tácito. E isto seria suficiente para reforçar os laços entre os
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fragmentos e o personagem de Tácito. É dessa maneira que a tradição associa os dois
autores e as duas obras. Aliás, por ora, não podemos ter certeza de muitas coisas a não ser
de duas: 1- de que um certo Petrônio, cônsul de Nero, escreveu pequenos textos, os quais
foram designados por Tácito pela palavra codicili; e 2- de que entre os séculos IV - VII d.
C. foi realizado um trabalho de seleção em uma obra da qual só restaram os livros 14, 15 e
16, que seriam de autoria de um certo Petrônio Árbitro, como estaria registrado no título, e
se inscreveria sob a alcunha de saturae ou satyrica.
A tradição se justifica, principalmente, por conta da coincidência desses dois fatos.
Coincidência tão grande que Studer
36
acreditou que o que Petrônio enviou ao imperador
pouco antes de morrer teriam sido os textos do romance; e abraçou a hipótese de que,
mesmo ofendendo a Nero com a revelação de seus stupri, o romance ao mesmo tempo o
divertia; e que o imperador o havia feito publicar depois de haver promovido cortes”. (Cf.
Marmorale 1961: V)
Aceitamos esta hipótese de Studer, mas não acreditamos que os codicilli enviados
na noite da morte de Petrônio seriam a totalidade do romance. No máximo, seriam seus
últimos escritos, ou qualquer outro fragmento da satura. Entretanto deixa-nos a impressão
de que o nobre destinatário já houvesse tomado conhecimento de sua existência. O desafio
que nos incita é o de nos assenhoreamos desses codicilli de modo a definir seu gênero. Na
realidade, há uma pista para caracterizarmos os codicilli como um texto mimético:
Petrônio com esses textos não adulava o imperador, como fazia a maior parte dos
escritores da época, inclusive Lucano e Sêneca, mas narrou ou descreveu com exatidão (
perscripsit ), sob nomes de depravados e efeminados, os escândalos do príncipe.
Esta passagem não deixa dúvida de que se tratava de um texto mimético que
guardava certas sutilezas, pois, em princípio, pareciam agradar a Nero. Sendo textos de
caráter mimético, da maneira como são nomeados por Tácito, como pequenos textos,
codicilli, eles só podem estar reunidos num livro per saturam, cuja principal característica
é mesclar variedades de textos. O emprego deste termo codicilli por Tácito deixa pistas
para compreender que ele tinha a intenção de generalizar a diversidade de formas textuais
de curta extensão, daí o diminutivo. Com certeza Petrônio andava escrevendo tais textos e,
naquela noite, ele os teria reunido, depois de ter dado um arremate, e os teria enviado a
Nero, num último gesto, no intuito, talvez, de fazer o imperador compreender que aqueles
36
Citado por Marmorale
91
pequenos textos, ou melhor, aquele livro havia sido escrito exatamente para ele, e que
agora não interessava mais dar a quem quer que fosse para publicá-lo, senão ao próprio
imperador, satirizado neles junto com sua corte e seu império.
A evidência de que se tratam de textos miméticos é ainda reforçada pela expressão
sub nominibus, que indica evidentemente a existência de personagens, homens e
mulheres; e pela expressão novitatem cuiusque stupri, que indica a existência de relatos de
ações criminosas realizadas por Nero. O Satiricon está cheio de personagens e ações que se
ajustam bem a estes perfis descritos por Tácito e Suetônio (~70 -~160 d.C). Acreditamos
que encontraríamos também personagens e ações construídos dentro desse mesmo
princípio nos livros desaparecidos e que comporiam o romance ou a satura na sua
totalidade.
Estas hipóteses que estamos esboçando só tendem a reforçar a tradição que faz do
Petrônio de Tácito o autor do Satiricon. Todavia nosso maior interesse é definir o gênero
dos codicilli, para poder compará-los com o que temos, isto é, com os fragmentos do
Satiricon. Só por essa via acreditamos na possibilidade de enquadrar esta obra no seu
verdadeiro contexto.
No período ao qual se refere Marmorale entre o século IV e VII, o helenismo
pagão, isto é, o próprio realismo helenístico enfrentava os bombardeios moralizantes da
nova onda ideológica: o cristianismo. A fantasia cristã em relação aos gêneros culturais do
helenismo foi intolerante, e sua moral jamais permitiria a difusão de gêneros semelhantes
ao Satiricon. Em todo caso, o choque entre o cristianismo e o helenismo resultou numa
grande reformulação dos gêneros culturais e das normas sociais. Damos como exemplo o
caso de Juliano, o Apóstata, mencionado por Gual, que tentou restaurar a religião antiga.
Esse imperador, mesmo tentando restabelecer o paganismo, teve a preocupação de
promover a censura aos gêneros literários que lembrassem a licenciosidade pagã. Carlos
Gual apresenta um documento - no qual julga estar escrita a primeira menção específica ao
gênero romanesco - onde há o registro de uma grave proibição à leitura desse gênero.
Trata-se de uma carta escrita no ano 365 pelo imperador Juliano a Teodoro, o Grande,
sacerdote da Ásia, na qual ele ordena a proibição da leitura de ficções. Eis o trecho da
carta:
Parecer-nos-ia bom se lessem relatos históricos, os quais estão compostos sobre
fatos reais. Mas se deve proibir todas as ficções (πλασµατα ) difundidas pelos
antigos na forma de relato histórico
92
(εν ιστοριασ ειδει παρα τοισ εµπροσθεν), argumentos amorosos
(εροτιχασ ιποθεσεισ ) e, em uma palavra, por todo o estilo. Pois, nem todos
os caminhos são adequados para os sacerdotes, e na verdade devem ser
prescritos, do mesmo modo, nem toda leitura é decente para um sacerdote. Pois
as leituras produzem na alma uma disposição peculiar, e logo despertam desejos,
e rapidamente avivam uma grande chama, perante a qual temos que manter
distância.
Nesta carta escrita originalmente em grego estão resumidas as tensões estético-
ideológicas daquela semiosfera em crise do final do segundo quartel do século IV. As
ficções de relato histórico e argumentos amorosos são, segundo Gual, o romance grego,
parente próximo do romance latino. Como está na carta, tais ficções eram publicadas numa
época recuada, anterior à época de Juliano, embora ao menos o romance de Heliodoro
houvesse sido escrito possivelmente no século IV. A preocupação do imperador indica
uma certa popularidade deste gênero e uma certa difusão de sua leitura, pelo menos na
Ásia, ou seja, onde predominava a língua grega. O romance de Apuleio, o único que existe
em latim ao lado do Satiricon, teria sido escrito em meados do século II. Ora, no século IV,
estamos diante de um contexto não muito favorável ao romance latino. Enquanto o
romance grego parece encontrar condições para sua recepção - embora como um
subgênero - por um público não muito bem definido, o romance latino parece não
encontrar mais o espaço de sua realização. Entretanto o Satiricon não é só um romance
latino, é um híbrido românico-helenístico, trata-se, com certeza, de uma paródia
miscelânea de vários gêneros, inclusive do romance grego.
O Satiricon poderia ter sido escrito na época de Juliano, e, se assim o foi, o autor
deve ter feito um grande esforço para retomar a memória de um período em que os gêneros
culturais helenísticos ainda eram um bem comum, principalmente entre os românicos. O
realismo satírico reinante na obra também é algo que não combina com a intelligentsia do
século IV que se desenvolveu depois do advento do cristianismo. Além de tudo, as
invectivas da sátira têm um caráter extremamente imediatista, embora nos fragmentos só
encontremos personagens desenhados sob a máscara da ficção, ou seja, fictícios, mas não é
fácil localizar por volta do século IV festas ou reuniões, liberae cenae, como a que foi
patrocinada por Trimalcião, nem aquele tipo de convivas. Também há o frescor dos versos
épicos que encontramos entre os fragmentos em relação à Guerra Civil e à rapinagem que
Roma promovia no orbe. Tudo isso seria impensável numa obra do século IV dentro do
império romano cristianizado e dividido.
93
Todos esses dados nos forçam a voltar ao período em que os codicilli foram
escritos. A tradição costuma fazer coincidir o ambiente histórico retratado no Satiricon
com a época inicial da Idade de Prata, entre Tibério e Nero. É sem dúvida uma outra
coincidência relevante: os codicilli foram escritos na época em que a maioria dos críticos
considera ser a mesma que está reconstituída mimeticamente no Satiricon. Mas essas
coincidências ainda não são suficientes para definitivamente aceitar que o Satiricon seja
parte dos codicilli enviados a Nero. Contudo podemos tentar fazer uma análise do
Satiricon como uma obra que tudo leva a crer deve ter sido escrita no primeiro século da
era cristã, mesmo não sendo o Petrônio de Tácito seu autor, pois o traço parodístico nos
leva a relacionar o Satiricon aos gêneros típicos do realismo românico-helenístico, bastante
desenvolvido então. A complexidade desta relação requer um esboço comparativo, a fim
de que não percamos de vista os pontos mais esclarecedores do processo parodístico
satirizante.
Antes de tudo, definir o Satiricon como romance é aproximá-lo ao gênero de
“relato histórico e argumento amoroso”
37
que fez carreira entre os gregos, e sobre o qual já
fizemos algumas observações. A aproximação do Satiricon ao romance grego obriga-nos a
tentar enxergar em sua estrutura os elementos que seriam específicos do gênero
romanesco, tais como “ o relato historiográfico ficcional, e o argumento amoroso ”
38
. Sem
dúvida esses são elementos presentes no Satiricon, mas com algumas diferenças que na
certa o excluiriam. É certo que o relato histórico ficcional tem as mesmas característica dos
relatos historiográficos helenísticos dispostos em prosa, que experimentaram a ampliação
narrativa da épica no que diz respeito ao espaço e ao tempo das ações. Ou seja, a
narratividade do romance grego e a do Satiricon têm a mesma dimensão cronotópica
39
.
Outro tratamento similar em relação ao desencadeamento das ações num espaço/tempo
definido é dado à Fortuna: tanto no Satiricon quanto no romance grego, a Fortuna está
sempre a pregar peças nos personagens heróicos e protagonistas, colocando-os em
situações inusitadas que lhes causam certo embaraço.
O argumento amoroso do Satiricon, por sua vez, apresenta-se não calcado na figura
alegórica de Eros, como acontece no romance grego, mas na figura de Príapo. É este um
traço de relevante dimensão parodística; a substituição de Eros por Príapo já é por si só
37
Cf. Gual (1976: 23)
38
( Ερωτιχασ υποθεσεισ)
39
Tempo e espaço estendidos
94
uma atitude que só o realismo satírico admitiria. No romance grego, a figura de Eros
provoca uma idealização dos elementos que dizem respeito à sexualidade, fazendo nascer
um amor entre dois jovens, sentimento que se complica a mercê dos caprichos da sorte,
mas que, de uma maneira ou de outra, encontrará sua realização. No Satiricon, ao
contrário, a sexualidade é tratada cruamente, não há idealizações do amor, a libido priápica
é o par grotesco da libido erótica. Embora exista essa diferença entre o Satiricon e o
romance grego, o caráter romanesco do primeiro é sustentado principalmente pelo plano
narrativo que abarca os personagens, as ações e os acontecimentos.
Há outro traço parodístico que envolve a figura de Príapo, quando ele assume o
lugar de um deus homérico ou virgiliano, perseguindo o mortal Éncólpio por causa de uma
provável violação aos seus rituais secretos, da mesma forma que Netuno e Juno perseguem
Ulisses e Enéias. A épica romana também tem seu lugar no Satiricon, alguns fragmentos
são dispostos em versos e constituem um poema intitulado De Bello Civilis, e aborda o
mesmo assunto tratado por Lucano em sua obra homónima. O Satiricon também é
classificado como fábula milesiaca, que em seu formato original são contos licenciosos
jônicos e que teriam sido os precursores do romance grego. Talvez críticos como Auerbach
( 1975: 26 ) assim o classifiquem principalmente pela presença do relato A Matrona de
Êfeso e do relato feito por Eumolpo de suas aventuras amorosas com um jovem. Mas não
é o caso de classificar o Satiricon como fábula milesiaca apenas pela presença desses
relatos, mas sim por se tratar justamente de um romance licencioso “fortemente carregado
de elementos mágicos, aventurosos, mitológicos e sobretudo eróticos (Cf. Auerbach 1975:
26).
Outro gênero parodiado
40
no Satiricon é a prosa simpósica platônica: o banquete de
Trimalcião transforma-se no ambiente dialógico típico das prosas platônicas, onde
certamente são enunciadas as mais distintas opiniões satiricamente assimiladas ao
conteúdo filosófico. Outro gênero é a fábula menipéia que remonta às sátiras de Ênio,
Lucílio, Varão e Sêneca. O caráter de satura, ou melhor, de estruturação per saturam do
Satiricon, é evidente, chama-nos a atenção a fusão de estruturas tão díspares
compartilhando a mesma unidade genérica.
Para ampliar ainda mais o quadro de relações entre o Satiricon e os gêneros da
época argêntea, devemos destacar o discurso oratorial proferido por Encólpio, no Pórtico,
40
Satirizado
95
que aparece logo nos primeiros fragmentos, na abertura do romance. Neste discurso é feita
uma análise do estado em que se encontra a atividade literária que leva a uma reflexão
sobre a situação dos gêneros declamatórios, reflexão que só naquele momento encontraria
eco e plausibilidade; o retoricismo da época argêntea talvez não encontre crítica melhor
elaborada. Lê-se nessa passagem o que há de mais reflexivo em relação ao grau de
artificialismo e deformação a que chegou a arte declamatória. Essa atividade discursiva
passou a veicular todos os vícios que comprometeram os gêneros culturais da época; a
retórica naquele momento havia gerado uma falsa consciência do processo de criação do
discurso e isto teve conseqüências graves na produção dos gêneros miméticos, que a partir
daí irão aos poucos desaparecendo; sobreviverá entre os romanos a sátira
41
e o romance de
Apuleio, nada mais. No Satiricon, algo da sombra da decadência que descia sobre as
fantasias helênicas, de certa forma, foi registrado. Algo que se efetivava como uma espécie
de crise semiológica que impossibilitava expressões de alto valor artístico e intelectual.
Com os gêneros culturais em crise a retórica, com seu apalavrado inchado, cheio de
expressões robustas carregadas de artifício, era empregada como moeda de acesso às
classes enriquecidas naquela conjuntura de rapinagens, delações, conspirações e terror, de
modo que nada mais restava de virtude a quem se dedicasse a essa atividade, senão a de ser
um hábil adulador de ricos.
A retoricização se confundia com a decadência das letras e das almas. No Satiricon,
vemos um apelo a uma nova atitude perante essa crise que poderia até servir como uma
prova de sua verossimilhança e de seu pragmatismo realista, se por acaso tivéssemos
certeza de que esta obra foi escrita no tempo de Nero. Estas alusões por certo agradariam a
um público refinado, como o da corte de Nero, principalmente se estivessem aparelhadas
mimeticamente em pequenos quadros romanescos como os prováveis codicilli.
A complexidade deste quadro comparativo demonstra que o Satitricon não foi um
caso isolado, isto é, não foi uma exceção às regras pragmáticas, que justificam o
investimento genérico e condicionam seu êxito. Para nós, com base nesse quadro de
complexas relações, não há dúvida de que o Satiricon foi escrito no período em que
aqueles gêneros eram parte do conjunto dos gêneros praticados na Idade de Prata. Ou seja,
não temos certeza da data de sua publicação, mas podemos ter comprovado a época com a
qual dialoga.
41
De Marcial e Juvenal
96
Estes pressupostos nos animam a analisar o realismo do Satiricon com a maior
credibilidade possível, ou seja, sem nos arriscarmos a afirmar que os seus fragmentos
faziam parte dos codicilli, com a certeza de que ambos foram escritos na mesma época,
uma época amplamente identificada com o realismo satírico. O Satiricon apresenta um
realismo que espelha essa época de uma maneira que em nada deixa a dever aos realismos
mais refinados, característicos da modernidade. Realismo que expressa o profundo
hibridismo do mundo românico-helenístico, ainda mais quando está mergulhado numa
profunda crise motivada pela tensão estético-ideológica, que se caracterizava pelo
confronto entre o poder e a arte. Realismo que faz confundir as fantasias saturadas do
helenismo e as enuncia como se deturpadas, corrompidas, violadas, estupradas, mas de
forma elegante e satírica, bastante apropriada para época. Bastante apropriada a um público
que se acostumava já com a individualidade, com o isolamento e a atomização e, por
conseguinte, com a leitura de gêneros como o romance. Os fragmentos do Satiricon não
sobreviveriam se não houvesse em princípio todas as condições para o seu êxito. Um
público, mesmo que secretamente, os faria chegar ao século IV, talvez de forma intacta e
integral, quando só então sofreria o corte.
A adequação do romance antigo para veicular o realismo satírico ficou ainda mais
evidente com a publicação da obra de Apuleio , Metamorfoses ou O Asno de Ouro, no
século II d.C.. Apuleio, diferentemente do refinado Petrônio de Tácito, é um bárbaro
africano
42
que fez carreira na atividade retórica em Cartago, mas circulou sistematicamente
pela Ásia trocando experiência com o helenismo híbrido das províncias orientais do
império. Envolvido com a magia, envolveu-se também com o romance grego, gênero
literário que guardava relações com rituais de magia. Gênero híbrido por natureza, o
romance se presta e se abre às mais ousadas liberações da fantasia popular religiosa e
artística, a ponto de se misturar à magia e dela fazer uso para encontrar a motivação
enunciativa.
O romance de Apuleio guarda certas peculiaridades que o aproximam ao Satiricon.
Embora não haja qualquer indício intertextual entre o Satiricon e as Metamorfoses, a
aproximação entre elas é inevitável. Estes dois únicos exemplares do romance latino
tornaram esse gênero a forma mais adequada para a expressão do realismo satírico
parodístico na Antigüidade. Ambos realizam uma paródia do romance grego, satirizam o
42
Cf. Morrisset & Thevenot (1950: 1198) “Né a Madaura, em Numidie, il est de race barbare” (Nascido em
Mandaura, na Numídia, ele é de raça bárbara).
97
seu idealismo erótico, realizando uma profunda sondagem social como bem assegura Gual
( 1976:35 ) nessa breve análise:
A paródia do romanticismo, ao denunciar a irrealidade de sua ingênua
idealização, tem em primeiro lugar uma intenção cômica, mas chega a um
realismo crítico através da sátira social. É curioso que o romance realista parece
surgir não de uma visão imediata da sociedade, com a denúncia da retórica de
valores degradados na prática histórica, mas através de uma caricatura da pintura
idealizada dela mesma. Supõe, pois, essa idealização prévia com seu esquema
romântico para parodiá-lo.”
As implicações pragmáticas desse realismo denunciador também são analisadas por
Gual (1976: 35). Para ele “enquanto a novela idealista é dirigida a uma camada popular de
“pobres de espírito”, o leitor para fruir dos matizes irônicos do romance cômico deve
possuir uma refinada educação literária.” A paródia satírica é sem dúvida um elemento de
distinção entre o romance grego e o romance latino, pois a enunciação satírica parece soar
sempre como denúncia, porém por se tratar de uma realização mimética torna-se uma
espécie de denúncia estética, fictícia, caricata, provocadora de um deleite também
desinteressado, efeito estético próprio dos romances gregos. Só um público refinado pode
fruir sutilmente dessa denúncia elaborada na diversificação dos quadros enunciativos.
No Satiricon, há uma denúncia retórica dos valores degradados formulada no
discurso de Encólpio proferido sob o pórtico. Sua declamação é dirigida a um público não
muito atencioso nem muito tolerante. Por sua vez, ele, na realidade, não parece querer
convencer os seus ouvintes a tomarem qualquer atitude, quando acusa os professores de
retórica de fantasiadores de seus discursos. Ele próprio parece estar bajulando seu
debatedor, dando motivos para que ele continue a denunciar. Agamenon então,
impacientemente, o interrompe e, aplicando os próprios recursos da retórica, avalia a
degradação dos valores morais e literários e aponta outros responsáveis pela degradação
desses valores. Ele simplesmente reitera a denúncia de Encópio, depois enceta um
improviso, em versos, referindo-se a Lucílio como o patrono inventor desse gênero. Esta
denúncia de Agamenon parece cair no vazio, mas logo, é Ascilto quem denuncia o ardil de
Encólpio.
A denúncia estética à qual aludimos fica por conta dos efeitos do relato das
depravações ( flagitia ), das violações ( stupri ), da mimetização dessas deformações que
atingiram a rica semiosfera helenística. Longo foi o caminho que o realismo antigo
percorreu até chegar àquele ambíguo refinamento da sátira latina, principalmente à sátira
98
elaborada no romance. Realismo que, ao mesmo tempo em que fascina e deleita o leitor,
abre-lhe o olho para que possa enxergar a decadência moral, intelectual, artística, na qual
ele, o próprio leitor, está mergulhado.
O romance realista latino, satírico, parodístico, cômico, recebe o legado de todos os
outros gêneros que nasceram na Hélade, e que, a partir dela, expandiram-se configurando o
espaço de significação ao qual temos feito freqüentes referências. A história desse romance
começa com o esforço do homem letrado antigo em busca de uma imagem verbal que o
dignificasse perante os deuses, a natureza e perante os outros homens. De simples
figurações rituais repetitivas, a literatura, entre os gregos, torna-se a maior obra do gênio
humano. Na Hélade, a arte literária nasce como fruto do esforço intelectual de se acercar
das fantasias míticas e dar a elas um caráter de alto refinamento estético. Este fervor
fantasiador gerou uma grande inquietação no escritor da pólis que se lançou na busca de
uma imagem verbal ( mímesis ) ideologicamente digna, adequada e esteticamente ativa,
própria para provocar fortes emoções ou apenas para provocar sofisticado deleite.
