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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
UnB
PÓS-
GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DOUTORADO
O príncipe pacífico: Bossuet, Luís XIV e Antônio Vieira
MARIA IZABEL BARBOZA DE MORAIS OLIVEIRA
ORIENTADOR: ESTEVÃO CHAVES DE REZENDE MARTINS
BRASÍLI
A
2009
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2
MARIA IZABEL BARBOZA DE MORAIS OLIVEIRA
O príncipe pacífico: Bossuet, Luís XIV e Antônio Vieira
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História na
Universidade de Brasília/UnB, como
requisito parcial para obtenção do
grau
de dou
tora em História Cultural.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Estevão C. de Rezende Martins
His/UnB
-
Orientador
______________________________________________
Prof. Dr. Ronaldo Vainfas -
His/ UFF
___________________________________________
Profª Drª Maria Thereza Negrão
-
His/UnB
_________________________________________
Prof. Dr. Nelson Gonçalves Gomes
-
Fil/UnB
________________________________________
Profª D
rª Carmen Lí
cia Palazzo
His/Uniceub
_________________________________________
Prof. Dr. Jaime de Almeida
His/UnB
-
Suplente
_________________________________________
BRASÍLIA
2009
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3
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Estevão, que me acolheu com todo o carinho e paciência do mundo. De maneira
firme e segura, indicou-
me o caminho certo a seguir.
Ao Prof. Ronaldo Vainfas, que acompanhou o meu trabalho desde o mestrado,
contribuindo imensamente para
com
o mesmo.
À Profª Maria Thereza Negrão, por seus bons conselhos.
4
RESUMO
Nesta pesquisa, que traz por tema o pacifismo em Bossuet, busca-se demonstrar que, ao
defender a imagem de um príncipe pacífico, o objetivo de Bossuet era fortalecer o poder
real na França, de 1661 a 1701 período que se estende do início do reinado pessoal de
Luís XIV ao ano em que Bossuet concebeu o livro nono da Politique tirée des propres
paroles de l’Ecriture Sainte. Ao perceber a ameaça que a religião protestante representava
para o poder constituído, Bossuet lutou para promover a unidade religiosa na França.
Jamais aprovou, contudo, os métodos violentos utilizados pelos oficiais do Estado para
converter os protestantes ao catolicismo; como também não influenciou Luís XIV a
revogar o Edito de Nantes, que estabelecera a tolerância religiosa na França. Sentindo que,
durante e após as guerras de conquista empreendidas por Luís XIV, as críticas internas e
externas dirigidas a ele eram mais intensas, Bossuet esforçou-se por mostrar ao monarca o
quanto as guerras de conquista eram prejudiciais aos
reis. Baseado no Antigo Testamento e
em Santo Agostinho, Bossuet adverte que os príncipes que empreendem guerras somente
pelo amor ao poder e à glória são terrivelmente castigados por Deus. Por outro lado,
partindo da hipótese de que, se toda a Europa se lançasse contra a França, o
empreendimento da guerra justa, para defender o reino de ataques externos, no entender de
Bossuet, seria abençoado por Deus. Diante de um inimigo mais poderoso, o príncipe não
deve temê-lo, deve confiar em Deus e ir ao combate, pois Deus o ajudará nos campos de
batalha, concedendo-lhe a vitória. Bossuet lembra, todavia, que Deus prefere os príncipes
pacíficos aos guerreiros. Na galeria de reis do Antigo Testamento, o pacífico Salomão é a
imagem buscada por Bossuet para ser seguida por Luís XIV. Diante dos ataques que a
soberania real sofrera por parte dos monarcômacos da Revolução Inglesa de 1640 e da
Fronda (1648-1653), como também de Pierre Jurieu, em 1689, Bossuet empenhou-se em
refutar as ideias de soberania do povo, de contrato e de direito de resistência ao poder
constituído defendidas por eles. Sustentado em São Paulo e em Santo Agostinho, Bossuet
afirma que o poder dos reis vem diretamente de Deus e não do povo. Este deve obedecer
aos príncipes independentemente de serem eles bons ou maus, pois todos eles foram
estabelecidos por Deus. O povo não tem nenhum direito de empreender a guerra contra os
seus governantes. O poder, a ordem e a paz pública somente são assegurados em um reino
em que o direito de fazer a guerra pertence somente ao príncipe. Nos seis primeiros livros
da Politique
, a soberania é exaltada por Bossuet. Ele defende as características sagrada e
absoluta da autoridade real. Sendo assim, participou do movimento de exaltação à glória de
Luís XIV, dirigido por Colbert na década de 1660. Para ilustrar a compreensão das
especificidades do pensamento teológico-político de Bossuet a respeito da defesa do
pacifismo visando o fortalecimento do poder real, estabelecemos uma comparação com o
que Luís XIV e Antônio Vieira refletiram sobre este assunto em suas obras;
particularmente as
Memórias
de Luís XIV, redigidas entre 1668 e 1672, e o livro
anteprimeiro da
História do Futuro
de Antônio Vieira, escrito de 1664 a 1665.
Palavras
-
chave:
Bossuet
pacifismo
poder
França
1661
-1701
5
RÉSUMÉ
L’objet de cette thèse est le pacifisme en Bossuet. L’on cherche à démontrer qu’en,
soutenant l'image d'un prince pacifique, l’objectif de Bossuet a été celui de fortifier le
pouvoir royall en France, de 1661 à 1701 - période qui va du début du règne personnel de
Louis XIV à l'année où Bossuet a conçu le livre neuvième de la
Politique tirée des propres
paroles de l'Ecriture Sainte. Pour percevoir la menace que la religion protestante
représentait pour
le
pouvoir
établi
, Bossue
t
s'est engagé à promouvoir l'unité religieuse en
France. Mais il n'a jamais approuvé les méthodes violentes utilisées par les fonctionnaires
de l'Etat pour convertir les protestants au catholicisme; tout aussi comme il n'a pas usé
d'influence sur Louis XIV avec le but de révoquer l'Édit de Nantes, qui avait établi la
tolérance religieuse en France. Sentant que pendant et après les guerres de conquête
entreprises par Louis XIV les critiques internes et externes contre le roi étaient de plus en
plus intenses, Bossuet s’est consacré à démontrer au monarque comment les guerres de
conquête seraient nuisibles aux rois. Sur la base de l'Ancien Testament et fondé sur Saint-
Augustin, Bossuet met en garde les princes à ne pas
entreprendre
la guerre par l'amour de
la
puissance et de la gloire ceux qui le fot sont terriblement punis par Dieu. En outre, en
s’appuyant sur l'hypothèse que l'ensemble de l'Europe se fut lancé contre la France,
Bossuet observe que les guerres entreprises par les princes pour défendre leur royaumes
d'attaques externes, sont justes et donc bénies par Dieu. Face à un ennemi plus puissant, le
prince ne devrait pas le craindre, mais confier en Dieu et aller au combat, car Dieu les
aidera sur le champ de bataille, en leur donnant la victoire. Bossuet rappele cependant que
Dieu préfère les princes pacifiques aux guerriers. Dans la galerie des rois de l'Ancien
Testament, le pacifique Salomon est l'image recherchée par Bossuet à être suivie par Louis
XIV. Face aux attaques à la souveraineté royale lancées par les monarcomaques de la
Révolution Anglaise de 1640 et de la Fronde (1648-1653), ainsi que par Pierre Jurieu, en
1689, Bossuet s’est engagé à réfuter l’idée de la souveraineté du peuple, du contrat et du
droit de résistance au pouvoir établi, soutenues par eux. En faisant appel à Saint Paul et à
Saint Augustin, Bossuet affirme que le pouvoir des rois vient directement de Dieu et non
pas du peuple. Celui-ci doit obéissance aux princes
indépendamment
qu’ils soient bons ou
mauvais, parce qu'ils ont été établis par Dieu. Les gens n'ont pas le droit d’entreprendre la
guerre contre leurs dirigeants. Le pouvoir, l'ordre public et la paix n’existent que dans un
royaume le droit de faire la guerre n’appartient qu’au prince. Dans les six premiers
livres de la
Politique
, la souveraineté est exaltée par Bossuet. Il défend les caractéristiques
sacrée et absolue de la autorité royale. Ainsi, il a
participé
au mouvement d’
exaltation
à la
gloire de Louis XIV, dirigée par Colbert au cours de la décennie de 1660. Pour illustrer les
particularités de la pensée théologico-politique de Bossuet concernant la défense du
pacifisme et le renforcement de la puissance royale, nous avons établi une comparaison
avec Louis XIV et Antônio Vieira lesquels ont réfléchi sur ce point dans leurs œuvres,
notamment les
Mémoires
de Louis XIV, écrites entre 1668 et 1672, et le livre antepremier
de
l'Histoire de l'Avenir
d'Antônio Vieira, écrit de 1664 à 1665.
Mots
-
clés:
Bossuet
pacifisme
pouvoir
France
– 1661-
1701
6
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................................
1
Cap. I: A formação de Bossuet..........................................................................................15
Cap. II: A guerra para aumentar a glória do Grande Rei.............................................44
Cap. III: A contribuição de Bossuet à glória do Rei Sol.................................................81
Cap. IV: Bossuet e a revogação do Edito de
Nantes.......................................................97
Cap. V: Um catecismo ao príncipe cristão
.....................................................................117
Cap. VI: Guerras justas...................................................................................................171
Ca
p: VII: O pacifismo em Bossuet
.................................................................................194
Cap. VIII: O príncipe pacífico
diante das guerras civis
...............................................211
Cap. IX: A soberania em debate
.....................................................................................264
Cap. X: Bossuet em campanha contra Pierre Jurieu...................................................323
Conclusão..........................................................................................................................386
Bibliografia........................................................................................................................393
INTRODUÇÃO
A guerra foi uma questão com a qual teóricos e teólogos de todas as épocas
dedicaram bom tempo de reflexão. Em nossa concepção, este é um tempo de alta
relevância no domínio das idéias políticas de Bossuet (1627-
1704).
A defesa da paz
visando o fortalecimento do poder era comum no século XVII. Aliás, não foi este o
objetivo de Hobbes no De cive, de 1642? Desta forma, a defesa do pacifismo em prol do
fortalecimento do poder real na França, na
Politique
de Bossuet, de 1661 a 1701, período
que se estende do início do reinado pessoal de Luís XIV ao ano em que Bossuet concebeu
o livro nono da
Politique
, pode ser abordado sob esta perspectiva.
A Politique de Bossuet está entre as obras que, como observa Jean Touchard,
“nutrem
-se da experiência dos autores, inspiram-se nos acontecimentos”.
1
Bossuet
escreveu os seis primeiros livros da
Politique
de 1677 a 1679, após a Revolução Inglesa de
1640 e a Fronda (1648-1653). Nessas guerras civis, os revoltosos defendiam as idéias
monarcômacas, desenvolvidas na segunda metade do século XVI, que limitavam a
soberania real. Os revoltosos dessas guerras civis diziam que o povo delegava poder aos
reis mediante um contrato que estabelecia os direitos e deveres de cada um; quando os reis
deixavam de agir corretamente, o contrato era anulado; o povo não tinha mais a obrigação
de obedecê-los; pelo contrário, passava a ter o direito de destituí-los do cargo e até matá-
los. Diante disso, a preocupação de Bossuet, nesses seis primeiros livros da
Politique,
consiste em condenar as guerras civis, eliminar qualquer direito de resistência dos súditos
perante os governantes estabelecidos e reforçar a soberania dos reis.
Após a Revogação do Edito de Nantes (1685) e a Revolução Inglesa de 1688/89, o
pastor protestante Pierre Jurieu passou a apregoar as idéias monarcômacas. Num estilo
altamente provocador, ele convidava os protestantes franceses a empreenderem uma guerra
civil contra Luís XIV. Em contra-ataque, no Cinquième avertissement aux protestants, de
1690, Bossuet recorre aos mesmos argumentos utilizados nos seis primeiros livros da
Politique
para refutar as idéias defendidas por Pierre Jurieu. Bossuet busca demonstrar que
1
TOUCHARD,
Jean.
História das idéias políticas
. Vol. 3. Lisboa: Publicações Europa
-
América, 1970, p. 98.
2
a paz é assegurada em um reino no qual somente o príncipe tem o direito de fazer a
guerra.
No momento em que concebeu o livro nono da
Politique,
em 1701, o que mais
preocupava Bossuet era a política de guerras de Luís XIV. Este entrou em uma onda de
guerras sucessivas. Apesar do tratado de paz de 1660, Luís XIV, imbuído de projetos
militares e de uma política expansionista, arrastou a França para uma série de guerras. O
Grande Rei empreendeu a Guerra da Devolução contra os Países Baixos (1667-1668), a
guerra com a Holanda (1672-1678) e invadiu Estrasburgo anexando-a ao território francês
(1681). Isto, somado à revolta dos protestantes emigrados após a revogação do Edito de
Nantes por Luís XIV em 1685, levou os países europeus, sob a liderança de Guilherme de
Orange, o stathouder da Holanda, que mais tarde governaria a Inglaterra como Guilherme
III, a se voltarem contra a França. No ano seguinte à revogação do Edito de Nantes foi
formada a Liga de Augsburgo, integrada pelos inimigos de Luís XIV, e no final de 1688,
diante da invasão do Palatinado pelas tropas de Luís XIV, a Liga entrou em guerra contra a
França. A Guerra da Liga de Augsburgo estendeu
-
se até 1697.
O aumento da miséria na França, decorrente da economia de guerra, acrescida da
Grande Fome de 1693-1694, causada por uma série de más colheitas desde 1691,
despertou críticas internas à política expansionista de Luís XIV. No entanto, as críticas
externas dirigidas a ele por parte de seus inimigos eram de longe as mais ameaçadoras ao
absolutismo francês. Segundo constata Touchard, “no momento exato em que Bossuet
invoca a Sagrada Escritura a favor da monarquia, o absolutismo é atacado de todos os
lados”.
2
Em 1701, os atos impensados de Luís XIV, no que se refere ao desrespeito às
cláusulas do testamento de Carlos II da Espanha, sobre a sucessão do trono espanhol,
aumentava o ódio dos europeus contra
ele. A guerra da sucessão espanhola estava prestes a
eclodir. Bossuet tinha plena consciência de que a França não havia se recuperado
totalmente da crise econômica advinda da Guerra da Liga de Augsburgo e por isso não
tinha condições de enfrentar uma outra guerra contra a Grande Aliança naquele momento.
Além disso, a experiência lhe ensinara que o aumento das críticas a Luís XIV se dava nos
períodos em que a França estava em guerra com outras nações.
Tudo isso preocupava imensamente o teólogo político que foi o maior defensor do
absolutismo do Rei Sol. É em meio a este mundo de crise profunda que pretendemos
analisar o pensamento político de Bossuet. Como um grande defensor da monarquia
2
TOUCHARD, Jean.
História das idéias políticas
. Vol. 4. Lisboa: Publicações Europa
-
América, 1970, p. 9.
3
absolutista, ele sentiu-se motivado a responder a essas questões. Desta forma, o pacifismo
foi o tema elegido por Bossuet, no livro nono da
Politique
. Neste texto, ele empenha
-
se em
mostrar a Luís XIV o quanto as guerras de conquista que vinha empreendendo eram
prejudiciais ao seu poder; fazendo-o entender que buscar estabelecer a paz com os
inimigos era o melhor caminho para conservar e fortalecer o absolutismo na França.
Para uma melhor compreensão das especificidades do pensamento teológico-
político de Bossuet, a este respeito, convém estabelecer uma comparação com o que
Luís
XIV refletiu sobre este assunto em suas
Memórias
, redigidas entre 1668 e 1672.
A questão do pacifismo intrínseco à natureza do príncipe absoluto, fundamental na
reflexão desenvolvida por Bossuet, tem um paralelo no império português. Com efeito,
ness
a mesma época, Antonio Vieira, em seu livro Anteprimeiro da História do Futuro
,
escrito de 1664 a 1665, dedica-se ao mesmo tema, no contexto dos conflitos luso-
espanhóis. Para a análise da questão, pois, pode ser de valia deitar um olhar comparativo
sobre
esses dois autores. Tal comparação contribui para o enriquecimento da leitura crítica
de um e de outro.
Nos dez capítulos que compõem esta pesquisa abordaremos: os elementos que
influenciaram Bossuet, como a sua origem, a sua formação, os autores que o
inf
luenciaram, os meios que freqüentou e de que maneira os acontecimentos agiram sobre
ele; as conseqüências políticas das guerras de conquista do Grande Rei e da Revogação do
Edito de Nantes para a França; a contribuição de Bossuet à glória de Luís XIV; a su
a
participação na revogação do Edito de Nantes; a sua condenação às guerras de conquista,
consideradas injustas, e a defesa da humildade; a defesa das guerras justas como sendo
abençoadas por Deus; o pacifismo como virtude fundamental a ser cultivada pelo
príncipe
cristão para reforçar o seu poder; o dever dos príncipes pacíficos em manter a alta nobreza
longe do poder político e militar e combater as guerras civis; a condenação às guerras dos
súditos contra os príncipes e a defesa da soberania real; o repúdio à idéia de soberania do
povo e ao direito de resistência.
Existem algumas interpretações equivocadas acerca da concepção de absolutismo
de Bossuet. Geralmente, os autores marxistas entendem que este teórico atribuía ao rei um
poder absoluto, assim com
o nós entendemos o termo hoje. No entanto, no entendimento de
Bossuet, a expressão “poder absoluto” não significa que o rei tinha um poder ilimitado,
mas sim indivisível. Conceito este que ele defendia para refutar o conceito que os inimigos
do regime davam ao termo. Nas próprias palavras de Bossuet, “para tornar este termo
4
odioso e insuportável, alguns fingem confundir o governo absoluto e o governo arbitrário.
Mas não nada mais diferente...”.
3
Assim como Marcos Lopes, percebemos que, na
concepção de nosso autor, “o absolutismo monárquico significa muito mais o direito
absoluto do príncipe ao poder real, à soberania indivisível para exercer suas atribuições, do
que o direito ‘real’ de exercer o poder absoluto”.
4
A este respeito, conforme observa
Jacques
Truchet, “o que é preciso entender por poder absoluto? Esses termos não
significam que o monarca tem todos os direitos; etimologicamente,
absoluto
quis dizer
independente
, antes que
ilimitado
”.
5
Compreendemos o absolutismo como uma forma de governo em que o poder do rei
era limitado, malgrado a possível impressão prima facie de que nada o limitasse. Segundo
constata Perry Anderson, na prática, esta forma de governo “correspondia à teoria de
Bodin. Nenhum Estado absolutista poderia jamais dispor livremente da liberdade e das
propriedades fundiárias da própria nobreza, ou da burguesia, à maneira das tiranias
asiáticas suas contemporâneas”.
6
Por monarquia absolutista entendemos que o poder do monarca por direito divino
era centralizado em sua pessoa. No entanto, não era absoluto, como pode parecer.
7
Conforme salienta Behrens, a este respeito, as leis fundamentais apresentavam-se como
obstáculos às modificações por parte dos monarcas absolutistas, pois “os próprios
monarcas do Ocidente não estavam mais emancipados do que seus súditos em relação às
crenças que simbolizavam. Os monarcas eram educados na crença de que deviam respeitar
as leis fundamentais e de que, se não o fizessem, mesmo que os seus súditos não tivessem
o direito de lhes resistir, se arriscavam a provocar a fúria de Deus e a ser considerados
déspotas”.
8
Para Roland Mousnier, os reis não podiam limitar, nem violar os direitos
adquiridos por seus súditos como “franquias, liberdades, privilégios...”. O rei tinha como
obrigação respeitar as leis fundamentais do reino. “O dever do rei é assegurar o respeito da
3
BOSSUET, Jacques-Bénigne. “Instrução a Luís XIV, 1675”. In: LUÍS XIV.
Memórias
.
A arte de governar
.
Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1976, p. 127.
4
LOPES, Marcos Antônio.
O político na modernidade. São Paulo: Loyola, 1997, p. 72.
5
TRUCHET, Jacques (Org.).
Politique de Bossuet.
Paris, Armand Colin, 1966. (Col
lection U), p. 35.
6
ANDERSON, Perry.
Linhagens do Estado absolutista
. 2ª Edição. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 50.
7
De acordo com Perry Anderson, “na verdade, o próprio termo absolutismo era uma denominação imprópria.
Nenhuma monarquia ocidental gozava jamais de poder absoluto sobre seus súditos, no sentido de um
despotismo sem entraves. Todas elas eram limitadas, mesmo no máximo de suas prerrogativas, pelo
complexo de concepções denominado direito ‘divino’ou ‘natural’. (...) a monarquia absolutista no Ocidente
foi sempre, na verdade, duplamente limitada: pela persistência, abaixo dela, de corpos políticos tradicionais,
e pela presença, sobre ela, de um direito moral abrangente”. ibid., p. 50.
8
BEHRENS, C. B. A.
O Ancien Régime.
Lisboa: Editorial Verbo
, 1971, p. 96.
5
lei da natureza e da lei de Deus”. O costume da província era muito valioso, pois “o
costume é anterior e superior a tudo (...) O rei existe pelos costumes. (...) O rei é absoluto
em sua esfera
de direito. (...) Tal parece ser bem o conceito de ‘monarquia absoluta’”.
9
Segundo constata Peter Burke, no século XVII havia duas concepções de
monarquia. “na primeira concepção, o poder do rei era limitado pelas chamadas ‘leis
fundamentais’ do reino, cujo guardião era o Parlamento de Paris. Na segunda concepção,
que prevalecia na corte, o rei tinha ‘poder absoluto’”. Em geral, a expressão ‘pouvoir
absolu’ era definida como um termo pejorativo, “como um poder sem limites [sans
contrôle, sans restriction, sans condiction, sans réserve]”. Esta concepção negativa de
monarquia absolutista era definida pelo Parlamento durante a Fronda, 1648-1653, como
também depois pelos opositores do regime. Conforme o mesmo autor, “Luís XIV era
considerado um monarca absoluto por estar acima das leis de seu reino, tendo o poder de
impedir que elas se exercessem sobre certos indivíduos. Não se considerava, contudo, que
estivesse acima da lei divina, da lei da natureza ou das leis das nações. Não se esperava
que exercesse um comp
leto controle sobre a vida de seus súditos”.
10
O direito divino dos reis foi uma doutrina complexa e paradoxal; ao mesmo tempo
em que dava direitos ao rei, também estipulava quais os seus deveres perante a religião.
11
Esta doutrina, de um lado, fortalecia o poder do monarca, ao defender que o seu poder era
delegado diretamente de Deus, e que por isso não podia ser contestado, e, de outro, o
enfraquecia, ao mostrar-lhe que era necessário cultuar um conjunto de virtudes que, uma
vez cultivado, limitava o seu po
der de ação.
12
Por muito tempo as fontes literárias foram desprezadas pelos historiadores que
buscavam a objetividade e a racionalidade nos estudos históricos. Porém, isto caiu por terra
9
MOUSNIER, Roland. Les concepts d’ “orders” d’ “états”, de “fidélité” et de “monarchie absolue” en
France de la fin du XV siècle à la fin du XVIII
.
Paris:
Révue historique, 1971, pp. 306
-
308.
10
BURKE, Peter. A fabricação do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1994, p. 52.
11
Segundo Behrens, o monarca absolutista europeu “não tinha que prestar contas de suas ações a nenhuma
autoridade terrena. Resistir-lhe era o mesmo que resistir ao próprio Deus. Não tinha que prestar contas aos
seus súditos e a lei não punha limites ao seu poder, mas acentuava-se sempre o fato de que tinha de prestar
contas a Deus, que estava limitado moralmente pelas leis de Deus e estava igualmente limitado moralmente
pelas leis
e costumes do seu reino porque estas tinham a sansão divina”. BEHRENS, op. cit., p. 85.
12
Conforme Marcos Lopes, “é necessário estabelecer o primeiro e maior efeito contraditório do direito
divino; por paradoxal que pareça, as doutrinas de legitimação transcendente (...) atuam como instrumentos
inibidores do poder absoluto do monarca. (...) o rei é o primeiro súdito de Deus. Assim sendo, tem
interditadas pelos preceitos da religião quaisquer ações que comprometam sua condição de rei cristianíssimo.
Ainda
que sua finalidade fosse fundamentalmente oposta, o direito divino pode atuar também como
instrumento de limitação do poder do monarca. Na Europa Moderna, um poder ilimitado, no sentido pleno da
expressão, determinado por Delegação divina, nunca existiu de fato”. LOPES, Marcos Antônio.
O
absolutismo
. São Paulo: Brasiliense, 1996, pp. 44
-
46.
6
diante dos “avanços em crítica literária e em filosofia da linguagem”.
13
Assim, segundo
David Harlan, após uma ausência de cem anos, a literatura volta à história, montando seu
circo de metáfora e alegoria, interpretação e aporia, traço e signo, exigindo que os
historiadores aceitem sua presença zombeteira bem no coração daquilo que, insistiam eles,
consistia sua disciplina própria, autônoma e verdadeiramente científica”.
14
Com o retorno da literatura, os estudos históricos entraram em uma “profunda crise
epistemológica”, pois passa-se a questionar a “nossa crença num passado fixo e
determinável, comprometendo a possibilidade de representação histórica e abalando nossa
habilidade de nos localizarmos no tempo. O resultado disso tudo (...) tem sido uma redução
do conhecimento histórico a um tecido de tramas e retalhos, constituindo uma ausência
essencial.”
15
Diante disto houve tentativas no sentido de reconstruir a história intelectual,
sendo que foi a tentativa de Quentin Skinner e John Pocock a que obteve maior
influência.
16
David Harlan reconhece que “o contextualismo radical – seja ele na forma da
história do pensamento político de Skinner e Pocock, ou seja, à guisa de uma história do
discurso
– é uma das mais importantes e influentes tentativas feitas para deter o declínio
da história intelectual”.
17
Neste sentido, vários elementos da metodologia destes dois
historiadores de Cambridge, sobretudo as reflexões de Skinner, serão valorizados no
trabalho de interpretação dos textos de Bossuet.
Ao contrário da concepção que foi prática dominante nesse campo de trabalho até a
década
de 1960, que pretendia compreender o texto por ele mesmo, debruçando-
se
somente sobre as obras dos autores clássicos, em busca de “elementos intemporais”,
perenes, que serviam para responder os problemas que se formulavam em todos os tempos,
acreditamos que para uma melhor compreensão do texto de um autor é de fundamental
importância tentar enfocá-lo levando-se em consideração o contexto social em que foi
produzido.
18
Conforme nos chama a atenção Skinner, “o que exatamente o procedimento
13
Cf. HARLAN, David. “A história intelectual e o retorno da literatura”. In: RAGO, M; GIMENES, R.
(Orgs.).
Narrar o passado, repensar a história
.
Campinas: IFCH, 2000,
p
. 15.
14
ibid.
15
ibid., p. 16.
16
Cf. ibid., p. 19.
17
ibid., p. 40.
18
Cf. TUCK, Richard. “História do pensamento político”. In: BURKE, Peter. A escrita da história
:
novas
perspectivas
. São Paulo: Editora da Unesp, 1992, p. 274. De acordo com Skinner, “há muitas coisas
importantes sobre os textos que precisam ser estudadas, além dos próprios textos, se se quiser efetivamente
compreendê
-los; caso contrário, não seria possível compreender quais haviam sido suas motivações, a que
eles se referiam e se estavam, por exemplo, satirizando, repudiando, ridicularizando ou aceitando outras
7
aqui proposto nos permite identificar nos textos clássicos que não se possa encontrar à sua
mera leitura? (...) é que ele nos permite definir o que seus autores estavam fazendo quando
os escreveram. Não podemos esperar atingir este nível de compreensão estudando tão-
somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a questões específicas,
precisamos saber algo da sociedade na qual foram escritos”.
19
O pensamento político de um autor somente terá valor histórico na medida em que
procurarmos relacioná-lo à história, tentando perceber como alguns aspetos dos eventos da
história efetiva aparecem em seus discursos. Isto não é uma tarefa fácil, pois muitas vezes
se de forma implícita. Para que o historiador consiga recuperar o conteúdo histórico do
texto, segundo advertem Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, é preciso levar em
consideração que isto “depende muito da
forma
do texto: o vocabulário, os enunciados, os
tempos verbais, etc.”.
20
O historiador intelectual não deve negar que além do texto há história, como
também pensar a história como algo “independente do texto”. O conteúdo histórico do
texto é encontrado, conforme lembram Cardoso e Vainfas, quando se relaciona o texto
ao contexto, tentando perceber “os nexos entre as idéias contidas nos discursos, as f
ormas
pelas quais elas se exprimem e o conjunto de determinações extratextuais que presidem a
produção, a circulação e o consumo dos discursos. Em uma palavra, o historiador deve
sempre, sem negligenciar a forma do discurso, relacioná-lo ao social”.
21
Como
lembra
Skinner, não devemos “pensar num texto isolado das circunstâncias em que surgiu”.
22
O
idéias e argumentações”. SKINNER, Quentin. “Entrevista”. In: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. G.
As
muitas faces da história. São Paulo: Editora da Unesp, 2000, p. 315. A este respeito, dizia Harold Laski, em
1926: “já afirmei que nisso está implícito um método de estudar a opinião bem como aqueles que a
expressaram à luz do seu ambiente social. Não existe algo mais inútil, que nada é menos revelador, do que
se isolar a filosofia política de qualquer pensador das circunstâncias em que brotou. Todo grande pensador é,
em parte, a autobiografia de sua época. (...) A filosofia política jamais pode ser isolada do cômputo geral das
idéias de uma geração”. LASKI, H. J. “Sobre o estudo da política”. In: KING, Preston. O estudo da política
.
Brasília: E.U.B., 1980, p. 13.
19
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 13. De acordo com David Thomson, “o pensamento político, igual a qualquer outro, se entende
plenamente quando o relaciona com seu tempo, com o ambiente, o lugar em que se produziu e a
personalidade que o concebeu e
desenvolveu”.
THOMSON, David. “Naturaleza de las ideas políticas”. In:
_____.
Las ideas políticas
. Barcelona: E
ditorial Labor, 1973,
p. 16.
20
CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. “História e análise de textos”. In: _____. (Orgs.)
Domínios da história
ensaios de teoria e metodologia
. Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 377.
21
ibid., p. 378. De acordo com estes autores, “negar a redutibilidade da história ao texto não significa, por
outro lado, admitir que haja uma história independente do texto. A história é sempre texto, ou mais
amplamente,
discurso, seja ele escrito, iconográfico, gestual etc., de sorte que somente através da decifração
dos discursos que exprimem ou contêm a história poderá o historiador realizar o seu trabalho”. p. 378.
Advertem ainda que, “nem a história se reduz à estrutura do texto, nem tampouco esta deve ser desprezada
para uma análise d
o conteúdo histórico social dos discursos”. ibid., p. 379.
22
SKINNER, in PALLARES
-
BURKE, op. cit., p. 310.
8
contexto intelectual também é de suma importância. O valor histórico do pensamento
político do autor somente será encontrado na medida em que o intérprete levar em
conta
toda a gama de movimentos intelectuais ocorridos em seu contexto.
23
Devido à evidência do escritor político tentar responder a questões que surgem
como um problema em sua sociedade, o historiador intelectual deve estabelecer uma
relação entre a teoria do escritor político e o contexto histórico no qual ela está inserida.
Conforme Skinner, “evidentemente, também tenho interesse por outro contexto, o político,
que acredito que ninguém escreve teoria política num vácuo. sempre uma história a
ser contada sobre a política de uma sociedade, em resposta à qual, por exemplo, o
Leviatã
foi escrito”.
24
Será que algum teórico político ganharia a atenção de seus contemporâneos
se tratasse de questões irrelevantes para eles?
25
No trabalho de interpretação dos textos políticos, é de fundamental importância
prestar atenção nos “atos lingüísticos”, tentando perceber quais as intenções subjacentes no
texto do autor.
26
Estamos cientes de que o significado de um texto não existe antes dele. O
sentido passa a existir a partir das operações mentais inerentes ao processo de sua
produção. A linguagem utilizada pelo autor, além de ter um significado, tem a função de
uma ação, ou seja, o texto traz consigo a intenção do autor em intervir, em advertir sobre
algo que está acontecendo ou que, em seu entender, está prestes a acontecer. Segundo
Skinner, é importante “descobrirmos o que o autor pretendeu fazer com o que disse. Nesse
caso, o que nos interessa é o que chamo de atos lingüísticos. O que quero dizer é que um
discurso, além de ter um significado, é também uma ação. Para os patinadores, por
23
Cf. ROSANVALLON, Pierre. “Por uma história conceitual do político”. In: Revista brasileira de história,
São Paulo, pp. 9
-
22, n. 30, 1995,
p. 12.
24
SKINNER. in PALLARES-BURKE, op. cit., p. 330. Segundo Rosanvallon, “o objeto da história
conceitual do político é a compreensão da formação e evolução das racionalidades políticas, ou seja, dos
sistemas de representações que comandam a maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais
conduzem sua ação encaram seu futuro. Partindo da idéia que essas representações não são uma globalização
exterior à consciência dos atores como o são por exemplo as mentalidades mas que elas resultam, ao
contrário,
do trabalho permanente de reflexão da sociedade sobre ela mesma,” um de seus objetivos é “fazer
a história da maneira pela qual uma época, um país ou grupos sociais procuram construir as respostas àquilo
que percebem mais ou menos confusamente como um pro
blema”.
ROSANVALLON, op. cit., p. 16.
25
De acordo com Sheldon Wolin, “toda filosofia política por mais refinadas e variadas que sejam suas
categorias
representa uma perspectiva necessariamente limitada a partir da qual contempla os fenômenos de
índole
política. Os enunciados e formulações que produzem são como disse Cassirer ‘abreviaturas da
realidade’ que não esgotam a ampla gama da experiência política. (...) Para um filósofo como Thomas
Hobbes, que viveu a agitada vida política da Inglaterra do século XVII, a tarefa urgente do filósofo político
consistia em definir as condições necessárias para uma ordem política estável. No pensamento de um filósofo
influem, em grande medida, os problemas que agitam a sua sociedade. Se querem ganhar a atenção de seus
contemporâneos, deve encarar seus problemas e aceitar, para o debate, os termos que estas preocupações
impõem”.
WOLIN, Sheldon. “Filosofía política y filosofía”. In: _____. Politica y perspectiva. Madrid:
Alianza Editorial, s.d.,
pp. 30
-
31.
Ver SKINN
ER, in PALLARES
-
BURKE, op. cit., p. 323.
26
Cf. TUCK, in BURKE, 1992, op. cit., p. 275.
9
exemplo, a frase ‘o gelo está muito fino’, além de ter um significado, tem também a
força de um ato de advertência. A questão que se deve, pois, propor a todo ato lingüístico é
o que s
e está fazendo com o que é dito”.
27
Levando
-se em consideração que um termo pode exprimir conceitos diferentes em
diferentes contextos, é dever do historiador intelectual atentar para o vocabulário
normativo da época do autor
28
, para não cometer o erro de achar que o autor estudado
pretendeu dizer o que ele nem sonhava em dizer. Com respeito à importância do estudo da
lingüística, Pierre Rosanvallon demonstra que, para fazer uma história conceitual do
político “é preciso igualmente fazer a história das palavras e estudar a evolução da língua.
[Por exemplo, não entendemos a mesma coisa em 1789 ou em 1793 quando falamos em
democracia.]”.
29
A preocupação em estudar um texto observando-se o vocabulário
normativo do período do autor não é recente. Em meados do século XX, Lucien Febvre
percebia que isto era fundamental para compreender o pensamento de Rabelais.
30
Uma outra questão que consideramos de fundamental importância, no trabalho de
interpretação dos textos políticos de Bossuet, é levar em conta a intertextualidade, ou seja,
tentar entender um texto relacionando-o com outros textos. Compreendemos a noção de
intertexto à maneira de Skinner: “todo meu trabalho é intertextual, isto é, trata de saber
como e até que ponto o entendimento de um texto pressupõe o ente
ndimento de sua relação
com outros textos”.
31
Desta forma, é possível perceber em quais dimensões de seu trabalho
autor foi original ou convencional, como torna-se possível também captar as suas
particularidades. Em nossa pesquisa partimos do pressuposto de que atentar para as
27
SKINNER, in PALLARES
-
BURKE, op. cit., pp. 332
-333.
28
Conforme Wolin, “uma característica importante de um conjunto de conhecimentos reside em que é
transmitido mediante uma linguagem bastante especializada. Com isto queremos dizer que as palavras são
utilizadas em certos sentidos especiais, e que certos conceitos e categorias são considerados fundamentais
para uma compreensão do tema. Este aspecto de um conjunto de conhecimentos é sua linguagem e
vocabulário. (...) Por sua parte, a linguagem do teórico político tem suas próprias peculiaridades”. WOLIN,
op. cit., pp. 20
-
21.
29
ROSANVALLON, op. cit., p. 17.
30
Segundo Cardoso e Vainfas, “as vantagens de se pesquisar a estrutura formal do texto em perspectiva
histórica não foram descobertas recentemente. Lucien Febvre, um dos fundadores do movimento dos
Annales
, havia percebido as potencialidades de uma investigação desse tipo ao debruçar-se sobre a obra de
Rabelais em se
u
L’probleme de l’incroyance (1942). Com efeito, foi com base numa exaustiva pesquisa do
vocabulário presente naquela obra que Febvre, divergindo dos que afirmavam o ateísmo de Rabelais,
demonstrou a ‘mentalidade pré-lógica’ que caracterizava o homem europeu do século XVI, homem
essencialmente religioso e, por isso mesmo, ‘incapaz de descrer’. Anos depois, Febvre reafirmaria, nos
Combats pour l’histoire (1953), a sua convicção sobre a importância da lingüística como ‘aliada da história’,
embora se tratasse, então, de uma lingüística pré-estrutural ou pré-
saussuriana”.
CARDOSO & VAINFAS,
op. cit., pp. 377
-
378.
31
SKINNER, in PALLARES
-
BURKE, op. cit., p. 330.
10
práticas
lingüísticas da sociedade em que o autor está inserido é uma referência que não se
pode perder de vista.
32
É preciso abordar as obras do autor em relação ao contexto intelectual e político de
sua época, levando-se em consideração que a sua intenção era a de intervir no debate
político de seu tempo.
33
Segundo Renato Janine Ribeiro, “é costume, na bibliografia
especializada, estudar-se o pensamento político de um filósofo mais como parte de sua
filosofia do que uma intervenção política. (...) o pensamento político exprime, em grau
mais alto, um traço que talvez seja comum a todo pensamento: uma tensão de
intervenção”.
34
Como o texto do autor não apenas reflete a realidade, mas pretende intervir
nela, ele escolhe seus leitores, e esta
rá sempre se dirigindo a eles.
35
Conhecer os interlocutores do autor é algo muito complexo, pois, na maioria das
vezes, eles não estão explícitos no texto. Além de prestarmos atenção aos argumentos
utilizados por Bossuet, em seus textos políticos, temos que ler as suas notas, as suas
dedicatórias, os seus prefácios, etc., tentando distinguir quais são os seus interlocutores
eletivos. Além disso, a bibliografia especializada nos auxilia a encontrar os interlocutores
não admitidos por ele.
O texto deve ser
pensado em sua dinâmica específica e levando
-
se em consideração
que o autor o busca um leitor eternamente válido, mas sim que tem o seu público alvo,
definido, o qual pretende atingir com suas idéias.
36
Para entender as especificidades do pensamento político de Bossuet
estabeleceremos uma comparação com Luís XIV e Antônio Vieira. Para isso, tomaremos o
32
Cf. TUCK, in BURKE, 1992, op. cit., pp. 275
-
276.
33
Cf. SKINNER, in PALLARES
-
BURKE, op. cit., p. 3
08.
34
RIBEIRO, Renato J. “A filosofia
política
na história”. In: _____. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo
contra seu tempo.
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2000,
p. 117.
35
Conforme salienta o mesmo autor, “mesmo o pensador que opta pelo
otium
escolhe, muitas vezes, um
leitor ideal, parceiro que dará vida às suas páginas (...) O texto político, pelo menos ele, exige levar em conta
tais relações. (...) é preciso saber a quem o autor se dirige. (...) em vez de pensar o que o texto retrata, ou
como ele retrata uma realidade ou problema, pensar o que ele concebe. Qual é a sua visada. (...) O texto
persegue uma estratégia e, por isso, é fundamental conhecer quem ele define como leitor. Em outras palavras,
um texto não é reflexo, porém arma. Um pensador político
não procura
refletir
o seu tempo e sociedade; quer
produzir
efeitos. E estes ele visa através de sua arma específica, o texto. A designação do leitor é, portanto, a
de quem deverá ser afetado pelo texto. Os leitores constituem o campo de eficácia própria do discurso. A
leitura é o processo pelo qual se dá tal eficácia. Escrever e ler, portanto, não são meros efeitos: são
produzires”. ibid., pp. 117, 121.
36
É com pertinência que Renato Janine Ribeiro interroga ao mesmo tempo em que aponta uma resposta
par
a o problema da “audiência” do texto: “em que consiste a escolha, no/pelo texto, do seu leitor? (...) É
pensar o escrito como uma dinâmica, como convite à participação do leitor. (...) É também (...) recusar a idéia
de um leitor universal (...) Não será mais rico pensar que um texto é pertinente para aqueles a quem
pertence, que só interessa àqueles que o apropriam? (...) Nenhum texto é essencial para todos; cada texto tem
o seu público”.
RIBEIRO, op. cit., p. 124.
11
cuidado de não cometer um mero “comparativismo textual”, o que, segundo Rosanvallon,
“consiste somente em pensar uma obra em relação àquelas que a sucedem o
u a precedem, e
fazê-la existir relativamente ao que lhe é exterior”.
37
Para o autor, o comparativismo
textual consiste em “uma cegueira quanto às diferenças de contexto nas quais as obras
tomam sentido. Compara-se Adam Smith e Benjamim Constant como se suas obras
procurassem responder a mesma questão. A obra é implicitamente apreendida como um
texto autônomo, ela não é concebida jamais como um trabalho do qual se trataria de
compreender seus determinantes”.
38
Ao contrário disso, levaremos em conta que, ap
esar de
nossos autores pensarem sobre as mesmas temáticas, suas obras foram produzidas em
contextos diferentes, portanto, eles tentaram dar respostas às questões diferentes também.
Outro aspecto a ser considerado é que os filósofos políticos estão engajados nos
problemas de seu tempo, como também buscam participar do diálogo mantido no interior
da tradição do pensamento político ocidental.
39
É importante ter clareza de que os teóricos políticos buscam participar do diálogo
não como uma camisa de força, buscando apenas responder aos problemas deixados pelos
predecessores, mas sim na medida em que os temas tratados pelos autores anteriores são
temas também recorrentes em sua época. E cada teórico responde a essas questões de
forma diferente também.
Quando nos debruçamos sobre o pensamento político de Bossuet, considerado
como um autor menor no âmbito do pensamento político, estamos recorrendo a abordagens
que julgamos relevantes para a interpretação de seus textos. Entendemos que para
compreender as idéias políticas de um determinado período não devemos recorrer somente
aos grandes autores, mas sim analisar também as obras dos autores considerados de menor
37
ROSANVALLON, op. cit., p. 14.
38
ib
id., pp. 14
-
15.
39
Como nos lembra Sheldon Wolin, “cada filosofia importante leva em si algo de exclusivo, assim como
algo de tradicional. (...) Pode-se resumir isto de outro modo, dizendo que a maior parte da reflexão política
formal tem operado simultaneamente em dois níveis diferentes. Em um deles, cada filósofo político tem se
ocupado do que considera um problema vital de seu tempo. (...) Nenhum pensador político se interessa
exclusivamente pelo passado, assim como tampouco se propõe falar somente ao futuro distante; em um ou
outro caso, o preço seria a ininteligibilidade. Com isto queremos dizer unicamente que todo filósofo político
está engajado em alguma medida, e que toda obra de filosofia política é, em alguma medida, um manifesto
dirigido a sua época. Em outro nível, sem dúvida, muitos escritos políticos têm sido projetados como algo
mais que livres de circonstance: os tem destinado a contribuir ao diálogo contínuo da filosofia política
ocidental. Isto explica
porque é tão freqüente que um pensador p
olítico apareça atacando a outro morto muito
antes”.
WOLIN, op. cit., pp. 34
-
35.
12
expressão em nosso tempo, para tentar perceber como questões semelhantes eram
percebidas por eles.
40
Na França, desde a afirmação da história intelectual como disciplina autônoma, em
1943, com Jean-Jacques Chevallier
41
, até os anos 1950/60 com o grupo norte-
americano,
composto por Eric Voegelin, Leo Strauss e Sheldon Wolin, entre outros, a idéia
predominante era a de que o historiador intelectual deveria debruçar-se sobre as obras
clássicas, pois somente elas continham os elementos intemporais, idéias universais que
serviriam de respostas aos problemas de todas as épocas e, principalmente, para explicar a
histór
ia do tempo presente. No entanto, no final da década de 1960 e no decorrer da década
de 1970, a história intelectual renovou-se, pois os historiadores de Cambridge, com
evidência para Quentin Skinner e John Pocock, chamaram a atenção para a importância de
se estudar os autores menores. É bom lembrar que esta preocupação existia
anteriormente. Michel Winock chama a atenção para o fato de que, em suas teses de
doutorado, René Rémond, em 1959, e Jean Touchard, em 1968, atentavam para isso.
Segundo Winock, Rémond e Touchard
“empenharam
-se em descobrir as marcas das idéias
em todos os setores da sociedade. Com essa finalidade, descendo do Olimpo das ‘grandes
obras’, ambos saíram ao encalço de todos os elementos de seu tema nos diferentes meios
de expressão e particularmente naqueles que atingiam grandes camadas da população (...)
os almanaques, as canções, os autores de vaudeville e a imprensa que aos poucos se
libertava da censura do Estado”.
42
Se aentão a história intelectual estava “presa aos pináculos”, abordando somente
as grandes obras dos autores de renome, as fontes antes inusitadas passam a receber a sua
atenção, e assim uma renovação do
corpus
documental.
43
Com isto a história intelectual
40
Conforme Rosanvallon, “a matéria da história conceitual do político não pode se limitar à análise e ao
comentário das grandes obras, mesmo se aquelas se permitem, em certos casos, serem consideradas como
pólos, cristalizando as questões que uma época se coloca e as respostas que tenta apontar. Ela toma
emprestado da história das mentalidades a preocupação de incorporar o conjunto dos elementos que
compõem este objeto complexo que é uma cultura política: o modo de leitura das grandes obras teóricas, as
obras literárias, a imprensa e os movimentos de opinião, os panfletos e os discursos de circunstâncias, os
emblemas e os signos. Nós não podemos, por exemplo, nos contentar em apreender a questão das reações
liberalismo/democracia durante a revolução francesa supondo que ela consiste em um tipo de debate de
cúpula entre Rousseau e Montesquieu”. ROSANVALLON, op. cit., p. 17. A este respeito ver também
MOUSNIER, Roland. “Problemas de metodo en el estudio de las estruturas sociales de los siglos XVI, XVII
y XVIII”. In: Estudios politicos. Madrid, n.198, s.d., pp. 41-
58,
p. 41; LOPES, Marcos Antônio. Para ler os
clássicos do pensamento político: um guia historiográfico
. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2002, pp. 34
-
35.
41
Cf. WINOCK, Michel. “As idéias políticas”. In: RÉMOND, R. Por uma história política. Rio de Janeiro:
Editora FGV/Editora UFRJ, 1996, p. 274.
42
WINOCK, in RÉMOND, op. cit., p. 279.
43
Cf. ibid., pp. 278
-
289.
13
evoluiu e se enriqueceu. Segundo Winock, “o movimento ger
al observado é bastante claro:
descemos dos picos rochosos para o fundo dos vales; das obras mais ou menos imortais
para o saco de gatos da produção literária, jornalística, política; do comentário das ‘grandes
idéias’ ao inventário das ‘mentalidades correntes’. Nessa descida essa disciplina se
diversificou enormemente”.
44
Bem antes disso, em 1926, Harold Laski advertia para a
importância de se estudar os autores menores.
45
Devemos também levar em consideração o clima de opinião, o que se comentou
sobre o autor estudado.
46
As reflexões dos historiadores de Cambridge, em 1960/70
apontaram ainda para a necessidade de se levar em conta as idiossincrasias do autor, ou
seja, tudo aquilo que é próprio de sua personalidade e atua sobre ele.
47
Esta corrente
revisionist
a, a de Skinner, demonstra ainda que, além das idiossincrasias do autor, o meio
social, o grupo ao qual pertence, também mantêm influência sobre ele.
O fato de na historiografia recente haver a defesa de se “estudar o passado em seus
próprios termos”, segundo um de seus maiores representantes, não nos leva a acreditar que
o intérprete de textos políticos deva livrar-se de seus valores e preconceitos do presente.
Assim como Hans
-
Georg Gadamer, entendemos que a subjetividade do intérprete de textos
políticos
influencia em sua interpretação textual. No entanto, os valores e preconceitos do
presente não são obstáculos, pelo contrário, são fundamentais para a sua compreensão.
A preocupação de Gadamer com a historicidade da compreensão, com a forma
como ocorre a apreensão de um texto, leva-o a reabilitar o conceito de preconceito, que
44
ibid., p. 28
9.
Conforme Winock, “as idéias políticas não são apenas as dos filósofos e dos teóricos, mas
também as do homem comum. Pela extensão de seu campo de curiosidade, a história das idéias políticas faz
necessariamente fronteira coma história da opinião pública e a história da propaganda; distingue-se delas,
mas seus entendimentos com uma e outra encontram-se numa relação de reciprocidade, numa sociedade de
expressão pública desenvolvida. Daí resulta uma primeira renovação da história das idéias pela extensão da
curiosidade a fontes antes inusitadas”. ibid., pp. 278-279. Nos lembra Winock que, “nos últimos 20 anos, a
história das idéias desceu daquele empíreo onde freqüentava apenas autores de renome; interessou-se pelas
mil degradações do modelo original, pelas formulações vulgares dos temas políticos, pelo pensamento
automático dos órgãos de opinião, pelos reflexos condicionados, pela circulação dos mitos e dos estereótipos,
pelos novos suportes dos enunciados ideológicos... Mais preocupada em acompanhar o trabalho das idéias na
sociedade política, ela passou de uma certa forma da história da literatura e da filosofia para uma história
das
mentalidades
políticas. Sempre atenta à produção intelectual personalizada, está, entretanto, cada vez
mais empenhada em apreender o que Michel Foucault chamava de ‘filosofia espontânea’ daqueles que não
filosofam”. ibid., pp. 284-285. Ainda segundo este autor, “já que a finalidade da história das idéias políticas
não é mais oferecer os elementos quase intemporais de uma ‘cultura política’, e sim conhecer melhor os
sistemas de representações das sociedades, o estudo desses sistemas tornou-se inseparável do dos aparelhos
de produção e de mediação: não é apenas a idéia que age, é também o lugar de onde ela vem”. ibid., p. 285.
45
Cf. LASKI, op. cit., p. 18. Sobre a importância de se estudar os autores menores ver DARNTON, Robert.
“Introdução”. In: _____. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 7-49; LASKI,
op. cit., p. 18; WINOCK, in RÉMOND, op, cit., pp.
274
-
289.
46
Consulte, a este respeito, ROSANVALLON, op. cit., p. 17; MOUSNIER, s.d., op. cit., p. 41; LOPES,
2002, op. cit., pp. 34
-
35.
47
Cf. ibid., pp. 75, 78.
14
recebeu um sentido pejorativo por parte do Iluminismo. A leitura de um texto é uma
questão fundamental para o historiador das idéias, que o texto é o seu objeto. Em
Verdade e método, Gadamer observa que o Iluminismo, em sua exaltação desmedida à
razão, deturpou o conceito de preconceito apresentando-o como negativo, portanto,
prejudicial à análise. No entanto, segundo Gadamer, a verdadeira hermenêutica histórica
recuperou o verdadeiro sentido do preconceito; este nos é apresentado de forma positiva.
Ao lermos um texto é impossível nos livrarmos de nossos preconceitos, pois eles nos
acompanham sempre, fazem parte de nossa existência. Contudo, conforme nos alerta o
autor, apesar de nossos preconceitos é imprescindível que, ao lermos um texto, estejamos
abertos a ele: “quando se houve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é
necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as
opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura à opinião do outro ou à do
texto”.
48
Ler um texto é como estabelecer um diálogo entre o autor e o leitor. Este interage
com aquele. Para demonstrar que a inter-relação entre indivíduo e sociedade é tão forte,
sendo impossível tentar entender uma das partes isoladamente, em A sociedade dos
indivíduos
, Norbert Elias recorre ao exemplo de uma conversa entre duas pessoas. Mesmo
que inicialmente elas tenham idéias contrárias, no decorrer da conversa, uma delas pode
ser convencida pela outra e mudar de opinião.
49
Podemos recorrer ao exemplo de Norbert
Elias para compreendermos a interação do leitor com o autor no momento da leitura. Nós
temos nossas pré-noções, muitas delas são inconscientes. Ao empreendermos uma leitura,
não
podemos sufocar o texto: forçá
-
lo a se encaixar com as nossas idéias. É impossível nos
livrarmos de nossas pré
-
noções, não há como eliminá
-
las. No entanto, podemos cuidar para
que elas não nos impeçam de estarmos abertos ao que o texto tem a nos
dizer.
48
GADAMER
, Hans
-
Georg.
Verdade e Método
. Petrópolis: Editora Vozes, 1997,
p. 404.
49
ELIAS
, Norbert.
A sociedade dos indivíduos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994, pp. 29
-
30.
15
CAPÍTULO I
A FORMAÇÃO DE BOSSUET
Para uma adequada compreensão de um autor é necessário investigarmos os
elementos que influenciaram decisivamente sua vida: sua origem, sua formação, os autores
e obras que o influenciaram, os ambientes que freqüentou e de que forma os eventos
atuaram sobre ele.
Meio familiar e eventos políticos
Em Dijon, na região da Borgonha, na França, nasceu Jacques-Bénigne Bossuet
[filho], em 27 de setembro de 1627. Ele pertencia a uma família católica, de parlamentares
e magistrados muito distinta.
50
Dos dez filhos oriundos do casamento de Jacques-
Bénigne
Bossuet e Marguerite Mochet, Bossuet foi o sétimo e recebeu o nome do pai.
51
Este foi um
eminente magistrado. De início escrivão e advogado do Parlamento, em 1626 entrou par
a
o Conselho de Estado. Quando em 1630, em Dijon, ocorreu a revolta conhecida como
Lanturelu
, provocada por um edito de Luís XIII, os camponeses e vinhateiros dos
arredores da Borgonha “pilharam e incendiaram as casas” gritando “‘viva o imperador!’”
Jacque
s-Bénigne Bossuet conseguiu, de um lado, fazer com que Luís XIII retirasse o seu
edito, e, de outro, pacificar as massas rebeldes que estavam em uma praça “em frente a sua
própria casa”.
52
Com certeza essas imagens de revolta ficaram gravadas na memória do
pequeno Bossuet, que neste período tinha três anos de idade
53
, levando-o, alguns anos
mais tarde, a defender a ordem, a submissão ao príncipe e o combate à anarquia.
Em toda a sua adolescência-juventude Bossuet se defrontou com uma situação de
conflito.
A Revolução Inglesa de 1640 foi um evento político que influenciou fortemente o
seu pensamento político.
50
Cf. DUSSAULT. “Notice sur Bossuet”. In: BOSSUET, Jacques-
Bénigne
Oraisons funèbres de Bossuet
.
Paris: Librairie de Firmin Didot Frère, 1874, p. 1; CHARBONNEL, J.-Roger. (Org.). “Bossuet et son
temps”. In: BOSSUET, Jacques-
Bénigne.
Oraisons funèbres et sermons
.
Paris: Classiques Larousse, 1942,
p. 5.
51
Cf. GAQUÈRE François. Bossuet en ses ascendances (Préhistoire de Bossuet). Paris: Beauchesne, 1965,
pp. 32.
52
Cf.
ibid., p. 30.
53
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 17.
16
Numa época em que era regra nas cortes da Europa o estabelecimento de uma
verdadeira monarquia absolutista, assim como o seu pai Jaime I, Carlos I lutou para
governar como um rei absolutista. Apesar da oposição interna que a política de
consolidação da monarquia absolutista despertou na Inglaterra, Jaime I assegurou a
transmissão da coroa ao filho. Já este não teve a mesma sorte. Sob seu reinado, a Ingl
aterra
mergulhou em uma guerra civil e ele pagou caro por perseguir tal objetivo. Em 1625,
quando Carlos I sucedeu ao pai no trono inglês, a situação geral da Inglaterra era
desfavorável a qualquer tentativa de implantação de uma política absolutista. Mesm
o
assim ele insistiu. Porém, enquanto que no resto da Europa a política absolutista obtinha
êxito, na Inglaterra, com Carlos I, ela fracassou. Em 1640, objetivando conquistar
constitucionalmente a soberania política para o Parlamento, a oposição parlamenta
r
rebelou
-
se contra Carlos I. Em 1642 iniciou
-
se a guerra civil que se estendeu até 1648.
54
Nesta guerra civil, os ingleses dividiram-se: os católicos anglicanos se tornaram
partidários da causa realista, posicionando-se do lado da monarquia; enquanto que o
s
puritanos radicais (a seita) e os moderados (presbiterianos) apoiaram a causa parlamentar.
A partir de 1644, o exército do Parlamento passou a ser liderado por Oliver Cromwell que
o reorganizou. Assim, em 1645 o exército realista foi derrotado definitivamente. Em 1649
Carlos I foi julgado, condenado e executado, a monarquia foi abolida e a República foi
proclamada. A república de Cromwell estendeu-se de 1649 a 1658, ano de sua morte. Em
1660 a monarquia foi restaurada sob o católico Carlos II, filho de Carlos I. No entanto, o
retorno da monarquia não significava o retorno do absolutismo na Inglaterra, ele estava
derrotado definitivamente.
55
Observa Modesto Florenzano que, “com a restauração, o país
voltava à situação jurídica existente em 1642, isto é, com o Parlamento como o soberano
político da nação. (...) Carlos II, o novo rei, estava privado de todos os instrumentos do
poder absoluto. Embora se autodenominasse rei pela graça de Deus, por direito hereditário
divino, sabia que era um rei pela vontade do Parlamento”.
56
Na França, os franceses
defensores da monarquia absolutista, entre eles Bossuet, ficaram apreensivos com todas as
drásticas conseqüências dessa revolução. Neste sentido, em sua célebre
Oraison funèbre de
54
Cf. FLORENZANO, Modesto. As revoluções burguesas. 12ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991, pp. 85-
86, 90, 94, 96, 98. A oposição parlamentar era Centrada na Câmara dos Comuns, composta por burgueses das
cid
ades e a
gentry
do campo, sendo que era esta aristocracia rural que dominava o Parlamento. Cf. ibid., p.
82.
55
ibid., pp. 98
-
99,104,106,109.
56
ibid., p. 113.
17
Henriette
-Marie de France, reine de la Grande-
Bretagne
, de 1669, Bossuet condenará a
anarquia religiosa e política da Inglaterra e defenderá a soberania real.
Ainda
em sua juventude, Bossuet assistiu de perto uma outra situação conflituosa
para a monarquia absolutista. No decorrer da Revolução Inglesa de 1640, na menoridade
de Luís XIV, entre 1648 e 1653 a França foi cenário de duas guerras civis, conhecidas por
Fronda. Fato importante! Carlos I foi executado em 9 de fevereiro de 1649, quase ao
mesmo tempo em que iniciou-se a Fronda. Pois esta começara em 6 de janeiro do ano
anterior, quando a corte francesa abandonou Paris.
57
A Fronda ocorreu no período em que
Bossuet estudava no Colégio de Navarra e residia em Paris. O absolutismo francês foi
ameaçado pela Fronda. Por isso este é um dos acontecimentos políticos que mais marcaram
o pensamento político de nosso autor. Fronda é uma “palavra francesa que denominava os
estilingues com que as crianças de Paris faziam batalhas nas ruas”.
58
A Fronda foi um
período agitado de lutas em Paris: excessos populares, iniciativas do Parlamento,
comportamentos ambiciosos dos príncipes. Foi um período de idas e vindas da corte; num
certo momento, o pequeno rei teve de fugir de Paris.
59
No processo de consolidação do
absolutismo, de acordo com Pierre Chaunu, “a Fronda abre um parêntese, de 1648 a 1653
(...) um parêntese de semi-barbárie, de isolamento e de decomposição social difícil de
fechar”.
60
Durante quase quarenta anos de Guerras de Religião, 1562-1598, houve uma
descentralização do poder na França. Porém, por meio da promulgação do Edito de Nantes
em 1598, Henrique IV impôs o poder centralizado na França, o qual foi restaurado por
Luís XIII (1610-1643) e seu primeiro-ministro Richelieu. A alta nobreza francesa, que
havia perdido o seu poder político no processo de centralização monárquica, tomou o
modelo do Sacro Império Romano-Germânico como ideal, o qual consistia na “divisão
regional de todo o território francês e um poder real estritamente limitado, se possível
apenas honorífico, deixado ao rei”.
61
Quando da morte de Luís XIII, em 1643, Luís XIV não havia completado 5 anos de
idade. Em sua menoridade, o governo central era exercido pela Rainha-Mãe, Ana
57
Cf. CORVISIER, André.
História moderna
. São Paulo
-
Rio de Janeiro: Difel, 1976, p. 211.
58
Cf. S
HENNAN, J. H.
Luís XIV
.
São Paulo: Ática, 1954. (Col. Princípios),
p. 20.
59
Cf. HENRI-BERR. “Avant-
propos”.
In: ANDRÉ, Louis. Louis XIV et l’Europe. Paris: Édition Albin
Michel, 1950, (Coll.
L’evolution de l’humanité),
p. XII; SHENNAN, op. cit., p. 20.
60
C
HAUNU, Pierre.
A civilização da Europa clássica
. Vol. I. Lisboa: Editorial Estampa, 1987, p. 124.
61
HATTON, Ragnhild. A época de Luís XIV. Lisboa: Editorial Verbo, 1971, (Col. História Ilustrada da
Europa), p. 80.
18
d’Áustria, e pelo primeiro-ministro, o cardeal Mazarino, um italiano de origem, que havia
sucedido Richelieu em 1642. Eles buscavam conservar o poder da coroa em proveito do
pequeno rei. Defendiam que tinham o direito de tomar as decisões legislativas sem ser
preciso consultar os príncipes de sangue real, que antes tinham o papel de conselheiros
naturais da realeza, como também o Parlamento de Paris, o principal tribunal da França.
Este foi o principal motivo dos distúrbios sociais que se seguiram. O Parlamento de Paris,
que concebia a monarquia como sendo moderada por poderosas dietas dos estados,
opuseram
-se, por meio da organização de uma fronda do terceiro estado, a qual mais tarde
associou
-
se à fronda da nobreza.
62
Os camponeses e trabalhadores das cidades muito tempo estavam revoltados
com a exploração a que eram submetidos, sobretudo pelo pagamento de altos impostos. Os
parlamentares e a alta nobreza serviram-se desse descontentamento do povo para os seus
próprios interesses, jogando-o contra o Estado. Como afirma Perry Anderson, “em certos
aspectos, a Fronda pode ser considerada como uma alta ‘crista’ da onda prolongada de
revoltas populares, na qual, por um breve espaço de tempo, setores da alta nobreza, da
magistratura detentora de cargos e da burguesia municipal lançaram mão do
descontentamento das massas para seus próprios fins, contra o Estado Absolut
ista”.
63
Até o término da Guerra dos Trinta Anos e a aquisição da Alsácia, a política
externa da França foi dirigida por Mazarino com muita habilidade. Porém, depois da Paz
de Vestfália, ao alongar a guerra contra a Espanha até o Mediterrâneo, “ele provocou a
crise da Fronda”. Constata Perry Anderson que, o aumento dos impostos para bancar a
guerra no estrangeiro se deu no momento de três sucessivas más colheitas, 1647, 1649 e
1651. “A fome e a fúria popular combinaram-se com uma revolta dos
officiers
lidera
dos
pelo
Parlement
de Paris contra o sistema de
intendants
, que foi apressada pela exasperação
com a guerra; com o descontentamento dos
rentiers
diante da desvalorização de
emergência das obrigações públicas; e com o ciúme de poderosos pares do reino peran
te
um aventureiro italiano, que manipulava uma minoria vinculada ao rei”.
64
Conforme observa o autor, “o desfecho seria um entrevero confuso e penoso”. À
medida que as províncias iam se desvinculando de Paris, parecia que o campo se
desintegrava, todo o país era saqueado pelos exércitos privados, ditaduras municipais
62
Cf. HATTON., op. cit., p. 81; SHENNAN, o
p. cit., p. 20.
63
ANDERSON, op. cit., pp. 97-98. Quanto a este ponto ver a convergência de opiniões de CORVISIER, op.
cit., pp. 196
-
197; MOUSNIER, Roland.
Os séculos XVI e XVII
. São Paulo: Difel, 1973, pp. 192
-
194.
64
ANDERSON, op. cit., p. 98.
19
rebeldes eram estabelecidas pelas cidades, príncipes rivais competiam pelo controle da
corte. Os governadores das províncias aproveitaram da ocasião para fazer o acerto de
contas com os parlamentos locais, e as autoridades municipais para atacar os magistrados.
Muitos dos aspectos característicos das Guerras Religiosas foram reproduzidos pela
Fronda. Durante esta última, a insurreição urbana extremamente radical dava-se ao mesmo
tempo em que ocorria uma insurreição no campo, a Ormée de Bordeaux e o extremo
sudoeste, a região rural mais insatisfeita, “foram os últimos centros de resistência aos
exércitos de Mazarino”.
65
A Fronda deu lugar à publicações de libelos Nas incontáveis Mazarinadas
panfletos que jogavam a população contra Mazarino e agitavam idéias revolucionárias
66
ocorridas durante a Fronda, reapareciam noções conhecidas, como a idéia de pacto
concluído entre o rei e o seu povo no momento da sagração; as prerrogativas dos
Parlamentos e dos Estados Gerais como sendo os guardadores e administradores das leis e
costumes que tradicionalmente serviam para moderar o poder monárquico; e o direito de
resistência ativa diante dos abusos dos governantes. Os franceses denunciavam o
‘ministeriato’,
ou seja, a tirania do primeiro-ministro Mazarino e a de seu antecessor
Richelieu; para os súditos não existia mais o seguro direito à propriedade e nem à liberdade
natural.
67
Nessas Mazarinadas, assiste-se os debates sobre os limites do poder real. Em
Recu
eil de maximes ritables et importantes pour l’institution du roi
,
contre la fausse et
pernicieuse politique du cardinal Mazarin, prétendu suritendant de l’éducation de Sa
Majesté
, publicada em 1652, Claude Joly (1607
-
1700),
um
antigo advogado no Parlamen
to
de Paris, descendente de uma antiga família de magistrados, defendia que o príncipe só
podia tributar o povo se este consentisse; e que havia um contrato na origem do poder real,
no qual o povo havia renunciado a seu poder em favor do príncipe que, em c
ontrapartida,
devia fazer justiça e protegê-lo: “depois do que, Deus aprova o referido ato, sela-o e
confere
-
lhe força executória”.
68
Conforme Touchard, a obra de Claude Joly “exprime (...) o
65
Cf. ANDERS
ON, op. cit., p. 98.
66
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 198.
67
Cf. CHEVALLIER, Jean-
Jacques.
História do pensamento político. Tomo 1. Da cidade-Estado ao apogeu
do Estado
-
nação monárquico.
Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 376.
68
Cf. TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 127; CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 377; CORVISIER, op. cit., p.
226.
20
ponto de vista de uma considerável facção da burguesia parlamentar”. O Recueil de
maximes
“foi condenado a ser queimado” pela sentença de 11 de janeiro de 1653.
69
De acordo com Chevallier, “temos aí um lembrete da tradição medieval mais
autêntica”.
70
Tal idéia foi desenvolvida pelos protestantes calvinistas no decorrer d
as
Guerras de Religião no final do século XVI. Eles defendiam a idéia de contrato, segundo a
qual se o príncipe não cumprisse a sua parte tornando-se um tirano os representantes do
povo tinham o direito de resistir-lhe, depondo-o. Esta idéia é defendida por Claude Joly
durante a Fronda.
71
Mas quando o povo tomou o poder em Bordeaux e em Paris, era muito tarde “para
que pudesse afetar o resultado dos conflitos entrecruzados da Fronda”; no sul, o partido
huguenote manteve-se neutro; nenhum programa político coerente foi produzido pela
Ormée de modo que pudesse superar a hostilidade da burguesia de Bordeaux. Assim, os
últimos redutos de revolta foram eliminados por Mazarino e Turenne em 1653.
72
O fato é que a radicalização da revolta das massas maior que durante as Guerras
Religiosas levou a burguesia e a alta nobreza a se unir ainda mais e aceitar o absolutismo
do jovem príncipe. Desse modo, Segundo Perry Anderson, “o progresso de centralização
administrativa e da reorganização de classe, concluído no seio das estruturas mistas da
monarquia francesa, no século XVII, revelara a sua eficácia”.
73
De acordo com Chevallier, o lembrete da tradição medieval foi inútil, “esse
despertar do antiabsolutismo não passa de um fogo de palha, cuja inquietante fumaça logo
se dissipa. O que restará da Fronda é, ao lado do ódio do primeiro-ministro, o desejo de
uma autoridade real que se manifeste de maneira ao mesmo tempo pessoal e vigorosa
contra todos os fatores de desordem civil; são os franceses quase unânimes em seu amor ao
69
Cf. TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 127; CORVISIER, op. cit., p. 226.
70
Cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 377.
71
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 35.
72
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 9
8.
73
ibid., pp. 98-99. “Embora a pressão social vinda de baixo fosse provavelmente mais urgente, a Fronda fora
na realidade menos perigosa para o Estado monárquico do que as Guerras Religiosas, porque as classes
proprietárias estavam agora mais unidas. Apesar de todas as contradições existentes entre os sistemas dos
officiers
e dos
intendants
, ambos os grupos eram predominantemente recrutados entre a noblesse de robe, ao
passo que os banqueiros e os coletores de impostos contra os quais protestavam os
parle
ments
mantinham
efetivamente estreitas relações pessoais com eles. O processo de têmpera possibilitado pela coexistência dos
dois sistemas no seio de um único Estado acabou, assim, por assegurar uma solidariedade mais imediata
contra as massas. A própria profundidade da inquietação popular revelada pela Fronda abreviou o último
rompimento emocional da aristocracia dissidente com a monarquia: embora viesse a ocorrer novos levantes
camponeses no século XVII, a confluência da rebelião do topo e da base nunca mais voltaria a se dar”. ibid.,
p. 99.
21
jov
em rei fora de perigo”.
74
Segundo Hatton, “Luís XIV é declarado maior o mais cedo
possível, aos 14 anos de idade, a fim de que o símbolo de um governante ‘no pleno gozo de
seus direitos’ possa ajudar a reunificar um país pouco inclinado a submeter-se ao
‘co
nspirador estrangeiro’ [Mazarino]”.
75
Conforme nos chama a atenção Henri Berr, se os franceses consideram Mazarino
como um inimigo público, o culto pela realeza estava intacto”. O entusiasmo da população
francesa em sua entrada real em Paris, realizada no dia 25 de agosto de 1653, foi
indiscutível. De fato, ao prestarmos atenção aos relatos dos contemporâneos, como
Madame de Motteville, a Rainha-Mãe e Jean Vallier, que foram testemunhas oculares
dessa entrada real, podemos entender o sentimento geral da população parisiense de todas
as condições sociais. Neste dia, o jovem rei foi muito bem recebido por ela, aplaudido e
aclamado com gritos de alegria.
76
De acordo com Chevallier, “essa guerra de crianças dirá Michelet o bem
designada ‘com o nome de um brinquedo infantil’, teria comprometido, se lograsse êxito,
todas as idéias absolutistas”.
77
Segundo constata Lavisse, a Fronda não representou maior
perigo para a monarquia porque a força que se levantou não foi conduzida por líderes
apaixonados por idéias. Nem a burguesia nem a nobreza desejavam uma revolução, os
trabalhadores das cidades e camponeses explorados não entendiam de política. A história
da Fronda mostra a incapacidade dos opositores do rei em se reunir, de encontrar meios
para opor-se à sua força. Com o fim da Fronda, a autoridade real saiu fortalecida. “Uma
desordem onde cada um agia por si devia acabar pelo rei por todos”.
78
A Fronda foi o elemento que faltava para que o absolutismo se consolidasse na
França. Por irônico que possa parecer, o resultado da Fronda foi totalmente contrário ao
esperado pelos seus condutores. Durante a Fronda o poder real correu sérios riscos, porém,
no seu término ele saiu imensamente fortalecido. Desta forma, a Fronda contribuiu para a
consolidação do absolutismo francês. A história nos mostra que após longos períodos de
anarquia, a população anseia por um poder forte e centralizado nas mãos de um soberano
que possa trazer a paz e a harmonia à nação. De acordo com Chevallier, “a França de Luís
XIV e de Bossuet foi pr
eparada pela de Henrique IV e, depois, pela de Richelieu. Contudo,
para assegurar, e sem dúvida para acelerar, o seu advento, houve necessidade da Fronda e
74
CHEVALLIER, 1982,
op. cit
.,
p. 377.
75
HATTON, op. cit., p. 81.
76
Cf. HENRI
-
BERR, in ANDRÉ, op. cit., pp. XII
-
XIII.
77
CHEVALLIER, 1982,
op. cit
.,
p. 376.
78
apud HENRI
-
BERR, in ANDRÉ, op. cit., pp. XIII
-
XIV.
22
do seu malogro”. Ainda segundo este autor, “o fracasso da Fronda provocou uma completa
inversão nas expectativas. (...) o Estado monárquico absoluto, mais confiante no seu pleno
triunfo sobre os inimigos, ia impor-
se sem contestação e sem contra
-
partida”.
79
Quando o pai de Bossuet instalou-se em Metz, ocupando o cargo de conselheiro do
Parlamento desta cidade, deixou os filhos sob a responsabilidade do tio Claude Bénigne
Bossuet, que era conselheiro do Parlamento da cidade de Dijon.
80
Claude Bénigne Bossuet
mantinha relações estreitas com o príncipe de Condé. Devido à sua fidelidade a este
príncipe foi promovido de Conselheiro do Rei no Parlamento de Dijon a Visconde-
Maior
da cidade.
81
Na segunda magistratura de Claude Bénigne Bossuet explodiu a Fronda
parlamentar, em 1648. Ele expressou, então, toda a sua lealdade ao príncipe de Condé,
chegando a declarar aos nobres “que ‘seria preciso agir para que o mal de Paris não
pudesse chegar até eles’” e que “‘os habitantes de Dijon nunca se afastariam da fidelidade
que eles juraram ao Rei, e da obediência que lhe é devida!’”
82
O príncipe de Condé era
amigo e protetor da família de Bossuet.
83
Como observa Ernest Lavisse, “Bossuet nasceu
sob fundo realista sólido”. Nos tempos turbulentos da Reforma, da Liga e da Fronda, sua
família
sempre manteve a sua fidelidade à Igreja e ao rei.
84
Em setembro de 1642, com quinze anos, Bossuet foi a Paris pela primeira vez. No
dia em que chegou, presenciou uma cena que marcou a sua vida. O cardeal Richelieu
voltava do Midi, moribundo, transportado em uma liteira, coberta por um lençol
escarlate, “com uma pompa próxima dos funerais”, em que se mostrava “onipotente em
sua púrpura”.
85
Alguns anos depois, Bossuet assistiu a Fronda e a anarquia desencadeada
por esta guerra civil. Esses dois episódios foram “um curso resumido de política”, e
Bossuet soube tirar deles uma grande lição. Para ele, “mais vale, certamente, um senhor
que mil senhores, e melhor ainda que o mestre possa ser o próprio rei que o ministro”.
86
Esta observação de Bossuet mostra a sua total desaprovação ao fato de ter sido Richelieu, o
primeiro
-ministro de Luís XIII, quem de fato governou a França desde o início de seu
ministério em 1624 até a sua morte em 1642; como também ao fato de no decorrer da
79
CHEVALLI
ER, 1982,
op. cit., p. 376.
80
Cf. SAINTE-BEUVE (Org.). “Bossuet”. In: _____. Les grands écrivains français. Paris: Librairie Garnier
Frères, 1928, pp. 29,104; GAQUÈRE, 1965, op. cit., p. 27.
81
Cf. ibid., p. 9.
82
ibid., p. 28.
83
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op.
cit., p. 108.
84
LAVISSE, Ernest. Histoire de France iIustrée
.
Depuis les origines jusqu’à la Révolution. edição.
Paris:
Librairie Hachette, s.d., p. 108.
85
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 31, 106.
86
ibid., p. 31.
23
Fronda o poder ter sido temporariamente descentralizado. As perturbações da Fronda
ficaram gravadas na memória de Bossuet de uma tal maneira que em vários textos ele
defenderá o poder centralizado e condenará abertamente todos os tipos de revoltas dos
súditos contra os príncipes.
Bossuet herdou de seu pai a moderação, a habilidade, a obstinação para o trabalho,
a coragem, a benevolência e a vivacidade. De sua mãe herdou a sensibilidade e a
generosidade.
87
Foi do seu meio familiar que Bossuet “retirou o sentido de ordem,
autoridade, justiça, direito, lealdade, fidelidade à tradição aprendendo a ‘honrar a
magistratura’”
88
; um conjunto de ingredientes do que se chamaria, hoje, de
conservadorismo. O fogo e a vivacidade que possuía eram moderados pela doçura e a
prudência: “sua palavra era de fogo, mas seu espírito, sua conduta foram sempre
moderados”.
89
A coragem era uma de suas maiores virtudes. Quando mais tarde, em
Versalhes, Bossuet tinha algum assunto para tratar com Luís XIV, “ele o fazia com uma
grande independência e uma tranqüila coragem”. Apesar de seu amor e admiração por Luís
XIV, a ponto de louvá-lo em público, nos momentos em que a moral cristã era esquecida
por este rei, “Bossuet sem hesitar lhe lembrava os rigores”.
90
De acordo com Dussault, “o
Bispo de Meaux, fiel a seus princípios, ousava, nas ocasiões importantes, falar a Luís XIV
com uma liberdade que fazia os cortesãos
temer por ele”.
91
Estudos e triunfos escolásticos
Morando com o tio em Dijon, sua cidade natal, Bossuet foi tonsurado em 1635, aos
oito anos de idade, sendo destinado à carreira eclesiástica. Neste mesmo ano, passou a
receber uma profunda cultura humanista, em um colégio dos jesuítas desta cidade.
92
Aos
treze anos tornou-se cônego de Metz. No colégio dos jesuítas, Bossuet mostrava uma
fantástica capacidade de compreensão e de memória: “sabia de cor Virgílio, como um
87
Cf. GAQUÈRE, 1965, op. cit., pp. 32,
36, 39
-
40.
88
ibid., p. 43.
89
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 104.
90
CALVET, J. “Le XVII siècle. La littérature classique”. In: _____. Manuel illustré d’histoire de la
litterature française.
Vingtième édition. Paris: J. de Gigord Éditeur, 1952, p. 293.
91
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 13.
92
Cf. CALVET, op. cit., pp. 289-290. LAVISSE, op. cit., pp. 107-108; GAQUÈRE François. Le dialogue
irénique Bossuet
Paul Ferry à Metz (1652
1669).
Paris: Beauchesne, 1967, p. 6.
24
pouco mais tarde soube Homero”.
93
Desde a infância, ele se dedicou aos estudos “com a
avidez de um gênio nascente”.
94
Em 1642, em Paris, Bossuet ingressou no Colégio de Navarra, a casa dirigida por
Nicolas Cornet, “mestre firme e prudente”. Nesse colégio, todos os estudos eclesiásticos de
Bossu
et foram concluídos. Aí ele se destacou entre os outros alunos por todos os seus dons
e qualidades, e por aquilo que é o bem maior de um orador, uma excelente memória.
95
O
espírito de Bossuet “era antes de tudo um espírito de doutrina e de ordem e da exposi
ção
lógica e oratória”. No Colégio de Navarra, nos atos públicos e nas teses ele brilhava. Ao
final do primeiro ano de filosofia ele defendeu sua tese. Com isso, Bossuet passou a ser
citado “como uma das maravilhas da Universidade, uma das glórias de Navar
ra”.
96
Por pertencer a uma linhagem de advogados, Bossuet herdou desta a sua eloqüência
natural. A respeito de seu gênio oratório, segundo Gaquère, não podemos esquecer que
Bossuet “cresceu em uma família de parlamentares, uma dessas famílias onde os esforç
os
convergem espontaneamente em direção à eloqüência”, pois disto depende todo o seu
futuro profissional. “Seus dons naturais receberam da atmosfera familiar um forte
estímulo”.
97
Desde muito cedo, o talento de Bossuet para a cátedra já se manifestava. No p
alácio
de Rambouillet ele foi anunciado como um orador precoce. O marquês de Feuquière, um
conhecido de seu pai, benevolente também para com o filho, em uma noite, o conduziu e o
apresentou ao salão do palácio de Rambouillet, onde, pela primeira vez, conforme a
tradição, quase sem nenhuma preparação, ele pregou um sermão improvisado, diante de
uma assembléia numerosa e selecionada, sendo muito aplaudido. Como tinha somente
dezesseis anos e era perto das onze horas da noite, Voiture que estava presente ficou
encantado. Ele, que era muito bom nos jogos de palavras, pronunciou uma frase muito
conhecida: “nunca tinha ouvido pregar nem tão cedo nem tão tarde”.
98
Em seguida,
Bossuet pregou outros sermões improvisados no salão do palácio de Nevers, em Vendôme
e em Metz. Apesar do reconhecimento do seu talento, louvado pelo mundo por ser um
93
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit
., p. 29.
94
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 1.
95
Cf. SAINTE-BEUVE, 1928, op. cit., p. 106. Segundo Dussault, “com tão raros talentos para a eloqüência,
a natureza dotou Bossuet de uma memória prodigiosa”. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 3
.
96
SAINTE-BEUVE, 1928, op. cit., p.107. Segundo Sainte-Beuve, antes de ser a águia admirada por todos
“ele foi um prodígio e anjo” desta escola. ibid., pp. 31
-
32.
97
GAQÙERE, 1965, op. cit., p. 43.
98
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 3. Ver também
SAINTE
-BEUVE, 1928, op. cit., pp. 31-
32,
107; CALVET, op. cit., p. 290.
25
gênio tão precoce, de forma alguma Bossuet deixou que isso se transformasse em vaidade
ou orgulho.
99
Durante o período em que cursava teologia no Colégio de Navarra e pregava
sermõ
es, Bossuet não deixou de ir a Metz, no exercício de seu canonicato, afastando-
se
assim fugia um pouco dos “triunfos escolásticos” de Paris. Enquanto a vida em Paris era
movimentada e tinha um certo brilho, Metz significava um retiro para ele. Aí, ele se
r
ecolhia e se dedicava aos estudos e às preces, e com isso se sentia revigorado. Esse regime
serviu para sustentar e aperfeiçoar o seu gênio. A juventude de Bossuet foi muito regrada,
no entanto conheceu o brilho na mesma proporção, como também as facilidades, que “a
via real foi toda aberta diante dele”. Em sua juventude, apesar de se dedicar a tantos
estudos, Bossuet nunca deixou de lado a amabilidade, a doçura e a sociabilidade.
100
Dois anos após ter chegado no Colégio de Navarra, Bossuet concluiu o estudo de
filosofia. Em seguida, em 1644, sob a direção de Nícolas Cornet, iniciou o curso de
teologia Em 16 de maio de 1652 tornou-se doutor.
101
Foi ordenado padre, em 16 de março
do mesmo ano, após ter feito o elogio de São Lázaro, com a orientação de São Vicente de
Paulo
102
, que ainda não era santo.
103
Com este, Bossuet teve relações de amizade, nculo
este que durou até a morte de São Vicente de Paulo, e que o influenciou profundamente.
Com o mestre e amigo o novo padre aprendeu “a se desligar da sutileza e da e
speculação
para se conduzir à ação e ao apostolado”. Como predicador, Bossuet “aprendeu as
verdadeiras características da eloqüência evangélica”.
104
Bossuet em Metz: um representante da Contra
-
Reforma na França
Na primeira metade do século XVI, diante do catolicismo surgiram as Igrejas
protestantes: a Igreja luterana, as Igrejas reformadas e a Igreja anglicana. Esta revolução
religiosa, denominada de Reforma, rompeu definitivamente com a unidade religiosa que no
Ocidente a Igreja romana desfrutava até então. Tal movimento religioso fez com que uma
parte considerável da Europa católica se separasse da Igreja romana.
99
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 31
-
32.
100
Cf. ibid., pp. 107
-
108.
101
Cf. CALVET, op. cit., pp. 289
-
290; LAVISSE, op. cit., pp. 107
-
108; GAQUÈRE, 1967, op. cit., p. 6.
102
Cf. ibid.
103
Vicente de Paulo faleceu em setembro de 1660 e foi canonizado somente em 16 de junho de 1737, pelo
papa Clément XII.
104
CALVET, op. cit., p. 290.
26
Bossuet nasceu e viveu num tempo de embates doutrinais, na arena político-
religiosa, em meio ao contexto da Contra-Reforma. Como observa François Gaquère, é
preciso considerar “o fato de que Bossuet adornou a cena do mundo, nesta primeira metade
do século XVII em que florescia na França uma verdadeira Renascença católica”.
105
Em
seu tempo, a Igreja romana utilizou-se de vários expedientes para recuperar os seus fiéis.
Foi em uma “torrente de vida cristã renascente (...) de tempestade, que seria trazido
Jacques
-Bénigne Bossuet; foi no barulho destas vitórias, jamais definitivas da fé, que ele
seria embalado, por ocasião de seu nascimento providencial,
no ano de 1627”.
106
Os ancestrais de Bossuet, tanto do ramo paterno como do materno, foram
camponeses elevados à burguesia, desta à magistratura e, finalmente, à nobreza de
robe.
Seus avós, tios e primos ocuparam cargos de grande importância. Fizeram alian
ças,
cultivaram relações políticas eminentes, o que mais tarde serviria para o favorecer na
sociedade de corte, na fase áurea de Luís XIV. Foram abertas para ele as mais altas
distinções e funções. Os “seus dons oratórios e seus talentos (...) atraíram sobre ele a
atenção da corte, do parlamento, da alta sociedade”. Em 1652, quando Bossuet terminou
os seus estudos no Colégio de Navarra, Nícolas Cornet, objetivando mantê-lo em Paris,
chegou a oferecer
-lhe um cargo da mais alta importância. Porém, como o serv
iço da Igreja
e a conversão dos protestantes eram a sua maior paixão, ele se sentia atraído por Metz,
onde coincidentemente vivia a sua família.
107
Assim, alguns meses depois de ter sido
ordenado padre, esse jovem cônego foi para Metz, e com a ajuda de seu pai recebeu a
nomeação de arquidiácono da igreja desta cidade.
108
Segundo Sainte-Beuve, “Bossuet se
conduzia como um jovem militante que, em lugar de aceitar (...) um posto agradável no
centro e na capital, preferiu (...) transportar as armas da palavra onde estavam o dever e
o perigo”.
109
Metz fazia fronteira com a Alsácia, uma região luterana. Em termos religiosos,
Metz era considerada uma cidade dividida. Aí, havia uma comunidade judaica e,
principalmente, uma Igreja protestante que, por ser muito bem organizada, via sua
importância e influência aumentarem cada vez mais.
110
105
GAQUÈRE, 1965, op. cit., p. 9.
106
ibid., p. 11.
107
Cf. GAQUÈRE, 1967, op. cit., pp. 6
-
7.
108
Cf. CALVET, op.
cit., p. 290.
109
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 32.
110
Cf. GAQUÈRE François. Le dialogue irénique Bossuet –
Leibiniz
: La reúnion des Eglises en échec (1691
1702).
Paris: Beauchesne, 1966, pp. 5
-
6. De acordo com Gaquère, após a Fronda, “em vão, o clero ca
tólico,
dividido, e mal regido tentou reagir. Em vão, os numerosos religiosos da cidade e os regentes de seus
27
Entre católicos e protestantes, por muito tempo, reinou “um pacto relativo e um
certo acordo cívico”.
111
No entanto, em meados do século XVII, uma fortíssima hostilidade
foi aumentando cada vez mais entre estes grupos. Os protestantes, fortalecidos pelo Edito
de Nantes, que estabelecia a tolerância, aumentaram suas escolas; seus pastores atacavam
publicamente as práticas católicas. Como resultado, o pastor francês Paul Ferry conseguiu
conve
rter muitos católicos ao protestantismo. De seu lado, o clero católico, cheio de zelo,
cuidava para que seus fiéis não se tornassem protestantes. Foi esta nuvem de hostilidade,
esta conjuntura complexa e explosiva, que Bossuet encontrou quando chegou em Metz no
ano de 1652. Como observa Gaquère a respeito de Bossuet, “um temperamento de
conciliador, herdado de seus ancestrais, uma competência manifestada em seus primeiros
escritos faziam com que ninguém melhor do que ele fosse mais qualificado para assumir
semelhante tarefa”.
112
O contato de Bossuet com os protestantes, em Metz, foi cotidiano. Desde os 25
anos, o jovem estudante assumiu a posição que o acompanhou pelo resto de sua vida:
defender a ortodoxia. Diante da crítica que a religião católica recebia dos protestantes,
Bossuet saía em sua defesa. Ele nunca parou de pregar, buscando instruir e converter. O
jovem cônego empenhava-se em converter judeus e protestantes.
113
Neste período, os
teólogos recorriam a meios suaves para converter os protestantes france
ses.
Em sua crítica à Reforma e aos protestantes, Bossuet tomou o pastor Paul Ferry
como seu primeiro interlocutor. No final de 1654, Paul Ferry publicou o seu
Catéchisme
general de la réformation, no qual apontava os erros da Igreja católica, como també
m
mostrava
-se um grande defensor da Reforma. Em tom de provocação, Paul Ferry mostrava
que a Igreja católica errou e errava freqüentemente; que, devido aos erros e abusos
existentes na Igreja católica, houve a necessidade da Reforma para corrigir esses erros e
restabelecer a pureza da Igreja pregada e formada por Jesus Cristo e os apóstolos.
114
No
colégios dos Jesuítas inauguraram na Catedral conferências contraditórias semanais, para confundir a heresia.
(...) Metz, que os dissidentes declarariam ao rei Luís XIV, em 1663, ‘cidade semi-dividida’ entre eles e os
católicos, era o limite da Alsácia luterana, tornada uma praça forte da Reforma, um campo-fechado onde
luteranos e calvinistas, a princípio separados, depois reunidos, comprimiam de perto os defensores da igreja
romana. (...) Na metade do século XVII, os reformados de Metz, cujo número alcançava 10 000, quase um
terço da população total, eram uma minoria entre o povo, mas contavam em suas fileiras uma grande parte de
famílias nobres, disseminadas nos castelos das vizinhanças, e a metade dos burgueses ricos da cidade. (...)
apoiados pelo Edito de Nantes, e fortalecidos de seus direitos, eles podiam afrontar” o governante.
GAQUÈRE, 1967, op. cit., pp. 13
-
14.
111
ibid., p. 14.
112
ibid., p. 17.
113
Cf. ibid., pp. 10
-
11, 18, 21.
114
Cf. ibid., pp. 22
-
23, 37
-
39.
28
ano seguinte, Bossuet escreveu a sua Réfutation
como um combate ao
Catéchisme
. Desde a
sua
Réfutation
ao
Catéchisme
de Paul Ferry, “o jovem doutor e teólogo aparecia como o
principal defensor da doutrina católica contra a heresia”.
115
Em Metz, em meio aos seus
“triunfos oratórios”, para refutar o
Catéchisme
de Paul Ferry, Bossuet construiu suas
primeiras armas como teólogo. Esta refutação, por um lado, foi muito bem acolhida pela
Igreja católica, que reconheceu em Bossuet o seu grande defensor, por outro, mostrava aos
protestantes um adversário temível.
116
Os sete anos que Bossuet permaneceu em Metz foram de extrema importância. Pois
foram constituídas a sua cultura e a sua formação em contato com a realidade, como
também as linhas diretrizes de seu pensamento foram aí concluídas. Em Metz, ele retomou
e deu continuidade aos seus estudos teológicos.
117
Teve muito contato com o povo,
inclusive com os protestantes que encontrava pelo caminho por serem numerosos nesta
cidade. Foi também que suas primeiras armas de controvérsias foram feitas
118
; e onde
ele concebeu e pregou seus primeiros sermões e panegíricos.
Bossuet orador
Atendendo ao convite de São Vicente de Paulo, em 1659, Bossuet passou a residir
em Paris. Porém, sua antiga residência foi conservada em Metz, onde ele retornava com
freqüência. Por meio de seu pai e de seu tio, Bossuet pôde manter excelentes relações com
a alta sociedade.
119
Em Paris, a sua eloqüência teve um destaque notável. Ele fez inúmeras
predicações nesta capital: pronunciava orações fúnebres e pregava eventos e quaresma.
120
A repercussão de seu prestígio foi tanta que “Ana d’Áustria, a rainha-mãe, e Mazarino,
vieram ouvi-lo pregar em sua Catedral”.
121
Logo, tornou-se o predicador predileto de Ana
d’Áustria: em 1658 ou 1659 Bossuet pregou o Panégyrique de Sainte Thérèse diante
dela.
122
Em 1661 passou a ser considerado como o maior dos oradores sacros da França. A
sua
Carême du Louvre, de 1662, consagrou a sua autoridade. E com isso, em seguida,
passou a ser convidado com freqüência para pregar diante da corte como também nas
115
GAQUÈRE, 1967, op. cit., p. 32.
116
Cf. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 4.
117
Cf. GAQUÈRE, 1966, op. cit., p. 9.
118
Cf. CALVET, op. cit., p. 290; SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 32.
119
Cf. GAQUÈRE, 1967, op. cit., pp. 11
-
12; CALVET, op. cit., pp. 291
-
292.
120
Cf. LAVISSE, op. cit., pp. 107
-
108; CHARBONNEL, op. cit., p. 5.
121
GAQUÈRE, 1967, op. cit., p. 11.
122
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 51.
29
grandes comunidades de Paris. Com trinta e quatro anos Bossuet já “era um orador
completo”. Por dez anos, de 1660 a 1669, Bossuet foi o pregador em voga nas grandes
igrejas e na capela real.
123
Em 1669, ele foi convidado para pronunciar a Oraison funèbre
de Henriette
-
Marie
.
Como nos faz ver Sainte-Beuve, “Bossuet é um talento anterior de origem e de
formação a Luís XIV, mas para seu acabamento e sua perfeição ele deveu muito a esse
jovem rei”. Quando este ouviu Bossuet pregar pela primeira vez ficou maravilhado e teve
um procedimento condizente com todo esse encantamento: “ele fez escrever ao pai de
Bossuet para felicitá-lo por ter um tal f
ilho”.
124
O grande orador sacro, além de dever a ele
próprio e ao espírito que o inspirava, devia ao jovem rei que reconheceu seu talento e
sempre o apoiou. Ainda muito jovem, Luís XIV foi muito útil a ele. Quando Bossuet e
Luís XIV se encontraram, a confiança que se estabeleceu entre um e outro foi tal que, no
sentimento de Bossuet ele “encontrou seu monarca, o rei conforme seu coração”; para Luís
XIV, ele tinha encontrado o “seu bispo, seu prelado, por sua vez piedoso e político, não
somente seu orador sacro, solene e autorizado, mas seu conselheiro de Estado
eclesiástico”.
125
Preceptorado
A eloqüência de Bossuet foi muito apreciada na corte. Os seus sermões foram aí
muito aplaudidos pelos cortesãos. Luís XIV, que tinha uma alta capacidade de julgamento,
log
o lhe deu sinais de sua estima e reconhecimento de seu prestígio. Em 1669, três dias
após ter pronunciado a Oraison funèbre de Henriette-Marie, reine de la Grande-
Bretagne,
Bossuet foi nomeado por Luís XIV para o bispado de Condon. Antes de tomar posse, em
1670, o Rei Sol confiou a Bossuet um lugar muito importante. No juízo de Luís XIV,
Bossuet era a pessoa mais adequada para instruir o seu filho, o herdeiro da coroa. Desta
forma, Bossuet foi escolhido pelo rei para ser o
preceptor
do Delfim.
126
Nos últimos
dias
deste ano Bossuet começou a exercer o preceptorado.
127
123
Cf. CALVET, op. cit., pp. 291
-
292; SA
INTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 43
-
45.
124
ibid., pp. 49, 52.
125
ibid., p. 113.
126
Cf. LAVISSE, op. cit., pp. 107-108; CHARBONNEL, op. cit., p. 5; CALVET, op. cit., pp. 291-
292;
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 4, 6.
127
Cf. LE BRUN, Jacques. “Introduction”. In: BOSSUET, Jacques-
Bénigne.
Politique tirée des propres
paroles de l’Ecriture Sainte
.
Genève: Librairie Droz, 1967,
p. 11.
30
A educação do Delfim durou dez anos, de 1670 a 1681. Para cumprir esta função de
educador, e fazê-la da melhor maneira possível, Bossuet retomou os estudos que tinha
abandonado muito tempo.
128
Em seu programa de preceptorado Bossuet valorizou a
história e a política. Deu maior destaque à educação moral e religiosa. Por ser padre,
procurava “inspirar em seu aluno uma piedade eclesiástica, mas ele se dedicou a lhe
mostrar na religião a regra suprema da conduta de um rei”. Bossuet procurava ensinar tudo
pessoalmente, com o auxílio de seu suplente Daniel Huet, para, assim, garantir a unidade
desta educação. Escreveu diversos livros visando uma melhor formação de seu aluno. Para
lhe fornecer uma visão mais geral a respeito da história dos povos, escreveu os
Discours
sur l’histoire universelle; buscando fornecer ao príncipe noções de filosofia, redigiu o
Traité de la connaissance de Dieu et de soi même; com o propósito de inseri-lo nos
princípios do governo dos povos”, escreveu os seis primeiros livros da Politique tirée des
propres paroles de l’Ecriture Sainte.
129
Os Discours e a Politique são suas maiores obras.
Neste período, Bossuet escreveu também várias pequenas obras de controvérsia, em que se
defendia
dos ataques dos protestantes.
130
O aluno de Bossuet era desatento e indolente.
131
Segundo Lavisse, Bossuet
“dedicou dez anos de sua vida à educação de um dos mais medíocres alunos”.
132
Porém,
uma coisa é certa, se o aluno não soube aproveitar todo o esforço qu
e seu mestre dedicou a
sua educação, Bossuet, pelo contrário, retirou um enorme proveito dela. Aos quarenta e
três anos Bossuet retomou os estudos profanos que tinha abandonado muito tempo,
assim ele “adquiriu um conhecimento de duas antiguidades. Teólogo por sua vez e
humanista, ele se tornou (...) um verdadeiro clássico, tendo feito na consciência cristã a
síntese harmoniosa das duas sabedorias, a pagã e a cristã”. No período do preceptorado
Bossuet residiu na corte. No entanto, ele não foi contaminado pelo espírito cortesão. “Em
Versalhes ele se conservava à parte na ‘ala dos filósofos’”.
133
128
Cf. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 7.
129
CALVET, op. cit., pp. 292
-
293.
130
Cf. LA BROISE, René.
Bossuet et la Bibl
e
. Genève: Slatkine Reprints, 1971,
p. XXXII.
131
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 101.
132
LAVISSE, op. cit., p. 108. O Delfim não foi um bom aluno. Não soube aproveitar tudo o que o seu mestre
esforçou-se para lhe ensinar. Nascido em 1661, portanto com nove anos, segundo Calvet, “ele era lento de
espírito, indiferente, distraído e às vezes de um humor bizarro. Bossuet não chega a despertá-lo nem fazer
com que suas idéias o interesse”. No entanto, tornou-se impossível saber ao certo se Bossuet perdeu
total
mente o tempo que dedicou na formação de quem seria o futuro rei, pois, “seu aluno morreu em 1711
sem ter reinado, não se pode dizer que essa educação fracassou radicalmente”.
CALVET, op. cit., p. 292.
133
ibid., p. 93.
31
Bossuet adquiriu uma reputação tão brilhante que a
Académie Française
desejou tê
-
lo como um de seus integrantes, recebendo-o em 1671. O seu nome está incluído entre
os
membros de que mais se orgulhava a Academia.
Bispado de Meaux
Ao término do preceptorado, em 2 de março de 1681, por recompensa, Luís XIV
nomeou Bossuet ao bispado de Meaux, onde permaneceu até a sua morte, em 1704.
134
A eloqüência de Bossuet não foi
esquecida pela corte. Era a ele que todos recorriam
nas circunstâncias mais importantes. Em 1681 explode a questão galicana: o conflito entre
Luís XIV e o papa. Uma Assembléia Geral do Clero é então reunida. A abertura desta
assembléia, em 9 de novembro deste ano, é feita por Bossuet por meio de seu Sermon sur
l’Unité de l’Eglise. Em 1682, a Assembléia é concluída com a Déclaration des quatre
articles
, em que Bossuet defende as liberdades da Igreja galicana. Neste ano, Bossuet
escreve ainda o
Traité de la c
ommunion sous les deux espéces
e
Carême à la cour
.
Bossuet foi convocado a pronunciar as orações fúnebres das pessoas mais ilustres
da França. Pronunciou a Oraison funèbre de Marie-
Therèse
em 1683, a Oraison funèbre
de Anne de Gonzague em 1685, a Oraison funèbre de Michel Le Tellier em 1686, a
Oraison funèbre de Madame du Blé d’Uxelles no mesmo ano, e a célebre Oraison funèbre
de Louis de Bourbon, prince de Condé, em 1687. Esta foi, por sua vez, a última oração
fúnebre pronunciada por ele. Todos o reconheci
am como o “chefe da Igreja da França”.
135
Após terminar a Oraison funèbre de Louis de Bourbon, prince de Condé, Bossuet,
com sessenta anos, cansado do mundo de triunfos e de glória, resolveu se dedicar à
instrução e ao zelo da diocese de Meaux a qual, em sua concepção, Deus lhe confiou e que
ali dedicaria os últimos anos de sua vida. Ele subia no púlpito somente para pregar a
religião aos seus diocesanos. Nunca deixou que nada o impedisse de celebrar as grandes
festas. Como um padre, anunciava a santa palavra a seu povo. Antes de pregar os sermões
Bossuet relia a Bíblia ou Santo Agostinho. Ele resolveu terminar a sua vida se dedicando
aos trabalhos de caridade pastoral.
136
134
Cf. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op.
cit., p. 8; LAVISSE, op. cit., p. 108.
135
CALVET, op. cit., p. 294.
136
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 71, 74.
Conforme Dussault, “ele descia para fazer o catecismo às
crianças, e sobretudo aos pobres, e não se achava rebaixado por esta função, tão digna de um bispo. Era um
espetáculo raro e tocante, ver o grande Bossuet, transportado da capela de Versailles em uma Igreja da aldeia,
ensinando os camponeses a suportar seus males com paciência. Reunia com ternura suas jovens famílias em
32
Como bispo de Meaux, Bossuet se incumbia de várias atividades visando pregar o
evangel
ho. Em Meaux, “ele se aplicava a administrar, a visitar e a evangelizar por seus
sermões, suas cartas pastorais, e por um catecismo que ele próprio quis redigir”
137
: o
Catéchisme du diocese de Meaux, de 1687. Em sua vida pastoral em Meaux Bossuet se
mostrava
“o mais paternal dos bispos”. Entre outros casos, “ele escreveu ao chanceler para
solicitar a graça de um pobre pastor que foi homicida por azar no caso de uma justa
defesa”.
138
Em busca da unidade religiosa, Bossuet redigiu várias obras para polemizar com
os
protestantes, sobretudo com o pastor Pierre Jurieu: a Histoire des variations des Eglises
protestants
em 1688, a Explication de l’Apocalypse, Avertissements aux protestants (I, II,
III)
em 1689, Avertissements aux protestants (IV, V, VI) e Défense de l’Histoire des
variations
1690-1691. De 1691 a 1701 corresponde-se com Leibniz para a reunião das
Igrejas.
