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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE NO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: DINÂMICAS SOCIAIS, PRÁTICAS CULTURAIS E
REPRESENTAÇÕES
CRIANÇAS DE PAPEL:
a infância nos quadrinhos de Maurício de Sousa
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes
Natal/RN
2008
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1
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes
CRIANÇAS DE PAPEL:
a infância nos quadrinhos de Maurício de Sousa
Tese apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais,
da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais.
Área de Concentração: Dinâmicas
sociais, práticas culturais e
representações.
Orientadora: Profa. Dra. Julie
Antoinette Cavignac.
Natal/RN
2008
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2
Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Biblioteca Setorial Especializada do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
(CCHLA).
NNBSCCHLA.
Mendes, Marcilia Luzia Gomes da Costa.
Crianças de papel : a infância nos quadrinhos de Mauricio de Sousa /
Marcilia Luzia Gomes da Costa Mendes. – Natal, RN, 2008.
179 f. : il. color.
Orientadora: Profª.
Drª. Julie Antoinette Cavignac.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais. Área de Concentração: Dinâmicas Sociais,
Práticas Culturais e Representações.
1. Infância – Tese. 2. Análise do discurso – Tese. 3. Quadrinhos – Sousa,
Maurício de - Tese. 4. Interdiscurso – Tese. I. Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. II. Cavignac, Julie Antoinette. III. Título.
RN/BSE-CCHLA CDU 316. 346.32-053.2
3
A tese intitulada Crianças de papel: a infância nos quadrinhos de Maurício de Sousa,
defendida em 25 de junho de 2008 pela doutoranda Marcilia Luzia Gomes da Costa
Mendes, foi aprovada pela banca examinadora constituída pelos professores:
___________________________________________________________
Profa. Dra. Julie Antoinette Cavignac (UFRN)
Orientadora
___________________________________________________________
Profa. Dra. Florence Marie Dravet (UNICEUB)
Examinadora Externa
___________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Paulo da Silva (UERN)
Examinador Externo
___________________________________________________________
Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas (UFRN)
Examinador Interno
___________________________________________________________
Profa. Dra.
Ana Laudelina Ferreira Gomes (UFRN)
Examinadora Interna
___________________________________________________________
Prof. Dr. José Evangelista Fagundes (UERN)
Suplente Externo
___________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Lúcia Bastos Alves (UFRN)
Suplente Interno
4
A produção de um trabalho acadêmico é uma atividade que conta com vários estímulos e
sugestões. Esta tese não teria sido produzida se não tivesse o apoio de instituições e pessoas cuja
contribuição foi determinante no seu processo de construção. Sem elas, a caminhada teria sido mais
árdua. Nesse sentido, agradeço àqueles que participaram da sua concretização:
Às instituições de ensino, pesquisa e extensão, Universidade Federal do Rio Grande do Norte
e Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Agradeço especialmente à minha orientadora, professora Julie Antoinette Cavignac, por me
ter acolhido como orientanda em um momento cruciaI da minha vida acadêmica e pessoal, assim
como pelo respeito e estímulo às minhas escolhas e autonomia. Obrigada por tudo, pela confiança,
pelo estímulo e pela compreensão, determinantes para o acabamento da tese.
À professora Rosângela Francischini e ao professor e amigo Alípio de Sousa Filho pelas
valiosas sugestões, que ajudaram a iluminar mais ainda os caminhos teórico-metodológicos
escolhidos para a tese.
Aos professores,
Florence Marie, Francisco Paulo, Alexsandro Galeno, Ana Laudelina, por
terem aceitado o convite para participarem da Banca Examinadora e pelas contribuições que com
certeza serão úteis para a continuidade do estudo sobre a temática.
Aos colegas Ricardo Silveira e Veruska Sayonara do DECOM-UERN, pelo constante
incentivo.
A Marconi, pela convivência amiga durante o doutorado.
A José Evangelista, pelos conselhos precisos e ajuda fundamental na procura de orientação
para a tese.
A Edmilson Lopes, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, pela
compreensão nos momentos de dificuldades acadêmicas.
Aos funcionários do Programa de Pós-gradução em Ciências Sociais, Otânio e Geraldo, pela
presteza que sempre atenderem às minhas solicitações.
Quero externar também a minha profunda gratidão a todos que, mesmo não tendo os seus
nomes aqui citados, contribuíram para a realização da pesquisa.
À minha querida família, minha mãe, meu pai pelos valores que me ensinaram ao longo da
vida, ao meu irmão e sobrinhos.
À minha filha Marcella, pelos diversos olhares sobre o trabalho.
A Eduardo, pelo apoio sempre presente na busca de realização de mais um projeto de vida.
Finalmente, minha gratidão àquela que assumiu o papel de revisora desta tese, mesmo com
sua atribulada vida profissional, apontando com competência os “deslizes” da autora no texto.
Obrigada, Rosinha.
5
RESUMO
Pesquisa de natureza qualitativa e interpretativa sobre a concepção de infância
retratada nos quadrinhos de Maurício de Sousa. Para o estudo, elege-se como
objetivo principal: investigar a concepção de infância nos quadrinhos mauricianos a
partir das relações discursivas das cinco protagonistas, Cebolinha, Mônica, Cascão,
Chico Bento e Magali, considerando-se os três eixos temáticos: família, escola,
brincadeira e amizade. A delimitação desses eixos se dá porque eles representam
instâncias de socialização da criança, o que possibilita a identificação da concepção
de infância presente nesses quadrinhos. Para a compreensão dos efeitos de sentido
que emergem dos dados, utilizam-se os recursos da Análise de Discurso de
orientação francesa. Os resultados apontam para uma concepção de infância em que
a criança é um sujeito de direitos, valorizando assim o papel da criança na sociedade.
Palavras-chave: Infância. Quadrinhos. Análise de discurso. Interdiscurso.
6
RÉSUMÉ
La recherche porte sur la conception de l’enfance dans les bandes dessinées de
Maurício de Sousa. Pour l’étude, on a élu comme objectif principal la recherche de la
conception de l’enfance dans les bandes dessinées de Maurice de Sousa à partir des
relations discursives des cinq protagonistes: Cebolinha, Mônica, Cascão, Chico Bento
e Magali, considérant les trois axes thématiques que sont la famille, l’école, les jeux et
l’amitié. Nous avons délimité ces axes car ils représentent les instances de
socialisation de l’enfant, ce qui rend possibile l’identification de la conception de
l’enfance dans ces bandes dessinées. Pour que la compréhension des effets de sens
qui émerge des faits soit possible, on a utilisé les recours de l’Analyse du discours
d’orientation française. Les résultats montrent une conception de l’enfance où l’enfant
est un sujet de droits, valorisant ainsi le rôle de l’enfant dans la société.
Mots-clé: Enfance. Bandes dessinées. Analyse de discours. Inter-discours.
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO: o objeto de estudo, os sujeitos e as estratégias
investigativas, 8
1.1 A escolha do objeto, 10
1.2 O porquê de Maurício de Sousa, 11
1.3 O universo quadrinizado de Maurício de Sousa, 12
1.4 As cinco grandes personagens, 14
1.5 As estratégias investigativas, 20
1.6 A opção teórico-metodológica pela AD, 31
1.7 A contribuição teórica de Michel Foucault para a AD, 33
1.8 Discurso e memória, 36
1.9 Discursos sobre a infância: preliminares, 37
1.10 Organização da pesquisa, 38
2 IMAGENS DA FAMÍLIA, 41
2. 1 A figura do pai, 48
2. 2 A figura da mãe, 56
2. 3 O relacionamento entre os pais e os filhos, 63
2. 4 A casa, 71
2. 5 O relacionamento entre os pais, 73
2. 6 O relacionamento entre os filhos, 74
2. 7 Os avós e outros parentes, 78
2. 8 A família desenhada por Maurício de Sousa, 80
8
3 ESCOLA E SOCIEDADE: o itinerário educacional de Chico Bento, 84
3.1 O papel da escola, 99
3.2 A professora, 106
3.3 Os alunos, 110
3.4 O relacionamento entre a professora e os alunos, 115
3.5 O papel da escola de papel, 118
4 BRINCADEIRAS E AMIZADE COMO ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA
“CULTURA DA INFÂNCIA”, 124
4.1 O brinquedo: a expressão de imagens, 133
4.2 A amizade: conflito e solidariedade, 147
4.3 A brincadeira e a amizade e sua relação com a socialização da criança, 152
5 MAIS UMA VEZ: entrelaçando dados e teoria, 154
5.1 A família: efeitos da enunciabilidade, 156
5.2 Trabalho discursivo do sujeito: a inscrição da autoria na materialidade dos
quadros, 161
5.3 Escola e interdiscursividade, 165
5.4 As brincadeiras e as amizades: relações de sociabilidade entre pares, 168
REFERÊNCIAS, 171
9
1 INTRODUÇÃO: o objeto de estudo, os sujeitos e as estratégias
investigativas
Nosso interesse pelas histórias em quadrinhos iniciou-se desde a graduação,
passando pela pós-graduação e chegando até a fase profissional. A constatação da
relevância desse gênero para uma melhor compreensão dos discursos que circulam
socialmente nos levou a utilizá-lo como instrumento de ensino e como meio de
comunicação e interação, principalmente nas disciplinas Jornalismo, Política e
Ideologia, História da Comunicação e Teoria da Comunicação, na área de
Comunicação Social, em nossa prática docente na Universidade Potiguar (UnP) e na
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN).
Em nossa iniciação literária, esse gênero discursivo sempre se fez presente e
boa parte da nossa vida esteve entremeada por um dos mais fustigantes veículos da
produção seriada das mensagens: as histórias em quadrinhos. No momento em que
as tomamos como corpus para esta investigação, estamos também realizando um
daqueles saborosos reencontros com a infância, quando nos deliciávamos
percorrendo atentamente as estrepolias dos nossos heróis de papel. Esse reencontro,
contudo, mantém um outro nível de relação: quer apreender os sentidos que estão
sendo construídos através das mensagens quadrinizadas. Agora, nossos olhos não
são tão inocentes, mas, nem por isso, menos apaixonados.
A melhor conceituação para as histórias em quadrinhos está em sua própria
denominação: é uma história contada em quadros (vinhetas), ou seja, por meio de
imagens, com ou sem a utilização da linguagem verbal, embora na concepção geral
esta seja parte integrante do conjunto. Assim sendo, é uma narrativa constituída por
dois meios de interação distintos: o desenho e a linguagem verbal.
As histórias em quadrinhos também caracterizam-se pela preocupação dos
seus produtores com uma linguagem clara e acessível, sendo composta em um misto
de ícones e signos lingüísticos, o que lhes dá um lugar de destaque entre os gêneros
discursivos da área da comunicação. Nesse sentido, o discurso quadrinizado tem
criado hábitos, suscitado emoções, marcado época, representando um estímulo a
mais para o público leitor.
Ao longo de sua trajetória, passou de páginas semanais às tiras diárias. Após
extenso período de lutas, “enquadrinhou-se”, tornou-se as histórias em quadrinhos,
como as conhecemos atualmente, ou seja, construiu sua especificidade como um
10
fenômeno típico da indústria cultural, tecnicamente reproduzido em linha de
montagem, no sentido atribuído por Walter Benjamin (1982).
Como meio de comunicação universal, as histórias em quadrinhos atinge, a
princípio, pelo seu caráter de divertimento, principalmente, o público infanto-juvenil.
Característica que não deixa de implicar uma concepção ideológica que o autor
perpassa sutilmente, através das suas personagens e enredos.
Partindo dessa compreensão, elegemos os quadrinhos de Maurício de Sousa
para a investigação empírica, com o objetivo de identificar, no discurso quadrinizado,
as concepções de infância aí apontadas.
Para tanto, faz-se necessária uma discussão sobre a linguagem enquanto
prática social e discursiva, ou seja, a linguagem como discurso por meio do qual se
articulam aspectos históricos, sociais e culturais.
Na produção do discurso quadrinizado, observamos uma preocupação dos
autores com a utilização de uma linguagem clara, acessível, o que é demonstrado
por um domínio organizativo na união entre imagem e texto. Além dessa união, a
utilização de balões e onomatopéias são exemplos de recursos de linguagem
bastante específicos dos quadrinhos, que fora do âmbito destes perdem em
significado. Esses recursos são denominados por Eco (1987, p.145) “de convenções
semânticas das estórias em quadrinhos”. Sem dúvida, ao serem utilizados pelos
quadrinhos, seduzem, tanto pelas cores e desenhos, como também pelas imagens.
Dessa forma, a seqüência dos quadros, de tão bem elaborada, chega até mesmo a
dispensar o texto verbal. São as chamadas “histórias mudas”, nas quais só
aparecem imagens sem o texto. Esse seria mais um recurso discursivo, objetivando
a captura de um maior número de leitores (alfabetizados ou não), o que faz com que
esse gênero seja tão interativo.
Na análise das histórias, utilizamos os recursos da Análise de Discurso (AD),
que nos orientam na observação, análise e interpretação do discurso quadrinizado. A
opção pela AD deve-se à sua apreensão teórica não apenas dos processos verbais,
mas, principalmente, dos sociais, históricos, políticos e ideológicos em que os
discursos estão fundamentados.
Uma das principais características da AD é ser um dispositivo de análise que
possui uma ótica multidisciplinar. Seu escopo de investigação abrange a lingüística e
várias áreas das ciências humanas e sociais. Como uma forma de conhecimento
sistematizado, a AD está pautada sempre pela provisoriedade e aberta a freqüentes
11
revisões e avanços, uma vez que, dada a heterogeneidade constitutiva do seu
objeto, o discurso, ela está constantemente em um movimento dialógico com esses
campos do conhecimento, considerando que o discurso só pode ser apreendido em
seu contexto.
A AD tem um procedimento que requer um ir-e-vir permanente entre teoria,
consulta ao corpus e análise, recurso metodológico que permeia a nossa tese. É
necessário enfatizar que o objeto desta pesquisa é o discurso, entendido como a
inscrição do social na materialidade do texto.
Em linhas gerais, os pressupostos teóricos e metodológicos escolhidos aqui
estão condizentes com as orientações teóricas da AD e com um referencial sobre
discurso que se aproxima do pensamento foucaultiano.
1.1 A escolha do objeto
A escolha do objeto infância e quadrinhos impressos deve-se às diversas
possibilidades de pesquisa sobre os quadrinhos: quadrinhos e ideologia, quadrinhos
e semiótica, quadrinhos e cinema, quadrinhos e educação infantil, dentre tantas
outras, e por eles estarem no centro da preocupação de vários estudiosos que os
pesquisam como uma produção da indústria cultural; veículo de comunicação de
massa que atinge os mais variados públicos, de crianças até adultos, ricos e pobres.
Enxergamos também os quadrinhos como poderosos instrumentos nas mãos de
professores e educadores, que deles se utilizam como um recurso didático dentre os
demais.
A escolha em pesquisar a díade infância e quadrinhos é relevante também
pela lacuna existente na literatura especializada sobre infância e sobre quadrinhos
(impressos), uma discussão estabelecendo essa relação
1
.
Dentre os muitos autores brasileiros, elegemos Maurício de Sousa para a
investigação, pelo conjunto de sua obra: periodicidade (suas histórias estão no
mercado editorial brasileiro, sem interrupção há mais de 40 anos); diversidade e
popularidade de suas personagens que vão desde vampiros, bichos, índios, almas
1
Encontramos apenas um artigo, O conceito de infância no site da Turma da Mônica: um estudo
de caso da seção Diversão do site Turma da Mônica, de autoria de LEITE, Sílvia Meirelles,
apresentado no XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação promovido pela Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (INTERCOM) em setembro de 2001,
realizado na cidade de Campo Grande-MS. Esse artigo tem como objetivo analisar o conceito de
infância no site da Turma da Mônica, mais especificamente na seção Diversão.
12
penadas, crianças, adolescentes, até adultos; identidade das crianças com as
personagens (principalmente as personagens crianças e que possuem revistas
exclusivas); nacionalidade brasileira; enredos das histórias; participação de suas
personagens em campanhas educativas (divulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), educação no trânsito, combate às drogas, incentivo à leitura,
etc.).
Maurício de Sousa é o autor de quadrinhos mais bem-sucedido no Brasil. Há
mais de trinta anos suas revistas ocupam o topo das listas das mais vendidas no
mercado brasileiro. O autor também faz sucesso nos vários países onde suas revistas
são publicadas, como Itália, Estados Unidos, Japão, Indonésia, Portugal, Coréia do
Sul, Bélgica, Inglaterra, Suíça, Irlanda, Grécia e outros. Ilustrativo do seu sucesso é o
fato de o governo brasileiro, em 2002, por meio do Ministério do Desenvolvimento, ter
incluído o quadrinista numa propaganda de televisão que enaltecia a elevação dos
índices de exportação brasileiros. Um outro importante fator que respalda a escolha
desse autor é que em âmbito nacional suas revistas vendem mais do que as de Walt
Disney. As histórias em quadrinhos de Maurício dominam o mercado nacional. Em
janeiro de 1998, a circulação total de revistas Disney no Brasil era apenas quinze por
cento dos títulos de Maurício. A revista Meio&Mensagem (24/09/2001) publicou que
mensalmente são vendidos 400 mil exemplares das revistas Mônica, Cebolinha,
Magali, Cascão e Chico Bento
2
. Esse número atinge um milhão se forem incluídos
todos os produtos de Maurício de Sousa, como as revistas de passatempos e
atividades.
1.2 O universo quadrinizado de Maurício de Sousa
Maurício Araújo de Sousa nasceu no dia 27 de outubro de 1935, em Santa
Isabel, no interior do estado de São Paulo. Quando tinha cinco anos de idade viu uma
história em quadrinhos pela primeira vez. Até os seis anos, o autor tinha os gibis nas
mãos, mas ainda não sabia ler. Ficava, literalmente, admirando as figuras. Sua mãe,
ao perceber o grande interesse do garoto, às vezes interrompia os afazeres
domésticos para ler as histórias e, depois, usá-las para ensinar ao filho as primeiras
letras, seguidas das sílabas, das frases e assim por diante. Segundo o quadrinista,
2
Estabelecemos a seguinte convenção: negrito para o nome das séries ou revistas e itálico para os
nomes das personagens.
13
“naquele método clássico, ela me ensinou a ler”
3
(SOUSA apud GUSMAN, 2006,
p.14).
Logo que descobriu as histórias em quadrinhos, Maurício compreendeu que
não queria mais ser apenas um leitor. Queria fazê-las. Até se firmar como o autor de
quadrinhos mais bem-sucedido de nosso país, enfrentou diversas dificuldades: falta
de dinheiro e espaço para publicar os seus trabalhos, concorrência com os
quadrinhos estrangeiros, etc. Superando todos esses obstáculos, desde o final da
década de 1970, a “turminha” passou a liderar o ranking de vendas de quadrinhos,
posição que jamais abandonou desde então (GUSMAN, 2006).
Maurício de Sousa, além de ter conseguido a consagração de suas
personagens junto ao público leitor, construiu um verdadeiro império (aos moldes de
Walt Disney), a partir de suas criações quadrinizadas. Suas personagens são
elementos de merchandising (licença de utilização de imagens em produtos
comerciais), espalhados por inúmeros produtos no Brasil e no exterior. As criações de
Maurício de Sousa são encontradas em sabonetes, shampoos, sapatos, escovas de
dente, dentifrícios, extrato de tomate, toalhas, canetas, lápis, roupas, lancheiras,
brinquedos, entre outros. Os produtos que carregam a marca de Maurício de Sousa
vão desde brinquedos até produtos alimentícios.
O universo dos quadrinhos de Maurício de Sousa começa a formar-se em
1959 com o lançamento das personagens Bidu e Franjinha, continuando nos anos
1960 com a criação de várias outras tais como Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali,
Chico Bento e tantas outras que continuam encantando as crianças. Nesse universo,
encontramos uma grande quantidade de personagens que formam as turmas: Turma
da Mônica (as tramas se sucedem na cidade); Turma da Mata (as aventuras ocorrem
na floresta); Turma do Papa-Capim (uma criança índia que convive na mata com os
outros índios da tribo); Turma do Horácio (as aventuras ocorrem na pré-história);
Turma do Piteco (as histórias também se passam na pré-história); Turma do
Penadinho (o cemitério é o cenário das histórias sobre morte, alma penada,
lobisomens); Turma do Astronauta (freqüentemente, as histórias têm o espaço sideral
como ambiente) e a Turma do Chico Bento (as histórias acontecem no campo).
Recentemente, mais três personagens crianças juntaram-se às outras. São
elas: Dorinha (portadora de deficiência auditiva), Luca (portador de deficiência física)
3
Fala de Maurício extraída de GUSMAN, Sidney. Maurício quadrinho a quadrinho. São Paulo: Globo,
2006.
14
e Bloguinho, sendo este uma referência clara à influência da Internet e,
principalmente, à popularidade dos blogs junto ao público infanto-juvenil.
Não nos deteremos com maior atenção às outras personagens, apenas às
cinco principais presentes em duas turmas distintas: Turma da Mônica (Cebolinha,
Cascão, Magali e obviamente, Mônica), todos moradores do bairro do Limoeiro, e
Chico Bento, morador de um sítio, na zona rural.
Os personagens dos EMS
4
são divididos em grupos, cada um
responsável por um determinado todo ficcional, dentro de cada um
dos quais, por sua vez, ocorrem as histórias. Em sua maioria, esses
todos – ou como são denominados, “turmas” – estão, no entanto,
localizados no mesmo universo, o que pode ser evidenciado pelo fato
de se encontrarem, eventualmente (NATAL, 2005, p. 8. Grifo do
autor).
A obra de Maurício difere da de Disney (principal concorrente no Brasil). As
personagens mauricianas não são antropomorfizações de animais, e sim crianças
cartunizadas. Uma outra diferenciação entre a obra de Disney e a de Maurício é que
nas histórias da Turma da Mônica não há vilões fixos, apenas o Capitão Feio, um
poluidor com superpoderes, cuja presença nas histórias é bastante esporádica. Mas,
mesmo ele não é uma personagem tão má quanto os Irmãos Metralha (assaltantes e
seqüestradores) de Disney.
Nas HQs de Maurício, não há grande preocupação em retratar as
transformações ocorridas na sociedade. A “realidade” deve sempre se curvar à
fluência das tramas. Um mundo diferente é desvendado: um mundo de sonhos e
idealizações.
Nesse sentido, diversos temas não fazem parte desse universo, como por
exemplo, morte, doenças graves, violência, problemas sociais e políticos. É um
universo idealizado, irreal, onde alguns dos males sociais que poderiam atrapalhar a
felicidade das personagens estão ausentes e omissões dessa ordem só são toleradas
em obras de ficção, pois as diversas manifestações da arte: cinema, teatro, literatura,
música e história em quadrinhos, não necessariamente demonstrariam uma relação
direta com a realidade.
4
Estúdios Maurício de Sousa.
15
Em nossas análises, detectamos que o universo mauriciano é atravessado por
paradoxos: apesar de não haver mortes, as personagens que formam a Turma do
Penadinho são fantasmas, caveiras, esqueletos, e até a D. Morte.
A morte retratada por Maurício de Sousa sempre chega com sua inclemência
costumeira e encontra a resistência da vítima, que na maioria das vezes solicita
prorrogação; são raras as histórias em que as vítimas aceitam partir de boa vontade.
D. Morte, apesar de suas vestes pretas e sua foice, não é tão assustadora; ao
contrário, suas histórias muitas vezes chegam a ser hilárias, principalmente quando
ela encontra a resistência de uma vítima e tenta arduamente cumprir sua função.
Mônica é a mais famosa criação de Maurício. Ela “nasce” em 1963, quando o
autor procurava personagens femininas para participarem das histórias dos meninos
que haviam sido criados (Franjinha, Cebolinha, Titi e Jeremias). Nesse tempo, o autor
morava em Mogi das Cruzes e trabalhava em um pequeno estúdio dentro da sua
casa.
A inspiração de suas personagens infantis vem principalmente dos seus filhos.
Com Mônica não podia ser diferente; ela é inspirada em sua filha mais velha cujo
nome é Mônica.
Mônica surge na década de 1960, em um contexto histórico de emancipação
feminina. É a época da luta pela liberação do aborto, da pípula anticoncepcional. Os
anos 1960 são fortemente marcados pela ascensão do movimento feminista. Essa
personagem reflete um pouco as transformações ocorridas nas relações de gênero. A
mulher passa a ser mais independente, menos submissa e mais autônoma em
relação ao seu agir. Nesse sentido, a personagem consegue até mesmo subverter a
ordem estabelecida pelas histórias em quadrinhos. Mônica, apesar de ser uma
personagem criança, é a única menina das histórias em quadrinhos que possui várias
características dos super-heróis (personagens adultas): extraordinária força física,
espírito de solidariedade, justeza, honestidade, defesa dos fracos e oprimidos. A
superforça, além de ser um atributo de personagens adultas, é um requisito de
personagens masculinas.
Para nós, a revista Mônica não pode ser considerada um quadrinho feminista,
porque a personagem reproduz atitudes tidas tradicionalmente como femininas tais
como: ficar bonita e demonstrar ser uma garota frágil, delicada, sensível e doce para
conquistar os meninos, conseguir um namorado e no futuro, casar-se (constituir uma
família nos moldes tradicionais: pai, mãe e filhos). Ao tentar não reproduzir o modelo
16
de uma menina tradicional e submissa ao homem, Mônica cai no extremo oposto e
repete o papel de quem domina, oprime e subjuga porque tem força física.
Mulheres, negros e índios participam freqüentemente como personagens
secundárias nas histórias em quadrinhos. Mônica é uma das poucas heroínas desse
tipo de literatura. Ela consegue quebrar algumas barreiras impostas às mulheres
quadrinizidas; é a dona da rua e, ao utilizar sua incrível força, consegue manter os
meninos (principalmente seus amigos mais próximos, Cebolinha e Cascão) sob
controle.
Mônica possui um bicho de pelúcia de estimação, o coelhinho Sansão
5
, seu
companheiro inseparável, considerado seu grande talismã.
No imaginário infantil, o bicho de pelúcia é sinônimo de delicadeza e
fragilidade. No universo de Maurício de Sousa, esse mesmo bichinho assume uma
outra conotação. Mônica o utiliza para nocautear os meninos; esse delicado
brinquedo nas mãos de Mônica torna-se uma verdadeira arma, que ela usa para
aumentar seu poder de ataque. Esta é mais uma transgressão semelhante ao que
ocorre com o fato de uma menina (Mônica) ser a dona da rua. É por isso que os
quadrinhos mauricianos é o universo dos sonhos possíveis.
Cebolinha e Cascão, ao associarem o nome do animal de pelúcia ao Sansão
bíblico, tentam, a todo custo, cortar o pêlo do coelho de Mônica, na esperança de que
ela perca suas forças, pois acreditam que elas vêm do pêlo de Sansão. Apesar de
Maurício “enviar uma carta”, informando aos meninos que a força da menina não vem
dos pêlos do coelhinho, o quadrinista não consegue convencer Cebolinha, e este,
não acreditando no “recado” dado por Maurício, arquiteta “planos infalíveis” com o
objetivo de pegar o coelho
6
.
Com base nas histórias analisadas, detectamos que Mônica encontra no
coelho Sansão o seu “sentimento de segurança”. Tirem-lhe o coelho e ela fica triste,
frágil, sem vontade para nada. O coelho Sansão está para Mônica assim como o
cobertor está para a personagem Linus (Peanuts) criação de Charles Schulz. Tirem o
cobertor de Linus e ele recairá em todos os distúrbios emocionais que dia e noite o
assediam
(ECO, 1987).
Como dissemos anteriormente, algumas das personagens infantis de Maurício
são inspirados em seus próprios filhos. Mônica e Magali, além de Do Contra, Nimbus
5
O nome Sansão foi escolhido através de um concurso promovido entre milhares de leitores.
6
Essas informações foram retiradas da Edição Comemorativa Mônica 30 anos, p. 156-166.
17
e Marina, possuem características semelhantes às dos filhos de Maurício de Sousa
quando eles eram pequenos. Todas as personagens infantis que formam a Turma da
Mônica estão na faixa etária entre 6 e 7 anos, período denominado de média infância,
que compreende a faixa etária dos 6 a 12 anos (VYGOTSKY,1988). Eis algumas das
características de crianças nessa fase, algumas das quais também são encontradas
nas nossas crianças de papel:
a) Os companheiros assumem importância central;
b) As crianças começam a pensar de modo lógico, embora bastante
concretamente;
c) O egocentrismo diminui;
d) as habilidades de memória e linguagem aumentam;
e) os ganhos cognitivos aprimoram a habilidade para se beneficiar
da escolarização formal;
f) o autoconceito se desenvolve, afetando a auto-estima;
g) o crescimento físico é mais lento;
h) a força e as capacidades atléticas se aprimoram (PAPALLIA;
OLDS, 1998, p.13).
Ao contrário do que geralmente acontece com crianças reais, que são
sobrecarregadas de responsabilidades: aulas de língua estrangeira, esportes,
clubes, grupos de igreja, escotismos, aulas particulares e outros tipos de atividades
organizadas, as crianças de papel não são; elas brincam a maior parte do tempo
(com exceção de Chico Bento que ajuda o seu pai na roça).
Todas as crianças da obra mauriciana são estereotipadas. Identificaremos a
seguir as principais características das outras quatro maiores. A personagem
Cascão foi criada em 1961
7
, baseada nas recordações de infância do próprio
Maurício. Quando o autor a criou teve receio da reação do público devido à “mania
de sujeira” dessa personagem. Cascão consegue “viver” sem ingerir uma gota
d’água e nem tomar banho, mas nem por isso seus pais o obrigam a fazer uma
coisa que vai de encontro aos “seus princípios”. Seu animal de estimação é um
porco chamado de Chovinista, que é também o animal utilizado para fazer referência
à personagem. Para Cascão, qualquer nuvem ou pingo d’ água é uma ameaça,
embora nunca fique claro o que aconteceria se ele se molhasse.
7
Informações sobre as personagens foram adquiridas na Edição Comemorativa Mauríco 30 anos.
18
Cascão é filho único e mora com os seus pais, tem uma namorada chamada
Cascuda. Ele é o sidekick de Cebolinha (companheiro inseparável, assim como
Batman e Robin). Cebolinha utiliza sua esperteza para conseguir a adesão do amigo
aos seus planos de derrotar Mônica. Consideramos que Cascão não é tão inimigo
da menina assim; Cebolinha é que não se conforma em não ser o dono da rua.
Cascão consegue conviver melhor com esse fato do que seu amigo, e quando
decide ser cúmplice de Cebolinha, já sabe que no final os dois levarão uma surra.
Magali, outra personagem baseada em pessoa real, é uma das criações mais
“simpáticas” e conhecidas da turma. É inspirada em Magali, uma outra filha de
Maurício que comia uma melancia inteira quando criança. Apesar de comer demais,
a personagem não engorda, continua magra. Da mesma maneira da personagem
anterior, sua genitora (pois é a mãe que mais aparece nas histórias) não se
preocupa com essa questão e quase sempre faz todas as comidas e guloseimas
favoritas de sua filha. Não há preocupação em Magali se tornar uma criança obesa,
devido aos seus hábitos alimentares. É a única que não vive brigando com Mônica.
Tem um gato chamado pelo sugestivo nome de Mingau. É filha única e mora com os
pais. Magali é uma das poucas personagens da turma que está “satisfeita” com a
sua aparência. Só há duas coisas que a incomodam: não ter forças para controlar
seu imenso apetite e as dores de barriga causadas pela comilança.
Cebola, um garoto de cabelos espetados que, quando falava, trocava o “R”
pelo “L”, existiu mesmo; fazia parte de uma turma de garotos de Mogi das Cruzes,
que acabou emprestando suas características para o Cebolinha, personagem criada
em 1960 por Maurício. Cebolinha é o mais velho da turma, foi a primeira
personagem a ser criada. É bastante inteligente, mas possui um problema de fala,
que muitas vezes a desqualifica. Esse distúrbio de fala que a personagem possui é
denominado dislalia (trocar a letra R pelo L). Em nenhuma das histórias analisadas,
há os pais da personagem procurando um especialista para tratar do problema do
filho. Os pontos que mais incomodam Cebolinha são: o problema de fala, a falta de
cabelos e não ser o dono da rua.
Cebolinha é um menino que também possui um animal de estimação, o
cachorro Floquinho. Apesar de ser constantemente traído por sua fala, que o
desvaloriza, ele não se preocupa com esse problema de dislalia; toda a sua
inteligência é utilizada para enfrentar a rival Mônica.
19
Chico Bento, criada em 1961, teve como inspiração um tio-avô de Maurício,
sobre o qual ele ouvia diversas histórias contadas pela sua avó. Em 1982, foi
lançada a primeira revista com a Turma da Roça, entre eles Rosinha (namorada de
Chico Bento), Zé Lelé, Hiro e Zé da Roça. Estas são coadjuvantes das histórias cujo
protagonista é Chico Bento.
Apesar de todas as dificuldades encontradas no campo (infra-estrutura, falta
de transporte), essa personagem é a única das cinco grandes a freqüentar a escola.
A turma da Mônica propriamente dita não vai à escola, o que distancia as
personagens, em termos de realidade do cotidiano vivenciado pela maior parte de
seu público, que está em idade escolar. Essa não é uma omissão qualquer, já que a
escolarização se impõe hoje muito cedo, desde os dois primeiros anos de vida.
Diferentemente das outras quatro, Chico trabalha na roça e estuda. No que se refere
ao trabalho de Chico Bento, seu criador tem recebido várias críticas, porém até
agora ele não se pronunciou a respeito do assunto.
Quanto às características das personagens, observamos que as crianças
conseguem conviver com seus “defeitos” e defendem que não precisam de
tratamento. A “cura” para os males acabaria com as suas características mais
marcantes, conforme a seqüência:
Fonte: Almanaque da Mônica, n.58, p.11.
20
Mônica é a única personagem que freqüentemente entra em conflito consigo
mesma devido à sua superforça e agressividade. A frustração de Mônica é
principalmente conseqüência da sua inadequação aos padrões estéticos
estabelecidos para uma menina (magra, alta, bonita). Assim, ser adjetivada de
gorducha, dentuça e baixinha a irrita profundamente. Ela preocupa-se com a sua
auto-imagem e considera que se fosse mais “bonita” (alta, magra e loura), agindo de
maneira mais feminina, ficaria mais fácil arranjar um namorado. Nesse sentido,
Mônica não se reconhece como bonita porque circula no social um discurso de
beleza que exige certos padrões estéticos, nos quais ela não se enquadra, pois ela é
para os meninos: gorducha, dentuça e baixinha. Mônica gostaria de ser uma criança
comum e ser aceita pelos meninos.
A galeria de personagens de Maurício é bem mais abrangente do que a
apresentada. Mostramos nesta parte da tese o que julgamos como sendo o centro
da produção desse autor.
1.3 As estratégias investigativas
Tratando-se de uma problemática que lida com dados construídos a partir de
elementos da subjetividade, optamos por conduzir a investigação em uma
abordagem que se insere na perspectiva qualitativa, o que vem justificar a adoção
das atitudes sobre as quais discorreremos a seguir. A escolha por essa abordagem
investigativa comporta a definição do referencial interpretativo concomitante à
construção dos dados e às leituras
8
.
Em decorrência da feição indutiva que caracteriza os estudos
qualitativos, as etapas de coleta, análise e interpretação ou
formulação das hipóteses e verificação não obedecem a uma
seqüência, cada uma correspondendo a um único momento da
investigação, como ocorre nas pesquisas tradicionais. A análise e a
interpretação dos dados vão sendo feitas de forma interativa com a
coleta, acompanhando todo o processo de investigação (ALVES-
MAZZOTTI ; GEWANDSZNAJDER, 1999, p.162).
8
A adoção de um quadro teórico a priori não é consenso entre os pesquisadores qualitativos. Há uma
preferência entre os construtivistas que a teorização emerja da análise dos dados (a “teoria
fundamentada”) Alves-Mazzotti ; Gewandsznajder (1999, p.158).
21
Assim, a abordagem qualitativa abre perspectivas inovadoras com relação
tanto à escolha do objeto de pesquisa quanto às posturas investigativas.
Os estudos de caráter qualitativo trabalham, pois, com a idéia de que nada é
a priori dotado de significado próprio. A realidade é construída socialmente e o
significado a ela atribuído está relacionado com as vivências e as percepções dos
agentes sociais.
Alves-Mazzotti e Gewandsznajder, ao fazerem referência ao plano de
investigação, chamam a atenção para o fato de as pesquisas qualitativas não
admitirem regras precisas, aplicáveis a uma ampla gama de casos, em decorrência
da natureza diversa e flexível dessas investigações. No tocante ao grau de
organização prévia, os autores ressaltam:
O foco e o design
9
do estudo não podem se definidos a priori, pois a
realidade é múltipla, socialmente construída em uma dada situação
e, portanto, não se pode apreender seu significado se, de modo
arbitrário e precoce, a aprisionarmos em dimensões e categorias. O
foco e o design devem, então, emergir, por um processo de indução,
do conhecimento do contexto e das múltiplas realidades construídas
pelos participantes em suas influências recíprocas (ALVES-
MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1999, p.147).
Mediante essa afirmação, a escolha do objeto de investigação emerge a partir
de inquietações originadas da prática e de leituras específicas, o que pressupõe
uma certa aproximação do pesquisador com a temática estudada.
Para realizar a investigação, optamos pelas publicações de Maurício de
Sousa
10
, uma vez que as histórias em quadrinhos desse cartunista destinam-se
principalmente ao público infanto-juvenil.
Nesta pesquisa, procuramos identificar elementos que venham possibilitar a
caracterização da infância desenhada pelos quadrinhos mauricianos para responder
a questão central colocada pela tese que é: como se constrói discursivamente a
concepção de infância presente nos quadrinhos de Maurício de Sousa? Com o intuito
9
De acordo com os autores, o design corresponde ao plano e às estratégias empregadas pelo
pesquisador para responder às questões propostas pelo estudo, incluindo os procedimentos e
instrumentos de coleta, análise e interpretação dos dados.
10
Os quadrinhos de Maurício de Sousa foram editados pela Editora Globo de 1986 até dezembro de
2006. A partir de janeiro de 2007, eles passaram a ser editados pela Editora Panini, uma
multinacional italiana.
22
de responder a essa questão, estabelecemos como objetivo geral, investigar a
concepção de infância nos quadrinhos mauricianos e, como específicos, descrever os
processos discursivos utilizados na construção da concepção de infância nos
quadrinhos de Maurício de Sousa, como também demonstrar como se estabelecem
as relações discursivas entre esta concepção e os seguintes eixos temáticos: 1)
família; 2) escola; 3) brincadeiras e amizades. A análise da relação das protagonistas
com cada eixo nos fornece subsídios para, ao final, identificarmos a concepção de
infância presente nesses quadrinhos.
A delimitação desses eixos temáticos deve-se a diversos critérios: a intimidade
com o tema (como citado anteriormente, o quadrinho há um longo tempo é o nosso
maior interesse de pesquisa); a leitura das revistas, cujo contato direto suscita em nós
diversas indagações que procuramos responder no desenvolvimento da tese; a
necessidade de privilegiar alguns temas, já que não podemos tratar de todos, e
porque consideramos que esses eixos fazem parte do cotidiano infantil de uma
criança que está na faixa etária entre 6 e 7 anos, e pertencente à classe média, pois
são essas também algumas das características das nossas crianças de papel. Para
nós, ficaria bastante complicado “desenhar” um retrato dessa infância quadrinizada
sem abordar esses assuntos. A nossa escolha por esses eixos, também, justifica-se
pelo fato de que esses temas são recorrentes nas histórias analisadas e
fundamentalmente por que a família, a escola, as brincadeiras e as amizades são
instâncias de socialização, de constituição dos sujeitos e de transmissão da cultura.
Essas “frentes” socializadoras contribuem também para a produção da subjetividade.
As análises restringem-se às histórias das personagens que possuem revistas
exclusivas: Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e Chico Bento, que formam as cinco
grandes da galeria de personagens de Maurício. Para que haja um corte bastante
nítido no material de análise, são focalizadas as histórias protagonizadas pela
personagem-título de cada revista, objetivando delimitar melhor a observação. As
coadjuvantes só serão citadas no texto para reforçar alguma afirmação referente aos
eixos temáticos, ou para fazer algum contraponto às características das
protagonistas.
Quanto ao período, a amostragem é composta da produção quadrinizada
mauriciana durante uma década, que compreende o período de 1996 a 2006
11
. De
11
Incluídos na amostragem almanaques publicados no período.
23
acordo com Bauer e Aarts (2002), a amostragem garante a eficácia na pesquisa ao
fornecer uma base lógica para a investigação de apenas partes de uma população
sem que se percam as informações. De acordo com esses autores, a
representatividade garante que o estudo de uma parte pode fornecer um referencial
seguro do todo. O período de uma década representa aproximadamente 25% do
tempo de produção quadrinizada desse autor, pois as publicações de Maurício estão
no mercado brasileiro há mais de quarenta anos. Para Gonçalo Júnior (2007), a
última década representou uma crise nos quadrinhos de banca e está mais
relacionada com um problema de criatividade e menos às novas mídias como
Internet, games, desenhos animados, DVD, RPG, etc. Para nós, tanto o problema da
criatividade quanto o avanço das novas mídias contribuem para essa crise nos
quadrinhos de banca.
Conforme Bauer e Aarts (2002, p.42), “uma amostragem representativa
conseguirá a melhor descrição possível de uma população, apesar de se pesquisar
apenas parte dela”. Definida a última década como o recorte temporal que delimita a
constituição do corpus da pesquisa, elegemos as cinco personagens-criança que
possuem revistas exclusivas. Após essas escolhas, realizamos os seguintes
procedimentos: efetuamos um levantamento das séries de acordo com o ano, mês da
publicação e com a personagem-título da revista. Na seqüência, como uma maneira
de efetuar um recorte no volume dos dados, selecionamos um exemplar de cada
título por ano para a abordagem empírica. Como forma de contemplar todos os
meses do ano, selecionamos as revistas alternando os meses de publicação entre
pares e ímpares. Através dessa seleção, procuramos construir dados com o objetivo
de investigar a concepção de infância presente nos quadrinhos mauricianos e, a partir
de um raciocínio indutivo, desvendar relações entre as abordagens teóricas e a
empiria. Tratando-se de um trabalho investigativo aplicado, de caráter interpretativo e
de base empírica, e levando em consideração o tratamento qualitativo dos registros,
realizamos a análise propriamente dita das revistas, fundamentados, para a
abordagem empírica, nos três eixos temáticos já citados. Em face da amplitude
demarcada nos três eixos temáticos, não trouxemos, para análise, as histórias
completas, já que não julgamos conveniente, pois se tornaria improdutivo para as
nossas finalidades. Buscamos fragmentos da narrativa, em uma amostragem que
seja suficiente para indicar a orientação discursiva do texto e que atinjam os objetivos
da pesquisa.