O usufruto desse sofisticado deleite foi garantido pelo romance satírico, pela sua
capacidade de absorver o hibridismo e seus conflitos presentes em sua evolução e por
oferecer ao homem individualista do mundo românico-helenístico a despudorada caricatura
daquele homem-verbo idealizado pelos gregos. O realismo corrosivo da comédia clássica
evoluiu para esse realismo que desenha um homem superficial, indigno, insano, patético,
ébrio, estúpido, pervertido, indolente, viciado, corrompido, marcado pelos mais baixos
sentimentos. A crise de valores que assolava o mundo românico-helenístico não encontrou
melhor configuração.
Auerbach ( 1975: 26-7 ), na sua minuciosa análise da evolução do realismo na
literatura européia, a partir de uma passagem do episódio da Cena Trimalcionis , atesta que
o realismo do Satiricon - que para ele se aproxima da moderna representação da realidade
mais do que tudo o que ficou conservado da Antigüidade - conseguiu com certo êxito, a
fixação exata do meio social, o que marcaria o limite extremo ao qual chegou o realismo
antigo: “ O banquete é uma obra de caráter puramente cômico. As pessoas que nele
aparecem individualmente, assim como as ligações de conjunto, são mantidas
conscientemente e de forma unitária no mais baixo dos estilos, tanto na expressão
lingüística, quanto no tratamento” (Auerbach: 27).
99
A consciência da baixeza do estilo que Auerbach traz à luz na sua análise é o único
trunfo do autor e a principal condição do seu triunfo na configuração de um kósmos
híbrido e fracionado, como o kósmos satírico-romanesco, enunciado por gente da mais
baixa extração social, pequenos vilões oportunistas, utentes de uma língua que há tempo já
havia sido experimentada na comédia, mas nunca com tamanha verossimilhança. Sem
dúvida esse é um gênero que, pelo seu baixo estilo, pode ser equiparado em termos de lazer
e deleite a uma corrida nos circos, ou a uma luta de gladiadores nos teatros, ou a uma
apresentação dos mimos ou das pantomimas. Mas, no Satiricon, o baixo estilo contrasta
com o refinamento artístico que o credenciou a se perpetuar.
Deve-se tudo ao sofisticado aparato enunciativo enredado. Satiricon é um romance
antigo através do qual a sociedade fala por si mesma. Todos os personagens que enunciam
- mesmo o Encólpio, que é uma espécie estranha de aedo, comparado a Homero ou a
Demódoco - o fazem sob o artifício da mimesis mais baixa possível, isto é, seus
personagens são portadores de um discurso que denuncia sua própria degradação moral.
Encólpio, por exemplo, enuncia essa degradação moral em dois canais, em um deles
enuncia para o ouvinte ou leitor refinado, e no outro está envolvido na comunicação direta
com os personagens. Para o leitor é um aedo eficiente, habilidoso na arte contar. Com
grande verossimilhança com riqueza de detalhes, conta a aventura que viveu com pessoas
totalmente à margem dos benefícios estético-ideológicos do helenismo. Em ação, é um
perseguido pela Fortuna e por Príapo. Trata-se de um poeta, também cheio de habilidades
retóricas, desclassificado, pederasta, conquistador barato, vagabundo, errante pela periferia
da semiosfera românico-helenística, caçador de ceias, hipócrita que se junta a outros da sua
espécie, como Acilto e Eumolpo, e se enreda naquele kosmos, simulacro híbrido das
fantasias helênicas.
O êxito estético-ideológico deste gênero o credenciou a ser usado na posteridade
como um documento histórico preciso, retrato verbal de uma sociedade e de uma época.
Mesmo desprovido de uma psicologia séria, característica também do romance moderno,
como constatou Auerbach, este gênero foi gerado sob condições que possibilitaram seu
êxito. Através do Encólpio narrador, é possível antever seus refinados ouvintes, ou leitores.
Pessoas refinadas, dispostas a se deleitar com a deturpação dos códigos da civilização
helênica, assumida por periféricos, corruptores dos signos mais relevantes do helenismo:
nas artes, na filosofia, na religião, na moral doméstica, na sexualidade. Encólpio apresenta
100
aos seus nobres leitores - também fantasiosas criaturas, freqüentadores de círculos
nucleares privilegiados - o quadro real em que se encontrava a degradação dos gêneros
culturais na periferia românico-helenística.
A crise dos valores do mundo helênico que o romance representou desde sua
aparição no cenário histórico-literário adquire sua representação máxima no Satiricon.
Como se desenvolveu inusitado gosto é um problema que parece ter sua explicação nos
imperativos de uma nova estrutura social, muito diferente da que estava mimeticamente
registrada nos gêneros literários até então escritos. O romance difere em muitos aspectos
dos gêneros primordiais, entretanto guarda profundas similaridades. A revolução do
romance satírico só pode ter sido sentida por um público refinado, mas moralmente
corroído. O Satiricon registra com profunda veemência e com um agudo senso de ridículo,
a degeneração total dos valores helenísticos.
O Satiricon representa um radicalismo, uma atitude extrema em termos de
realização estético-ideológica. Que efeito estético, que emoção pode advir da
representação de tão banalizado kosmos, que público se interessaria por tamanha torpeza?
Calculemos a revolução que o Satiricon deve ter provocado no ambiente literário. É claro
que aquela vaga menção aos escritos de Petrônio, feita por Tácito, não nos conduz muito
adiante na tentativa de aferir o rebuliço que provocou no ambiente literário; talvez o fato
mesmo do silêncio que foi imposto sobre tais escritos já nos leve a considerar o perigo que
representava numa sociedade marcada pelo terror e pelo despotismo. Nem Ovídio sofreu
tão grande censura. Seu sensualismo deve ter provocado seu exílio, mas suas obras foram
publicadas livremente.
Comparado aos gêneros primordiais, como a epopéia, por exemplo, este gênero é
um espelho invertido das aspirações cívico-religiosas dos gêneros primordiais, esse
Encólpio é um errante como Ulisses, Jasão e Enéias, mas ele não tem pátria nem paradeiro.
No romance grego a noção de pátria é também diluída, mas Eros reconstitui o kósmos
inicial ao dar o desenlace a essa extensa errância que atinge os protagonistas. No Satiricon,
é Príapo quem há de restabelecer a única ordem que interessa ao depravado protagonista.
Os gêneros miméticos na Antigüidade greco-romana podem também ser agrupado a
partir da ação dos seres divinos. Este fato comprova a total filiação desses gêneros aos
mitos e aos ritos religiosos. O romance antigo de uma maneira geral deverá ser marcado
pela menção a essas criaturas divinas e é exatamente nesse aspecto que os gêneros
101
miméticos antigos estruturam seus laços intertextuais. A sociedade helenística não é a
mesma que habitava a pólis, entretanto as fantasias mesmo que deturpadas ainda eram
alimentadas pelas mesmas fontes. O caminho percorrido pelo realismo até chegar a formar
esse extremo rebaixamento dos valores, e o fato de esse tipo de rebaixamento que o
romance representa haverem encontrado eco nos espíritos instruídos daquela época, por si
só, demonstram a ambigüidade de tal concepção estético-ideológica.
Príapo é o deus que representa esse rebaixamento estético-ideológico. Até mesmo
na Nova Comédia e na lírica helenística, onde os deuses apareciam ou eram simplesmente
mencionados, e onde já era ensaiado esse rebaixamento, nenhuma configuração chegava a
ser tão extremada. Os deuses da epopéia e da tragédia são seres falantes designadores de
seus sentimentos, e quando são assim mimetizados já sofrem um certo rebaixamento.
Enquanto seres de natureza épica e trágica, tornaram-se detentores de uma força estético-
religiosa que sempre há de impressionar os espíritos mais instruídos, mas de nada servirão
em sociedades híbridas, como a que se formou com a absorção do helenismo pelos povos
periféricos que foram atingidos pela helenização.
Príapo é um deus Frígio, um sátiro de Lâmpsaco, um deus menor aumentado pelo
grau de parentesco com Dionísio; também é irmão de Eros por parte de mãe. Príapo no
Romance de Petrônio pune o bisbilhoteiro com a frigidez e a impotência. Seu falo
descomunal e sempre ereto torna-o grotesco e poderoso, figura inversa do imberbe Eros.
Seus ritos são mencionados nos fragmentos com os quais Quartila acusa Ascilto, Encólpio
e Gitão de terem violado o segredo e para não puni-los exige deles a execução de uma
breve pena. Quartila, desclassificada sacerdotisa de Príapo, enuncia com grande furor
dramático as suas escabrosas fantasias e experiências sexuais.
Um gênero literário que se rebaixa a tal representação não traria nenhum proveito
estético-ideológico se não estivéssemos diante da mais flagrante depreciação semiológica
sofrida pela arte, que já havia consagrado vultosos nomes à história da humanidade, ou
melhor, à história do helenismo.
Alguns personagens do Satiricon são emulações grosseiras dos personagens
consagrados pelos gêneros helênicos. Quartila, a personagem mais próxima de Príapo, sua
sacerdotisa fiel, rivaliza-se com as ofendidas Medéia, ou Fedra, ou Eletra, todas
personagens de Eurípedes, na sua pequena trama de vingança, mas é notável como seu
furor dramático só pode ser plenamente fruído se o leitor reconhecer essa estratégia
emuladora. Trimalcião é outro que, sem exagero, rivaliza-se com o próprio Zeus homérico
102
e por homologia social, com todos os evérgetas, mecenas e imperadores, todos poderosos
benfeitores das artes e promotores da justiça.
A galeria de personagens é extensa, mas nem todos cabem nesta regra. O realismo
do Satiricon exigia muito mais do que a paródia dos gêneros. Parodiando-os dessa
maneira, tal realismo revelaria a novidade de sua fragilidade moral, a saturação de seus
códigos, a deturpação dos seus valores.
Surgiu naquela época um gênero cujo êxito só pôde encontrar sua plenitude na
posteridade, ou melhor, nasceu um gênero cuja comprovação do êxito apenas pôde ser
efetivada por uma crítica que veio a se consolidar muitos séculos depois. Entretanto não
nos furtamos de tentar localizar o reduto secreto no qual o Satiricon conheceu seu lugar
específico no quadro da Antigüidade.
O realismo helênico conheceu sua crise por volta do século IV a.C., mas só quatro
séculos mais tarde, no romance satírico, conheceu seu amplo desdobramento. Em Roma e
nas suas províncias, no oriente e no ocidente do vasto império, durante séculos
sobreviverão esses estupros e violações, através de uma reprodução cada vez mais ambígua
do helenismo, misturando refinamento e baixeza num mesmo prato: na satura.
A expressão máxima do hibridismo da semiosfera helenística é sem dúvida o
Satiricon; seus signos estão todos carregados da máxima embriaguez e da máxima
solicitude ébria para a entrega ao crime e às perversões. Nos fragmentos salvos pelo
abnegado censor que se responsabilizou pelo tremendo corte deixando apenas uma
pequena, mas expressiva amostra do inusitado romance, inusitado inclusive para a época,
vamos encontrar exatamente a novidade que o realismo românico-helenístico havia trazido
para o gênero romanesco: a sátira mais debochada, mas também a mais bem elaborada
urdidura de vários gêneros textuais condicionados a um único princípio de codificação
romanesca. Tudo isto deduzimos a partir de alguns poucos fragmentos.
Acreditamos que o Satiricon representa com perfeito realismo o mais alto grau de
hibridação ao qual chegaram as culturas emergentes do Mediterrâneo helenístico.
Representa o mais alto grau de fragmentação e dissolução ao qual chegaram os quadros
expressivos do helenismo. As medidas humanas tão dignamente representadas pelos
modelos épico, trágico, lírico e romanesco, tão dignamente calculadas pela filosofia, pela
historiografia e pela retórica, evoluíram para a mais formidável representação do
hibridismo estético-ideológico ocorrido na vigência daquela sociedade: a configuração
ambígua e paradoxal do homem satírico.
103
Entre vários outros exemplos de gêneros híbridos, o romance foi o que melhor
acomodou o espírito satírico. Acomodou bem, até mesmo o modelo pensado por Horácio,
que por ventura não encontrava para o espírito romano - vitorioso na guerra e na política,
mas incapaz de grandes realizações estéticas - lugar mais apropriado do que o meio termo
da escala catártica: a sátira. Também reconhecedor dos vícios que predominavam na
dissolução da sua cultura, Horácio foi cauteloso e brando ao investir na lírica para exortar
os leitores ao cultivo da aurea mediocritas.
O Petrônio de Tácito e o Petrônio do Satiricon, um no estilo de vida, o outro na sua
obra, parecem ter seguido as lições do grande mestre que foi Horácio. Pois a elegantia dos
dois estilos parece se equiparar a mediocritas em vários aspectos, principalmente no que se
refere ao tratamento dado aos gêneros helenísticos. Horácio escolhe o hibridismo lírico e
sua variedade de formas. Emula alguns dos maiores inventores de metros e estrofes da
poesia helênica - Arquíloco, Safo, Alceu – mas, movido pela elegância e pelo capricho da
mensagem lírica não os parodia, na verdade, imita-os com perfeição sem abrir mão de sua
aurea mediocritas.
Horácio e Petrônio são dois observadores atentos dos principais problemas da
helenização entre os romanos. Horácio se esmera na lírica e ajusta sua concisa língua aos
metros marcados por ritmo e melodia adequados ao seu espírito atraído pelo encanto e
superioridade estético-ideológica do helenismo. Petrônio, ao contrário, escolhe um gênero
já marcado por certa baixeza, o romance, onde pode parodiar não só os grandes épicos, os
dramáticos, os líricos, mas também os retóricos, os filósofos, etc. Duas atitudes díspares,
mas impregnadas da mesma indiferença sutil da sátira aos costumes dos seus
contemporâneos atingidos pelos vícios. Acreditamos que Horácio não havia fechado os
olhos para a verdadeira situação em que se encontrava a cultura romana sob as reformas de
Augusto, entretanto acolheu seu idealismo, acreditou no seu projeto reformador, que
conciliava a grandeza política de Roma e a grandeza artístico-filosófica da Grécia. Daí
deve advir seu conformismo em apenas troçar brandamente dos exageros aos quais se
prestavam os emergentes romanos. A noção de uma sátira que encontrou seu lugar no
equilíbrio fez-se sentir de algum modo no espírito de Petrônio que transformou a doçura e
o abrandamento de Horácio em picantes sutilezas, no seu ataque aos vícios.
PARTE II
UM EXAME DOS RECURSOS ENUNCIATIVOS
DE CONFIGURAÇÃO DO REALISMO SATÍRICO
105
1. A Preservação Milenar dos Fragmentos
A configuração do realismo satírico, como resultante da evolução do realismo
helênico, está consolidada nos fragmentos que reagrupados e organizados ao longo de
muitos séculos passaram a constituir o romance Satiricon como o conhecemos. Colocado
ao lado de outros gêneros helenísticos, o romance antigo resultou do hibridismo cultural,
da mundialização geopolítica e da individualização psicológica do homem mediterrâneo,
fenômenos que ocorreram simultaneamente e que caracterizaram a semiosfera românico-
helenística, que chegou ao seu ponto tensão máxima exatamente na época da consolidação
do império monárquico dos Césares e do advento do cristianismo
1
.
Os fragmentos foram reordenados sob o critério filológico, mas a multiplicidade de
lacunas fez do Satiricon um texto de várias mãos, cujo resgate significou um grande
esforço de re-codificação. A literatura antiga essencialmente greco-latina existe para nós
porque houve um grande esforço intelectual que tornou possivel o seu resgate e a sua
reedição ao longo das épocas. Os manuscritos latinos, por exemplo, começaram a ser
codificado na Idade Média e, durante o Renascimento, o Humanismo os consagrou
criticamente.. Grande foi o resultado desse esforço monumental que teve início no século
IV: E. Bickel (1987: 15) introduz esclarecedora informação a esse respeito
Como jóias preciosas estão guardados nas bibliotecas da Europa 30 manuscritos
inteiros ou mutilados escritos na antiga e genuína letra capital, que datam dos
séculos IV-VI d.C. Somam-se a estes uns 400 manuscritos ou fragmentos de
manuscritos em letra uncial dos mesmos séculos subseqüentes que ostentam
arredondadas e garbosas formas de letra em vez das formas quadradas e
angulosas. Não obstante, também estes manuscritos em uncial, distantes da
minúscula e da cursiva, conservam um caráter monumental e oferecem,
juntamente com aqueles manuscritos em letra capital e a tênue luz que emite a
beleza da Alta Idade Média, a estirpe mais antiga e nobre da literatura latina.
Mas a literatura latina que alcança sua expressão na forma manuscrita medieval,
não é a literatura romana. A mais rica coleção do mundo, a Biblioteca de
Munique, reúne cerca de 24.000 manuscritos latinos, e a Biblioteca Nacional de
Paris assim como a Vaticana de Roma mostram parecida riqueza. Todavia destes
milhares de manuscritos latinos só uma pequena parte guarda relação com os
testemunhos, conservados documentalmente, da literatura dos romanos, cujo
ocaso coincidiu com o fim do século VI d. C.
1
Séc I d.C
106
Vários fatores justificam a conservação dos gêneros da literatura antiga grega e
romana, mas o mais importante deles está relacionado ao caráter monumental e duradouro
atribuído aos textos antigos
2
. A realização da literatura antiga envolveu uma grande
complexidade e, por conta dessa complexidade, sua perpetuação foi garantida, mesmo na
Idade Média quando o espírito do helenismo encontrou seu termo nas mãos de ferro do
dogmatismo, época de analfabetismo e iconoclasmo. Mas os textos manuscritos, que
reeditavam os gêneros helênicos datados entre os séculos IV e VI d.C., restaurados e
conservados em bibliotecas e coleções particulares, tornaram-se alvo da intelligentsia
renascentista européia e passaram a servir de modelo para as culturas européias modernas e
para seus subprodutos coloniais espalhados pelos vários continentes. Na realidade temos
apenas uma vaga noção da significação dos gêneros literários na Antigüidade, mas a
perpetuação de seus estratos significativos já nos é suficiente para compreender sua
dimensão estético-ideológica.
Nossas indagações sobre o caráter perpetuador dos gêneros literários: o que os torna
artefatos duradouros, por que eles se mantêm como portadores de enunciações
potencialmente atualizáveis, etc, ainda não serão totalmente respondidas, entretanto
seguimos algumas pistas deixadas pela evolução dos gêneros literários que terão sido ao
longo de quase um milênio a chama acesa do espírito criativo e fantasioso do homem
antigo e o aparelhou para que ele pudesse suportar o aniquilamento, ou melhor, a
desmistificação, ou a hibridação da própria fantasia helênica quando foram deturpados os
seus ideais de culto aos valores essenciais: a virtude individual e aos sentimentos coletivos
cívico-patrióticos. O realismo do Satiricon mimetiza esse contexto de uma forma tão
plausível que além de ser um gênero literário que perdura em suas reedições pode ser
também utilizado como fonte documental de uma época extremamente significativa da
História Universal
3
.
Vários quadros do helenismo estão representados no Satiricon de maneira
complexa e ambígua, mas podemos conjeturar se realmente se trata de uma representação
literária feliz, ou plausível. Por sua verossimilhança e devido a sua forma difusa ele é uma
espécie de supratexto da fusão românico-helenística. Os artifícios literários per saturam,
satírico-romanescos geraram as condições para representar os tipos humanos bem como
2
Horácio expressou essa característica inerente aos gêneros literários com esses versos: “exegi monumentum
aere perenius” ( ergui um monumento mais duradouro do que o bronze) Epílogo dos três primeiros livros
das Odes. Cf. Thevenot & Morisset (1950: 654)
3
Cf. Áries & Duby (1989: 133-135); Alföldy (1935: 123)
107
suas fantasias, gostos, visões de mundo, idéias, os usos da língua, os costumes. Em suma, o
espírito estético-ideológico que ainda animava a vida e inspirava a arte na sociedade
helenizada está verbalmente representado no Satiricon. Das fantasias épicas às fantasias
romanescas, através desses pequenos fragmentos (libri), o panorama artístico-cultural
românico-helenístico foi sistematicamente mimetizado.
A hibridação românico-helenística provocou uma grande tensão estético-ideológica
no mundo antigo e o Satiricon fixou situações propícias a enunciações, as mais variadas,
representativas dessa fusão de culturas. O Satiricon, através do seu realismo, faz um
verdadeiro inventário literário da semiosfera românico-helenística e expõe o estado
decadente em que se encontrava aquele que foi outrora um hegemônico sistema
semiológico.
Os fragmentos do Satiricon nos revelam situações críticas, embora jocosas, ou
melhor, situações cômicas, seus textos são pequenas paródias dos gêneros literários.
Satirizam a situação geral em que se encontrava o mundo alimentado pela fantasia helênica
sob a marca da degeneração dos seus valores. Mas ao mesmo tempo eles põem em cena os
discursos que àquela altura pareciam veicular melhor, sob o artifício da sátira, o potencial
perpetuador dos gêneros literários estabelecido desde Homero. O principal desafio na
análise do Satiricon é descobrir a enunciação desse discurso motivado pela memória do
verbo mimético da épica, do drama e da lírica antigas; é também perceber no discurso
motivado o sentido invertido e irônico da sátira, isto é, o emprego verossímel e realista
desse discurso estruturado a fim de produzir efeitos diversos sem se preocupar com os
riscos de cair na mais torpe vulgaridade em nome do realismo satírico. É em suma
compreender o discurso que vai fundar um gênero literário cuja complexidade histórico-
pragmática é construída por enunciações proferidas por personagens extraídas da mais
baixa periferia do mundo românico-helenístico, figuras que seriam um reflexo invertido
das personagens nucleares dos gêneros tradicionais ou clássicos. É isso que vamos
examinar nos fragmentos.