Nos últimos anos de sua vida, para defender suas idéias contra os adversários,
Bossuet se engajou em várias polêmicas. Em suas Maximes et réflexions sur la comédie de
1694, ele baniu o teatro
139
, como também a poesia e a filosofia em seu Traité de la
concupiscence
de 1694
140
; em sua Défense de la tradition et des Saints Pères perseguiu os
novos críticos da Bíblia, encarnados na pessoa de Richard Simon
141
; na Conferência de
Issy de março 1695, em que sustenta os
Trente
-quatre articles contre le quietisme, em sua
torno dele. Apreciava a inocência das crianças e a simplicidade dos pais, e encontrava em sua simplicidade,
em seus movimentos, em suas afeições, esta verdade preciosa, que ele buscava inutilmente na corte, e tão
raramente nos homens. Retirado em seu gabinete, desde que podia dispor de alguns instante, ele continuava
a preencher os deveres de pastor e de pai; e sua porta estava sempre aberta aos infelizes que procuravam
instruções, consolações ou socorros; (...) O estudo do Evangelho, que este prelado tão estudioso devia
preferir a todos os outros, tinha ensinado a Bossuet que a obrigação de todas as horas, para aquele que deve
anunciar aos homens o Deus de bondade e de justiça, é de abrir seus braços àqueles que sofrem e de enxugar
suas lágrimas”.
DUSSAULT, in BOSSUET, 1
874, op. cit., p. 16.
137
CALVET, op. cit., p. 293.
138
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 91.
139
Bossuet não ignorou completamente o teatro; quando jovem, com Racine, o amigo, assistia às peças de
Corneille. CALVET, op. cit., pp. 289-290. Porém, em sua velhice o condenou. De acordo com Calvet, “em
seu opúsculo intitulado Maximes et réflexions sur la comédie de 1694, Bossuet se mostrou muito
intransigente, condenando o teatro de seu tempo. Para ele “o teatro francês de hoje, de Corneille, Quinault,
Racine e Molière, somente fazia insitar as paixões e não fornecia nenhum remédio para acalmar as emoções
que ele sublevou. É assim que Bossuet condena Molière em termos exaltados”. ibid., p. 304.
140
Bossuet criticou a filosofia. Na verdade, segundo Lavisse, “ele a reprovava como perigosa. (...) Ele a
desprezava como inútil: ‘nosso excelente mestre Jesus Cristo determinou todas as coisas; o cristão não
tem nada a buscar’”. LAVISSE, op. cit., p. 111.
141
Como observa Sainte-Beuve, “os trabalhos críticos de Richard Simon sobre o Antigo e o Novo
Testamento, suas interpretações históricas e audaciosas sob forma literária, e as explicações filosóficas que aí
eram um germe, lhe fizeram, sobretudo, soltar gritos de alarmes: ele trabalha até o último momento para
refutá
-lo, e a fazer condenar e suprimir seus livros pela autoridade eclesiástica e secular”.
SAINTE
-
BEUVE,
1928, op. cit., pp. 89
-
90.
33
Instruction sur les états d’oraison de 1697, e Relation sur le quietisme de 1698, manteve
uma encarniçada perseguição ao quietismo, na pessoa de Fénelon
.
Em meio a essas discussões penosas, sentindo que sua morte estava muito próxima,
sem abandonar a polêmica, Bossuet passou a se dedicar mais à poesia que nele estava
contida até este momento. Essa poesia se difundia em suas cartas de direção, como também
em suas obras de piedade, entre elas as Meditations sur l’Evangile, de 1695, as
Elevations
sur les mystères
, do mesmo ano, e a
Preparation à la mort.
142
Aos setenta e quatro e setenta e cinco anos Bossuet pregou os seus últimos
sermões: no dia de todos os santos, em de novembro de 1701, ele pregou o sermão da
Beatitude Eterna; e no domingo de Paixão, em 2 de abril de 1702, para a abertura do
jubileu, ele pregou um grande sermão na catedral de Meaux.
143
Ao término, ele descia do
púlpito, e, mesmo não dando sinais de fadiga, por precaução, colocavam-no na cama para
se repousar até à noite. Todos os seus diocesanos vinham visitá-lo, e ele os edificava ali
mesmo, “após sua jornada dominical e pastoral”.
144
Nos últimos anos de sua vida, Bossuet padeceu com a doença que o matou, a gota.
Tal doença “parecia então bem mais assustadora que hoje, pois o único gênero de operação
que se praticava era quase sinônimo de morte. (...) a febre com uma ligeira perturbação de
cabeça o agitava durante os dias e as noites que segu
iam”.
145
Mesmo se sentindo fraco,
devido à doença que se encontrava num estado tal chegando a lhe causar decadência
psíquica, fazia questão de permanecer em Versailles, para solicitar favores a sua família,
sobretudo ao sobrinho, “que parecia ser uma pessoa seca, egoísta e exigente”.
146
Bossuet
não se encontrava firme sobre os seus pés quando deu a comunhão à duquesa da Borgonha,
em 6 de maio de 1703. No mesmo ano, em 15 de agosto, no dia da Assunção, “querendo
assistir a uma procissão da Corte, ele deu um espe
táculo que afligiu os seus amigos”.
147
142
Cf. CALVET, op. cit., p. 295.
143
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 91.
144
ibid., p. 120.
145
ibid., p. 92.
146
ibid.
147
ibid., p. 93; Como observa Gaquère, “ele que teve tanto vigor passou a ser torturado pela doença, a dor
que o perseguia. ‘É preciso deixá-lo morrer; ele não irá muito longe!’ aconselhava finalmente seu cruel
antagonista, Richard Simon. ‘Apenas firme sobre as pernas, conta Paul Hazard, com um embaraço tocante
ele ensaiava fazer sua corte ao mestre. (...) e os cortesãos zombavam desse grande velho debilitado, um
pouco ridículo e atrapalhado. ‘Ele quer então morrer na corte?’ murmurava a pouco compadecida Madame de
Maintenon
. Em 1703, na procissão de Assunção, a qual ele quis assistir, ele um triste espetáculo que
afligia seus amigos (...) ‘coragem, Monsieur de Meaux’, lhe dizia Madame ao longo do caminho (...) De
outros: ‘Ah! Pobre senhor de Meaux !’ (...) Porque ele não vai morrer em casa!’”. GAQUÈRE, 1966, op.
cit., p. 245.
34
Em sua velhice, Bossuet desejou fazer versos religiosos. Por isso, dedicou-se a
traduzir alguns dos salmos para o francês. A partir do momento em que sentiu que o
término de sua vida se aproximava, passou a fazer uma me
ditação perpétua da Escritura.
148
Ele recitava com freqüência o salmo XXI: “meu Deus, meu Deus, lance sobre mim o vosso
olhar; por que me abandonastes?”.
149
Era sob a meditação deste salmo, chamado por ele de
“o salmo da morte, o salmo do abandono”, que ele dormia e acordava.
150
No dia de sua
morte, 12 de abril de 1704, em seus últimos minutos de vida, o abade Le Dieu, seu
secretário, falava-lhe sobre a sua glória. Bossuet encontrou forças e o interrompeu
severamente lhe dizendo: “‘pare esse discurso; peçamos perdão a Deus de nossos
pecados’”.
151
Ao final de sua vida, o sofrimento obrigou-o a deixar a sua pena.
152
Em sua velhice
Bossuet ficou sozinho. De acordo com Gaquère, “os poderosos deste mundo sobre os quais
ele confiava para agir, o abandonaram”.
153
No entanto, a morte de Bossuet foi lamentada
por toda a Igreja. A eloqüência, a doutrina e toda a dedicação de Bossuet pela Igreja têm
sido conservadas na memória desta. Ela tem muito respeito por suas obras e grande
importância a sua autoridade nas matérias de fé. Bossuet foi o mais corajoso defensor da
religião católica. Esta aprovou o elogio que La Bruyère fez a ele no discurso de recepção à
Academia Francesa, em 1671. Esta Academia estava repleta de ouvintes, La Bruyère, no
momento em que nomeou Bossuet, bradou: “falemos previamente a linguagem da
posteridade, um Padre da Igreja!”.
154
Bossuet foi considerado o maior orador sacro como
também um Padre da Igreja, como seu amigo La Bruyère o chamava.
155
Autores e obras que influenciaram Bossuet
Para a compreensão dos confrontos intelectuais daquele que encarnou o espírito da
polêmica teológico-religiosa na segunda metade do século XVII, é preciso recordar, com
148
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 94.
149
apud SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 94.
150
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 94.
151
CALVET, op. cit., p. 295.
152
Cf. GAQUÈRE, 1966, op. cit., pp. 245
-2
46.
153
ibid., p. 247. De acordo com Gaquère, “quando (...) o eleitor de Hanovre tornou-se rei da Inglaterra,
recusou os serviços desse velho doente. Como ele não freqüentava o templo e não se aproximava dos
sacramentos” foi considerado “um descrente; e os pastores se posicionaram contra ele”. Em sua morte, o
enterraram “sem pompa, sem cortejo, sem assistentes, sem compaixão: ‘antes como um bandido que como
um homem que foi o ornamento de sua pátria’”. ibid.
154
apud DUSSAULT,
in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 1
6.
155
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 101.
35
René de la Broise, em Bossuet et la Bible, que ele “é talvez o maior de nossos autores
clássicos”.
156
Neste sentido, é de fundamental importância sabermos quem leu e o que ele
leu, e como leu os escritores políticos e intelectuais que sobre ele exerceram influência.
Devido ao fato de Bossuet ter sido destinado desde cedo aos estudos eclesiásticos,
tratou de fazer to
das as leituras que, em seu entendimento, seriam necessárias e úteis a este
ministério tão importante. Assim sendo, dedicou-se a fazer “desde a leitura da Bíblia até a
dos autores profanos, e desde os Padres da Igreja até os teólogos da escola e os escrito
res
místicos”.
157
Como Bossuet nasceu no seio “de uma boa e antiga família burguesa de
magistrados e parlamentares”, ele foi criado junto aos livros e bibliotecas domésticas.
158
O pai de Bossuet, mesmo morando em Metz, devido a seu trabalho, conservava um
gabi
nete em Dijon, onde vinha sempre que podia para visitar a sua família. Certo dia, neste
gabinete, o jovem Bossuet encontrou e abriu uma Bíblia latina pela primeira vez. Foi
profunda a impressão que ele recebeu. Neste instante, imergiu nela e nunca mais sai
u.
Nesta época, o jovem Bossuet estava em seu ano de retórica; o estudo das belas letras
ocupava o primeiro lugar em seu pensamento. Porém, no momento em que ele viu uma
Bíblia latina, e a leu pela primeira vez, o estudo das belas letras imediatamente perdeu seu
posto. A impressão de luz e de felicidade que ele sentiu naquele momento sempre o
acompanhou até o último dia de sua vida. Foi como se ele tivesse se revelado a si mesmo.
Imediatamente “ele se torna o filho e logo o homem da Escritura e da palavra santa”. Era
na Bíblia que ele se apoiava em todas as suas atividades de eclesiástico e de doutor: teses,
predicações, conferências e controvérsias. Na Bíblia, Bossuet “punha todo o sentido e toda
a doutrina, ele encontrava toda sua essência”.
159
A paixão que sentia pelos livros
sagrados fazia com que esse prelado se dedicasse a celebrar a palavra de Deus com a
eloqüência dos profetas e a pregar com o mesmo zelo dos apóstolos.
160
A
Sagrada Escritura teve um papel de destaque na formação de Bossuet. Segundo
La Broise, “o grande escritor não parou de estudar a palavra de Deus, de pregá-la, ensiná-
la, defendê-la, de nela inspirar-se em todas as suas ações e em todos os seus trabalhos”. A
parte principal da formação de Bossuet vem da Bíblia. Este foi o livro que exerceu maior
influência em seu estilo. De fato, o estilo e a linguagem de Bossuet são essencialmente
156
LA BROISE, op. cit., p. VII.
157
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 1.
158
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 29.
159
Cf. ibid., pp. 66, 105. A este respeito ver LAVISSE, op. cit., p. 108.
160
Cf. DUSSAULT,
in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 1.
36
bíblicos. Em sua juventude, ele realmente havia se dedicado com afinco aos estudos
bíblicos. Lia e relia a Escritura.
161
Bossuet foi um aluno admirável do Colégio de Navarra. Assim como o padre
Nicolas Cornet, mestre e amigo “ele ‘se alimentava e se saciava da melhor essência do
cristianismo’”. Para uma melhor compreensão da Escritura ele estudava os Padres da
Igreja. Pois, na concepção de Bossuet, eles eram melhores que os novos intérpretes. Para
Bossuet, somente neles ele encontrava a pura substância da religião e a essência do
cristianismo. Bossuet foi imensamente alimentado pela religião vivida e expressada pelos
Padres da Igreja.
162
Encontra-se com freqüência, em suas notas e sermões, citações de
vários deles, entre os quais Clemente de Alexandria e o papa São Gregório. Contudo,
quatro padres, três latinos e um grego, foram os seus preferidos. Tertuliano, São Cipriano,
São João Crisóstomo e principalmente San
to Agostinho.
163
Os anos em que Bossuet se retirou em Metz para estudar lhe renderam bons frutos.
Serviram para alimentar o seu talento. Lia e meditava a Bíblia. Juntamente com seu santo
livro tinha Santo Agostinho sempre presente. Bossuet “o conhecia a fundo como o grande
reservatório de princípios da teologia”.
164
Dos doutores da Igreja, a sua maior admiração
era por Santo Agostinho. “Ele o sabia de cor, o citava sem cessar”.
165
Para Bossuet, era
neste Padre da Igreja que ele encontrava a resposta a todas as suas dificuldades. Por isso,
onde quer que ele fosse o levava consigo.
166
O fato de Bossuet não ser somente doutor,
mas também orador fazia com que ele não separasse de Santo Agostinho, São João
Crisóstomo. Com este, Bossuet aprendia a interpretar a Santa Escritura de forma mais
apropriada à cátedra.
167
Na concepção de Bossuet, “esse Padre era o maior pregador da
Igreja”.
168
161
Cf. LA BROISE, op. cit., pp.
VIII
-IX, XXV. Segundo este autor, “se nós percorrermos a vida e as obras
de Bossuet, descobriremos (...) que a
Escritura
é ‘a essência de tudo’. Desde sua juventude, ele começa a
pregá
-la; co
nvocá
-a perto do Delfim, empregá-a como base de seu ensinamento; daí ele tira as duas
principais obras compostas na ocasião dessa educação real, l’Histoire universelle e a
Politique
; estabelecido
em sua diocese de Meux e encarregado da direção das almas (...) aproveita seus menores tempos vagos para
redigir e publicar seus
Comentaires
; investido por seu cargo de bispo defensor da verdade busca na
Escritura
armas para sua polêmica. Ele nunca mostrou mais ardor na luta do que quando ele via os Livros santos s
erem
ameaçados pela crítica temerária”. LA BROISE, op. cit., pp.
IX
-
X.
162
Cf. LAVISSE, op. cit., p. 108.
163
Cf. LA BROISE, op. cit., pp. XXVIII
-
XXIX.
164
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 67.
165
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 1.
166
Cf. ibid.; SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 67.
167
Cf. ibid.
168
apud SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 67.
37
Durante toda a sua vida Bossuet procurou se instruir, e esta preocupação foi maior
no período do preceptorado. Aos quarenta e três anos, ele retomou e ampliou seus
estudos.
169
Bossuet estudou profundamente a literatura latina e grega, para poder exercer
ao mesmo tempo as duas funções, de bispo de Condom e de preceptor do Delfim, com
maior capacidade.
170
Nos dez anos do preceptorado Bossuet retomou os seus estudos
humanísticos com o propósito de oferecer um melhor ensinamento a seu aluno. Esse foi o
período em que ele mais se ocupou das belas letras. Ele lia e relia Homero e Virgílio com
muito entusiasmo. No entanto, mesmo nos anos do preceptorado, em que Bossuet foi
reconduzido de modo favorável à literatura profana, em toda a sua vida ele se alimentou
mais dos autores sagrados que dos profanos.
171
Apesar do entusiasmo de Bossuet pelos
autores antigos, ele não deixou de estudar e de se aprofundar nos estudos bíblicos. Pelo
contrário, foi no período do preceptorado que os estudos sobre os seus livros preferidos
foram mais fecundos.
172
A Escritura foi sempre sua principal e perpétua leitura. Sob ela
Bossuet “aspirava envelhecer e morrer”.
173
Bossuet e seus a
mbientes
Bossuet foi profundamente influenciado pela reforma religiosa. Na primeira metade
do século XVII, houve um imenso desejo de reforma religiosa na França. Este desejo
provocou um movimento geral com tendência a renovar e aprofundar o sentimento cri
stão.
Entre as correntes religiosas surgidas nessa época, a corrente católica e a corrente
jansenista foram as mais importantes. A corrente formada por São Francisco de Sales, no
princípio do século XVII, recebeu várias afluentes. Entre elas, a afluente or
atória,
difundida por Bérule, e a afluente jesuíta. Com a influência de Bérule, Bourdoise, Olier e
São Vicente de Paulo, instaurou-
se
na sociedade uma vida cristã mais correta. Houve o
esforço de cada um para reformar a sua vida.
174
O espírito mais saudável e incontestável da reforma católica é representado por São
Vicente de Paulo. Ele teve como meta refazer a França cristã. Em um tempo de guerra e de
fome ele foi o apóstolo da caridade, preocupou
-
se com a renovação das almas. Tornou
-
se o
169
Cf. LAVISSE, op. cit., p. 108.
170
Cf. LA BROISE, op. cit., pp. XXXI
-
XXXII.
171
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 30, 76
-
77, 106.
172
Cf. LA BROISE, op. cit., pp. XXXI
-X
XXII.
173
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 106.
174
Cf. CALVET, op. cit., pp. 219
-
220.
38
verdadeiro mestre das consciências católicas. Aproveitou para combater o misticismo e o
jansenismo, como também em reformar a prédica católica, aproximando-a das fontes
evangélicas. Foi nesta escola que Bossuet se formou. Toda a sociedade foi tomada por esta
reforma católica. Dela nasceu um espírito geral com uma concepção cristã da vida. É na
reforma católica que se deve buscar o verdadeiro espírito cristão da qual os mais autênticos
representantes foram São Vicente de Paulo e seu aluno-
discípulo Bossuet.
175
Em toda parte se
estabeleceu um grande número de poderosas confrarias; sendo que
a mais conhecida dentre elas foi a Compagnie du Saint-
Sacrement
. Os homens mais
importantes daquele tempo se reuniam aí. Seu objetivo era defender a decência das Igrejas
e suprimir os escândalos. Sua ação era secreta; ela se sustentava sob a suspeita do poder
régio e despertava o ódio dos libertinos.
176
Bossuet pertencia à Compagnie du Saint-
Sacrement
, sendo influenciado por esse meio devoto.
Por sua característica secreta, a Compagnie du Saint-S
acrement
foi suprimida pelo
poder real. Após esta supressão, passou a existir na clandestinidade. Ela sempre causou
inquietação em Luís XIV que, por lembrar-se da perturbação de sua regência e da
experiência da Fronda, durante toda a sua vida, foi atormentado pela idéia de que os seus
súditos, sem nenhuma forma de controle, se reunissem e promovessem o desenvolvimento
de conspirações. Isto porque, no tempo de seu avô Henrique IV, e nos primeiros anos de
Richelieu, os devotos da Santa-Liga eram amigos da Espanha inimiga da França e
conspiravam contra o seu próprio rei. Porém, nos anos 1650/1660 não era essa a imagem
do devoto do
Saint
-
Sacrement
.
177
Para Bossuet, aderir a esta Companhia
implicaria uma certa escolha moral que por sua vez implicaria certas opções
políticas: era a
afirmação de uma influência da religião nas questões humanas: o mundo é uma realidade
dominada pelo maquiavelismo e o egoísmo, o devoto trabalha para mudar esse mundo:
assistência aos pobres, missões estrangeiras, educação, etc., assim como uma reforma
moral e religiosa: luta contra os duelos, as blasfêmias, as heresias, a libertinagem, apelo à
cruzada, etc., luta que pode ser levada com o auxílio de um poder forte e penetrado
dessas exigências morais...
178
175
Cf. CALVET, op. cit., pp. 220-
221.
Segundo Calvet, antes de Bossuet, a predicação era repleta de erros,
como “abusos de escolástica, de erudição profana e de alusões políticas”. Houve várias tentativas de São
Francisco de Sales, do oratório e dos jesuítas para reformá-la, “e reconduzi-la à decência e à dignidade
evangélica” No entanto todos falharam, e São Vicente de Paulo foi o verdadeiro reformador da predicação
cristã. Ele ensina em seu Petite Méthode a arte de pregar, em que os preceitos de retórica não estão ausentes,
e o fundamental de tudo é que “convém pregar unicamente o Evangelho de Jesus Cristo e é preciso pregar
com o seu coração”. Como aluno aplicado de São Vicente de Paulo, Bossuet aprende e aproveita bem essas
lições em suas predicações. ibid., p. 289.
176
Cf. ibid., pp. 219
-
220.
177
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., pp. VIII
-
IX.
178
ibid.
39
Influenciado pela Compagnie du Saint-
Sacrement
, Bossuet afirmou o papel moral
do soberano quando solicitou em seus textos que ele intercedesse em favor dos pobres, e
contra todas as formas de imoralidade e de irreligião.
No período do preceptorado do Delfim, Bossuet também freqüentou a
Académie
Lamoignon
. Este meio era freqüentado por geógrafos, historiadores, juristas e homens de
letras. Esta academia teve um certo papel político. Entre os seus integrantes estavam
escritores políticos de grande importância, como Le Vayer, Cordemoy e Fleury, o melhor
amigo de Bossuet. Não se sabe se ele a freqüentou antes desse período. Há indícios
concretos de sua presença somente em 14 de dezembro de 1670, quando ele fala a
respeito da eloqüência dos livros sagrados. No entanto, Bossuet teve contato com esses
talentos antes e depois deste período, e isto aparece nos temas de suas obras: “a paz, a
justiça, a agricultura, a população, a simplicidade, um certo primitivismo social”.
179
O período do preceptorado foi também a época do Petit Concile, o que m
arcou
indelevelmente a vida de Bossuet. Neste círculo, criado em 1673, eclesiásticos e eruditos
laicos reuniam-se para discutir questões da Sagrada Escritura, como também de filosofia.
O
Petit
Concile
era composto por homens versados em antiguidade eclesiástica, como
Mabillon e Fénelon, além de teólogos, orientalistas e eruditos. Pélisson e La Bruyère
estavam entre os participantes deste seleto círculo de intelectuais de corte e todos eles, à
sua maneira, escreveram tributos entusiasmados à realeza sagrada. Os principais
personagens do Petit Concile foram Bossuet, indicado como presidente, e o padre Claude
Fleury, como secretário. Bossuet e muitos de seus companheiros do Petit Concile
dedicavam o seu tempo de lazer para comentar a Bíblia.
180
Numa época em que
os
franceses não a liam muito.
Como constata La Broise, Bossuet e seus amigos do
Petit
Concile
incumbiam-se da
tarefa de estudar “a história, a cronologia (...), as antiguidades, e todas as ciências
auxiliares de hermenêutica sagrada, para dar ao texto um comentário (...) claro e conforme
as tradições do passado”.
181
Por desejar estudar os textos blicos com seriedade, Bossuet
sentia ser necessário conhecer as línguas antigas. Estudou a língua grega e a hebraica.
182
A
179
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., pp. IX
-
X.
180
Cf. LA BROISE, op. c
it., p. XXXVI.
181
ibid., pp. XXXII
-
XXXVI.
182
Segundo LA BROISE, Bossuet sabia o grego como ninguém: no
Petit
Concile tinha o codinome de Pai
Grego. Para o hebreu, encontrava-se muitas críticas aqui e ali”. ibid., p. XXXVII. O fato é que quando
Bossuet fez teologia o hebreu não era ensinado ainda nas universidades da França. Então, ele começou a
estudar esta língua após os quarenta anos de idade. Cf. ibid., pp. VII-XVIII, XXXVIII. Como o seu venerado
Santo Agostinho, Bossuet não estudava as línguas clássicas buscando apenas a sua compreensão, mas para
40
história o atraía bem mais que o estudo das línguas. Ele reconhecia, no entanto, a sua
importância.
183
Por seu grande conhecimento sobre a história, Bossuet reinava entre os
eruditos que freqüentavam o
Petit Concile.
184
No período em que foi bispo de Meaux, “Bossuet continuou a interessar-se pelos
est
udos de seus amigos do
Concile
”, como também os de outros eruditos que produziram
trabalhos sobre a Sagrada Escritura. Contra Richard Simon publicou
Commentaires,
Élévations, Meditation, a Défense de la tradition et des Saints Pères. Consultava os santos
P
adres para responder a Richard Simon e a Pierre Jurieu.
185
A
Politique
de Bossuet e o gênero espelhos de príncipes
Todas as obras de Bossuet, que podem ser classificas de políticas, são obras de
circunstâncias. Concordamos com Truchet quando ele diz que “
para apreciar exatamente
la
portée
de cada uma delas, é indispensável levar em conta sua data, seu gênero literário, e a
pessoa ou público ao qual ela é destinada”.
186
A
Politique
foi escrita em duas vezes, separadas por um intervalo de mais de vinte
anos. Bossuet redigiu os seis primeiros livros da
Politique
para instruir o Delfim. Ele
começou a redigi-la no final de 1677, quando o Delfim estava com 17 anos de idade; em
1679 somente os seis primeiros livros estavam concluídos. O fato é que, segundo Le Brun,
“numerosas ocupações e trabalhos mais urgentes vão solicitar Bossuet e obrigá-lo a
remeter para mais tarde o término de sua obra: a conclusão do Discours sur l’Histoire
“‘sustentar invencivelmente a verdade’”. LA BROISE, op. cit., p. XL. Mas era o latim a sua língua
preferida. Ele sabia tão bem o latim que esta parecia ser a sua língua natural. Ele sabia todas as espécies de
latim, o dos autores profanos como o dos Padres da Igreja. Ele fazia um uso bem familiar desta língua.
Segundo Sainte-Beuve, Bossuet “o falava; disputava em latim na escola; escrevia fluentemente cartas latinas
aos prelados estrangeiros com quem se correspondia; as notas das quais ele registrava as margens de seus
livros eram mais freqüentemente em latim. É deste conhecimento aprofundado do latim e do uso excelente
que soube fazer dele que decola em Bossuet o francês novo”. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p
p. 111
-
112.
183
De acordo com La Broise, Bossuet “dedicava-lhe uma ampla parte de seu tempo e de seus trabalhos. Os
Discours sur l’histoire universelle e l’Histoire des variations des Églises protestants supõem uma ciência
vasta, exata, profunda. As notas manuscritas nos revelam uma leitura atenta dos historiadores modernos
como dos antigos. Sabe-se, aliás, que Bossuet não somente estudou a história, mas também a obra de
Ussérius sobre a cronologia, e que ele consultava os trabalhos de Scaliger e de Petau, e mesmo o
in
-
folio
muito menos conhecido do docte génébrard’. Ele pensava que, para melhor compreender a
Escritura
, é
preciso ‘pesquisar as histórias e desenvolver as antiguidades’. A explicação de muitas passagens, sobretudo
de muitos profetas, ‘depende da história, e tanto da leitura dos autores profanos quanto dos Santos Livros’
.
Por isso Bossuet à ocasião encoraja as pesquisas de seus contemporâneos e aplaude a seus sucessos. (...) ele
pressente que o estudo aprofundado do passado daria um impulso novo à ciência da Escritura”. LA BROISE,
op. cit., pp. LX
-LXI.
184
Cf. ibid., p. XLI.
185
Cf. ibid., pp.
XLVII
-
XLVIII.
186
TRUCHET, op. cit., p. 21.
41
Universelle
, a questão do galicanismo, a controvérsia, os grandes debates: Richard Simo
n,
o quietismo, sem contar o cuidado com a diocese de Meaux, relegando a
Politique
no
futuro incerto de trabalhos jamais acabados”.
187
Quando concebeu os seis primeiros livros da
Politique
, o objetivo de Bossuet
consistia em oferecer alguns bons princípios ao jovem que, no momento, seria o futuro rei
da França. Neste sentido, a
Politique
é uma obra de circunstância. Bossuet retomou a obra
em 1700, num período em que a instrução do Delfim não era mais necessária.
188
Até 1701
ele concluiu os quatro últimos livros, os quais podem ser caracterizados como livros de
circunstâncias também, pois neles foi preservada “uma característica pedagógica e moral o
que faz com que a
Politique
não pudesse se constituir em um tratado rigoroso e completo
de ciência política”.
189
No livro primeiro da
Politique
Bossuet trata dos princípios da sociedade entre os
homens; dos livros segundo ao quinto ele fala da autoridade real e de suas características;
ele dedica o livro sexto para tratar dos deveres dos súditos. Nos últimos quatro livros da
Politique
Bossuet trata dos deveres particulares da realeza: os deveres do rei em relação à
religião no livro sétimo, e em relação à justiça no livro oitavo. Bossuet dedica o livro nono
aos recursos da realeza: armas, riqueza, finanças e conselhos. No
décimo livro Bossuet fala
das tentações que perseguem a realeza e as soluções que ela deve recorrer.
A Politique de Bossuet, as
Memórias
de Luís XIV e o livro anteprimeiro da
História do Futuro de Antônio Vieira são textos que se aproximam do gênero liter
ário
espelhos de príncipes. Na verdade, mantêm características residuais dos espelhos
medievais, que se transformaram com o tempo, segundo o avanço de novas concepções da
política. Na
Politique
, ao recorrer à Bíblia para trazer exemplos aos reis franceses, o
método discursivo de Bossuet faz recordar algumas características do gênero literário
medieval. A
Politique
constitui
-
se em uma espécie de catálogo moral, que mostra quais são
os atributos que os reis cristãos devem cultivar e os vícios dos quais devem se afastar. Em
suma, é um catálogo de virtudes morais muito rico, que se incumbe de traçar o ideal ético
da realeza. Em suas
Memórias
, Luís XIV também se utiliza desse estilo moralizante. A
obra é um catecismo político, que um pai zeloso achou por bem colocar à disposição do
187
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. XIV. Conforme o autor, neste período Bossuet concebe as
suas mais importantes obras teóricas: Defensio declarationis Cleri Gallicani, Défense de la Tradition et des
Saints
-
Pères
, e vários tratados compostos para o debate da querela do quietismo. (...) o
Sermon sur l’Unité de
l’Eglise
(...) o
V Avertissement aux Protestants
”. ibid.
, p. XV.
188
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 26.
189
ibid., p. 27.
42
futuro herdeiro da mais fulgurante coroa do mundo. O estilo moralizante dos espelhos de
príncipes também é recorrente no livro anteprimeiro da História do Futuro de Antônio
Vieira, dirigido aos reis de Portugal e da Espanha, respectivamente D. Afonso VI e Filipe
IV.
Como nos demonstram alguns autores, entre eles Quentin Skinner, os espelhos de
príncipes formulam uma complexa escala de virtudes que os reis devem possuir, além dos
vícios que devem repudiar.
190
Do século XIII ao fim do XVI, os espelhos de príncipes
demonstraram que, ao cultivar as virtudes, os reis receberiam as recompensas de Deus para
o seu reino. Se, pelo contrário, entregarem-se às paixões mundanas, que representam os
vícios, atrairiam sobre si e sobre seu reino os mais te
rríveis castigos de Deus.
191
O gênero espelhos de príncipes tem origens antigas, e foi passando por alterações
no decorrer dos séculos, correspondendo aos interesses e valores morais na esfera da
política de cada época.
192
No século XVII, no contexto da chamada “Querela dos Antigos
e dos Modernos”, em que Luís XIV assume a cena central, tanto as obras históricas como
os diversos estilos literários centralizavam-se na imagem do príncipe perfeito, que deveria
“administrar o Estado segundo as virtudes cristãs”.
193
M
arcos Lopes argumenta que,
desde a Antiguidade Clássica se conheceu no Ocidente uma literatura voltada para a
formação moral dos homens de Estado. Na Idade Média os espelhos de príncipes mantêm
esta tradição. Produzidos por clérigos, dedicam-se a realçar as virtudes cristãs para a boa
condução do governo por parte de príncipes, reis e imperadores. (...) A época moderna, à
sua maneira, deu seqüência a este tipo de literatura política. No século XVII, muitos
escritores políticos, defensores do absolutismo, se ocuparam em traçar normas para guiar
os governantes pela via da prudência, da justiça, da caridade e da sabedoria, entre tantas
outras virtudes de um extenso catálogo. (...) De todo o modo, os espelhos de príncipes
modernos, apesar de incorporar elementos novos, mantiveram-se como uma espécie de
catecismo real, trazendo as normas para administrar o Estado, segundo as virtudes
cristãs.
194
A este respeito, observa Barbey que no século XVII “persiste uma boa formação às
tradicionais virtudes cristãs que um Bossuet, por exemplo, educador do Grande Delfim,
não separa das virtudes próprias ao chefe de Estado: além dos deveres morais particulares
ao rei, este divide com todas as obrigações morais cristãs, singularmente a bondade, a
190
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 109
-
122, 134
-
149.
191
Cf. LOPES, 1997, op. cit., pp. 69
-
104.
192
Cf. BARBEY, Jean. Être roi. Son gouvernement en France de Clovis a Louis XVI. Paris: Fayard, 1992,
pp.
82
-
99.
193
Cf. LOPES, 1997, op. cit., pp. 25
-
46.
194
ibid., pp. 12
-
14.
43
piedade e a justiça que iluminarão o governo. Esta mesma palavra de ordem prevalecerá
em seus sucessores”.
195
Não foi por acaso que os historiadores e escritores políticos enveredaram por este
caminho. Na segunda metade do século XVII, o absolutismo atingiu o seu ponto
culminante, e não se deve negar a contribuição desses profissionais ao lento processo da
construção do Estado Moderno. Quase todos os modelos de história, no século XVII, são
discursos engajados que tomam a realeza como o núcleo temático da narrativa.
196
Como
bem lembra Pierre Chaunu “na época moderna, a história está historicamente ligada à
construção do Estado”.
197
Nesta linha de raciocínio, Marcos Lopes também observa que,
“dificilmente, em qualquer tempo, a história foi tão refém do poder. Em qualquer um dos
gêneros que conheceu no Ancien Régime, a história não escapou do cativeiro das lições
morais e das máximas políticas, até porque sua principal função, na época, era pedagógica:
instruir os homens que conduzem a nação. (...) E o tema político por excelência é o do
monarc
a de direito divino”.
198
Não podemos perder de vista que no momento em que Bossuet concebeu o livro
nono da
Politique
o absolutismo de Luís XIV estava por um fio. A sua intolerância
religiosa, exacerbada com a revogação do Edito de Nantes, juntamente com uma política
de guerras de conquista desenfreada fez com que a Europa se lançasse contra ele, não
somente no plano prático, que se revela por meio da formação da Liga de Augsburgo e em
seguida pela guerra desta contra a França, como também no plano intelectual, haja vista
que os seus inimigos lançaram panfletos revolucionários contra ele. Além disso, os males
econômicos advindos da Guerra da Liga de Augsburgo despertaram críticas internas
também. Portanto, nada melhor do que o apelo de Bossuet para que o prínc
ipe cultivasse as
virtudes cristãs, as quais lembravam a semelhança do rei com Cristo e o aspecto sagrado da
realeza para reforçar o seu poder.
195
BARBEY, op. cit., p. 86.
196
LOPES, 1997, op. cit., pp. 25
-
46.
197
apud LOPES, 1997, op. cit., p. 28.
198
LOPES, 1997, op. cit., pp. 34
-
35.
44
CAPÍTULO II
A GUERRA PARA AUMENTAR A GLÓRIA DO GRANDE REI
Neste capítulo faremos um mapeamento do contexto histórico e intelectual a
respeito da política de guerras de Luís XIV e das conseqüências políticas da revogação do
Edito de Nantes para a França.
As guerras de conquista de Luís XIV
O século XVII foi um século de guerras. O desejo de imperialismo dos Habsburgos
da Espanha e da Áustria desencadeou A Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), na qual se
envolveram as maiores potências européias.
No início dessa guerra, visando salvar as liberdades européias das pretensões dos
Habsburgos da Áustria e da
Espanha ao domínio universal, a França, sob Luís XIII, buscou
unir os povos da Europa, subordinando ao fim comum as suas divergências religiosas e
interesses individuais. A tendência de sua política era a de uma unidade. Tornando-se o
centro da resistência, a França estimulou e ordenou os esforços.
199
Depois de 1630, para
conservar a independência da França e as liberdades da Europa contra os Habsburgos, Luís
XIII decide abandonar o pensamento de regulamentação interior do reino. Ele se alia a
Gustavo Adolfo, rei da Suécia introduzindo-o em direção ao Rhin, que, sob sua proteção,
toma vilas na Alsácia.
200
Até o ano de 1635, a França travou a guerra ‘coberta’, que
consistia em reconciliar os rivais dos Habsburgos
201
, enviar-lhes dinheiro e se apossar de
pontos estr
atégicos.
202
199
Cf.
MOUSNIER, Roland.
Les institutions de la france
sous la monarchie absolue.
Tome II. Vol. 2, Paris:
PUF, 1972, p. 9. Segundo Mousnier, “o rei da França se obrigado a interferir de forma crescente de uma
forma ‘coberta’ por auxílios e guarnições militares às províncias Unidas, à Suíça e Cantão da Suíça, aos
príncipes protestantes da Alemanha “para fechar aos espanhóis suas rotas militares entre suas possessões da
Itália e a dos Países Baixos, pela Valteline e a de outros vales e Alpes, que eram grandes vias de passagem
entre a Europa do Mediterrâneo e
a Europa do mar do Norte e do Báltico”. ibid.
200
Cf. ibid.
201
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 296. De acordo com Mousnier, “desde 1629, Richelieu conseguiu concluir
uma trégua entre a Suécia e a Polônia. Mazarino o imitou em 1645, restabelecendo a paz entre a Suécia e a
Dinamarca em Bromsebro. (...) o rei da Suécia, Gustavo Adolfo, de mãos livres desembarcava em Stettin.
Mas faltava-lhe dinheiro. Então o mui católico Cardeal de Richelieu concluiu com o mui luterano Gustavo
45
Com a derrota de seus aliados suecos em Nordlingen, no ano de 1634, a França se
obrigada a entrar na guerra ‘aberta’. Assim, em 1635, ela entra abertamente em guerra
contra a Espanha, e, portanto, com o imperador.
203
A guerra acontece em todas as
fronteiras da França, obrigando o reino a um esforço imensurável, aumentado pelos
subsídios que foi preciso mandar aos portugueses e catalães para auxiliá-los em sua
insurreição contra o rei da Espanha, Filipe IV. Esse grande esforço do reino provocou
célebres revoltas internas, como a revolta dos
Croquants
de Périgord (1637), a revolta dos
Nu
-
Pieds
(1638
-
1639), na Normandia, e a Fronda (1648
-
1653), uma revolta geral.
204
Na Guerra dos Trinta Anos, tanto os franceses como os espanhóis buscam favorecer
as conspirações e as revoltas contra seus inimigos. De um lado, os espanhóis aliam-se aos
grandes sublevados contra os reis franceses. Primeiramente, os espanhóis ajudam Gastão
de Orléans em sua rebelião contra o seu irmão Luís XIII e o primeiro-ministro Rich
elieu.
Depois, durante a Fronda, ocorrida na menoridade de Luís XIV, os espanhóis fornecem ao
príncipe de Condé e aos frondistas regimentos espanhóis que se instalam em Paris. Quando
o príncipe de Condé é expulso da França, ele é acolhido pelos espanhóis. De modo que,
alguns anos depois, ele lutará nas fileiras espanholas contra a França na Batalha das Dunas,
em 1658. Por outro lado, Richelieu, apóia a insurreição dos catalães contra Filipe IV; em
1640, Luís XIII é proclamado conde de Barcelona pelos catalães. Em 1641, Richelieu alia-
se aos portugueses, fornecendo-lhes dinheiro e munições, na insurreição contra o domínio
de Filipe IV em Portugal. Em 1647, Mazarino, primeiro-ministro de Luís XIV, apóia a
revolta napolitana contra o domínio de Filipe IV.
205
No momento em que os franceses e os suecos se entendem, combinando seus
esforços e desfechando uma ofensiva comum, alcança-se a vitória.
206
Em 24 de outubro de
Adolfo um tratado de subsídios (Berwald, 23 de janeiro de 1631) para a manutenção do exército sueco que
deveria invadir a Alemanha e combater o mui católico Habsburgo. A aliança da Suécia e da França durou até
1667. Richelieu renovou as alianças da França com os calvinistas das Províncias Unid
as (1630) e tais acordos
foram revigorados muitas vezes até 1648. Richelieu e depois Mazarino entenderam-se com a Transilvânia,
principado húngaro, mas vassalo dos turcos, e o vassalo dos infiéis, Racoczy, invadiu a Áustria. Richelieu
depois Mazarino encontraram na Alemanha apoios contra o imperador, nomeadamente o de Maximiliano da
Baviera, enciumado e inquieto com as pretensões dos Habsburgos da Espanha sobre o Palatinado, e
constituíram em diferentes ocasiões, entre protestantes e o imperador, uma espécie de terceiro partido
católico alemão”. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 297.
202
Cf. ibid., pp. 296-297. Fato importante é que as razões da Guerra dos Trinta Anos, inicialmente de cunho
aparentemente religioso exclusivo, rapidamente agregaram motivos de natureza política e econômica. O viés
religioso não desaparece, mas deixa de ser determinante.
203
Cf. ibid., p. 297; MOUSNIER, 1972, op. cit., p. 9.
204
Cf. ibid.
205
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 297.
206
Cf. ibid., p. 302. “Turenne e Wrangel, vencedores dos bávaros em Zusmarchausen (maio de 1648),
marcharam sobre Viena quando souberam da assinatura dos tratados de Vestfália”. ibid.
46
1648 são assinados os Tratados de Vestfália, considerados a “Constituição da nova
Europa”.
207
Os Tratados de Vestfália garantem as divisões do Sacro Império Romano-
Germânico e assim o equilíbrio europeu.
208
Os tratados de Vestfália dividem e tornam
impotentes o Império e a Alemanha. Esses tratados são leis do Império, sendo
considerados pelos juristas “como a Constituição do Estado alemão”.
209
Por meio desses
tratados os reis da França e da Suécia passam a ser os responsáveis pelas “liberdades
germânicas”.
210
Os tratados de Vestfália consagram o êxito da França e o papel do
monarca francês como o árbitro da Europa
Central.
211
O germanismo Habsburgo recua por toda parte. No que se refere à França, os seus
ganhos foram imensos, tanto em territórios como em poder. Conforme Mousnier, “o rei da
França recebia ‘portas’ para as grandes rotas militares. Obtinha a soberania dos três
bispados de Metz, Toul e Verdun, ocupados desde a época de Henrique II. Adquiria na
Alsácia tudo o que pertencia ao imperador como chefe da Casa da Áustria e todos os
direitos de que aí gozava na qualidade de imperador”.
212
Os Habsburgos foram obrigad
os a
renunciar a sua pretensão ao domínio universal.
No entanto, Filipe IV, o Habsburgo da Espanha, negou-se a reconhecer a sua
derrota. Assim, a guerra prosseguia com a Espanha.
213
Durante essa guerra franco-
espanhola, a Espanha enfrentava sérias dificuldades econômicas enquanto a França
enfrentava a Fronda. Finalmente, Mazarino fez um acordo com Cromwell, o protetor da
Inglaterra, assinando com ele uma aliança formal, em 23 de março de 1657. Com a ajuda
da frota inglesa e de um corpo de desembarque de seis mil ingleses, Turenne, o general
francês, brilhou na Batalha das Dunas, em 14 de junho de 1658. Sem exército e dinheiro e
sem poder contar com o apoio do Habsburgo da Áustria, o Habsburgo da Espanha
finalmente reconhece a sua derrota.
214
207
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 297.
208
Cf.
MOUSNIER, 1972, op. cit., p. 9.
209
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 302.
210
Cf. ibid., “Os príncipes alemães gozam de uma quase completa independência. Beneficiam ‘da
superioridade territorial’, uma quase soberania, têm o direito de tratar com as potências estrangeiras e entre
si, em prol de sua segurança. Demais, o imperador na prática nada pode fazer sem a Dieta e esta, obrigada de
fato a conseguir unanimidade em todas as questões importantes, é impotente”. ibid., pp. 302
-
303.
211
Cf. MANDROU, Robert. La France aux XVII et XVIII siècles. Paris: Presses Universitaires de France,
1970, pp. 234
-
235.
212
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 304. “O rei da Espanha reconhecera a independência das Províncias Unidas
e, desta forma, excluíra-as do Círculo da Borgonha e, portanto, do Império. A plena independência dos
Cantões Suíços foi proclamada, a Suécia recebeu, por suas despesas de guerra, territórios que lhe permitem
garantir a segurança do ‘lado sueco’”. ibid.
213
Cf. ibid;
MOUSNIER, 1972, op. cit., p. 9.
214
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., pp. 304
-
305.
47
De abril de 1659 a junho de 1660, a paz foi negociada na Ilha da Conferência. Por
meio do Tratado dos Pireneus, assinado em 4 de junho de 1660, as fronteiras da França são
fechadas à invasão. Várias regiões e praças foram recuperadas ou adquiridas pela
França.
215
O Tratado dos Pireneus foi uma grande manobra diplomática de Mazarino.
Neste tratado, a reconciliação entre a França e a Espanha afirmava-se pelo casamento de
Luís XIV com Maria Tereza, a infanta espanhola, filha de Filipe IV.
216
O final da Guerra dos Trinta Anos assinalou o enfraquecimento do império
espanhol e a preponderância francesa.
217
Da Batalha de Rocroi, em 1643, em que os
franceses enfrentaram a temível infantaria espanhola acabando com os cento e trinta anos
de supremacia militar da Espanha, veio-lhe a consagração militar
218
; dos tratados de
Vestfália, 1648, assinado com a Áustria, e dos Pireneus, 1659, feito com a Espanha, a
consagração diplomática.
219
Em 1661, no início do reinado pessoal de Luís XIV, ninguém era capaz de contestar
a preponderância da França.
220
No período que se estende de 1661 a 1697, ou seja, do
início de seu reinado pessoal ao final da Guerra da Liga de Augsburgo, Luís XIV
alimentou grandes ambições de grandeza. Na verdade, como constata Robert Mandrou, ele
“jamais renunciou em representar o primeiro papel no continente”. Essa grande política é
conhecida: o Tratado de Vestfália, em 1648, e a Paz dos Pireneus, em 1659, deram-
lhe
uma base consistente, vinte anos depois com a Paz de Nimega, concluída em 1679, no ano
215
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 305. De acordo com Mousnier, “a França recuperava ou adquiria o
Artois, o Russilhão, a Cerdanha conquistada por Richelieu (1640-1642) e praças sobre os acessos:
Gravelines, Londrecies, Le Quesnoy, Avesnes, Philippeville, Morienburgo, Trionville, Montmédy. O Duque
da Lorena recobrava se
u ducado, mas a França retinha a Argonne, ‘nossas Termópilas”, e o livre trânsito para
as suas tropas”. ibid.
216
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., p.125; SHENNAN, op. cit., p. 50.
217
“Inicialmente mediada por subvenções à Suécia e depois pela contratação de mercenários alemães, esta
culminou com grandes exércitos franceses no campo de batalha. O efeito internacional foi decisivo. A França
traçou o destino da Alemanha e destruiu a supremacia da Espanha. O tratado de Vestfália, quatro anos depois
da histórica vitória francesa em Rocroi, estendeu as fronteiras da monarquia francesa do rio Mosa ao Reno.
As novas estruturas do absolutismo francês foram assim batizadas no fogo da guerra européia”.
ANDERSON, op. cit., p. 97.
218
“Cinco dias depois da morte de Luís XIII, em 19 de maio de 1643, o jovem Duque de Enghien, alcançava
a vitória de Rocroi sobre o exército espanhol reputado o melhor da Europa”. Em 1648, em Lens, o Duque de
Enghien, tornado príncipe de Condé, venceu os espanhóis novamente. CORVISIER, op. cit., pp. 209-210. A
França contou com dois elementos a seu favor: a superioridade da cavalaria e da artilharia. De fato, a França
lutou com armas de ricos. A Batalha de Rocroi assinalou a consagração da superioridade do fogo e, por sua
vez, a superioridade econômica e técnica da França em relação à Espanha. Para a tática da linha estreita era
necessário maior coordenação por parte dos soldados, o que requeria uma preparação mais reforçada, com
isto eles custavam bem mais caro ao Estado. “Tudo concorre para aumentar o preço e a tecnologia de
guerra”.
Cf. E. Muraise.
Introduction à l’histoire militaire
, apud CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 55.
219
Cf. ibid., p. 99.
220
Cf. ANDRÉ, Louis. Louis XIV et l’Europe
.
Paris: Édition Albin Michel, 1950, (Coll. L’evolution de
L’humanité),
pp.
12
-
13.
48
seguinte ao final da Guerra da Hola
nda, ele acreditou ser o mestre da Europa e cuidou para
que a Europa o aceitasse como tal.
221
O maior desejo de Luís XIV, que era considerado pelos franceses, e talvez por toda
a Europa, como “o monarca mais ilustre da cristandade”, era o de dar a si próprio e ao
reino da França uma glória jamais alcançada. Ele lançou de diversos meios para isso, como
o grande plano de Versalhes e o domínio artístico e intelectual, reunindo em torno de si
todos os artistas e escritores que, sob seu domínio, produziam obras para exaltar a sua
glória. Contudo, isto não foi suficiente, o Rei Sol queria muito mais, e isso ele buscou
alcançar por meio das guerras. Conforme constata Robert Mandrou, o monarca mais
ilustre da Cristandade não teve outro pensamento que o de dar ao seu reino uma glória
sem paralelo. É verdade que ele dispunha de outros recursos para obtê-la: nem Versalhes e
seus artistas nem os maiores poetas não poderiam bastar: as armas contaram mais
ainda”.
222
O poderoso exército francês foi erguido pelos dois Le Tellie
r, pai e filho. Michel Le
Tellier, convocado para fazer parte do Alto Conselho de Luís XIV, em 1661, foi nomeado
secretário do Estado para a guerra, em 1677 renunciou ao cargo em favor de seu filho, o
marquês de Louvois. Os dois transformaram o exército francês na maior potência militar
da Europa, possibilitando que Luís XIV saciasse a sua sede de glória na esfera
internacional. O exército francês foi conduzido por algum tempo por Turenne e pelo
príncipe de Condé.
223
A crença de que a sua coroa era a primeira da cristandade levou o Grande Rei a
amar o seu exército, que lhe servia de instrumento para alcançar a glória e o poder tão
desejados. para avaliar o quão grande era a atenção de Luís XIV com seu exército se
prestarmos atenção ao número de seus integrantes. No início de seu reinado pessoal, a
França encontrava-se num período de paz e o exercito francês compunha-se de quinze a
vinte mil homens.
224
No entanto, no decorrer das quatro guerras mais importantes, a Guerra
da Devolução, a Guerra da Holanda, a Guerra da Liga de Augsburgo e a Guerra da
Sucessão Espanhola, este número aumentou consideravelmente. Conforme nos chama a
atenção Hubert Méthivier, “para as quatro grandes guerras do reinado, o exército monta de
221
Cf. MANDROU, op. cit., p. 235.
222
ibid., p. 234.
223
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 41; CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 126.
224
Cf. MÉTHIVIER, Humbert. Le Siècle de Louis XIV
.
Dixième édition. Paris: Presses Universitaires de
France, 1950. (Coll.
Que Sais
-J
e?)
,
p. 62.
49
setenta e dois mil homens em 1667 a cento e vinte mil em 1672, a duzentos e oitenta mil
em 1688 e quase quatrocentos mil em 1703”.
225
Visando assegurar seu prestígio e reputação do maior monarca da cristandade, Luís
XIV empreendeu todas as formas de guerra: continental, marítima, comercial e
diplomátic
a, esta última constitui-se em uma guerra permanente.
226
Anteriormente a Luís
XIV, a monarquia francesa buscava se impor tanto pelas armas como pela diplomacia.
Da mesma forma que as guerras de conquista e as batalhas, a diplomacia também teve um
papel relevante, num momento em que três quartos da Europa encontravam-se sob o
domínio dos Habsburgos e a França se sentia no direito de suplantá-los. A política externa
francesa ainda não temia que todas as alianças se voltassem contra ela. Luís XIV sempre
ambic
ionou a grandeza. O seu avô, Henrique IV, e depois Richelieu, o primeiro-
ministro
de seu pai, também nutriram um desejo de poder, por isso não perdiam nenhuma
oportunidade para acabar com a hegemonia dos Habsburgos.
227
Por meio do acordo com a Espanha, no Tratado dos Pireneus, a França impediu que
o Habsburgo da Áustria, o Imperador Leopoldo I, reunisse a sucessão da Espanha aos seus
domínios e reconstituísse o Império de Carlos V. Como o Imperador Leopoldo I tinha
direitos à sucessão da Espanha, que, da mesma forma que Luís XIV, era filho de uma
infanta espanhola, Luís XIV casou-se com a infanta Maria Tereza que de outra maneira se
casaria com o Imperador. O rei da Espanha, Filipe IV, exigiu que a filha renunciasse a seus
direitos à sucessão do trono espanhol. No entanto, Hugues de Lionne, um astuto diplomata
francês, conseguiu introduzir no contrato nupcial que a renúncia se daria mediante um
altíssimo dote de 500 000 escudos de ouro. Pois ele estava certo de que o Tesouro da
Espanha não teria condições de pagá-
lo.
228
Como o dote não fora pago, a renúncia foi
rapidamente anulada; os direitos de Maria Tereza foram conservados, passando ao seu
marido. Isto deu a Luís XIV uma preeminência frente à Europa que jamais seria
contestada.
229
De qualquer maneira, a renúncia de Maria Tereza era nula, que os direitos
de sucessão cabiam a ela por nascimento, não podendo ser abdicados, e até mesmo os
próprios espanhóis não deram a mínima importância à cláusula, desaprovando seu rei. Luís
225
MÉTHIVIER, op. cit., p. 66.
226
Cf. ibid., p. 62.
227
Cf. MANDROU, op. cit., pp. 234
-
236.
228
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 305.
229
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 125.
50
XIV tinha o direito de reclamar a sua parte na herança “e provocar o malogro de eventuais
desígnios do imperador”.
230
Com a morte de Filipe IV, em 1665, começou a apresentar-se a questão espanhola.
Carlos II, um menino enfermo, nascido do segundo casamento de seu pai, subiu ao
trono.
231
Luís XIV queria que os Países Baixos que eram parte da herança de sua esposa
fossem devolvidos a ela.
232
No direito privado dos Países Baixos havia um antigo costume de que as crianças
nascidas do primeiro casamento tinham direito à sucessão de seu pai, devolução.
Tal
costume foi exumado pelos juristas franceses. Baseado nisso, “Luís XIV exigiu a aplicação
do direito de devolução na sucessão de Filipe IV nas regiões onde o mesmo estava em
vigor e reclamou a cessão dos Países Baixos”. A Espanha recusou-se a atender o seu
pedido. Aproveitando-se de uma guerra anglo-holandesa, e precedido pelo Tratado dos
direitos da Rainha muito cristã em diversos Estados da monarquia da Espanha, em 1667
Luís XIV deu início à Guerra da Devolução. O exército francês invadiu os Países Baixos e
apoderou
-se de algumas praças fortes. Neste momento, o Imperador Leopoldo I não pôde
agir, pois estava envolvido com uma revolta de grandes senhores húngaros. Sendo assim,
em janeiro de 1668 ele aceitou assinar com Luís XIV um tratado que previa a e
ventual
partilha da sucessão na Espanha, no qual os Países Baixos seriam deixados à França.
Diante disso, houve uma reação das potências marítimas. A Inglaterra e a Holanda, que
estavam em guerra, trataram de assinar a paz imediatamente e, além disso, fizeram uma
aliança, na qual juntou-se a Suécia. A então chamada Tríplice Aliança de Haia, de janeiro
de 1668, propôs a mediação na Guerra da Devolução. “Luís XIV mostrou-se moderado e
com a Paz de Aix-
la
-Chapelle, de maio de 1668, contentou-se com doze praças fortes nos
Países Baixos, entre os quais Lille, Douai e Tournai”.
233
Nesta guerra, Luís XIV obteve um êxito considerado medíocre, levando-se em
conta que a França tinha o apoio de toda a Europa e um exército superior. A Guerra da
Devolução foi uma guerra de escala relativamente pequena. No entanto, a Paz de Aix-
la
-
Chapelle consagrou a conclusão prematura da Tríplice Aliança de Haia. Esta frente
protestante do Norte representava, pela primeira vez, um obstáculo à expansão francesa.
234
230
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 305.
231
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 291.
232
C
f. SHENNAN, op. cit., p. 34.
233
CORVISIER, op. cit., p. 291.
234
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 116, 125; SHENNAN, op. cit., p. 34.
51
Em 1672, Luís XIV decidiu invadir a Holanda para eliminar a concorrência de seu
comércio, superior ao francês, por meio da anexação das Províncias Unidas às possessões
da França. No início, a França obteve êxito em sua guerra com a Holanda: após cruzar o
Reno, as tropas de Luís XIV tomaram Utrech.
235
Mas, como os holandeses abriram seus
diques provocando inundações, Luís XIV se viu obrigado a suspender a sua invasão.
236
Sozinhos, diante dessa terrível ameaça, os regentes da Holanda propuseram a paz,
oferecendo a Luís XIV as regiões da Generalidade, localizadas ao sul do Reno. Mas Luís
XIV pediu, além disso, uma parte da Gueldria e, pior ainda, a liberdade generalizada do
culto católico, o que representava uma grande humilhação aos regentes protestantes.
237
Diante disso, uma coligação internacional, integrada principalmente pela Espanha e a
Áustria, foi rapidamente formada para assegurar a manutenção do status quo; sem
entrarem na guerra, a Espanha e o Imperador entenderam-se com as Províncias Unidas,
aliando
-se a Guilherme de Orange. Ao mesmo tempo em que na Holanda o poder foi
recuperado pela dinastia Orange e uma aliança matrimonial foi feita com a Inglaterra.
238
De fato, a Zelândia, que era o mais calvinista dos refúgios protestantes, respondeu à
intransigência de Luís XIV “com um rugido”. O jovem Guilherme de Orange foi
proclamado a Stathouder da Zelândia, dois dias depois a Stathouder da Holanda e após
quatro dias a capitão almirante general. Graças, sobretudo, ao gênio de Guilherme de
Orange, a invasão francesa foi rechaçada em 1673. No ano seguinte, a Holanda assina a
paz com a Inglaterra.
239
Percebendo seu erro, Luís XIV aceitou negociar. Em Colônia,
reuniu
-se um congresso. Parecia que a paz seria estabelecida. No entanto, preocupados
com as ambições de Luís XIV, o Imperador e a Espanha declararam guerra à França. A
França estava sozinha. Contudo, mesmo com a ajuda das forças inglesas, os coligados não
conseguiram abalar a superioridade militar do exército francês. Em 1678 a paz foi
concluída.
240
Apesar do isolamento, a França alcançou a vitória nesta guerra, a qual,
segundo Pierre Chaunu, “teria sido uma catástrofe sem a superioridade técnica do exército
francês”.
241
235
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 102.
236
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 291.
237
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 116
-
117.
238
Cf. ANDERSON
, op. cit., p. 102.
239
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 116
-
117.
240
Cf. CORVISIER, op. cit., pp. 291
-
292.
241
CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 126.
52
No exterior, os ganhos da França na Guerra da Holanda foram modestos. Após sete
anos de luta, a França apoderou
-
se do Franche
-C
omté e as suas fronteiras em Flandres e no
Artóis foram ampliadas. Porém, não conseguiu anexar as Províncias Unidas; além disso,
em agosto de 1678 teve de renunciar às tarifas alfandegárias anti-holandesas de 1677.
242
A
Holanda, que começara a guerra sozinha contra a França apoiada por toda a Europa,
terminou a guerra na liderança da Europa que se posicionava contra a França pela primeira
vez.
243
Devido à superioridade de seu exército, Luís XIV alimentou “a perigosa ilusão, a
idéia absurda de que se podia manter e triunfar indefinitivamente e contra todos”.
244
Assim sendo, em 1681 ele empreendeu uma nova conquista: tomou a cidade de
Estrasburgo, anexando
-
a no território francês.
Ao empreender a Guerra da Devolução, a Guerra da Holanda e a tomada de
Estrasburgo
, Luís XIV despertou o ódio dos europeus que passaram a temer e a criticar a
sua política belicosa como uma tentativa de dominar toda a Europa. Ao revogar o Edito de
Nantes, em 1685, Luís XIV fortaleceu os seus inimigos dando a eles um motivo que tanto
agu
ardavam para jogar toda a Europa contra a França.
Conseqüências políticas da revogação do Edito de Nantes
No início do século XVII, cerca de um milhão de franceses eram protestantes, após a
revogação do Edito de Nantes este número foi reduzido à metade.
245
Com a perseguição
realizada antes e após a revogação, contrariando os desejos de Luís XIV, 200 000
huguenotes abandonaram a França. Na Inglaterra, por exemplo, entraram aproximadamente
20 000 deles.
246
Conforme constata Shennan, durante muito tempo os historiadores pensavam que a
emigração dos protestantes resultou em sérios problemas econômicos para a França,
“especialmente sobre as indústrias nacionais, como as manufaturas de seda e de tecidos de
lã, assim como sobre o comércio internacional, um setor onde os huguenotes estavam bem
242
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 102.
243
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 116
-
117.
“Chefe incontestável da Europa protestant
e, ontem, eis a França
isolada face a esta mesma Europa protestante, hostil e protetora, a partir de então e em nome do equilíbrio
dos Estados enfraquecidos dos Habsburgos”. ibid., p. 125.
244
ibid., p. 126.
245
Cf. MANDROU, op. cit., p. 182.
246
Cf. HATTON, op
. cit., p. 19.
53
estabelecidos”. No entanto, após o estudo do historiador Warren C. Scoville “esse ponto de
vista vem se modificando”.
247
Ele demonstra que foram superestimadas as perdas
econômicas atribuídas à revogação.
248
Segundo Shennan, “Scoville argumenta
justificadamente que, embora não haja dúvidas de que a França perdeu muito conhecimento
técnico e empresarial para o resto da Europa, os últimos dois anos do reinado de Luís XIV
oferecem uma explicação melhor para a estagnação econômica da França depois de
1685”.
249
De fato, a estagnação econômica da França após 1685 não estava relacionada à
revogação, mas devemos considerar que muitos dos emigrantes eram hábeis, tinham
experiências em assuntos técnicos e financeiros, muitos eram possuidores de capitais e,
portanto, reforçaram os países como a Inglaterra, o Brandenburgo e a Holanda, entre outros,
que combateriam a França nas guerras futuras.
250
O êxodo, decorrente da revogação, trouxe conseqüências políticas sérias para o
Grande Rei. Como observa Ragnhild Hatton, “a revogação teve (...) efeitos políticos
negativos para Luís XIV”.
251
Para Méthivier, entre os múltiplos efeitos da revogação, sem
dúvida, o êxodo constituiu
-
se no “fato social essencial”. Pois os vários refúgios protestantes
tornaram
-se focos hostis, principalmente a Holanda, em torno de Guilherme de Orange,
servindo emigrados eminentes, como o polemista Pierre Jurieu, entre outros.
252
De acordo
com Shennan, por meio da revogação, Luís XIV “aumentou a vulnerabilidade da França na
Europa (...) porque daquele momento em diante ele passou a ser visto pelos rivais como
uma ameaça à segurança da Europa, o que tornou mais fácil ao seu arquiinimigo,
Guilherme de Orange, organizar poderosas coalizões contra a França”.
253
Na Holanda, a revogação provocou reações exasperadas e violentas. De acordo com
Louis André, os refugiados franceses na Holanda “fundaram gazetas para divulgar em todo
o país não somente notícias, mas antes de tudo críticas contra a política de Luís XIV”.
254
Os
refugiados franceses, cheios de ódio, lançavam violentos libelos contra o monarca francês.
Os três predicadores franceses, subsidiados pelos holandeses, agiam sob as ordens de
247
SHENNAN, op. cit., p. 45.
248
Cf. MANDROU, op. cit., nota de rodapé, p. 184. De acordo com Hatton, “chegou-se (...) à conclusão de
que os efeitos do êxodo subseqüente sobre a vida econômica francesa não tinham sido tão desastrosos como a
pri
ncípio se julgara. Scoville demonstrou, através de um exame sistemático às corporações de artes e ofícios,
que os que então foram afetados, ou haviam entrado em decadência antes de 1685, ou se transformaram
nessa altura, devido a vicissitudes alheias à
revogação”.
HATTON, op. cit., pp. 21
-
22.
249
SHENNAN, op. cit., p. 45.
250
Cf. HATTON, op. cit., p. 23.
251
ibid., p. 22.
252
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 89.
253
SHENNAN, op. cit., p. 45.
254
ANDRÉ, op. cit., pp. 223
-
224.
54
Guilherme de Orange, falavam em seus panfletos do estado em que a religião protestante se
encontrava na França. Mas os seus ódios direcionavam-se principalmente à pessoa de Luís
XIV. Este era caricaturado das piores formas possíveis. Chamavam-no de Anticristo,
comparavam
-
no à Besta do Apocalipse.
255
Na Inglaterra, o católico praticante Jaime II havia sucedido no trono ao suposto
católico Carlos II, em fevereiro de 1685. Jaime II era aliado de Luís XIV e pensava em
fazer o mesmo na Inglaterra, ou seja, exterminar o protestantismo. Porém, havia na
Inglaterra uma grande oposição entre os sentimentos do rei católico e os dos seus súditos
protestantes, que eram a maioria. E o fato de 20 000 franceses se terem refugiado na
Inglaterra aumentaria esta oposição ao rei, o que o levaria a ter de enfrentar dias dolorosos
num futuro muito breve.
256
A maioria dos europeus aceitava que governo legítimo e absoluto não era o mesmo
que governo arbitrário. Bossuet esforçou-se para reforçar esta distinção na
Politique
. No
entanto, os ingleses e holandeses não a aceitavam. De acordo com Hatton, eles “estavam
profundamente convencidos de que o absolutismo implicava sempre o risco da
arbitrariedade, e a revogação do Edito de Nantes, por Luís XIV, reforçava esta convicção”.
Os europeus horrorizaram-se no momento em que o monarca absolutista francês rompeu
com a tolerância religiosa. Em panfletos agressivos, os ingleses e holandeses deram a Luís
XIV a alcunha de ‘Turco Cristão’, devido a censurarem o seu governo como sendo
arbitrário, comparado ao governo do sultão do Império Otomano. Fato importante. O
Imperador Leopoldo I da Áustria, em assunto de religião, era tão intolerante quanto Luís
XIV, no entanto, era aliado das potências marítimas, Inglaterra e Holanda, e isto as
impediam de criticá-lo. Ou seja, as críticas dos ingleses e holandeses à perseguição dos
huguenotes por Luís XIV estavam impregnadas de motivos políticos. Segundo Hatton, “a
rivalidade comercial e o receio de ter um vizinho avassaladoramente poderoso tornaram
ainda mais intensa a autêntica repugnância pela perseguição movida contra os
huguenotes”.
257
No Brandeburgo, o eleitor Frederico Guilherme I há alguns anos se preocupava com
o destino dos protestantes franceses. Desde 1681, ele lamentava ao embaixador Rébenac a
perseguição que aqueles inocentes, que considerava como seus irmãos, sofriam na França.
Frederico Guilherme I era aliado da França devido a Luís XIV pagar bem, e não por
255
Cf. ANDRÉ, op. cit., pp. 224, 247.
256
Cf. i
bid., pp. 220
-
221.
257
Cf. HATTON, op. cit., pp. 93
-
94.
55
simpatia. Mas em 1685, diante da perseguição de Luís XIV aos protestantes franceses, de
Leopoldo I aos luteranos e da clara tendência de Jaime II a seguir o exemplo de seu ídolo
Luís XIV, Frederico Guilherme I tomou uma medida para proteger o protestantismo
ameaçado, abrindo seus Estados a aproximadamente 25 000 protestantes perseguidos da
França. Em Haia, o seu conselheiro Spanheim o faz ver que somente a união entre o
Brandenburgo e as Províncias Unidas, aliada à Inglaterra, seria possível “livrar a Europa do
jugo universal da França”.
258
A emoção não foi menor em Gênova. A partir de 1685 os genoveses tomaram
conhecimento das dragonadas; desde abril deste ano, protestantes franceses perseguidos
chegavam
na cidade. Os genoveses ficaram consternados diante das perseguições sofridas
por seus irmãos protestantes. Indignados, os genoveses passaram a olhar Luís XIV com
desconfiança. Na Itália, o papa Inocêncio XI não acolheu a revogação com entusiasmo.
259
A revogação trouxe uma grande desvantagem à França. Com o aparecimento de Guilherme
de Orange, a revogação retirou a liberdade e manobra da França ao mesmo tempo em que
ela não tinha o apoio da Europa católica.
260
A formação da Liga de Augsburgo
Em 9 de julho de 1686 concluiu-se a formação da Liga de Augsburgo. Nela,
encontravam
-se o Imperador Leopoldo I, o seu genro Maximiliano II da Baviera, a Suécia,
a Espanha; em 2 de setembro juntou-se a eles o Eleitor do Palatinado e o duque de
Helsteein Gottcorps, pouco depois Victor Amadeu II da Sabóia. Segundo constata Louis
André, a Liga de Augsburgo foi criada, de acordo com seus partidários, para defender
aquele que ‘fosse atacado ou inquietado por buscas injustas e demandas ilegítimas’”. Em 2
de março de 1686, em Ber
lim, o católico Imperador Leopoldo I assinou uma aliança secreta
defensiva com o protestante Eleitor do Palatinado.
261
Segundo Pierre Chaunu, com a
formação da Liga de Augsburgo, em 1686, “pela primeira vez, a França verdadeiramente
sozinha, sem aliança, tem
pela frente toda a Europa coligada”.
262
Os integrantes da Liga não
objetivavam manter a paz e sim esperar o momento certo para fazer a guerra contra Luís
XIV, e assim acabar com a sua ambição. De acordo com Louis André, “as negociações que
258
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 221.
259
Cf. ibid., p. 222.
260
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 138.
261
Cf. ANDRÉ, op. cit., pp. 226
-
227.
262
CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 138.
56
foram engajadas logo após a revogação não devem então deixar nenhuma ilusão. Elas
foram, não para manter e prolongar a paz, mas para agrupar contra a França muito
ambiciosa o mais possível de príncipes, em uma coalizão que interviria contra ela pelas
armas, no momento julg
ado por ela favorável”.
263
Em 1687, o embaixador de Viena, La Vauguyon, redigiu um relatório afirmando que
em sua partida havia deixado a corte de Viena desejosa de conduzir a guerra. De Haye,
d’Avaux, muito tempo buscava alertar Luís XIV, seu mestre, a respeito do estado de
espírito dos Messieurs d’Amsterdam. Segundo Louis André, em 1688 d’Avaux observa que
“a constituição desse país é tal no presente [1688] que a maior parte da Holanda deseja a
guerra, uns porque estão com o príncipe de Orange, outros por causa da religião, e os
últimos por causa do comércio do qual lhe faz esperar o restabelecimento por uma guerra”.
Em uma carta redigida em 10 de outubro de 1688, Leibniz diz “a Alemanha jamais esteve
mais unida do que o está no presente e toda a Europa está unida contra a França”. Qual era
o sentimento e a política do papa Inocêncio XI a respeito do reino da França? Em carta a
Leopoldo I ele afirma: “ouso dizer que a guerra contra a França é o único meio pronto e
eficaz para levar a França a fazer razão a toda a Europa de uma parte dos erros e injustiças
que ela tem cometido”. Após tomarmos conhecimento da opinião de pessoas importantes da
época fica claro que a Liga de Augsburgo não se formou apenas por “um desejo de guerra
de religião”.
264
Como vimos, o Imperador Leopoldo I, um defensor fervoroso do
catolicismo, era um de seus componentes mais ilustres. A revogação do Edito de Nantes
não determinou a formação da Liga de Augsburgo. A questão religiosa foi usada pelos
adversários de Luís XIV como um pretexto para reunir e lançar um maior número de
europeus contra a França.
Em alguns anos Guilherme de Orange e o pensionário Fagel, que se tornou o chefe
da propaganda contra Luís XIV, empenharam-se em ganhar partidários. Segundo
d’Aveaux, Guilherme de Orange e Fagel aliciaram a assembléia da Holanda para participar
da “associação de Augsburgo e aumentar o estado de guerra”. O embaixador d’Avaux dava
a Luís XIV a descrição exata da situação: “em todos os países a impressão causada pela
revogação do Edito de Nantes foi deplorável: ela desvia esses países da França, olhada
263
ANDRÉ, op. cit., p. 226. “Luís XIV não se engana sobre a verdadeira característica da Liga de
Augsburgo. Ainda que ela seja incompleta, ele tem o sentimento que ela é formada para cercar a França e lhe
declarar a guerra. Isso explicará sua atitude ulterior: prevenir seus inimigos e o projeto imaginado por
Louvois, de não hesitar diante de um golpe de força”. ibid., p. 227.
264
Cf. ibid., pp. 227
-
228.
57
desde já com desconfiança. Se a guerra não foi declarada, ela é, entretanto, desde
possível”.
265
A Guerra da Liga de Augsburgo (1688-
1697)
Objetivando evitar uma guerra geral, Luís XIV recorreu a “golpes de força rápidos”.
A partir de setembro de 1688 ele passou a enviar suas tropas ao Avignon, ao Palatinado, ao
Principado de Colônia e à Irlanda.
266
As tropas francesas entraram em Colônia,
atravessando o Palatinado até Filipesburgo. Para justificar essa invasão, Luís XIV apelou
para o direito de sucessão, como fizera na Guerra da Devolução, pois a esposa de seu irmão
era irmã do eleitor do Palatinado que havia falecido e isso lhe oferecia a possibilidade de
reivindicar uma parte do território do irmão. Apesar de Filipesburgo ter caído em poder de
Luís XIV no final de outubro de 1688, ele percebeu que não seria fácil vencer a resistência
dos príncipes alemães.
267
Neste momento estava ocorrendo uma revolução na Inglaterra, a
Revolução Gloriosa de 1688-89, constituindo-se em um golpe ainda maior às ambições de
Luís XIV. Recordemos que, contando com a ajuda do Parlamento inglês, dos protestantes
holandeses e franceses refugiados na Holanda, Guilherme de Orange expulsou o rei Jaime
II e tornou
-
se Guilherme
III, o rei da Inglaterra.
268
Diante da resistência dos príncipes alemães, as tropas francesas recuaram para
posições menos expostas, saqueando o campo e destruindo as cidades, impedindo assim
que um exército invasor dispusesse de bases e suprimentos. Os contemporâneos de Luís
XIV ficaram profundamente chocados com sua reação, pois ainda não aceitavam a idéia de
uma guerra total.
269
A devastação do Palatinado por Luís XIV alcançou um resultado
contrário ao esperado; serviu apenas para fortalecer a coalizão dos seus inimigos, que
acreditavam que havia chegado o momento de colocar um ponto final à política ambiciosa e
agressiva do Grande Rei. A Inglaterra, a República Holandesa, o Imperador, rios
príncipes alemães, a Espanha e a Sabóia se reuniram formando a Grande Aliança de Viena.
Assim, o equilíbrio de forças na Europa deslocou-se decisivamente contra a França de Luís
265
Cf. ANDRÉ, op. cit., pp. 217, 224
-
226.
266
Cf. GOUBERT, Pierre.
Louis XIV et vingt millions de français
. França: Pluried, 1970, p. 233.
267
Cf. SHENNAN
, op. cit., p. 59.
268
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 117, 119.
269
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 59-
60.
“A guerra começou pela devastação do Palatinado. Esse
acontecimento não foi, na época, o único exemplo de aplicação em país estrangeiro da tática da terra
qu
eimada, mas aparece particularmente odiosa porque foi praticada durante muito tempo e de maneira
sistemática. Tal operação revelou-se desastrosa sob o ponto de vista psicológico e moral, devendo deixar
ódios duráveis”.
CORVISIER, op. cit., p. 294.
58
XIV.
270
De acordo com Pierre Goubert, “o resultado foi admirável. Em alguns meses toda a
Europa, salvo neutros insignificantes [Dinamarca, Suíça, Portugal] estava conjurada contra
ele, sob a direção do Stathouder das Províncias Unidas que ele havia deixado tornar-se rei
da Inglaterra”.
271
Segundo Perry Anderson, na Guerra da Liga de Augsburgo toda a Europa
central e ocidental foi alinhada virtualmente contra a França: “Holanda, Inglaterra, Áustria,
Espanha, Sabóia e a maior parte da Alemanha”.
272
Os exércitos franceses tinham se tornado mais potentes, contando com mais que o
dobro do número de soldados que tinha na Guerra da Holanda na época da intervenç
ão; eles
contavam com aproximadamente 220 mil homens. Os exércitos da coligação contavam com
praticamente o mesmo número de soldados. Assim, houve um empate.
273
Segundo Pierre
Goubert, “desde 1693, os adversários compreendiam que o poderiam se vencer, e
en
gajam conferências”. Mas a paz foi concluída em 1697.
274
O final dessa guerra é
assinalado com a Paz de Ryswick, em 1697.
275
Conforme constata Perry Anderson, por
toda a parte, todos os esforços de Luís XIV foram frustrados. “o único ganho registrado
pela F
rança no Tratado de Ryswick foi a aceitação européia da absorção de Estrasburgo (...)
todos os demais territórios ocupados tiveram de ser evacuados, enquanto a armada francesa
era afastada dos mares”.
276
Segundo Corvisier, a partir daí, Luís XIV procurou fazer uma
política prudente e pacífica”.
277
Qual foi o preço que os franceses tiveram de pagar para que o Grande Rei
sustentasse esta guerra tão difícil durante nove anos?
A economia de guerra e A Grande Fome
A maior preocupação financeira das grandes potências da época moderna era
enfrentar o elevado custo das guerras. Era necessário muito dinheiro para manter um
exército e uma marinha eficientes, sem falar dos subsídios aos aliados. Desta forma, a
guerra, em si, tinha deixado de ser um empreendimento lucrativo. Após se lançarem em
guerras, muitas vezes impossíveis de manter, os governantes aumentavam as cargas
270
Cf. SH
ENNAN, op. cit., pp. 59
-
60.
271
GOUBERT, op. cit., p. 233.
272
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 103.
273
Cf. ibid.
274
GOUBERT, op. cit., pp. 240
-
241.
275
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., pp. 138
-
139.
276
ANDERSON, op. cit., p. 103.
277
CORVISIER, op. cit., p. 294.
59
tributárias ou vendiam cargos, muitos deles inúteis, que se tornavam hereditários, sendo a
França o país em que isso foi mais praticado.
278
O grande problema é que os impostos
arrecadados não retornavam em formas de benefícios à população francesa, haja vista que
“o exército absorvia um fluxo contínuo de numerário”. À medida que as guerras se
prolongavam, os governantes se viam sem dinheiro líquido para f
inanciá
-las, sentindo-
se
obrigados a limitar as operações militares e, em casos extremos, pensavam até mesmo em
abdicar perante a grande dificuldade para pagar suas tropas. As crises do pós-
guerra
geravam profundas dificuldades, “como a falência de Law, na
França”.
279
Apesar de a França ser um país rico, o Estado enfrentava dificuldades para levantar
os recursos financeiros necessários para viabilizar a sua permanência na guerra. Jean-
Baptiste Colbert, o mais conhecido dentre os conselheiros de Luís XIV, tinha deixado sua
marca em diferentes setores da vida pública, como a administração do mundo artístico, mas
o seu nome é mais associado à reorganização financeira do país.
280
Para financiar a glória
de Luís XIV, a qual se expressava principalmente por meio da guerra, foi preciso muito
esforço de sua parte. A maior preocupação de Colbert era construir um Estado repleto de
“grandeza e magnanimidade”, e ele escreveu “nós não estamos em um reino de pequenas
coisas”.
281
Colbert esforçou
-se para contribuir à glória de Lu
ís XIV. Lutava para preservar a
reputação do monarca que vinha, em parte, dos sucessos alcançados na guerra. Colbert
sabia que a guerra era um empreendimento de custo elevado, mesmo assim ele não media
esforços para levantar os recursos necessários para qu
e a França se mantivesse na guerra até
alcançar a vitória. Colbert forneceu a Luís XIV os recursos econômicos necessários para a
manutenção da guerra, bem como uma marinha que representou um aumento de seu poder
militar. Poder este que fez do Grande Rei, quando da morte de Colbert, em 1683, “o
homem mais temido da Europa”. Esta imagem de um monarca temível foi também
elaborada e exibida por Colbert na própria França.
282
Em dez anos, de 1661 a 1671, Colbert fez reformas fiscais que diminuíram as
perdas e expandiram a receita tributária. Na verdade, as receitas da coroa duplicaram.
Exceto durante a Guerra da Devolução, 1667-1668, o governo francês obteve uma
278
Cf. HATTON, op. cit., pp. 104-
106.
Diante da necessidade de financiar o esforço de guerra, Luís XIV se
vê obrigado a vender cargos e títulos, é ele quem “vai mais longe neste domínio”. ibid., p. 234.
279
Cf. ibid., pp. 106
-
107.
280
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 29, 33.
281
MÉT
HIVIER, op. cit., p. 91.
282
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 38.
60
tranqüilidade financeira durante esses dez anos.
283
O ano de 1672 foi o último em que as
finanças da Franca tiveram um excedente.
284
Essa tranqüilidade financeira foi terrivelmente
abalada pela Guerra da Holanda, 1672-1678, e os outros conflitos internacionais em que a
França se envolveu até o fim do reinado. A Guerra da Holanda custou muito caro à França,
seus
custos monopolizaram todos os recursos públicos. Nos anos 70, muitas empresas
fracassaram na França.
285
Colbert não era um especialista em finanças, constantemente preocupado em
conservar o equilíbrio orçamentário, mas sim um alto-funcionário devotado ao serviço do
monarca. Desta forma, nos anos 70, diante da necessidade de manter a Guerra da Holanda,
ele não hesitou em reverter a sua política e lançar mão de costumes antigos: reviver antigos
tributos em desuso, criar novos impostos, tomar dinheiro emprestado de investidores e
cobradores de impostos franceses e de banqueiros estrangeiros a juros altíssimos. No ano
do falecimento de Colbert, em 1683, o orçamento ainda estava dominado pelas
conseqüências da guerra anterior. Conforme observa Shennan, “o valor da vida de guerra
era de quase 18 milhões de
livres
; o déficit total era superior a 28 milhões. Este último
número equivalia a pouco menos de 2 milhões de libras esterlinas, o valor aproximado da
despesa pública total da Inglaterra na mesma época”. O grande problema era que esses
gastos imensos com a guerra impossibilitavam a manutenção da prosperidade do país.
286
Devido às despesas bélicas prolongadas, o sistema fiscal da França tinha pouca
resistência. Os sucessores de Colbert tiveram que lutar muito com
esse sistema fiscal. Sob a
direção de Le Peletier, sucessor de Colbert, houve uma pequena recuperação financeira,
porém com a irrupção da Guerra da Liga de Augsburgo, no final de 1688, os antigos
problemas ressurgiram.
287
Antes de começar a combater a coalizão, Luís XIV tinha
conhecimento da difícil situação financeira e social na qual se encontrava o reino e de que
esta situação tendia a piorar.
288
Em setembro de 1688 iniciou-se a Guerra da Liga de
Augsburgo, em 1689 esta guerra já obrigava o controlador geral
a recorrer a todos os meios
283
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 34.
284
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 249.
285
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 34, 36.
286
Cf. ibid., pp. 35, 38. De acordo com Perry Anderson, durante a Guerra da Holanda, “no plano interno, a
multiplicação da venda de cargos, o aumento dos antigos impostos, a invenção de novos, a flutuação sofrida
pelos empréstimos e a queima de subsídios levava a situação fiscal da França a um estado alarmante. Tudo
isto, acrescido das sucessivas má
s colheitas, impelia o campesinato da Guyenne e da Bretanha, em 1674
-
75, a
vários levantes, os quais foram sumariamente reprimidos pelas forças reais. Cf. ANDERSON, op. cit., pp.
102
-
103.
287
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 38; GOUBERT, op. cit., pp. 246
-
249.
288
C
f. ANDRÉ, op. cit., p. 249.
61
para conseguir dinheiro para bancá-la, pois “as receitas ordinárias – uma centena de
milhões
– eram completamente incapazes de financiá-la”. Le Peletier tinha horror aos
affaires extraordinaires e então pediu sua demissão. O sucessor de Le Peletier, Phélypeaux
de Pontchartrain, recebeu de Luís XIV a tarefa de sustentar a guerra por todos os meios”.
Pontchartrain criava e vendia centenas de novos e engenhosos ofícios.
289
Da necessidade de financiar as guerras nasceram novos impostos diretos, como a
ferme générale, estabelecida por Colbert durante a Guerra da Holanda. Em 1695, durante a
Guerra da Liga de Augsburgo, Vauban criou um novo imposto, a
capitation
, que seria pago
por todos os franceses, até mesmo os príncipes de sangue, somente o clero ficaria de fora,
pois pertencia a uma outra categoria. A
capitation
foi suprimida em 1698, sendo
restabelecida em 1701, ajuntando-
se à
taill
e.
290
Os impostos antigos com os novos pesavam
sobre os franceses.
291
A política belicosa de prestígio no século XVII trouxe graves conseqüências à
sociedade francesa.
292
Luís XIV subordinou todas as finanças e a economia da nação ao
exército.
293
A Guerra da Liga de Augsburgo pesou muito para os franceses. Segundo
constata Pierre Goubert,
alimentar, equipar, armar durante nove anos duzentos mil homens e duas esquadras sobre
quatro
fronts
principais e tantos teatros afastados, contra a Europa quase inteira, o Banco de
Amsterdã e logo [1694] o Banco da Inglaterra: tarefa gigantesca, cujo custo, em linguagem
de contador não basta para exprimir, além do preço mesmo da guerra, o peso do qual ela
encarrega a economia e, muito igualmente, os diversos grupos que povoavam o reino.
294
A Guerra da Liga de Augsburgo foi a mais séria que os franceses tiveram de
enfrentar até então. Eles tiveram de pagar um preço muito alto para que a França
assegurasse suas vantagens com êxito nesta guerra. Segundo Voltaire, “para os anos de
1691 e 1692, as finanças do Estado parecem sensivelmente desarranjadas”. As despesas
para esta guerra aumentavam de 7 para 800 milhões de libras, dessa forma, as finanças da
289
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 246
-
249.
290
Cf. ibid., pp. 251
-
252; MÉTHIVIER, op. cit., pp. 91
-95-
96; SHENNAN, op. cit., p. 29.
291
Cf. GOUBERT, op. cit., p. 254. Observa Perry Anderson que, para financiar esta guerra, novos cargos
venais foram criados, títulos foram leiloados, houve a multiplicação de empréstimos forçados e um imposto
de
capitação
foi lançado pela primeira vez, o qual não isentava nem a própria nobreza. Cf. ANDERSON, op.
cit., pp. 103
-
104. Os campos foram castigados
pela inflação, a fome e o despovoamento. Cf. ibid., p. 104.
292
Cf. MANDROU, op. cit., nota de rodapé, p. 240.
293
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 62.
294
GOUBERT, op. cit., p. 246.
62
França foram agravadas drasticamente. Esses gastos com a guerra levavam os súditos à
miséria.
295
Os males decorrentes da economia de guerra somavam-se à fome advinda das más
colheitas, piorando ainda mais a situação da maioria dos franceses. O período que se
estende da revogação do Edito de Nantes até o início da Guerra da Liga de Augsburgo, que
se constitui na segunda coalizão, a meteorologia favorável promoveu excelentes colheitas,
havend
o alimentação abundante, devido ao baixo preço do trigo, sem miséria e, exceto nas
regiões huguenotes, sem revoltas. Portanto, houve neste período uma certa paz.
296
Em setembro de 1688 eclodiu a Guerra da Liga de Augsburgo e todos os problemas
advindos dela. Esta guerra exauriu os pequenos orçamentos familiares. Os franceses se
depararam com inúmeros problemas decorrentes da economia de guerra: aumento de
impostos, brutalidade dos gabeleiros, subsídios às tropas, assaltos, enfraquecimento das
importações o que levava ao desemprego na área manufatureira, incertezas monetárias e o
alto preço do trigo desde a colheita de 1691.
297
As más colheitas de 1692 a 1694
pioraram ainda mais a situação de miséria em que se encontrava a maioria da população
francesa. Duran
te
La Grand
Famine
de 1693-1694, em alguns lugares os miseráveis
chegavam ao extremo de comer defuntos, centenas morriam de fome anualmente.
298
Segundo demonstra Goubert, em maio de 1693, um pequeno oficial do bispado de
Beauvais escrevia em suas memórias “o trigo e os outros grãos, que já eram caros,
295
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 250. “Em 1686-1687, dois comissários do rei, Henri d’Aguesseau e Antoine-
François de Paule Le Fèvre d’Ormesson, foram encarregados de visitar o Orléanais e o Maine para constatar
a ‘miséria dos povos e os meios de remediá-las’. Sua memória fornece constatações desoladoras e
características: de populações dos campos, triste vida de habitantes com falta de alimentação e de dinheiro,
aumento do número de pobres das cidades: ‘não resta mais dinheiro para os particulares’. O segundo desses
investigadores foi em seguida intendente em Auvergne, e ele informa para o ano de 1696: a constância da
miséria estimula os habitantes à emigrar para a Espanha. Outros se refugiam nos Países Baixos. E assim o
recrutamento torna penoso em um povo que dificilmente aceitou o sistema da milícia”. ibid., p. 251.
296
Conforme assinala Pierre Goubert, “de 1685 a 1689, a meteorologia torna-se favorável: colheitas
magníficas, preços extremamente baixos, 1688 bate freqüentemente o
record
do bom mercado de grãos no
século XVII. (...) Esse pequeno povo diverso e numeroso que constituía a substancia mesma da França. Á
véspera da segunda coalizão, ele conhecia uma espécie de trégua, simbolizada pelo baixo preço do trigo que
quase sempre era obrigado a comprar. Sem dúvida, o trabalho não abundava, e seu salário não tinha variado
desde trinta anos; mas a alimentação abundava. Nas províncias, salvo em regiões huguenote, reinava uma
espécie de paz provisória, uma ordem relativa, sem revolta notável, sem agitação pronunciada, sem miséria
acusada
salvo esta espécie de dificuldade estrutural que é ligado na permanência à situação de manobreiro
urbano ou rural”. GOUBERT, op. cit., pp. 218
-
219.
297
ibid., p. 261.
298
Segundo Louis André, “se se percorre os livros de razão, as histórias locais, as memórias, encontra-se por
toda parte os mesmos fatos. Desde 1689, 4. 000 famílias de artesãos não têm de que viver em Paris; em 1688
e 1694, Angers está no marasmo; em 1693, o conselho de Aurillac decide dividir os pobres entre os
habitantes abastados e, em Lyon, o preboste dos mercadores tem de reprimir um motim da fome. Em 1694 a
fome é pavorosa em Auvergne e se come os mortos em Clemont-Ferrand. Em Montauban, segundo o bispo,
morre de fome anualmente 400 pessoas na diocese”. ANDRÉ, op. cit., p. 251.
63
encarecem ainda mais... Os outros gêneros alimentícios têm seus preços aumentados
brutalmente. Isto somado à desolação que causa a guerra e a ruína do comércio faz com que
o povo seja esgotado de pobreza e de m
ales”.
299
Em abril de 1694, ele descreve tudo o que
vê a seu redor. Os pobres sem emprego tornavam
-
se miseráveis, sem dinheiro para comprar
o pão, comiam coisas imundas, o que lhes causa doenças graves e contagiosas.
300
De 1693 a
1694 a maioria dos franceses e muitos estrangeiros eram atingidos e até mortos pela fome.
Em muitas localidades o número de mortos por ano chegava a duplicar, triplicar,
quadruplicar e muitas vezes chegava a ser ainda pior.
301
Conforme recorda Robert Mandrou, uma prece acabou por tornar-
se
tradicional
entre os franceses de então: “
libera nos a peste, fame et bello”. A fome era acompanhada de
epidemias, como a peste, uma enfermidade epidêmica, aliás, elas estavam estreitamente
ligadas. A série de más colheitas acarreta a fome e esta é imediatamente acompanhada da
doença, “fome da primavera, epidemia de outono”. Os longos períodos de fome vinham
acompanhados de epidemias mortíferas, que faziam vítimas no campo e nas cidades.
Contudo, nas cidades as epidemias eram piores, pois “o amontoamento
de populações, a má
urbanização, a ausência de esgotos criam um meio favorável” à proliferação das
enfermidades.
302
Segundo Pierre Goubert, “os antigos diziam, na opulente Borgonha, que
não faltava o “pão de samambaia”; em Vevarais, segundo o cúria de Sa
int
-
Just
-
en
-
Chevalet, encontravam-se pessoas mortas através dos prados com a boca cheia de ervas”.
Os registros paroquiais nos mostram que esta catástrofe era muito difundida, levando “pelo
menos um décimo de franceses ao cemitério em alguns meses”.
303
O pequeno oficial do bispado de Beauvais, muito mais que Boisguillebert e Vauban,
importantes economistas da época, percebeu que as causas da Grande Fome de 1693-1694
eram um fenômeno de acumulação, decorrente de uma série de más colheitas. “Certamente
‘as estações são desregradas’; mas elas estão desregradas vários anos seguidos: a colheita
299
GOUBERT, op. cit., pp. 257
-
258.
300
“‘Um número infinito de pobres, que a fome e a miséria fazem definhar, e que morrem nas praças e nas
ruas, nas cidades e no campo, por falta de pão e por miséria, e não têm de forma alguma ocupação e trabalho,
ele não tem dinheiro para comprar pão... A maioria desses pobres, para prolongar um pouco sua vida e
acalmar um pouco sua fome, por falta de pão comem coisas imundas como gatos, peles de cavalos esfolados
e lançadas à
voirie
, o sangue que escorre nos regos de bois e vacas que se mata, as tripas, intestinos e outras
coisas semelhantes que os
rôtissieurs
lançam na rua... Uma outra parte desses pobres comem raízes de ervas
e de ervas que eles fazem cozinhar na água, como são urtigas e outras semelhantes ervas... Outros vão
desenterrar favas e minúsculos grãos semeados nessa primavera... E tudo isso produz corrupções no corpo
humano, e diferentes doenças mortais e comunicativas, como febres escarlatinas... que atacam até mesmo as
pessoas ricas e acomodadas’”. apud GOUBERT, op. cit., p. 258.
301
Cf. ibid., pp. 258
-
259.
302
MANDROU, op. cit.,
p. 94.
303
GOUBERT, op. cit., p. 259.
64
de 1691 foi medíocre, a colheita de 1692, péssima, a de 1693, catastrófica; catastrófica, mas
não nula: o terço, a metade, os dois terços do normal, nos dizem e lá. Um fenômeno de
acumulação é a base da fome”.
304
As más colheitas levam ao aumento disparado dos preços.
305
As especulações
faziam aumentar o preço ainda mais, levando a motins da fome.
306
“Pois o preço permanece
o essencial. Miséria e fome, esses termos enganadores, significam simplesmente ‘carestia’.
Havia farinha e pão para todos, mas todos não podiam comprá-los. A fome é estritamente
uma calamidade social”. Para uma real compreensão dessas tragédias é preciso levar em
conta que, em algumas províncias, três quartos de camponeses eram incapazes de alimentar
sua família devido aos baixos pagamentos que recebiam por seu trabalho. Nos tempos de
carestia, faltava trabalho no campo; no melhor dos casos diminuíam-se os salários ou a
jornada de trabalho.
307
A fome empurrava os camponeses em direção das cidades, as quais
se protegiam atrás de suas altas muralhas. “As tropas de mendigos ameaçadores,
percorrendo o país e cercando as portas das cidades, são sempre os atores da fome”.
308
Na
cidade, os artesãos destinavam a metade de seu rendimento para comprar o pão para sua
família, mas em tempo de carestia, quando o preço do pão quadruplica ao mesmo tempo em
que o seu rendimento desaparecia, a sua situação torna-se desesperadora. Diante dessas
situações, eles podiam contar com a caridade, que nas cidades era insuficiente e nos
campos não existia.
309
Nas cidades havia algumas iniciativas caridosas, sobretudo religiosas
que defendiam os pobres, como a Compagnie du Saint-
Sacrement
em Lyon. Durante a
Guerra da Liga de Augsburgo
multipl
icaram
-
se as instituições de caridade.
310
A situação de miséria, mendicidade e mortalidade era lamentada por secretários de
Estado, intendentes, bispos e cúrias. A miséria foi testemunhada por administradores de
Estado, eclesiásticos e pessoas privadas. “Es
ses prantos chegavam aos controladores gerais,
ao rei, por uma inesgotável correspondência oficial”.
311
Os longos períodos de fome eram
304
GOUBERT, op. cit., p. 259.
305
“Como de costume, os preços amplificam enormemente os resultados decrescentes de colheitas. Do verão
de 1688 à primavera de 1694 eles quintuplicaram, sextuplicaram, e mais ainda”. ibid.
306
“As compras pelas tropas, as compras feitas antes da colheita e a baixo preço, uma especulação
vergonhosa (...), a facilidade de exportar por mar e a autoproveito
vidée
as províncias favorecidas [Bretanha],
o medo de faltar, um medo pânico que provocava novos motins de mercado e ataques de comboios, todos
esses fatores juntos o excesso mesmo do preço”. ibid., p. 260.
307
ibid., pp. 260
-
261.
308
MANDROU, op. cit., p. 94.
309
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 260
-
261.
310
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 118; GOUBERT, op. cit.,
p. 253.
311
MÉTHIVIER, op. cit., p. 118.
65
acompanhados de motins da fome, como “ataques de comboios de grãos, de moinhos
312
;
eram incontáveis as
jacqueries
do desesp
ero.
313
Qual a atitude de Luís XIV diante desta
calamidade? Ele era indiferente à miséria em que se encontrava a maioria de seus súditos?
“O Grande Rei exprimia a ‘seus povos’ sua comiseração, talvez sincera”. Por meio de seus
administradores de Estado, ele tomou algumas medidas referentes à política de mercado,
visando neutralizar os monopolizadores e ao mesmo tempo acabar com a mendicidade. No
entanto, suas medidas não chegavam a surtir muito efeito. Para se ter um exemplo, de
acordo com Pierre Goubert, “para alimentar um pouco Paris, que se amotinava, trigo foi
encomendado no Báltico, interceptado pelos holandeses, retomado por Jean Bart; uma
parte, apenas danificada, chega quase a tempo. A terapêutica oficial e privada não podia
naturalmente nada contra um
tal mal”.
314
Desde 1693, devido à grande fome, houve a diminuição de forças e do número de
contribuições, diminuindo consideravelmente o rendimento de todos os impostos: “nenhum
sargento (...) podia fazer pagar moribundos ou mortos”. O Estado teve de baixar tailles e
fermes
, sendo obrigado a reduzir suas despesas e a adaptar sua política e seus recursos
durante o período da guerra: “acelerar as últimas manipulações monetárias, instaurar
rapidamente a primeira capitação, e mesmo, fato memorável, diminuir em plena guerra as
despesas de guerra”.
315
Por volta de 1693-1694, todos os adversários estavam esgotados.
“A França conheceu uma terrível crise de subsistência e mortalidade que arruinou o fisco”.
Os adversários lançaram-se a fazer negociações secretas.
316
Um dos motivos das
negociações e concessões feitas por Luís XIV para findar esta guerra, que durou nove anos,
foi a situação de miséria em que a maioria de seus súditos se encontrava.
317
Críticas internas e externas à política belicosa do Grande Rei
O ano de 16
88 assinala o início da Guerra da Liga de Augsburgo como também o da
segunda metade do longo período de reinado pessoal de Luís XIV. No campo da política a
tendência era declinar, pois este segundo momento não foi tão bem sucedido quanto ao
primeiro. Conforme observa Peter Burke, este “foi um período sem paz nem vitórias. A
312
MANDROU, op. cit., p. 94.
313
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 119.
314
GOUBERT, op. cit., pp. 261
-
262.
315
ibid., pp. 262, 264.
316
CORVISIER, op. cit., p. 294.
317
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 60.
66
orgulhosa divisa ‘não inferior a muitos’, NEC PLURIBUS IMPAR, devia aparecer cada
vez mais inadequada numa época em que a França era cada vez mais incapaz de derrotar a
Grande Alliance de seus inimigos”. A Guerra da Liga de Augsburgo custou muito caro à
França, deixando-a profundamente endividada. Apesar de alguns êxitos alcançados, ela
acrescentou muito pouco à glória do Rei Sol. Esta foi a opinião tanto de seus
contemporâneos franceses
e estrangeiros como dos historiadores posteriores.
318
Na esfera da produção da imagem do rei também houve um considerável declínio.
Lully faleceu em 1687 e Le Brun em 1690, Racine já havia parado de escrever para o teatro
público antes de morrer em 1699, Boileau viveu até 1711, porém o seu trabalho não tinha a
mesma qualidade de antes. La Bruyère, que era o melhor escritor desta nova geração, fez
alguns elogios a Luís XIV, contudo, sobressaiu-se como crítico da corte e da política real.
Neste período houve uma “crise da literatura francesa”. Os espetáculos magníficos ainda
eram apresentados na corte, no entanto, eram obras de artistas menores.
319
No início da Guerra da Liga de Augsburgo até o final do reinado, o grave problema
financeiro do Estado levou Luís XIV a quase anular completamente o patrocínio sobre as
artes.
320
Mesmo assim, os principais acontecimentos da Guerra da Liga de Augsburgo
foram celebrados em verso e em prosa, porém, numa escala bem inferior às décadas de
1660 e 1670. Tomas l’Herault de Lionnère publicou um panegírico narrando os eventos
militares de 1689; a Tomada de Namur foi comemorada pela ode de Boileau de 1692 e por
pinturas e gravações. 45 medalhas foram cunhadas para celebrar os episódios desta guerra:
16 delas exaltaram as batalhas em terra e no mar, 20 celebraram as capturas de cidades e
conquistas de territórios. Em 1689, o jesuíta Menestrier publicou sua Histoire du roy Louis
le Grand par les médailles, para glorificar o rei. A Petite Académie viu este
empreendimento individual como uma usurpação de seu monopólio, chegando a protestar
318
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp.
119
-
120.
319
Cf. ibid., pp. 121-122. Jules Hardouin Mansart, um arquiteto que em 1699 tornou-se superintendente das
construções, no lugar de Villacerf, Antoine Coysevox, nomeado a diretor da Académie Royal em 1702, e
Hyacinthe Rigaud, o pintor, apesar de serem artista talentosos “não substituíram a plêiade de talentos que
outrora servia ao Rei Sol”. ibid., p. 121.
320
“De todo modo, os problemas financeiros do Estado limitava naturalmente seu patrocínio. O período
1689-1715 poderia muito bem ser qualificado de ‘a Grande Compressão’. A decisão de fundir os acessórios
de prata de Versalhes em 1689 é apenas o exemplo mais notório do impacto da guerra sobre as artes. A
construção e decoração de Versalhes foram interrompidas por algum tempo. Com a morte de Louvois, o
trabalho de reconstrução da Place Vendôme foi interrompido por ordem do rei. O pagamento de pensões foi
suspenso, bem como as atividades da imprensa real. A história metálica foi adiada, enquanto a Academia de
Ciências teve de abandonar alguns de seus mais prestigiosos projetos, como a Histoire des plantes”. ibid., p.
122.
67
contra as edições posteriores, e imediatamente tratou de fazer a sua história numismática do
reinado, que só foi publicada em 1702.
321
Ao observar o grande contraste entre os festejos empreendidos em nome de Luís
XIV, para celebrar os sucessos obtidos na Guerra da Liga de Augsburgo, e a miséria dos
franceses, diz Voltaire: “perecia-se de miséria ao som do Te Deum e entre as
festividades”.
322
Em contraposição às apresentações oficiais que representavam a imagem heróica de
Luís XIV havia os dissidentes que esforçavam-se para desheroicizá-lo. Segundo Peter
Burke, “a imagem heróica de Luís XIV o era a única em circulação. Havia o ‘reverso da
medalha’, como assinalava um poema manuscrito do final do reinado”.
323
Havia dois tipos
de divergentes. O primeiro tipo era constituído por súditos que se apresentavam como
sendo leais ao rei e que desejavam apenas aconselhá
-
lo, como Fénelon e La Bruyère.
324
A Grande Fome, ocorrida durante a Guerra da Liga de Augsburgo, acelerou a
explosão de uma oposição no interior do reino.
325
Nesta categoria sobressaiu-se o burguês enobrecido Jean de La Bruyère (1645-
1696), em sua famosa
Les
Caractères
. Jean de La Bruyère nasceu em 1645, filho de um
controlador das rendas da cidade de Paris. Fez humanidades, talvez junto dos oratorianos.
Foi licenciado em direito, exercendo sua atividade por alguns anos, no escritório de Paris.