24
Para a construção do terceiro capítulo, correspondente ao eixo temático
escola, seguimos os procedimentos descritos acima. Entretanto, utilizamos apenas
exemplares da série Chico Bento, já que ele é a única personagem entre as cinco
grandes a freqüentar a escola. Para ampliar a amostragem do segundo capítulo,
selecionamos dois exemplares por ano para a abordagem empírica, com a mesma
preocupação de contemplar todos os meses.
No eixo temático família, os exemplares que ilustram o segundo capítulo são
os seguintes
12
:
1996 – Meses ímpares
1. Revista Magali, n.202, novembro de 1996;
2. Almanaque da Mônica, n.54, maio de 1996;
3. Revista Cascão, n.196, março de 1996;
4. Revista Cebolinha, n.130, setembro de 1996;
5. Revista Chico Bento, n.244, julho de 1996.
1997 – Meses pares
6. Almanaque da Magali, n.15, dezembro de 1997;
7. Revista Mônica, n.124, abril de 1997;
8. Revista Cascão, n.35, fevereiro de 1997;
9. Almanaque do Cebolinha, n.41, outubro de 1997;
10. Revista Chico Bento, n.261, junho de 1997.
1998 – Meses ímpares
11. Revista Magali, n.228, março de 1998;
12. Revista Mônica, n.136, novembro de 1998;
13. Almanaque do Cascão, n.43, janeiro de 1998;
14. Revista Cebolinha, n.142, julho de 1998;
15. Revista Chico Bento, n.305, setembro de 1998.
12
Para simplificar, não comprometer a estética do texto e facilitar para o leitor a identificação do
recorte utilizado como exemplo no “corpo” do texto; não repetiremos as referências das revistas
(número, mês e ano), apenas colocaremos o título das séries, o número e as páginas da história,
quando houver.
25
1999 – Meses pares
16. Revista Magali, n.265, agosto de 1999;
17. Revista Mônica, n.148, fevereiro de 1999;
18. Revista Cebolinha, n.107, junho de 1999;
19. Revista Chico Bento, n.320, abril de 1999;
20. Revista Cascão, n.329, dezembro de 1999.
2000 – Meses ímpares
21. Revista Mônica, n.105, setembro de 2000;
22. Revista Magali, n.290, julho de 2000;
23. Revista Cascão, n.362, novembro de 2000;
24. Revista Cebolinha, n.127, maio de 2000;
25. Revista Chico Bento, n.330, março de 2000.
2001 – Meses pares
26. Revista Magali, n.311, abril de 2001;
27. Revista Mônica, n.175, junho de 2001;
28. Revista Cascão, n.374, outubro de 2001;
29. Almanaque do Cebolinha, n.63, dezembro de 2001;
30. Revista Chico Bento, n.388; agosto de 2001.
2002 – Meses ímpares
31. Revista Cascão, n.397, março de 2002;
32. Revista Cebolinha, n.192, janeiro de 2002;
33. Revista Chico Bento, n.414, novembro de 2002;
34. Revista Magali, n.345, maio de 2002;
35. Revista Mônica, n.194, julho de 2002.
26
2003 – Meses pares
36. Revista Magali, n.357, fevereiro de 2003;
37. Revista Mônica, n.206, agosto de 2003;
38. Revista Cascão, n.415, dezembro de 2003;
39. Revista Cebolinha, n.197, abril de 2003;
40. Almanaque do Chico Bento, n.76, outubro de 2003.
2004 – Meses ímpares
41. Revista Magali, n.377, novembro de 2004;
42. Revista Mônica, n.211, janeiro de 2004;
43. Revista Cascão, n.440, setembro de 2004;
44. Revista Cebolinha, n.220, março de 2004;
45. Revista Chico Bento, n.441, julho de 2004.
2005 – Meses pares
46. Revista Magali, n.389, outubro de 2005;
47. Revista Mônica, n.228, junho de 2005;
48. Revista Cascão, n.453, abril de 2005;
49. Revista Cebolinha, n.232, fevereiro de 2005;
50. Revista Chico Bento, n.454, dezembro de 2005.
2006 – Meses ímpares
51. Revista Magali, n.392, janeiro de 2006;
52. Revista Mônica, n.237, março de 2006;
53. Revista Cascão, n.462, julho de 2006;
54. Revista Cebolinha, n.240, novembro de 2006;
55. Revista Chico Bento, n.464, setembro de 2006.
27
Para o eixo temático escola, as revistas utilizadas como exemplos obedecem
a seqüência:
1996 – Meses ímpares
1. Revista Chico Bento, n.250, março de 1996;
2. Revista Chico Bento, n.254, julho de 1996.
1997- Meses pares
3. Revista Chico Bento, n.263, fevereiro de 1997;
4. Revista Chico Bento, n.276, agosto de 1997.
1998 – Meses ímpares
5. Revista Chico Bento, n.299, julho de 1998;
6. Almanaque do Chico Bento n.42, novembro de 1998.
1999 – Meses pares
7. Revista Chico Bento, n.323, junho de 1999;
8. Revista Chico Bento, n.337, dezembro de 1999.
2000 – Meses ímpares
9. Revista Chico Bento, n.338, janeiro de 2000;
10. Revista Chico Bento, n.340, maio de 2000.
2001- Meses pares
11. Revista Chico Bento, n.367, abril de 2001;
12. Almanaque do Chico Bento, n.64, agosto de 2001.
28
2002 – Meses ímpares
13. Revista Chico Bento, n.375, setembro de 2002;
14. Revista Chico Bento, n.377, novembro de 2002.
2003 – Meses pares
15. Revista Chico Bento, n.424, junho de 2003;
16. Revista Chico Bento, n.428, outubro de 2003.
2004 – Meses ímpares
17. Revista Chico Bento, n.432, março de 2004;
18. Revista Chico Bento, n.439, setembro de 2004.
2005 – Meses pares
19. Revista Chico Bento, n.454, dezembro de 2005;
20. Revista Chico Bento, n.444, fevereiro de 2005.
2006 – Meses ímpares
21. Revista Chico Bento, n.456, janeiro de 2006;
22. Revista Chico Bento, n.460, maio de 2006.
Para o terceiro eixo (brincadeiras e a amizade), as revistas de onde foram
extraídos os exemplos foram:
1996 – Meses ímpares
1. Revista Cascão, n.259, novembro de 1996;
2. Revista Cebolinha, n.121, janeiro de 1996;
3. Almanaque do Chico Bento, n.34, julho de 1996;
4. Revista Mônica, n.118, setembro de 1996;
5. Revista Magali, n.183, março de 1996.
29
1997 – Meses pares
6. Almanaque do Cebolinha, n.39, junho de 1997;
7. Revista Chico Bento, n.267, agosto de 1997;
8. Revista Mônica, n.126, abril de 1997;
9. Revista Magali, n.198, fevereiro de 1997;
10. Almanaque do Cascão, n.42, outubro de 1997.
1998 – Meses ímpares
11. Revista Mônica, n.143, novembro de 1998;
12. Revista Chico Bento, n.305, setembro de 1998;
13. Revista Cascão, n.299, maio de 1998;
14. Revista Magali, n.231, março de 1998;
15. Almanaque do Cebolinha, n.46, julho de 1998.
1999 – Meses pares
16. Revista Mônica, n.153, dezembro de 1999;
17. Revista Cascão, n.324, junho de 1999;
18. Revista Magali, n.266, agosto de 1999;
19. Revista Cebolinha, n.155, abril de 1999;
20. Revista Chico Bento, n.324, outubro.
2000 – Meses ímpares
21. Revista Chico Bento, n.346, março de 2000;
22. Revista Mônica, n.185, setembro de 2000;
23. Revista Cascão, n.350, julho de 2000;
24. Almanaque do Cebolinha, n.55, janeiro de 2000;
25. Revista Magali, n.274, novembro de 2000.
30
2001 – Meses pares
26. Almanaque do Cascão, n.65, outubro de 2001;
27. Revista Chico Bento, n.373, junho de 2001;
28. Almanaque da Mônica, n.87, dezembro;
29. Revista Cebolinha, n.174, fevereiro de 2001;
30. Revista Magali, n.305, abril de 2001.
2002 – Meses ímpares
31. Revista Cebolinha, n.187, janeiro de 2002;
32. Revista Chico Bento, n.415, novembro de 2002;
33. Revista Cascão, n.400, maio de 2002;
34. Revista Mônica, n.191, julho de 2002;
35. Revista Magali, n.338, setembro de 2002.
2003 – Meses pares
36. Almanaque da Magali, n.37, junho de 2003;
37. Revista Mônica, n.206, agosto de 2003;
38. Revista Chico Bento, n.427, abril de 2003;
39. Revista Cascão, n.420, fevereiro de 2003;
40. Revista Cebolinha, n.198, dezembro de 2003.
2004 – Meses ímpares
41. Revista Cascão, n.442, novembro de 2004;
42. Revista Cebolinha, n.215, maio de 2004;
43. Revista Magali, n.370, março de 2004;
44. Revista Mônica, n.220, setembro de 2004;
45. Revista Chico Bento, n.438, janeiro de 2004.
31
2005 – Meses pares
46. Revista Chico Bento, n.452, dezembro de 2005;
47. Revista Mônica, n.232, outubro de 2005;
48. Revista Cebolinha, n.231, fevereiro de 2005;
49. Revista Cascão, n.452, abril de 2005;
50. Revista Magali, n.371, agosto de 2005.
2006 – Meses ímpares
51. Revista Chico Bento, n.461, julho de 2006;
52. Revista Cebolinha, n.242, janeiro de 2006;
53. Revista Cascão, n.463, setembro de 2006;
54. Revista Magali, n.401, novembro de 2006;
55. Revista Mônica, n.244, maio de 2006.
É necessário destacar que a característica básica da abordagem qualitativa é
se respaldar na compreensão e interpretação do fenômeno estudado. A escolha por
essa abordagem investigativa para desenvolver e fundamentar o estudo apresentado
deve-se, também, à opção teórico-metodológica pela análise de discurso, que é
qualitativa em sua essência.
Assim, com base nos pressupostos teórico-analíticos da análise de discurso de
orientação francesa, que se preocupa “em descrever a maneira como se entrecruzam
historicamente regimes de práticas e séries de enunciados e em rearticular, desse
modo, as perspectivas lingüística e histórica em uma direção outrora indicada por
Michel Foucault” (COURTINE, 1990 apud GREGOLIN 2006, p. 25), nosso trabalho
privilegia a relação interdiscursiva entre os enunciados. Isso significa explicar os
jogos enunciativos que são possibilitados pelo fato de que o enunciado “tem sempre
margens povoadas de outros enunciados” Foucault (1995). Sob essa perspectiva, o
analista de discursos deve descrever os jogos de força e as estratégias que
materializam, num dado momento histórico, os efeitos de sentido que circulam na
sociedade. É dessa maneira que a articulação metodológica desse trabalho volta-se
para a descrição dos enunciados dos quadrinhos, a fim de relacioná-los às condições
32
de possibilidade de seu aparecimento, a partir do movimento da memória discursiva
13
que ele atualiza, deixando entrever as práticas discursivas responsáveis por sua
aparição enquanto um acontecimento discursivo
14
.
Nossa análise deter-se-á neste movimento que agencia a memória na
construção de sentidos sobre a infância nas HQs (histórias em quadrinhos) atrelados
aos eixos temáticos apontados anteriormente, verificando no fio do discurso os efeitos
de sentido produzidos pela repetição e pelo deslocamento do interdiscurso que
atualiza a memória.
1.4 A opção teórico-metodológica pela AD
A noção de discurso tem adquirido nos últimos anos papel relevante nos
trabalhos de Ciências Sociais e Comunicação. A incorporação do conceito,
originalmente desenvolvido no interior da Lingüística, não se tem dado, entretanto,
sem encontrar dificuldades, algumas oriundas de sua banalização conceitual, outras
da complexidade que envolve a interdisciplinaridade e a recusa de modelos teóricos
rígidos. A interdisciplinaridade e o abandono desses modelos podem contribuir para
uma maior possibilidade de compreensão por parte de outras áreas do
conhecimento que se apropriam do campo teórico proposto pela análise de discurso.
A falta de clareza sobre o conceito e sobre a teoria da AD tem levado a
equívocos que vão desde a identificação entre discurso e oratória, passando pela
conceituação de ideologia enquanto inversão do real e, por último, da identificação da
AD com um método de estudos de texto.
O discurso deve ser analisado tendo em vista as condições de produção que o
determina. Nesse sentido, é importante ressaltar a posição dos interlocutores, pois a
atribuição de sentidos irá depender da posição que cada um ocupa em uma formação
discursiva. O discurso surge no momento em que o sujeito participa da sua
linguagem, pois, segundo Bakhtin (1993, p.88-9), “o discurso nasce no diálogo como
13
Para Pêcheux (1999) a estruturação do discurso vai constituir a materialidade de uma certa
memória social. Esse espaço de memória como condição do funcionamento discursivo constitui um
corpo sócio-histórico-cultural. Os discursos exprimem uma memória coletiva na qual os sujeitos estão
inscritos e é a partir da sua mobilização que os sujeitos produzem efeitos de sentidos.
14
Pelo método arqueológico, Foucault propõe analisar o acontecimento discursivo, isto é, tratar os
enunciados efetivamente produzidos, em sua irrupção de acontecimento, com o intuito de
compreender as condições que possibilitaram a sua emergência em um certo momento histórico.
33
sua réplica viva, forma-se na mútua-orientação dialógica do discurso de outrem no
interior do objeto”.
Neste trabalho, concebemos a linguagem como discurso e não apenas como
um instrumento de comunicação ou expressão de pensamento, ou seja, a linguagem
compreendida como interação é um modo de produção social, não é neutra, nem
imparcial ou inocente, uma vez que acontece em condição histórica de produção,
deixando entrever as posições que os sujeitos ocupam na estrutura social.
Tratando mais especificamente dos quadrinhos, é importante ressaltar que não
existem quadrinhos inocentes. Ideológico, sem dúvida alguma, o discurso do
quadrinho marca em seu funcionamento a presença do social. Queremos dizer com
isso que os quadrinhos de Maurício de Sousa figurativizam, por meio das
personagens e dos enredos, os temas que circulam na sociedade e
revelam/desvelam concepções de mundo.
É também na possibilidade que os discursos têm de exprimir as faces da
ideologia que se podem definir as características de uma determinada forma de
pensar as relações mantidas pelos homens. Se, como coloca Nattiez (1979), o
processo de leitura é múltiplo e indefinido, também não podemos esquecer que a
definição de um corpo ideológico só é possível porque estamos atribuindo sentidos
aos diversos discursos que nos chegam cotidianamente.
O discurso é lugar de tensão, de enfrentamento, de confronto ideológico, não
podendo ser analisado fora da enunciação, uma vez que os processos interativos que
o constituem são histórico-sociais (BRANDÃO, 1997). Segundo esse raciocínio, o
discurso seria o ponto de articulação entre os processos ideológicos e os fenômenos
lingüísticos. Como ele promove essa articulação, não podemos perder de vista a
relação intrínseca entre discurso e sociedade. Disso decorre que os estudos sobre o
discurso não podem se desvincular de suas condições de produção, pois tais
condições são determinantes do discurso.
Um dos elementos que constitui as condições de produção do discurso é a
formação discursiva, em que o sujeito está inserido. Ela “determina o que pode e
deve ser dito em uma conjuntura histórica” (
PÊCHEUX, 1997, p.162). Dessa forma, o
que define o sujeito é o lugar social do qual ele fala em relação aos diferentes lugares
de uma esfera social. As condições de existência de um discurso são dadas pela
resposta às seguintes questões: Quem pode falar o quê? Para quem e em que lugar?
34
Seguindo também esse raciocínio, é bastante elucidativa a afirmação de Orlandi
(1993, p.108):
As formações discursivas representam, na ordem do discurso, as
formações ideológicas que lhes correspondem. É a formação
discursiva que determina o que pode e deve ser dito, a partir de uma
posição dada numa conjuntura dada. Isso significa que as palavras,
expressões, etc. recebem seu sentido da formação discursiva na
qual são produzidas.
Isso significa que a formação discursiva é o lugar da construção de sentido. O
sujeito atribui significados às mensagens de acordo com a sua inserção em uma
determinada formação discursiva.
Se tomarmos o discurso como exercício de poder, devemos considerar que
isso se deve ao fato de que o discurso é um campo de enfrentamento, lutas, conflitos
e tensões entre diferentes posições enunciativas. É nesse sentido que o discurso é
interpretado de forma diferente por diferentes sujeitos, constituindo-se em “efeitos de
sentidos” (FOUCAULT, 1995).
A abordagem foucaultiana é profícua na medida em que coloca diretrizes para
uma teoria do discurso. Foucault (1995) concebe os discursos como uma dispersão,
isto é, como sendo constituídos por elementos que não estão formados por nenhum
princípio de unidade. Caberia à AD descrever essa dispersão, buscando o
estabelecimento de regras capazes de reger as formações dos discursos. Tais
regras, denominadas pelo autor de regras de formação, possibilitariam a identificação
dos diversos elementos que compõem uma formação discursiva. Foucault apresenta-
as como um “feixe de relações” entre os objetos do discurso, as diferentes formas de
enunciação que permeiam o discurso, os conceitos e as diferentes estratégias
capazes de dar conta de uma formação discursiva, incluindo ou excluindo
determinados temas e teorias.
O autor define discurso como um conjunto de enunciados que se remetem a
uma mesma formação discursiva, ou seja, “um discurso é um conjunto de enunciados
que se apóia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT, 1995, p.124).
Definindo o discurso como esse conjunto de enunciados, e os enunciados como
performances verbais em função enunciativa, o conceito foucaultiano de discurso
35
pressupõe, necessariamente, a idéia de “prática”. Sob essa perspectiva, a
arqueologia propõe estudar as práticas discursivas, isto é,
Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiriam, em uma dada época para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa (FOUCAULT, 1995,
p.136).
De acordo com Foucault, a análise de uma formação discursiva consistirá,
então, na descrição dos enunciados que a compõem. Sua noção de enunciado não
se confunde com a noção de proposição ou de frase, uma vez que, para ele, o
enunciado não é uma unidade elementar que viria juntar-se às unidades descritas
pela gramática ou pela lógica da frase, mas:
Uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a
partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição,
se eles “fazem sentido” ou não, segundo que regra se sucedem ou se
justapõem, de que são signos e que espécie de ato se encontra realizado
por sua formulação (oral ou escrita). Não há razão para espanto por não
se ter podido encontrar para o enunciado critérios estruturais de unidade;
é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma função que
cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com
que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço
(FOUCAULT, 1995, p.99. Grifo do autor).
Para Foucault (1995, p.113), o enunciado não é a projeção direta, sobre o
plano da linguagem, de uma situação determinada ou de um conjunto de
representações. Não é apenas o emprego, por um sujeito falante, de um certo
número de elementos estabelecidos dentro de critérios lingüísticos. Assim, o
enunciado para Foucault, em hipótese alguma, pode ser interpretado como a
expressão direta de uma forma gramatical pura e simples. Bakhtin também vai se
contrapor aos lingüistas de maneira geral concebendo um estatuto próprio ao
enunciado, estatuto esse que o distancia (como Foucault) das referências puramente
formais/gramaticais.
36
Os diversos conceitos elaborados por Foucault
15
(discurso, enunciado,
formação discursiva, regras de formação, práticas discursivas e não discursivas) são
fundamentais para os teóricos que se dedicam em analisar o discurso. Apesar de não
trabalhar especificamente com o conceito de ideologia em seus estudos,
conseguimos visualizar marcas da ideologia, através da profunda abordagem que ele
realiza sobre o saber e o poder nas sociedades modernas. Além disso, Foucault não
estabelece relações diretas entre o saber e o poder com a economia (a infra-
estrutura), como no marxismo clássico.
Na concepção foucaultiana, o poder não se define na luta de classes e o
Estado não é tomado como aparelho de reprodução da exploração de uma classe
sobre a outra. Em seus estudos, o poder é lugar de luta, relação de força. Ele se
exerce e se disputa. O poder funciona e se exerce como uma rede que se dissemina
por toda a estrutura social com suas micro e poderosas ações, que estão em toda
sociedade (SILVA, 2004).
Foucault não fundamenta suas idéias sobre o discurso com base na
lingüística
16
; ele vai mais além, quando propõe analisar o discurso como um jogo
estratégico e polêmico: o discurso não pode ser apenas analisado sob seu aspecto
lingüístico, mas como jogo estratégico de ação e reação, de questões e respostas, de
dominação e de recusa e também como luta e enfrentamento, “discurso não é
simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo
por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2006,
p.10
). Resumindo, o discurso seria um lugar onde se refletiriam as tensões e os
conflitos existentes na sociedade.
Não podemos esquecer, portanto, que as sociedades capitalistas são
fortemente organizadas por um discurso que dá sentido também à reprodução do
capital. Com isso, a produção desse discurso gerador de poder é controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certos procedimentos que têm por função
eliminar toda e qualquer ameaça à permanência desse poder (FOUCAULT, 2006,
p.9).
15
Esses conceitos são discutidos com profundidade no livro Arqueologia do saber.
16
Ressaltamos esse aspecto porque uma das críticas freqüentes que se fazem, quando se alude a
uma teoria do discurso em Foucault, é que ele não tem uma teoria lingüística. Mediante ele mesmo
afirmou, seu objetivo não é estudar a língua, mas os discursos. Entretanto, para estudar os discursos
e partindo do pressuposto de que eles contêm enunciados cuja substância pode ser lingüística –
subjaz às propostas foucaultianas uma teoria da linguagem – que ele explicita em muitas passagens,
principalmente no capítulo da Arqueologia dedicado ao enunciado (GREGOLIN, 2004, p.94).
37
1.5 Discurso e memória
A concepção de interdiscurso nos leva a observar a relação entre memória e
discurso. Toda produção discursiva que se efetiva sob determinadas condições de
uma dada conjuntura faz circular formulações já enunciadas, fórmulas que
constituíam a enunciação de um discurso anterior.
De modo bastante genérico, o interdiscurso é o que permite ao analista dizer
que o discurso se constitui no jogo da interdiscursividade, isto é, na relação de um
discurso com outros discursos.
Explicitando o funcionamento discursivo, Orlandi (1999), numa leitura de
Pêcheux, afirma que o fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma
de todo dizer é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso. A
observação do interdiscurso nos permite remeter o dizer a toda uma filiação de
dizeres, a uma memória, e identificá-lo em sua historicidade, em sua significância,
mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. Assim, na produção de
sentidos, haveremos de considerar que todo dizer se encontra na confluência de dois
eixos: o da memória que se manifesta pelo interdiscurso (constituição) e o da
atualidade (formulação).
Por essa formulação podemos entender a relação da língua com a história
postulada pela AD. Quando falamos da exterioridade como elemento constitutivo dos
sentidos, estamos querendo explicar o processo pela relação que ele mantém com
aquilo que, estando fora, mas lhe é constitutivo, inscreve-se na materialidade do
discurso e o constitui. Temos de considerar a relação entre aquilo que é da ordem da
língua (intradiscurso) e o que é da ordem da exterioridade (interdiscurso). Como o
interdiscurso relaciona-se com a idéia de memória discursiva (a memória se atualiza
pelo interdiscurso), ele inscreve a memória no fio do discurso e isso afeta o modo
como o sujeito significa em uma dada formação discursiva e se constitui.
A memória se configura num dispositivo teórico-analítico imprescindível para
explicar o processo de produção de sentidos. Para a análise de discurso, a memória
é entendida como conjunto complexo, preexistente e exterior ao organismo,
constituído por uma série de “tecidos de índices legíveis”, em um corpo sócio-
histórico (PÊCHEUX, 1999). A toda formação discursiva é associada uma memória
discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam ou transformam outras
formulações. Memória não psicológica que é presumida pelo enunciado enquanto
38
inscrito na história. A noção de memória discursiva diz respeito à existência histórica
do enunciado no interior de práticas discursivas.
Nesta tese, especificamente no quinto capítulo, retomaremos o conceito de
interdiscurso como um dos fundamentais na análise dos enunciados mostrados nos
quadrinhos.
1.6 Discursos sobre a infância
Uma vasta literatura discute o tema infância. Diversos autores, como Rizzini,
Corazza, Del Priore
17
, entre outros, têm se preocupado com assuntos relativos à
infância ou de seu sujeito (a criança). São muitas as abordagens e tendências
teórico-metodológicas dentro dos seguintes campos do saber: Psicologia, Filosofia,
Ciências Sociais, Pedagogia, todos enfocando um aspecto específico acerca da
criança. Ser que conquistou a autonomia de sujeito apenas no século XX, pois
antigamente
18
a criança era tratada como incapaz de raciocinar.
As concepções sobre a infância variam desde a criança vista como fruto do
pecado, ser inferior, incompleto e imperfeito (visão trágica da infância), até à procura
pela autonomia da criança. Tratadas como “adultos em miniatura” (desde as roupas
até os jogos e brincadeiras), as crianças só recentemente tornaram-se “sujeitos de
direito”. No Brasil, esse “sentimento pela infância” foi efetivamente posto em ação no
século XIX e teve seu apogeu com a criação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) em 1990.
Em 1988, com a Constituição Cidadã, inseriram-se os Direitos
Internacionais da Criança, proclamados pela ONU nos anos 50; e
em 1990, O Estatuto da Criança e do Adolescente fez com que o
Estado assumisse a responsabilidade sobre a assistência aos
desvalidos, tornando as crianças e os adolescentes “sujeitos de
direito”, pela primeira vez na história do Brasil (CORAZZA, 2000, p.
86. Grifo da autora).
17
Para citar apenas alguns nacionais.
18
Podemos remeter a meados do século XIX a mudança de concepção sobre a criança (ARIÈS,
1981, GÈLIS, 1995).
39
Como mostra a autora, houve uma grande modificação no que diz respeito ao
tratamento destinado às crianças, observando-se um sentimento positivo em relação
à infância e ao seu sujeito, a criança.
1.7 Organização da pesquisa
Com o intuito de alcançar os objetivos propostos pela pesquisa, organizamos o
trabalho em cinco tópicos, de acordo com a seguinte ordem: este capítulo introdutório
e mais outros quatro. O segundo, o terceiro e o quarto tópicos correspondem aos
eixos temáticos selecionados, e o quinto, subsidiado nos três anteriores, responde à
questão central levantada pela tese: como se constrói discursivamente a concepção
de infância nos quadrinhos de Maurício de Sousa?
A idéia de trazer a identificação da concepção dessa infância para o último
capítulo deve-se à metodologia adotada, pois optamos em partir do específico para o
mais geral, já que entendemos que essa configuração nos embasa teórica e
empiricamente para identificar a concepção de infância presente nos quadrinhos
mauricianos.
A discussão teórica permeia todo o percurso do trabalho, pois não é nossa
intenção construir um capítulo à parte só com a teoria, mas promover uma
hibridização entre empiria e teoria. Sob essa perspectiva, são os dados que nos
levam a buscar a teoria. Em outras palavras, é da empiria que recorremos à teoria.
Para discutir as questões relacionadas com os quadrinhos e a infância, além
deste primeiro capítulo em que contextualizamos nosso objeto de estudo, a tese
obedece à seguinte orientação.
No segundo capítulo, retratamos a família. Desenha-se, portanto, a imagem do
pai, da mãe, dos filhos, e destacamos o relacionamento entre eles.
No terceiro capítulo, descrevemos a escola, seu papel, o desempenho de
Chico Bento, o papel da professora, a relação entre a família e a escola e o
relacionamento entre docente e discentes.
No quarto capítulo, elegemos como preocupação principal mostrar a relação
da cultura com a concepção de lúdico, jogos, brinquedos, brincadeiras e como essa
questão é retratada nos quadrinhos. No tocante à amizade, identificamos sua
importância para as crianças de papel, o que pode ser observado pelo espírito de
40
solidariedade, cotidiano com os melhores amigos, a relação entre os meninos e as
meninas.
No quinto capítulo, o nosso objetivo é identificar a infância mostrada nos
quadrinhos de Maurício de Sousa. Para tanto, a análise dos eixos que constituem o
segundo, terceiro e quarto capítulos desta pesquisa adquire fundamental importância
na construção de um retrato da infância nesses quadrinhos.
41
2 IMAGENS DA FAMÍLIA
O sentimento da família que emerge nos séculos XVI e XVII não pode ser
dissociado do sentimento da infância. Foi uma mudança de postura em relação à
infância – cuidados com a higiene, queda na taxa de mortalidade infantil,
preocupação com a educação e com o futuro das crianças – que fez surgir o
sentimento da família. Para Ariès (1981, p.158-159), até o século XV:
A família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental
[...] A família quase não existia sentimentalmente entre os pobres, e
quando havia riqueza e ambição, o sentimento se inspirava no
mesmo sentimento provocado pelas antigas relações de linhagem.
No início do século XVIII, começa a delinear-se a família nuclear burguesa
(formada por pai, mãe e filhos). Para a configuração dessa instituição, destacam-se o
surgimento da escola, da privacidade, a preocupação de igualdade entre os filhos, a
manutenção das crianças junto aos pais e o sentimento da família ressaltado pelas
instituições, principalmente a Igreja, como fundamentais para o surgimento desse
modelo familiar.
Foram muitas as modificações sofridas pela família até chegar às formas que
conhecemos hoje. A família brasileira atual vive um dinâmico processo de
transformação. São muitos os indicadores que apontam para essas mudanças: a
família é hoje menor, mais fragmentada e mais diversificada em sua estrutura.
Segundo Petzold (apud PERES, 2001, p.73), a partir da Revolução Industrial a família
torna-se objeto de difícil definição. Foi em conseqüência das mudanças ocorridas no
contexto social que as famílias tradicionais cederam lugar a novas formas, novas
configurações. Estas são muito diferentes do modelo de família nuclear de épocas
atrás.
Desde a Revolução Industrial, que separou o mundo do trabalho do mundo
familiar e instituiu a dimensão privada da família, em oposição ao mundo público,
mudanças significativas a ela referentes vêm acontecendo e falar em família no
século XXI, no Brasil, como alhures, implica a referência a mudanças e a padrões
difusos de relacionamentos, tornando-se cada vez mais difícil determinar os
contornos que a delimitam.
42
Algumas das tendências recentes que refletem transformações significativas
no âmbito da família e suas conseqüências na vida da criança são apontadas por
Rizzini (2001, p.8-31):
As famílias tendem a ser menores, a mobilidade das famílias tende a
ser maior, há menos mobilidade para as crianças, as famílias ficam
menos tempo juntas, o aumento da participação feminina na força de
trabalho, as famílias tendem a ser menos estáveis socialmente, os
padrões de dependência entre gerações também sofreram
alterações, as unidades familiares estão mais individualizadas e
nucleares, a diversidade é uma característica importante das
sociedades modernas, as mulheres tornam-se chefes de família e a
dinâmica dos papéis parentais e das relações de gênero está
mudando dramaticamente.
Focalizaremos algumas das principais tendências da família contemporânea,
seguindo ainda Rizzini (2001), que não estão presentes na família desenhada por
Maurício de Sousa, pois um dos objetivos deste capítulo é identificar como essas
questões sobre família são retratadas no universo ficcional infantil de Maurício de
Sousa.
A mobilidade das famílias tende a ser maior. A busca por melhores condições
de vida e trabalho leva as famílias a migrarem para outras regiões geográficas. No
que diz respeito a essa tendência, não há nos quadrinhos de Maurício nenhuma
referência a essa mobilidade. As famílias permanecem no mesmo lugar desde a
primeira história, o que permite às crianças fortalecerem os laços de amizade entre os
vizinhos e as pessoas que moram no local. Por outro lado, restringe a possibilidade
de conhecer novos lugares, ampliar o repertório cultural e expandir o convívio com
novos amigos e outras redes familiares.
O aumento da participação feminina na força de trabalho. As mulheres estão
cada vez mais inserindo-se no mercado de trabalho, e, muitas vezes, equilibrar a vida
doméstica e o trabalho pode ser desgastante. No tocante a essa tendência, Rizzini
(2001) afirma que, no mundo urbanizado e industrializado, a dupla jornada de
trabalho da mulher é cada vez mais elevada. Como as mães de papel não trabalham
fora, permanecem cuidando do lar e dos filhos, não se constatando situações em que
as crianças fiquem nas creches ou escolas e nem sozinhas em casa.
43
Em algumas histórias, os filhos, quando não têm com quem brincar, solicitam
mais atenção de suas mães; eles procuram brincar com elas quando seus amigos
não estão disponíveis. É na rua, no convívio com os amigos, onde eles passam a
maior parte do tempo. Intensifica-se, assim, a influência do grupo de amigos em seus
cotidianos. Os amigos são os maiores confidentes das crianças, elas trocam
segredos, solicitam conselhos e tentam solucionar problemas que surgem com algum
membro do grupo. Elas não gostam de ver nenhum amigo preocupado ou triste. Sob
essa perspectiva, a solidariedade é uma característica marcante da amizade entre os
membros das turmas. O tema da amizade, será explorado no quarto capítulo desta
tese.
Ao permanecerem mais tempo em locais públicos – ruas, parques e praias –
(como exemplificado na Revista Mônica, n.136, p.14, onde as crianças se divertem
na praia) do que em casa, as crianças têm mais contatos com outras pessoas e
podem usufruir de brincadeiras de grupo e ao ar livre, acentuando a sua mobilidade,
o que hoje não é tão comum no cotidiano das crianças de “carne e osso”,
principalmente, as que moram em grandes centros urbanos. Devido aos perigos
relacionados à violência nas ruas, seqüestros, gangues e drogas tem havido uma
diminuição do espaço de mobilidade das crianças reais em contextos urbanos. Estas,
diferentemente das crianças de papel, permanecem, na maioria das vezes, em
espaços restritos como condomínios.
As famílias tendem a ser menos estáveis socialmente. É importante assinalar
que compreendemos estabilidade como sinônimo de uniões ou laços duradouros. Na
contemporaneidade, separações e divórcios acontecem com maior incidência, assim
como surgem novos relacionamentos. Não identificamos na obra de Maurício de
Sousa nenhuma família com apenas um genitor; uma vez que as crianças
quadrinizadas não convivem com conflitos familiares causados por doenças graves,
mortes, separações e divórcios, e com o sofrimento que essas situações podem
acarretar.
Conhecedores das mudanças que a família atravessa, percebemos que nos
quadrinhos analisados essas mudanças são bem mais lentas; reflexo do caráter
estático da estrutura do discurso das histórias em quadrinhos, em que as mudanças
ocorridas no âmbito sociocultural nem sempre são incorporadas às narrativas.
Dessa forma, a família mostrada na obra de Maurício de Sousa segue o
modelo nuclear, da família monogâmica, oriunda de um único casamento e formada
44
por pai, mãe e filhos. Mônica, Magali, Chico Bento e Cascão são filhos únicos,
Cebolinha possui uma irmã.
Na história de título Babá de quem? (Revista Magali, n.228, p.3-9) a
personagem Magali é obrigada a “cuidar” da irmã de Cebolinha enquanto o menino
participa de um jogo “com a turma da rua de baixo”. Quando Maria Cebolinha começa
a chorar, Magali tenta adivinhar o motivo do choro e logo “descobre”: Fácil! É fome!
Após a constatação, Magali prepara uma mamadeira para o bebê. Como Maria
Cebolinha continua chorando, Magali observa que é enjôo de mamadeira! Não deve
ser fácil ter sempre a mesma coisa todo dia e prepara um cardápio com carne assada
com brócolis, dobradinha ao molho de berinjela, feijoada com laranja... Como o bebê
não pára de chorar, Magali decide utilizar a “psicologia infantil”, fingindo estar
comendo para despertar no bebê a vontade de comer também, porém, Magali acha a
comida gostosa e come tudo sozinha. Mas, as tentativas de Magali para fazer o
“neném” se calar malogram, pois Maria Cebolinha continua chorando. Ao retornar
para casa, Cebolinha diz que o motivo do choro deve ser a “fraldinha” que precisa ser
trocada. Ao ouvir as palavras do menino, Magali sente o mal cheiro exalado pelo
bumbum da criança e sai da casa do seu amigo correndo e gritando: AARGH!!
Credo!Trocar fralda! Vida de irmão é dureza! Além de preparar mamadeira...
mingau... papinha... E aquela comilança toda... Ao chegar em casa, Magali ouve de
sua mãe: Como assim... Quando é que você vai ter um irmãozinho? Apesar de não
haver no quadrinho uma pergunta explícita da menina, as palavras da mãe de Magali
“soam” como uma resposta à indagação da filha: o não dito do discurso, ou seja, os
elementos que não estão evidentes no discurso. Magali, incentivada pela grande
quantidade de comida ingerida no lugar da irmã de Cebolinha, “pergunta” para a sua
mãe quando é que ela vai lhe dar um irmão. Uma das possibilidades de interpretação
para a pergunta não dita da menina e de acordo com a postura e o funcionamento
discursivo da personagem em relação à comida, é que ela está mais interessada na
alimentação do que em ter um irmão.
A família de papel é constituída por poucos filhos, o que corresponde à
imagem burguesa. A situação socioeconômica das famílias é indefinida. Entretanto,
com base nos bens materiais possuídos pelas famílias urbanas como carro,
computador, televisão, podemos supor que pertencem à classe média. O pai de
Chico Bento é um pequeno produtor rural, porém, não fica claro de que região do
país. Seus pais possuem um sítio onde praticam agricultura de subsistência e criam
45
poucos animais, que têm até nome de personagens fixas: Torresmo (porco), Giselda
(galinha), Mimosa (vaca). O que esses animais produzem não é para
comercialização, e sim para o consumo da família. Na ilustração abaixo, a mãe de
Chico Bento explica para o filho que os ingredientes utilizados na confecção do bolo
de aniversário dele foram produzidos pelos animais do sítio.
Fonte: Revista Chico Bento, n.454, p.11.
Na residência de Chico, não há iluminação elétrica, embora em mais de uma
ocasião seja citado que estão instalando-a em outros pontos da localidade onde ele
mora. Também não há saneamento básico. As necessidades fisiológicas da família
são feitas em uma fossa séptica externa à residência (as “casinhas”). Situação,
infelizmente, ainda bastante freqüente entre famílias em todo o território brasileiro, e
não somente em locais distantes dos grandes centros urbanos, como se poderia
imaginar
19
.
O tema proteção à natureza é recorrente nas histórias de Chico Bento,
demonstrando uma militância da personagem em favor da defesa da fauna e da flora.
19
De um total de 44.776.740 domicílios pesquisados no Brasil, 7.349.468 não possuem nenhum
banheiro. Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Censo Demográfico 2000.
46
Essa personagem não gosta de ir à cidade; ele se sente incomodado, estranhando o
barulho dos carros e a agitação dos centros urbanos. Chico Bento vai poucas vezes à
cidade e quando isso acontece, ele procura voltar logo para o campo, já que não
consegue se adaptar ao contexto urbano. Na história de título Meu quarto e nada
mais (Revista Chico Bento, n.464, n/p
20
), o protagonista da série, em um dia
chuvoso observa do edifício, especificamente da janela do quarto de seu primo, o
engarrafamento e o barulho das buzinas dos automóveis, e emite o seguinte
comentário: Num sei como o meu primo si agrada im morá na cidade! Inda mais
quando dispenca um toró! Aí, é uma tranquera só! Após a constatação, Chico avisa
ao primo que está enjoado de ficar em casa e que gostaria de ir para qualquer lugar
(andar pelas calçadas, olhar as ruas ou talvez, ir até ao shopping). O primo, ao ouvir
a solicitação de Chico, adverte-o: Lá fora tá um caos! Tá tudo engarrafado, parado e
alagado! É melhor ficarmos aqui. Chico, diante da sugestão do primo argumenta:
mais aqui num tem nada pra fazê! O primo considera um absurdo o que o
protagonista diz e passa a mostrar todas as coisas que eles podem fazer dentro do
quarto: usar o computador e conversar em sala de chat, ler gibis, jogar videogame,
ouvir cds, assistir filme em dvd, brincar com brinquedos eletrônicos, observar as
estrelas com telescópio, jogar minigame, rpg e com a coleção de cards. Após as
inúmeras sugestões do primo, Chico Bento fala não! e complementa: acho que tô
cum poço di sardade di casa! I do meu quarto tamém! É mior eu i imbora, primo! E
Chico despede-se de seu primo e apanha o ônibus de volta para casa. Ao chegar à
sua casa, o menino vai direto para o seu quarto e diz: ... É! o meu quarto pode num tê
tanta coisa como o do primo! E quando da janela ele olha a paisagem contemplada
pelo arco-íris, o brilho do sol, os animais e as árvores, faz a seguinte constatação: im
compensação minha janela... Esse exemplo demonstra como esse menino valoriza a
vida campestre e como ele sente-se feliz em retornar para a sua casa.
Considerando as ausências de algumas tendências apontadas por Rizzini
(2001), Galano (2006) e Romanelli (2006) nas famílias contemporâneas na obra
mauriciana, e tomando como referência alguns aspectos da forma como elas se
organizam, podemos inferir que a família quadrinizada de Maurício de Sousa obedece
20
Como não existe uma norma na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) para esses
casos, estabelecemos a convenção n/p (não paginado) para as histórias que não possuem número
de páginas e para um livro.
47
ao modelo hegemônico de família nuclear, cristalizado no percurso histórico-cultural
da sociedade.
Até os dias atuais, todo processo de mudança na organização das
famílias que acompanha o aburguesamento da sociedade moderna,
divórcio, nova parentela oriunda dos filhos de outros casamentos, por
exemplo, ou uma maior liberalidade dos costumes e da vida sexual
que, no conjunto, implique a modernidade, recebe a designação de
nova família (NEDER, 2002, p.31. Grifo da autora).
Hoje a família passa por uma revolução. É tanto que para Áriès (1981) não
podemos mais falar em um único modelo de família, mas de famílias no plural,
compreendendo que cada uma possui especificações em sua estrutura e modos de
funcionamento em que novos relacionamentos emergem: filhos de outros casamentos
que se relacionam com o padrasto ou madrasta, a adoção de filhos, mães e pais
solteiros, casamentos homossexuais, filhos que moram com outros parentes tais
como avós, tios e tias. Nessas novas configurações que a família assume, outras
formas de relacionamento e elos familiares estão sendo construídos, o que
impossibilita identificá-la como um tipo único ou ideal.
Ao contrário das histórias em quadrinhos de Walt Disney
21
, em que não existe
a presença das figuras materna e paterna (apenas uma avó, tios e tias), nas histórias
de Maurício de Sousa, todas as crianças possuem pais. Mas, apesar dessa presença,
observamos uma certa autonomia das crianças; os adultos influenciam pouco esse
universo infantil. As crianças são independentes, saem sozinhas para se divertir, ir a
parques, cinemas, teatros e até para consultas médicas e odontológicas. Na história
de título Doutor Chico (Revista Chico Bento, n.330, p.4), a mãe de Chico Bento diz
que não poderá acompanhá-lo ao consultório porque está muito atarefada: Já sabe,
Chico... Num vô cocê pro consurtório do doutor Tonico pruque tô muito ocupada!