108
2. Ordem dos Fragmentos e Resumo dos Capítulos
Os fragmentos foram ordenados em capítulos na edição de Ernout (1950) e foram
por ele amplamente revistos e criticados, aqui servirão de corpus à nossa análise.
Partiremos do resumo formulado a partir do qual deduzimos a existência de três partes
nitidamente distintas:
i-as peripécias antes da ceia de Trimalcião;
ii- a ceia de Trimalcião;
iii- as peripécias depois da ceia de Trimalcião.
Segundo Ernout os fragmentos se reúnem em capítulos (Caps) separados aqui entre
as três partes que distingumos na seguinte ordem:
i - As peripécias antes da ceia de Trimalcião
Caps. I - II: Encólpio faz na escola do reitor Agamenon um discurso sobre a
situação atual em que se encontra o exercício da eloqüência.
Caps. III-V: Agamenon lhe responde colocando sobre os pais dos alunos a culpa da
decadência e expõe suas idéias pedagógicas em um improviso à maneira de Lucílio.
Caps. VI-VIII: Ascilto, o companheiro de Encólpio que assiste a essa discussão, se
esquiva. Encólpio se põe a sua procura, ele encontra Ascilto vítima de uma aventura
parecida. Os dois escapam a duras penas.
Caps. IX-XI: Eles encontram Gitão, o mancebo de Encólpio, que chora por ter sido
violentado por Ascilto. Encólpio tenta atacar seu companheiro infiel. Ascilto ameaça ir
embora, mas retorna e atrapalha o casal em ação.
- Lacuna –
Caps. XII-XV: Encólpio e Acilto reconciliados vão a um mercado clandestino
vender um manto que eles haviam roubado. Eles vêem nas mãos de uma pessoa uma velha
109
túnica que eles haviam perdido, dentro da qual haviam costurado moedas. Depois de uma
discussão eles chegam a trocar sopapos e retomam a alegria de comer o jantar preparado
por Gitão.
Caps. XVI-XXVI: O jantar é interrompido pela chegada de Psiquê, a serva de
Quartila, que vem lhes acusar de haverem perturbado o sacrifício ofertado a Príapo por sua
mestra. Quartila chega pouco depois acompanhada de uma menininha e depois de ter
deplorado o crime pede-lhes reparação. Ela os domina e abusa deles de mil maneiras. Gitão
une-se em casamento à menininha Paniques que acompanhava Quartila. Enfim eles podem
escapar e pensam em deixar essa terra de tantas provações, quando um escravo de
Agamenon vem lhes avisar que foram convidados a jantar na casa de Trimalcião.
ii-: A ceia de Trimalcião
Caps. XXVII-XXVIII:. Nossos heróis se põem a caminho, e vão antes a um banho,
onde eles vêem Trimalcião jogando bola. Depois eles se dirigem à morada do anfitrião.
Cap. XXIX: Descrição das pinturas que ornam a casa de Trimalcião.
Cap. XXX: Eles chegam ao triclínio, aonde eles entram não sem acidentes.
Caps. XXXI-XXXII: O repasto começa por uma entrada suntuosa, mas sem
Trimalcião que prepara uma entrada sensacional. Retrato de Trimalcião.
Cap. XXXIII: Enquanto ele continua uma partida iniciada fora do triclínio, serve-se
aos convivas uma primeira surpresa: falsos ovos de pavão contendo, cada um, um papa-
figo.
Cap. XXXIV: Inicia-se o som da orquestra e serve-se um Falerno de cem anos , que
proveu a Trimalcião a oportunidade de um improviso.
Cap. XXXV: Novo serviço; é um prato redondo representando os doze signos do
zodíaco.
Cap. XXXVI: Outra surpresa, o globo se abre descobrindo iguarias que Carpus,
(cujo vocativo é Carpe, ou seja, homônimo da forma verbal no imperativo do verbo carpo-
carpere, dividir) é chamado para dividir e distribuir aos convivas.
110
Caps. XXXVII-XXXVIII: Encópio interroga seu vizinho de mesa sobre Fortunata,
a mulher de Trimalcião. O vizinho lhe conta também sobre as riquezas do Mestre e sobre
diferentes convivas.
Cap. XXXIX: A partir daí Trimalcião passa a dar uma explicação simbólica do
prato do zodíaco.
Caps. XL-XLI- É trazido um javali coberto com um gorro de liberto junto com um
cenário de caça que dá lugar a um jogo de palavras de Trimalcião.
Caps. XLII-XLVI: Trimalcião se retira por uns instantes, os convivas tomam a
palavra: proposição de Dama, de Seleuco que pronuncia a oração fúnebre de seu amigo
Crisanto, de Filero e Ganimedes que se queixam dos maus tempos, de Elquião, o tecelão,
que é mais otimista. Tagarelice sobre as coisas e as pessoas do país.
Caps. XLVII-XLVIII: Nova entrada de Trimalcião que faz confidências sobre o
estado de seu intestino. Apresentação de três porcos dos quais o maior vai ser preparado
imediatamente. Trimalcião retoma a palavra tentando impressionar Agamenon com sua
erudição.
Cap. XLIX: O porco é trazido cozido a tempo, mas é também um prato-surpresa.
Há a simulação de que não foi estripado, na verdade estava recheado com salsichas e
morcelas.
Caps. L-LII: O cozinheiro ganha uma coroa de prata e tem a honra de ser servido
vinho num copo de bronze coríntio, o que dá a Trimalcião a oportunidade de contar a
origem desse bronze e a história do copo maleável. Depois a embriaguez lhe domina. Ele
se prepara para dançar e fazer dançar Fortunata.
Caps. LIII-LV: Ele interrompe a dança para escutar o relato de seu administrador.
Depois vêm os equilibristas e a queda ensaiada de um deles. É ocasião de um novo jogo de
cena e de uma improvisação poética de Trimalcião.
Cap. LVI: A conversa toma um rumo literário e moral, uma loteria burlesca vem
trazer de volta a alegria.
Caps. LVII-LVIII: Ascilto exagera na galhofa e é chamado à atenção por um dos
convivas. Depois é a vez de Gitão.
111
Caps. LIX-XL: Trimalcião serena os ânimos e é servido um novo prato surpresa,
comportando confusas alusões literárias e religiosas.
Caps. LXI-LXII: A palavra é dada a Niceros para contar a história do soldado
lobisomem.
Cap. LXIII: Trimalcião conta por sua vez a história da estriga e da mão maligna.
Cap. LXIV: Intervenção de Plocamo, de Creso, o preferido de Trimalcião e dos
dois cães Scilax e Pérola.
Cap. LXV: Chegada de Habinas, o escultor.
Cap. LXVI: Habinas faz a narrativa do jantar do qual acaba de chegar.
Caps. LXVII-LXIX: Ele reclama a presença de Fortunata que vem tomar lugar ao
lado de Cintila. Diversões e discursos. Chega enfim um último serviço de mesa.
Caps. LXX-LXXI: Bebedeira geral. Trimalcião sentimental por causa do vinho
autoriza os escravos a tomar lugar a mesa. Para lhes mostrar que ele os libertaria depois de
sua morte, faz a leitura de seu testamento, depois encomenda a Habinas seu monumento
funerário.
Caps. LXXII-LXXIII: Modorra geral que vai se dissipar no banho. Encólpio, Acilto
e Gitão que já estão saturados tentam se esquivar, mas em vão, e são forçados a retornar
primeiro ao banho depois ao jantar.
Caps. LXXIV-LXXV: Disputa entre Trimalcião e Fortunata por causa de um
escravo.
Caps. LXXVI-LXXVII: Isto fez Trimalcião contar como fez fortuna e o futuro que
lhe haviam predito.
Cap. LXXVIII: Para terminar ele simula seu funeral e o resultado é um tal alvoroço
que seus guardas noturnos intervieram. Aproveitando a confusão, Encólpio e seus
companheiros conseguem enfim escapar.
iii- Peripécias depois da ceia de Trimalcião
Cap. LXXIX: Depois de ter perambulado algum tempo, eles retornam ao albergue.
112
Caps. LXXX-LXXXI: No albergue há uma nova discussão entre Encólpio e
Ascilto, sempre por causa de Gitão. Agora ele tem que escolher entre os dois amantes.
Decide-se a favor de Ascilto que se retira com sua conquista, abandonando Encólpio em
seu desespero.
Cap. LXXXII: Encólpio rumina projetos de vingança que não realiza.
Caps. LXXXIII-LXXXIV: E, para esquecer sua dor, ele vai visitar uma galeria de
quadros onde ele encontra o poeta Eumolpo, com o qual ele trava conhecimento.
Caps. LXXXV-LXXXVII: A fim de lhe distrair este último conta a aventura
amorosa que teve com um jovem de Pérgamo.
Caps. LXXXVIII-LXXXIX: Depois de diversas considerações sobre a decadência
dos talentos e dos costumes, ele lhe recita um poema sobre a tomada de Tróia, pastiche do
Livro II da Eneida.
Cap. XC: Eumolpo recebe vaias dos visitantes do pórtico e ouve a censura de
Encólpio.
- Lacuna-
Cap. XCI: Encólpio encontra Gitão no banho, onde o seduz e o leva ao albergue,
onde fazem as pazes.
Caps. XCII-XCIV: Os dois jantam com Eumolpo que retornado do banho também
mostra por Gitão uma admiração tão exaltada que desagrada a Encólpio. Daí surge uma
briga. Gitão se retira prudentemente. Eumolpo, agredido, foge fechando Encólpio no
quarto. Esse abandonado desssa maneira ameaça suicídio. Gitão e Eumolpo retornam para
impedir.
Caps. XCV-XCVI: Todo esse tumulto atrai o taberneiro que chega fazendo
ameaças. Eumolpo trava com ele uma luta épica.
Caps XCVII-XCIX: Todavia Acilto que estava à procura de Gitão chega ao
albergue. Gitão lhe escapa e se esconde no estrado da cama. Depois, a fim de escapar
definitivamente, Encólpio e Gitão sob o conselho de Eumolpo, com quem já haviam
reconciliado, decidem acompanhar o poeta em um barco onde ele tem garantido um lugar.
113
Caps. C-CI: Mas esse barco é de propriedade de um certo Licas e ele tem por
passageira Trifena, dois personagens com os quais Encólpio e Gitão haviam tido um
conflito.
Caps. CII-CIV: Também pensam em fugir o mais rápido possível e imaginam
diferentes projetos de evasão. Finalmente eles decidem passar por escravos fugitivos
pertencentes a Eumolpo e eles se deixam raspar a cabeça e as sobrancelhas para se
desfigurar. Surpreendidos por um passageiro nessa operação, são impedidos. São
denunciados a Licas que para punir os dois condena-os a chicotadas.
Caps. CV-CVI: Eles são então reconhecidos por Licas e Trifena, que estão prestes a
se vingar mais cruelmente.
Cap. CVII: Em vão Eumolpo intervém a seu favor.
Cap. CVIII: Uma luta sangrenta se inicia e Trifena consegue apaziguar.
Cap. CIX: Reconciliação e tratado de paz. Concórdia geral. Eumolpo também raspa
a cabeça.
Cap. CX: Uma peruca vem em vão reparar a careca de Gitão e Encólpio.
Caps. CXI-CXII: Eumolpo para entreter, conta a história da matrona de Êfeso.
Cap. CXIII: Trifena acaricia e beija Gitão, ciúme de Encólpio.
Cap. CXIV: Nesse momento o céu escurece, explode a tempestade. Licas é levado
por uma onda, Trifena se salva num barco. Encólpio prepara-se para morrer com Gitão. Os
dois são salvos por pescadores e retornam para salvar Eumolpo.
Cap. CXV: Este naufrágio inspira Encólpio a reflexões melancólicas sobre a
fragilidade humana.
Caps. CXVI-CXVII: Os três náufragos vêem que estão perto de Crotona, cidade
onde reinam trapaceiros e caçadores de herança, o que dá a Eumolpo a idéia de se fazer
passar por um velho milionário sem filhos, e explorar assim a credulidade dos crotonenses.
- Lacuna-
Cap. CXVIII: Exposição de Eumolpo de sua teoria do poema épico.
Caps. CXIX-CXXV: Como exemplo ele recita um poema de sua autoria sobre a
Guerra Civil. Pastiche do primeiro livro das Farsálias de Lucano. Todavia eles chegam a
114
Crotona onde os caçadores de herança cobrem Eumolpo de presentes de toda espécie, o
que não deixa de inquietar um pouco Encólpio que teme a descoberta do golpe.
Caps. CXXVI-CXXVII: Aventura de Encólpio ( Polieno ) e Circe. A beleza de
Encópio seduziu a crotonense que por intermédio de sua serva, Crises, solicita o amor do
jovem Encólpio.
Cap. CXXXVIII: Decepção de Circe que foge. Espanto e desespero de Encólpio.
Cap. CXXXII: Circe envia ao impotente uma carta sarcástica, à qual ele responde
se desculpando e prometendo fazer melhor, tentando marcar um segundo encontro. Para
isso ele se prepara cuidadosamente se entregando aos cuidados de uma velha, Proseleno,
que lhe devolve o vigor. Mas diante de Circe uma nova decepção. Circe lhe agride
ignominiosamente, e, na sua humilhação, ele pensa em sacrificar o culpado com amargura.
Cap. CXXXIII: Depois vai implorar a Príapo para que lhe devolva o vigor de antes.
Caps. CXXXIV-CXXXV: Proseleno lhe confia a sacerdotisa do deus, Enotea, que
se encarrega de sua cura.
Cap. CXXXVI: Ela o joga dentro de uma cela onde o encanto deve se processar.
Durante uma curta ausência de Enotea três gansos lançam-se sobre Encólpio, que para se
defender mata um deles. Dor e cólera de Enotea por causa dessa novidade.
Caps. CXXXVII: Encólpio a consola com ouro e as operações mágicas começam.
Mas elas são tão dolorosas que Encólpio escapa perseguido pelas duas velhas. Fragmentos
Cap. CXXXVIII-CXXXIX: Alusão à paixão de Crises por Encólpio.
Cap. CXL: Aventura de Filomena, a matrona, de seu filho e filha com Eumolpo.
Cap. CXLI: Eumolpo, para se desembaraçar dos caçadores de herança, cuja
liberalidade já se esgotava e a desconfiança começava a surgir, inventa um testamento
cujos termos rezam que só herdariam dele aqueles que aceitarem comer seu cadáver. Ele
invoca precedentes históricos e o manuscrito se acaba.
Pelo que acabamos de apresentar neste resumo proposto por Ernout, a aventura de
Encólpio e seus companheiros, ocorre dentro de um cronotopo extremamente reduzido. Da
cidade em que estavam, onde participam da ceia de Trimalcião, chegam, depois de um
naufrágio, a Crotona e os fragmentos se encerram aí. O que temos são apenas esses
fragmentos que sem dúvida apresentam parte de uma aventura bem mais extensa.
115
Observamos também que a segunda parte, a ceia de Trimalcião é a única que está
completa, por isso foi a que despertou maior interesse a estudiosos como Enzo Marmorale,
cujas apreciações filológicas nos serão bastante úteis.
Passaremos agora a analisar, com base nesse resumo, os aspectos estético-
ideológicos que tornam patente a paródia satírica de grande parte dos gêneros românico-
helenísticos. Tentaremos observar os artifícios empregados pelo autor na criação de
situações que condicionam as várias enunciações por parte de personagens cujo perfil é
verossímel em relação a pessoas desprovidas de qualquer qualidade superior. Não há uma
personagem sequer que não receba a marca da perversão e do vício: são homens e
mulheres celerados. Outro aspecto que nos chama atenção é a onomástica
predominantemente constituída de nomes gregos, empregados de acordo com regras
similares às que eram empregadas na comédia plautina.
Antes, porém, de analisarmos alguns capítulos separadamente faremos uma
apreciação das três partes distintas dos fragmentos porque para cada uma delas há uma
personagem que se destaca. Na primeira Ascilto; na segunda Trimalcião; e na terceira
Eumolpo.
Acilto, (Ascyltos) do grego ασχυλτοσ, o laborioso. Companheiro de Encópio e ao
mesmo tempo seu antagonista na disputa por Gitão. É também conhecedor das letras como
Encópio, ( et tu litteras scis et ego ) e tudo indica que este conhecimento os credenciava a
ser acolhidos em jantares de abastados. Mas que tipo de conhecedores das letras são esses
dois canastrões, o que eles fazem com as letras para conseguir acesso a jantares? O perfil
que podemos traçar de tais conhecedores das letras é de que seriam profundos
conhecedores dos gêneros literários helenísticos, dominavam principalmente a retórica e
munidos de tais habilidades se aventuravam na periferia do mundo mediterrâneo, onde
essas habilidades eram ingenuamente acolhidas. Acilto como antagonista de Encólpio
possibilita um diálogo que revela a astúcia de ambos. O laborioso Acilto poderia ser o
companheiro ideal para Encólpio, mas disputavam Gitão que incorpora o tipo mais bem
acabado de um ganimedes satírico. Os três personagens formam um triângulo amoroso que
revela de maneira enfática a situação licenciosa em que se encontrava a sexualidade nos
vários segmentos da sociedade helenística. A mimetização do homossexualismo, ou
melhor, sua representação através dos gêneros literários não era muito comum. As
interdições impostas pelo gosto e o decoro certamente existiam, haja vista a tradição
116
monogâmica heterossexual dos helênicos e dos romanos, mas não há dúvida de que esta
licenciosidade chegou a um elevado nível de exposição a partir do hibridismo promovido
por Alexandre principalmente no culto aos deuses orientais .
A mimetização do homossexualismo tem sua fonte na mitologia e na épica: a
maldição dos labdácidas, o amor intempestivo de Aquiles por Pátroclo, a paixão de Júpiter
por Ganimedes e de Diana por Antíope
4
; e de Apolo por Jacinto. Essa mímesis conheceu
seu realismo quando teve profunda e complexa expressão com Safo, Anacreonte, Platão e
Calímaco. O tema havia ainda de guardar um certo pudor entre os helênicos e até mesmo
entre os helenísticos, mas no Satiricon o homossexualismo chega ao seu paroxismo,
juntamente com outras variantes da licenciosidade sexual, que em seu conjunto podem ser
incluídas entre as licenciosidades assumidas publicamente por Nero.
Ascilto e Encópio representam uma provável juventude neroniana. O depravado
imperador era também um homem de letras e na sua juventude teria se envolvido em
peripécias sob disfarces de um jovem comum. Olhando sob o prisma da mímesis da
depravação do imperador o encaixe é quase perfeito. Todos os personagens do Satiricon
estão, de um modo ou de outro, contaminados pela licenciosidade. Todos são lúbricos e
promíscuos, alguns são violadores dos amores alheios, em vários momentos estão
investidos no esforço de submeter à força um parceiro sexual. Acilto e Encólpio são dois
violadores que, entretanto, em certas ocasiões, são eles próprios vítimas da violação.
Na Segunda parte, ou seja, no provável 15° livro encontrado no século XV, o
personagem de destaque é Trimalcião ( Gaius Pompeius Trimalchio Maecenatianus) que
segundo Marmorale (1961: 2) “é o protagonista da ceia. É um liberto oriundo da Ásia
Menor, não da Síria, como geralmente se diz, se bem que Petrônio lhe tenha atribuído um
nome semítico ( prefixo intensivo tri e uma palavra semítica, que se descobre como base
de Moloch, Melchisedek, Malchus, etc, e que deve significar “o poderoso, o senhor” ).”
O poderoso Trimalcião é sem dúvida a figura mais emblemática do Satiricon.
Depravado como todos os outros personagens, escancara sua vida de culto aos vícios sem
nenhum pudor, crente de que está exercendo sua auctoritas, agindo com o máximo de sua
elegantia e de sua dignitas. A sátira e tal figura se encaixam como a mão e a luva: uma
grande ironia move seu espírito, imagina que todos os seus vícios são virtudes de um
homem afortunado como ele. Seu grande momento é a magnanimidade de ser protagonista
de tão significativo evento. Senhor de uma riqueza incomensurável, ele tripudia sobre
4
Zeus se tranaforma em Diana para amar Antíope
117
todos aqueles que o adulam, acreditando ser justo e generoso. Reputa-se, sobretudo como
um homem que cultiva as letras, que é mesmo um poeta. Acredita que as surpresas que
prepara para seus convivas são fruto de seu bom gosto e refinamento, quando não passam
de pura demonstração de grosseria e ignorância. É inevitável assimilar Trimalcião a uma
outra face de Nero, de emérito benfeitor das letras, um verdadeiro maecenatianus.
Na terceira parte aparece Eumolpo, o poeta velhaco, ironicamente em grego:
Ευµολποσ, o bom cantor. Este velho poeta é a imagem da decadência do aedo. Seus
versos àquela altura são extremamente inoportunos, é também um contador de histórias, as
quais parecem agradar mais do que a épica com seus versos hexâmetros. É outro
depravado e trapaceiro que entra na disputa por Gitão a ponto de não mais largar seus
companheiros. Anda maltrapilho, mas tudo não passa de um disfarce para demonstrar uma
falsa honestidade poética. Na realidade não passa de um velho trapaceiro que vai armar um
grande golpe para os habitantes de Crotona.
Esses três personagens garantem nos fragmentos o deslocamento seqüencial
romanesco e revelam uma estratégia que talvez tenha sido seguida pelo autor na construção
de outros tipos nos fragmentos (libri) não encontrados.