Em 1673 comprou um cargo de Tesoureiro da França no Escritório de Finanças de Caen, o
qual lhe confere o enobrecimento. Em 1680 foi apresentado a Bossuet. Sob a
recomendação deste, o príncipe de Condé o nomeou como preceptor de seu neto, Louis,
duque de Bourbon. Por estar ligado à casa de Condé, a partir daí La Bruyère é alojado em
321
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 122, 127.
322
ANDRÉ, op. cit., p. 251.
323
BURKE, 1994, op. cit., p. 147. “Conservamos um número considerável de imagens alternativas do Rei
Sol, bem menos lisonjeiras que as oficiais. Por vezes Luís XIV foi representado especialmente pelo pintor
holandês Romeyen de Hooghe
não como Apolo, mas como Faetone, que perdeu o controle do carro do Sol.
Para alguns críticos ele não era Augusto, e sim Nero. Para os protestantes, inspirados na Bíblia, não era
Salomão nem Davi, e sim Herodes ou Faraó”. ibid., p. 149.
324
Cf. ibid., p. 147.
325
Desde 1694, Vauban começava a pensar sua Dixme Royale; Boisguillebert publica seu Détail de la
France
, em 1695, “que sublinha bem mais a lenta decadência da economia real que a recente fome, mas atrai
a atenção sobre a importância do problema do trigo e o absurdo do sistema fiscal, que acentua a miséria
rural”. GOUBERT, op. cit., p. 262. Nesta obra, segundo Paul Hasard, “Boisguillebert mostra que a França,
em outro tempo o reino mais rico do mundo, tem perdido cinco a seis milhões de suas rendas anuais; e este
déficit aumenta cada dia. A talha está repartida tão injustamente, que pesa sobre os pobres e não agravam os
ricos; com este sistema, os pobres se têm convertido em miseráveis: o reino inteiro vai a sua ruína”. Vauban
dizia que a mudança na distribuição dos impostos se fazia urgente. É bom lembrar que Boisguellebert e
Vauban não eram críticos rebeldes, mas sim homens de Estado, preocupados em solucionar os problemas da
receita, em melhorar os recursos do Estado. Cf. HASARD, Paul. La crisis de la conciencia europea (1680-
1715)
.
Madrid: Alianza Editorial, 1988,
p. 237.
68
Paris, Versalhes e Chantilly. Em 1686, com o casamento de seu aluno, ele é liberado do
preceptorado, mas ficou junto da família do antigo aluno e continuou a receber uma
pensão. Com o título de Gentilhome ordinaire, La Bruyère é gratificado por uma pensão.
Ele exerce a função de secretário e de bibliotecário e pede demissão do cargo de
Tesoureiro do Escritório de Caen. Em 1693 é eleito e recebido na Académie Française
.
Talvez sob o incentivo de Bossuet, em 1695 ele escreveu seus
Dialogues
a respeito do
Quietismo.
326
Les
Caractères
foi uma
obra
publ
icada em 1688 e reeditada nove vezes. As oito
primeiras edições da obra ocorreram durante a vida do autor, sendo melhoradas e
acrescentadas sucessivamente, e todos os exemplares vendidos enquanto ele era vivo.
327
Diante da grande miséria da França, a condição dos camponeses era criticada por La
Bruyère.
328
Em
Les
Caractères
, La Bruyère lamenta a miséria a que o povo era submetido
enquanto Luís XIV empreendia as suas guerras de conquista. Segundo La Bruyère,
que lucrarão os povos, que vantagens e tranqüilidade lhe trará o príncipe que ambiciona
alargar o seu império conquistando as terras dos inimigos, anexando novas províncias a seu
país? Que felicidade advirá de qualquer soberano superior aos outros pelas capacidades
guerreiras, de modo a que ninguém esteja s
eguro perante a sua força, e que as várias nações
se liguem para se defender dele e para o deter, embora ele triunfe sempre? De que me
serviria, numa palavra, a mim como ao povo inteiro, que o príncipe e a sua família fossem
felizes e gloriosos, que a minha pátria fosse poderosa e formidável se triste e inquieto, eu
nela vivesse na opressão e na indigência.
329
As críticas de Fénelon (1651-1715), prelado aristocrata e preceptor do segundo
Delfim, eram muito mais rudes e audaciosas que as de La Bruyère. François de Salignac de
la Mothe, escritor e orador francês, segue a carreira sacerdotal. Ele nasceu em 6 de agosto
326
Cf. PIGNARRE, Robert. “Cronologie”. In: LA BRUYÈRE, Jean.
Les
caractères
. Paris: Garnier-
Flammarion,
1965, pp. 5-9. Em 1696, ele morreu em Versalhes, “abatido por dois ataques seguidos de
apoplexia”. ibid., p. 9.
327
Cf. BARROS, João. “Prefácio”. In: LA BRUYÈRE. Os caracteres. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1941, p. XII. Inspirado nos
Caractères
de Teofrasto, La Bruyère escreveu Les
Caractères
, mas foi
muito além do modelo original. Nesta obra, ele retratou as características e os costumes do século XVII. Les
Caractères
foi uma obra escrita por La Bruyère entre 1686 e 1687. Neste ano, ele a entregou para ser editada
pela Livraria Etienne Michallet. Em 1688 a obra é publicada, sem o nome do autor. No mesmo ano saem a 2ª
e a edições, sem acréscimos e modificações importantes. A edição sai em 1689, sendo ‘corrigida e
aumentada’ com 674 novas observações. Em 1690 é a vez da edição com acréscimos de 159 novas notas.
A edição sai em 1691, com 74 novas observações; trazendo o sobrenome do autor pela primeira vez. Em
1694 a edição é ‘revista, corrigida e aumentada’, com 47 novas observações. No ano de sua morte, em
1696, a edição é “‘revista, corrigida’ por seus cuidados, mas não aumentada”. Em 1699 sai a 10ª edição,
que é uma simples reimpressão da 9ª. De 1700 a 1800 houve mais de 40 reimpressões da obra. Cf.
PIGNARRE, in LA BRUYÈRE, op. cit., pp. 8
-
10.
328
Cf. HASARD, op. cit., pp. 236
-
237.
329
LA BRUYÈRE.
Os caracteres
. Lisboa: Livraria Sá da Costa
Editora, 1941,
pp. 135
-
136.
69
de 1651 no castelo de Fénelon, em Périgord, que pertencia a sua família. Fénelon é o seu
nome literário. Foi educado em casa até os 12 anos. Seu preceptor ensinou-lhe o grego e o
latim para que pudesse ler as obras primas da literatura clássica. No colégio Du pressis em
Paris fez teologia. Foi incumbido de pregar o seu primeiro sermão aos 15 anos de idade,
obtendo muito sucesso. Do Colégio Du Pressis passou ao seminário de Saint-Sulpice, onde
fez filosofia. Neste seminário, ele foi ordenado padre em 1675. Durante três anos,
desempenhava suas funções eclesiásticas: explicava os textos evangélicos ao público, aos
domingos e dias santos, e ensinava o
catecismo.
Na sua época, ele tinha grande reputação
como pregador. O jovem sacerdote queria ir ao Oriente, em missão apostólica, para
converter os pagãos ao cristianismo. Mas a sua missão foi dirigir por muitos anos a
Nouvelles catoliques, uma instituição que objetivava acolher e reeducar as jovens senhoras
recém convertidas ao catolicismo. A duquesa de Beauviller solicitou-lhe que escrevesse um
livro para orientá-la na educação de suas filhas. Foi então que em 1687 Fénelon publicou
seu
Traité de l’éducatio
n des filles
, o qual constituiu
-
se
na primeira obra importante em sua
carreira de escritor e educador. Este livro alcançou um imenso sucesso, tornando
-
se obra de
referência para as famílias da época. E lhe rendeu até a nomeação de preceptor do duque de
Bor
gonha, o filho do Delfim, em 1689. Entrou na Académie Française em 1693. Em 1695
escreveu a Lettre à Louis XIV, na qual fez uma crítica violenta do governo deste rei.
Fénelon era discípulo de Bossuet. Mas a partir de 1688, influenciado pela doutrina quieti
sta
de Molinos, ele inclinaou
-
se para o misticismo, Bossuet lhe retirou a sua amizade.
Em 1694
iniciou
-se a questão do Quietismo, com a conferência de Issy. Em 1695 Fénelon foi
nomeado a arcebispo de Cambrai. Neste ano, ele assinou “os trinta e quatro artigos de Issy
sobre os ‘estados de oração’”.
330
Em 1697 publicou as Maximes des Saints. A partir daí as
graças oficiais passaram a declinar. Em 1699, o arcebispo caiu em desgraça perante a Santa
e perante Luís XIV: a querela do quietismo o opôs violentamente a Bossuet, Inocêncio
XII condenou as suas Maximes des Saints, ele perdeu os títulos e pensões; neste mesmo
ano, o seu romance pedagógico Les aventures de Telémaque
331
foi publicado, Luís XIV
descobriu que o seu governo era imensamente criticado por ele nesta obra e ordenou que
330
Cf. PIGNARRE, in LA BRUYÈRE, 1965, op. cit., p. 9.
331
Além de pedagogo ao serviço da aristocracia, Fénelon é um moralista e tratadista político. Ele passa à
posteridade graças a esta obra. Sob a aparência de uma novela passada na antiga Grécia, Fénelon propõe
idéias políticas e morais para a educação dos príncipes, particularmente
a do duque de Borgonha.
70
ficasse exilado na diocese de Cambrai.
332
Mas, mesmo exilado, Fénelon continuou a
publicar.
333
Como observa Touchard, “o ‘cisne de Cambrai’ escreveu páginas de uma extrema
violência”.
334
Em seus inúmeros escritos panfletários, Fénelon criticava o regime e
propunha reformas.
335
Em sua longa e eloqüente Lettre à Louis XIV
336
, Fénelon segue o
mesmo ritmo de La Bruyère, mas vai além. Ele critica Luís XIV por preferir alimentar sua
glória a alimentar o seu povo, advertindo que o povo está prestes a s
e reunir e a empreender
uma revolução contra ele.
337
Nesta carta, o grande objetivo de Fénelon consiste não em descrever os problemas
da França, mas em utilizá-los com finalidades políticas. A carta mostra o nascimento de
uma oposição que irá se desenvolver em torno do neto de Luís XIV, o duque de Borgonha,
de quem Fénelon é o preceptor. Conforme salienta Pierre Goubert, nesta longa carta,
lavrada em estilo literário, Fénelon expressa toda a sua política: “fim das conquistas, paz a
todo preço, prioridade à reconstrução interna, proteção da nobreza tradicional rebaixada, da
nobreza de
robe
diminuída”. É bom lembrar que Fénelon era um representante de uma
aristocracia que não se conformava em ter perdido os seus direitos políticos no processo de
centralização de poderes da monarquia absolutista, como também em ser suplantada pela
332
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 285.
333
Entre 1700 e 1712, Fénelon publica
Fábulas
e
Diálogos dos mortos, sendo que este ele dedica ao duque
de Borgonha. Em O exame de consciência de um rei, transparece suas esperanças de uma reforma p
olítica.
Entre as suas inúmeras obras destacam
-
se, ainda,
Diálogos sobre a Eloqüência
e a
Carta sobre as Ocupações
da Academia Francesa
.
Em 1711 morre o primeiro Delfim, de quem Bossuet foi o preceptor. O seu filho,
duque de Borgonha, aluno de Fénelon, tor
na
-
se Delfim. Animado, Fénelon escreve as
Tables de Chaulnes
, na
qual expõe o plano de governo que espera ser seguido por ele caso venha a reinar na França. Segundo
Touchard, Fénelon pertence (...) ao grupo que tenta impor-se através do duque de Borgonha; participa com o
duque de Chevreuse, de quem é amigo, na elaboração de um plano de governo: as Tables de Chaulnes
(1711). Sem a morte prematura do duque de Borgonha”, em 1712, “a obra de Fénelon teria podido constituir
a doutrina política do sucessor de Luí
s XIV”.
Cf. TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 16.
334
ibid.
335
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 124.
336
Fénelon enviou esta carta à Madame de Maintenon para que ela a entregasse a Luís XIV, mas, segundo
Touchard, este “ousado panfleto (...) nunca foi entregue ao rei”.
TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 17.
337
De acordo com Fénelon, “vosso povo, Sire, que voz deverieis amar como vossos filhos e que foram até
aqui tão apaixonados por vos, morrem de fome. A cultura das terras é quase abandonada; as cidades e os
campos se despovoa
m; todos os serviços esmorecem e não alimentam mais os trabalhadores; todo o comércio
é aniquilado... Vos tendes destruído a metade das forças reais do interior de vosso Estado para fazer e para
defender vãs conquistas no exterior. Em lugar de tirar dinheiro desse povo pobre, seria preciso lhe fazer
esmola e alimentá-lo. A França inteira não é mais que um hospital desolado e sem provisões. Os magistrados
estão humilhados e esgotados. A nobreza (...) quer cartas de Estado. Vós tendes importunado a multidã
o
de gentes que murmuram. É vós mesmo, Sire, que vós tendes atraído todo esse embaraço... O povo mesmo...,
vossas vitórias e vossas conquistas não os alegram mais, ele está pleno de azedume e de desespero. A sedição
se acende pouco a pouco de todas as partes. Ele crê que vós não tendes nenhuma piedade de seus males, (...)
que vós amavas vossa autoridade e vossa glória. Se o Rei tivesse um coração de pai para seu povo, não
colocaria antes sua glória a lhe dar pão, e a lhes fazer respirar após tanto mal que guardar alguns lugares da
fronteira que causam a guerra?” apud GOUBERT, op. cit., pp. 262
-
263.
71
nobreza de
robe
. “Desde já, o grupo de Fénelon preparava seus dossiês, para lançar junto
aos intendentes de província a grande pesquisa de 1697-1698, que devia expor o
esgotamento da França, para fins políticos”.
338
Em
Les aventures de Telémaque, conforme constata Paul Hasard, o princípio do
direito divino não foi discutido por Fénelon. Porém, esse livro permaneceu famoso por
muito tempo, sendo difundido em milhares de exemplares.
339
O teor desta obra é
praticamente o mesmo do teor da Lettre à Louis XIV.
Em
Les aventures de Telémaque
,
aparece o sentimento de horror de seu autor em relação ao fato de Luís XIV utilizar os
recursos da nação para as construções e para as guerras visando aumentar sua glória
enquanto seu povo morre de fome.
340
Nesta obra aparece também a idéia do “valor do
povo”. Fénelon adverte que o rei deve governar em favor do povo. Do contrário, esse povo
oprimido será uma ameaça ao rei, pois se rebelará contra ele na primeira oportunidade que
surgir.
341
De acordo com Paul Hasard, nas Aventures de Telémaque, as perguntas que o
personagem
Telémaque
dirige a Idomeneu são as mesmas que o audacioso Fénelon dirige
ao duque de Borgonha, seu aluno, no caso de exercer o poder futuramente: “conheceis a
constituição do reino?; haveis buscado os meios de aliviar as massas?; como apartareis de
vossos súditos os males criados pelo absolutismo?; pela má administração, pela guerra?’’
342
Segundo Touchard, Fénelon é o representante mais célebre da oposição aristocrática
ao absolutismo de Luís XIV. O autor chama a atenção para as três características dessa
oposição:
1) Esta oposição ao absolutismo conserva-se firmemente monárquica. Fénelon (...) mantém
em face da realeza uma lealdade sem quebra. Propõe-lhe formas muitas vezes ousadas, mas
não pensa nem numa república, nem numa monarquia constitucional. 2) O pensamento
destes oponentes permanece profundamente religioso. Isto é nítido em Fénelon, cuja obra
política não pode ser estudada independentemente das controvérsias acerca do
galicanismo
338
GOUBERT, op. cit., pp. 263
-
264.
339
Cf. HASARD, op. cit., pp. 235
-
236.
340
“Enquanto tinhas no exterior tantos inimigos que ameaçavam vosso reino ainda mal seguro, não pensavas
dentro de vossa nova cidade mais que em fazer nela obras magníficas... Haveis esgotado vossas riquezas; não
haveis pensado nem em engrandecer a vosso povo nem em cultivar as terras férteis... Uma vã ambição os tem
empurrado até a borda do precipício. A força de querer parecer grande, haveis pensado arruinar vossa
verdadeira grandeza”.
apud Hasard, op. cit., p. 236.
341
Paul Hasard cita outros trechos da célebre carta de Fénelon, mostrando
-
nos que, segundo este, “‘os deuses
não têm feito o rei para ele mesmo; só o é para ser o homem dos povos: deve ao povo todo seu tempo, todos
seus cuidados, todo seu afeto; é digno da realeza enquanto se esquece de si mesmo para sacrificar-se pelo
bem público...’
‘Sabe que só éis rei enquanto tens povos pa
ra governar...’ Mais ainda! O povo oprimido não
deseja mais que vingar
-
se dos reis; e então sonha com a hora das revoluções”.
HASARD, op. cit., p. 236.
342
ibid., p. 237.
72
e do quietismo; o ponto de litígio entre Fénelon e Bossuet revela-se simultaneamente de
natureza religiosa e política (...). 3) A oposição aristocrática tem a preocupação das
realidades populares. Fénelon não hesita em pôr a nu a miséria popular, e conhecemos
algumas páginas de La Bruyère sobre as condições dos camponeses.
343
Na França, sob Luís XIV, as críticas internas não ofereciam o mesmo perigo que as
críticas vindas dos refugiados protestantes, sobretudo as de Pierre Jurieu.
344
No entanto, as
obras de Fénelon e de La Bruyère foram muito difundidas na época. Certamente, essas
críticas internas representavam uma certa ameaça ao poder constituído, principalmente as
de Fénelon, nas Aventures de Telémaque. O seu retiro forçado na diocese de Cambrai não
deixa nenhuma dúvida a este respeito.
O outro grupo de opositores era de longe o mais ameaçador, formado pelos inimigos
de Luís XIV e de seu regime. A maioria deles concebia suas críticas nos momentos em que
a França fazia guerra contra seu país respectivo, Holanda, Inglaterra e Sacro Império
Romano
-Germânico. As representações de oposição, criticando o rei da França, eram
veiculadas por meio de poemas, medalhas, pinturas e gravuras, como também através de
diferentes formas de textos em prosa em francês, latim, holandês, inglês, alemão e italiano,
o que demonstra o desejo dos críticos em atingir toda a Europa e os diferentes níveis
sociais. Entre os principais temas de denúncia encontravam-se a ambição de Luís XIV, sua
tiran
ia e sua falta de escrúpulos em matéria de moral e de religião.
345
Entre os que criticavam a ambição de Luís XIV dizendo que ele queria dominar toda
a Europa, por meio de uma monarquia universal, destacou
-
se o famoso panfleto
Le bouclier
d’État
(O escudo
de Estado), redigido em 1667, quando da Guerra da Devolução, por Franz
Paul von Lisola, embaixador do Imperador Leopoldo I. De acordo com Mousnier, neste
panfleto, Lisola “acusou a política armamentista de Luís XIV de só encontrar explicação na
vontade decidida de conquistar toda a Europa. A cristandade sentia-se ameaçada. Era
preciso que a Europa se armasse, se unisse ou, então, que aceitasse ser escrava dos
franceses”.
346
Johan Joachim Becher, que também trabalhava para Leopoldo I, escreveu o
seu
Machiavell
us Gallicus
(O Maquiavel Francês), em 1674, durante a Guerra da Holanda.
O mais famoso dentre estes autores foi o filósofo alemão Gottfried Willhelm Leibniz
(1646
-1716). Leibniz nasceu no dia de julho de 1646, em Leipzig, numa família de
juristas. Seu pai era professor de filosofia moral. A sua educação escolar foi negligenciada.
343
TOUCHARD, v. 4, op. cit., pp. 14
-
15.
344
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 124.
345
Cf. BURKE
, 1994, op. cit., pp. 147, 149.
346
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 312.
73
Porém, desde criança ele explorava a vasta biblioteca de seu pai. Em sua autobiografia ele
reconhece que foi um autodidata.
347
Ainda criança, Leibniz leu os autores antigos, Platão e
Aristóteles. Aos quinze anos começou a ler os filósofos modernos, Bacon, Descartes,
Hobbes e Galileu. De um espírito universal, dotado de grande inteligência e genialidade,
Leibniz interessou-se por diversos campos do saber. Cursou filosofia em Leipzig,
matemática em Jena, jurisprudência em Altdorf e filosofia. Ele termina seus estudos
universitários em 1666. Dois anos depois começa a trabalhar para o barão de Boineburgo,
que o fará viajar a Paris numa missão diplomática. Assim, Leibniz vive em Paris de 1672 a
1676. Este seu primeiro protetor morre. Em 1676, João Frederico, príncipe de Hanover, o
nomeará ao cargo de bibliotecário-chefe da cidade, introduzindo-o na corte.
348
Em
Hanover, Leibniz instala-se como conselheiro de João Frederico. A partir daí Lei
bniz
encontra
-se vinculado à Casa de Brunswick-Luneburgo, tornando-se também historiógrafo
dessa dinastia. Vinculação esta que permanecerá durante o reinado dos sucessores de João
Frederico: ao reinado de seu irmão, o duque Ernesto Augusto, seu sucessor, e para a
duquesa, logo princesa Sofia, sua mulher, como também ao reinado de Jorge Luís, filho de
Ernesto Augusto, até 1716, ano da morte de Leibniz. A vinculação de Leibniz às cortes de
seus protetores possibilitará com que realize viagens importantes, como é o caso de sua
viagem a Paris em 1672, e entre em contato com as pessoas mais ilustres da esfera
intelectual de sua época, entre eles Bossuet. Leibniz entrou para a Royal Society de
Londres, foi sócio da Academia Científica de Paris e de Berlim, que fundou. Em 1711
viajou para a Rússia, onde aconselhou o czar Pedro o grande. Em 1713 foi elevado a
conselheiro da corte de Viena. Ele faleceu em 14 de novembro de 1716.
349
Por meio dos
diversos textos de Leibniz é possível perceber que em todo momento ele “foi mais que um
vulgar funcionário”.
350
Ao seu modo, Leibniz foi um homem comprometido com os
347
Cf. PRENANT, L. “Preface”. In: G. W. LEIBNIZ. Oeuvres choisies. Paris: Garnier Frères, s. d. (Avec
préface, notes, table par questions et table des nomes propres par L. Prenant), p. II.
348
Cf. ORTUETA, Jaime de Salas. In: G. W. LEIBNIZ. Escritos de filosofia jurídica y política. Madrid:
Editora Nacional, 1994. (edicion preparada por Jaime de Salas Ortueta), nota de rodapé, p. 217.
349
Cf. PRENANT, in LEIBNIZ, op. cit., pp. V, VII; ORTUETA, i
n LEIBNIZ, op. cit., pp. 10, 204.
350
ibid., p. 204. Cf. LE ROY, Georges. “Introduction”. In: Leibniz. Discours de métaphisique et
correspondence avec Arnauld. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1957. (Introduction, textes et
comentaire par Georges Le Roy, professeur à la Faculté de Lettres de Dijon), p. 7.
74
problemas de sua época.
351
Desde o início de sua vida intelectual até o fim de sua vida, o
filósofo alemão trabalhou arduamente para fundar academias.
352
Como diplomata e conselheiro de príncipes, Leibniz afrontou a situação política do
momento.
353
Em 1672, buscando evitar a guerra da França contra a Holanda, Leibniz
propôs a Luís XIV uma possível expedição ao Egito.
354
Redigiu vários panfletos criticando
a política expansionist
a de Luís XIV e convidando os príncipes do Império a se unirem para
se defender.
355
Além disso, elaborou um plano de como organizar um exército.
356
O
Mars Christianissimus (O Cristianíssimo Marte), concebido em 1683, após a
tomada de Estrasburgo, dirigido contra a política expansionista de Luís XIV, foi o mais
conhecido dos panfletos de Leibniz. Ele o escreveu em latim, traduzindo-o rapidamente
para o francês, pois era aos franceses, especialmente ao rei e aos seus conselheiros, que
Leibniz se dirigia. Entre 1
666 e 1716, início de sua vida intelectual até a sua morte, Leibniz
foi um pensador engajado e buscou intervir ativamente na política européia.
357
Uma das maiores características de Leibniz era a moderação. Desse modo, ele
procurou fazer as críticas à política belicosa de Luís XIV de uma maneira muito discreta.
Conforme ressalta Jaime de Salas Ortueta, neste panfleto “Leibniz burlonamente assume a
posição de um alemão partidário da postura francesa”.
358
Primeiramente, Leibniz tece
elogios a Luís XIV, dizendo que este rei não tinha a obrigação de dar satisfações ao mundo
de seus atos
359
; que na época não havia ninguém que tivesse recebido de Deus maior poder
na esfera temporal que ele
360
; como Luís XIV era o rei mais poderoso da terra, ele tinha o
351
Cf. ORTUETA, in LEIBNIZ, op. cit., p. 10.
352
Cf. ibid., pp. 9
-
10; DILTHEY, Wilhelm.
Leibniz e a sua época
. São Paulo: Livraria Acadêmica Saraiva &
Cia, 1947. (Prefácio do doutor Joaquim de Carvalho. Professor da Faculdade de Letras de Coimbra), pp. 42,
53, 59.
353
Segundo Naert, “é certo que de todos os filósofos da época clássica, Leibniz é aquele que se envolveu
mais ativamente na política. Diríamos dele, no momento atual, que ele foi ‘um escritor engajado’. (...) Ele
não se satisfaz de intenção: participa dos eventos de seu tempo como testemunha as vinte mil cartas escritas a
mais de seiscentos correspondentes; ele maneja encontros, logo, ele remove céu e terra; a terra sobretudo,
pois ele toma parte de todas as controvérsias”. NAERT, Émilienne. La pensée politique de Leibniz
.
Paris:
Presses Universitaires de France, 1964, p. 2.
354
Cf. VALENTIE, Maria Eugênia.Uma metafísica Del hombre: ensayo sobre la filosofía de Leibniz.
Tucuman: Instituto de Filosofia, Universidade Nacional de Tucuman, 1956, nota de rodapé, p. 44;
DILTHEY, op. cit., p. 52; ORTUETA, in LEIBNIZ, op. cit., p. 204, nota de rodapé, p. 207.
355
Cf. ibid., pp. 204
-
205, 235.
356
Cf. ibid., p. 241.
357
Cf.. ibid., nota de rodapé, p. 247. Este pan
fleto encontra
-
se nesta coletânea nas páginas 247
-
285.
358
ibid., nota de rodapé, p. 247.
359
G. W. LEIBNIZ. Escritos de filosofia jurídica y política. Madrid: Editora Nacional, 1994. (Edicion
preparada por Jaime de Salas Ortueta), p. 248.
360
Cf. ibid., p. 2
52.
75
direito de fazer o que quisesse.
361
Em seguida, Leibniz faz suas críticas, mas alerta que está
apenas demonstrando em seu texto o que os inimigos dos franceses diziam publicamente:
que “o rei prefere humilhar aos holandeses pelas armas a oferecer-lhes uma paz que estes
estavam
dispostos a receber de suas mãos”
362
; que só depende da França “em dar a paz ou a
guerra à Europa cristã, os mais apaixonados a fazem responsável do sangue derramado na
cristandade”. Leibniz critica a falta de razão com que Luís XIV fez a guerra contra a
Ho
landa; em sua concepção, todas os atos violentos cometidos em seguida por Luís XIV
contra a Alemanha e Países Baixos, entre outros, resultaram dessa guerra: os inimigos de
Luís XIV dizem que “a guerra contra os holandeses tem estado tão afastada de toda
ap
arência de razão [estou falando como o fazem os inimigos da França] que não se tem
podido encontrar um pretexto; e, sem dúvida, todas as violências que depois tem
cometido França em Alemanha, Países Baixos e outros lugares, não tem podido ser
explicadas
mais que como conseqüências inevitáveis dessa guerra”. Para ele, a tomada de
Estrasburgo, além de ter sido realizada sem razão, foi um ato arbitrário de Luís XIV:
“sustentam que a tomada de Estrasburgo foi um ato da política mais violenta e otomana que
ja
mais um príncipe cristão tenha ousado praticar e que é o cúmulo do cinismo pretender
justificá
-
lo”.
363
Comparar os atos de Luís XIV aos do turco otomano era uma forma
encontrada pelos europeus de mostrar as arbitrariedades do absolutismo, que dirá então
dize
r que os atos do rei francês eram piores que aos do sultão, como faz Leibniz neste
panfleto. Por fim, Leibniz censura Luís XIV por ser o perturbador da paz, em causar, por
meio de suas guerras, a morte e a miséria dos povos pensando apenas em exaltar a sua
glória:
aqueles que têm sido recentemente despojados, atormentam-se e reviram céu e terra com
palavras trágicas, mostrando-nos os campos inundados de sangue cristão para satisfazer a
ambição de uma só nação, única perturbadora da paz pública, e fazendo-nos ver as
milhares de pessoas imoladas pela espada, pela fome e as misérias, com o único fim de
gravar nas portas de Paris o nome de Luís o Grande com letras de ouro: ‘só depende da
França
dizem
fazer a Europa pacífica e feliz’.
364
361
Segundo Leibniz, “viemos dizendo sobre o direito de Deus sobre todas as coisas, que ele é o mais
poderoso. E o mais poderoso depois d’Ele – excetuando o diabo – é, sem dúvida, Sua Cristianíssima
Majestade”. Leibniz, 1994, op. cit., p. 253.
362
ibid.
, p. 257.
363
Cf. ibid., pp. 266
-
268.
364
ibid., p. 270.
76
Entre as acusações a Luís XIV encontrava-se também à de transgressão ao direito
internacional. Peter Burke demonstra que os inimigos criticavam Luís XIV porque ele
estava “‘invadindo, queimando, destruindo, pilhando, saqueando e eliminando as
populações dos territórios e domínios de seus pacíficos vizinhos cristãos’, e especialmente
pela ‘crueldade e barbarismo’ da invasão francesa do Palatinado”. Aliás, segundo o autor,
“esse evento foi qualificado de um exemplo de ‘crueldade mais que turca, tártara,
bárbara!’{
O mehr als türckische, tartarische, barbarische Grausamkeit!}, ou, para citar o
título de um panfleto alemão, da ‘
Razão francesa de Estado
”.
365
O imenso amor próprio do rei também era criticado. Os panfletistas criticavam os
louvores feitos a ele por seus bajuladores, os altos custos da construção de Versalhes e suas
estátuas, sobretudo a instalada na Place des Victoires, pois, assim como Versalhes, serviam
apenas para alimentar a sua vaidade desmedida. Somente é possível compreender o impacto
dessas acusações levando em conta que elas se faziam enquanto as campanhas oficiais
buscavam apresentar Luís XIV como um herói.
366
É impressionante como os ataques a Luís XIV foram bem maiores nas décadas de 80
e 90. Exatamente no período que se estende da revogação do Edito de Nantes ao fim da
Guerra da Liga de Augsburgo, diminuindo no período pós-guerra até ao final do seu
reinado.
367
1697-
1701: Período entre guerras
Com o fim da Guerra da Liga de Augsburo, em 1697, a França experimentou um
certo alívio. A paz acrescida de excelentes colheitas do final de 1694 e 1695 proporcionava
a diminuição dos impostos, a diminuição de preços do trigo e pão, a retomada do comércio
e da manufatura e trabalho abundante. Em 1698 houve uma colheita ruim, o que fez com
365
BURKE, 1994, op. cit., p. 149.
366
Cf. ibid., pp. 151-152. Os escritores e artistas dissidentes usavam os mesmos temas dos meios oficiais
invertendo
-os. Assim, em vez de sol Luís XIV era comparado a um meteoro, Faetone em vez de Apolo, o
apóstata Juliano em vez de Constantino. E sua divisa de ‘não inferior a muitos’, no período da Grande
Aliança foi descrita como ‘o francês que ficou inferior a muitos’, trocavam seu título oficial de ‘Luís o
Grande’ por ‘Petit’, Grande apenas na ambição; o seu título oficial de ‘Cristianíssimo rei’ por
‘Cristianíssimo Marte’. ibid., pp. 155
-
156.
367
Peter Burke nos chama a atenção para o fato de que, “a cronologia desses ataques a Luís é digna de nota
em
um
corpus
de 75 textos (...) que tratam da pessoa de Luís XIV com algum detalhe. Quatro textos [entre
os quais o famoso Escudo de Estado] datam da década de 1660, a década da Guerra da Devolução. Seis
textos datam da década de 1670, a do ataque à República Holandesa. O g
otejar só se tornou um fio d’água na
década de 1680, com 16 textos, entre os quais o famoso Os suspiros da França escrava e outras críticas da
revogação do Edito de Nantes. O fio d’água tornou-se um jorro na década de 1690, com 35 textos [sete
apenas do an
o 1690]. Em seguida ele seca; há apenas 14 textos do período 1700
-
1715”. ibid., p. 158.
77
que o preço do trigo dobrasse ou triplicasse em alguns lugares. Porém, essa carestia não
causou catástrofes demográficas ou econômicas. O reino foi poupado das epidemias que,
em outros países da Europa, no momento eram brutais. Após a guerra, a tarefa mais urgente
era diminuir a gigantesca dívida do reino que consistia em mais de 300 milhões de francos.
Com a paz e a recuperação do comércio e manufaturas veio o aumento dos rendimentos
reais, com isto houve uma forte diminuição da dívida.
368
Luís XIV mal esperou assinar o último tratado de Ryswick com o Imperador, em
outubro de 1697, e passou a se ocupar da questão da sucessão espanhola que preocupava
todos os governantes europeus.
369
De 1697 a 1700, Luís XIV vai se dedicar inteiramente a
este assunto.
370
O irmão da rainha Maria Tereza, Carlos II, rei da Espanha, era muito doente,
condenado à morte desde criança. Descendente de uma família desgastada, que havia
realizado sucessivamente casamentos entre primos legítimos, ele era incapaz de procriar.
Em setembro de 1697 parecia estar à beira da morte, porém viveria por mais três anos.
371
Neste momento em que ele, o último Habsburgo da Espanha, agonizava em seu leito de
morte, ocorria uma intensa atividade diplomática, “sucedem-se projetos e tratados de
partilha”.
372
Entre 1698 e 1700, a pedido de Luís XIV, sob a intervenção de Guillerme III
da Inglaterra, dois tratados de partilha foram assinados para dividir a herança espanhola
entre os verdadeiros herdeiros: ele e o Imperador.
373
Vários príncipes e reis tinham interesse
no trono espanhol, porém, havia somente dois candidatos sérios: Luís XIV, esposo e filho
de infantas primogênitas, que se considerava livre da cláusula de renúncia do trono da
Espanha contida no tratado dos Pireneus, haja vista que a condição da renúncia, o dote da
rainha de 500 000 escudos de ouro, nunca fora pago; o outro herdeiro era o primo, cunhado
e rival de Luís XIV, o Imperador Leopoldo
I,
Habsburgo da Áustria, esposo e filho de
infantas caçulas.
374
É claro que o requisito de primogenitura pendia para Ana d’Áustria e
Maria Tereza.
Luí
s XIV reivindicava o trono para o seu filho, Leopoldo I para um de
seus netos. Enquanto Leopoldo I reivindicava, além do trono, toda a herança espanhola,
Itália, Países Baixos e Índia, Luís XIV queria somente a parte do império espanhol que
368
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 267, 269
-
270.
369
Cf. ibid., p. 266.
370
Cf. CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 139.
371
Cf. GOUBERT, op. cit., p. 275.
372
CHAUNU, v. 1, op. cit., p. 139.
373
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 62
-
63.
374
Como a primogênita Maria Tereza foi desposada por Luís XIV, restou-lhe casar-se com a sua irmã
Margarida Tereza.
78
ficava próxima das fronteiras da França, uma boa parte dos Países Baixos, ou então algo
que desse para trocar futuramente, como a Lorraine, Nice e a Sabóia.
375
Em outubro de 1700, o moribundo Carlos II fez um rigoroso testamento que
permaneceria secreto até a sua morte em de novembro deste ano. Luís XIV tomou
conhecimento do conteúdo do testamento oito dias após a morte do rei espanhol. O
testamento “explode como um golpe de trovão” em toda a Europa. Em primeiro lugar,
Carlos II exigia que fosse conservada a unidade de todos os seus impérios, reinos e
possessões, recusando qualquer forma de divisão; em segundo lugar, ele designou como
herdeiro do trono o segundo neto de Luís XIV, Filipe, o duque d’Anjou, mas com a
condição de que ele renunciasse formalmente a todos os seus direitos ao trono da França; se
ele se recusasse, o seu irmão caçula, o duque de Berry, tornar-
se
-ia o herdeiro com as
mesmas condições; no caso da falta desses dois netos de Luís XIV, o arquiduque Carlos, o
segundo filho de Leopoldo I, sucederia.
376
No
s dias 9 e 10 de novembro de 1700, em Fontainebleau, Luís XIV reuniu-se com
seu Conselho para resolver o assunto, deparando-se com o seguinte dilema: “recusar o
testamento e se ater ao tratado de divisão de 1700. Aceitar o testamento e então violar o
trata
do. Nos dois casos a guerra com o imperador era certa”. Após longas e rias
discussões no Conselho, Luís XIV optou pela aceitação do testamento.
377
Foi muito difícil
para Luís XIV decidir-se pela aceitação do testamento. O tratado oferecia vantagens
estraté
gicas enquanto o testamento proibia a união das coroas franco-espanhola. Contudo,
Luís XIV sentiu-se pressionado a aceitar o testamento, que este nomeava o arquiduque
Carlos como herdeiro se a França o recusasse.
378
No início de 1701, Luís XIV cometeu atos provocadores. Após a aceitação do
testamento de Carlos II, reconhecendo o seu neto como Filipe V, rei da Espanha,
contrariando um artigo do testamento, a partir de fevereiro de 1701, Luís XIV “manteve
todos os direitos de Filipe V à coroa da França e fez o Parlamento registrar solenemente
este ato de magnificência”.
379
Ele “proclamou formalmente que o título do seu neto à
sucessão francesa permanecia válido” e ninguém poderia contestá-
lo.
380
Podemos
argumentar a favor de Luís XIV lembrando que ele estava apenas defendendo o direito de
375
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 274
-
275.
376
Cf. ibid., p. 276.
377
Cf. ibid., pp. 276
-
277.
378
Cf. SHENNAN, op.
cit., p. 64.
379
GOUBERT, op. cit., p. 278.
380
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 65.
79
sucessão estabelecido pelo direito divino dos reis, no qual acreditava piamente. No entanto,
toda a Europa interpretou este ato como sendo de uma enorme arrogância e irritou-
se
profundamente contra ele.
O segundo ato de Luís XIV certamente foi ainda mais grave. Ainda em fevereiro de
1701, ele enviou tropas francesas fortalecidas pelas espanholas para tomar as fortalezas da
Barreira holandesa. As tropas francesas se instalaram nos Países Baixos, tornando
prisioneiras as tropas holandesas que ocupavam as praças da Barreira, violando, assim, o
tratado de paz de Ryswick. Este ato foi protestado pelos Estados Gerais, mas Luís XIV
recusou
-se em dar qualquer satisfação aos holandeses.
381
Como naquele momento Filipe V
ainda não havia sido reconhecido pela República Holandesa como o soberano dos Países
Baixos espanhóis
382
, podemos entender esta atitude de Luís XIV como um meio de ajudar o
neto a se impor em seus domínios. No entanto, essa atitude do Grande Rei serviu para
fortalecer os argumentos de seus inimigos que o condenavam por querer impor uma
monarquia universal.
Exceto no caso do Imperador Leopoldo I, não era a aceitação do testamento de
Carlos II que poderia fazer reviver a Grande Aliança, levando a França a ter de enfrentar
uma próxima
guerra contra essa perigosa potência, mas a sucessão de atos provocadores do
Grande Rei.
383
Apesar das drásticas conseqüências que a Guerra da Liga de Augsburgo
deixaram à França, quatro anos depois, o envolvimento direto de Luís XIV na questão da
sucessão
espanhola estava levando-
o a empurrar a França para uma outra guerra ainda pior.
Constata Perry Anderson que, “mais uma vez, a inépcia diplomática e as rudes
provocações de Luís XIV maximizaram a coligação contra a França no conflito militar
decisivo que agora se travava: o vantajoso testamento de Carlos II fora menosprezado pelo
governo francês, Flandres ocupada pelas tropas da França”. Estas provocações juntamente
com outras que viriam logo a seguir “uniria inevitavelmente a Áustria, Inglaterra, Holanda
e a maior parte da Alemanha contra ela”.
384
A política expansionista de Luís XIV
381
GOUBERT, op. cit., pp. 278
-
279; SHENNAN, op. cit., pp. 65
-
66.
382
ibid.
383
Cf. ibid., p. 65.
384
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 104. As outras provocações de Luís XIV, que acarretaram a Guerra da
Sucessão, foram: “a Espanha dirigida por emissários franceses, os contratos de comércio de escravos com as
suas colônias americanas foram incorporadas pelos mercadores franceses e o pretendente Stuart exilado
ostensivamente saudado como monarca da Inglaterra. A determinação Bourbon de monopolizar a totalidade
do império hispânico, recusando qualquer partilha ou diminuição da vasta presa espanhola”. ibid.
80
fracassou. De acordo com Perry Anderson, “por tudo querer, o absolutismo francês acabou
por não conseguir virtualmente nada de seu supremo esforço de expansão política”.
385
Como vimos, entre 1697 e 1701 houve um tempo de paz. Neste período a França
estava se refazendo economicamente. No entanto, conforme constata Pierre Goubert,
“simplesmente, a nação, muito fatigada, e as finanças, muito postas à prova, não tiveram o
tempo de endir
eitar
-
se. O tempo de paz foi muito curto”.
386
É neste contexto turbulento, de uma relativa paz, para não dizer de uma paz armada,
que aos 73 anos, no bispado de Meaux, Bossuet retoma a sua
Politique
em 1700.
Recordemos que Bossuet começou a redigir a
Politi
que
em 1677, nos últimos anos do
preceptorado. A obra é constituída por dez livros. Os seis primeiros livros, que constituem a
primeira parte, foram concluídos em 1679. Por mais de vinte anos Bossuet dedicou-se a
outros trabalhos, considerados por ele como mais urgentes, deixando para concluir a sua
obra mais tarde. Após ter negligenciado seu livro por tanto tempo, contando com a ajuda de
seu secretário, Bossuet resolveu retomá-lo em 1700, dedicando-lhe, então, os quatro anos
de vida que ainda lhe restavam. O livro nono, a parte que trata da guerra, foi redigido entre
janeiro e abril de 1701.
387
O que impulsionou Bossuet a retomar uma obra que havia abandonado mais de
vinte anos? Acreditamos que ele tenha começado a redigir o livro nono da
Politique
justam
ente no momento em que Luís XIV estava tomando as decisões estratégicas que
levariam à guerra de sucessão, pois foram interpretadas como provocações, atraindo a ira de
toda a Europa contra a França. Bossuet e todos os franceses sentiam que a França não tin
ha
condições de suportar uma outra guerra contra a Grande Aliança. Além do mais, os males
da Guerra da Liga de Augsburgo ainda eram recentes e estavam bem presentes na memória
dos franceses, cansados da guerra e desejosos de gozar de paz.
Como vimos, a revogação do Edito de Nantes e a política de guerras de Luís XIV
despertavam críticas de todos os lados. Bossuet sentia que o absolutismo de Luís XIV
estava profundamente abalado. Em sua concepção, a única maneira de manter o poder
centralizado nas mãos de Lu
ís XIV seria por meio da paz e da ordem no reino. Desta forma,
o pacifismo é o tema elegido por ele no livro nono da
Politique.
385
ANDERSON, op. cit., p. 104.
386
GOUBERT, op. cit., pp. 277
-
278.
387
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. XIX. Segundo Le Brun, não resta dúvida de que o livro
nono foi concluído no dia 4 de abril deste ano. Em outubro deste ano Bossuet concluiu toda a obra. Ele
morreu em abril de 1704 sem publicar a obra que o público tanto esperava. Daí a publicação póstuma da
Politique
em 1709. Cf. ibid., pp.
X-
XX.
81
CAPÍTULO III
A CONTRIBUIÇÃO DE BOSSUET À GLÓRIA DO REI SOL
Por guardar as terríveis lembranças da Fronda, Luís XIV exigia ordem em tudo. Na
esfera das Belas-Artes a ordem foi imposta por meio da fundação de várias academias a
fim de regular todas as atividades artísticas para realçar o brilho e o prestígio da monarquia
francesa.
388
Assim como impôs o poder centralizado a uma sociedade que ainda não se
encontrava totalmente preparada para tal, a monarquia francesa buscou restaurar a unidade
religiosa num país em que isto era impossível devido ao pluralismo de denominações
religiosas introduzido pelo protestantismo, a partir da segunda década do século XVI, “da
mesma forma”, conforme constata Robert Mandrou, “ela quis se dar um adorno sem igual
e instaurar uma ordem no domínio das Belas-Artes. As academias e Versalhes são as
testemunhas dessa escolha”.
389
No século XVII uma grande relação entre arte e poder. Luís XIV e seus
conselheiros preocupavam-se muito com a imagem real, por isso recorreram a todas as
formas de representações para aumentar a sua glória. Segundo Peter Burke, “os escritos do
período não deixam dúvida acerca da importância da reputação ou glória de reis ou nobres
semelhantes”. No século XVII, o que realmente significava esta glória tão almejada pela
realeza e nobres? De acordo com este autor, “num dicionário do período, glória distinguia-
se de louvor porque ‘o lo
uvor é dado por indivíduos e a glória por todo o mundo”.
390
No início de seu reinado pessoal, Luís XIV estava “persuadido de que a reputação e
a glória se adquiriam também pela magnificência das construções”. Para isso, nomeou
Colbert, que desde 1661 o servia como membro do Conselho Real das Finanças,
superintendente das construções reais, em janeiro de 1664.
391
A maior preocupação de
388
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 21.
389
MANDROU, op. cit., p. 221.
390
BURKE, 1994, op. cit., pp. 14, 16-17. La louange se donne par les particuliers, et la gloire par le
général du monde
”.
Conforme lembra
Peter Burke, “Glória era uma palavra
-
chave da época. Sua importância
foi sublinhada nas
Mémoires
de Luís. Mademoiselle de Scudéry ganhou uma medalha da Academia Francesa
por seu ensaio sobre o tema. A personificação da Glória aparecia em peças teatrais, em balés e em
monumentos públicos. Há uma Fonte da Glória nos jardins de Versalhes”.
ibid., p. 17.
391
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 108
-
109.
82
Colbert era a de aumentar o poder e a reputação do rei e do reino. Em seu trabalho como
superintendente das edificações reais isso ficou muito bem demonstrado. Em sua
concepção, os palácios reais e Paris deviam refletir a grandiosidade do regime como
também contribuir para a glória do rei. Sendo assim, sob Colbert, Paris ganhou edifícios
magníficos: foram construídos arcos do triunfo, pirâmides, túmulos e obeliscos.
392
Por
meio de Colbert, Luís XIV “reconstituiu o Louvre e Versalhes. Este, “no começo era um
parque, um lugar de diversões e festas, após ter sido um encontro de caça”.
393
As
reconstruções de Versalhes e do Louvre foram os mais importantes projetos artísticos da
década de 60.
394
Situado a dezoito quilômetros de Paris, Versalhes foi um dos meios utilizados por
Luís XIV para representar a sua glória. Sem dúvida, Luís XIV utilizou Versalhes como um
cenário, um instrumento para ostentar o seu poder. Em 1682, ele mudou-se com sua corte
definitivamente para lá, onde seus aposentos estavam localizados no centro. Desde 1662,
Luís XIV adotou a imagem do sol como emblema pessoal.
395
Afinal, que outro astro
poderia representar o brilho e esplendor tanto dele como de seu reino? Com sua ampla
perspectiva, uma decoração abundante, a partir de 1682 Versalhes tornou-se a residência
real oficial, a qual durou por mais de um culo. Versalhes tornou-se um dos símbolos da
monarquia absoluta francesa. A escala de uma corte numerosa, os temas decorativos com
os grandes atos do reino, enfim, toda a obra concorria no sentido de celebrar a pessoa e a
glória do monarca. Conforme constata Robert Mandrou, “obra realizada apenas para a
glória do monarca, Ve
rsalhes deve ser considerado sob este aspecto, exclusivamente”.
396
Luís XIV percebeu, juntamente com Colbert e Jean Chapelain, o conselheiro de
Colbert no âmbito literário, que as construções não bastavam para aumentar a sua glória.
Conforme salienta Pierre Goubert, “como no tempo de Augusto, foi preciso que todas as
artes, e as letras e as ciências concorressem para exaltar sua pessoa e seu reino. Tudo,
392
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 37; BURKE, 1994, op. cit., p. 68.
393
GOUBERT, op. cit., p. 109.
394
Cf. BURKE, 1994, op. cit
., p. 78.
“O Louvre era um palácio medieval reconstruído no estilo renascentista
durante o reinado de Francisco I. Era um palácio acanhado demais para as necessidades de uma corte do
século XVII e o incêndio que destruiu parte dele em 1661 pôs sua reconstrução como ponto prioritário na
agenda. Tomou-se a decisão de reconstruir um novo palácio e de encomendar projetos a vários arquitetos de
renome, tanto italianos como franceses. (...) O projeto para o Louvre, finalmente agraciado com a aprovação
oficial, foi produzido por um pequeno comitê integrado por Lebrun, Le Vau e Claude Perrault. (...) O rei, no
entanto, passou relativamente pouco tempo nesse palácio, que se tornou sobretudo o quartel-general dos
fabricantes de sua imagem. (...) Enquanto isso, o rei
tinha voltado sua atenção para Versalhes, que se resumia
a um pequeno castelo construído para Luís XIII em 1624. Logo depois de iniciar seu governo pessoal, Luís
encarregou Le Vau de aumentar o castelo e Le Nôtre de projetar os jardins”. ibid.,
pp. 78
-
79.
395
Cf. ibid., pp. 19
-
20, 92, 97; GOUBERT, op. cit., p. 113.
396
MANDROU, op. cit., pp. 221, 225.
83
naturalmente, na ordem e a obediência”.
397
Luís XIV amava e protegia as belas artes; na
verdade ele as utilizou como um instrumento de glória exercendo nesta esfera um
mecenato de Estado. Colbert supervisionou o patrocínio real das artes, desempenhou
próximo de Luís XIV a mesma função que Mecenas representou junto de Augusto. Como
observava Spanhein, um embaixador prussiano do século XVII, Colbert é quem foi o
verdadeiro mecenas.
398
Na concepção de Colbert, as artes eram úteis porque contribuíam para a glória de
Luís XIV. Ele desejava que todos os artistas usassem o seu talento artístico para uma maior
glorificação
do Rei Sol. Foi com este propósito que ele estimulou a produção e impôs a
disciplina nas Belas-Artes criando o
academismo
, que significava a regulamentação, a
palavra de ordem na produção intelectual e artística. Os artistas incumbidos da tarefa de
elabor
ar a nova imagem do soberano deviam se reunir nas novas instituições controladas
pelo Estado, as academias. Em 1663, Colbert instituiu a Petite Académie para administrar
toda a produção intelectual e artística. Desta forma, todas as produções intelectuais
e
artísticas eram submetidas ao escrutínio da Petite Académie
399
, que na verdade era um
conselho restrito, um comitê, formado por Jean Chapelain, Amable de Bourzeis,
Cassagnes, Charles Perrault e François Charpentier.
400
Esse grupo se reunia na casa de
Colbert
nas terças e sextas-feiras, para orientar a vida intelectual da nação. Toda a
produção intelectual era supervisionada pela Petite Académie, que representava o olhar
atento de Luís XIV sobre aquela. Segundo constata Jean-Marie Apostolidès, “a
Petite
Académ
ie
é sobretudo o olho do poder sobre a produção intelectual”.
401
Na década de 60, Colbert tanto fundou academias como oficializou as existentes. A
Académie Française
, a primeira a ser fundada em 1634 por um grupo de intelectuais, ainda
no ministério de Richelieu que, a contragosto de seus fundadores, tornou-a oficial
397
GOUBERT, op. cit., pp. 109
-
110.
398
Cf. BURKE, 1994, op. cit., p. 61; MÉTHIVIER, op. cit., p. 107.
399
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 61, 62-63; MÉTHIVIER, op. cit., p. 109; SHENNAN, op. cit., p. 37;
APOSTOLIDÈS, Jean-
Marie.
O rei máquina. Espetáculo e política no tempo de Luís XIV. Rio de Janeiro:
José Olympio; Brasília, DF: Edumb, 1993, p. 29.
400
Jean Chapelain era poeta e crítico. Ao escrever uma ode louvando o cardeal Richelieu ganhara a sua
simpatia. Ele era membro da Académie Française desde a sua fundação, em 1634-1635. Chapelain era o
conselheiro de Colbert na esfera literária, na qual incluía-se os historiadores. Amable de Bourzeis servira a
Richellieu como escritor. Charles Perrault era um protegido de Colbert. Ele é um literato conhecido em
nossos dias sobretudo por ter reescrito contos populares, como Chapeuzinho Vermelho”. Em 1664, quando
Colbert se tornou o
Surintendant
, Charles Perrault o substituiu c
omo o encarregado das edificações. Ele era o
conselheiro de Colbert, no plano da arquitetura. François Charpentier era escritor e servira a Mazarino.
Jacques de Cassagnes também era escritor. Foi eleito a membro da Académie des Inscriptions e Belles-
Lettre
s
em 1663. Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 62, 65
-68, 70.
401
APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 29.
84
colocando
-a sob sua proteção, foi retomada por Colbert em 1661, servindo como modelo a
todas as outras; em 1671, Luís XIV tornou-se o protetor e Colbert o vice-protetor desta
academia. No ano de 1648, um grupo de pintores liderados por Le Brun criou a
Académie
de Peinture, colocando-a sob a proteção do chanceler Séguier. Em 1663, Luís XIV a
reestruturou, escolhendo Le Brun para dirigi-la; este regulava o trabalho dos pintores e
escolhia os temas a serem trabalhados por eles. Colbert incentivou os eruditos Baluze e
Clérambault a montarem uma
Bibliotèque
, em 1663. Neste mesmo ano, ele fundou a
Académie des Inscriptions et Belles-
Lettres
. Em 1664, Colbert reorganizou a
Académie
Mazarine de Peinture et de Sculpture. Em 1666, em Roma, ele fundou a Académie de
France à Rome, possibilitando aos artistas franceses receberem na Itália a tradição da
Antiguidade. Aliás, copiar e estudar as obras da Antiguidade Clássica era a missão desta
academia. Neste ano, os jovens pintores, escultores e arquitetos que a integravam foram
incumbidos de copiar ‘tudo o que havia de belo em Roma’. Essas três academias também
eram dirigidas por Le Brun. A Académie des Sciences, que de início era uma instituição
privada, onde os sábios se reuniam, tornou-se oficial em 1666, tendo Chapellain como seu
intermediário. Colbert fundou a Académie de Musique em 1669, destacou-se o abade
Perrin e três anos depois Lulli como superintendente e diretor. Finalmente, em 1671, foi
fundada a Académie Royal d’Architecture, cuja tarefa era retomar as doutrinas de Alberti e
de Vetrúvio. Após ter cumprido a sua tarefa de direção geral da vida cultural, em 1701, a
Petite Académie
recebeu o título oficial de
Académie d’Inscriptions et des
Médailles
.
402
De
acordo com Peter Burke, “a importância de Colbert reside em sua visão geral da
contribuição de todas as artes para a glória do rei”. Colbert atraiu um considerável número
de artistas e escritores para o serviço do monarca, entre eles homens importantís
simos.
Colbert recorria a especialistas para sugestões concretas: na literatura teve como
conselheiro Chapelain, na pintura e escultura Charles Le Brun e na arquitetura Charles
Perrault.
403
A organização de academias por Colbert implicava a elaboração de uma verdadeira
doutrina no campo das artes. A adoção de lições da Antiguidade Clássica, a distribuição
dos prêmios aos artistas mais esmerados e disciplinados, enfim, toda essa organização dos
artistas que dava uniformidade ao mecenato real era conseqüência da organização de
Versalhes. Conforme constata Mandrou, “o castelo fornece o modelo; as academias ditam
402
Cf. GOUBERT, op. cit., pp. 110-112; APOSTOLIDÈS, op. cit., pp. 29, 30-32; MÉTHIVIER, op. cit., pp.
108
-
110; MANDROU, op. cit., pp. 225
-
226.
403
Cf. BURKE, 1994, op.
cit., pp. 63, 67
-
69.
85
as regras, encorajam os artistas que as respeitam, fixam o gosto e a sensibilidade, tanto
quanto lhe é possível. O classicismo artístico se constitui nesta perspectiva”. O plano de
Versalhes e a direção das artes, a qual era freqüentemente confundia com o primeiro, na
segunda metade do século XVII, expressam o momento em que Luís XIV empenhou-
se
para “pôr as artes ao serviço exclusivo de sua glória”.
404
Lu
ís XIV quis dar um brilho incomparável à monarquia francesa. Ele recorreu a
todos os meios possíveis para ilustrar a sua imagem de Rei Sol, a de seus sucessores e do
lugar que ele ocupava na Europa. Os louvores que os escritores a soldo real lhe rendiam o
afirmam. De acordo com Robert Mandrou, “a França clássica é principalmente a expressão
de uma vontade de poder que é exercida em todos os domínios, em todas as direções que
lhe parecem digna de sua glória”. Ao assumir o poder pessoalmente, em 1661, Luís XI
V
incumbiu
-se de reformar o governo e a administração, dirigir as artes e as letras e toda a
Europa. A distribuição de benefícios e pensões, o recrutamento de sábios para ilustrar a
Académie des Sciences era um dos meios desta política real.
405
De fato, esse domínio
expressou
-se também no mundo das letras. O Rei Sol buscou reunir em sua volta
escritores, sábios e poetas franceses como também estrangeiros objetivando ilustrar
Versalhes e seu reinado. A Académie des Sciences foi fundada com esta finalidade, a q
ual
atraiu sábios estrangeiros interessados em altas pensões. Os acadêmicos que animavam o
Journal des Sçavans tiveram seu espaço nesta esfera científica, porém, não “poderiam
servir diretamente às distrações e às grandes obras da monarquia”. Os homens de letras, a
soldo real, eram convidados a residir em Versalhes, esquecer o público amplo e
diversificado de Paris, ao qual antes se dirigiam, “para se tornarem os turiferários do
soberano, e os entretenedores dos cortesãos”.
406
É bom lembrar que os homens de letras como Molière, Nicolas Despréaux, mais
conhecido como Boileau, Racine e Lulli não foram somente entretenedores de cortesãos
ociosos. É claro que eles eram encarregados de fornecer divertimentos ao teatro da corte,
as comédias de Racine e as óperas e balés de Lulli o atestam muito bem. No entanto, em
sua
Ode sur la prise de Namur, de 1692, o poeta Boileau cantou as vitórias reais. Mais
tarde ele foi nomeado historiógrafo oficial do rei e trabalhou junto de Racine. Os dois
dedicaram muitos anos para produzir uma história do reino completamente voltada para a
glória do monarca. Portanto, assim como os pintores e escultores que decoravam Versalhes
404
MANDROU, op. cit., pp. 225
-
226.
405
Cf. ibid., pp. 204
-205.
406
ibid., pp. 227
-
228; Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 63, 68.
86
com os altos feitos do reino, esses poetas e homens de letras não foram encarregados
apenas das festividades de Versalhes, mas de exaltar o rei.
407
Esses artistas assalariados
residiam em Versalhes e executam seus trabalhos sob a encomenda real.
408
Tudo isso
expressa o empenho de Luís XIV “de reunir em Versalhes todos os artistas capazes de
contribuir a sua grandeza, e de assegurar a esse pequeno mundo fechado de algumas
centenas de pessoas a distração necessária por sua ociosidade”.
409
Antes os letrados pertenciam à Igreja e suas técnicas deviam à teologia, no culo
XVII a maioria era laica e suas técnicas deviam muito mais às artes. Esses intelectuais
vinham dos ofícios tradicionais da literatura, música e pintura; reagrupavam-se no centro
de novas instituições, as academias, sendo admitidos a serviço do príncipe. De acordo
com Apostolidès, “sob Luís XIV os artistas deverão servir ao príncipe. Aos clérigos da
cristandade sucedem os da monarquia”. É somente no século de Voltaire que a produção
das idéias será entendida pelos filósofos como uma atividade livre. No século de Luís XIV,
“os artistas e os escritores não imaginam seu papel fora do serviço do Estado”. No início
do reinado pessoal de Luís XIV, as diferentes artes foram monopolizadas pelas academias,
as quais foram institucionalizadas sob a proteção do monarca. Como observa Apostolidès,
“tudo o que é saber tor
na
-se saber pelo Estado ao mesmo tempo em que saber sobre o
Estado. (...) O movimento acadêmico do século XVII mostra-se como empreendimento de
confisco e transformação do saber pelo Estado”.
410
As obras de arte produzidas sob o impulso da Petite Académie também serviam
como propaganda da França e do Rei Sol.
411
Segundo Méthivier, “esse mecenato se impôs
também como um instrumento de propaganda”.
412
A concessão de pensões aos artistas por
Luís XIV não era um ato desinteressado, ele esperava que em troca os artist
as exaltassem a
ele e ao reino francês.
413
Segundo constata Méthivier, “essas larguezas incitam os artistas e
autores a fazer o panegírico do reino: a psicologia real é finalmente analisada por
Spanheim: ‘se o rei ama dar, ele ama ainda mais em congregar, sua beneficência ou sua
liberalidade é de uso interessado, ele tanto mais para ostentação que por escolha’”.
Boileau, Racine e Molière eram conhecidos por suas bajulações cortesanescas. Por outro
407
Cf. MANDROU, op. cit., p. 230.
408
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 108.
409
MANDROU, op. cit., p. 230.
410
APOSTOLIDÈS
, op. cit., pp. 23
-
24, 31
-
32.
411
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 37.
412
MÉTHIVIER, op. cit., nota, p. 107.
413
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 63
-
64.
87
lado, quando o historiador Mézeray criticou as
tailles
e as
gabelles
em seus escritos
imediatamente teve a sua pensão reduzida por Colbert.
414
Os intelectuais que se opunham
ao controle total do Estado sobre as produções intelectuais e artísticas foram severamente
perseguidos por ele.
415
Ao dirigir este projeto, Colbe
rt não estava interessado em glorificar
-
se, seu interesse
consistia somente em aumentar a glória do Rei Sol. O tema escolhido para a propaganda
monárquica era nada menos que “as façanhas do rei”. Conforme constata Apostolidès,
“trata
-se de dar a Luís XIV uma imagem que ultrapasse o tempo e possua caráter
imediatamente histórico (...) o príncipe reinante o é senão a 14ª reencarnação de um
mesmo Luís, sempre glorioso, sempre vencedor”. Em alguns anos foram produzidas uma
história do rei por meio da eloqüência, outras por meio de espetáculos, monumentos,
gravuras, medalhas, tapeçarias e pintura. Tratava-se de fixar a história do rei de uma forma
que os seus grandes feitos fossem percebidos pela posteridade da mesma forma que aos
contemporâneos que gozavam do
privilégio de os terem vivenciado.
416
Colbert e Chapelain
esforçaram
-se por encontrar historiadores que melhor celebrassem os altos feitos do rei.
Poetas e historiadores contribuíram para a glória do rei por meio de sonetos e poemas
louvando as suas vitórias durante as guerras.
417
Em uma época em que a história era vista
como um gênero literário, entende-se a nomeação dos poetas Racine e Boileau como
historiógrafos da realeza.
418
Charles Le Brun, que possuía o título de primeiro pintor, no início do reinado de
Lu
ís XIV, compôs uma história do rei por meio da figura mítica de Alexandre Magno, a
qual mais tarde passou a ser celebrada nos tetos e paredes da imensa galeria de Versalhes.
Charles Perrault lembrava a Le Brun, em seu poema
De la Peinture
, que ele era apen
as um
414
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., pp. 108, 110.
415
De acordo com Apostolidès, “citemos o caso de Claude Petit, jovem poeta que rimou em Paris sem
convenções: é condenado por blasfêmia e enforcado, provavelmente em 1665. Em 1674, André Houatte é
perseguido por ter gravado ‘uma prancha insolente’ e foge para o estrangeiro. O escultor em marfim Simon
Jaillot, inimigo de Le Brun, é também exilado (...) são encontrados em sua casa um projeto de cadastro e
memórias sobre a reforma do reino. Mais tarde, o abade Pierre-Valentin Faydet, outro espírito libertino, que
multiplica os epigramas contra Bossuet (...) é objeto de censuras poli
ciais”.
APOSTOLIDÈS, op. cit., pp. 34-
35.
416
Cf. ibid., pp. 25
-
27.
417
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 65, 86
-
87.
418
Segundo Peter Burke, “esperava-se que uma obra de história incluísse uma série de passagens primorosas
dedicadas ao ‘caráter’, ou retrato moral, do soberano, de um ministro ou comandante, o vívido relato de uma
batalha e a apresentação de debates, com falas atribuídas a participantes eminentes [mas freqüentemente
inventados pelo historiador]”. ibid., p. 36.
88
instrumento da glória de Luís XIV.
419
Além das pinturas, tapeçarias, gravuras, medalhas,
obeliscos, arcos do triunfo, estátuas eqüestres, peças teatrais, músicas e balés, finalmente
foi implantada na França a ópera. Essa nova arte foi a que melhor propagou a imagem
oficial de Luís XIV em sua glória.
420
A arte oratória e a poesia também eram utilizadas. Ao
término de todo discurso pronunciado na Académie Française havia a incensação a Luís
XIV.
421
A eloqüência sagrada seguia o mesmo ritmo. Nos sermões, o pri
ncipal instrumento
da retórica em toda a tradição do cristianismo, um tipo de discurso apreciado no século
XVII, e nas orações fúnebres, o rei era louvado. Após a revogação do Edito de Nantes os
pregadores se empenhavam em formar uma imagem religiosa do monarca. Assim, no
elogio do rei, que se constituía numa parte quase obrigatória ao final dos sermões, Luís
XIV era elevado à categoria das divindades.
422
No sermão pronunciado em 1662, Luís XIV
é divinizado por Bossuet. Nas orações fúnebres da rainha Maria Tereza e do chanceler
Michel Le Tellier, pronunciadas por Bossuet, em 1683 e em 1686 respectivamente, ele
louvou as virtudes do rei.
Os escritores e artistas responsáveis pela fabricação e difusão da imagem real não
buscavam mostrar Luís XIV como ele realmente era, mas como os franceses deviam
acreditar e deviam esperar que fosse, o maior monarca do universo.
423
A imagem de Luís
XIV era constantemente associada a heróis do passado. Ele foi proclamado um novo
Alexandre por suas conquistas. Era comparado a príncipes do passado também chamados
de grande, como Ciro da Pérsia e a seu avô, Henrique IV. Luís XIV recebia vários elogios,
419
“‘Assim, pois, para sempre a tua mão
laboriosa/ Persiga de Luís essa história gloriosa, / Sem que um outro
labor ou quadros inferiores/ Profanem doravante os teus pincéis e cores. / Sente que deve a ele os teus traços
triunfantes, / Que vai sua glória, e que teus semelhantes/ do príncipe são, e lhe estão reservados/ Tal
como, em terras dele, os tesouros achados’”. Charles Perrault, Mémoires, contes et autres oeuvres, P. L.
Jacob ed.
Paris, 1843, pp. 308
-
309. apud APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 28.
420
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 27-29; APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 28. Mais de 300 medalhas foram
cunhadas para celebrar os grandes eventos do reinado. Mais de 300 retratos do rei foram conservados, quase
700 gravuras do rei se encontram na Bibliothèque Nationale. Algumas estátuas de Luís XIV eram im
ensas,
como a estátua de Luís de pé na
Place dês Victoires
e a estátua eqüestre para a
Place Louis
-
le
-
Grand
. Para se
ter uma idéia de seu tamanho, na época de sua instalação, 20 homens se sentaram dentro do cavalo para
almoçar. Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 27
-
28.
421
Conforme Apostolidès, “no momento da recepção de La Fontaine, o abade de La Chambre resume a tarefa
dos intelectuais do Estado: ‘trabalhar pela glória do príncipe, consagrar todas as vigílias unicamente à sua
honra, ter como único objetivo pro
por a eternidade de seu nome, referir a isso todos os estudos? Eis o que nos
distingue de todas as outras pessoas de letras. Eis o que nos coloca acima da inveja. Eis o cúmulo de nossa
alegria. Infelizes de nós se falharmos nisso’”.
APOSTOLIDÈS, op. cit.,
p. 27.
422
Cf. ibid.
423
Segundo Peter Burke, a este respeito, “quanto à função da imagem ela não visava, de modo geral, a
fornecer uma cópia reconhecível dos traços do rei ou uma descrição sobre suas ações. Ao contrário, a
finalidade era celebrar Luís, glorif
icá
-lo, em outras palavras, persuadir expectadores, ouvintes e leitores de
sua grandeza. Para isso, pintores e escritores se inspiravam numa longa tradição de formas triunfais”.
BURKE, 1994, op. cit., p. 31.
89
em 1671 foi qualificado oficialmente de ‘grand’. Freqüentemente, em meio a textos
escritos em caixa baixa, o seu nome aparecia em letr
a maiúscula LOUIS LE GRAND.
424
No século XVII, era recorrente comparar Luís XIV com os deuses e heróis da
mitologia grega. Ele era qualificado como herói por poetas e historiadores. Neste período,
entre as elites, a linguagem alegórica era muito conhecida. Deuses e heróis clássicos eram
associados a qualidades morais, como Hercules à força, Apolo à coragem, etc. Entre os
tipos de alegorias estavam as representações do passado, em que deviam ser entendidas
como referência ao presente. Ao pedir a Le Brun que o pintasse como Alexandre, Luís
XIV se identificava com ele e queria que os súditos também o identificassem como tal.
Luís XIV era descrito como o representante de Deus na terra por Bossuet e outros teóricos
políticos.
425
Qual a eficácia da campanha do Rei Sol? A quem ela se destinava? Conforme
constata Peter Burke, a produção da imagem heróica de Luís XIV provavelmente não se
destinava à maioria dos vinte milhões de franceses, haja vista que “os meios de
comunicação de Luís XIV não eram meios de comunicação de massa”. É provável que os
comunicadores do século XVII buscassem atingir três alvos: a posteridade, as classes altas
francesas e as estrangeiras.
426
Bossuet fez parte deste universo de exaltação e engrandecimento do Rei Sol.
Recordemos que ele foi convidado por Luís XIV para pregar sermões na corte; residiu
no período do preceptorado, de 1670 a 1681; entrou para a Académie Française, em 1671,
onde recebeu uma calorosa recepção por parte de seus pares, sobretudo de seu amigo La
Bruyère. Em vários de seus textos, como no livro nono da
Politique
, redigido em 1701, o
príncipe de Bossuet é heroicizado: possui a força de Sansão, a coragem de Apolo, etc. Em
sua
Oraison funèbre de Louis de Bourbon, prince de Condé, pronunciada em 1687,
Bossuet celebra a glória, as vitórias deste príncipe. Compara o príncipe de Condé a
Alexandre, pois ele tinha a maior característica dos conquistadores, de não se deter diante
dos obstáculos.
427
Conforme observa Calvet, Bossuet “amava e admirava Luís XIV e o
louvava publicamente como a etiqueta e sua convicção o ordenavam”.
428
Na
Oraison
424
Cf. BURKE, 1994, op. cit., p. 47.
425
Cf. ibid.,
pp. 18, 21, 39, 43.
426
Cf. ibid., pp. 163, 165, 168
-
1670, 174.
427
Cf. BOSSUET, Jacques-
Bénigne.
“Oração fúnebre de Henriqueta Maria de França”. In: _____.
Orações
fúnebres e panegírycos. Rio de Janeiro: Garnier, 1909 (Organização e apresentação de Louis Moland), pp.
202, 205, 211.
428
CALVET, op. cit., p. 293.
90
funèbre de Louis de Bourbon, prince de Con, Bossuet refere-se a Luís XIV como o
“maior dos reis”, como “Luís, o Grande”.
429
No entanto, a maior glorificação a Luís XIV
vinha da exaltação a sua autoridade
, a seu poder.
Os cinco primeiros livros da
Politique
de Bossuet, destinados ao Delfim, insere-
se
nesse movimento de exaltação à glória monárquica. Bossuet dedicou-os para falar da
origem do poder e da autoridade do príncipe. Com isso, a teoria do direito
divino,
justificadora do absolutismo, que se conhece tempo, atinge o seu ponto culminante.
Desde as civilizações da Antigüidade oriental, tem sido prática comum justificar o poder
da realeza por delegação divina.
430
Mas foi no século XVII que a divinização da realeza
atingiu o clímax. Conforme afirma Marc Bloch, “o século XVII, mais que qualquer outra
época, sublinhou abertamente a natureza quase divina da monarquia e, até do rei”.
431
As novas estruturas institucionais da monarquia impulsionaram o desenv
olvimento
do absolutismo: “exército, burocracia, tributação e diplomacia”.
432
No entanto, não foi
somente por meio desses aparatos técnicos e burocráticos que a monarquia absolutista
francesa conseguiu se consolidar. Devemos levar em consideração que alterações nas
atitudes dos súditos em relação ao poder político, ocorridas no final do século XV e início
do século XVI, foi de fundamental importância. Constata-se que a partir de fins da Idade
Média a maioria dos súditos obedecia às ordens do monarca não mais
por coerção direta de
suas forças militares, mas por laços de identificação com a sua capacidade de liderança.
433
É preciso levar em consideração que a lealdade dos súditos ao soberano se tornou mais
forte ainda com a sistematização da doutrina do direito di
vino.
434
Este sentimento já estava
largamente disseminado na França e na Inglaterra de fins da Idade Média, quando a
doutrina ganhou seus contornos teóricos, por obra e graça de Jaime I, Robert Filmer, Jean
Bodin, Cardin Lebret e de outros formuladores do absolutismo.
A crise econômica e social que, devido às constantes guerras entre as casas
nobiliárquicas, arrasou a Europa nos séculos XIV e XV teve como conseqüência a
emergência do Estado absolutista no Ocidente, no transcorrer do culo XVI.
435
As
429
BOSSUET, Jacques-
Bénigne.
“Oraison funèbre de Louis de Bourbon, Prince de Condé, 1687”.
In: _____.
Oraisons funèbres
. Paris: Librairie de Firmin Didot Frère, Fils et Cie, 1874, p. 238.
430
Cf. LOPES, 199
7, op. cit., pp. 69
-
70.
431
BLOCH, Marc.
Os reis taumaturgos
. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 235.
432
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 23
-
41.
433
Cf. STRAYER, Joseph. As origens medievais do Estado moderno. Lisboa: Gradiva, s.d., pp. 96-98. Ver,
também, WA
RRENDER, Howard. “O estudo da política”, in KING, op. cit., p. 173.
434
Cf. STRAYER, op. cit., pp. 112
-
113.
435
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 22.
91
constantes
crises constituíram-se em empecilhos impedindo que a construção do
absolutismo francês fosse um processo linear.
436
No início, tais crises enfraqueciam o
poder do monarca. Porém, ao final de cada uma delas as sociedades políticas se
encontravam frágeis e inseguras, daí o seu anseio por um governante forte, com poderes
centralizados em sua pessoa, para, assim, promover a paz e a ordem no reino. Dessa forma,
o poder do monarca se fortaleceu progressivamente.
437
Houve na Europa, no plano internacional, a Guerra
dos Cem Anos, no século XV, e
a Guerra dos Trinta Anos, no século XVII; no plano francês, as Guerras Religiosas do
século XVI, a Fronda, no século XVII, e as sublevações camponesas e urbanas, nos séculos
XVI, XVII e XVIII. O sufocamento dessas revoltas contribuiu para o progresso da
centralização administrativa. Na segunda metade do século XVII, sobretudo no início do
reinado pessoal de Luís XIV, em 1661, o Estado absolutista francês chegou ao seu ponto
culminante.
438
De fato, a monarquia absolutista francesa não se consolidou apenas por seus
aparatos técnicos e burocráticos, mas com a ajuda de todo um simbolismo religioso que a
envolvia.
439
Foi na segunda metade do século XVII que o absolutismo francês conheceu
seu momento de maior esplendor. A doutrina do direito divino dos reis contribuiu
poderosamente para o fortalecimento da monarquia francesa. Neste período, quase todos os
gêneros literários, fossem políticos ou não, versavam ou incluíam em seus discursos a
exaltação das virtudes morais da realeza sagrada.
440
A doutrina do direito divino dos reis foi muito criticada em seu próprio tempo, e
bastante ridicularizada por pensadores dos séculos XVIII e XIX, período de afirmação
crescente das teorias políticas liberais. Isto fez com que muitos historiadores a
despre
zassem como objeto de estudo. No entanto, é preciso levar em consideração que
esta doutrina, no século XVII, foi defendida com grande vigor teórico, e com apaixonada
crença política e religiosa, por ser um misto de ambas as coisas. Toda a sociedade polític
a,
dos reis aos súditos, aceitou-a como um elemento “natural” na esfera da vida pública e até
436
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 85.
437
Cf. LOPES, 1996, op. cit., pp. 25
-
42.
438
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 85, 99
-
101.
439
Cf. STRAYER, op. cit., pp. 97-98, 112-113. De acordo com o historiador inglês C. B. A. Behrens,
“durante os séculos XVI, XVII e XVIII, a maior parte das grandes potências européias e muitas das potências
menores adotaram a forma de governo conhecida pelo nome de ‘absolutismo’ isto é, uma forma de
monarquia hereditária em que o monarca recebia o seu poder de Deus, era considerado representante de Deus
na Terra e, sobretudo na França, no reinado de Luís XIV, com atributos semidivinos”.
BEHRENS, op. cit., p.
85.
440
Cf. LOPES, 1997, op. cit., pp. 25
-
46.
92
privada. Neste sentido, se situarmos a “doutrina do sistema monárquico” em seu tempo,
perceberemos que de ridículo ela não teve nada. Em meados do século XVII, al
cançou
importância imensa e o seu valor teórico-doutrinal foi reconhecido nas principais cortes
européias. A doutrina do direito divino dos reis, tal como se apresentou no século XVII,
foi “essencialmente uma teoria popular, proclamada desde o púlpito, apregoada em praça
pública e defendida no campo de batalha”.
441
Tanto a sua concepção como a sua defesa foram resultados das circunstâncias
históricas num período de afirmação do poder régio. A doutrina tem suas origens remotas
no século XIV, como resultado da refutação dos escritores imperialistas às pretensões do
papado ao poder universal. A rigor, formas semelhantes de sustentação teórico-
teológica
do poder régio descem ao leito mais profundo da história da realeza, como bem o
demonstrou a obra clássica de James Frazer, O ramo de ouro. Esta doutrina possibilitou a
consolidação da monarquia absolutista, pois tornou possível a sua independência e
supremacia em relação ao domínio eclesiástico. O direito divino dos reis foi uma teoria
que, por se relacionar com a teologia bem como com a política, não poderá ser julgada do
ponto de vista de uma época em que ambas se encontram separadas. É este o ponto de
vista que compartilhamos com o pastor anglicano e historiador inglês John Neville Figgis,
que nos chama a atenção para o fato de que, no Ancien Régime, “até para fins utilitários,
era preciso encontrar um fundamento religioso se se pretendia ter aceitação. Todo o
mundo exigia alguma forma de autoridade divina para qualquer teoria de governo”. No
tempo de Bossuet, até
mesmo as teorias contrárias a esta doutrina eram baseadas na Bíblia.
O direito divino dos reis pertenceu a uma época em que teologia e política estavam
imbricadas não somente em teoria, mas na vida cotidiana também.
442
No livro terceiro da
Politique
, redigido entre 1677 e 1679, quando do preceptorado
do Delfim, Bossuet afirma que a autoridade real é sagrada. O poder dos reis vem de Deus,
que os estabelece como seus ministros na terra. O trono real é o trono de Deus; sendo
assim, o rei está sentado sobre o trono de Deus. Os reis são a imagem de Deus na terra;
desta forma, “a pessoa do rei é sagrada e atentar contra ele é um sacrilégio”. Bossuet
recorre a São Paulo e a São Pedro para demonstrar que os súditos devem obedecer ao
príncipe como obedecem a Deus. Neste sentido, segundo Bossuet, São Paulo disse que os
servidores deviam obedecer aos mestres temporais como obedecem a Deus. “Há então
441
Cf. FIGGIS, John Neville. “Introducción”. In: ____. El derecho divino de los reyes. México: Fondo de
Cultura Económica, 1942, pp. 13
-
14.
442
Cf. ibid., pp. 20
-
21.
93
alguma coisa de religiosa no respeito que se tem pelo príncipe. O serviço de Deus e o
respeito para com os reis são coisas unidas; e são Pedro reúne esses dois deveres: ‘crêde
em Deus, honrai o rei’”. E Bossuet acrescenta, “pertence então ao espírito do cristianismo
fazer respeitar os reis como uma espécie de religião, que o próprio Tertuliano chama muito
bem de “a religião da segunda majestade’”.
443
Nesta exaltação ao poder do príncipe,
Bossuet lembra que a autoridade real é paternal: “os reis têm o lugar de Deus que é o
verdadeiro pai do gênero humano. (...) a primeira idéia de poder que existiu entre os
homens, é a do poder paternal; e que os reis se fazem segundo o modelo dos pais. Por isto,
todo mundo está de acordo que a obediência que é devida ao poder público, somente se
encontra no preceito que obriga a honrar seus pais”.
444
Por fim, Bossuet ressalta que a
autoridade real é absoluta; isto significa que o poder do príncipe é indivisível e que ele não
deve prestar contas a ninguém de suas decisões.
445
Em 1669, em sua Oraison Funèbre de Henriette-
Marie
, a viúva de Carlos I e tia de
Luís XIV
446
, Bossuet defende a autoridade do príncipe como sendo fundamental à
manutenção da ordem no reino. E mais! Ele exalta a superioridade da monarquia francesa.
Segundo ele, referindo
-
se a rainha Henriette
-
Marie,
nada se encontra debaixo do sol que iguale a sua grandeza. Desde os primeiros séculos
São
Gregório fez da coroa da França esse singular elogio: ‘ela está acima das outras coroas do
mundo, como a dignidade real está acima das fortunas particulares’. Se nestes termos falou
do tempo do rei Childebert, e tão alto elevou a raça de Meroveu, imagine o que diria do
sangue de São Luís e de Carlos Magno. Descendente desta raça, filha de Henrique o
Grande, e de tantos reis, o seu grande coração sobrepujou o seu nascimento. Qualquer
outro lugar, a não ser um trono, seria indigno dela.
447
É possível imaginar o quão envaidecido sentiu-se Luís XIV, o neto de Henrique IV,
ao ouvir os elogios aos reis e ao reino da França pela boca daquele que já era considerado o
maior orador francês. E o porquê de, três dias depois, tê-lo convidado para ser bispo de
Condom
e, no ano seguinte, confiar-lhe o cargo importantíssimo de preceptor do Delfim.
Afinal, na concepção de Luís XIV, quem melhor que Bossuet poderia elevar o poder
443
Cf. BOSSUET, Jacques-
Bénigne.
Politique tirée des propres paroles de l’Ecriture Sainte. Genève: Droz,
1967. (Edição crítica com introdução e notas de Jacques Le Brun), pp. 65
-
69.
444
ibid., p. 71.
445
Cf. ibid., p. 92.
446
Henriette-Marie, nascida em 1609 e falecida em 1669, viúva de Carlos I em 1649, era a ircaçula de
Luís XIII, pai de Luís XIV.
447
BOSSUET, Jacques-Bénigne. “Oraison funèbre de Henriette-Marie, Reine de la Grande-Bretagne, 1699”.
In:
_____. Oraisons funèbres
. Paris: Librairie de Firmin Didot Frère, Fils et Cie, 1874, p. 38.
94
daquele que no momento seria o futuro rei da França, assegurar sua autoridade com tanto
empenho
, exaltar a sua glória?
Bossuet atinge o ápice da exaltação monárquica em seu Sermon sur les devoirs des
rois
, pronunciado em 1662. Neste sermão, Bossuet eleva Luís XIV à categoria das
divindades, afirmando “Vós sois deuses”, mostrando que mesmo que ele morra a sua
autoridade não morre jamais, pois ela é imortal:
Para estabelecer este poder que representa o seu, Deus põe sobre a fronte dos soberanos e
sobre sua face uma marca de divindade. (...) Vós sois deuses, disse Davi, e vós sois filho
do Altíssimo. Mas deus de carne e sangue, deus de terra e de pó, vos morrereis como
homens. Não importa, vós sois deuses, ainda que vós morrais, vossa autoridade não morre
jamais; este espírito de realeza passa completamente a vossos sucessores, e imprime em
toda parte a mesma crença, o mesmo respeito, a mesma veneração. O homem morre, é
verdade; mas o Rei, dizemos, não morre jamais: a imagem de Deus é imortal.
448
Conforme observa Franklin Baumer, a este respeito, “a obra
Politique
, escrita por
Bossuet para instruir o Delfim nas suas prerrogativas e deveres futuros, ajudou a elevar o
absolutismo, tal como era praticado pelo Rei”. Ao afirmar que os reis eram ministros de
Deus na terra, eram feitos segundo o modelo dos pais, e que sua autoridade era absoluta,
subentendia, portanto, que os súditos deviam obedecer-lhes como a um pai, sem
contestação, e que a falta de autoridade no reino levaria à anarquia, Bossuet afirmava, pois,
as teorias sustentadas anteriormente por alguns defensores do absolutismo. “No entanto,
quando Bossuet escreveu que ‘os reis são deuses e participam da independência divina’, e
que ‘o estado é o príncipe... Que grandeza um simples homem deter tanto poder!’, estava a
contribuir para a apoteose do Rei Sol”.
449
Na divinização de Luís XIV, feita acima, quando Bossuet afirma “vos morrereis
como homens. Não importa, vós sois deuses, ainda que vós morrais, vossa autoridade não
morre jamais; este espírito de realeza passa completamente a vossos sucessores (...) O
homem morre, é verdade; mas o Rei, (...) não morre jamais: a imagem de Deus é imortal”,
está presente em seu pensamento a idéia de distinção entre o rei enquanto instituição e a
pessoa de Luís XIV.
Esta idéia pertence à doutrina dos dois corpos do rei, que foi extremamente
defendida no século XVI na Inglaterra, mas tem origens na Idade Média. No quarto ano do
448
BOSSUET, “
Sermon sur les devoirs des róis, 1662”, in TRUCHET, op. cit., p. 82.
449
BAUMER, Franklin. L. O pensamento europeu moderno
.
Séculos XVII e XVIII. Vol. I. Lisboa: Edições
70, 1977,
p. 123.
95
reinado da rainha Elizabeth, os juristas da coroa inglesa, retomando máximas comuns entre
os juristas medievais, defendiam a doutrina dos dois corpos do rei, segundo a qual o rei
possuía dois corpos: um corpo natural, como qualquer outro homem, e um corpo político,
místico, incapaz de imperfeições. De acordo com os juristas elizabetanos,
o Rei tem em si dois Corpos, a saber, um Corpo natural e um Corpo político. Seu Corpo
natural (...) é um Corpo mortal, sujeito a todas as Enfermidades que ocorrem por Natureza
ou Acidente, à Imbecilidade da Infância ou da Velhice e Defeitos similares que ocorrem
aos Corpos naturais das outras Pessoas. Mas seu Corpo político é um Corpo que não pode
ser visto ou tocado, composto de Política e Governo, e constituído para a Condução do
Povo e a Administração do bem-estar público, e esse Corpo é extremamente vazio de
Infância e Velhice e de outros Defeitos e Imbecilidades naturais, a que o Corpo natural está
sujeito...
450
Para os juristas elizabetanos, o corpo natural e o corpo político são inseparáveis,
eles estão incorporados em uma única pessoa, compondo um corpo, e as imperfeições
do corpo natural o removidas pelo corpo político que é mais amplo e superior.
451
Mas,
apesar da unidade entre os dois corpos, havia a possibilidade de separação no caso da
morte do rei. Na concepção dos teóricos dos dois corpos do rei, o corpo natural do rei é
composto por membros naturais como os outros homens, sendo assim, ele está sujeito às
paixões e à morte como os demais. o seu corpo político é uma corporação constituída
por ele e os seus súditos, em que ele é a cabeça e os súditos são os membros; mas, ao
contrário do corpo natural, este corpo político não está sujeito nem às paixõe
s nem à morte.
O corpo político do rei nunca morre. A morte do corpo natural do rei não significa a morte
de seu corpo político. Neste caso, os dois corpos são separados. O corpo político é
imediatamente transmitido do corpo natural morto para outro corpo
natural.
452
De fato, na concepção dos cristãos “o príncipe não morre”. Quando da sagração de
um rei, a população gritava em alta voz: “
Vivat rex!
Ou
Vivat rex inaeternum!
”. No enterro
de um rei, lançava-se o seu caixão no fosso fúnebre gritando: “‘o rei está morto, viva o
rei!’”. Houx nos adverte que somente no século XVI é que esta célebre frase foi dita pela
primeira vez. Entretanto, no final do século XV, em 1498, quando se proclama ‘o rei
450
apud KANTOROWICZ, H. Ernst. Os dois corpos do rei: um estudo de teologia política medieval.
Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 21.
451
Cf. KANTOROWICZ, op. cit., pp. 22
-
24.
452
Cf. ibid., pp. 24
-
25.
96
Carlos está morto, viva o rei Luís!’, já havia o desejo de se afirmar a transmissão do poder
do rei morto ao seu sucessor sem nenhuma interrupção.
453
A doutrina dos dois corpos do rei estava presente no pensamento político inglês do
século XVII, sendo retomada pelo Parlamento no contexto da Revolução Inglesa de
1640.
454
A doutrina dos dois corpos do rei era corrente também na França do século XVII,
e se faz constante no pensamento político de Bossuet. Como vimos, um dos aspectos desta
doutrina, de que o rei como corpo político não morre, também é defendido por ele.
Conforme Houx, os cristãos acreditavam que “‘o rei não morre jamais’”. Esta idéia “será
repetida de século em século e ainda por Bossuet”. Para ele, “o príncipe morre, mas a
autoridade é imortal”.
455
Segundo Marcos Lopes, para Bossuet, “mesmo que o rei seja
perecível,
por força das limitações de seu corpo físico, sua autoridade é imortal,
subsistindo a monarquia para sempre”.
456
Esta idéia também era compartilhada por Luís
XIV. De acordo com Corvisier, “Luís XIV fez a distinção entre sua pessoa e o Estado.
Teria dito: ‘o Estado sou eu’, mas declarou em seu leito de morte: ‘eu me vou, mas o
Estado permanecerá sempre’”.
457
453
Cf.
HOUX, Jean
-
Paul.
Le roi.
Mythes et symboles. Paris: Fayard, 1997, p. 266.
454
Cf. KANTOROWICZ, op. cit., p. 30.
455
Cf. HOUX
, op. cit., p. 266.
456
LOPES, 1997, op. cit., p. 113. Marcos Lopes observa que, “segundo Manuel García-Pelayo, a realeza da
época moderna pode ser compreendida como um símbolo que transpersonaliza o poder monárquico. De fato,
na França do Ancien Régime, a realeza se fundamenta num simbolismo que transcende a pessoa do rei. A
realeza é uma essência mística e intangível, e não meramente uma realidade temporal”. ibid., p. 72.
457
CORVISIER, op. cit., p. 278.
97
CAPÍTULO IV
BOSSUET E A REVOGAÇÃO DO EDITO DE NANTES
De 1562 a 1598 a França foi palco de sangrentas Guerras de Religião. Segundo
afirma
Perry Anderson, “a morte de Henrique II precipitou a França em quarenta anos de
luta cruenta”.
458
De fato, quando faleceu Henrique II, em meados do século XVI, os dois
filhos, Francisco II e Carlos IX, eram menores de idade. Desta forma, a mãe deles,
Catarin
a de Médicis, assumiu a regência. Com isso, duas famílias fidalgas passaram a
disputar ferrenhamente a primazia: os Bourbons e os Guise. Estes deram apoio aos
católicos e aqueles, aos protestantes. As Guerras de Religião colocavam o poder real em
perigo.
459
No tempo de Henrique III o tiranicídio foi justificado por diversos pregadores. No
dia 1º de agosto de 1589 o monge Jacques Clément, integrante da Liga, assassinou este rei.
Antes de morrer, Henrique III designou o primo, Henrique de Bourbon, como seu sucessor
à coroa da França. Mas, como Henrique III sabia que os franceses católicos jamais
aceitariam o chefe do partido protestante como rei da França, solicitou-lhe, ou melhor,
impôs
-lhe a condição, que abjurasse ao protestantismo e aceitasse a religião católica. Com
a morte de Henrique III, a dinastia Valois foi extinta, Henrique de Bourbon assumiu o
poder, tornou-se Henrique IV, dando início à dinastia Bourbon. Em 4 de agosto, por meio
da declaração de Saint-Cloud, o novo rei prometeu, entre outras coisas, “conservar a
religião católica” e “reservar aos católicos o governo dos lugares que viesse a ocupar”.
Desta forma, reuniu em torno de si os denominados “católicos reais”.
460
Henrique IV, o
fundador da dinastia Bourbon, restaurou o prestígio popular da monarquia com o seu
magnetismo pessoal.
461
No dia 13 de abril de 1598 Henrique IV promulgou o Edito de Nantes, o qual
reconhecia aos protestantes o direito de praticarem a sua fé livremente sem sofrer qualquer
458
ANDERSON, op. cit., p. 90.
459
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 141.
460
Cf. ibid.
461
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 92
-
93.
98
espécie de perseguição.
462
Por meio do Edito de Nantes, Henrique IV estabeleceu a
tolerância religiosa, pacificando o reino, afinal; com isto, a França se restabeleceu.
463
De
acordo com Perry Anderson, “o Edito de Nantes e seus artigos complementares contiveram
o problema do protestantismo, ao conceder-
lhe auton
omia regional limitada”.
464
Nas duas últimas décadas do reinado de Henrique IV vários elementos desgostaram
os franceses. De 1594 a 1603 Henrique IV expulsou os jesuítas da França, “sob o pretexto
de que um deles inspirara o gesto de um regicida”. Rompeu com a Espanha católica e
apoiou os holandeses protestantes contra ela. Em 1610, na véspera do dia em que partiria à
frente de suas tropas para comandar uma expedição militar contra a Espanha o rei foi
assassinado, esfaqueado por Ravaillac, um antigo integrant
e da Liga. Para grande parte dos
franceses, “Henrique IV parecia retomar ao lado dos protestantes a luta contra a Espanha,
campeã do catolicismo”. Para os fanáticos católicos, o rei pretendia estabelecer o
protestantismo na França. Fato curioso é que enquanto Jacques Clément, regicida que
assassinou Henrique III, recebeu elogios, Ravaillac foi injuriado. “Henrique IV foi
considerado um mártir e um pesado opróbrio vinculou-se ao regicida”. Desta forma, a
monarquia absolutista de direito divino saiu fortaleci
da.
465
Ao estabelecer a tolerância religiosa, o Edito de Nantes proporcionou uma longa
trégua aos calvinistas. Durante algumas décadas, ele assegurou aos protestantes um
estatuto aceitável. Mas apesar da tolerância ser estabelecida oficialmente por esse trat
ado
de paz, a rivalidade entre católicos e protestantes não deixou de existir. Houve
perturbações na segunda década do século XVII. Na menoridade de Luís XIII, a partir de
1610, as agitações religiosas foram constantes; aliás, as regências eram favoráveis a esse
tipo de ambiente instável. Os protestantes franceses desejavam formar um Estado dentro
do Estado, negando-se a obedecer ao rei da França, o que incorria em uma séria ameaça ao
poder centralizado. Ao assumir o Estado, a partir de 1624, o primeiro-
min
istro Richelieu
retomou a guerra contra eles.
O protestantismo foi reduzido pouco a pouco por Luís XIII. Em seu reinado, com
seu primeiro-ministro Richelieu à frente, houve uma grande perseguição aos protestantes.
Primeiramente, ele procurou destruir o partido político protestante, que reunia cerca da
462
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 42.
463
Cf. CORVISIER, op. cit., pp. 144
-
145.
464
ANDERSON, op. cit., p. 93.
465
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 190.
99
metade da nobreza francesa.
466
“Em 1625 (...) houve uma nova revolta dos protestantes.
(...) Com sua organização militar e suas praças fortes formaram um ‘Estado no Estado’,
dispondo de alianças externas, como a da Inglaterra. Contra eles, Richelieu empreendeu
uma guerra de Estado, não de religião”.
467
Luís XIII e Richelieu recusavam-se a tratá-
los
como uma potência. A divisão dos reformados facilitou com que o rei e o primeiro-
ministro os derrotassem.
468
Richelieu liquidou, sem piedade, as “fortalezas huguenotes
remanescentes no sudoeste, com o cerco e a captura de La Rochelle”, o maior reduto
protestante da França no período.
469
Em 29 de outubro de 1628, “Richelieu a sitiou por
terra e bloqueou-lhe o porto com um molhe a fim de impedir a entrada de reforços
enviados por Buckingan”. Com isso, ele destruiu o partido protestante. “Uma breve
campanha nas Cévennes completou o êxito da empresa”.
470
Luís XIII concedeu a Graça de
Alès em 23 de junho de 1629, por meio da qual consumou-se a vitória contra os
protestantes: “a revolta estava perdoada, o Edito de Nantes restabelecido, mas o Edito:
todas as fortificações das cidades deviam ser arrasadas, as organizações políticas e
militares dos protestantes, dissolvidas. A República protestante não mais existia. Os
reformados conduziam-se daí por diante como súditos leais. Sua fidelidade durante a
Fronda valeu
-
lhes a confirmação do Edito de Nantes em 1652”.
471
O Edito de Alès, que anistiou os protestantes em 1629,
após o cerco
de La Rochelle,
proporcionou uma relativa paz entre católicos e protestantes, de 1630 a 1660. No entanto,
apesar deste acordo, a paz durou muito pouco. A partir de 1665-1670 aumentaram as
inquietações, desde 1679 perseguições furiosas foram retomadas e não cessaram até a
revogação do Edito de Nantes.
472
No início de seu reinado pessoal, em 1661, assim como seus súditos católicos, Luís
XIV acreditava que o Edito de Nantes era um compromisso provisório. Freqüentemente,
ele era cercado pelas assembléias do clero que suplicavam contra a religião protestante. Os
466
Cf. CHAUNU, v. I, op. cit., p. 121; MOUSNIER, 1973, op. cit
., pp. 293
-
294.
467
CORVISIER,
op. cit.,
p. 192.
468
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 293.
469
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 94
-
95.
470
CORVISIER,
op. cit., p. 192.
471
MOUSNIER, 1973, op. cit., pp. 293
-294.
Conforme Pierre Chaunu, “tomando La Rochelle (29 de outubro
de 1628), assenhorando-se de Montauban (20 de agosto de 1629) pela perspicácia, sobretudo do Edito de
Graça de Alès (23 de junho de 1629), o grande cardeal ganhou a guerra protestante”. CHAUNU, v. I, op. cit.,
p. 88. Segundo Corvisier, “pelo Edito de Graça de Alès (junho de 1629), o rei assegurou a aplicação do
Edito de Nantes, mas revogava os privilégios outorgados em seus anexos, consolidando um regime de
tolerância religiosa que devia durar meio século e garantir a obediência de seus ditos protestant
es”.
CORVISIER,
op. cit.,
pp. 191
-
192.
472
Cf. MANDROU, op. cit., p. 183.
100
católicos franceses consideravam o protestantismo como um mal provisório, um corpo
estranho, uma verdadeira ofensa ao rei Cristianíssimo. Havia centenas de igrejas
reformadas em quase todas as regiões da França, os protestantes eram recrutados em todos
os meios sociais: nobres, artesãos, burgueses e camponeses. O despertar católico do século
XVII avivou o ódio contra eles. O protestantismo era insuportável aos católicos, por isso
eles achavam ser necessário exterminá-
lo.
473
Porém, a história nos mostra que todos os
esforços feitos neste sentido provaram ser esta uma missão impossível.
Como vimos, no Ancien Régime a intolerância religiosa não se dava somente de
cima para baixo, mas entre os súditos também. Natalie Zemon Davis retrata a violência
religiosa popular nos massacres de São Bartolomeu, em 1572. Segundo a historiadora
norte
-americana, os católicos odiavam os protestantes “por suas ações poluidoras
separatistas e desorganizadoras (...). Para os fanáticos católicos, a liquidação dos ‘vermes’
heréticos prometia a restauração da unidade do corpo social”. A multidão gritava nas ruas,
entre outras coisas, “viva a religião católica, (...) Vivam os parisienses fiéis, (...) Que todo
o mundo à missa. Um Deus, uma Fé, um Rei”.
474
Esta intolerância religiosa existia no
século XVII com a mesma intensidade.
Na França do século XVII o rei estava associado à Igreja. Lembremos que Luís XIII
baixou alvará em 10 de fevereiro de 1638 consagrando a França a Deus sob a espec
ial
proteção de Nossa Senhora com ordem de realizar procissões, a título perpétuo, no dia 15
de agosto de cada ano. Pelo fato de estar ligado à Igreja, o rei devia zelar pela salvação de
seus súditos; pelo juramento pronunciado durante a sagração, ele devia proteger a Igreja e
exterminar a heresia.
475
Como constata Roland Mousnier, “o rei é o chefe e o protetor da
473
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., pp. 86
-
87; MANDROU, op. cit., pp. 182
-183.
474
DAVIS, Natalie Zemon. Ritos de violência. In: ____. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da
França moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p.135. Natalie Davis analisa os ritos de violência
praticados tanto por católicos quanto por protestantes, na França, na segunda metade do século XVI. Natalie
Davis demonstra o alto grau de intolerância religiosa existente entre ambos. Segundo a autora, os objetivos
da multidão ao praticar a violência religiosa eram “a defesa da verdadeira doutrina e a refutação da falsa”.
Ambos entendiam que o outro poluía a comunidade, representando um perigo, pois, “provocava a ira de
Deus. Tufões e enchentes terríveis eram às vezes vistos como sinais de Sua impaciência” por causa da
poluição. ibid., pp. 132, 134
-135.
475
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 79. Conforme observa Le Goff, desde meados do século XIII os reis
passaram a pronunciar quatro juramentos no momento de sua sagração. Neles estão contidos a defesa da fé,
da Igreja e o combate à heresia. “O rei, segundo os
ordines
de Reims e de 1250, pronuncia quatro séries de
juramentos: 1- Ele promete primeiramente à Igreja de protegê-la em sua pessoa e em seus bens; 2- Ele
promete fazer reinar a paz e a justiça valor de forte conotação religiosa e mesmo escatológica e, (...) de
fazer prova de misericórdia. Uma quarta promessa, introduzida após o Concílio de Latrão (1215), consi
ste
no comprometimento de combater os heréticos. 3- Ele promete defender a santa fé católica, de ser o defensor
e o tutor das igrejas e de seus ministros, e de reger e defender o reino que Deus lhe deu conforme a tradição
de justiça de seus pais. 4-
Enfim,
após o coroamento e a entronização, o rei faz uma última promessa sintética
101
Igreja da França”.
476
Este autor afirma também que “todo mundo queria ver no rei a
imagem de Deus: ‘Vós sois Deus na terra (...). A esta concepção so
mava
-se, em muitos, o
velho sonho humanista: o rei deve ser protetor da Igreja, como Constantino”.
477
Behrens
observa que, de acordo com as antigas leis consuetudinárias da França, os monarcas não
podiam “banir grupos de pessoas”, com exceção dos “hereges”, pois estes encontravam-
se
“numa posição especial porque estavam fora da comunidade dos fiéis que o rei tinha jurado
defender no juramento de coroação”.
478
Ao referir-se a Luís XIV, Mousnier nos chama a
atenção para o fato de que, “o juramento de respeito ao sagrado obrigava-o a destruir a
heresia. Todos os seus súditos, protestantes ou católicos, julgavam que, ‘a diferença de
religião desfigura o Estado’: ‘uma fé, uma lei, um rei’”.
479
Durante a Fronda, para a satisfação de Luís XIV e de seu primeiro-
ministro
Mazarino, os protestantes se mantiveram leais ao soberano, tanto que Mazarino
considerava os jansenistas facciosos preferindo os protestantes a eles.
480
Apesar disso, Luís
XIV queria “obrigá-los à conformidade”, pois a existência dessa minoria solidamente
es
tabelecida em seu reino significava uma afronta à honra de sua família e, mais que isto, a
sua glória.
481
Luís XIV passou a interpretar “o Edito num sentido cada vez mais estrito”.
482
No
início de seu reinado pessoal, recomeçaram as perseguições aos protestant
es.