Mediante as palavras da mãe do menino, podemos afirmar que para essa mãe de
papel os afazeres domésticos são mais importantes do que acompanhar o filho em
uma visita ao médico.
21
No Brasil, Disney é o principal concorrente de Maurício de Sousa. Em termos de venda, o autor
brasileiro ocupa o primeiro lugar (GUSMAN, 2006).
48
Nesse universo, a participação do adulto não é tão importante, evidenciando
assim uma “sociedade da infância” na qual a ingerência dos adultos é pouco
ressaltada.
A forma de organização da família é um elemento relevante no modo
como ela conduz o processo de socialização dos imaturos,
transmitindo-lhes valores, normas e modelos de conduta e
orientando-os no sentido de tornarem-se sujeitos de direito e deveres
no universo doméstico e no domínio público (ROMANELLI, 2006,
p.73).
Como nas histórias de Maurício de Sousa a participação dos adultos não é
apresentada de maneira muito ativa, critérios e valores que são transmitidos pelos
adultos, devido às suas experiências, são relegados a um plano de importância
secundária. Conforme esclarece ainda Romanelli, as profundas transformações
verificadas nas sociedades ocidentais tendem a fazer com que a experiência dos
adultos seja observada, pela nova geração, como não adequada para oferecer
modelos que possam organizar e orientar suas formas de sociabilidade. As mudanças
que vêm ocorrendo na sociedade brasileira levam o grupo de pares a se estabelecer
como referência essencial na orientação de comportamento de crianças e
adolescentes.
Nesse sentido, a ausência de crises e conflitos familiares – mortes, brigas
entre os membros, separações –, assegura às crianças de papel autonomia sobre
seus atos.
Diferente das histórias da personagem Menino Maluquinho do quadrinista
Ziraldo
22
, nas quais o autor explicita conflitos familiares como separações, divórcio e
morte, dando ênfase à orientação dos adultos na solução de alguns problemas
vivenciados pelas personagens infantis, as crianças mauricianas dificilmente pedem
ajuda aos adultos. O que ocorre com freqüência é a resolução dos problemas por
elas mesmas. As situações onde os filhos mais solicitam a ajuda dos pais ocorrem
quando eles estão doentes, insones ou tiveram algum pesadelo. Como na história Os
22
Escolhemos Ziraldo para realizarmos a comparação, porque esse autor também produz
personagens infantis, sendo sua criação mais famosa o Menino Maluquinho. Diferente de Maurício de
Sousa, Ziraldo incorpora em suas histórias algumas das mudanças ocorridas no contexto social.
49
pesadelos do Cascão (Revista Cascão, n.397, p.4-18) em que o protagonista,
durante a noite tem um pesadelo e “corre” para o quarto dos pais.
As crianças passam pouco tempo com os pais e mais tempo com os amigos.
As poucas vezes que os pais acompanham os filhos em alguma atividade são em
momentos de lazer, como ocorre na ilustração da Revista Cascão n.329, p.17, a
seguir:
Fonte: Revista Mônica, n.194, p.3.
2.1 A figura do pai
De acordo com Rizzini (2001, p.31), uma tendência global que reflete uma
outra modificação no âmbito da família diz respeito à mudança na dinâmica dos
papéis parentais e das relações de gênero. A partir da década de 1960, não apenas
no Brasil, mas em escala mundial, difundiu-se a pílula anticoncepcional, que
diferenciou a sexualidade da reprodução e influenciou de maneira decisiva na
sexualidade feminina (SARTI, 2005, p.21). Esse fato, aliado à expansão do
feminismo, aumentou as possibilidades de participação da mulher no mundo público.
A pílula, associada a um outro fenômeno social – o trabalho remunerado da mulher –,
abalou os “alicerces” familiares. Essa transformação é visível nos mais diversos
contextos culturais e é traduzida no deslocamento dos papéis desempenhados nas
respectivas unidades domésticas.
Papéis parentais que eram antes nitidamente definidos como dos pais
(provedores) ou das mães (cuidadoras), após o ingresso da mulher no mercado de
trabalho, desempenhando também atividade profissional remunerada, não estão mais
50
bem definidos. Entretanto, a função da mãe como a principal responsável pelos
cuidados essenciais direcionados para a sobrevivência da criança pouco se modificou
(RIZZINI, 2001, p.32). As mães de papel estão na grande maioria das histórias:
cuidando dos filhos (Revista Magali, n.377, n/p. e Revista Chico Bento, n.388, p.21),
cozinhando (Revista Magali, n.345, p.4 e Almanaque do Chico Bento, n.76, n/p),
arrumando a casa (Revista Cebolinha, n.127, p.21), lavando roupas (Revista
Mônica, n.206, p.3) e lavando louças (Revista Cebolinha, n.142, p.57).
Nos quadrinhos analisados, as modificações ocorridas no âmbito da família
não são tão claras: como chefe da família, é o pai que sai para trabalhar, apesar de
sua profissão não ser explicitada. Pouco aparece, freqüentemente permanece no
trabalho. Ele é o provedor e sua grande preocupação é o sustento da família.
Utilizamos as ilustrações a seguir para exemplificar a função de provedor
representada pelos pais de papel nos quadrinhos mauricianos.
Fonte: Revista Cebolinha, n.130, p.3.
Esse recorte reforça bem a imagem do pai como provedor da família, pois a
criança sempre recorre ao pai quando necessita de dinheiro.
51
Fonte: Revista Cebolinha n.232, p.63.
Na história acima, a personagem Cascão precisa de dinheiro para comprar um
presente para seu amigo Cebolinha, que fará aniversário. O pai é sempre quem supre
suas necessidades materiais, mas, nesse caso, Cascão observa a preocupação do
seu pai com a quantidade de contas a pagar e desiste de pedir dinheiro, informando
que irá resolver esse problema sozinho. Com o intuito de conseguir o dinheiro para
adquirir o presente do seu amigo, Cascão recorre ao seu cofrinho, mas ele está vazio.
Na história, percebemos uma grande compreensão da criança que, ao perceber a
aflição do pai para saldar as contas do mês, desiste do pedido e é ele mesmo que
resolve o problema. Porém, na tentativa de resolver o problema sozinho, a criança
decide trabalhar: engraxa sapatos e carrega compras em uma feira. Com o dinheiro
conseguido na execução dos trabalhos, Cascão compra uma bola para Cebolinha.
Segurando o presente embrulhado, Cascão fala: Ufa! Que trabalhão! À noitinha,
quando ele chega na festa do amigo, entrega o presente dizendo: pra você, amigão!
O aniversariante, ao receber a bola, exclama: uma bola! Justamente o que eu quelia!
E pede para Cascão ficar à vontade e aproveitar a festa. Cascão, ao ouvir a sugestão
de Cebolinha diz: Eu mereço! Eu mereço. Entretanto, Cascão, após ter passado o dia
trabalhando para obter dinheiro para adquirir o presente do amigo, adormece no sofá
da casa de Cebolinha. Mônica, ao perceber o amigo dormindo faz a seguinte
observação: Não entendo esse Cascão! Maior festa e ele dormindo! Cebolinha,
também não consegue entender o porquê do sono de Cascão.
52
Analisando a história, percebemos que, para não preocupar o pai mais ainda, a
criança se sacrifica, desempenhado trabalhos remunerados e ao final, está tão
cansado com as atividades realizadas que não consegue aproveitar a festa de
aniversário do melhor amigo. A situação experimentada por Cascão demonstra o
quanto o trabalho infantil prejudicou o lazer da criança. Cascão é a única personagem
urbana mostrada em situação de trabalho, fato que nos chama atenção, pois a família
mantém um padrão de vida da classe média (casa, carro, alimentam-se e vestem-se
bem e possuem várias formas de lazer) e não é admissível o trabalho de Cascão
pois, não há necessidade de complementação de renda por parte da família. A
experiência de Cascão mostra uma inserção extremamente precoce no mundo do
trabalho e que trouxe como conseqüência um enorme cansaço físico e a perda da
oportunidade de usufruir da festa ao lado dos amigos.
Dificuldades financeiras são constantes na família desse menino. E sendo o
pai provedor, é ele quem mais aparece fazendo contas e preocupado em atender aos
pedidos da criança, principalmente em datas comemorativas como aniversários,
quando há necessidade de gastos extras. Um exemplo ilustrativo da situação é a
história de título Mágico de festa, de onde extraímos a seqüência seguinte.
53
Fonte: Revista Cascão, n.362, p.5.
Verificamos mais uma vez nesse quadrinho, a tentativa da criança de ser
compreensivo com a situação financeira do pai. Este fica conjeturando uma maneira
de atender ao pedido do filho e sinaliza com a possibilidade de contratar um mágico
“bem baratinho”. Porém, o vilão Capitão Feio ouve a conversa entre Cascão e o pai e,
passando-se por um mágico, envia um bilhete para o pai do menino, oferecendo-se
gratuitamente para animar a festa de Cascão. O falso mágico, utilizando seus raios
de sujeira, suja toda a casa do aniversariante. A bagunça promovida pelo vilão só
acaba quando Cascão descobre a verdadeira identidade do falso mágico e, ajudado
por seu amigo Nimbus, consegue derrotar o Capitão Feio. Nimbus, sabendo que na
festa do amigo não teria o mágico que ele tanto queria, resolve também vestir-se de
mágico para alegrar a festa: Eu queria fazer uma surpresa. Como sua festa não ia ter
mágico, eu me disfarcei como um para não ser reconhecido. Ao ficar conhecendo a
54
intenção do amigo, Cascão o abraça e diz: Tendo os amiguinhos por perto, toda festa
de aniversário será sempre mágica. Ou seja, apesar de não possuir dinheiro
suficiente para remunerar um mágico de “verdade” e principalmente, ter sido
enganado pelo Capitão Feio, o objetivo do pai era satisfazer o desejo da criança e
realizar uma festa de aniversário que deixasse o filho feliz. Ele valoriza mais a
companhia dos amigos do que de um mágico, sendo a magia do aniversário a
presença dos amigos.
O dia do aniversário é a data mais importante do ano para as crianças de
papel. Elas ficam contando os dias para a sua chegada. Os pais e os amigos,
conhecedores do gosto da criança e sabendo da enorme importância atribuída por
ela ao dia do aniversário, organizam festas, convidam os amigos e principalmente,
procuram presenteá-la com o que ela pede. Tanto Cascão quanto o pai de Cebolinha
acertam no presente que o menino gostaria de ganhar. Isto é demonstrado no mesmo
comentário que o garoto faz para os dois presentes (a bola e o carrinho): Justo o que
eu quelia!
Fonte: Revista Cebolinha, n.220, p.38.
Os pais se esforçam para presentear os filhos com o que eles desejam,
mesmo quando têm de enfrentar uma multidão para adquirir o presente solicitado
pelo filho, devido a uma liquidação do objeto pleiteado. Conforme o retratado no
quadrinho seguinte.
55
Fonte: Revista Cascão, n.440, p.11.
As crianças de papel esperam ansiosamente os presentes dos pais e dos
amigos. Os brinquedos (bolas, bonecas, carros) são presentes mais valorizados do
que roupas, sapatos ou outros objetos. De acordo com a fala de Cebolinha no recorte
seguinte, ganhar só roupas no aniversário não é o desejo dessas crianças.
Fonte: Revista Cascão, n.415, p.5.
Na história intitulada O aniversário dos signos (Revista Mônica, n.175, p.3-
20), Mônica recebe seus amigos para celebrar seu aniversário. Ao abrir a porta de
sua residência a menina depara-se com Cascão, Cebolinha e Frajinha que, em coro,
gritam: PARABÉNS, MÔNICA!! A menina bastante contente diz: Ai, turma! Que
surpresa! Não precisava. Ao ouvir as palavras de Mônica, Cascão interroga:
Surpresa? E Cebolinha complementa: Não sei onde! Ela vem falando do anivelsálio
há uma semana. A menina em sua fala explicita a alegria em “fazer aniversário”: Ai,
Ai! Como é bom fazer aniversário! Todos os amigos ao nosso lado, todo mundo se
divertindo, todos demonstrando carinho... Ah, se eu pudesse faria aniversário todo
mês!
56
O aniversário das protagonistas é freqüentemente enredo de histórias, apesar
de as crianças não mudarem de idade, uma vez que esse é um universo onde as
crianças não crescem, permanecem crianças. Na história seguinte, Cebolinha
informa para os seus amigos que continua com sete anos, como todo ano e a sua
amiga Magali diz “adorar” o universo ficcional dos quadrinhos por não mudar de
idade. Conforme podemos visualizar no recorte seguinte:
Fonte: Revista Cebolinha, n.197, p.3.
De acordo com essas crianças, nas histórias em quadrinhos “tudo pode”:
Fonte: Revista Magali, n.389, p.50.
57
Apesar de identificarmos um certo enfraquecimento da função paterna na
educação desses filhos, a figura do pai retratada pelos quadrinhos mauricianos
(conforme já observamos), é a de ser o provedor de bens materiais, pois quando os
filhos necessitam de dinheiro para a aquisição de algum brinquedo ou presente, é ao
pai que eles recorrem, já que as mães não trabalham fora de casa.
Conforme a explicação de Sarti (2005, p.28)
O homem é considerado o chefe da família e a mulher, a chefe da
casa. O homem corporifica a idéia de autoridade, como uma
mediação da família com o mundo exterior. Ele é a autoridade moral,
responsável pela respeitabilidade familiar. À mulher cabe outra
importante dimensão da autoridade: manter a unidade do grupo. Ela
é quem cuida de todos e zela para que tudo esteja em seu lugar
(Grifo da autora).
Diante da afirmação, caberia chamar atenção que, na história da família, a
economia capitalista favorece o aparecimento de uma família privada. As mulheres
perdem o apoio da comunidade na relação com os maridos e ampliam sua
responsabilidade no cuidado dos filhos (“pai provedor e mãe cuidadora”). No que diz
respeito aos quadrinhos de Maurício, encontramos essa mesma situação: a pessoa
responsável pelo cuidado dos filhos é a mãe. Dificilmente o pai é citado como
responsável direto pelos cuidados com os filhos. Após identificarmos a figura do pai,
passaremos agora a apresentar a mãe das crianças.
2.2 A figura da mãe
Nas histórias mauricianas mais antigas, o papel desempenhado pelas mães
era cuidar do lar e dos filhos e serem cozinheiras por excelência. Em histórias mais
recentes, a mãe de Mônica é a única que já desempenha uma função profissional,
apesar de realizar seu trabalho em casa.
As mães quadrinizadas não são reconhecidas pelos seus nomes. São
raríssimas as situações onde seus nomes são citados. Um exemplo ilustrativo da
questão é a história cujo título é Trabalhar em casa dá uma canseira... (Revista
Mônica, n.228, p.3-20). Nesse quadrinho, tanto Magali, quanto a mãe de Cebolinha
chamam a mãe de Mônica pelo nome, como mostra o diálogo a seguir:
58
Mãe de Cebolinha: Oi, Luísa!Vim trazer a Maria Cebolinha!Você disse que eu
podia deixá-la aqui, enquanto fosse ao mercado!
Mãe de Mônica: Eu disse? Logo hoje ?
O logo hoje? dito pela mãe de Mônica justifica-se pelo fato de que justamente
nesse dia ela estava tentando realizar uma tarefa profissional em casa (discutiremos
essa questão mais adiante). É nesse contexto de tentativa de assumir um trabalho
que o nome da personagem-mãe é explicitado. O fato de Luísa ser chamada pelo
nome assegura-lhe uma identidade independente da maternidade e a tentativa dessa
mulher em realizar uma atividade profissional confere-lhe, nessa história, uma certa
autonomia.
É importante ressaltar que ninguém autoriza a si mesmo a se nomear
e, conseqüentemente, a desejar em seu próprio nome. Ou seja, é
preciso que seu nome seja recebido de um outro, pois para “sustentar
o desejo de viver necessitamos do apoio simbólico daquele pelo qual
fomos chamados a viver na qualidade de filho de... filho da...
(MOUGIN-LEMERLE, apud ROURE, COELHO, RESENDE, 2001, p.
195-196).
O cenário encontrado nos quadrinhos é inverso ao mostrado pela citação, pois
são as mães de papel que são reconhecidas e tratadas como a mãe das
personagens crianças: mãe de Mônica, mãe de Magali. Portanto, a identidade da
mulher é fortemente marcada pelo mito da maternidade
23
. As personagens adultas
atuam como coadjuvantes, demonstrando como nesse universo a ênfase é nas
personagens infantis.
A ilustração seguinte mostra como as funções desempenhadas pelo pai e pela
mãe nos quadrinhos de Maurício obedecem a um modelo em que os papéis parentais
e as relações de gênero não sofreram alteração (pai provedor e mãe cuidadora).
Nessa história, a mãe de Mônica tenta realizar seu trabalho em casa (elaborar um
projeto de decoração), mas sua filha não a deixa sossegada durante o dia inteiro, e
quando o marido chega ao final do dia, encontra uma esposa que não conseguiu
fazer nada durante todo o dia, além de cuidar da casa e da filha, que ainda traz uma
amiga para brincar.
23
A esse respeito, consultar BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1985.
59
Fonte: Revista Mônica n.228, p. 20.
As últimas observações do esposo: ai, ai! queria ter a sua sorte de poder
trabalhar em casa! que boa vida! aposto que até o serviço renderia mais, nesta
tranqüilidade! causam “indignação” na esposa, já que o seu trabalho – elaborar um
projeto de decoração – não “rendeu” devido às atribuições domésticas, pois realizar
uma atividade profissional em casa não a isenta das tarefas do lar. Não percebemos
na leitura das histórias uma valorização do trabalho feminino; à mulher cabe apenas
cuidar da casa, do marido e dos filhos, esforçando-se para manter tudo em seu lugar,
mesmo no caso da mãe de Mônica que tenta realizar um trabalho profissional em
casa e não consegue.
As atribuições do pai não se estendem aos cuidados com a casa. Eles pouco
ajudam suas esposas, apesar de que, no final da história cujo fragmento encontra-se
na página anterior, o pai da personagem Mônica, devido à pressão da esposa,
resolve levar sua filha e o cachorro (Mônicão) para o seu ambiente de trabalho, após
as queixas da esposa de que não consegue concluir sua tarefa profissional em casa,
pois tem de cuidar da filha. A condição de desenvolver um trabalho, atribuída à mãe
de Mônica possibilita-nos visualizar uma grande transformação, pois a mulher
consegue enfim fazer com que o pai assuma para si um pouco da função de cuidar
da filha. Apesar do desfecho da história, não observamos nos demais casais
mauricianos o compartilhamento das atividades domésticas e cuidados com os filhos.
O pai leva sua filha para o trabalho muito a contragosto, pois para ele cuidar da filha
não faz parte das suas obrigações. A permanência de Mônica e de Monicão no local
de trabalho gera espanto em um colega do pai que faz a seguinte pergunta: Ué! Sua
60
esposa não está em casa para cuidar da sua filhinha e do cachorro? Resposta do pai:
Está! Mas trabalhando. E você nem imagina o que ela fez com a campainha e o
telefone (Revista Mônica, n.228, p.20). A pergunta do colega mostra quanto essa
situação causa estranheza, pois, não é “normal” que os pais levem os filhos para o
trabalho. Uma outra questão referente à história é que a atividade profissional da mãe
não é reconhecida como um trabalho produtivo. Esse quadrinho aborda temas
bastante incomuns ao universo ficcional de Maurício de Sousa: identidade da mãe e
trabalho.
Apesar de a mãe de Mônica não trabalhar fora, ela já desempenha uma tarefa
profissional, o que encaramos como uma transformação em relação às histórias
anteriores. Mas uma mudança concreta seria a saída da mãe para trabalhar fora de
casa e com todos os desdobramentos que essa ausência materna acarretaria,
fundamentalmente a necessidade de arranjar uma pessoa para cuidar dos seus
filhos, já que eles são pequenos. Entretanto, transformações dessa ordem não são
possíveis nos quadrinhos, dada a falta de alterações em sua estrutura.
Mesmo estando quase sempre em casa, as mães dispensam pouco tempo
aos filhos, uma vez que estão muito ocupadas com os afazeres domésticos
(cozinhar, lavar, arrumar) e pouco interagem, dialogam e brincam com eles. Só
dedicam mais atenção aos filhos quando eles insistem bastante e elas, sem
condições de dizer não, param com os afazeres do lar e oferecem um pouco de
tempo às crianças, principalmente no exercício de atividades lúdicas.
Verificamos nessas mães uma certa frustração por não contribuírem
financeiramente com o sustento da família. Muitas vezes elas procuram fazer
alguma atividade que lhes traga retorno financeiro e possam oferecer uma melhor
qualidade de vida para seus filhos. É interessante observar que a busca por
realizações, a conquista de espaços no mercado de trabalho, o rebaixamento da
classe média levam a mulher atual a não se dedicar exclusivamente à maternidade e
aos cuidados do lar. Embora essas condições não estejam tão presentes no
cotidiano dessas mães de papel, observamos uma certa insatisfação dessas
mulheres, que pode ser detectada na história citada anteriormente Trabalhar em
casa, dá uma canseira. A mulher quadrinizada tem seu papel social reduzido ao de
esposa, mãe e dona-de-casa.
Outra iniciativa de uma mãe para contribuir economicamente com o sustento
da família é mostrada na história de título Coqueluche (Revista Cebolinha, n.240,
61
p.3-20). Nesse quadrinho, a mãe de Cebolinha tenta realizar um trabalho manual
que lhe forneça algum retorno financeiro; a confecção de cachecol. Cebolinha, após
chantagem emocional de sua mãe (apesar de considerar o acessório um tloço
pinicante), sai às ruas para divulgar a nova peça. Quando os filhos resistem em
atender a algum pedido feito pelas mães, elas fazem chantagem emocional ou
ameaçam cortar a mesada. Cebolinha, bastante contrariado, pois sente vergonha de
encontrar os amigos usando o cachecol (em pleno verão), começa a inventar outras
utilidades para o acessório. Cebolinha e seus amigos, graças às suas imaginações,
transformam os cachecóis em instrumentos de brincadeiras (corda, balanço,
máscaras, etc), após as crianças atribuírem uma nova função para a peça do
vestuário, as encomendas não param de chegar, tornando o “cachecol” um enorme
sucesso junto à criançada. Nesse contexto, o brinquedo/cachecol não é determinado
por uma função precisa: trata-se, antes de tudo, de um objeto que a criança
manipula livremente, sem estar condicionado à sua função real. Devido à sua
capacidade lúdica, as crianças conseguem subverter a função originária do
cachecol. Abordaremos questões sobre o lúdico, jogos, brinquedos e brincadeiras no
quarto capítulo desta tese.
As mães não têm com quem dividir as tarefas da casa, nem os cuidados com
os filhos, mesmo quando eles estão doentes (Revista Cascão, n.35, p.19), pois,
como não existe a figura da empregada doméstica nos quadrinhos de Maurício de
Sousa, são elas que assumem esses trabalhos sozinhas; não contando com a
contribuição do esposo e de nenhum parente. É a mãe que desempenha todas as
tarefas domésticas, apesar de, em algumas histórias, as mães solicitarem a
contribuição dos filhos em algumas tarefas, como comprar algum alimento na
mercearia (Almanaque do Cebolinha, n.41, p.4 e Revista Cascão, n.374, p.27),
ajudar na limpeza da casa (Revista Mônica, n.148, p.32), arrumar o quarto deles
(Almanaque da Magali, n.15, p.17), limpar a caixinha de areia do gato Mingau
(Revista Magali, n.357, p.3) e empurrar o carrinho da mãe na feira livre (Revista
Cascão, n.453, p. 4). Porém, quando os filhos tentam ajudar as mães no trabalho
com a casa, eles a atrapalham muito mais. Na história intitulada Quer uma ajuda na
faxina? (Revista Cascão, n.462, p.27-35), a criança, ao chegar em casa (após um
provável jogo de bola, já que estava com esse brinquedo debaixo do braço), percebe
o cansaço da mãe que estava fazendo a faxina e coloca-se à disposição para ajudá-
la. A genitora aceita prontamente a ajuda do filho e passa a entregar-lhe os
62
utensílios domésticos para ele usar na faxina. A criança recebe o objeto e passa a
usá-lo na limpeza. Mas, ao invés de dar continuidade ao trabalho, Cascão cria
situações imaginárias onde vassoura, espanador e aspirador de pó transformam-se
em instrumentos de brincadeiras. Após essas elaborações mentais, Cascão
materializa a brincadeira e começa a manipular o utensílio independente de sua
função; o protagonista estabelece novos significados para os objetos e os desloca
do plano imaginário para a ação. Agora é o objeto transmutado em brinquedo, em
ação; a ação efetivada pela criança emerge do significado atribuído ao objeto. Sob
essa perspectiva de análise, Vygotsky (1991, p.111) nos lembra que “a ação surge
das idéias e não das coisas”. Isso decorre de uma modificação de sentido na relação
da criança com a realidade. A mãe vai trocando os objetos entregues ao filho, na
tentativa que ele pare com a bagunça provocada pelas brincadeiras e possa
realmente efetivar a limpeza. A substituição dos objetos não surte o resultado
esperado pela mãe, pois, a cada troca, a criança transforma os utensílios na imagem
que ele faz deles, e cria brincadeiras. Cascão, ao lustrar o assoalho, imagina que o
piso da casa é uma pista de patinação no gelo, onde ele faz acrobacias. Essas
situações só chegam ao fim quando a mãe, conhecedora da aversão da criança à
água, decide oferecer um balde com água e sabão para que o filho lave as vidraças
e o chão. Cascão, como não suporta a idéia de tocar em água, desiste de ajudar sua
mãe e sai correndo para a rua.
Para Brougère (2006, p.78),
[...] a brincadeira aparece como um meio de fugir da vida limitada da
criança, de se projetar num universo alternativo excitante, onde a
iniciativa é possível, onde a ação escapa das obrigações do
cotidiano. É o universo alternativo que projeta a criança num mundo
adulto, mas num mundo adulto mais apaixonante do que aquele que
a cerca. Este pode ser o universo da aventura, da exploração.
Na história citada na página anterior, identificamos alguns paradoxos: Cascão
é uma personagem que adora sujeira, mas prontifica-se para limpar sua casa; na
relação entre homem e mulher fica bem marcada a divisão entre o feminino e o
masculino na obra mauriciana; a faxina do lar é uma atividade destinada às
mulheres. Mediante essa clara delimitação dos papéis de gênero, Cascão, defensor
63
dessa divisão, se dispõe a ajudar sua mãe na faxina da casa. Sobre a contradição
existente no discurso, Foucault (1995, p.173) assim se posiciona: “a contradição
funciona, então, ao longo do discurso, como o princípio de sua historicidade”. Nesse
sentido, o universo ficcional de Maurício de Sousa já surge atravessado por
paradoxos, onde quase tudo é possível; até uma criança sobreviver sem ingerir uma
gota d’água. Nessa história, as díades limpeza – sujeira e arrumação da casa –
feminino, encontram-se marcadas por paradoxos (como o mostrado acima).
Uma outra questão referente à história diz respeito à capacidade lúdica da
criança; o lúdico é um dos elementos norteadores da infância. Ao brincar a criança
consegue transformar a realidade, criar e recriar, atribuir sentido, subverter a ordem
dos acontecimentos enquanto durar a brincadeira. Na história Quer uma ajuda na
faxina?, como sempre acontece, a identidade do protagonista é preservada; ele
continuará sujinho, sem tocar em água.
Nas histórias analisadas, podemos observar que a solidariedade do filho para
com a mãe é maior do que a do filho para com o pai. Na família quadrinizada de
Maurício, a díade filho-mãe é bem mais evidenciada do que filho-pai. A mãe é mais
autoritária do que o pai, como a mãe de Cebolinha ao gritar com o filho com o dedo
em riste: Cebolinha!! O que o meu lenço de seda está fazendo na cabeça do
Cascão?! Seus moleques!! Onde já se viu mexerem nas coisas dos outros, E...blá,
blá, blá, blá! (Revista Mônica, n.124, p.15), apesar de a figura paterna, em algumas
histórias, chamar a atenção para o mau comportamento dos filhos, como na história
de título Baixinha, gorducha e dentuça... por telefone (Revista Mônica, n.105,
p.2), na qual o pai de Mônica reclama dos palavrões que ela diz ao atender o
telefone: Mônica, isso são modos? Mônica comporta-se dessa maneira, porque
imagina que era mais uma vez os meninos chamando-a de baixinha, gorducha e
dentuça pelo telefone.
No âmbito da família de papel, é a mãe quem exerce maior influência na
educação dos filhos. Esse aspecto será discutido na seqüência.
64
2.3 O relacionamento entre os pais e os filhos
Nas histórias mauricianas, comumentemente os pais são os responsáveis
pelos filhos, mas a mãe educa, orienta, cuida e castiga mais do que o pai, exercendo,
na maioria das vezes, mais autoridade junto aos filhos do que o pai. Ela é a maior
responsável em manter os seus filhos sob controle, em educá-los, torná-los mais
disciplinados; os filhos a respeitam e têm medo dos seus castigos. Nesse sentido, a
relação ressaltada por Maurício é entre a mãe e a criança, já que o campo de atuação
dessa mulher restringe-se ao espaço privado (casa). Apesar de em muitas histórias
as mães de papel demonstrarem ser autoritárias e controladoras, elas também são
bastante carinhosas com os seus filhos, como exemplificado nas seguintes revistas:
Revista Chico Bento, n.441, p.64 e Revista Magali, n.290, p.11. No primeiro
exemplo, a mãe de Chico beija o filho afetuosamente e, no segundo, a mãe de Magali
faz cafuné na filha. Mas, não são apenas as mães que mostram carinho pelos filhos;
estes também procuram demonstrar afeto por elas. Como o exemplificado na Revista
Magali, n.311, p.21, onde Magali escolhe uma flor para comprar para a sua mãe.
Ariès (1987) situa no fim do século XVII e início do XVIII o recolhimento da
família longe da rua, da praça, da vida coletiva e sua retração dentro de uma casa
mais bem adequada para a intimidade. Essa nova organização do espaço privado foi
conseguida através da independência dos cômodos, que se comunicavam por meio
de um corredor e de sua especialização funcional: sala de visitas, sala de jantar,
quarto de dormir. Seguindo ainda Ariès, é nesse espaço mais privatizado que surge
um sentimento novo entre os membros da família, e mais particularmente entre a mãe
e os filhos: “o sentimento da família”, centralizado nas mulheres e nas crianças, estas
últimas passaram a ocupar um lugar na estrutura familiar, transformando todo seu
funcionamento.
A essa construção social da infância ocorrida durante a história,
mesmo após a descoberta da paternidade, a função do cuidado e a
criação do filho permaneceram com as mulheres, pois os homens
foram cada vez mais se afastando do universo infantil [...] Coube ao
homem a não participação em qualquer situação de cuidado; ao
contrário das mulheres, o âmbito de atuação masculina deu-se no
público (LYRA, et al., 2005, p.82).
65
O pai não exerce muita autoridade sobre o filho e participa pouco do seu
cotidiano, o que evidencia um certo esvaziamento da “figura simbólica do pai” no
tocante à transmissão de valores e crenças. O declínio da autoridade dos pais é
concomitante ao fortalecimento de autonomia dos filhos, que sempre resistem em
obedecer a alguma ordem dada pelos pais. Verificamos que a relação entre pai e filho
é mais distante entre as personagens urbanas que as rurais. Na relação entre a
personagem Chico Bento e o seu genitor, por exemplo, existe uma maior interação, já
que os dois dividem os mesmos cuidados com a roça. Grande parte dos diálogos
entre essa criança e esse adulto ocorre na horta ou nos roçados. O pai ensina para o
filho o ofício de lidar com a terra; mesmo não desejando para o filho um futuro igual
ao seu e Chico, apesar de conhecer o desejo do pai, quer seguir os passos do genitor
(cuidar da família e da terra).
Diferente do que ocorre com as personagens urbanas, observamos que em
determinadas histórias, Chico Bento sente orgulho do seu pai e em muitas narrativas
gostaria de, quando crescer, parecer-se com ele e seguir o mesmo destino:
permanecer no campo cuidando da terra. A afinidade entre os dois se dá
principalmente pela realização conjunta do trabalho. Nesse sentido, o trabalho serve
para reforçar os laços afetivos entre pai e filho. No quadrinho de título Papaiii!!
(Revista Chico Bento, n.414, p.3-13) Chico Bento tem os seguintes pensamentos
24
sobre o seu pai: Tenho um baita orguio do meu pai! Honesto...trabaiador...Ispero que
um dia meus fio tenham orguio de mim, tamém! (p.3). O menino expressa em nível de
pensamento o orgulho que sente do seu genitor e no futuro, quando ele também for
pai que os seus filhos possam sentir orgulho dele.
Apesar de Chico Bento (único protagonista) freqüentar a escola, não
percebemos uma grande valorização dessa instituição por parte da família. Chico
também não faz muita questão de freqüentar as aulas; ele até finge para a sua mãe
que está com catapora para poder se ausentar da escola. De acordo com o que
mostra o recorte da história intitulada Catapora rápida (Revista Chico Bento, n.305,
p.50-53): Mãe! mãe! tenho uma boa notícia! A mãe pergunta: I quar é? O menino
responde: Acho que peguei catapora! A mãe interroga novamente: I isso é uma boa
notícia? Chico explica: Craro! ansim num vô pra iscola!
24
Balões que indicam pensamentos são mostrados graficamente em formato de nuvem.
66
Não constatamos nessas famílias (rural e urbana) a preocupação com a
ascensão social; a busca por uma vida melhor não faz parte de seus cotidianos. Na
família da personagem Chico Bento não há demonstração da importância da
educação formal, visando essa mobilidade social. É por isso que em muitas histórias
Chico Bento está mais interessado com o trabalho na roça do que com os conteúdos
escolares, pois a escola nesses quadrinhos não representa uma instituição que
possibilite uma melhora qualitativa nas condições de vida dessa família. Para os
outros protagonistas a escola é inexistente. Questões relativas à escola serão
retomadas no próximo capítulo da tese.
Como não existe a presença da escola, não há divisão com essa instituição
da responsabilidade de educar os filhos. Mesmo nas histórias de Chico Bento, não
existe uma interação entre a família e a instituição de ensino, demonstrando a falta de
valorização e reconhecimento do papel dessa instituição na educação e
desenvolvimento do filho. A escola nos quadrinhos mauricianos não constitui uma
base de apoio para a família.
Dificilmente os filhos pedem orientação e conselhos aos pais. Eles
conversam pouco entre si, como também passam pouco tempo juntos. Os amigos
são maiores confidentes e conselheiros do que os pais, demonstrando como o
relacionamento com os amigos é importante para essas crianças. A relação entre
elas é tão significativa que, muitas vezes, as crianças buscam absorver papéis,
comportamentos e atitudes inerentes a um membro do grupo. Os amigos, os super-
heróis e algumas celebridades são mais exemplos para as crianças do que os pais.
Diante de tal constatação, observamos que em muitas histórias os filhos não querem
ser iguais aos seus pais; eles tentam a identificação com “pessoas” famosas, belas e
ricas. Em uma das histórias analisadas (Revista Mônica, n.211, p.8), há a tentativa
da personagem Mônica em ficar com a aparência igual à da Xuxa (apresentadora de
programa infantil). Sobre essa questão, remetemo-nos ao lugar ocupado pelo
discurso da mídia, principalmente a televisão, que acaba por oferecer identidades
desejáveis para essas crianças. Padrões que aparentemente estão ao alcance de
todos, reforçados através da publicidade que seduz e incute nas mentes das
crianças estereótipos de beleza que estão distantes delas.
Uma outra constatação que reforça a autonomia das crianças no universo
quadrinizado de Maurício de Sousa é que os pais só acompanham os filhos em
67
alguns momentos de lazer. Os eventos mais significativos na vida das famílias são:
aniversários, festas e viagens.
As bases de apoio das famílias mauricianas são: a própria família, às vezes
os vizinhos que são os pais dos amigos dos filhos e os amigos dos filhos. A igreja, a
escola, os meios de comunicação de massa (à exceção das crianças) e os parentes
como avós, tios e tias não exercem influência nessa família.
Cebolinha, Cascão e Chico Bento são chamados por apelidos. Chico é o
diminutivo de Francisco, as outras duas personagens são conhecidas pelas
características mais marcantes que as identificam. Não há explicitação do
“verdadeiro” nome da personagem Cascão. Cebolinha é o diminutivo do nome de
seu pai Cebola, que possui também uma das características mais marcantes do
filho: os cabelos espetados como raízes de cebola.
Os filhos não são obedientes aos pais, eles estão sempre infringindo alguma
ordem estabelecida pelos seus genitores. Eles não conseguem obedecer às mães
nem mesmo quando estão doentes e são pressionados por elas a permanecerem na
cama. A seqüência ilustra bem a questão:
Fonte: Almanaque do Cascão, n.43, p.54.
68
Mediante esse recorte, podemos inferir que, para Cascão, não abandonar os
amigos é mais importante do que obedecer a mãe. Para essa criança, o compromisso
assumido com os amigos se sobrepõe à própria doença e à ordem dada pela mãe.
Os pais, fundamentalmente a mãe, sempre aconselham os filhos a não
brigarem com os amigos, mas eles não conseguem seguir esse conselho,
principalmente Mônica, Cebolinha e Cascão. Um outro aspecto relacionado com a
convivência familiar é que os pais tendem a ser mais permissivos. Eles sentem
dificuldades em disciplinar seus filhos e estabelecer limites claros para eles. Os pais
freqüentemente apresentam sinais de que estão assustados em lidar com algumas
situações inventadas pelos filhos, principalmente na obtenção de respostas a
determinadas perguntas feitas pelos filhos, tais como: De onde eu vim? Será que o
meu pai queria menino? (Revista Mônica, n.237, p.6). A ausência de respostas
demonstra a inibição do mundo adulto sobre certos assuntos e uma certa falta de
orientação dos pais na educação dos filhos. Essas questões levantadas pelos filhos
suscitam nos pais um sentimento de incapacidade em não ter condições de trabalhar
com determinados assuntos, principalmente os relativos à sexualidade, e causam nos
genitores constrangimento e engendram algumas cenas vexatórias.
Um exemplo dessa situação é retratado na história intitulada Peroli (Revista
Magali, n.265, p.26-32). Nessa história, há duas gerações anteriores à de Magali
envolvidas (sua avó e sua mãe). Como não há nenhum antecedente que possa
justificar a emergência da pergunta da criança, uma vez que a história já começa com
a indagação, podemos supor que a presença de duas gerações à mesa tenha
despertado a curiosidade da protagonista Magali, que, durante o almoço (pois é
quase sempre durante as refeições que a família está reunida), dirige-se ao pai e
pergunta de onde ela veio. Os pais e a avó (participante do almoço) se engasgam
com a comida devido à pergunta da filha e neta, e um passa para o outro a missão de
responder ao questionamento. O pai (a quem foi dirigida a pergunta), por ser, como
ele mesmo afirma, o chefe da família, assume a responsabilidade de responder e
conta várias versões para o nascimento da filha: a) que a achou dentro de um
repolho; b) que a encontrou no local de trabalho, na gaveta de um arquivo na letra
“M”. A mãe interrompe a conversa e dá a sua explicação para o nascimento da filha:
foi a cegonha que trouxe a criança. A avó também tem uma versão: conta para
Magali que ela nasceu de um bocejo de uma ostra (cujo nome era Ostrali), e de
69
dentro da boca do molusco saiu uma pérola de nome Magali. Na penúltima página da
história, a criança, confusa com tantas versões sobre o seu nascimento, volta a
perguntar como ela realmente nasceu. O pai dá a sua última versão: diz que planta
uma sementinha na barriga da mamãe. No final da história, a avó de Magali, achando
que após tantas explicações, a neta estava crescida e esclarecida, a presenteia com
um colar de pérolas. A neta, feliz com o presente, exclama: um colar de Magalis.
Essa narrativa demonstra como a falta de uma resposta verdadeira para a pergunta
gera mais confusões na cabeça da criança. E as crianças de papel permanecem sem
respostas para algumas de suas preocupações.
Desse recorte discursivo, podemos extrair algumas idéias fundamentadas
teoricamente nos pressupostos da análise do discurso (AD).
O pai de Magali é o chefe da família, nesse sentido, a formação discursiva
em que o sujeito está inserido “determina o que pode e deve ser dito” (PÊCHEUX,
1997, p.162). Dessa forma, o que define o sujeito (pai) é o lugar do qual ele fala em
relação aos diferentes lugares de uma esfera social. Seguindo também esse
raciocínio, é bastante esclarecedora a afirmação de Brandão (1997, p.31):
O discurso é o lugar em que saber e poder se articulam, pois quem
fala, fala de algum lugar, a partir de um direito reconhecido
institucionalmente. Esse discurso, que passa por verdadeiro, que
veicula saber (o saber institucional), é gerador de poder.
O pai possui uma posição privilegiada em relação aos seus interlocutores.
Não é por acaso que a filha dirige a pergunta a ele. “O funcionamento discursivo [...] é
a atividade estruturante de um discurso determinado, por um falante determinado,
para um interlocutor determinado, com finalidades específicas” (ORLANDI, 1987,
p.125). Enquanto sujeito falante, o pai é o legítimo representante da família, essa
legitimidade deriva do lugar que ele ocupa nessa instituição. Aliada à questão da
credibilidade (que objetiva determinar a posição de verdade do sujeito) e da captação
(que visa fazer o parceiro da troca comunicativa entrar no quadro de pensamento do
sujeito falante), a noção de legitimidade (que determina a posição de autoridade do
sujeito falante) constitui um dos três espaços daquilo que Charaudeau (2004, p.219)
denomina de estratégias do discurso.
70
Como a autoridade da família, cabe ao pai manter a instituição sob controle,
produzindo saberes. Instaura-se uma relação disciplinar que nos fala Foucault,
configurando-se a díade saber-poder. O efeito é a produção de indivíduos ou
subjetividades que se inscrevem na ordem do poder. Ao pai é outorgado o poder de
responder ao questionamento da filha de maneira adequada ou não, de forma
esclarecedora ou não. Na história citada, o pai recorre a várias possibilidades
fantasiosas de respostas. Só não conta realmente como nasce uma criança.
Para alguns pais, o tema da sexualidade ainda é considerado tabu, difícil de
ser conversado. Muitos adultos têm dificuldades de falar sobre sexo com as crianças,
sentem-se inibidos, ou não possuem condições de tratar desse tema de forma
esclarecedora. Como conseqüência dessa incapacidade, muitas vezes os pais
recorrem às explicações fantásticas sobre o nascimento dos bebês (cegonhas,
moluscos, folhas e plantas).