Nossa análise vai procurar extrair de alguns capítulos os enunciados proferidos por
Encólpio, enquanto narrador e personagem, e por outros personagens. Tentamos focalizar o
jogo de vozes que se sucedem no emprego dos discursos direto e indireto e, a partir da
enunciação dos personagens de maior destaque, antever uma estratégia de construção do
realismo satírico.
118
3. Análise dos recursos enunciativos do realismo satírico
O Satiricon começa
5
(Caps. I-II) com uma enunciação do próprio Encólpio na sua
função de personagem, ou seja, Encólpio é um personagem-narrador que introduz a própria
fala, agora mesmo encontra-se em plena atividade discursiva atuando no centro da cena,
respondendo a uma provável indagação sobre a atividade dos declamadores:
Num alio genere Furiarum declamatores inquietantur. Qui clamant: Haec vulnera
pro libertate publica excepi; hunc oculum pro vobis impendi...
(Acaso os declamadores se preocupam com outro tipo de desgraça, quando
clamam: estas feridas, ganhei em prol da liberdade pública, este olho, empenhei em prol de
vocês...)
É importante lembrar que os declamadores tornaram-se os principais agentes de
propagação do helenismo, são os últimos literatos herdeiros dos aedos, dos líricos, dos
dramaturgos, e dos filósofos. O atento romancista não poderia deixar escapar esse tema e
nós tivemos a sorte de ter esta passagem entre os fragmentos. Encólpio, personagem que
surge medias in res considera que todas essas queixas dos declamatores seriam toleráveis
se levassem os estudantes à eloqüência. Sustenta que eles são os responsáveis pela má
formação dos jovens nas atividades literárias, que as fantasias experimentadas na escola
não tinham nada a ver com a vida prática. A escola estava contaminada pela estupidez e
pela alienação:
Et ideo ego adulescentulos existimo in scholis stultissimos fieri, quia nihil ex his,
quae in usu habemus, aut audiunt aut vident.”.
(E é por isso que acho que os adolescentes tornam-se tolos nas escolas, porque nada
tem a ver com eles, não (são) as coisas que utilizamos que eles ouvem ou vêem.)
E o que ouvem e vêem faz-nos lembrar primeiro das peripécias típicas do romance
grego: “piratas com cadeias em praias distantes, tiranos que escrevem leis que obrigam os
filhos a cortar as cabeças dos pais, virgens que são imoladas em resposta às pestilências”; e
5
Algumas versões introduzem uma passagem em que aparece um interlocutor de Encólpio.
119
em segundo lugar fazem-nos lembrar do seu estilo: “pingos melados de palavras; e todas as
coisas ditas e feitas como se espargidas de gergelim e papoula.”
Dirigindo-se diretamente aos declamadores Encólpio os acusa de terem corrompido
a eloqüência e de terem enervado e mutilado o corpo da oração por motivos desonestos.
Encólpio na verdade parece defender, também por mero artifício de retórica, a grandis et
pudica oratio, praticada pelos grandes poetas, filósofos e oradores helênicos Para ele,
depois de Tucídides e Hipérides ninguém mais teria acedido à fama. Por fim, que o mesmo
acontecia com a pintura.
Este eloqüente discurso já nos adianta que o principal assunto tratado pelos
personagens letrados do Satiricon é a decadência dos gêneros culturais do helenismo. O
tom aparentemente sério esconde um deboche genial em relação ao retoricismo reinante.
Encólpio emprega todos os recursos da eloqüência, revela seus artifícios com certo
descaramento, com um discurso pomposo e inflamado marcado por um pathos que não
condiz com o caráter do orador que, em outro momento, se revela totalmente indiferente ao
problema que analisa. Tudo nos leva a crer que ele profere tal discurso visando a outro fim,
aceder a uma ceia que sem dúvida será a ceia de Trimalcião. É assim que ele se apresenta
como um homem letrado (Et tu litteras scis et ego) que sabe empregar o mais enervado
retoricismo. O espírito que envolve este eloqüente Encólpio não é o mesmo que motiva o
Encólpio narrador que tem com seu público/ouvinte um outro contrato, um outro registro
de comunicação: e freqüentemente ao terminar de citar seu próprio discurso ele retoma a
narrativa.
O Satiricon é extremamente virtuoso no que diz respeito à mimesis de um mundo
profundamente marcado pela crise da fantasia helênica, pelo engodo, pela ironia e pela
burla. A sátira se revela por meio de uma ampla diversidade de artifícios, ou melhor, de
técnicas artísticas próprias do gênero. O debate que se processa entre Encólpio e
Agamenon promove-nos um momento ímpar da literatura antiga no qual é possível
identificar uma burla genial. Encólpio usa esse discurso para agradar o retor Agamenon e
consegue arrancar dele um elogio e um jantar.
Nos cápitulos III-IV Encólpio encerra seu discurso e inicia sua narrativa
propriamente dita introduzindo a voz de Agamenon que, impaciente, interrompe o discurso
de Encólpio e toma a palavra, apontando outros culpados para a degradação do ensino:
120
Non est passus Agamemnon me diutius declamare in porticu, quam ipse in schola
sudaverat...”
(“Agamenon não suportou me ver declamar longamente no pórtico tanto quanto ele
próprio fizera na escola...”)
Agamenon esboça um discurso no qual reconhece o bom senso de Encólpio e tenta
justificar o emprego de tais exercícios: segundo ele tudo é feito para agradar aos
adolescentes (adulescentuli), por isso os declamadores (doctores) agem como fingidos
aduladores quando filam as ceias dos ricos, nada mais pensam a não ser em agradar aos
ouvintes. A culpa dessa situação deveria cair sobre os pais que não queriam ver seus filhos
submetidos a regras severas, mas queriam vê-los logo aceder ao forum. Defensor do
exercício da severa arte, detentor de um discurso visivelmente saturado, Agamenon
representa a decadência desse estilo, que de modo algum agrada aos ouvintes, os
adolescentes que se aglomeram no pórtico. Ainda mais quando encerra seu discurso
declamando o schedium da humildade Luciliana
6
, poema que compõe o Cap. V:
Artis severae si quis ambit effectus
Mentemque magnis applicat, prius mores
Frugalitatis lege poliat exacta.
.................................................................
( Se alguém ambiciona os frutos da arte severa
e devota o espírito às grandesas, antes tendo interpretado
a lei, que cultive os costumes da frugalidade)
..........................................................................
Este poema é um claro resumo do quadro irônico que se esboça nesta eloqüente
discussão e é uma espécie de mise en abyme do romance. É mais uma receita, mais uma
ars poetica, o lugar comum das lições dos antigos. Primeiro diz que “aquele que busca os
resultados da arte severa deve se prevenir dos vícios e se esmerar nos costumes frugais,
deve evitar o vinho, as ceias dos ricos licenciosos e os aplausos às encenações histriônicas
(provavelmente os mimos e as pantomimas). Mas se lhe sorriem a velha Atenas (arces
armigerae Tritonidis) e a conquistadora Esparta (tellus habitata colono Laecedemonio),
deve entregar-se aos versos desde os primeiros anos e beber da fonte homérica. Depois
livre e cheio de saber socrático soltará as correias e envergará as armas do grande
6
A Sátira de Lucílio.
121
Demóstenes”. Sem dúvida, Agamenon traça o caminho evolutivo que indicou a supremacia
do gênero retórico: de Homero a Demóstenes passando por Sócrates. “Mas agora é a vez
da dominação romana, manus Romana que se avoluma ( circumfluat ) e, purificada pelo
modo grego e enriquecida de som, muda o gosto e segue um novo caminho, no qual as
palavras do indômito Cícero se agigantam”. Agamenon encerra seu poema sugerindo a
Encólpio que “una o espírito a esses bons escritores e que, pleno, como um grande rio,
derrame as palavras do peito piério”.
7
His animum succinge bonis : sic flumine largo
Plenus Pierio defundes pectore verba.
Os coliambos
8
de Agamenon que encerram esta sessão de capítulos dão uma
indicação óbvia do processo histórico protagonizado pelos romanos que são a partir de
agora (hinc) os guardiões do helenismo (modus Graius). Agamenon enuncia assim sua
opinião sobre a formação literária deixando claro que “a grande maioria dos alunos não
está preparada para exercer tão nobre atividade.” Dirige-se diretamente a Encólpio que o
ouvia com atenção e não notara a fuga de Acilto, nem percebera que o pórtico enchera-se
de jovens que pareciam querer ouvir o orador que daria a resposta ao discurso de
Agamenon. Assim, é que se inicia a sessão dos Caps. VI-VIII:
Dum hunc diligentius audio, non notavi mihi Ascylti fugam...
( Enquanto eu o ouvia diligentemente, não notei a fuga de Ascilto)
Assim, enquanto os jovens riem das sentenças e criticam sua estruturação, (o gosto
de Agamenon não corresponde ao gosto da maioria), Encólpio também resolve abandonar
o pórtico e ir a procura de Ascilto. Mas não encontrava o caminho que pudesse levá-lo a
seu cubículo, estava perdido naquela cidade para onde havia se dirigido a fim de realizar
suas trapaças, junto com esse parceiro que acaba de fugir e Gitão seu namorado que
também é desejado pelo seu amigo traidor. Encontrando-se perdido e já cansado de andar
em círculo, ensopado de suor, Encólpio pede socorro ingenuamente a uma velhinha
(anicula) que vendia legumes, com essas palavras:
Rogo, inquam, mater, numquid scis ubi ego habitem?
7
Monte da Tessália habitado pelas piérides (musas)
8
Cf. Ernout (1950) Index Metrororum
122
( Imploro, disse eu, mãe, acaso sabes onde me abrigo?)
Essa anônima personagem, a qual Encópio se dirige tão polidamente tratando-a
com o vocativo mater tem o perfil dos personagens anônimos que figuram neste romance,
o da lubricidade. Quando oferece seu favor a Encólpio, (Quidni sciam?) ela não tem outra
intenção a não ser violá-lo, por isso leva-o a um lugar escondido onde estende um pano
simulando um leito e diz:
Hic, inquit, debes habitare.
(Aqui, deves te abrigar)
Tratava-se de um prostíbulo cheio de meretrizes nuas entre anúncios, lugar onde ele
encontra Ascilto cansado, esmorecendo.
Encólpio narra suas peripécias buscando os efeitos da ironia, este encontro
possibilita a Encólpio se dirigir ao seu leitor, empregando o verbo em segunda pessoa:
Putares ab eadem anicula esse deductum.
( Pensarias que havia sido conduzido pela mesma velhinha. )
Como narrador Encólpio se dirige ao seu interlocutor que deve ter sido evocado no
início dessa sua, sem dúvida, longa narrativa. O manejo que faz com os discursos direto e
indireto com o emprego de verbos como inquam-inquit, aio-ait e com o emprego de
sentenças como a que segue é notável:
Itaque ut ridens eum consalutavi, quid in loco tam deformi faceret.
( E, rindo, eu o saudei; o que faria em lugar tão horrível? )
O emprego coordenado dos discursos direto e indireto revela uma característica
importante para a composição de gêneros como o romance e oferece alternativas
aoescritor, como nesta sentença que poderia ter sido enunciada pelo narrador da seguinte
maneira:
Itaque ridens: Ascylte, inquam, quid in loco tan deformi facis?
( E disse ele rindo: Ascilto, que fazes em lugar tão horrível? )
A resposta de Ascilto, depois de limpar o suor com as mãos, dá continudade ao
diálogo todo em discurso direto:
Si scires’, inquit, ‘quae mihi acciderunt’.
123
‘Quid novi?’, inquam ego.
‘Cum errarem, inquit, per totam civitatem nec ivenirem quo loco stabulum
reliquisset acessit ad me pater familiae et ducem se itineris humanissime
promisit...
( ‘Se soubesses, disse ele, o que me aconteceu.’
‘O que de novo?’ Disse eu.
‘Como caminhava, disse ele, por toda cidade sem encontrar o lugar onde
ficava a hospedagem, veio a mim um pater familiae que me prometeu
gentilmente ser o guia do caminho... )
Ao longo da análise dessa primeira parte tentaremos demarcar as habilidades do
autor em jogar com o recurso discursivo que possibilita a imitação do diálogo. Sem os
recursos de cena do teatro para imitar o diálogo com realismo, o romance requer essa
habilidade. Tal recurso permite a composição de uma mímesis similar a do teatro, porque o
personagem comparece com seu discurso, mas sua mímesis é eminentemente verbal. O
romance antigo é um teatro de bolso, foi o gênero mimético que dispensou o aparato teatral
e o comensalismo para existir e sobreviver ao mal-gosto dos acontecimentos públicos.
Entretanto no Satiricon, diferentemente dos outros romances que comporiam uma galeria
de personagens inverossímeis, cujas vozes estão diluídas em um kósmos impregnado de
magia, os personagens são verossímeis e suas ações e discursos também. Vivem no reino
dos homens e não dos deuses, haja vista a ironia do castigo de Priapo.
No diálogo acima chama-nos atenção, a narrativa de Ascilto que, por sua vez,
relata o ardil do pater familiae que também tentava violá-lo. O velho já teria mesmo pago
um asse pelo quarto em resposta à cobrança de uma meretriz:
“Per anfractus deinde obscurissimos egressus in hunc locum me perduxit
prolatoque peculio coepit rogare stuprum. Iam pro cella meretrix exegerat
assem...”
(“Depois andou por desvios obscuros e me guiou até esse local e mostrando
dinheiro começou a me rogar um estupro. Uma meretriz já havia cobrado um
asse pelo quarto...)
A máscara satírica se acomoda bem às feições destes dois figurantes, a mater e o
pater que devem representar a mais baixa condição social do império. Naturalmente são
fortuitos figurantes, mas desempenham papel importantíssimo na configuração geral do
repertório de personagens dessa natureza, esses dois seriam os primeiros a aparecer nos
fragmentos. São habitantes daquela cidade (provavelmente Nápoles), onde a dupla de
trapaceiros se encontrava. São eles também, no que diz respeito aos fragmentos, os
primeiros a apresentar uma natureza isotópica que está na base da configuração psicológica
124
da maioria dos personagens. Independentemente do estrato social a que pertencem, os
personagens estão sempre motivados pela libido. As ações da mater e do pater estão
marcadas pela mesma licenciosidade que permeia as relações entre os indivíduos de
qualquer classe. A ação freqüentemente mimetizada, ou seja, o estupro, é apresentado
através dos vários recursos enunciativos e narrativos, como realização e como sugestão.
Quando Encólpio se dirigiu ingenuamente àquela anicula chamando-a pelo vocativo
mater, não imaginava que fosse cair nas mãos de alguém que queria se aproveitar dele,
nem tampouco imaginava que iria encontrar seu companheiro como vítima de uma cilada
parecida. Os dois passaram de caçadores a caça, o que suscita um efeito cômico, como
narra Acilto:
“Iam ille mihi iniecerat manum, et nisi valentior fuissem, dedissem poenas.”
(“Ele já havia passado a mão, e se eu não fosse mais valente, eu teria sofrido”)
Depois dessa passagem narrada por Ascilto, há duas frases dispersas que retomam a
narração e sugerem que os dois passaram a ser cada vez mais assediados pelos habitantes
daquele lupanar:
/adeo ubique omnes mihi videbantur satureum bibisse]
iunctis viribus molestum contempsimus.
(por toda parte todos me pareciam ter bebido satírio]
(unidas as forças, afrontamos o molesto.)
Nos Caps. IX-XI entra em cena Gitão, ( Gr. Γειτων ), o sempre solícito e
disputado ganimedes. Depois de andar como se estivesse nas trevas, Encólpio avista Gitão
e se aproxima dele. Encólpio pensou que Gitão havia preparado a comida, mas em vez
disso lhe conta chorando que Acilto o havia estuprado:
Tuus, inquit, iste frater seu comes paulo ante in conductum accurrit, coepitque
mihi vellle pudorem extorquere.
(Esse teu, disse ele, irmão ou companheiro, há pouco, na volta, veio e começou a
querer me extorquir o pudor. )
A veemência de Gitão ao narrar a traição de Ascilto e de referi-lo como frater seu
comes de Encólpio é ainda ilustrada pela inserção na narração das palavras do próprio
Ascilto antes de consumar o estupro:
125
“Si Lucretia es, inquit, Tarquinium inveniste.”
( “Se Lucrecia és, disse ele, encontraste Tarquínio.”)
A reação de Encólpio a esta pequena encenação possibilitada pelo discurso direto
quando Gitão através do verbo inquit cita as próprias palavras do Ascilto que no momento
de sua ação traz na mão um gladium strictum. A cena que deu início ao estupro, narrada
por Gitão, destaca a figura de Ascilto como o enunciador destas últimas palavras. Neste
esquema, Encólpio suspende a narração para dar voz a Gitão, que começa uma narração,
mas que a suspende para dar voz a Ascilto que, por sua vez,se prepara para lhe submeter ao
estupro.
Depois destas palavras Encólpio retoma a narração contando como reagiu a elas:
“Quibus ego auditis intentavi in óculos Ascylti manus et:”
(Depois de ouvir tais palavras, eu meti a mão nos olhos de Ascilto.)
O manejo do discurso direto o faz funcionar como um agente portador da mimesis,
torna-se assim o maior responsável pela veiculação da imagem. O diálogo introduzido pelo
discurso direto, nesse tipo de romance, é o elemento responsável pelo efeito dramático de
caráter cômico ao longo de todo livro. O emprego desse recurso que formalmente se difere
do recurso adotado por Platão em seus Diálogos, talvez tenha sido a grande novidade
trazida pelo romance. Petrônio sem dúvida usa com grande habilidade:
“Quid dicis, inquam, muliebris patientiae scortum, cuius ne spiritus purus est?
Non taces, inquit, gladiator obscene, quem de ruina harena dimisit? Non taces,
nocturne percursor, qui ne tum quidem, cum fortiter faceres, cum pura muliere
pugnasti, cuius eadem ratione in viridario frater fui, qua nunc in deversorio
puer est
Subduxisti te, inquam, a praeceptoris colloquio.
Quid ego (inquit) homo stultissime, facere debui, cum fame morerer? An
videlicet audirem sententias, id est vítrea fracta et sominiorum
interpretamenta? Multo me turpior es tu hercule, qui ut foris cenares, poetam
laudasti.”
( Que dizes, disse eu, explorador da fragilidade feminina, de quem nem o hálito
é puro?
Não calas, disse ele, gladiador obsceno, quem a arena deixou escapar da ruína?
Não calas, tu que nem sequer, embora tivesses agido fortemente, lutaste com
uma mulher pura, tu de quem fui amante no bosque, na mesma proporção em
que é agora o garoto no quarto.
Saíste, disse eu, do colóquio do preceptor.
126
O que, disse ele, homem estúpido, eu deveria fazer, morrer de fome? Acaso era
justo que eu ouvisse as sentenças, isto é, cacos de vidro, interpretações de
sonhos? Tu és muito mais torpe do que eu, Hércules, que para jantares fora,
louvaste um poeta.)
Assistimos aí a uma discussão acirrada bem diferente da que ocorreu entre Encólpio
e Agamenon a qual não passava de um debate enfadonho, um qüiproquó cheio de pompa
acadêmica, agora se trata de uma discussão que se configura como uma fina ironia sobre a
vulgaridade e a baixeza. Encólpio indignado com a queixa de Gitão se dirige de forma
ameaçadora para Ascilto. Este fingindo estar horrorizado, não aceita ser tratado com
ameaças e lembra a sua cumplicidade nas suas investidas lúbricas. O tratamento que um
dispensa ao outro é uma cumplicidade exemplar: um é o aproveitador da passividade
feminina (de Gitão, certamente), o outro é um gladiador covarde que a arena deixou
escapar da morte, é ainda um assassino noturno que nem sequer lutou com uma mulher (a
luta do amor) inocentequando deveria ter feito. Não temos este episódio, mas Acilto foi
testemunha e conta até com certo detalhe revelando ampla cumplicidade nos amores e nas
violações. Encólpio então se queixa da fuga de Acilto e este responde com certa ironia
chamando o comparsa homo stultissime. Diz que o comparsa é mais torpe (turpior) do que
ele, pois, para poder jantar fora, louvou a um poeta.
Toda esta discussão termina levando-os ao máximo do deboche e da cumplicidade,
ambos caem no riso e apaziguados e dispersos se afastam. Em seguida Encólpio
lembrando-se da injúria cometida pelo comparsa, retoma o diálogo apresentando-lhe uma
proposta de separação definitiva. Ascilto aceita, mas sugere que adiem, pois, no mesmo
dia, iriam a um jantar para onde foram convidados por serem sábios (scholastici). Encólpio
diz que é tarde para ser como Ascilto deseja.
Retomando a narração Encólpio revela que há muito, por causa da paixão que
nutria por Gitão, queria se ver livre de Ascilto e de sua inoportuna cumplicidade.
Entretanto é o próprio Ascilto que considera esse amor verdadeira traição:
“Hanc tam paecipitem divisionem libido faciebat; iam dundum enim amoliri
cupiebam custodem molestum, ut veterem cum Gitone meo rationem reducerem.”
( “A paixão tornava essa separação tão necessária; já por muito tempo desejava
afastar o vigia inoportuno, que para voltar ao velho hábito com meu Gitão eu anteciparia o
o caso.” )
127
O parágrafo acima encerra o Cap. X, entretanto algumas versões
9
acrescentam a
saída de Ascilto e a perseguição de Encólpio a fim de concatenar com o início do capítulo
seguinte que narra o retorno de Encólpio ao quarto para se envolver em beijos e abraços
com Gitão e ser flagrado por Ascilto antes da consumação dos atos amorosos. A cena é
enfim concluída com um açoite e com as palavras debochadas de Ascilto:
“Quid agebas, inquit, frater sanctissime? Quid? Vesticontubernium facis? Sic
dividere cum fratre nolito.”