483
Porém,
elas eram mais brandas até 1679.
484
Logo em seguida, ao Edito de Graça de Alès, Luís XIII
tentou unir as Igrejas. “Richelieu pensou em submeter os protestantes graças a um colóquio
nacional. Ganhara para o seu plano, segundo dizem, 80 pastores”. Depois de 1662, as
negociações foram retomadas por Luís XIV, as quais foram conduzidas por um Conselho
oficioso por volta de 1665, em que se destacavam Turenne e Bossuet. Este “publicou sua
Exposição de Católica (1671), ‘a obra-prima da Contra-
Reforma’.
Turenne propunha
conquistar 50 pastores, entabular conferências com eles, obter explicações do papa e
coram Deo, clero et populo
’ com efeito, nesses juramentos, e de modo geral quando da sagração, um pacto é
concluído entre o rei e a Igreja, que fala por ele próprio e pelo povo do qual ele se por representante”. LE
GOFF, Jacques. “Aspects religieux et sacrées de la monarchie française du X au XIII siècle”. In:
BOUREAU, Alain; INGERFLOM, Cláudio-
Sergio.
La royauté sacrée dans le monde chrétien
.
Paris: École
des Hautes Études en
Sciences Sociales, 1992,
p. 21.
476
MOUSNIER, 1971, op. cit., p. 306.
477
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 260.
478
BEHRENS, op. cit., p. 96.
479
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 292.
480
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 87.
481
SHENNAN, op. cit., p. 43.
482
MOUSNIER, 1973, op. cit.
, p. 294.
483
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 42.
484
MÉTHIVIER, op. cit., pp. 87
-
88.
102
revogar o Edito de Nantes que se tornaria inútil”.
485
Até 1679 acreditava-se que seria fácil
converter os protestantes.
486
Em seu anseio pela conversão dos huguenotes, Luís XIV
utilizou
-se de estratégias pacíficas como as “missões de capuchinhos e as casas de
Propagação da Fé”.
487
Bossuet tentava provar os “erros”, os teólogos e os laicos da
Compagnie du Saint
-
Sacrement
empreendiam uma ofensiva convergente para
convertê
-los;
Bossuet converteu Turenne em 1668. Meios nada evangélicos também eram utilizados
como a Caisse des Conversions de l’Académicien.
488
Segundo Mousnier, “desde os
primeiros anos do reinado de Luís XIV empregou-se a corrupção sob a forma de dinheiro
ou de favores aos protestantes. Após 1674, o historiógrafo do rei, Pelisson, protestante
convertido, dirigia uma ‘Caixa de Conversões’, que, mediante recompensas pecuniárias,
‘preparava os corações para a ação de graça’”.
489
Uma outra forma de incentivo para que
os protestantes abjurassem a sua era a isenção da talha aos convertidos.
490
Bossuet
acreditava no poder da controvérsia. Mas a importante controvérsia entre ele e o pastor
Paul Ferry foi infrutífera
491
; que ele não conseguiu converter este pastor nem unir as
duas Igrejas.
Estes foram meios pelos quais não se conseguiu muito sucesso, o número de
convertidos era bem inferior ao esperado. Pouco a pouco, o Edito de Nantes “foi sendo
esvaziado de seu conteúdo e os protestantes sofreram perseguições”. Com o tempo, o Rei
Cristianíssimo passou a recorrer a métodos mais violentos.
492
Após 1679 aumentaram as
perseguições oficiais e cada vez mais as disposições do Edito de Nantes eram desprezadas
e violadas.
493
De 1679 a 1685 realizou-se uma perseguição violenta para forçar os
protestantes à conversão. Para isso dois métodos eram empregados simultaneamente: a
violência legal que tornavam todas as atividades dos reformados ilegais, por meio de
vários decretos buscavam impedir que eles tivessem acesso aos ofícios, às profissões
liberais; um outro meio era a violência militar pura, em que soldados eram alojados em
casa de protestantes, e as atrocidades cometidas por eles causaram espanto. Desde 1680,
485
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 294.
486
MÉTHIVIER, op. cit., pp. 87
-
88.
487
MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 294.
488
MÉTHIVIER, op. cit., pp. 87
-
88.
489
MOUSNIER, op. cit., 1973, p. 294.
“E
m mais de um caso, os protestantes surgiam como homens de
dinheiro; daí a idéia de uma caixa de conversões encarregada de indenizar os que abjuravam, através do
pagamento de subvenções, pelos aborrecimentos que poderiam encontrar em seus negócios junto de
seus
antigos correligionários”.
CORVISIER, op. cit., p. 280.
490
Cf. ibid.
491
MÉTHIVIER, op. cit., pp. 87
-
88.
492
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 294.
493
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 43.
103
em Poitou, a Dragonnade
494
do intendente Marillac forçou trinta mil protestantes à
conversão. Diante das queixas, Luís XIV lembrou a Marillac que não queria violência,
contudo, Louvois continuou a sustentar os intendentes; assim as dragonadas em Poitou, em
Béarn e no Languedoc se tornaram famosas. As listas e as cifras de conversões eram
apresentadas a Luís XIV.
495
Até 1679 os sacerdotes buscavam converter os huguenotes, reconduzi
-
los ao seio da
Igreja católica. No entanto, o fanatismo interveio, arruinando este empreendimento. Em
1685, alguns conselheiros de Luís XIV lhe afirmaram que quase todos os huguenotes
haviam abjurado sua religião, sendo assim, o Edito de Nantes havia se tornado
desnecessário, convenceram-no então a revogá-
lo.
496
Segundo observa Méthivier, se ele
acreditou sinceramente na próxima extinção da heresia, o Edito de Nantes não tinha mais
razão de ser: não havia mais que novos convertidos”.
497
A intensificação da intolerância religiosa chegou ao extremo com a revogação do
Edito de Nantes, privando os protestantes de sua liberdade de religião. Em 1685, Luís XIV
decidiu exterminar o protestantismo na França, revogando a lei que lhe dava proteção. Le
Tellier, o chanceler de Luís XIV, que estava à beira da morte, redigiu e rubricou o Edito de
Fontainebleau que revogava o Edito de Nantes. Estimulado por Le Tellier, em 18 de
outubro de 1685 Luís XIV assinou este Edito.
498
O arcebispo de Harlay, o chanceler Le
Tellier e seu filho Louvois, o ministro de guerra, foram os grandes zelosos da revogação.
499
A partir desse momento, a religião protestante estava terminantemente proibida de ser
494
“Data de 1680 a prática que consistia em enviar soldados da guarnição junto aos protestantes tal como se
operava em relação aos contribuintes recalcitrantes. Foram as chamadas
dragonadas
. O terror inspirado pelos
‘missionários de bota’ provocou conversões em massa”. CORVISIER, op. cit., p. 280.
495
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 88. Segundo Shennan, “no fim da década de 70 a influência de Colbert
começou a diminuir, à medida que crescia a do ministro da guerra, Louvois. Colbert, cuja política econômica
encorajava os protestantes a se estabelecerem na França, opunha
-
se à perseguição do
s huguentes. Louvois, ao
contrário, favorecia uma política brutal de conversão forçada dos hereges, com as infames dragonadas,
levadas a cabo pelos dragões reais, as tropas aquarteladas com famílias protestantes, que procuravam
aterrorizar para que abandonassem sua fé”. SHENNAN, op. cit., p. 43. Conforme observa Mousnier, “desde
1681, o intendente de Marillac, em Poitou, obteve autorização para aboletar dragões entre os habitantes. (...)
Em 1685, o processo generalizou-se. Hospedeiros arruinados pelas exigências dos soldados, injuriados e
surrados quando recusavam ouvir os capuchinhos, mulheres arrastadas pelos cabelos, torturas dos pés
aquecidos ao fogo, privação de sono, violações, constituíam as façanhas das tropas. Os protestantes
converteram
-se em massa. O Edito de Nantes pareceu doravante sem objeto e foi abolido a 18 de outubro de
1685 pelo Edito de Fontainebleau”. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 294.
496
Cf. HATTON, op. cit., p. 99. De acordo com investigações recentes, segundo esta autora, parece que “a
revogação resultou de um equívoco [os conselheiros de Luís XIV ter-
lhe
-iam dito que tantos huguenotes
haviam regressado livremente à Igreja, que o Edito se tornara anacrônico]”. ibid.,
p. 21.
497
MÉTHIVIER, op. cit., p. 88.
498
Cf. HATTON, op. cit., p. 19; SHE
NNAN, op. cit., pp. 42, 44; ANDRÉ, op. cit., p. 217.
499
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 88. Shennan observa que, “tanto Michel Le Tellier como seu filho Louvois
fizeram sentir sua influência” na revogação do Edito de Nantes.
SHENNAN, op. cit., p. 42.
104
praticada na França. Na implementação do Edito de Fontainebleau foram empregadas
medidas severas, incluindo a pena de morte, os ministros protestantes foram banidos.
500
De
acordo com Méthivier, “o Edito de Fontainebleau de 18 de outubro de 1685 bania os
pastores, impedia os ex
-
protestantes de fugir [sob pena de galeras], decretava o fechamento
de escolas, o batismo das crianças dos N.C.”, (novos convertidos), “a demolição dos
últimos templos. Ele considerava então todos os protestantes como N.C.”.
501
Aproximadamente 200 mil protestantes fugiram da França, apesar da proibição de emigrar.
Os leigos que ficaram passaram a praticar sua em segredo ou aceitavam converter-
se,
porém sem nenhum entusiasmo.
502
A revogação do Edito de Nantes deveu-se primeiramente à devoção crescente do
‘filho primogênito da Igreja’. É importante esclarecer que, como observa Rullière, a
revogação constitui-se em ‘um ato de devoção e não uma questão de política’. Ezechiel
Spanheim, representante do Brandeburgo em Versalhes, foi o único contemporâneo de
Luís XIV que percebeu a característica religiosa do rei Cristianíssimo. A devoção sincera
de Luís XIV provinha primeiramente do fato de que ele acreditava ser o representante de
Deus na terra; ele alegrou-
se com as conversões de Turenne e de Pelisson, em 1668 e 1670,
respectivamente; com o avanço da idade suas manifestações religiosas tornaram-se mais
claras e numerosas; no momento em que se instalou momentaneamente na Holanda, em
1672, no início da guerra, ele mostrou preocupação com o destino dos católicos
holandeses; quando da tomada da Estrasburgo, em 1681, no tratado de submissão que os
estrasburgueses foram obrigados a assinar, eles tiveram de escrever neste tratado que
entregariam a catedral para que o bispo François Egon de Furstenberg pudesse exercer o
seu culto sem dificuldades. Luís XIV disse pouco antes de revogar o Edito de Nantes,
em 3 de setembro de 1685, “não posso duvidar de que esta é a vontade divina que se quer
servir de mim para recolocar em suas vias todos aqueles que são submissos as minhas
ordens”.
503
Alguns dias depois da revogação, Luís XIV recebeu as notícias do embaixador
d’Avaux e se dava conta das conseqüências de seu ato, dizendo que por causa da
revogação Guilherme de Orange juntamente com seus partidários estavam se empenhando
para afastar os Estados Gerais de seus interesses, mas que o bem resultante da revogação
500
Cf. S
HENNAN, op. cit., p. 44.
501
MÉTHIVIER, op. cit., pp. 88
-
89.
502
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 44.
503
Cf. ANDRÉ, op. cit., pp. 217
-
218, 220.
105
era tão imenso que nada o faria voltar atrás e o impediria de aperfeiçoar tal obra. A respeito
da emigração dos protestantes, o rei dizia que Deus só permitia essa desordem para
purificar meu reino de maus e indóceis súditos’”.
504
Ao contrário do que se tem afirmado, Luís XIV não empreendeu a revogação sob a
influência de Madame de Maintennon, sua segunda esposa com quem se casara
secretamen
te em 1683 com o apoio de Bossuet. Como sua esposa, Madame de Maintenon
não podia contrariar nenhum de seus desejos e, além disso, ela era uma ex-
calvinista
convertida ao catolicismo. Portanto, conforme salienta Louis André, “a revogação foi então
obra pes
soal do rei, ordenada por ele aos membros de seu círculo”.
505
Em segundo lugar, não podemos nos esquecer que o ato da revogação continha
também interesses políticos por parte de Luís XIV. Como resultado da Reforma desenhou-
se um mapa religioso na Europa dese
nvolvendo
-se o princípio cuius regio eius religio, por
meio do qual os príncipes e monarcas aceitaram que os súditos deviam praticar a mesma
religião que seus reis. Luís XIV compartilhava desse ponto de vista e “preferia ter um reino
unido pela assim como pela lealdade ao soberano”. Ele nunca duvidou de que o Estado
estaria mais seguro se todos os franceses comungassem da sua religião.
506
Como Luís XIV
muito desejava a unidade religiosa “não só por motivos pessoais, mas também por
motivos de Estado”
507
, acreditamos que não foi preciso muito esforço por parte de seus
conselheiros para convencê
-
lo à revogação.
Nos séculos XVI e XVII, apesar dos abalos de provocados pela influência
calvinista, o catolicismo era tão preponderante na França que os reis tinha
m que se curvar a
ele como condição do reconhecimento de sua legitimidade pelos súditos; quando não,
tinham que se converter, como é o caso de Henrique IV. A questão protestante incomodava
não somente à Igreja, mas também ao Estado francês. Desde a Reforma, com exceção do
ex
-calvinista Henrique IV, havia uma luta ferrenha da monarquia para acabar com o
protestantismo na França.
No século XVII, como no século anterior, os reis usavam de seu poder coercitivo
para que os súditos aderissem à religião oficial. Quentin Skinner analisa as perseguições
aos protestantes em alguns países da Europa, entre eles a França, na segunda metade do
século XVI, demonstrando que os governantes católicos usavam da força para unificar sua
504
ANDRÉ, op. cit., p. 220.
505
ibid., p. 218.
506
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 42
-
43.
507
Cf. HATTON, op. cit., p. 100.
106
religião.
508
De acordo com Mousnier, Luís XIV “considerou sempre a unidade religiosa
como o coroamento do absolutismo”. Ao atacar o protestantismo Luís XIV desejava,
segundo este autor, “concentrar em sua pessoa todo o poder, realizar em torno de si a
unidade religiosa”.
509
A revogação não tem a ver com as relações da França com a Europa. De acordo
com Madame de Maintenon, “o rei está muito contente de ter posto a última mão à grande
obra da reunião dos heréticos à Igreja”. Em 22 de outubro de 1685, o edito de revogação
foi registrado por todos os parl
amentos da França.
510
Qual foi a responsabilidade pessoal de Luís XIV na revogação do Edito de Nantes?
Luís XIV não aprovava os métodos repressivos, como as dragonadas, utilizados para
converter os hereges até 1685. Ele desejava alcançar o resultado final da
operação, mas não
era cruel como alguns dos que o serviam.
511
Madame de Maintenon escrevia desde 23 de
outubro de 1675 que o rei se preocupava com a conversão dos huguenotes. Em 13 de abril
de 1684, segundo ela, nas conferências de Luís XIV com Le Tellier e Madame de
Châteauneuf, ele refutou os meios violentos que estes propuseram dizendo que “é preciso
converter e o persuadir”. Quando Luís XIV se reuniu com os intendentes em uma
assembléia geral, pediu que eles se entendessem com os bispos para procurar a melhor
maneira de realizar as conversões, dizendo “recomendo-lhes, sobretudo, de negociar com
doçura os espíritos daqueles da dita religião”.
512
Talvez por volta de 1685 ele tenha mesmo se deixado convencer, erroneamente, de
que apenas um número insignificante de huguenotes ainda resistia à conversão e, portanto,
o Edito de Nantes não tinha mais importância.
513
Logo Luís XIV perceberia que eram
falsas as premissas em que a revogação se assentava e teria de suportar as conseqüências
da responsabilidade pelas perseguições que os huguenotes que se recusavam à conversão,
mesmo simbolicamente, sofriam, como a condenação às galés.
514
Mais que isto.
Acreditamos que se ele tivesse previsto as terríveis conseqüências políticas da revogação,
jamais teria incorrido neste ato.
508
Cf. SKINNE
R, 1999, op. cit., p. 46.
509
MOUSNIER, 1973, op. cit., pp. 292, 295.
510
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 220.
511
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 45
-
46.
512
ANDRÉ, op. cit., p. 219.
513
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 46.
514
Cf. HATTON, op. cit., pp. 100
-
101.
107
O maior desejo de Bossuet foi a unidade religiosa da França, perdida para sempre
nas devastações mútuas das guerras de religião. Com este objetivo ele lutou com todas as
armas que possuía. Diante dos ataques que a doutrina católica recebia por parte dos
protestantes, Bossuet recorria ao seu talento oratório e literário não somente para defendê-
la, mas visando ainda a conversão dos protestantes. A defesa da unidade cristã foi colocada
por Bossuet no primeiro plano de suas preocupações. Desta forma, o autor publicou
diversos escritos em que defendia a doutrina católica e criticava a heresia protestante.
515
Com o objetivo de realizar a unificação das Igrejas, convertendo os protestantes,
Bossuet imaginou que o melhor meio para isto era a moderação. Desse modo, mostrava-
se
moderado em suas predicações.
516
Em 1655, em sua
Réfutation
ao
Catéchisme
de Paul
Ferry, Bossuet dizia desejar somente iluminar os “inimigos da verdade”.
517
Nesta obra, ele
não tencionava polemizar, mas mostrar a pureza da doutrina católica. Advertia estar
preocupado com a salvação das almas e não tinha nada contra a pessoa do ministro.
518
Em
alguns momentos, a moderação de Bossuet deu lugar à agressividade de discursos
inflamados para com os reformados. Ele adotou, então, atitudes arrogantes. Em suas cartas
e predicações solicitava aos governantes que usassem de autoridade para com os
protestantes. O que influenciou Bossuet a adotar essa atitude firme foi que “ele encontrava
em seu círculo seus companheiros do Cabido (...) enfurecidos na luta contra a heresia”.
Outro motivo é que “ele era membro ativo da Companhia Secreta do Santo Sacramento de
Paris (...) e que juntava a suas admiráveis atividades caridosas, a luta contra os
protestantes”.
519
Em 1661, quando Luís XIV assumiu pessoalmente o poder, “foi convidado ‘a
marchar sobre as pegadas do grande Constantino’; Bossuet predizia no ano seguinte ‘que
ele tinha a glória de sufocar a heresia por um prudente temperamento de severidade e de
paciência’”.
520
Na Oraison funèbre de Henriette-
Marie
, pronunciada em 1669, Bossuet
lembra que, como filhos diletos da Igreja, os reis franceses devem amar e defender a
religião católica com maior dedicação que os outros reis. Observa que o combate ao
protestantismo deve se dar por meio da conversão e não da perseguição. Gaquère nos
chama a atenção para o fato de que foi a influência do Padre da Igreja por quem ele tinha
515
Cf. GAQUÈRE, 1967, op.
cit., p. 32.
516
Cf. ibid., p. 21.
517
ibid., p. 51.
518
Cf. ibid., pp. 53
-
54.
519
ibid., p. 26.
520
ibid., p. 27.
108
maior veneração: Santo Agostinho, o que possibilitou Bossuet conciliar em seu espírito
duas disposições aparentemente incompatíveis, a amabilidade e o rigor
.
521
É importante termos em mente que Bossuet não foi o único a almejar a unidade
religiosa em seu tempo. Aliás, este era o desejo de um número considerável de pensadores
tanto católicos como protestantes.
522
O diálogo de Bossuet e Paul Ferry em busca da
reu
nião das Igrejas durou seis meses: iniciou
-
se com a carta de Bossuet a Paul Ferry em 17
de maio de 1666, e terminou com a última carta de Bossuet a este pastor em 28 de outubro
do mesmo ano.
523
O sonho de Bossuet em restaurar a unidade religiosa, por meio de seu
diálogo com Paul Ferry, foi frustrado, pois, devido às interferências do monarca, foi
obrigado a “desistir da tarefa, em favor dos oficiais laicos e dos jesuítas”.
524
Apesar dessa
grande decepção, Bossuet jamais desistiu de seu objetivo, publicando inúmeras obras para
retomar o diálogo com os maiores representantes dos protestantes.
525
Ele retomou a
discussão doutrinal que tinha iniciado com Paul Ferry, em sua Histoire des variations
des
Eglises protestantes, publicada em 1688, a qual foi, sem dúvida, segundo Calvet, o ato
capital de Bossuet nesta longa controvérsia com os protestantes, que foi a grande causa da
sua vida”.
526
Nesta obra, Bossuet tentou provar “a necessidade de uma Igreja infalível para
manter a unidade e estabelecer, assim, a característica infalível da Igreja romana”. Por um
instante o autor acreditou que o maior sonho de sua vida iria se realizar: as Igrejas
521
Conforme observa Gaquère, Bossuet “era impregnado, até a medula, dos princípios de seu grande mestre,
seu estimado Santo Agostinho, de quem Bossuet buscava sempre em matéria doutrinal, princípios aplicados
nos séculos IV e V pelo bispo de Hipona, em sua luta contra a heresia donatista, princípios adotados pela
tradição, e no século XIII por Santo Tomás, segundo os quais a heresia era um crime contra Deus, e um
flagelo para as almas; devia ser exterminado, de forma alguma por meios cruéis e inumanos, mas pela
amabilidade e persuasão, pela autoridade e pela força, com o auxílio eventual do poder secular”. GAQUÈRE,
1967, op. cit., p. 26.
522
Cf. GAQUÈRE, 1966, op. cit., pp. 13-36. Como constata Gaquère, na metade do século XVII reinava “na
Europa luterana, Suécia, Dinamarca, Holanda, Alemanha, uma aspiração geral à unidade cristã, à uma
reunião das confissões protestantes entre elas, à sua reunião” com a “Igreja católica. (...) esta nostalgia de
unidade era comum aos calvinistas e aos luteranos. Ela era acentuada à medida que as paixões partidárias
apaziguavam
-se, que as controvérsias terminavam por eliminar uma multidão de questões secundárias, e
mesmo cert
as questões importantes”. ibid., pp. 13
-
14.
523
Cf. ibid., pp. 180
-
224. De acordo com Dussault, “o que não deve ser esquecido na história de uma querela
teológica, é que Bossuet e Ferry, que eram amigos antes de sua disputa, continuaram a ser após terem escr
ito
um contra o outro: raro exemplo a oferecer aos controversistas de todas as religiões, mas que será mais
louvado que imitado”. DUSSAULT, op. cit., p. 4.
524
GAQUÈRE, 1967, op. cit., pp. 239
-
240.
525
Segundo Gaquère, “longe de desencorajar-se, ele iria continuar a servir de todas as suas forças, como de
todo o seu talento (...) em colaboração com o governo, com os devotos, à causa da reunião, pela publicação
de suas obras eruditas: L’exposition de la doctrine catholique [1671], a Histoire des variations des
Eglises
protestantes
[1688]”. ibid.
526
Cf. CALVET, op. cit., pp. 301
-
302.
109
protestantes e a Igreja romana se uniriam tornando-se uma só.
527
Tamanha era a autoridade
de Bossuet nas questões de que até mesmo os mais ilustres protestantes se inclinavam
diante dela. Leibniz, um luterano moderado, também trocou correspondência com Bossuet.
Esse diálogo teve início em 1691, por meio de cartas, nas quais ambos expressavam buscar
a reunião das Igrejas e, por sua vez,
a unidade religiosa. O diálogo durou dez anos, pois em
1701, diante da desaprovação do papa Clemente XI, deu-se a última tentativa de Bossuet
para uma reunião entre os luteranos da Alemanha com a Igreja romana. Todo o trabalho de
Bossuet em busca da união entre as Igrejas fracassou.
528
Na segunda metade do século
XVII, o maior obstáculo para a reunião das Igrejas foram o rancor, a desconfiança e o ódio
oriundos do “espírito universal de intolerância”.
529
Apesar de seu desejo de restauração da unidade religiosa
não ter sido alcançado, “ao
menos, ele teve a consolação de obter numerosas e consideráveis conversões individuais”.
Na França, Turenne foi a pessoa mais ilustre convertida por Bossuet, em 1668. Segundo
Gaquère, “ele contribuiu para o retorno ao seio da Santa Igreja, não somente de pessoas do
mundo (...), mas vários e notáveis pensadores protestantes”. Bossuet sonhava em ir para a
Inglaterra “trabalhar para o retorno dos Anglicanos dos quais ele converteu um dos mais
ilustres, James Drummond, duque de Perth, tornando-se, desde então seu amigo e
confidente”.
530
Ao buscar a unidade das Igrejas a primeira preocupação de Bossuet era religiosa:
ele era um homem da Igreja e se preocupava com a salvação da alma. Em segundo lugar,
como defensor da monarquia, ele sabia que a unidade religiosa era fundamental à
manutenção e fortalecimento do poder do príncipe. Na Oraison funèbre de Hentiette-
Marie
, Bossuet observa que a unidade política somente será possível por meio da unidade
religiosa, pois a insubmissão à religião católica leva à insubmissão à autoridade do
príncipe.
527
Cf. CALVET, op. cit., p. 294. Calvet observa que, “em seguida de suas conferências com o ministro
Claude, ele sentiu que os protestantes estavam de acordo com ele para afirmar a necessidade de uma Igreja,
de um elo visível, para assegurar a unidade do rebanho cristão”. ibid., pp. 301
-302.
528
Cf. GAQUÈRE, 1966, op. cit., pp. 244, 248-258. De acordo com Dussault, “cheio do desejo sincero de
reunir pela conciliação os protestantes à Igreja, ele teve uma troca de cartas com o célebre Leibniz sobre esse
assunto, tão digno de ocupar esses dois grandes homens. Mas Leibniz, mais tolerante que controversista, e
mais filósofo que protestante, tratava esse assunto da religião como ele tratava de uma negociação entre
soberanos. Pouco instruído ou pouco tocado do rigor inflexível dos princípios católicos em matérias de fé, ele
acreditava que cada uma das partes beligerantes devia fazer à paz alguns sacrifícios e ceder um ponto para
obter um outro. Bossuet, inabalável em sua crença, queria, por preliminar, que os protestantes começassem
por se submeter a tudo o que o concílio de Trento exigia deles”. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit.,
p. 12.
529
Cf. GAQUÈRE, 1967, op. cit., p. 246.
530
ibid., p. 240.
110
Bossuet sonhou com um governo e uma religião uniformes.
Na
Oraison funèbre de
Henriette
-
Marie
ele defende a ordem e a unidade; na
Politique
ele diz que “na unidade
reside a vida; fora da unidade a morte
é certa”.
531
Conforme salienta Sainte
-
Beuve, Bossuet
idealizou a unidade em todos os sentidos. “Um Deus, um Cristo, um bispo, um rei, eis
bem em seu interior a esfera luminosa onde o pensamento de Bossuet se manifesta e reina.
Eis seu ideal de mundo”.
532
Bossuet reinou em sua época. Segundo o mesmo autor, o
bispo de Meaux “foi o homem público das grandes instituições e da ordem estabelecida,
logo o órgão, o inspirador, o crítico aceito por todos, ou o conciliador e o árbitro. Ele é
naturalmente o homem
mais considerável na ordem católica e galicana”.
533
Após a revogação, Bossuet foi acusado de barbárie pelos protestantes,
principalmente pelo pastor Pierre Jurieu. Segundo este, Bossuet aconselhou e aprovou o
ato de Luís XIV em recorrer às práticas de perseguições violentas para com eles. Bossuet
se defendeu dessas acusações. Para ele, “essas expedições militares, tão conhecidas sob o
nome de missão dragão
”,
não eram o melhor meio para resolver a questão. Como afirma
Dussault, “acostumado a submeter somente às armas da persuasão os irmãos desviados,
‘não podia, dizia ele, resolver olhar as baionetas como instrumentos de conversão’”.
534
Para Bossuet, o poder civil, oficial, tinha o direito de lutar contra os elementos de
discórdia, porém, que esta luta fosse tratada por meio da moderação e não da violência.
535
Na
Oraison funèbre de Henriette-
Marie
e na Oraison funèbre de Louis de Bourbon, prince
de Condé, pronunciadas em 1669 e 1687, respectivamente, Bossuet elogia a doçura com
que ambos buscavam converter os protestantes. Nas Déclarations royales de 1698-9, a
respeito de como o governo devia tratar os novos convertidos e os protestantes refugiados,
enquanto alguns eram a favor do rigor, Bossuet posiciona-se contra a coação dos novos
convertidos aos sacramentos, bem
como do uso de violência para com os refugiados.
536
Em
suas cartas e nas Instructions pastorales de 1700, recomendou veementemente “a
531
apud TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 132.
532
SAINTE-BEUVE, 1928, op. cit., p. 25. Como constata Lavisse, para Bossuet, “Deus é a Providência, que
vê de toda a eternidade o que foi, o que é, o que será, para que reinem os reis e se sucedam os impérios, todos
legítimos visto que ele os quis todos. Ele falou pelos profetas e pela Escritura. Para que o homem cumprisse
sua palavra, ele estabeleceu por uma ordem indubitável, a Igreja ‘única’, ‘universal’, ‘conservada imóvel’ de
unidade, ‘nela está a vida’, fora dela ‘a morte é certa’. Tudo isso é o conjunto da idéia cristã simplesmente,
mas este conjunto é fortemente ligado no espírito de Bossuet. Ele é a explicação única e suficiente de tudo,
da natureza e do sobrenatural, da vida e da morte, da política e da reli
gião”.
LAVISSE, op. cit., p. 108.
533
SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 77
-
78.
534
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 12.
535
Cf. CHARBONNEL, op. cit., p. 27.
536
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 89.
111
moderação, a doçura, a evangélica persuasão, armas mais eficazes que a violência”.
537
Antes de sua morte, Bossuet reconheceu que no combate aos protestantes era preciso
renunciar aos meios violentos, pois “‘a violência incita os fiéis à desordem, à revolta
aberta’”.
538
De fato, como veremos adiante, as idéias defendidas pelos protestantes
representavam a maior ameaça ao absolutismo de Luís XIV. Por isso, Bossuet esforçou-
se
durante toda a sua vida intelectual para reconduzi
-
los ao catolicismo.
A revogação do Edito de Nantes foi um dos eventos mais celebrados do reino.
Colbert morreu em 1683, sendo substituído por Louvois, como superintendente das
construções e como controlador das academias. Em 1690, Le Brun morreu e foi substituído
por seu rival e protegido de Louvois, Pierre Mignard, que passou a ocupar o lugar de
primeiro pintor do reino. Vários artistas protegidos de Louvois passaram a receber pensões
reais. Além da mudança de pessoal houve uma mais importante, que foi “a mudança de
estratégia, pois o objetivo final de glorificar o rei permaneceu o mesmo”. Em seus oito
anos como superintendente das construções, Louvois promoveu projetos magníficos.
Dobrou as despesas com a reconstrução e decoração de Versalhes e planejou a construção
de edifícios na Place Vendôme para alojar todas as academias e a Bibliotèque Royale
.
Entre 1685 e 1686 apoiou a ‘campanha das estátuas’, em que quase 20 estátuas do rei, a
maioria a cavalo, foram encomendadas para ser instaladas em praças públicas não em
Paris como também nas cidades das províncias. As estátuas eram inauguradas com
desfiles, discursos, fogos de artifícios, trombetas, tambores, sinos e salvas de artilharia. As
inaugurações dos monumentos eram descritas em panfletos e na Gazette
.
539
Neste período de relativa paz, o evento mais celebrado foi a revogação do Edito de
Nantes. Aliás, ele ofuscou os demais. Foi um dos eventos reais mais mitificados, sendo
representado sucessivamente por diferentes meios de comunicação. As representações
oficiais do evento, jornais, poemas, medalhas, estátuas, pinturas, balés, óperas, etc.,
exaltavam Luís XIV como o cristianíssimo destruidor da heresia, aquele que promoveu o
triunfo da Igreja católica.
540
A revogação foi exaltadíssima pelos católicos. Ao saberem dela, “os católicos
deram gritos de alegria”.
541
A imagem de Luís XIV era constantemente associada a heróis
do passado. Após a revogação, ele foi proclamado um novo São Luís pelo zelo para com a
537
Cf. CHARBONNEL, op. cit., p. 27.
538
GAQUÈRE, 1967, op. cit.,
p. 28.
539
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 103
-
107.
540
Cf. ibid., pp. 22, 109, 115
-
116.
541
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 189.
112
religião católica e um novo Teodósio, porque havia destruído a heresia protestante assim
como Teodósio destruíra a heresia dos arianos.
542
A revogação recebeu o aplauso geral da
opinião católica, que acreditava que a unidade da havia sido finalmente reencontrada.
Entre os católicos mais ilustres encontravam-se La Fontaine, Madame de Sévigné, La
Bruyère e principalmente Bossuet.
543
Foi com grande contentamento que o Bispo de
Meaux aplaudiu a revogação em sua Oraison funèbre de Michel Le Tellier, pronunciada
em 1686. Nesta obra, de acordo com Dussault, “Bossuet a celebra com um entusiasmo
quase
lírico
, quase
pindárico
”.
544
Sem dúvida, o maior elogio a Luís XIV veio da parte de
Bossuet. Na Oraison funèbre de Michel Le Tellier, Luís XIV é celebrado como o “Novo
Constantino”.
545
Este tema foi muito desenvolvido, especialmente pelos jesuítas.
546
No entanto, a revogação despertou reações desfavoráveis na França e no
estrangeiro. Este ato de Luís XIV foi muito prejudicial a sua imagem.
547
A revogação do
Edito de Nantes foi um presente para os propagandistas inimigos, holandeses, ingleses e
alemães. Por meio de gravuras, medalhas e panfletos descreviam e condenavam “a mais
cruel e mais violenta perseguição jamais havida em França’”.
548
Entre os que criticaram a
intolerância religiosa de Luís XIV e, portanto, o absolutismo, destacaram-se Leibniz e
Pierrre Jurieu.
Em Hanover, Leibniz “tenta negociar uma aproximação das diversas confissões
cristãs”.
549
Neste sentido, ele estabeleceu negociações para a união entre calvinistas e
542
Cf. BURKE, 1994, op. cit., p. 47.
543
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 89.
544
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 189.
545
Marcos A. Lopes nos chama a atenção para o fato de que, “Bossuet sonhou com uma França próspera e
feliz, com um reino no qual imperasse, sobretudo a paz, e cujos reis fossem figuras inspiradas por Deus. (...)
Bossuet vai a ponto de traçar um destino messiânico para a França, o único reino de toda a cristandade que
abraçou a religião verdadeira guiada por seus reis (...) o pensamento político de Bossuet está carregado pelo
espírito de religiosidade católica do século XVII. Nesse sentido, seu príncipe não é apenas o fundamento da
autoridade no reino, mas a força que fará vitoriosa a religião do salvador, o que o levou a considerar a
Revogação do Edito de Nantes por Luís XIV como ‘um belo monumento da piedade do rei’, e a comparar o
soberano a um novo Constantin
o”.
LOPES, 1997, op. cit., pp. 152
-
153.
546
Cf. BURKE, 1994, op. cit., p. 116.
547
Cf. ibid., p. 117.
548
CF. ibid., p. 155.
549
Cf. PRENANT, in LEIBNIZ, op. cit., p. V; NAERT. 1964, op. cit., p. 74; ORTUETA, in LEIBNIZ, op.
cit., p. 9. Conforme Francisco Romero, “este enorme alemão (...) foi, entre muitas outras coisas, um
fervoroso apóstolo da concórdia entre os homens”. ROMERO, Francisco. “Introducción”. In: LEIBNIZ, G.
W.
Tratados fundamentales. Buenos Aires: Editorial Losada, S. A., 1939, p. 8. Nas inúmeras cartas trocadas
com seus correspondentes em busca da reconciliação das diversas confissões religiosas, como observa Maria
Eugênia Valentie, “Leibniz buscou mais a conciliação que o rechaço. (...) sua inteligência está sempre em
busca da unidade. (...) está s
empre disposto a lutar contra tudo o que signifique espírito de seita e de partido”.
VALENTIE, op. cit.,
pp. 30
-
32.
113
luteranos
550
, como também entre os luteranos e a Igreja católica.
551
Na luta para reconciliar
as Igrejas protestantes à Igreja católica Leibniz terá como interlocutores Paul Pelisson e
Bossuet; por meio deste, fará apelo a Luís XIV.
552
Leibniz intervém na polêmica sobre o
valor do quietismo: ele passa a fazer parte da querela do puro amor entre Bossuet e
Fénelon. “Sua correspondência entre 1697 e 1700 é toda inspirada pela questão do puro
amor”.
553
Leibniz também criticou a intolerância religiosa inerente à revogação do Edito de
Nantes. Em uma carta dirigida ao Conde Ernst de Hesse-Rheinfels, em novembro-
dezembro de 1686, Leibniz lamenta os artigos do Edito de Fontainebleau, que revogara o
de Nantes, particularmente o primeiro, que pr
oibia não somente os pastores franceses como
também os estrangeiros de entrarem na França. Leibniz lembra que na Inglaterra
protestante esta proibição era menos rigorosa, pois se restringia apenas aos clérigos
ingleses. O quinto artigo do Edito de Fontainebleau, segundo Leibniz, é ainda pior, pois
proíbe os protestantes, sob pena de morte, tanto de realizarem seu culto como também
qualquer forma de exercício de sua religião por mais particular que seja. Leibniz recorda
que os romanos eram menos severos em relação aos cristãos, haja vista que obrigavam-
nos
a aderir à religião oficial, mas não os proibiam de praticarem o seu culto em particular.
554
Depois da revogação do Edito de Nantes, o francês Pierre Jurieu (1637-
1713)
redige várias obras tecendo sérias críticas ao absolutismo de Luís XIV. Pierre Jurieu foi
teólogo, escritor e panfletário. Nasceu em 24 de dezembro de 1637, em Mer, sobre o
Loire,
uma pequena cidade da diocese de Blois, em uma família de ministros. Pierre Jurieu
estudou teologia em Saumur e depois em Sedan, onde obteve o seu doutorado. Após seus
estudos, em 1674 foi eleito ministro em Sedan, aí ele ensinava hebreu e teologia. Em 1681,
Luís XIV decidiu fechar a academia de Sedan aos calvinistas. Desse modo, Pierre Jurieu
passou a exercer suas funções de ministro em Ruen. A partir de 1681 ele se obrigado a
exilar
-se na Holanda devido ao seu libelo La Politique du clergé de France. Em Roterdã,
ele passa a ser pastor da igreja Wallonne e professor de teologia da Écolle Illustre.
550
No que se refere especificamente ao esforço de Leibniz para reconciliar as diversas confissões protestante
do Império, juntamente com às dos Países Baixos e Inglaterra, Cf. DILTHEY, op. cit., pp. 42, 48, 51, 54;
SCHRECKER, Paul. “Introduction”. In: G. W. LEIBNIZ. Lettres et fragments inédits. Paris: Librairie Félix
Alcan, 1934. (Publiés avec une introduction historique et des notes par Paul
Scherecker), pp. 35, 37.
551
Cf. ibid, pp. 31, 34; PRENANT, in LEIBNIZ, op. cit., pp. V, IX.
552
Cf. ORTUETA, in LEIBNIZ, op. cit., p. 478.
553
NAERT, Émilienne. “Introduction”. In: _____. Leibniz et la querelle du pur amour
.
Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 1959, p. 32.
554
LEIBNIZ, G. W. “Carta al Landgrave Ernst de Hesse-Rheinfels”, 28 de noviembre 8 de diciembre de
1686. In: LEIBNIZ, 1984, op. cit., pp. 455
-456.
114
Empreende debates calorosos contra seus próprios confrades, entre os quais o célebre
Pierre Bayle, que também encontrava
-
se refugiado nesta cidade.
Em 1687, em Roterdã, Pierre Jurieu escreve sua obra polêmica Des droits de deux
souverains en matière de religion para refutar o Commentaire Philosophique de Pierre
Bayle.
Pierre Jurieu refuta a máxima defendida no Commentaire Philosophique segundo a
qual os soberanos não devem empregar a sua autoridade em matéria de religião. Na
concepção de Pierre Jurieu, os príncipes devem usar a sua autoridade para combater a
heresia, a idolatria e a superstição. Porém, ele adverte que limites para o emprego
legítimo da autoridade nas questões religiosas. Ele concorda com o
Commentaire
Philosophique
na parte em que este prega que não se deve coagir em assunto de religião.
Pierre Jurieu refere-se às atrocidades cometidas na França contra os protestantes franceses
para obrigá
-los à conversão.
555
Pierre Jurieu acreditava que o Commentaire Philosophique não tinha sido escrito
por uma única pessoa. Segundo ele, “meu (...) pensamento sobre esse livro, é que ele não é
de um único autor. Isso parece uma obra de Cabala, e de uma conspiração contra a
verdade”.
556
Neste sentido, para Pierre Jurieu, os autores do Commentaire Philosophique
estão errados ao afirmarem que ao defender o uso da autoridade dos soberanos em questão
religiosa os protestantes estariam dando o direito aos soberanos católicos de suprimirem a
religião protestante, por meio da violência. Ele adverte que ao defenderem esta idéia, os
protes
tantes poderiam fornecer a ocasião aos católicos, mas jamais o direito, pois este a
verdadeira religião o possui. Infelizmente, este é um mal que vem por acidente, afirma ele
com pesar. Mas que por isso não se deve deixar de falar dos direitos da verdad
eira religião.
Pierre Jurieu está certo de que não foi a defesa desta idéia que levou a Áustria e, no
momento, a França a perseguirem os protestantes. Pois a verdadeira religião não persegue,
não enforca, não queima, não constrange e não viola tratados. Por fim, Pierre Jurieu
adverte que a máxima defendida pelo Commentaire Philosophique é pior do que os males
que a religião protestante estava sofrendo no momento, pois se os soberanos não puderem
555
De acordo com Pierre Jurieu, “a autoridade não pode destruir, constranger a um culto que se crê contra a
consciência, dizer a um homem (...) quero que tu vás à Missa, que tu renuncies a tua religião, ou tu serás
comido por Dragões, tu serás atormentado de dia e de noite até que tu o tenhas feito. É a este respeito que
vale a máxima,
religio
suaderi, debet, non cogi. Isso (...) é profanar os mistérios da religião é derrubar todas
as leis divinas e humanas. A este respeito o Commentaire Philosophique tem razão, esta é uma verdade tão
clara por ela mesma, e tão bem experimentada nesses últimos tempos, que é preciso ter a consciência
cauterizada para não senti-
la”.
JURIEU, Pierre. Des droits des deux souverains en matiere de religión.
Le
philosophe de Rotterdam
.
Paris: Fayard, 1997, pp. 149
-
150.
556
ibid., p. 12.
115
empregar a sua autoridade na esfera espiritual, jamais um futuro príncipe francês poderá
destruir a falsa religião, o catolicismo, e estabelecer a religião verdadeira, o
protestantismo.
557
Tem-se aqui o mote da intolerância: a pretensão de verdade absoluta
torna qualquer outra possibilidade erro, heresia. Pierre Jurieu
deixa explícito nesta obra que
este é o seu maior sonho. Seria tão bom, segundo ele, se os reis da França e da Espanha
utilizassem sua autoridade para combater o papismo de seus Estados como os reis da
Inglaterra e da Suécia o fizeram.
558
Alguns criticavam a falta de escrúpulos morais de Luís XIV, associando-a às idéias
de Maquiavel por ter transgredido à fé, no caso da revogação do Edito de Nantes. A título
de exemplo temos Le Dragon Missionaire (O dragão missionário), de 1686; Der
Französische Attila (O Átila francês), de 1690, e Nero Gallicanus (Nero francês), do
mesmo ano. Luís XIV foi acusado de tirania. Os panfletistas criticavam a sua perseguição
aos huguenotes, a cobrança de altos impostos, mostrando-o como impiedoso, cruel,
opressor, enfim, um tirano. Nesta modalidade destacou-se o panfleto revolucionário de
Pierre Jurieu, intitulado Les soupirs de la France esclave, (Os suspiros da França
escrava
).
559
A acusação da falta de religião estava relacionada à forma como Luís XIV
tratava os huguenotes e a pr
etensa aliança com o Império Otomano, um Estado não
-
cristão,
como também ao culto oficial ao Rei Sol, um culto pagão.
560
Truchet nos chama a atenção para o fato de que tem havido interpretações
completamente equivocadas a respeito da influência de Bossuet na revogação do Edito de
Nantes. Conforme alerta o autor, “representações não menos falsas de sua influência
sobre Luís XIV, até a fazer dele o que ele não foi jamais uma espécie de ministro de
557
Segundo os próprios termos de Pierre Jurieu, “é verdade que se dizem que os Príncipes Ortodoxos podem
empregar sua autoridade para suprimir as falsas religiões, nós parecemos dar
occasion
aos Príncipes heréticos
e idólatras de perseguir a verdadeira Igreja. Mas não é verdade que nós lhe damos o
droit
. Nós parecemos
lhes dar a
occasion
(...). Mas, quando isso acontece, o que se faz? Esse é um mal sem remédio, esse é um mal
que viria da verdade por acidente. Faça tudo o que vos agrada, expanda, estreite os direitos da verdadeira
religião como vós quereis, a falsa se apodera sempre sob esse pretexto de que ela é a verdadeira religião. E
por causa disso não é preciso então jamais falar dos direitos da verdadeira religião e de seus privilégios?
Afinal de contas a ocasião que se pretende que nós damos aos perseguidores é um nada. 1. Porque não é isso
de forma alguma que inspirou à Casa d’Áustria e hoje à Corte da França o desejo de perseguir os
Protestantes. 2. Porque os perseguidores vão bem além do que nós permitimos à verdadeira religião, ele
s
queimam, eles enforcam, eles constrangem. 3. Porque nós não damos de forma alguma à verdade o direito de
romper tratados e de violar a dada aos Heréticos. 4. E enfim porque o mal que retornaria à Igreja desta
máxima, se ela fosse
estabelecida,
Les Princes ne doivent jamais emploier leur autorité dans la religion
,
seria mil e mil vezes maior que o mal que ela sofre. Pois jamais o Papismo seria abolido pela autoridade
dos Príncipes que o estabeleceram”.
JURIEU, op. cit., pp. 154
-
155.
558
ibid., p. 148.
559
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 149
-
150, 220.
560
Cf. ibid., p. 150.
116
cultos, responsável, por exemplo, pela revogação do Edito de Nantes”.
561
Como vimos,
Bossuet sempre se posicionou contra qualquer forma de repressão em relação aos
protestantes. É inegável, contudo, que, de imediato, a revogação causou-lhe satisfação.
Mas não demorou muito para que ele percebesse o quanto este ato de Luís XIV era
prejudicial à soberania da monarquia absolutista.
561
TRUCHET, op. cit., p. II.
117
CAPÍTULO V
UM CATECISMO AO PRÍNCIPE CRISTÃO
Diante da ameaça que as críticas externas e internas à política expansionista de Luís
XIV representavam ao absolutismo francês, por meio do livro nono da
Politique,
concebido em 1701, o Bispo de Meaux lança mão de todos os seus recursos literários para
mostrar ao monarca as desvantagens das guerras de conquista, ao mesmo tempo em que
lhe apresenta a imagem de um príncipe moderado e pacífico, que repudia a glória e cultiva
a humildade, como o modelo ideal a ser seguido pelos príncipes cristãos. Era esta a
fórmula que Bossuet entendia ser indispensável à conservação da monarquia absolutista na
França, cuja pre
servação lhe parecia natural.
Repúdio às guerras de conquista
No livro nono da
Politique
, Bossuet dedica o artigo II para tratar dos “injustos
motivos da guerra”. A fim de sustentar os seus argumentos com maior plausibilidade,
recorre ele à Sagrada Escritura, particularmente ao Antigo Testamento. Bossuet afirma que
o primeiro motivo injusto da guerra são as “conquistas ambiciosas”. Ele busca a origem
dos príncipes ambiciosos que fazem a guerra movidos pelo desejo de conquista, invadindo
os países vizinho
s somente pelo amor ao poder:
esse primeiro motivo aparece logo após o dilúvio, na pessoa de Nemrod, homem feroz, que
se tornou, por seu humor violento, o primeiro dos conquistadores. Mas é expressamente
assinalado que ele era filho de Chus, filho de Cham, o único dos filhos de Noé que tinha
merecido ser maldito por seu pai. O título de conquistador toma nascimento nesta família;
e a Escritura exprime este evento, dizendo ‘que ele foi o primeiro poder sobre a terra’, isto
é, ele foi o primeiro que o amor d
o poder levou a invadir os países vizinhos.
562
A
Águia de Meaux, para recordar o epíteto prestigioso que a tradição literária
francesa lhe atribuiu, empreende uma severa crítica aos príncipes que amam a guerra,
empreendendo
-a apenas para satisfazer suas ambições. De acordo com Bossuet, tais
562
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 323.
118
príncipes são odiáveis aos olhos de Deus e, portanto, declarados seus inimigos. Ele adverte
que devido ao homem ser constituído de forma semelhante a Deus, todo aquele que
derrama o sangue do ser humano, que é o seu irmão, terá o seu sangue derramado da
mesma forma:
‘Pedirei vosso sangue da mão de todas as bestas, e do sangue de todos os homens que
derramaram sangue humano, que é o de seus irmãos. Quem derrama o sangue humano, seu
sangue será derramado, porque o homem é
feito à imagem de Deus’. Deus tem tanto horror
de homicidas e do cruel derramamento de sangue humano, que ele quer de algum modo
que se olhem como culpados até as bestas que ele arrebata. (...) ‘diz ele, que o homem é
feito à imagem de Deus’. Esta bela sem
elhança não pode perecer sobre a terra. Ao invés de
diminuí
-la pelas mortes, Deus quer ao contrário que os homens se multipliquem: ‘cresça,
lhe diz ele, e encha a terra’. Que se um único homem arrebata o presente divino da vida, é
atentar contra Deus, quem tem colocado sobre o homem a marca de seu rosto: quanto mais
são detestáveis aos seus olhos aqueles que sacrificam tantos milhões de homens e tantas
crianças inocentes a sua ambição?
563
Bossuet afirma que um dos traços de um conquistador injusto é não precisar de
conselho: “a assembléia de seus conselheiros é apenas uma cerimônia para declarar de uma
maneira mais solene o que está resolvido”. O seu orgulho indomável é o seu único
conselheiro. Ele não perdoa nenhum reino, não tem piedade de ninguém, quer que todos se
submetam a ele:
‘e convocando seus velhos conselheiros, seus capitães e seus guerreiros, ele lhes declara
em uma assembléia governada expressamente em particular com eles, que sua vontade era
de submeter a seu império toda a terra habitável’. Não era de forma alguma um conselho
que ele pedia a esta grande assembléia, ele só tem por conselho o seu orgulho indomável: e
sem consultar mais, para ver a execução, ‘ele dá suas ordens a Holoferne chefe geral de sua
milícia [grande homem de guerra]: e, diz ele, não perdoe nenhum reino, nem a nenhuma
praça
-forte: que vossos olhos não sejam tocados por piedade alguma, e que tudo se curve
sob minha lei’. Este é o segundo traço desse caráter orgulhoso. Esse soberbo rei não
precisa de conselho; a assembléia de seus conselheiros é somente uma cerimônia, para
declarar de uma maneira mais solene o que já estava resolvido, e para pôr tudo em
movimento.
564
Os príncipes que empreendem pilhagens também são censurados por Bossuet. A
pilhagem é o segundo injusto motivo de fazer a guerra, afirma ele. Bossuet mostra que os
reis que pilham serão pilhados da mesma forma por outros reis mais poderosos no
momento em que pararem de pilhar:
563
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 323
-
324.
564
ibid., p. 325.
119
Se se sofre de tais guerras, não haverá mais reino nem província tranqüila. É porque D
eus
opõe a esses arrebatadores a magnanimidade de Abraão, que não reserva para si nada do
saque que ele havia recolhido (...) ele não queria que ‘ninguém pudesse se gabar sobre a
terra de ter enriquecido Abraão’. Freqüentemente também Deus abandona aqueles que
pilham a outros pilhadores. Ouça Isaias. ‘Infelizes vós que pilhais! Não tereis vós pilhado
vós mesmos? E vós que desprezais [todas as leis da justiça e credes poder tudo violar
impunemente], não sereis vós desprezados por algum outro mais poderoso que vós? Sim,
quando vós tiverdes parado de pilhar, vos pilharão’.
565
O quarto injusto motivo de fazer a guerra, segundo Bossuet, é quando o rei é
atraído pela “glória das armas e a doçura da vitória”. No primeiro exemplo, Bossuet afirma
que “não nada de mais agradável que esta glória militar: ela decide freqüentemente de
um único golpe as coisas humanas, e parece possuir uma espécie de onipotência, para
forçar os acontecimentos: é porque ela tenta fortemente os reis da terra. Mas se verá o
quanto ela é vã”.
566
Bossuet adverte que o rei nunca deve fazer a guerra contra um país se
Deus o o houver ordenado. Ele o “segundo exemplo do mesmo motivo que faz ver
quanto a tentação é perigosa”:
‘Néchao, rei do Egito, marcha em batalha contra os charcamites ao longo do Eufrates: e
Josias vai ao seu encontro. Mas Néchao lhe envia embaixadores para lhe dizer: Que tenho
eu para disputar com vós, rei de Judá? Não é a vós que desejo: ataco um outro país, onde
Deus me ordenou de marchar em diligência: não combate mais contra Deus quem está
comigo (...). Josias não quis retornar; ele se põe em estado de fazer a guerra, e não quis
escutar Néchao, que lhe falava da parte de Deus. Ele avança então para combater a planície
de Mageddo. Golpeado pelos arcos, ele diz aos seus servidores: Retirem-me do combate,
pois estou golpeado. (...) reconduziram-no a Jerusalém, onde ele morreu lamentado por
todo o povo: e principalmente por Jeremias, cujas lamentações cantam-se ainda hoje por
todo Israel’. Se um tão bom rei se deixa tentar pelo desejo da vitória, ou em todo caso por
aquele de fazer a guerra sem razão, que não se deve temer pelos outros?
567
Bossuet adverte que “combate-se sempre com uma espécie de desvantagem,
quando se faz a guerra sem motivo”. Aqueles que fazem a guerra por justo motivo têm do
seu lado a justiça divina que é uma proteção natural, mas quando a guerra é feita sem
necessidade, perde
-
se esta vantagem:
Pode
-se notar sobre esses dois exemplos que é uma desvantagem fazer a guerra sem razão.
Uma boa causa acrescenta as outras vantagens da guerra, a coragem e a confiança. A
indignação contra a injustiça aumenta a força e faz com que se combata de uma maneira
mais determinada e mais audaciosa. Tem-se mesmo motivo de presumir quem tem Deus
por si, porque se tem a justiça, a qual é o protetor natural. Perde-se esta vantagem quando
565
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 327.
566
ibid., p. 328.
567
ibid., p. 329
.
120
se faz a guerra sem necessidade e espontaneamente: de modo que, qualquer que possa ser o
acontecimento, segundo os terríveis e profundos julgamentos de Deus, quem distribui a
vitória por ordem e por energias muito ocultas, quando não se e a justiça do seu lado,
pode
-
se dizer por este lado que se combate sempre com forças desiguais.
568
A imagem de um príncipe moderado e pacífico, que empreende a guerra apenas
para se defender, é apresentada ao prín
cipe por Bossuet. Ele demonstra que “os mais fortes
são freqüentemente os mais discretos a tomar as armas”. De acordo com ele,
em uma derrota dos filhos de Israel do partido de Isboseth, conduzido por Abner contra
Davi, ‘Asael um dos irmãos de Joab, que s
e fiava na ligeireza de seus pés mais rápidos que
os dos cabritos habitantes das florestas, perseguia Abner sem se desviar à direita nem à
esquerda, e ia sempre sobre seus passos. Abner olha um momento para trás, e lhe diz: vós
sois Asael? Sim, respondeu ele. Abner prosseguiu: Retire-vos de um lado ou de outro (...).
Asael não pára de forma alguma de persegui-lo: e Abner repete ainda: Retire-vos, vos
suplico, e pare de me perseguir: do contrário serei coagido de vos bater e de vos deixar
preso à terra: e como poderei após isso erguer os olhos perante vosso irmão Joab? Asael
despreza esse discurso: e Abner lhe bate na virilha e perfura de um lado ao outro. Ele
morreu sobre o campo de seu ferimento; e todos os caminhantes se detinham para ver
Asael deitado por
terra’. Não se pode guardar mais de moderação em sua superioridade que
o fazia Abner um dos valentes homens de seu tempo, nem poupado mais tempo Joab e
Asael.
569
Ao censurar as guerras de conquista, uma das preocupações de Bossuet era com a
imagem de Luís XIV. Bossuet era o conselheiro espiritual do Grande Rei desde 1662,
quando fora convidado por ele para pregar na corte, vindo a ser nomeado conselheiro de
Estado em 1697. Apesar de essa nomeação ter sido relativamente tardia, desde muito antes,
por meio de textos elaborados por ocasião de circunstâncias específicas, Bossuet vinha
aconselhando Luís XIV a não fazer a guerra apenas por desejo de glória. Tudo indica,
contudo, que o rei não lhe dava ouvidos, motivo de profunda preocupação.
Um elemento de grande relevância que aparece no pensamento de Bossuet, e que
deve ser ressaltado, é a teoria ministerial do poder. Segundo a concepção cristã, no
momento de sua sagração, o rei, por força da unção litúrgica, passa a ser considerado a
imagem de Deus na terra. A teoria ministerial tem origem longínqua; remonta ao início do
cristianismo, com o apóstolo São Paulo. Como lembra Houx, “desde seu nascimento, o
cristianismo reconheceu que todo poder pertence a Deus e d’Ele procede. São Paulo, na
568
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 329
-
330.
569
ibid., p. 331.
121
Epístola aos Romanos
, esc
reveu: ‘não há autoridade que não seja de Deus, e todos os que a
têm, é Deus quem a estabeleceu”.
570
Segundo a teoria ministerial do poder, o rei é visto como o representante de Deus
na terra, o seu lugar-tenente. Considera-se que a origem de sua autoridade está em Deus, e
por isso deve submeter-se a Ele, o rei deve agir de acordo com Seus preceitos. Como
constata Jean Barbey, “ministro de Deus, o rei não exerce o poder em seu interesse próprio,
mas para pô-lo ao serviço de sua finalidade”.
571
No livro décimo
da Politique
, também
redigido em 1701, Bossuet recorda que “todo império deve ser olhado sob um outro
império superior e inevitável, que é o império de Deus”. Os reis são os ministros de Deus
na terra, recebem o poder d’Ele para agir corretamente, do contrário serão castigados com
mais vigor do que o resto dos mortais:
‘Ouvi
-me, reis, e entendei: juizes da terra, aprendei vosso dever: prestai atenção, vós que
contendes a multidão, e que vos agrada de vos ver rodeados de tropas de pessoas. É o
Senhor quem vos deu o poder, e toda vossa força vem do Altíssimo, que examinará vossas
obras, e sondará vossos pensamentos, porque éreis os ministros de Seu reino, (...) vós não
tendes caminhado segundo a vontade de Deus. Ele vos aparece de um golpe, de uma
maneira te
rrível: e aqueles que comandam serão julgados por um julgamento mais rigoroso
e mais duro. Pois os pequenos serão tratados com doçura: mas os poderosos serão
extremamente atormentados. Deus não faz distinção de pessoas, nem respeita a grandeza
de quem quer
que seja, porque ele fez o pequeno como o grande, e ele tem cuidado igual de
uns e de outros: os mais fortes terão de suportar um tormento mais forte.’ Não é preciso
reflexão nem comentário. Os reis como ministros de Deus, que exercem o império, são
com razão ameaçados, por uma infidelidade particular, de uma justiça mais rigorosa e de
suplícios mais requintados.
572
Ao recorrer à teoria ministerial do poder, lembrando ao rei que ele é a imagem de
Deus na terra, Bossuet o está advertindo que ele deve agir de acordo com as leis cristãs.
Ele recorre a esta teoria objetivando moralizar a realeza.
Em
O príncipe
573
, escrito em 1513, o italiano Nicolau Maquiavel (1569-
1627)
574
rompeu com a tradição de pensamento político ocidental ao desvincular a ação política das
es
feras moral e religiosa. No século XVII, o meio eclesiástico empenhou-se em combater
as idéias do autor florentino. Como Bossuet pertencia a este meio, esta luta fica bem
570
HOUX, op. cit., p. 245.
571
BARBEY, op. cit., p. 116.
572
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 438
-
439.
573
MAQUIAVEL, Nicolau.
O príncipe
. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
574
Nicolau Maquiavel era descendente da alta burguesia de Florença e exerceu diversos cargos diplomáticos
e políticos de 1498 a 1512, sobretudo como secretário da segunda chancelaria. Cf. TOUCHARD, v. 3, op.
cit., p. 17.
122
evidente em suas obras políticas. Conforme constata Truchet, “com todo seu século ele foi
levado a orientar sua reflexão em função de Maquiavel: sua obra política, como a de todos
os teóricos de inspiração cristã desse tempo, é em larga medida um anti
-
Maquiavel”.
575
De fato, a
Politique
de Bossuet é profundamente religiosa: os princípios te
ológicos
ocupam nela um lugar de destaque. Como Maquiavel preocupou-se em libertar a ação
política do príncipe da moral e da religião, para que ele alcançasse um melhor resultado,
podemos definir o pensamento político de Bossuet como um anti-Maquiavel. Na
dedicatória da
Politique
Bossuet escreveu, “aos que crêem que a piedade é um
enfraquecimento da política serão confundidos”.
576
Em
A arte da guerra, escrita entre 1519 e 1520, Maquiavel mostra que aprender a
arte da guerra é muito mais importante do que a re
ligião.
577
Nesta obra, Maquiavel constrói
a imagem de um príncipe dissimulado, impiedoso e cruel, que é capaz de tudo para
alcançar seus objetivos e assim aumentar a sua glória.
578
Em contraposição, o Bispo de
Meaux esforçou
-
se para formar no príncipe a caract
erística da humildade. Ele insistia nesse
ponto, que o comportamento do príncipe servia de modelo aos súditos. Bossuet temia a
Deus e aos castigos que Ele enviava aos reis violentos. Bossuet acreditava piamente na
Sagrada Escritura, e nela estava escrit
o que os reis violentos e sanguinários pereceriam.
579
Dentre as características da autoridade real, defendidas por Bossuet, encontrava-
se
a de que ela era absoluta. No entanto, Bossuet chamava a atenção do príncipe para o fato
de que, apesar de não precisar
dar satisfação a ninguém aqui na terra sobre os seus atos, ele
não possuía um poder arbitrário, que devia submeter-se às leis religiosas e morais. Na
época do preceptorado, na carta que Bossuet escreveu ao papa Clemente XI, em 1679, a
respeito de como estava conduzindo a instrução do Delfim, ele dizia que estava se
esforçando para que seu aluno compreendesse “que ‘toda a vida cristã e todos os deveres
dos reis’ estavam contidos nos termos piedade, bondade e justiça”.
580
Como preceptor do
Delfim, a maior ob
rigação de Bossuet consistia em formar a consciência do príncipe. Neste
sentido, ele empenhou-se em formar a consciência de um príncipe perfeito.
581
Para
Nourrison, ao invés de
Politique
, o título mais exato para essa obra seria Le Prince; já para
575
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 16.
576
Cf. ibid., p. 32.
577
MAQUIAVEL, Nicolau.
A
arte da guerra. A vida de Castruccio Castracani. Belfagor, o Arquidiabo
Brasília: UnB, 1982, pp. 42, 56.
578
Cf. ibid., pp. 39
-
54.
579
Cf. TRUCHET, op. cit., pp. 42
-
43.
580
ibid., nota de rodapé, p. 40.
581
ibid., p. 40.
123
o Padre Senault, a
Politique
deveria intitular-
se
Le Monarche, ou, quem sabe, Les devoirs
des souverains
.
582
Um outro aspecto importante a ser destacado no pensamento de Bossuet é a
classificação estabelecida por ele entre guerras justas e injustas. Na verdade, esta d
istinção
foi feita anteriormente pelos juristas Hugo Grócio e Samuel Pufendorf. As terríveis
recordações das guerras civis e conflitos internacionais ocorridos na primeira metade do
século XVII estimularam os juristas, por sua vez reformadores racionalista
s, a defender um
direito dos povos para limitar as guerras futuras ou, pelo menos, abrandar as suas
conseqüências. Lamentava-se o corte das relações diplomáticas nas guerras de religião.
Havia uma grande preocupação em criar regras e regulamentos fixos visando “o bom
funcionamento das relações diplomáticas”. Dessa forma, inúmeros tratados sobre a arte da
diplomacia foram concebidos. Esta evolução foi influenciada pelas correntes filosóficas.
Grócio
583
, em seu De jure belli ac pacis, publicado em 1625, buscou
provar
matematicamente a existência de “uma lei comum a todas as nações”, a qual conserva a
sua validade tanto em tempo de paz como de guerra”. Assim como outros juristas, Grócio
foi inspirado pela ânsia humanitária de acabar com aquilo que considerava ‘uma desordem
furiosa’. Por meio de um raciocínio adequado, todos os juristas nutriam a esperança de
concluir uma ‘lei das nações’, de origem natural, cujo destino seria dirigir “as nações dos
Estados soberanos em suas relações mútuas”.
584
Entre esses juristas, o mais célebre foi o alemão Pufendorf
585
, em sua obra clássica
Da lei da natureza e das nações
, publicada em 1672. Foi, em parte, devido a esta obra, que
se tornou um livro de consulta dos altos funcionários de governo, como dos intelectuais em
geral, em toda a Europa, que, aos poucos, passou-se a aceitar um diálogo a respeito do
direito internacional. A partir dessa obra, passou-se a considerar a soberania do Estado e
que o seu governante deveria assumir a total responsabilidade por tudo aquilo que fosse
praticado em seu nome. Passou-se a ser considerada como ‘justa somente a guerra
582
Cf.
TRUCHET, op. cit.,
nota de rodapé, p
. 40.
583
Hugo Grócio (1585-1645) era um holandês refugiado em Paris. Em 1625, esse jurista e humanista
publicou o seu volumoso tratado De jure belli ac pacis, o qual dedicou a Luís XIII. Grócio foi um grande
defensor do direito natural. A respeito de Grócio
, ver MERÊA, Paulo.
Sobre a origem do poder civil. Estudos
do pensamento político e jurídico dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Itinerários, 2003, pp. 151-
161;
TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 106; HASARD, op. cit., pp. 227
-
229.
584
Cf. HATTON, op. cit., p. 243.
585
Samuel Pufendorf (1632-1694) caminhou nas pegadas de Grócio. As suas obras principais são De jure
natural et gentiun, publicada em 1672, e o compêndio intitulado De officio hominis et civis juxta legem
naturalem
, publicado em 1673. Ele era professor de Direito da Natureza e dos Povos em Heidelberg e em
seguida em Lund, na Suécia. Assim como Grócio, Pufendorf foi um grande doutrinador do direito natural.
Cf. CHEVALLIER, 1983, op. cit., p. 25; TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 107; HASARD, op. cit., pp. 229
-
230.
124
defensiva. O Estado que encarasse uma guerra para se defender teria o direito de receber
uma compensação do Estado agressor, a qual seria concebida sob a forma de uma
satisfac
tio
.
586
Dentre os inúmeros exemplos da aplicação deste código temos o caso
clássico de Luís XIV após a guerra contra a Holanda, 1672-1678. “Luís XIV admite ter
sido o agressor, quando em 1672 ataca os holandeses, que têm, portanto, direito a uma
satisfactio
; recebem-na quando, na conferência da paz, em 1678, é profundamente
modificado o sistema tarifário francês de 1667, que muito os prejudicava”.
587
A guerra era um empreendimento altamente dispendioso para o Estado. A França
tinha acabado de sair de uma guerra desgastante, que tinha levado suas finanças à ruína.
Por meio de muito esforço por parte do atual ministro das finanças a situação financeira do
país vinha se recuperando aos poucos. Contudo, Bossuet acreditava que a França ainda não
tinha forças o suficiente para enfrentar uma outra grande guerra. Neste sentido, ele se
esforçava para fazer com que Luís XIV compreendesse o quanto as guerras de conquista
eram prejudiciais ao reino e ao rei da França. Além dos altos custos para mantê-las o rei
deveria pagar
uma
satisfactio
ao país invadido, assim que fosse provado que ele teria sido
o agressor. Desta forma, para Bossuet, o rei somente poderia dispor dos recursos da nação
para manter uma guerra justa, ou seja, uma guerra defensiva.
As guerras de conquista de L
uís XIV despertaram críticas dos inimigos estrangeiros,
principalmente durante ou logo após as guerras empreendidas contra eles. As críticas
seguiam a mesma direção: geralmente criticava-se a ambição de suas conquistas e o seu
desejo de ser o mestre da Europa. Em 1667, durante a Guerra da Devolução, em seu Le
bouclier d’État, o embaixador do Imperador Leopoldo I, Franz Paul Lisola, criticou a
ambição de Luís XIV de querer conquistar toda a Europa, mostrando que ele representava
uma séria ameaça; se a Europa não quisesse se tornar escrava da França, devia se unir para
lutar contra ela. Durante a Guerra da Holanda, em 1674, Johan Joachin Becher, também
ligado ao Imperador, redigiu o Machiavellus Gallicus, cujas críticas a Luís XIV tinham o
mesmo teor. Após a tomada de Estrasburgo, Leibniz também criticou a política
expansionista de Luís XIV em seu panfleto Mars Christianissimus, dado a público em
1683. Neste panfleto, discretamente, Leibniz criticou Luís XIV pela Guerra da Devolução;
pelo derramamento de sangue
de cristãos inocentes na Guerra da Holanda; responsabilizou
-
o por todos os atos violentos cometidos a partir daí contra os Países Baixos, a Alemanha,
586
Cf. HATTON, op. cit., pp. 243
-
244.
587
ibid., p. 244.
125
entre outros países da Europa; e a falta de razão da tomada de Estrasburgo, mostrando o
absolutismo de Lu
ís XIV como arbitrário. Luís XIV foi apontado por Leibniz como sendo o
perturbador da paz na Europa, causando a miséria e a morte de milhares de cristãos nas
guerras que ele empreendia apenas para saciar o seu desejo de glória.
A crítica de Bossuet aos pr
íncipes que realizam pilhagens durante a guerra também
deve ser ressaltada. Luís XIV deu início à Guerra da Liga de Augsburgo quando seu
exército saqueou e devastou o Palatinado, a partir de setembro de 1688. Em 1693, ele
percebeu que a guerra terminaria mediante negociações. Mas, enquanto aguardavam a
paz, os exércitos franceses empreenderam incêndios e pilhagens. De acordo com Pierre
Goubert, em 1693 os exércitos franceses “assinalaram-se por suas pilhagens e o segundo
incêndio de Heidelberg. (...) eles esperavam a paz, sempre avançando, recuando e
pilhando, fora das fronteiras do reino”.
588
As invasões, incêndios, devastações e pilhagens feitas por Luís XIV durante a
Guerra da Liga de Augsburgo foram muito criticadas por alguns panfletistas estrangeiros.
Os inimigos de Luís XIV acusavam-no de transgredir o direito internacional. Nesta
modalidade, a invasão do Palatinado foi o acontecimento mais criticado pelos inimigos,
que mostravam tal ato de Luís XIV como sendo de uma crueldade maior que as cometidas
pelos turcos. Sendo esta uma maneira de censurar a arbitrariedade do absolutismo. O título
de um panfleto alemão resumia este ato de Luís XIV como a Razão francesa de Estado.
Todas essas críticas vindas de inimigos estrangeiros ameaçavam o absolutismo do Gr
ande
Rei. Sendo assim, como defensor do absolutismo francês, Bossuet não mede esforços para
mostrar a Luís XIV as desvantagens desse tipo de guerra e fazê-lo perceber que a
moderação é a melhor maneira de conservar a paz, a ordem, a prosperidade e felicida
de
dos franceses, enfim, o poder centralizado em sua pessoa.
Ao criticar os reis impiedosos que faziam a guerra em busca de satisfação pessoal,
realizando pilhagens, uma das preocupações de Bossuet era com as conseqüências da
guerra para os homens. Aliás, a questão da piedade estava estreitamente ligada à da
assistência, enfim, da justiça social. Este é o ponto em que a influência de São Vicente de
Paulo se manifesta mais claramente na obra de Bossuet. Seus sermões de caridade, os
apelos que fazia a Luís XI
V do alto do púlpito ou por meio de cartas foram, sem dúvida, as
mais pessoais, atraentes e corajosas de suas obras políticas. De acordo com Truchet,
588
GOUBERT, op. cit., p. 239.
126
não era (...) somente a extrema miséria que lhe parecia intolerável, mas também a extrema
riqueza; escanda
lizava
-
o a opulência, o luxo e a cupidez dos grandes, que ele denuncia sem
cuidado. Aos motivos humanos piedade para os pobres, indignação a respeito dos ‘maus
ricos’
acrescentam-se, mais determinantes ainda, os motivos sobrenaturais: a miséria e a
gra
nde riqueza são, de maneiras diversas, perigosas para a salvação. O ideal social de
Bossuet reside no estabelecimento universal de uma comodidade racional e modesta; é
preciso, declara ele, que a população seja, ‘um pouco para sua comodidade’. Em que ele
r
eúne Horácio e seu
aurea mediocritas
assim como M. Vincent.
589
No século XVII, a França foi vítima de uma profunda miséria. As testemunhas
contemporâneas são unânimes em descrever a situação lastimável da maioria da população
francesa desta época. São Vicente de Paulo lutou contra a miséria em suas atividades de
caridade aos pobres. Bossuet foi seu aluno e um de seus discípulos mais fervorosos,
colaborando para com as obras vicentinas. Em 2 de agosto de 1702, em sua Lettre au pape
Clément XI, Bossuet se manifesta a favor da beatificação de São Vicente de Paulo.
590
Aliás, é “esta luta contra a miséria que faz ainda hoje a popularidade de o Vicente de
Paulo”.
591
No período em que Bossuet tornou-se padre e foi morar em Metz, 1652-1659, não
lhe faltaram ocasiões para ver a miséria de perto, o que o levou a assumir funções
municipais juntamente com as eclesiásticas: Bossuet era um integrante da Assembléia das
Três Ordens, de que uma das metas era o combate contra a pobreza. A miséria existente
na França no século XVII aumentava espantosamente durante e após as guerras. Os sete
anos em que Bossuet residiu em Metz foram uma época em que freqüentemente a Lorena
era atravessada por todos os tipos de tropas. Neste período Bossuet sentiu os horrores da
guerra. O exército de Condé queria saquear a cidade; diante disso, Bossuet sentiu-se no
dever de negociar pessoalmente com ele para evitar tal catástrofe.
592
Neste tempo de extrema miséria, os predicadores, sobretudo os influenciados por
São Vicente de Paulo, como Bossuet, u
tilizavam
-se da predicação de caridade em prol das
obras de beneficência, aproveitando-se destas ocasiões para condenar a extrema
desigualdade social, censurando os ricos e sugerindo medidas em prol dos pobres. Além
dessa predicação de caridade, Bossuet ap
roveitava
-se de todas as ocasiões nos momentos
em que pregava diante da alta sociedade, na corte, para condenar o luxo e apelar a favor
das esmolas, como exemplo temos o seu Sermon du mauvais riche, pronunciado no
589
TRUCHET, op. cit., pp. 47-48. M. Vincente era a forma carinhosa com que o povo se referia a São
Vicente de Paulo.
590
CF. ibid., nota de rodapé, p. 18.
591
ibid., p. 19.
592
Cf.
ibid., pp. 18
-
19.
127
Louvre. Em suas pregações, Bossuet sempre buscava mostrar aos ricos que o sofrimento
dos pobres era algo insuportável.
593
Os camponeses, que constituíam a maioria da população francesa na época,
estavam mais expostos às conseqüências das guerras, como devastações, incêndios e
alojamento de tropas. Freqüentemente, as devastações das guerras eram piores que as
próprias batalhas. Conforme ressalta Robert Mandrou,
os soldados que devem viver no interior, alojam-se para inverno na casa dos habitantes, e
perseguem homens e mulheres, incendeiam as colheitas e massacram o gado, são temíveis
e ameaçadores durante muito tempo. Foi preciso as reformas de Louvois no recrutamento e
no aquartelamento longos decênios de adaptação para que essas imagens das
‘infelicidades da guerra’ cessassem de ser correntes durante o século XVIII. (...) a tradição
dessas destruições não é desmentida. De outra parte, as cidades se encontram melhor
protegidas que os
descampados
, pois elas estão protegidas por suas muralhas, capazes de
resistir a alguns bandos, e aptas a negociar com alguns capitães; mas no campo, não tendo
outro recurso que amontoar seus
andrajos
no baú e de empurrar crianças e gado diante de si
até a floresta mais próxima, para melhor esperar o fim do perigo.
594
Segundo constata Hatton, a este respeito, “durante os cercos (...) os civis sofrem
tanto como os soldados, ou ainda mais, como conseqüência das privações resultantes desta
forma de guerra. As devastações dos campos, por motivos estratégicos destruição do
Palatinado pelos franceses em 1689 (...) causam, muitas vezes, mais do que a miséria às
populações civis: privadas das casas e haveres caem nas garras de todas as epidemias”.
595
Os efeitos econômicos da Guerra da Liga de Augsburgo juntamente com a Grande
Fome de 1693
-
94, decorrente das más colheitas que se
arrastavam desde 1691, acarretaram
a miséria extrema de grande parte dos franceses. Bossuet terá sido profundamente tocado
pelo sofrimento do povo. No livro décimo da
Politique
, Bossuet recorda que, quando
esteve na terra, Jesus Cristo disse que aqueles que conseguissem se desapegar de suas
riquezas alcançariam a salvação. A preocupação de Bossuet com os pobres fica bem
evidente quando ele cita as palavras de Maria, referindo-se ao filho: “‘ele encheu de bens
aqueles que tinham fome [aqueles que estão na penúria, na indigência], e ele tem mandado
de volta os ricos com as mãos vazias’”.
596
Por meio dessa afirmação, Bossuet tenciona
estimular os ricos a darem esmolas.
593
Cf. TRUCHET, op. cit., pp. 21
-
22.
594
MANDROU, op. cit., p. 95.
595
HATTON, op. cit., pp. 11
-
12.
596
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 446
-
447.
128
A grande miséria dos franceses ocorrida durante a Guerra da Liga de Augsburgo foi
observada por intelectuais estrangeiros, como Leibniz e Locke.
597
Na França, ela foi
descrita por homens de Estado, clérigos e pessoas privadas. La Bruyère, em
Caractères
,
obra publicada em 1688, reeditada por nove vezes até 1699, assim como Fénelon, em sua
célebre
Lett
re à Louis XIV de 1695 e mais tarde em Les Aventures de Télémaque de 1699,
obra extremamente conhecida em toda a França da época, criticaram Luís XIV por destinar
os recursos da nação para manter suas guerras de conquista enquanto seu povo passava
fome. As críticas de Fénelon foram mais perigosas para o absolutismo, pois lançava mão
da miséria da França para criticar a política do monarca. Fénelon era preceptor do neto de
Luís XIV e estava influenciando os nobres pertencentes ao círculo que se formara em to
rno
deste príncipe. O seu exílio na diocese de Cambrai, após a publicação de Les aventures de
Télémaque
, nos mostra que suas idéias representavam uma certa ameaça ao poder
constituído. Bossuet tinha conhecimento dessas críticas internas à política belicosa de Luís
XIV e devia recear que novamente a nobreza se unisse à burguesia e ao povo para fazer
uma outra guerra civil contra o monarca. Aliás, quando ocorreu a Fronda, Bossuet morava
em Paris e assistiu de perto os cinco anos de anarquia decorrentes dela. Os episódios da
Fronda ficaram gravados em sua memória de uma tal forma que ele passou a repudiar
qualquer forma de revolta dos súditos contra o soberano.
As guerras de conquista nas Memórias de Luís XIV
Em 1668, Luís XIV começou a ditar suas
Memórias
para o seu então secretário
Périgny, em 1671 é Pelisson quem as redige. Em 1672 eclode a Guerra da Holanda e a
obra é interrompida sem que o rei volte a retomá-la. No entanto, o essencial da maneira de
pensar e de sentir de Luís XIV como rei e como homem estavam nela registrados. As
Memórias
consistem em instruções ao Delfim que não chegaria a reinar, pois morreria em
batalha em 1711, quatro anos antes de seu pai.
598
Esta obra é extremamente importante
para compreendermos o pensamento político de Luís XIV. C
omo lembra Bertrand, em suas
Memórias
Luís XIV deixou bem clara a necessidade que sentiu de recorrer à história
visando a sua própria instrução, à do filho e de toda a posteridade. Infelizmente, muitos
597
Conforme salienta Paul Hasard, Locke “comprova que os camponeses vivem em guaridas, apenas m
com que vestir-se, que comer: e tão miseráveis como são, o fisco encontra meios de extorquí-los”. Locke
lamenta “A grande fome de 1694, a bancarrota: quantas misérias!”.
HASARD, op. cit., pp. 236
-
237.
598
Cf. GRANELL, Manuel. “Prólogo del Traductor”. In: LUÍS XIV
.
Memorias sobre el arte de gobernar
.
Buenos Aires
-
Mexico: Editora Espasa
-
Calpe Argentina S. A., 1947. (Collección Austral),
pp. 14, 19.
129
historiadores franceses desprezaram-nas. As
Memórias
expressam todo o seu pensamento,
constituindo
-se assim em “uma teoria completa do poder monárquico”.
599
Conforme
constata Touchard, “o principal interesse das
Memórias
reside no fato de se conseguir
captar a personalidade de Luís XIV por detrás das considerações tradicionais sobre a
prudência do príncipe, a utilidade do estudo e da virtude, os inconvenientes da
precipitação, etc.”. A edição Dreyss traz as três fases da obra: folhetos, escritos a próprio
punho, diário, certamente ditado, e as Memórias, que, de acordo com o diário, foram
compostas pelos historiógrafos oficiais.
600
As
Memórias
constituem-se em um documento
confidencial, pois foram redigidas originalmente para o exclusivo uso do Delfim. Só
vieram a ser publicadas em 1806.
Mesmo que as
Memórias
não tenham sido escritas pessoalmente por Luís XIV,
certamente, os historiógrafos reais seguiam fielmente o pensamento do monarca. As
Memórias
eram um documento confidencial a ser entregue ao Delfim quando este
completasse dezessete anos. Sendo assim, acreditamos que Luís XIV jamais assinaria uma
obra cujo teor não fosse condizente com suas próprias idéias. Vejamos então qual era a
concepção do Grande Rei a respeito da arte da guerra.
Luís XIV diz ao filho, em suas
Memórias, que o príncipe somente deve empreender
a guerra justa. Ele deve primeiro recorrer a meios diplomáticos, buscando alcançar os seus
objetivos mediante negociações, e somente realizá-la em casos de extrema necessidade,
após ter esgotado todos os seus esforços, já que deve assegurar a honra de sua
família:
As regras da justiça e da honra conduzem quase sempre à utilidade. A guerra quando é
necessária, não é apenas uma justiça permitida, mas os reis são obrigados a realizá-la. Pelo
contrário, é uma injustiça quando se pode passar sem ela e é possível obter o mesmo fim
por meios suaves. Eu a considerei desta maneira, e foi isso que me fez alcançar êxito. Se eu
não tivesse estado interiormente disposto a realizá-la no caso de ser necessária à honra da
minha coroa, certamente que as negociações não teriam produzido qualquer efeito. Se
tivesse fechado a porta a qualquer negociação, levando desde o princípio as coisas aos seus
últimos extremos, não sei que batalhas nem que vitórias teriam podido trazer
-
me vantagens
semelhantes, sem contar com o sangue vertido, a sorte das armas, sempre duvidosa, e a
interrupção de todos os meus desígnios, no que ao interior do reino se refere.
601
Nas
Memórias, Luís XIV busca mostrar ao filho que apesar do valor, a glória, ser a
virtude mais almejada pelos príncipes, em muitos casos tal virtude deve dar lugar à
599
BERTRAND, Louis.
Louis XIV
. Paris: Arthème Fayard, 1950
,
pp. 281
-
282.
600
Cf. TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 129.
601
LUÍS
XIV.
Memórias
.
A arte de governar. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1976, p. 35.
130
prudência; que ele sempre desejou empreender a guerra a fim de realizar inúmeras
conquistas, sobretudo em sua juventude, mas ouviu a voz da prudência e, desta forma,
procurou resolver os litígios mediante negociações:
Não duvideis de que em todos os tempos, e sobretudo no começo e na primeira juventude,
não teria preferido conquistar os Estados a adquiri-los. Mas quem apenas aspira a praticar
uma única virtude de modo algum a possui; pois não verdade que não concorde com
todas as outras, dado que todas elas consistem em agir com razão; quer dizer, conforme o
tempo e as ocasiões o exijam, e inclusivamente violentando as próprias inclinações. Se não
é bom ter um favorito, por hábil que possa ser, para não ter que escutar apenas a ele, muito
menos é ter uma única paixão, por nobre que seja, para não receber outro conselho que não
o seu, não considerar em virtude disso, o bem em geral, o qual se transforma em tantas
virtudes quantas coisas justas, honestas e úteis existem, e nos príncipes mais do que nos
particulares; pois, quem fala de um grande rei, fala quase sempre do conjunto de todos os
talentos dos seus súditos mais excelentes. O valor é uma das qualidades principais, mas não
a única; deixa muito a fazer à justiça, à prudência, à boa conduta e à habilidade nas
negociações. Quanto mais perfeito é o valor, menos aparece fora de tempo para se mostrar
à última hora, acabando assim o que as outras virtudes consideraram impossíveis. Se as
outras qualidades m menos brilho, não deixam de outorgar ao príncipe uma honra tanto
mais sólida quanto aos seus bons efeitos apenas parecem sê
-
lo por sua própria obra, na qual
o acaso apenas tomou parte. Conservai-vos sempre, meu filho, em estado de vos fazer
temer pelas armas, mas não as empregueis a não ser quando for necessário, e recordai que
o nosso poder, mesmo quando está no mais alto cume, para ser mais temido deve ser mais
raramente experimentado.
602
O discurso de Luís XIV nos mostra que ele concordava com as idéias defendidas
por Bossuet: que o príncipe não devia se deixar dominar pelo desejo de glória,
empreendendo guerras de conquista, e sim procurar se guiar pela prudência, sendo
moderado, fazendo a guerra apenas em casos extremos, para defender o seu reino e a sua
honra. Contudo, essas idéias ficavam somente no âmbito teórico, que na realidade a
política externa adotada por Luís XIV era bem diferente. Objetivando diminuir o poder dos
Habsburgos e aumentar o seu, Luís XIV realizou várias guerras de conquista, destacando-
se a Guerra da Devolução, 1667-68, a Guerra da Holanda, 1672-78, e a tomada de
Estrasburgo, 1681. Conforme observa Louis André, “após 1663, Luís XIV não se mostrará
satisfeito com os domínios que possui e se esforçará para expandi-los em detrimento dos
Habsbur
gos. Seu orgulho e seu desejo de glória arrasta a vontade de alcançar sucessos
pelas armas, de efetuar conquistas antes de tudo”.
603
De fato, em sua carta a M. de La Haye, Tenente-General das Índias Orientais, de 8
de setembro de 1674, Luís XIV menciona todo o dinheiro que lhe enviou, e que no
602
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 50
-
51.
603
ANDRÉ, op. cit., p. 18.
131
momento está lhe enviando, por meio de seu barco “Le Coche”, os soldados, oficiais,
dinheiro, armas e munições, julgados por ele necessários para que M. de La Haye continue
se defendendo dos inimigos que o atacavam. Luís XIV ordena-lhe que o mantenha
informado de tudo o que se passar para que possa auxiliá-
lo melhor.
604
Ele mostra o desejo
de restabelecer a paz com os inimigos. Mas deixa bem claro que somente a fará mediante
condições vantajosas e honrosas a ele e ao reino
. O Grande Rei demonstra a importância de
suas conquistas para assegurar a sua glória e a da França: faz relatar a M. de La Haye suas
vitórias e conquistas mais recentes a fim de estimulá-lo a se manter firme à frente de seu
exército para que mais vitórias
e conquistas sejam alcançadas:
Espero que todos estes socorros vos terão dado meios para vos defenderdes e talvez para
restabelecer a paz com o rei da Golconda e príncipes vizinhos, tarefa essa a que, espero,
vos apliqueis antes de tudo. (...) No caso de Deus conceder aos meus inimigos a vontade de
fazer a paz em condições honrosas e vantajosas para mim e o meu Estado, enviar-
vos
-
ei
socorros mais freqüentes e poderosos; no entanto, para vos exortar sempre a continuar
sustentando a glória das minhas armas num país tão afastado como esse no qual servis,
tenho a satisfação de vos comunicar que no princípio desta campanha, no decurso do mês
de maio e dos quinze primeiros dias do mês de junho, conquistei todo o Franco-Condado e
assaltei as cidades e cidadelas de Besançon, Dôle e Salins, os castelos de Joux, Sainte-
Anne e Saint-Laurent, bem como todas as restantes cidades e praças desta província, na
qual sou presentemente senhor; isto foi seguido de um grande combate, que o meu primo, o
visconde de Turenne, que comandava o meu exército da Alemanha, ganhou ao exército do
Império, comandado pelo duque da Lorena, e de outra assinalada vitória obtida pelo meu
primo o príncipe de Condé, que comandava o meu exército de Flandres, a doze de agosto
último, sobre os três exércitos, imperial, espanhol e holandês, conjuntamente. À parte a
glória de todas estas vitórias, com que Deus se compraz em favorecer a justiça dos meus
exércitos, deveis estar certo de que a que provém da vossa boa conduta e do vosso valor é
por mim muit
o apreciada, e que vos darei mostras da satisfação que sinto com isso.
605
Nota
-se que, para Luís XIV, entre alcançar a glória e estabelecer a paz com os
inimigos, sem dúvida, ele escolhe a primeira opção. Luís XIV amava todos os prazeres da
vida. Como todos os Bourbons, ele amava a caça, sendo este um dos motivos que o
levaram no início de seu reinado pessoal a residir no castelo de Fontainebleau, exceto nos
meses de inverno. Ele amava a dança, além dos bailes da corte, adorava principalmente
figurar nos balés de grande espetáculo, nos quais representava Apolo, Júpiter, e receber os
aplausos dos cortesãos, seus maiores admiradores.
606
604
LUÍS XIV, “Carta a M. de La Haye, 8 de setembro de 1674”, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 99
-
100.
605
ibid., pp. 100
-
101.
606
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 16.
132
Luís XIV apaixonou-se por várias mulheres.
607
Mas, dentre as suas paixões, a
paixão pela glória foi, sem dúvida, a maior de todas. Em suas
Memórias
, Luís XIV
confessa ao filho que o desejo de glória o acompanhou desde os primeiros momentos em
que segurou pessoalmente as rédeas do poder. Segundo ele, no início de meu reinado
pessoal, “encontrava-me compelido e retardado quase da mesma forma no meu desígnio
por um único e mesmo desejo de glória”.
608
O Grande Rei reconhece que a glória foi a sua
maior paixão: “uma paixão se sobrepõe e domina neles [nos reis] todas as restantes: a do
seu interesse, da sua grandeza e da sua glória”.
609
Afinal, em sua concepção, “nada produz
maiores efeitos em pouco tempo do que a reputação do príncipe”.
610
Em uma carta dirigida ao marquês de Villars, em 1688, Luís XIV diz,
“engrandecer-se é a mais digna e mais agradável ocupação dos soberanos”.
611
Como
observa Louis André, em Luís XIV “a paixão da glória esteve muito mais viva e muito
mais sincera que a do amor. Ele falou freqüentemente: ‘o amor da glória vai certamente
antes de todas as outras [paixões] em minha alma’. Nas Memórias, ele fez escrever: ‘os
reis, que nasceram para possuir tudo e comandar a tudo, não devem jamais ser humilhados
(...). A reputação sozinha faz freqüentemente mais que os exércitos mais potentes’”.
612
De acordo com Hubert Méthivier, “Luís XIV sempre olhou a guerra como a
vocação natural de um grande rei e o amor da glória foi sua paixão dominante”.
613
Conforme observa Touchard, nas Memórias, após “longas e edificantes considerações”
encontram
-se de vez em quando notas de Luís XIV, como: “‘exercício aturado para me
tornar capaz na guerra; vontade de a fazer; razões de toda a espécie, facilidade de arranjar
marinheiros’”. Desta forma, ainda segundo Touchard, “surge assim a imagem de um jovem
(a maior parte do diário traz as datas de 1666, 1667, 1668) que se preocupa pouco com a
doutrina e que est
á apenas interessado na conquista e em alcançar um poder que não deseja
partilhar com ninguém. Dirigindo-se ao Delfim, Luís XIV tem olhos para si próprio.
607
Ele apaixonou-se seguidamente por duas sobrinhas de Mazarino, Olympe Mancini e depois por Marie
Mancini. Porém, ele teve de sacrificar esta última paixão em nome da razão de Estado: ele assinou o tratado
dos Pireneus com a Espanha, em 1659, e em 9 de junho de 1660, em Saint-
Jean
-
de
-Luz, casou-se com a
infanta espanhola Maria Tereza. Contudo, alguns meses após o seu casamento, apaixonou
-
se por Louise de la
Vallière, uma das filles d’honneur de Henriette d’Orléans; paixão esta que tornou a sua estada no castelo de
Fontainebleau, durante o verão de 1661, muito mais encantadora.
Cf. LUÍS XIV, in LUÍS XIV, 1976, p. 17.
608
ibid., p. 12.
609
ibid., p. 27.
610
ibid., p. 20.
611
Cf. MÉTHIVIER, op. cit., p. 620.
612
Cf. ANDRÉ, op. c
it., p. 17.
613
MÉTHIVIER, op. cit., p. 62.
133
Fala apenas da sua pessoa (e acima de tudo de política externa); os ministros não
aparecem, nem me
smo Colbert, nem sequer a nação”.
614
Um dos fatores a serem levados em conta na avaliação do reinado de Luís XIV é a
família e as conexões dinásticas. Ele tinha mais relação ancestral de parentesco com os
Habsgurgos do que com os Bourbons. De acordo com Shennan, Luís XIV “descendia de
uma linha de grandes príncipes europeus que incluía Carlos, o Calvo, da Burgúndia,
Lorenzo de Médicis, o Magnífico, de Florença, o imperador Carlos V e Filipe II, da
Espanha. Este último era seu bisavô”. Isso o levava a uma perspectiva dinástica e não
nacional, ou seja, a não concentrar a sua atenção apenas na França, e a ter do continente
europeu uma percepção mais ampla. Afinal, “poucas regiões na Europa não tinham estado
relacionadas com sua família em algum momento do passado. O rei da França guardava
um interesse muito residual por muitas delas”.
615
Luís XIV dizia ao filho que não havia melhor família nem maior poder que o do
monarca francês em nenhum lugar do mundo. Em sua concepção, a superioridade dos reis
da França aos demais reis da Europa devia-se à hereditariedade, longevidade e forma de
governo: “meu filho, não vejo por que razão os reis de França poderiam ser inferiores a
esses príncipes eleitos, sendo reis hereditários e podendo envaidecer
-
se de que não há hoje,
no mundo, sem exceção, nem melhor casa do que a sua, nem monarquia mais antiga, nem
maior potência, nem autoridade mais absoluta”.
616
Apesar da arrogância que caracterizava o reinado de Luís XIV, não se pode olhar a
sua sede de glória apenas como uma ostentação de grandeza militar ou como um culto a
sua pessoa, pois não era só isso. Ao empreender guerras de conquista, Luís XIV desejava
aumentar a honra e glória de sua família e deixar aos seus sucessores um legado grandioso.
Ele sentia-se na obrigação de deixar ao seu sucessor, particularmente, um reino igual, ou
melhor, ao que tinha herdado de seu pai: rico, seguro e honrado. Em suas Memórias
,
dirigindo ao filho ele diz: “a vossa honra, meu filho, me é nisto mais querida do que a
minha”.
617
Mais adiante, ele acrescenta, “espero que vos deixarei, no entanto, mais poder e
grandeza
do que a que tenho”.
618
Portanto, conforme observa Shennan, dois aspectos o
estimulavam à buscar a glória: a honra familiar e a auto
-
glorificação pessoal.
619
614
TOUCHARD, v. 3, op. cit., pp. 129
-
130.
615
SHENNAN, op. cit., p. 8.
616
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 30.
617
ibid., p. 19.
618
ibid., p. 37.
619
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 16, 51.
134
As guerras de conquista de Luís XIV podem ser entendidas também como uma
forma de proteger as fronteiras da França de ataques externos.
620
Aliás, a historiografia é
quase unânime em mostrar as guerras de conquista de Luís XIV como sendo
impulsionadas pela defesa das fronteiras do reino.
Uma das questões importantes inerentes à política externa de Luís XIV em
empreender guerras de conquista visando proteger a França de futuros ataques de inimigos
externos, bem como em assegurar a sua glória e à da França, é se eram justificáveis os
custos repassados aos súditos para manter as guerras empreendidas com estes objetivos.
Nas
Memórias, ao falar sobre a arte de gastar bem, Luís XIV busca justificar os altos
gastos do Estado para a manutenção de aliados, mostrando que isto era feito para aumentar
a sua
glória e a de seu reino, assim como assegurar a tranqüilidade de seus súditos:
Os soberanos a quem o céu fez depositários da fortuna pública, certamente que procedem
contra os seus deveres quando dissipam o erário dos seus súditos em gastos inúteis; mas
talvez procedam ainda muito pior quando, por importuno espírito de aforro, recusam
desembolsar o que pode servir para a glória da sua nação ou para a defesa das suas
províncias. Sucede freqüentemente que somas medíocres gastas a tempo e com juízo
economizam
aos Estados gastos e perdas incomparavelmente maiores. Por carência de um
auxílio que pode resultar econômico, por vezes é preciso pôr em de guerra grandes
exércitos. Um vizinho a quem poderíamos ter tornado amigo nosso com pouco gasto,
custa
-nos por vezes muito mais caro quando se transforma em inimigo. As mais pequenas
tropas inimigas que entrem em nossos Estados levam-nos num mês mais do que teria sido
necessário para manter dez anos de entendimento. E os econômicos imprudentes que não
compreendem estas máximas, encontram, tarde ou cedo, o castigo da sua avareza, com as
suas províncias desoladas, o cessar das suas rendas, o abandono dos seus aliados e o
desprezo dos seus povos. Porque havemos de pôr dificuldades ao desembolso de dinheiro
para as neces
sidades públicas, pois se é para as suster que temos o direito de o administrar?
(...) o príncipe virtuoso impõe com moderação, exige com compaixão, apenas economiza
por dever, reserva apenas por prudência e não gasta nunca sem uma razão muito especial,
po
r que apenas o faz para aumentar a sua glória, para engrandecer o seu Estado ou para
beneficiar os seus súditos.
621
Ora, uma das obrigações dos reis franceses era proteger os seus súditos! Em suas
Memórias
, Luís XIV fala dos deveres recíprocos entre o rei e os súditos: “a obediência e
respeito que recebemos dos nossos súditos não são um dom gratuito que nos fazem, mas
antes uma troca com a justiça e a proteção que pretendem receber de nós. Assim, como
eles nos devem honrar, nós devemos conservá-los e defendê-
los”.
622
É importante lembrar
620
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 16.
621
LUÍS X
IV, 1976, op. cit., pp. 69
-
70.
622
ibid., p. 33.
135
que dar proteção aos súditos era um dos juramentos pronunciados pelos reis franceses no
momento de sua sagração.
Assim como Bossuet, Luís XIV acredita que o rei francês tem um poder absoluto e
que por isso “não deve dar conta a ninguém de seus atos”.
623
A teoria ministerial também
aparece em seu pensamento. Dirigindo-se ao filho, Luís XIV observa, “é sem dúvida certo
que ocupamos, por assim dizer, o posto de Deus”.
624
Por isso os reis Lhe devem
submissão, haja vista que a submissão
dos súditos aos reis é um reflexo da submissão deles
a Deus.
625
Acabar com a miséria da França também foi uma das preocupações de Luís XIV.
Nas
Memórias
, Luís XIV relata ao filho a situação de desordem em que se encontrava as
finanças da França no início de seu reinado pessoal. Segundo ele, os males resultantes da
má administração das finanças recaíam sobre o povo, que já suportava as conseqüências da
longa guerra contra a Espanha, como aumento de impostos, miséria e desemprego: “todos
esses males em conjunto, bem como as suas conseqüências e efeitos recaíam
principalmente sobre o baixo povo, sobrecarregado por outro lado, de impostos, cheios de
miséria, molestado pela sua própria ociosidade desde a guerra, e necessitando sobretudo de
ser aliviado e ocupado em qualquer coisa”.
626
Luís XIV diz ao filho o quanto se
sensibilizava com a miséria de seu povo, bem como a satisfação que sentia nas reformas
postas em prática para eliminá-la: “nada me satisfazia mais do que querer aliviar os meus
povos: a miséria das províncias e a compaixão que por elas tinha solicitavam-
me
intensamente”.
627
Em suas Memórias, Luís XIV diz ao filho que, no primeiro ano de seu reinado
pessoal, a colheita de 1661 levou à falta de trigo, cuja carestia afligiu todo o reino.
Diante disso, tomou inúmeras medidas para aliviar o sofrimento do povo, pois desejava
que não houvesse mais em seu reino a indigência e a mendicidade, e que todos tivessem a
subsistência assegurada.
628
Luís XIV jamais foi indiferente à miséria que atingia os
franceses em épocas de guerra. Aliás, foi pensando nisso que, três décadas após ter escrito
as
Memórias
, empenhou-se em negociações para alcançar a paz na Guerra da Liga de
623
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 22.
624
ibid., p. 82.
625
Cf. ibid., p. 31.
626
ibid., p. 16.
627
ibid., p. 24.
628
ibid., pp. 42
-
44.
136
Augsburgo, fazendo concessões humilhantes àquele que era considerado o maior monarca
do universo.
C
astigos enviados por Deus aos príncipes conquistadores e ambiciosos
De acordo com Bossuet, no livro nono da Politique, um dos traços de um
conquistador injusto e ambicioso “traçado pelo Santo Espírito”, é acreditar que todos os
governos devem subjugar-
se
a ele após ter subjugado um inimigo poderoso. Ele passa a
oprimir todos os povos, e fica irritado se algum deles se recusa ao seu jugo, acreditando ter
um direito legítimo sobre todos. Devido ao fato de ser o mais forte, ele não se olha como
agressor: e ele chama defesa o desejo de invadir as terras dos povos livres. Como se fosse
uma rebelião o desejo de conservar a sua liberdade contra a sua ambição. Ele fala de
vingança: e as guerras que ele empreende lhe parecem uma justa punição aos rebeldes.”
Ele deseja que todos se submetam ao seu império.
629
Bossuet recorre ao exemplo de
Nabucodonosor como o modelo de conquistador ambicioso:
Depois que Nabucodonosor rei de Ninive e da Síria havia debilitado e subjugado Arphaxad
rei dos medes, ‘seu império foi elevado e seu coração se enche: e ele envia a todos os
povos que habitavam na Cicília, à Damas, ao Líbano e o Carmel, aos árabes, aos galileus,
nas vastas planícies de Esdrelon, aos samaritanos, e aos arredores do Jordão, e a toda a
terra de Jessé até aos limites da Etiópia. Ele despacha seus enviados a todos esses povos
para obrigá-los a se submeter a seu poder. Mas essas nações [zelosas de sua liberdade]
reenviaram seus embaixadores de mãos vazias, e sem lhes render nenhuma honraria. Então
o rei da Síria entra em indignação, e jura que ele se defenderá contra todos os povos’, ou
antes que ele se vingaria de sua resistência. (...) E não contente de invadir tantos países que
não releve por nenhum direito, ele acredita nada empreender digno de sua grandeza, se ele
não se torna mestre de todo o universo. Esta é a conseqüência do caráter desse injusto
conquistador. ‘A palavra foi espalhada no palácio do rei da Síria, que ele se defenderia e se
vingaria.
630
Bossuet está se referindo ao fato de que após a França ter vencido a Espanha a
então considerada a maior potência européia, na Batalha de Rocroi em 1643, e após o
tratado de paz dos Pireneus assinado entre esses dois países em 1659, a França firmou-
se
em sua preeminência e Luís XIV como árbitro da Europa. Excessivamente confiante, por
ter um exército mais potente, Luís XIV invade os Países Baixos na Guerra da Devolução
(1667
-68) e depois na Guerra da Holanda (1672-78) como também toma Estrasburgo
anexando
-a ao território francês em 1681, e ataca o Palatinado em 1688 para reivindicar
629
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 324
-
325.
630
ibid.