De acordo com Foucault (2006), a sociedade dispõe de meios para controlar
a produção dos discursos, sendo a função deles conjurar seus poderes e perigos. A
idéia é a de que há restrições no ato de falar, que são tanto internas quanto externas.
Há uma política de silenciamento daquilo que ameaça a norma. Nem tudo pode ser
dito, e o que oferece perigo à ordem deve ser proibido: A esse respeito, Foucault
(2006, p. 9) pondera que, “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que
não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não
pode falar de qualquer coisa”.
Se ao invés de uma menina (Magali), um menino houvesse feito a mesma
pergunta ao pai, será que as respostas seriam as mesmas? Ou o pai, por geralmente
identificar-se mais com o filho, contaria a verdade?
Mussalim (2003, p.137), ancorada na teoria elaborada por Pêcheux (1993),
apresenta um quadro que reflete o que o autor francês chama de jogo de imagens de
um discurso:
1. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso faz:
a) do lugar que ocupa;
b) do lugar que ocupa seu interlocutor;
c) do próprio discurso ou do que é enunciado.
2. A imagem que o sujeito, ao enunciar seu discurso, faz da imagem
que seu interlocutor faz:
a) do lugar que ocupa o sujeito do discurso;
b) do lugar que ele (interlocutor) ocupa;
c) do discurso ou do que é enunciado.
71
Segundo ainda Mussalim (2003), esse jogo de imagens, mesmo
estabelecendo essas condições de produção do discurso, ou seja, aquilo que o
sujeito pode ou não enunciar, a partir da posição que ocupa em uma determinada
formação discursiva e das representações que faz ao enunciar, não é dado antes que
o sujeito enuncie o discurso, mas esse jogo vai se constituindo á medida que se
constrói o próprio discurso. A formação discursiva (FD) se define como aquilo que
numa formação ideológica (FI) dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma
conjuntura histórico-social específica – determina o que pode e deve ser dito. “Em
outras palavras, o sujeito não é livre para dizer o que quer, a própria opção do que
dizer já é em si determinada pelo lugar que ocupa no interior da formação ideológica
à qual está submetido, mas as imagens que o sujeito constrói ao enunciar só se
constituem no próprio processo discursivo” (MUSSALIM, 2003, p.137). É nessa
perspectiva que o jogo de imagens defendido por Pêcheux faz parte das condições
de produção de um discurso, na medida em que as imagens que o sujeito vai
construindo ao enunciar vão delineando o processo discursivo.
Todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais
abrangente e contínuo. Definido nesses termos, não há início absoluto nem ponto
final para o discurso. Um dizer possui sempre relações com outros dizeres efetivados,
imaginados ou possíveis. Seguindo essa orientação, se o processo discursivo é
produção de sentido, o discurso passa a estabelecer-se como o espaço em que
emergem as significações. E o locus específico de construção de sentidos é a
formação discursiva, noção que, juntamente com a condição de produção (CP) e a
formação ideológica, forma uma tríade nas formulações teóricas da análise do
discurso de orientação francesa.
Na história Peroli, Magali, valendo-se dos diversos dizeres dos adultos,
re-significa sentidos para o seu nascimento.
Mediante as reflexões apresentadas sobre o discurso, podemos afirmar que
as relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são
múltiplos e variados. Assim, o discurso é definido como efeito de sentidos entre
locutores (ORLANDI, 1999, p.21).
Um outro conceito presente nas análises sobre o discurso e que podemos
relacionar com o quadrinho Peroli é o de sujeito. De acordo com Orlandi (1987, p.
242), há uma definição de sujeito que aponta para duas direções: a de ser sujeito e a
de assujeitar-se: no sujeito se tem, ao mesmo tempo, uma subjetividade livre – autor
72
e responsável por seus atos – e um ser submetido – sujeito a uma autoridade
superior, portanto, desprovido de toda liberdade, salvo a de aceitar livremente a sua
submissão. Quando remetemos essas teorias para a história analisada, identificamos
que Magali ocupa uma posição de submissão em relação aos outros membros da
família.
A situação retratada no quadrinho Peroli rompe com a rotina da família, pois
no dia-a-dia as coisas ocorrem da seguinte maneira: durante o dia, o pai sai para
trabalhar, a mãe fica em casa cuidando do lar e dos filhos e estes, como não
freqüentam a escola, vão para a rua encontrar-se com os amigos. À noite, na grande
maioria das vezes, a família se reúne para assistir televisão. Apesar da presença da
televisão no ambiente familiar, não visualizamos influência desse meio de
comunicação na educação das crianças dada pelos pais, pois os adultos não utilizam
documentários, entrevistas, filmes, reportagens e telejornais exibidos por esse veículo
de informação como referências para a educação dos seus filhos. Daí, não
verificarmos nesses quadrinhos a influência mencionada.
A seguir, mostraremos as características da residência onde os filhos moram
com seus pais. Privilegiamos também a casa neste item do capítulo, pois é nesse
espaço onde ocorre a maioria das situações envolvendo pais e filhos.
2.4 A casa
Para Ariés (1987, p.184-185), no século XVIII, a família começou a manter a
sociedade à distância, configurando-se como o espaço privado, limitado, aquém de
uma zona cada vez mais extensa da vida particular. A organização da casa passou
a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo. Era já a casa
moderna, que assegurava a independência dos cômodos. A história da casa, a
especialização dos aposentos (sala, dormitórios, cozinha, banheiro), irão refletir
mudanças na vida íntima da família cujo processo ainda está em curso. Conforme
ainda Áries (1987), o conforto data dessa época, surgiu ao mesmo tempo que a
intimidade, a descrição e o isolamento, e foi uma das manifestações desses
fenômenos. Não havia mais camas espalhadas por toda a parte; ficavam reservadas
ao quarto de dormir. A nova configuração da casa e as mudanças nos hábitos e
costumes reservaram um espaço maior para a intimidade, que foi preenchido por
73
uma família limitada aos pais e às crianças. O recolhimento junto à família nuclear
acarreta o arranjo de um espaço doméstico mais íntimo.
A casa freqüentemente torna-se um local de “refúgio” onde se escapa dos
olhares de fora, lugar onde se estabelecem relações de sentimentos entre os
cônjuges e os filhos. A casa nas HQs (histórias em quadrinhos) de Maurício é
utilizada como cenário privilegiado para as crianças de papel interagirem com os
seus pais. E é durante os horários destinados às refeições que as conversas mais
emergem. No quadrinho de título Boas maneiras (Revista Chico Bento, n.261, p.
29-33), Chico é convidado para um almoço na casa de Rosinha e durante a refeição
as quatro personagens conversam amistosamente.
Os lares das personagens são simples e confortáveis onde as mães se
esforçam para manter tudo em seus devidos lugares. As casas ficam situadas no
bairro do Limoeiro, entretanto, não fica claro nem a região, nem o estado e nem a
cidade onde as moradias estão localizadas. O bairro do Limoeiro é residencial,
formado apenas por casas (bastante próximas umas das outras), não há edifícios. É
um lugar antigo, dada a arquitetura das casas: muro baixo (sem cercas de proteção),
janelas e portas sem grades. Como mostrado no quadrinho abaixo:
Fonte: Revista Magali, n.202, p.16.
As personagens por trás das janelas e as placas na fachada das casas
informando que as crianças não moram mais naquele endereço, resultam de um
plano das crianças para se esconderem de uma bruxa que foi enganada por elas.
74
As residências são caracterizadas por: cinco (05) cômodos (sala, cozinha e
banheiro), dos quais 02 (dois) são dormitórios; o quarto do casal e o dos filhos. Os
pais de Cebolinha possuem dois filhos de sexos diferentes, mas na residência dessa
família só há 02 (dois) quartos. Maria Cebolinha (a irmã caçula) divide o quarto com
o seu irmão Cebolinha. As características dos lares quadrinizados obedecem a
algumas das características da maioria dos lares brasileiros
25
.
Os habitantes da casa são: o pai, a mãe e o filho (com exceção da residência
de Cebolinha). Na maioria das histórias, as crianças de papel, dentro do espaço
doméstico, só se relacionam com os seus genitores. A convivência com outros
membros da família (primos, tias, tios e avós) nesse ambiente é bastante
esporádica.
2.5 O relacionamento entre os pais
O relacionamento entre marido e mulher é pouco mostrado. Quando eles
aparecem juntos é sempre em função de alguma questão referente aos filhos. Os
genitores parecem viver em harmonia e felicidade (Revista Cascão, n.196, p.33),
apesar de não encontrarmos nas histórias a descrição de envolvimento afetivo entre
eles, sem ter como referência o afeto da prole. Dificilmente são mostrados nos
quadrinhos beijos, abraços entre os pais. Não há preocupação com o cônjuge, e sim
com a criança, pois a infância é um dos elementos de organização dessa forma
familiar: a família se organiza em torno da criança, com tudo girando em função de
suas necessidades; daí esse modelo familiar possuir como centro a criança.
Quando, à noite, o casal tenta usufruir de alguns momentos a sós, seus
objetivos são imediatamente malogrados, devido aos apelos da criança que solicita
a presença da mãe para satisfazer alguma necessidade. Um exemplo de como o
relacionamento amoroso entre os cônjuges é eclipsado por causa da interferência
dos filhos é mostrado na história de título Casal de três (Almanaque da Mônica, n.
54, p.49-52). Nesse quadrinho, a mãe de Mônica, após colocar a filha na cama,
tenta passar alguns momentos a sós com o marido, namorando. Mas, a cada
tentativa do casal, a criança aos gritos chama pela mãe pedindo água, comida e
25
O IBGE, na realização do Censo de 2000, verificou que no total de 37.363.856.000 domicílios
urbanos,10.176.945 possuem como característica 5 (cinco) cômodos, e no total de 7.357.579
domicílios rurais, 1.675.072 possuem a mesma característica.
75
para que ela lhe conte uma história para dormir. Depois de atender a várias
solicitações da filha, quando a mãe volta para a companhia do esposo, encontra-o
dormindo no sofá e o chama para ir para a cama. E mais uma vez, Mônica solicita:
acordei de novo, mãe! Posso dormir com vocês? A mãe responde: claro, filhinha,
claro! Mediante o consentimento da genitora, a menina salta para cama, onde deita-
se entre os pais. No final da história, a troca de carinho só acontece nos
pensamentos do casal.
O relacionamento entre esse casal é colocado em segundo plano para
atender aos apelos da filha. A idéia de família retratada por Maurício tem como
ênfase os filhos, porque eles ocupam o primeiro lugar na constituição da família
quadrinizada. Sem eles, a vida familiar não tem sentido ou nem sequer existiria.
Entre os séculos XVI e XVII, a criança conquista um lugar junto aos pais. Antes
desse período o infanticídio era tolerado, e diferentemente da família medieval que
deixava as crianças com pessoas estranhas, agora, o reconhecimento de sua
vulnerabilidade e a sua importância fazem com que os adultos passem a se
preocupar mais com a saúde, educação e futuro dos filhos. Para Galano (2006, p.
130) “o sentimento de valor da família se restringe a um núcleo menor, e com isso
nascem os sentimentos de individualidade, intimidade e privacidade, tão caros à
ideologia burguesa”. Esses sentimentos também estão presentes na família
desenhada por Maurício, a começar pela quantidade reduzida de filhos por casal.
Conforme a explicação de Ariès (1981, p.XI):
Não se tratava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos
bens e da honra. Tratava-se de um sentimento inteiramente novo: os
pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os
acompanhavam com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX,
mas outrora desconhecida.
[...] A família começou então a se organizar em torno da criança e a
lhe dar uma tal importância, que a criança saiu de seu antigo
anonimato.
76
2.6 O relacionamento entre os filhos
Cebolinha é o único que possui uma irmã caçula (Maria Cebolinha). Por ser o
mais velho, na ausência da mãe é ele quem cuida da irmã. O relacionamento entre
eles é freqüentemente descrito como harmonioso. Os irmãos raramente aparecem
brigando, porém, quando ocorre algum conflito, Cebolinha, pressionado pelos pais
(principalmente pela mãe) por ser o mais velho, acaba renunciando às suas vontades
em prol de sua irmã menor.
Sobre a questão, a afirmação de Oliveira (2006, p.71-72) é bastante
elucidativa:
As estratégias educativas adotadas e a forma como os pais manejam
os conflitos entre os filhos podem, em alguns casos, ser um aspecto
dificultador e até motivos de outras brigas. Isso ocorre quando há
protecionismo e preferência por um filho ou quando a intervenção
parental tem como base o julgamento, o que leva inevitavelmente a
um culpado e a um inocente e à defesa de um filho em detrimento do
outro.
Os pais de Cebolinha, na maioria das vezes, saem em defesa de Maria
Cebolinha alegando a pouca idade da filha. A interferência dos pais nesse contexto
fica evidenciada e contribui na oscilação da qualidade do relacionamento entre os
filhos. Tanto a forma como interagem pais e filhos, quanto a forma como os pais
manejam a relação entre os filhos, influenciam a relação fraterna. Um exemplo que
ilustra a questão é a história de título Porque é pequenininha (Revista Cebolinha,
n.192, p.57-64). Nesse quadrinho, para seu desespero, Cebolinha Maria
Cebolinha
26
brincando com os seus “automoveizinhos”. Ao visualizar seus brinquedos
nas mãos da irmã, Cebolinha a repreende aos gritos: Quantas vezes eu já disse pla
não pegar meus automoveizinhos?! GLLR!! Você não sabe que isso não se faz!! São
meus blinquedos e... Ao ouvir as palavras do filho, a mãe defende a filha: Você não
deve brigar assim com sua irmã, coitadinha! O menino argumenta: Ela tá queblando
meus automoveizinhos! Mas a mãe continua com a defesa: Ora, ela não fez de
propósito, Cebolinha! é só um bebezinho! E a cada tentativa do menino em pegar os
seus automóveis em miniatura, a menina resiste e a mãe intercede em prol da filha
26
Mariazinha é o nome pelo qual a menina é chamada pelos seus familiares.
77
todas as vezes: Já lhe disse para não brigar com a sua irmãzinha! deixe ela brincar
antes, coitadinha! ela é pequeninha! você tem que ter paciência, Cebolinha! afinal, ela
é menor do que você! Cebolinha, após insistir em querer o que é dele, desiste e
decide brincar com outra coisa. Contrariado com a situação, o menino vai para a rua
e emite os seguintes comentários: Só polque é pequeninha pode fazer tudo o que
quiser? Pois eu prefilo ser maiolzinho! Pelo menos sou mais lesponsável! Ao fazer
essas observações, Cebolinha encontra uma bola e a chuta, só que a bola atinge a
cabeça de um outro menino (maior do que o protagonista) que, furioso, dirige-se para
Cebolinha e com o dedo em riste grita: foi você, é? E como se esperasse uma
resposta do leitor, diz: ah! tô sabendo! foi, né? merecia uns sopapos!! mas sorte sua
que ainda é pequenininho! eu até entendo! porque sei que você não fez de propósito.
Cebolinha fica imóvel diante da reação do menino e ao voltar para casa beija
carinhosamente a irmã. Ao presenciar a cena de carinho, a mãe fala: vai entender!
Nesse quadrinho Cebolinha, por ser menor do que o menino atingido pela bola,
vivencia uma situação semelhante à da irmã e a demonstração de carinho ao beijar
afetuosamente Maria Cebolinha é como se reconhecesse que os adultos ou as
crianças maiores, quando protegem as crianças menores, estão fazendo justiça com
os pequeninos. De acordo com Oliveira (2006), os irmãos, nessa idade, mostram-se
ciumentos e muitas vezes hostis um com o outro. Embora ocorra uma interação
agressiva, há também comportamentos adequados, o que demonstra ser um
relacionamento especialmente importante na vida da criança.
Uma outra questão referente à história é a possibilidade de uma interação
maior do público. Quando o menino maior “olha” para o leitor e o interroga (ah! tô
sabendo! foi né?!) é uma maneira de solicitar a participação de quem está lendo e
como se desejasse obter a confirmação do leitor de que foi realmente Cebolinha que
o atingiu. Um outro exemplo dessa interação com o público é a seguinte fala de Chico
Bento: i ocê qui tá lendo a revista?gosta di quê?! Batata frita?Batata cozida? Salada
di batata, o...Esse recorte foi extraído da história intitulada É hora de almoço, é hora
de batata! (Revista Chico Bento, n.320, p.33). A tentativa de interação com o público
é mais um recurso do discurso quadrinizado objetivando manter a atenção do leitor.
Os filhos que são mostrados nos quadrinhos devem apresentar,
invariavelmente, dois comportamentos: serem bons e obedientes. Porém, o que
observamos é que eles não conseguem ser tão bons e nem tão obedientes, uma vez
que sempre estão fazendo alguma coisa que desagrada os pais.
78
Em muitas situações, as crianças se comportam de forma bastante criativa na
invenção de brincadeiras; seja quando tentam ajudar suas mães na faxina, na
preparação do almoço ou nos cuidados com a irmã mais nova, como é o caso de
Cebolinha. Exemplo ilustrativo deste último caso é a narrativa intitulada Para distrair
uma irmãzinha... (Revista Cebolinha, n.107, p.7-10). Nessa história, a mãe de
Cebolinha necessita ausentar-se de casa e pede para o filho “olhar” Maria Cebolinha.
O discurso inicial dela é de advertência para o filho não deixar a irmã se sujar, pois
ela já tinha dado banho na caçula e não gostaria de ter dois trabalhos. Cebolinha,
tentando obedecer às ordens da mãe, inventa várias brincadeiras para distrair a irmã
e não permitir que ela se suje. Para deixar a caçula limpa, é o próprio Cebolinha que
fica sujo, em decorrência das brincadeiras criadas.. Quando a mãe chega em casa, o
filho mais velho diz: Veja! ela tá limpinha!Tomei conta dela dileitinho! Agola, a
senhora não vai precisar dar outlo banho nela, e... (Revista Cebolinha, n.107, p.10).
Realmente Cebolinha conseguiu deixar Maria Cebolinha limpinha, só que, a limpeza
da menina foi às custas da sujeira dele. A mãe das crianças olha para o filho e
verifica o estado de sujeira que ele se encontra e vai lhe dar banho. No final da
história, a mãe não consegue evitar mais um trabalho; porém, é no filho mais velho
que ela dá banho. Normalmente, Cebolinha não precisa da ajuda da mãe para tomar
banho, mas a sujeira era tanta... Nesse quadrinho, Cebolinha, ao distrair a irmã com
brincadeiras, evidencia a relevância da atividade lúdica no cotidiano dessas crianças.
Uma outra história que mostra Cebolinha cuidando de sua irmã é a de título
Chora, Mariazinha, chora... (Almanaque do Cebolinha, n.63, p.43-48). Nessa
narrativa, Cascão ganha dois convites para ir ao cinema e vai até a casa de
Cebolinha convidar o amigo para acompanhá-lo. Mediante o convite, Cebolinha avisa
Cascão que não poderá acompanhá-lo, pois a sua mãe saiu e ele terá que tomar
conta da irmã. Diante da situação, Cascão sugere: E daí? leva ela junto! o filme é
livre, ué! Cebolinha considera a idéia do amigo muito boa e decide levar a menina
para o cinema: Viu só, Maliazinha, que ilmão legal que eu sou? vou te levar ao
cinema! Porém, quando eles entram no cinema e as luzes se apagam e o filme tem
início, a menina começa a chorar. Após várias tentativas sem sucesso de calar
Mariazinha, o irmão (bastante a contragosto) decide sair com a irmã da sala de
exibição e esperar Cascão do lado de fora. Duas horas depois, Cascão sai da sala de
exibição radiante: Ê filmão! Cascão ao perceber a expressão de raiva de Cebolinha,
fala: Pode deixar que depois eu conto tudo, tá? Cebolinha com bastante raiva
79
responde: Não plecisa! E ao chegar em casa, levanta a irmã em seus braços e fala:
satisfeita, Maliazinha? Tá? Conseguiu estlagar o meu filme! e ainda fica aí, com essa
cala de inocente! A mãe recebe os filhos na porta de casa e diz para a filha que vai
contar “aquela” história que a menina “tanto gosta”. Ao ouvir as palavras da mãe,
Cebolinha tem uma idéia e quando a genitora inicia a leitura da história, o menino
“finge” estar chorando. O choro de Cebolinha pode ser interpretado como uma
vingança; já que a menina não o deixou assistir ao filme, ele não a deixará ouvir a
história contada pela mãe.
2.7 Os avós e outros parentes
As figuras dos avós fazem parte de nosso imaginário; elas estão ligadas à
memória familiar, elemento-chave nos processos de identificação e, portanto, na
construção do sentido de pertencimento entre os membros de uma família (VITALE,
2005).
As avós quadrinizadas são apresentadas como pessoas economicamente
independentes da família. Essas personagens não têm os problemas próprios da
velhice: doença, solidão, dependência afetiva e, em alguns casos, econômica da
família.
A figura do avô não é mostrada, apenas da avó e ela pouco aparece nas
histórias. Nas poucas vezes em que essa personagem aparece, é contando histórias
para os netos e amigos; essa relação possui mais um caráter lúdico. Não existe muita
influência das avós na educação das crianças. A maioria não possui nomes, exceto a
avó de Chico Bento, cujo nome é Vó Dita (Benedita Maria de Jesus). Essa
personagem é inspirada na avó de Maurício de Sousa, D. Benedita (que contava
histórias para o quadrinista). Ela é a personagem-avó que mais aparece nas
narrativas. Freqüentemente, a idosa
27
dirige-se à casa da sua família para contar
histórias para o neto (essa situação é mostrada na Revista Chico Bento, n.244, p.
16). A falta de luz elétrica, com as noites no sítio iluminadas apenas pela lua, e o ar
bucólico do campo tornam-se cenário para as histórias contadas pela Vó Dita.
27
Pessoas que possuem mais de 60 anos. Aparentemente, as avós retratadas por Maurício de Sousa
estão acima dessa faixa etária.
80
A coisa toda acontecia logo depois da janta. Iam chegando netos,
meus primos, algumas crianças vizinhas, ajeitávamos em volta de Vó
Dita, sentada num banquinho de madeira, com um pito aceso,
baforadas separadas o tempo necessário para a narração de um
“capítulo” da história da noite. Todos perto do fogão a lenha, sempre
aceso.
E as histórias?
Eram um rol de encantamentos, viagens, fantasias e emoções. Que
jamais entendi de onde a vovó tirava. Era analfabeta, mas todas as
histórias que conheço, hoje, do folclore europeu ela também conhecia.
Passagens bíblicas ou dissertações espiritualistas? [...]. Mas havia um
tema que era o mais aguardado... e que nos dava medo: eram as
histórias de assombração, que ela contava como se, todas elas,
tivessem acabado de acontecer com parentes ou amigos próximos.
Arrepiavam-nos. E era nessas noites que eu resolvia pegar no sono e
rapidamente dormir por ali mesmo.
As mil e uma noites de Sherazade perderam longe para minhas muito
mais de mil noites ouvindo a Vó Dita. Com seu senso perfeito de ritmo
nas narrativas, busca de temas dos mais variados, noção exata do
momento e clima para desfechos.
Hoje, eu escrevo histórias. E tento seguir muito do que minha avó me
passou ou ensinou. Mas ela foi única. Sou um aprendiz em busca de
sua perfeição. Que não conseguirei atingir nesta existência. Mas vale
seguir com a tradição de contador de histórias (SOUSA, 1999, p.30-
31).
Essa longa citação de Maurício ilustra a influência da avó em sua obra e
quanto situações da infância do quadrinista estão presentes em suas narrativas.
A avó materna é que aparece. Ela representa a figura clássica da “vovozinha”
sentada na cadeira de balanço, cabelos brancos e presos com um coque ou por um
lenço, fazendo tricô ou crochê, presente nos livros infantis. Essa vovó corresponde ao
perfil das avós mauricianas. Estabelecendo uma relação com os quadrinhos de
Disney
28
no tocante ao perfil da figura da avó, encontramos nos quadrinhos norte-
americanos uma avó mais participativa da vida familiar.
Nos quadrinhos mauricianos, além das avós, a família é constituída ainda
pelos tios e primos. O tio e a tia são personagens bastante inexpressivos. A tia, como
todas as mulheres descritas nos textos, está sempre ocupada com as tarefas do lar e
a figura do tio é praticamente inexistente nesse universo. A tia de Magali é uma das
mais famosas desse universo ficcional e o seu nome é “Tia Nena. Essa tia,
freqüentemente procura fazer alguma coisa para agradar a sobrinha; preparando
bolos e doces para a menina ou tricotando um pulôver para Mingau, o gato de Magali.
28
Estamos nos referindo a Vovó Donalda que exerce bastante influência em seus netos.
81
Conforme o seguinte recorte: O que está fazendo, Tia Nena? A Tia responde: Já fiz!
Olha só que lindo pulôver para o Mingau! (Revista Magali, n.392, p.24). Há também a
figura do primo de Chico Bento, que é aquele que mais coadjuva as histórias desse
protagonista.
As figuras de meninas, mães, tias e avós demonstram como no universo
mauriciano a presença feminina é evidenciada.
2.8 A família desenhada por Maurício de Sousa
Após a apresentação dos temas constantes em cada item deste capítulo, é
possível identificar a família que é construída por Maurício de Sousa. Para realizar a
identificação, faz-se necessário ressaltar as concepções de família que permeiam as
nossas interpretações no desenvolvimento desse eixo temático.
Para ilustrar a concepção de família e sua relação com a infância, recorremos
à seguinte declaração:
A família é a principal responsável pela alimentação e pela proteção
da criança, da infância à adolescência. A iniciação das crianças na
cultura, nos valores e nas normas de sua sociedade começa na
família. Para um desenvolvimento completo e harmonioso de sua
personalidade, a criança deve crescer num ambiente familiar, numa
atmosfera de felicidade, amor e compreensão. (Declaração Mundial
sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da criança nos
anos 90) (KALOUSTIAN, 2002, n/p).
Compreendemos a família como sinônimo de cooperação e integração entre
seus membros, e, apesar das mudanças que estão ocorrendo no âmbito dessa
instituição, ela continua sendo a “base de tudo”. Conforme dizem Ferrari e Kaloustian
(2002, p.13), “a família é percebida não como o simples somatório de
comportamentos, anseios e demandas individuais, mas sim como um processo
interagente da vida e das trajetórias individuais de cada um de seus integrantes”.
Trabalhamos, pois, na elaboração deste capítulo com uma concepção de que
a família é locus privilegiado onde se estabelecem relações fraternas entre os seus
componentes; unidade básica no processo socializador; lugar fundamental de
82
“atenção à infância”. Cabe à família a responsabilidade pela criação, educação,
desenvolvimento e formação da criança.
É necessário esclarecer que a socialização não é simplesmente introjeção
das normas e valores institucionais pelos sujeitos, mas um processo de interação
entre o sujeito e os grupos, que produz sua própria subjetividade. A família é um
grupo basilar que promove essa interação e, portanto, uma instância produtora da
subjetividade dos sujeitos.
O mundo familiar construído por Maurício de Sousa estrutura-se em relação à
criança; as famílias se constituem a partir dela. As crianças são elementos
indispensáveis na vida quotidiana dessa instituição, pois todas as tramas acontecem
em torno delas.
Como dito anteriormente, o modelo que Maurício de Sousa retrata em seus
quadrinhos é o da família nuclear, monogâmica, formada de mãe, pai e filhos. Esse
modelo de família possui como características: uma estrutura hierarquizada, no
interior da qual o pai exerce autoridade sobre a esposa e a prole; uma clara
delimitação das atribuições masculinas e femininas e o tipo de vínculo afetivo
existente entre os cônjuges e entre esses e os filhos, sendo que neste último caso há
uma maior aproximação entre a mãe e os filhos.
Sobre o modelo de família nuclear, Romanelli (2006, p.74) afirma:
A importância da família nuclear não reside apenas no fato de ela ser
o arranjo doméstico estatisticamente preponderante, mas resulta do
significado simbólico de que ela foi revestida, convertendo-a em
modelo hegemônico (Grifo nosso).
O pai provê, com o seu trabalho, todas as necessidades da família; a mãe
cuida da casa e das crianças. Eles tentam proporcionar um lar estável e harmonioso
para as crianças. Estas brincam, são alegres e despreocupadas. Nos quadrinhos
mauricianos, a ênfase na supremacia masculina do “chefe de família” não eclipsa a
autoridade materna; ao contrário, as crianças temem a reação da genitora quando
fazem alguma coisa errada.
Um outro traço marcante da família mostrada pelo quadrinista é a ausência de
conflitos externos. O mundo dessa família gira em torno de si mesmo, não sujeito à
83
mudança. A organização da família mauriciana é um reforço ao espaço privado e ao
individualismo. Apesar de “viverem” junto dos pais, não percebemos nas crianças
uma preocupação com a família, e sim com elas mesmas. Mediante essa
constatação, recorremos novamente a Romanelli (2006) quando afirma que o
familismo tende a ser gradualmente deslocado e substituído pelo individualismo. Essa
tendência associada à democratização da vida doméstica e à cristalização de
interesses individuais, em detrimento dos interesses do grupo familiar, está cada vez
mais presente nas famílias de classe média.
O declínio da autoridade dos pais contribui decisivamente para que os filhos
assumam a posição de “sujeitos de direitos”, fora e dentro da unidade doméstica,
ficando em um plano secundário a condição de “sujeitos de deveres” (ROMANELLI,
2006).
As crianças quadrinizadas possuem poucos deveres e mais direitos: direito à
alimentação, ao lazer, à saúde e à educação (Chico Bento). No tocante às
obrigações, são apenas duas as personagens que as possuem: Chico Bento, que
freqüenta a escola e ajuda seu pai na roça, e Cebolinha que, em algumas histórias,
na ausência da mãe, cuida da irmã caçula.
Na obra mauriciana, a família assume um papel bastante significativo para a
criança, apesar de alguns distanciamentos físicos e afetivos entre os seus membros,
podemos afirmar que essa instituição assegura uma certa estabilidade para as
crianças. Como não existe a presença da escola no cotidiano de quatro das cinco
protagonistas das revistas, a família e os amigos são as bases de apoio e
socialização das crianças.
Podemos afirmar que o cenário apresentado pela família é o de felicidade e
união entre todos os seus membros, os quais colaboram para que a família seja um
lugar de segurança e tranqüilidade. Essa instituição se configura como se não fosse
uma microestrutura inserida em um contexto mais abrangente (macroestrutura),
fechada a toda complexidade existente na sociedade. Isso sugere que a felicidade, a
segurança e a tranqüilidade da família dependem, única e exclusivamente, dela
mesma. A família, dessa forma, é destituída de toda e qualquer responsabilidade para
com uma tomada de posição diante dos problemas sociais. Diante desse contexto, a
criança permanece imune às contradições sociais existentes.
Em síntese, podemos dizer que o cenário do ambiente familiar desenhado por
Maurício retrata pais, filhos, irmãos, avós, tios e primos como pessoas felizes, que
84
vivem em harmonia, sem grandes problemas e preocupações. Alguns aspectos da
família quadrinizada mauriciana seriam lembranças nostálgicas da família do autor
quando ele era criança.
O fato de Maurício de Sousa deixar uma importante faceta da infância, a vida
escolar, sob a responsabilidade apenas de Chico Bento, leva-nos a elaborar vários
questionamentos: Qual o papel da escola na formação dessas crianças? Como se dá
o relacionamento entre discentes e docente? Como a escola é mostrada nas HQs de
Maurício? Essas e outras indagações nortearão a discussão no próximo capítulo
desta tese.
85
3 ESCOLA E SOCIEDADE: o itinerário educacional de Chico Bento
Este capítulo tem como objetivo principal caracterizar a escola construída nos
quadrinhos de Maurício de Sousa. A análise focaliza algumas questões centrais como
o papel da escola, a imagem da professora e dos alunos, o relacionamento entre eles
e a escola de papel identificada na obra mauriciana.
O entrelaçamento das palavras criança e escola está relacionado a
mecanismos de controle e práticas disciplinares, com vistas ao exercício do poder e à
produção de um saber sobre a criança. Esta é considerada um ser em
desenvolvimento, que precisa ser escolarizada, disciplinada, preparada para ser
eficiente no futuro. A criança passa a ser vista como “semente das gerações futuras”
(FOUCAULT, 1993, p.232) e deve ser educada para seguir um conjunto de normas e
condutas. Esse conjunto de regras embasa o que conhecemos atualmente como
disciplina.
Desenvolvendo a noção de disciplina, Foucault (2002, p.118) diz:
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do
corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há
muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também.
Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII
fórmulas gerais de dominação (Grifo do autor).
A categoria disciplina é uma das principais elaborações conceituais de
Foucault, uma categoria teórica que permite refletir como se organizam algumas
instituições modernas, dentre as quais a escola, que nos interessa em especial, nesta
discussão. Quais são seus modos de funcionamento e as relações que se
estabelecem entre o saber e o poder nas sociedades que abrigam instituições onde
circulam crianças?
É no século XIX que a escolarização se torna obrigatória e a escola passa a
ser a instituição responsável pela aprendizagem. Até então, os membros da elite não
deixavam de receber a educação que os preparava para exercer condignamente seu
lugar na sociedade; mas não eram obrigados a se sujeitar às normas de uma
instituição exterior ao espaço familiar e de organização própria. As crianças oriundas
86
das camadas mais populares, por sua vez, foram igualmente acolhidas pelo sistema
escolar. Entretanto, nem sempre lhes eram ofertado ensino de qualidade equivalente
(ZILBERMAN, 1997, p.23).
Recorrendo mais uma vez aos estudos foucaultianos, podemos afirmar que a
forma pela qual a instituição escolar se implantou no século XX se articulou às
técnicas do poder disciplinar, uma vez que este
é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem
como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e
se apropriar ainda mais e melhor [...]. O sucesso do poder disciplinar
se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar
hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num
procedimento que lhe é específico, o exame (FOUCAULT, 2002,
p.143. Grifo do autor).
Dos instrumentos citados pelo autor, enfatizamos o exame, pois de todas as
técnicas do poder disciplinar, consideramos o exame a mais “especificamente
educacional e escolar” (NOYOLA apud KOHAN, 2003, p.77). Mais do que em
qualquer outra organização social, a figura do exame é ritualizada pela escola num
jogo constante de perguntas e respostas que impulsiona os mecanismos de
constituição do saber numa relação de poder específica.
[...] o exame é na escola uma verdadeira e constante troca de
saberes: garante a passagem dos conhecimentos do mestre ao
aluno, mas retira do aluno um saber destinado e reservado ao
mestre. A escola torna-se o local de elaboração da pedagogia. E do
mesmo modo como o processo do exame hospitalar permitiu a
liberação epistemológica da medicina, a era da escola “examinatória”
marcou o início de uma pedagogia que funciona como ciência
(FOUCAULT, 2002, p.155-156. Grifo do autor).
Isso significa que, por meio da disseminação das técnicas e estratégias de
exame no cotidiano escolar, o campo pedagógico promoveu o engendramento de um
conjunto de saberes sobre o aluno “ligado aos traços, às medidas, aos desvios, às
‘notas’ que o caracterizam e fazem dele, de qualquer modo, um caso” (FOUCAULT,
2002, p. 160). Nesse sentido, a escola é para o autor um “aparelho de exame
87
ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino”
(FOUCAULT, 2002, p.155). Um controle normalizante, uma vigilância que possibilita
medir, sancionar e punir.
Assim, podemos deduzir que os processos avaliativos constituem, sem dúvida,
uma das manifestações mais evidentes do impacto das técnicas examinatórias no
contexto escolar. É através da avaliação que se torna possível conhecer e controlar
cada qual dos discentes, organizando-os individualmente de acordo com as
competências ansiadas.
Atualmente, a escola exerce uma importância tão grande na vida das crianças
que, segundo Papalia e Olds (1998, p.372), “os anos da infância média,
aproximadamente de 6 a 12 anos, são freqüentemente chamados de anos escolares”
(grifo das autoras). Sob essa perspectiva, a escolarização desempenha um papel
fundamental na constituição do indivíduo que vive numa sociedade letrada e
complexa como a nossa.
Mediante essas afirmações, uma questão que merece reflexão é a ausência,
no corpus desta pesquisa, de quatro personagens na escola, dentre as Cinco
Grandes; apenas Chico Bento estuda. Cebolinha, Mônica, Cascão e Magali, apesar
de terem idade suficiente (declaradamente sete anos), não freqüentam os bancos
escolares. A Turma da Mônica propriamente dita não vai à escola, o que distancia
essas personagens, em termos de realidade, de grande parte do público leitor desses
quadrinhos que está em idade escolar. Essa não é uma omissão qualquer, já que a
escolarização se impõe hoje muito cedo, desde os dois primeiros anos de vida.
Contraditoriamente, as personagens que freqüentam a escola são as crianças
moradoras do meio rural, mesmo com todas as dificuldades encontradas no campo:
distância da escola, ausência de transporte escolar, escassez de recursos, falta de
infra-estrutura, dentre outras. Diante dessas constatações, portanto, analisamos
Chico Bento, procurando responder à seguinte questão: como a instituição social
escola comparece nos quadrinhos de Maurício de Sousa e qual o papel dessa
instituição na formação dessa personagem?
Chico Bento, criado em 1961, teve como inspiração um tio-avô de Maurício, do
qual o autor ouvia diversas histórias que haviam sido contadas pela sua avó. Em
1982, foi lançada a primeira revista com a Turma da Roça, entre eles Rosinha
(namorada de Chico Bento), Zé Lelé (primo de Chico), Hiro e Zé da Roça. A Turma
de Chico Bento vivencia o cotidiano rural: o trabalho com a terra, o cuidado com os
88
animais, a valorização das lendas e dos costumes campestres. Os amigos, além da
professora, pais, vizinhos e Padre Lino, são as personagens coadjuvantes das
histórias de Chico Bento. Todas essas personagens divulgam a rotina de grande
parte da população rural do Brasil e abordam questões particulares desse segmento
social, principalmente a constante preocupação com a preservação da natureza, pois
é dela que essa população retira seu sustento.
Chico é filho único
29
, assim como a maioria das crianças de sua turma, com
exceção de Zezé Lelé, que possui irmãos. Apesar de tirar freqüentes notas baixas,
Chico Bento nunca é mostrado repetindo série. Não se menciona em que ano
escolar ele está, mesmo sabendo ler, escrever e fazer contas. Junto ao pai (Seu
Bento), trabalha arduamente na roça; ara a terra, semeia, rega as plantas e as
colhe. Além do trabalho com a plantação, Chico, também coloca uma “banca” na
feira da Vila Abobrinha, com o objetivo de vender a colheita.
Fonte: Almanaque do Chico Bento, n.64, p.18.
29
Em uma história aparece a irmã de Chico Bento (Mariana), mas ela faleceu e se “transformou em
uma estrela”; como mostrado no quadrinho de título Uma estrelinha chamada Mariana (Revista
Chico Bento, n.454, p 1-9).
89
Devido os afazeres do dia-a-dia (trabalhar e estudar), freqüentemente ele
sente-se cansado e ao visualizar a sombra de uma árvore ou uma rede, adormece
com facilidade. Quando o protagonista não consegue dormir direito e passa o dia
cochilando pelos cantos, ou quando não está trabalhando ou estudando, é chamado
de preguiçoso, principalmente quando está pescando ou dormindo na rede.
Um dos exemplos ilustrativos é a história de título Eita, correria... (Revista
Chico Bento, n.456, p.55-57). Nesse quadrinho, o protagonista prepara-se para
pescar (um de seus lazeres preferidos): vai caminhando com o dinheiro na mão até
o armazém comprar a linha e o anzol, volta para o sítio e vai para a roça,
especificamente na plantação de bambu, onde retira um para servir de vara. Depois,
pega a enxada, cava a terra e retira várias minhocas que servirão de iscas. Após
todo esse trabalho, quando finalmente ele consegue chegar ao rio e pescar, aparece
Rosinha que o interroga: Ê vida boa! Como ocê gosta dessa vida di preguiçoso, né?
Chico Bento é a única personagem dentre as Cinco Grandes a namorar
firmemente. Rosinha, seu par romântico, é uma menina sonhadora, romântica,
teimosa, temperamental e ciumenta. Rosinha não foge dos estereótipos de
“mocinha” (bem comportada, boa aluna, procura sempre Chico para salvá-la quando
se encontra em situação de perigo) para reforçar o papel de “mocinho” do
protagonista. Essa menina, mesmo empregando uma linguagem diferente da norma
culta, está entre os melhores alunos da classe. Constantemente, a educanda recebe
elogios da professora. Um exemplo ilustrativo da situação é a história Queria ser...,
(Revista Chico Bento, n.460, p.30-33) onde D. Marocas passa como tarefa a
elaboração de uma redação cujo título é Queria ser... Rosinha, em seu trabalho,
afirma que gostaria de ser uma rosa e disserta sobre as vantagens da flor. Quando a
menina entrega a tarefa para a professora, D. Marocas emite o seguinte comentário:
Hum...Muito bem!
Rosinha faz planos para casar-se com Chico Bento quando os dois
crescerem. As cenas de namoro entre os dois são identificadas através das
expressões faciais, beijos nas mãos e no rosto e, muito raramente, um beijo nos
lábios. Os símbolos que ilustram essas cenas são corações, estrelas e flores. Como
mostrado no quadrinho a seguir:
90
Fonte: Revista Chico Bento, n.377, p.28.
Diferentemente das outras Quatro, Chico trabalha na roça e estuda. No
tocante ao trabalho dessa personagem, seu criador tem recebido várias críticas de
instituições que lutam pela erradicação do trabalho infantil, porém, até agora,
Maurício de Sousa não se pronunciou a respeito do assunto. Chico Bento trabalha
para ajudar os pais a aumentar a produtividade de suas terras, questão comum
entre moradores do meio rural, que também, a exemplo de outras famílias, não têm
“[...] distanciamento crítico suficiente para ver a atividade da criança como ‘trabalho’”
(RIZZINI, 2004, p.385. Grifo da autora). Mediante algumas constatações sobre o
trabalho de Chico, julgamos importante, também, relacionar o trabalho ao
desempenho escolar da personagem e identificar como tal questão é tratada nas
histórias desse protagonista.
Chico Bento acorda cedo (com o cantar do galo) e vai direto para a roça, onde
ordenha vaca, coloca comida para os bichos (porcos, galinhas, patos) e ara a terra. O
trabalho dessa criança ocorre devido ao desejo do protagonista em manter uma
tradição geracional no lidar com a terra, já que identificamos o trabalho na roça como
uma marca identificadora da família. Percebemos também que Chico trabalha devido
a fatores econômicos, pois sua família não tem condições de remunerar um
empregado (diferentemente da família de Zé da Roça que possui uma melhor
situação financeira e em sua fazenda há empregado). “Há situações, como a de
pequenos proprietários que dependem do trabalho de toda a família para manter a
produção, mas apesar disso conseguem enviar as crianças para a escola” (RIZZINI,
2004, p.386). Encontramos essa mesma situação mostrada pela autora nos
quadrinhos de Chico Bento.