( “O que fazias, disse ele, parceiro santíssimo? O que? Fazes amor? Que não se
queira dividir com o parceiro.” )
Articulado desta maneira, o diálogo entre esses dois fratres atinge com perfeição o
objetivo artístico. É uma cena que explora a dramaticidade do gênero romanesco e atinge
um grau altíssimo de coordenação. O verbum dicendi cumpre, mesmo que disposto de
maneira ainda rudimentar, a sua função realista, análoga a dos diálogos dramáticos, mas
mutatis mutandis guarda certa particularidade enunciativa por não ser em verso e por
adquirir certa naturalidade. Este naturalismo, além disso, possibilita às personagens
enunciarem certos jargões, marcados pela licença verbal, que configuram o sermo
vulgaris.
Encólpio e Ascilto se revelam através de suas palavras e o leitor agora também se
torna cúmplice do debochado narrador. Esta seria uma cena de péssimo gosto e de
intolerável decoro se não estivesse aí formulado um acordo entre narrador e leitor a
respeito da inversão dos valores estéticos e ideológicos envolvidos neste jocoso gênero
mimético. Desse acordo depende o êxito do Satiricon, cujos diálogos estão motivados por
este mesmo princípio acordante. Situações que seriam de puro mal-gosto representam na
realidade a evolução de um gosto refinado, realista e satírico, desenhado primordialmente
na Comédia Antiga. Mas seria isto realmente um sinal de refinamento?
Acreditamos que a fruição plena do Satiricon, a sua adequada recepção estética
dependerá da eficácia desse acordo. O Satiricon amplificando a tradição realista ou
cômica, aprimorando o gosto pelo vulgar e mundano atinge o coração, o âmago dessa sutil
estética do real que tem como objetivo o riso, mas um riso claramente marcado pelo humor
satírico e pela desrealização do ideal helênico, ou seja, do culto estético e ético da virtude,
9
Petronio (1985: 12); Petrônio (S/D São Paulo: 22)
128
já transformada em objeto cômico por Aristófanes e experimentada satiricamente pelos
românicos
10
. O Satiricon é o reino dos vícios, nele desfilam esses tipos depravados cuja
lista, encabeçada por esses dois heróis da lubricidade, é bastante ampla.
O capítulo XI dos fragmentos recolhidos por Ernout encerra-se com essa última
investida de Ascilto. Entretanto há uma lacuna que, em outras edições, foi preenchida por
alguns copistas ou tradutores, como E. Palau que justifica seu feito em uma nota de roda pé
De nossa parte, de acordo com as traduções mais autorizadas, incluímos estes
parágrafos com o objetivo de não romper o fluxo da narração, porque sem
dúvida, no original, Petrônio deve ter preenchido com outro igual ou parecido
ao que agora preenche o que estaria vazio. Talvez os interpoladores até onde
puderam tenham se inspirado no texto original que foi parar em suas mãos
estropiado e com a ausência de alguns fragmentos. Contudo, a passagem
acrescentada sem dúvida não é de Petrônio. Seu estilo é muito inferior ao de
nosso autor, e como tem sido demonstrado foi escrito por um autor recente que
em vão tentou imitar a desenvoltura literária e a agudeza satírica e inclusive as
incorreções do escritor que quis completar. (Cf. Petrônio 1985: 12)
Não procederemos à análise dessa passagem adicionada pelos copistas, que Ernout
mantém fora dos fragmentos, além disso, não temos o original latino e nem Palau diz
exatamente o momento em que foi acrescentada. Entretanto não podemos deixar de
mencionar que nesta lacuna deveriam estar os incidentes que deram origem aos
acontecimentos narrados nos capítulos seguintes. Também teriam entrado no ciclo das
peripécias dois personagens Trifena e Licurgo que, justificando o esforço dos copistas,
reaparecerão na sessão dos Caps. C-CI. O princípio que moveu os copistas no
preenchimento desta lacuna é com certeza o mesmo que introduziu o trecho adicionado a
abertura do Satiricon (Num alio genere Furiarum declamatores inquietantur qui
clamant...) encontrado em muitas versões, inclusive na de Palau. Passemos, portanto, para
análise da sessão dos Caps. XII-XV
A narração de Encólpio começa com o emprego dos verbos na primeira pessoa do
plural, o que indica uma reconciliação entre os dois trapaceiros:
“Veniebamus... notavimus... detulissemus... coepimus...”
(“Vínhamos...notamos...trouxéssemos...começamos...” )
10
O adjetivo românico parece ser mais adequado do que romano para designar os gêneros escritos em latim
dentro da semiosfera românico-helenística.
129
O repertório de passagens como esta deve ter sido amplo. O que vemos aí é uma
cena que envolve os nossos dois heróis, um camponês (rusticus) acompanhado por uma
jovem (muliercula), uns impostores (nocturni) que tentam passar por funcionários da
justiça (advocati) e, por fim, um homem calvo, de aspecto horrível (tuberossimae frontis)
que também se faz passar por agente da justiça.
Encólpio e Ascilto tentavam negociar um manto valioso (pallium) que atrai o
camponês e sua companheira. Por sua vez, o camponês traz em seu ombro uma túnica
velha que Ascilto surpreso identifica. Era a mesma na qual eles haviam costurado algumas
moedas de ouro roubadas e que o camponês havia achado em um bosque. A surpresa é que
o rústico não havia ainda notado as moedas ocultas na costura. Acilto ao verificar este fato
chama Encólpio a um canto e lhe pergunta com que direito poderiam obter a túnica. Feliz
(exhilaratus) Encólpio, não só porque via sua presa, mas também porque a sorte lhe havia
livrado de uma suspeita demasiado torpe (turpissima suspicione), negou agir por conta
própria e sugeriu lutar às claras de acordo com o direito. Ascilto por sua vez temia a lei e
sugeriu comprar a túnica, embora reconhecendo que se tratava de um objeto seu. Para ele
seria melhor recuperar o tesouro com pouco dinheiro do que entrar num litígio incerto
(ambiguam litem). No final encerrando a questão Ascilto declama esses versos:
““Quid faciant leges, ubi sola pecunia regnat,
aut ubi paupertas uincere nulla potest?
Ipsi qui Cynica traducunt tempora pera,
non numquam nummis vendere vera solent.
Ergo iudicium nihil est nisi publica merces,
atque eques in causa qui sedet, empta probat.””
( “”O que fazem as leis onde só o dinheiro reina,
onde a pobreza nada pode vencer?
Aqueles mesmos que suportam a situação com a bolsa Cínica
Por acaso não costumam vender-se por boas quantias.
Logo a justiça nada é senão uma concessão pública,
E o cavaleiro, que toma assento na questão, aprova as compras.”” )
O emprego destes versos por Ascilto é análogo ao que fez Agamenon. Ascilto
parece também improvisar, mas na verdade estes versos trazem um tom proverbial, ou
filosofal, reconhecidamente uma sabedoria (consilium) que parece inverter profundamente
130
as idéias e conceitos dos movimentos filosóficos moralistas reinantes (epicurismo,
estoicismo), uma sabedoria que sugere a superioridade do dinheiro em relação às leis. Ou
seja, em poucas palavras, ele defende o suborno, fato que está coerente com o espírito
predominante no romance e, por ventura, coerente com o espírito da época.
Entretanto os heróis não possuíam dinheiro suficiente a não ser para comprar grão-
de-bico e tremoços. Por isso, para que o prejuízo fosse menor e para que a presa não
dispersasse, diminuíram o preço do manto. Mas a jovem que acompanhava o camponês
inspecionou com maior cuidado o pano e o reconheceu denunciando em seguida a presença
dos ladrões em voz alta. Para dissimular que nada tinham a ver com a denúncia da jovem,
clamaram com a mesma veemência que a túnica velha era deles. Os vendedores, que por
causa do barulho se aproximaram, riam com a briga, pois uma parte lutava por uma peça
indigna e a outra por uma vestimenta muito preciosa. Enfim Ascilto fez cessar o riso e ao
obter o silêncio propôs a troca simples de uma peça pela outra. Quando o camponês e a
jovem se agradaram com a proposta os impostores apareceram para confiscar as duas
peças. Quando já haviam quase consumado o seqüestro aparece o homem calvo e toma o
manto afirmando que o apresentaria no dia seguinte (crastino die). Encólpio então
conjectura que o que essa gente queria era sumir com o manto (strangularetur) e por medo
do crime não iriam ao tribunal.
Na verdade era o que queriam, o acaso favorecera as duas partes. O camponês
indignado joga na cara de Ascilto a túnica pela qual brigava e mandou depositar o manto
que era na verdade a única razão do litígio. Assim recuperaram o tesouro e de cabeça
erguida (praecipites) foram em direção à hospedaria, onde riram de todos, pois, através de
uma grande artimanha (ingenti calliditate), recuperaram o dinheiro.
Dois versos de onze sílabas encerram este capítulo:
“Nolo quod cupio, statim tenere,
nec victoria mi placet parata.”
Observemos a função destes versos, que traduzimos por: “Não quero possuir
imediatamente o que desejo, também não me agrada a vitória garantida”. Não é não são
proferidos por nenhum dos personagens, como fizeram Agamenon e Ascilto, neste caso
são proferidos sem que seja identificado seu enunciador. Versos deste tipo compõem
enunciações que ocorrem como uma espécie de isótopo, ou seja, ocorrem freqüentemente,
131
mas têm apenas um caráter gnômico, são uma espécie de máximas proverbiais carregadas
de ironia através das quais um enunciador encerra um pensamento. Transmite algo da
sabedoria popular apesar de aparelhado com o lirismo da tradição de epigramas. Na
verdade, é uma paródia deste gênero.
A análise desta sessão nos permite entender que algumas peripécias dos dois
aventureiros não passam de pequenas intrigas e pequenos furtos. Suas vantagens dependem
inteiramente do acaso e da sorte: O lusum fortunae mirabilem! (Ó golpe admirável da
sorte). É assim também que as coisas se processam no romance grego e na Nova Comédia.
Na sessão seguinte (Caps. XVI-XXVI) temos mais um cenário em que a sátira se
aprofunda. A busca do motivo que inverte o mal-gosto em refinamento, encontra auxílio
nas personagens grotescas, nas suas enunciações despojadas, nos seus depoimentos
reveladores de suas viciadas personalidades. A personagem Quartila, por exemplo, cuja
autoridade sacerdotal é bravamente enunciada contra os atrapalhados intrusos dos rituais
secretos de adoração a Príapo; surge com toda sua pompa verbal. Ela é um tipo bem
acabado de hetera, ou hierodoula. Esta Sacerdotisa de Priapo, assim como as outras
mulheres, entre as quais, destacamos Fortunata, Trifena e Circe, são representações
femininas cheias de colorido e de realismo satírico.
Além de Quartila aparecem nesta sessão: a criada Psique, a mocinha de apenas sete
anos Paniquis, um dançarino obsceno (cinaedus), uns massagistas (palaestritae), toda
criadagem de Quartila (familia) ou do templo, entre eles um tricliniarches e uma tocadora
de címbalos, cymbalaestria, ainda aparecem dois sírios (duo Syri). As cenas ocorrem no
quarto (deversorio) dos três trapaceiros e depois em um lugar não mencionado nos
fragmentos, mas que é provavelmente uma casa que deve funcionar como templo de
Priapo. Há muitos fragmentos dispersos nesta sessão, por isso os copistas acrescentaram
passagens.
O primeiro capítulo desta sessão (Cap. XVI) começa com Encólpio narrando na
primeira pessoa do plural (implevimus) descrevendo o momento em que devoravam a ceia
preparada por Gitão, quando foram interrompidos por batidas na porta. Assustados
perguntaram quem seria e uma voz responde:
“Aperi, inquit, iam scies”.
( Abri, disse ela, já saberás.)
132
Enquanto falavam, a porta se abre sozinha e de repente entra uma criada. Quartila é
apresentada sob o véu de sua figura cerimoniosa. A criada, Psique, que era a mesma que
estava com o camponês, vem à frente como uma espécie de arauto dessa poderosa criatura
e assim apresenta sua senhora:
“Ego sum ancilla Quaritlae, cuius vos sacrum ante cryptam turbatis. Ecce illa venit
stabulum petitque ut vobiscum loqui liceat”.
( “Eu sou a criada de Quartila, aquela cujo sacramento vós perturbastes diante do
altar. Eis que ela vem ao quarto e pede para que seja permitido falar convosco.” )
Depois destas palavras Quartila entra acompanhada por Paniquis e, depois de cair
em prantos diante dos olhares atônitos dos três usurpadores, dirige-se a eles com um
discurso relativamente longo:
“Quaenam est, inquit, haec audacia, aut ubi fabulas etiam antecessura latrocinia
didiscistis. Misereor mediusfidius vestri... quae vix Mille homines noverunt.”
(Tamanha foi, disse ela, a audácia, ou onde aprendestes fábulas e também os crimes
que as excederão. Apiedo-me de vós por minha fé ... a qual com esforço milhares de
homens conheceram.” )
Quartila indignada e queixosa diz que por sua fé (mediusfidius) se apieda deles,
mas os adverte que “quem vê algo proibido não pode ficar impune”. Eles haviam cometido
um crime imperdoável. Mas ela não havia ido ali ao encontro deles para vingar-se, pois se
comovia mais com a juventude dos ladrões, do que com a sua injúria,. Na verdade ela
queria executar com devoção uma ordem dada pelo deus para curar o mal causado pelo
vexame da noite, ela fora acometida por uma febre terçã e o remédio foi indicado pelo deus
em sonho, ela devia procurá-los. Mas não era o remédio que a preocupava, embora a dor a
machucasse e a levasse a sentir a necessidade da morte. A sua preocupação era de que não
divulgassem o que eles, levados pela licença do impulso juvenil, haviam visto no recinto
de Priapo. E que não levassem ao povo os segredos dos deuses. Por fim ela suplica:
“Protendo igitur ad genua uestra supinas manus, petoque et oro ne nocturnas
religiones iocum risumque faciatis.”
( “Estendo minhas mãos inclinada aos vossos joelhos, e peço e oro para que não
transformeis as religiões noturnas em piada e gracejo.” )
133
Acaba o discurso direto, e como numa forma de dar oxigênio à trama entra o
discurso indireto:
“...bonum animum habere eam iussi et de utroque esse securam, et si quod
praeterea aliud remedium ad tertianam deus illi monstrasset, adiuuaturos nos
diuinam prouidentiam uel periculo nostro”
(... mandei que ela tivesse bom ânimo e ficasse tranqüila quanto a ambos e que
além disso se um deus mostrasse algum remédio nós ajudaríamos a divina
providência mesmo com nosso risco.” )
Quartila ao ouvir as palavras de Encólpio retoma seu patético discurso:
“Facio, inquit, indutias uobiscum, et a constituta lite dimitto. Quod si non
adnuisset de hac medicina quam peto, iam parata erat in crastinum turba,
quae et iniuriam meam uindicaret et dignitatem”.
( “Faço as pazes convosco desisto da queixa constituída. Porque se não se
cosentisse a reparação que peço, a turba, que vingaria a ofensa e minha
dignidade, já estava preparada para amanhã.
E encerra com estes dísticos elegíacos:
Contemni turpe est, legem donare superbum;
Hoc amo, quod possum qua libet ire via.
Nam sane et sapiens contemptus iurgia nectit
Et qui non iugulat, victor abire solet”.
(“ É triste ser desprezado, ( é triste ) que o soberbo dite a lei ;
Isto eu amo: porque eu posso ir com prazer por qualquer via.
Pois certamente o sábio desprezado vai urdir intrigas
E aquele que não oprime, costuma sair vencedor.” )
Ao final da declamação destes versos vieram os aplausos, mas Quartila de repente
cai num grande riso junto com suas companheiras. Terminado o riso todos se entreolham
(intueremur) e Quartila profere estas palavras:
“Ideo vetui hodie in hoc deversorio quemquam mortalium admitti, ut remedium
tertianae sine ulla interpellatione a vobis accipirem.”
(Hoje proibi que qualquer mortal seja admitido neste recinto, para que eu aceite de
vós o remédio da terçã sem interrupões. ” )
Novamente os heróis estão ameaçados de estupro. Encólpio mede as forças, três
homens contra três mulheres, apesar da igualdade no número de oponentes eles tinham a
vantagem de ser homens. Encólpio ficaria com Quartila, Ascilto com Psique e Gitão com
Paniquis. Entretanto os fragmentos que narram o que acontece logo depois não existem e já
134
vamos encontrar os heróis submetidos pela insistência de Quartila, quando já estão vendo a
morte:
“Tunc vero excidit omnis constantia attonitis, et mors non dubia miserorum óculos
coepit obducere.”
(“ Então, na verdade, toda constânia excedeu aos atordoados, e a morte clara
começou a vir aos olhos dos miseráveis.” )
No Cap. XX há uma série de fragmentos e o primeiro deles é um pedido de
Encólpio a Quartila:
“Rogo, inquam, domina, si qui tristius paras celerius confice: neque enim tam
magnum facinus admisimus, ut debeamus torti perire.”
(“ Peço, senhora, disse eu, si algo mais triste preparas faze logo: pois não é tão
grade o crime que cometemos, para que devamos perecer torturados.” )
Os fragmentos que se seguem narram alguns flagrantes:
1-A criada chamada Psique estende diligentemente no chão uma coberta
(lodiculam)
2- Minha virilha frígida solicitou mil vezes aos mortos.
3-Ascilto cobrira a cabeça com um manto, avisado naturalmente sobre o perigo de
intervir nos segredos alheios.
4- A criada tirou do seio dois pedaços de pano, com um atou nossos pés com o
outro nossas mãos.
No fragmento seguinte, há uma cena de bebedeira “deficiente fabularum contextu”
onde falam Ascilto, Psique e Quartila:
Quid? Ego, inquit, non sum dignus qui bibam?
Ancilla... et: Apposui: quidem, adulescens, solus tantum medicamentum
ebibisti?
Itane est? Inquit Quartila, quicquid saturei fuit, Encolpius ebebit?
( Como ? Eu, disse ele, não sou digno de beber ?
E a criada: Eu servi na verdade, garoto, bebeste sozinho tanto remédio?
135
E é assim? Disse Quartila, quanto da bebida , Encólpio bebeu? )
Os dois últimos fragmentos do Cap. XX são:
1- Non indecenti risu latera commovit
( Moveu os flancos com um riso apropriado.)
2- Ac ne Giton quidem ultimo risum tenuit, utique postquam virguncula cervicem
eius inuasit et non repugnanti puero innumerabilia oscula dedit.
( Nem Gitão conseguiu, por fim, conter o riso, a mocinha então envolveu seu
pescoço e lhe deu inumeráveis beijos sem que resistisse. )
Não é difícil inferir a partir desses fragmentos o desenrolar da cena, mas só no Cap.
XXI é possível saber que os acontecimentos não se dão mais no quarto onde os heróis
estavam a ponto de ser estuprados. Possivelmente estão no templo de Príapo, ou algum
outro prédio que se destinasse ao seu culto.
Eles já estão cansados de sofrer torturas quando um tipo efeminado (cinaedus) entra
em cena com mais agressões e beijos melados quando Quartila ordena que aos infelizes
seja dada uma trégua. Eles aproveitam para jurar com palavras santas (verbis
religiosissimis) que tão terrível segredo pereceria entre eles.
Entram os palaestritae que os massageiam com óleo legítimo e na sentença
seguinte temos uma breve indicação do provável templo:
“Utcumque ergo lassitudine abiecta cenatoria repetimus et in proximam cellam
ducti fumus in qua três lecti strati erant et reliquus lautitiarum apparatus splendidissime
expositus.”
(“ De qualquer maneira, afastada a fadiga, logo retomamos a comilança e fomos
conduzidos a outro quarto, no qual havia três leitos estendidos e um aparato de riquezas
deixado, exposto esplendorosamente.” )
Seguindo as orientações (iussi) reclinam-se no leito e se banqueteiam de iguarias
depois caem no sono quando Quartila intervém:
“Itane est? Inquit Quartila, etiam dormire vobis in mente, cum sciatis Priapi genio
pervigilium deberi?
136
(“ E é assim? Disse Quartila, então vós tens em mente dormir, quando sabeis dever
vigília ao pai Priapo? )
Mas a ordem de Quartila aparentemente não foi cumprida. O Cap. XXII começa
com Ascilto que, por causa do sono em que caiu, não sente a criada passando fuligem em
seu rosto, nos lábios e nos ombros. Encólpio narra em primeira pessoa sua adesão ao sono:
“Iam ego etiam tot malis fatigatus minimum veluti gustum hauseram somni”.
( “Já eu também cansado de tantos males havia provado um gostinho do sono.” )
Todos no “templo” tota família intra forisque dormiam sob uma luz esmaecida,
quando dois sírios entram no triclinium pra roubar uma jarra de vinho (lagoenam), os dois
ladrões disputam a jarra entre a prataria da mesa que se move e deixa cair um copo sobre a
cabeça de uma criada. A esse golpe ela reclama, e os sírios vendo-se descobertos deitam-se
no leito mais próximo e começam a roncar como se dormissem há muito tempo. Um dos
escravos (tricliniarches) levanta-se e alimenta as lâmpadas, quando entra uma dançarina
(cymbalistria) tocando címbalo excitando a todos.
No Cap. XXIII um tipo efeminado cinaedus, talvez o mesmo do Cap. XXI e
derrama (effudit) esses versos
“Huc huc conuenite nunc, spatalocinaedi,
Pede tendite, cursum addite, conuolate planta,
Femore facili, clune agili et manu procaces,
Molles, ueteres, Deliaci manu recisi”.