137
um território a que seu irmão teria direito, por ser cunhado do Eleitor falecido. Em todos
esses empreendimentos de conquista Luís XIV sempre buscou mostrar aos franceses que
seu objetivo consistia simplesmente em defender as fronteiras do reino contra futuros
ataques dos inimigos, sobretudo do Imperador Leopoldo I. Além disso, Luís XIV tomava o
cuidado de justificar todas as suas conquistas mediante tratados que as legitimavam.
De fato, para manter sua preponderância na Europa Luís XIV não negligenciou o
poder da propaganda. Os secretários dos assuntos estrangeiros eram encarregados desta
tarefa. A propaganda era sempre retomada nos momentos em que os secretários
consideravam
-na necessária. Eles ordenavam a publicação de tratados expondo e
defendendo a política exterior do Grande Rei, como o tratado dos direitos da rainha Maria
Tereza, sua esposa, quando da Guerra da Devolução; os protestos contra os panfletos
holandeses no momento da invasão da Holanda; legitimações de empreendimentos à mão
armada no dia posterior à revogação do Edito de Nantes. Esses tratados franceses revelam
a preocupação do monarca com a opinião estrangeira e francesa como também a
repercussão dos panfletos holandeses contestando as ações de Luís XIV e de seus
repr
esentantes. Esses tratados também revelam a auto-satisfação do Grande Rei e de que
modo ele buscava se impor a toda a Europa. Apoiado nos tratados de Vestfália e dos
Pireneus que lhe serviam de alicerce sólidos ele alimentava e repetia aos franceses a idéi
a
de que nenhum poder do mundo poderia se igualar ao do monarca francês, idéia esta que
era repetida por seus representantes. Luís XIV passou toda a sua vida reivindicando este
inegável prestígio da realeza francesa. Ele jamais aceitou nem reconheceu que outro rei ou
o imperador tivesse um poder igual ao seu.
631
Levando em conta as palavras de Bossuet, é possível perceber que a estratégia
utilizada por Luís XIV, a elaboração de engenhosos tratados para justificar suas conquistas,
não surtia tanto efeito assim. Se a maioria dos franceses acreditava nela, havia exceções,
como é o caso de Bossuet, por exemplo. Os estrangeiros interpretavam-na como uma
invasão arbitrária, uma tentativa de domínio universal.
No livro nono da Politique, Bossuet adverte: “quando Deus parece conceder tudo
aos reis conquistadores, Ele lhes prepara um castigo rigoroso”.
632
De acordo com Bossuet,
o Senhor grandes quantidades de terras e mares a esses reis, mas Ele não as para que
eles sejam possuidores legítimos. “Por um secreto julgamento Ele os abandona em sua
631
Cf. MANDROU, op. cit., pp. 239
-
240.
632
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 326.
138
ambição para ocupá-los e invadi-los”. Assim, tais reis não deixam que “nada escape de
suas mãos”, acabam com toda a liberdade existente. Porém, “o retorno é terrível”, eles
serão castigados pela justiça divina; que o “‘Seu julgamento alcança até aos céus, e tem
perfurado as nuvens’”. Da mesma forma que destroem o resto do mundo serão destruídos
também. “‘O martelo que quebrou as nações do universo quebra ele mesmo’”. Novamente,
o rei Nabucodonosor é mostrado por Bossuet como
um tipo de conquistador ambicioso:
‘Dei todas as terras e todos os mares a Nabucodonosor rei da Babilônia, meu servidor’ [e
ministro de minhas justas vinganças]. Isto não quer dizer que ele os tem dado a fim de que
ele fosse o legítimo possuidor: isto quer dizer que por um secreto julgamento ele os tem
abandonado a suas ambições para ocupá-los e invadi-los. Nada escape de suas mãos: ‘e até
os pássaros do céu [isto é o que de mais livre] caíra’. Eis na aparência um favor bem
declarado: mas o retorno é terrível. O martelo que quebrou as nações do universo quebra
ele mesmo. O Senhor rompeu a vara da qual ele batia o resto do mundo de uma chaga
irremediável. Caio sobre ti, ó soberba, diz o Senhor dos exércitos: teu dia chegou, e o
tempo em que tu serás visitado [pela justiça divina]: Deus derrubará Babilônia, como ele
fez com Sodoma e Gomorra, e não lhe deixa nenhum recurso. Não mais remédio para
seus males: seu julgamento subiu até aos céus, e perfurou as nuvens’.
633
Desde a Guerra da Devolução até no
decorrer da Guerra da Liga de Augsburgo Luís
XIV conquistou vários territórios. Diante da situação de extrema miséria em que grande
parte dos franceses se encontrava durante a Guerra da Liga de Augsburgo ele somente
conseguiu findá-la mediante inúmeras concessões, entre as quais, teve de abrir mão de
grande parte dos territórios conquistados durante esta guerra. Tanto os franceses como os
estrangeiros interpretaram as concessões territoriais do Grande Rei como uma humilhação.
De fato, apesar de não ter sido derrotado na Guerra da Liga de Augsburgo, Luís
XIV saiu dela profundamente humilhado. Porém, a maior concessão, que deve ter sido
ainda mais humilhante para um monarca que acreditava na sucessão hereditária inerente ao
direito divino dos reis, foi ter de reconhecer o seu arquiinimigo protestante e usurpador do
trono inglês, Guilherme de Orange, como rei da Inglaterra
634
“e prometer de não mais
sustentar, mesmo secretamente, o rei Jaime Stuart exilado nele, e seu partido ‘jacobita’”.
Conforme observa Pierre Goubert, “um tal conjunto de concessões, tão sensíveis ao
orgulho real, ninguém poderia imaginar que se as fizesse um dia, quando as tropas de
Louvois, nove anos mais cedo, invadiram tudo. Por um reino que não havia sido vencido,
633
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 326
-
327.
634
Apesar da eleição de Guilherme de Orange pelo Parlamento ter sido legítima, Luís XIV e todos os
franceses defensores do absolutismo por direito divino o consideravam um usurpador.
139
que havia feito a guerra fora de suas fronteiras, a punição parece mesmo bastante
exagerada”.
635
Estas concessões de Luís XIV foram reprovadas pela maioria dos franceses. Vários
textos foram concebidos para censurar sua atitude. Se até a Guerra da Holanda ele contava
com o apoio da opinião pública, não podemos dizer o mesmo no decorrer da Guerra da
Liga de Augsburgo, após a Grande Fome de 1694-94 e, sobretudo, depois das concessões
feitas por ele para finalizar esta guerra.
Na concepção de Bossuet, Luís XIV só conseguiu empreender tais conquistas
porque Deus o permitiu, e ter de abrir mão das conquistas realizadas no decorrer da Guerra
da Liga de Augsburgo foi um castigo de Deus para humilhá-lo. Para Bossuet, Deus é o
verdadeiro rei que governa o céu e a terra. Sendo assim, os reis são apenas lugares-
tenentes, ministros de Deus no mundo dos homens. Deus transmite o Seu poder aos reis
para que eles governem em Seu nome. Em troca, os reis devem submeter-se a Ele, agir
segundo os Seus preceitos, as Suas leis. Do contrário, receberão os castigos de Deus que
lhes tira o poder, castigando
-
os, mostrando
-
lhes que são fracos e que sem Ele nada podem.
Nas palavras de Bossuet, acima, está embutida a idéia de que é Deus quem e tira os
impérios.
O providencialismo, uma idéia muito antiga de um Deus que dirige a história dos
homens, aparece com toda a sua força no pensamento político de Bossuet. Em sua
concepção é Deus quem dirige a política aqui na terra. Aos reis cabe somente fazer a Sua
vontade; qualquer deslize acarreta em graves conseqüências. Deus, ao ver Suas leis
violadas, lança os piores castigos aos reis e aos seus respectivos reinos. Na concepção de
Bossuet, os reis são os responsáveis por fazer com que reine a ordem no mundo, recaindo
sobre eles os mais cruéis castigos mandados por Deus, nos momentos em que deixam de
lado a sua missão. A concepção providencialista, no século XVII, tem como
desdobramento a noção, muito recorrente na Idade Média, de uma soberania
verticalizada. No entendimento de Bossuet, o príncipe que age de acordo com os preceitos
cristãos estabelece uma soberania vertical, atuando como uma espécie de elo de ligação
entre Deus e os homens; agindo corretamente, os reis atrairão a graça de Deus não somente
para eles, mas, sobretudo, para os seus súditos. De fato,
segundo
constata Dussault,
na
concepção de Bossuet, “Deus está sempre em ão, e os homens são apenas os executores
635
GOUBERT, op. cit., p. 245
.
140
de seus decretos”.
636
Conforme Touchard, na visão de Bossuet, “a história é uma espécie
de drama divino, o pensamento de Deus a realizar-se na terra; as revoluções são
‘destinadas a humilhar os príncipes’”.
637
Assim como A cidade de Deus de Santo
Agostinho, na
Politique
Bossuet demonstra que a história é obra da Providência divina.
No livro nono da Politique, Bossuet adverte que os príncipes ambiciosos e
conquistadores serão terrivelmente castigados por Deus. Bossuet mostra que os reis
conquistadores que provocam a queda de várias nações, consideram-se superiores,
desejando assemelhar-se a Deus, perturbam a terra, abalam reinos, isolam cidades inteiras,
“‘são mortos na glória’” e arrancados da terra “‘sem deixar posteridade’”. A sua morte
representará a alegria e alívio dos reis e príncipes que serão elevados. Esses reis que
perturbavam a terra terão seu orgulho precipitado nas profundezas do inferno e tod
os
zombarão deles:
‘Como tendes vós caído, belo astro que ilumina o céu como a estrela da manhã? Vós que
afligias as nações e dizias em vosso coração: subirei até o céu: elevar
-
me
-
ei sobre os astros,
tomarei assento sobre a montanha do templo onde Deus fi
xou sua morada ao lado do norte:
voarei sobre as nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. No entanto vos vejo mergulhar
nos infernos, no abismo profundo do túmulo. Aqueles que vos verão se abaixarão para vos
considerar nesse túmulo, e dirão em vos olhar: não é aquele que perturbava a terra, que
abalava os reinos, que fazia do mundo um deserto, que desolava as cidades e encerrava
seus cativos em calabouços? Os reis dos gentios são mortos na glória, e enterrados em seus
sepulcros: mas vós foi arrancado, e permanecido sobre a terra, como um ramo inútil e
impuro, sem deixar posteridade’. E um pouco mais adiante: ‘quando vós tiveres tombado
na terra, todo o universo permanecerá na maravilha do silêncio: os pinheiros mesmos se
alegrarão e dirão após vossa morte que ninguém os cortam mais [para construir vasos e
fazer máquinas de guerra]. O inferno foi perturbado por vossa chegada, e enviou os
gigantes diante de vós. Os reis da terra elevaram-se, e todos os príncipes das nações; e
todos vos dizem: que então! Vós est
ais ofendido como nós? Vós tendes tornado semelhante
a s? Vosso orgulho é precipitado no inferno: vosso cadáver jaz no túmulo: vós estais
deitado sobre a podridão, e vossa cobertura são os vermes’.
638
A Bíblia mostra que os reis violentos serão terrivelmente castigados por Deus. Os
reis sanguinários, perturbadores da paz no mundo perecerão, não viverão a metade de seus
dias. Neste sentido, Bossuet está procurando mostrar a Luís XIV os castigos que poderão
recair sobre ele se continuar insistindo em sua pol
ítica belicosa.
No livro nono da Politique, Bossuet cita as palavras de Jesus Cristo para defender
seus argumentos: “duas palavras do Filho de Deus, que humilham a falsa glória, e apaga o
636
DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 27.
637
TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 131.
638
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 331
-
332.
141
amor da conquista”. Segundo Bossuet, “não nada sobre essas expressões, que a
simplicidade dessas duas palavras do filho de Deus: ‘que serve ao homem conquistar o
mundo, se ele perde sua alma? E o que se em troca por sua alma?’” O objetivo de
Bossuet ao recorrer a este versículo da Sagrada Escritura, mostrando ao rei que desta
maneira ele não conseguiria a salvação de sua alma, era o de combater o seu maior vício: o
desejo de glória. Segundo Le Brun, este era um versículo que Bossuet comentava ao
escrever a Luís XIV em maio de 1675 e em exortá-lo a se converter (...); mas os conselhos
de M. de Condon eram então puramente morais: ele só tratava da vida privada do rei”.
639
Em sua Lettre au maréchal de Bellefonds, escrita em 1672, no momento em que
Luís XIV iniciara a guerra contra a Holanda, Bossuet agradeceu a Deus por não ter
permitido que o marechal de Bellefonds, seu amigo e confidente, fosse tentado pela falsa
glória:
Não nada que seja mais vão diante de Deus, nem mais criminoso, que o homem que se
glorifica de colocar os homens sob seus pés: acontece freqüentem
ente, em tais vitórias, que
a queda do vitorioso é mais perigosa que a do vencido. (...) Todos os presentes do mundo
são nocivos, (...) mas o mais perigoso de todos é a glória, e nada não abafa tanto a voz de
Deus, que fala ao interior, que o barulho dos l
ouvores (...) sobretudo quando estes louvores
têm aparentemente um motivo real, fazem encontrar a verdade nas bajulações as mais
excessivas. (...) Deus vem preservar de um grande mal nosso mestre e nosso inimigo...
640
Na verdade, a real preocupação de Bossuet era com os riscos que Luís XIV estava
correndo por estar se deixando tentar por este grande vício. No livro nono da Politique,
para aniquilar a falsa glória, Bossuet recorre à Bíblia e à Cidade de Deus de Santo
Agostinho para mostrar aos reis que como seus projetos são vãos, assim também o é a
recompensa recebida por eles:
E ainda, para arruinar de uma única palavra a falsa glória: ‘eles receberam sua
recompensa’. Eles choraram nos cantos das ruas: eles jejuaram: eles fizeram esmola.
Acrescentamos: eles exerceram suas grandes virtudes militares, tão laboriosas e tão
brilhantes, para fazer falar os homens: ‘em verdade, vos digo; eles receberam sua
recompensa’. Eles queriam que se falasse deles: eles estão contentes: fala-
se deles
por todo
o universo: eles gozavam desse barulho confuso do qual eles estavam embriagados: e vãos
que eles eram, eles receberam uma recompensa tão quanto seus projetos:
receperum
mercedem suam, vani vanam, como disse Santo Agostinho. Que de suor, que de trabalho,
dizia Alexandre [mais que de sangue derramado], para fazer falar os atenienses! Ele sentia
a vanglória dessa frívola recompensa: e ao mesmo tempo ele se nutria dessa fumaça.
641
639
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. 332.
640
BOSSUET, “Letre au maréchal de Bellefonds, 1672”, in
TRUCHET, op. cit., pp. 289
-
290.
641
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 332
-
333.
142
Na
Oraison Funèbre de Louis de Bourbon
, pronunciada em 1687, Bossuet recorre a
Santo Agostinho para demonstrar que de nada valem as glórias do mundo. Ele toma então
Alexandre como o exemplo de conquistador que se deixava guiar por esse sentimento:
Esse Alexandre, que ambicionava fazer rumor no mundo, conseguiu fazê-lo mais do que
esperava (...). Se recompensas foram necessárias às grandes ações dos romanos, Deus lhes
deu uma digna de seus méritos e de seus desejos: deu-lhes, como recompensa o império do
mundo, presente de nenhum valor. Oh! Reis! Humilhai-vos em vossas grandezas!
Conquistadores, não exalteis as vossas vitórias! Deus lhes como recompensa a glória
dos homens; recompensa que não chega até eles, que esforça-se de unir-se a quem? Talvez
às suas medalhas ou às suas estátuas desenterradas, restos dos anos e dos bárbaros; às
ruínas de seus monumentos e de seus trabalhos em luta com o tempo; (...). Eis o digno
prêmio de tantos trabalhos, e na realização de seus votos, a convicção de seus erros. Vinde,
saciai
-vos, grandes da terra, apoderai-vos, se puderes, desse fantasma de glória, seguindo
o
exemplo desses grandes homens que admirais. Deus, que pune deles o orgulho no inferno,
não lhes invejou, diz Santo Agostinho, essa glória tão cobiçada; e vãos, receberam uma
recompensa tão vã como os seus desejos; ‘receperunt mercedem suam, vani vanam
’.
642
Percebe
-se a crítica de Bossuet aos meios materiais utilizados por Luís XIV para
celebrar a sua glória. Ora, no Ancien Régime as vitórias guerreiras eram celebradas com
fogos de artifícios, luminárias em edifícios e até mesmo em cidades inteiras, poemas
laudatórios, cânticos de ação de graças e repicar dos sinos das igrejas! Os governantes
recorriam também a meios mais duradouros, como arcos de triunfo, edifícios
comemorativos, monumentos, exposição de armas imperiais, despojos de canhões,
medalhas comemorativas, quadros, tapeçarias e gravuras retratando cenas de batalhas.
643
Para comemorar suas vitórias, Luís XIV ordenou que se construísse em Versalhes
obeliscos com inscrições no estilo dos clássicos.
644
Os principais eventos e conquistas da
Guerra da Devoluç
ão foram celebrados em medalhas, tapeçarias, pinturas, sonetos, poemas
e histórias do reinado.
645
Na Guerra da Holanda, ‘a famosa travessia do Reno’ feita por
Luís XIV, em 1672, foi um evento real mitificado, representado sucessivamente por
diferentes meios de comunicação: foi celebrada em jornais, produzida em versos, em
pinturas, em esculturas e medalhas.
646
Durante esta guerra cada conquista era celebrada
com a ordenação do cântico do
Te Deum
. Ao final, em 1678, as conquistas da guerra foram
celebradas ao toque de tambores e trombetas, queima de fogos de artifício, salva de
canhões e a entoação do cântico do Te Deum em Paris e nas cidades das províncias.
642
BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 260
-
261.
643
Cf. HATTON, op. cit., p. 139.
644
Cf. ibid., p. 149.
645
BURKE, 1994, op. cit., pp. 84
-
87.
646
ibid., pp. 22, 88
-
89.
143
Somente em Paris, este cântico foi entoado por cinco vezes.
647
Durante a Guerra da Liga de
Augsburgo, apesar da crise financeira pela qual o Estado estava passando para bancá-la, os
fatos mais importantes foram celebrados em verso, prosa e uma história do reinado, assim
como por meio de pinturas, tapeçarias e medalhas. Ao todo foram cunhadas 45 medalhas
para narrar as batalhas e celebrar os territórios conquistados.
648
No início de seu reinado
pessoal, o Grande Rei mandou construir a suntuosa Praça das Vitórias para celebrar as suas
vitórias guerreiras. Várias estátuas eqüestres de Luís XIV vestido como Alexandre foram
instaladas na Praça das Vitórias e na Praça Vendôme em Paris, como também nas cidades
das províncias. Na concepção de Bossuet as coisas mundanas eram perecíveis, não tinham
valor algum diante de Deus. A única coisa que contava para Bossuet era o espiritual, a
obtenção da salvação da alma. Os reis somente a alcançariam resistindo às tentações deste
mundo, no caso de Luís XIV, ao seu amor desmedido pela glória.
Bossuet não apresenta os problemas políticos como individuais, mas em termos de
salvação. As condições de salvação para ele passam pela religião e a moral como também
pelo cumprimento dos deveres de estado. Bossuet determina os deveres de cada estado
como também as tentações e perigos próprios a cada um deles. Na questão social, ele
analisa as condições de salvação para os ricos e para os pobres. No caso dos reis, Bossuet
mostra que, apesar das pesadas responsabilidades e das perigosas tentações que os
rondam, meios que lhes são oferecidos para alcançar a salvação. Isto o significa que
o seu pensamento político necessita de vigor.
649
Conforme constata Truchet, “o exame das
condições de salvação para os ricos e para os pobres o conduz a promover uma luta
enérgica contra a miséria, enquanto o das condições de salvação para um rei desemboca
sobre u
ma série de tomadas de posições relativas a problemas de governo. A política como
tal não é negligenciada, mas ela permanece subordinada a fins religiosos”.
650
O príncipe deve ser humilde
Uma virtude que se constitui em um valor moral recomendado por Bossu
et aos reis
cristãos é a humildade. Na Oraison Funèbre de Louis de Bourbon, Bossuet alerta que os
reis não podem se deixar tentar pelas glórias que o mundo lhes oferece. Eles devem ser
647
BURKE, 1994, op. cit.,
pp.
88, 90, 94, 97.
648
Cf.
ibid.,
pp. 122, 127.
649
Cf. TRUCHET, op. cit., pp. 32
-
33.
650
ibid., p. 33.
144
humildes diante das grandezas do mundo, jamais podem exaltar os seus feitos e glórias.
Observa Bossuet, ao referir-se ao regresso do príncipe de Condé à corte após a vitória em
Rocroi,
eis (...) em um jovem príncipe vitorioso, alguma coisa que não é menos bela do que a
vitória. A corte, que lhe preparava aplausos merecidos, ao seu regresso, foi surpreendida
pelo modo como os recebeu. (...) Se os outros ousavam louvá-lo, ele repelia os seus
louvores como ofensas, e, avesso à adulações, temia até a sua aparência. Tal era a
delicadeza, ou antes, tal era o valor desse príncipe. Por isto tinha ele por máxima [escutai,
é a máxima que faz os grandes homens]: nas grandes ações é necessário pensar unicamente
em bem agir, e deixar vir a glória depois da virtude. (...) a falsa glória não o tentava; tendia
ao verdadeiro, ao grande. Eis porque punha sua glória ao serviço do rei e à felicidade do
Estado. (...) Como é belo, depois das armas, saber gozar dessas amenas virtudes e dessa
glória pacífica, que não se divide com os soldados nem com a fortuna, em que tudo
encanta e nada fascina, em
que a visão não é perturbada nem pelo som das trombetas, nem
pelo estampido dos canhões, nem pelos gritos dos feridos; em que o homem só aparece tão
grande, tão respeitado, como quando ordens, e tudo obedece a sua palavra! (...) Oh!
Reis! Humilhai-vos em vossas grandezas! Conquistadores, não exalteis as vossas
vitórias!
651
Aqui, Bossuet está censurando as salvas de canhões, queimas de fogos de artifício,
toque de tambores e trombetas, enfim, todas as festividades promovidas por Luís XIV
após ter alcançado a vitória em suas guerras de conquista. Bossuet está buscando lhe
mostrar que para salvar a sua alma ele deve renunciar a todas essas expressões de louvores
que demonstram a sua grandiosidade. Segundo Truchet, Bossuet diz que o rei deve
esforçar
-se para ser humilde e “desconfiar constantemente das tentações de orgulho que
sua grandeza e as bajulações de seu entorno não faltam de lhe inspirar. Essas tentações e
seus remédios foram um dos maiores temas da predicação de Bossuet na corte, assim
como na
Politiq
ue
: os reis somente se salvarão, e com eles seus povos se eles tiverem por
sua vez o justo sentimento da sua grandeza e de lhes negar”.
652
Conforme observa Luís XIV, nas
Memórias
, as diversões públicas têm imensa
importância política. Além de criar um vínculo de familiaridade com os súditos, levando-
os a amar e a submeter-se de boa vontade ao seu rei, servem também para mostrar aos
estrangeiros a riqueza e grandiosidade do reino, enfim o poder daquele que o rege,
levando
-
os assim a respeitá
-
lo mais ainda:
651
BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 243, 252, 260.
652
TRUCHET, op. cit., p. 43.
145
Um
príncipe e um rei de França devem considerar algo mais nas diversões públicas, as
quais não são tanto as nossas como as da nossa corte e do nosso povo. (...) A experiência
demonstrou que este método é para nós bom e útil, dado que não nos séculos passa
dos
um império de tão grande duração como este, sem que pareça próximo do fim. (...) Esta
prazenteira sociedade que dá às pessoas da corte uma honesta familiaridade conosco,
comove
-os e encanta-os muito mais do que quando se lhes possa dizer. Por outro lado, o
povo compraz-se do espetáculo, que no fundo tem sempre por finalidade o seu prazer; e
todos os nossos súditos em geral estão satisfeitos ao ver que amamos o que eles amam ou
aquilo que destacam. Com isso retemos o seu espírito e coração, algumas vezes
talvez mais
fortemente do que mediante recompensas e benefícios; e com referencia ao estrangeiro,
quando um Estado florescente e bem ordenado, que consome em festas quanto se possa
considerar supérfluo, têm uma vantajosa impressão de magnificência, de poder, de riqueza
e de grandeza.
653
Isto explica as festividades promovidas por Luís XIV para celebrar as suas
conquistas, mesmo quando a maioria dos seus súditos se encontrava em extrema miséria.
No livro nono da Politique, Bossuet afirma que um dos traços dos conquistadores
ambiciosos é atribuir seus impérios e suas vitórias a si mesmo, sem reconhecer que foi
Deus quem os ajudou:
Quando com um orgulho exagerado, sem sonhar que há um Deus, atribuindo suas vitórias a
si mesmo, a sua força e a seus conselhos, e que parece dizer em seu coração: ‘eu sou um
Deus’ e faço a mim mesmo, como está escrito no profeta’. Ou, para repetir as palavras de
um outro Nabucodonosor: ‘esta não é a grande Babilônia que construí na força de meu
poder, e no brilho de minha glória,
para ser o assento de meu império?’ Sem sonhar que
um Deus, a quem se deve tudo. Tal é a característica dos conquistadores ambiciosos, que
embriagados do sucesso de suas armas vitoriosas, se dizem os mestres do mundo, e que
seus braços são seu deus.
654
A este respeito, em Elévations sur les Mystères diz Bossuet que, “o demônio
inquieta as paixões e as ambições dos homens dando fundamento a maior parte das
conquistas e dos impérios que foram produzidos. Não é verdade, entretanto, que ele os
impérios, porque as violentas paixões dos homens têm o efeito que Deus quer e que é
ele quem dá a vitória”.
655
A intenção de Bossuet ao afirmar que os reis têm que ser humildes mesmo após
terem alcançado a glória na defesa de seu reino é a de mostrar que esta glória só foi
alcançada pelos reis por terem recebido a ajuda de Deus. Sem esta ajuda, jamais teriam
vencido. Sendo assim, não podem exaltar a si mesmos, pois foi Deus quem lutou por eles.
653
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 54
-
56.
654
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 326.
655
apud LE
BRUN,
in BOSSUET, 1967,
op. cit., p. 331.
146
Na concepção de Bossuet, a própria força e coragem são transmitidas por Deus aos reis
nos campos de batalha, entregues a si mesmos eles nada são e nada podem.
Luís XIV também acreditava que os seus exércitos somente alcançavam a vitória
devido a ajuda de Deus. Em sua carta a M. de La Haye ele diz, “a glória de todas estas
vitó
rias, com que Deus se compraz em favorecer a justiça dos meus exércitos”.
656
Contudo, ele se esquecia disso no momento em que celebrava as suas vitórias. Fato
curioso, todas as vitórias conquistadas pelos generais de Luís XIV eram atribuídas a ele.
A humildade também é uma virtude valorizada por Luís XIV, em suas
Memórias
.
Segundo ele, o posto de rei por si serve para mostrar que são superiores aos demais,
mas que devem ser humildes. Para ele, somente podem se mostrar humildes os que são
grandes e que p
odem vir a se envaidecer com isto. No entendimento do monarca, este é um
vício do qual têm que tomar todo o cuidado para evitá-
lo:
Nas minhas Memórias, tento sempre, e sempre tentarei vivificar o vosso valor, mas não
elogiá
-
lo. Se bem que exista uma legít
ima altivez na nossa classe, não são menos louváveis
certa modéstia e humildade. Não penseis, meu filho, que estas virtudes não foram feitas
para nós, pelo contrário, pertencem
-nos mais apropriadamente do que ao resto dos homens.
Pois, ao fim e ao cabo, os que não têm nada de eminente pela fortuna ou pelo mérito, por
pequena que seja a opinião que tenham de si próprios, nunca podem ser modestos nem
humildes; e estas qualidades pressupõem necessariamente em quem as possui alguma
elevação e alguma grandeza da
s quais se possa envaidecer. Nós, meu filho, a quem todas as
coisas parecem inspirar este defeito tão natural nos homens, nunca chegaremos a ter
cuidado suficiente para nos defendermos dele. Se vos posso explicar o meu pensamento,
parece
-me que devemos ser ao mesmo tempo humildes por nós próprios e altivos pelo
lugar que ocupamos.
657
Certamente, Bossuet defende a humildade dos reis com muito mais intensidade que
Luís XIV. Este, mesmo dizendo ao filho que os reis devem ser humildes, não esconde, em
seus argumentos, a grandeza e o valor que os monarcas possuem perante os demais. De
acordo com Pierre Verlet, “o rancor e o orgulho têm a reputação de ter sido as principais
atividades da conduta de Luís XIV. Conhece-se seus rancores acumulados depois da
Fronda”.
658
A natureza de seu orgulho aparecia em seu desejo de glória. Aliás, o desejo de
glória era um sentimento que se fazia constante em Luís XIV. Segundo demonstra Louis
Bertrand, no primeiro dia após a morte de Mazarino “Luís XIV teve completa visão do que
era,
em seu tempo, um rei da França, da extensão de sua autoridade, do campo imenso e
656
LUÍS XIV, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 101.
657
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 36.
658
Cf. VERLET, Louis XIV. In: _____. Versailles. Paris: Arthème Fayard, 1961. (Collection les Grands
Études Historiques), p. 132.
147
magnífico que se abria ao seu espírito de glória”. Neste momento, ele “sentiu como um
acréscimo de todo o seu ser, uma exaltação indizível de sua vontade de poder”.
659
Devemos
levar em conta que Bossuet e Luís XIV ocupavam postos diferentes. Enquanto
teólogo é claro que Bossuet valorizava mais as virtudes religiosas do que Luís XIV, quem
segurava as rédeas do poder pessoalmente. Sabemos que uma grande diferença entre
pensar a
política e colocá
-la em prática.
A glória que Luís XIV tanto almejava estava vinculada com a imagem de herói que
se cultivava. Este sentimento inseria-se em um momento de inquietude, de incertezas,
próprio do Barroco. Segundo Corvisier, “os historiadores reconhecem hoje que o barroco
não é, especificamente, a arte da Contra-Reforma. É a revolta da sensibilidade e da
espontaneidade contra as regras. (...) O barroco é capaz de exprimir, simultaneamente, o eu
desmedido ou contraditório e os impulsos desordenados do subconsciente”.
660
Em uma
sociedade aristocrática como a França do século XVII, a glória era extremamente
valorizada. Ao herói cabia enfrentar todos os obstáculos para alcançá-la. Devia sacrificar
todas as paixões que se opunham a ela. No século XVII,
a moral do herói vai além do ideal
dos renascentistas e do ideal nobre, cavalheiresco. Nesse período, o que é mais valorizado
é o orgulho por ter alcançado o poder.
661
Bossuet sempre se mostrou um crítico severo aos reis que faziam a guerra para
satisfazer o seu desejo de glória e de conquista. Esta crítica aparece em vários de seus
escritos. Não podemos nos esquecer que a maior preocupação de Bossuet era com Luís
XIV, pois ele sabia que a glória e a conquista eram cios que rondavam sobre o Rei Sol.
659
BERTRAND, op. cit., p. 281.
660
CORVISIER, op. cit., p. 133.
661
Conforme percebe Mousnier, “o barroco favoreceu provavelmente uma crise geral da razão que se
manifesta primeiro na moral. Nesta sociedade, onde o indivíduo, incessantemente ameaçado, precisa
afirmar
-
se como inimigo perigoso, nesta sociedade ainda aristocrática, onde o ideal é o nobre, o soldado por
excelência, nesta sociedade onde os desequilíbrios favorecem a desordem do eu, e, portanto, os
arrebatamentos do orgulho, o homem virtuoso é o virtuose, o herói, poder e glória. O dever consiste em
contentar a glória. Esta consiste em observar o que corresponde às regras da honra social que é a honra
feudal, nobre. Ela conduz ao sacrifício das paixões contrárias a esta honra (...). A Glória transfor
ma
-se, pois,
numa exigência íntima, numa lei interior. É preciso vencer não os obstáculos exteriores, mas também
dentro de si próprio, as paixões, o medo, a timidez e a ternura. (...) O herói é aquele que prestou a si mesmo o
juramento de jamais desanimar na procura da glória, indo até o sacrifício de si próprio. (...) Mas este
sacrifício é o das outras paixões à paixão suprema, o orgulho. Esta virtude é a afirmação do indivíduo.
Conforme o grito de Medéia: ‘numa tão grande desgraça, o que vos resta? Eu’. (...) o herói busca o belo, o
ilustre, o extraordinário, o ‘sem exemplo’. (...) O herói vai ao gigantesco e ao desmesurado. A moral do herói
é, sem dúvida, função de uma sociedade aristocrática, mas segundo parece, no século XVII ultrapassa o ideal
cav
alheiresco e o ideal da Renascença, visa não tanto o desabrochar do homem em todas as suas atividades e
o seu êxito em todas as formas de beleza, como a satisfação do orgulho pelo poderio, sendo mais nervosa,
mais tensa, vibrante de uma inquietude que é no fundo um aspecto do barroco. MOUSNIER, 1973, op. cit.,
pp. 210-
211.
148
Conform
e percebe Le Brun, de longa data Bossuet tinha criticado o amor da glória e das
conquistas: desde 1672 ele confessava ao marechal Bellefonds seus temores de que Luís
XIV fosse atordoado pelo ‘barulho
dos elogios’”.
662
Ao considerar um cio a glória, que era encarada por seus contemporâneos como
uma das maiores virtudes a serem almejadas pelos príncipes, Bossuet está se mostrando um
teólogo político que para alcançar seus objetivos luta até mesmo contra as idéias de seu
tempo. Isto não causa estranheza, pois sabemos o quanto ele era defensor das tradições.
Bossuet refuta o ideal de poder e de grandeza e defende o ideal de moderação. Critica os
reis que se deixam levar pela paixão e pelas vertigens do poder. Por meio do enaltecimento
da monarquia absolutista e da sua constante preocupação com a consciência moral do
soberano, segundo Le Brun, Bossuet “espera escapar do duplo perigo do maquiavelianisno
real e de uma política de liberdade”.
663
No livro décimo da
Politique
, de 1701, Bossuet busca mostrar que os reis devem se
esquecer de sua grandeza e se mostrarem humildes diante de Deus. Os reis devem seguir o
exemplo de Jesus Cristo que quando viveu na terra tinha tudo para engrandecer-se, mas
preferiu viver humildemente para deixar o exemplo à posteridade:
É preciso aqui lembrar que o fundamento de toda a doutrina cristã, e a primeira beatitude
que Jesus Cristo propôs ao homem, está estabelecido nessas palavras: ‘bem aventurados os
pobres de espírito, porque a eles pertence o reino dos céus’. Expressamente ele não diz:
Bem aventurados os pobres: com efeito, como não se pudesse ser salvo nas grandes
fortunas. Entretanto ele disse: Bem aventurados os pobres de espírito, isto é, bem
aventurados os que sabem se desapegar de suas riquezas; se despojar diante de Deus por
uma verdadeira humildade. O reino do céu é a este preço: e sem esse despojamento
interior, os reis da terra não terão parte no verdadeiro reino, que sem dúvida é aquele dos
céus. Nada convence mais a Jesus Cristo, que começar por essa sentença o primeiro
sermão
em que ele queria, por assim dizer, dar o plano de sua doutrina. Jesus Cristo é um Deus
rebaixado: um rei descido de seu trono: que quis nascer pobre, de uma mãe pobre, a quem
ele inspira o amor da pobreza e da baixeza, desde que ele a escolheu por sua mãe. ‘Deus,
disse ele, olhou a pequenez, a baixeza de sua serva’. Essa não é somente a virtude dessa
mãe admirável que ele escolheu para seu filho, mais ainda a pequenez de seu estado. É
porque ela acrescenta logo após: ‘ele dissipou aqueles que se orgulhavam em seu coração:
ele destituiu os poderosos de seu trono, e ele elevou os pequenos e os humildes: ele encheu
de bens aqueles que tinham fome [aqueles que estão na penúria, na indigência], e ele tem
mandado de volta os ricos com as mãos vazias’. A divina mãe exprime por essas poucas
palavras, todo o desígnio do Evangelho. Um rei como Jesus Cristo, que nada quis guardar
da grandeza exterior de tantos reis seus ancestrais, não de propor outra coisa em vir ao
mundo, que rebaixar os poderosos a seus olhos, e elevar os humildes de coração aos
mais altos lugares de seu reino.
664
662
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. 331.
663
ibid.,
p. XXX.
664
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 446
-
447.
149
Na concepção cristã, os reis devem seguir os exemplos de Cristo para assim
estabelecer o Seu reino na terra. Como observa Alain Guéry, para os cristãos, o papel
daquele que governa continua sendo a manutenção, ou estabelecimento onde ele não
existe, do reino do Cristo sobre a terra, por uma política e uma legislação conforme os
mandamentos e os exemplos que Ele deu”.
665
Segundo a concepção cristã, a humildade era
uma das virtudes a serem cultivadas pelos príncipes cristãos. No século XVI, esta virtude,
como todas as virtudes religiosas, foi repudiada por Maquiavel. A glória do príncipe, na
época da Renascença, tinha sido extremamente valorizada e defendida por ele, em todas as
obras
em que trata do poder dos governantes. Em contraposição o Bispo de Meaux
defende a humildade, sendo este um meio utilizado pelo predicador para refutar as idéias
do autor florentino.
Afinal, o príncipe de Bossuet devia diferenciar-se de um déspota ao estilo oriental,
de um tirano descrito por Aristóteles e mais tarde por São Tomás de Aquino, e do
“príncipe novo” apresentado por Maquiavel em O príncipe, como também em A arte da
guerra
e em
A vida de Castruccio Castracani
.
666
Na França do século XVII, o príncipe tinha o seu poder limitado por freios morais.
Bossuet como outros pregadores, lembrava
-
lhe sempre que por mais divino que fosse o seu
poder, este o deixava fraco, pecador e mortal, pois suas responsabilidades diante de Deus
se tornavam maiores que às de seus súditos.
667
Uma das características da autoridade real,
defendida por Bossuet, era de que ela era submissa a razão. Ao afirmar isto Bossuet estava
advertindo ao príncipe que ele devia agir com razão e inteligência e jamais agir segundo
seus impulsos e caprichos.
668
Neste sentido, o papel da razão era discipliná-lo: Conforme
observa Chevallier, “a razão do século, ordenadora, mediadora, senhora das paixões,
razão
disciplina
(...). É ela o apanágio do príncipe legítimo, que não poderia proceder por
caprich
o nem obedecer a impulsos desregrados. Razão tão sábia, tão equilibradora, na
medida em que sabe, em certas ocasiões imprevisíveis, apagar
-
se”.
669
Na
Politique
, Bossuet cita abundantemente os textos bíblicos. Neste aspecto ele foi
muito influenciado por Grócio, haja vista que este autor também citava grande parte dos
665
GUÉRY, Alain. “Le roi est Dieu. Le roi et Dieu”. In: BULST, Neithard; DESCIMON, R
obert;
GUERREAU, Alain.
(Orgs.).
L’État ou le Roi
:
Les fundation de la modernité monarchique en France (XIV-
XVII siècles).
Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1991,
p. 28.
666
Cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 382.
667
Cf. ibid., p 383.
668
Cf
. BOSSUET, 1967, op. cit., p. 114.
669
CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 383.
150
textos bíblicos em suas obras.
670
A tradição cristã foi a maior influência da cultura de
Bossuet. Quando diz o Santo Espírito ele está se referindo à Escritura. A maior
originalidade de sua cultura cristã foi a constante referência à Bíblia, pois os católicos a
liam muito pouco nesta época.
671
Recordemos que ele a descobriu no gabinete de seu pai;
foi incentivado a nutrir-se dela por Nicolas Cornet, seu professor na época em que fez
teologia no Colégi
o de Navarra, e assim meditou
-
a pelo resto de sua vida.
Bossuet fundamenta a
Politique
na Sagrada Escritura. Ele recorre a Ela devido a
considerar o que n’Ela está contido como a mais pura expressão da verdade. Conforme
constata Gustave Lanson, a este respeito, “se ele encontrou na Escritura justamente seu
sistema, e não em outro, não é porque ela o contém antes que um outro; mas era aquele que
ele queria perceber, porque ele o julgava verdade de uma verdade por sua vez racional e
empírica”.
672
De acordo com Truchet, “para Bossuet tudo o que contém na Escritura
é
verdade (...) e uma verdade que vale sobre todos os planos. (...) para Bossuet, a Bíblia,
fonte da verdade religiosa, é em outra, fonte de verdades incontestáveis em ciência, em
história e em políti
ca”.
673
É importante ter claro que apesar do título da
Politique
dar a
impressão de que a tese da obra foi tirada da Sagrada Escritura, nesta obra Bossuet não se
deixou guiar por Ela. Pelo contrário, Bossuet compôs toda a tese da
Politique
e somente
recorre
à Escritura para fundamentá-la. Segundo constata La Broise, a este respeito, “esta
Politique
não é tão exclusivamente tomada da Escritura Santa como o título parece indicar.
O plano, as teses principais, em uma palavra todo o quadro da obra, é arranjado pelo autor
e não lhe é imposto pelos escritos sagrados. uma grande diferença entre a
Histoire
universelle
e a
Politique
. Lá, Bossuet é conduzido e dominado pela Escritura; aqui, ele
concebe seu assunto por ele mesmo e aplica a Escritura à expressão de suas próprias
idéias”.
674
Contudo, conforme ressalta Truchet, não podemos exagerar, “a Bíblia pesa
muito pesado sobre esta
Politique
”.
675
No ano em que concluiu os seis primeiros livros da
Politique
, na carta em que
escreveu ao papa Clément XI, em 8 de março de 1679, Bossuet lhe dizia com muito
entusiasmo que a Bíblia era o melhor lugar para se encontrar, entre outras coisas, as
máximas sobre os governos, a melhor maneira de se empreender uma guerra:
670
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 323.
671
Cf. TRUCHET, op. cit., pp. 15
-
16.
672
LANSON, Gustave.
Bossuet
. Paris: 1890, p. 189.
673
TRUCHET, op. cit., pp. 28
-
29.
674
LA BROISE, op. cit., p. 235.
675
TRUCHET, op. cit., p. 28.
151
Descobrimos o segredo da política, as máximas do governo, e as fontes do direito, na
doutrina e nos exemplos da Santa Escritura. Nela se não somente com que piedade é
preciso que os reis sirvam a Deus, ou curvar-se por tê-lo ofendido, com que zelo eles são
obrigados a defender a da Igreja, a manter seus direitos e a escolher seus pastores; mas
ainda a origem da vida civil, como os homens começaram a formar sua sociedade, com que
habilidade é preciso manejar os espíritos, como é preciso formar o desejo de conduzir uma
guerra, não empreendê
-
la sem bom motivo, fazer
uma paz, sustentar a autoridade, fazer leis
e dirigir um Estado. O que faz ver claramente que a Escritura Santa ultrapassa tanto em
prudência como em autoridade todos os outros livros que dão preceitos para a vida civil, e
que não se vê em nenhum outro lugar máximas tão seguras para o governo.
676
Apesar de grande parte dos textos bíblicos serem citados por Bossuet em sua
Politique,
ele recorre particularmente ao Antigo Testamento. Pois, ao contrário do Novo
Testamento que oferece poucos textos, o Antigo Testamento oferece vários livros
históricos e inúmeros preceitos relativos às instituições, ao governo, à justiça, à guerra,
etc.
677
Na
Politique
, sobretudo no livro nono, Bossuet procura dar lições aos príncipes do
século XVII, particularmente em Luís XIV, por meio de exemplos de episódios bíblicos.
Ele traz as conseqüências dos atos dos reis da antiguidade para o presente, ignorando todo
o tempo transcorrido e as mudanças que lhe são próprias, a evolução dos espíritos e dos
costumes não é levado em conta por Bossuet. Conforme percebe Truchet, a este respeito,
em toda a obra “os inconvenientes de uma exegese muito literal e muito voltada para o
Antigo Testamento”, mas é sobretudo no livro nono que isto é mais visível.
678
Bossuet
“considera as particularidades da história judia e de instituições descritas no Antigo
Testamento como tirando definitivamente a conseqüência, o que implica freqüentemente a
afirmações de uma extrema
acarrete
”.
679
Além da Bíblia, vimos que Bossuet também
recorre ao padre da Igreja por quem
nutria uma grande admiração, Santo Agostinho.
Para melhor compreendermos o pensamento político de um autor devemos atentar
para a data em que a sua obra foi escrita, a quem ela se destina e quais as suas intenções.
Devemos considerar as idiossincrasias do autor, como também levar em conta que ele está
interagindo com os problemas de seu tempo. Por meio de sua obra, ele procurava
responder os problemas que se apresentavam diante dele buscando resolvê
-
los e quem sabe
intervir em algo que, em seu entendimento, está para a acontecer. Precisamos levar em
conta também que muitas vezes o tema elegido por nosso autor foi objeto de reflexão de
676
apud LE BRU
N, in BOSSUET, 1967, op. cit.,
p. XII.
677
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 29.
678
Cf. ibid., p. 49.
679
ibid., p. 29.
152
pensadores anteriores, sendo assim, ele pode estar de alguma forma dialogando com a
tradição.
Luís XIV concebeu as suas M
emórias
na década de 1660, a primeira década de seu
reinado pessoal, objetivando instruir o filho na difícil arte da política. As terríveis
recordações da Fronda levaram-no a buscar aumentar e a celebrar a sua glória e poder em
detrimento da nobreza. Na década de 1660, por meio de Colbert, Luís XIV reviveu ou
fundou inúmeras academias, reunindo nelas artistas e intelectuais para que estes
utilizassem todo o seu poder criativo para exaltar a sua glória tanto na França como no
estrangeiro.
As
Memórias
foram escritas na fase áurea do absolutismo francês, em que o poder
de Luís XIV tinha aumentado consideravelmente em detrimento dos Habsburgos da
Espanha e da Áustria. Não podemos nos esquecer também que foi nesta época que Le
Tellier e seu filho Louvois transformaram o insignificante exército francês no exército
mais potente da Europa, para não dizer do mundo. As guerras de conquista de Luís XIV
também podem ser entendidas como uma forma de reforçar as fronteiras da França para
assim se prevenir de futuros ataques, particularmente do seu primo-cunhado e grande
inimigo o Imperador Leopoldo I, o Habsburgo da Áustria. Luís XIV se preocupava com a
honra de sua família e por isso queria deixar ao seu sucessor um poder maior que o seu. No
passado, a sua família teve laços de parentesco com importantíssimos reis de diversos
lugares da Europa, o que explica o seu olhar mais amplo e a constante reivindicação de
territórios europeus. Além disso, ale compartilhava da crença arraigada na França de que
os reis franceses eram os mais importantes do universo, portanto, não deviam se rebaixar a
nenhum outro.
Bossuet sempre foi muito modesto. Era comum, após o pronunciamento de seus
trabalhos em público, recolher-se imediatamente, como uma forma de se refugiar dos
aplausos. De acordo com Sainte-Beuve, sem dizer uma palavra sequer, a respeito do
sucesso que tinha obtido, ele rendia “glória a Deus de seus dons e de suas misericórdias”.
Ele não se orgulhava disso, pois “ele se considerava apenas como um órgão e um canal da
palavra”.
Devido a esta modéstia, Bossuet não pode ser considerado um homem de letras,
“no sentido ordinário desse termo”, pois os homens de letras do século XVII, um século
153
sem calma, no seio de uma atmosfera aquecida, onde tudo excita e inflama”, se
vangloriavam
de seus talentos.
680
Apesar de desde muito jovem ter conhecido a fama, a sua moderação sempre foi
mantida. Como observa Sainte-Beuve, “Bossuet não é um autor, é um bispo e um doutor”.
Bossuet somente escrevia ou imprimia seus textos diante da necessidade
blica,
objetivando instruir ou refutar, e jamais com o desejo de obter o sucesso por meio de seus
escritos. Desta forma, “se o motivo cessava, ele suprimia ou ao menos ele punha na gaveta
seus escritos”.
681
Segundo o seu secretário Le Dieu, “não havia nada mais importante a
seus olhos que a defesa da Igreja e da religião”.
682
Bossuet somente publicou algumas de
suas obras por julgá-las úteis e jamais por vaidade literária.
683
De acordo com Le Dieu,
inúmeras vezes Bossuet nos disse: “‘não compreendo como um homem de espírito tem a
paciência de fazer um livro pelo único prazer de escrever...’ Esta foi sua conduta de
somente escrever e imprimir por necessidade”.
684
Por esse motivo é que a maioria de seus
escritos somente foi publicada após sua morte.
685
O livro nono da P
olitique
foi concebido em 1701, após as inúmeras guerras de
conquista de Luís XIV, a revogação do Edito de Nantes e a Guerra da Liga de Augsburgo.
Num período em que a política expansionista de Luís XIV vinha sendo muito criticada
pelos inimigos estrangeiros assim como no interior do reino. Em que os protestantes
refugiados da França se uniram aos protestantes estrangeiros para minar o absolutismo de
Luís XIV. A própria Guerra da Liga de Augsburgo foi uma conseqüência da união dos
europeus contra ele. O liv
ro nono da
Politique
foi redigido num momento entre guerras em
que a França estava se refazendo economicamente e a questão da sucessão espanhola era o
assunto do momento em toda a Europa. Apesar de ter aceitado o testamento de Carlos II e
de ter reconhecido o neto como Filipe V, rei da Espanha, contrariando a cláusula do
testamento que estabelecia que o seu neto que assumisse o trono da Espanha teria de
renunciar ao trono francês, para impedir a união dos dois reinos, Luís XIV anunciou
oficialmente que Filipe V continuava a ser herdeiro do trono francês, o que deixou os
governantes europeus profundamente indignados com a sua arrogância. Além disso,
contrariando o tratado de paz de Ryswick, de 1697, os exércitos de Luís XIV tinham
680
Cf. SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., pp. 75
-
77.
681
ibid.,
p. 76.
682
apud SAINTE
-
BEUVE, 1928, op. cit., p. 76.
683
Cf. CALVET, op. cit., p. 295.
684
apud CHARBONNEL, op. cit., p. 94.
685
Cf. DUSSAULT, in BOSSUET, 1874, op. cit., p. 27.
154
invadido os Países Baixos e
prendido as tropas holandesas que estavam ocupando as praças
da Barreira, para forçar a República Holandesa a reconhecer o seu neto como soberano dos
Países Baixos espanhóis; ato este que irritou os Estados Gerais, ainda mais por que o
Grande Rei se recuso
u a dar satisfação aos holandeses. Tudo isso poderia desencadear uma
outra guerra da Europa contra a França e Bossuet tenciona impedi
-
la a qualquer preço.
O Bispo de Meaux tinha inúmeros motivos para criticar as guerras de conquista de
Luís XIV. Ele não s
e preocupava apenas com os franceses, mas com a humanidade de uma
forma geral. Certamente, Bossuet se sensibilizou com o sofrimento dos habitantes do
Palatinado e de Heidelberg quando das devastações e incêndios feitos durante a Guerra
da Liga de Augsburgo pelas tropas francesas, por ordem de Luís XIV. Essa guerra
significou nove anos de extrema miséria para grande parte dos franceses. Além disso, as
conseqüências da política belicosa de Luís XIV, como incêndios, pilhagens, devastações e
miséria, foram profundamente criticadas tanto na França como no estrangeiro. Tais críticas
eram prejudiciais a sua imagem de
Rei Cristianíssimo
e, pior que isto, ao absolutismo, haja
vista que os críticos mostravam-no como um regime arbitrário. Neste sentido, por ser o
ma
ior defensor do absolutismo francês no século XVII, Bossuet procurava defender a
forma de governo que, em sua concepção, era a melhor forma de governo possível.
A
Águia de Meaux procurou fazer isto por meio de lições de moral em Luís XIV,
mostrando as desvantagens das guerras de conquista, aconselhando-o a não empreendê-
las.
Bossuet acreditava que, como ministros de Deus na terra, os reis que não agissem de
acordo com os preceitos de Deus atrairiam os Seus castigos não somente para eles, mas
para todo o seu reino. Na mentalidade dos franceses do Ancien Régime, as catástrofes
ocorridas na natureza eram entendidas como sendo o castigo de Deus pelos desvios dos
reis e do seu povo. Bossuet também se importava com a vida espiritual de Luís XIV. Em
seu entendimento, se o monarca continuasse valorizando a glória e deixando de cultivar a
humildade ele iria para o inferno, por isso Bossuet esforçava-se para mostrar-lhe o
caminho da salvação: aconselhando-o a se afastar do amor à glória e cultivar a humildade,
a virtude oposta a esse vício. Ao romper com o pensamento político ocidental, Maquiavel
desprezou as virtudes religiosas, como a humildade. Sendo assim, ao chamar a atenção de
Luís XIV de que esta era uma das maiores virtudes religiosas a serem cultivadas pelos
príncipes cristãos, Bossuet está dando continuidade à tradição cristã e se afastando das
idéias do autor florentino, isto é, do pensamento político moderno.
155
Fato importante é que, na segunda metade do século XVII, no livro anteprimeiro da
sua célebre
Histór
ia do Futuro, o padre Antônio Vieira também refletiu a respeito da
guerra. Aliás, este é o tema principal deste livro.
Antônio Vieira: um Bossuet luso
-
brasileiro
Nascido em Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608, Antônio Vieira parte com os pais
para a Bahia em 1614, com apenas 6 anos de idade. Na Bahia, ele reside em Salvador,
onde o seu pai desempenha funções de escrivão. Antônio Vieira fez seus primeiros estudos
em um colégio jesuíta. Contrariamente à vontade dos pais, ele ingressou no noviciato da
Companhi
a de Jesus aos 15 anos.
686
Nesta ordem religiosa, Antonio Vieira professou três
votos: obediência, pobreza e castidade, em 1625
687
; em 1634, ordenou-se padre
688
;
pronunciou o último voto de obediência ao papa, tornando-se um jesuíta professo, em
1643.
689
Antônio Vieira nasceu durante a União Ibérica, ocorrida de 1580 a 1640.
Lembremos que, em 1578, o rei D. Sebastião desaparecera misteriosamente em Marrocos,
na Batalha de Alcácer-Quibir. Dois anos depois, as coroas espanhola e portuguesa se
uniram. Filipe II da Esp
anha passa a reinar também em Portugal com o título de Filipe I.
690
Em 1640, o descontentamento com o domínio espanhol levou algumas camadas da
nobreza a se insurgirem contra o domínio de Filipe IV de Espanha, e III de Portugal,
para
recuperar a coroa portuguesa. Essa insurreição resultou na coroação do duque de Bragança
como D. João IV, em 1 de dezembro de 1640.
691
A Restauração de Portugal contou com o
apoio dos jesuítas portugueses.
692
Em 1641, o Vice-Rei do Brasil, o Marquês de Montalvão, enviou uma comissão
a
Lisboa para mostrar a solidariedade ao novo rei, D. João IV. Esta comissão era composta
por seu filho, D. Fernando Mascarenhas, e dois padres jesuítas, o Padre Antônio Vieira e o
686
Cf. ALEIXO, José Carlos Brandi. In: VIEIRA, Antônio. História do futuro. (Organizada por José Carlos
Brandi Aleixo). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2005, p. 29; AZEVEDO, João Lúcio de.
História
de Antônio Vieira. Tomo Primeiro. edição, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1931, pp. 11-
14;
DELUMEAU
, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo:
Companhia
das Letras,
1997,
p. 187.
687
CF. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 32.
688
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 29.
689
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 87.
690
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 30.
691
Cf. A
ZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 54.
692
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 30.
156
Padre Simão de Vasconcelos.
693
Somente 40 anos depois, Antônio Vieira voltará a ver a
Bahia, “quase sua pátria”, onde sua carreira e vida são encerradas, em 1697.
694
Em 1641, Antônio Vieira tem 33 anos de idade e se instala em Lisboa, sendo muito
bem recebido na corte.
695
Aí, ele é um “visitante assíduo”. Desde o primeiro momento,
Antônio Vieira conquista a simpatia de D. João IV, sendo muito “estimado pela
conversação viva, atendido pela lúcida compreensão dos negócios do Estado”.
696
Entre
Antônio Vieira e D. João IV se estabelecerá uma grande e eterna amizade.
697
Os sólidos laços de amizade estabelecidos com o rei lhe renderam bons frutos.
Antônio Vieira foi convidado a pregar na Igreja de São Roque em Lisboa e a pregar para o
rei na Capela Real. No Ano Novo de 1642 pregou pela primeira vez diante do monarca.
Antônio Vieira tornou-se cada vez mais íntimo da família real, sendo convidado por D.
João IV a assumir o cargo de conselheiro de Estado, no qual exerceu funções diplomáticas
com brilhantismo.
No período em que trabalhou diretamente para a Coroa portuguesa, Antônio Vieira
não deixou de se dedicar aos seus escritos. Ele é considerado excelente como escritor e
como orador.
698
Apesar de estar ocupado com os assuntos do Estado não abandonou o
púlpito, nem as obrigações religiosas e nem mesmo a humilde moradia com os
companheiros jesuítas. Em 1643, Antônio Vieira pronunciou o quarto voto, de obediência
especial ao papa, tornando
-se um jesuíta professo.
D. João IV teve de lutar para assegurar a independência de Portugal e o
reconhecimento da restauração da monarquia portuguesa. Esta não foi uma tarefa fácil,
visto que a Espanha não aceitou perder o reino de Portugal e por diversas vezes os
exércitos espanhóis tentaram invadi
-
lo.
Neste processo de consolidação da nova dinastia e conservação da independência
de Portugal, Antônio Vieira atuou ativamente, desde quando chegou em Lisboa, em 1641,
até 1652, quando partiu para o Brasil, em sua missão junto aos indígenas.
699
Aliás, este foi
693
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 30; CIDADE, Hernani. Padre Antônio Vieira. Vol. II.
Portugal: Agência Geral das Colônias, 1940, p. 32; AZEVEDO, tomo prime
iro, op. cit., p. 56.
694
Cf. ibid. A este respeito, ver DELUMEAU, op. cit., p. 187.
695
Cf. CIDADE, op. cit., p. 35.
696
AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 59.
697
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 30.
698
Cf. ALEIXO, José Carlos Brandi.
Entrevista
. www. unisinos.br/ihu, novembro de 2005. Segundo José
Carlos Aleixo, o Padre Vieira é “um exímio escritor. Não é o conteúdo. Ele foi chamado por Fernando
Pessoa de imperador da língua portuguesa. E foi um grande orador. Vieira prendia a atenção do público c
om
sermões que para os nossos padrões eram longos”. ibid.
699
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 187.
157
o período em que ele mais participou das discussões políticas de Portugal. Conforme Jean
Delumeau,
“partidário da independência de Portugal, Vieira saudou em D. João IV o
restaurador da pátria e quis mobilizar todas as ajudas possíveis contra os projetos
espanhóis de reconquista. Por isso, foi enviado por D. João IV como embaixador à França
e às Províncias Unidas”.
700
Nas
décadas de 1640 e 1650 Antônio Vieira se engajou em missões diplomáticas na
Holanda, França e Itália, sendo o acordo entre Portugal e a Holanda a missão mais
importante. Missão esta que lhe causou sérios problemas. Antônio Vieira sugeriu a D. João
IV que, em nome da conservação da paz em Portugal, ele entregasse Pernambuco aos
Holandeses, e por isso foi acusado de traição por alguns de seus inimigos da corte. Ao
defender o restabelecimento das sinagogas judias no reino, em 1652, Antônio Vieira atraiu
o ódio
de alguns jesuítas que o acusaram de herético, e teve problemas com os inquisidores
portugueses, que começaram a reunir provas contra ele, afastando-no das proximidades do
trono português. Cogitou-se até a sua expulsão da Ordem dos Jesuítas, porém, os seu
s
superiores da Companhia de Jesus designaram-no a assumir a missão do Estado do
Maranhão, província do império luso. Antônio Vieira lutava intensamente em prol da
sobrevivência da monarquia portuguesa, mas, profundamente desgostoso diante das
inúmeras críticas que recebia por parte dos seus inimigos, ele decidiu voltar ao Brasil,
contra a vontade do monarca. Em 1652, Antônio Vieira desembarcou em São Luís como
superior dos missionários jesuítas.
Desde que chegou ao Maranhão, em 1652, Vieira lutou fervorosamente para
defender os indígenas da escravidão imposta pelos colonos maranhenses.
Objetivando
proteger os índios da escravidão imposta pelos latifundiários do Maranhão, em 1654
Antônio Vieira fez a sua segunda viagem a Portugal. D. João IV, que estava muito doente
nesta época, o apoiou. Em Lisboa, Antônio Vieira voltou a pregar na Capela Real. Em
1655, novamente a contra gosto do rei, Antônio Vieira resolveu voltar ao Maranhão. Aqui,
ele visitava aldeias, ensinava e pregava. Com a morte de D. João IV, em 1656, Antônio
Vieira perdeu o seu posto de conselheiro real e, ainda pior, o seu grande protetor.
Em 1661, os colonos maranhenses o expulsaram do Maranhão, juntamente com
outros jesuítas. De volta a Portugal, onde não podia mais contar com a proteção de D
.
João IV, Antônio Vieira foi acusado de heresia. De 1663 a 1665, foi submetido pelo Santo
Ofício a uma residência forçada na cidade do Porto, no Colégio de Coimbra. Em 1664 foi
700
DELUMEAU, op. cit., p. 187.
158
condenado à prisão pela Inquisição. Em 1665, por ordem do Tribunal do Santo Of
ício,
Antônio Vieira é encarcerado, num regime de prisão preventiva, nos cárceres da Inquisição
até o término do processo.
701
Antônio Vieira teve uma vida conturbada. Os seus textos eram muito polêmicos,
por isso foi perseguido pela Inquisição, que o acusou de heresia, bem como de defender a
‘Conjura Judia’, mantendo-o preso durante dois anos, de 1665 a 1667.
702
Não se sabe ao
certo a data precisa do início e término da História do futuro. Estima-se que foi concebida
aproximadamente de 1649 até 1669.
703
o livro anteprimeiro que, segundo Azevedo, é
uma introdução da História do futuro
704
, o próprio Antônio Vieira nos fornece pistas de
que o escreveu de 1664 a 1665.
705
Período em que manteve residência forçada na cidade do
Porto, e que esteve preso nos cárceres da Inquisição, devido a ter sido condenado por
heresia pelo Santo Ofício.
706
Quando da morte de D. João IV, em 1656, D. Afonso, que tinha apenas 13 anos de
idade, era o herdeiro do trono, pois seu irmão mais velho D. Teodósio havia morrido. A
sua mãe, D. Luísa de Gusmão, assumiu a regência. Devido à má conduta de D. Afonso, D.
Luísa de Gusmão declarou o outro filho, o infante D. Pedro, como seu sucessor. Mas, em
701
Em 1666, Antônio Vieira entrega a sua “Defesa” ao Santo Ofício. Em 1667, é sentenciado pelo Tribunal
da Inquisição à residência confinada em casas da Companhia de Jesus em Coimbra e depois em Lisboa,
sendo proibido de pregar. Neste ano, por meio de um golpe de Estado, D. Afonso é afastado do trono de
Portugal e o seu irmão D. Pedro assume a regência. Antônio Vieira é então transferido para o Mosteiro do
Poderoso no Porto. Em 1668, Antônio Vieira é libertado. Transferido para o noviciado de Lisboa, assume o
seu posto de confessor do regente, como também o direito de pregar, mas com limitações referentes às
matérias das quai
s sofrera acusação.
702
Os assuntos proféticos foram um tema que o deixou em maus lençóis perante a Inquisição. Foi neste
momento turbulento em que esteve preso que o jesuíta luso-brasileiro concebeu o plano geral assim como
redigiu os livros Primeiro e Segundo da História do Futuro, objetivando mostrar aos inquisidores qual era o
seu entendimento a respeito dos assuntos proféticos e ao mesmo tempo se defender. Conforme constata José
Carlos Aleixo, “a carta conhecida destinada à viúva de dom João IV, escrita no Pará, e que tinha assuntos
proféticos, serviu de base para que a Inquisição o prendesse. Ele esteve preso meses e meses e foi
sentenciado ao silêncio, inicialmente, depois abrandaram a sentença. Ele poderia pregar e escrever, menos
sobre os assuntos proféticos. Naquela época, a figura de Vieira incomodava também por outros motivos.
Enquanto esteve preso, trabalhou no tema de História do Futuro. Ele precisaria explicar à Inquisição o seu
entendimento sobre esse tema, preparar sua defesa. Os livros primeiro e segundo foram uma resposta dele às
dúvidas dos inquisidores”. ALEIXO, entrevista, op. cit. A História do Futuro se divide em três grandes
partes: os sermões, as cartas e os escritos proféticos. Em uma carta a um amigo, o próprio Antônio Vieira
conside
ra os escritos proféticos a parte mais importante de sua obra. Apesar de ter trabalhado até o último
ano de vida na obra profética ela ficou inconclusa. Antônio Vieira escreveu os primeiros doze capítulos da
obra que previa vir a preencher sete volumes. Por isso, hoje, a obra é considerada inacabada. ALEIXO,
entrevista, op. cit. A História do Futuro foi publicada postumamente em 1718, porém, a versão manuscrita
da obra já era muito conhecida.
703
Cf. ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 20
-
21; AZEVEDO, tom
o primeiro, op. cit., pp. 193
-
194.
704
Cf. ibid., p. 193.
705
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., ibid., pp. 181
-
182.
706
Cf. AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. Tomo Segundo. edição, Lisboa: Livraria
Clássica Editora, 1931, pp. 30, 38.
159
junho de 1662, o conde de Castelo Melhor promoveu um golpe de Estado. D. Luísa foi
retirada para um convento e D. Afonso foi alçado ao trono português como D. Afonso
VI.
707
Durante os dois anos de reinado de D. Afonso, foi o conde de Castelo Melhor quem
realmente governou Portugal.
Durante os 28 anos da Guerra da Restauração (1640-1688) houve cinco batalhas
entre portugueses e espanhóis. A Batalha de Montijo, em 1644, no reinado de D. João IV; a
Batalha das Linhas de Elvas, em 14 de janeiro de 1659, na regência de D. Luísa de
Gusmão; a Batalha de Ameixial, 8 de junho de 1663; a Batalha de Castelo Rodrigo, 7 d
e
julho de 1664; e a Batalha de Montes Claros, 17 de junho de 1665, no reinado de D.
Afonso VI. Em todas elas, mesmo contando com um exército inferior, os portugueses
venceram os espanhóis. Estes tiveram perdas significativas nessas batalhas. A paz
definit
iva entre Espanha e Portugal somente será concluída em 1668.
Com exceção da Batalha de Montijo, que ocorreu em solo espanhol, as demais
foram assinaladas pela tentativa de invasão dos espanhóis em solo português e a luta dos
portugueses para defender o seu país. O fato é que, ao termino da Guerra dos Trinta Anos,
Filipe IV estava livre para dedicar-se a Portugal. É neste contexto de guerras constantes
que Antônio Vieira concebe o livro anteprimeiro de sua História do Futuro, entre 1664 e
1665.
Dentre os interlocutores explicitamente elegidos por Antônio Vieira, no livro
anteprimeiro da História do Futuro, encontram-se os inimigos dos portugueses, Filipe IV,
rei da Espanha, e seus conselheiros. Os príncipes que fazem a guerra injusta são criticados
por Antônio Vieira, no livro anteprimeiro da História do Futuro. Assim como Bossuet,
Antônio Vieira adverte que um príncipe não deve fazer a guerra contra um povo o qual
Deus não ordena. Segundo ele, por meio da leitura da História do Futuro, os espanhóis
saberão q
ue a guerra que empreendem contra Portugal é contrária aos desígnios de Deus:
Entre as utilidades próprias e dos amigos, não quero deixar de advertir por fim delas, que
também a lição desta história pode ser igualmente útil e proveitosa aos inimigos (...)
. Lerão
aqui com boa conjetura as promessas e decretos divinos, provada a verdade dos futuros
com a experiência dos passados: e verão se quiserem abrir os olhos, um manifesto
desengano de sua profecia; conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal
,
707
O reinado de D. Afonso VI será muito curto. Pois, em 1667, é ele quem sofre um golpe de Estado de seu
irmão D. Pedro.
160
pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a firmeza de sua
palavra.
708
A preocupação com as conseqüências da guerra para a humanidade também é uma
nota forte do pensamento de Antônio Vieira. De acordo com ele, a Espanha evitaria o
d
erramamento de sangue e os sofrimentos da guerra se lesse a sua
História do Futuro
: “oh!
Quantos danos (...) quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão de naturais
e estrangeiros podia escusar Espanha se com os olhos limpos de toda a paixão e afeto
quisesse ler esta História do Futuro, e com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos
de seu maior bem, como é o ânimo com que ela se escreve!”.
709
Conforme Antônio Vieira,
se os príncipes entendessem o quanto é inútil fazer a guerra contra Deus, muito sangue
seria poupado:
Na prodigiosa batalha das linhas de Elvas, quando o duque general primeiro ministro de
Espanha
se viu tão inopinadamente, de conquistador, conquistado, as trincheiras
entradas, os esquadrões rotos, os fortes rendidos, o exército desbaratado, as palavras com
que se retirou, como tão prudente e tão católico capitão, foram: Contra Dios no valen
manos
. Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde aquele dia,
quanto sangue que ao depois se derramou, estivera guardado nas veias ou se tivera de uma
e outra parte empregado em serviço daquele grande Senhor, contra o qual não valem mãos
nem validos?
710
Antônio Vieira está se referindo à Batalha das Linhas de Elvas empreendida entre
Portugal e Espanha, em 14 de janeiro de 1659. Um exército espanhol, liderado por D. Luís
de Haio, iniciou o cerco à cidade de Elvas em 1658. O exército espanhol contava com 14
mil soldados de infantaria e 5 mil de cavalaria. O cerco durou até janeiro de 1659. Durante
este período, os habitantes de Elvas sofreram ataques diretos e todas as conseqüências de
um cerco. Em 14 de janeiro, um exército português composto por 8 mil infantes e 3 mil
cavaleiros, comandado pelo conde D. Antônio Luís de Meneses, enfrentou o exército
espanhol
para defender a cidade de Elvas. Os portugueses alcançaram uma vitória
retumbante sobre os espanhóis. Nesta guerra, os espanhóis sofreram inúmeras perdas. A
Batalha das Linhas de Elvas foi uma das mais importantes da Guerra da Restauração. Esta
batalha mostrou a Filipe IV que os portugueses estavam dispostos a lutar por sua
independência e que não seria fácil retomar Portugal.
708
VIEIRA, Padre Antônio. História do Futuro. 3 Vol. São Paulo: Editora Formar Ltda, s. d. (Coleção
Grandes Mestres do Pensamento), p. 59.
709
VIEIRA, s
.d., op. cit., p. 59.
710
ibid., p. 87.
161
Nos períodos de guerra o aumento significativo da pobreza existente. Como
Antônio Vieira foi um exemplo de dedicação aos pobres, o sofrimento dos habitantes de
Elvas o sensibilizou. Na verdade, o sofrimento dos pobres durante as guerras já preocupava
Antônio Vieira há muito tempo.
De fato, Antônio Vieira sofreu ao assistir a penúria dos miseráveis de Salvador,
durante a invasão da Bahia pelos holandeses, em 1624. Neste ano, Antônio Vieira tinha 16
anos e era ainda um noviço da Companhia de Jesus. Neste momento turbulento o povo
fugiu para os matos; com a ajuda dos padres jesuítas, a maioria dos habitantes de Salvador
se espalhou pelas aldeias indígenas. Os invasores prenderam e embarcaram para a Holanda
Diogo de Mendonça Furtado, o governador geral. Nisto, o quinto bispo do Brasil, D.
Marcos Teixeira, assumiu o governo, adotando a forma de guerrilha para combater os
invasores holandeses. Essa tática deu resultado imediato, em 1625 os holandeses foram
embora. Antônio Vieira dominava o latim tão bem que os padres jesuítas o incumbiram
de relatar o terrível acontecimento na importante Carta Ânua para o Geral da Companhia
de Jesus, de 1626. Nesta carta, o jovem noviço, com 18 anos, recordou com pesar os
sofrimentos das mulheres e crianças que fugiram entre as matas na noite da invasão e a sua
sorte miserável.
711
Em 1639, quando a armada da Bahia foi derrotada pelos holandeses, no
Sermão décimo segundo, pregado na da Bahia, Antônio Vieira lamentou os horrores
dessa guerra, como o aumento da pobreza e a fome.
712
Como Bossuet, Antônio Vieira era um homem humilde, dedicou os seus últimos
dias de vida à evangelização e morreu pobre, em 169
7, em Salvador. Segundo observa José
Carlos Aleixo, “Vieira morreu pobremente, depois de levar uma vida austera, trabalhando
até o final de seus dias, dedicado à evangelização. Ele é um modelo para nós”.
713
Do mesmo modo que Bossuet, Antônio Vieira acredita e defende que é Deus quem
os reinos aos reis e os tira deles de acordo com a Sua vontade. Neste sentido, conforme
veremos, a teoria ministerial do poder, tão defendida por Bossuet, aparece intensamente no
pensamento de Antônio Vieira. Em sua concepção os reis são apenas ministros de Deus na
terra. É Deus quem dá os reinos e o poder aos reis, sendo assim, eles devem agir de acordo
com os Seus preceitos, submetendo-se totalmente a Ele, do contrário serão terrivelmente
castigados.
711
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., pp. 29
-
31.
712
Cf. VIEIRA,“Sermão décimo segundo, 1639”, in CIDADE, op. cit., pp. 111
-
112.
713
ALEIXO, entrevista, op. cit.
162
Segundo Antônio Vieira, nos conselhos de Estado não devem entrar apenas o
discurso militar e político, a fé deve ter também nele o seu lugar; “suponha
-
se que Deus é o
que e tira os reinos, como e quando é servido”; deve-se conhecer a Sua vontade por
meio das profecias, como é a forma como Ele se declara, então se deve obedecer-Lhe de
boa vontade, e jamais resistir-Lhe usando a força.
714
Antônio Vieira afirma que o príncipe
que combate contra Deus recebe em troca a humilhação. Como exemplo, ele relata uma
guerra da Espanha contra Po
rtugal, 1662
-
1663, em que a Espanha foi humilhada:
Desembaraçadas em toda a parte as suas armas, chamou os espíritos de todo o corpo da
Monarquia aos dois braços, com que Castela cerca a Portugal: viram-se juntas contra ele,
em um exército, Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, com toda a flor militar, ciência e
valor daquelas belicosas nações. Mas que resultas foram as desta tão estrondosa potência e
dos progressos que com ela se tinham ameaçado a nós e prometido a Europa? Entrou a
guerra dividida no ano 62 por todas nossas províncias, em todas achou oposição igual e
efeito superior; uniu-se no ano seguinte com novo conselho o poder; acrescentou-se de
gente, de cavalos, de cabos, de aparatos bélicos; escolheu
-
se para teatro daquela formidável
campanha a Província de Alentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres passos,
triunfando dos que não podiam resistir às armas castelhanas; mas o fim foi tão adverso, tão
lastimoso e verdadeiramente trágico como viu com admiração o Mundo e chorará
eternamente Cast
ela: perdeu a batalha, o exército e a reputação; deixou a Portugal a vitória,
a fama, os despojos e só levou [como sempre] o desengano.
715
Antônio Vieira está certo de que se o católico rei da Espanha estivesse convencido
de que Deus havia decretado a conservação e perpetuidade de Portugal, ele teria desistido
da guerra que empreendia contra este reino, pois saberia que não se deve ir contra os
decretos divinos. Ao tomar conhecimento dos futuros de Portugal decretados por Deus, o
rei e seus conselheiros perceberiam os erros de suas esperanças humanas que são tão
enganosas quanto vãs contra as promessas divinas. Os reis poderiam evitar muitas guerras
inúteis se inserissem em seus conselhos espelhos em que neles pudessem ver os futuros.
“Tal é este livro ó Espanha, que também a ti dedico e ofereço: aqui verás os futuros de
Portugal e tudo o que podes esperar dele em sua conquista”.
716
Segundo Antônio Vieira, os profetas têm o poder de edificar reinos profetizando a
sua exaltação, como também arruiná-los profetizando a sua ruína: “se as profecias
resolutamente dizem que os reinos se hão de perder ou arruinar, aparelhem
-
se sem remédio
para sua ruína; e se dizem que se hão de estabelecer e exaltar, criam sem dúvida sua
714
Cf. VIEIRA, s. d., op. cit., p. 59.
715
ibid., pp. 60
-61.
716
ibid., p. 71.
163
conservação e aumento”.
717
Desta forma, os reis e os reinos devem observar atentamente
aos sinais do céu, pois muitos reis e reinos esperam onde deviam temer e assim erram e
perecem. É impossível a um rei alcançar a vitória pelas armas quando a vitória está
assegurada a outro rei pela profecia. Se os reis temessem as profecias como se deve eles
desistiriam de uma guerra cuja vitória já estaria assegurada a outro.
718
Antônio Vieira recorre ao exemplo do prudente Ciro, rei da Babilônia, que
entendeu as profecias de Jeremias como também as de outros profetas, segundo as quais
Deus não queria que a sujeição dos israelitas ao seu império durasse mais de sessenta anos,
e por isso os libertou, mandando-os de volta a sua pátria.
719
“Contentou-se o gentio com o
que Deus se contentava e não quis perpetuar a servidão quando Deus tinha limitado anos
ao castigo”.
720
Para Antônio Vieira, o caso de Portugal só não é totalmente semelhante ao
da Babilônia porque o ato do rei da Espanha para a libertação de Portugal não foi
voluntária como a de Ciro:
Oh que caso ao nosso caso! Oh
que ação tão digna de se santificar e fazer cristã passando a
de um rei gentio a um rei católico! Quis Deus por seus altos juízos que Portugal perdesse a
soberania de seus antigos reis e que sua coroa, ajuntando-se às outra de Espanha, estivesse
sujeita a rei estranho; mas esta sujeição a este castigo não quis o mesmo Deus que fosse
perpétuo senão por tempo determinado e limitado, e que este termo e limite fosse o espaço
de sessenta anos. Assim o diziam as profecias e assim o provou com admirável
conson
ância o cumprimento delas; faltou, para total semelhança no caso de Babilônia e
para imortal glória de Ciro de Espanha, que a ação fosse voluntária e não violenta, sua e
não dos portugueses.
721
Como o rei e os portugueses da época, Antônio Vieira acreditava que a restauração
da monarquia portuguesa havia ocorrido pela intervenção divina. Ele cita várias profecias
que previram a sujeição de Portugal à Castela por sessenta anos e que essa sujeição
chegaria ao fim no ano de quarenta: ele cita a profecia do religioso português da Ordem de
S. Domingos, São Frei Gil; a profecia de São Bernardo, numa carta escrita ao rei D.
Afonso Henriques, em 1136; lembra ainda que outras pessoas predisseram que, além da
sujeição à Castela e sua libertação no ano de quarenta, o novo rei aclamado pelos
717
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 72.
718
Cf. ibid.
719
ibid., pp. 72
-
73.
720
ibid., p. 73.
721
ibid.
164
portugueses nesse ano seria chamado D. João.
722
E então Antônio Vieira adverte o rei
espanhol,
se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpétua, porque hão de querer
e porfiar os homens em que o seja? Se Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta
anos, por que se não hão de conformar com o que Deus se contentou? Por que se não verá
no católico Ciro de Espanha um ato de tanta justiça e generosidade, e de tanto rendimento e
obediência a Deus, como se viu no Ciro de Babilônia? Se Deus lhe deu o usufruto de
Portugal por prazo somente de sessenta anos, e estes são acabados, por que se de querer
chamar ao domínio e prescrever contra o Céu.
723
Antônio Vieira chama a atenção de Filipe IV para o fato de que os reis justos que
obedecem a Deus abrindo mão de uma parte de seu império, restituindo assim um outro
reino, recebem outros reinos ainda maiores por recompensa, ampliando ainda mais o seu
império e monarquia, tamanha é a bondade de Deus aos reis que Lhe obedecem. Por outro
lado, os reis ambiciosos, injustos e desobedientes o terrivelmente castigados por Deus
lhes tirando a monarquia:
Se lhe parece coisa dura arrancar de sua coroa uma jóia tão preciosa como o Reino de
Portugal, reparem seus prudentes e católicos conselhos que o não era menos naquele
tempo, nem menos conhecido e celebrado no Mundo, o Reino de Judá, e que Ciro, rei
ambicioso, arrogante e gentio, nem duvidou de o demitir de seu império. Quanto mais que
este ato de consciência, religião e cristandade, e por este Reino que Castela restituir ou
consentir a Deus [pois ela tem restituído] lhe pode Deus dar outros maiores e mais
dilatados, com que enriqueça e sublime sua coroa e amplifique o império de sua
monarquia, como sucedeu ao mesmo Ciro. Por aquele ato de generosidade e desinteresse
foi Ciro tão amado de Deus que lhe chamava o ‘meu rei’, o ‘meu ungido’, o ‘meu Cristo’,
o ‘meu Ciro’; e pelo merecimento deste obséquio e rendimento à vontade divina lhe deu
Deus em um dia o Império dos Assírios, que era a primeira monarquia e universal do
Mundo, como o mesmo Ciro reconheceu havê-lo recebido da sua mão. Tão liberal é Deus
com os seus príncipes que não regateiam reinos nem estados com ele; e por um reino de tão
poucas léguas de terra, qual era o de Judéia [igual com pouca diferença, ao de Portugal]
em prêmio e recompensa a monarquia de todo o Mundo. Tais são os interesses [quando
houvera algum maior que o de obedecer a Deus] que Espanha podia esperar do desinteresse
deste ato, podendo de outra maneira [para que não calemos esta verdade] temer
justissimamente que à resolução e porfia contrária sucedem efeitos também contrários. Se
por um ato de justiça, desinteresse e obediência Deus uma monarquia, por um ato de
injustiça, ambição e desobediência também, poderia tirar outra. E a ordem das coisas
naturais as teve menos dispostas a uma grande ruína.
724
Percebe
-se que o providencialismo divino presente em Bossuet se faz constante em
Antônio Vieira. A idéia de que Deus rege a história dos homens aqui na terra cabendo aos
722
Cf. ibid., pp. 73, 75
-
76.
723
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 76.
724
ibid., pp. 76
-
77.
165
reis apenas seguir os Seus decretos. A concepção de que os reis são canais entre Deus e os
homens, agindo direito, submetendo-se a Sua vontade, eles atrairão as graças de Deus a
eles e ao reino, do contrário, receberão os castigos dos céus
.
Antônio Vieira busca advertir o rei espanhol que é impossível vencer a Portugal,
que não se pode ir contra os decretos de Deus:
Considere Castela contra quem peleja e conhecerá quão impossível é a empresa a que
aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal, senão contra a firmeza da palavra
e promessas divinas. Talar as nossas campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos,
sitiar as nossas cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode ser;
mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível; não muro tão gastado da
antiguidade e tão fraco em Portugal em cujas pedras não esteja escrito com letras de
bronze:
Verbum Domini Manet in aeternum. Reparem os famosos capitães de Castela e
considerem seus prudentís
simos e experimentados conselheiros, apartando os olhos por um
pouco de Portugal, se se acham seus exércitos com forças e poder bastante para conquistar
Europa, para sujeitar todas as quatro partes do Mundo e ainda para escalar, como filhos do
sol, o Céu e tirar dele a Júpiter; pois saibam que mais fácil será conquistar Europa, o
Mundo e o mesmo Céu Empíreo do que vencer e sujeitar Portugal defendido e armado
[como está] com as promessas divinas: Coelum, et terra transibunt, verba autem mea non
praeteribunt
. Pelejem primeiro contra a firmeza da palavra de Deus, batam, abalem,
derrubem, desfaçam este castelo e, depois dele rendido, então poderão conquistar
Portugal.
725
Segundo Antônio Vieira, se os reis perguntassem aos poderosos reis Acab,
Benedad e Sinecherib que com seus potentes e numerosos exércitos não conquistaram
respectivamente Ramoth, Samaria e Jerusalém a resposta seria porque estas cidades
estavam protegidas pelas profecias de Miquéias, Eliseu e Isaías.
726
Após citar exemplos da
Sagrada Escritura e profecias canônicas, Antônio Vieira pede para que o rei de Espanha e
seus conselheiros ouçam às da História do Futuro que, apesar de ser de uma autoridade
inferior, foram ditadas pelo mesmo espírito:
se a conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiores triunfos de
Portugal estão também escritos com as mesmas letras e ditados pelo mesmo espírito, que
esperança ou desesperação é pretender conquistar a Portugal? Ó, acabe de entender Castela
quem defende Portugal e contra quem peleja! Com mui desigual inimigo se toma quem
quer guerrear contra Deus. Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de
Espanha, nem escurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida do Mundo todo, e tão
temida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é força que ela e
nós confessemos que são maiores os poderes de Deus e que, assistida deles, a desigualdade
725
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 83.
726
Cf. ibid., pp. 83
-
84.
166
de Portugal pode resistir e prevalecer contra Espanha, como lhe tem resistido e prevalecido
em tantos anos.
727
Assim como Bossuet, Antônio Vieira acredita que os reis que empreendem guerras
justas recebem a proteção divina enquanto que aqueles que fazem a guerra injusta o
podem contar com essa proteção natural. Por meio de uma comparação direta entre a
libertação de Portugal da Espanha à dos israelitas em relação ao Faraó, Antônio Vieira
chama a atenção do monarca espanhol e de seus conselheiros que ninguém pode vencer a
um príncipe quando este recebe a ajuda de Deus. O príncipe que faz a guerra contra um
príncipe ajudado por Deus não guerreia somente contra ele, mas também contra o próprio
Deus:
Não foi só a espada de Gedeão nomeada pelo seu braço e pelo de Deus juntamente:
Gladius Domini, et Gedeonis. Contra a espada de Gedeão naturalmente parece que havia
de prevalecer o exército madionitas; mas contra a espada de Gedeão e de Deus nenhum
poder humano pode prevalecer. Não peleja Castela contra os exércitos de Portugal, mas
contra o Senhor dos exércitos. No dia memorável da restituição de Portugal [ou fosse
milagre ou mistério] é certo que a imagem de Cristo crucificado despregou publicamente o
braço às portas daquele Santo Português, que tem por graça própria sua recuperar o
perdido. Contra o braço estendido de Deus, que força que possa prevalecer, nem ainda
resistir? Este é aquele braço onipotente, que tira os poderosos do trono e levanta a ele os
humildes ou humilhados, como fez naquele dia. Grande glória é de Portugal ter em seu
favor o braço de Deus; mas não foi menos honra e autoridade de Castela, que fosse
necessário o braço
de Deus a Portugal para se libertar da sua sujeição. Menos que o braço e
menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o povo de Israel do poder do grande
Faraó:
‘o dedo de Deus é este’ lhe disseram os seus sábios: digitus Dei est hic; e
verdadeira
mente foi grande dureza de entendimento imaginar Faraó que podiam prevalecer
seus exércitos contra um dedo da mão de Deus, quanto mais contra toda a mão. Assim lho
remoqueou Moisés, quando escreveu aquela história: induravit Dominus cor Pharaonis
Regis Egypti, et persecutus est filios Israel, at illi egressi erant in manu excelsa. Notem
muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros. At illi egressi erant in manu
excelsa
. Se a mão do Altíssimo é a que assistiu aos libertados quando eles saíram do
cativeiro, em vão se cansa Faraó em tirar carruagens, cavalarias e exércitos contra eles, se
não é que o juízo divino os leva ao Mar Vermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade.
Bem se viu nesse caso tão horrendo quão gravemente se ofende Deus de que n
inguém
presuma cativar a quem ele liberta.
728
Antônio Vieira lembra ao rei da Espanha e seus conselheiros que é Deus quem faz
e desfaz impérios e reinos, sendo assim, somente Ele pode desfazê
-
los e restituí
-
los:
falemos e ouçamos como católicos. O que Deus faz, Deus o pode desfazer; o que ele
levanta, só ele o pode derrubar. (...) Bem sabe Castela (...) que Portugal, com singularidade
727
ibid.
, p. 84.
728
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 85.
167
única entre todos os reino do Mundo, foi reino dado, feito e levantado por Deus naqueles
mesmos campos e naquela mesma província, onde todos os anos trabalham e batalham os
homens pelo derrubar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi dado. Se Deus o deu, como o
podem os homens tirar? Se Deus o fez, como podem os homens desfazer? Se Deus o
levantou, como o podem os homens derrubar? E se Deus prometeu que na décima sexta
geração atenuada poria os olhos nela para o restituir, como há quem tanto, à vista dos olhos
de Deus, queira triunfar sobre suas promessas e irritar seus decretos?
729
A fim de reforçar os seus argumentos, a este respeito, Antônio Vieira recorre ao
Juramento d’El
-rei D. Afonso Henriques:
Naquela noite em que Cristo, por sua própria pessoa, fundou o Reino de Portugal,
aparecendo e falando ao seu primeiro rei, disse: ego aedificator, et dissipator Regnorum,
atque Imperiorum sum: volo enin in te, et in semine tuo Imperium mihi stabilire, ut
deseratur nomen meum in exteras nationes.‘Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e
dos impérios: e quero em ti e em todos os teus descendentes fundar um império para mim,
pelo qual o meu nome seja levado às nações estrangeiras’. Se Deus é o monarca supremo e
universal, que funda e desfaz os reinos e os impérios, e com tão especial solenidade fundou
por sua própria pessoa nos reis portugueses de Portugal, quem haverá que não seja
o
mesmo Deus, que o possa desfazer e dissipar? Ponderem
-
se muito aquelas três cláusulas:
in
te
- mihi stabilire. Se Deus o fundou em nós, in te, quem o poderá arrancar de nós? Se
Deus o quis para si,
mihi
, como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de o
estabelecer,
stabilire
, como o podem os homens arruinar?
730
Assim como Bossuet, Antônio Vieira busca mostrar ao príncipe que ele não deve
valorizar a glória, que esta virtude somente tem valor para os homens e não diante de
Deus. Pelo contrário, o que mais conta diante de Deus é o rei submeter-se a Sua vontade,
sendo humilde e estabelecendo a paz no mundo, no caso. Antônio Vieira chama a atenção
de Filipe IV que ele não deve ouvir os conselhos dos homens que dizem que ele não deve
desistir de Portugal, pois a sua reputação ficaria abalada diante do mundo. Antônio Vieira
procura mostrar ao monarca que se desistir desta guerra e estabelecer a paz com Portugal,
obedecendo a vontade de Deus, estará ganhando e acrescentando a verdadeira reputação, a
que real
mente conta diante d’Ele:
Contra a evidencia e desta razão, que não tem resposta, costuma atravessar o Demônio
aquela torpeza do Inferno a que os homens, com nome especioso e significação verdadeira,
infernal, chamaram reputação; dizem que não convém à reputação do grande monarca da
Espanha desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é mas pelo que dirá o Mundo
(...). E quando concedêssemos aos políticos que para vaidade fantástica da opinião se
deixam arrastar tantos respeitos sólidos e verdadeiros, como eles falsamente ensinam, em
729
ibid., p. 86.
730
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 86.Trata
-
se de citação do sermão para o sucesso das armas de Portugal contra as
da Holanda; texto integral:
volo enim in te et in semine tuo imperium mihi stabilire
.
168
nenhum caso da paz e recíproca desistência das armas esteve mais segura e mais honrada a
reputação de Espanha e de seu grande monarca, que no da guerra presente; pelo mesmo
fundamento, e único em que se funda todo este discurso, em ceder, obedecer a Deus e não
resistir a sua vontade conhecida, nunca se perde nem pode perder reputação, antes se ganha
a maior e mais qualificada de todas; porque se a reputação consiste no juízo dos homens,
nenhum juízo haverá no Mundo católico, político, nem ainda gentílico, que não estime e
venere uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, mais generosa, mais
heróica de quantas honraram a memória dos maiores príncipes.
731
Conforme Antônio Vieira, o príncipe cristão deve obedecer a Deus, submetendo-
se
sempre a Sua vontade; que resistir à vontade de d’Ele é considerado um ato indigno até
mesmo aos príncipes gentios:
Quando Moisés foi notificar, da parte de Deus, a el-rei Faraó, que desse liberdade ao povo
de Israel, que tantos anos tinha debaixo de seu domínio, o que respondeu foi:
nescio
Dominum, et Israel non dimittam
.
‘Não conheço esse Deus e não hei de demitir a Israel’.
Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia; porque o príncipe
que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e arrogante como Faraó, e em matéria de
tanto peso e interesse, como demitir de si o domínio de uma nação inteira e tão populosa,
não pode duvidar de obedecer e se sujeitar à sua vontade; e porque Faraó o não fez assim
,
ainda que gentio e sem conhecimento de Deus, a reputação que granjeou com aquela
teimosa resolução é a que hoje tem no Mundo e terá enquanto durarem os livros sagrados;
de bárbaro, de néscio, de obstinado, de ímpio rei e de inimigo e destruidor [como foi, por
isso mesmo] de seu império. Resistir a uma razão tão evidente, como a que diz:
‘Assim o
que Deus!’
É tão indigna e tão afrontosa resistência que nenhuma razão de Estado a pode
justificar, ainda que se perdesse o mesmo Estado.
732
Segundo Antônio Vieira, ao obedecer a Deus os reis não perdem reputação, pelo
contrário, ganham-na. Os reis devem obedecer a Deus, pois Deus possui o total domínio
sobre os reinos e impérios podendo dá
-los, tirá-
los ou dividi
-
los quando Lhe convir:
Assim como o vassalo nun
ca pode perder a honra e reputação, senão ganhá
-
la em obedecer
ao rei, o rei nunca pode perder em obedecer a Deus, senão ganhá
-
la, segurá
-
la e acrescentá
-
la muito. E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-
la
-emos sem muito cavar no
supremo domínio de Deus, que como Senhor absoluto dos reinos e dos impérios os pode
dar e tirar inteiros, quando lhe parecer, e também dividi-los e parti-los quando é servido.
Davi (...) começou com parte do Reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o Império e
reinou
sobre toda a Judéia. Seu filho Salomão logrou o mesmo império inteiro
pacificamente. Seu neto Roboão entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho
dividiu Deus, e deu parte dele a Geroboão. O mesmo sucedeu ao Império de Espanha nos
últimos três
reis dela. Filipe II começou a reinar com parte e depois, com a união e sujeição
de Portugal, inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha. Seu filho, Filipe III, logrou o
731
VIEIRA, s. d., op. cit., p. 87.
732
VIEIRA, s. d., op. cit.,
pp. 87
-
88.
169
mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto, Filipe IV, entrou no império também
i
nteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.
733
No que diz respeito à divisão dos reinos e impérios, de acordo com Antônio Vieira,
esta é primeiramente profetizada pelos profetas e depois executada por Deus; tal é
a
importância dos profetas, dentre os quais acredita estar incluído. Para Antônio Vieira, os
reis devem aceitar que Deus tire parte de seu reino, submetendo-se sempre a Sua vontade,
haja vista que são apenas seus representantes aqui na terra. Segundo Antônio Vieira, assim
como Roboão aceitou que Deus dividisse o seu império de Israel dando parte dele a um
outro rei, Filipe IV deve seguir o seu exemplo aceitando que Deus divida o império da
Espanha, tirando dele o reino de Portugal:
Antes do Reino de Israel se dividir entre Roboão e Geroboão, tomou o profeta Aías a sua
capa cortada em doze partes, e destas doze deu dez a Geroboão, em sinal de que Deus lhe
queria fazer rei de dez tribos de Israel. Note
-
se aqui, e note
-
se muito, que os profetas são os
que dividem os reinos e os repartem; eles os dividem primeiro profetizando, e depois Deus
executando; e se o profeta Aías pôde partir a sua capa e dar parte dela a el-rei Geroboão e
parte a el-rei Roboão, porque não poderá Deus partir também a sua e, da púrpura in
teira
que tinha dado ou emprestado a um rei, cortar um retalho para vestir e coroar outro? Ah! se
os reis e monarcas considerassem que as rpuras que vestem lhas empresta Deus de seu
guarda
-roupa, para que representem o papel de reis enquanto ele for servido! E se o
Roboão de Israel se contenta com que lhe tire dez partes do reino e lhe deixem uma [assim
o diz expressamente o Texto Sagrado: [porro una Tribus remanebit ei], porque a tribo de
Benjamim, que ficou a Roboão juntamente com a de Judá, por sua pouquidade não fazia
número, e era outro Algarve em respeito de Portugal; e se o Roboão de Israel [como dizia]
se contenta com que lhe tirem dez tribos e lhe deixem uma só parte, porque se na
contentaria o Roboão de Espanha quando lhe tire o mesmo dono um reino, se lhe deixa
dez? Oh, como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homens chamam
reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a Deus e reconhece seu supremo
domínio, é dizer como Eli, ainda quando se visse despojado de tudo:
dominu
s est, quod
bonum est, in oculis suis faciat
.
734
É realmente incrível a semelhança existente entre o pensamento teológico-
político
do padre Antônio Vieira, no livro anteprimeiro da História do Futuro, e o do Bispo de
Meaux, no livro nono da
Politiqu
e
. Esta
semelhança deve
-
se ao fato de ambos pertencerem
ao mesmo meio teológico. No livro anteprimeiro da História do Futuro, Antônio Vieira
recorre à Bíblia, sobretudo ao Antigo Testamento, para melhor justificar os seus
argumentos. Além da Bíblia, Antônio Vieira
também busca apoio em Santo Agostinho. Ele
utiliza os reis antigos como modelos a serem seguidos ou repudiados pelos príncipes
733
ibid., pp. 88
-
89.
734
VIEIRA, s. d., op. cit., pp. 89
-
90.
170
cristãos do século XVII, particularmente Filipe IV. Antônio Vieira estabelece uma
comparação direta entre as conseqüências dos a
tos dos reis do Antigo Testamento às do rei
espanhol do século XVII, sem observar as diferenças desses tempos históricos tão
distantes.
Antônio Vieira foi um grande apoiador da independência de Portugal. No período
em que trabalhou diretamente para a Coroa portuguesa, como conselheiro de D. João IV,
Antônio Vieira empenhou-se em ajudar o monarca na manutenção e fortalecimento da
monarquia portuguesa. Além disso, ele tinha uma grande estima pelo rei que o havia
admirado, prestigiado e apoiado, desde o dia em que o conheceu até a sua morte. Antônio
Vieira concebeu o livro anteprimeiro num momento conturbado, em que se encontrava nos
cárceres da Inquisição, e a Espanha ainda não havia reconhecido a independência de
Portugal e tentava reavê
-
lo.
Neste sentido, no livro anteprimeiro da História do Futuro, por meio das profecias
e exemplos bíblicos descritos na literatura sagrada do Antigo Testamento, Antônio Vieira
mostra a Filipe IV as profecias a respeito de Portugal que se concretizaram, no caso a
restauração da monarquia portuguesa em 1640, para convencê-lo a acreditar nas profecias
futuras que ele lhe apresenta em sua obra e aceite a independência de Portugal,
concedendo
-
lhe a paz.
171
C
APÍTULO VI
GUERRAS JUSTAS
Para assegurar a paz no reino, Bossuet reconhece que, em alguns casos, o príncipe
deve empreender a guerra. Dentre esses casos destaca-se o de defender-se de ataques
externos. De onde vem a força do príncipe nos campos de batalhas? Na guerra, qual é a
maior virtude a ser cultivada pelo príncipe? Qual a sua relação com as esferas sagrada e
religiosa? Como a Igreja vê a recorrência do sagrado pela realeza? Será esta a problemática
norteadora deste capítulo.
Nas guerras justas o príncipe recebe a ajuda de Deus
As guerras defensivas, consideradas guerras justas, são intensamente defendidas
por Bossuet no artigo IV do livro nono da
Politique
, redigido em 1701. No artigo I deste
livro, em que trata dos motivos gerais e particulares de se fazer a guerra, Bossuet afirma
que, dentre os justos motivos de empreender a guerra, encontra-se o correspondente à
ocasião em que o povo de Deus a faz “para se libertar de um jugo injustamente imposto,
para vingar sua liberdade oprimida e para defender sua religião por ordem expressa de
Deus”.
735
Mas é no artigo IV que Bossuet desenvolve melhor esta idéia. De acordo com
ele, quando o príncipe combate pelo seu povo, seus lugares santificados, por suas santas
leis e suas santas cerimônias a guerra é santificada, o príncipe está consagrando suas mãos
ao Senhor. O próprio Deus chama a si mesmo o Deus dos exércitos.
736
Conforme Bossuet,
“com as condições citadas, a guerra não é somente legítima, mas ainda piedosa e santa”.
737
É bom lembrar que esta idéia de guerra justa defendida por Bossuet, na qual a
guerra pela fé, a guerra pela Igreja e a guerra pela pátria se encontram inter-
relacionadas,
não é original. Desde o século XII, os especialistas em direito canônico a professavam.
Conforme recorda Ernst Kantorowicz, “ao discutirem a noção de bellum iustum, a ‘gu
erra
735
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 322.
736
Cf. ibid., p. 352.
737
ibid.
172
justa’, os canonistas, já desde o fim do século XII, salientavam que a guerra era justificada,
no caso de ‘necessidade inevitável e urgente’, tanto para a defesa da
patria
como para a
defesa da fé e da Igreja, e costumavam exemplificar essas
necessita
s referindo-se às
guerras que os cristãos orientais moveram contra os infiéis na Terra Santa”.
738
No artigo IV do livro nono da
Politique
, Bossuet observa que, primeiramente, Deus
empreende a guerra por seu povo: “Deus fazia a guerra para seu povo do mais alto dos
céus, de uma maneira extraordinária e milagrosa”.
739
Recorda Bossuet que “assim dizia
Moisés sobre as margens do Mar Vermelho: ‘não temais de forma alguma esse povo
imenso que vos persegue. O Senhor combate por vós, e vós somente tereis que permanecer
em repouso’”.
740
Bossuet observa que, no momento em que um rei percebe que não tem
recurso para lutar contra reinos mais poderosos que o seu, é suplicar ao Senhor que Ele
vem em seu socorro. Tal rei deve colocar-se em marcha, ordenando que todo o exército
cante o salmo louvando ao Senhor por sua bondade e misericórdia. Desta forma, os
inimigos irão se virar uns contra os outros, eles próprios se exterminarão; sendo possível
vencer um exército que parecia ser invencível:
Josafá, que não via nenhum recurso contra o exército espantoso da liga dos idomeus, dos
moabitas e dos amonitas apoiado pelos assírios, após ter implorado o socorro de Deus, e ter
obtido as seguranças certas pela boca de um santo profeta (...) marcha contra o inimigo
pelo deserto de Trécué, e essa nova ordem de guerra: ‘que se coloque à frente do
exército os cânticos do Senhor, que todos reunidos cantassem esse divino salmo: Louvai ao
Senhor, porque ele é bom, porque suas misericórdias são eternas’. Assim o exército muda
de música: apenas ele teve começado esse divino cântico, que os inimigos que estavam em
emboscada se voltaram um contra o outro, e se cortaram eles mesmos em pedaços: (...) foi
glorificando Deus que eles desafiaram um exército que parecia invencível. Josafá retorna à
Jer
usalém em grande triunfo, e entra na casa do Senhor ao som de suas harpas, de suas
guitarras e de suas trombetas, continuam os louvores de Deus, que tinha mostrado sua
bondade na punição de seus injustos agressores. É assim que se cumpria e que havia
conta
do a profetisa Débora: o senhor escolheu uma nova maneira de fazer a guerra:
combate do céu por nós...’.
741
No entanto, Bossuet adverte que, “ainda que Deus fizesse a guerra para o seu povo
de uma forma extraordinária e milagrosa, ele quis acostumá-lo às armas lhe dando reis
belicosos e grandes capitães”
742
, sendo este “um novo meio de formar a guerra”.
743
Bossuet
738
KANTOROWICZ, op. cit., p. 149.
739
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 346.
740
ibid., pp. 346
-
347.
741
ibid., p. 348.
742
ibid., p. 346.
743
ibid., p. 350.
173
cita vários príncipes e capitães descritos no Antigo Testamento que foram renomados,
reconhecidos em outras nações, entre eles Abraão, para demonstrar que é do desejo de
Deus que o Seu povo alcance sucesso na arte militar:
Esse era um novo modo de formar a guerra. E não é preciso nomear um Josué; um Jephté,
um Gedeão, um Saul e um Jônatas, um Davi e sob ele Joab, um Absai, um Abner e um
Amasa, um Josafá, um Ozias, um Ezequias, um Judas o macabeu, com seus dois irmãos
Jônatas e Simão, um Jean Hircan, filhos do último. E tantos outros cujos nomes são
célebres nos santos livros e nos arquivos do povo de Deus. Não é preciso, digo, nomeá-
los,
para ver nesse povo maiores capitães e príncipes belicosos, de que os israelitas tomaram a
guerra, que não se conheceu em outras nações. Vemos mesmo, a começar por Abraão, que
este grande homem se renomado por sua fé, não o é menos nos combates. Todos os santos
livros es
tão repletos de empreendimentos militares mais renomados, feitos não somente em
corpos de nações, mas também pelas tribos particulares, nas conquistas da terra santa. (...)
não se pode duvidar que a virtude militar brilhava por excelência no povo santo.