91
Mas, o que realmente preocupa Chico são as obrigações escolares, uma vez
que tirar notas baixas é uma constante em seu itinerário escolar, como demonstrado
no recorte a seguir.
Fonte: Revista Chico Bento, n.250, p.29.
A expressão “tô lascado de novo” significa a preocupação e as dificuldades do
menino na realização dos trabalhos escolares e a freqüência com que ele recebe
notas abaixo da média. Na história acima, Mamífero Voador, a professora passa
para o aluno um trabalho sobre mamífero voador. Quando comenta o teor da tarefa
ao seu colega Zé da Roça, o amigo diz: é simples, Chico e tenta explicar para Chico o
que é um animal. Chico não consegue entender as explicações do amigo e fica
zangado com Zé da Roça quando ele o chama de animal racional. Chico não
consegue entender o que significa “racional” e associa o adjetivo a quem come ração.
Igual situação ocorre quando o seu outro amigo Hiro inicia a mesma explicação.
Como não entende as explicações dos amigos, ele decide “ir aos pouquinhos” e tenta
descobrir primeiramente o que é um mamífero. Para saber o que é um mamífero,
Chico pergunta para sua mãe: mãe, o qui quê dizê mamífero? A mãe responde: é o
qui mama, fio! Os gato quando nasce si alimenta mamando, como os cachorro, as
92
vaca...I nois, também somo mamífero, pois os bebê são amamentado. Ao ouvir as
explicações dadas pela mãe, a criança diz: puxa, intão a coisa é simpres memo! Tá
arresorvido o probrema! Agora é só discubrir um bicho qui mama e avoa tamém!
Pronto, cabei! Aminhã, vô fazê bunito na iscola! Vô arrasá! No dia seguinte, a
professora pergunta: vocês fizeram o trabalho de casa. Chico feliz por ter realizado a
tarefa e com o trabalho na mão diz: eu fiz fessora! tá aqui, ó! Então, D. Marocas pede
para ele ler a tarefa para a classe. Chico lê para a turma o resultado de suas
pesquisas: só ixiste um mamífero avoador...o piloto di avião!. Em suas conclusões,
a criança limita o adjetivo mamífero aos seres humanos e associa voador ao
transporte aéreo. No final da história, a afirmação de Chico causa decepção e
preocupação à professora e provoca “espanto” à turma.
Há vários exemplos em que Chico Bento consegue obter uma boa nota, mas é
freqüentemente punido pela professora por ter burlado alguma norma escolar. Um
exemplo dessa situação será demonstrado mais adiante. Por ser ingênuo e sentir
dificuldades em adaptar-se à vida na cidade, nas poucas vezes que ele dirige-se ao
centro urbano, sua vontade é voltar logo ao campo.
As temáticas mais recorrentes nas histórias do protagonista são: a
preocupação com a preservação da natureza, o conflito entre o rural e o urbano e o
cotidiano escolar de Chico. Na visão de vários teóricos que se dedicam à temática
dos quadrinhos (CIRNE, 1974, 1975, 1982; SANTOS, 2002), Chico Bento seria uma
referência ao Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato. A personagem mauriciana
encarna essa ingenuidade, falta de malícia e alguns valores que muitas vezes fazem
parte da vida de crianças rurais.
Chico Bento demonstra ser uma criança feliz: ele não reclama de suas
obrigações no lidar com a terra. O trabalho de toda a família é uma tradição mantida
há gerações. Por isso, Chico sente-se orgulhoso em dar continuidade a essa tradição.
O trabalho dele não o afasta da sala de aula, mas, para Chico, devido às dificuldades
encontradas na aquisição de boas notas nos exames, as tarefas escolares são mais
difíceis de realizar do que o trabalho nas terras da família. Seu desempenho é bem
melhor no trato com a terra do que dentro da sala de aula. A escola de Chico Bento
não é nada atrativa, é um espaço onde ele não se sente valorizado, pois suas
dificuldades na apreensão de conteúdos escolares e as constantes notas baixas são
temas recorrentes nas histórias. Seus amigos e companheiros de sala, em algumas
histórias, associam a figura do animal burro ao protagonista.
93
Fonte: Revista Chico Bento, n.299, p.34.
Em vários quadrinhos, é mostrado o desejo do protagonista de, quando tornar-
se adulto, ser igual ao pai. Seu Bento é motivo de admiração e orgulho para o filho.
Na história intitulada É o meu pai (Revista Chico Bento, n.428, n/p), Chico observa a
rotina paterna e tece inúmeros elogios ao seu genitor: honesto, digno, trabalhador,
esperto, cheio de vida e energia, mesmo quando mostra-se durão, algumas vezes,
exigindo-lhe um melhor desempenho na escola. Chico compreende que a cobrança
do pai deve-se à preocupação com seu futuro, pois o desejo paterno é que ele,
quando adulto, siga a carreira de médico, engenheiro ou agrônomo. Nesse
quadrinho, há uma demonstração explícita da vontade do protagonista: Chico não
quer ser doutor, engenheiro ou advogado, uma vez que as virtudes do pai ressaltadas
pelo filho independem de grau de escolaridade ou profissão. A criança enfatiza em
seu discurso valores humanos: honestidade, dignidade e bondade, características
marcantes da personalidade paterna. Nessa história, podemos identificar uma
contradição entre a aspiração do filho e de seu pai em relação a ele: apesar de Chico
Bento saber da vontade do pai de que ele siga uma das profissões tradicionais
elencadas na história, a criança não deseja isso; ele almeja para seu futuro ser a
continuação de seu pai que, por sua vez, é a expressão de continuidade de seu avô.
94
Nas análises das histórias, encontramos algumas razões para as recorrentes
notas baixas do protagonista: o amor que ele sente por Rosinha, que estuda na
mesma sala, desviando sua atenção das explicações da professora por estar com os
olhos voltados para a sua namorada; sua distração; seus encontros amorosos com
Rosinha; em algumas situações, o trabalho (que o absorve, deixando-o sem tempo
para estudar); o lazer e as brincadeiras.
Na história de título Nota Baixa (Almanaque do Chico Bento n.42, p.23-27), a
professora, ao entregar a avaliação a Chico, avisa-o de sua nota baixa e pede-lhe
para que a prova seja devolvida assinada pelo seu pai. O aluno fica aflito temendo a
reação paterna e lembra dos motivos que o levaram a tirar uma nota baixa: banhos
no ribeirão, comer os frutos da goiabeira do Nhô Lau e os encontros com Rosinha.
Após a lembrança dos fatos que o desviaram do estudo, Chico Bento emite a
seguinte constatação: agora mi alembro! Fiquei vadiando o tempo todo! Quando
percibi, já tava na hora da prova. A criança hesita em mostrar a avaliação ao pai.
Quando o menino está deitado em sua cama sem conseguir dormir e o seu pai entra
no quarto, encontrando-o insone, pergunta-lhe: O qui ocê tem,fio? Premero jantô só
um tiquinho...Adispois num consegue drumi... Ao ouvir o pai, Chico começa a chorar
e abraçando Seu Bento diz: Eu pormeto qui istudo mais no meis qui vem! Num fico
mais vadiando! Vô mi isforçá! Sem saber o que estava acontecendo, o pai fala:
Ispera, fio! Num tô intendendo! O menino então mostra a prova ao pai: Óia, pai! Ao
receber a avaliação, Seu Bento pontifica: Ta bão! Eu assino! Mais quero vê uma nota
boa no meis qui vem! Chico Bento responde: Juro, pai! Só que no mês seguinte a
situação se repete e Chico faz a mesma promessa ao pai. Como toda criança, Chico
gosta demais de brincar e, por esse motivo, muitas vezes negligencia com as
obrigações escolares (estudar para as provas, realizar os deveres de casa, etc.), pois
em sua rotina elas não são prioritárias. Uma outra razão para o seu baixo
desempenho escolar é a não-valorização da escola por parte do protagonista
(questão à qual retomaremos mais adiante). A história É o meu pai ilustra bem essa
questão.
Quando Chico consegue realizar toda a lição de casa, é motivo de ironia e
estranheza por parte da professora. Exemplo ilustrativo dessa questão consta no
recorte discursivo da história intitulada Apaixonada (Revista Chico Bento, n.456, p.
58-65). Nesse quadrinho, a galinha (Giselda) de Chico Bento “apaixona-se” pelo seu
dono e o segue até a escola. Apesar dos apelos do protagonista, a ave consegue
95
entrar na sala de aula no momento em que a professora (D. Marocas) está dando os
parabéns a Chico por ter feito toda a lição de casa: Então, você fez toda a lição de
casa, Chico? Milagre... quero dizer, parabéns! Mesmo tendo cumprido com a
obrigação, o aluno é dispensado da aula e ainda recebe uma advertência, devido à
desordem provocada por seu animal. Ao sair da escola, Chico Bento encontra-se com
Rosinha que o indaga, com o dedo em riste:
Chico? ocê num foi pra iscola?
Meio constrangido, Chico responde:
Er...a fessora mi dispensô!
Rosinha: Intão, agora, ocê tá livre?
Chico Bento: To!
Rosinha: Tava, né?
Chico Bento: Era isso qui eu ia falá!.
Mediante o diálogo, podemos realizar algumas observações sobre o papel da
escola para essas crianças: quando a menina pergunta: intão, agora, ocê tá livre?
(grifo nosso), o “livre” representa o significado atribuído por essas crianças à escola.
Essa instituição, nos quadrinhos de Chico Bento, não é vista como um espaço de
prazer e alegria (o que não a diferencia muito de algumas escolas da vida real), mas
apenas como um lugar onde as crianças têm que cumprir com as obrigações para
não serem punidas quando desobedecerem a alguma norma. Desse modo:
[...] Não são apenas os prisioneiros que são tratados como crianças,
mas as crianças como prisioneiras. As crianças sofrem uma
infantilização que não é delas. Nesse sentido, é verdade que as
escolas se parecem um pouco com as prisões [...]
30
.
Uma outra questão referente à conversa entre o casal é: Chico estava livre até
encontrar a sua namorada, a partir desse momento e até o final da história ele ficará
“preso” a Rosinha. Uma outra possibilidade de leitura para o diálogo seria: Chico,
agora estaria livre para fazer o que quisesse (brincar, nadar no ribeirão, pescar, etc.)
Cientes que podem ocorrer outras possibilidades interpretativas para a palavra livre,
30
Fala de Deleuze, extraída de Foucault (1993, p. 73).
96
privilegiamos a primeira possibilidade, fundamentados no funcionamento discursivo
dos quadrinhos de Chico Bento no tocante à escola e na significação que os alunos
atribuem a essa instituição.
Na história de título Sarampo (Revista Chico Bento, n.263, p.21-23), o
colega de turma (Hiro) falta às aulas por ter contraído sarampo. Diante da situação,
Chico sugere ir visitar o colega doente que se ausentará das aulas durante uma
semana. A professora fica comovida e orgulhosa pela demonstração de coleguismo
e solidariedade por parte dos seus alunos e dará um dez em comportamento para
todos. Entretanto, quando ela pergunta para um aluno:
Zé da Roça! Você não vai junto com eles?
Zé da Roça: Eu já peguei sarampo!
Chico Bento, um pouco afastado da professora orienta seus
colegas: temo qui respirá bem pertinho dele, tá?
Constatamos, mediante esse recorte discursivo que o espírito de
solidariedade e coleguismo não está tão presente entre seus alunos como supõe
D.Marocas, e sim a vontade de contrair a doença para também não comparecer às
aulas. Quando os alunos não estão procurando alguma desculpa para se
ausentarem das aulas, eles estão inventando algum motivo para que não haja aula
(principalmente quando é dia de prova). No quadrinho de título Se não tá
preparado, adia! (Revista Chico Bento, n.460, p.16-23), o protagonista não sabia
que naquele dia haveria prova. Como ele, devido à falta de informação, não se
preparou para o exame, combina com Zé Lelé para que este e Chico inventem
algumas situações que impossibilitem a realização da prova. Após inúmeras
tentativas das duas crianças, a professora decide adiar a prova e na segunda
oportunidade dada pela professora, Chico consegue obter uma boa nota.
D. Marocas
31
é a professora e autoridade escolar que sempre exige de Chico
obediência às regras da escola: ser um aluno pontual, apresentar um bom
comportamento, realizar as lições de casa, estudar, tirar boas notas, etc. Quando
Chico Bento infringe algumas dessas normas, é humilhado, ridicularizado, xingado e
tratado com ironia pela professora. Nesse sentido, de acordo com Foucault (2002,
31
Única funcionária da escola que aparece nos quadrinhos.
97
p.149) na escola funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo
(atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, falta de
cuidado e de zelo), da maneira de ser (desobediência e descortesia), dos discursos
(insolência, conversas), dos corpos (atitudes “incorretas”, gestos inadequados,
higiene), da sexualidade (falta de modéstia, indecência). (Grifo do autor). Segundo
ainda Foucault (2002, p. 149), “ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda
uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a
pequenas humilhações”. O que se castiga são os desvios ou a falta de adequação às
normas.
Fonte: Revista Chico Bento n.263, p.34.
No quadrinho acima, podemos verificar como Chico é geralmente adjetivado
por sua professora. Comentários desse nível são constantes na postura profissional
da professora. Tratar Chico Bento como incapaz, incompetente, só produz mais
desmotivação e desinteresse no aluno, que tende a considerar-se fraco ou sem
condições de apreender os conteúdos ministrados pela professora. De acordo com as
correções de D. Marocas, tanto os deveres quanto as questões realizadas na
avaliação por Chico estão errados (apesar de não deixar claro quais foram os erros
cometidos). Mas será que realmente está tudo errado? Não há absolutamente nada
certo? Não há como aproveitar o que é realizado por ele? Conforme um outro
exemplo, não acertar nada na prova causa estranheza até no educando, quando ele
interroga: Num intendo! Como posso num acertá nada? A professora, ao devolver os
deveres e as avaliações não aponta onde o aluno errou. Ao negar esse feedback ao
educando, D.Marocas não considera, no processo ensino-aprendizagem, que os
exames são apenas um meio e não o fim para verificar o nível de aprendizagem do
aluno. Se o aluno não tem conhecimento dos erros cometidos, ele poderá cometê-los
98
novamente. Como ele irá saber o que foi aprendido e o que não foi? Dentro desse
contexto, podemos afirmar que no âmbito da escola de papel os instrumentos de
avaliação servem apenas para desqualificar Chico Bento. Como a professora não
sinaliza quais são as dificuldades apresentadas pelo aluno, fica difícil para ele tentar
superá-las.
Na relação entre Chico Bento e a instituição escolar, identificamos nas
histórias algumas das micropenalidades analisadas por Foucault, principalmente as
que dizem respeito ao tempo, à atividade e à maneira de ser. Iremos trazer para o
corpo do texto dois recortes discursivos que demonstram como essas
micropenalidades estão presentes no cotidiano escolar de Chico e como esse aluno é
frequentemente tratado pela professora.
Citamos como exemplo da micropenalidade do tempo (atraso) o seguinte
quadrinho, no qual Chico Bento é punido pela professora com uma nota zero por
chegar atrasado, apesar de conseguir desenvolver uma boa narrativa. O recorte
mostra também a conformação do aluno ao aceitar que sua média fique pela metade.
Fonte: Revista Chico Bento n.367, p.28.
No quadrinho a seguir, identificamos a micropenalidade dos corpos (atitudes
incorretas e gestos inadequados) na comemoração do aluno ao tirar um “dez em
aritmética”.
99
Fonte: Revista Chico Bento, n.439, n/p.
Uma outra micropenalidade presente nos quadrinhos de Chico é a referente à
atividade (desatenção). A distração do aluno é motivo de punição e das recriminações
por parte da professora.
Na escola, a qualificação e a norma se obtêm pelos castigos e sanções,
punem-se a desatenção, a ausência, o não-cumprimento de tarefas, a desordem.
É preciso ressaltar a importância de trazer para dentro da sala de aula as
experiências dos discentes, pois quando Chico Bento consegue estudar,
relacionando os conteúdos ministrados em sala de aula com suas vivências
cotidianas, ele melhora seu desempenho escolar e até recebe os parabéns da
professora. Na história intitulada Lição de casa (Revista Chico Bento, n.439, n/p),
Chico utiliza espigas de milho, goiabas e vacas para exercitar as operações de
divisão, subtração e multiplicação. E como geralmente acontece quando ele associa
seu conhecimento de mundo aos ensinamentos transmitidos pela professora, o
educando é por ela elogiado: Parabéns, Chico! suas notas de matemática estão cada
vez melhores!
No quadrinho cujo título é Zero, não!! (Revista Chico Bento, n.439, n/p) o
protagonista sonha que a professora lhe dá uma nota zero, e como seu pai lhe conta
que sua avó paterna costumava dizer que os sonhos têm a capacidade de prever o
futuro, ele decide passar o resto da noite estudando. Quando amanhece o dia, Chico
continua estudando, toma café e vai para e escola ainda estudando. Para surpresa
da professora, ele consegue tirar nota dez em aritmética. A respeito do resultado da
avaliação de Chico Bento, D. Marocas emite o seguinte comentário: Hum... pelo visto,
100
hoje é um dia para marcar no calendário! Chico...você tirou dez em aritmética. A
alegria do aluno não é apenas pela nota obtida, mas, principalmente, porque através
do estudo conseguiu mudar “as coisas” do sonho. Entretanto, devido à maneira como
Chico comemorou o resultado (gritando, dando cambalhotas e jogando livros e
cadernos para cima) recebe um olhar de repreensão da professora. No último
quadrinho, Chico Bento chega em casa e pergunta para a mãe: Mãe! Tá perparada
pra ovi quanto eu tirei im comportamento na crasse? No final da história, em relação
ao comportamento, fica a dúvida se a nota atribuída pela conduta invalida o dez
obtido na avaliação. Mesmo quando esse aluno consegue tirar boas notas, ele é
punido por não atender a alguma norma imposta pela escola, seja no tocante ao
comportamento, seja em relação à pontualidade.
Diferentemente das personagens que habitam a zona rural, as crianças
urbanas não freqüentam os bancos escolares. É uma verdadeira apologia ao ócio. A
priori, essas personagens não têm obrigação nenhuma, até mesmo a de freqüentar a
escola, que seria uma atividade normal, haja vista as suas faixas etárias e as
facilidades que a cidade oferece. Dessa forma, as crianças urbanas de Maurício de
Sousa vão de encontro até mesmo à legislação vigente segundo a qual nenhuma
criança em idade escolar deve ficar fora da sala de aula (conforme previsto no
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, 1990).
Apesar de não freqüentarem a escola, Cebolinha, Mônica, Magali e Cascão
sabem ler, escrever e fazer contas. Como e onde eles aprenderam não é mostrado.
3.1 O papel da escola
Apesar de Foucault não realizar uma análise detalhada das escolas,
consideramos que ele identificava a escola e a educação formal como exercendo um
papel no crescimento e fortalecimento do poder disciplinar. Segundo Foucault, no
livro Vigiar e Punir (2002), as relações de poder estabelecidas no século XX nas
instituições, como a família, a escola, as prisões ou os quartéis, foram marcadas pela
disciplina, cujo objetivo fundamental era a produção de corpos dóceis e úteis. Para
esse autor, o poder dissemina-se por toda a estrutura social e mantém relação de
reciprocidade com a produção do saber: ao mesmo tempo em que se exerce o poder,
são constituídos campos do saber; da mesma maneira, o saber produz relações de
poder (veremos que esse saber como poder também comparece nas relações dentro
101
da escola). Mais adiante, na obra acima citada, o autor indaga: “Devemos ainda nos
admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis,
com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?” Foucault (2002, p.187).
De maneira crescente, a pedagogia
32
tem ressaltado o autodisciplinamento,
através do qual os estudantes devem manter a si e aos outros sob controle.
Conforme Foucault, as técnicas/práticas que induzem esse comportamento podem
ser nomeadas de tecnologias do eu. Essas tecnologias agem sobre o corpo: seus
gestos, olhos, mãos, boca, expressões. Podemos citar como exemplo os
comportamentos dos alunos em sala de aula: levantar as mãos antes de falar em
classe, manter seus olhos sobre o trabalho durante uma avaliação, conservar seus
olhos no professor, quando ele está dando alguma instrução, permanecer em suas
carteiras, etc. (GORE, 2002, p.14).
Uma outra questão em que podemos identificar como os mecanismos de
poder-saber atuam nas escolas é na organização da sala de aula. Na grande maioria
das escolas, os alunos ficam distribuídos em fileiras de frente para a professora, esta
ocupa uma posição espacial privilegiada, possuindo uma visão de toda a turma, com
o objetivo de vigiar e controlar seus comportamentos. As carteiras são individuais, o
que diminui a comunicação entre os colegas, na tentativa de reduzir conversas
paralelas que quebrem o silêncio imposto e desviem a atenção das explicações da
professora.
A escola é uma instituição responsável em veicular os mecanismos do poder
disciplinar. Aparentemente, sua função seria a transmissão do conhecimento
construído culturalmente, porém, seu peso em nossa sociedade é muito maior e sua
função é muito mais do que ensinar conteúdos; ela pressupõe a disciplinarização, a
hierarquização. É só observarmos as dinâmicas de aula descritas acima.
32
A pedagogia é compreendida como uma teoria e ciência da educação. É o estudo dos ideais de
educação, segundo uma determinada concepção de vida, e dos meios (processos e técnicas) mais
eficientes para efetivar esses ideais. Por educação, entendemos ser o processo de desenvolvimento
da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano, objetivando à sua integração
individual e social.
102
Segundo Foucault (2006, p.8-9):
[...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número
de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade.
A idéia é a de que há uma política de silenciamento daquilo que oferece
perigo, que transgride a norma. Nem tudo pode ser dito, e o que ameaça a ordem
deve ser proibido.
Ao relacionar as idéias de Foucault com a escola que comparece nos
quadrinhos mauricianos, iremos considerar alguns dos mecanismos disciplinares que
atuam na tentativa de fazer esquecer a heterogeneidade característica do sujeito e de
sua linguagem. Em seu livro A ordem do discurso (2006), Foucault analisa
mecanismos de controle, seleção, organização e redistribuição dos discursos e dos
sujeitos, através dos quais ambos seriam “ordenados” de maneira que seus perigos e
poderes pudessem ser conjurados. Esses procedimentos, para Foucault, se
classificam em: procedimentos de exclusão, procedimentos de classificação,
ordenação e distribuição e procedimentos de rarefação dos sujeitos falantes. Quanto
aos de exclusão, classificam-se em: proibição de dizer (há assuntos proibidos, há
situações em que é proibido dizer algo, há sujeitos que estão proibidos de dizer algo);
rejeição (é aquele discurso que não pode circular como o dos outros) e a vontade de
verdade (discurso pronunciado por quem de direito e de acordo com o ritual
requerido, apoiado por um suporte institucional).
Já os mecanismos de rarefação, seleção dos sujeitos dividem-se em: ritual
(define papéis e qualificações dos sujeitos); sociedades de discurso (mantêm,
produzem discursos, fazendo-os circular em espaços restritos, pois são poucos os
sujeitos que podem fazer parte dessas sociedades); doutrina (produz-se uma dupla
sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo); apropriação
(há todo um sistema de apropriação dos saberes produzidos na sociedade, e os
sujeitos que passam por esses sistemas é que estão autorizados a elaborar
determinados discursos) (MENDONÇA, 2003, p.242).
103
Observamos que na escola de Chico Bento comparecem muitos desses
mecanismos, mas nos limitaremos (devido a maior freqüência nas histórias) aos de
exclusão e aos de rarefação, seleção dos sujeitos
33
, pois se a norma é a referência,
os desvios à norma passam a ser objeto de um controle maior. Tudo o que foge da
norma deve ser alvo de correção e punição. Nesse sentido, o aluno Chico Bento
comete desvios a algumas das regras estabelecidas pela escola, pois em muitas
histórias é mostrado o educando em situação de cola (Revista Chico Bento, n.276,
p.20), chegando atrasado (Revista Chico Bento, n.367, p.18), promovendo
desordens (Revista Chico Bento, n.439, n/p), “matando” aula (Revista Chico Bento,
n.375, p.21) e tirando nota baixa (Almanaque do Chico Bento, n.42, p.23). A nota
baixa recebida por Chico configura-se como desvio à norma; quando tomamos como
norma os alunos que estão na média ou acima da média.
A cada “infração” dos educandos, a professora aplica-lhes algum tipo de
castigo. No exemplo abaixo, a educadora lhes dá nota zero e os suspende das aulas.
Fonte: Revista Chico Bento, n.276, p.20.
A produção de saberes sobre a criança bem como o controle disciplinar a que
foi submetida trouxeram como conseqüência um mecanismo de exclusão. As
crianças que não conseguiam se adaptar às normas estabelecidas e atender a um
padrão ideal de disciplina, obediência, racionalidade, passaram a ser reconhecidas
como fora da norma.
Convém salientar que devido a alguns comportamentos assumidos dentro da
sala de aula (citados anteriormente), podemos situar Chico Bento como fora da
norma. Ele não está qualificado para ingressar na sociedade de discurso, o seu saber
não é reconhecido pela escola. Além disso, o educando não é autorizado a
33
Foucault (2006), principalmente a primeira parte do referido trabalho. Não nos remeteremos a cada
parte do texto, pois não consideramos produtivo para os nossos objetivos.
104
pronunciar um discurso diferente daquele legitimado pela instituição escolar (como o
demonstrado na história intitulada Música bem ao longe!
34
(Revista Chico Bento,
n.263, p.30-33).
Na sociedade atual, funciona todo um sistema de apropriação dos saberes
produzidos e herdados. Nesse sentido, a escola é, sem dúvida, uma instituição típica
desses processos de apropriação. Nela, são definidos os sujeitos “competentes” para
falar sobre determinados temas, de acordo com suas especificidades (GERALDI,
1995, p.64). O professor é a autoridade responsável em disseminar o “saber
legítimo”; ele ensina porque adquiriu autorização para isso. Compete ao aluno (muitas
vezes, passivamente) aprender o que o professor ensina.
A escola presente nos quadrinhos de Maurício é uma representação da
pedagogia tradicional enquanto proposta centrada no professor, o qual assume a
função de vigiar, corrigir, ensinar, aconselhar e punir o aluno. No desempenho de
suas funções, D. Marocas limita-se a práticas pedagógicas consagradas (doutrina)
no interior da escola que se aproximam dos rituais (aplicação de exames, verificação
de freqüência, etc.). A metodologia adotada pela docente baseia-se na exposição
oral do conteúdo e na memorização do que é estudado. No tocante ao conteúdo,
este corresponde aos conhecimentos e valores sociais acumulados ao longo do
processo histórico, sendo destituídos de associações com as práticas cotidianas dos
alunos. Na ausência dessas relações, resta ao aluno repetir mecanicamente as
explicações dadas. A prática pedagógica mostrada nos quadrinhos mauricianos
configura-se como conservadora, em que os interesses e a realidade dos alunos não
são levados em consideração.
Compreendemos que uma proposta pedagógica necessita ser construída com
a participação ativa de todos os sujeitos (famílias, crianças, adultos, comunidade em
geral), levando-se sempre em conta as necessidades, singularidades e contexto dos
escolares. Essas observações sinalizam para a impossibilidade de uma proposta
abrangente e única, em razão de que a realidade é diversificada e repleta de
paradoxos.
Uma das dificuldades encontradas nas relações de ensino-aprendizagem
dentro da escola de Chico Bento é o não-respeito e falta de valorização das
34
Analisaremos o enredo dessa história no último subitem deste capítulo.
105
diferenças (socioeconômicas, culturais, lingüísticas e étnicas) entre os alunos,
verificadas em sala de aula. Sobre a questão, Louro (2004, p.57) complementa:
Diferenças, distinções, desigualdades. A escola entende disso. Na
verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição
escolar exerce uma função distintiva. Ela se incumbiu de separar os
sujeitos, tornando-os aqueles que nela entravam distintos dos outros,
os que a ela tinham acesso. Ela dividiu também, internamente, os
que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação,
ordenamento, hierarquização [...].
De acordo com a citação, a seletividade da escola parece evidente; apesar de
não produzir as desigualdades sociais, essa instituição de ensino as legitima.
Chico possui mais dificuldades na apreensão dos conteúdos escolares do que
outros colegas de sua sala. Apesar de cumprir com o mínimo das obrigações
escolares (freqüentar as aulas, em algumas vezes fazer as tarefas e estudar para as
provas) exigidas do aluno, ele é insistentemente chamado atenção por D.Marocas
pelas notas baixas e pelos “erros” cometidos (apesar de a professora não explicitar
que tipo de “erro” foi cometido). Nos quadrinhos de Chico Bento, observamos nas
falas da grande maioria das personagens uma “inadequação em relação à norma
culta”. Estas personagens não falam “errado”, pois conforme Possenti (1999) afirma
ao analisar as várias concepções de gramática, segundo a acepção de gramática
descritiva é erro o que não ocorre sistematicamente na língua, em nenhuma de suas
variedades.
A adoção de um ponto de vista descritivo permite-nos traçar uma
diferença que nos parece fundamental: a distinção entre diferença
lingüística e erro lingüístico. Diferenças lingüísticas não são erros,
são apenas construções ou formas que divergem de um certo
padrão. São erros aquelas construções que não se enquadram em
qualquer das variedades de uma língua (POSSENTI, 1999, p.80).
Para Soares (2002, p.42), não se pode falar que uma estrutura é “errada” e
que a outra é “certa”. Do ponto de vista puramente lingüístico não se admite usar os
critérios de “certo” e “errado” no tocante ao emprego da língua. O que é considerado
106
“certo” não é lingüisticamente melhor nem pior que o que se considera “errado”: é
somente aquilo que difere da norma de prestígio, socialmente privilegiada.
Sob essa perspectiva, a escola, para Bourdieu (1992), exerce um poder de
“violência simbólica”, isto é, de imposição às classes dominadas, da cultura – aí
incluída a linguagem – das classes dominantes, mostradas como a cultura e a
linguagem “legítimas”: a escola converte a cultura e a linguagem dos grupos
dominantes em saber escolar “legítimo” e impõe esse saber aos grupos dominados.
Nesse sentido, reforça-se a dominação que determinados grupos exercem sobre
outros, e cristaliza-se a marginalização.
De acordo ainda com Soares (2002, p.78),
Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as
desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro das
relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas
populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como
objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo,
não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide
e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental
para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.
Para a referida autora, um ensino de língua materna que pretenda alcançar
esse objetivo tem de partir da compreensão das condições sociais e econômicas que
explicam o prestígio atribuído a uma variedade lingüística em detrimento de outras,
tem que levar o aluno a perceber o lugar que ocupa o seu dialeto na estrutura de
relações sociais econômicas e lingüísticas, e a entender as razões por que esse
dialeto é socialmente estigmatizado; tem de explicitar os motivos para levar o aluno a
aprender um dialeto não pertencente ao seu grupo social e propor-lhe um
bidialetalismo não para a sua adequação, mas para as transformações de suas
condições de marginalidade (SOARES, 2002, p. 78).
Tanto Chico Bento quanto algumas outras personagens que coadjuvam com
ele falam de acordo com a língua de seu grupo social (pai, mãe, vizinhos, namorada e
alguns amigos). Citamos como exemplo dessa afirmação uma fala de Seu Bento:
Ara,o qui todo mundo faiz... Proseia! (Revista Chico Bento, n.432, n/p); outra da mãe
de Chico: Mais toma cuidado co lobo qui tem aí pelo mato! I vê si num drome no
caminho! (Revista Chico Bento, n.323, p.4); uma de Nhô Lau: Esse Chico é memo
107
um burrico! Caiu no meu truque dereitinho! (Revista Chico Bento, n.444, p.31); uma
de Rosinha: ocê num foi pra iscola? (Revista Chico Bento, n.456, p.63) e uma última
de Zé Lelé: perciso mi livrá disto antis qui argúem veja i ria de mim! (Almanaque do
Chico Bento, n.64, p.3). Essas variantes lingüísticas não padrões presentes nas
falas das personagens se dão em nível da expressão verbal oral, pois não
identificamos essa situação em nível de escrita, como o verificado no quadrinho de
título Quem plantou isso? (Revista Chico Bento, n.424, n/p). Nessa história, Chico
vê uma plantinha e interroga-se para saber qual a fruta que a árvore daria. Então, o
menino tem uma idéia: come uma fruta e cospe as sementes no solo, quando a
planta começa a crescer, ele a identifica com uma placa com o nome goiaba. Na
seqüência, a criança visualiza um pé de melancia sem nome, e ele e Rosinha comem
alguns pedaços de melancia e cospem as sementes na terra. A planta cresce e ele a
identifica com uma placa com o nome da referida fruta. Chico repete esses
procedimentos durante várias vezes com outras plantas, tais como: tangerina,
abóbora, laranja, tomate. No final da história, ele encontra várias porções de lixo
jogadas por algumas pessoas que estão acampando. O menino, ao perceber a
sujeira provocada pelas pessoas que estão próximas a uma barraca de camping,
coloca uma última placa com o nome chiqueiro. Nessa história, de acordo com a
seqüência discursiva, é a personagem que tem a idéia de nomear as plantas e como
ele está sozinho nas cenas fixando as placas, inferimos que é o próprio Chico Bento
quem escreve todos os nomes em todas as placas sem apresentar nenhum “lapso”
ortográfico, principalmente na palavra chiqueiro.
Nesse caso, a distância que o aluno percorre desde seus conhecimentos
lingüísticos reais (apreendidos na interação com o meio onde o sujeito está inserido)
até a grafia da variante padrão é bem maior do que o aprendizado de um código em
que os sons se transformam em letras (POSSENTI, 1999, p.82).
Claro está que as características de escola delineadas nesse item do capítulo,
infelizmente ainda correspondem a um perfil de escola bastante presente na
contemporaneidade. Vestígios do poder disciplinar comparecem em muitas
instituições escolares. Identificar como esse poder é representado nas relações entre
as personagens mauricianas que vivenciam a escola é a nossa preocupação nos
próximos itens do capítulo.
108
3.2 A Professora
A única professora que aparece nas histórias de Maurício é a de Chico Bento,
D. Marocas. Ela é a representação do poder em sala de aula. Em algumas
situações, mostra-se rígida, autoritária, repressiva e sempre querendo “moldar”
Chico. Embora às vezes seja carinhosa e compreensiva, pois:
Se o poder só tivesse a função de reprimir, se agisse apenas por
meio da censura, da exclusão, do impedimento, do recalcamento, à
maneira de um grande super-ego, se apenas se exercesse de um
modo negativo, ele seria muito frágil. Se ele é forte, é porque produz
efeitos positivos a nível do desejo – como se começa a conhecer – e
também a nível do saber. O poder, longe de impedir o saber, o
produz. Se foi possível constituir um saber sobre o corpo, foi através
de um conjunto de disciplinas militares e escolares (FOUCAULT,
1993, p.148).
Sendo a representante do poder escolar, a professora, em algumas situações,
deve mostrar-se atenciosa, carinhosa para que o poder seja exercido com maior
eficácia.
É necessário que os alunos respeitem a professora como autoridade, a fim de
que ela possa controlar a disciplina dentro da sala de aula. Atitudes arbitrárias são
bastante presentes na postura de D. Marocas. O modelo de autoridade escolar
representado nesses quadrinhos traz indícios de opressão. A professora comporta-se
como um “vigia” das ações de Chico Bento: até quando o aluno não está em sala de
aula, ela vai ao seu encontro para lhe ensinar matemática. Como mostra o quadrinho
da página seguinte.
109
Fonte: Revista Chico Bento, n.367, p.34.
Para Nosella (1978, p.65), a ideologia escolar impõe tipos de comportamentos
que promovem a passividade dos alunos; assim, a alegria em sala de aula é
reprimida, por gerar barulho, movimento, ação. É necessário manter uma atitude
passiva, silenciosa e séria diante da professora, que é a autoridade a ser respeitada e
obedecida. É importante esclarecer que a noção de ideologia assumida nesta tese
segue uma acepção que não está vinculada à dominação de classe
35
; está mais
próxima da antropologia e da cultura do que da política e da economia. Em nosso
auxílio para conceituar ideologia, citamos um estudioso do assunto:
35
Que não está somente atrelada à dimensão política e econômica, mas se faz presente nas ações
cotidianas do sujeito. Sousa Filho (2001) propõe que a ideologia seja analisada em sua relação com
o fenômeno da cultura. O autor parte das idéias de Foucault, atreladas ao pensamento de
Castoriadis (1982 e 1985), Maurice Godelier (1981 e 1982), Freud (1976) e Lacan (1985 e 1992)
para compreender os fenômenos da alienação e da dominação, complementando e acrescentando
algo mais à discussão e à compreensão do fenômeno ideológico segundo Marx e Engels (1986).
110
A ideologia é, pois, o discurso da dominação nas sociedades, uma
vez que serve à legitimação da Ordem vigente. Não deve, contudo,
ser visto como um discurso voluntário e gratuitamente produzido
pelos grupos ou classes no exercício da dominação. O discurso
ideológico é espontaneamente produzido pelos indivíduos em suas
relações sociais cotidianas (SOUSA FILHO, 2001, p.40. Grifo do
autor).
A mecânica ideológica toma da realidade social aqueles elementos que vão de
encontro aos interesses objetivos de classe e pessoais-subjetivos. A prática
ideológica realiza a partir da observação dos fatos sociais ou pessoais uma leitura
das mensagens, forçadamente deformada, toma dos fatos aqueles instantes
pequenos e insignificantes, transformando-os em decisivos, enquanto aqueles
fundamentais são ignorados. As ações de sujeitos sociais, classes, segmentos,
nações estão movidas por valores; valores construídos ao longo da história e da
cultura. Por isso mesmo, a ideologia não pode ser tão somente circunscrita às
posturas históricas de classe, já que leva inevitavelmente a um achatamento da sua
presença na realidade social.
A ideologia não é, unicamente uma relação política de classes. Óbvio que ela é
também relação política, mas envolve uma panorâmica bem mais elastecida, que
marca os níveis de dominação em todas as esferas da cultura e da organização da
sociedade. O conceito de ideologia, dito de um modo mais amplo, é “sentido a serviço
do poder”. Conseqüentemente,
O estudo da ideologia exige que investiguemos as maneiras como o
sentido é construído e usado pelas formas simbólicas de vários tipos,
desde as falas lingüísticas cotidianas até às imagens e aos textos
complexos. Ele exige que investiguemos os contextos sociais dentro
dos quais essas formas simbólicas são empregadas e articuladas.
Ele requer que perguntemos se – e, se este for o caso, como – o
sentido é mobilizado pelas formas simbólicas em contextos
específicos, para estabelecer e sustentar relações de dominação. A
distintividade do estudo da ideologia está na última questão: ele exige
que perguntemos se o sentido, construído e usado pelas formas
simbólicas, serve ou não para manter relações de poder
sistematicamente assimétricas (THOMPSON, 1995, p.16).
111
A representação de docente desenhada por Maurício segue um modelo de
professora com hábitos austeros, feições contraídas, vestidos abotoados até o
pescoço, cabelos presos na nuca em forma de “coque”, sapatos fechados tipo scarpin
e óculos (este último bastante recorrente nas representações da figura do professor).
D. Marocas não assume o papel de mediadora de conhecimento e trocas
culturais ((VYGOTSKY, 1988; 1991). Não há por parte da “professora de papel”
incentivo à criatividade, à inquietação e desenvolvimento do espírito crítico dos
alunos; estes devem ser bons, comportados, obedientes, estudiosos, pois são essas
as condutas exigidas pela “escola de papel”. Quando isso não ocorre, os alunos são
punidos de alguma forma, seja recebendo uma suspensão, seja obtendo uma nota
baixa. O relacionamento entre a docente e o corpo discente (fundamentalmente Chico
Bento) será discutido mais adiante.
A professora, na grande maioria das histórias, não valoriza o saber construído
pelos alunos, além do espaço da escola, principalmente por Chico Bento. Ela é a
responsável em transmitir conhecimentos que enaltecem a cultura erudita. As
vivências cotidianas dos alunos não são incorporadas aos conteúdos ministrados. D.
Marocas é a representação de um estereótipo docente que cada vez mais (em
algumas instituições escolares) está perdendo espaço. Hoje, no Brasil ganham força
as posições defendidas por Freire (1998) quanto à utilização da educação como
dinamizadora de um processo de mudança, por meio de um método ativo, dialógico e
participativo, sendo o professor um dos grandes responsáveis por essa
transformação. Para Piletti (1986, p.166), o professor precisa assumir, efetivamente,
sua responsabilidade de educador. Sua tarefa específica é de educar. Interferências
administrativas, políticas, econômicas, sociais e culturais não podem ter um efeito
paralisante sobre a ação do professor. Pelo contrário, devem constituir-se em desafio
a estimular sua ação crítica e transformadora do real.
3.3 Os alunos
Os comportamentos que os alunos devem apresentar são os de obediência,
respeito, assiduidade, educação e pontualidade. Nesse sentido, o paradigma
representado nos quadrinhos mauricianos reflete uma visão de escola mostrada no
item deste capítulo intitulado o papel da escola, em que a individualidade do aluno
não é preservada e nem é respeitado seu contexto sócio-histórico e cultural. Dessa
112
forma, ocorre, e como assim o fosse, uma homogeneização e massificação de
comportamentos e padrões.
Muitas vezes, a imposição pela escola de conteúdos distantes da realidade do
aluno inibe sua capacidade crítica, reforçando o papel da ideologia escolar em
formar alunos acríticos, incapazes de refletir sobre a sociedade na qual estão
inseridos. A grande maioria das escolas não ensina a pensar e sim a reproduzir o
que já foi feito ou dito.
Nesse sentido, reportamo-nos à afirmação de Geraldi (1995, p.170) quando
nos mostra que:
[...] produz-se o discurso de sala de aula que, como a pergunta
didática, faz do texto um meio de estimular operações mentais e não
um meio de, operando mentalmente, produzir conhecimentos.
Podemos identificar nas histórias de Chico que a escola não desperta
interesse em seus alunos; como já foi dito anteriormente, ela representa um fardo
em seus cotidianos. A rígida postura assumida por D. Marocas causa muitas vezes
constrangimento aos estudantes. Ao invés da professora incentivar o gosto pelos
estudos, ela promove uma certa rejeição à escola, os alunos não sentem prazer em
realizar as tarefas propostas, só as fazem por obrigação ou para obter uma nota.
Eles não demonstram interesse em saber mais, em produzir conhecimentos. A
escola não representa nesses quadrinhos um espaço de prazer na busca pelo
conhecimento.
Uma outra questão referente ao perfil dos alunos de papel diz respeito a
quase não-existência da leitura em suas práticas diárias. Dificilmente, eles aparecem
lendo, não há referência à leitura de jornais, revistas e nem tampouco gibis (o que
seria óbvio, dada a importância desse material em despertar o gosto da leitura na
criança)
36
. É importante ressaltar que na tentativa de despertar nas crianças o
prazer pela leitura deve-se colocá-la como resposta a determinados estímulos
(utilizando nessa tarefa, além do livro, vários outros tipos de materiais escritos ou
não).