( “Para cá para cá, vinde agora, devassos,
Dirigi com o pé , acertai o passo, ajustai as plantas,
À coxa hábil, à bunda ágil, com a mão, atrevidos
Libertinos, com a mão, velhos Delíacos devassados,” )
Depois destes versos o cinaedus com um beijo cheio de cuspo cai sobre Encólpio
tira-lhe a roupa e talvez sentado sobre a virilha mole de Encólpio se esforça em vão. Aí
vemos uma cena de estupro que é adornada com a espantosa imagem verbal que descreve a
fisionomia do cinaedus no momento em que está se esforçando sobre Encólpio:
“Perfluebant per frontem sudantis acaciae rivi, et inter rugas malarum tantum erat
cretae, ut putares detectum parietem nimbo laborare”.
137
(“Jorravam óleos de acácia, um rio de suor pelo rosto, e entre as rugas havia um
punhado de barro, que pensarias ser uma parede gasta por resistir ao limbo.” )
A extrema baixeza não pára aí, mas o efeito cômico por seu realismo invectivo
torna-se extremamente plausível. A descrição precisa da posição incômoda em que se
encontra o herói não encontra rival na literatura antiga. O Satiricon, mesmo não sendo
comprovada a sua autoria e datação, descreve cenas dignas de um Nero. Não há como
evitar tal especulação mesmo porque a configuração de personagens tão celeradas como as
que encontramos entre esses devotos de Príapo não os coloca tão distantes dos que
habitavam o universo artístico e político de Nero.
Nos capítulos seguintes (XXIV-XXVI), por exemplo, vamos acompanhar o
casamento de Paniquis e Gitão. Acontecimento que ocorre depois das queixas de Encólpio
por sofrer extremada tortura. Ele cobra com certeza um parceiro ou uma parceira melhor
do que o cinaedus, parceiro que ele chama de embasicoetas ao que Quartila responde ser o
cinaedus um embasicoetas. Quartila teria prometido a Encólpio este ou esta embasicoetas
em algum dos fragmentos perdidos? Encólpio insatisfeito e para que a sua situação
mudasse se queixa do fato de Ascilto ser o único que descansa. Quartila, finalmente
convencida, ordena que o embasicoetas seja dado a Ascilto. O cinaedus deixa Encólpio e
sobe em Ascilto que é atingido por golpes de bunda e por beijos.
Gitão assistia a tudo se dissolvendo em riso quando é avistado por Quartila que
quer saber com interesse de quem seria o garoto (puer). Encólpio responde que é seu irmão
e Quartila surpresa por ele ainda não ter lhe dado um beijo aplica-lhe um (osculum), enfia
na mão no seu colo e examina com cuidado sua genitália de puer (rudis) prometendo
empregá-lo no dia seguinte como prato de entrada (promulsis) porque naquele momento
depois de ter sido amada por um asno (post aselum) não aproveitaria as recompensas.
É depois deste diálogo entre Quartila e Encólpio que Psique aconselha Quartila a
realizar o casamento entre Gitão e Paniquis. Este casamento é uma cena que sem dúvida
exige uma reflexão sobre a complexidade estético-ideológica da construção satírica. A
justificativa de Quartila para promover esse casamento em resposta ao protesto de
Encólpio que alegava que Gitão era um menino casto (verecundus) e Paniquis ainda não
tinha idade para as obrigações femininas (patientia muliebris):
“Ita, inquit Quartila, minor est ista quam ego fui, cum primum virum passa
sum? Iunonem meam iratam habeam, si unquam me meminerim virgine fuisse.
Nam et infans cum paribus inquinata sum, et subinde procedentibus annis
138
maioribus me pueris adplicui, donec ad hanc aetatem perveni. Hinc etiam puto
proverbium natum illud ut dicatur posse taurum tollere, qui vitulum sustulerit.”
(“ Assim, disse Quartila, eu era menor que esta aí quando agüentei o primeiro
homem, que eu deixe minha Juno irada, se um dia me lembro quando fui
virgem. Pois quando criança fui corrompida por parceiros infantis, e desde
então, pelos subseqüentes anos, me apliquei com garotos maiores, até que
cheguei a esta idade. Daí pois, acho que nasceu aquele provébio que diz que:
pode suportar um touro aquele que tiver carregado um vitelo.” )
O Cap. XXVI encerra essa sessão cheia de situações jocosas e hilariantes. Paniquis
e Gitão se casam e imediatamente se dirigem ao tálamo, Quartila através de uma abertura
deixada por ela brecha o casal e, porque estavam com os rostos unidos enquanto espiavam,
Quartila movendo os lábios lhe castigava com beijos furtivos.
O episódio de Quartila acaba aí, e provavelmente entre duas lacunas há esta
sentença:
“Abiecti in lectis sine metu reliquam exegimus noctem.”
(“ Largados nos leitos, passamos o resto da noite sem medo.” )
A sentença acima deve indicar que os três ficaram livres de Quartila e foram para o
albergue onde, já sem correrem perigo, passaram a noite. A primeira sessão termina, mas é
ainda no Cap. XXVI que se iniciam os preparativos para a ceia de Trimalcião.
“Venerat Iam tertius dies, id est exspectatio liberae cenae”
(“Era chegado o terceiro dia, isto é um anseio de um ceia farta.)
Esse terceiro dia referido é obscuro, mas a ceia que estava sendo esperada é sem
dúvida a mesma mencionada por Ascilto quando censura o fato de Encólpio ter louvado o
poeta a fim de jantar fora (foris).
Provavelmente estavam no albergue refletindo sobre as feridas que teriam sido
abertas em alguma briga que não vem mencionada nos fragmentos, mas essas feridas
abertas os fazem reconhecer que a fuga daquela cidade provavelmente agradaria mais do
que se ficassem quietos. Quando tristes e agitados já pensavam em um meio de evitar a
situação embaraçosa que deveriam enfrentar (praesentem procellam) um servo de
Agamenon os interrompeu com esse discurso:
139
“Quid? Vos, inquit, nescitis hodie apud quem fiat? Trimalchio, lautissimus homo,
horologium in triclinio et bucinatorem habet subornatum, ut subinde sciat quantum de vita
perdiderit.”
( “ Como? Vós, disse ele, não sabeis na casa de quem se janta hoje? Trimalcião,
homem riquíssimo, um relógio e um buzinador ele tinha como adorno no triclínio, para que
a partir dos quais se soubesse o quanto se perde da vida.” )
A ceia de Trimalcião é o episódio mais longo e mais completo dos que foram
reconstituídos a partir dos fragmentos. Enzo Marmorale no seu livro Petronii Arbiter Cena
Trimalchionis faz uma análise minuciosa de palavras e expressões cujo emprego no
Satiricon apresenta particularidades. O texto que analisa é o tirado da mesma fonte de
Ernout, mas sua edição traz notas explicativas adicionais importantes para compreensão de
alguns elementos obscuros que abundam no Satiricon. Como, por exemplo, sobre a
expressão libera cena ele escreve:
“É certamente a “ceia da liberação (da despedida)”. Assim era chamada a ceia
consumida pelo bestiarius que no dia seguinte iria subir à arena. cf. Tertull. apol. 42. Mas
é dúbio que a libera cena seja a ceia de adeus de Encólpio e Ascilto, que haviam decidido
se separar (Cap. X, 11), porque a partir daí não se fala mais no assunto até que novas
razões intervenham. Forte é a hipótese de Scheidweiler in Philol. 80 (1942) p. 202, que
explica libera cena no sentido em que sendo Encólpio e Ascilto obrigados a permanecer
com Agamenon como antescholani, consideram a ida à casa de Trimalcião como um
convite à “ceia dos condenados”. E de fato depois da ceia, que antes da ida agradava mais
fuga do que quies, abandonam o retor”
A ceia que Trimalcião oferece é um acontecimento que sob o olhar detalhista de
Encólpio é talvez a mais adequada configuração de um ambiente satírico. A fórmula
satírica é simples: Trimalcião é um ridículo pater famíliae, seu mal-gosto e seus vícios ele
confunde com refinamento e virtude e Encólpio de uma maneira cruel e debochada narra
esse qüiproquó com extrema riqueza de detalhes. A primeira descrição de Trimalcião já é
feita com a preocupação de dar relevo a sua inusitada figura:
“Videmus senem calvum, tunica vestitum russea, inter pueros capilatus ludentem
pila. Nec tam pueri nos, quamquam erat operae pretium, ad spectaculum duxerant, quam
ipse pater famíliae qui soleatus pila prasina excercebatur.”
140
( “Vimos um velho calvo, vestido com uma túnica vermelha, brincando com uma
bolinha. E não eram os garotos que nos conduziam tanto ao espetáculo, como era de se
esperar, quanto este pai de família, que descalço se exercitava com uma bolinha verde.” )
A narração de Encólpio está carregada de valorações desta natureza, ele que tem
total inclinação para os jogos do amor e da beleza, abre mão dos pueri, para se deleitar
com a figura ridícula de Trimalcião. Esse é o trunfo de um gênero de tão baixa ordem em
plena escalada de degeneração. Trimalcião é o contraponto da helenização, a mais bem
adornada caricatura do mecenas ou do evergeta. O que se passa em sua ceia é a encenação
da falência da fantasia nascida nos cantos de Homero. Vemos aí o registro da degeneração
do sistema de signos que teve como núcleo embrionário o gênero épico.
Na casa de Trimalcião tudo deixa Encólpio admirado (sequimur nos admiratione
iam saturi) (Cap. XXVIII). Na verdade ele está estupefato e quase leva uma queda ao ver
um cão pintado na parede sobre o qual estava escrito em letras maiúsculas o aviso CAVE
CANEM (Cap.XXIX). Encólpio continuou a observar a pintura e viu que se tratava de um
mercado de escravos (venalicium cum titulis pictum), viu Trimalcião cabeludo segurando
um caduceu entrando em Roma conduzido por Minerva.
A pintura revela a que esfera semiológica Trimalcião pertencia, a que fantasia
estava ligado, o seu helenismo é o mais periférico possível, um mercado de escravos marca
a sua origem. Com duas faces se apresenta o retrato de Trimalcião, 1: o liberto que
enriqueceu por ter sido o favorito do Senhor, que pelo golpe da sorte se torna um
comerciante abastado; 2- o escravo que ascendeu a mais elevada autoridade, pelo menos
entre os seus, ou seja, na sua família. Na pintura aparece Trimalcião aprendendo a fazer
contas (ratiocinari) depois se tornaria tesoureiro (dispensator). No canto do pórtico
Mercúrio o levanta pelo queixo e o leva ao tribunal excelso. Mais à frente estava a Fortuna
com o chifre da abundância e as três Parcas entortando fios de ouro.
Toda pintura é varrida pelo olhar de Encólpio e principalmente pela suas palavras:
“Praeterea grande armarium in ângulo vidi, in cuius aedicula erant Lares argentei
positi Venerisque signum marmoreum et pyxi áurea non pusilla, in qua barbam ipsius
conditam esse dicebant.”
141
( “Além diso, vi um grande armário num canto; em uma edícula foram colocados
Lares de prata e uma estátua marmórea de Vênus e ainda uma caixa não muito pequena, na
qual diziam estar a barba
Por fim Encólpio começa a interrogar o mordomo (atriensis) que pinturas havia no
meio do átrio. Ele respondeu:
“Ilíada et Odyssian, inquit, ac Laenatis gladiatorum munus.”
(“ Ilíada e Odisséia, disse ele, e a ordem de gladiadores de Lenate
O mundo de Trimalcião é o mundo helênico pelo avesso, a pintura revela como os
mesmos signos que motivam a elegante cultura fazem parte do universo de tão estouvado
pai de família.
É possível constatar que essas pinturas eram muito comuns nas casas ricas, podem
além de tudo ser vistas nas mais distantes províncias do império
11
. Encólpio enuncia sua
admiração pelo helenismo híbrido de Trimalcião, pelo mundo daquele excêntrico pai de
família enfatizando os seus excessos (satura). Para o seu leitor ele não quer deixar nada no
escuro, descreve os detalhes da casa e com requinte de memória (si bene memini)
transcreve os enunciados mais descabidos todos carregados de adulações a Trimalcião:
“III. et pridiem kalendas ianuarias C. noster foras cenat”.
(“ Nos dias 30 e 31 de dezembro, nosso Caio janta fora.” )
A entrada no triclinium (a sala de jantar, o coração da casa, onde de fato irá ocorrer
o espetáculo programado por Trimalcião) é um pouco acidentada. Além disso foram
advertidos a entrarem com o pé direito na hora em que iam cruzar a porta, superstição que
Encólpio ridiculariza:
“sine dubio paulisper trepidavimus, ne contra preceptum aliquis nostrum limen
transiret” .
(“ Sem dúvida nos preocupamos, para que nenhum de nós atravessase a porta
contrariando o preceito.” )
Assim que entram se deparam com um escravo que se ajoelha diante deles
(procubuit) suplicando para que o livrassem de um castigo, ele teria perdido no banho as
11
Na Lusitânia, hoje território Português, são conhecidas 109 localidades onde são encontrados mosaicos
romanos. Cf. (MAIA 2003: 206 & sgs)
142
roupas do tesoureiro e isso não seria um grande pecado porque as roupas chegariam no
máximo a dez sestércios. Eles vão ao tesoureiro que responde com soberba:
“Non tam jactura me movet, inquit, quam negligentia nequissimi servi. Vestimenta
mea cubitoria perdidit, quae mihi natali meo cliens quidam donaverat, Tyria sine dubio,
sed iam semel lota. Quid ergo est? Dono vobis eum”.
(“A perda , disse ele, não me abala tanto, quanto a negliência de indigníssimo
servo. Perdeu meu traje de mesa, que um cliente no meu aniversário havia me dado, Tíria,
sem dúvida, mas já foi lavada uma vez. Que há então? Dou-o a vós” )
O soberbo tesoureiro encaixa-se bem no perfil dos aduladores familiares de
Trimalcião, sua indulgência nada mais é do que uma demonstração de desprezo pelo
escravo, pela túnica e pelos solicitantes.
O servo os surpreendeu com fortes beijos (spississima basia) e agradeceu com essas
palavras:
“Ad summam, statim scietis, ait, cui dederitis beneficium.Vinum dominicum
ministratoris gratia est”.
(“ Em suma, logo sabereis, disse ele, a quem tereis dado benefício. A gratidão é do
administrador do vinho da casa.” )
No triclinium começam a acontecer coisas que impressionam Encólpio. As
conjecturas que fazemos a respeito dessas excentricidades sempre nos levam àquelas que
eram promovidas por Nero, chegadas até nós através de Tácito e Suetônio. Nero é uma
figura extremamente satírica, por isso é espantosa a coincidência desses relatos em relação
à imitação de suas excentricidades e depravações. As fantasias do imperador se
assemelham mutatis mutandis às fantasias de Trimalcião. O gosto pelo que há de mais
híbrido na cultura helenística é compartilhado por essas duas personagens. O imperador e
esse poderoso pai de família têm muita coisa em comum, pricipalmente no que diz respeito
a essas fantasias. Na verdade todo Satiricon, ou seja, os três livros que restaram, pelo
menos, parece de fato imitar as loucuras de Nero.
A ceia é descrita do começo ao fim sob o olhar surpreso de Encólpio que
freqüentemente emprega fórmulas dirigidas ao leitor. Logo que reclinam no leito do
143
triclinium escravos alexandrinos começam a servir os convivas. Encólpio como narrador
leva o olhar e o ouvido do leitor àquele universo criando um jogo de impressões imediatas:
os objetos, os gestos, os traços mais salientes passam rapidamente aos sentidos, mas as
suas palavras podem recuperá-los. Encólpio ao mesmo tempo que narra envolve-se na
cena:
“Ego experiri volui an tota família cantaret, itaque potionem poposci.” (“ Eu quis
comprovar se por acaso toda família cantava, e prdi mais uma dose.” ).
Para ele as coisas tem apenas a aparência, seu espectro superficial. Todos parecem
estar cantando enquanto trabalham e para ter certeza disso Encólpio pede uma bebida. Um
jovem preparadíssimo o apanhou com um canto desagradável (acidus) e tudo que era
pedido ele dava. Encólpio conclui essa passagem com a seguinte observação.
“Pantomimi chorum, non patris família triclinium crederes.
(Não pensarias no triclinio de um pai de família como um coro de pantomima.”)
Na pantomima os atores gesticulavam ou dançavam enquanto o coro cantava.
Encólpio com esta última sentença se dirige ao leitor chamando-o para o encontro daquela
inusitada ceia comparada a uma pantomima, gênero que representava o declínio do gosto
no teatro.
Encólpio narra a ceia desde o início. Todos já haviam reclinado no leito, menos
Trimalcião, cujo lugar estava reservado segundo um novo costume. Já havia sido servido o
prato de entrada (promulsidare): um asno de bronze Coríntio carregando de um lado
azeitonas alvas, do outro, azeitonas pretas. Cobriam o asno dois pratos em cujas margens
estavam escritos o nome de Trimalcião e o peso da prata. Pontes de metal sustentavam
arganases pulverizados com mel e papoula. Havia ainda salsichas quentes sobre grelhas
prateadas e sob a grelha ameixas sírias (pruna Syriaca) com grãos de romã (mala Punica).
Estavam entregues a esse rico antepasto quando entra Trimalcião carregado
(allatus) ladeado por músicos. Depois, ele foi colocado sobre pequeníssimas (minutissima)
almofadas ou, numa outra versão
12
, almofadas muito estofadas (munitissima). Esta cena
provoca o riso dos imprudentes convivas. Pois a cabeça rapada saltava de um manto
vermelho (pallium coccineum) e sobre uma veste enrolada no pescoço com as franjas
pendentes aqui e ali, jogou a faixa púrpura dos patrícios senadores que iria lhe servir de
12
Cf. (MARMORALE 1961: 17)
144
guardanapo( mappam laticlaviam). Parecia possuir no dedo anular da mão esquerda ( ut
mihi videbatur) um anel todo de ouro cravado de estrelas. E como não se cansasse de
ostentar essas riquezas, revelou o braço direito enfeitado com um bracelete de ouro com
um círculo de marfim conexo a lamina brilhante.
Trimalcião não tem o menor decoro (decus) ao exibir suas riquezas. Encólpio
flagra-o em seu jogo de cena e não perdoa com suas valorações. Além de não ter
escrúpulos ele realmente despreza os seus convivas com um magnânimo esnobismo.
Depois de catucar os dentes com palitos de prata ele diz:
“Amici, inquit, nondum mihi suave erat in triclinium venire, sed ne diutius
absentivos morae vobis essem, omnem voluptatem mihi negavi. Permittetis tamem finire
lusum”.
(“Amigos, disse ele, ainda não era bom para mim vir ao triclínio, mas para que eu
não ficasse por mais tempo indiferente à demora nem a vós, neguei-me todo prazer.
Permitireis todavia que eu termine o jogo.” )
O que se segue é novamente uma outra espantosa demonstração de riqueza desta
vez reconhecida por Encólpio como um requinte (rem omnium delicatissima): um escravo
traz um tabuleiro de terebintina com dados cristalinos e com moedas (denarius) de ouro e
de prata usadas como pedras do jogo. Outro prato é servido enquanto Trimalcião ao longo
do jogo falava sobre tudo que era assunto ( omniorum textorum dicta). Era um cesto no
qual havia uma galinha de madeira com as asas estendidas em um orbe como se estivessem
incubando ovos. Dois escravos começam a mexer a palha ao som estridente da sinfônica
logo são retirados ovos de pavão que são divididos entre os convivas. Trimalcião volta seu
rosto (vultus) para a cena e diz:
“Amici, ait, pavonis ova gallinae iussi supponi. Et mehercules timeo ne iam
concepti sint. Temptemus tamem si sorbilia sunt”.
(Amigos, disse ele, mandei sobrepor ovo de pavoa, e por hécules temo que já
estejam chocados. Verfiquemos se ainda são comestíveis.”)
Encólpio e outros receberam colheres pesadas e perfuraram o ovo que estava
coberto com uma farinha oleosa. Ele já ia jogar seu ovo fora porque teria visto um pinto se
mexendo quando um conviva antigo lhe disse:
“Hic nescio quid boni debet esse”.
145
( Não sei o que deveria haver aqui. )
Encólpio encontrou um gordo papa-figo com gema de ovo apimentada.
Os acontecimentos vão se sucedendo de maneira vertiginosa, terminado o jogo,
Trimalcião pede todas essas mesmas iguarias e dá amplos poderes (fecerat potestatem)
para quem quisesse tomar vinho; depois de uma confusão provocada pela queda de um
prato (paropsis) bate no responsável e o faz derramar de volta o que ele já havia apanhado.
Então entram dois etíopes com dois pequenos odres como os que existem no anfiteatro
para pulverizar a arena, molham as mãos com vinho e ninguém quer saber de água.
Triamalcião foi louvado por essas elegâncias (elegantiae) e disse:
“Aequum, inquit, Mars amat. Itaque iussi suam cuique mensam assignari. Obiter et
putidissime servi minorem nobis aestus frequentia sua facient.
(Marte ama por igual. Assim mandei que sua mesa fosse repartida. Os escravos de
passagem e incomodamente farão o mínimo de agitação para nós com sua freqüência.)
Logo são trazidas ânforas de vidro diligentemente cobertas com gesso, no gargalo
das quais estavam fixadas etiquetas com a legenda:
“Falernum Opimianum annorum centum.”
(Falerno Opiamo de cem anos.)