744
Conforme Bossuet, “esta maneira extraordinária de fazer a guerra não era perpétua:
o povo costumeiramente combatia à mão armada”.
745
De acordo com ele, Deus quer que o
Seu povo se acostume às armas.
746
Diz Bossuet que, Deus não deixa que o Seu povo
destrua completamente o inimigo, nem o livra do inimigo, para que ele seja instruído por
sua resistência. Desse modo, o Seu povo e seus descendentes aprendem a combater o
inimigo, acostumando-se à guerra.
747
Bossuet lembra que “a reputação de ser um homem
de guerra ma
ntém o inimigo no medo”:
‘Chusai disse a Absalão: Vos conheceis vosso pai e as bravas gentes que ele conserva com
ele, de uma coragem audaciosa e que se irrita por suas perdas, como um urso a quem se tira
seus filhotes. Vosso pai é um homem de guerra, e não se detém de forma alguma com o
resto do povo: ele vos espera em qualquer emboscada, ou em algum lugar vantajoso. Se ele
vos chega o menor revés, o barulho logo se dissemina de todos os lados, e se publica que
Absalão foi abatido. E aqueles que estão presentes como leões, perderão coragem por esta
notícia. Pois se sabe que vosso pai é um homem forte e que ele é cercado de bravas gentes’.
Ele concluirá de nada arriscar e a atacar infalivelmente. O que dava a Davi tempo de se
reconhecer, e lhe assegurava a vitória. E ele detém por esta única consideração de
impetuosidade de Absalão, quem temia em Davi os recursos que este grande capitão podia
encontrar em sua habilidade na guerra e em sua coragem.
748
744
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 50.
745
ibid., p. 349.
746
ibid.
747
“‘Eu não destruirei inteiramente as nações que Josué deixou em ordem antes de sua morte’, Deus então os
tem deixado em ordem e não os tem desejado exterminar completamente nem livrá-los das mãos de Josué,
‘afim de que Israel fosse instruído por sua resistência: e que todos aqueles que não viram as guerras de
Canaã, aprendessem eles e seus filhos a combater o inimigo e s
e acostumassem à guerra’”. ibid.
748
ibid., p. 365.
174
Bossuet mostra que, diante de um inimigo mais poderoso, o p
ríncipe deve invocar o
socorro de Deus e ir ao combate valentemente, pois o Senhor escuta as preces daqueles que
o invocam e confiam n’Ele durante o combate. Segundo Bossuet, na guerra é Deus quem
orienta aos chefes a tomarem as resoluções certas em cada ocasião. Ele a audácia e a
obediência aos soldados, enquanto que no lado do inimigo dissemina medo, discórdia e
confusão:
A maioria das batalhas de Davi se deu de maneira costumeira. Foi do mesmo modo com
outros reis: e as guerras dos macabeus não se fizeram de outro modo. Deus queria formar
combatentes, e que a virtude militar brilhasse em seu povo. Assim foi conquistada a terra
santa pelas valorosas façanhas das tribos. Eles forçaram os inimigos em seus campos e em
suas cidades, porque eles eram vigorosos atacantes. Era Deus sempre que dava aos chefes
nas ocasiões as resoluções convenientes e aos soldados a audácia e a obediência, enquanto
que ele enviava ao campo inimigo o pavor, a discórdia e a confusão. Jabés, o mais bravo de
todos os seus irmãos, invocou o Deus de Israel, e lhe fez um voto que lhe atraiu o seu
socorro: mas foi em combate valentemente. Assim Cabeb, assim Jud, assim os outros.
Rubem e Gad conquistaram os agarrées e seus aliados, ‘porque eles invocaram o Senhor no
combate: e ele escuta
suas preces, porque eles tiveram confiança nele no combate’.
749
A idéia, defendida por Bossuet, de que Deus ajudaria os reis nas difíceis batalhas,
estava enraizada na França, sendo compartilhada pelos franceses desde a Idade Média.
Conforme ressalta Houx, “os cristãos conservaram profundamente neles a idéia de que
Deus o pode abandonar seu povo, e que Ele interviria quando a necessidade se fizesse
sentir para salvá-los. Ninguém mais que os franceses eram convencidos disso. Essa idéia
guiara suas vidas”.
750
Na concepção cristã, Deus escolhe os reis, estabelecendo com eles
uma verdadeira aliança. Ensina
-
lhes a reinar com retidão e os ajuda nos momentos difíceis.
Isto porque Deus é benevolente para com o rei e seu povo. Tal idéia era defendida desde o
medievo
nos momentos em que a monarquia encontrava-se em declínio, sendo uma
maneira que os teóricos a serviço da realeza utilizavam-se para reforçá-la perante os
súditos. A este respeito, observa Houx,
se Deus escolheu o rei, ou confirma a escolha que se fez,
não é para ele se desviar dele. Ele
estabelece com ele uma verdadeira aliança muito próxima daquela que existia entre Javé e
o povo eleito. Em uma época de incontestável declínio do ideal monárquico, sob Hugo
Capeto (978-995), Abbon de Fleury redige um estudo sobre a função real, em que ele
retoma o essencial do que jamais deixou de inspirá-lo: uma aliança de Deus com seu
povo, da qual a sagração é o sinal; a graça é a inspiração que uma espécie de
infalibilidade: ‘Deus, para quem os reis reinam, não se esquece de nada para lhes ensinar a
749
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 349.
750
HOUX, op. cit., p. 254.
175
bem reinar’. Deus os ajuda. Antes de sua chegada ao Império, em 794, Carlos Magno
confessa que ele governa com a assistência do Senhor, e o bom povo da França, maravilha
-
se de ouvir, nas canções de gestas, o relato de intervenções milagrosas do Céu em seu
favor: a mão de Deus detém o sol para tirar o imperador de uma situação difícil.
751
O amor e a defesa da pátria são virtudes exaltadas por Bossuet, no artigo IV do
livro nono da
Politique
. Desde a Idade Média tais virtudes incluíam-se entre as obrigações
do rei cristão. Este devia cumprir várias missões, entre elas a de amar e defender a sua
pátria. De acordo com Houx, “o amor da pátria lhe faz prestar juramento de defendê-
la
para e contra todos”. O rei deve salvaguardar a pátria, manter a paz. Ele tem como função
“‘defender com coragem e justiça a pátria contra os inimigos’”.
752
Como desdobramento do amor e defesa da pátria, a coragem passa a ser uma
virtude muito valorizada por Bossuet, no mesmo artigo. Conforme Bossuet,
“a necessidade
provê a coragem”. Em momentos em que frente ao inimigo o príncipe se em grande
desvantagem e não mais como recuar, ele deve marchar em combate, pois a coragem
vem e é capaz de feitos extraordinários para destruí-
los.
753
Na Oraison Funèbre de Louis
de Boubon, Bossuet chama a atenção para o fato de que, com vinte e dois anos, este jovem
príncipe, com a coragem inspirada por Deus, conseguiu vencer sua primeira batalha em
Rocroi, mesmo com um exército mais poderoso que o seu:
O exército ini
migo é mais forte, é certo; é composto dessas veteranas tropas valãs, italianas
e espanholas, que até então não se poderá romper. Mas, por quanto se devia contar a
coragem que os nossos batalhões inspiravam a urgente necessidade do Estado, as
vantagens conquistadas, e um jovem príncipe do sangue que trazia a vitória em seus lhos?
(...) A sua coragem aumentava com os perigos, e as suas luzes com o seu ardor.
754
Segundo Bossuet, as maiores qualidades que um homem de comando deve possuir
são a coragem e a audácia. O homem de comando deve avançar sem apavorar-se, mesmo
diante da ameaça de um inimigo desconhecido e poderoso, pois na guerra não se pode
temer a nada. Afinal, o príncipe é protegido por Deus. O Senhor tem um “exército
invisível”, constituído por anjos, “sempre pronto a combater por seus servidores”.
755
Na
Oraison Funèbre de Louis de Bourbon, Bossuet lembra que nas batalhas o príncipe de
Condé “não julga necessário armar essa fronte exposta a todos os perigos, Deus é para ele
751
HOUX, op. cit., pp. 249
-
250.
752
ibid., pp. 275
-
276.
753
Cf. BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 355
-
356.
754
BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 240
-
241.
755
Cf. BO
SSUET, 1967, op. cit., pp. 360
-
361.
176
a mais forte couraça. Os golpes parecem perder a força, quando o tocam, deixando apenas
indícios de sua coragem e da proteção do céu”.
756
É importante ter em conta que, no gênero
espelhos de príncipes
, no qual insere
-
se a
Politique
, como as demais obras de Bossuet, a partir de 1680 a c
oragem passa a fazer parte
das virtudes a serem cultivadas pelo príncipe cristão.
757
Como vimos, para Bossuet, a guerra defensiva é vista como algo benéfico, pois
somente por meio dela o príncipe poderá garantir a paz no reino. Em sua Instrução a Luís
XIV
, d
e 1675, Bossuet escreve que, “sendo obrigado a fazer a guerra, que a faça com vigor,
que impeça que os seus povos sejam destroçados e que se coloque em condições de
concluir uma paz duradoura, fazendo temer as suas forças”.
758
Aceitar a guerra como sendo natural, até mesmo para um homem da Igreja como
Bossuet, é algo que, se para nós causa estranheza, é totalmente compreensível se tentarmos
enxergar com os olhos da época. Num período marcado por constantes conflitos
internacionais, em certos momentos esta era a única forma, reconhecida pelos teólogos, de
os reis defenderem o seu povo, reino e dos ataques externos, enfim, de promover a paz
pública e assim manter o seu poder. Ao analisar a questão das constantes guerras nos
Estados absolutistas, na Europa Oci
dental na época moderna, observa Perry Anderson que
a guerra não era o ‘esporte’ dos príncipes, era a sua sina. Acima da diversidade finita das
inclinações e personalidades individuais, ela os chamava inexoravelmente como uma
necessidade social; da sua condição. (...) Os Estados absolutistas (...) eram máquinas
construídas predominantemente para o campo de batalha. (...) A virtual permanência do
conflito armado internacional é uma das marcas registradas do clima geral do
absolutismo.
759
Qual a concepção de Luís XIV a respeito das guerras defensivas? Nas
Memórias
,
redigidas de 1668 a 1672, ele lembra ao Delfim que os reis são obrigados a empreendê-
las
para salvar a honra de sua coroa:
As regras da justiça e da honra conduzem quase sempre à utilidade. A guerra, quando é
necessária, não é apenas uma justiça permitida, mas os reis são obrigados a realizá-la. (...)
Eu a considerei desta maneira, e foi isso que me fez alcançar o êxito. Se eu não tivesse
756
BOSSUET, 1874, op. cit., p. 246.
757
Cf. MOUSNIER, 1972, p. 15.
758
BOSSUET, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., p.120.
759
ANDERSON, op. cit., pp. 31
-
32.
177
estado interiormente disposto a realizá
-
la no caso de ser nec
essário à honra da minha coroa,
certamente que as negociações não teriam produzido qualquer efeito.
760
É importante lembrar que Luís XIV encarava todas as guerras que empreendia
como sendo necessárias para assegurar a honra de sua família e de seu reino enquanto que
os inimigos estrangeiros, assim como alguns críticos internos, as viam como guerras de
conquista.
Ora, dominar a arte da guerra era um requisito fundamental para os príncipes. Na
Idade Média, desde cedo os futuros reis recebiam de seus pais uma educação das práticas
militares, já que deviam estar à frente de seus exércitos para defender o seu reino. Segundo
Jean Barbey, os reis eram os responsáveis pela educação de seus filhos. “Nessa formação
prática convém situar em bom lugar a educação física e guerreira, pois a função real não é
desprovida de aspectos militares, visto que a proteção de seus súditos e do reino é uma das
obrigações do rei. Esta educação é ativamente levada a todos os jovens príncipes, que a ela
consagram uma parte notável de seu tempo”.
761
No período medieval era natural os
pequenos príncipes começarem a participar da guerra com a idade de sete anos; na
modernidade eles iniciam esta atividade um pouco mais tarde.
762
No século XVII, os reis eram formados para uma aprendizagem. Antes de tudo, os
reis franceses deviam ser soldados. Primeiramente, recebiam uma formação moral,
mediante exemplos do passado, em segundo lugar, uma educação profissional, por meio da
prática aprendiam o seu ofício de soldado e de governante de Estado. Quanto à
aprendizagem do ofício de soldado, eles seriam muito desprestigiados se nunca
freqüentassem os campos de batalhas, como o rei da Espanha, Carlos II. Henrique IV
participava dos exercícios militares desde 1567, com 14 anos; em 1569, com 16 anos,
passou
a servir o exército sob o domínio de Coligny, percorrendo toda a França em
combate.
763
Luís XIII foi um excelente soldado: era valente, conhecia muito bem o ofício,
“as necessidades de concentração de tropas e do arrebatamento, não hesitava em marchar
com a espada na mão, sob o fogo, por sobre as trincheiras inimigas”.
764
Luís XIV também
recebeu uma boa formação de soldado. Mazarino o fizera participar das campanhas no
decorrer das guerras civis. Logo após a Fronda, o cardeal quis que ele passasse a enfrentar
760
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 35.
761
BARBEY, op. cit., p. 104.
762
Cf. ibid., pp. 104
-
107.
763
Cf. MOUSNIER, 1972, op. cit., pp. 19
-
20; VERLET, op. cit., p. 131.
764
MOUSNIER, 1972, o. cit., p. 21.
178
o inimigo. A partir de 1653, com 15 anos, ele passou a freqüentar o exército que estava em
guerra contra a Espanha.
765
“Em julho de 1653, o rei em pessoa se opusera à invasão
espanhola no exército francês conduzido por Condé”.
766
No exército, por meio da práti
ca,
ele beneficiou-se das lições de Turenne, e teve muito prazer em aprender o ofício
militar.
767
Conforme Lavisse,
cada ano, ele aparecia nos exércitos; onde ele mostrava uma alegria sem paralelo, divertia-
se com os desconfortos e privações, permanecia quinze horas a cavalo e se arriscava
alegremente nos combates. Durante o cerco de Dunkerque, em maio de 1658, em que ele
quis ficar, apesar da Rainha e do cardeal que receavam por ele estar em lugar infetado de
corpos mortos permanecidos desde anos precedentes, meio enterrados na areia, ele se
mostra aos locais perigosos e ordens para avançar os trabalhos. (...) A concordância de
testemunhas não deixam dúvidas sobre a resistência e a coragem desse jovem homem e sua
vontade de aprender a guerra. Ele assistia aos conselhos de guerra, recebia lições de
Turenne e as do cardeal, que se acreditava do gênio militar. A paz feita, um de seus
prazeres era treinar suas tropas, fazê-las manobrar e passar revista com uma extrema
atenção, corpo por corpo, companhia por companhia, e, por assim dizer, ‘homem por
homem’.
768
No entanto, apesar das lições de Turenne, Luís XIV não se tornou um valoroso
capitão, como seu avô e seu pai, e até mesmo como seu irmão, Filipe. Infelizmente, nesse
grande espetáculo o Rei Sol não era
o ator principal, muito menos um ator coadjuvante, ele
era apenas um mero expectador.
Conforme constata Pierre Verlet,
Henrique IV, à frente de suas tropas, atacava em plena confusão, arriscava cem vezes a sua
vida. Luís XIII também se expunha e se considerava como o comandante efetivo de seus
exércitos: ele era tão bom ministro de guerra como bom coronel. Luís XIV corre às vezes
de reais perigos, mas não será nem um general nem um combatente. Ó ironia! Não é a ele
que a natureza transmitiu a vocação militar de sua raça, é a seu irmão Filipe, esse irmão
muito belo, tagarela e afeminado, que Ana d’Áustria chama: ma petite fille’! Esse terá o
valor de um grande capitão. Luís segue as operações como expectador, apesar dos
ensinamentos de Turenne.
769
De fato, nas batalhas, os raios do Rei Sol eram ofuscados pelo brilho dos grandes
generais Turenne e o príncipe de Condé, como também do irmão. No entanto, ele aprendeu
765
Cf. ibid., p. 23; VERLET, op. cit., p. 131.
766
Cf. VERLET, op. cit., p. 131. Condé e Turenne eram tidos como “os mais célebres generais da Europa”.
Eles conseguiram destruir, no campo de batalha, os exércitos inimigos dos espanhóis, que até então eram
considerados os melhores de toda a Europa. Na batalha de Rocroy, 1643, e na de Lens, 1648, as forças
espanholas foram destruídas por Louis de B
ourbon, que neste ano de duque de Enghien tornou
-
se príncipe de
Condé.
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 203.
767
Cf. MOUSNIER, 1972, op. cit., p. 23.
768
LAVISSE, op. cit., p. 125.
769
VERLET, op. cit., p. 131.
179
muito bem qual a melhor forma de se organizar um exército, conduzir operações de
campanha e principalmente de cerco. O que deu a ele total competência para se
corresponder com seus generais. Nos charmosos bilhetes que Luís XIV escrevia aos líderes
das primeiras expedições militares, ele lhes solicitava sempre que o mantivessem
informado de todos os detalhes das operações.
770
Um bom exemplo disso é a carta que ele
escreve a M. de La Haye, em 8 de setembro de 1674, em que o recrimina por não tê-
lo
informado da operação militar empreendida contra São Tomé, cobrando-lhe que o informe
nos mínimos detalhes
:
Embora não tenha recebido nenhuma carta vossa desde que dei ordem para o navio ‘Le
Rubis’ levantar ferro no mês de abril, não deixo de enviar o meu barco ‘Le Coche’ ao
vosso encontro para vos levar os meus despachos. Este mesmo barco vos levará cento e
trinta homens escolhidos, comandados por bons oficiais, e sessenta mil libras de prata com
os preparos, armas e munições que julguei vos poderiam ser necessários contra os inimigos
que vos atacam, e dos quais vos defendeis tanto tempo com valor e êxito. Como as
vossas cartas são muito concisas e não contêm nenhum detalhe quanto ao que se passou na
tomada e defesa de São Tomé, sempre esperei que as vossas cartas posteriores contivessem
esses detalhes; mas como não recebi nenhuma da forma que eu teria desejado, apresso-
me
a dizer-vos que me mandeis relato pormenorizado de quanto se passou de mais importante
e de mais consideração desde que pusestes em terra na costa de Coromandel para atacar
São Tomé. Também desejo que me façais saber em todas as ocasiões que se apresentam o
estado em que está a praça, as principais munições de que dispondes e daquelas de que
podereis ter maior necessidade, a fim de que vos sejam enviadas pelos navios que enviarei.
Desejo sobretudo que não deixeis de me enviar dois navios em cada ano em estações
diferentes, para que eu possa ser informado todos os seis meses com toda a segurança de
quanto se tenha passado no lugar onde estais.
771
Luís XIV acompanhou as guerras mais importantes de seu reinado. Ele partiu em
campanha pela última vez em 1692, quando do cerco de Namur, durante a Guerra da Liga
de Augsburgo, em que levou a corte consigo. O fato é que ele era considerado um velho
pelos padrões da época. Em 1692 Luís XIV tinha 54 anos, 49 estava no trono e 31
governava
pessoalmente. Segundo Peter Burke, o rei não se encontrava em boa forma
física, pois “fora obrigado a se submeter a duas cirurgias no final da década de 1680. A
primeira acarretou-lhe a perda da maior parte dos dentes. A segunda operação, mais séria,
destinou
-se a curar uma fístula doença designada nos círculos oficiais por eufemismos
como ‘incômodo’ {incommodité} ou ‘indisposição’ de Sua majestade”. Sendo assim, Luís
XIV tornou
-
se mais sedentário devido a essas doenças.
772
770
Cf. LAVISSE, op. cit., p. 125.
771
LUÍS XIV, in LUÍ
S XIV, 1976, op. cit., pp. 99
-
100.
772
Cf. BURKE, 1994, op. cit., p. 119.
180
No que se refere às guerras defensivas, o que pensava o nosso “Bossuet luso-
brasileiro” a respeito, em seu livro anteprimeiro da História do Futuro, concebido entre
1664 e 1665? Antônio Vieira compartilha da idéia de Bossuet segundo a qual um dos
justos motivos de fazer a guerra é quando o príncipe a faz “para se libertar de um jugo
injustamente imposto, para vingar sua liberdade oprimida”.
773
Antônio Vieira deixa bem
claro quais são os destinatários desta parte do livro anteprimeiro da História do Futuro: o
rei D. Afonso VI e os portugueses.
Desde 1649, quando começou a esboçar a sua História do Futuro, Antônio Vieira
atribuía ao rei D. João IV o império do mundo. Em 1656, do Maranhão, Antônio Vieira
recebeu a notícia da morte deste rei por quem nutria sincera afeição. Essa notícia foi um
terrível golpe para ele. Antônio Vieira acreditava que o rei ressuscitaria para cumprir a sua
missão de governar o mundo. Ele deixou isso bem claro no texto intitulado Esperanças de
Portugal
, escrito em 1659. Mas depois suas esperanças foram transferidas para D. Afonso
VI. A partir de 1664, Antônio Vieira passou a crer que ao novo rei é que caberia governar
o mundo. O fato é que neste ano apareceu um cometa no céu. Houve desequilíbrios
climáticos em 1665. E, sobretudo, a aproximação do ano 1666 deixou exaltados todos
aqueles que aguardavam acontecimentos escatológicos.
774
Da mesma forma que Bossuet, Antônio Vieira defende que os príncipes que
empreendem uma guerra justa recebem a ajuda de Deus nos campos de batalhas. Antônio
Vieira recorre à Bíblia, particularmente ao Antigo Testamento, para demonstrar que um
príncipe que confia em Deus pode vencer um exército bem mais poderoso que o seu.
Segundo Antônio Vieira, quando os filisteus avançaram sobre o povo de Israel, com um
exército numeroso e potente, os soldados israelitas se esconderam “por todos os (...)
lugares mais ocultos e secretos, que pode inventar o medo e a necessidade”.
775
No entanto,
o príncipe Jônatas, filho do rei Saul, consultou a Providência Divina, por meio de um
oráculo e, confiando na verdade da profecia que venceria a guerra, apenas com a ajuda de
seu companheiro, lançou-se sobre o exército inimigo. Nisto houve uma grande confusão,
os filisteus atacavam uns aos outros achando que eram soldados israelitas, e depois
fugiram. “Conhece-se, enfim, com imortal glória de Jônatas os autores de tão estupenda
773
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 322.
774
Cf.
DELUMEAU, op. cit.,
p. 188.
775
VIEIRA, s.d., op. cit., pp. 47
-
48.
181
façanha, bastando só dois homens, animados da confiança de uma profecia, para porem em
fugida o mais poderoso exército e alcançarem a mais desigual e prodigiosa vitória”.
776
Após recorrer a exemplos dos reis do Antigo Testamento e do Império Romano,
particularmente de Alexandre, Antônio Vieira, então, apresenta o exemplo de Portugal, em
que os portugueses, confiantes em Deus, para defender a sua pátria, enfrentaram os mouros
invasores com um exército mais poderoso que o seu e alcançaram a vitória nesta difícil
batalha:
Os exemplos que temos domésticos (...) não são menos admiráveis que os estranhos, assim
nas batalhas como nas conquistas. Era tão inumerável a multidão de sarracenos que,
debaixo das luas de Ismael e dos outros quatro reis mouros, inundaram os campos de
Guadiana, com intento de tomar Portugal naquele dia fatalíssimo, o primeiro de nossa
maior fortuna, que justamente estavam temerosos os poucos portugueses e seu valoroso
príncipe duvidoso se aceitaria ou não a batalha; mas como o velho Ermitão, intérprete da
Divina Providência, visto primeiro em sonhos e depois realmente ouvido e conhecido lhe
assegurou da parte de Deus a vitória, com aquelas tão expressas e animadas palavras:
vinces Alphonse, et non vinceris; socorrido o animoso capitão e fortalecido o pequeno
exército com esta promessa do Céu sem reparar em que era tão desigual o partido, que para
cada lança cristã havia no campo cem mouros, resolveu intrepidamente dar a batalha. Na
manhã, pois, da mesma noite em que tinha recebido a profecia, acomete de fronte a fronte
ao inimigo, sustenta quatro vezes o peso imenso de todo seu poder, rompe os esquadrões,
desbarata o exército, mata, cativa, rende, despoja, triunfa; e alcançada na mesma hora a
vitória e libertada a Pátria, pisa glorioso as cinco coroas mauritanas e põe na cabeça [já rei]
a portuguesa.
777
De acordo com Antônio Vieira, os portugueses devem o seu valor na confiança da
profecia. Portugal vivia sessenta anos sob o domínio da Espanha. Confiante na profecia
que algum tempo vinha anunciando que no ano de 1640 Portugal se libertaria do jugo e
aclamaria um novo rei, despojado e sem nenhuma ajuda lançou-se sobre o monarca mais
poderoso do mundo, conseguindo realizar tão difícil empreendi
mento:
Finalmente esta última resolução que no ano de quarenta assombrou o Mundo, posto que
muito o devamos à ousadia do nosso valor muito mais a deve o nosso valor à confiança de
nossos vaticínios. Que valor sisudo, prudente e bem aconselhado se havia de atrever a uma
empresa tão cercada de dificuldades, como levantar-se contra o mais poderoso monarca do
mundo, e restituir-se à sua liberdade e aclamar novo rei não longe, senão dentro de
Espanha, um reino de grandeza tão desigual sobre sessenta anos de cat
ivo e despojado, sem
armas, sem soldados, sem amigos, sem aliados, sem assistências, sem socorros, só, e até de
si mesmo dividido em tão distantes partes do Mundo? Mas como havia outros tantos anos
que a profecia estava dando brados aos corações, em que nu
nca se apagou o amor da Pátria
e a saudade do rei, o zelo da liberdade, dizendo, e publicando a todos que o desejado tempo
776
ibid., p. 48.
777
VIEIRA, s.d., op. cit., p. 52.
182
dela havia de chegar no ano felicíssimo de quarenta, em que o novo rei seria levantado. A
promessa, que sempre a conservou nos corações, o levantou no seu tempo nas vozes e ela
foi a que deu o rei ao Reino, o Reino à Pátria, a Pátria aos portugueses e Portugal a si
mesmo, e este seja entre todos o maior exemplo, assim das nossas guerras como das nossas
conquistas.
778
Conforme Antônio Vieira, “é (...) tão poderoso contra todos os impossíveis o
conhecimento e do que de ser representado no espelho das profecias, que nenhuma
empresa pode haver tão desigual, nenhuma o armada de perigos, nenhuma tão defendida
de dificuldades que debaixo do escudo desta confiança se não intente, se não avance, se
não prossiga, se não vença”.
779
Segundo Antônio Vieira, foi de grande importância a
Portugal o conhecimento antecipado de seus futuros nos maiores acontecimentos de um
reino. Sendo assim, se debaixo desta Portugal nasceu, cresceu e restituiu-se, a e
confiança em seus futuros serão mais importantes ainda para os empreendimentos bem
maiores que ele irá realizar. E esta importância somente será compreendida, segundo
Antônio Vieira, após a leitura de toda a História do Futuro. Antônio Vieira está certo de
que a sua História do Futuro servirá de escudo aos portugueses em suas batalhas e
conquistas futuras:
Lerão os portugueses e todos os que lhes quiserem ser companheiros, este prodigioso Livro
do
Futuro e com ele abraçado em uma mão e a espada na outra, posta toda a confiança em
Deus, e em sua palavra, que conquista haverá que não empreendam, que dificuldades que
não desprezem, que perigos que não pisem, que impossíveis que não vençam? Ao
conhecime
nto antecedente dos futuros chamou discretamente S. Gregório escudo
fortíssimo da presciência, em que todas as adversidades e golpes do Mundo se sustentam,
se reparam e se rebatem: et nos tolerabilius Mundi mala suscipimus, si contra haec per
praescientiae
clypeum munimur
. Que vem a ser esta nossa História do Futuro senão escudo
da presciência, praescientiae clypeum? Armados com este escudo, que trabalhos, que
perigos nos pode oferecer o mar, a terra e o Mundo, e que golpes nos pode atirar com todas
as forças de seu poder, que não sustentemos nele com animosa constância? Quem haverá
que debaixo deste escudo não empreenda as mais dificultosas conquistas, nem aceite as
mais arriscadas batalhas, e não vença e triunfe dos mais poderosos inimigos, se as
empresas
no mesmo escudo vão resolutas, as batalhas vão vencidas e os inimigos já
triunfados?
780
O esforço de Antônio Vieira em defender a guerra defensiva explica-se pelas
dolorosas lembranças da invasão de Salvador pelas tropas holandesas, ocorrida em sua
ad
olescência, e posteriormente pelas constantes tentativas de invasão da Espanha em solo
português. Antônio Vieira dedica essa parte do livro anteprimeiro da História do Futuro
778
ibid., p. 54.
779
VIEIRA, s.d
., op. cit., p. 55.
780
ibid., p. 56.
183
aos portugueses, particularmente a D. Afonso VI, sucessor de Dom João IV, para lh
e
encorajar a enfrentar os inimigos espanhóis, defendendo a liberdade de seu reino, assim
como a empreender futuras conquistas tornando Portugal o império do mundo. Afinal, a
anarquia em que se encontrou Salvador, durante a invasão holandesa, o levou
poste
riormente a lutar por um poder forte em Portugal, o qual somente seria possível
mediante a paz.
A ligação do príncipe cristão às esferas sagrada e religiosa
No artigo IV do livro nono da
Politique
, Bossuet chama a atenção para o fato de
que o príncipe d
eve ser sempre submisso a Deus e após a guerra defensiva deve render
-
Lhe
graças, que foi Ele quem lhe ajudou a alcançar a vitória. Conforme afirma Bossuet, os
homens de guerra devem ser homens de coragem, combater pelo seu povo e pela cidade de
seu Deus, “‘após isso, que o senhor faça o que agrada a seus olhos’”. Os bons generais
precisam “fazer o que se deve, escutar, ser atento (...) ser resolvido a todos e submissos a
Deus: é tudo o que se devem fazer os bons generais”. Após ter alcançado as vitórias
devem
render graças a Deus.
781
Em sua Oraison Funèbre de Louis de Bourbon, demonstra
Bossuet que após sua primeira vitória em Rocroi,
O príncipe ajoelha, e, no campo de batalha, rende ao Deus dos exércitos a glória que lhe
enviará. Celebrou a liberdade de Rocroi, as ameaças de um terrível inimigo mudadas em
sua desonra, a regência fortalecida, a França em paz, e um reino que devia ser tão belo,
começado sob tão feliz auspício. O exército começou a ação de graças; toda a França o
seguiu: exaltou
-
se até o céu
o golpe de ensaio do duque d’Enghien.
782
Isto porque, na concepção de Bossuet, os príncipes guerreiros são formados por
Deus. No artigo I do livro nono da
Politique
, Bossuet diz que é Ele quem a força aos
seus braços para os combates, como também forma suas mãos para a arte da guerra.
783
“É
isso o que faz Davi dizer: ‘bendito seja o Senhor meu Deus, quem a força aos meus
braços para o combate, e forma minhas mãos para a guerra’”.
784
Na Oraison Funèbre de
Louis de Bourbon,
recorda Bossuet,
781
Cf. BOSSUET, 1967, op. cit., p. 368.
782
BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 242
-
243.
783
Cf. BOSSUET, 1967, op. cit., p. 317.
784
Cf. ibid.
184
Deus nos revelou que somente ele faz conquistadores, e somente ele os faz para servir aos
seus desígnios. Que outro fez um Cyro, senão Deus que o nomeará, nos oráculos de Isaías,
duzentos anos antes de seu nascimento? Ainda não és, dizia ele, ‘mas vejo-te, e chamei-
te
pe
lo nome: chamar-
te
-ás Cyro. Marcharei nos combates diante de ti; porei os reis em
fugida, quando te aproximares; quebrarei as portas de bronze. Sou eu quem estende os
céus, sustenta a terra, nomeia aquilo que não existe como o que existe’, isto é, sou eu q
uem
faz tudo, e desde a eternidade tudo o que faço. Que outro pôde formar um Alexandre,
senão esse mesmo Deus...
785
A que Bossuet e a maioria dos franceses da modernidade nutriam de que era
Deus quem ajudava os príncipes e os demais combatentes nas guerras, a ponto de Lhe
renderem graças ao término de uma batalha vitoriosa, nos oferece uma melhor
compreensão da dimensão do sagrado neste período. Na modernidade, acredita-se que o
poder régio está ligado à esfera do sagrado. O rei pertence a esta esfera pelo fato de estar
ligado à ordem sobrenatural. Sendo assim, o rei cristão estabelece uma correspondência
entre o reino do céu e o reino da terra. Ele atua como um eixo cósmico, como “um ponto
de reencontro entre o humano e o divino”.
786
Neste processo de sacralização, a sagração
é
de fundamental importância. Pois, como afirma Patrick Simon, “é pela cerimônia da unção
que o rei penetra no domínio sagrado. A união mística do rei e do seu povo decorre desta
função sacerdotal”.
787
Conforme constata Le Goff, a este
respeito,
o sagrado é então ligado à unção. Ela é feita pelo arcebispo de Reims sobre a cabeça, sobre
o peito, entre os ombros, sobre os ombros, na articulação dos braços e, enfim (...) sobre as
mãos. Todo o corpo significativo do rei, todos os locais de
forças são investidos pelo Santo
Creme, óleo trazido milagrosamente pelo Santo Espírito ao bispo de Reims, Rémi, para o
batismo de Clóvis. Santo Creme levado pelo arceebispo na Santa Ampola onde é
conservado o óleo milagroso. Santa Ampola trazida da Igreja de Saint-Rémi conservada
pelo abade do convento na catedral. (...) Investido desse poder sobrenatural, o rei é a partir
daí intermediário sagrado entre Deus e seu povo. Para ele, por seu corpo ungido passa a
proteção divina, a inspiração divina. Ela é o
traço de união entre Deus e seu povo, e até sua
morte ela garante ao seu reino e a seu povo os socorros divinos, não somente por sua
salvaguarda aqui em baixo, mas sobretudo por sua salvação no além. (...) A sagração é
também transmitida ao rei por intermédio das insígnias reais das quais ele é investido no
curso da cerimônia.
788
É no momento da sagração que Deus se une aos reis escolhidos por Ele, por forças
misteriosas e sobrenaturais. É somente por meio da unção que os reis passam a ter
legitimidade, recebem o poder de Deus, tornam-se os responsáveis por guardar a aliança
785
BOSSUET, 1874, op. cit., p. 239.
786
SIMON, Patrick.
Le mythe royal.
Paris: Diffusion aux
Amateurs de Livres, 1987, p. 273.
787
ibid., p. 8.
788
LE GOFF, in BOUREAU & INGERFLOM, op. cit., p. 20.
185
estabelecida entre Deus e os homens. No momento da sagração, o rei é unido ao seu povo e
passa a reinar sob a proteção de Deus. Ele é o responsável para guiar o seu povo no
caminho traçado por Deus. Esta compreensão que se tem da monarquia é denominada de
“mistério da monarquia”. Esta crença decorre do fato dos franceses terem uma mentalidade
profundamente mística. Segundo constata Patrick Simon, os franceses do Ancien Régime
vivem “em um duplo universo terrestre e místico”.
789
Percebe ainda este autor que, “na
mentalidade do Antigo Regime (...) o maravilhoso e a realidade, sob a impulsão cristã, são
constantemente ligados”.
790
Os reis da modernidade também estão ligados à esfera do religioso. Apesar do
sagrado e o religioso serem esferas que se encontravam muito imbricadas na modernidade,
cada uma carrega consigo as suas especificidades. Faz-se necessário, então, estabelecer a
distinção entre ambas. O sagrado diz respeito às relações com o sobrenatural e independe
da idéia de religião. O sagrado nem sempre processa do religioso. Tudo que é religioso é
sagrado, mas o sagrado não precisa passar pelo religioso. O sagrado está relacionado à fé.
Le Goff distingue muito bem essas duas esferas. Para ele, o sagrado é a expressão do laço
com o sobrenatural. Além de ser uma delegação ele é a própria expressão do sobrenatural.
Segundo este autor,
o sagrado é o que exprime (...) um vínculo com os poderes sobrenaturais, a participação a
esses poderes e, trata-se de uma sociedade cristã, uma relação direta com Deus, mas mais
que uma delegação de poder (...) a insinuação de forças sobrenaturais pela
unção
e a
manifestação de concessão de certas forças pela recolocação de
insígnias
simbólicas do
poder.
791
o religioso é a codificação do processo do laço com o sobrenatural. É a religião
que torna compreensível o sagrado. A possibilidade de leitura do sagrado é dada pelo
religioso. O religioso está relacionado à instituição: aos juramentos que os reis eram
obrig
ados a fazer perante o seu povo quando de sua sagração. De acordo com Le Goff,
o religioso, mais difícil de definir em uma sociedade que não tem quase a idéia de civil
,
mas que distingue o temporal e o espiritual, é tudo o que concerne o funcionamento re
gular
do sagrado aqui em baixo, essencialmente assegurado pela Igreja. A função religiosa da
monarquia consistira então em permitir, em ajudar e em favorecer o papel e a ação da
Igreja. A sagração exprime-se, sobretudo, no compromisso tomado por juramento pelo rei.
Pode
-se resumir no conceito de braço secular. (...) O religioso (...) é sobretudo ligado aos
789
SIMON, op. cit., p. 88.
790
SIMON, op. cit., p. 121.
791
LE GOFF, in BOUREAU & INGERFLOM, op. cit., p. 20.
186
juramentos pronunciados pelo rei no curso da sagração. (...) De fato, nesses juramentos, e
de modo geral quando da sagração, um pacto é concluído entre o
rei e a Igreja, que fala por
ele mesmo e pelo povo do qual se dá por representante.
792
Em ntese, o sagrado está ligado à em que Deus ajudaria os reis cristãos nas
batalhas e o religioso aos juramentos feitos por eles no momento de sua sagração, no caso,
defender e amar a sua pátria, como também promover a paz no reino.
Desde as sociedades “primitivas” reconhecia-se o caráter sagrado da realeza. Os
primeiros reis franceses percebiam a importância que este elemento atribuía à aceitação
de seu poder. Aliás, foi com este objetivo que, no século VIII, Pepino o Breve recorreu à
unção régia para tornar oficial o caráter sagrado da realeza; assim como na transição do
século X para o XI, Roberto II o Pio recorreu ao rito curativo, objetivando fortalecer a
le
aldade dinástica.
De onde vinha o caráter sagrado da realeza? De acordo com a opinião popular, a
característica sagrada da realeza lhe era atribuída pela unção.
793
A unção possuía um caráter contraditório: servia tanto aos interesses da Igreja
como dos defensores da realeza. Estes recorriam à unção objetivando reforçar a autoridade
real, que aos olhos do povo ela lhes atribuía um caráter divino; os defensores da Igreja,
por sua vez, vangloriavam-se do fato de que somente por meio da unção dada pelos padres
os reis passavam a ter autoridade. Segundo ressalta Marc Bloch,
estava na própria natureza da unção régia servir de arma, sucessivamente, a diferentes
partidos: aos monarquistas porque com ela os reis ficavam marcados por um sinal divino;
aos defensores do espiritual porque por ela os reis pareciam admitir que sua autoridade
provinha da mão dos padres. Essa dualidade jamais deixou de ser sentida. Os escritores,
conforme pertencessem a este ou àquele campo, acentuavam um ou outro dos dois aspectos
divergen
tes dessa instituição de dupla face. Vejam os pensadores que são inspirados pela
idéia teocrática desde o século VII De geração a geração, eles transmitem-se fielmente,
como um lugar comum, esse que podemos denominar o argumento da sagração: ‘aquele
qu
e recebe a unção é inferior àquele que a deu’; ou, em termos tirados de s. Paulo na
Epístola dos Hebreus: ‘o inferior é abençoado pelo superior’. os soberanos e seu círculo
(...) pareciam durante longo tempo ter-se preocupado em, principalmente, louvar
as
virtudes dos santos óleos, sem alarmar-se demais com as interpretações clericais que o rito
monárquico por excelência podia consentir.
794
Desde o século VIII, que assinala o início da sagração real, os teóricos da realeza
não davam importância à idéia defendida pela Igreja de que os reis somente se tornavam
792
ibid., pp. 20
-
21.
793
BLOCH, op. cit., p. 165.
794
i
bid.
187
pessoas sagradas após terem recebido a unção. No entanto, com o passar do tempo eles
perceberam que era muito perigoso fundar a característica sagrada da realeza
exclusivamente sobre a unção. Em meados do século XIII, no Império, na cerimônia de
coroação do imperador Frederico Barbarruiva, alguns teóricos passaram a defender a tese
de que os reis deviam o seu cargo de rei não à sagração, mas à hereditariedade, ou seja,
eles se tornavam reis imediatamente após a morte de seu predecessor. Os teóricos
buscavam diminuir a importância da sagração, atribuindo-lhe um caráter apenas
ornamental, que, segundo eles, ela apenas reconhecia algo que era fato consumado.
Conforme o mesmo autor,
chegou
-se a um momento no qual os campeões do poder secular tomaram consciência
[mais claramente que outrora] do perigo que podia haver para as realezas em parecer que
elas dependiam demasiado intimamente da sanção outorgada pela Igreja. (...) De forma
pitoresca, essas inquietudes traduzem-se numa curiosa legenda histórica, nascida em
meados do século XIII nos meios italianos favoráveis aos Hohenstaufen: imaginou-se ter
sido puramente laica a cerimônia de coroação do imperador Frederico Barbarruiva; nesse
dia, contava
-
se, a
entrada na basílica de S. Pedro havia sido rigorosamente proibida a todos
os membros do clero. Coisa mais grave: em termos de direito público, os teóricos dessa
corrente de opinião dedicaram-se a reduzir a sagração a mero reconhecimento de um fato
consumad
o. De acordo com essa tese, o rei deve seu tulo exclusivamente à
hereditariedade ou [na Alemanha] à eleição; é rei a partir ou da morte de seu predecessor
ou do momento em que os eleitores qualificados o escolheram; as pias solenidades que em
seguida se desenvolverão terão por única finalidade adorná-los com uma consagração
religiosa venerável e resplandecente, mas não indispensável. Ao que parece, essa doutrina
surgiu no Império, pátria clássica da luta dos dois poderes. No reinado de Frederico
Barbarrui
va, Gerhoh von Reichersberg [que, porém, era um moderado] escrevia: É
evidente que a bênção dos sacerdotes não cria os reis e os príncipes; mas, [...] uma vez que
eles tenham sido criados por eleição [...], os padres abençoam-nos’. Visivelmente, Gerhoh
co
nsidera que a sagração é de certo modo necessária à perfeição do status régio, mas o rei é
rei sem ela e antes dela.
795
Alguns anos depois, os ecos dessa doutrina passaram a ressoar fortemente na
França, onde alguns teóricos da realeza defenderam-na exaustivamente em suas obras.
Segundo Marc Bloch,
mais tarde, os escritores franceses apropriaram-se do mesmo tema. Jean de Paris, no
reinado de Filipe o Belo, fez desse argumento a matéria de vigorosas dissertações. O autor
do
Songe de Vergier e Jean Gerson ret
omaram
-no. Cedo, as chancelarias inspiraram-se em
idéias análogas. Não foi por acaso que na França, definitivamente desde 1270 (...) os
notários régios deixaram de calcular os anos de reinado a partir da sagração e passaram a
usar como marco inicial a elev
ação ao trono, em geral fixada para o dia seguinte à morte do
795
BLOCH, op. cit., pp. 165
-
166.
188
soberano anterior ou ao de sua inumação. (...) nos países regidos pela lei da
hereditariedade, a desaparição do rei tornava rei, instantaneamente, o herdeiro legítimo.
796
Tamanha foi a repercussão desta tese que, a partir do final do século XIII, ela
passou a ser defendida, em quase todos os lugares, pelos teóricos da realeza.
797
A Igreja sempre se mostrou zelosa pelo domínio do sagrado. Ela lembrava sempre
que o rei apenas passava a fazer parte dessa esfera após a sua sagração, por meio, é claro,
da intermediação sacerdotal. Isto para limitar o poder real. No entanto, apesar de todas as
limitações que a Igreja buscava impor, essas limitações não conseguiram impedir que o rei
fosse considerado por todos como uma pessoa sagrada em toda a sua plenitude. Conforme
observa Jacques Revel, “essas limitações não são negligenciáveis. Porém, de forma alguma
elas põem em causa, aos olhos de Le Goff, a existência de uma sacralidade real plena, que
sabe de melhor em melhor articular elementos relativamente heterogêneos que a compõem
e que encontra um florescimento excepcional com Luís IX”.
798
No século XVII, a realeza e os reis ainda eram objetos de idolatria. Bossuet, como
todos ao seu redor, adoravam a monarquia.
Marc Bloch nos chama a atenção para o fato de
que as obras dos teólogos e doutores do absolutismo, entre eles Bossuet, estão
impregnadas, mesmo que inconscientemente, dos poderosos sentimentos difundidos em
sua sociedade, como “o velho conceito de realeza sagrada”.
799
Na verdade, “o caráter
sagrado dos reis, tantas vezes afirmado pelos escritores medievais, permaneceu nos tempos
modernos uma verdade que se mostra sem cessar”.
800
Por um instante, em fins do século
XVI e início do século XVII, parece que as lutas religiosas despertaram “as velhas
polêmicas do regnum e do
sacerdotium
”, como a prolongada discussão dos teólogos a
respeito do tiranicídio. No entanto, de forma geral, principalmente na França, os
eclesiásticos tinham uma opinião cada vez mais “favoráve
l à realeza sagrada”.
801
É importante ressaltar que os apologetas reais somente recorriam à unção à medida
que esta reforçava a autoridade dos reis ao atribuir-lhe uma característica sagrada, mas,
para impedir que a Igreja a utilizasse para servir aos seus interesses, logo deixavam claro
que a unção não legitimava o poder dos reis. De acordo com Marc Bloch,
796
ibid., p. 166.
797
ibid.
798
REVEL, Jacques. “La royauté sacrée. Éléments pour un débat”. In: BOUREAU, Alain; INGERFLOM,
Cláudio
-
Sergio.
La royauté sacrée dans le monde chrétien. Paris: École des Hautes Études en Sciences
Sociales, 1992, p. 10.
799
BLOCH, op. cit., p. 232.
800
Cf. ibid., p. 233.
801
Cf. ibid., pp. 236
-
237.
189
quando se tratava de fundamentar sua teoria do caráter sacrossanto dos príncipes, os
apologetas da realeza ainda não renunciavam a invocar a unção e as virtudes desta; mas,
tendo despojado a unção de qualquer papel eficaz na transmissão do poder supremo [de
certo modo, recusando-se a reconhecer-lhe o poder de criar uma legitimidade], eles
certamente pensavam ter subtraído de seus adversários todas as oportunidades de servir-
se
desse rito, reservando
-
se a si mesmos a faculdade de explorá
-
lo.
802
Bossuet recorria à característica sagrada que a unção dava à autoridade dos reis
para impedir que o povo se rebelasse contra eles, mas, para frear as pretensões da Igr
eja,
em seguida ele alertava que os reis eram sagrados devido ao cargo que ocupavam e não à
unção. No livro terceiro da
Politique
, escrito entre 1677-1679, alerta Bossuet que os reis
foram estabelecidos por Deus na terra para reinarem como seus ministros, portanto, “a
pessoa do rei é sagrada, e atentar contra ele é um sacrilégio”.
803
E acrescenta Bossuet,
Deus os fazia ungidos por seus profetas de uma unção sagrada, como ele fazia ungir os
pontífices e seus altares. Mas mesmo sem a aplicação exterior desta unção, eles são
sagrados por ‘seu cargo’, como eram os representantes da majestade divina, deputados por
sua providencia à execução de seus desígnios. É assim que Deus chama Ciro seu ungido.
‘Eis aqui o que diz o Senhor a Ciro meu ungido, que eu tomava pela mão para lhe sujeitar
todos os povos’.
804
No que se refere à questão da autoridade, Bossuet defendia a posição da Igreja
galicana
e não do papado. Bossuet foi um dos maiores defensores da Igreja galicana. Desde
fins do medievo, a Igreja da França mostrava claros sinais de tender à autonomia com
relação a Roma. Conforme assinala Marc Bloch, o galicanismo é um movimento muito
contraditório tanto em suas origens, pois “as mais nobres aspirações à supressão de graves
abusos religiosos mesclam-se inextricavelmente aos interesses financeiros mais terra-a-
terra”, como em sua natureza, haja vista que, como observa o mesmo autor, “o galicanismo
apresenta
-se ora como um impulso para a pelo menos relativa independência da Igreja da
França, ora como uma tentativa para submeter essa Igreja ao poder régio”, livre dos
obstáculos impostos pelo papado.
805
Para uma melhor compreensão do galicanismo em Bossuet sentimos ser necessário
retroceder em alguns séculos. O movimento galicano tem origens antigas. No século XII,
diante da grande polêmica gregoriana, os defensores da realeza afirmavam que, por serem
os reis ungidos, em sua sagração, com os óleos dos sacerdotes, portanto os ungidos do
802
ibid.,
p. 166.
803
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 64
-
65.
804
ibid., p. 66.
805
BLOCH, op. cit., p. 164.
190
Senhor, situavam-se acima da multidão de leigos, passando a participar do ministério
sacerd
otal. O desejo dos reis de se igualarem aos sacerdotes, que eram os chefes da Igreja,
expressava suas pretensões em dominar a Igreja. Aliás, algum tempo os reis vinham se
dedicando a isto. Por seu lado, os sacerdotes, zelosos do espiritual, se esforçaram para
barrar as pretensões reais. Os bispos estabeleceram que os reis não mais receberiam os
óleos na cabeça, mas em outras partes do corpo, como ombro, braços ou mãos, e assim não
se igualariam a eles; e ainda que os reis não seriam ungidos com o crisma, o óleo especial
misturado ao bálsamo, mas sim com um óleo simples. No entanto, apesar de todas as
imposições defendidas pela Igreja, os reis franceses, como também os ingleses,
continuaram a receber o óleo especial, o crisma, na cabeça, como os sucessores dos
apóstolos.
806
Enquanto que o papa Gregório VI, seus seguidores e sucessores afirmavam que os
reis eram simples leigos, refutando e julgando suas pretensões a uma aproximação do
sacerdócio como um sacrilégio, a maioria dos súditos partilhava do sentimento de que a
majestade que os revestia bastava para lhes atribuir um caráter quase sacerdotal; que os reis
não eram completamente leigos.
807
Desde a cristianização do império romano os imperadores exerciam uma certa
tutela sobre a Igreja. Os reis posteriores continuaram a exercer esse direito de interferir no
mundo eclesiástico. No século XIII ocorreu um movimento de face dupla: de um lado, os
reis contestaram a interferência da Igreja no domínio temporal, por outro, houve uma
tendência do clero em conceder subsídios ao rei para que este defendesse o território e a
Igreja. O rei se colocou como o defensor do clero em relação a Roma. Os conflitos entre o
poder temporal e o espiritual, ou seja, entre Filipe o Belo, e a Santa-Sé, reforçou esse
movimento durante to
do o século XIV.
808
Com o Grande Cisma do Ocidente (1378-1417), que assinalou uma crise da Igreja,
sobretudo do papado, o baixo clero, contando com a ajuda do rei, passou a defender a
autonomia da Igreja da França em relação ao papado. A partir daí defendeu-se com mais
veemência a semelhança do rei ao sacerdote. O baixo clero alegava que o fato de os reis
gozarem do direito de regalia, ou seja, usufruíam benefícios eclesiásticos, nos períodos
em que os bispos sujeitos a regalia estavam ausentes, como também por conservarem em
seu poder algumas dignidades monásticas, herdadas de seus mais longínquos ancestrais,
806
Cf. BLOCH, op. cit., pp. 150
-
156.
807
Cf. ibid., pp. 148
-
149
.
808
Cf. BARBEY, op. cit., pp. 185
-
186.
191
lhes dava uma certa divindade. Nesse período de crise da Igreja, os reis, com a ajuda do
baixo clero, se vangloriavam dessa situação, utilizando-na “para provar sua natureza
eclesiástica e, portanto, seu direito a, em maior ou menor grau, dominar o clero de seus
Estados”.
809
Foi neste momento que nasceu na França o movimento galicano.
810
O Grande Cisma do Ocidente deu importante contribuição para a emergência do rei
galicano. O clero, aproveitando-se da crise do papado, buscou o apoio do rei para que este
defendesse as ‘antigas liberdades e franquias’ da Igreja da França. Desta forma, a Igreja se
libertaria das extorsões da Santa-Sé, pagaria os impostos ao rei, em troca receberia os seus
benefícios. Além disso, ambos se reuniriam para administrar os assuntos eclesiásticos. Esta
questão não foi totalmente resolvida com o fim do Cisma, em 1417. Com a Concordata de
Bolonha, assinada por Francisco I e o papado, em 1516, o rei obteve o direito de nomear
abades e bispos, que “receberiam em seguida a sua investidura canônica do papado”.
811
O
rei conservou em suas mãos o direito de nomeação dos prelados. Tal direito assegurava
-
lhe
“‘a obediência e a fidelidade do c
lero’”.
812
Os domínios do rei foram estendidos também
aos bens do clero. A partir daí, a Igreja francesa foi associada à monarquia, e o rei passou a
ser o seu chefe supremo. O rei limitou o poder do papado sem que fosse necessário romper
de vez com Roma, como fez Henrique VIII, quando fundou a Igreja anglicana, na
Inglaterra.
813
Bossuet destacou-se por sua defesa da unidade da e da Igreja galicana. Quando
em 1681 a questão galicana gerava divisões profundas no seio da Igreja da França, foi
convocada uma Assembléia do Clero, em que o baixo clero pretendia promover um cisma.
Bossuet atuou como o defensor da unidade desta Igreja. Na Assembléia, ele foi o escolhido
para pronunciar o discurso de abertura no qual ele lançou mão de seu Sermon sur l’unité
de l’Egl
ise
–, como também da redação da declaração final. Apesar de não ter conseguido
satisfazer nenhuma das duas facções, Bossuet conseguiu evitar a consumação do cisma.
814
Nessa Assembléia do Clero, tornada em seguida famosa, Bossuet lutou com ardor
para que os antigos direitos da Igreja da França fossem conservados. O papa Inocêncio XI
809
BLOCH, op. cit., p. 164.
810
Cf. BLOCH, op. cit., p. 164. Como afirma Marc Bloch, “nesses tempos confusos, qualquer um que
defenda a supremacia pontifical julga que os reis são apenas leigos; ao contrário, qualquer um que, a um
tempo, reivindique para os concílios a parte principal na governança da Igreja e para os diferentes Estados
uma espécie de autonomia eclesiástica inclina-se a, em maior ou menor grau, aproximar do sacerdócio a
condição régia”. ibid.
811
BARBE
Y, op. cit., p. 186.
812
ibid.
813
Cf. ibid., pp. 186
-
187.
814
Cf. CALVET, op. cit., pp. 293
-
294.
192
não queria reconhecer os direitos de franquias e regalias da Igreja da França, o que
provocava forte contencioso entre ela e o papado. O baixo clero queria o cisma para
separar
-
se
definitivamente de Roma. O papa, por seu lado, ameaçava dizendo que usaria de
meios violentos se preciso fosse para impedir que isto acontecesse. Se tais ameaças foram
capazes de amedrontar o rei Roberto no século XII, no século XVII não surtiu grande
efe
ito perante a altivez de Luís XIV e da firmeza do bispo de Meaux. Desta querela
galicana resultou a famosa Défense de l’Eglise gallicane, uma das obras mais célebres de
Bossuet. Até nos dias atuais a Igreja francesa reconhece que foi esta obra que a defendeu e
fez com que os seus antigos direitos fossem conservados, como também a defendeu do
ataque ultramontano.
815
Percebemos o envolvimento de interesses políticos por parte da monarquia francesa
todas as vezes que ela recorre ao sagrado. Era comum os reis recorrerem à esfera sagrada
em momentos de crise, sempre que sentiam a necessidade de dar brilho à monarquia para
aumentar o seu poder. Foi assim com Pepino o Breve, em 751, quando este recorreu à
unção régia pela primeira vez; como também com Roberto II o Pio, o primeiro a lançar
mão do rito curativo, por volta do ano mil.
Há um fenômeno que se repete freqüentemente no decorrer da história das dinastias
francesas. Estas, ao saírem das duras crises que por muitas vezes as desestruturavam, no
instante em que precisavam reparar os prejuízos que esses abalos causavam à popularidade
da realeza, o elemento que oferecia à propaganda lealista seus temas preferidos quase
sempre era o ciclo da realeza sagrada, principalmente o poder taumaturgo. Como um bom
exemplo temos Henrique IV no final do século XVI. Esse monarca, ao sair das guerras de
religiões que abalaram a França, em busca de legitimidade não recorreu a este mesmo
meio?
816
Recordemos que no final do culo XVII a monarquia francesa estava atravessando
um momento de intensa crise econômica e política, desencadeada pela revogação do Edito
815
Cf.
DUSSAULT
, in BOSSUET, 1874, op. cit., pp. 9-
10.
Em 1681, o rei reuniu a Assembléia
extraordinária de bispos da França solicitando-lhes de lembrar em uma declaração solene os grandes
princípios das Liberdades da Igreja Galicana. Bossuet, que acaba de ser nomeado bispo de Meaux e que é o
personagem mais marcante desta assembléia, é encarregado de redigir o texto. Sob o título de Declaração do
Clero Galicano sobre o Poder na Igreja ela se compõe de quatro artigos (de onde o nome de Déclaration des
Quatre Articles que a designa habitualmente). Eis aqui o resumo : 1) Os príncipes não estão submetidos à
autoridade da Igreja nas coisas temporais. 2) A autoridade do papa é limitada pela dos concílios gerais. 3) A
autoridade do papa é limitada pelas leis e costumes do reino e da Igreja da França. 4) A opinião do papa não
é infalível, a menos que ela seja confirmada pela Igreja. Em 19 de março de 1682, a declaração é subme
tida à
Assembléia do Clero da França e aprovada por unanimidade de seus bispos.
816
Cf. BLOCH, op. cit., pp. 118
-
119.
193
de Nantes e a política de guerras de Luís XIV. Sendo assim, Bossuet não foge à regra
quando, no artigo IV do livro nono da
Politique
, lança mão do aspecto sagrado da realeza.
Ao recorrer à antiga idéia arraigada na França de uma aliança estabelecida entre
Deus e os reis cristãos, a ponto d’Ele lhes ajudar nas batalhas, dando-lhes força e coragem,
Bossuet tenciona encorajar Luís XIV a enfrentar a guerra da sucessão que a poderosa
Grande Aliança está pretendendo fazer contra ele, caso ela venha a eclodir, que, neste
caso, somente por meio da guerra o rei poderá promover a paz na França. Por outro lado,
Bossuet pretende reforçar a imagem da realeza sagrada e com isso aumentar o poder do
monarca por quem nutre uma sincera afeição, num período em que ele vem sofrendo sérias
críticas por parte de seus inimigos estrangeiros, assim como no interior do reino.
194
C
APÍTULO VII
O PACIFISMO EM BOSSUET
Apesar de reconhecer que em alguns casos o príncipe tem o dever de empreender a
guerra, não podemos pensar que Bossuet a defendeu em si mesma. Pelo contrário, como
foi deixado bem claro, ele era um pacifista. Conforme observa Jacques Truchet, “não se
pode pensar que Bossuet aprovava as guerras de Luís XIV, nem que fosse sua intenção
fazer aprovar muitas guerras”.
817
No artigo IV do livro nono da
Politique
, de 1701, após ter exposto os casos em que
o príncipe deve fazer a guerra, Bossuet adverte que “Deus, entretanto (...) não ama a
guerra, e prefere os pacíficos aos guerreiros”.
818
Com base no Antigo Testamento, Bossuet
recorre ao exemplo de Davi para mostrar que os príncipes que derramam muito sangue
humano e empreendem muitas guerras, ainda que justas, são indignos de edificar uma casa
em nome do Senhor, que é o protetor da vida:
Deus não quer de forma alguma receber templo de uma mão sangrenta. Davi era um santo
rei, e o modelo dos príncipes: tão agradável a Deus que ele dignou
nomeá
-lo o homem
conforme seu coração. Ele nunca havia derramado sangue infiel nas guerras que se
chamavam guerras do Senhor: e se ele tinha derramado sangue dos israelitas, era o dos
rebeldes, que ele tinha poupado tanto que pôde. Mas bastou que esse fosse sangue humano,
para lhe fazer julgar indigno de apresentar um templo ao Senhor, autor e protetor da vida
humana. (...) Davi havia concebido o desejo de construir o templo por um excelente
motivo: e ele fala nesses termos ao profeta Nathan: ‘eu habito em uma casa de cedro: e o
arco da aliança do Senhor está ainda sob tendas e sob peles’. O santo profeta tinha mesmo
aprovado esse grande e piedoso desígnio em lhe dizer: ‘faças o que s tendes no coração:
pois o senhor está convosco’. Mas a palavra de Deus foi dirigida a Nathan, a noite
seguinte,
nesses termos: ‘eis aqui o que diz o Senhor: vós não edificareis templo em meu
nome. Quando s tiverdes acabado o curso de vossa vida, um dos filhos que eu farei
nascer de vosso sangue construirá o templo, e eu consolidarei seu trono como nunca’.
819
817
TRUCHET, op. cit., p. 260.
818
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 352.
819
ibid., pp. 353
-
354.
195
Bossu
et lembra que Deus ama os príncipes pacíficos e que somente aqueles que
têm as mãos puras de sangue são dignos de edificar um templo, a fim de consolidar o seu
trono. Neste caso, Salomão é o exemplo de príncipe pacífico utilizado por Bossuet:
‘Davi chama seu filho Salomão e lhe fala deste modo: meu filho, eu queria construir uma
casa ao nome do Senhor meu Deus, mas a palavra do Senhor me foi dirigida nestes termos:
Vós tendes derramado muito sangue, e vós tendes empreendido muitas guerras: s não
podereis
edificar uma casa em meu nome. Eu não deixei de preparar para a despesa da casa
do Senhor cem mil talentos de ouro e dez milhões de talentos de prata, com bronze e ferro
sem número, madeiras e pedras para toda a obra, com trabalhadores excelentes para pôr
tudo isso em obra. Tome então coragem, execute o empreendimento, e o Senhor estará
convosco’. (...) Tal foi a exclusão que Deus lhe na primeira parte do discurso profético.
Mas a segunda não é menos notável: é a escolha de Salomão para construir o templo. O
título que Deus lhe dá é o de pacífico. Mãos tão puras de sangue são as únicas dignas de
erguer o santuário. Deus não habita ele a glória de consolidar o trono a este pacífico,
que ele prefere aos guerreiros para esta honraria. Bem mais, ele faz desse pacífico uma das
mais excelentes figuras de seu Filho encarnado. (...) Deus recusa a Davi seus agrados pelo
asco do sangue do qual ele suas mãos encharcadas. Tanta santidade nesse príncipe não
podia apagar a mancha. Deus ama os pacíficos: e pre
fere a glória da paz à das armas, ainda
que santas e religiosas.
820
Apesar de a guerra ser quase ininterrupta na Europa moderna, o pacifismo foi
muito defendido. A prevalência da paz sobre a hostilidade armada já era sustentada desde o
medievo europeu. Na importantíssima cerimônia da sagração, os reis franceses prestavam
o juramento perante a Igreja e seu povo de conservar a paz na França. Conforme constata
Houx,
no estrondo contínuo das armas que ensurdeceu a história européia, a imagem do rei
pacífico
tem certa dificuldade para se impor. Contudo, ela existe. Quando Guilherme, o
Conquistador, ‘todo coberto de sangue e invasor do outro’, se apresenta diante do
arcebispo de Cantorbéry, este recusa lhe impor as mãos. (...) No dia de sua sagração, o rei
da
França presta juramento e repete muitas vezes: ‘eu me comprometo ao povo cristão que
me é submisso conservar uma verdadeira paz’. (...) o rei da França não é um conquistador,
mas um rei de justiça e de paz.
821
Como é possível perceber, esta idéia ainda enco
ntrava
-se presente no imaginário
dos franceses do século XVII, aparecendo claramente no pensamento de Bossuet. De longa
data Bossuet vinha expressando em seus textos de circunstâncias o desejo de pacificar a
França. Este sentimento era tão intenso em nosso
autor que em seu
Sermon sur les démons,
pronunciado em 1660
– um ano antes de Luís XIV assumir o seu reinado pessoal, em que
820
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 352
-
354.
821
HOUX, op. ci
t., p. 277.
196
Mazarino atuava como primeiro-
ministro
ele elogiou a Paz dos Pireneus, que foi
promulgada um dia antes. Este evento foi celebrado por Bossuet na elegante igreja das
Minimes
da Praça Real, em seu sermão inaugural da quaresma. O elogio de Bossuet é
dirigido à Rainha-Mãe, Ana d’Áustria, a Luís XIV e a Mazarino, quem negociou esse
tratado. No que se refere especificamente a Luís XIV e
a Mazarino, diz Bossuet,
não questão de admirar de ver nosso jovem monarca, sempre augusto, sem deter-se ao
meio de suas vitórias, dar limites à sua coragem, para deixar aumentar sem medida o amor
que ele tem por seus súditos, amar melhor, estender seus benefícios mais que suas
conquistas, encontrar mais a glória nas doçuras da paz que no soberbo instrumento dos
triunfos, e se comprazer da vantagem de ser pai dos povos que ser vitorioso de seus
inimigos? É Deus quem inspirou este sentimento. (...) Quem não glorificaria este grande
rei? Quem não bendirá (...) a mão sábia e industriosa? Etc. (...) Se ainda algum maldito
resto da malignidade passada, que ela tombe hoje diante desses altares, e que se celebra
abertamente este sábio ministro que mostra bem, em dar a paz que ele faz seu interesse do
bem do Estado e sua glória do repouso dos povos. (...) Sou francês e cristão: sinto (...) a
felicidade pública, e deposito meu coração perante meu Deus sobre o assunto desta paz
bem
-
aventurada, que não é menor o
repouso da Igreja que o do Estado.
822
Ainda neste sermão, Bossuet exalta o rei Salomão como “o pacífico”,
estabelecendo uma comparação direta entre ele e Luís XIV:
Vivat rex Salomon: viva o rei, viva o rei, viva Salomão o pacífico!’ Que ele viva, Senhor,
esse grande monarca; e que ele usufrua por muito tempo, feliz, da paz que ele nos deu, para
recompensá
-lo desta bondade que lhe fez amar a glória da paz antes que à das conquistas;
que ele não veja jamais seu Estado perturbado, nem sua casa dividida; que o respeito e o
amor concorram juntos, a fidelidade de seus povos seja inviolável, inabalável; e enfim,
para conservar por muito tempo a paz sobre a terra...
823
Salomão era o modelo de rei pacífico apresentado por Bossuet para ser seguido
pelos príncipes do século XVII, por Luís XIV especialmente. Como vimos anteriormente,
no artigo IV do livro nono da
Politique
, Salomão continuou a ser utilizado por Bossuet
como o modelo exemplar de príncipe pacífico. Fato importante. Este sermão foi concebido
sete anos após a Fronda, sendo que a crise econômica, social e política decorrente das
conseqüências das guerras que a França enfrentava na época encontrava-se entre os
motivos que impulsionaram as massas a aderirem esta revolta civil liderada pela nobreza e
a burguesia. Em 1660 Bossuet já percebia o quanto a paz no reino era imprescindível à
822
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., pp. 287
-
288.
823
ibid., pp. 288
-
289.
197
ordem e à paz pública. Sem dúvida, esta é uma de suas maiores preocupações no momento
em que redige o livro nono da
Politique
quatro décadas depois.
A terrível situação de miséria durante a Guerra da Liga de Augsburgo despertou
críticas internas à política expansionista de Luís XIV. Em sua célebre Lettre à Louis XIV,
de 1695, Fénelon critica Luís XIV por não colocar a paz como o seu primeiro objetivo e
adverte que a extrema situação de miséria em que o povo se encontra pode levá-lo a
revoltar
-se contra ele. De acordo com Fénelon, desde a Guerra da Holanda, “vós tendes
sempre querido dar a paz de mestre e impor as condições, em lugar de a reger com justiça e
moderação. (...) Enquanto isso vossos povos morrem de fome... A França inteira não é
mais que um grande hospital desolado e sem provisões... A revolta se acende pouco a
pouco de todas as partes... Vós reconduzis tudo a vós como se fosseis o Deus da terra e que
todo o resto só ti
vesse que ser sacrificado por vós”.
824
Neste sentido, no artigo IV do livro nono da
Politique
, Bossuet defende o
pacifismo como uma virtude fundamental a ser cultivada pelo príncipe cristão. Na
Oraison
Funèbre de Louis de Bourbon, Prince de Condé, pronunciada em 1687, Bossuet observa
que os reis devem usar de sua força e glória nos momentos certos, para defender o seu
reino quando este se encontra ameaçado por forças estranhas, visando trazer a paz e a
tranqüilidade. A não ser nestes momentos, os reis devem s
er pacíficos. Segundo ele,
reconhecei o herói, que, sempre o mesmo, sem exaltar-se para parecer grande, sem
humilhar
-se para ser servil e obsequioso, é naturalmente tudo o que deve ser para com os
homens. É semelhante a um rio majestoso e fecundo, que pacificamente traz para as
cidades a abundância que derramará nos campos, regando-os, que se a todos, não se
eleva e não se enche, se não quando se opõe resistência violenta ao doce declive, que
favorece tranqüilamente o seu curso. Tal a doçura e tal a for
ça do príncipe de Condé.
825
No decorrer de toda a sua trajetória, através de vários textos que escreveu, Bossuet
denunciou as conseqüências malévolas das guerras. Em seus trabalhos mais práticos, como
orações fúnebres, sermões e panegíricos, em que se dirigia mais diretamente aos seus
alvos, visto que eram pronunciados nas praças públicas, nas igrejas e na corte, Bossuet se
mostrava melhor. Segundo Truchet, ao contrário dos textos teóricos, nos “resumos dos
sermões e das notas tomadas de empréstimo de diversas épocas da carreira de Bossuet (...)
824
apud ANDRÉ, op. cit., p. 252.
825
BOSSUET, 1874, op. cit., p. 250.
198
o tom é muito mais pessoal e humano: sem requintar, sem refletir, o predicador denuncia
os males, muito evidentes, provocados pelas guerras”.
826
Em seu Panégyrique de Saint Bernard, pronunciado em 1653, Bossuet critica
os
príncipes que fazem a guerra, derramando o sangue de muitos cristãos, e suplica para que
Deus promova a paz na França.
827
Logo após Luís XIV ter declarado guerra à Inglaterra,
em 1666, Bossuet prega o
Sermon pour la Purification de la Saint Vierge
em sua
presença,
no qual Bossuet diz que quando duas grande nações fazem a guerra
refere
-
se à França e à
Inglaterra
as duas o punidas por Deus; e que esta punição pode iniciar-se tanto por sua
casa como pela nação estrangeira.
828
Segundo Truchet, “Bossuet introduz estas palavras
audaciosas nas
péroraison
do sermão inaugural da quaresma que ele ia pregar em
Saint
-
Germain
diante da Corte”.
829
No final do século XVII, após ter assistido aos nove anos da Guerra da Liga de
Augsburgo, Bossuet não foi o único francês a sentir que a França precisava de um longo
tempo de paz para refazer-se tanto interna como externamente. Além de Fénelon, Jean Le
Pelletier, uma testemunha desinteressada, que assistira a essa guerra, observa, “ninguém
estava mais convencido do que eu de que era preciso a paz, que (...) não se podia mais
fazer a guerra, que se sustentava por milagres. O interior e o exterior do Estado tinham
uma necessidade indispensável de repouso”.
830
A situação do país, após a Guerra da Liga
de Augsburgo é assim resumida por Voltaire, “a França era um corpo poderoso e robusto,
fadigada de uma longa resistência e esgotada por suas vitórias”.
831
Em seu tempo, Bossuet não foi o único a defender a paz, posicionando-se contra a
guerra. Esta posição foi tomada por muitos pensadores, inclusive pelos seus adversários.
Numa carta de 1693, endereçada a Cristóvão Brusseau, diplomata francês que residiu em
Hanover de 1673 a 1698, Leibniz assume a posição do primeiro eleitor de Hanover,
Ernesto Augusto, para quem trabalhava, dizendo que o seu senhor está disposto a aceitar o
pedido de paz de Luís XIV desde que a liberdade germânica seja assegurada.
832
Nós
826
TRUCHET, op. cit., p. 283.
827
Cf. BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., p. 285.
828
Cf. ibid., pp. 285
-286.
829
TRUCH
ET, op. cit., p. 285.
830
apud ANDRÉ, op. cit., p. 252.
831
ibid.
832
“Se os projetos do rei pretendem conseguir uma paz razoável, e a conservação dessa liberdade, sempre
serão aceitos. Porém, como parece que o Conselho do rei cristianíssimo pretende separar
do Império todos os
territórios situados a oeste do Rhin, arruinar e deixar indefesos a muitos dos territórios que se encontram do
outro lado deste rio, é impossível que um alemão, que seja ademais um homem honrado, e, sobretudo, um
199
conhecemos o estilo discreto, diplomático, desse conselheiro de príncipe. Entremeio aos
elogios que dirige a Luís XIV, Leibniz mostra que os inimigos do rei dizem que ele pede a
paz sem realmente desejá-la. O filósofo alemão censura os males causados por suas tropas,
referentes às devastações e pilhagens que estas vinham fazendo durante a Guerra da Liga
de Augsburgo, mas mostrando-se disposto a acreditar que tais atos não tinham sido
ordenados pelo monarca.
833
Leibniz critica a falsa modéstia de Luís XIV ao fingir não ter
conhecimento de sua grandeza afirmando que mantém a guerra para conservar a segurança
da França frente à terrível ameaça de seus inimigos.
834
Por fim, conclui Leibniz, apelando
que Luís XIV a paz à Europa mediante um acordo que seja seguro para os dois lados:
“posto que o rei tem tido agora a prova de sua grandeza, que o põe acima desses temores,
resta esperar que ele outorgue a paz à Europa, porém uma paz em que ambas as partes
possam ter garantias, mediante concessões que ponham a gente em situação de não temer
ser ultrajado e arruinado em qualquer momento”.
835
Pierre Bayle (1647-1706), um dos maiores críticos da monarquia absolutista,
também defendeu a paz. De um grande espírito crítico, ele praticamente liderou o
movimento de livre pensamento, na segunda metade do século XVII, na França.
Movimento este que causou preocupações em alguns de seus contemporâneos, entre ele
s
Bossuet. Bayle detestava a guerra e criticava os príncipes que a empreendiam sob qualquer
pretexto. Segundo Bayle “as leis, os estatutos, os privilégios são prorrogados durante o
grande príncipe, possa permanecer indiferente”. LEIBNIZ, “Carta a Cristobal Brosseau, 29 de junho de
1693”, in: LEIBNIZ, 1984, op. cit., p. 287.
833
“É dito que a França atua sabiamente ao falar sempre de paz, ao tempo que, não obstante, faz a guerra
com todas as suas forças; enquanto que os aliados não fazem nem um nem outro; responderei, senhor, que se
eu conhecesse o coração do rei, não diria que ele fala de paz, mas que realmente tem o projeto de obtê
-
la. Por
minha parte, tenho a maior disposição do mundo para crer que as intenções de Sua Majestade são boas. (...)
Estou de acordo que o rei é grande, mais do que pode dizer-se, tanto no que se refere ao poder, como no que
concerne ao mérito e elevação de espírito; e, como creio que tem bom coração, imagino que está disposto a
obte
r uma paz em que encontre totalmente protegida sua segurança, e que não permite nem ordena os grandes
males que causam suas tropas, mas (...) porque os crê necessários para a proteção de seu reino. Esta é a única
maneira de desculpá
-
lo...”. LEIBNIZ, in LEI
BNIZ, 1984, op. cit., ibid., pp. 287
-
288.
834
“Se Sua Majestade refletisse o suficiente sobre sua própria grandeza, veria que os males que ordena e
permite não são em absoluto necessários, e, em conseqüência, que suas ações se me está permitido dizer
nem
sempre são tão justas como grandes. O excesso de discrição e de modéstia é um defeito próprio dos
mais sábios, porém é (...) um defeito, tanto maior se quem o tem é um rei, que com ele causa tantos males ao
mundo; porque, com efeito, uma boa parte das calamidades que a cristandade vem suportando vinte anos
procede daqui. A desgraça dos panegiristas do rei, assim como a nossa, radica em que ele não crê no que
dizem, pois, se acreditasse e, sendo tão escrupuloso como é, daria a paz à Europa desde hoje
, ao ver que pode
fazê
-lo com toda tranqüilidade. Esta é, ao menos, minha opinião, e o grande conceito que tenho da retidão de
seu coração faz com que acredito que ele não continua a guerra por ambição, ou para engrandecer-se, se não
porque está persuadido de que é necessário para sua segurança. Esta convicção desaparecerá de seu ânimo se
der crédito ao que, com razão, se diz de sua eminente grandeza. É suficiente que o rei possa e deve sair de
seu erro, em vista da magnitude dos males que dele resultam...”
. ibid., pp. 288
-
289.
835
ibid., p. 290.
200
estrondo das armas; os príncipes encontraram cem meios de alcançar o poder arbitrário e
daí decorre que alguns não saberiam suportar a paz”.
836
A verdade é que neste período os teóricos já cansados de tantas guerras lutavam em
prol do restabelecimento da paz. Conforme observa Jacques Truchet, na segunda metade
do século XVII, houve na França um “poderoso movimento de pacifismo espontâneo, que
se desprende diretamente dos males e horrores da guerra”.
837
Não era sem razão que Bossuet empenhava-se imensamente em defesa da paz na
França, visto que, como lembra Truchet, “a França estava em guerra desde um quarto de
século; um homem da idade de Bossuet não tinha por assim dizer jamais conhecido a
paz”.
838
A este respeito observa Perry Anderson que, “a paz era uma exceção
meteorológica” nos três séculos em que predominou o absolutismo no Ocidente. “Tem-
se
calculado que, em todo o século XVI, houve apenas 25 anos sem operações militares de
larga escala, na Europa; no século XVII, passaram-se apenas sete anos sem guerras
importantes entre Estados”.
839
No final do século XVII, em certos momentos, até mesmo o Grande Rei esforçou-
se para conseguir a paz. Como já foi observado num capítulo anterior, desde o início de seu
reinado pessoal, Luís XIV utilizou-se de todos os meio de comunicação para exaltar a sua
glória. É importante lembrar que a sua imagem de príncipe promovedor da paz também
devia ser e era propagada. Afinal, ele tinha de cumprir o juramento pronunciado em sua
sagração, em 1654, na igreja de Reims, de que seria um rei pacífico e não um conquistador.
Na época moderna, as viagens reais, as recepções, as visitas solenes dos reis às
cidades assumiam uma forma triunfal, ritualizada, de uma entrada real, gênero de ritual de
fins do medievo. Luís XIV fez várias entradas reais. Entre elas destacou-se a entrada real
que fez em Paris ainda crianç
a para celebrar sua ascensão ao trono em 1643, como também
à que assinalou a sua volta a Paris para comemorar sua vitória sobre a Fronda, em 1653.
No entanto, a entrada real que Luís XIV e Maria Tereza fizeram em Paris após as núpcias
reais, em 26 de agost
o de 1660, foi a mais célebre de todas. Nela, comemorou-
se a Paz dos
Pireneus, concluída entre a França e a Espanha no ano anterior, a qual foi selada por esse
836
apud
SÉE, Henri.
Idées politiques en France ao XVII siècle
.
Paris: Marcel Giard Libraire
-
Éditeur, 1923,
p.
352.
837
TRUCHET, op. cit., p. 48.
838
ibid., p. 287.
839
ANDERSON, op. cit., pp. 32
-
33.
201
ilustre casamento. As decorações dessa entrada real variavam “em torno do tema do triunfo
e da
paz”. De acordo com Peter Burke,
um dos portões ostentava a inscrição LUDOVICO PACIFICO, ‘A Luís, o Pacífico’. Outro
assumia a forma do Parnaso, com Apolo e nove Musas representando as artes e as ciências
libertadas do cativeiro pela paz. No Marché Neuf, um arco do triunfo exibia a inscrição
LUDOVICO PACATORI TERRARUM, ‘a Luís, o pacificador do mundo’, e mostrava
Hércules [isto é, o rei, segundo o comentário impresso] recebendo um ramo de Oliveira.
840
O fim da Guerra da Devolução, 1668, foi celebrado em um festival em Versalhes
com uma encenação sobre “a paz recém-concluída”. Tais celebrações recebiam formas
mais permanentes como pinturas que foram produzidas sobre o tema “Luís pacifica a
Europa”. Por outro lado, histórias e tapeçarias celebravam as façanhas do rei nesta guerra.
As medalhas produzidas posteriores a esta guerra comemoravam suas conquistas.
841
Ao término da Guerra da Holanda, 1678, o Te Deum foi entoado por cinco vezes
para celebrar as conquistas e a paz. Esta foi celebrada com o tratado de Nimega. Segundo
Peter Burke, “o tratado de Nimega foi solenemente proclamado em 29 de outubro de 1678
em 11 pontos de Paris, ao som de tambores e trombetas; em seguida houve salvas de
canhão e queimas de fogos de artifício e o Te Deum foi entoado na cidade e n
as
províncias”.
842
Em 1679, a paz de Nimega também foi celebrada por meio de versos, balés,
cerimônias, etc.
843
Apesar de toda essa propaganda que mostrava Luís XIV como o pacificador da
Europa, desde o início de seu reinado pessoal, nas guerras que empreendia Luís XIV
pensava em aumentar a sua glória, relegando a paz para último plano. Mas a partir de
1693, perante a crise pela qual a França estava passando durante a Guerra da Liga de
Augsburgo, devido aos efeitos da economia de guerra somados à Grande Fome causada
por uma série de más colheitas que vinham se arrastando desde 1691, ele começa a buscar
estabelecer tratados de paz com os inimigos.
Luís XIV não foi indiferente à miséria profunda em que se encontrava a maioria de
seus súditos durante a Guerra d
a Liga de Augsburgo. Em uma carta de sua segunda esposa,
Madame de Maintenon, escrita em 1692, ela dizia, referindo-
se a Luís XIV, “ele conhece a
miséria de seus povos; nada lhe é escondido sobre isso, busca-se todos os meios de a
840
BURKE, 1994, op. cit.,
pp. 55
-
56.
841
Cf. ibid., p. 84.
842
ibid., p. 97.
843
Cf. ibid.
202
suavizar”.
844
Em 1693, escrevia Madame de Maintenon, “eu daria tudo para a paz. O rei a
fará, assim que o puder, e a quer tão verdadeiramente quanto nós”. Como Luís XIV sempre
era informado da situação do seu reino, ele não queria levar essa guerra ao extremo. Desde
1693, multiplicava as negociações como também as concessões, e empenhava-se para
desfazer a coalizão.
845
No entanto, esta desgastante guerra durou até 1697.
Será que a esta altura o desejo de paz teria suplantado o desejo de glória no espírito
do Grande Rei? Tudo indica que não. Nas cartas que escreveu ao neto, Filipe V, rei da
Espanha, nos primeiros anos da Guerra da Sucessão, aparece o desejo de estabelecer a paz
com a Grande Aliança, devido à preocupação com a miséria dos súditos, mas o desejo de
glória não perde o seu posto. Numa carta a Filipe V, redigida em 1 de fevereiro de 1703,
Luís XIV reprime o neto por ter excluído o cardeal d’Estrées de seu Conselho, um homem
de sua confiança, que escolhera para auxiliá-lo nos assuntos de guerra.
846
Em seguida,
ameaça que, se o neto não voltar atrás, aceitando a presença do cardeal d’Estrées no
Conselho, ele retirará a sua ajuda e dará a paz tão desejada por seus súditos:
Esgoto o meu reino: toda a Europa se liga contra mim para vos fazer sucumbir; e a
Espanha, insensível às desgraças de que está ameaçada, em nada contribui para a sua
defesa. As moléstias, os gastos, tudo recai sobre mim, sem que eu tenha outra pretensão
que não seja ajudar-vos contra os esforços dos vossos inimigos. (...) Amo-vos demasiado
ternamente para me resolver a abandonar-vos. Reduzi-me, no entanto, a esse desagradável
extremo, se deixo de estar informado do que sucede nos vossos conselhos. Não poderei
tomar parte neles se negais entrada ao cardeal d’Estrées, e não apenas a ele, mas também
ao duque d’Harcourt e a Marcin, e ver-
me
-ei obrigado a chamá-lo, pois uma embaixada
ordinária não convém a um homem do seu caráter e da sua dignidade; mas retirando-
o,
terei apenas em conta o bem que o meu reino parece exigir de mim. Não é justo que os
meus súditos fiquem absolutamente arruinados para manter a Espanha contra a vontade
dela; e eu o tentaria em vão, quando vejo da vossa parte apenas contradições,
insensibilidade, e vossa falta de confiança em mim e naqueles que vos envio; por fim, as
resoluções não seriam convenientes. Escolhei, pois, o que preferis: ou a continuidade da
minha assistência, ou o deixai-vos levar pelos conselhos interessados dos que vos querem
perder. Se for o primeiro, ordenai ao cardeal Porto-Carrero que entre no Despacho, ainda
que seja apenas por seis meses; continuai permitindo a entrada ao cardeal d’Estrées e ao
presidente de Castela (...) Se tomais o segundo partido, sentirei vivamente a vossa perda,
que consideraria como própria; mas pelo menos avisai-me, o que será uma débil mostra de
reconhecimento pelas minhas ajudas; será, no entanto, de considerável valor pela facilidade
que me dará de procurar a paz para o meu povo.
847
844
apud ANDRÉ, op. cit., p. 245.
845
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 252.
846
LUÍS XIV, “Carta a Filipe V, 1 de fevereiro de 1703”, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 106.
847
LUÍS XIV, ibid., pp. 107
-
108.
203
Em uma outra carta a Filipe V, escrita em 1 de agosto de 1707, Luís XIV lamenta a
tristeza do neto pela perda de Nápoles. Explica-lhe que não pôde ajudá-lo a empreender
esta conquista, pois a França, esgotada, estava destinando seus últimos recursos apenas
aos gastos mais essenciais, para defender-
se.
848
Luís XIV percebe a necessidade de
promover a paz para acabar com o sofrimento dos seus súditos. Mas deixa explicito que
procurará negociar um tratado de paz que assegure a sua glória como a de seu neto:
Se as tropas que destináveis a socorrê-lo tivessem sido suficientes para o defender, pelo
menos durante certo tempo, eu teria feito novos esforços, embora talvez inúteis, a fim de
reunir os navios necessários para o seu transporte. Mas, na verdade, o socorro de mil ou
mil e duzentos homens que teriam chegado a Nápoles não era objetivo bastante
considerável para me expor a perder navios, ou para fazer gastos supérfluos, numa altura
em que Vossa Majestade por si própria a extrema dificuldade para satisfazer os gastos
mais essenciais. Vejo que aumenta por isso a vossa confusão e, conhecendo os vossos
sentimentos, estou certo que não podeis desaprovar que eu considere freqüentemente o que
devo a súditos fiéis, cujo zelo e as grandes guerras que sustive esgotaram. Conheceis os
deveres de um rei e estais comovido com o amor de povos que apenas governais há sete
anos; admiti
também que eu devo considerar uma nação distinguida pelo seu afeto aos seus
reis, como o país onde nascemos, onde reino tantos anos, que devo legar aos meus
descendentes, talvez aos vossos, assim como os nossos antepassados mo deixaram. (...) não
posso
e nem devo fazer calar a voz dos meus povos, que se ergue a Deus, se descuido
aliviá
-los nas suas desgraças. Os sofrimentos da guerra aumentam diariamente, e a entrada
do duque da Sabóia na Provença traz uma nova desolação. Espero que não conseguirá os
se
us desígnios e, se fracassar, o fruto principal será ter os meus inimigos mais dispostos à
paz no próximo inverno do que estiveram até ao presente. Já é tempo de concluí-la, e s
próprio não me aconselharíeis a perder a ocasião, se se apresentasse. Os vos
sos interesses e
os meus serão os mesmos para mim. Dar-
vos
-ei a conhecer todas as propostas que possam
levar efetivamente a um tratado. Nada esquecerei para o tornar glorioso e sólido para
Vossa Majestade. Tudo se fará de acordo com isso...
849
no final de sua vida, Luís XIV mostra-se arrependido por ter valorizado
demasiadamente a glória e pede ao neto para que busque a paz. Conforme observa Saint-
Simon, um cortesão do rei, moribundo, disse Luís XIV ao neto, “
mon infante
vós sereis um
grande rei; não me imiteis no gosto que tive pelas construções, nem o que eu tinha pela
guerra; esforçai-vos, ao contrário, de ter a paz com vossos vizinhos... Procurai consolar
vossos povos, o que eu estou bastante infeliz por não ter podido fazer”.
850
Poucos dias antes de sua morte, Luís XIV escreveu uma carta, que confiou ao
Marechal de Velleray, para ser entregue ao bisneto, o futuro Luís XV
851
, quando este
848
LUÍS X
IV, “Carta a Filipe V, 1 de agosto de 1707”, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 109
-
110.
849
LUÍS XIV, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 110
-
111.
850
apud HENRI
-
BERR, in ANDRÉ, op. cit., p. XXVI.
851
O filho de Luís XIV, de quem Bossuet havia sido o preceptor, morrera em 1711. No ano seguinte, o seu
neto também morreu. Daí o motivo de Luís XIV ter sido sucedido pelo bisneto.
204
completasse dezessete anos. Nesta carta, Luís XIV aconselha o Delfim, entre outras coisas,
“a preferir a paz à guerra e a manter os impostos baixos”.
852
No final da carta, o rei
adverte: “lembrai-vos, meu filho, que a mais brilhante vitória custa sempre muito caro,
quando é preciso pagar com o sangue de seus súditos”.
853
Para avaliar o reinado de Luís XIV devemos levar em conta alguns fatores
fundamentais. Um deles diz respeito à extensão. Este foi o reino mais longo da história
moderna européia. A longevidade de Luís XIV é de fundamental importância. Devemos
considerar que nos seus setenta e dois anos de reinado, um período tão longo, suas atitudes
e políticas certamente sofreriam modificações, à medida que o seu reinado avançava até a
geração de seus netos, ele não permaneceu imune às mudanças das circunstâncias e das
idéias.
854
Em sua política externa, Luís XIV recorria a um jogo duplo, na verdade agia de
acordo com as circunstâncias. Nos momentos em que a Europa se encontrava enfraquecida,
o seu desejo de glória se expressava pelas armas, como a tomada e ocupação de
Estrasburgo e do cruel incêndio do Palatinado, quando do recuo do Império espanhol; já
nos momentos em que o equilíbrio europeu se restabelecia, após a revogação do Edito de
Nantes, por exemplo, em que a Europa se voltou inteira contra a França, o Grande Rei se
via forçado a agir com prudência e recorrer a meios mais pacíficos, utilizando-se da
diplomacia, “é o segredo e o jogo das intrigas duplas ou triplas”.
855
Capaz de se impor a toda a Europa nos anos 1660, no início de seu reinado pessoal,
Luís XIV dominou a Europa por algum tempo. Porém, com o prolongamento da Guerra da
Holanda, esta hegemonia sobre a Europa continental passou a ser fortemente ameaçada.
Se, no dia seguinte à Paz de Nimega, em 1679, o Grande Rei se achava capaz de desafiar
toda a Europa, nos anos 1680, sobretudo a partir de 1685, sua arrogância custará muito
caro à França. A preponderância francesa deu lugar a um equilíbrio europeu, em que a
posição da França passou a ser claramente medida e contestada; a partir daí a França
combaterá com grande dificuldade até o final do século XVIII para retomar a sua antiga
posição.
856
De fato, com o equilíbrio europeu, o qual se deu devido ao surgimento de novas
852
BURKE, 1994, op. cit., p. 135.
853
apud HENRI
-
BERR, in ANDRÉ, op. cit., nota de rodapé, p. XXV.
854
Cf. SHENNAN, op. cit., p. 7.
855
MANDROU, op.
cit., p. 237.
856
Cf. ibid., p. 238.
205
potências, sobretudo a inglesa, “a vontade de hegemonia que animou Luís XIV no dia
seguinte da submissão espanhola não tem mais razão de ser.
857
Após as derro
tas e decepções diplomáticas pelas quais passou, sobretudo a de 1697,
Luís XIV percebeu que tinha de tratar as outras potências com maior cautela. Mas apesar
das dificuldades enfrentadas, sobretudo na Guerra da Sucessão, a idéia de que “a França
deve ser reputada primeiro poder do mundo” permanece por muito tempo no espírito do
Grande Rei, de seus ministros e diplomatas. No entanto, este sonho de hegemonia européia
era impossível de se concretizar devido ao equilíbrio europeu que contestava o desejo de
Luís
XIV de impor sua vontade a toda a Europa, considerando
-
a abusiva.
858
Em sua política externa, Luís XIV não seguia um plano traçado anteriormente, ele
agia de acordo com as circunstâncias, por isso é que o seu desejo de glória e poder
explícitos em alguns momentos lugar ao pacifismo da diplomacia em outros. Segundo
Méthivier, ao parafrasear G. Pagés, “a chave da política estrangeira do reino está
primeiramente na psicologia do rei, adaptada, além disso, às circunstâncias. Pouco a
pouco, o orgulho da força toma o passo sobre a prudência natural. Ele tinha um plano
preconcebido? Uma política a seguir? Com efeito, ele obedece à preocupações imediatas,
cada dia renovadas’”.
859
Em um reino tão longo como foi o de Luís XIV não podemos achar que ele usou a
mesma política do início ao fim do reinado. Suas idéias e ações estavam relacionadas às
circunstancias, às mudanças internas como externas. Conforme percebe Louis André,
o exame dos fatos
ocorridos
durante esse reinado pessoal, longo de mais de meio século,
prova
sem contestação possível que a política real não pode ser resumida em uma fórmula
única e peremptória, ou bem ser encarada de um modo geral e no seu conjunto. (...) ela não
foi a mesma de uma extremidade a outra. As idéias [quando ele as teve] as concepções, os
princípios políticos, as características do soberano, aquelas dos colaboradores imediatos, e,
enfim, as circunstâncias, tudo isso mudou ao curso de cinqüenta e quatro anos, durante os
quais Luís XIV deteve o poder. E, durante o mesmo lapso de tempo, modificações são
produzidas, também, na Europa: aquela de 1686, por exemplo, de forma alguma se
assemelha à de 1661. (...) Sem dúvida estaria-se próximo da verdade se se descobrisse que
se sucederam durante meio século de objetivos variáveis, de direções
determinadas não por
um único motivo, mas por circunstâncias.
860
857
ibid., p. 235.
858
Cf.
MANDROU, op. cit., p. 240.
859
MÉTHIVIER, op. cit., p. 68.
860
ANDRÉ, op. cit., p. 3.
206
Para uma melhor compreensão da política externa de Luís XIV devemos levar em
conta também a sua relação com a política interna. No momento em que Luís XIV pôde
contar com o exército mais poderoso do mundo, graças a Le Tellier e Louvois, com uma
marinha de guerra de 300 navios e uma excelente situação financeira, graças a Colbert, é
fácil entender que tudo isso o estimulava a empreender guerras de conquista para aumentar
a sua glória. Por outro lado, no momento em que houve o enfraquecimento dessas forças
terrestre e marítima, bem como das finanças, e em que a situação extrema de miséria é
evidenciada por motins da fome e críticas internas, a voz alta e firme de Luís XIV dá lugar
à moderação e à
s concessões.
861
Na primeira parte de seu reinado pessoal, de 1661 até 1688, Luís XIV contou com o
apoio de seus súditos que o cortejavam. Até o princípio da Guerra da Liga de Augsburgo o
Grande Rei tinha a aprovação de seus súditos que se alegravam com os sucessos obtidos
por ele e se orgulhavam do fato de seu rei ter colocado a França sobre os demais reinos da
Europa, considerando-se tão gloriosos quanto ele.
862
Mas a partir da segunda parte do
reinado, sobretudo após a Grande Fome de 1693-1694 e às concessões feitas por ele ao
término da Guerra da Liga de Augsburgo, este mesmo povo o desaprovava. No final de seu
reinado o povo “insultou seu cadáver, que teve de ser enterrado à noite”.
863
O preço da glória internacional para um monarca moderno, que se reflete na
s
oscilações da opinião pública francesa nas diversas fases do longo reinado de Luís XIV, é
igualmente um problema que aflige Antônio Vieira nos tempos instáveis da transição da
dominação espanhola para a restauração portuguesa.
Em sua árdua batalha para que Filipe IV concluísse a paz com Portugal, Antônio
Vieira esforça-se no livro anteprimeiro de sua História do Futuro, de 1664-1665, para
fazer entender ao monarca espanhol que a maior reputação e glória de um príncipe não
consistem no reconhecimento dos homens aqui na terra, mas sim em fazer a vontade de
Deus:
E se esta razão, ainda em termos tão apertados, é sempre verdadeira, quanto mais no caso
presente, em que a grandeza de Espanha e sua potência é o maior seguro de sua reputação?
Pedir paz quem se não pode defender da guerra poderá ser menor crédito, mas dar a paz,
não porque a mister, senão porque a quer dar quem pode fazer, e apartar a guerra,
sempre é generosidade, honra, reputação e glória. O grande poder é muito confiado. Poder
pôr em campo doze legiões de anjos e mandar embainhar a espada a Pedro foi a maior
861
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 4.
862
Cf. ibid., pp. 246, 356.
863
ibid., p. 356.
207
glória do poder supremo. Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que poder o que quer;
nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna mais que não querendo o que pode; e
não poder querer o que Deus não quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza. Mas
se em toda a idade tem decência e decoro a gentileza desta resolução, nos maiores anos
ainda é incomparavelmente maior. Pelejam os pastores de Abraão com os de Ló, os do tio
com os do sobrinho: Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar sobre a
terra, quando os anos o chamavam mais para o Céu. Oh! Poderosíssimo monarca Felipe
IV, o Grande! Dai licença para que tenham entrada a vossos ouvidos os ecos destas últimas
cláusul
as, não de meu discurso senão de meu desejo (...) que se não derrame sangue cristão
e sobre cristão espanhol, pois é aquele de que mais puramente se alimenta a Santa Madre
Igreja e de quem a cabeça dela recebe os espíritos, com que vivifica e anima seus ma
is
distantes membros.
864
Antônio Vieira aproveita-se do fato de Filipe IV estar no leito de morte para
recordar
-lhe que a maior preocupação de um cristão deve ser com a salvação de sua alma.
Lembra
-lhe do fato de que ele é apenas o ministro de Deus aqui na terra e deve agir
conforme os Seus desígnios, deixando o mundo pacificado, particularmente concluindo um
acordo de paz que assegure as conquistas de Portugal:
A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi saber morrer.
Merecestes
na vida o título de Grande, maior sereis no fim dela, se ao de grande
acrescentares o de justo. Não se pode pagar a Deus o que é de Deus, sem dar a César o que
é de César; e seria grande desgraça perder o Reino eterno por um temporal, já perdido. (...)
Gr
ande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele as restituições que
nem seus predecessores fizeram nem ele havia de fazer. Felicidade é levar abatida das
contas que se hão de dar a Deus uma partida tão grossa como o Reino de Portugal e suas
Conquistas (...). O tratado de uma boa e justa paz podia ser uma bula de composição geral,
com que se levassem purgados todos estes encargos: não queirais levar sobre vós e deixar
sobre vossos filhos, por cima de tanto sangue derramado, o que ainda se pode derramar.
Lembrai
-
vos, Senhor, debaixo de que nascestes; e seja este o último suspiro de nosso afeto;
nascestes no dia em que morreu o Rei dos Reis e Monarca Supremo do Mundo para dar
exemplo de morrer a príncipes: ponde os olhos neste soberano exemplo, firmai o título de
rei com o de católico, pois sempre prezastes mais o de católico que o de rei; seja parte do
sacrifício a repartição das vestiduras, e leve embora a túnica àquele a quem coube em sorte;
e faça-se tudo diante de vossos olhos, antes que os fecheis. Se vos parece amargoso este
trago, gostai o fel e não o passeis da boca: com esta obra tão consumada podeis entregar a
alma segura nas mãos do Padre, que é Rei e Senhor, o que importa, com uma inclinação
de cabeça podeis deixar pacificado
o Mundo: deixai a paz por herança à vossa esposa. Esta
será a maior prenda do vosso amor, este o troféu maior de vossas vitórias!
865
Bossuet também buscava a todo instante lembrar a Luís XIV que ele devia colocar
a salvação de sua alma em primeiro plano. Aliás, esta não era apenas uma preocupação do
mundo eclesiástico. Assim como os homens do século XVI, a maior preocupação dos
864
VIEIRA, s.d., op. cit., p. 90.
865
ibid.,
pp. 91
-
92.
208
contemporâneos de nossos autores era com a vida após a morte, portanto, em salvar a sua
alma.
Antônio Vieira foi um estadista engajado na luta para o fortalecimento da
monarquia portuguesa, por meio da paz. Isto fica muito evidente em sua missão do acordo
entre Portugal e Holanda. Os holandeses que não se conformavam em ter perdido
Pernambuco aos portugueses, pretendendo reconquistá-lo, queriam uma indenização pela
perda. Antônio Vieira sugeriu que D. João IV entregasse Pernambuco aos holandeses em
troca da paz. Em seu entendimento, valia a pena ter novamente a Holanda como uma
aliada de Portugal contra a Espanha garantindo assim a paz e a segurança de todo o
império português que se desejava restaurar e fortalecer, mesmo que para isso fosse preciso
deixar Pernambuco aos holandeses. A sugestão de Antônio Vieira foi vista com maus olhos
por seus inimigos jesuítas que o acusaram de traido
r.
Consideramos
que,
enquanto Bossuet defendeu sempre a paz, Luís XIV agia
conforme as circunstâncias. No início de seu reinado pessoal, quando os Habsburgos da
Espanha e da Áustria estavam enfraquecidos e que a França alcançara a hegemonia
européia, ele a desprezou. E depois da revogação do Edito de Nantes, em que a Europa
em peso se voltou contra a França, e das conseqüências drásticas da Guerra da Liga de
Augsburgo, passou a defendê-la. Mas, mesmo assim, não deixou de se preocupar com a
sua glória. Isto será mais bem compreendido no momento em que levamos em
consideração que Bossuet e Luís XIV encontravam-se em condições diferentes. Bossuet
falava enquanto bispo e teólogo político; Luís XIV enquanto rei, aquele que detinha o
poder na prática. Ele deixou bem claro em diversos trechos de suas
Memórias
a
preocupação que tinha em assegurar a glória de sua família. Não devemos nos esquecer
que a glória era extremamente valorizada pela aristocracia do século XVII. Sendo assim,
não podemos esperar que Luís XIV não sofresse a influência de seu meio, e não desejasse
alcançá
-la acima de tudo. Assim como em Bossuet, a paz foi uma preocupação constante
em Antônio Vieira. Quando incitava os reis de Portugal à conservação e ampliação de suas
conquistas, como também celebrava as vitórias alcançadas pelos portugueses contra os
inimigos espanhóis e holandeses, a preocupação de Antônio Vieira não era em aumentar a
glória dos reis. Em sua concepção, estes eram meios de se obter a paz.
Bossuet era muito sensível e se horrorizava com as conseqüências das guerras,
como a pobreza e a miséria causadas por elas. No livro terceiro da
Politique
, escrito entre
1677 e 1679, ele afirma que a maior característica da autoridade paternal é a bondade. Por
209
isso, o rei dever reinar em prol do bem público, procurando atender os desejos do povo;
deve proteger os povos, sobretudo os pobres.
866
Os reis violentos e sanguinários, que são
impiedosos com os seus súditos, serão castigados por Deus da mesma forma. Pois, segundo
Bossuet, na Bíblia está escrito que “o pão é a vida do pobre: quem o tira dele é um homem
sanguinário”.