36
Diversos pesquisadores (MOYA, 1977; LUYTEN, 1987; SILVA, 1989 e 1998) demonstram a
importância das revistas em quadrinhos no incentivo ao prazer pela leitura.
113
Ao falarmos em leitura, devemos lembrar que essa atividade se faz presente
em todos os estágios das sociedades letradas. Tal presença, marcante e
abrangente, começa no período de alfabetização (ou antes dele), quando a criança
inicia o contato com a palavra escrita ou esforça-se para compreender os diversos
tipos de mensagens que lhe são transmitidas. Assim sendo, a leitura é fundamental
na experiência cultural dos sujeitos, não somente a leitura compreendida como
decifração do código, mas a leitura compreendida de maneira mais abrangente:
como reflexão, interpretação, provocando efeitos de sentido no leitor.
Nas raras vezes em que focalizam-se os alunos lendo, é o livro a mídia mais
mostrada, entretanto, não fica claro de que tipo: literatura ou didático. Em relação à
leitura, podemos afirmar que, nesses quadrinhos, essa não é uma prática presente
no dia-a-dia dos alunos.
Zé da Roça, Hiro e Rosinha estão entre os melhores alunos da classe. Dentre
os três, apenas a menina fala igual a Chico Bento; os outros dois falam, vestem-se
(com bonés, calças e sapatos) e possuem condições socioeconômicas e culturais
diferentes das de Chico: Zé da Roça é filho de fazendeiro (em sua casa e em sua
fazenda há melhor infra-estrutura) e Hiro é filho de japoneses. Por estarem entre os
melhores alunos, os dois meninos são freqüentemente procurados por Chico Bento
para realizarem juntos os trabalhos escolares, pois para Chico: Si ocê iscoiê uma
equipe bem forte pra fazê o trabaio procê, I ocê fica só zoiando!. (Revista Chico
Bento, n.263, p.3-15). Nessa história intitulada Trabalho em grupo, a professora
passa um trabalho cujo tema é a vida de Aleijadinho. Na formação dos grupos,
Chico procura inserir-se em um grupo forte para não contribuir na elaboração do
trabalho, mas, apesar dos vários encontros para a realização da atividade, eles não
evoluem muito na pesquisa (brincam e comem goiaba), além de escolher o nome da
equipe e dividir as tarefas. Chico e Zé Lelé são incumbidos de passar o trabalho a
limpo, tarefa que agrada bastante o protagonista. Próximo ao dia da entrega do
trabalho, quando Chico chega à casa de Zé Lelé para finalmente elaborarem a tarefa
escolar, para aflição do protagonista, nem Hiro e nem Zé da Roça comparecem ao
encontro. Desesperado, Chico Bento dirige-se à casa dos dois. Ao ser informado
que Hiro está muito gripado e Zé da Roça viajou às pressas, Chico, após muita
aflição, decide fazer o trabalho apenas com a ajuda de Lelé. Porém, quando
Chico Bento conclui a pesquisa e elabora os desenhos, pede para seu companheiro
passar a limpo e ao perceber a má qualidade da letra do colega, decide ele mesmo
114
terminar o trabalho. Os dois passam a noite em claro e quando chega o dia da
apresentação do trabalho, Chico o apresenta sozinho e recebe os parabéns da
professora:
D. Marocas: Parabéns!! É um ótimo trabalho!
Chico: Jura, fessora?
D. Marocas: Ainda mais porque eu soube que o Zé da Roça e o
Hiro tiveram problemas e vocês tiveram que fazer tudo sozinhos!
Zé Lelé: É eu ajudei a sigurá os livro!
D. Marocas: Por tudo isso, os quatro vão levar nota...nove!
Chico Bento: EBA!! (p.14).
A felicidade de Chico quando interroga Jura, fessora? reflete a surpresa do
aluno com o elogio da professora, pois ser elogiado por alguma tarefa realizada não
é uma constante no itinerário escolar do aluno. Como já foi citado anteriormente,
tratar Chico Bento como incapaz, incompetente, além de trazer como conseqüências
desmotivação e desinteresse, gera, também, insegurança no educando, e quando
Chico interroga a professora é como se ele não acreditasse ser capaz de realizar um
“ótimo trabalho”; a insistência dele demonstra a falta de segurança provocada por
tantas críticas e reclamações por parte de D.Marocas.
Na última página da história, a professora lembra que o mais importante é
que os alunos tenham aprendido com o trabalho em grupo. Em resposta a esse
comentário, Chico diz ter aprendido não apenas sobre a vida de Aleijadinho: Aprendi
qui fazê corpo mole num tá com nada! Qui sempre fica tudo nas costa di argúem! E
qui si todo mundo fizé a sua parte, todo mundo sai ganhando! (p.15). Ao final,
quando D.Marocas passa mais um trabalho para o próximo mês, a turma em coro
grita: CHICO... Deixa eu entrar no seu grupo?!
Mediante esses recortes discursivos, podemos realizar diversas
interpretações no tocante ao comportamento dos alunos de papel: Chico, no início
da história, quis levar vantagem escolhendo o grupo formado pelos dois dos
melhores alunos da turma; os encontros do grupo para a realização do trabalho não
foram produtivos, pois eles privilegiaram as brincadeiras à elaboração do trabalho;
quando na ausência dos dois melhores, sobraram ele e Zé Lelé (os dois mais fracos)
para realizarem o trabalho; assim, os objetivos de Chico malograram e como foi ele
quem fez o trabalho sozinho aprendeu a lição. Com a boa nota obtida por Chico
115
Bento na apresentação do trabalho, seus colegas quiseram, também, entrar em seu
grupo. Se Chico não tivesse se saído tão bem, os colegas de turma ainda iriam
querer participar do seu grupo?
Chico Bento e Zé Lelé são os alunos que apresentam mais dificuldades com
os conteúdos escolares, mas Chico é o mais controlado pela professora, pois é o
aluno que mais infringe as regras escolares. Freqüentemente, ele burla alguma
norma da escola, principalmente na realização das provas, quando é advertido pela
professora por se encontrar em situação de cola.
Fonte: Revista Chico Bento, n.424, n/p. Fonte: Revista Chico Bento, n.276, p.20.
116
Na história abaixo, mediante o zero obtido por seu colega Hiro, o próprio
Chico, chorando desesperadamente, admite que “colou” do colega de sala.
Fonte: Revista Chico Bento, n.337, p.34.
A amizade entre o protagonista, Hiro, Zé Lelé e Zé da Roça extrapola a sala
de aula. Os três meninos, além de Rosinha, são os principais companheiros das
aventuras de Chico. O tema da amizade será tratado no próximo capítulo desta tese.
3.4 O relacionamento entre a professora e os alunos
Uma outra relação que podemos estabelecer entre as idéias de Foucault e o
processo escolar de Chico Bento diz respeito às relações de poder entre a professora
e os alunos corporificadas nesse processo.
O relacionamento entre a professora e os alunos é geralmente mostrado como
tenso, os conflitos entre eles são uma constante nas histórias, principalmente quando
os alunos cometem algum desvio das normas estabelecidas pela instituição escolar
(colar, bagunçar, chegar atrasado, faltar às aulas, deixar de fazer alguma lição de
117
casa) e são castigados por isso. Nessa relação, a professora exerce vigilância sobre
o comportamento de Chico Bento, apreciando, sancionando, medindo suas
qualidades ou os seus méritos. Sua imagem é sempre a de autoridade dentro da sala
de aula: seus alunos a respeitam e temem os castigos por ela aplicados.
Observamos uma grande preferência dessa professora pelos bons alunos,
principalmente por aqueles que tiram as melhores notas. Apesar de não falar a
norma culta padrão, Rosinha consegue se sair bem nas atividades escolares.
Rosinha é a aluna preferida de D. Marocas, enquanto Chico, devido ao seu fraco
desempenho escolar, não é tão querido, ao contrário; ele geralmente é alvo de
humilhações da professora por não ter feito as tarefas escolares, ou por não obter
boas notas.
Na escola representada nos quadrinhos de Maurício, os alunos devem
apresentar comportamentos que não incomodem, não tragam inovações; não é
permitido pela professora nenhum tipo de atitude que perturbe ou mude a rotina
dentro da sala de aula. D. Marocas também não tolera dos alunos nenhum tipo de
brincadeira ou que façam alguma piada com ela (como mostrado no próximo recorte
discursivo). Na referida história, os alunos (Chico Bento, Hiro e Zé da Roça) são
repreendidos pela professora por estarem colando na avaliação, mas os três negam
veementemente a acusação:
Chico Bento: Colando? Nóis?
Hiro: De jeito nenhum!
Zé da Roça: A senhora tá enganada!
D.Marocas: Estão pensando que eu nasci ontem?
Chico Bento: Não, sinhora! A gente acha qui a senhora nasceu faiz
muito tempo!
Hiro: É mesmo! Há um tempão!
Zé da Roça: Quase um século!
Chico Bento: Essa eu num intendi! Além dos zero, tamém levamo
uma suspensão!
(Fonte: Revista Chico Bento, n.276, p.20).
Esse exemplo evidencia a ausência de humor e a falta de tolerância da
professora para com os seus alunos.
A demonstração de afeto entre alunos e professora não é uma prática que faz
parte do cotidiano escolar de Chico.
118
Da mesma forma, dificilmente é mostrado algum tipo de relação entre a
instituição escola e a instituição família. Os pais não participam do cotidiano escolar
do filho e nem interagem com a professora. Nesse sentido, a escola não se configura
como uma base de apoio para a família (fizemos essa afirmação no capítulo anterior
desta tese). Não há interação entre os pais e a professora, eles não têm
conhecimento das situações que ocorrem em sala de aula. Apesar do baixo
desempenho escolar de alguns alunos, até agora, não foi retratada uma reunião entre
os pais e a mestra para discutir a questão.
Um dos poucos aspectos positivos do modelo escolar representado nos
quadrinhos é a professora não ser chamada de tia (como se a escola fosse uma
extensão da família), mas pelo próprio nome, o que consideramos bastante
significativo, pois não julgamos convenientes as atribuições (segunda mãe, tia, etc.)
que são impostas às professoras, além daquela de mediadora ou facilitadora de
conhecimentos. Para Freire, quando se chama a professora de tia, retira-se algo
fundamental à professora: “sua responsabilidade profissional de que faz parte a
exigência política por sua formação permanente” (FREIRE, 2001, p.11). Seguindo
ainda Freire, ensinar é uma profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa
especificidade no seu cumprimento, enquanto ser tia é vivenciar uma relação de
parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão. Em suas análises sobre o
binômio professora–tia, Freire posiciona-se contra a tendência à desvalorização
profissional representada pelo hábito que se sedimenta há cerca de décadas, de
transformar a professora num parente postiço. É um equívoco tratar a professora
como um parente, pois sendo a educadora tratada como uma “tia”, os educandos
seriam seus “sobrinhos” e como ficaria a relação entre eles no processo ensino-
aprendizagem, já que a relação tornar-se-ia mais familiar (doméstica) do que
profissional. Identificar professora como tia, o que foi e ainda é reforçado sobretudo
na rede privada em todo o país, é quase como proclamar que professoras, como
boas tias, não devem lutar pelos seus direitos, por melhores condições de trabalho e,
conseqüentemente, por uma educação de qualidade.
Quem já viu dez mil “tias” fazendo greve, sacrificando seus sobrinhos,
prejudicando-os no seu aprendizado? E essa ideologia que toma o
protesto necessário da professora como manifestação de seu
desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de tias, se constitui
119
como ponto central em que se apóia grande parte das famílias com
filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias de
crianças de escolas públicas (FREIRE, 2001, p.12).
Uma outra questão referente ao relacionamento entre docente e discentes é a
falta de diálogo entre eles; a professora não discute nem pede sugestões sobre as
tarefas a serem realizadas, os alunos não opinam em nada. D.Marocas impõe suas
vontades, muitas vezes contrariando as dos estudantes. São vários os recortes onde
essa situação é mostrada. Como exemplo, citamos a seguinte fala da professora: Não
tem choro! Vão fazer o trabalho, sim! (Revista Chico Bento, n.263, p.3). O uso das
exclamações no discurso emitido pela docente demonstra o quanto ela é impositiva
ao passar algum tipo de tarefa para os alunos, como também não está nem um pouco
aberta ao diálogo e nem à crítica.
É importante concluir aqui, para efeito do raciocínio que vimos
desenvolvendo, que da escola pautada por procedimentos tradicionais até a escola
nova popular de Paulo Freire, passando por Mello e Saviani, a pedagogia tradicional,
da simples transmissão, cede seu domínio à pedagogia conducista, e esta cede sua
prevalência à pedagogia problematizadora de Piaget, Rogers e Paulo Freire.
(PENTEADO, 1991, p.83).
Tal pedagogia problematizadora assemelha-se a sistemas abertos de
comunicação, aos quais não se aplicam os esquemas de análise empregados nos
modelos cibernéticos e fechados, dos quais se aproximam as concepções
tradicionais e conducistas da educação.
Em um contexto histórico que tende à uniformização e homogeneização dos
comportamentos e à rotinização das tarefas escolares (trabalhos, provas e chamada
oral), a professora poderia buscar novas formas de intervenção pedagógica que, ao
invés de reprimir, desencadeasse no aluno atitudes que permitissem possibilidades
de interpretações múltiplas da realidade com a qual ele interage. Essa
transformação só seria possível em situações de ensino em que o professor e o
aluno fossem considerados como atores principais no processo de produção do
conhecimento escolar. Uma mudança na relação pedagógica, com a professora
explorando mais a aplicação de metodologias que favorecessem a construção do
conhecimento a partir do desenvolvimento da capacidade argumentativa e da
criticidade, o que estimularia a criatividade discente.
120
3.5 O papel da escola de papel
A escola de Chico é uma escola municipal e rural, voltada para o atendimento
da população campesina. Assim sendo, essa instituição poderia valorizar e fortalecer
o saber rural:
[...] a recuperação e o aprofundamento do saber rural é de
fundamental importância, considerando que a vida campesina se
orienta, continuamente, pela transmissão dos conhecimentos vividos
e apropriados ao longo das gerações. De certa forma, o saber rural
se constitui também como ciência, dada a sua dinâmica e projeção
natural de seus conhecimentos específicos, os quais encerram uma
ótica alternativa sobre a realidade que os contém (LEITE, 1999, p.
96).
Não encontramos na escola de Chico Bento a preocupação com a transmissão
e preservação das experiências vividas pela população rural. Ao contrário, o que
identificamos nesses quadrinhos é uma valorização de uma cultura diferente da do
aluno. São vários os exemplos que sinalizam para essa tendência: na história já
citada Trabalho em grupo, na qual a professora passa um trabalho em grupo sobre
a vida de Aleijadinho, não seria, também, interessante que os alunos conhecessem a
vida de personagens locais? Nesse sentido, consideramos relevante o aprendizado
pelas classes populares de valores, personagens, instrumentos musicais
pertencentes a outras culturas. Entretanto, cabe observar que os ensinamentos feitos
pela escola de papel não contemplam aspectos da cultura rural. Inclina-se assim a
negligenciar a importância de o aluno conhecer, também, a história de vultos,
instrumentos, gastronomia e valores referentes ao local/regional. Uma educação
contextualizada na qual o conhecimento do acervo cultural rural torna-se uma
maneira de situar o aluno no local em que está inserido.
Na história em quadrinhos de título Música bem ao longe! (Revista Chico
Bento, n.263, p. 30-33), a professora avisa a turma que a partir daquele dia dará aula
de música uma vez por semana e na tentativa de avaliar os conhecimentos dos
alunos sobre o assunto, pergunta para Chico Bento:
121
A professora: Chico, você sabe o que é um choro?
Chico responde: Craro! É quando a sinhora distribui os boletim! É
uma choradeira só! É zero pra tudo quanto é lado...
A professora: Não! Choro é um ritmo musical criado aqui no Brasil! A
professora prossegue: Então, agora vamos falar de concertos. Ao
ouvir a palavra concerto, Chico pergunta: quebrô arguma coisa,
fessora?
A professora: Não! É um concerto com “c”, e não com “s”! É uma
apresentação musical! Como um concerto de piano!
Chico: Ah! Intão intendi! Esse tar di concerto de piano tem todo dia lá
em casa!
D. Marocas: É mesmo?
Chico: É! Logo de manhãzinha! É só demorá pra jogá o mio lá no
galinheiro! Os pintinho fica “piano”, “piano”, “piano!`É uma musiqueira
só!
A professora: O piano de que estou falando é um instrumento de
corda! Instrumento de corda! Você sabe o que é isso?
Chico: Sei, craro! E o aluno continua: Instrumento di corda é a forca!
A sinhora memo falô! Foi como mataro o Tiradentes!
A professora: É melhor esquecer isso! Vamos falar sobre as notas
musicais! O que você sabe das notas musicais, Chico?
Chico Bento: É uma nota preta!
A professora: Como?
Chico: Quando o Leão e o Leopardo viero fazê um shor na cidade,
recebero uma nota preta! Todo mundo disse!
A professora: Não é desse tipo de nota que eu estou falando. As
notas musicais são sete! Ré! Mi, Fá...Sol, Lá,Si! Estas são as sete
notas musicais!
Chico: A sinhora só falou seis, fessora!
A professora: Certo! Tem a sua nota, Chico!Dó!
A última afirmação de D. Marocas desperta tristeza em Chico e provoca risos
em uma colega de classe que está sentada na carteira atrás da do menino. Nessa
história, fica evidenciado o desdém da professora em relação ao saber trazido pelo
educando. Em quase todas as respostas dadas pelo aluno, identificamos que ele traz
para o interior da sala de aula seu conhecimento de mundo, suas experiências
vividas. A dificuldade em acertar as perguntas feitas pela professora deve-se também
ao fato de que o ritmo musical (choro) e o instrumento de corda (piano) não fazem
parte de sua cultura, e sim, de uma outra. A cada pergunta feita, ele a
recontextualiza, atribuindo significados de acordo com a sua realidade. O
distanciamento entre os conteúdos programáticos e as experiências dos discentes,
algumas vezes, responde pelo desinteresse do protagonista com os estudos, o que
pode ser constatado em diversas histórias. Assim sendo, a imposição de
122
ensinamentos distantes da realidade do aluno gera dificuldades na apreensão desses
conhecimentos.
Nessa história, fica também mostrado como a criança é tratada pela
professora: há vários alunos em sala de aula, mas todas as perguntas são
direcionadas para Chico. A partir das leituras das histórias, inferimos que apesar de
Zé Lelé apresentar mais dificuldades do que o protagonista, é Chico o aluno mais
controlado, cobrado, punido e exposto a constrangimentos pela professora.
Verificamos, também, na postura da docente uma atitude negativa e discriminatória
em relação ao repertório cultural do aluno.
Para nós, a escola de Chico Bento emerge como uma instituição repressora,
local de adestramento das crianças, através de uma disciplina mais autoritária.
Segundo Foucault (2002), existe um tipo específico de poder exercido sobre os
indivíduos: “o poder disciplinar”, cuja efetivação ocorre mediante técnicas e
estratégias que atuam no próprio corpo, controlando-o, realizando a sujeição das
forças e impondo uma relação de utilidade e obediência. Quanto mais disciplina, mais
obediência, mais eficiência.
Para esse autor, a escola surgiu como um espaço destinado à especificidade
do “infantil” e do controle disciplinar sobre as crianças. “A criança diferenciada do
adulto” emergiu como objeto do saber e como diferença a ser isolada e controlada, e
a escola como espaço de exercício de controle disciplinar e de elaboração de um
saber sobre a infância. Saberes, técnicas, discursos científicos se formam e se
entrelaçam, constituindo todo um sistema de sujeição que encontra na escola um
espaço fértil para o seu funcionamento. Era necessário separá-las do mundo dos
adultos para melhor controlá-las. Com essa divisão, disciplinas foram criadas para
tratar com mais eficácia dos pequenos e uma série de especialistas (pedagogos,
psicólogos, assistentes sociais) passou a se ocupar da criança, procurando
enquadrá-la dentro de um parâmetro de normalidade, utilizando-se, para esse
objetivo, de vários mecanismos para examiná-la, principalmente a observação e o
controle. Nesse sentido, vários conceitos foram construídos e campos de saber foram
demarcados: educação infantil, psicologia infantil, sexualidade infantil, etc., sendo a
escola a instituição que os legitima.
123
Nos quadrinhos de Chico Bento, é uma constante o aluno sendo submetido à
situações de exame: provas, trabalhos e perguntas orais. Como nos exemplos
abaixo.
Fonte: Almanaque do Chico Bento, n.64 p.10.
Fonte: Revista Chico Bento, n.254, p.27.
Podemos afirmar que na escola de Chico funciona todo um poder que se
exerce:
Sobre os que são punidos – de uma maneira mais geral sobre os que
são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, sobre as
crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a
um aparelho de produção e controlados durante toda a existência.
(FOUCAULT, 2002, p. 28. Grifo nosso).
124
Para Chico Bento, a escola nada mais é do que uma fonte de conflitos uma
vez que freqüentemente, são explícitos seu desinteresse, sua falta de motivação e
vontade de estudar. D. Marocas atribui ao aluno toda a responsabilidade pelo
sucesso ou fracasso dele, sem levar em consideração as condições que
acarretaram determinado resultado. Não consideramos que Chico seja um
fracassado; julgamos que a escola é inadequada para ele. Assim, a inadequação
não está no aluno, mas na sociedade e na escola. Seguindo esse raciocínio, as
palavras de Soares (2002, p.79) são esclarecedoras: “[...] o fracasso na escola, que,
na verdade, é o fracasso da escola, mas é, sobretudo, uma opção política, que
expressa um compromisso com a luta contra as discriminações e as desigualdades
sociais” (Grifo da autora).
A escola que comparece nos quadrinhos segue uma pedagogia
conservadora, tradicional, cujo modelo é bastante criticado por vários teóricos da
educação (FREIRE, 1998 e 2006, SOARES, 2002, LOURO, 2004). Essa poderia ser
uma crítica, também, de Maurício de Sousa a esse tipo de escola tão comum em
nosso país, principalmente na zona rural.
Algumas das características mostradas na escola de papel estavam
presentes na escola vivenciada por Maurício em sua infância (Gusman, 2006). Do
nome de uma professora do quadrinista, que era Marocas até algumas atitudes
tomadas pela escola. Quando ainda morava em Mogi das Cruzes, o autor vivenciou
a apreensão e a queima de revistas em quadrinhos, comandadas por um professor
de matemática recém-chegado da Alemanha. Essa atitude demonstra o perfil da
escola freqüentada por Maurício, que é, também, um pouco o modelo de escola
mostrado nas histórias de Chico Bento.
Mediante essa constatação, levantamos alguns questionamentos: o perfil de
escola representado nesses quadrinhos seria um dos motivos para o autor deixar
fora da escola as outras quatro personagens mais importantes de sua galeria? A
escola de papel mostrada nesses quadrinhos contribui para reforçar a crítica do
autor a esse modelo?
125
4 AS BRINCADEIRAS E AS AMIZADES COMO ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DAS
“CULTURAS DA INFÂNCIA”
37
Neste capítulo, abordaremos, principalmente, a brincadeira e a amizade como
instâncias de socialização da infância. De início, trataremos da dimensão cultural da
brincadeira e do brinquedo, pois entendemos que a brincadeira é, antes de qualquer
coisa, o ingresso na cultura, numa cultura particular, tal como ela existe num
determinado momento histórico. Além de ser essa entrada na cultura, o brincar é
também uma “confrontação intercultural”. O confronto se dá porque a representação
de um determinado papel é denotativa da apropriação intra-individual que cada
criança efetua do mundo adulto. Assim, brincar configura-se muitas vezes como
sinônimo de confronto intercultural entre as crianças e de lutas pela afirmação e
legitimação de determinados saberes e fazeres em detrimento de outros
(FERREIRA, 2004, p.86).
De acordo com Brougère (2006, p.76-77), “na brincadeira, a criança se
relaciona com conteúdos culturais que ela reproduz e transforma, dos quais ela se
apropria e lhes dá uma significação.” Dessa maneira, a atividade lúdica é uma das
formas pela qual a criança se apropria do mundo. Essa apropriação não acontece da
mesma maneira que a criança o vivencia, antes passa por modificações,
adaptações, para depois se transformar numa brincadeira.
O lúdico é invariavelmente associado à idéia de jogos, brincadeiras,
divertimentos; é também um dos elementos norteadores da infância, sendo o brincar
um dos direitos que devem ser garantidos pela sociedade, pelo poder público e pela
família. Direito que está apontado tanto pela Convenção dos Direitos da Criança e
do Adolescente (CDC, 1989) quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA, 1990).
São inúmeras as tentativas de conceituar o lúdico, a brincadeira, o brinquedo
e o jogo e, ao mesmo tempo, mostrar as diferenças entre eles. Na maioria das
vezes, esses termos são empregados com o mesmo significado, seja no dia-a-dia ou
na literatura especializada. Não pretendemos aqui realizar uma descrição exaustiva
de como esses termos são conceituados pelos teóricos que se ocupam em
pesquisá-los, mas iremos explorá-los fundamentados principalmente nas teorias
37
O termo cultura da infância é discutido por Sarmento e Cerisara (2004).
126
apresentadas por Leontiev (2006), Brougère (1998 e 2006), Kishimoto (1993, 1998)
e Huizinga (2001).
Começamos por Leontiev (2006), que elabora uma rica análise sobre “os
princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar”. Para o autor, a brincadeira é um
tipo de atividade caracterizado por uma estrutura tal que o motivo está no próprio
processo. Para a criança, não importa o resultado da brincadeira, mas o processo
lúdico em si.
Para Brougère (2006, p.97), a brincadeira não é uma atividade inata da
criança. Nesse sentido, não existiria na criança uma brincadeira natural. A
brincadeira, para ele, é um processo de relações interindividuais, portanto de cultura.
Para nós, ela configura-se como uma atividade socialmente construída, através das
relações estabelecidas com o meio.
Sobre o conceito de brincadeira, encontramos divergências entre os autores
Brougère e Froebel. Para este último (FROEBEL apud KISHIMOTO, 1998), a
brincadeira é uma atividade inata da criança. Utilizamos o conceito de brincadeira e
de cultura lúdica de acordo com a perspectiva teórica de Brougère.
No tocante ao brinquedo, elegemos as seguintes conceituações: objeto de
suporte da brincadeira (KISHIMOTO, 1998) e um objeto que a criança manipula
livremente, sem estar condicionado às regras ou a princípios de utilização de outra
natureza (BROUGÈRE, 2006).
O jogo, para Huizinga (2001), é tomado como fenômeno cultural e não
biológico, e é estudado em uma perspectiva histórica, não propriamente científica
em sentido restrito. Para esse autor, o jogo é uma função significante, isto é, encerra
um determinado sentido. Sentido que, muitas vezes, é atribuído pelos participantes
do jogo ou que vão sendo construídos durante o processo.
No contexto deste trabalho, utilizamos a palavra lúdico como o espaço que
abrange os brinquedos, as brincadeiras, os jogos, e o brinquedo como suporte que
possibilita essas atividades. O jogo enquanto atividade que estrutura-se em regras; a
brincadeira como uma atividade individual da criança ou de interação de crianças,
utilizando objetos (brinquedos) ou não, relacionada à satisfação e à diversão. No
caso das crianças mauricianas (principalmente, as urbanas), a grande maioria de
suas histórias retrata fatos, eventos que elas transformam em situações lúdicas. A
brincadeira contribui para o processo de formação da criança, já que ela precisa de
tempo e de espaço para trabalhar a construção do real através da fantasia. Quando
127
as crianças brincam, elas estão exercitando a imaginação, fantasiando situações, é
uma das formas prazerosas de lazer da criança. Como assevera Vygotsky (1991, p.
117), “a criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade do brinquedo”.
Os fundamentos da Psicologia histórico-cultural permitem pensar que o
desenvolvimento do sujeito é resultado de um processo sócio-histórico, sendo a
cultura que fornece-lhes os sistemas simbólicos de representação da realidade, ou
seja, o universo de significações que permite construir a interpretação do mundo
real. A cultura é o lugar de negociações onde se dá um constante processo de
recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significações.
A brincadeira faz parte da vida de toda criança. Os momentos que as crianças
dedicam a ela são importantes para sua formação, pois é através da brincadeira que
a criança socializa-se, extravasa situações difíceis do seu cotidiano e também
adquire conhecimentos.
A Psicologia histórico-cultural reconhece o papel central da atividade
lúdica no processo de formação dos sujeitos e atribui a ela a
abertura de espaços para aquisições psicológicas que não
encontram paralelos em quaisquer outras atividades da infância, nas
quais pode-se engajar a criança (ROCHA, 2005, p.22).
A brincadeira de faz-de-conta (uma das mais presentes nos quadrinhos
mauricianos), conhecida como simbólica, de representação de papéis, ou
sociodramática, é a que deixa mais explícita a presença da situação imaginária. Nas
histórias em quadrinhos de Maurício de Sousa há uma grande referência a esse tipo
de brincadeira. Não são poucas as situações nas quais ela está presente. Durante a
brincadeira de faz-de-conta, a criança vivencia uma situação imaginária, mas tendo
como “inspiração” aspectos da realidade.
Na história de título Bandidos, mocinhos... e marmanjos (Revista
Cebolinha, n.121, p.3-14), Cebolinha convida seus amigos para brincarem de
“faroeste” em sua casa. Xaveco é o primeiro a chegar e diz: Oi, Cebolinha! legal
você ter chamado a gente pra brincar de faroeste na sua casa! Cebolinha agradece:
Obligado, Xaveco! E adverte: Mas me chame de Cebolinha Kid. Com a chegada dos
outros três amigos, Nimbus (utilizando um chapéu e uma “estrela de xerife” na
camisa), Do Contra que, segundo Cebolinha, não tinha entendido que era para ir
128
brincar vestido de caubói, aparece vestido com uma roupa espacial e com uma
justificativa: eu vim de caubói do espaço! e daí? Cascão é o último a chegar e
explica: não reparem! mas como não tinha roupa de caubói...peguei o espanador e
o martelinho de carne da mamãe e improvisei esta roupa de índio! Quando estão os
cinco amigos reunidos, Cebolinha propõe iniciar a brincadeira e diz: a histólia é a
seguinte! Eu sou o mocinho bonzão, vocês são bandidos e tentam me pegar, mas,
no final, eu venço todos vocês! Ao ouvir a “história” de Cebolinha, Xaveco o
interroga: por que o mocinho tem que ser você? E Cascão reforça: É! por que?
Cebolinha responde assim: polque eu tô vestido de mocinho! Além disso...a casa é
minha, lemblam-se?
Esse recorte demonstra o desejo de Cebolinha em levar vantagem sobre os
outros meninos, só que os outros garotos não concordam com a idéia do amigo e,
contrariados, decidem ir embora. Cebolinha, ao perceber a reação dos amigos, pede
para eles esperarem: Espelem! tá bem! eu mudo a histólia! Um de nós é plisioneilo
dos índios e os outlos vão tentar salvar. Após a discussão inicial de quem
representará o mocinho, uma outra começa; a de quem representará o prisioneiro.
Como os meninos não conseguem chegar a um acordo sobre quem será o
prisioneiro, uma briga com socos e pontapés se inicia. O pai de Cebolinha chega em
casa e presencia a cena: Crianças! o que é isso? Xaveco responde: A culpa é do
Cebolinha! ele quer mandar em tudo! Seu Cebola pondera: Que coisa feia! Brigando
entre si! Eu vou mostrar pra vocês como se brinca! Ou ouvir essas palavras, Cascão
pergunta: E marmanjo sabe brincar, por acaso? O pai de Cebolinha resmunga: Hunf!
Ao perceber a expressão de raiva de Seu Cebola, Cascão desculpa-se: Desculpe,
Seu Cebola! saiu sem querer! Quando Seu Cebola comunica para a turma que será
o prisioneiro, os garotos vibram e o amarram numa árvore, o amordaçam e a
brincadeira começa. Porém, a mãe de Cebolinha chama-os para um lanchinho e a
brincadeira pára. Entretanto, Seu Cebola continua preso, amordaçado e como não
pode falar, pois está com a mordaça na boca, ele em pensamento solicita: Me
soltem!. O vizinho da casa ao lado, ao ver a situação que se encontra o Seu Cebola
começa a falar de algumas questões que o incomodam: Claro! eu poderia soltar meu
caro vizinho...que liga o som bem alto e me tira da cama todo sábado de manhã!
Cuja linda árvore enche o meu quintal de folhas! E cujo cachorro adora pular o muro
e vir cavar buracos no meu quintal. Pois é! Eu poderia soltá-lo...Mas tenho uma idéia
bem melhor! Dentro de casa, os meninos já brincam com outras coisas (carros,
129
aviões) e quando eles estão se despedindo para irem embora, Cascão chama a
atenção para a seguinte cena:
Fonte: Revista Cebolinha, n.121, p.14.
Ao presenciar a cena, Cascão atribui o significado que marmanjo sabe
brincar, sim! Entretanto, devido à expressão de Seu Cebola e principalmente ao teor
das afirmações do vizinho da família de Cebolinha, uma possibilidade de
interpretação para o motivo da brincadeira entre os adultos é uma “vingança” do
vizinho a determinadas posturas de Seu Cebola. Para o vizinho dos Cebolas pode
até ser uma situação lúdica, mas para o Seu Cebola... Ao contrário do que imagina
Cascão (olha como eles se divertem!), o pai de Cebolinha não parece estar se
divertindo e o emprego do pronome no plural (eles) não demonstra a expressão de
“constrangimento” do Seu Cebola de encontrar-se nessas condições.
Outras histórias que demonstram como a brincadeira de faz-de-conta aparece
nos quadrinhos mauricianos são: Brincando de mágica (Revista Magali, n.305,
p.26-27), Siga o chefe (Almanaque do Cebolinha, n.46, p.27-32) e Faz-de-conta
(Revista Magali, n.183, p.22-25). Nesse último exemplo, a personagem Cascão,
usando um chapéu de papel e “montando” um cavalo de madeira, dirige-se para
Magali: Quem se atreve a atrapalhar a passagem de Sir Lanceloti. A menina meio
sem entender pergunta: Cadê? Cascão retorna a pergunta: Cadê quem? Magali
prossegue: O Pavaroti! Você disse que estão atrapalhando a passagem do Pavaroti!
E Cascão explica: Eu falei Lanceloti! E Lanceloti sou eu! Estou brincando de
130
cavaleiro da távola redonda! Ô Magali! Até parece que você não sabe brincar de faz-
de-conta! Quando você usa a imaginação a brincadeira fica demais!
Para Cascão, a imaginação é o que torna a brincadeira mais interessante e
nesse sentido ele pode transformar qualquer coisa em brinquedo. Na história de
título De tudo um pouco de brincadeira (Revista Cascão, n.350, p.3-13), Cascão
enfatiza isso: Eu disse que posso fazer um brinquedo de qualquer coisa, sim!
Cebolinha, ao ouvir as palavras do amigo, o desafia: Isso eu já escutei, mas
continuo no “duvide-o-dó”. Cascão, após ser desafiado por Cebolinha mostra para o
amigo que qualquer objeto pode ser modificado e transformado em brinquedo: lata
de lixo em escafandro
38
, traje espacial, robô; desentupidor de banheiro em um
brinquedo de acertar alvos! vassoura em helicóptero; aspirador em dragões que
cospem fogo, tapetes em carro de corrida; poltronas em trampolins; almofadas em
projéteis de uma nave espacial; panelas em capacetes; sapatos em automóveis e
livros em uma cidade inteira. Nas mãos de Cascão, tudo pode ser transformado em
brinquedo: uma caixa de papelão em carro de corrida ou em robô, como mostrado
na história de título Uma caixa de papelão na mão e uma idéia na cabeça (Revista
Cascão, n.442, p.27-32). A personagem Cascão é quem mais aparece utilizando
sucatas para a construção de brinquedos: Esta nave fiz com pote de iogurte e o
carrinho, com caixa de pizza! Este eu fiz com caixa de hambúrguer! (Revista
Cascão, n.400, n/p)
Os jogos como os de regra, pega-pega, esconde-esconde até os jogos que
necessitam de um brinquedo para serem jogados como: dominó (Revista Chico
Bento, n.427), futebol (Almanaque da Mônica, n.87, p.71) e bola de gude (Revista
Magali, n.198) comparecem nas HQs de Maurício.
Nesses quadrinhos, são as próprias personagens que repassam entre elas as
regras da brincadeira. Em Musiquinhas absurdas (Revista Magali, n.371, p.17-25),
Mônica e Magali estão brincando, quando Dudu chega e quer saber do que as
meninas estão brincando. Mônica responde: É uma velha brincadeira que a mamãe
me ensinou! Dudu pergunta se pode brincar também. Mônica permite a participação
do menino na brincadeira e passa a ensinar-lhe as regras: Bem... A gente fica
passando esta pedrinha de uma mão pra outra... Magali complementa a explicação:
Enquanto isso, a gente canta a musiquinha... E as duas meninas juntas cantam a
38
Objeto que os mergulhadores utilizam para respirar debaixo d’água.
131
música que serve de trilha sonora para a brincadeira: Escravos de Jô jogavam...
Nessa narrativa, quando Mônica afirma que foi sua mãe que lhe ensinou a
brincadeira, evidencia-se o papel da genitora na transmissão para uma outra
geração das regras da brincadeira. Mônica, ao aprender, aplicar e repassar esses
ensinamentos para o amigo, de uma certa forma resgata, preserva e mantém uma
tradição cultural através de uma brincadeira infantil antiga. Para Kishimoto (2001), a
brincadeira tradicional infantil, filiada ao folclore, incorpora a mentalidade popular,
expressando-se, sobretudo, pela oralidade. Essa brincadeira infantil “viaja” no
espaço e no tempo, tendo apenas como recurso a transmissão oral sem o auxílio de
meios eletrônicos sofisticados.
Considerada como parte da cultura popular, essa modalidade de
brincadeira guarda a produção espiritual de um povo em certo
período histórico. A cultura não-oficial, desenvolvida especialmente
de modo oral, não fica cristalizada. Está sempre em transformação,
incorporando criações anônimas das gerações que vão se
sucedendo. Por ser um elemento folclórico, a brincadeira tradicional
infantil assume características de anonimato, tradicionalidade,
transmissão oral, conversação, mudança e universalidade. Não se
conhece a origem da amarelinha, do pião, das parlendas, das
fórmulas de seleção. Seus criadores são anônimos. Sabe-se,
apenas, que provêm de práticas abandonadas por adultos, de
fragmentos de romances, poesias, mitos e rituais religiosos
(KISHIMOTO, 2001, p.38).
Uma característica marcante das brincadeiras e dos jogos quadrinizados é o
espírito de competição entre os participantes. Cebolinha compete e gosta demais de
vencer, e para que a vitória aconteça durante uma partida de futebol, Cascão,
considerado pelo amigo o melhor jogador de futebol do bairro, não pode ficar
ausente do campeonato de futebol do Limoeiro (como exemplificado na história de
título Prazer é fundamental – Almanaque do Cascão, n.65, p.18-22). Para
Cebolinha, a ausência de Cascão significa a derrota do time: Sem o Cascão,
peldelemos feio! Ele é o maior claque do bailo! Depois dessa constatação,
Cebolinha dirige-se para a casa do amigo e o encontra “trabalhando num novo
modelo de aviãozinho de madeira”. Cebolinha aflito pergunta: Essa polcalia de
aviãozinho é mais impoltante que o campeonato de futebol do bailo? Cascão
responde afirmativamente à pergunta do amigo. Mas, Cebolinha insiste na tentativa
132
de fazer Cascão participar da partida de futebol: Cascãozinho, você é o melhor
jogador do bailo! Cascão, seguro em sua decisão argumenta: Vocês dizem isso! Eu
nunca quis ser o melhor em nada! Não quero competir com ninguém! Jogo pra me
divertir! O que me dá prazer é fazer aviõezinhos, carrinhos... Cebolinha, diante da
argumentação do amigo, desiste de tê-lo no time: Tudo bem! Não plecisamos de
você mesmo! E Cascão, após ter explicitado o que realmente lhe dá prazer,
continua construindo o seu aviãozinho. Essa história demonstra que para Cascão o
importante não é competir, e sim, a diversão que o jogo de bola proporciona, e para
ele construir aviõezinhos e carrinhos é mais prazeroso.
Um outro aspecto referente às brincadeiras das crianças de papel é quando
uma das personagens necessita satisfazer alguma vontade e viola o direito da outra.
Um exemplo onde fica bem patente essa situação é o quadrinho de título Como
está, fica! (Revista Cascão, n.299, p.22-33). Nessa história, Cascão pede um
pedaço do picolé de Magali, mas a menina nega. Com a recusa, o menino tem uma
idéia para conseguir o picolé. E, assim, ele grita para ela: Como está, fica! Magali
não consegue entender e Cascão explica: É brincadeira! não sabe brincar, não?
Tem que ficar aí, paradona, e só pode se mexer quando eu falar licença! E com a
transformação da situação em brincadeira, Cascão consegue “tomar” o picolé de
Magali. Nesse quadrinho, a brincadeira “Como está, fica!” só acontece para atender
a um desejo da criança. Um outro exemplo da mesma brincadeira é o seguinte
quadrinho, em que Magali repete com Cebolinha o que Cascão faz com ela.
Fonte: Revista Magali, n.401, p.66.
133
Nas histórias mauricianas, é um desejo, um interesse ou a vontade de brincar
que antecede a brincadeira. As crianças de papel preferem brincar ou jogar
acompanhadas, freqüentemente elas formam pares para desenvolver alguma
atividade lúdica. Os pares mais constantes são Cascão e Cebolinha, Mônica e
Magali e Chico Bento e Zezé Lelé. Para os dois garotos urbanos o jogo de futebol é
o preferido. Para as meninas urbanas, brincar de boneca e de casinha são as
atividades lúdicas preferidas; já para as crianças da zona rural, brincar de telefone
de lata é uma brincadeira bastante presente nas histórias. Como verificado no
quadrinho abaixo:
Fonte: Revista Chico Bento, n.305, n/p.
As crianças da roça identificam-se mais com brincadeiras que utilizam
sucatas (conforme a ilustração acima), ou que fazem parte do seu dia-a-dia. Quando
acontece de alguma criança querer trazer, para o campo, brincadeiras da cidade,
134
elas geralmente malogram. Como mostrado no quadrinho de título Halloween
39
na
roça (Revista Chico Bento, n.438, p.1-14). Na referida história, o Primo da Cidade
tenta brincar de halloween com seu primo Chico e amigos, só que a brincadeira não
obteve êxito devido à falta de conhecimento sobre a brincadeira, tanto dos
participantes, quanto dos moradores da Vila Abobrinha. Após a tentativa fracassada,
o Primo da Cidade emite o seguinte comentário: parece que esse pessoal da roça
não entende nada mesmo de halloween.