O realismo satírico encontra nessas excentricidades pormenorizadas a sua mais
fascinante configuração estética. As elegantiae soam como uma forte ironia, por isso elas
são a senha para o êxito de tal descrição. O exagerado exibicionismo de Trimalcião e a
confusão que faz com os signos do helenismo é o trunfo do narrador atento e astuto que
encontra a sátira. Há claros indícios de que à época do Satiricon o mundo românico-
helenístico esteve todo contaminado por esta hibridação dos gêneros culturais do
helenismo. Nero não era o único poderoso dado às excentricidades artísticas. Porque era o
que de fato ele era, uma espécie de tirano helenístico ávido por todos os gêneros, foi na
verdade um grande misturador de gêneros. Pelo menos é o que podemos deduzir das
páginas de Tácito e Suetônio
13
.
Seriam essas as elegâncias que Petrônio arbitrava e que deixou Nero quase que
totalmente dependente de seu frívolo comentário? O próprio Nero é uma ambígua figura,
13
146
Se lhe valeram as lições de Sêneca valeram-lhe também a descontrolada criatividade. Nero
vive como um artista e parece ter reconhecido em Petrônio o seu mais refinado espectador.
As elegâncias de Trimalcião se assemelham às de Nero só que Encólpio não dialoga com
seu anfitrião ele é apenas um convidado porque tem fama de escolado, talvez estivesse ali
para arbitrar, Trimalcião quer impressioná Encolpio e seu Amigo com seu talento. Afinal
eles são trazidos por Agamenon.
Enquanto liam as palavras da etiqueta Trimalcião começa discurar:
“Eheu, inquit, ergo diutius vivit vinum quam homuncio. Quare tangomenas
faciamus. Vita vinum est. Verum optiamum praesto. Heri non tam bonum posui et multo
honestiores cenabant.”
( Ai ai ai, disse ele, pois o homem não vive tanto quanto o vinho. Por isso bebemos
muito. Vinho é vida. Verdadeiro Opiamo vos apresento. Ontem não bebi um tão bom e
pessoas muito mais dignas ceiavam.)
O jargão de Trimalcião com sua retórica prosaica é uma outra estratégia fundadora
do realismo satírico. Para o público de Encólpio seria importante que as palavras e até
mesmo o tom e o ritmo melífluos soassem com total verossimilhança: proezas do discurso
direto. Já vimos que Quartila também emerge com seu discurso carregado de expressões
grosseiras, mas Trimalcião procura ser genial, inteligente e espirituoso como cabe a um
mecenas. A ceia é dirigida por ele, depois de beberem cheios de admiração, os convivas
vêem um escravo trazer um esqueleto de prata todo articulado e colocá-lo sobre a mesa e
Trimalcião depois de movê-lo expressando várias figuras acrescenta
“Eheu nos míseros, quam totus homuncio nil est! Sic erimus cuncti, postquam nos
auferet Orcus. Ergo vivamus, dum licet esse bene.”
( “Ai de nós miseráveis, como tudo o vinho nada é! Assim estaremos juntos,
Depoisque o Orço nos levar. Então vivamos, enquanto nos é permitido viver bem.”)
Para melhor penetrarmos as fantasias de Trimalcião, analisemos a sua inusitada
visão do zodíaco. Depois de dizer estas palavras que Encólpio designa como louvação
(laudationem) surge uma prato que é pura arte:
“Rotundum enim repositorium duodecim habebat signa in orbe disposita, super
quae proprium convenientemque materiae structor impuserat cibum: super
arietem cicer arietinum, super taurum bubulae frustum, super geminos
testiculos ac rienes, super cancrum coronam, super leonem ficum Africanam,
super virginem steriliculam, super libram stateram in cuius altera parte
147
scriblita erat, in altera placenta, super scorpionem psiculum marinum, super
sagittarium oclopeta, super capricornum locustam marinam, super aquarium
anserem, super pisces duos mullos”.
( “Um prato redondo, pois, tinha doze estatuetas dispostas, sobre as quais o
escultor colocara uma comida correspondente: sobre áries, grão de bico
arietino, sobre touro um petisco de carne de vaca, sobre gêmeos testículos e
rins, sobre câncer uma coroa, sobre leão figo africano, sobre virgem, uma
vagina virgem de porca, sobre libra uma balança em em cujo um dos lados
havia um pastel de queijo, e no outro um bolo sagrado; sobre escorpião um
Bernardo eremita, sobre sagitário uma lebre, sobre capricórnio uma lagosta,
sobre aquário um ganso, sobre peixes dois salmonetes.”)
A composição deste estranho objeto culinário revela o refinamento do realismo
satírico. A partir da luz lançada sobre suas partes podemos claramente compor em nossa
mente este repositorium rotundum que imita o universo e suas doze constelações e sobre
sobre as quais o artista havia colocado um tipo de comida correspondente identificando-lhe
algum traço.
O prato é realmente fabuloso, representa a híbrida fantasia de Trimalcião captada
por Encólpio que naquele momento era torturado por um mimo musical que descrevia o
preparo de uma bebida (de Laserpiciario) e ficava mais triste ainda por ter que aceder ao
convite de Trimalcião para apreciar comidas tão vis:
“Suadeo, inquit Trimalchio, cenemus, hoc est ius cenae”.
( “Sugiro que comamos, esta é a lei da ceia.”)
Para completar a descrição do prato, nos cantos do repostorium, quatro estátuas de
Mársias deixavam escorrer molho apimentado sobre os peixes que nadavam como se
estivessem em um canal (in euripo). O fascínio, a surpresa, o espanto diante de todas essas
elegâncias (res electissimas) é um dos leitmotif da ceia que ajuda o leitor a se aproximar da
cena com o mesmo deboche explicitado pelo narrador:
“Damus omnes plausum a família inceptum et res electissimas ridentes
aggredimur”.
(“Todos seguimos o aplauso iniciado pelos escravos e a essas coisas elegantíssimas
acedemos”.)
O Satiricon pode ser definido como uma sucessão de acontecimentos ininterruptos,
por isso o realismo sob a tônica da verossimilhança tece uma relação de causa e efeito
148
amplamente iluminada pelo discurso de Encólpio. Seu refinado ouvinte deve compreender
a necessidade desses esclarecimentos a fim de compartilhar suas valorações, deve saber
que a exibição de Trimalcião não passa de uma excêntrica manifestação de um poder
adquirido sob a marca da degeneração dos valores essenciais da cultura helênica, há muito
transformada em cultura universal.
Na primeira parte, Encólpio ridiculariza a si próprio lançado naquele enredo de
conflitos com Ascilto e Quartila, mas agora seus sentidos estão ocupados na descrição
detalhada destes incríveis momentos proporcionados pelo gênio invertido de Trimalcião.
Tudo indica que Trimalcião se exibe principalmente para aqueles ilustres peregrinos, todos
os outros convidados ele já conhece e todos já parecem acostumados a suas
excentricidades, mas Encólpio e seus companheiros não sabiam o que lhes esperavam.
Encólpio a tudo ridiculariza numa tentativa de fazer o ouvinte (ut putares) não perder nada
do que se passava.
A passagem do trinchante que vem logo em seguida aos aplausos, revela o espírito
quase infantil de Trimalcião. Um jogo de palavras o encanta e ele faz com que o trinchante,
Carpo, (Carpus) seja chamado ao mesmo tempo em que recebe a ordem para que trinche o
prato (obsidonium) e ele o faz com marabalismos:
“Carpe, inquit”.
Trimalcião repete com a voz relaxada: “Carpe, Carpe”. Encólpio observando que
o conviva que se debruçava acima dele já conhecia a seu modo os jogos (ludos) de
Trimalcião, tomou coragem e o interrogou a respeito, a resposta vem em seguida:
“Vides illum, inquit, qui obsonium carpit: Carpus vocatur. Ita quotiescumque dicit
“Carpe” eodem verbo et vocat et imperat”.
(“Vés aquele que trincha a comida : chama-se Carpo, assim toda vez que diz
“Carpe”, com a mesma palavra ele chama e ordena “.)
Este mesmo conviva é quem vai entreter Encólpio que, não tendo mais o que
apreciar (gustare), pergunta-lhe quem é a mulher que corre pra lá e pra cá, ou seja,
Fortunata. O conviva solta a língua e profere um longo relato descritivo das riquezas do
casal Trimalcião e Fortunata. Encólpio ironiza chamando seu discurso de dulces fabulae. O
relato sucinto é feito com palavras que denunciam o jargão de todo grupo. Há nas palavras
deste conviva sinais de um latim desgastado pelo uso da vulgarização extrema. Trimalcião,
149
Fortunata e a família são vistos por quem os inveja profundamente e não tem nenhum
pudor ao confessar isto. A posse de uma fortuna considerável substituiu no espírito deste
loquaz conviva o desejo de qualquer outro bem cultural que a Antigüidade pudesse ter
gerado. Trimalcião está no topo do mundo, mas de que mundo? Pura fantasia que só uma
grande fortuna poderia proporcionar. Trimalcião é o evergeta daqueles parasitas
denunciados pelo seu igual e que encanta Encólpio.
Além deste loquaz conviva, muitos outros terão oportunidade para emendar o seu
discurso ao torneio comandado por Trimalcião que interrompeu as tão doces fábulas com a
intenção de elevar o conteúdo das discussões (fabulae).
“Oportet etiam inter cenandum philologiam nosse”.
(“É oportuno durante a ceia falar de filologia.”)
Com esse intuito cita uma passagem de Virgílio empregando-a inadequadamente,
depois evoca seu Patrono desejando que seus ossos estejam bem e diz que a ele deve o fato
de ser um homem entre os homens e passa a explicar o prato zodiacal com um bocado de
asneiras:
“Caelus hic, in quo duodecim dii habitant, in totidem se figuras convertit, et
modo fit aries. Itaque quisquis nascitur illo signo, multa pecora habet, multum
lanae, caput praeterea durum, frontem expudoratam, cornum acutum. Plurimi
hoc signo scolastici nascuntur et arietilli...”.
(‘Este céu, no qual doze deuses habitam, se converte em outros tantos signos, e
deste modo acontece áries. E qualquer um que nasça naquele signo, muitas
ovelhas possui, muito de lã, além de uma cabeça dura, uma testa sem vergonha,
e chifre agudo. Muitos estudiosos e ovelhinhas nascem neste signo”.)
Encólpio ajuíza ironicamente estas palavras como “delicadeza de matemático”
(urbanitatem mathematici). Convencido talvez de que possuísse tal fineza Trimalcião
explica a simbologia de cada signo:
“Deinde totus caelus taurulus fit. Itaque tunc calcitrosi nascuntur et bubulci et
qui se ipsi pascunt. In geminis autem nascuntur bigae et boves et colei et qui
utrosque parietis linunt. In cancro ego natus sum: ideo multis pedibus sto, et in
mari et in terra multa possideo; nam câncer et hoc et illoc quadrat. Et ideo iam
dundum hihil super illum posui, ne genesim meam premerem. In leone
cataphagae nascuntur et imperiosi; in virgine mulieres et fugitivi et compediti;
in libra laniones et unguentarii et quicumque aliquid expedunt; in scorpione
venenarii et percussores: in sagitário strabones, qui holera spectant, lardum
tollunt; in capricorno aerumnosi, quibus prae mala sua cornua nascuntur; in
aquario copones et cucurbitae; in piscibus obsonatores et rhetores. Sic orbis
vertitur tanquam mola, et semper aliquid mali facit, ut homines aut nascuntur
aut pereant Quod autem in médio caespitem videtis et super caespitem favuum,
150
nihil sine ratonem facio. Terra mater est in médio quasi ovum corrotundata, et
omnia bona in se habet tanquam fauus”.
(Depois todo céu se faz taurino. E então nascem os recalcitrantes, os vaqueiros e
os que apascentam a si próprios. Em gêmeos nascem os bois de biga, e os
testículos que lixam os dois lados da parede. Em câncer eu nasci; por isso me
estabeleço com muitos pés, possuo muita coisa no mar e na terra; pois o
caranguejo adapta-se a ambos. E é por isso que por enquanto nada pus sobre ele
para que eu não pese sobre minha prole. Em leão nascem os glutões e os
mandões; em virgem as esposas, os fugitivos e os confinados; em libra os
carniceiros e os perfumistas e qualquer um que negocie qualquer coisa; em
escorpião invenenadores e perseguidores; em sagitário, os invejossos que olham
os legumes, mas levam o toucinho; em capricórnio os desgraçados nos quais
nascem cornos diante do sofrimento; em aquário os taberneiros e os cabeçudos;
em peixes, os contadores e os oradores. Assim gira o orbe tanto quanto um
moinho, e sempre algo de mal acontece, para que os homens nasçam ou
pereçam” Todavia, vejam um tufo no meio e sobre o tufo um favo. Nada faço
sem propósito. A Terra-Mãe esta no meio, redonda como um ovo, e todas as
coisas boas possui em si, como o favo)
O sábio Trimalcião ao dizer essas palavras é aclamado por todos e é colocado
acima de Hiparco e Arato. Com esse sábio discurso de Trimalcião os exemplos desta
sessão se encerram. Certamente há ainda muitos acontecimentos nesta extraordinária festa.
Novos pratos, mais dulces fabulae, mais baixarias, mais deboches, Trimalcião chega
mesmo a encenar seu próprio enterrro causando um grande alvoroço e é quando
conseguem fugir (Cap. LXXVIII):
“Nos occasionem opportunissimam nacti Agamemnoni verba dedimus, raptimque
tam plane quam ex incêndio fugimus”.
(“Nos encontramos a ocasião mais oportuna, nos despedimos de Agamenon e
rapidamente fugimos de forma tão perfeita, tal como se foge de um incêndio.”)
A terceira parte do Satiricon nos oferece condições para uma melhor compreensão
dos contrastes qua oscilam em sua trama. O encontro de Encólpio e Eumolpo de certa
forma justifica todo nosso trabalho, que foi tentar penetrar no âmago do contexto de sua
própria realização. Foram as observações de Eumolpo que tentamos parafrasear ao longo
desta pesquisa. Eumolpo descreve a crise estético-ideológica do realismo helênico e aponta
suas causas. No entanto é um homem cheio de vícios com o qual ironicmente Encólpio
deseja aprender.
Tendo conseguido êxito na fuga apesar da embriaguez e da falta de luz eles
chegaram ao albergue por causa de um ardil de Gitão (Cap. LXXVIII) Depois de tal prova
151
na ceia de Trimalcião, no albergue, o fôlego romanesco é retomado, dá-se uma espécie de
descanso do herói, expreso de forma lírica com a inscrição desses versos:
“Qualis nox fuit illa, di deaeque,
Quam mollis torus! Haesimus calentes
et transfudimus hinc et hinc labellis
errantes animas. Valete, curae
Mortales. Ego sic perire coepi.”
(“Que noite aquela, deuses e deusas,
Que cama suave! Unimo-nos ardentes
E transfundimo pelos lábios de ambos
As almas errantes. Adeus, cuidados
Mortais. Eu comecei a perecer”.)
Os versos imitam melhor o caráter idílico do intercurso amoroso entre Encolpio e
Gitão. Entretanto, com a extrema rapidez do ritmo narrativo do Satiricon, logo é desfeita a
fantasia construída nesses versos. Pois imediatamente Ascilto retoma o seu papel de
antagonista e leva sorrateiramente (subduxit) Gitão para o seu leito. Este fato leva à nova
separação de Encólpio e Ascilto. Finalmente parece que aquele que era o motivo de
competição entre eles, Gitão, havia se decidido por Ascilto. Como personagem romanesco
Encólpio vai se sentir duplamente traído e decepcionado e tal estado descreve com esses
versos:
Nomen amicitiae, sic, quatenus expedit, haeret;
Calculus in tabula mobile ducit opus.
Dum fortuna manet, uultum seruatis, amici,
cum cecidit, turpi vertitis ora fuga.
Grex agit in scaena mimum; pater ille vocatur,
Filius hic, nomen divitis ille tenet.
Mox ubi ridendas inclusit pagina partes,
Uera redit fácies, adsimulata perit”.
(O nome da amizade, pois, mesmo quando liberta, prende;
A peça no tabuleiro móvel conduz a partida.
Enquanto a fortuna permanece, conservais a presença, amigos,
152
Quando (a fortuna) some, converteis em fuga a consideração do infeliz
A trupe encena um mimo no palco; aquele é chamado pai,
Este, filho, aquele tem o nomede rico.
Logo que ali na página concluem-se as partes sorridentes
A verdadeira face retorna, a dissimulada desaparece.
Encólpio ficou só, abandonado num albergue daquela cidade grega (urbis
Graecae). Novamente em um monólogo Encólpio personagem introduzido pelo Encólpio
narrador, lamenta sua sorte e revela o que pensa de Ascilto e Gitão com esse discurso
patético e deliberadamente piegas:
“Ergo me non ruina terra potuit haurire? Non iratum etiam innocentibus mare ?
Effugi iudicium, harenae imposui, hospitem occidi, ut inter audaciae nomina
mendicus, exul, in deversorio Graecae urbis iacerem desertus? Et quis hanc mihi
solitudinem imposuit? Adulescens omni libidine impurus et sua quoque
confessione dignus exílio, stupro liber, stupro ingenuus, cuius anni ad tesseram
venierunt, quem tanquam puellam conduxit etiam qui virum putavit. Quid ille
alter? Qui tanquam die togae uirilis stolam sumpsit, qui ne uir esset a matre
persuasus est, qui opus mulibre in ergastulo fecit, qui postquam conturbauit et
libidinis suae solum vertit, reliquit veteris amicitiae nomen et – pro pudor –
tanquam mulier secutuleia unius noctis tactu omnia vendidit. Iacent nunc
amatores obligati noctibus totis, et forsitan mutuis libidinibus attriti derident
solitudinem meam. Sed non impune. Nam aut uir ego liberque non sum, aut noxio
sanguine parentabo iniuriae meae”.
(“Por que a terra arruinada não pôde me tragar? Nem também o irado mar para os
inocentes? Fugi da justiça, sobrepujei a arena, matei um hóspede, para que eu
mendigo, exilado entre palavras de ousadia, jazesse abandonado no albergue de
uma cidade Grega? E quem impôs a mim esta solidão? Um adolescente maculado
por toda volúpia e também, por sua própria confissão, digno de exílio, liberado
pelo estupro, liberado com o estupro, cujos anos vieram em senha, que alguém
levou como mulher sbendo-o homem. E o outro? Que no dia da toga viril preferiu
a estola. Que foi persuadido pela mãe para que não fosse homem, que fez função
de mulher na prisão de escravos, que depois caiu em desgraça e se entrega sozinho
a própria libido, abandonando o compromisso de velha amizade e – ó verginha –
como uma mulher venal vendeu tudo pelo prazer de uma única noite.. Os amantes
agora deitam junto todas as noites e talvez consumidos por mútuo desejo zombem
de minha solidão. Mas não impunemente. Pois, vingarei com o sangue ruim à
minha injuria, ou homem e homem livre não sou.”)
Este discuro não deixa dúvida de que a paródia romanesca está a todo o momento
em busca do motivo satírico. Encólpio agora está só, não há mais o carrocel de imagens da
noite da ceia. Sua solidão é então motivo para uma reflexão sobre sua sorte e sobre seus
amigos traidores. Os dois responsáveis por aquela situação são dois celerados efeminados
tanto quanto ele. Depois de proferir aquelas palavras tem um acesso de ira que o leva às
153
ruas cingindo uma espada, sedento de sangue e morte, mas é desbancado por um tipo
beligerante notívago numa cena das mais hilariantes:
“Quid tu, inquit, commilito, ex qua legione es aut cuius centuria?”
(“Companheiro de armas, disse, o que há, de que legião és de quem é a centúria?” )
Encólpio inventa uma mentira e o soldado pergunta já o intimidando.
“Age ergo, inquit ille, in exercitu vestro phaecasiati milites ambulant?”
(“Ora essa, disse ele, no vosso exército os soldados andam calçados de branco?”)
Encólpio perdeu a espada, mas logo se conformou e ilustrou seu consolo com esses
versos portadores de uma útil sabedoria:
“Non bibit inter aquas, poma aut pendentia carpit
Tantalus infelix, quem sua vota premunt.
Divitis haec magni fácies erit, omnia aceruans
Qui timet et sicco concoquit ore famem”.
“ Não bebe entre as águas, nem colhe os frutos pendentes
O infeliz Tântalo, a quem os próprios desejos reprimem.
Essa será a face do rico poderoso, que tudo amontoa
Que teme e na boca seca cozinha a fome.”)
A adequação desse leitmotiv à estrutura da trama revela outra grande maestria do
misterioso autor que foi Petrônio. Nestes versos faz acreditar que a face do opulento será a
de Tântalo oprimido pelo próprio desejo, acumulando todas as coisas que teme digerindo a
fome na boca seca. Entretanto para Encólpio não seria muito oportuno acreditar na
sabedoria, porque a fortuna tem sua própria razão.
“Non multo oportet consilio credere, quia suam habet fortuna rationem”
(“Não é oportuno acreditar em conselho, porque a sorte tem sua própria razão”)
Finalmente no Cap. LXXXIII dá-se o encontro entre Encólpio e Eumolpo.
Enontraram-se numa pinacoteca, para onde Encólpio havia se dirigido, entre pinturas de
dois grandes mestres da Antigüidade Zeux e Apeles. Encólpio admira a verossimilhança
154
(extremitates imaginum ad similitudinem precisae) dos motivos mitológicos. Eis a sua
admiração :
“Hinc aquila ferebat caelo sublimis idaeum, illinc candidus Hylas repellebat
improbam Naiada. Damnabat Apollo noxias manus lyramque resolutam modo nato flore
honorabat.”