867
No momento em que se empenhou em concluir a paz com a Grande Aliança a partir
de 1693, durante a Guerra da Liga de Augsburgo, assim como algum tempo depois no
decorrer da Guerra da Sucessão, uma das verdadeiras preocupações de Luís XIV era
suavizar a situação de miséria de seus súditos. Afinal, nenhum contemporâneo de Luís
XIV o descreveu como sendo uma pessoa insensível. Mas precisamos considerar também
que ele tinha que passar uma imagem de que se preocupava com os seus súditos, pois os
reis da França eram considerados pais do povo e deviam zelar por ele. Nas
Memórias
, após
mostrar ao filho todas as medidas que tomou para diminuir a fome de seus súditos devido à
colheita de 1661, diz Luís XIV, “por fim, apareci diante de meus súditos como um
verdadeiro pai de família que abria a dispensa de sua casa e distribuía com eqüidade os
alimentos aos seus filhos e familiares”.
868
Recordemos que a idéia de que os reis eram pais
dos
súditos era um dos pilares da doutrina do direito divino dos reis, cuja função era
reforçar a autoridade real, haja vista que defendia que os súditos deviam obedecer ao rei
como um pai. Tal idéia é muito bem defendida por Bossuet no livro terceiro da Polit
ique,
em que trata das características da autoridade real. O aumento da miséria quando das
guerras também preocupou Antônio Vieira.
As constantes guerras desencadeadas por Luís XIV estavam causando uma crise na
economia da França, no final do século XVII. Bossuet tinha plena convicção de que isto
levava à desestabilização do poder do monarca, visto que eram nos períodos de crises que
as críticas à monarquia absolutista se tornavam mais agudas. Desta forma, Bossuet utilizou
todo o seu poder argumentativo para defender a imagem de um príncipe pacífico, que,
em sua concepção, este era o melhor meio para o seu príncipe por direito divino conservar
o poder forte e centralizado em suas mãos. Luís XIV também tinha conhecimento das
críticas dirigidas à sua política de guerras, no momento em que a fome era generalizada na
França, e do perigo que essas críticas representavam ao seu poder. Ao aconselhar Filipe IV
866
Cf. BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 71
-
79.
867
ibid., p. 84.
868
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 43. A respeito da preocupação de Luís XIV com a miséria dos súditos, ver
ibid., pp. 24, 42
-
44.
210
a concluir a paz com Portugal, a maior preocupação de Antônio Vieira consistia em
fortalecer o poder de D
. Afonso VI.
211
CAPÍTULO VIII
O PRÍNCIPE PACÍFICO DIANTE DAS GUERRAS CIVIS
Como o príncipe pacífico, promovedor da paz e da ordem no reino, deveria se
portar diante das guerras civis? Em que sentido mantendo a nobreza na corte, afastada do
poder e das armas, e, ao mesmo tempo conservando consigo um forte exército, o príncipe
estaria promovendo e conservando a paz em seu reino? Responder a estas questões é o
objetivo deste capítulo.
Bossuet dedica o artigo terceiro do livro nono da
Politique
, redigido em 1701, para
tratar das guerras civis.
Sustentado
nas
Sagradas Escrituras, ele lembra que o rei Davi,
muito indulgente diante das ousadias de seu filho Absalão e excessivamente encantado por
Betsabá, descuidou-se completamente do Hebron. Nisso, Absalão, um príncipe muito
astuto, aproveitou
-
se da conjuntura em que a reputação de seu pai era fraca no Hebron para
incitar uma guerra civil contra ele, com o objetivo de lhe tomar o poder:
Jamais príncipe havia nascido com maiores vantagens naturais, nem mais capaz de causar
grandes movimentos e de formar um grande partido em um Estado que Absalão, filho de
Davi. Entre as graças que acompanhavam toda a sua pessoa, era o mais acolhedor e o mais
amável de todos os homens. Ele fazia parecer um amor imenso pela justiça, e sabia agradar
por esse lado de lá todos aqueles que pareciam ter o menor assunto para se lamentar. (...)
Davi fora talvez um pouco descuidado desse lado de lá, enquanto encontrava-se encantado
por Betsabá. Seja o que for, Absalão soube aproveitar da conjuntura, em que a reputação
do rei seu pai parecia estar calada por esta fraqueza, e ainda mais pela morte odiosa de
Urias, um tão bravo homem, tão ligado ao serviço e tão fiel a seu mestre. Ele era o filho
primogênito do rei, o trono o concernia. E ele estava tão próximo do trono, que apenas lhe
restava um passo a fazer para nele subir. Para se dar um destaque proporcional a um tão
alto nascimento, ‘ele se fez cercar de
carruagens
e de cavaleiros, com cinqüenta homens
que o precediam’; e ele se impunha ao povo com este brilho. Essa foi uma falta contra a
boa política. E não era preciso nada permitir de extraordinário a um espírito tão
empreendedor. O rei, pouco desconfiado de sua natureza e sempre muito indulgente com
seus filhos, não o reprimiu por esta conduta ousada. (...) Quando ele estabeleceu bastante
suas idéias por todo o reino e que se acreditou em estado de reinar, escolheu a cidade de
Hebron, a antiga sede do reino (...) para se declarar. O pretexto de se afastar da Corte n
ão
podia ser mais especial, nem mais lisonjeiro para o rei: ‘enquanto eu estive afastado de
vossa Corte, tinha feito promessa, se retornasse a Jerusalém para aí usufruir de vossa
presença, de sacrificar ao Senhor no Hebron’. Absalão foi antes a Hebron, de
onde
desencadeou a revolta em todo Israel. E se gritava de todos os lados: ‘Absalão reinou em
Hebron’. Esse príncipe astuto engaja nessa viagem duzentos dos principais homens de
212
Jerusalém, que não pensavam em nada menos que fazer Absalão rei. Mas eles se
encontravam, entretanto, forçados a se declarar para ele. Ao mesmo tempo se viu aparecer
à cabeça de seu conselho ‘Achitopel, o principal ministro e o conselheiro de Davi, a quem
se consultava como Deus sob Davi e depois sob Absalão’. No mesmo tempo, Amasa,
capitão renomado, foi posto à frente de suas tropas, e esse príncipe não esquecia de nada
para dar reputação a seu partido. (...) Tal era o estado dos assuntos do lado dos rebeldes.
869
As palavras de Bossuet nos fornecem algumas questões relevantes: o príncipe não
pode deixar que a sua vida amorosa o desvie dos assuntos de seu reino; ele deve manter a
nobreza na corte, afastada do poder político e militar. Tais questões serão analisadas a
seguir.
Precauções dos príncipes em seus amores
No artigo terceiro do livro nono da
Politique
, ao dizer que Davi negligenciou o seu
reino devido a estar encantado por Betsabá, Bossuet está fazendo alusão ao longo período
em que Luís XIV esteve envolvido com inúmeras amantes, sem levar em conta os males
que isso poderia causar a ele e ao reino da França. Vejamos, então, em que se fundamenta
esta censura de Bossuet à vida amorosa de Luís XIV.
Em 1660, Luís XIV se casou com a infanta espanhola, Maria Tereza, por razão de
Estado. Ele foi fiel à esposa apenas durante o primeiro ano do casamento. Maria Tereza
não conseguiu cativar o interesse do rei por mais tempo. Sendo assim, ele foi buscar o
amor nos braços de inúmeras amantes. Mas é bom lembrar que o rei cumpriu o seu papel
de marido, pois teve seis filhos com Maria Tereza; dos quais apenas um sobreviveu, o
grande Delfim, de quem Bossuet foi preceptor. Dentre as inúmeras amantes de Luís XIV
destacaram
-
se três.
Louise Françoise, duquesa de La Vallière (1644-1710) foi a primeira. Com o apoio
de Ana d’Áustria, a regente, Louise de La Vallière entrou na corte a serviço da esposa do
irmão de Luís XIV. A bela jovem apaixonou-se pelo rei logo no primeiro encontro. Do
romance, que durou de 1661 a 1667, nasceram 4 filhos, sobrevivendo apenas dois. Em
1667, percebendo a forte paixão de Luís XIV por Madame de Montespan, Louise de La
Vallière foi viver no convento das carmelitas.
A segunda era uma mulher casada, a bela
Françoise
-
Athénaïs,
Madame de
Montespan.
Françoise
-Athénaïs (1640-1707) era filha de um duque francês. Foi
869
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 339
-
341.
213
introduzida na corte, com o auxílio de Ana d’Áustria, ganhando o cargo de dama de
companhia da cunhada de Luís XIV. Françoise-Athénaïs casou-se com o marquês de
Montespan, em 1663, com quem teve dois filhos. Ela conheceu Luís XIV em 1666,
tornando
-se sua amante no ano seguinte. Ao saber do adultério de sua esposa, o marquês
de Montespan armou um enorme escândalo na corte. Por isso, Luís XIV ordenou que fosse
preso e depois exilado em suas propriedades. Durante quatorze anos, a marquesa de
Montespan foi amante oficial do rei. Após a morte de sua patroa, Madame de Montespan
passou a ser a dama de companhia de Maria Tereza, não perdendo nenhuma oportunidade
para humilhá-la. Em 1670, para levar Madame de Montespan consigo em uma campanha
militar, e, ao mesmo tempo, evitar um escândalo, Luís XIV procurou desviar a atenção do
público de seu envolvimento com ela levando também a rainha e Louise de La Vallière,
sua antiga amante. Em suas
Mémoires
, o duque de Saint-
Simon
(1675
-
1755)
870
conta que,
ao longo do caminho, o povo corria para ver o rei com suas três rainhas. A ligação entre
Luís XIV e Madame de Montespan se estendeu até 1681. Ela teve 8 filhos com o rei,
porém, somente 4 chegaram à idade adulta. Enquanto Madame de Montespan possuía o
título de amante oficial do rei, este en
volveu
-se com outras mulheres; entre elas Françoise
d’Aubigné
, Madame de Scarron, tornada depois Madame de Maintenon; escolhida, em
1669, pela própria Madame de Montespan para ser governanta de seus filhos com o rei.
Françoise d’Aubigné, (1635-1719) era de origem humilde. Aos 16 anos de idade
casou
-se com o poeta e boêmio Paul Scarron, com 42 anos de idade e paralítico. Com o
casamento, Françoise conheceu a vida boêmia e ao mesmo tempo se instruiu, que o
marido vivia rodeado por homens influentes ligados às artes e às letras. Françoise cuidou
do marido com abnegação até a sua morte, em 1660. Scarron não lhe deixou nenhuma
fortuna, porém, uma vasta cultura e bons contatos. Devido a esses contatos, ela passou a
receber uma pequena pensão de Ana d’Áustria. Com a morte da regente, a pensão foi
restabelecida por Madame de Montespan, amante do rei. A boa imagem de abnegação
dedicada ao falecido marido, valeu à Françoise o convite para ser governanta e educadora
dos filhos bastardos de Luís XIV com Madame de Montespan, em 1699. Françoise
encontrou
-se pela primeira vez com o rei em 1670, quando este foi visitar seus filhos. Em
1675, grato pelo zelo da governanta e preceptora com os seus filhos, sobretudo com o filho
870
O francês Louis de Rouvroy, duque de Saint-Simon, foi um grande memorialista do século XVII. Saint-
Simon era de origem nobre, filho único do duque Claude, cavaleiro fiel de Luís XIII. Entrou para o exército,
mas pediu baixa devido a não alcançar as promoções que julgava merecer. Ele escreveu as
Mémoires
quando
viveu na corte de Luís XIV, de 1694 a 1723.
2
14
doente, e, ao mesmo tempo, encantado com a sua inteligência, o rei a nomeou marquesa;
ela se tornou, então, Madame de Maintenon. O verdadeiro relacionamento entre ela e Luís
XIV iniciou-se neste mesmo ano. Madame de Montespan foi expulsa da corte em 1681.
Neste ano, Madame de Maintenon se tornou a amante oficial do rei. Maria Tereza morreu
em 30 de julho de 1683. Quarenta dias depois, em 9 de setembro, com o apoio do clero,
particularmente de Bossuet, Luís XIV casou-se secretamente com Madame de
Maintenon.
871
Ela viveu com o rei até a morte deste, em 1715.
Como vimos, Luís XIV levava uma vida considerada imoral pelos padrões da Igreja
católica; cometia adultério de todos os tipos. Ele e sua corte viviam cercados de
escândalos.
872
A união entre Luís XIV com suas amantes oficiais provocou protestos dos
devotos
da corte e de seus predicadores, entre eles Bossuet.
Tudo indica que, na concepção de Bossuet, a verdadeira Betsabá na vida de Luís
XIV foi a Madame de Montespan. No entendimento de Bossuet, a bela Madame de
Montespan representou para Luís XIV o mesmo que a bela Betsabá para Davi. Pois, assim
como Betsabá, Madame de Montespan era casada. Davi ordenou a Joab, o comandante de
seus exércitos, que colocasse Urias, o marido de Betsabá, um destemido soldado e
extremamente leal a ele, na mais perigosa frente de combate e não lhe prestasse socorro,
para que morresse em batalha e, assim, pudesse viver livremente com a amante, que
carregava um filho seu no ventre. Ora, o destino do marido de Madame de Montespan o
foi muito diferente ao de Urias. Pois este foi pre
so e depois teve de viver exilado, enquanto
a sua esposa tornou-se a amante oficial do rei. Os dois casos foram envolvidos por muito
escândalo, abalando profundamente a reputação dos dois renomados reis perante os seus
súditos.
Madame de Montespan era considerada por seus contemporâneos como sendo uma
mulher ardilosa. Durante o seu envolvimento com Luís XIV houve uma sucessão de
envenenamentos em Paris. Ao ser interrogada, a bruxa La Voisini disse que entre suas
clientes havia uma mulher muito importante, mas temia citar o seu nome. Em seu
interrogatório, a filha da bruxa confessou ter visto Madame de Montespan fazendo rituais
com a mãe, chegando a ponto de sacrificar uma criança e depositar o seu sangue em um
frasco junto com suas entranhas. Frasco esse que Madame de Montespan teria levado na
871
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 309 ; Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 218 ; Cf. BITTENCOURT, Aqueda Bernardete.
“Uma mulher à sombra do rei: Madame de Maintenon e a educação”.
In:
ETD
. Ca
mpinas, v. 9, nº 1, pp. 150
-
165, dez, 2007, ISSN 1676
-
2592, p. 152.
872
Cf. ibid., pp. 152
-
153.
215
virilha, visando enfeitiçar o rei. Luís XIV tratou de encobrir o crime de Madame de
Montespan, que ainda permaneceu na corte por um certo tempo, promovendo festas.
Porém, ele passou a desprezá-la, não comia e não bebia nada que ela lhe oferecesse. Em
1681, ela saiu da corte, retirando-
se em Paris.
Em 1675, Bossuet empenhou-se na tarefa de separar Luís XIV de Madame de
Montespan. Para isso, ele dirigiu várias cartas e instruções ao rei.
873
Em uma carta a Luís
XIV, de maio de 1675, por exemplo, Bossuet mostra-se muito preocupado com a sua
salvação. Ele diz ao rei que se continuar a viver no pecado do adultério, o poderá
alcançá
-
la. Conforme Bossuet,
que penoso é libertar-se de tão desgraçado e funesto vínculo! No entanto, Sire, é
necessário, ou não resta salvação a esperar. Jesus Cristo, que recebereis, vos dará forças,
como vos deu o desejo de tê-las. Eu não peço, Sire, que apagueis num instante chamas o
violentas; isso seria pedir o impossível; mas tentai, Sire, dimi
nuí
-las pouco a pouco; temei
mantê
-las. (...) Tanto quanto posso, vejo Madame de Montespan, conforme Vossa
Majestade me mandou. Encontro-a bastante tranqüila; ocupa-se muito com boas obras; e
vejo
-a muito comovida pelas verdades que lhe exponho, que são as mesmas que digo a
Vossa Majestade. Deus queira que penetre em ambos até ao fundo do coração e ali acabem
a sua obra, para que não sejam inúteis tantas lágrimas, tantas violências, tantos esforços
como tendes feito sobre vós próprios.
874
Em 1683, logo após a morte de Maria Tereza, os clérigos, especialmente Bossuet,
desejosos que o rei abandonasse a sua vida promíscua, organizaram secretamente o seu
casamento com Madame de Maintenon, sua amante oito anos. Ela era uma antiga
calvinista convertida ao catolicismo. Devido a ser extremamente piedosa, os clérigos viram
nela o melhor meio para salvar a corte e o rei. Conforme observa Bittencourt, Madame de
Maintenon contou com o apoio do clero encarregado de zelar pela salvação da corte, que
produziu e sustentara a idéia de que esta virtuosa senhora, de origem pobre, foi uma
escolha divina para salvar o rei promíscuo. Tal história teria justificado um casamento real
secreto, porém presenciado e aprovado plenamente pelo clero”.
875
Pelo fato de ser de baixo
nasciment
o, a nova esposa do rei não seria rainha.
No artigo terceiro do livro nono da
Politique
, Bossuet deixa claro que, em seu
entendimento, no período em que Luís XIV esteve envolvido com suas amantes ele se
descuidou completamente dos assuntos internos de seu reino, possibilitando com que os
873
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 308.
874
BOSSUET, “Carta a Luís XIV, maio de 1675”, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 116
-
117.
875
BITTENCOURT, op. cit., p. 153.
216
seus inimigos internos, principalmente a alta nobreza, se fortalecesse com a sua baixa
reputação e tramasse revoltas contra ele.
Ora, nas
Memórias
, Luís XIV aconselha o filho a ter precauções políticas nos seus
amores. O rei diz ao filho que a conservação da glória e autoridade de um príncipe deve
estar sempre em primeiro plano. Sendo assim, por mais apaixonado que esteja, o príncipe
não pode relaxar de seu trabalho. Além disso, o príncipe jamais deve deixar que a mulher,
po
r quem está apaixonado, se intrometa nos assuntos de Estado. Pois isto seria a total ruína
de qualquer coroa. Segundo Luís XIV,
como o príncipe deve ser sempre um perfeito modelo de virtude, seria conveniente que se
garantisse de maneira absoluta contra as fraquezas comuns ao resto dos mortais, sobretudo
tomando em consideração que pela certa não permanecerão desconhecidas. No entanto, se
acontece que caímos com nosso pesar em alguns desses devaneios, pelo menos é preciso
que, para diminuir as suas conseqüências, se observem duas precauções que eu tenho
sempre praticado e que me deram sempre bom resultado. A primeira é que o tempo que
concedamos ao nosso amor não redunde nunca em prejuízo de nossos assuntos, porque o
nosso primeiro objetivo deve ser sempre a conservação da nossa glória e da nossa
autoridade, as quais apenas se podem manter mediante um trabalho assíduo. Pois, por
muito apaixonados que possamos estar e pelo próprio interesse da nossa paixão, devemos
considerar que diminuindo o crédito público diminuiríamos também a estima da própria
pessoa por causa de quem a nossa atividade se relaxou. Mas a segunda consideração que
é a mais delicada e a mais difícil de praticar consiste em que abandonando a essa paixão
o nosso coração, devemos ser donos do nosso espírito, sabendo separar as ternuras do
amante das resoluções do soberano; e que a beleza que produz o nosso prazer não tenha
nunca a liberdade de nos falar de nossos assuntos nem das pessoas que neles nos secundem.
(...) Confessar-
vos
-ei que a um príncipe cujo coração está muito perturbado pelo amor e
cheio de estima pela que ama lhe é penoso tomar todas essas precauções. Mas é nas
situações difíceis que é mister demonstrar a nossa virtude. E, por outro lado, são com toda
a certeza de absoluta necessidade; por não as terem observado, vemos na história muitos
funestos exemplos de casas extintas, tronos derrubados, províncias arruinadas e impérios
destruídos.
876
As
Memórias
de Luís XIV foram concebidas durante o seu envolvimento com
Madame de Montesp
an. Luís XIV começou a ditar as
Memórias
ao seu secretário em 1668,
um ano depois de tê-la elegido como sua amante oficial. Portanto, no auge da paixão. A
obra foi interrompida em 1672, quando eclodiu A Guerra da Holanda, e Madame de
Montespan usufruirá do
status
de sua amante oficial até 1681; apesar de o rei estar
envolvido com Madame de Maintenon desde 1675. Luís XIV sempre soube separar a vida
amorosa dos assuntos de Estado. Os seus contemporâneos são unânimes em reconhecer a
sua intensa capacidade de trabalho. Do início ao fim de seu longo reinado, ele não
876
LUÍS
XIV, 1976, op. cit., pp. 87
-
89.
217
descuidou um só instante das questões internas de seu reino. Portanto, neste ponto, a crítica
de Bossuet não tem fundamento.
Mas devemos considerar que Bossuet era um teólogo, para quem o adultério
era um
pecado sem salvação. Extremamente preocupado com a salvação do príncipe, por quem
nutria uma afeição sincera, e, ao mesmo tempo, zeloso pela sua autoridade, é aceitável a
censura que Bossuet lhe dirige.
Certamente, a intenção de Bossuet era alertar Luís XIV para o risco que existe
quando os reis se preocupam somente com as suas relações amorosas, negligenciando
completamente os assuntos de seu reino, ocasião de que os príncipes de sangue podem se
aproveitar para se insurgir.
No processo de consolidação do absolutismo, a nobreza passou por um processo de
transformação, perdendo antigos direitos e privilégios. Entre eles “teve de deixar o
exercício militar da violência privada” e “os direitos políticos de autonomia
representativa”, segundo constata Perry Anderson.
877
A conversão de uma nobreza
relativamente independente em uma nobreza cortesã veio acompanhada também de uma
transformação e uma reestruturação de sua hierarquia original. Essa reestruturação, ou seja,
a destruição da hierarquia tradicional em prol de um novo ordenamento forçado pelo rei
acarretou uma resistência por parte da nobreza; ainda no tempo de Luís XIV a nobreza
trazia consigo o sonho de recuperar a sua condição independente.
878
No reinado de Luís XIV, a nobreza encontrava-se completamente subjugada à
realeza. Como a nobreza suportava tamanha humilhação? Neste período, qualquer tipo de
resistência aberta estava vedado. Então, de que maneira a nobreza ainda expressava a sua
resistência ao poder constituído?
No período luiscatorziano, a resistência da alta nobreza ao poder constituído era
possível por meio da pena ou aliando-se ao Delfim, provável sucessor do trono. Na corte
de Luís XIV, havia uma certa independência da alta nobreza em relação ao rei. Alguns
cortesãos procuravam se aliar ao Delfim, mas essa independência não se transformava em
uma oposição aberta.
879
De acordo com Norbert Elias,
877
ANDERSON, op. cit., p. 47.
878
Cf. ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia
de corte.
Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 211.
879
Cf. ibid., p. 135. A oposição da alta nob
reza não se convertia numa oposição aberta devido à tática pessoal
de Luís XIV em estar apoiado nos menos importantes. O método de Luís XIV era alimentar as hostilidades
entre os súditos para diminuir as hostilidades dos súditos contra ele. “Eis, portanto, um dos métodos pelos
quais o rei impunha uma união da sociedade de corte contra ele, promovendo e mantendo o equilíbrio de
tensões que lhe convinha e que constituía o pressuposto de sua dominação”. ibid.
218
um nobre cortesão (...) se permitia, pessoalmente e talvez em círculos íntimos de
confiança
dirigir críticas severas ao governo do soberano, fazendo planos secretos, para
depois da morte do rei, que possibilitariam à nobreza, sobretudo à alta nobreza, recuperar
seus direitos perante o rei e os ministros de origem burguesa. Na época em que Luís XIV
viveu, havia apenas uma única forma de ação efetiva para expressar a reação dos nobres
(...): a aliança com o possível sucessor no trono e a tentativa de conquistá-lo em nome das
idéias de resistência. A resistência aberta tinha se tornado completamente impossível.
880
Na modalidade resistência através da escrita, encontram-se as críticas dirigidas a
Luís XIV pelo burguês enobrecido La Bruyère (1645-1696), em suas
Caractères,
publicada pela primeira vez em 1688 e reeditada nove vezes a1699; e, sobretudo, as de
Fénelon (1651-1715), prelado aristocrata e preceptor de príncipe, na sua Lettre à Louis
XIV
, de 1695, e em
Les aventures de Telémaque
, publicada em 1699.
881
De 1689 a 1699, Fénelon foi preceptor do duque de Borgonha, neto de Luís XIV,
filho do primeiro Delfim de quem Bossuet fora preceptor. O duque de Borgonha recebeu
de Fénelon uma excelente educação, completamente voltada à justiça, à piedade e ao bem
comum. Fénelon escreveu a Lettre à Louis XIV e Les aventures de Telémaque no período
do preceptorado. Em 1699, devido às duras críticas dirigidas à política de Luís XIV nessas
obras, foi obrigado pelo rei a exilar-se na diocese de Cambrai, onde era arcebispo desde
1695. Mas, mesmo exilado, Fénelon continuou publicando obras nas quais incitava o
duque de Borgonha a fazer reformas políticas, caso se tornas
se rei.
882
Fénelon também se encontrava na segunda modalidade de resistência da alta
nobreza, a qual consistia em aproximar-se do Delfim. Em torno do duque de Borgonha se
desenvolveu uma oposição a Luís XIV. Fénelon e outros nobres formaram um círculo em
tor
no do duque de Borgonha e tentavam se impor por meio dele. Fénelon lançava mão dos
problemas da França, o aumento da miséria durante as guerras de conquista de Luís XIV,
para fins políticos. Nas Lettres à Louis XIV, além do fim das conquistas e da reconstr
ução
interna, Fénelon reivindicava proteção para a nobreza tradicional à qual pertencia e que,
durante o processo de centralização do absolutismo, perdera paulatinamente os seus
direitos políticos para a realeza, ao mesmo tempo em que foi suplantada pela nobreza
togada, que passou a ocupar, passo a passo, os cargos que antes lhe advinham. Contudo, as
880
ELIAS, 2001, op. cit., pp. 205
-
206.
881
Recordemos que, em
Caractères
, La Bruyère criticava o fato de Luís XIV preocupar-se somente em
empreender guerras de conquista enquanto o seu povo era submetido à extrema miséria. Nas
Lettres
pastorales
e em
Les aventures de Telémaque,
Fénelon censurava Luís XIV por
destinar os recursos do país as
suas construções e às guerras de conquista objetivando aumentar a sua glória, esquecendo
-
se de seu povo.
882
Em 1711, com a morte do primeiro delfim, o duque de Borgonha tornou-se o segundo delfim para a
alegria de Fénelon. Porém, a sua alegria durou muito pouco, que o duque de Borgonha morreu um ano
depois e ele morreu em 1715.
219
críticas de Fénelon ao absolutismo conservavam-se monárquicas, que ele era leal à
realeza. Apesar de suas propostas ousadas de reformas políticas, Fénelon não pensava em
uma monarquia constitucional e nem em uma república. As críticas de oposição de
Fénelon, como as de La Bruyère, consistiam em uma oposição aristocrática, que tinha por
base a preocupação com as realidades populares.
No governo pessoal de Luís XIV, uma oposição ao poder “só podia ser velada ou
clandestina”, segundo constata Méthivier.
883
Com exceção dos panfletos vingativos dos
protestantes franceses refugiados na Holanda, como os de Jurieu, que defendeu o direito à
insurreição em nome da soberan
ia nacional, a oposição a Luís XIV é semi
-
oficial. O crítico
La Bruyère ousa apresentar a questão: “‘o rebanho é feito para o pastor, ou o pastor para o
rebanho?’”; o ousado Fénelon fala do egoísmo do rei em seus inúmeros panfletos
reformados.
884
No entanto, o plano de governo que Fénelon apresenta em 1711, nas Tables
de Chaulnes, quando o seu ex-aluno se torna o segundo Delfim devido à morte do pai,
contemplará apenas “uma monarquia controlada (Estados Gerais) e descentralizada
(Estados provinciais) onde a e
spada enfim prevaleceria sobre a toga”.
885
O fato é que Bossuet estava censurando Luís XIV por estar tão ocupado com as
suas relações amorosas a ponto de se esquecer dos assuntos interno do reino: como a boa
formação que o duque de Borgonha recebeu de Fénelon; o círculo formado pelo grupo de
Fénelon em torno do duque de Borgonha; a utilização por parte de Fénelon da miséria
sofrida pela maioria dos franceses em decorrência das guerras de conquista de Luís XIV
visando colocar o povo contra ele. Enfim, a preocupação excessiva de Luís XIV com seus
amores em detrimento dos assuntos internos da França poderia, no entendimento de
Bossuet, encorajar os inimigos internos, no caso os nobres que rodeavam o duque de
Borgonha, sob a influência de Fénelon, a incitar o povo a uma guerra civil contra o
monarca. As lembranças da Fronda atormentarão Bossuet até os últimos anos de sua vida.
Por isso, ele esforçava-se em advertir Luís XIV que, se continuasse agindo daquela
maneira, uma outra Fronda poderia acontecer, o que seria
fatal ao seu poder.
883
MÉTHIVIER, op. cit., p. 24.
884
ibid.
885
Cf. ibid., pp. 124
-
125.
220
A nobreza na corte: instrumentos de dominação da realeza
Conforme observa Bossuet, no artigo terceiro do livro nono da
Politique
, enquanto
Davi se encontrava encantado por Betsabá, o seu filho Absalão afastou-se da corte. É
possív
el perceber em seu pensamento a necessidade de se manter a alta nobreza na corte,
pois o seu afastamento da corte representava um grande perigo ao poder constituído.
Na França, muito tempo existia uma luta entre a realeza e a nobreza, decidida
em favor
da primeira. Na Idade Média, o rei era um nobre com poder igual ou menor ao de
outros nobres. Mas esta situação começa a mudar por volta do século XI. A partir do
século XVI, houve um aumento contínuo e extraordinário do poder dos reis em relação à
nobreza
.
886
Vejamos alguns dos mais importantes mecanismos que, no final da Idade
Média, contribuíram para aumentar o poder dos reis em seus territórios, levando
simultaneamente ao desenvolvimento da monarquia francesa e ao enfraquecimento da
nobreza.
A gradual expansão da monetarização em detrimento do escambo numa certa
região teve conseqüências completamente diferentes para a maioria da nobreza, de um
lado, e para o rei, de outro.
887
Esse fenômeno começou na Idade Média, por volta do século
XI, e acelerou-se no século XVI. Neste século, houve no Ocidente um afluxo de metais
preciosos vindos das terras ultramarinas, e com ele houve um significativo aumento na
circulação de bens.
888
O aumento na circulação de dinheiro resultou em uma gigantesca
inflação. Conforme Norbert Elias, “o poder de compra da moeda caiu (...) numa proporção
de quatro para um”, enquanto “os preços subiram na proporção inversa”.
889
De fato, o
aumento do volume da moeda veio acompanhado da constante desvalorização da
mesma.
890
A maior entrada e circulação da moeda em uma região levavam ao aumento dos
886
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 164.
887
Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Vol. II. Rio de Janeiro:
Zahar, 1993, p. 19.
888
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 165. Os avanços técnicos levaram ao aumento da produção de moedas nos
séculos XV e XVI. Segundo Perry Anderson, “a descoberta do processo
seiger
para separar a prata do
minério de cobre reabriu as minas da Europa central e restabeleceu o fluxo de metais para a economia
internacional; a produção de moeda da Europa central quintuplicou entre 1460 e 1530”. ANDERSON, op.
cit., pp. 21
-
22.
889
ELIAS, 2001, op. cit., p. 165. para se ter uma idéia da desvalorização da moeda, do reinado de
Francisco I, primeira metade do século XVI (1515-1547), a 1610, a libra francesa desvalorizou-se de 5 para
1.
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 21.
890
Cf. ibid., p. 161.
221
preços.
891
Todas as camadas sociais que viviam das rendas fixas de suas terras, sobretudo
os senhores feudais, saíram em desvantagem.
892
Para a maioria da nobreza francesa, esta inflação representou um grande a
balo,
destruiu os fundamentos econômicos de sua existência.
893
A nobreza que vivia das rendas
fixas de suas propriedades, as quais não podiam aumentar para acompanhar a
desvalorização, empobreceu enormemente.
894
Os rendimentos fixos que ela tirava de suas
terr
as não podiam mais suprir os seus gastos; que os preços estavam subindo
continuamente. A maioria da nobreza atolou-se em dívidas; em muitos casos, os credores
apossavam
-se de suas terras. Essa parte significativa da nobreza empobrecida e destituídas
de
suas terras foi para a corte à procura de uma nova vida. Essas novas circunstâncias
tiveram como conseqüência para a nobreza a diminuição de sua posição de poder bem
como de sua reputação na sociedade e o distanciamento em relação às demais camadas da
soci
edade.
895
O rei foi o único nobre que, devido à sua função, não sofreu diminuição notável de
“sua base econômica, posição de poder e distância social”. Pelo contrário, elas aumentaram
imensamente.
896
A princípio, da mesma maneira que todos os outros nobres, a
principal
fonte de riqueza dos reis estava nos produtos de suas propriedades. Mas muito tempo
esta situação se havia modificado. Os impostos que os reis subtraíam dos recursos
financeiros de seus súditos passaram a ter cada vez mais importância para os
seus
rendimentos.
897
O primeiro resultado desse mecanismo foi o aumento constante da renda
do rei, constituindo
-
se em uma das “precondições sobre as quais a instituição da monarquia
obteve gradualmente seu caráter absoluto”.
898
O desenvolvimento do comércio, que ocorreu no mesmo período da crescente
monetarização, foi outro fenômeno que veio a contribuir para a ascensão da monarquia em
detrimento da nobreza. Esses dois fenômenos que beneficiaram os reis, prejudicaram a
velha nobreza guerreira. Como os nobres não tinham nenhuma ligação direta com o setor
monetário da economia em expansão, não obtiveram nenhum lucro direto com as novas
891
Cf.
ibid., p. 19.
A respeito da desvalorização da moeda, inflação e aumento dos preços no século XVI, ver
LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado monárquico, França, 1460-
1610.
São Paulo: Companhia das
Letras, 1994, p. 53.
892
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 19.
893
Cf.
ELIAS, 2001, op. cit., p. 165.
894
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 161.
895
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 165.
896
Cf. ibid., pp. 165
-
166.
897
Cf. ibid., p. 166.
898
ELIAS, 1993, op. cit., p. 20.
222
oportunidades de renda. Assim, apenas sentiam a desvalorização da moeda e o aumento
espantoso dos preços.
899
Para aqueles que exerciam funções cujas rendas aumentavam com tais
oportunidades, alguns setores da burguesia e principalmente os reis, a situação foi
extremamente vantajosa. Uma parcela da riqueza crescente ia para as mãos dos reis por
meio dos impostos. Parte de todos os lucros obtidos na área do comércio era encaminhada
para eles. Conseqüentemente, as rendas dos reis aumentavam consideravelmente com a
maior circulação da moeda.
900
Esse fenômeno resultou em uma transformação na sociedade. Com o crescimento
da circulação da moeda e o desenvolvimento do comércio, as camadas burguesas e a renda
dos reis se expandiram, enquanto que a renda dos outros nobres caía espantosamente. Com
isso, grande parte da nobreza, forçada por tais circunstâncias e sentindo-se atraída pelas
novas oportunidades, entrou para o serviço dos reis que podiam lhes pagar. Eram essas as
oportunidades econômicas que se abriam à camada de nobres guerreiros desvinculada do
crescimento da circulação da moeda e do comércio.
901
Conforme Norbert Elias, do ponto de vista econômico, a realeza de corte do século
XVII é fundamentada em rendimentos financeiros. Enquanto a nobreza, que em fins do
século XVI e início do XVII, vivia basicamente de suas terras e não participava dos
movimentos econômicos de seu tempo, empobreceu devido à inflação “os recursos do rei,
por diversos meios (sobretudo provenientes dos impostos ou da venda de cargos oficiais),
não podiam subir acompanhando a inflação, como chegaram a aumentar muito além
disso, em conseqüência da crescente riqueza de certas camadas obrigadas a pagar
impostos”.
902
Foram esses rendimentos recebidos pelos reis uma das condições mais
importantes para o aumento de seu poder; pois foi este dinheiro que lhes possibilitou a
criação do aparelho de poder real.
903
Juntamente com o crescimento das oportunidades financeiras dos reis se deu o
aumento de seu poder militar. Aliás, os dois fenômenos estavam entrelaçados. Como os
899
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 21.
900
Cf. ibid., p. 20. A monarquia clássica se beneficiou do aumento do volume das moedas, as quais se
encontravam disponíveis em maior quantidade no século XVI, devido a uma maior entrada de metais
preciosos, ouro e prata.
Cf. LADURIE, op. cit., pp. 36
-
37.
901
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 21.
902
ELIAS, 2001, op. cit., p. 166.
903
Cf. ibid. “Esses rendimentos cada vez maiores que afluíam para os reis, em virtude da peculiaridade de
seu posicionamento na figuração da sociedade estatal, com o crescimento urbano e comercial desta, foram
uma das condições mais decisivas para o relativo acréscimo do poder real. Distribuindo dinheiro a serviço de
sua soberania eles criaram o aparelho de poder”. ibid.
223
reis contavam com os impostos de todo o seu território, eles tinham condições de contratar
mais guerreiros. Desse modo, eles passavam a depender menos dos serviços de guerra que
os senhores feudais, seus vassalos, eram obrigados a lhes prestar em troca da terra recebida
deles.
904
Assim como os demais processos, também esse começou cedo, mas somente aos
poucos resultou na formação de instituições duradouras. Quando Guilherme, o
Conquistador, invadiu a Inglaterra, em 1066
905
, somente parte de seu exército era
constituída de vassalos, o restante era de cavaleiros a seu soldo. Mas, conforme veremos
mais adiante, somente muitos séculos depois dessa época é que os reis instituíram os
exércitos permanentes. A superioridade militar que caminhou junto com a superioridade
financeira foi o segundo pré-requisito decisivo que possibilitou com que o poder dos reis
de um dado território tom
asse um caráter absoluto.
906
Esse fenômeno foi acompanhado e reforçado pela transformação das técnicas
militares. Com o lento desenvolvimento das armas de fogo, a grande massa de soldados de
infantaria comum, que combatia a pé, militarmente, tornou-se superior aos nobres, que
eram em número bem inferior e combatiam montados. Isso também favoreceu o poder dos
reis.
907
Segundo Norbert Elias, a tecnologia de guerra agia em prejuízo da nobreza: “a
infantaria, os desprezados soldados a , tornou-se mais importante em batalha do que a
cavalaria”.
908
Com isso, não somente a superioridade militar do estado medieval do
guerreiro era rompida como também o seu monopólio de armas. A situação em que todos
os nobres eram guerreiros ou vice-versa foi se transformando numa outra em que, na
melhor das hipóteses, tornavam
-
se oficiais de tropas plebéias remuneradas. O poder militar
e o monopólio das armas que pertenciam a toda a nobreza passaram para as mãos de um
único nobre, o rei. Este, alicerçado na crescente renda advinda dos impostos arrecadados
em todo o seu território tinha condições de sustentar o maior exército. A maioria dos
nobres guerreiros relativamente livres convertia-se em oficiais assalariados a serviço do
rei.
909
Nos inícios da dinastia Capetíngea
910
, os reis da França eram nobres como os
outros, às vezes tinham até menos poder. Mas com a renda crescente gerada pelos impostos
904
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 20.
905
Guilherme era duque da Normandia. Ele reuniu um grande exército, invadiu a Inglaterra em 1066 e a
conquistou. Seu reinado na Inglaterra se estende de 1066 a 1074.
906
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 20.
907
Cf. ibid.
908
ibid., p. 21.
909
Cf. ibid., pp. 21
-
22.
910
A dinastia capetíngea se inicia no reinado de Hugo Capeto (987
-
996).
224
eles passaram a ter uma superioridade militar sobre as outras forças de seu território. Os
dois fenômenos aumentaram a possibilidade de poder nas mãos dos reis, sendo uma das
precondições para a pacificação de um território e a centralização do poder em suas
mãos.
911
Como vimos, a ascensão progressiva da realeza estava estreitamente ligada à
decadência
da nobreza.
912
A pequena e a alta nobreza empobrecidas vão para a corte
em
busca de favores do rei.
913
“Pouco a pouco, a corte assumiu o caráter de um organismo de
assistência à nobreza e, ao mesmo tempo, de um instrumento de dominação do rei em
relação aos nobres”, segundo Norbert Elias.
914
A corte tinha o papel de asilo da nobreza
como também servia como um instrumento para o rei controlar e domar a velha nobreza
guerreira. De acordo com o mesmo autor, “a vida cavaleirosa sem rédeas nem limites era
coisa do passado”.
915
Na Idade Média, o nobre era relativamente livre, senhor de seu
castelo, o qual era a sua pátria. Na época moderna, isto muda. Já no século XV e,
sobretudo a partir do século XVI, vivendo na corte, ele se obrigado a passar de senhor e
cavaleiro relativamente livre a servidor dependente do rei.
916
A monarquia francesa da época moderna é ligada à corte, a qual encontra-
se
centrada em torno do rei.
917
Na época dos Valois, a corte era itinerante
918
, sob os Bourbon,
fixou
-se em Fontainebleau, Paris e principalmente em Versalhes. Aliás, a partir de 1682,
s
ob Luís XIV, a corte fixou
-
se em Versalhes definitivamente. Uma das finalidades da corte
era neutralizar a nobreza. Manter uma corte numerosa, como no tempo de Luís XIV,
custava muito caro à nação; porém, isto era fundamental para manter a paz interna. Em
troca das pensões, cargos e presentes que concedia à alta nobreza, Luís XIV exigia que ela
passasse a maior parte do tempo em Versalhes. Neste suntuoso palácio, em torno do rei, a
nobreza servia como um ornamento de seu poder. Em Versalhes, os nobres não c
hegavam
a ser seus escravos, mas sim marionetes manipuladas por ele. A corte era um meio de o rei
911
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 21.
912
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 166.
913
Cf. ibid., p. 194.
914
ibid., p. 195.
915
ELIAS, 1993, op. cit., p. 167.
916
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Vol. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1994,
pp. 212-
213.
917
LADURIE, op. cit., p. 14.
918
Conforme Le Roy Ladurie, “Luís XII, rei da Renascença, demonstra o poder marchando ou cavalgando no
meio de uma corte tanto mais móvel quanto pouco numerosa (menos de mil pessoas): ‘Amboise, Paris,
Angers, Parthenay, Orléans, Blois sobretudo, mas também Melun, Bourges, Tours, Rouen, Reims, Troyes,
Dijon, Amiens, Abbeville, Saint
-
Denis
-
en
-
France, Noyon, sem falar das múltiplas idas e vindas por Grenoble
e sobretudo por Lyon ilustram, todos eles ou todas elas, o caráter itinerante dessa monarquia renascentista’”.
ibid., p. 103.
225
subjugar a nobreza a si.
919
Como observa Le Roy Ladurie, “na França, Luís XIV prende a
si os grandes senhores e os tornam dóceis por uma outorga de pensões que implica a
residência em Versalhes, em tempo parcial pelo menos. Sistema caro, mas rentável em
termos de paz interna do reino. Doravante, ‘os nobres estão agrupados em torno do trono
como um
ornamento
(...). Apesar dessa evolução ornamental, os senhores não se tornam
por si escravos do Rei
-Sol. No máximo marionetes!”.
920
Na corte, a nobreza se encontra na
base e a realeza no topo. Nela, os reis submetem a si a espada dos nobres cavaleiros.
921
Para a maioria da nobreza, não foi somente a sua situação financeira que se tornou
mais difícil, os seus horizontes e liberdade de ação também se estreitaram. Devido a sua
renda precária, ela ficava limitada as suas fazendas no interior do reino. Nem mesmo as
campanhas militares lhe possibilitavam fugir desse bloqueio. Até mesmo na guerra os
nobres não lutavam mais como cavaleiros livres, mas como oficiais. E para os nobres
fugirem da nobreza fundiária e obter acesso ao círculo nobre da corte eles precisavam de
muita sorte e bons contatos.
922
Essa menor parte da nobreza encontrou na corte, em Paris e em seu entorno, um
novo lar, muito precário. Até o reinado de Henrique IV e de Luís XIII, um nobre
pertencente à corte não encontrava dificuldade para se afastar da corte para passar um certo
tempo em sua propriedade rural ou na de outro nobre. Luís XIV era bem diferente do
avô e do pai. As recordações da Fronda o levaram a explorar o mais que pôde a
dependência da nobreza perante ele. Segundo Lavisse, a intenção de Luís XIV era colocar
sob os seus olhos atentos todos os nobres suspeitos de serem líderes de motins, e “cujos
castelos pudessem servir como fortes focos de rebelião”.
923
Com a reconstrução de
Versalhes, Luís XIV tinha dois objetivos interligados: sustentar e promover alguns setores
da nobreza, ao mesmo tempo em que a controlava e domava. Ele concedia com
liberalidade, principalmente aos seus favoritos, mas ao mesmo tempo exigia que os nobres
lhe obedecessem. Cuidava para que nunca se esquecessem que eram dependentes do
dinheiro e das outras oportunidades que ele tinha em
mãos para distribuir.
924
Para conservar o seu poder, Luís XIV procurava estar informado a respeito de tudo
o que se passava em seu reino, sobretudo na sua corte. Nas
Memórias
, ele diz ao filho que
919
Cf. LADURIE, op. cit., pp. 14
-
15.
920
ibid.
921
Cf. ibid., p. 15.
922
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 167.
923
apud ELIAS, 1993, op. cit., pp. 167
-
168.
924
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 168.
226
o príncipe deve estar informado de tudo. Ele deve “ter o os olhos abertos em todos os
lugares; saber a qualquer hora notícias de todas as províncias (...) os segredos de todas as
cortes (...); estar informado de um número infinito de coisas que se pensa que ignoramos;
averiguar a respeito dos nossos súditos aquilo que nos ocultam com o maior cuidado;
descobrir as intenções mais longínquas dos nossos próprios cortesãos, as suas intenções
mais obscuras, as quais chegam até nós por interesse contrários”.
925
Em suas
Mémoires
, o duque de Saint-Simon recorda que Luís XIV não exigia a
presença na corte apenas da alta nobreza. Ele estava sempre atento, a presença ou ausência
dos nobres eram percebidas por ele. Ofendia-se se os nobres mais importantes não
morassem na corte e se os outros raramente nela aparecessem. Aqueles que nunca ou mal
apareciam estavam arruinados, pois quando lhe pediam alguma coisa, ele respondia
orgulhosamente que não os conhecia. Se algum nobre preferia morar no campo ele não se
importava, desde que fosse moderado, avisando antes de se ausentar por longo
tempo.
Saint
-Simon lembra que quando em sua juventude foi tratar de algumas questões jurídicas
em Rouen, Luís XIV deu ordens para que um de seus ministros escrevesse a ele
perguntando sobre as razões de sua ausência.
926
Conforme constata Norbert Elias, “a vigilância sobre tudo o que acontecia era
muito característica da estrutura dessa monarquia”.
927
Era uma maneira de o rei conservar
o seu domínio. Luís XIV mantinha-se vigilante em relação a toda a nobreza, mas sua
vigilância era de longe mais focada na alta nobreza. E ele tinha motivos para isso. Apesar
da inquietação popular implicar algum perigo, sendo um dos motivos da transferência da
corte para Versalhes, a maior ameaça para o rei não vinha do povo comum. Na época dos
predecessores de Luís XIV, em todos os momentos em que as insatisfações das massas
transformaram
-se em rebeliões, eram os membros da família real ou da alta nobreza que as
lideravam, que lançavam mão do descontentamento delas para alcançar os seus próprios
objetivos. Os inimigos mais ameaçadores do rei podiam ser encontrados nos círculos
mais próximos a ele.
928
Por isso, o senso de perigo que a alta nobreza representava para a realeza era
constante em Luís XIV. Ele perdoava a pequena nobreza quando se ausentava da corte
ocasionalmente, se ela lhe apresentasse bons motivos para isso. Mas com os Grandes ele
925
LUÍS XIV, 1976,
op. cit., p. 19.
926
Cf. apud ELIAS, 1993, op. cit., p. 168.
927
ELIAS, 1993, op. cit., p. 168.
928
Cf. ibid., pp. 168
-
169.
227
era implacável. Aliás, era em relação aos Grandes que a corte servia como local de
detenção. Quando seu irmão Filipe lhe pediu uma governadoria e uma fortaleza, ele lhe
respondeu que “o lugar mais seguro para um filho da França é o coração do rei”.
929
O fato
de seu filho mais velho, o primeiro Delfim de quem Bossuet fora preceptor, manter uma
corte separada em Meudon o desagradava profundamente. Quando o filho morreu, em
1711, ele ordenou imediatamente que todos os móveis do castelo fossem vendidos para
evitar que o neto, que havia herdado o castelo, o usasse e dividisse a corte novamente.
930
Com Luís XIV, o governo centralizador, alicerçado nos monopólios dos impostos e
do exército consumou-se em uma única pessoa. Uma eficiente organização de vigilância
protegia tal governo. O rei que distribuía terras converteu-se no rei que distribuía salários,
favorecendo imensamente a centralização. Sob Luís XIV, finalmente rompeu-se o poder
das forças descentralizadoras. Ele reduziu todos os possíveis inimigos do governo
monopolista a uma grande dependência institucional de sua pessoa.
931
O fato de o Delfim conservar uma corte no Meudon era algo que também
preocupava Bossuet. É por isso que ele o exemplo de Absalão, que se aproveitou do
período em que esteve afastado da corte de Davi para se fortalecer, aliando-se a outros
nobres descontentes com o poder do rei para, na melhor ocasião, empreender uma revolta
contra o poder constituído e se apossar do trono.
A
nobreza destituída do poder e das armas
No artigo terceiro do livro nono da
Politique
, Bossuet chama a atenção para o fato
de que os reis devem manter a alta nobreza afastada de cargos políticos e militares, pois a
reunião de poder político e de armamento representa uma forte ameaça ao poder real. Isto
fica explícito quando Bossuet analisa a atitude de Absalão: “para se dar um destaque
proporcional a um tão alto nascimento, ‘ele se fez cercar de carruagens e de cavaleiros,
com cinqüenta homens que o precediam’; e ele se impunha ao povo com este brilho. Essa
foi uma falta contra a boa política”.
932
As primeiras unidades militares regulares da Europa, as compagnies d’ordonnance,
foram criadas em meados do século XV, durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), n
o
929
ELIAS, 1993, op. cit., p. 170.
930
Cf. ibid.
931
Cf. ibid.
932
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 340.
228
reinado de Carlos VII (1422-1461). Para construir esse exército regular, a monarquia
passou a cobrar a
taille royale
em 1439, o primeiro imposto nacional e regular estabelecido
na França, o qual na década de 1440 tornou-se a taille des gens d’armes regular. De fato,
uma guerra permanente possibilitou a criação do exército e impostos permanentes. O
exército e os impostos diretos para financiá-lo fizeram com que a monarquia francesa se
fortalecesse imensamente no final do século XV.
933
Exército e tributação são duas das
inovações institucionais que contribuíram para o advento do absolutismo no Ocidente.
934
Contudo, o aparato repressivo de Carlos VII era muito limitado para controlar um
país vasto como a França e reprimir uma população de 15 milhões de franceses; que as
suas
compagnies d’ordonnance jamais tiveram mais de 12 mil homens em armas. Dessa
forma, os nobres conservaram poder local nas províncias das quais eram governadores.
935
No processo de centralização do poder, os reis legítimos tiveram de enfrentar os
Grandes que se sublevavam contra eles para lhes tomar o poder.
936
Quando ainda era
Delfim, o futuro Luís XI, na companhia de outros príncipes, conspirou contra o seu pai
Carlos VII, na revolta conhecida por
Praguerie
, em 1440. Mais tarde, alçado ao trono, é
a vez do próprio Luís XI (1461-1483) enfrentar a fúria de seu irmão caçula, Carlos o
Temerário, que se torna um dos líderes da guerra civil denominada de Bem Público (1465-
1477) desencadeada contra ele pelos príncipes rivais. No reinado de Carlos VIII (1483-
1498) o seu primo, o príncipe Luís de Orléans, é um dos líderes da Guerra Insana (1486-
1488) na qual diversos príncipes se uniram contra ele.
937
No século XVI, a monarquia se
apresenta inteiramente consolidada e essas revoltas dos grandes contra os reis legítimos
sairão de moda. Mas na segunda metade desse século, na década de 1560, elas voltarão a
ocorrer devido aos conflitos religiosos.
938
No reinado de Henrique IV (1589 a 1610), os príncipes de sangue, chamados de
‘Grandes’, os duques e pares de França ainda exerciam um certo poder. Tal poder decorria
sobretudo de seus cargos de
governadores
, comandantes militares de algumas províncias e
de suas fortalezas.
939
Aos poucos, no processo de consolidação do governo absolutista,
933
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 32, 34, 86. Segundo Perry Anderson, “a Guerra dos Cem Anos legou à
monarquia francesa impostos e tropas permanentes”. ibid., p. 87.
934
Cf. ibid., p. 29.
935
Cf. ibid., pp. 86
-
87.
936
Cf. LADURIE, op. cit., pp. 72
-
79.
937
Cf. ibid., pp. 69, 74
-
79, 87
-
88, 102.
938
Cf. ibid., p.
102.
939
Na terminologia administrativa do reino da França, o termo
governador
é utilizado para designar o
comandante de uma praça militar, de um departamento administrativo ou de uma prisão.
229
esses possíveis rivais da realeza tornaram-se funcionários de uma máquina governamental
poderosa. Mas essa mudança não ocorre sem resistência. Na época de Henrique IV, os
príncipes de sangue e os governadores de províncias colocaram-se à frente de facções
contra a autoridade central.
Nessa época o exército ainda não se encontrava completamente
centralizado, os comandantes de fortalezas usufruíam de uma grande independência e os
governadores de províncias achavam que seus cargos eram sua propriedade. Tudo isso
facilitou com que ocorres
sem inúmeras revoltas com tendências descentralizadoras.
940
No século XVII a nobreza encontrava-se dividida em vários grupos, o que
aumentava o núcleo de frentes, assim como a possibilidade de se fazer alianças. Deixemos
de lado a nobreza provinciana, que de meados do século XVI ao final do século XVIII não
tinha mais nenhum papel político, portanto nenhum poder. Já a situação da alta nobreza, os
príncipes e duques denominados de Grandes, era bem diferente; que, no interior da
hierarquia da nobreza, os Grandes encontravam-se particularmente próximos ao rei. De
certo modo, o núcleo da alta nobreza era constituído pelos parentes mais próximos do rei; e
não era o seu objetivo minar a autoridade do rei em relação às outras classes sociais, pois
isso também prejudicaria a sua própria posição privilegiada no reino, uma vez que a sua
posição estava estreitamente ligada à dele.
941
Por outro lado, era justamente o fato de estarem muito próximos do rei na
hierarquia da nobreza o que levava os Grandes a sentirem inveja de seu poder, a se
ressentirem por sua posição subordinada a ele e o seu rebaixamento ao nível de súditos e,
de uma certa maneira, a uma certa igualdade com os demais súditos.
942
Os Grandes
representavam uma forte ameaça para o rei, pois os seus verdadeiros rivais poderiam
surgir desse círculo. De acordo com Norbert Elias, “até mesmo na época de Luís XIV
havia um plano, concebido em tal círculo, de forçar o rei a abdicar e substituí-lo por um de
seus parentes”.
943
no início do processo de centralização do absolutismo, os reis compreenderam o
quão ameaçador os Grandes se tornavam dentro da máquina de governo. Deste modo,
desde a Idade Média, lentamente, a nobreza foi sendo excluída da máquina de governo, os
cargos administrativos e jurídicos passaram a ser ocupados pela burguesia. Nos séculos
XVI e XVII a nobreza já havia perdido completamente as funções administrativas e
939
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 169.
940
Cf. ibid.
941
Cf. ELIAS, 20
01, op. cit., p. 182.
942
Cf. ibid.
943
ibid., p. 183.
230
jurídicas para a burguesia, o que contribuiu em grande parte para a sua debilidade.
944
No
processo de centralização do poder dos reis absolutistas, a nobreza foi perdendo
continuamente para a burguesia grande parte das funções exercidas por ela. Foi com
grande pesar que os nobres viam os cargos jurídicos, administrativos e até mesmo a parte
mais significativa dos cargos militares de alto escalão e de governadores serem ocupados
pelos burgueses.
945
Henrique IV, Luís XIII e todos os seus sucessores fizeram de tudo para
manter a nobreza longe de cargos de influência política.
946
Na época de Luís XIII, cujo reinado se estendeu de 1610 a 1643, os grupos da
nobreza que se encontravam mais próximos do rei, isto é, a alta nobreza, sobretudo os
príncipes de sangue e os duques e pares da França, ainda possuíam um alto grau de poder
como rivais da realeza. Esse poder fundamentava
-
se em seus cargos de
governado
re
s
, altos
comandantes militares de suas províncias e fortalezas. Após ser gradualmente excluída dos
demais mecanismos do poder, esta última posição de poder autônoma ainda cabia à
nobreza.
947
No reinado de Luís XIII todas as rebeliões da nobreza contra a re
aleza apoiavam
-
se
na posição de poder militar de homens e mulheres da alta nobreza, que ainda se encontrava
relativamente intacta. As facções da corte ganhavam força graças a ela. Foi apoiado em
uma posição militar fortalecida que o duque Gastão de Orléans
, irmão de Luís XIII, liderou
uma facção hostil a ele e a Richelieu, seu primeiro-ministro a partir de 1624, que a partir
dessa data passou a governar a França de fato até a sua morte em 1642. Além desse caso,
houve várias sublevações lideradas por outros
governadore
s contra Richelieu, o
representante do rei. Contribuiu para isso o fato do exército da França não estar
inteiramente centralizado, dos governadores de províncias considerarem seus cargos
comprados como propriedades suas, e dos comandantes de fortalezas ainda deterem uma
944
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., pp. 160, 163. A aceleração da monetarização e da comercialização no século
XVI empurrou para baixo a maioria da camada da velha nobreza guerreira enquanto que empurrava para
ci
ma a burguesia. ibid., p. 152.
945
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 210. Segundo Norbert Elias, “a nobreza foi perdendo passo a passo muitas
das funções que tivera até então, nesse campo social, para os grupos burgueses; ela perdeu as funções
administrativas, judiciárias e, em parte, até as funções militares para membros das camadas burguesas;
mesmo a parcela mais significativa das funções de um
gouverneur
estava nas mãos dos burgueses”. ibid.
Conforme Robert Mandrou, a nobreza foi “ameaçada século pela ascensão burguesa, mutilada em seu
prestígio social pela monarquia”. MANDROU, op. cit., p. 155.
946
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 165.
947
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 199.
231
certa autoridade. Essa última posição de poder conservada pela alta nobreza lhe dava
possibilidade de resistir contra o poder do monarca absolutista.
948
Mas, em 1627, Richelieu convocou uma assembléia dos notáveis, na qual acabou
de
vez com este último resquício de poder da alta nobreza. Richelieu ordenou que
nenhuma fortaleza continuasse em suas mãos, que fossem demolidas todas as fortalezas
que não se destinavam diretamente à defesa da França, assim como aprovou a verba para
um exército permanente de cerca de 20 mil homens, que teria como função proteger a
França da ameaça externa e interna.
949
Segundo Perry Anderson, Richelieu “aboliu as mais
altas dignidades militares medievais, derrubou castelos da nobreza e proibiu os duelos”.
950
Mu
itos nobres resistiram, mas Richelieu venceu a todos eles, punindo com prisões e exílio
os Grandes que não haviam morrido em batalhas. Richelieu deixou que a própria mãe do
rei morresse no estrangeiro. Isso para mostrar que o haveria impunidade nem mesmo
para os Grandes que ameaçassem a paz pública.
951
E mais importante ainda: ele criou o
sistema de intendentes, funcionários representantes diretos dos reis, que eram enviados
para as províncias, diminuindo consideravelmente o poder dos governadores.
952
Esse
si
stema de intendentes será aperfeiçoado por Luís XIV, tornando-se ainda mais
eficiente.
953
Em 1661, Luís XIV assumiu pessoalmente o comando do reino. Com a autoridade
real e a capacidade executiva reunidas em sua pessoa, logo realizou-se todo o potencial
polí
tico do absolutismo. Luís XIV submeteu tudo e todos ao seu poder: determinou que os
cargos de governador passassem a ser concedidos por três anos apenas, e, geralmente,
aqueles que os detinham foram obrigados a morar na corte, tornando-os meramente
honoríf
icos; submeteu ao sistema de rodízio o comando das cidades fortificadas que se
localizavam em regiões de fronteiras; obrigou a alta nobreza a morar em Versalhes assim
que foi concluído o complexo palaciano, em 1682, com isso, a nobreza foi afastada do
948
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., pp. 199
-
200.
949
Cf. ibid., p. 200.
950
ANDERSON, op. cit., p. 9
5.
951
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 200; ELIAS, 1993, op. cit., pp. 169-
170.
De acordo com Perry Anderson,
Richelieu “esmagou sucessivas conspirações aristocráticas com execuções sumárias”. ANDERSON, op. cit.,
p. 95.
952
Cf. ibid.
953
Segundo Le Roy Ladurie, os governadores de províncias ainda detinham muito poder no início do século
XVII. Depois isso muda com Richelieu e sobretudo com Luís XIV que coloca os intendentes, os
representantes diretos dos reis nas províncias, diminuindo assim o seu poder.
Cf. LADURI
E, op. cit., pp. 15
-
16.
232
senh
orio efetivo sobre suas propriedades rurais.
954
Conforme constata Perry Anderson, “o
mecanismo central do poder monárquico está agora, portanto, concentrado, racionalizado e
ampliado sem maior resistência da aristocracia”.
955
Os ministros mais importantes de Luís XIV foram herdados de Mazarino: Le
Tellier, responsável pelos assuntos militares, Colbert, finanças e marinha, Lionne, política
externa, e Seguier, segurança interna. Todos administradores competentes e disciplinados.
Luís XIV dirigia pessoalmente as resoluções do restrito Alto Conselho, composto por seus
auxiliares políticos de sua maior confiança, de que não faziam parte os príncipes e Grandes
do reino. Esse Alto Conselho tornou-se “o corpo exclusivo supremo do Estado”; as
questões provinciais e nacionais eram tratadas pelo Conselho de Despachos; a organização
econômica da monarquia era supervisionada pelo Conselho de Finanças. Além disso, toda
a França foi coberta por uma rede de intendentes. O reino foi dividido em 32
Generalidades
, nas quais os intendentes reais tinham, a partir de então, autoridade
suprema. A coleta e a supervisão da
taille
, antes controladas pelos
officiers
, tesoureiros,
foram transferidas para os intendentes.
956
No governo pessoal de Luís XIV, apesar da debilidade da posição dos nobres, o rei
se sentia ameaçado pela nobreza, sobretudo pela alta nobreza tão próxima a ele. Esse
sentimento, nascido durante as experiências da Fronda, tornou-se para ele uma segunda
natureza. Um dos traços dominantes em Luís XIV foi a sua incansável vigilância em
relação a todos os súditos, sobretudo em relação à nobreza. Luís XIV poderia até ser
desatento em relação a outros assuntos, como a economia do reino. Mas nas questões de
“dominação, de nível de prestígio e de superioridade pessoal” ele “era implacável e
totalmente alerta”, pois, em sua consciência essas esferas “afetavam as raízes de sua
existência social”, como observa Norbert Elias.
957
O fato de Luís XIII e Richelieu terem sido, no início, condescendentes para com a
nobreza, especialmente em relação aos irmãos e à mãe do rei, contribuiu para conservar o
poder dos Grandes. A recorrente experiência da ameaça aos reis e ao seu poder, pela
954
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 99.
955
ANDERSON, op. cit., p. 100. Segundo Perry Anderson, “os
Parlements
foram silenciados e a sua
exigência de apresentar objeções aos editos reais antes do registro foi anulada (1673). As outras cortes
soberanas foram reduzidas à obediência. Os estados provinciais não mais podiam discutir e regatear os
impostos: a monarquia impôs exigências fiscais precisas, que eles se viram compelidos a aceitar. A
autonomia municipal das bonnes villes foi restringida, enquanto as prefeituras eram subordinadas e
instalavam
-
se nelas guarnições militares”. ibid.
956
Cf.
ibid.
957
ELIAS, 2001, op. cit., p. 202.
233
participação de seus parentes mais próximos nos assuntos políticos, foi necessária para que
Luís XIV, no ápice do absolutismo francês, adotasse uma rigorosa política de manter os
seus parentes mais próximos afastados dessa esfera, centralizando em suas mãos todas as
decisões.
958
Ao atingir a maioridade e assumir o poder, Luís XIV excluiu a nobreza de todas as
posições de poder.
959
Nas
Memórias
, Luís XIV aconselha o filho que na escolha dos
ministros, os príncipes não devem escolher pessoas que se encontram em completa
obscuridade, por mais capazes que possam ser. Por outro lado, não devem eleger para esse
posto pessoas da mais alta linhagem. Pois os príncipes precisam deixar claro que não
pretendem dividir a sua autoridade com eles e que eles não nutram esperanças de ter maior
autoridade; e isto é mais difícil quando se trata de seus parentes. Conforme seus próprios
termos,
não me é fácil dizer-vos, meu filho, o que é preciso fazer para uma boa escolha dos
diversos ministros. (...) Nem vós nem eu, meu filho, iremos buscar para estes empregos os
que se encontram na mais completa obscuridade, sejam quais forem as suas capacida
des.
Necessariamente, que determinar em um pequeno número que o acaso nos apresente;
quer dizer, entre os que se encontram com algum cargo, ou então entre aqueles que se
encontram mais perto de nós pelo seu nascimento. Para vos descobrir todo o meu
pensamento, não estava interessado em servir-me de pessoas da mais eminente qualidade.
Primeiro que tudo era necessário estabelecer a minha própria reputação e dar a conhecer ao
mundo, em virtude da mesma classe de que procediam, que não era minha intenção
dividir
a minha autoridade com eles. Importava-me que não concebessem mais esperanças do que
aquelas que me agradava dar-lhes; o que é mais difícil com as pessoas de mais alta
linhagem.
960
Norbert Elias observa que, “embora no século XVIII os reis voltassem a nomear
ministros entre a pequena e a média nobreza, desde Luís XIV fazia parte da tradição do
regime, raramente quebrada, negar até onde fosse possível qualquer participação no
governo a esses ‘Grandes’, incluindo participações não-
oficiais”.
961
Os nobres passaram a
ocupar apenas os cargos de corte, mas amesmos estes não eram exclusivos da nobreza,
os burgueses também os ocupavam.
962
Luís XIV não aceitava que seus parentes tivessem postos importantes que lhes
possibilitassem exercer qualquer tipo de influência no seu governo. Ele era implacável nas
958
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 199.
959
Cf. ibid., p. 202.
960
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 47.
961
ELIAS, 2001, op. cit.,
p. 183.
962
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 167. “Luís XIV reduziu o mínimo o acesso dos burgueses aos cargos de
corte, mas nem mesmo ele conseguiu excluí
-
los inteiramente”. ibid.
234
questões que atingiam diretamente o seu prestígio, a sua autoridade e a sua dominação.
963
Norbert Elias recorda que, Luís XIV “nunca esqueceu (...) a importância que tiveram como
ponto de apoio para as revoltas os postos de
gouverneurs
, no reinado de seu pai. Nem as
dificuldades que seu tio, Gastão de Orléans, causou ao seu pai, apoiado em seu posto de
gouverneur
”.
964
Por isso, como vimos anteriormente, quando o seu irmão Filipe lhe pediu
uma fortificação e um cargo de governador ele se negou a atendê-lo. A resposta de Luís
XIV, diante do pedido de seu irmão, denota uma característica não de sua maneira de
falar, mas também de todo o seu modo de pensar e de agir em relação aos Grandes.
965
Um dos meios utilizados pela monarquia na época moderna para aumentar a sua
autoridade em detrimento da nobreza foi o seu lento desarmamento. O torneio, que se
constitui em um treinamento guerreiro dos nobres da Idade Média e do Renascimento
(séculos X-XV), é proibido pela Igreja e pelo Estado. O torneio expressava o poder e a
independência dos nobres e por isso foi objeto de várias interdições tanto por parte da
Igreja como do Estado.
966
Segundo a observação de Apostolidès, “para a monarquia, trata-
se de retirar dos feudais essa ‘espa
da outrora tão temida’”.
967
A tentativa de desarmar os nobres continua na segunda metade do século XVI e
será concluída um século depois com Luís XIV. Em 1559, quando Henrique II estava
lutando com o seu capitão da guarda, o conde de Montgomery, ele foi ferido no olho com
um golpe da lança, sucumbindo aos ferimentos. A Igreja e o Estado lançarão mão desse
incidente para interditar as lutas e os torneios definitivamente.
968
O duelo, outro exercício nobre por excelência, também esteve na mira da Igreja e
do Estado na luta de ambos para desarmar a nobreza. Em sua batalha contra os duelos, a
Igreja foi extremamente radical. De acordo com Apostolidès, “em 1645, o Concílio de
Trento se pronuncia contra ‘a prática detestável dos duelos’. Os padres conciliares
ameaçam
de excomunhão não apenas os duelistas, mas seus ‘padrinhos’ e todos os
963
Cf. ELIAS, 2001, op. cit., p. 205.
964
ELIAS, 2001, op. cit., p. 205.
965
Cf. i
bid.
966
De acordo com Apostolidès, “codificado em alguns de seus aspectos a partir do século XI por Geoffroi de
Preuilly, o torneio é um exercício militar assim como uma oportunidade de submeterem-se vassalos, de
conseguirem
-se cavalos ou resgates. É uma das manifestações do poder dos feudais, a razão por que pesam
sobre eles as interdições da Igreja. Proibidos durante as cruzadas, denunciados por são Bernardo, os torneios
são regularmente objeto de condenações papais. Por seu lado, os soberanos tentam conter as independências
dos feudais promulgando interditos temporários, renovados por diversas vezes”. APOSTOLIDÈS, op. cit.,
p.
41.
967
ibid., pp. 41
-
42.
968
Cf.
ibid., p. 42.
235
assistentes”.
969
A prática do duelo foi proibida pelo Estado mediante inúmeras interdições,
sobretudo a partir do incidente de Henrique II. Mas antes de Luís XIV os nobres nem
sempre resp
eitavam as interdições estatais.
970
No reinado de Luís XIV, o processo de desarmamento da nobreza é consumado.
Durante esse período, a nobreza desarmada a sua vocação natural de guerreira
particularmente comprometida.
971
No século XVI, os exércitos ainda eram relativamente
modestos, compostos principalmente por forças mercenárias com pouca capacidade. Eram
os nobres de alta estirpe em seu reino, pertencentes à alta nobreza, que os comandavam,
como Condé, no caso da França.
972
Para construir seu instrumento de guerra, o Grande Rei contou com três grandes
homens: o seu respeitado mestre e iniciador na arte da guerra, o general Turenne, nomeado
a marechal geral do exército real em 1660, cargo que ocupou até a sua morte em 1675; mas
foram dois funcionários públicos, Le Tellier e seu filho Louvois, os verdadeiros criadores
de um exército monárquico. Foi com eles que houve a concentração da autoridade militar
na pessoa do rei e a definitiva subordinação da nobreza a ele. Le Tellier destacou-se como
legislador do exército e Louvois como sustentáculo e administrador disciplinar.
973
Conforme Méthivier, “graças a eles, os Bureaux de la Guerre receberam regulamentos,
serviços organizados, tradições. Eles são rodeados de técnicos e comissários. (...) O
essencial da obra é de ter restituído o exército ao rei em criar toda uma
administração civil
[comissários de guerras, intendentes de exércitos, inspetores para as paradas militares] e
em lhe subordinar pela gestão a nobreza de espada”.
974
Na França, a conversão dos exércitos particulares a régios será concluída com Le
Tallier e depois com Louvois, entre 1670 a 1680.
975
A guerra se torna um negócio de
especialistas, os quais são recrutados e treinados para esta finalidade específica; a
colaboração de matemáticos e engenheiros é necessária para a tática dos cercos; os
exércitos são organizados de uma maneira em que a infantaria se sobrepõe aos nobres
cavaleiros; Louvois, o ministro da guerra de Luís XIV, reorganiza o exército impondo uma
969
ibid.
970
Cf. APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 42.
971
Cf. ibid., p. 43.
972
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 47.
973
Cf. MÉTHIVIER, op. cit.,
pp. 63, 65.
974
ibid., p. 65.
975
Cf. CHAUNU,
vol. I, op. cit., p. 52.
236
hierarquia de comando não mais baseada no nascimento e sim no saber.
976
Sob o Grande
Rei, conforme Apostolidès, a nobreza é então “desarmada, despossuída de seus costumes,
privada de suas prerrogativas militares”.
977
No período luiscatorziano, no aspecto cultural, a nobreza tradicional vive de
lembranç
as. O seu modo de vida, o homem guerreiro sobre seu território, foi perecendo
desde o século XI e completamente aniquilado na segunda metade do século XVII com
Luís XIV. Como vimos, neste período, os torneios e duelos foram definitivamente
abandonados pela
nobreza sob a forte pressão deste monarca.
978
Das práticas específicas da
nobreza, somente a caça subsiste.
979
Mesmo Luís XIV tendo desarmado completamente a nobreza, Bossuet temia que
esta, ao se afastar da corte, mesmo por um breve período, pudesse
Conform
e as
Sagradas
Escrituras
, irado pelos pecados cometidos por Davi, o adultério e a morte do marido de
Betsabá, Deus castigou-o, decretando que o seu reino seria palco de constantes guerras
civis. Na compreensão de Bossuet, o mesmo estava se dando com Luís XIV, devido a sua
conduta em relação à Madame de Montespan e ao marido dela.
vir a se armar novamente contra o poder estabelecido na França; como acontecera
na época da Fronda, que ocorreu durante a menoridade de Luís XIV, revolta civil da qual
Bossuet foi
testemunha ocular e da qual tinha horror só em pensar.
O rigor da realeza nos combates às rebeliões internas
Contudo, na concepção de Bossuet, mesmo sabendo que as revoltas civis ocorridas
em seu reino eram um castigo de Deus por suas más ações, os príncipes deveriam reprimi-
976
Cf. APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 43.
É bom lembrar que este processo começou já na Idade Média, desde a
instituição dos exércitos permanentes em meados
do século XV. De acordo com Le Roy Ladurie, a partir daí,
“os numerosos militares (...) recebem seus soldos em ritmo regular (...). Esses soldos são hierarquizados
segundo a graduação, e não mais segundo as condições dos oficiais mais ou menos nobres. Corpos de
especialistas aparecem na artilharia, na fabricação das pólvoras etc”. LADURIE, op. cit., p. 34. Porém, tal
processo somente será concluído no governo pessoal de Luís XIV.
977
APOSTOLIDÈS, op. cit., p. 43.
978
Cf. MANDROU, op. cit., p. 155. Segundo Mandrou, “nem o duelo, nem o torneio, que continuaram
durante muito tempo a exprimir a condição nobiliária, não podiam se manter; o torneio abandonado pouco a
pouco ao fim do século XVI após o acidente de Henrique II; o duelo, vinte vezes interditado por ordena
nças
reais sem cessar transgredido, exaltado ainda contra Richelieu no tempo do
Cid
como o exercício nobre por
excelência, é finalmente abandonado ele também.”. ibid., p. 156.
979
Conforme Mandrou, “privilégio mantido apesar das cóleras camponesas, atividade
da qual todos os nobres,
grandes e pequenos, não se cansam jamais (...). A caça, que justifica a conservação de uma cavalaria
dispendiosa, de um pessoal especializado, é bem a única atividade específica da nobreza, a única festa que
subsiste em todos os castelos dos pequenos gentishomens rurais: ajuntamentos anuais em que revivem um
instante as evocações de faustos e de grandes cavalgadas praticadas em tempos longínquos. ibid.
237
las severamente. No artigo terceiro do livro nono da
Politique,
Bossuet afirma que, nas
guerras civis, nas quais os entes queridos
dos reis participam, em nome da paz pública, eles
devem esquecer a sua própria dor e punir os rebeldes para assim impedir que novos
infortúnios ocorram a eles e ao reino:
Consideramos agora a conduta de Davi. Ele começa em princípio por se dar tempo para se
reconhecer. E abandonando Jerusalém, onde o rebelde devia vir em breve o mais rápido
para oprimi-
lo
sem recurso, ele se retira em um lado escondido do deserto com a elite das
tropas. Como sentiu a mão de Deus que o punia segundo a predicação de Nathan, ele entra
na verdade na humilhação que convinha a um culpado que seu Deus aplicava, retirando-
se
a chorando com toda sua comitiva, a cabeça coberta e reconhecendo o dedo do Senhor.
Mas ao mesmo tempo ele não esquecia seu dever. Pois, vendo que todo o reino estava em
perigo por esta revolta, ele todas as ordens necessárias para assegurar-se de tudo o q
ue
ele tinha de mais fiéis servidores, como as legiões conservadas de Phéléthi e de Cérethi,
como a tropa estrangeira de Ethai Géthéen, como Sedoc e Abiathar com sua família. Ele
pensava também de estar prevenindo negociações do partido rebelde, em dividir os
conselhos e destruir o de Achitophel, que era o mais ameaçador. Após ver assim contido o
primeiro fogo da rebelião e prover as mais urgentes necessidades por ordens que ele saiu
-
se
bem, ele se coloca em posição de combate. Ele mesmo divide o seu exército em três [o que
é preciso observar], porque esta divisão era necessária para fazer combater sem confusão,
sobretudo de grandes corpos do exército, tais como as tinha então. Ele nomeia os oficiais e
os comandantes e lhes diz: ‘Marcharei a vossa frente’. (
...) Ele não esquecia o dever de pai;
e recomenda bem alto a Joab e aos outros chefes de salvar Absalão. O sangue real é um
bem de todo o Estado, que Davi devia poupar, não somente como pai, mas ainda como rei.
Sabe
-se o acontecimento da batalha; como Absalão nela perecia, apesar das ordens de
Davi; e como, por poupar os cidadãos, cessa
-
se de perseguir os desertores. Davi, entretanto,
fez uma falta considerável (...). Ele se afligia desmesurada mente da perda de seu filho,
gritava sem cessar de um tom lamentável: meu filho Absalão, Absalão meu filho, quem
me dera morrer em vosso lugar? Ó Absalão, meu querido filho, meu filho bem amado!’A
notícia vem ao exército, e a vitória foi transformada em dor. O povo estava desencorajado,
e, como um povo vencido e posto em derrota, ele não ousava aparecer diante do rei. O que
obriga enfim Joab a lhe dar o conselho que nós observamos algures. E o que deve fazer
entender aos príncipes que nas guerras civis, apesar de sua própria dor, contra a qual é
preciso fazer esforço, se deve saber tomar parte à felicidade blica que a vitória inspira;
do contrário se aliena os espíritos e atrai para si e para o reino de novas desgraças.
980
Certamente, Bossuet está tentando alertar Luís XIV que não seja indulgente com
seu neto, o duque de Borgonha, caso este, influenciado por Fénelon, venha a empreender
uma guerra civil contra ele, para lhe tomar o poder.
Ora, a respeito da repressão às revoltas internas, sobretudo às lideradas pela alta
nobreza, Luís XIV observa, nas
Memórias
, que os reis devem ser rigorosos na aplicação
das leis quando se trata de súditos indisciplinados. É dever dos reis castigar os malfeitores,
mesmo que isto lhes cause dor; buscando consolar-se no fato de estarem agindo do mesmo
modo que Deus. O castigo a uma minoria de maus súditos significa conservar a vida da
980
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 341
-
342.
238
maioria de inocentes. A indulgência do rei em relação aos malfeitores consiste em uma
crueldade pública. A ordem, a paz do reino e a realeza estão diretamente ligadas ao rigor
nas leis. De modo que, a supress
ão desse último acarreta a supressão dos primeiros:
Seríamos demasiado felizes, meu filho, se nunca tivéssemos que obrigar e conceder graças.
Mas o próprio Deus, cuja bondade não tem limites, nem sempre tem que recompensar e
algumas vezes se obrigado a castigar. Qualquer que seja a dor que isso nos cause,
devemos consolar-nos sentindo em nós próprios que o fazemos como Ele, partindo do
único ponto de vista justo e legítimo de um bem mil vezes mais considerável. Exterminar
os homicidas e os malfeitores não é derramar o sangue dos nossos súditos, mas antes
economizá
-lo e conservá-lo: é comover-se de paixão, mas por um número infinito de
inocentes do que por um pequeno número de culpados. A indulgência perante estes
desgraçados indivíduos seria uma crueldade universal e pública. (...) Suprimir o rigor das
leis é suprimir a ordem, a paz, a tranqüilidade do mundo; é suprimir, ao mesmo tempo, a
realeza.
981
Segundo Luís XIV, é o temor do castigo que afasta os súditos do mal. A certeza da
impunidade causa males ao
Estado. Em muitos casos, os reis devem esquecer o seu próprio
orgulho e perdoar. Mas quando se trata do Estado, do mal mais contagioso de todos, que
são as revoltas civis, os reis devem castigar os revoltosos severamente. A dor que isto lhes
causa será compensada pelo fato de verem que tal castigo evitará que haja futuras ocasiões
em que terão que recorrer a uma solução análoga:
Quem perdoa demasiado freqüentemente castiga quase inutilmente no resto do tempo; pois,
nesse temor que afasta os homens do mal, a esperança de impunidade apenas faz menos
efeito que a própria impunidade. Não acabareis a leitura dessas
Memórias
, meu filho, sem
encontrar momentos em que eu soube vencer-me a mim próprio e perdoar ofensas que
poderia justamente nunca mais esquecer. Ma
s nessa particular ocasião em que se tratava do
Estado, dos mais perniciosos exemplos e do mal mais contagioso do mundo para o resto
dos meus súditos, em suma, de uma revolta à mão armada, que não atacava a minha
autoridade no menos importante, mas antes n
o seu próprio fundamento, achei que me devia
vencer de outra maneira, deixando castigar esses miseráveis a quem desejaria perdoar. A
dor que tal severidade me produziu foi largamente recompensada pela satisfação de ver que
esse castigo me evitou posteriorm
ente a ocasião de ter de empregar semelhante remédio.
982
De acordo com Luís XIV, quanto mais a sua prosperidade despertava invejas no
exterior, mas era necessário reprimir as revoltas internas. Pois era costume das nações
estrangeiras se aproveitarem dos momentos de guerras internas, em que a França se
encontrava enfraquecida, para empreender a guerra contra ela. Conforme seus próprios
termos, “era tanto mais importante reprimir semelhantes movimentos quanto a minha
981
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 59
-
60.
982
ibid.,
p. 60.
239
prosperidade começava a despertar invejas, e que o costume dos nossos vizinhos consiste
em esperar os seus recursos das revoluções da França, alimentando esperanças vãs e
quiméricas à menor aparência de novidade”.
983
Luís XIV está se referindo ao fato de que, durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-
1648) os Habsburgos espanhóis lançaram mão do apoio dos Grandes que se encontravam
sublevados na França e conspiravam contra Luís XIII.
984
O término desta guerra, mediante
os Tratados de Vestfália, em 24 de outubro de 1648, assinalou o fim da preponderância
espanhola e o início da francesa. No entanto, os espanhóis não aceitaram a derrota e se
aproveitaram da Fronda, iniciada em janeiro de 1648, em que a França encontrava-
se
enfraquecida internamente, para se aliar ao Príncipe de Condé, primo de Luís XIV e líd
er
da alta nobreza durante essa guerra civil.
985
A guerra franco-espanhola se estenderá a
1658, na qual Condé lutará até o fim do lado dos espanhóis contra a França. Neste ano, o
general Turenne derrotou Condé e os espanhóis. A paz entre a França e a Espanha foi
concluída pelo Tratado dos Pireneus, em 1659, negociado por Mazarino.
986
Esse tratado
concedia à França “o Roussillon, o Artois, alguns lugares em Flandres, Hainaut e o
Luxemburgo”.
987
Mas, as próximas palavras de Luís XIV dão a entender que, em seu
ent
endimento, a França teria muito mais vantagens se, no período dessa guerra contra a
Espanha, não tivesse que lutar ao mesmo tempo contra os rebeldes internos. Segundo ele,
“terríveis agitações por todo o reino, antes e depois da minha maioridade; uma guerr
a
estrangeira, na qual as suas querelas domésticas tinham feito perder à França mil e uma
vantagens; um príncipe do meu sangue e do meu nome à cabeça dos inimigos; muitas
cabalas no Estado”.
988
Para Luís XIV, os súditos que trabalhavam próximos a ele que, se
gundo
informações seguras, não lhe tinham verdadeiro afeto e respeito o indignavam muito mais
do que os súditos rebeldes que ousaram pegar em armas contra ele: “quando os meus
súditos rebeldes tiveram a audácia de pegar em armas contra mim, talvez me tenha
m
produzido menos indignação do que aqueles outros que, perto de mim, cumpriam os seus
deveres com maior assiduidade que todos os restantes, estando eu muito bem informado de
983
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 60.
984
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 297.
985
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 211.
986
Cf. ibid., pp. 211
-
212.
987
ibid., p. 212.
988
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 12.
240
que me traíam e que não tinham por mim verdadeiro respeito nem verdadeiro afeto”.
989
O
fato de Luís XIV ser uma criança durante a Fronda não impediu que aflorasse nele o
sentimento de indignação em relação à traição de seu primo. Todas as atitudes posteriores
de Luís XIV em relação à alta nobreza são decorrentes dos efeitos da Fronda sobre ele.
Segundo Shennan, “o efeito dessas guerras sobre o jovem rei, que num certo momento foi
obrigado a fugir da capital, tornou-as o episódio mais significativo da sua vida. Suas
experiências durante as Frondas explicam muitas das políticas que adotaria mais tarde e
modelaram sua posição a respeito de pessoas eminentes”.
990
Todo o esforço de Luís XIV para impor a ordem em todas as esferas, manter uma
vigilância rígida sobre a nobreza, aumentar o policiamento em Paris e formar um poderoso
exército, entre ou
tras coisas, consistia em uma reação à Fronda. Todos esses meios serviam
para que ele se sentisse mais seguro para combater qualquer revolta que os súditos
pudessem vir a empreender contra ele. A este respeito, Shennan constata que,
de modo geral, a reação de Luís XIV às Frondas, mais tarde no seu reinado, foi adotar e
reforçar as medidas de organização e controle do governo central que, em sua opinião,
melhor se opunham à rebelião. (...) Também em outros aspectos, mais específicos, as
atitudes de Luís durante a maioridade refletiam sua experiência na época das Frondas. Por
exemplo, a desconfiança dos grandes nobres que tinham podido levantar-se contra seu
governo; ou a determinação de manter um poderoso exército real, forte o bastante para
impedir que a coroa continuasse a ser humilhada por súditos dotados de um poder
excessivo. (...) Luís XIV exigia (...) acima de tudo ordem: ordem na hierarquia social,
levada quase à caricatura nas regras que governavam a conduta dos cortesãos em
Versalhes; ordem na substituição da incerta lealdade dos laços feudais por um exército real
altamente treinado e organizado burocraticamente; ordem na capital, onde o primeiro
tenente
-general da polícia, nomeado em 1667, instituiu um sistema de iluminação blica
para reduzir o al
to nível de violência durante a noite.
991
Voltando a Bossuet, ao chamar a atenção para o fato de que Davi deu ordens aos
seus generais para que sufocassem a revolta liderada por Absalão, mas que poupassem a
sua vida, que “o sangue real é um bem de todo o Estado, que Davi devia poupar, não
somente como pai, mas ainda como rei”
992
, ele está lançando mão de um dos pilares de
sustentação da realeza. Como para reforçar o poder dos reis perante os súditos os teóricos
políticos defendiam que o sangue real era sagrado e que vertê-lo era um crime horrendo e
imperdoável, os próprios reis deviam dar o exemplo. Afinal, se um rei matasse um príncipe
989
ibid., p. 32.
990
SHENNAN, op. cit., p. 20.
991
ibid., p
. 21.
992
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 342.
241
de sangue ele estaria contradizendo tal idéia. Não podemos nos esquecer que na época
moderna essa idéia antiga era compartilhada por todos, inclusive os teólogos políticos e os
reis. Ao defendê-la ambos não pretendiam enganar os súditos, que acreditavam nela
piamente.
Bossuet adverte, no artigo terceiro do livro nono da
Politique
, que as sublevações
das massas lideradas pela nobreza são ainda mais ameaçadoras aos reis que às compostas
pela alta nobreza liderada pelos príncipes de sangue. Bossuet observa que, para eliminar as
revoltas internas, o príncipe deve conservar consigo as velhas tropas, pois estas o ajudarão
nos momentos difíceis. Ele adverte que o príncipe deve poupar o sangue dos súditos,
matando somente os rebeldes:
A rebelião não foi sem conseqüência. Séba, filho de Bochri, da família de mini que era a
de Saul, subleva por essas palavras de desprezo o povo ainda estimulado: ‘nós não temos
nada de comum com Davi, e o filho de Isai não nos comove em nada. O rei conheceu o
perigo e disse a Amasa: apressa-vos de reunir todo Judá. Ele executa esta ordem
lentamente. E Davi disse a Absai: o filho de Bochri vai nos fazer maior mal que Absalão;
apressai
-vos então e pegue o que de melhores tropas, sem lhe deixar o tempo de se
reconhecer e de apoderar-se de qualquer cidade’. Absai tomou as legiões de Céréth e de
Phéléthi, com o que havia de melhores soldados em Jerusalém
. Joab, de seu lado, perseguia
Séba, que ia de tribo em tribo sublevando o povo, e levando consigo o que ele podia de
tropas escolhidas. Mas Joab fez entender aos de Abéla, onde a rebelião se tinha encerrado,
que tratava
-
se dele somente. A sua persuasão, u
ma mulher sábia da região, que se agradava
que se queria perder uma tão bela cidade, soube livrá-la fazendo lançar a Joab a cabeça de
Séba por sob as muralhas. Assim, acabou a revolta, sem sangue, somente o do chefe dos
rebeldes. A diligência de Davi salva o Estado. Ele tinha razão de pensar que esta segunda
revolta, que vinha como do próprio movimento do povo e de um sentimento de desprezo,
era mais perigosa que aquela que tinha excitado a presença do filho do rei. Ele conheceu
também quanto era útil ter velhos corpos de tropas sob sua mão; e tais foram os remédios
que ele opôs aos rebeldes.
993
Ao dizer que as revoltas das massas lideradas por nobres, que lançam mão do seu
descontentamento para sublevá-las contra a realeza, são ainda mais ameaçadoras ao pod
er
real, Bossuet está fazendo alusão à Fronda.
Em meados do século XVII se deu o apogeu do absolutismo francês. O aumento do
poder político da monarquia se deu com a perda do poder político da nobreza. Esse
processo de alienação do poder por parte da nobreza, que se viu privada de seus antigos
direitos particularistas e privilégios, não ocorreu sem o descontentamento e luta por parte
da mesma contra a monarquia absolutista.
994
993
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 342
-343.
994
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 52.
242
No ocidente, no século XVII, houve revoltas da nobreza local contra a consolidação
do absolutismo. A revolta da nobreza local misturava-se com levantes de burgueses e
juristas; os quais lançavam mão do descontentamento e fúria dos camponeses e
trabalhadores urbanos como armas contra a monarquia. Na França, o caso clássico da
Fronda.
995
No século XVII, a reação da nobreza contra a monarquia não se transformou em
nenhuma revolta de grande escala e nem unificada, que elas encontravam-se ligadas por
pertencerem à mesma classe; também não houve nenhuma revolta composta apenas pela
nobreza.
O que houve freqüentemente, segundo Perry Anderson, foram explosões locais
em que “uma parcela regionalmente delimitada da nobreza erguia a bandeira do
separatismo aristocrático e era apoiada por uma burguesia urbana descontente e por
multidões plebéias,
em levantes gerais”.
996
Lançando mão da insatisfação das massas pela alta exploração sofrida,
principalmente com os altos impostos a que eram obrigadas a pagar, a nobreza e a
burguesia francesas as jogaram contra o poder constituído. Explode então a Fronda,
em
janeiro de 1648. Durante a Fronda, o poder real correu sérios riscos. Percebendo o perigo
que rondava o pequeno rei, que ainda não havia completado 5 anos de idade, Ana
d’Áustria, a rainha mãe e regente, teve de fugir de Paris com o filho.
Havia tensões entre as diferentes classes envolvidas na Fronda. Cada uma delas
desejava limitar o poder do rei em seu proveito, quando percebia que a outra classe estava
se tornando poderosa, desfazia a aliança com ela e passava para o lado do ministro contra a
sua antiga aliada. Mas, quando sentia que o primeiro-ministro estava se fortalecendo,
voltava a sua aliança inicial. Saber explorar as divergências e tensões entre as classes era o
que mantinha a força do poder central. E isto Mazarino soube fazer muito bem. Conf
orme
Norbert Elias,
Luís XIV era ainda menor de idade e Mazarino governava. Mais uma vez, e pela última vez
durante muito tempo, os grupos sociais mais díspares uniram-se para atacar a onipotência
real, representada pelo ministro. Parlamentos e a nobreza em geral, corporações urbanas e
indivíduos de mais alto nascimento, todos eles tentaram explorar o momento de fraqueza
da monarquia, a regência da rainha, exercida pelo cardeal. O quadro configurado por este
levante, porém, mostra claramente como eram tensas as relações entre esses grupos. A
Fronda foi uma espécie de experimento social. Pôs às claras, mais uma vez, a estrutura de
tensões que dava à autoridade central sua força, mas que permanecia disfarçada enquanto
estivesse firmemente estabelecida essa autoridade. Tão logo um dos aliados parecia obter a
menor vantagem, todos os demais se sentiam ameaçados, desertavam da aliança, faziam
995
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 52.
996
ibid., p. 53.
243
causa comum com Mazarino contra seu antigo aliado e, depois, parcialmente retornavam
para seu lado. Todas essas pessoas e grupos queriam limitar o poder real, mas cada um
pretendia fazê-lo em proveito próprio. Todos temiam que o poder do outro pudesse crescer
ao mesmo tempo. Finalmente – e não pouco graças à habilidade com que Mazarino
explorou esse mecanismo de tensões
o a
ntigo equilíbrio foi restabelecido em benefício da
Casa Real.
997
As lições da Fronda nunca foram esquecidas por Luís XIV. De maneira muito mais
eficiente que todos os seus predecessores, ele “fomentou esse equilíbrio e manteve as
divergências e tensões exis
tentes”, segundo Norbert Elias.
998
O ano de 1653 assinalou o fim da Fronda. Neste ano, Mazarino e Turenne
eliminaram os últimos redutos de revoltas.
999
Com exceção da Inglaterra, em todas as
outras partes do Ocidente, como na França, “as insurreições dominadas ou contaminadas
pelo separatismo da nobreza foram esmagadas, reforçando-
se o poder do absolutismo”.
1000
Um ponto importante do pensamento de Bossuet é a importância que ele ao
exército como um instrumento necessário e eficaz a ser utilizado pelos príncipes na
repressão das revoltas internas. Bossuet deixa isto bem claro quando diz acima, a respeito
de Davi, “ele conheceu (...) quanto era útil ter velhos corpos de tropas sob sua mão; e tais
foram os remédios que ele opôs aos rebeldes”.
1001
O desenvolvimento da monarquia encontra-se estreitamente ligado ao
desenvolvimento de um exército permanente, instituído em meados do século XV, bem
como ao progresso técnico. Segundo constata Le Roy Ladurie, “armas de fogo e
militarização de uma parte da sociedade: os novos métodos do tiro para matar como para
destruir, e as massas de homens especialmente treinados que os utilizam constituem
poderosos trunfos para a monarquia clássica a partir dos séculos XV e XVI”.
1002
Na
França, é clara a ligação entre o começo da monarquia clássica no final do reinado de
Carlos VII até o fim do século XV e o desenvolvimento de um exército permanente,
equipado fortemente com bocas-
de
-fogo; as quais, sob Carlos VII são muito eficazes. A
partir de meados do século XV houve um significativo aumento do poder de tiro bem
como dos soldados efetivos. De acordo Le Roy Ladurie, “no século XIV, o núcleo estável
997
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., pp. 163
-164.
Ver também a este respeito ELIAS, 2001, op. cit., pp. 184
-
184.
998
ELIAS, 1993, op. cit., p. 164.
999
ANDERSON, op. cit., p. 98.
Turenne era o ministro da guerra de Luís XIII.
1000
ibid., p. 53.
1001
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 343.
1002
LADURIE, op. cit., p. 34.
244
do exército real
em tempo de paz
contava apenas 2 mil homens; mas 10 mil a 15 mil depois
de 1450 (...) (sempre durante os períodos pacíficos)”
.
1003
No ocidente, o exercito teve um papel importantíssimo para o advento do
absolutismo.
1004
Mesmo nos períodos pacíficos, a unidade de base para o exército
permanente de uma grande potência européia, limita-se a mil homens no século XIV, mas
a dezena de milhares durante o Renascimento.
1005
60 mil homens compunham os exércitos
de Filipe II, um século depois, os de Luís XIV chegaram a 300 mil, na Guerra da Sucessão
Espanhola.
1006
Normalmente, essas tropas não constituíam uma força nacional formada por
recrutas, e sim por uma massa heterogênea, em que os mercenários estrangeiros
representavam um papel constante e principal. Os exércitos franceses contavam, sobretudo,
com mercenários suíços.
1007
A preferência por mercenários se devia ao fato de que os reis
percebiam que era impossível treinar todos os seus súditos no exercício militar e mantê-
los
submissos.
1008
Por outro lado, os reis podiam contar com tropas de soldados mercenários
que ignoravam a língua da população local para acabar com as revoltas sociais. Na França,
os sol
dados suíços ajudaram na repressão dos rebeldes do
Boulonnais
(região de Boulogne
-
sur
-Mer no litoral norte da França) e dos camisardos (huguenotes da região das Cévennes,
no s
udeste
da França) em 1662 e 1702.
1009
Na primeira década do reinado pessoal de Luís XIV, os funcionários do setor civil
do aparelho político eram ajudados por uma forte máquina repressiva, extraordinariamente
aumentada. Para conservar a ordem e reprimir rebeliões, em 1667, em Paris, foi criada uma
força permanente de polícia, a qual, depois de 1698-99, foi estendida por todo o reino.
Durante o reinado de Luís XIV houve um extraordinário aumento do volume do exército,
de 30 a 50 mil homens subiu para 300 mil, no final do reinado. O aumento do aparato
militar foi capaz de sufocar as revoltas populares com rapidez e eficiência, bem como
representou o desarmamento definitivo da nobreza das províncias. As tropas mercenárias
1003
ibid.
1004
ANDERSON, op. cit., p. 29.
1005
Cf. LADURIE, op.
cit., p. 34.
1006
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 29. Segundo Le Roy Ladurie, “em tempo de guerra, durante alguns grandes
conflitos do fim do reinado de Luís XIV (...) um adulto do sexo masculino e francês em seis ou sete é regular
ou episodicamente ativo no exército; desempenha o papel de soldado permanente, ou de miliciano, ou
simplesmente de requisitado temporariamente”. LADURIE, op. cit., p. 34.
1007
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 29.
1008
Cf. Conforme observava Bodin, nos
Seis livros da República
, “é praticamente
impossível treinar todos os
súditos de uma comunidade nas artes da guerra e ao mesmo tempo mantê-los obedientes às leis e aos
magistrados”, e “foi esta talvez a primeira razão pela qual Francisco I dissolveu, em 1534, os sete
regimentos, cada um com 6 mil soldados de infantaria, que criara em seu reinado”. apud ANDERSON, op.
cit., p. 30.
1009
Cf. ibid.
245
suíças ajudaram a reprimir os camponeses
boulonnais
e camisardos; a execução dos
huguenotes da França foi efetuada pelos n
ovos dragões.
1010
A preocupação com que nos momentos em que fossem combater as revoltas civis,
os príncipes não derramassem muito sangue dos civis, apenas dos rebeldes, aparece
constantemente no livro nono da
Polique
. Como vimos, ao discorrer sobre a revolta de
Séba contra Davi, Bossuet salienta que, “Joab”, general de Davi, “de seu lado, perseguia
Séba, que ia de tribo em tribo sublevando o povo, e levando consigo o que ele podia de
tropas escolhidas. Mas Joab fez entender aos de Abéla, onde a rebelião se tinha encerrado,
que tratava
-
se dele somente. A sua persuasão, uma mulher sábia da região, que se agradava
que se queria perder uma tão bela cidade, soube livrá-la fazendo lançar a Joab a cabeça de
Séba por sob as muralhas. Assim, acabou a revolta, sem sangue, somente o do chefe dos
rebeldes”.
1011
Mais uma vez nos deparamos com o humanitarismo de Bossuet.
Acreditamos ser desnecessário desenvolver este assunto aqui, pois nos ocupamos dele
em um capítulo anterior deste trabalho.
Na compreensão de Bossuet, os príncipes que desejam manter a paz no seu reino
devem estar mais atentos nos inícios e fins de reinados. Pois os súditos insubordinados
lançam mão destes períodos, em que o poder se encontra enfraquecido, para se insurgirem
contra eles. No artigo terceiro do livro nono da Politique, Bossuet adverte que, “é preciso
observar os começos e os fins dos reinados enquanto relacionados às revoltas”.
1012
Sobre o começo do reinado, Bossuet chama a atenção que “é este o tempo de
fraqueza que é preciso sempre observar com mais cuidado, se se quer bem assegurar o
repouso público”.
1013
Segundo ele, na época em que a Iduméia foi subjugada por Davi e
Joab, o chefe do exército, tratou de eliminar todos os varões descendentes de Edom, o
príncipe Adad conseguir fugir para o Egito, onde o Faraó o recebeu muito bem. Alguns
anos depois, Adad ficou sabendo que Davi e o seu melhor general, Joab, haviam morrido e
que Salomão havia iniciado o seu reinado. Adad acreditava que o reino de Israel
encontrava
-se enfraquecido devido à perda de dois grandes homens e pediu ao Faraó que o
deixasse voltar a sua terra, com o objetivo de despertar os seus amigos para uma revolta
contra Salomão:
1010
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 101.
1011
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 343.
1012
ibid., p. 376.
1013
ibid., p. 377.
246
Quando a Iduméia foi subjugada por Davi, Adad, jovem príncipe da linhagem real,
encontra meio de se retirar no Egito, onde ele foi muito bem recebido por Faraó. Após a
morte de Davi e a de Joab, chegou ao começo do reino de Salomão, crendo o reino
enfraquecido pela perda de um tão grande rei e pela de um general tão renomado, ele disse
a Faraó: ‘deixe
-
me ir a minh
a terra’. Era para aí despertar seus amigos e lançar as sementes
de uma guerra que se viu eclodir em seu tempo.
1014
Bossuet está se referindo à conturbada menoridade de Luís XIV. Riclelieu, ministro
da guerra e primeiro-ministro de Luís XIII, morreu em 1642, o rei morreu no ano seguinte.
O pequeno Luís XIV tinha cinco anos incompletos. O príncipe de Condé utilizou-se desse
momento de fragilidade do poder real e liderou uma revolta da alta nobreza contra o poder
constituído na França.
Desde a Idade Média, a morte de um rei, cujo filho primogênito era ainda uma
criança, era motivo de muita preocupação.
1015
Como constata Le Goff, quando Luís VIII
morreu, em 1226, o seu filho Luís IX era um menino. Tal situação causou inquietude e
angústia aos franceses. Conforme Le Goff, “eis então à cabeça do reino uma criança de 12
anos (...) o sentimento que invadiu os habitantes do reino sem exclusão, é claro daqueles
que desejavam se aproveitar da situação –, foi no mínimo de inquietude e talvez de
angústia”.
1016
Acreditava
-
se
que a função essencial dos reis era colocar o seu povo em relação
com Deus. Os reis da Idade Média, em especial os franceses, ainda que fossem designados
por seu nascimento e por uma tradição dinástica, eram os escolhidos de Deus e, mediante a
sua sagração, o Seu ungido. Após a sagração, eles eram considerados sagrados, a
comunicação entre Deus e seu reino era feita por meio deles. Quando Deus estava irado
contra o povo de um reino cristão, o rei servia de escudo entre o mal e o seu povo. Um
menino, embora sendo rei legítimo pela tradição dinástica, e até mesmo ungido, era
considerado como sendo “um intermediário frágil”. Portanto, “a menoridade de um rei é
uma provação”.
1017
Não existe uma idade jurídica de maioridade para os reis franceses.
1018
A antiga
maiorid
ade dos povos germânicos era aos 14 anos, mas aos 13 anos reis carolíngios
receberam a coroa. A partir do século XI, na maioria dos principados, a maioridade entre
1014
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 376.
1015
Cf. LE GOFF, Jacques
.
São Luís. Biografia.
Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999, p. 83.
1016
ibid.
1017
ibid., pp. 83
-
84.
1018
Cf. ibid., p. 88.
Segundo Le Goff, “o direito canônico não tem nenhum edito nesse sentido, nenhum texto
do direito romano na ocasião é válido quanto a esse assunto, o direito consuetudinário é inconstante, os
exemplos históricos não são claros”. ibid.
247
os nobres passou para os 21 anos, enquanto que para os plebeus continuou aos 14.