Diferentemente das crianças urbanas, para Chico Bento as brincadeiras não
ocupam privilegiadamente o seu cotidiano, devido à presença marcante da escola e
do trabalho no sítio da família. O garoto da zona rural usufrui de seus momentos
livres namorando com Rosinha, nadando no ribeirão, “roubando” e comendo as
goiabas do Nhô Lau e pescando, uma das formas mais prazerosas de lazer desse
menino. Apesar de gostar do trabalho que realiza nas terras da família, Chico Bento
em algumas narrativas, sente-se tão cansado que adormece durante os encontros
com sua namorada. Nesse sentido, o trabalho de Chico o impede de usufruir dos
momentos com Rosinha. Ela, por sua vez, reclama da situação: Às veis acho qui
num é vantage namorá um rapaiz tão trabaiador! (Revista Chico Bento, n.373,
p.73).
Como foi dito anteriormente, a brincadeira ocupa um espaço privilegiado no
cotidiano dessas crianças e geralmente termina quando as mães chamam-nas para
fazer alguma atividade como tomar banho, fazer alguma refeição, etc.
4.1 O brinquedo: a expressão de imagens
Para Ariès (1981), no século XVII não existia uma separação tão rigorosa
como hoje entre as brincadeiras e os jogos destinados às crianças e as brincadeiras
e os jogos dos adultos. Os mesmos jogos eram comuns a ambos. Segundo o autor,
foi preciso uma longa evolução para que o sentimento da infância realmente se
cristalizasse nas mentalidades e se configurasse como conhecemos hoje. A
preocupação de Ariès em classificar os jogos de crianças e de adultos está
relacionada com a nova percepção da infância que começa a se construir no
39
Halloween significa dia das bruxas e é comemorado no dia 31 de outubro.
135
Renascimento: a criança dotada de valor positivo, de uma natureza boa, que se
expressa espontaneamente por meio do jogo, perspectiva que irá fixar-se com o
Romantismo. Diante dessa nova perspectiva em relação à infância, houve a
necessidade de uma separação entre brinquedos para crianças e jogos para
adultos.
Os brinquedos mais utilizados pelas crianças mauricianas são carros, bolas,
bonecas e bonecos. O mais famoso deles é o coelho Sansão, companheiro
inseparável de Mônica. As meninas de papel brincam com bonecas (Revista Magali,
n.338, p.3) e os meninos, com carrinhos e bola (Revista Cebolinha, n.215, p.19). Há
uma nítida demarcação entre brinquedos e brincadeiras de meninos e meninas.
Nesse sentido, os brinquedos e as brincadeiras separam os gêneros. Os meninos só
participam das brincadeiras das meninas (casinha, brincar de boneca) quando são
ameaçados por Mônica. Observamos também que em diversas histórias as crianças
transformam qualquer objeto em brinquedos ou objetos lúdicos que dão suporte à
atividade lúdica das crianças. Caixas de papel se transformam em carros, caroços
de manga chupados em bonecos/bonecas (Revista Mônica, n.232, p.89-95),
telefone celular em um calo de super-helói, cheio de luzinhas! (Revista Cebolinha,
n.155, p.25). Sob essa perspectiva, são propriedades de um brinquedo que são
atribuídas a um objeto. Numa situação apresentada como exemplo de nossa
afirmação, traremos para o corpo do texto fragmentos da história de título Quem
está na frente, mesmo? (Revista Cebolinha, n.242, p.3-13). Nessa história,
Cascão está brincando dentro de uma caixa de papelão. Ao visualizar o amigo
naquela situação e emitindo sons que imitam um carro, Cebolinha não consegue
entender o que está acontecendo e suas observações são carregadas de certo
ceticismo: Tá maluquinho é? O que você tá fazendo aí, dentlo de uma caixa de
papelão, agindo como um olangotango babão? Ao ouvir a pergunta do amigo,
Cascão é enfático ao pronunciar a atividade que está realizando: Pra sua
informação, maluquinho é quem usa uma panela na cabeça. Eu tô só brin-can-do. E
nesse processo lúdico, Cascão transforma uma caixa de papelão em um possante
carro fórmula um que ultrapassa qualquer adversário! Cebolinha, após compreender
a situação, decide aderir à brincadeira e transforma uma outra caixa de papelão em
um carro de corrida para competir com Cascão.
Na história Quem está na frente, mesmo? quando a personagem Cascão
faz referência a uma outra personagem de histórias em quadrinhos, o Menino
136
Maluquinho de Ziraldo, identificamos na fala: Pra sua informação, maluquinho é
quem usa uma panela na cabeça, a relação do discurso de Maurício com um outro
discurso. Para Maingueneau (1993), a interdiscursividade ocupa um lugar
privilegiado no estudo do discurso: ao tomar o interdiscurso como objeto, busca-se
apreender não uma formação discursiva, mas a interação entre formações
discursivas diferentes. Afirmar que a interdiscursividade é constitutiva de todo
discurso é dizer que todo discurso nasce de um trabalho sobre outros discursos.
Nesse exemplo, ocorre uma relação entre discursos do mesmo gênero discursivo
(quadrinhos).
Na história citada no parágrafo anterior, em um sentido, durante a brincadeira
a personagem é livre para determinar as suas próprias ações. Entretanto, em um
outro sentido, é uma liberdade ilusória, pois agora suas ações são subordinadas aos
significados que a criança atribui aos objetos. De acordo com Vygotsky (1991) no
brinquedo os objetos perdem sua força determinadora. Cascão vê uma caixa de
papel, mas age de maneira diferente em relação àquilo que ele vê.
A ação regida por regras começa a ser determinada pelas idéias e
não pelos objetos. Isso representa uma tamanha inversão da relação
da criança com a situação concreta, real e imediata, que é difícil
subestimar seu pleno significado (VYGOTSKY, 1991, p.111).
Vygotsky (1991) e Leontiev (2006) concordam que significados e sentidos vão
sendo construídos no desenvolvimento da brincadeira. Em muitas situações
mostradas nas histórias, as crianças retêm o significado do objeto (suas
propriedades e os modos de utilização compartilhados pelos outros), mas atribuem
um outro sentido ou vários sentidos enquanto dura a brincadeira: cachecóis se
transformam em cordas para pular, máscaras e balanços; vassoura em espada,
tampa de lata de lixo em escudo, etc. No tocante à transformação de um objeto
qualquer em brinquedo, as crianças mauricianas são bastante criativas na realização
de brincadeiras que necessitam de um brinquedo. Mesmo na ausência de
brinquedos industrializados (bolas, bonecas, bonecos, carros), elas utilizam sucatas
e constroem os brinquedos que servem de suporte para as suas brincadeiras. São
vários os exemplos em que essa situação é mostrada. Na história de título Vai até
137
as estrelas (Revista Cascão, n.463, p.57-65), a personagem título da revista
constrói uma “nave espacial” utilizando uma garrafa pet, tesoura, régua e cartolina e
usando como suporte uma pedra e uma tábua tenta lançá-la “até as estrelas”. Após
diversas tentativas de atingir o objetivo, a “nave” cai em cima da cabeça de Cascão
e as únicas “estrelas” próximas da nave são as que estão em volta da cabeça de
Cascão. Essa é mais uma história onde fica bem marcada a capacidade criativa e de
imaginação das crianças de papel.
Em uma outra história intitulada Movidos a quê?! (Revista Cascão, n.452, p.
58-65), vários amigos de Cascão o procuram para solucionar algum problema com
os seus brinquedos industrializados; no carrinho de Cebolinha, Cascão constata que
o problema é a bateria; a bonequinha de Mônica não andava mais, porque a menina
tinha colocado as pilhas ao contrário; o robô de Xaveco não estava funcionando, por
que o garoto não deu corda; a sorveteria mirim de Magali não funcionava porque a
garota não a ligou na tomada elétrica; o helitópero de Dudu apresentou problema,
pois o garoto não pressionou a mola que faz o brinquedo voar. Depois de Cascão ter
resolvido todos os problemas apresentados pelos brinquedos dos amigos, Dudu,
feliz com o seu helicóptero funcionando, percebe que os brinquedos de Cascão
nunca param de funcionar e pergunta para o amigo: E os seus brinquedos? Nunca
deixam de funcionar? Cascão responde: Não têm por que não funcionar! Não são
movidos à pilha, bateria, corda, mola, nem eletricidade! Dudu pergunta novamente:
Não?! Mas, então, como é que funcionam? A história termina com Cascão
respondendo a indagação de Dudu com as seguintes palavras: Movidos à
imaginação!! E isso nunca acaba. Nesse último recorte, a fala de Cascão explicita
que é a imaginação a responsável pelo funcionamento de seus brinquedos e que a
capacidade de imaginação da criança é ilimitada. O importante para essa criança
não são os recursos do brinquedo em si (andar, voar), mas o que ela faz com ele.
Também para Chico a imaginação é a responsável pela diversão: Pra si diverti
bastante é só usá um poco di imaginação! (Almanaque do Chico Bento, n.34, p.18).
Leontiev (2006) aponta para o fato de que quando uma criança brinca de
cavalgar utilizando um cabo de vassoura, a operação corresponde à madeira e a
ação ao cavalo. A ação montar um cavalo não pode ser desviada, transformada,
embora seja uma ação esquematizada. A operação sim, porque pode ser realizada
tendo como suporte outros objetos. Assim, o que prevalece é a situação (montar um
cavalo) e não o objeto em si (um cabo de vassoura). Desenvolvendo ainda mais a
138
questão, podemos afirmar que o brinquedo possibilitará às crianças a livre
substituição: capacidade de substituir um objeto por outro, o que, na brincadeira,
independe da função real do objeto. Muda-se o objeto sem alterar o(s) sentido(s) da
brincadeira. De acordo ainda com Leontiev (2006, p.123), “o brinquedo é
caracterizado pelo fato de seu alvo residir no próprio processo e não no resultado da
ação.” Para a personagem Cascão que transforma uma garrafa pet em uma nave
espacial, por exemplo, o alvo da brincadeira consiste na própria ação de fazer o
brinquedo.
Para Kishimoto (2001), uma simples boneca permite à criança várias
maneiras de brincadeiras, desde a manipulação até a elaboração de brincadeiras
como “mamãe e filhinha”. A autora afirma ainda que o brinquedo estimula a
representação, a expressão de imagens que evocam aspectos da realidade. Nesse
sentido, o que ocorre é uma reprodução da situação real, pois uma criança,
brincando com sua boneca, por exemplo, repete quase exatamente o que sua mãe
faz com ela e tanto a situação criada (brincadeira), quanto o brinquedo (boneca)
despertariam na criança uma aproximação com o universo dos adultos.
Questões referentes a assuntos familiares são temas recorrentes nas
brincadeiras das personagens mauricianas (principalmente as urbanas), nas quais
estão presentes a estrutura familiar e de papéis (pai, mãe, filhos, etc.). Durante
essas brincadeiras, as crianças de papel “copiam” comportamentos vivenciados na
“realidade”.
Um exemplo desse tipo de brincadeira é o mostrado na história intitulada
Nana, nenê (Almanaque do Cebolinha, n.39, p.74-81), onde Mônica representa a
mãe, Cebolinha (bastante a contragosto), o filhinho e Magali, a tia. Como
representação de sua mãe, Mônica fala para o seu “filho”: Agora o nenê vai tomar a
mamadeira bem direitinho, pra esperar a titia chegar! A “Tia” Magali chega e
encanta-se com o “bebê”: Oh! Que maravilha de bebê! Tão grande! Tão forte! Puxa,
Mônica como é que você conseguiu isso? Ele parece um bebê de verdade! Mônica
responde a amiga: Usei um dos meus dotes naturais para convencê-lo! Para que
essa brincadeira de faz-de-conta acontecesse houve uma “negociação”trato por
parte dos participantes; Cebolinha, flagrado por Mônica dando nós nas orelhas de
Sansão, implora de joelhos para a menina: Não, Mônica! Por favor, não me bata! Eu
faço qualquer coisa! Por favor! Porém, quando o menino tem conhecimento do papel
que será obrigado a representar, reage assim: Isto é lidículo! Não! Não e não!
139
Mônica bastante incisiva diz: Ridículo ou não, foi o que combinamos! Você disse
qualquer coisa! Cebolinha, contrariado, resmunga: Hunf! Ao perceber a expressão
do menino, Mônica puxa Cebolinha pela camisa e com o punho cerrado ameaça: Ou
você prefere ganhar um olho roxo, hein? O garoto, com medo, responde: Ok, ok!
Você venceu! Vamos blincar de mamãe!
Nessa história, Cebolinha ameaçado por Mônica promete fazer qualquer coisa
para não apanhar da menina, até representar o papel de bebê. Essa é uma situação
muito freqüente nas histórias: os meninos só participam das brincadeiras das
meninas quando são ameaçados por Mônica. A menina, devido a sua superforça
utiliza o poder que tem sobre os meninos para a satisfação de uma vontade: “brincar
de mamãe”. Só que “brincar de mamãe” é uma brincadeira para meninas, e um
provável motivo do constrangimento de Cebolinha é ter que participar de uma
brincadeira destinada às meninas. Sob tal perspectiva, nas brincadeiras das
crianças de papel ocorre uma delimitação entre as brincadeiras de meninos e
meninas.
Como aponta Barrie Thorne (apud LOURO, 2004, p.79), “a interação através
das fronteiras de gênero”, ou seja, o contato com o outro, tanto pode abalar e
diminuir o sentido da diferença como pode, ao contrário, fortalecer as distinções e os
limites. No caso das histórias de Maurício, observamos um fortalecimento das
diferenças: cores, jogos, brinquedos, brincadeiras, roupas e amigos demarcam os
lugares dos gêneros. A separação de jogos para meninos e meninas é, então,
estimulada pelas próprias personagens, principalmente pelos meninos. Na história
Jornada nas nuvens, Cascão está jogando bola quando Mônica aparece e solicita:
Oi, Cascão! posso jogar bola com você? O menino responde: Qual é Mônica?
Futebol não é para meninas (Almanaque do Cascão, n.42, p.4). Por outro lado,
também se apresentam uma série de situações que representariam através dos
jogos e das brincadeiras um “cruzamento de fronteiras”, ou seja, situações em que
as fronteiras ou os limites entre os gêneros são atravessados. O recorte abaixo
exemplifica a situação:
140
Fonte: Revista Cascão, n.324, p.26.
Para as personagens, há uma divisão bastante clara entre gêneros, até
mesmo em relação às cores. O diálogo entre Chico Bento e Zé Lelé ilustra bem a
questão: Zé Lelé pergunta para Chico: Chico! ocê acha qui Deus é home ou muié?
Chico responde: Ara, sei lá! quem é qui sabê? Zé Lélé continua: Ele é home, cum
certeza! Chico mais uma vez pergunta: Ah, é?I cume qui ocê sabe? Zé Lelé conclui:
Simpres! Si ele fosse muiê, tinha pintado o céu de cor-di-rosinha! (Revista Chico
Bento, n.461, p.36). Quando associa Deus à figura masculina devido à cor do céu,
Zé Lelé reproduz um discurso que distingue os gêneros pelas cores; azul para os
homens e rosa para as mulheres, como também pela utilização do adjetivo no
diminutivo (rosinha). Para Louro (2004, p. 67):
A linguagem institui e demarca os lugares dos gêneros não apenas
pelo ocultamento do feminino, e sim, também, pelas diferenciadas
adjetivações que são atribuídas aos sujeitos, pelo uso (ou não) do
diminutivo, pela escolha dos verbos, pelas associações e pelas
analogias feitas entre determinadas qualidades, atributos ou
comportamentos e os gêneros (do mesmo modo como utiliza esses
mecanismos em relação às raças, etnias, classes, sexualidades etc.)
141
Uma história ilustrativa da questão de gênero é a de título Sexo frágil
(Revista Mônica, n.143, p.71- 80). Nessa narrativa, Magali quer adquirir o “álbum de
figurinhas do Ursinho Bilu”, que está sendo distribuído gratuitamente por um senhor
na porta da escola, localizada na esquina da rua. Entretanto, devido a uma multidão
de crianças disputando o álbum, Magali não consegue pegar nenhum. Como Magali
não atinge o objetivo almejado, procura Mônica para ajudá-la, com os seguintes
argumentos: Bom, é como você é assim grossa, truculenta e bronca, eu achei que
poderia...Que poderia...Que poderia...Mônica não compreende onde a amiga quer
chegar e diz: Não entendi onde você quer chegar Magali...Nós somos meninas...O
sexo frágil, delicadas, meigas, serenas e singelas! Não podemos entrar naquela
multidão! Com a recusa da amiga, Magali indaga: Então, quem vai pegar pra nós?
Mônica responde: É pra isso que serve os homens! Magali pergunta novamente: Pra
fazer favores pra gente? Mônica continua com a argumentação: E pra trocar a
lâmpada, de vez em quando! É o que a minha mãe sempre diz! Com essas idéias,
elas procuram Cebolinha e solicitam o favor: Cumpra sua função de homem e faça-
nos um favor. Sem saber o que o esperava, Cebolinha aceita ajudar a meninas,
porém, quando visualiza a multidão, o menino recua e fala para Mônica: Tá maluca?
Olha só que confusão! Por que você mesma não pega essa polcalia? Mônica,
furiosa com a reação do amigo, responde: Porque eu sou do sexo frágil, seu
toupeira!! E com o dedo em riste, complementa: Eu sou delicada, meiga, serena e
singela demais para entrar naquela confusão!! Cebolinha, com medo, entra na
confusão, mas, sua primeira tentativa de pegar o álbum fracassa. Mônica,
determinada em conseguir seu objetivo, tem uma idéia: amarra uma corda na cintura
do garoto e o “manda via aérea”. Essa idéia dá resultado e Cebolinha consegue o
álbum, só que o menino esqueceu de pegar as figurinhas, e retorna para o centro da
confusão. As meninas, com o álbum nas mãos, comentam as novidades trazidas
pelo novo álbum: a criação da irmã do Ursinho BiluBilua. Para Mônica, a nova
personagem Parece o Bilu pintado de rosa! E Magali faz a seguinte observação:
estava na hora de criarem um personagem do sexo frágil. Enquanto as meninas
conversam, a corda em que Cebolinha está amarrado é puxada para dentro da
multidão. O menino assustado grita: Mônica!! cadê você?! Mônica o orienta: Corra
para a luz, Cebolinha!! corra para a luz!! Magali, aflita com a situação do amigo: E
agora?! Ele vai ser massacrado lá dentro!! Mônica, ao ouvir as palavras da amiga,
pula para dentro da confusão gritando: Deixem o meu amiguinho em paz!!
142
AAAAAHHH!!! Mônica distribui socos para todos os lados e resgata o amigo.
Cebolinha, bastante machucado, “vendo estrelas” com alguns dentes faltando e sem
conseguir falar “direito”, informa Mônica... eu peguei... as figulinhas... Após
pronunciar essas palavras, o garoto desmaia. No final da história, Magali faz a
seguinte reflexão: Toda essa história me fez pensar uma coisa, Mônica! Em quem é,
na verdade... O sexo frágil!. Conforme mostra o recorte abaixo:
Fonte: Revista Mônica, n.143, p.80.
De um modo geral, os sociólogos empregam o termo sexo para se referirem
às diferenças anatômicas e fisiológicas que definem o corpo masculino e o feminino.
Em contrapartida, por gênero entendem-se as diferenças psicológicas, sociais e
culturais entre indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino.
O gênero está associado a noções socialmente construídas de
masculinidade e feminilidade; não é necessariamente um produto
direto do sexo biológico de um indivíduo. A distinção entre sexo e gê
nero é fundamental, pois muitas diferenças entre homens e
mulheres não são de origem biológica (GIDDENS, 2001, p. 109).
A história Sexo frágil descrita acima possibilita-nos fazer algumas
observações no tocante à relação de gênero. Em seu discurso, Mônica repete da
mãe (é o que a minha mãe sempre diz) a idéia de que homens servem para fazer
“favores” às mulheres e “trocar a lâmpada, de vez em quando” e reproduz uma
imagem de menina sinônimo de fragilidade, delicadeza, meiguice, etc., adjetivações
que reforçam uma visão estereotipada da condição feminina. Uma outra questão a
ser destacada é a relação entre o discurso de sua mãe com o de Mônica. Há nos
enunciados da menina uma relação interdiscursiva, ou seja, o que Mônica diz circula
como discurso cristalizado no social. Para Gregolin (2006, p.32), “esse discurso-
143
outro marca, na materialidade discursiva, a insistência do outro como lei do espaço
social e da memória histórica”. Os discursos teriam as suas identidades estruturadas
a partir da relação interdiscursiva e não independentemente uns dos outros para
depois serem colocados em relação. De acordo com Maingueneau (1993), existe o
primado do interdiscurso sobre os discursos. Para justificar tal afirmação, o autor
relaciona a questão da interdiscursividade com a da gênese discursiva para
demonstrar que não existe discurso autofundado, de origem absoluta. Enunciar é
sempre se situar em relação a um já-dito que se constitui no outro do discurso.
Nessa história, quando Mônica bate nas outras crianças para resgatar o
amigo, ela desloca o interdiscurso. Verificamos que o que ela diz é a partir do
discurso-outro e não condiz com a sua performance nessa história. O discurso de
Mônica sustenta-se na ambigüidade que se dá entre o dizer e o fazer. Há nesse jogo
um processo de resistência aos discursos circulantes sobre os gêneros. Mônica
transgride esse modelo feminino sedimentado no imaginário social (frágil, delicada e
meiga).
Com efeito, a ambigüidade é uma marca constitutiva do sujeito-Mônica que é
forte, dona da rua, mas freqüentemente entra em crise por não conseguir ser uma
criança igual às outras. A presença do discurso-outro é tão marcante que contribui
para que Mônica aspire, em alguns momentos, ocupar esse lugar de aceitação
social. Por não adaptar-se aos comportamentos socialmente atribuídos à mulher,
Mônica é muitas vezes excluída tanto dos círculos dos meninos: quando ela procura
algum amiguinho para brincar e todos se recusam (conforme exemplificado na
(Revista Mônica, n.156, p.20-23), quanto dos círculos das meninas. Os recortes a
seguir são demonstrativos dessa crise de Mônica: Ai! Não era isso que eu queria!
Assim continuo diferente dos outros do mesmo jeito (Revista Mônica, n°126, p.80).
Mônica, em algumas histórias, sofre por que nenhum garoto gosta dela: Snif! A
Denise tem razão! Snif! Nenhum garoto gosta de mim!. A protagonista também
sente-se ameaçada por outras garotas, quando vislumbra a possibilidade de perder
os seus “namorados”: Vem até aqui, canta um do-ré-mi e rouba todos os meus
namorados (Revista Magali, n.274, p.7).
Em muitas histórias ocorre a tentativa de Mônica de ser uma garota “normal”,
mesmo nas brincadeiras, a sua superforça mais a atrapalha do que ajuda. Um
exemplo ilustrativo dessa situação é o quadrinho intitulado Quando a brincadeira
vai pro espaço (Revista Mônica, n.206, n/p). Nessa narrativa, Mônica tenta jogar
144
peteca com duas meninas e bola com Cebolinha e Xaveco, mas devido à sua
superforça, quando ela joga os brinquedos, tanto a peteca quanto a bola vão parar
no espaço sideral. Por possuir uma força extraordinária, Mônica, na maioria das
vezes, demonstra ser uma menina bastante desajeitada. A falta de jeito de Mônica,
além de incomodá-la, afasta-a tanto dos meninos quanto das meninas, acarretando
alguns momentos de crise e de solidão. A força de Mônica é tão fantástica que até
mesmo o Super-homem solicita a ajuda da menina para abrir um vidro de biscoito.
De acordo com a Revista Mônica, n.220, n/p.
Conforme afirmado anteriormente, Mônica anseia ser aceita pelos meninos,
em muitas das narrativas ela procura encontrar “o homem perfeito”. Na história de
título O homem perfeito (Revista Magali, n.266, p.26-32), Mônica tenta responder a
um teste cujo resultado dará o perfil do homem perfeito. Com a orientação de sua
amiga inseparável, Magali, Mônica começa a dar suas respostas para o teste, só
que, ao final, Mônica, desolada, dirige a seguinte pergunta para Magali: o Ricardinho
já era! o Brédi Pite, também! O que vai sobrar para mim? Ou seja, não sobrou
nenhum homem perfeito para ela. Quando Mônica termina de formular a questão,
Cebolinha aparece na cena fazendo caretas e apelidando Mônica: Iuluu!! Lolha de
poço!! Balão de gás! Chupeta de baleia! Ao ouvir os insultos, Mônica corre atrás do
menino. No último quadrinho, Magali faz uma observação: Bom... Eu não preciso de
nenhuma revista pra adivinhar! E “lança” uma pergunta para os leitores: O que vocês
acham? Ao final da história, podemos perceber na fala de Magali uma insinuação
sutil que não é necessário aplicar nenhum teste para reconhecer que o “homem
perfeito” para sua amiga é Cebolinha.
Nessa história, ao final, ocorre uma exceção, pois Mônica não corre atrás de
Cebolinha segurando o coelho de pelúcia, Sansão, seu “brinquedo” preferido.
A infância é, conseqüentemente, um momento de apropriação de
imagens e de representações diversas que transitam por diferentes
canais. As suas fontes são muitas. O brinquedo é, com suas
especificidades, uma dessas fontes. Se ele traz para a criança um
suporte de ação, de manipulação, de conduta lúdica, traz-lhe,
também, formas e imagens, símbolos para serem manipulados. Por
isso, parece útil considerar o brinquedo não somente a partir de sua
dimensão funcional, mas, também, a partir daquilo que podemos
denominar sua dimensão simbólica (BROUGÈRE, 2006, p. 40-41.
Grifo do autor).
145
O brinquedo coloca a criança na presença de reproduções (na maioria das
vezes em forma de miniaturas): tudo que existe no cotidiano, a natureza e as
construções humanas. Pode-se dizer que um dos objetivos do brinquedo é dar à
criança um substituto dos objetos reais, estimulando cada vez mais sua imaginação
e criatividade. Com isso, manipula-os e controla-os, a fim de garantir o poder sobre
essas representações.
No caso de Mônica, observamos que não é ela que mantém o controle sobre
o seu bicho de pelúcia, mas é ele que a controla, pois essa personagem fica
bastante fragilidade quando não está com o seu coelho. Ele é seu apoio emocional.
As outras quatro personagens não possuem nenhum bicho de pelúcia de estimação
e sim “bichos de verdade”: cachorros, porcos, gatos, vacas e galinhas. Mônica
também possui um “cachorro de verdade”, o Mônicão. Na história de título Um
coelho de verdade (Revista Mônica, n.118, p.3-15), Mônica fala para Magali que
gosta muito de Sansão, mas que, às vezes, gostaria de ter um bicho de verdade.
Cebolinha ouve a conversa e decide colocar em prática mais um de seus planos
para derrotar Mônica: o menino envia uma carta para Mônica dizendo que é uma
fada e ao ouvir o desejo da menina, resolveu realizá-lo: Agora o seu coelhinho de
pelúcia é de verdade. Inicialmente, Mônica fica feliz com a mudança, porém, na
primeira tentativa de atingir Cebolinha com o novo coelho, ela machuca as orelhas
do animal e lhe pede desculpas ao lembrar-se que ele é de verdade. Cebolinha fica
muito satisfeito ao perceber que o seu plano está dando certo. Mônica, advertida por
sua mãe, reconhece que um coelho de verdade requer mais cuidado (alimentar,
limpar a sujeira e organizar a bagunça feita por ele) e sente saudades do seu coelho
de pelúcia. No final, Mônica, avisada por Magali, descobre o plano de Cebolinha e
após muita briga com ele, pega o seu coelho de pelúcia de volta.
Atualmente, o mundo do entretenimento, com seus produtos culturais,
participa e exerce uma grande importância no cotidiano das crianças. Segundo
Brougère (2006, p. 50), “a televisão transformou a vida e a cultura da criança, as
referências que ela dispõe. Ela influenciou, particularmente, sua cultura lúdica”.
Pelos filmes, pelos desenhos animados, pelas diversas imagens que exibe, a
televisão fornece às crianças conteúdo para as suas brincadeiras. O discurso
midiático, principalmente o da televisão, reforça o padrão hegemônico vigente: onde
meninos brincam de carrinhos e meninas de boneca, não havendo diversidade de
raça e todos são felizes. Podemos dizer que, sob esse ponto de vista, os meios de
146
comunicação servem como instrumentos para fortalecer esse modelo cristalizado no
imaginário nacional e os efeitos de sentidos produzidos pela mídia visam à
manutenção do status quo.
A televisão é o meio de comunicação de maior audiência nas histórias (a
exceção ocorre nos quadrinhos de Chico Bento). Essa mídia tem uma freqüência
maior do que livros, gibis, revistas, jornais, computador, etc. Como a família de Chico
não possui televisão, quando o menino quer assistir a algum filme, ele dirige-se até a
casa de seu amigo Zé da Roça (Revista Chico Bento, n.346, p.18). Nas histórias de
Chico Bento, a mídia mais presente é o rádio e o menino utiliza esse meio de
comunicação para ouvir música sertaneja, seu estilo preferido. Chico deixa claro o
seu gosto por esse gênero musical na história intitulada Gosto não se discute
(Revista Chico Bento, n.324, p.24-27). Nesse quadrinho, o menino está ouvindo
música pelo rádio acompanhado pelo primo da cidade que quer ouvir música
estrangeira. Como Chico não gosta desse estilo, grita para o primo: Eu num gosto di
música istrangera! Num intendo nada! I depois...o rádio é meu! I eu só gosto di
música sertaneja! Nesse recorte, Chico Bento, que “só gosta de música sertaneja”,
demonstra a sua identificação com esse gênero musical. Ao preferir esse estilo de
música, Chico reforça a relação que esse tipo de música mantém com o mundo que
o cerca. Quando o discurso musical trata da vida, dos valores rurais, ocorre uma
identificação maior com o ouvinte que vive no campo, já que os temas mostrados
pela música fazem parte do cotidiano dessas pessoas. Chico só gosta de música
sertaneja, por ser o estilo que consegue compreender e que mais se aproxima de
sua realidade.
Apesar das aventuras das protagonistas se desenvolverem na maioria das
vezes ao ar livre, ruas, parques, praças, praias, fazendas, entre outros, identificamos
que as crianças urbanas demonstram gostar muito de assistir televisão e muitas
vezes são seduzidas pela publicidade de brinquedos, roupas e produtos de beleza.
Em todas as residências das crianças urbanas, há um aparelho de televisão que
ocupa um lugar de destaque na decoração de seus lares e em muitas histórias a
família reúne-se para assistir a programação, como retratado na ilustração abaixo:
147
Fonte: Almanaque do Cebolinha, n.55, p.15.
Devido ao seu alto poder de penetração, a televisão torna-se um instrumento
eficaz na transmissão de informação e principalmente de mensagens publicitárias.
Foi a partir da década de 1980, com as vendas de produtos infantis licenciados pela
apresentadora de televisão Xuxa, que os anunciantes perceberam o potencial da
criança como público consumidor. Anterior a esse período, a criança aparecia em
propagandas para adultos, como uma estratégia de sensibilização. Os comerciais
sobre brinquedos colecionáveis que representam personagens de revistas em
quadrinhos, como o do Ursinho Bilu (personagem de quadrinhos bastante querido
pelas quatro protagonistas urbanas) e de séries cinematográficas de sucesso como
Guerra nas Estrelas fazem muito sucesso junto aos meninos. Em Guerra nas
prateleiras (Revista Cascão, n.420, p.3-17), a personagem Cascão quebra o seu
cofrinho para obter dinheiro e comprar o último bonequinho, o vilão Dárti Váder e
terminar a sua coleção de “Berro nas Estrelas
40
”. Mas, quando o menino chega à
loja, o boneco já tinha sido vendido. Desolado, Cascão vai para casa e tenta
construir um boneco com rolo de papel de cozinha. Porém, para o menino: Um vilão
feito de papel de cozinha não é a mesma coisa! E jogando o boneco feito de sucata
no cesto de lixo, diz: O jeito é me contentar com o que já tenho! Quando está
brincando com os seus bonecos, Cascão ouve sons iguais ao que ele estava
fazendo (vrum...vrum...pióiiim...vrum) e dirige-se para a janela de seu quarto para
saber quem o estava imitando. Ao chegar à janela percebe que é Cebolinha quem
está brincando de nave estelar, fazendo o boneco Dárti Váder de Capitão Estelar.
40
Berro nas Estrelas é uma referência à série cinematográfica hollywoodiana Guerra nas Estrelas.
148
Cebolinha, ao ouvir do amigo dizer que aquele boneco era o Dárti Váder, reage
assim: O boneco é meu e eu o chamo do que quiser. Cascão, na tentativa de
conseguir o brinquedo, implora para o amigo vender o boneco. Mediante a súplica
de Cascão, Cebolinha diz que trocaria o boneco pelo veldadeilo bonequinho do
capitão estelar! Ao saber que somente Magali é quem possui o boneco “verdadeiro
do Capitão Estelar”, Cascão tenta negociar com a amiga. Após, trocar com Mônica a
boneca “Mariazinha Biju com o ultraje na mala” pelo “Ursinho Bilu em traje de gala”,
Cascão volta a se encontrar com Magali que aceita trocar a boneca que era de
Mônica pelo boneco do Capitão Estelar. Depois de cumprir o acordo feito com
Cebolinha e quando Cascão finalmente consegue completar a sua coleção de
bonecos, obtém a informação pela televisão que está sendo lançada no comércio a
nova linha de personagens! E o item mais importante para a sua coleção, o Vilão
Dárti Váder em traje de gala! Desolado e com os bolsos vazios, Cascão volta a
construir bonequinho de papelão.
A história Guerra nas prateleiras nos possibilita realizar algumas observações:
a importância atribuída por Cascão à sua coleção de bonecos, a influência exercida
pela série cinematográfica nos brinquedos do menino, a determinação de Cascão
em concluir sua coleção e, principalmente, ao caráter efêmero e descartável dos
brinquedos produzidos industrialmente. Nas HQs mauricianas não há uma
predominância de brinquedos industrializados em detrimento de brinquedos
pedagógicos (encaixe) ou dos mais artesanais (carrinhos de madeira, pipas, etc.).
Nessas histórias, os brinquedos industrializados não substituem os outros. O que
ocorre muitas vezes é uma maior valorização dos brinquedos construídos pela
própria criança, para o que ela usa mais imaginação e criatividade, como também de
um resgate da tradição, pois as crianças de papel, utilizando sucatas, constrõem
brinquedos mais antigos como pipas, carrinhos de madeira, etc., dão asas à
imaginação através das inúmeras brincadeiras desenvolvidas.
Diferentemente das crianças de carne e osso, as crianças mauricianas se
dedicam muito a atividades lúdicas participativas: empinar pipas, como na história
intitulada Aqui não é lugar de pipa (Revista Cebolinha, n.187, p.44-48); brincar
com bola, no quadrinho de título A bola (Revista Cebolinha, n.174, n/p), entre
outras, através das quais as crianças exercitam todo o seu corpo, a sua imaginação
e criatividade. Nesse último exemplo, Cascão está brincando com Cebolinha com
uma bola, mas a brincadeira é interrompida pela mãe de Cascão que o chama “para
149
comer”. Como geralmente acontece, as brincadeiras das crianças cessam quando
as mães chamam os filhos para fazer alguma refeição ou tomar banho.
Como para as crianças urbanas não existe a presença da escola, elas
dedicam a maior parte de seu tempo ao lazer e ao entretenimento, vão a parques de
diversão, praias e sítios sempre acompanhadas pelos amigos. Nessas histórias, os
parques de diversão configuram-se com um espaço direcionado para a infância com
equipamentos concebidos para este grupo social. Na história de título Hora de ir
(Revista Magali, n.370, p.23-26), as crianças são mostradas brincando juntas em
escorregador, balanços e carrinhos de bate-bate.
4.2 Amizade: conflito e solidariedade
O tema da amizade é recorrente nos quadrinhos mauricianos. Há
especificamente uma história cujo título é A amizade que descreve a importância
dos amigos, com algumas reflexões: Os amigos compartilham momentos... Dão
força! Estão sempre lado a lado! Nas conquistas ... Nas derrotas! Nas horas boas...
E nas difíceis! Amizade nem sempre é pensar do mesmo jeito! Mas abrir mão... De
vez em quando! Amizade é como ter um irmão... Que não mora na mesma casa! É
compartilhar segredos...Emoções! É compreensão... É diversão! É contar com
alguém... Sempre que precisar! É ter algo em comum! E não ter nada em comum! É
saber que se tem mais em comum do que se imagina! Amizade que é amizade
nunca acaba! Mesmo que a gente cresça! E apareçam outras pessoas no nosso
caminho! Porque amizade não se explica! Ela, simplesmente, existe! (Revista
Cebolinha, n.198, p.1-6). Essa narrativa evidencia a relação entre Cebolinha e
Cascão (dois amigos inseparáveis); símbolos desse sentimento tão presente e
fundamental no cotidiano das crianças de papel. Os outros dois pares de amigos
que freqüentemente protagonizam as histórias são: Mônica e Magali (Revista
Mônica, n.244, p.3-16), Zé Lelé e Chico Bento (Revista Chico Bento, n.452, p.3-
14). Essa narrativa descreve algumas questões elaboradas por vários filósofos
acerca da amizade. A amizade, afirma Cícero (2007), em parte alguma é excluída,
jamais é inoportuna, nunca é incômoda; de maneira que não nos servimos tanto da
água, nem do fogo, como se costuma dizer, quanto da amizade. Dentre as reflexões
realizadas nessa narrativa quadrinizada, destacamos: amizade é como ter um
irmão...que não mora na mesma casa! Esse fragmento discursivo evidencia o que
150
Ortega (2000, p.115-116) analisa como uma inclinação a adaptarmos tudo o que se
apresenta como distante e desconhecido ao que nós é próximo e familiar, por meio
da formação de analogias:
Por isso, as descrições mais enfáticas e emotivas das relações
pessoais reproduzem relações de parentesco. Quanto mais
significativa foi uma relação, mais nos inclinamos a compará-la a
relações familiares. Em muitas culturas, o aumento da intensidade
afetiva na relação de amizade leva a sua substituição por uma
relação familiar: o amigo passa a ser o irmão, como acontecia nos
discursos filosóficos da amizade (ORTEGA, 2000, p.116).
Para Cícero (2007), a amizade vale muito mais do que o parentesco, em
virtude de o parentesco poder se esvaziar de toda afeição e a amizade, não: retire-se
a afeição, não haverá mais amizade, embora o parentesco continue existindo.
Uma das características comum às crianças reais que estão nessa fase,
(conforme relacionamos anteriormente) e as de papel é que os companheiros
assumem importância central em suas vidas (“grupo de pares”), principalmente no
processo de constituição da atividade lúdica. Nos quadrinhos, são essas “crianças-
amigos” os parceiros privilegiados das aventuras. Para Ferreira (2004, p.77), as redes
de amizade podem ser vistas como importantes contributos para o processo de
reprodução cultural no interior do grupo, porque é com outras crianças que a criança
brinca, conversa, troca idéias, constrói e expande a sua cultura. Nesse sentido,
observamos uma aproximação entre esses dois tipos de crianças, pois as crianças de
Maurício passam a maior parte do tempo na companhia dos amigos. A díade amigos-
brincar assume nos quadrinhos mauricianos importância fundamental.
O relacionamento entre Mônica e os meninos urbanos não é muito amistoso.
Cebolinha, Cascão e Mônica brigam com muita freqüência. Mas, na maioria das
histórias, a menina só agride quando é insultada. Os meninos a perturbam e ela
reage. Mônica irrita-se profundamente quando os meninos a adjetivam de gorducha,
dentuça e baixinha e fazem nós nas orelhas de Sansão. Por isso, quando Cebolinha
fala em derrotar Mônica, toma-lhe o coelho e faz nós em suas orelhas, age assim
para que a menina perca a força, tal qual o Sansão bíblico, quando teve sua cabeleira
cortada por Dalila. A relação entre Mônica e os meninos é bastante conflituosa.
Entretanto, Mônica, utilizando sua superforça e seu coelho como arma, sempre sai
151
vencedora. Os pontos frágeis de Mônica são: a dependência em relação a Sansão e
a sua estética. Conhecedor das fragilidades da menina, Cebolinha a provoca com
desenhos grotescos que retratam uma Mônica gorducha, dentuça e baixinha, além de
arquitetar planos para acabar com o poder da menina.
É importante observar que, na concepção de Foucault, o exercício do poder
se dá entre sujeitos que são capazes de resistir (pois, caso contrário, o que se
verifica, segundo ele, é uma relação de violência). Para ele, “lá onde há poder há
resistência” (FOUCAULT, 1985, p.91). De acordo com as análises do autor, não
existe, de um lado, os que têm o poder e, de outro, aqueles que se encontram dele
alijados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem, sim, práticas ou
relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce, que se
efetua, que funciona. E se o exercício do poder dá-se entre os sujeitos capazes de
resistir, verificamos que na relação entre Mônica e Cebolinha, este último, através da
elaboração de seus “planos infalíveis”, busca estratégias de resistir às práticas de
poder de Mônica. Cebolinha não permanece passivo ao poder exercido por essa
menina, ele tenta a todo custo derrotá-la e tornar-se o dono da rua. A grande
frustração desse menino é não ser o dono da rua. Para executar seus planos,
Cebolinha conta com a ajuda de seu companheiro, cúmplice e melhor amigo,
Cascão. Os planos de Cebolinha para acabar com a supremacia de Mônica podem
malograr, mas ele é aquele que não se cansa de tentar, e talvez essa seja a garantia
de sua afirmação como menino. Ainda de acordo com Foucault (1993, p.241), não
há poder sem potencial de revolta; a partir do momento em que há uma relação de
poder, há uma possibilidade de resistência.