(“Aqui a águia sublime carrega o ideu paro o céu, ali o cândido Hilas rejeita a
perversa Náiade. Apolo condenava as mãos assassinas e ao mesmo tempo honrava a lira
relaxada com a flor recém-nascida.”)
Está nesta breve passagem o resumo de toda complexidade estético-ideológica do
realismo antigo. A apreciação de Encólpio (adoravi) representa o sentimento que o
realismo helênico deveria provocar. É tão real que parece vivo:
“ut crederes etiam animorum esse picturam”.
(“Que acreditarias que também a pintura fosse viva.”)
Por conta do sentimento que o arebata as reflexões de Encólpio vão cair sobre o
tema amoroso dessas pinturas, pois o amor também atinge os deuses, mas ele não deixa de
fazer a sua observação a respeito da verossimilhança que percebe nas pinturas. O
testemunho de Encólpio ao revelar o realismo das pinturas resume o arcabouço estético do
helenismo: com grande requinte (tanta subtilitate) as imagens da pintura provocam os
sentidos para a percepção de uma espiritualidade mais elevada, provocam na verdade uma
sensação estética mais profunda (animorum esse). Era esse o escopo das artes helênicas,
era essa sensação elevada que aparentemente suscitavam e isso era válido também para os
gêneros literários. A presença de obras de Zeux e Apeles naquela cidade grega e o registro
no Satiricon deve indicar a circularidade dos gêneros culturais helênicos naquela
semiosfera cosmopolita e o intercâmbio entre o centro e a periferia. Ali estão Diana
(
µονοχνηµον
)
14
, Zeus/Águia, Ganimedes, Hércules, Hilas, a Ninfa (Naida), Apolo,
Jacinto envolvidos em suas tramas amorosas veiculadas por filigranas que resistem ao
tempo.
O realismo helênico presentifica o mito, a fruição do seu requinte requer uma
contemplação e um desprendimento intelectual que não mais faziam parte da estrutra
mental do homem cosmopolita daquele contexto de profundo hibridismo românico-
14
Cf. Ernout (1950: 85)
155
helenístico. Encólpio é um homem “moderno” apesar de suficientemente instruído para
reconhecer o refinamento da pintura, não é capaz de se deixar envolver pelo encanto de
suas imagens, a não ser entremeando seus frívolos sentimentos com os motivos daquela
arte.
Coincidentemente após concluir suas reflexões avista Eumolpo entrando na
pinacoteca:
“Ecce autem, ego dum cum ventis litigo, intravit pinacothecam senex canus,
exercitati uultus et qui videretur nescio quid magnum prommitere, sed cultu non proinde
speciosus, ut facile apparet eum ex hac nota litteratorum esse, quos odisse divites solent”.
(“Eis que, todavia, enquanto brigo com o vento, um velho em cãs, de rosto rígido e
que parecia prometer não sei o que de grande, mas no trato na mesma proporção não
muito agradável, que facilmente revelava ele, a partir dessa imagem, ser um literata
daqueles que os ricos costumam odiar.”)
Este velho grisalho se aproxima e se apresenta como um poeta reconhecido pelos
seus prêmios. Conta uma história de cunho amoroso e licencioso (Caps. LXXXV-
LXXXVII) que reanima Encólpio que, reconhecendo de que se trata de um homem mais
experiente do que ele, interroga o poeta sobre as idades daqueles quadros, seus temas
obscuros e a causa da indolência contemporânea, ocasião em que as mais belas artes
perecem, entre elas a pintura que não deixou qualquer vestígio. Esta é a inquietação de
Encólpio. Eumolpo por sua vez responde sem rodeios:
“Pecuniae, inquit, cupiditas haec tropica instituit.”
(“O desejo por dinheiro, disse, instituiu essas mudanças.”)
A resposta de Emolpo deixa evidente a crise moral e estética na qual mergulhou o
mundo helenístico. Sua nostalgia é análoga à de Agamenon, mas o poeta remonta aos
tempos antigos quando a imaculada virtude ainda reinava, quando as artes nobres
(ingenuae) eram motivos de disputa entre homens e tudo eles deixavam abertamente à
posteridade. Essse é um lugar comum que para nós ilustra nossas tentativas de
compreender as tranformações do gosto antigo. Fica claro que algo realmente aconteceu,
que o espírito dessa arte se corrompeu e a resposta seca de Eumolpo poderia justificar
alguns aspectos, mas não todos.
156
Eumolpo é um poeta, portanto se credencia a falar de arte e de gosto artístico, mas
ele é também mais um dos personagens do Satiricon cuja honra está sempre maculada pelo
vício e pela trapaça. Com a leitura do Satiricon experimentamos a mesma sensação que
talvez pertença aos indivíduos daquele mundo que ele indubitavelmente retrata, sensação
muito similar a que sentimos quando nos deparamos com a arte e os gêneros culturais que
caracterizam abundantemente as sociedades modernas. A degradação das letras na
antiguidade greco-romana acomapanhou a degradação da fantasia helênica, o complexo
semiológico que mesmo extremamente deturpado dava sentido a vida daqueles indivíduos
que cegamente passaram a cultivar algo que não conheciam e que estava muito distante de
suas experiências concretas.
Eumolpo em sua resposta fala de arte e religião, ambas corrompidas pela luxúria e
cupidez. Eumolpo é o porta-voz do conflito que se alojou no âmago do mundo antigo, pelo
menos até o aparecimento do Satiricon. O realismo satírico apanhou bem esse conflito e o
codificou da maneira mais adequada para que também pudesse abrir-se à posteridade
possível. Está claro para nós que o romance tornou-se um gênero de sucesso
principalmente porque dialogou com sua época, principalmente porque respondeu aos
reclames estéticos e ideológicos de sua época encerrando-se para sempre em sua polêmica
intrínseca.
Encólpio, Eumolpo e Gitão ainda participarão de muitas peripécias. Na fuga dessa
cidade por via marítima, sofrem um naufrágio e chegam à Crotona, cidade onde forjarão
um golpe e onde Encólpio vive seu drama como um conquistador perseguido por Príapo.
A nossa análise termina aqui porque foi nosso interesse ilustrar nossas conjecturas
com algumas passagens que esclarecessem as estratégias adotadas pelo autor para
consolidar obra tão monumental em termos de significação histórica lingüística e social.
CONCLUSÃO
158
CONCLUSÃO
A soma dos esforços envidados para concluir este trabalho constituiu-se no
aprendizado de uma prática de pesquisa que reconhecemos requer ainda muitos ensaios
para que chegue ao seu formato ideal: o de fornecer informações precisas sobre um gênero
cujo formato original é uma incógnita. Entretanto, trilhando rumos já seguidos e ponteando
aqui e ali observações e questões acerca das causas histórico-pragmáticas de sua realização
social, que ainda precisavam ser levantadas; acreditamos ter lançado não só uma nova luz
sobre a problemática que envolve o Satiricon, como também acreditamos ter desenvolvido
mesmo que rudimentarmente uma teoria pragmática dos gêneros literários que se alicerça
em observações enfocadas sobre o complexo das tensões estético-ideológicas que devem
estar na origem das criações humanas com todo seu aparato de gêneros culturais.
O romance antigo surgiu como resultante das tensões estético-ideológicas que o
helenismo enfrentou, primeiro no seio da própria Hélade e depois com o esfacelamento
desta e através da campanha vitoriosa de Alexandre - nas ultrapassadas monarquias
orientais dos persas, sírios, palestinos, egípcios, hindus (bárbaros do ponto de vista
helênico). Foi com essa primeira grande fusão entre as fantasias helênicas e as fantasias
dos povos orientais que se inaugurou de fato uma nova era de monarquias helenísticas.
Todavia, mesmo tendo esvaziado seu conteúdo essencial, o espírito do helenismo e
da pólis democrática foi mantido com a perpetuação dos seus gêneros. Esse espírito teria
sofrido um grande golpe que teria sido desferido pela tragédia realista de Eurípides e pelo
realismo da Comédia Ática e da filosofia. Depois de Atenas, Alexandria passou a ser o
núcleo de uma grande concentração de esforços para recuperar os gêneros e a partir deles
fazer renascer por força de um novo engenho a mesma arte helênica e seus mestres. As
atividades artísticas, literárias e filosóficas não vão cessar, na verdade, ganharão um novo
fôlego. Seria esse o primeiro renascimento dos gêneros helênicos cuja ponte com o mundo
helenístico foi sem dúvida construída por Menandro e Aristóteles.
Todavia o espírito grego e suas formas carregadas de beleza e conteúdo, já haviam
sofrido uma profunda transformação na sua essência e já haviam dado lugar a um espírito
novo cujo fundador, segundo Lukács (2000: 31), teria sido Platão:
159
Esse é o mundo da filosofia grega, mas tal pensamento surgiu apenas
quando a substância já começava a desvanecer-se. Se a rigor não existe
uma estética grega, pois a metafísica antecipou todo o estético, também
não há na Grécia nenhuma contraposição rigorosa entre história e
filosofia da história: os gregos percorrem na própria história todos os
estágios correspondentes às grandes formas a priori; sua história da arte
é uma estética metafísico-genética; sua evolução cultural, uma filosofia
da história. Nesse processo ocorre a evasão da substância: da absoluta
imanência à vida, em Homero, à absoluta, porém tangível e palpável,
transcendência em Platão; e seus estágios , clara e precisamente distintos
entre si (aqui o helenismo não conhece transições), nos quais se sentido
assentou-se como em eternos hieróglifos, são as grandes formas
intemporalmente paradigmáticas da configuração do mundo: epopéia,
tragédia e filosofia.
Para Nietzsche (2005: 83) também havia ocorrido algo similar a esta “evasão
substancial”, os gêneros (épicos e líricos) haviam morrido calmamente porque haviam
envelhecido, mas a tragédia particularmente cometera um ruidoso suicídio. Com a morte
da tragédia morre o espírito essencial do helenismo: “Com a morte da tragédia surgiu (...)
um vazio monstruoso e profundamente sentido por todos” (Nietzche 2005: 84). Teria sido
Eurípides um dos grandes responsáveis por esse aniquilamento, por ter rebaixado os heróis
e os deuses submetendo-os a uma dogmática realidade, como elucida o filósofo alemão:
Quem tenha reconhecido de que matéria os prometeicos autores trágicos,
anteriores a Eurípides, modelavam os seus heróis e quão distante deles estava a
intenção de trazerem para o palco a máscara fiel da realidade, ficará também
esclarecido acerca da tendência totalmente divergente de Eurípides. Através
deste o homem da vida quotidiana saiu dos espaços reservados ao espectador
para entrar em cena, e o espelho, no qual anteriormente só ganhavam expressão
os lances grandes e ousados, mostrava agora aquela melindrosa fidelidade que
também reproduz escrupulosamente as linhas defeituosas da natureza (Nietzsche
2005: 85).
Para Nietzsche um outro responsável foi Sócrates por ter se unido a Eurípides e
criado uma oposição aos deuses a partir dos quais o simbolismo da tragédia se sustentava:
“Também Eurípides era, num certo sentido, apenas máscara: a divindade que falava através
dele não era Dionísio, nem tampouco Apolo, mas um demônio recém-nascido chamado
Sócrates.”
Apolo e Dionísio resumem para Nietzsche a força criativa e espiritual do mundo
antigo. Força criativa que fundiria a mística desses dois deuses díspares durante o tempo
em que Ésquilo e Sófocles encenaram seus dramas e conquistaram prêmios. Esses autores
não tinham a preocupação de esclarecer as tensões entre a fantasia e a realidade, mas
mergulhados em ambas, sua arte tinha a preocupação de fazer enunciar o coro, os heróis,
160
os deuses colocados sob máscaras como parte da estrutura de um grandioso espetáculo,
assim teriam criado o verdadeiro espírito da tragédia. Mas esse espírito sofreria grande
oposição durante a própria vigência do apogeu helênico. Eurípides e Sócrates teriam sido,
segundo Nietzsche, os detratores do espírito da tragédia. Eurípides com seu realismo foi o
primeiro a perturbar o arcabouço estético-ideológico da tragédia e conseguiu, ajudado por
Sócrates, subtrair desse gênero sua força apolíneo-dionisíaca.
Lukács e Nietzsche reconhecem - um pela evolução da imanência homérica à
transcendência platônica, outro pela oposição entre a visão mística (apolíneo-dionisíaca) e
a visão proto-iluminista de Sócrates - a criação de um realismo que passou a dominar o
gosto dos indivíduos que como Eurípides seguiam a lei suprema do que Nietzsche chamou
de socratismo estético (2005: 95): “Tudo tem de ser inteligível para ser belo”. Esta lei se
não foi a lei suprema desse eloqüente realismo foi, sem dúvida, a senha para deflagrar o
que passamos a chamar de realismo helenístico. Sobre esse ponto Lukács tem razão em
acreditar que o herói da tragédia sucede o herói essencial de Homero que com seu
aniquilamento gera um novo homem que ele chama de platônico e que sem dúvida vai
corresponder ao homem helenístico:
A elucidação das questões que condicionam e sustentam a visão platônica não
rendeu novos frutos: o mundo tornou-se grego no decorrer dos tempos, mas o
espírito grego, nesse sentido, cada vez menos grego; ele criou novos problemas
imperecíveis (e também novas soluções), porém o mais propriamente grego do
τοποσ νοητοσ (lugar do espírito) perdeu-se para sempre. E a senha do espírito
vindouro, recém-fatídico, é um despropósito para os gregos (2000: 33).
No mundo helenístico dominado por príncipes e evergetas da Sicília a Pérsia, a
erudição passou a ditar as regras de um novo realismo. A ruptura política entre a pólis
grega e a kosmopólis Alexandrina não significou uma ruptura estético-ideológica. A
Biblioteca de Alexandria e a ação dos eruditos garantiriam a recuperação dos gêneros mais
antigos, ao mesmo tempo criariam condições para que surgissem novos gêneros e que
emergissem outros que antes eram desconsiderados. Esses gêneros emergentes são
resultado da co-enunciação dos gêneros helênicos que passaram a servir de modelo para
essa nova mímesis.
Uma obra como o Satiricon parece que não foge a estas regras, surge como resposta
ao gosto que se desenvolveu e impregnou as criações artísticas, literárias e filosóficas.
Quando os romanos entraram em cena procuraram se apropriar desse sistema de fantasias
161
que aos poucos passaria a justificar a sua política cruel e ambiciosa para subjugar os outros
povos. Talvez os romanos tenham sido os maiores admiradores da obra helênica, de sua
épica, de seu drama, de sua filosofia, mas só a conheceram a partir das releituras do
helenismo alexandrino. Por isso, apesar de fazerem perdurar seu domínio de maneira
angustiante arrastando-o até o século V, os romanos nada puderam fazer para evitar que, o
mundo antigo alimentado pela fantasia cuja primeira grande expressão fora a epopéia e
cuja consagração fora a tragédia, sobrevivesse ao seu próprio desgaste.
O Satiricon é uma evidência da evolução do realismo, que surgiu com a morte da
tragédia. É principalmente uma mostra clara de que a sociedade antiga havia saturado suas
fantasias. O culto aos sentimentos mais nobres que Homero forjou nas figuras de Aquiles e
de Ulisses e que os trágicos transformaram em experiência concreta através de seus versos
e de seus personagens ganhou uma nova dimensão no mundo helenístico e no mundo
românico-helenístico. O homem do Satiricon, tão distante e tão perto da essência desse
espírito e sem condições de ir além dos problemas retóricos, filosóficos e pseudocientíficos
que a ele se apresentavam, desenvolveu uma arte tosca e criou um estilo de vida ambíguo
que nem de longe se aproximaram daquele sistema que sob a liderança de Atenas ficou
marcado pela plena fruição da beleza artística e pelo conteúdo elevado dos seus gêneros
culturais.
A queixa de Nietzsche contra Sócrates ecoa ainda hoje porque ela se reveste de um
tom restaurador no momento em que as tensões ideológicas de modo algum demandam
gêneros de elevado conteúdo. Observamos que os assassinos da verdadeira arte posam
como verdadeiros artistas e criam gêneros dominados pelo “demônio” de uma crítica
forjada sob a ruína do mundo judaico-cristão europeu. Essa gigantesca fantasia passou a
ser chamada de modernidade. Semelhante ao realismo helenístico o realismo moderno tem
forjado gêneros cada vez mais híbridos, cada vez mais inócuos e condicionados a uma
demanda estético-ideológica cada vez mais inconclusa e aparentemente infinita.
A literatura sobrevive a essa loucura sob a forma de gêneros cada vez menos
literários. A ironia da arte, da filosofia e da literatura modernas é que nessas realizações do
gênero humano sobrevive apenas o espírito desajeitado da transgressão ou da perversão. O
Satiricon parece encerrar em suas enunciações essa mesma ironia, não há ali qualquer
herança do espírito da Hélade, mas há uma forma remanescente, um significante que é
apenas a sombra vazia de um signo que nasceu e morreu em um espaço extremamente
162
encerrado sobre si mesmo. O Satiricon é a prova evidente da estranha degeneração pela
qual passou a fantasia triunfante dos gregos.
Os gêneros antigos, entre eles o romance, são formidáveis instrumentos de
perpetuação da Memória (mãe das Musas) que se confunde com o espírito da criação
divina. Eles nasceram por força de uma necessidade suprema de conservação do espírito
essencial cuja eternidade teria afetado a vida psíquica do homem antigo na sua condição de
ser mortal. A sensação da imortalidade sempre encantou o homem antigo e parece ter sido
uma sensação que lhe causava imenso prazer. Os gêneros helênicos são significativos
indícios desse prazer elevado. Mas os gêneros helenísticos indicam (e parece que já desde
Eurípides) que os prazeres mundanos tornaram-se bem mais atraentes. Os ricos mecenas e
evergetas, como Trimalcião são os grandes patrocinadores de tais prazeres. As queixas de
Agamenon e Eumolpo se referem exatamente à perda dessa memória e ao seu
ofuscamento.
O vício se confunde com a virtude, o mau gosto com o refinamento, o despotismo
com a benevolência. Assim é o Satiricon e para captar a verossimilhança deste hibridismo,
assim evoluiu o realismo antigo. Sob a motivação estético-ideológica da verossimilhança,
ele descobriu o prazer de encontrar na frivolidade e na torpeza humana algo de proveitoso
e demasiadamente estético, ou seja, a sátira. Há uma sutil crueldade em autores como
Petrônio, o demônio de Sócrates o domina como dominou Eurípides.
O interlocutor do Encólpio narrador quer se entreter com os aspectos mais visíveis
do rebaixamento da fantasia helênica, o que lhe atrai é o efeito realista das palavras de
Encólpio que teria deixado no canto da boca de Eurípides um sorriso triunfante. Todavia
foi Aristófanes quem deu a Eurípides a resposta que, revestida por uma sutileza artística,
teria contagiado os romanos inventores da sátira.
A mímesis da comédia revelava o ridículo dos defeitos humanos e o Satiricon
revela a graça de um mundo cheio de defeitos. Os indivíduos, entre eles os escritores, tudo
faziam para usufruir os benefícios do convívio com mecenas e evergetas. A eternidade
absoluta cuja mímesis perfeita teria sido formulada pelos gêneros helênicos se confunde
com as horas ociosas em torno da mesa de homens muito ricos e poderosos, cuja mímesis
perfeita teria sido formulada pelo Satiricon.
O Satiricon revela esta tensão de forma extremamente realista, talvez por isso, e
mesmo na forma de escassos fragmentos, conseguiu sobreviver à implacável ação do
163
tempo. O Satiricon, sem dúvida teve êxito, comprova-o a sua perpetuação, mas ele teve
que passar por grandes áreas de tensão estético-ideológicas. Os fragmentos passaram
séculos para chegar até nós, amplamente examinados, rigorosamente codificados e
metodicamente reintegrados. A partir de uma pequena, mas significativa parcela deste
material, propusemo-nos a tarefa de tentar compreender a ascensão, é certo que ainda não
muito clara, de um gênero que pelo seu caráter só poderia interessar a uma comunidade de
leitores extremamente capaz de reconhecer a falência dos ideais homéricos e
vertiginosamente aceitar a decadência desse mundo como um encontro consigo mesmo.
Não há como negar o arrojo e a perfeição com que Encólpio narra para seu curioso
ouvinte. O realismo moderno cujo veículo mais evidente é o romance (e suas variantes no
cinema e na televisão) deve muito a esse realismo satírico que não deixa de fora os
elementos sem os quais a verdadeira realidade fica obscura. O realismo moderno alimenta
uma fantasia que sente prazer na sensação da efemeridade da alma e dos objetos. Ajuda na
aceitação da frivolidade que predomina na configuração dos gêneros culturais que, por sua
vez, pronunciam a carência de essência e substância. O romance antigo difere do romance
moderno porque a problematização da realidade feita pelos antigos tinha sempre ao fundo
aquela cópia fiel do mito observada por Encólpio na pinacoteca. Na modernidade não há
mitos que sirvam de fundo para o artista, a não ser o mito imanente do próprio eu. E assim
assegurado pela força simbólica de sua personalidade excêntrica, o artista moderno cria e o
público moderno, na sua dispersão, procura apenas usufruir dessa excentricidade criativa.
Todavia o romance antigo antecipou um gesto que só agora pode ser melhor
reconhecido, encarou as tensões estético-ideológicas que lhes eram desfavoráveis e
encontrou o seu lugar de êxito. Em nossas mãos ele volta a ser enunciado não como uma
obra clássica sui generis, mas como uma fonte riquíssima de indagações sobre a evolução
dos gêneros antigos e sobre as tensões estético-ideológicas que desde o despertar do
realismo helênico têm provocado essa evolução.
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