Apesar das brigas constantes, a união e o espírito de solidariedade são
bastante presentes entre os membros da turma. Eles se preocupam uns com os
outros e quando um membro da turma apresenta algum tipo de dificuldade, são os
amigos que ajudam a superá-la. São várias as histórias onde a cooperação, a
generosidade e a solidariedade são demonstradas. Na história de título O sumiço de
Mingau (Almanaque da Magali, n.37, n/p), Cascão e Cebolinha ajudam Magali a
resgatar o seu gato de estimação que caiu em um bueiro. Em Chico em apuros Zé
Lelé dá uma mão (Revista Chico Bento, n.415, n/p), Chico Bento, segurando
apenas o galho de uma árvore, está prestes a cair de um barranco. Zé Lelé, ao
perceber a aflição do amigo, tenta de maneira atrapalhada ajudá-lo: encontra uma
cobra e imaginando que é uma corda, joga-a para Chico, tenta “pescá-lo” e em sua
152
vara aparece a cobra que foi atirada, arremessa uma escada na cabeça de Chico,
enche balões e tenta resgatar o menino, com um arco atira um desentupidor de pia
atingindo um pássaro que pica a cabeça de Chico Bento, cava um buraco para se
aproximar do amigo e resgatá-lo, porém, a escavação faz o galho ceder e Chico
despenca do barranco. Todas as iniciativas de fracassam; Chico cai e machuca-
se. Apesar dos machucados do amigo, Zé Lelé fica feliz por Chico estar bem. Este,
entretanto, não está muito satisfeito com a queda, os machucados e principalmente
com as tentativas atrapalhadas do amigo e tenta alcançar Zé Lelé que sobe em uma
árvore para fugir de Chico. A situação se inverte, agora é Zé Lelé quem está em
apuros e aflito imagina as várias possibilidades de auxílio para descer da árvore: a
utilização de escada, corda, vara de pesca e balão. Esses mesmos instrumentos
foram usados por no malogrado resgate de Chico. A ajuda de Zé Lelé não obteve
êxito, mas o atrapalhado Zé Lelé, à sua maneira, tentou socorrer o amigo.
Em um outro quadrinho intitulado O que fazer com tantas tábuas? (Revista
Cebolinha, n.231, p.36-38), Cebolinha e Cascão conseguem alguns pedaços de
tábuas e começam a imaginar quais os brinquedos que poderiam ser construídos
com elas. Porém, os meninos não chegam a um acordo sobre qual brinquedo será
feito; Cebolinha quer um carrinho de madeira, ou um foguete, ou um robô, ou uma
gangorra, ou um castelo, já Cascão deseja um navio pirata, ou uma casinha em uma
árvore, ou um cavalinho de madeira, ou um escorrego, ou um carrinho de rolemã.
Após muita divergência, os meninos visualizam o amigo Lucas, portador de
necessidades especiais, e como ele não consegue subir a calçada de casa em sua
cadeira de rodas, Cebolinha e Cascão utilizam as tábuas como rampas para auxiliar
Lucas a subir e descer a calçada, conforme a ilustração abaixo:
Fonte: Revista Cebolinha, n.231, p.38.
153
Para Comte-Sponville (2004, p.101), a solidariedade pode motivar, suscitar,
reforçar a generosidade. Mas ela só é “verdadeiramente generosa desde que vá além
do interesse, ainda que bem compreendido, ainda que partilhado – logo, contanto que
vá além da solidariedade!”. Segundo ainda esse autor, a generosidade é o oposto do
egoísmo. Na história O que fazer com tantas tábuas, Cebolinha e Cascão desistem
dos brinquedos que seriam construídos com as tábuas, em prol do amigo. A idéia de
ajudar o amigo predomina sobre a de construir brinquedos.
Um outro aspecto a ser ressaltado referente à amizade entre os membros da
turma é a falta que os amigos fazem quando estão ausentes. Mônica, apesar das
brigas e discussões freqüentes com os meninos, não permite que magoem Cebolinha
e repreende um menino que o fez chorar: Não fale mais assim com o meu amiguinho!
Ele é muito sensível (fala de Mônica extraída da Revista Mônica, n.185, p.40). Além
disso, sente falta de Cebolinha e Cascão quando eles não estão por perto (Revista
Mônica, n.191, p.3-10). Assim como também Cascão e Cebolinha ficam tristes
quando pensam que a amiga Magali mudou de endereço, de acordo com o seguinte
recorte:
Fonte: Revista Magali, n.231, p.3.
Nessa história, Magali não se mudou definitivamente, ela apenas está
passando uns dias na casa da Tia Rosa enquanto reformam “algumas coisas” em
sua casa. Como foi afirmado anteriormente, essas crianças não se mudam, elas são
vizinhas e permanecem no mesmo endereço desde a primeira história, o que devido
154
à proximidade geográfica das residências há um maior estreitamento dos laços de
amizade entre eles.
4.3 A brincadeira e a amizade e a sua relação com a socialização da criança
A socialização, para Giddens (2001, p.27), é o processo através do qual as
crianças, ou outros novos membros da sociedade, apreendem o modo de vida da
sociedade em que vivem. De acordo com o conceito, esse processo constitui o canal
principal de transmissão da cultura através do tempo e das gerações. Por intermédio
do processo de socialização, os indivíduos apreendem os seus papéis sociais –
expectativas socialmente definidas seguidas pelas pessoas de uma determinada
posição social.
A socialização não é uma espécie de “programação cultural”, em que, como
assinala Giddens (2001, p.28), a criança absorve passivamente as influências com
as quais entra em contato. A criança é, desde do nascimento, um ser ativo.
De acordo com Pinto (1997, p.45), a socialização consiste no processo
através do qual os indivíduos apreendem, elaboram e assumem normas e valores
da sociedade em que vivem, mediante a interação com o seu meio mais próximo e,
em especial, a sua família de origem, e se tornam, desse modo, membros da
referida sociedade. Segundo ainda Pinto (1997, p.45), “o problema da socialização
pode – e de fato tem sido – perspectivado de duas maneiras distintas: ora a partir da
sociedade e dos respectivos agentes socializadores, ora a partir dos indivíduos em
processo de socialização e dos respectivos mundos sociais”. Assim sendo, a escola,
os grupos de pares, instituições e os meios de comunicação de massa tornam-se
“forças de socialização” de um indivíduo.
Neste capítulo, focalizamos os grupos de pares e como se dá a relação entre
eles e suas brincadeiras. Conforme dito anteriormente, os amigos são companheiros
privilegiados das brincadeiras, apesar de, em algumas histórias, o pai participar das
práticas lúdicas da criança: contando histórias para os filhos antes de eles dormirem,
dividindo algumas brincadeiras ou tentando montar um brinquedo de encaixe junto
com o filho, como retratado no quadrinho de título A difícil arte de montar um
aviãozinho (Revista Cascão, n.400, p.3-15), onde o pai de Cascão tenta “ajudá-lo”,
mas ele se esconde.
As práticas lúdicas variam de acordo com o meio (rural e urbano). Como não
existe a presença da escola para as crianças urbanas, o tempo dedicado ao lazer,
155
ao entretenimento, aos jogos e brincadeiras é quase integral. Já para Chico Bento, a
brincadeira pouco aparece; esse menino, quando não está na escola ou trabalhando
na roça, dedica seu tempo livre à pesca, a tomar banhos no ribeirão e a namorar
com Rosinha (essa última condição é exemplificada na Revista Chico Bento, n.67,
p.18). Mas, tanto no contexto urbano, quanto no rural, são as crianças quem
escolhem as práticas lúdicas a realizar. Nesse sentido, não há a interferência dos
adultos, são as próprias crianças que determinam os tipos de jogos e brincadeiras a
serem efetuadas.
156
5 MAIS UMA VEZ: entrelaçando dados e teoria
Para este capítulo da tese em que trazemos nossas considerações finais,
mobilizamos mais uma vez os dispositivos teórico-analíticos que sustentam o nosso
trabalho, ou seja, os processos discursivos que constituem a concepção de infância
nos quadrinhos mauricianos. Esta retomada deter-se-á na construção de sentidos
sobre a infância quadrinizada, relacionados com os eixos temáticos avaliados
anteriormente, demonstrando nas teias do discurso os efeitos de sentido produzidos,
tanto pela regularidade do enunciado quanto pelo seu deslocamento. É necessário
enfatizar que as análises dos elementos apontados nos três capítulos anteriores nos
fornece subsídios para a compreensão da infância construída a partir da
configuração que o autor dá à família, à escola, às brincadeiras e à amizade e como
essa concepção se inscreve na materialidade dos quadros. Como forma de
ordenação textual, obedeceremos a mesma seqüência dos capítulos, analisando
enunciados já descritos e que nos ancoram na identificação dessa infância
quadrinizada.
A compreensão da especificidade da infância, ou seja, de que as crianças têm
um funcionamento e necessidades particulares, não é muito antiga na história da
humanidade. Foi somente a partir do século XVII que começaram a se registrar
escritos e práticas que retratavam alguma preocupação moral e pedagógica com o
cuidado e a educação das crianças.
O interesse ou a indiferença com relação à criança não são realmente
característica desse ou daquele período da história. As duas atitudes coexistem no
seio de uma mesma sociedade, uma prevalecendo sobre a outra em determinado
momento por “motivos culturais e sociais” que nem sempre é fácil distinguir (GÉLIS,
1995, p. 328).
Uma das primeiras manifestações a partir das quais foi constatado um
“sentimento de infância” foi o encantamento dos adultos com os gracejos das
crianças. Áries (1981), a partir da análise de escritos (diários e cartas) que se
revelaram para os historiadores sociais como fontes de pesquisa para a
reconstituição da vida cotidiana do passado, mostra que o deslumbramento com as
crianças tornou-se um valor social a ser exibido, adquiriu status de prestígio.
Gradativamente, foi instalando-se a necessidade de diferenciar a vida dos
adultos e das crianças, assim como dar a elas tempo e estímulos que requeriam
157
para seu desenvolvimento. Foi preciso admitir que, além de lento, o crescimento das
crianças envolve muito investimento dos adultos; criar passou a ser sinônimo de
educar.
Ao ocupar-se das crianças, foram sendo descobertas suas necessidades
particulares, assim como o fato de que seu “pensamento funcionava com uma lógica
particular” (CORSO, CORSO, 2006, p.189).
As modificações da situação da criança não são resultantes apenas das
transformações que as estruturas familiares sofreram nos séculos clássicos, mas,
também, a indiscutível influência exercida pela Igreja e pelo Estado. Assim, a
afirmação do sentimento da infância, por volta de 1550, foi acompanhada de toda
uma série de disposições legais que respondiam a preocupações de ordem religiosa
e pública ao mesmo tempo. Conforme Gélis (1995, p. 328),
Devemos interpretar a afirmação do ‘sentimento da infância’ no
século XVIII – quer dizer, nosso sentimento da infância – como o
sintoma de uma profunda convulsão das crenças e das estruturas de
pensamento, como o indício de uma mutação sem precedente da
atitude ocidental com relação à vida e ao corpo.
As análises efetuadas pelo autor nos permitem compreender melhor o papel
de destaque assumido pela criança no âmbito da família. A criança sai do anonimato
e passa a ser reconhecida como sujeito dotado de especificidades.
Os estudos
realizados sobre a situação da criança remetem, pois, constantemente, a vários
níveis de representações e de práticas. No entanto, o sentido da evolução é
aparentemente claro: cada vez mais se atribui à criança a importante posição que
hoje ocupa no seio da família.
De acordo com Kramer (2006, p. 87), “a idéia de infância surge no contexto
histórico e social da modernidade, com a redução dos índices de mortalidade infantil
graças ao avanço da ciência e a mudanças econômicas e sociais”. A mudança de
atitude no tocante à criança, que é fundamentalmente uma mutação cultural, ocorre
ao longo de um período extenso. Segundo ainda Gélis (1995, p. 319), “seria
impossível estabelecer uma cronologia precisa”.
A consideração das crianças como sujeitos sociais e históricos, marcados por
contradições das sociedades em que vivem, implica o reconhecimento da
158
capacidade de produção simbólica por parte desses atores sociais e a constituição
das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em “culturas”.
Isso equivale a “dizer que mais do que ver a infância como um fenômeno biológico,
ela é vista como um fenômeno cultural” (PINO, 2004, p.147).
Essa maneira de perceber as crianças como atores sociais em pleno direito
pode ensinar não somente a entendê-las, mas também enxergar o mundo a partir do
ponto de vista da infância. Kramer (2006, p.91) defende uma idéia de criança que
reconhece o que é específico da infância – seu poder de imaginação, fantasia,
criação –, que compreende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem
cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a
ordem das coisas, subvertendo essa ordem. De acordo com a perspectiva da autora,
inferimos que o universo discursivo de Maurício reflete um mundo de criança para
criança, de ludismo e de fantasia. Sobre esta última, Corso (2006, p.21) assim se
coloca: “a paixão pela fantasia começa muito cedo, não existe infância sem ela, e a
fantasia se alimenta da ficção, portanto não existe infância sem ficção”.
As histórias da turma são ambientadas num mundo de crianças maiores
(apesar de Maria Cebolinha ser bebê) e abordam temas que estas vivem, hábitos,
jogos, brincadeiras, relacionamentos, desafios, etc. Essa é uma das formas pelas
quais essas personagens angariam empatia e identificação junto de seu público.
Em algumas narrativas, não há a participação dos adultos, as temáticas são
construídas, discutidas e avaliadas sob o ponto de vista das crianças. Esses
quadrinhos servem de espaço para a apresentação de temas que fazem parte do
cotidiano infantil: relacionamento com os pais, com a escola e com os amigos.
5.1 Família: efeitos da enunciabilidade
Conforme a seqüência estabelecida anteriormente, as nossas análises nesta
seção iniciam-se com o primeiro eixo temático avaliado (família), para identificarmos
a infância a partir da representação dada à família.
A idéia de infância está necessariamente ligada à idéia de família. Essa
instituição apresenta-se como primordial na vida da criança de papel, assim como na
“de carne e osso”, pois além de ser sua referência primária é também uma base
para seu desenvolvimento.
159
Mediante tal configuração, podemos observar que essa infância é marcada
pela presença da família, a qual está sedimentada em um ideário cristão e
burguês
41
. A família quadrinizada é conjugal ou nuclear e a ênfase é na criança,
sendo esta a responsável pela existência da família, já que não existe na obra
mauriciana nenhuma família sem filhos. A criança ocupa uma posição fundamental
entre as preocupações desses pais de papel. Eles se preocupam com a saúde da
criança e com o seu bem-estar. O cuidado dos pais com os filhos, principalmente o
da mãe, marca uma regularidade no discurso, como o verificado nos seguintes
exemplos: podem brincar por aí, mas tomem bastante cuidado, hein? (alerta da mãe
de Mônica) e doente assim você não pode ir! Agora fique quietinho enquanto ligo
para o médico (advertência da mãe de Cascão). Esses recortes mostrados no
segundo capítulo reforçam o papel de cuidadora exercido pelas mães de papel. No
primeiro enunciado, a palavra “cuidado” reflete o zelo da mãe para com as crianças,
e no segundo, quando a outra mãe diz para o filho que ele não poderá comparecer
ao compromisso assumido por estar doente, fica demonstrado o cuidado e a
preocupação da genitora com a saúde do filho.
Por não trabalharem fora de casa, essas mulheres quadrinizadas dedicam
tempo integral ao trabalho doméstico e ao cuidado dos filhos. Na família
quadrinizada, a representação de pai provedor e mãe cuidadora reproduz as
relações sociais de gênero cristalizadas no social. Nesse sentido, podemos
identificar no discurso dos quadrinhos elementos de uma memória discursiva sobre
gênero: enquanto a atuação da mulher limita-se ao espaço privado (casa), a atuação
masculina é relacionada ao público (rua). Em apenas uma história, localizamos um
deslocamento do interdiscurso, como o demonstrado na narrativa quadrinizada na
qual a mãe de Mônica tenta realizar uma tarefa profissional em casa. Como o tempo
destinado ao trabalho profissional foi sacrificado em prol dos cuidados com a casa e
com a filha, a esposa pressiona o esposo que leva a menina para o seu trabalho.
Pressionado, o pai assume um pouco para si os cuidados com a filha. Entretanto, na
grande maioria das histórias, é a relação entre mãe e filho a mais destacada. Ocorre
nesse discurso uma regularidade focalizada na díade filho-mãe. A figura da mãe
comparece mais do que a do pai no cotidiano infantil: é a mãe quem mais educa,
orienta e impõe limites aos filhos. Para essa infância, a figura da mãe é bastante
41
A personagem
Anjinho é configurada dentro dos padrões religiosos. É um ser divino, delicado e
bom. Por ser ainda uma criança, estaria mais próxima do universo infantil.
160
valorizada, reflexo da importância atribuída ao autor à sua própria genitora, Dona
Petronilha (GUSMAN, 2006).
Os pais das crianças urbanas não participam muito da rotina da criança, eles
estão mais preocupados com o trabalho, com o pagamento de contas: tantas contas!
Vou precisar de uma fábrica de dinheiro pra pagar (fala do pai de Cascão) e com o
sustento da família, mas em algumas histórias é mostrada a participação dos pais
em atividades de lazer junto aos filhos. Apesar de identificamos uma certa ausência
paterna na rotina da criança, não identificamos nessas crianças nenhuma
reclamação referente à situação. As crianças, na maioria das histórias, só procuram
os pais quando necessitam de dinheiro para comprar algum brinquedo ou presente
para um amigo: Pai! Me aluma um dinheilo? (pergunta de Cebolinha) e o jeito é
apelar pro meu paizão! (fala de Cascão). Uma possibilidade de interpretação para o
termo “apelar” pronunciado por Cascão é que o seu pai é o único membro da casa a
possuir uma fonte de renda e como a criança e a mãe dependem financeiramente do
pai, recorrer ao genitor é a maneira encontrada. As situações mostradas acima
fortalecem o papel de pai provedor.
Quanto ao relacionamento entre Chico Bento e o seu pai, não identificamos
essas situações analisadas no parágrafo anterior. Não há nenhuma história que
mostre Chico solicitando dinheiro ao pai; é como se o trabalho desenvolvido na roça,
de alguma maneira, servisse como fonte de renda (na ocasião que o menino coloca
uma banca na feira para vender a colheita).
Diferentemente das crianças urbanas, Chico não precisa de dinheiro para
comprar brinquedos, a grande maioria deles são construídos pela própria criança.
Como a presença da televisão não exerce influência em seu cotidiano, o menino não
é seduzido pela publicidade de carrinhos, bonecos, etc., que é veiculada por esse
meio de comunicação. Para essa criança, os brinquedos industrializados não
exercem predominância sobre os brinquedos artesanais; ao contrário, quando o
primo da cidade oferece seus brinquedos eletrônicos, Chico não consegue ver
“graça” nenhuma, já que eles fazem tudo sozinhos. Para Chico Bento, independente
do brinquedo utilizado: pra si diverti bastante é só usá um poco di imaginação.
Uma outra questão merecedora de destaque é quanto à interação que ocorre
entre Chico e seu Bento, por eles trabalharem juntos na lavoura. Chico Bento,
quando “crescer”, deseja ser igual ao pai. Para essa criança, o seu futuro não é
surpresa, ele dará continuidade a uma tradição familiar. Seu grande desejo é seguir
161
os mesmos caminhos do pai. Seu Bento serve de inspiração para essa criança e
assim, a infância de Chico está cristalizada na tradição e na manutenção de valores
geracionais.
Ainda sobre a relação entre pais e filhos, podemos observar que a infância
construída possui o pai e a mãe como os responsáveis pela subsistência e pelos
cuidados com os filhos. A família quadrinizada (como as reais) constitui-se como a
primeira agência de socialização da criança.
Quanto ao relacionamento entre Cebolinha e sua irmã, verificamos que, em
muitas histórias, esse menino desempenha um papel paternal e de cuidador para
com sua irmã mais nova: veja! ela tá limpinha!Tomei conta dela dileitinho! Agola, a
senhora não vai precisar dar outlo banho nela. Ao assumir esses papéis, Cebolinha
adquire “o status de irmão mais velho” (OLIVEIRA, 2006, p.67). Conforme podemos
visualizar no seguinte enunciado de Cebolinha: Pois eu prefilo ser maiolzinho! Pelo
menos sou mais lesponsável!
Nas situações acima retratadas, identificamos marcas do interdiscurso: na
esfera da memória circula um já-dito que o irmão mais velho na ausência dos pais
assume o cuidado do irmão mais novo. Encontramos também, um deslocamento na
prática discursiva, já que Cebolinha é menino, e o papel de cuidador, historicamente,
é destinado às mulheres.
De acordo com as condições socioeconômicas da família de Cebolinha,
verificamos que seus pais poderiam pagar uma babá para cuidar de Maria Cebolinha
quando a mãe precisasse se ausentar (ir ao supermercado, a casa de uma amiga,
cabeleireiro, etc.), entretanto, não é isso que acontece. Como os pais não contratam
uma profissional, a responsabilidade de cuidar da menina é de Cebolinha. Em
muitas situações, Cebolinha, ao assumir a condição de cuidador da irmã mais nova,
deixa de aproveitar momentos de entretenimento acompanhado dos amigos, como ir
ao cinema com Cascão e não poder assistir ao filme, pois levou a irmãzinha junto, e
quando as luzes do cinema se apagaram, a menina começou a chorar, fazendo-o
sair da sala de exibição. Mais uma vez, observamos uma situação em que a criança
assume uma tarefa que não está condizente com a sua idade e deixa de aproveitar
de momentos de lazer importantes para a infância, como divertir-se na festa de
aniversário do amigo ou ir ao cinema.
Ainda de acordo com Oliveira (2006), no início da infância o relacionamento
entre irmãos apresenta duas características centrais: os irmãos mais velhos são
162
líderes e os irmãos mais novos tendem a imitá-los como recurso nas interações.
Durante essas trocas, desenvolvem-se habilidades sociais e habilidades cognitivas,
sendo o irmão mais novo o mais beneficiado. Maria Cebolinha, ao brincar com os
carrinhos de Cebolinha, tenta imitar as brincadeiras do irmão mais velho.
Os irmãos na infância, seja real seja ficcional, são profundamente envolvidos
um com o outro e esse envolvimento é marcado por uma ambivalência de
sentimentos e por interações incessantes, alternadas por trocas positivas: Cebolinha
cuida e brinca com a irmã (Tomei conta dela dileitinho!) e trocas agressivas: o
menino utiliza a força para tomar um dos seus carrinhos das mãos de Maria
Cebolinha (Quantas vezes eu já disse pla não pegar meus automoveizinhos?!
GLLR!! Você não sabe que isso não se faz!!). Esses dois exemplos demonstram
como essas trocas são bem retratadas no relacionamento dos dois únicos irmãos de
papel.
“Para um desenvolvimento completo e harmonioso de sua personalidade, a
criança deve crescer num ambiente familiar, numa atmosfera de felicidade, amor e
compreensão”
42
. De acordo com essa declaração, observamos que o núcleo familiar
é o espaço de segurança desse mundo ficcional, todas as crianças têm pai, mãe e
uma casa tranqüila. Nesses quadrinhos, não ocorrem crises conjugais e nem
discussões sobre a educação das crianças; fatos que isentam as protagonistas de
sofrimentos que possam ser causados por essas situações. Uma das poucas
preocupações dos pais é saldar dívidas. Porém, essa dificuldade no pagamento de
contas empresta uma tinta bucólica de vida simples (das cinco personagens,
nenhuma é rica). Não existe nesse universo nada insolúvel, nem irreversível, mesmo
situações de aparente dificuldade (a ojeriza de Cascão à água), são retratadas com
um toque de leveza, graças à comicidade dada ao texto.
No tocante ao relacionamento com outros parentes, destacamos a avó de
Chico Bento (Vó Dita) como uma das grandes responsáveis pela transmissão à
criança de aspectos da cultura popular, através da narração de contos populares,
fábulas, etc., e pelo ingresso do menino no mundo de sonhos e fantasias. As
histórias narradas pela avó de Maurício (que também se chamava Vó Dita) serviram
de inspiração para o autor criar suas próprias, apesar de ele reconhecer que:
42
Trecho extraído da Declaração Mundial sobre a sobrevivência, a proteção e o desenvolvimento da
criança nos anos 1990 (apud KALOUSTIAN, 2002, n/p).
163
Hoje, eu escrevo histórias. E tento seguir muito do que minha avó me
passou ou ensinou. Mas ela foi única. Sou um aprendiz em busca de
sua perfeição. Que não conseguirei atingir nesta existência. Mas vale
seguir com a tradição de contador de histórias (SOUSA, 1999, p. 30-
31).
A citação acima demonstra como a avó do autor influenciou sua obra e como
recordações da infância de Maurício são retratadas em suas histórias. Há, no
enunciado de Maurício, reflexos de uma memória social. Esse espaço de memória
refere-se a acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, e de uma
interdiscursividade, que reflete materialidades que intervêm na sua construção.
A velhice é sinal de uma vida inteira de experiências e Vó Dita recupera o
hábito de contar essas experiências para as crianças. Ao recuperar o vivido, ao
rememorar a infância passada, ao reconstruir a própria experiência, Maurício em
muitas histórias, escreve o que ele próprio viveu.
Cirne (1982), analisando a obra de Maurício de Sousa, critica-o ao afirmar que
o quadrinista brasileiro produz uma reduplicação ideológica dos comics infantis
estrangeiros e uma universalidade que se estende pelos enredos e blocos temáticos
de suas histórias. A maioria das aventuras das personagens se passa na rua, ao ar
livre, e por isso as histórias da turma são criticadas por não definirem, nos cenários,
quais locais representam. “O seu criador tem rebatido a questão alegando a
universalidade das crianças, mas também que em sua infância ele brincava com seus
amigos em locais abertos e com poucas casas, similares ao que os quadrinhos dele
representam” (
GUIMARÃES, 2005, p.36). Essa universalidade é uma das explicações
para o sucesso de Maurício no Brasil e em alguns países do exterior.
5.2 O trabalho discursivo do sujeito: a inscrição da autoria na materialidade
dos quadros
Na AD, o sujeito é tomado como uma posição sujeito. Isso significa que ao
tomarmos a palavra produzimos sentido dos lugares sociais que nos constitui
enquanto sujeitos. Como todo sujeito pertence a uma formação discursiva que, por
sua vez, se liga a uma formação ideológica, os sentidos são produzidos desses
lugares sócio-históricos.
164
Numa vertente foucaultiana, esse sujeito é pensado como constituído nas
relações de poder. Assim, esse autor nos fala de dois processos dessa constituição:
pela objetivação, o sujeito é produzido na ordem do estabelecido como verdade,
como a norma, e esta é sempre uma verdade no sentido de servir ao exercício do
poder. O poder é assim responsável pela fabricação de uma verdade sobre o sujeito.
Pelo processo de subjetivação, o sujeito se constitui produzindo uma identidade que
lhe é própria, resistindo às verdades que lhes são construídas pela objetivação.
Para Orlandi (1996, p.15),
O espaço de interpretação no qual o autor se insere com seu gesto
e que o constitui enquanto autor – deriva da sua relação com a
memória (saber discursivo), interdiscurso. O texto é essa peça
significativa que, por um gesto de autoria, resulta da relação do “sítio
significante” com a exterioridade. Nesse sentido, o autor é carregado
pela força da materialidade do texto, materialidade essa que é
função do gesto de interpretação (do trabalho de autoria) na sua
relação determinada (historicamente) com a exterioridade pelo
interdiscurso. O sujeito, podemos dizer, é interpretado pela história.
O autor é aqui uma posição na filiação de sentidos, nas relações de
sentidos que vão se constituindo historicamente e que vão formando
redes que constituem a possibilidade de interpretação.
Com efeito, podemos dizer que a posição-autor se faz na relação com a
constituição de um lugar de interpretação definido pela relação com o outro. O autor
se produz pela possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e
que vem de fora. O lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O
efeito-leitor representa, para o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do
dizer, repetição histórica). Dissertando sobre a função-autor, Foucault assim se
posiciona:
Desde o século XVII, esta função não cessou de se enfraquecer, no
discurso científico: o autor só funciona para dar um nome a um
teorema, um efeito, um exemplo, uma síndrome. Em contrapartida,
na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função
do autor não cessou de se reforçar: todas as narrativas, todos os
poemas, todos os dramas ou comédias que se deixava circular na
Idade Média no anonimato ao menos relativo, eis que, agora, se lhes
pergunta (e exigem que respondam) de onde vêm, quem os
165
escreveu; pede-se que o autor preste contas da unidade de texto
posta sob seu nome; pede-se que revele, ou ao menos sustente, o
sentido oculto que os atravessa; pede-se-lhe que os articule com sua
vida pessoal e suas experiências vividas, com a história real que os
viu nascer. O autor é aquele que dá a inquietante linguagem da
ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real
(FOUCAULT, 2006, p.27-28).
Pode-se dizer ainda que é no discurso que o homem produz e reproduz a
realidade, os sentidos, pois o discurso é efeito de sentido entre locutores, que ocorre
através da memória discursiva, isto é, do interdiscurso. Este é definido como aquilo
que fala antes, em outro lugar. É essa memória – o interdiscurso – que, juntamente
com o domínio do saber, dizeres já ditos ou possíveis, apoiam toda e qualquer
formulação, ou seja, a forma como os dizeres se presentificam e dão ilusão de
evidências, o que dá visibilidade ao modo como o sujeito se significa em uma
determinada formação discursiva.
Pela noção de interdiscurso, estabelece-se a relação necessária entre língua
e história, condição para que os sentidos se historicizem, permitindo a inscrição do
acontecimento na estrutura. Dessa forma, entende-se porque tanto os sujeitos
quanto os sentidos são determinados historicamente, o que nos leva a pensar num
processo de significação sobre as condições de produção, dado que a língua para
significar inscreve-se na história. Isso não equivale a afirmar que os sentidos
permanecem desde sempre os mesmos. Tampouco, que podem ser quaisquer uns.
É porque se historicizam que os sentidos não permanecem os mesmos, mas é,
também, pela mesma razão, que continuam como possíveis.
Assim, os sentidos se repetem, mas se deslocam, deslizam. Portanto, não se
trata da repetição concebida no nível da empiria, ou seja, não se trata de uma
repetição conteudística, mas lingüístico-histórica, pois pela noção de memória
podemos pensar em um espaço do dizível que permite um lugar de partida, de um
já-dito que ressurge.
Conforme diz Gregolin (2006, p.27), devido à sua inserção na História, a
emergência de um enunciado pressupõe um campo de enunciações ao qual ele está
166
articulado e a análise de discurso tem como tarefa a descrição dos jogos de relações
que os enunciados estabelecem no interior do arquivo
43
de uma época.
A infância quadrinizada de Maurício de Sousa mostra um estilo de vida que se
alterou profundamente no Brasil, principalmente no que se refere à convivência com
os amigos. Nas últimas décadas, com a crescente urbanização, praticamente
desapareceram as brincadeiras infantis. Os espaços são cada vez mais restritos.
Essa situação se agrava com a violência, que faz com que as pessoas se isolem
cada vez mais em espaços protegidos (escola em tempo integral, condomínios,
clubes, etc.). Desse modo, o brincar, essencial para o desenvolvimento da criança, é
substituído pela televisão, pelo DVD, pelos games, etc. Em tais condições, as
aventuras de Mônica, Magali, Cebolinha, Cascão e Chico Bento, muitas delas
vivenciadas pelo próprio autor durante a sua infância, são possibilidades cada vez
mais distantes.
Para criar suas histórias, Maurício inspira-se em sua infância. Quase todas as
personagens e aventuras mostradas em suas histórias vieram das recordações de
Maurício quando ainda morava em Mogi das Cruzes, das ruas de terra, dos
campinhos de futebol, dos banhos de rio, das corridas de carrinhos de rolemã. À
medida que o autor mergulha na memória da sua infância, ele recupera o mundo da
cultura que o cercava, mas, concomitantemente, nessa volta ao tempo, recupera,
em certo sentido, a maneira de ver da criança, a sensibilidade e os valores dela, e
sob esse ângulo, as histórias mauricianas se constituem como um relato de criança
para criança. O universo lúdico e de magia representado por Maurício de Sousa
configura-se como uma visão romântica da infância. A obra de Maurício garante às
crianças de papel “vivenciar” a plenitude de sua infância. Nesse universo, a criança
tem voz. São esses seres fictícios que fiam o tecido das ações e conduzem o fluxo
da narrativa.
43
A noção de arquivo salienta que a análise desenvolve-se ancorada em um conjunto de enunciados
efetivamente produzidos, respondendo a um sistema de enunciabilidade, “a lei do que pode ser dito,
o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT,
(1995, p.149). Trata-se, portanto, de enunciados produzidos devido a um conjunto de relações que
caracterizam o nível discursivo.
167
5.3 Escola e interdiscursividade
Observamos que a infância construída, tomando a escola como eixo, está
sedimentada no controle e na disciplina. Nesses quadrinhos, a instituição é a
responsável em manter essa infância sobre vigilância. A escola é a instituição
essencial na determinação da infância e dos respectivos limites etários. Entretanto,
nos quadrinhos não encontramos essa delimitação, já que a única personagem a
freqüentá-la é Chico Bento. Nesse sentido, observamos que, no tocante à escola,
existem duas infâncias: uma onde a presença da escola é marcante e uma outra
marcada por sua ausência. Se tomarmos a escola como uma agência de
socialização da infância, percebemos que, para as crianças urbanas, o processo de
socialização se dá dentro da família e no interior do grupo de pares.
No tocante à ausência das personagens urbanas aos bancos escolares,
identificamos uma infância que subverte a ordem estabelecida; uma ruptura com o
discurso oficial (em que toda criança deve freqüentar a escola). É como se essas
crianças não necessitassem participar da escola para aprenderem a ler, escrever e
socializaram-se. Sobre a inversão da ordem estabelecida, encontramos na obra de
Maurício algumas subversões, sendo uma das principais a ausência de quatro das
cinco grandes personagens na escola.
O silenciamento ou o fato de não aparecer é constitutivo do sentido
(ORLANDI, 2007). Podemos significar o silenciamento no tocante à participação das
crianças urbanas na escola como uma ruptura à ordem estabelecida. Podemos,
também, considerar que esse silêncio seria uma resistência do autor em colocar
essas crianças para freqüentar a escola, já que o modelo de escola presente nos
quadrinhos reflete uma escola tradicional, onde as crianças não são vistas como
tais, mas como alunos, são eximidas de dar opinião, bem como exiladas da
participação no processo de construção do conhecimento. A figura da professora
incorpora um autoritarismo que está presente na escola de papel e no seu discurso.
Ao negar a essa criança-aluno a possibilidade de trazer para o interior da sala
de aula conhecimentos mais próximos de sua realidade, a professora corrobora para
o distanciamento dos interesses escolares dessa criança. A escola representada
nesses quadrinhos serve de instrumento para fortalecer a desmotivação e o
desinteresse dos escolares, principalmente de Chico Bento. Essa escola serve,
também, para formar crianças dóceis.
168
Devido à utilização de diversas práticas pedagógicas (verificação de
freqüência, aplicação de exames, etc.), a infância de Chico é marcada pelo
adestramento efetuado pela instituição escolar.
5.4 As brincadeiras e as amizades: relações de sociabilidade entre pares
As brincadeiras e o relacionamento com os amigos ocupam um lugar
privilegiado nessa infância. Para as crianças residentes na cidade, o tempo dedicado
ao lazer e ao entretenimento é quase integral. Elas desfrutam do ócio, brincam a
maior parte do tempo. Já para Chico Bento, a escola e o trabalho nas terras da
família ocupam uma grande parcela de sua rotina.
As crianças mauricianas, através das brincadeiras desenvolvidas, a maioria
ao lado dos amigos, ativam um imaginário infindável. Como podemos observar na
fala da personagem Cascão: movidos à imaginação!! E isso nunca acaba.
Walter Benjamin, analisando a importância da brincadeira na vida dos
indivíduos, defende que ela “está na origem de todos os hábitos”:
Comer, dormir, vestir-se, lavar-se, devem ser inculcados no pequeno
ser através de brincadeiras. É da brincadeira que nasce o hábito, e
mesmo em sua forma mais rígida o hábito conserva até o fim alguns
resíduos da brincadeira. Os hábitos são formas petrificadas,
irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro
terror. E mesmo o pedante mais árido brinca, sem o saber — não de
modo infantil, mas simplesmente pueril —, e o faz tanto mais
intensamente quanto mais se comporta como um pedante. Apenas,
ele não se lembra de suas brincadeiras (BENJAMIN, 1994, p.253).
A atividade lúdica constitui uma das formas pela qual a criança se apropria do
mundo, e pela qual o mundo humano penetra em seu processo de constituição
enquanto sujeito histórico. Nesse processo, a teoria histórico-cultural trata o brincar
privilegiando sua participação fundamental na vida do sujeito. De acordo com
Vygotsky (1991), o desenvolvimento da criança ocorre através da atividade do
brinquedo. Através das interações que acontecem durante o desenvolvimento das
brincadeiras, as crianças, de uma maneira lúdica, são capazes de apreender
normas, valores e crenças que constituem os padrões de sua cultura. Nesse
169
processo de aprendizado constante, vivenciado através das brincadeiras, devemos,
portanto, considerar a criança um agente ativo quando decide satisfazer suas
necessidades específicas e atribuir seus próprios significados aos enredos das
atividades lúdicas realizadas. Durante o desenvolvimento das brincadeiras, as
crianças usam suas “experiências” para gerar um processo de “negociação de
sentidos” com o contexto em que estão inseridas. O processo de socialização inclui
tanto uma interação com o meio, quanto uma seleção ativa por parte das crianças.
De acordo com a análise dos dados, podemos perceber que as principais
instâncias de socialização dessa infância são as brincadeiras e os amigos.
As crianças dos quadrinhos têm espaço para vivenciar sua infância distante
de alguns dos problemas que atingem a sociedade e ao lado dos pais e amigos. É
uma infância onde não há lugar para violência, morte e desemprego. Em apenas
algumas histórias, localizamos o pai de Cascão preocupado com contas a pagar. Ao
manter essas crianças afastadas de situações que poderiam acarretar sofrimento,
Maurício possibilita para elas vivenciar a plenitude dessa fase da vida.
A infância retratada nos quadrinhos mauricianos é social e historicamente
construída, sedimentada ao longo do percurso cultural da humanidade.
O termo infância, como construção social, resulta polissêmico e pode ser
compreendido como uma rede de significados que as próprias crianças tecem sobre
suas ações. A idéia que os discursos são socialmente construídos, mas que também
constroem os sujeitos em função dos contextos, vem sendo privilegiada nos últimos
anos. Assim, é cada vez mais forte a idéia de que as relações discursivas
influenciam tanto a produção dos discursos, quanto de sujeitos.
A infância construída por Maurício é idílica, paradisíaca, onde algumas
subversões são permitidas: como não freqüentar a escola. É uma infância onde as
crianças têm espaço para vivenciá-la de maneira plena; sem violência, brincando na
rua com os amigos. Uma infância em que os amigos são companheiros
inseparáveis. Uma infância onde o bairro do Limoeiro e o sítio de Chico Bento são
os espaços de convivência privilegiados para as aventuras com os amigos. Uma
infância onde a escola ocupa apenas uma parte do dia (Chico Bento).
É uma infância onde as crianças não crescem, permanecem crianças. Essas
crianças não estão sujeitas às marcas do tempo e por isso, a infância se prolonga
por toda uma “existência”.
170
Na construção discursiva dessa infância de papel, Maurício de Sousa, ao dar
voz, às suas crianças, demonstra um sentimento positivo em relação à infância e ao
seu sujeito, a criança. Quando defendemos que as crianças mauricianas gozam da
plenitude de sua infância, queremos dizer que, nesses quadrinhos, elas são atores
sociais em pleno direito: direito à família, à escola, ao lazer, ao entretenimento, às
brincadeiras, à saúde e aos amigos. Questões relativas à infância e à criança são os
fundamentos de sua obra. Tendo a criança como protagonista de seus quadrinhos,
Maurício consegue estabelecer um entrelaçamento do discurso das crianças de
papel com o discurso da mãe, do pai, da professora, da escola. O universo ficcional
mauriciano é povoado pelos diversos discursos que emanam do social.
Conforme Bakhtin (1995), toda linguagem é dialógica, e o dialogismo pode
ser pensado em dois planos: por um lado, a relação entre discursos; por outro, a
relação entre sujeitos. O primeiro refere-se à interdiscursividade, conceito associado
aos estudos sobre sentidos. O segundo diz respeito ao conceito de
intersubjetividade, o discurso não existe por si mesmo. A condição de existência do
discurso, é que ele é um espaço entre sujeitos.
O discurso dos quadrinhos pode se caracterizar como um discurso que é
atravessado por outras vozes, por outros discursos, pelo interdiscurso. Isso quer
dizer que no discurso quadrinizado de Maurício encontramos as vozes da família, da
escola, de outros quadrinhos, como os do quadrinista Ziraldo, etc. É um discurso
marcado pela presença do outro, de um já-dito que materializa-se nas vozes das
crianças de papel.
Portanto, ao longo do percurso por nós empreendido, tentamos explicar as
nossas reflexões teóricas e situar o lugar de onde pretendíamos fazer a leitura de
uma prática discursiva para verificar o seu funcionamento concreto. Consideramos a
prática discursiva dos quadrinhos, que num recorte julgado representativo do gênero
(os quadrinhos de Maurício de Sousa) subsidiou as nossas análises, tomando a
infância como categoria conceitual. Essa categoria foi analisada sob três eixos:
família, escola, brincadeiras e amizade. Tendo esses temas como núcleos,
chegamos aos procedimentos de análise deles decorrentes.
Desenhado, por meio dessas análises, o perfil de um corpus específico,
procuramos responder a indagação fundamental de nossa tese: como se constrói
discursivamente a concepção de infância nos quadrinhos de Maurício de Sousa?
171
Para tanto, buscamos nos dados constituídos pistas significativas que permitissem
responder como essa infância significa.
Diante do que foi descrito e analisado nesta pesquisa, consideramos que as
concepções de discurso, memória discursiva, infância e de histórias em quadrinhos
respondem às questões postas na investigação, preenchendo as lacunas teórico-
metodológicas, assim como aos anseios, conflitos e dúvidas geralmente enfrentadas
pelos analistas de discursos. Melhor dizendo: essa perspectiva oferece uma luz à
lacuna existente no conjunto das produções já elaboradas sobre a temática infância
e quadrinhos impressos. Nesse sentido é que este trabalho, não menosprezando a
importância dos aspectos lingüísticos, destaca a necessidade de se considerar os
aspectos discursivos, o que implica o tratamento da linguagem como discurso e não
como sistema.
Podemos dizer que esse caminho que apresentamos “abre uma perspectiva
de trabalho em que a linguagem não se dá como evidência, oferece-se como lugar
de descoberta. Lugar do discurso” (ORLANDI, 1999, p.96).
Isso posto, esperamos ter alcançado o objetivo de apresentar um outro olhar
sobre a infância e sobre o seu sujeito, a criança, que possibilite a discussão e
abertura para outros estudos em uma área (quadrinhos) pouco explorada dentro das
Ciências Sociais e o reconhecimento da história em quadrinhos como um tema
extremamente profícuo para pesquisa.
Desejamos, ainda, que esta tese possa contribuir para outras pesquisas
relacionadas com a questão infância e quadrinhos.
E finalmente, para concluir, destacamos que a participação forte tanto de
homens quanto de mulheres, nas histórias mauricianas, cria um universo ficcional
tão humano quanto o que vivemos. Essa “humanidade” atribuída às crianças de
papel talvez seja um dos motivos para explicar o sucesso de suas personagens.
Elas são protagonistas de um universo onde qualquer ação, aventura ou emoção
são passadas e vividas com humor.
Como poderia ser na vida real.
172
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