1019
No
século XIV, em sua primeira ordenação, em 1374, Carlos V fixará a maioridade em 14
anos.
1020
Vários documentos do século XIII mostram que na França a maioridade estava
fixada em 21 anos. Essas fontes evidenciam que, neste século, muitos nobres franceses
foram considerados maiores aos 21 anos. Apesar de dois nobres de Flandres terem se
tornado maiores aos 14 e 15 anos, os três irmãos de São Luís e o seu filho e sucessor
somente se tornaram maiores aos 21.
1021
Ignora-se quando Luís IX foi considerado maior.
Certamente não foi aos 14 anos. Desde a morte de seu pai, em 1226, foi a sua mãe, Branca
de Castela, quem assumiu o governo. Luís IX provavelmente passou a governar
efetivamente aos 21 anos, mas com a ajuda da mãe.
1022
No entanto, a tendência foi reconhecer a maioridade dos reis Capeto bem mais
cedo, por volta dos 14 anos. O objetivo era limitar o tempo em que o rei, responsável por
seu reino e canal pelo qual a proteção divina chegava a ele, não se encontrava em posse
total de seus poderes. Sendo por isso que, durante
mais de dois séculos, a sagração era feita
precocemente, antes da morte do pai, e a autoridade era antecipada na adolescência, ao
considerar os nobres maiores aos 14 anos.
1023
“Filipe I governou sozinho com cerca de 14
anos e Filipe Augusto”, rei dos francos entre 1180 a 1223, “rei sozinho com 14 anos,
também foi considerado maior”, segundo Le Goff.
1024
Depois da homenagem dos barões e dos prelados, o primeiro ato que Luís VIII
havia solicitado em prol de seu filho era a sagração. Luís VIII havia pedido que esse
ritual
se cumprisse o mais rápido possível. Era importante que o menino se tornasse rei completo
1019
Cf. LE GOFF, 1999, op. cit., p. 88. Conforme Le Goff, “Montesquieu achava que o peso crescente do
armamento tinha retardado a idade do serviço militar e, conseqüentemente, a maioridade. Mas a investidura
do jovem nobre como cavaleiro muitas vezes se dava mais cedo, ainda que o pai de São Luís, o futuro Luís
VIII, só tinha se tornado cavaleiro (...) aos 21 anos (ou 22), em 1209”. ibid.
1020
Cf. ibid. “O assunto é
objeto da primeira ordenação de Carlos V, de 1374”. ibid.
1021
Cf. ibid. Como lembra Le Goff, “em 1215, uma carta do futuro Luís VIII lembra que a maioridade está
fixada em 21 anos no reino da França. O duque de Borgonha, Hugues IV, o conde de Champagne, Trib
aud
IV, o conde da Bretanha, Jean le Roux, tiveram sua maioridade aos 21 anos. O Établissements de Saint
Louis
(1270), os Coutumes du Beauvaisis de Fhilippe de Beaumanoir (cerca de 1280) indicam que os nobres
se tornam maiores com 21 anos. Mas um documento de 1235 declara que, em Flandres, os filhos da
condessa, Jean d’Avesnes e seu irmão Baudoin com 16 e 15 anos, devem ser considerados maiores segundo
os costumes de Flandres. Os irmãos de São Luís foram feitos cavaleiros e entraram na posse de seus
‘apanágios’ com 21. Roberto em 137, Afonso em 1241, Carlos em 1247. O filho e sucessor de São Luís,
Filipe, o futuro Filipe III o Ousado, recebeu da mesma forma a condição de cavaleiro em 1267, com 21
anos”. ibid.
1022
Cf. ibid., p. 89.
1023
Cf. ibid., pp. 88
-
89.
1024
ibid., p. 89.
248
o quanto antes, para dificultar qualquer tipo de contestação a sua legitimidade e, sobretudo,
para pôr fim rapidamente com aquele período de inquietude em que um rei encontra-
se
morto e o próximo ainda não se tornou o seu sucessor.
1025
Devido ao sentimento de inquietude e angústia do interregno, agravada pela
menoridade do sucessor, e a dinastia capetíngea ainda não ser tão poderosa, a sagração de
Luís IX se realizou com muita pressa. O período do interregno era bastante oportuno, não
para contestar o sucessor, que o direito do primogênito do rei defunto estava bem
afixado na França, mas para pressionar esse novo rei incompleto. No tempo de Luís IX, a
idéia de crime de lesa-majestade em relação ao rei ainda estava sendo elaborada na
França.
1026
Assim, o interregno era um período de vácuo no qual a majestade do novo rei
ainda não se encontra firmemente consolidada e que rebelar-se contra ele não era
considerado um
crime tão grave. Por isso, Luís VIII morreu em 8 de novembro de 1226 e a
sagração de Luís IX acontece três semanas depois, no dia 29 desse mês.
1027
No século XVII, os nobres eram considerados maiores apenas aos 21 anos. Pois, de
acordo com Hatton, os nobres príncipes somente eram considerados maiores aos 14 anos
em casos gravíssimos, como quando a alta nobreza aproveitava-se do período de
menoridade do sucessor do trono para se insurgir contra o poder real. O medo de que a alta
nobreza se tornasse muito poderosa durante a menoridade dos herdeiros da coroa francesa
levava esta a declarar maiores príncipes que ainda eram considerados menores para os seus
contemporâneos.
1028
Luís XIV é considerado maior aos 14 anos “por motivo de Estado, e
os que aconselham estas medidas justificam a sua adoção invocando os costumes dos
‘tempos antigos’”.
1029
A convite de Ana d’Áustria, Richelieu entrara para o seu conselho em 1616. Foi
ministro da guerra desde este ano e primeiro-ministro a partir de 1624 até a sua morte, em
1642. Luís XIII morreu em 1643 e Luís Dieudoné (dádiva de Deus) ainda não havia
completado 5 anos de idade. A nobreza e a burguesia se aproveitaram desse momento para
sublevarem as massas descontentes contra o poder central. Dois motivos contribuíram para
que a Fronda rebentasse nessa época: a fragilidade da monarquia durante a menoridade do
rei; o fato de Mazarino, o primeiro
-
ministro, quem governava de fato durante a regência de
1025
Cf. LE GOFF, 1999, op. cit., p. 90.
1026
Cf. ibid., pp. 90-91. A idéia de crime de lesa-majestade começou a ser defendida na Inglaterra, em 787,
quando pela primeira vez um rei inglês recebeu a unção. Cf. BLOCH, op. cit., p. 78.
1027
Cf. LE GO
FF, 1999, op. cit., p. 91.
1028
Cf. HATTON, op. cit., p. 15.
1029
ibid.
249
Ana d’Áustria, ser estrangeiro levava os franceses a acreditarem que podiam atacá-lo à
vontade sem incorrerem em pecado e sem serem castigados por Deus.
1030
Isto porque no
século XVII a noção de crime de lesa-majestade estava bem consolidada na França. É
bom lembrar que o italiano Mazarino havia conquistado a simpatia de Richelieu e de Luís
XIII. Em 1639, Luís XIII concedeu nacionalidade francesa a ele. Porém, os franceses
jamais o aceitaram e sempre o consideraram um estrangeiro. O chavão de “combater o
estrangeiro” era político e constante, mas a impunidade não era garantida.
A divergência de objetivos entre a nobreza e a burguesia, bem como o medo da
burguesia de uma anarquia feudal, levou a burguesia a aceitar o absolutismo do jovem
soberano. A maioridade do jovem Luís foi declarada o mais rápido possível. Em 1652,
durante a Fronda, com 14 anos de idade, Luís XIV foi reconhecido maior pelo Parlamento.
Isto para que o símbolo de um governante, ‘no pleno gozo de seus direitos’ contribuísse
para reunificar um país pouco disposto a se submeter a um ‘conspirador estrangeiro’.
1031
A
maioridade antecipada de Luís XIV trouxe paz à França, pois a Fronda terminou no ano
seguinte.
Quanto à sagração, no século XVII os reis franceses recorriam a ela. Mas nesse
período predominava a idéia apregoada pelos defensores do absolutismo, entre eles
Bossuet, de que os reis eram sagrados pelo cargo que ocupavam e não pela unção, e que
esta era apenas um ornamento de seu poder. Tanto é que Luís XIV foi considerado maior
aos 14 anos, em 1652, mas somente foi sagrado em 1656.
Sobre o fim do reinado, conforme alerta Bossu
et, no artigo terceiro do livro nono da
Politique
, “a extrema velhice de Davi lugar a movimentos que ameaçaram o Estado de
uma guerra civil”.
1032
Bossuet observa que Adonias aproveitou-se da velhice de Davi para
empreender uma revolta contra ele. E Davi so
mente conseguiu acabar com a revolta devido
a contar com velhas tropas fiéis a ele:
Adonias, filho primogênito de Davi depois de Absalão, fazia reviver seu irmão por sua boa
aparência, pelo barulho e a ostentação de seus equipamentos e por sua ambição. Ele tinha
sobre Absalão essa infeliz vantagem, que ele encontrava Davi debilitado, que tinha
necessidade, não de ser empurrado, visto que ele tinha seu vigor total, mas de ser
despertado por seus servidores. Ele tinha posto em seu partido Joab, que comandava os
exércitos, e Abiathar, soberano pontífice, outrora tão fiel a Davi, e muitos outros servidores
do rei das tribos de Judá. Com esse recurso, ele esperava nada menos que invadir o reino
com o rei em exercício, e contra a disposição que ele havia declarad
o, designando Salomão
1030
Cf. SHENNAN, op. cit., pp. 20
-
21.
1031
HATTON, op. cit., p. 81.
1032
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 376.
250
para seu sucessor e o fazia reconhecer por todos os grandes, por todo o exército, contra
aquele que Deus preferia a seus outros irmãos, para enchê-lo de sabedoria, e lhe fazer
construir seu templo ao meio de uma paz profunda. Adonias queria derrubar uma ordem
tão bem estabelecida. Para reunir o partido e dar como o sinal a seus amigos de se fazer
reconhecer por rei, esse jovem príncipe fez um sacrifício solene, acompanhado de um
soberbo banquete. Toda a Corte estava atenta. Observa-
se
que ele tinha chamado
os
principais de Judá, como Joab e Abiathar, e à reserva de Salomão, todos os filhos do rei.
Como não foram nesse banquete nem esses príncipes, nem Sadoc sacrificador, nem
Nathan, nem Banaias muito fiel a Davi e quem comandava as velhas tropas, todos ligados
ao rei e a Salomão, penetra-se no desejo de Adonias, e descobriu-se o mistério. No mesmo
tempo, Nathan e Betsabá, mãe de Salomão, agiram com grande concerto próximo de Davi,
falando
-lhe golpe sobre golpe. Eles abriram os olhos desse príncipe, que até então
permanecia tranqüilo, não por moleza, mas por confiança, em um poder tão bem
estabelecido como o seu e em uma resolução também justificada. O rei fala com tanta
firmeza e autoridade; suas ordens foram tão precisas e tão prontamente executadas que,
antes do fim do banquete de Adonias, toda a cidade estava retumbante da alegria do
coroamento de Salomão. Joab, tão ousado que era e tão experimentado, foi surpreendido; a
questão se encontra feita e cada um se retorna humilhado e trêmulo. O novo rei fala a
Adonias de um tom de mestre: nada abala no reino, e a rebelião que rugia foi abrandada.
1033
Recordemos que Luís XIV perdeu seus principais ministros nas décadas de 1680 e
1690; sobretudo Colbert, em 1683, Le Tellier, em 1685 e Louvois, em 1691. A partir de
1692, ele passa a se ocupar pessoalmente de todos os assuntos de seu reino. Em 1701, Luís
XIV tinha 63 anos de idade. Para os padrões da época, ele era considerado um velho por
seus contemporâneos. O rei encontrava-se debilitado fisicamente devido a ter sido
acometido por algumas doenças. Nesta época, ele era visto passeando pelos jardins do
palácio em uma cadeira de rodas.
Nesses retratos buscados por Bossuet no Antigo Testamento, Luís XIV era Davi, o
seu neto era Absalão e depois Adonias, enquanto que o seu filho era Salomão. No
entendimento de Bossuet, o final do reinado de Luís XIV consistia em uma conjuntura
bastante propícia para que os seus opositores internos, no caso o grupo de Fénelon,
incitasse o seu neto para que se rebelasse contra ele e lhe tomasse o poder. No momento, o
legítimo herdeiro do trono era o ex-aluno de Bossuet. Além do fato de que, se o neto
passasse à frente do pai, estaria quebrando o protocolo de sucessão dinástica, Bossuet
1033
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 376-
377.
Este mesmo exemplo é dado por Bossuet anteriorment
e.
Segundo ele, “pode-se lembrar, a esse propósito, o que acontece a Adonias, filho de Davi. Esse príncipe
prevalecia
-se da velhice do rei, seu pai, do qual ele era primogênito, queria malgrado ele apoderar-se do
reino, e se entendia por isso com Joab e Abiathar, grande sacrificador. Mas, Sadoc, o príncipe dos sacerdotes
(...) e Banaias com as tropas das quais ele tinha o comando e a força do exército de Davi, não estava de forma
alguma para Adonias. Davi, com esse recurso, previu a guerra civil que Adonias sustentou de um grande
partido, e deixa o reino pacífico a Salomão, a quem ele o destinava por ordem de Deus. Assim se continua a
reconhecer a utilidade das tropas conservadas, pelas quais um rei permanece sempre armado e mais forte”.
ibid., p. 343.
251
confiava na educação que dera ao Delfim. Em sua concepção, este era o verdadeiro
Salomão, o escolhido por Deus para pacificar a França.
Como vimos, Bossuet observa que, mesmo velho e debilitado fisicamente, Davi era
firme em suas decisões. Ora, apesar dos problemas de saúde vindos com a idade, o vigor
mental, o amor pelo trabalho e o zelo por sua autoridade acompanharam Luís XIV até os
últimos dias de sua vida. Tanto é que, desde 1692, após a morte de seu ministro da guerra
Louvois, era ele pessoalmente quem comandava o exército de seu gabinete. E, apesar da
velhice, ele continuava firme em suas decisões, não permitindo que nada e nem ninguém
abalassem a sua autoridade.
No entendimento de Bossuet, os príncipes somente conseguiriam manter a paz em
seu reino se estivessem sempre armados. No artigo terceiro do livro nono da
Politique
,
Bossuet adverte que os reis devem estar sempre armados. Além das tropas que combatiam
a pé, Davi conservava as tropas que combatiam montadas, dando às últimas a devida
distinção para que os seus integrantes, tendo o reconhecimento de seu valor, lhes fossem
fiéis. Além das tropas que combatiam a e das que combatiam montadas, eram
convocados milhares de soldados somente em momentos de extrema necessidade, isso para
que não houvesse muita alteração nos gastos do rein
o:
Os reis estão sempre armados. Nós vimos sob Davi as legiões Céléthi e Phéléthi, que
Banaïas comandava, sempre a pé. Ele tinha também conservado o corpo de seiscentos
valentes combatentes, comandados por Ethai Gethéen, e de outros que tinham vindo com
ele durante sua desgraça. Eu não falarei de forma alguma de outras tropas conservadas, tão
necessárias a um Estado, são todos corpos imortais, que, se renomados no mesmo espírito
que foram formados, tornam eterna sua fidelidade e seu valor. Ornava-se essas tropas
escolhidas de uma maneira particular para distingui-las. E é isso que eram destinados as
duzentas lanças decoradas de ouro, e os duzentos escudos pesados e penosos cobertos de
lâminas de ouro, com trezentos outros de uma outra figura, semelhantemente coberto de
ouro muito refinado e de um grande peso que Salomão guardava em seus arsenais. Além
das guarnições de praças que se encontram por toda parte nos livros dos Reis e das
Crônicas, e além das tropas que combatiam a pé, havia infinitas sob a mão do rei, com
chefes designados e que estavam prontos à primeira ordem. Não se sabe em qual categoria
situar as gentes de guerra, que se levantam ao número de vinte e quatro mil, a cada
primeiro dia do mês com doze comandantes. Não se é necessário demonstrar que, para não
mudar o Estado de Despesas, se o reunia segundo a necessidade, da qual se tem muitos
exemplos.
1034
No entendimento de Bossuet, somente se mantendo sempre armados, os reis
conservariam seus Estados fortes o bastante diante dos inimigos externos e internos,
1034
BOS
SUET, 1967, op. cit., p. 378.
252
podendo, assim, garantir a paz pública em seu reino. Conforme suas próprias palavras,
estando sempre armados, “os Estados permanecem fortes no exterior contra o inimigo, e no
interior contra os turbulentos e os rebeldes e a paz pública é assegu
rada”.
1035
Essa idéia defendida por Bossuet, de que para conservar a paz no reino era preciso
que o governante fosse poderoso e armado, havia sido defendida anteriormente por seus
contemporâneos, entre eles teóricos renomados como Hobbes e Spinoza. Tal idéia era bem
aceita por gerações que vivenciaram as anarquias advindas de guerras civis. Conforme
Hatton, “o argumento de Hobbes no Leviathan, segundo o qual a única finalidade do
Estado é garantir a paz e a segurança, o objetivo que força o Estado a ter necessidade de
poder, é bem recebido por uma geração que fizera a experiência da anarquia e da guerra
civil; de modo idêntico, os juristas franceses que pregam o absolutismo depois da Fronda,
são escutados favoravelmente”.
1036
Da mesma forma, em seu Tractatus th
eologico
-
politicus
, de 1677, Spinoza afirma que “o preço da paz talvez pudesse ser um governo mais
forte, disposto de maior preparação militar”.
1037
A luta de Bossuet pela consolidação do poder pessoal de Luís XIV, na França,
assemelha-se ao empenho de Antônio Vieira pela consolidação da dinastia de Bragança,
em Portugal. No império português uma preocupação análoga com a consolidação da
autoridade real e em evitar quaisquer contestações da legitimidade da dinastia de Bragança
que restabeleceu a autonomia p
ortuguesa em 1640.
Antônio Vieira: o paladino da Restauração de Portugal
Assim como Bossuet, Antônio Vieira era a favor da punição dos súditos rebeldes
que se insurgiam contra o poder do soberano.
No livro anteprimeiro da
História do futuro
, escrito de
1664 a 1665, Antônio Vieira
recorda que, durante a Guerra da Restauração (1641-1668) percebendo que não podiam
vencer os portugueses por meio da força, os espanhóis buscaram se aliar a alguns nobres
portugueses, tanto daqueles que viviam na Espanha como em Portugal, que não aceitavam
o novo rei, D. João IV. Porém, todos os nobres infiéis ao seu rei e a sua pátria foram
castigados; os que o morreram foram exilados: “entendeu Castela que não podia
conquistar a Portugal sem Portugal; tratou de inclinar à sua devoção os grandes (...).
1035
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 378.
1036
HATTON, op. cit., p. 240.
1037
ibid.
253
Alguns grandes houve entre os grandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei Dom
Filipe, outros que, com maior ousadia, o quiseram servir em Portugal; a uns e outros
castigou o mesmo braço da Providência: a estes com a vida, à
queles com o desterro.
1038
Recordemos que, em 1580, depois de uma longa disputa sucessorial, a coroa
portuguesa foi anexada à Castela; o trono português foi dado a Filipe II da Espanha, que se
tornou ao mesmo tempo Filipe I de Portugal. Em 1640, o descontenta
mento com o domínio
espanhol levou algumas camadas da nobreza a se insurgirem contra o domínio de Filipe IV
de Espanha, e III de Portugal, para recuperar a coroa. Essa insurreição resultou na coroação
do duque de Bragança como D. João IV, em 1 de dezembro
de 1640.
Os vinte e oito anos, que se estende da coroação de D. João IV, 1 de dezembro de
1640, a 1668, quando a independência de Portugal foi finalmente reconhecida pelos
espanhóis, foi um período de instabilidade política. A Espanha não aceitava a
ind
ependência de Portugal, assim como a inveja de uma parte da alta nobreza portuguesa a
levava a não aceitar um Bragança no poder. Sendo assim, alguns nobres portugueses que
viviam na Espanha e outros que viviam em Portugal aliaram-se aos espanhóis conspirando
contra D. João IV.
Antônio Vieira está se referindo, particularmente, à conspiração de 1641, quando
uma parcela da alta nobreza portuguesa tramou contra D. João IV, chegando à ousadia de
tentar assassiná-lo. Conforme constata João Lúcio de Azevedo, no início do reinado de D.
João IV, “o trono se sentia vacilante, e inimigos de dentro e de fora o ameaçavam”. A
conspiração foi “afogada em sangue”, segundo o mesmo autor.
1039
D. João IV puniu
severamente os revoltosos por crime de lesa-majestade. Aqueles que não morreram foram
punidos com o exílio definitivo perdendo suas propriedades. Mas, mesmo tendo D. João IV
punido energicamente os conspiradores, a ameaça interna não deixou de existir. Em
Portugal, depois da conspiração ainda havia alguns nobres a favor do
s espanhóis.
1040
Neste processo de consolidação da nova dinastia e conservação da independência
de Portugal, Antônio Vieira atuou ativamente, desde quando chegou em Lisboa, em 1641,
até 1652, quando partiu para o Maranhão. Aliás, este foi o período em que ele mais
participou das discussões políticas de Portugal.
Do mesmo modo que Bossuet, Antônio Vieira também acreditava que a maior
ameaça aos reis vinha da alta nobreza residente na corte. Num sermão pregado na
1038
VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 182
-
184.
1039
AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 62.
1040
Cf. ibid.
254
quaresma de 1651, ele observa que a corte era o lugar no qual os aduladores e intrigantes
reinavam. Antônio Vieira alerta D. João IV para que se mantenha vigilante e tome cuidado
com os bajuladores que se aproximavam dele apenas por interesse e não por amor. Para
Antônio Vieira, os cortesãos de D. João I
V eram aranhas de palácio. Assim como a aranha,
eles iam tecendo suas teias em torno do rei de uma forma tão sutil que, se ele não tomasse
cuidado, acabariam colocando em risco o seu poder. Na corte viviam os seus maiores
inimigos:
A aranha, diz Salomão,
não tem pés, e sustentando-se sobre as mãos mora nos palácios dos
reis. Bom fora que moraram nos palácios dos reis, e tiveram neles grandes lugares os que
m mãos. Mas a aranha não tem pés, e tem pequena cabeça, e sabe muito bem o seu
canto. Sobe-se mão ante mão a um canto dessas abóbadas douradas, e a primeira coisa que
faz é desentranhar-se toda em finezas. Com estes fios tão finos que ao princípio mal se
divisam, lança suas linhas, arma seus teares, e toda a fábrica se vem a rematar em uma rede
para
pescar e comer. Tais são [diz o rei que mais soube] as aranhas de palácio. Quem vir ao
princípio as finezas com que todas se desenfadam e desentranham em zelo do serviço do
príncipe; parece que o amor do mesmo príncipe é o que unicamente as trouxe ali; mas
depois que armaram os teares como tecedeiras, e as redes como pescadores, logo se
descobre que toda a teia, por mais fina que parecesse, era urdida e endereçada a pescar, e
não a pescar moscas. E se não veja-se o que todos pescam: as melhores comendas, os
títulos, as presidências, os senhorios, e talvez, diz o mesmo Salomão, que sendo a malha
tão miúda pescam o mesmo dono da casa. As palavras brandas do adulador são redes que
ele arma para tomar nelas o mesmo adulado. E este é o artifício sem arte dos adul
adores
reais. Servem lisonjeiramente aos príncipes, para ganhá-los, ou lhes ganhar a graça, e para
se servirem da mesma graça para os fins que pretendem de seus próprios interesses. E
como por declaração do mesmo legislador do nosso texto ninguém pode servir a dois
senhores sem amar a um e ser inimigo do outro, provado fica sem réplica, e concluído, que
quantos forem no palácio os amigos de seus interesses, tantos são os inimigos dos reis.
1041
Para Antônio Vieira, a maior responsável pelas “catástrofes dos
reinos e os fins mal
afortunados dos reis” era a alta nobreza cortesã.
1042
Por isso, ele tenta abrir os olhos de D.
João IV, que ouvia o seu sermão, em relação aos bajuladores que viviam próximos a ele.
No pensamento de Antônio Vieira também aparece a questão dos Grandes que se
aproximavam do Delfim para jogá-lo contra o rei. No Sermão de São Roque, pronunciado
em agosto de 1652, na igreja dos jesuítas, Antônio Vieira recorda que ele vivia na corte
portuguesa, mantinha uma estreita amizade com D. João IV e o príncipe Teodósio, mas
não tinha nenhum interesse e por isso se contentava com as graças recebidas dos dois.
alguns ministros aproveitavam-se da aproximação que tinham com o rei e o Delfim para
1041
VIEIRA, “
Sermão da Quaresma
,
de 1651”, apud AZEVEDO, tomo p
rimeiro, op. cit., pp. 189
-
190.
1042
Cf. ibid, p. 190.
255
semear a divisão entre eles.
1043
Nos próprios termos de Antônio Vieira, “bem sei eu quem
tem a graça do pai e mais a do filho; e se o seu desinteresse se não contentará com a
graça, pode ser que os ministros que se atravessam entre um e outro lha não deixaram em
paz”.
1044
Antônio Vieira está se referindo às amargas conseqüências da carta que ele
escreveu de Roma ao príncipe Teodósio. Em 1650, Antônio Vieira estava em Roma, onde
se encontrava desde janeiro deste ano, em uma dupla e arriscada missão diplomática:
propor o casamento do príncipe D. Teodósio com Dona Maria Teresa da Áustria, filha do
rei da Espanha, e incentivar os revoltosos de Nápoles contra ele, ao mesmo tempo.
1045
Desde março, Lisboa estava em polvorosa; que, vendo um lado de Portugal
desprotegido, a Espanha tencionava invadi-lo. Diante disso, o príncipe Teodósio, com
apenas dezesseis anos de idade, havia feito em conselho um belíssimo discurso propondo a
resistência. Porém, uma parcela da nobreza, certamente afeiçoada aos espanhóis, se
manifestava a favor de um acordo que beneficiava esses últimos.
1046
D
e Roma, extremamente preocupado com a situação, Antônio Vieira escreveu uma
carta ao príncipe Teodósio, em 23 de maio de 1650, lamentando por não estar em Lisboa
para assisti-lo de perto, mas se propõe a fazê-lo mesmo assim. Antônio Vieira dá a
entender que D. Teodósio havia herdado de D. João IV a aversão pelos campos de batalha.
Sendo assim, busca animá-lo, despertar nele um espírito de guerreiro. Incita o príncipe a ir
1043
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 190.
1044
VIEIRA, “
Sermão de São Roque
,
de 1652”, apud AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 190.
1045
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. XXXI. De acordo com Azevedo, em dezembro de 1649, D.
João IV resolveu enviar Antônio Vieira à Itália, para uma nova missão diplomática. “Missão com um duplo
sentido e ao mesmo tempo contraditória. Por uma parte suscitar dificuldades à Espanha em Nápoles,
favorecer a rebelião que, sufocada em 1648, refervia latente ainda; por outra negociar o casamento de D.
Teodósio, malogrado em França, com a filha única de Filipe IV”. ibid., pp. 172
-
173. Assim como D. João IV,
Antônio Vieira tencionava estabelecer a paz e, através dela, salvar os interesses da dinastia de Bragança e de
toda a nação portuguesa. Antonio partiu para a Itália em um navio em 8 de janeiro de 1650. ibid., pp. 173,
175.
1046
Desde março de 1650, Lisboa estava em alvoroço. “Estava em Lisboa a armada dos príncipes palatinos,
sobrinhos de Carlos I da Inglaterra, e apontava à barra ao do almirante Blake, que ameaçava ir atacá-
los
dentro do porto. Foi nessa ocasião que D. Teodósio, então com dezesseis anos, proferiu em conselho um
discurso em que propunha a resistência a todo o transe (...); discurso que o historiador Conde de Ericeiras
aduz como documento esplêndido das altas faculdades do príncipe. Para resistir aos parlamentares foi-
se
pondo Lisboa em estado de defesa, e mandou o governo vir tropas do Alentejo. Nisto constou que os
castelhanos, sabendo a fronteira desguarnecida, preparavam uma incursão. O povo, escarmentado dos
ingleses, de cujas depredações usuais conservavam a memória, e temendo as forças superiores do Almirante,
queria que se entregassem os príncipes. Alguns da fidalguia manifestavam-se de igual voto, e de outros se
suspeitavam entendimentos com Castela. Dissentimentos e desconfianças que punham em sobressalto o
governo, e sobressaltaram a Vieira quando delas teve conhecimento”. ibid., pp. 181
-
182.
256
ao exército, a defender-
se.
1047
Ao ler a carta, D. João IV, desconfiado e zeloso de sua
a
utoridade, ficou sobressaltado.
1048
Essa carta ao príncipe Teodósio trouxe dissabores para Antônio Vieira. Além do
príncipe não ter ido ao exército, como ele queria, os seus inimigos utilizaram-na para
despertar a desconfiança de D. João IV contra ele. Os inimigos de Antônio Vieira se
fortaleciam até mesmo com o seu fracasso nas missões diplomáticas.
1049
De fato, a missão
diplomática na qual Antônio Vieira estava engajado em Roma fracassou, pois não atingiu
nenhum dos dois objetivos. Sendo assim, ele voltou para Lisboa em junho de 1650.
1050
Na
verdade, Antônio Vieira não teve sorte em nenhuma de suas missões diplomáticas; as
missões anteriores também fracassaram.
1051
Como vimos, no Sermão de São Roque, pregado em agosto de 1652, Antônio
Vieira reconhece que muitos daqueles que tinham cargos importantes na corte e
transitavam livremente entre o rei e o Delfim procuravam jogar um contra o outro. Mas,
como ele estava próximo de ambos por amor, e não por interesse, iria se afastar da corte,
para que as invejas dos cortesãos não colocassem em risco a graça que, apesar das intrigas,
ainda recebia deles.
1052
Na verdade, por meio deste sermão, Antônio Vieira estava se
despedindo da corte de Lisboa.
Neste momento, se vendo cercado de inimigos por todos os lados, tanto na corte
com
o fora dela, Antônio Vieira percebe que é a hora de retirar-se. Resolve lançar-se na
missão do Brasil, junto aos indígenas no Maranhão.
1053
A sua carreira política chega ao
fim. Mas, apesar das intrigas que os invejosos palacianos teciam contra ele perante D.
João
IV, “o favor do rei permanecia intacto”. Ele estava se despedindo da política, mas não das
graças do rei.
1054
1047
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 183. VIEIRA, Antônio. Carta ao Príncipe Teodósio, de 23 de
maio de 1650. In: PÉCORA, Alcir (org). Escritos Históricos e Políticos. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
pp. 227-
230.
1048
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 183
.
1049
Segundo Azevedo, “a carta de Roma a D. Teodósio ficara sem objeto, porque ele não fora ao exército;
mas não faltaria quem precatasse o rei contra a doutrina; e ou por isso, ou por seus infortúnios diplomáticos,
ou por darem os acontecimentos razão aos
áulicos, que combatiam o jesuíta, sentiu este faltar
-
lhe a confiança
da Majestade”. ibid., p. 186.
1050
Cf. ibid., pp. 179
-
180.
1051
De acordo com Azevedo, “nas missões diplomáticas não fora afortunado: frustrara-se o desejo de
casamento em França; a proposta de acordo com a Holanda tivera de ser abandonada ante a oposição geral; a
esperança magnífica com que fora à Itália cerrara-se em desastre; seus êmulos eram os que agora
triunfavam”.
ibid., p. 185.
1052
Cf. ibid., p. 191.
1053
Cf. ibid.,, p. 187.
1054
Cf. ibid.,,
p. 189.
257
Antônio Vieira partiu magoado com D. João IV. Pois sentia que o rei estava
desconfiado dele, devido a dar ouvidos às intrigas dos seus inimigos cortesãos. No
Sermão
de São Roque, de agosto de 1652, Vieira explicita a sua mágoa em relação ao soberano.
Neste sermão, é possível perceber que Antônio Vieira estava magoado diante da ingratidão
de D. João IV que não soube reconhecer todo o esforço que fizera para fortalecê-lo e
defendê-
lo.
1055
Antônio Vieira deixa claro que seguirá o exemplo de São Roque, que
abandonou as cortes, deixou de servir ao rei para servir a Deus. Pois Este sim compensava
justamente àqueles que Lhe serviam.
1056
Como conclui Antônio Vieira, ao referir-se a São
Roque, “ditoso ele e bem-aventurado que assim o fez; e nós também seremos ditosos e
bem
-aventurados se assim o fizermos”.
1057
Extremamente decepcionado com a vida
política e muito magoado com o soberano, Antônio Vieira parte para o M
aranhão em 1652,
para sua missão junto aos indígenas.
A idéia defendida por Bossuet de que a conservação de um poderoso exército era
fundamental para o príncipe conservar a paz no reino também era sustentada por Antônio
Vieira.
De fato, Antônio Vieira tinha consciência da importância dos impostos para a
manutenção de um exército. Na História do futuro, ele lembra aos espanhóis que, quando
se tratava da defesa de seu rei, de sua pátria e de sua liberdade, os portugueses não se
importavam de pagar impostos
para a guerra.
1058
Na corte de Lisboa, Antônio Vieira era um pregador entusiasmado que pregava em
favor do novo governo. Ele convocava os portugueses “aos sacrifícios necessários para
assegurar a redenção da pátria”.
1059
No dia anterior à reunião das Cortes para tratar dos
subsídios necessários à segurança do reino, Antônio Vieira pregou o Sermão de São
Roque, no qual criticava os portugueses por estarem cientes de que os impostos eram
indispensáveis para a segurança de seu país frente à Espanha, mas ninguém paga
va.
1060
Segundo Antônio Vieira, “os muito poderosos por privilégios, os pouco poderosos por
impossibilidade”. E mais, “cada um trata de lançar a carga aos ombros do outro, e talvez
1055
Cf. apud AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 191.
1056
Cf. ibid., pp. 191
-
192.
1057
ibid., p. 192.
1058
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 187
-
188.
1059
AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 71.
1060
Cf. ibid., pp. 71
-
72.
258
cai no chão porque não quem a sustente”.
1061
O objetivo de Antônio Vieira era
conscientizar a todos da obrigação desse sacrifício.
1062
Em 1642, D. João convocou novas Cortes, pois estas “precisavam adotar medidas
urgentes de fortalecimento do reino de modo a sustentar a guerra contra a poderosa Castela
e ainda suportar os ataques dirigidos por Holanda contra as suas possessões d’além-
mar”.
1063
As novas Cortes se reuniriam em 15 de setembro de 1642 para resolver a questão
dos subsídios para a manutenção da segurança de Portugal. Na véspera, Antônio Vieira
pregou o Sermão de Santo Antônio, na Igreja das Chagas de Lisboa, no qual lembra aos
portugueses que, para conservar a restauração de Portugal era necessário que todos
pagassem impostos. Neste sermão, Antônio Vieira propõe a distribuição justa dos tributos.
Segundo ele, os impostos eram pesados porque recaíam somente sobre o povo, enquanto
que o clero e a nobreza eram isentos deles; se fossem divididos em todas as classes se
tornariam leves. Antônio Vieira busca justificar a obrigação de todas as classes em pagá-
los.
1064
Antônio Vieira sabia que para formar e conservar um forte exército os reis
precisavam aumentar os seus recursos.
No livro anteprimeiro da História do futuro, Antônio Vieira observa que os
espanhóis se enganaram pensando que os recursos de Portugal diminuiriam com a guerra.
Pelo
contrário, devido à crescente riqueza advinda de seu próspero comércio, Portugal
podia renovar cada vez mais o seu exército:
Acha
-se Portugal mais rico e abundante que nunca das utilíssimas drogas de seus
comércios. (...) o certo é que as rendas e cabedais do Reino, assim públicos como
particulares, com o tempo e continuação da guerra, não têm padecido a quebra e
diminuição que o discurso lhes prognosticava; antes se prova, com evidente e milagrosa
demonstração da experiência que a substância do Reino está hoje mais grossa, mais
florente e opulenta que no princípio da guerra; pois crescendo mais os engenhos e despesas
dela, ao mesmo passo parece que ou crescem ou se manifestam novos tesouros, com que se
sustentam até agora e se sustentam todos os anos sempre mais e maiores exércitos, tão
notáveis por seu número e grandeza (...). Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande
que no seguinte se não pusesse outro maior. (...) Deste comércio lhe vêm as riquezas com
que pode pagar e premiar seus exércitos.
1065
1061
apud AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 72. Antônio Vieira pregou mais de um Sermão de São
Roque
. Azevedo não nos fornece a data em que este foi pregado. Sabemos que foi entre 1641 e 1653, pois
neste período D. João reuniu as Cortes cinco vezes.
1062
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 72.
1063
PÉCORA, op. cit., p. XI.
1064
Cf. VIEIRA, “Sermão de Santo Antônio, 14 de setembro de 1642”. In: PÉCORA, Alcir (Org).
Escritos
Históricos e Políticos
. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 3
-
31.
1065
VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 190
-
191.
259
Apó
s a Restauração, em 1640, o maior problema para Portugal era a falta de
recursos. Os gastos com a guerra contra a Espanha eram enormes. Dentre os problemas de
Portugal encontravam-se a desorganização e enfraquecimento do exército, a exaustão das
finanças e a quase ruína do comércio. Para
Antônio
Vieira, tal situação ameaçava a
conservação da coroa portuguesa.
Durante toda a década de 1640, Antônio Vieira lutou para que D. João implantasse
uma companhia de comércio, segundo o modelo holandês, para aumentar os seus recursos
e assim poder bancar um grande exército para defender
-
se dos ataques da Espanha.
No início da década de 1640, visando aumentar os recursos de Portugal, Antônio
Vieira propôs a D. João a criação de uma companhia de comércio. Em
Razões aponta
das a
El
-rei D. João IV a favor dos cristãos novos, de 1641, Antônio Vieira diz ao rei, “Senhor,
Portugal não se pode conservar na guerra presente e muito menos na que infalivelmente
havemos de ter sem muito dinheiro; para este dinheiro não meio mais eficaz nem
Portugal tem outro senão o comércio”.
1066
Antônio Vieira mostrava nesse documento o
quanto o capital dos judeus portugueses, que viviam espalhados pela Europa, era
imprescindível para a criação e expansão dessas duas companhias de comércio.
1067
Na Propo
sta a El-Rei D. João IV, de 1643, Antônio Vieira apresentava ao rei o
miserável estado em que se encontrava Portugal e o quanto era necessário que ele
admitisse os comerciantes judeus espalhados por diversas partes da Europa. Antônio Vieira
lembra a D. João IV que era preciso muito dinheiro para se manter um exército. Se a
situação do reino continuasse como estava, os portugueses jamais poderiam ajudá-lo em
casos de necessidade, pois não teriam condições de pagar mais tributos do que vinham
pagando: “posto que o poder militar conste e se componha de gente, armas, munições,
cavalos, etc., tudo isso se reduz a dinheiros; e é certo, que perseverando as coisas de
Portugal no estado presente, nunca o reino poderá socorrer a vossa majestade com maiores
somas, d
o que houve estes anos”.
1068
Antônio Vieira recorda que Portugal se encontrava desprotegido devido à
precariedade de seu poder militar: “as fronteiras e cidades principais estão sem
fortificações, os portos abertos, a costa e lugares marítimos desprovidos, o rio de Lisboa
1066
VIEIRA, “Razões apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos cristãos novos, de 1641”, apud AZEVEDO,
tomo primeiro, op. cit., nota de rodapé, p. 112.
1067
Cf. PÉCORA, op. cit., p. XIII.
1068
VIEIRA, “
Proposta a El
-
Rei D. João IV
, de 1643”, in PÉCORA, op. cit., p. 286.
260
quase sem armadas, Alentejo com pouca cavalaria, e as outras províncias sem alguma”.
1069
Adverte Antônio Vieira que Portugal não tinha recursos para sustentar um poderoso
exército para fazer frente à Castela, e nem de refazê
-
lo, caso necessário:
“com que se há de
sustentar um poderoso exército para resistir às forças de Castela e com que se há de refazer
este, no caso que se rompa ou diminua?”
1070
Segundo Antônio Vieira, a situação do reino
estava tão difícil que logo os portugueses não poderiam se manter, quanto mais pagar
impostos para sustentar os gastos com a guerra.
1071
A solução apresentada por Antônio Vieira a D. João IV era que ele admitisse no
reino os ricos mercadores portugueses judeus que se encontravam espalhados pela Europa.
Somente com o dinheiro deles, conforme Antônio Vieira, o rei aumentaria seus próprios
recursos e poderia sustentar as excessivas despesas do exército com a guerra.
1072
Objetivando o fortalecimento e conservação de Portugal, no Sermão de São Roque,
pregado em 1644, Antônio Vieira propõe ao rei a criação de duas Companhias de
Comércio Ultramarino, uma oriental e outra ocidental, segundo o modelo holandês.
1073
D.
João IV instituiu a companhia de comércio ocidental, em 1644, na qual houve a
contribuição de inúmeros cristãos novos.
1074
Como vimos, Antônio Vieira era um homem de ação. Falava e escrevia para
intervir na vida de seus contemporâneos. Ele lutou com todas as armas que possuía a favor
da Restauração de Portugal. No período em que freqüentou a corte de Lisboa, de 1641 a
1652, além de conselheiro do rei e diplomata, foi pregador régio. Em Lisboa, nos
momentos em que não estava em viagem à França, Itália e Holanda, em suas difíceis
missões diplomáticas, subia no púlpito para pregar os seus inúmeros sermões, utilizando
-
se
de seu talento de orador para atingir seu objetivo. Como observa Aleixo, Antônio Vieira
1069
VIEIRA, in PÉCORA
, op. cit., p. 287.
1070
ibid..
1071
Cf. ibid., p. 287
-
288.
1072
Cf. ibid., pp. 291-292. Conforme Antônio Vieira, “estes homens hão de meter neste reino grande número
de milhões, dos quais se poderá vossa majestade socorrer em um caso de necessidade”. ibid., pp. 2
93
-
294.
Mais à frente, diz ele, “quanto crescerão as rendas de vossa majestade, admitindo os homens de negócio, que
nunca foram tão ricos, nem tão poderosos como hoje estão no mundo. Enfim, senhor, Portugal não se pode
conservar sem muito dinheiro, e para
o haver, não há meio mais eficaz, que o do comércio, e para o comércio
não outros homens de igual cabedal e indústria aos de nação. Admitindo-os vossa majestade poderá
sustentar a guerra de Castela, ainda que dure muitos anos”. ibid., p. 294. Vieira aconselha o rei a seguir o
exemplo dos holandeses, que conservaram sua independência em relação à Castela por meio do comércio.
ibid.
1073
Cf. PÉCORA, op. cit., p. XII. Conforme constata Pécora, “com (...) propósito de fortalecimento do
Estado, Antônio Vieira, durante toda a década de quarenta, bate na tecla da necessidade da criação de duas
companhias de comércio, uma ocidental e outra oriental, com base no modelo holandês de exploração do
monopólio comercial das colônias mediante concessão e venda de ações part
iculares”. ibid.
1074
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 162.
261
foi um “notável orador sacro, como Bossuet na França”.
1075
Esses momentos, digamos
ociosos, também foram dedicados para redigir algumas de suas obras mais importantes.
Por volta de 1649, talvez antes, Antônio Vieira delineava os primeiros rascunhos de sua
História do Futuro
, que foi concluída por volta de 1669.
Da mesma maneira que Bossuet, em suas pregações, assim como em seus escritos,
as esferas sagrada e política estavam estreitamente ligadas. Para dizer a verdade, eles
recorriam à primeira para justificar a segunda. De fato, Antônio Vieira lançou mão de sua
alta capacidade de manejar as palavras falada e escrita para defender a Restauração de
Portugal. Conforme Hernani Cid
ade,
o pregador admirável era homem que a natureza talhava para a ação, e no teatro do mundo,
muito mais do que para as meditações no silêncio do claustro (...). Não subia ao púlpito
pelo mero prazer de deslumbrar o auditório com a ágil acrobacia de sua dialética (...).
Falava e escrevia sobretudo no intuito de, pela eficiência da palavra, intervir na vida de
seus contemporâneos; e não apenas na vida em seus aspectos moral e religioso, senão
também no aspecto social e político, mais diretamente suscitadores de ação (...). Ninguém
(...) mais fundamente viveu o drama coletivo do Portugal Restaurado.
1076
No livro nono da
Politique
, redigido em 1701, Bossuet fala da importância do
exército para a conservação da ordem e da paz na França, num momento em que o exército
de Luís XIV se encontrava bem organizado e fortalecido. Mas o fato de Luís XIV estar
velho, ter perdido os seus melhores assessores nos assuntos militares e comandar o exército
praticamente sozinho de seu gabinete preocupava imensamente Bossuet. Ele temia que o
neto de Luís XIV, o duque de Borgonha, incitado por Fénelon, liderasse uma revolta contra
o monarca. No início da Fronda Bossuet tinha 22 anos. Essa guerra civil se estendeu até os
seus 26 anos. Nessa época, ele morava em Paris, por conta de seus estudos. 48 anos depois
do fim da Fronda, Bossuet se encontrava com 74 anos de idade e era bispo de Meux. A
anarquia existente durante essa guerra civil ficou gravada para sempre em sua memória,
levando
-o a desejar um governante forte o bastante para inibir qualquer tipo de revolta
contra o seu poder, e assim conservar a paz e a ordem.
Luis XIV concebeu as
Memórias
entre 1668 e 1672, nas duas primeiras décadas de
seu reinado pessoal. Neste período, o exército francês não era tão grande coisa. Luís XIV
ti
nha plena consciência da necessidade de um exército potente para sufocar as revoltas
civis que poderiam vir a ocorrer contra ele. Na sua menoridade, ele havia provado os
1075
ALEIXO, in VIEIRA, 2005, op. cit., p. 31.
1076
CIDADE, op. cit., pp. IX
-
X.
262
dissabores da Fronda contra o poder constituído na França, que, na época, era exercido por
sua mãe e Mazarino. Nesta guerra civil, a alta nobreza liderada por seu primo, o príncipe
de Condé, teve um papel de destaque. Quando Luís XIV escreveu as
Memórias
, os nobres
ainda detinham um certo poder militar na França. Estimulado pelos fantasmas da Fronda
que o atormentavam, ele empenhou-se em construir um grandioso exército para acabar de
vez com os resquícios de poder militar da nobreza e assim poder evitar que ela se
insurgisse novamente contra o seu poder. Sendo assim, nas décadas de 1670 e 1680, com a
ajuda de Le Tellier e seu filho Louvois, Luís XIV converterá os exércitos particulares a
régio, concentrará todo o poder militar em sua pessoa e assim subordinará definitivamente
a nobreza.
Quando Antônio Vieira escreveu o livro anteprimeiro da História do futuro, de
1664 a 1665, Portugal também contava com um exército organizado e forte, graças ao
esforço anterior de D. João IV, que havia morrido em 1656. Em 1665, o trono português
era ocupado por D. Afonso VI, o segundo filho de D. João IV, que o príncipe Teodósio
havia falecido antes dele. D. Afonso VI deu continuidade aos esforços de seu pai. O
empenho de Antônio Vieira como conselheiro junto ao rei D. João IV não pode ser
esquecido. Como vimos, quando chegou em Lisboa, em 1641, Antônio Vieira encontrou
em Portugal um exército fraco e desorganizado para enfrentar a Espanha, que na época era
a maior potência do mundo. Antônio Vieira entendia muito bem de economia e
apresentava soluções concretas e ousadas para que D. João IV obtivesse recursos para
manter um poderoso exército e conservar a sua independência frente aos espanhóis. É claro
que, apesar de não fazer nenhuma referência clara a este respeito, o fortalecimento do
exército, tão desejado por Antônio Vieira, também visava combater os inimigos internos
dos reis de Portugal. Como muitos dos inimigos internos da coroa portuguesa eram aliados
dos espanhóis, ao combater os últimos, os reis estariam ao mesmo tempo combatendo os
primeiros.
Luís XIV comungava da idéia defendida por Bossuet de que a maior ameaça aos
reis vinha da alta nobreza; que era perigoso deixar que ela se afastasse da corte e muito
menos se armasse. Isso se reflete no seu comportamento em relação a ela. Como vimos,
Luís XIV fazia questão de manter a alta nobreza na corte para vigiá-la de perto. Além
disso, a manteve afastada dos cargos políticos e militares. Antônio Vieira não tinha
nenhuma dúvida de que a alta nobreza cortesã era a maior inimiga dos reis. Tanto é que ele
alertou D. João IV a este respeito no sermão pregado dia
nte dele, na quaresma de 1651.
263
Bossuet, Luís XIV e Antônio Vieira acreditavam que para promover e conservar a
paz no reino os príncipes precisavam de um exército poderoso. Pois somente dessa maneira
eles poderiam combater os Grandes que se levantavam contra o poder centralizado,
símbolo da ordem e da paz.
264
CAPÍTULO IX
A SOBERANIA EM DEBATE
De acordo com Baumer, na época moderna, o absolutismo se identifica com a idéia
de
soberania
, ressaltando a centralização do poder, “embora inicialmente derivado num
indivíduo ou numa assembléia”, em oposição à teoria política da Idade Média, segundo a
qual o poder encontrava-se dividido entre a Igreja, o rei e os senhores feudais. No
pensamento político do século XVII, esta nova idéia de soberania era fundamental entre os
defensores do absolutismo como também os de outras formas de governo.
1077
A idéia de soberania tivera outras formulações. Na Idade Média, as formulações
dos defensores do papado e do Império.
1078
Conforme Figgis, na Idade Média, na teoria do
Sacro Império Romano encontra-se o conceito ideal do Estado: “o Estado perfeito com
duas cabeças visíveis, uma do temporal, a outra do espiritual, colaborando
harmoniosamente na conservação da paz e na ordenada conduta dos cristãos, e todo ele em
uma república que combina os elementos valiosos do antigo Império Romano com todo o
mais essencial para a realização da cidade de Deus”.
1079
No entanto, exceto em alguns
raríssimos intervalos, geralmente tudo isto não passou de um sonho.
1080
Era inevitável que
mais cedo ou mais tarde surgisse uma rivalidade entre os dois poderes do Estado.
1081
No
século XIV, o papado e o Império concluíram que a unidade da república cristã somente se
daria com toda a autoridade concentrada em um dos dois poderes.
1082
Depois que o papado
e o Império chegaram a esta conclusão, restava saber qual deles tinha mais direito à
1077
Cf. BAUMER, op. cit., p. 119.
1078
Cf. ibid.
1079
FIGGIS, op. cit., p. 41.
1080
Cf. ibid.
1081
Cf. ibid., p. 45.
1082
Cf. ibid., p. 46. Conforme observa Figgis, “não era possível que a cooperação entre duas autoridades
cujas esferas de ação estavam mal definidas fosse duradoura. (...) a ambição de poder, unida ao sentimento da
necessidade de unidade social, tinham que provocar a pretensão da supremacia de um dos dois poderes: o
temporal ou o espiritual. Não podia deixar de aparecer o conceito de que mediante o reconhecimento da
máxima autoridade investida em um dos dois poderes, era possível assegurar a unidade da república
cr
istã”. ibid.
265
supremacia universal.
1083
A pretensão à supremacia universal motivou a controvérsia entre
o papado e o Império no século XIV.
Foi o papado quem primeiro construiu uma teoria de soberania absoluta. Segundo
Figgis, “a doutrina da plenitudo potestatis encerra o elemento mais importante da teoria da
soberania: a noção de que a unidade do Estado só pode lograr-se mediante a indispensável
supremacia de uma autoridade, cujos atos estão acima de toda censura legal”.
1084
Era
esta a posição reclamada pelo papado. Os teólogos políticos a serviço do papado
defendiam que o poder do papa vinha diretamente de Deus, portanto, ele não estava sujeito
a nada. Na Bula Unam
Sanctam
(1303), o papa Bonifácio VIII (1235-1303) elaborou, para
seu próprio benefício, uma teoria da soberania absoluta.
1085
Nesta bula, Bonifácio VIII
observa que “um corpo político dotado de duas cabeças é uma monstruosidade”.
1086
Ele
afirma que o poder temporal deve sujeitar-se ao espiritual; e que este deve prestar contas
somente a Deus; como o papa é ordenado diretamente por Deus, aquele que resistir ao seu
poder estará resistindo às ordens de Deus, merecendo a condenação eterna.
1087
Os escritores imperiais, como Marcílio de Pádua (1275-1342), Guilherme de
Occam (1285-1347) e Dante Alighieri (1265-1361), combatem as pretensões do papado,
afirmando que a unidade do Estado somente é assegurada com toda a autoridade nas mãos
de uma só pessoa, o imperador.
1088
Os defe
nsores do Império defendem que é o papa quem
está abaixo do imperador; o poder do imperador é dado diretamente por Deus; é ao
imperador, e não ao papa, a quem os súditos devem obediência.
1089
Dante e Occam
defendem ainda que a soberania do imperador é indivis
ível e inalienável.
1090
1083
Cf. FIGGIS, op. cit., p. 46.
1084
ibid., p. 48.
1085
Cf. ibid., pp. 48
-
49.
1086
ibid., p. 49.
1087
Cf. ibid.
1088
Cf. ibid., pp. 52-
53.
De acordo com Figgis, os defensores do Império “insistem que a ‘unidade, alma de
todo governo’, fica completamente destruída, desde o momento em que existem dois poderes distintos,
dotados de sistemas legislativos e judiciais rivais, e que pretendem ao mando, pois ‘todo reino dividido
contra si mesmo não pode subsistir’. (...) este apaixonado sentido da importância da unidade no Estado
motiva a antipatia não contra o papa, senão também contra quem propõe qualquer coisa que não seja a
autoridade suprema do Estado investida em uma pessoa. (...) a reação às pretensões papais motiva o
sentimento da necessidade de assegurar a todo custo a unidade do Estado”. ibid. Os escritores imperiais
defendiam “não que o soberano deve ser um e não dois”, como também “que o soberano deve ser uma
pessoa individual, pois do contrário não fica assegurada a unidade”. ibid., p. 53.
1089
Cf.
ibid., p. 52.
1090
Cf. ibid., p. 54.
Conforme observa Figgis,
“há outros elementos da teoria da soberania. Para os polemistas
anti
-papais é axiomática a inalienabilidade da soberania; e assim encontraremos que Dante e Occam
sustentaram a nulidade da doação
de Constantino, posto que o imperador carece de faculdades para destruir o
Império. Occam afirma que a soberania não pode diminuir, que é indivisível e inalienável”. ibid.
266
No século XVI, Jean Bodin (1529-1596) apresenta as suas formulações de
soberania.
1091
Na
République,
publicada em 1576 durante as Guerras de Religião na França
(1562
-1598), com o propósito de defender a monarquia absoluta em seu processo
de
unificação nacional, o jurista, historiador, filósofo e economista francês Jean Bodin definiu
a soberania como “o poder absoluto de fazer a lei ‘sem o consentimento dos cidadãos’”.
1092
Para ele, “a soberania é indivisível e absoluta”.
1093
as formulações de soberania de Hugo Grócio (1585-
1645)
1094
, na terceira
década do século XVII. O humanista e jurisconsulto holandês Hugo Grócio, cognominado
por Henrique IV de o “milagre da Holanda”, horrorizado com a Guerra dos Trinta Anos
(1618
-
1648), escrevera em latim e
publicou em 1625, na França, o seu tratado
De jure belli
ac pacis, quando se encontrava refugiado devido a se ter envolvido nas lutas civis da
República Holandesa. Esse tratado, traduzido para o francês como Le droit de la guerre et
de la paix, que Grócio dedicou ao rei francês Luís XIII, é uma das obras mais célebres de
todos os tempos, considerada a bíblia do jusnaturalismo racionalista dos séculos XVII e
XVIII.
1095
Como Bodin, em De jure belli ac pacis Grócio “definiu a soberania como ‘o
poder político supremo investido naquele cujos atos não podem ser invalidados por
qualquer outro poder humano”.
1096
Entretanto,
desde Bodin, este conceito de soberania
veio sofrendo sucessivas atenuações.
1097
Grócio limitava a soberania. Em sua concepção,
“a soberania está suj
eita à lei, divina e naturalista”.
1098
Este conceito de soberania é retomado pelo inglês Thomas Hobbes (1588-
1679)
que o eleva ao “ponto culminante”.
1099
Preceptor na casa dos condes de Devonshire e
persona grata dos Stuarts, Hobbes foi um grande defensor da causa de Carlos I, no
momento em que a política absolutista deste enfrentou rias resistências durante a
1091
Cf. BAUMER, op. cit., p. 119.
1092
TOUCHARD, v 3, op. cit., p. 60.
1093
ibid., p. 61. A
République
de Bodin alcançou grande sucesso. Até o século XVIII foi traduzida e editada
inúmeras vezes, sendo incluída no programa de várias universidades. Cf. ibid., p. 66.
1094
Hugo de Groot em neerlandês, Hugo Grotius em latim e Hugo Grócio em português. Segundo Merêa, ele
é “mais conhecido no mundo das letras pelo apelido alatinado de Grotius”.
MERÊA, op. cit., p. 151.
1095
Cf. ibid., pp. 136, 151
-
152.
1096
BAUMER, op. cit., p. 119. Conforme Merêa, para Grócio, “o poder supremo ou soberania pertence
àqueles cujos atos não estão dependentes do direito de ninguém e, portanto, não podem ser anulados por
outra vontade humana”. MERÊA, op. cit., p. 156.
1097
Cf. ibid., p. 176.
1098
BAUMER, op. cit., nota de rodapé, p. 120. De acordo com Merêa, para Grócio, “o fato de ser sob
erano
não impede que os príncipes se achem ligados, não só pelos direitos divino, natural e das gentes, mas também
pelos compromissos que hajam voluntariamente assumido, caso em que a soberania pode encontrar
limitações, quer quanto ao exercício do poder,
quer quanto ao poder em si mesmo”. MERÊA, op. cit., p. 157.
1099
Cf. ibid., p. 176.
267
Revolução Inglesa de 1640. Quando da reunião do Long Parlament, em 1640, Hobbes
fugiu para a França, onde se refugiou por onze anos. E foi nesse período de íntimo contato
com exilados regalistas, no qual se entregou totalmente aos seus trabalhos literários, que o
De cive, publicado em 1642, e o
Leviathan
, publicado em 1651, foram concebidos.
1100
Apesar das suspeitas e comentários de que teria escrito essas o
bras para defender a ditadura
de Cromwell, Hobbes as escreveu com o propósito de defender o trono dos Stuarts.
1101
Hobbes enfatiza a unidade e a exclusividade da soberania, independente de quem seja o
seu titular. Conforme constata Merêa, para Hobbes, “a sobe
rania
é indivisível e
inalienável: o soberano pode delegar os seus direitos, mas não transferi-los nem reparti-
los
com os súditos”.
1102
Com Hobbes, o conceito de soberania chega ao ponto mais elevado.
Segundo o mesmo autor, “nunca o conceito de soberania, nem quando aplicado aos
governantes, nem quando atribuído ao povo, atingira este paroxismo. (...) A soberania é o
ius in omnia próprio do estado de natureza, apropriado pelo
Leviathan
:
non est potestas
super terram quae comparetur ei
”.
1103
O filósofo neerlandês Baruch (Benedito, na forma latinizada que adotou após sua
excomunhão pela sinagoga de Amsterdã) Spinoza (1632-1677), também se utilizou desse
conceito de soberania. As idéias políticas de Spinoza encontram-se no
Tractatus
theologico
-politicus, publicado em 1670, e no Tractatus politicus, publicado em 1677,
após a sua morte.
1104
Segundo Touchard, “a obra de Spinoza encontra-se estreitamente
ligada ao progresso da burguesia neerlandesa”.
1105
Spinoza, que tinha horror à monarquia e
era um defensor da democracia, no
seu
Tractatus theologico-
politicus
também ressaltava o
poder soberano “quer o seu detentor fosse ‘um ou muitos, ou todo o corpo político’”.
1106
Mas, assim como Grócio, Spinoza também limitava a soberania. Apesar de salientar o
poder, Spinoza desejava “uma comunidade baseada na razão e na liberdade de
1100
Cf. MERÊA, op. cit., pp. 163
-
164.
1101
ibid., pp. 164-165. A respeito de Hobbes, Merêa observa que, “tal homem não estava talhado para uma
vida cômoda, apesar da nenhuma inclinação do seu temperamento para as lutas da política. O materialismo
das suas obras e a sua posição escandalosa em matéria de religião atraíram sobre ele os ódios da roda do
futuro Carlos II, que o apontava como ateu e considerava o seu apoio altamente comprometedor. Isso o
forçou a regressar à pátria e a aceitar a proteção de Cromwell, reviravolta que lhe havia de ser lançada em
rosto depois da Restauração, não faltando quem o acusasse de ter escrito o
Leviathan
em defesa do ditador.
Monarquia... Ditadura... É de crer que pouco importasse a Hobbes esta ou aquela, conquanto que a bíblia
dos governantes fosse o
Leviathan
!”.
ibid., p. 165.
1102
ibid., p. 174.
1103
ibid., p. 176.
1104
Cf. TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 22.
1105
ibid. Segundo Touchard, “Spinoza não é de forma alguma ‘um filósofo solitário’; pertence ao grupo da
burguesia patrícia, do qual Jean de Witt é o dirigente”. ibid.
1106
BAUMER, op. cit., pp. 119
-
120.
268
pensamento”.
1107
Spinoza era conservador em matéria de política. Ele “defendia a
soberania em nome da lei e da ordem, enquanto afirmava o ‘direito natural da razão e dizia
que o homem não podia renunciar a esse direito, mesmo com o seu próprio
consentimento”.
1108
Sabemos que, além da Bíblia, dos padres da Igreja, sobretudo Santo Agostinho, e
dos autores antigos, principalmente Platão e Aristóteles, Bossuet leu alguns autores
modernos, embora jamais os tenha citado. A République de Bodin, bem como Le droit de
la guerre et de la paix de Grócio e o Tractatus theologico-politicus de Spinoza, entre
outras obras, encontravam-se em sua biblioteca. Apesar de não citar Grócio, acreditamos
que, no primeiro livro da
Politique,
Bossuet está dialogando com ele. Pois, mesmo
afirmando que a soberania era absoluta e indivisível, Grócio a limitava de várias maneiras.
Ele afirmava, por exemplo, que a origem do poder dos reis estava no povo e que no ato do
estabelecimento do poder civil o povo não aliena a sua soberania ao governante, apenas a
delega, podendo retomá
-la quando a família do rei se extingue.
Durante a Fronda (1648-1653), as idéias absolutistas que se encontravam em
progresso sofreram um considerável refluxo. Os monarcômacos franceses limitavam o
poder dos reis. Os monarcômacos retomaram a doutrina tomista sobre a origem do poder.
Mas, enquanto que para São Tomás de Aquino o poder vinha de Deus ao povo que o
transmitia aos reis, Claude Joly, que se destacou entre os monarcômacos da Fronda,
defendia que o povo era a própria fonte do poder.
Em contra-ataque às idéias defendidas por Grócio e os monarcômacos, Bossuet
busca mostrar que o poder dos reis vem diretamente de Deus e que o povo é
completamente alienado de sua vontade quando
da instituição dos governantes.
A concepção de Bossuet a respeito da origem do poder civil está estreitamente
relacionada ao seu entendimento sobre a origem do homem e da sociedade humana, que se
encontram bem elaborados no livro primeiro da
Politique
, escrito entre 1677 e 1679, na
época do preceptorado do Delfim.
1107
BAUMER, op. cit., nota de rodapé, p. 120.
1108
ibid., p. 132. De acordo com Touchard, “ao mesmo tempo em que manifesta o maior respeito pelas
autoridades constituídas, Spinoza marca a sua preferência por um regime liberal”. Em matéria de política, diz
Spinoza, “‘demonstro que ninguém é obrigado, consoante o direito natural, a viver segundo a vontade alheia,
e
que cada um é o protetor inato da sua própria liberdade’”.
TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 23.
269
A origem do poder civil na ótica de Bossuet
Para tratar da origem do poder civil, ou sociedade política, primeiramente Bossuet
precisa dizer por que os homens se reuniram em comunidades, ou
sociedades humanas.
No livro primeiro da
Politique
, Bossuet trata dos princípios da sociedade entre os
homens.
Influenciado pela concepção sociológica de Aristóteles, Bossuet afirma que “o
homem é feito para viver em sociedade”.
1109
Nessa questão da origem da sociedade
humana, além da base teológica, a concepção da unidade de Platão e do neoplatonismo se
faz presente em Bossuet. Baseado na Bíblia, ele diz que “os homens tem um mesmo
fim, e uma mesma finalidade, que é Deus”; e que “o amor de Deus obriga os homens a
amar uns aos outros”.
1110
De acordo com Bossuet,
um doutor da lei pergunta a Jesus: ‘mestre, qual é o primeiro de todos os mandamentos?
Jesus lhe responde: o primeiro de todos os mandamentos é este: escuta, Israel, o Senhor teu
Deus é o único Deus;
e tu amarás o Senhor teu Deus de todo teu coração, de toda tua alma,
de todo teu pensamento e de toda tua força. Eis o primeiro mandamento. E o segundo,
que lhe é semelhante, é este: tu amarás teu próximo como a ti mesmo’. ‘Nesses dois
preceitos consistem toda a lei e os profetas’. Nós devemos então amar uns aos outros,
porque todos juntos nós devemos amar o mesmo Deus, que é nosso pai comum, e sua
unidade é nosso vínculo. ‘Só um único Deus, diz São Paulo; se os outros contam vários
deuses, para nós um único, que é o pai de onde todos nós saímos, e nós somos feitos
por ele’. Se povos que não conhecem Deus, ele não é por isso menos criador, e ele não
os tem menos feito à sua imagem e semelhança. Pois ele disse em criar o homem: ‘façamos
o homem a nossa imagem e semelhança; e um pouco depois: ‘Deus cria o homem a sua
imagem; ele o cria à imagem de Deus’. Ele o repete freqüentemente, a fim de que s
entendamos sobre qual modelo nós somos formados, e que nós amenos uns aos outros à
imagem de Deus. É o que faz dizer a Nosso Senhor que o preceito de amar o próximo é
semelhante ao de amar a Deus, porque é natural que quem ama a Deus, ama também pelo
amor dele tudo o que é feito a sua imagem; e essas duas obrigações são semelhantes.
1111
Segundo Bossuet “todos os homens são irmãos”. Em primeiro lugar, porque são
todos filhos do mesmo Deus que está no céu. Em segundo, porque são filhos do mesmo
homem, Adão, que foi criado por Deus para que todos descendessem dele aqui na terra:
Primeiramente, eles são todo
s filhos do mesmo Deus. ‘Vós sois todos irmãos, diz o filho de
Deus, e vós não deveis dar o nome de pai a ninguém sobre a terra; pois vós tendes um
único pai, que está nos céus’. Aqueles que nós chamamos pai e de onde nós saímos
segundo a carne, não sabem quem somos; Deus unicamente nos conhece de toda
eternidade, e é porque Isaias dizia: ‘vós sois nosso verdadeiro pai; Abraão não nos
conheceu e Israel nos ignorou: Mas vós, Senhor, vós sois nosso pai e nosso protetor; vosso
1109
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 5.
1110
ibid.
1111
ibid., pp. 5
-
6.
270
nome está na frente de todos os séculos’. Em segundo lugar, Deus estabeleceu fraternidade
de homens os fazendo todos nascer de um único, que por isto é seu pai comum, e traz nele
a imagem da paternidade de Deus. Nós não lemos que Deus quis fazer sair os outros
animais de um mesmo tronco. ‘Deus fez as bestas conforme suas espécies; ele viu que esta
obra era boa, e ele disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança’. Deus fala do
homem em número singular, e marca distintamente que ele quer fazer um somente, de
onde nascem todos os outros, segundo o que está escrito nos
Atos
, ‘que Deus tem feito sair
de um único todos os homens que devem encher a superfície da terra’. O grego traz que
Deus os fez de um mesmo sangue. Ele quis mesmo que a mulher que ele dava ao primeiro
homem fosse tirada dele, a fim de que tudo fosse um no gênero humano. ‘Deus forma na
mulher o lado que ele tinha tirado de Adão, ele a leva a Adão; e Adão diz: este é um osso
tirado de meus ossos e uma carne tirada de minha carne, seu nome mesmo marcara que ela
é tirada
do homem; é porque o homem deixa seu pai e sua mãe para se ligar à sua mulher, e
eles serão dois em uma carne’. Assim, a característica da amizade é perfeita no gênero
humano; e os homens, que têm todos um mesmo pai, devem se amar como irmãos.
1112
Por isso,
Bossuet
afirma que “nenhum homem é estrangeiro a outro”. Todos os
homens são irmãos, que são todos filhos do mesmo pai, que é Deus. Sendo assim, os
homens devem cuidar uns dos outros, independentemente de serem de nações diferentes
aqui na terra:
Nosso
Senhor, após ter estabelecido o preceito de amar seu próximo, interrogado por um
senhor da lei sobre o que s devemos ter por nosso próximo, condena o erro dos judeus
que olham como tais àqueles de sua nação. Ele lhe mostra pela palavra do samaritano
que assiste o viajante desprezado por um sacerdote e por um levita, que não é sobre a
nação, mas sobre a humanidade em geral que a união de homens deve ser fundada. ‘Um
sacerdote vê o viajante ferido e passa; e um levita passa perto dele e prossegue seu
ca
minho. Mas um samaritano o vendo foi tocado de compaixão’. Ele conta com que
cuidado ele o socorreu, e depois perguntou ao doutor: ‘qual desses três vos parece ser seu
próximo? E o doutor respondeu: aquele que teve piedade dele. Jesus lhe diz: ide e faça o
mesmo’. Esta parábola nos ensina que nenhum homem é estrangeiro a outro homem, seja
ele de uma nação tão detestada da nossa quanto os samaritanos eram dos judeus. Se nós
somos todos irmãos, todos feitos à imagem de Deus e igualmente seus filhos, todos uma
mesma raça e um mesmo sangue, nós devemos cuidar uns dos outros. E não é sem razão
que ele escreveu: ‘Deus encarregou cada homem de ter cuidado de seu próximo’. Se eles
não o fazem de boa fé, Deus será o vingador; pois, acrescenta o Eclesiástico: ‘nossos
caminhos estão sempre diante dele, e não podem ser escondidos a seus olhos’. É preciso
então socorrer nosso próximo, como devemos dar conta a Deus que nos vê. os
parricidas e os inimigos do gênero humano que dizem como Caim: ‘eu não sei onde está
meu
irmão; eu sou feito para agradá-lo?’ ‘Não temos todos um mesmo pai? Não é um
mesmo Deus que nos criou? Por que então cada um de s despreza seu irmão, violando o
pacto de nossos pais?’
1113
Ao afirmar que “os homens têm um mesmo fim e um único objeto que é Deus”,
que “o amor de Deus obriga os homens a amar uns aos outros”, e que “todos os homens
1112
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 6
-
8.
1113
ibid., pp. 8
-
9.
271
são irmãos”, como observa Truchet, Bossuet está situando a caridade fraternal como “a
base de toda tentativa de construção política”.
1114
Mas, conforme Bossuet, “os
homens
esqueceram sua fraternidade e os homicídios se multiplicaram sobre a terra”. Por isso,
“Deus resolveu destruir todos os homens com exceção de Noé e de sua família, pela qual
ele reparou todo o gênero humano, e quis que nessa renovação do mundo nós t
ivéssemos
ainda um mesmo pai”. Em seguida, “ele proíbe os assassinatos, advertindo os homens que
eles são todos irmãos”, já que “descenderam primeiramente do mesmo Adão, e em seguida
do mesmo Noé”.
1115
Essa mesma tentativa de construção política alicerçada na caridade foi feita por
Grócio, em seu
Le droit de la guerre et de la paix.
Segundo ele, os primeiros homens eram
simples e praticavam uma “mútua e perfeita caridade”.
1116
Grócio também acreditava que
os homens se corromperam. Conforme Grócio, os homens não continuaram “nessa vida
simples e inocente”, corromperam-se, entregando-se ao homicídio e ambição. Os bons
foram corrompidos pelos maus, passando a reinar a violência entre eles.
1117
Em seguida, “o
mundo foi purificado pelo dilúvio”.
1118
Como vimos, na
Politique
aparece a velha concepção de mundo como unidade e
coerência, ou seja, uma concepção neoplatônica. Bossuet chama a atenção para a
importância da unidade: tudo vem dela e se reporta a ela. Todo o universo é ligado pela
unidade.
1119
Conforme Le Brun, “este tema da unidade, que é a raiz da concepção do
homem e da sociedade, tem bases filosóficas e teológicas: antes toda uma meditação sobre
a unidade e a transcendência de Deus, mas também influências, reconhecidas ou não, de
1114
TRUCHET, op. cit., p. 66.
1115
BOSSUET, 1967, op. ci
t., p. 8.
1116
GRÓCIO, Hugo. Le droit de La guerre et de La paix. Paris: Presses Universitaires de France, 1999, p.
179. Segundo Grócio, “os primeiros homens, diz Tácito, ainda isentos de paixões desordenadas, levavam
uma vida pura, inocente (...)’. Há em Macrobe ‘que, no início reinava entre os homens uma simplicidade que
não conhecia o mal, e que era ainda estranho ao artifício’. Essa simplicidade parece ser designada pelo sábio
hebreu sob o nome de i
ncorruptibilidade
; ela é também chamada de
simplicidade
; p
elo apóstolo Paulo, que a
opõe à artimanha e à astúcia. Os primeiros homens não tinham outro cuidado que aquele de servir a Deus;
culto cuja árvore da vida era o símbolo, segundo a explicação dos antigos hebreus, confirmado pelo
Apocalipse”. ibid., p. 180.
1117
“Mas os homens não perseveraram nessa vida simples e inocente; eles aplicaram seu espírito às artes
variadas, cujo símbolo era a árvore da ciência do bem e do mal, isto é, das coisas das quais se pode bem ou
mal usar: ciência que Philon chama uma prudência medíocre. É a isso faz alusão Salomão, quando ele diz:
‘Deus criou o homem direito isto é, simples mas eles se abandonaram a pensamentos múltiplos’. ‘Eles
degeneraram em astúcia’, segundo a expressão de Philon, na passagem citada. (...) A diversidade de gostos
produziu a rivalidade mesma de homicídios. Os bons, enfim, eram corrompidos ao contato dos maus,
viveram ao modo de gigantes, isto é, de uma maneira violenta”. ibid., pp. 180
-
181.
1118
ibid., p. 181.
1119
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p.
XXIV.
272
Platão e do neo-
platonismo”.
1120
Nos meios próximos da Académie Lamoinon, freqüentada
por Bossuet, tais preocupações pareciam fundar uma estética. Mas desde muito tempo os
teóricos políticos utilizavam
-
nas para elogiar a monarquia.
1121
Com a gradual redescoberta do
corpus
central das obras filosóficas de Aristóteles
começaram a ser lançados os alicerces da escolástica. Em princípios do século XII, por
meio do califado de Córdoba, passou a entrar na Europa várias obras de Aristóteles, muitas
delas conservadas em traduções árabes. Não demorou para que essas obras fossem
traduzidas para o latim. Os compêndios de lógica foram os primeiros textos a serem
popularizados. Mas em meados do século XIII o público europeu teve acesso também aos
seus tratados morais e políticos. Em 1243, Hermannus Alemannus editou uma tradução
parcial da Ética a Nicômaco. Antes do fim desta década, o dominicano Guilherme de
Moerkebe realizou a tradução integral dessa obra. Logo após 1250, ele concluiu a primeira
tradução da
Política
.
1122
Como observa Skinner, “logo se notou que a filosofia moral e política de
Aristóteles questionava a fundo o agostinismo, que então predominava na concepção do
que seria uma vida política cristã. Agostinho representa a sociedade política como uma
ordem determinada por Deus e imposta aos homens, decaídos, como remédio para seus
pecados. a
Política
de Aristóteles trata a polis como uma criação puramente humana,
destinada a atender a fins estritamente humanos”.
1123
Com a redescoberta dos textos morais e políticos de Aristóteles houve um esforço
para reconciliar o seu pensamento político ao de Santo Agostinho, predominante no
universo cristão.
1124
“Esse movimento surgiu na Universidade de Paris, onde tais questões
eram debatidas com veemência pelas novas ordens predicantes da Igreja”.
1125
São Tomás
de Aquino (1226-1274), teólogo e filósofo italiano, que estudou em Paris e lecionou na
Universidade de Paris, foi o maior expoente desta tendência. A sua Suma teológica
,
concluída em 1274, é “uma completa filosofia cristã fundada na (...) aceitação do
pensamento moral e político de Aristóteles”, segundo Skinner.
1126
Este autor observa ainda
que, “discutindo A política em sua Suma teológica e em seu tratado inacabado Do governo
1120
ibid., nota de rodapé, p. 7.
1121
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 7.
1122
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 71.
1123
ibid.
1124
Cf. ibid.
1125
ibid., pp. 71
-
72.
1126
ibid., p. 72.
273
dos príncipes, São Tomás naturalmente procurou adaptar as idéias de Aristóteles sobre o
direito e a sociedade civil às condições que então prevaleciam, em uma sociedade
basicamente feudal e monárquica, no Norte da Europa”.
1127
A idéia sociológica de Aristóteles, segundo a qual os homens se unem para viver
em sociedade devido à utilidade da vida em comunidade, é defendida por São Tomás de
Aquino.
No
Do governo dos príncipes
1128
, publicado em 1265, São Tomás de Aquino
afirma que todo homem é por natureza um animal social e político. Os outros animais
foram criados pela natureza para viverem isolados; por isso são fortes, sabem se defender
sozinhos. Já os homens foram criados fracos. Mas, em compensação, eles possuem a razão.
Assim, percebem a impossibilidade de viverem sozinhos e procuram viver em multidão
pela necessidade natural de serem ajudados pelos outros homens. A razão os faz ver o
quanto é útil esta vida em sociedade.
1129
Segundo a tese fundamental da via antiga da
escolástica, da qual São Tomás de Aquino foi o maior representante, o homem é capaz de
utilizar o seu raciocínio para construir os fundamentos morais
da vida política.
1130
A concepção sociológica é compartilhada por Grócio, no
Le droit de la guerre et de
la paix. Grócio afirma que o homem é superior às demais criaturas. Isto se evidencia, por
exemplo, por sua inclinação à vida em sociedade. Ao contrário dos outros animais, os
homens são providos de uma razão natural, a inteligência, que desperta neles o desejo de se
1127
SKINNER, 1999, op. cit., p. 72.
1128
São Tomás de Aquino escreveu este livro para “Hugo II, filho de Henrique I de Lusinhã, o Gordo, que
acompanhou Luís IX (São Luís) na Cruzada de 1249. Hugo II nasceu em 1251 e morreu com 16 anos. Talvez
tenha sido a morte prematura do rei malogrado quem determinou a não terminação da
obra do grande filósofo
medieval”. SANTOS, Arlindo Veiga dos. In: AQUINO, São Tomás de. Do governo dos príncipes
.
Ao rei de
Cipro
. São Paulo: Editora Anchieta S/A, 1946, nota de rodapé, p. 13.
1129
Para São Tomás de Aquino, “é (...) o homem por natureza, animal social e político, vivendo em
multidão, ainda mais que todos os outros animais, o que se evidencia pela natural necessidade. Realmente, às
mais animálias preparou a natureza o alimento, a vestimenta dos pêlos, a defesa, tal como os dentes, os
chifres,
as unhas ou, pelo menos, a velocidade para a fuga. Foi, porém, o homem criado sem a preparação de
nada disso pela [própria] natureza, e, em lugar de tudo, coube
-
lhe a razão, pela qual pudesse granjear, com as
próprias mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um
homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos.
Ademais, têm os outros animais inato o discernimento natural do que lhe é útil ou nocivo, como a ovelha
naturalmente, no lobo, um inimigo. Há, até, certos animais que, por aptidão natural, conhecem ervas
medicinais e outras coisas necessárias à vida deles. O homem, no entanto, possui somente em geral o
conhecimento natural do que lhe é necessário à vida, como quem possa chegar, dos primeiros princípios
universais, ao conhecimento das coisas particulares necessárias à vida humana. Ora, não é possível abarcar
um homem todas essas coisas pela sua razão. Por onde, é necessário ao homem viver em sociedade, para
que um seja ajudado por outro e pesquisem nas diversas matérias, a saber uns na medicina, outro nisto,
aquele outro noutra coisa. (...) diz Salomão no Eclesiástico: melhor é ser dois que um, por terem o proveito
da mútua sociedade
”. ibid., pp.
18
-
19.
1130
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 426.
274
reunir com os outros.
1131
Para Grócio, Deus quis que os homens nascessem fracos para que
sentissem a necessidade de viver juntos para ajudar uns aos outros. Desprovidos da força,
comum aos outros animais que foram criados para viver no isolamento, os homens
possuem a razão e a inclinação para a vida social. Grócio também ressalta a utilidade da
vida em sociedade para a humanidade.
1132
Assim como São Tomás de Aquino, Grócio
acredita na capacidade que o homem possui de usar o seu raciocínio para criar os alicerces
morais da sociedade política.
Bossuet compartilha da concepção sociológica de que é a utilidade da vida em
comum que faz os homens a se unire
m em comunidade. Em seu entendimento, a sociedade
humana se origina porque os homens se unem em prol de um interesse comum.
Objetivando constituir a sociedade humana, Deus deu aos homens talentos diferentes para
que eles precisassem uns dos outros e sentissem a necessidade de se unir para ajudar uns
aos outros; e os homens reunidos se tornam bem mais fortes que sozinhos:
O mesmo interesse nos une. ‘O irmão ajudado por seu irmão é como uma vila forte’. Veja
como as forças se multiplicam pela sociedade e o socorro mútuo. ‘Vale mais ser dois
reunidos que ser sozinho; pois se encontra uma grande utilidade nesta união. Se um cai, o
outro o sustenta’. (...) Consola-se, assiste-se, fortifica-se um o outro. Deus querendo
estabelecer a sociedade quis que cada um encontrasse nela seu bem, e nela continuasse
ligado por este interesse. É porque ele deu aos homens diversos talentos: um é próprio a
uma coisa e o outro a outra coisa, afim de que eles possam se
socorrer
como os membros
do corpo, e que a união seja cimentada por esta necessidade mútua. (...) Jesus Cristo,
formando a Igreja, estabeleceu a unidade sobre esse fundamento, e nos mostra quais são os
princípios da sociedade humana. O mundo mesmo subsiste por esta lei. ‘Cada parte tem
seu uso e sua função; e o todo se conserva pelo socorro que se
dão
todas as partes’. Nós
vemos então a sociedade humana apoiada sobre esses fundamentos inabaláveis: um mesmo
1131
De acordo com Grócio, “o homem é, com efeito, um animal, mas um animal de uma natureza superior, e
que se afasta muito mais de todas as outras espécies de seres animados que não diferem entre elas. É o que
testemunha uma quantidade de fatos próprios ao gênero humano. Ao número desses fatos particulares ao
homem se encontra o desejo de se reunir, isto é, de viver com os seres de sua espécie, não em uma
comunidade banal, mas em um estado de sociedade possível, organizada conforme os dados de sua
inteligência, e que os estóicos chamam ‘Estado doméstico’”. GRÓCIO, op. cit., p. 9.
1132
Conforme Grócio, “o autor da natureza quis, com efeito, que, tomados separadamente, nós sejamos
fracos, e que nos falte muitas coisas necessárias para viver comodamente, a fim de que nós sejamos tanto
mais arrastados a cultivar a vida social”. ibid., p. 14. Segundo Grócio, “tornai-nos isolados, que somos nós?
(...) os outros animais têm forças suficientes para se defender. Todos aqueles que nascem errantes e para
levar uma vida isolada são armados. A fraqueza rodeia o homem; nem a força de garras, nem a de dentes não
o torna terrível aos outros. A natureza lhe deu duas coisas que, de fraco que era, o tornou mais forte de todos
os seres, a razão e a inclinação à vida social. É assim que aquele que, sozinho, não poderia resistir a nenhum
outro, torna-se o mestre de tudo. É a vida em sociedade que lhe deu o império sobre todos os animais. Este
império que ele exerceu naturalmente sobre a terra, é a vida em sociedade que ele transformou em seu
proveito sobre os outros elementos, em lhe ordenando de dominar mesmo sobre o mar. É ela que conteve a
invasão das doenças, que proveu com que a velhice fosse segura, que deu consolação contra as dores; é ela
que nos torna corajosos nos permitindo de apelar contra a fortuna. Suprima-a, e vós rompereis a unidade do
gênero humano, que é o apoio da vida”. ibid., nota de rodapé, p. 11.
275
Deus, um mesmo objeto, um mesmo fim, uma origem comum, um mesmo sangue, um
mesmo interesse, uma necessidade mútua
.
1133
Bossuet afasta-se de São Tomás de Aquino e de Grócio no que diz respeito à
capacidade de raciocínio que os homens têm para se organizar em sociedades políticas. Da
mesma forma que os representantes da via moderna da escolástica, como Guilherme de
Occam
, e Lutero, Bossuet era cético quanto à capacidade de raciocínio do homem.
1134
A
crença na idéia agostiniana da natureza decaída do homem levava Bossuet a acreditar na
sua incapacidade em compreender a vontade de Deus e, desse modo, de construir uma
sociedade
política. Sendo assim, a fim de sanar essa deficiência moral, as sociedades
política foram ordenadas diretamente por Deus sobre os homens.
Um ponto que não pode ser ignorado entre aqueles que buscam explicar a origem
do poder civil é a questão da natureza
humana.
No século XVII, apesar de a ciência apresentar uma imagem otimista do homem,
predominava a visão pessimista da tradição paulino-agostiniana, a qual foi enfatizada com
a Reforma, sobretudo com Calvino, e os acontecimentos da época.
1135
Esta visão er
a aceita
por calvinistas, jansenistas e católicos. A visão pessimista da natureza humana era aceita e
pregada até mesmo por homens como Hobbes.
No
Leviathan
, Hobbes apresenta uma visão
muito pessimista da natureza humana. Segundo ele, o estado de natureza era um estado de
guerra constante. Dominados pelo individualismo, os homens desejavam ter cada vez
mais poder para se conservar, e para isso se voltavam uns contra os outros.
1136
Até mesmo
o pensamento de Hobbes sobre a natureza humana tinha raízes agostin
ianas.
1137
Afastando-se da idéia predominante entre os pensadores de seu tempo, Grócio
defendia a idéia da natureza social do homem. Grócio acreditava que, ao contrário dos
outros animais que eram desprovidos de razão e eram egoístas por natureza, os homens
nasciam bons, devido à razão que lhes era própria. As crianças eram um exemplo disso.
Pois, mesmo antes de qualquer educação, elas tinham uma inclinação natural para a
generosidade. E era a razão que inclinava os homens à generosidade, levando-os a desejar
1133
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 9
-
11.
1134
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 425
-
426.
1135
BAUMER, op. cit., p. 99.
1136
Segundo Baumer, para Hobbes, “o estado de natureza era equivalente ao estado de guerra, ‘uma guerra
de todos contra todos’. O homem era, por natureza, um individualista, procurando ‘poder e mais poder’, para
alcançar segu
rança e evitar a morte, comportando
-
se inevitavelmente como um lobo contra os outros homens,
seus semelhantes”. ibid., p. 112.
1137
Baumer observa que, “J. H. Randall chama a Hobbes um ‘calvinista racional’, e a sua antropologia uma
‘versão secularizada da do
utrina calvinista do ‘pecado original’”. ibid.
276
uma vida em sociedade.
1138
Conforme Baumer, “Grócio tinha uma idéia muito diferente
sobre o estado de natureza. Para ele, era um estado pré-político e não pré-social. Seguindo
a tradição estóica da lei natural, ele definiu o homem como um ‘animal de espécie
superior’, caracterizado por ‘um desejo estimulante de sociedade’ ou vida social”.
1139
Precisamos considerar que “Grócio era um armínio, que não acreditava no ponto de vista
extremista calvinista do pecado original”, como ressalta Baumer.
1140
A concepção agostiniana da natureza humana, segundo a qual o homem nasce bom
e é corrompido pelo pecado original, era defendida por Blaise Pascal (1623
-
1662), em
suas
Pensées
, publicadas em 1670. Conforme Baumer, Pascal dizia, em suas Pensées, que
“criado bom, à imagem de Deus, o homem foi corrompido pelo pecado original. O pecado
original, pecado cometido por Adão e transmitido a sua posteridade, é a chave da
antropologia de Pascal”.
1141
Nas pegadas de Pascal, Bossuet afirma a concepção agostiniana da natureza do
homem, dizendo que “a sociedade humana foi destruída e violada pelas paixões”.
1142
Em
seu entendimento, a sociedade humana, criada de forma sagrada por Deus, foi corrompida
pelo pecado original de Adão. Após isso, Deus o expulsou do paraíso e castigou-
o
impondo a divisão e
m sua família. O assassinato de Abel por Caim é um exemplo utilizado
por Bossuet para mostrar que os homens esquecem que são irmãos, deixam-se levar pelas
paixões. E os homens guiados pelas paixões agem em prol de seus interesses. Daí o
ciúme, a inveja, o adultério, a mentira, a maldade, as traições, o roubo e as matanças.
Enfim, os homens se tornam corruptos, perversos e violentos, atentando uns contra os
outros. Numa palavra: insociáveis. Daí a insegurança se instala na terra:
1138
De acordo com Grócio, “entre os outros animais, com efeito, alguns moderam, em uma certa medida,
seus instintos egoístas, seja em favor de sua progenitura, seja ao proveito de seres de sua espécie. Esta
disp
osição proveniente neles, acreditamos, de qualquer princípio inteligente exterior, visto que no que
concerne de outros atos que não estão mais acima de seu alcance, uma igual soma de inteligência não
aparece neles. Se dirá a mesma coisa das crianças, nas quais, mesmo antes de toda educação, se vê aparecer
uma espécie de inclinação para a generosidade, assim como Plutarco observou com sagacidade; como
também a esta idade a compaixão explode espontaneamente. Quanto ao homem feito, capaz de reproduzir os
mesm
os atos a propósito de coisas com ligação entre elas, convém reconhecer que eles possuem neles
mesmos uma inclinação dominante para a vida social”. GRÓCIO, op. cit., p. 10. Ainda segundo Grócio,
“Marco Antônio (...) disse que ‘o homem nasceu para fazer bem aos outros’. (...) O que é provido de razão
tende necessariamente à vida em comunhão”. ibid., nota de rodapé, p. 10.
1139
Conforme Baumer, “todas as leis, incluindo as internacionais, das quais Grócio era o advogado principal
no século XVII, se fundavam nesta sociabilidade. A disposição para fazer bem aos outros, isto é, para ser
social, podia ser observada nas crianças, pensava Grócio, ‘mesmo antes de o ensino ter começado’”.
BAUMER, op. cit., p. 112. “O jurista alemão Samuel Pufendorf expõe o mesmo ponto de vista do estado de
natureza na sua obra
De jure naturae et gentium
, 1672”. ibid, nota de rodapé, p. 112.
1140
ibid.
1141
ibid., p. 101.
1142
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 11.
277
Deus era o vínculo da sociedade humana. O primeiro homem foi separado de Deus. Por
uma justa punição a divisão se coloca em sua família, e Caim mata seu irmão Abel. Todo o
gênero humano foi dividido. Os filhos de Seth se chamaram os filhos de Deus e os filhos
de Caim se chamaram os filhos dos homens. Essas duas raças se aliaram para aumentar
a corrupção. Os gigantes nasceram desta união. Homens conhecidos na Escritura e em toda
a tradição do gênero humano por sua injustiça e violência. ‘Todos os pensamentos do
homem se voltaram para o mal em todo tempo, e Deus se arrependeu de tê-lo feito.
Somente Noé encontra graça diante dele’. A corrupção era geral. É fácil de compreender
que esta perversidade torna os homens insociáveis. O homem dominado por suas paixões
sonha em se conte
ntar
sem cuidar dos outros. (...) A linguagem de Caim se espalha por
toda parte. (...) Todas as paixões são insaciáveis. (...) Assim, cada um quer tudo para si. (...)
A inveja, tão universal entre os homens, faz ver quanto é profunda a malignidade de seu
coração. (...) ‘Abel agrada a Deus por meios inocentes, e Caim não o pode suportar. (...)
Caim entra em furor e seu semblante muda’. Daí as traições e as matanças. ‘Saiamos para
fora, diz Caim, vamos passear juntos; estavam no meio do campo, Caim se levanta contra
seu irmão e o mata’. (...) Tantas paixões insensatas e tantos interesses diversos que nascem
fazem com que não haja fé nem segurança entre os homens. ‘Não acredite em vosso amigo
e não vos fies para vosso guia, dê-vos de guarda desse que dorme em vosso seio. O filho
faz injúrias a seu pai, a filha se eleva contra sua mãe e os inimigos do homem são seus
parentes e seus domésticos’. Daí vem que as crueldades são tão freqüentes no gênero
humano. Não nada de mais brutal nem de mais sanguinário que o homem. ‘Todos
dirigem emboscadas à vida de seu irmão; um homem vai à caça após um outro homem,
como ele faria após uma besta, para derramar seu sangue’. ‘A maledicência, a mentira, a
morte, o roubo e o adultério inundaram toda a terra e o sangue tocou o sangue’; quer dizer
que uma morte atrai outra. Assim, a sociedade humana, estabelecida por tão sagrados
laços, é violada pelas paixões. E como diz Santo Agostinho: ‘não há nada de mais sociável
que o homem por sua natureza, nem nada de mais intratável ou de mais insociável pela
corrupção’.
1143
Entre os dois lados extremos da natureza humana, o defendido por Grócio, de que o
homem nasce bom, e o outro de Hobbes, segundo o qual é mau por natureza, Bossuet
escolhe a visão intermediária defendida por Pascal, de que o homem nasce bom, mas é
corrompido pelo pecado original.
Apesar de Bossuet tentar construir uma sociedade baseada na caridade, como fez
Grócio, ele reconhece que na base desta sociedade o pecado original também está presente,
que este rompeu com àquela. Conforme Truchet, “se a caridade se encontra, de certo
ponto de vista, a base das instituições, o pecado original o é também, de outra maneira. É
porque ele veio romper a fraternidade primeira”.
1144
Agora, Bossuet precisa responder a seguinte questão: se os homens eram livres e
independentes, o que os levou a se submeterem a um governante?
Para São Tomás de Aquino, no Do governo dos príncipes, em todas as coisas
ordenadas existe algum fim a ser atingido. Ao viver em sociedade, os homens precisam de
1143
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 11
-
13.
1144
TRUCHET, op. cit., p. 71.
278
um
governante que os dirija para atingir diretamente o devido fim. A diversidade das
intenções e atos humanos os levaria a agir de modos diversos para alcançar o fim. Assim,
eles precisam de um dirigente.
1145
A multidão associada necessita de um governo. Se cada
um tratasse dos seus interesses particulares, a multidão seria dispersa; e se não houvesse
alguém cuidando do bem comum da multidão ela se dissiparia.
1146
Para Grócio, originalmente, não foi obedecendo a uma ordem de Deus que os
homens se reuniram em uma sociedade civil. Eles fizeram isso espontaneamente, pois a
razão, que lhes era natural, os fez ver que isolados permaneciam fracos diante da violência
dos mais fortes. Grócio ressalta que não foi Deus quem levou os homens a sentir a
necessidade de se reunir, mas sim a razão que está na base do direito natural, e que Deus
aprovou tal união.
1147
Como se originou a sociedade política, na concepção de Bossuet? Segundo ele,
“para formar as nações e unir os povos foi preciso estabelecer um governo”.
1148
Os homens
se deixaram levar pelas paixões e a violência que se tornou natural entre eles, tornando-
se
intratáveis e divididos, devido à incompatibilidade de seus temperamentos. O
estabelecimento da união entre eles é possível mediante a sua submissão a um poder
maior, a um governante que os governe. Somente a autoridade do governante pode acabar
1145
De acordo com São Tomás de Aquino, “é necessário que os homens, vivendo em sociedade, sejam
governados por alguém”. (...) Ora, em todas as coisas ordenadas algum fim, em que se possa proceder de
um modo ou de outro, É mister haver algum dirigente, pelo qual se atinja diretamente o devido fim. (...)
Acontece, porém, agirem os homens de modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade das
intenções e atos humanos patenteia. Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. (...) Tem todo
homem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é dirigido ao fim, nos seus atos. E, se conviesse ao
homem viver separadamente, como muitos animais, não precisaria de quem o dirigisse para o fim, senão que
cada qual seria rei para si mesmo sob o supremo rei, Deus, uma vez que, pelo lume da razão, a ele dado
devidamente, a si mesmo se dirigisse nos seus atos. AQUINO, op. cit., pp. 17
-
18.
1146
Segundo São Tomás de Aquino, “logo, se é natural ao homem o viver em sociedade de muitos, cumpre
haja, entre os homens, alguém por quem seja governada a multidão. Que, se houvesse muitos homens e
tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-
se
-ia a multidão em diversidade, caso também não houvesse
alguém cuidando do que pertence a ela, assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal
se não existisse alguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos os membros. Isso
ponderando diz Salomão: ‘onde não governante, dissipar-
se
o povo’. (...) Aos diversos correspondem
causas diversas. Assim, importa existir, além do
que move ao bem particular de cada um, o que move ao bem
comum de muitos. Pelo que, em todas as coisas ordenadas um todo, se acha algo diretivo a ele. E, no
mundo dos corpos, um só corpo, isto é, o celeste, dirige os demais, por certa ordem da divina P
rovidência, e a
todos os rege a criatura racional. Igualmente, no homem a alma rege o corpo, e, entre as partes da alma, o
irascível e o concupiscível são dirigidos pela razão. Também entre os membros do corpo, um é o principal,
que todos move, como o coração e a cabeça. Cumpre, por conseguinte, que em toda multidão, haja um
regitivo”. ibid., pp. 19
-
20.
1147
Conforme Grócio, “é preciso observar que, na origem, os homens não se reuniram em sociedade civil
para obedecer a um comando de Deus; que eles têm feito espontaneamente, levados a esta associação pela
experiência da fraqueza de famílias isoladas, e desarmadas contra a violência por seu isolamento. Tal foi a
fonte do poder civil, que Pierre chama a causa disso um arranjo humano; ainda que algures ela seja no
meada
um arranjo divino, porque Deus aprovou esta instituição favorável à humanidade”.
GRÓCIO, op. cit., p. 142.
1148
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 17.
279
com as paixões e a violência tornadas naturais entre os homens. É somente por meio da
autoridade do príncipe e, por sua vez, da subordinação ao seu poder, que a justiça encontra
sustentação. Onde todos fazem o que querem impera a confusão. Somente um poder
superior pode pôr fim à anarquia e estabelecer a ordem:
Tudo se divide e parcializa entre os homens. Não basta que os homens habitem a mesma
região ou falem uma mesma língua, porque se tornaram intratáveis pela violência de suas
paixões e incompatíveis por seus temperamentos diferentes. Eles não podem ser unidos a
menos que se submetam todos a um mesmo governo que os reja. (...) Somente a autoridade
do governo pode pôr um freio às paixões e à violência tornadas naturais aos homens.
Se
vós vedes os pobres caluniados e julgamentos violentos pelos quais a justiça é derrubada na
província, o mal não é sem remédio. Pois sobre o poder há mais poderes, e aqueles mesmos
têm sobre sua cabeça poderes mais absolutos, e, enfim, o rei de todo o país lhes comanda a
todos. A justiça tem sustentação com a autoridade e a subordinação de poderes. Esta
ordem é o freio da licença. Quando cada um faz o que quer e tem por regras seus
desejos, t
udo vai em confusão.
1149
Bossuet acrescenta ainda que, “pelo governo cada particular torna-se mais
forte”.
1150
Segundo ele, no estado de anarquia, em que o governo, impera a lei dos
mais fortes, havendo violência e injustiça, os homens se encontram fracos, não têm
nenhuma segurança. Mas quando renunciam a sua vontade, se submetendo à autoridade de
um governante, os homens se fortalecem e encontram segurança. Pois em todo o governo
legítimo impera a justiça e não a lei do mais forte. O governante os defenderá de todos
aqueles que os querem oprimir, promovendo a justiça e a paz pública:
A razão é que cada um é socorrido. Todas as forças da nação concorrem em um, e o
magistrado soberano tem direito de reuni-los. (...) Assim, o magistrado soberano tem em
suas
mãos todas as forças da nação que se submete a lhe obedecer. (...) Toda a força é
transportada ao magistrado soberano, cada um o fortalece ao prejuízo da sua, e renuncia a
sua própria vida em caso que ele desobedeça. se ganha; pois se encontra na pessoa do
supremo magistrado mais força que só se tem deixado para autorizá-lo, visto que aí
encontra toda a força da nação reunida para nos socorrer. Assim, um particular está em
repouso contra a opressão e a violência, porque na pessoa do príncipe um defen
sor
invencível, e mais forte em comparação que todos aqueles do povo que empreendiam de
oprimi
-
lo. O magistrado soberano tem interesse de
garantir pela força
todos os particulares;
porque se outra força que a sua prevalece entre o povo, sua autoridade e sua vida estão em
perigo. Os homens soberbos e violentos são inimigos da autoridade, e seu discurso natural
é dizer: ‘quem é vosso mestre?’ ‘A multidão do povo faz a dignidade do rei’. Se ele
a
deixa
dissipar e acabar pelos homens violentos, ele faz dano a si mesmo. Assim, o magistrado
soberano é o inimigo natural de todas as violências’. Aqueles que agem com violência
estão em abominação perante o rei, porque seu trono é afirmado pela justiça’. O príncipe é
então, por seu cargo, para cada particular ‘um abrigo para se pôr a coberto do vento e da
1149
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 17
-
18.
1150
ibid., p. 20.
280
tempestade; e um rochedo avançado sobre o qual ele se põe ao ombro em uma terra seca e
ardente. A justiça estabelece a paz; não nada de mais belo que ver os homens viverem
tranqüilamente: cada um está seguro em sua tenda e usufruindo de repouso e de
abundância’. Eis os frutos naturais de um governo regrado. Desejando tudo dar à força,
cada um se encontra fraco em suas pretensões mais legítimas pela multidão de
concorrentes, contra quem é preciso estar perto. Mas sob um poder legítimo cada um se
encontra forte, pondo toda a sua força no magistrado, que tem interesse de pôr tudo em paz
para estar ele mesmo em segurança. Em um governo regrado, as viúvas, os órfãos, as
crianças, os filhos mesmo no berço são fortes. Seu bem lhe é conservado, o público cuida
de sua educação, seus direitos são defendidos, e sua causa é a própria causa do magistrado.
Toda a Escritura o encarrega de fazer justiça ao pobre, ao fraco, à viúva, ao órfão e ao
público. É então com razão que São Paulo nos recomenda ‘de rezar perseverantemente e
com empenho pelos reis, e por todos aqueles que são constituídos em dignidade, a fim de
que nós passemos tranqüilamente nossa vida’.
1151
Na
Politique
, os termos natural e útil aparecem constantemente, sendo esta uma
maneira encontrada por Bossuet para justificar a autoridade do monarca.
1152
Segundo
observa Le Brun, “por esta insistência, Bossuet ancora seus princípios [e a autoridade do
rei cristianíssimo] sobre o sol imutável da natureza das coisas”. Bossuet a lição de
utilidade, ele desconfia da paixão e da ilusão. Para ele, uma das melhores justificações da
autoridade é a moral do interesse: “desejo de proteção contra si e contra outrem, política do
menos mal”.
1153
Como vimos, São Tomás de Aquino ressaltava que, se os homens não tivessem se
sujeitado ao domínio de um e continuassem a viver isolados, cuidando cada um de seus
interesses particulares, eles se dividiriam e desapareceriam da face da terra. Da mesma
forma, Grócio acreditava que, se as famílias continuassem no isolamento, elas correriam
riscos de sofrer a violência dos mais fortes; por isso se submeteram ao poder de um
governante. Já para Bossuet, quando os homens se uniram e concordaram em se submeter à
autoridade de um rei, tudo isso já havia acon
tecido.
Após mostrar a destruição da sociedade humana pelas paixões, Bossuet mostra a
necessidade do estabelecimento dos governantes para que a união volte a reinar entre os
homens. Truchet observa que “Bossuet acaba de explicar que ‘a sociedade humana fo
i
destruída e violada pelas paixões’, que a instauração de um governo se mostra necessária a
fim de estabelecer a união”.
1154
Bossuet confiava no homem? Da mesma forma que
1151
BOSSSUET, 1967, op. cit., pp. 20
-
21.
1152
Segundo Le Brun, “as proposições 7 a 10 do artigo do Livro II que afirmam a superioridade da
monarquia hereditária sobre todos os outros governos continham vinte vezes os termos ‘naturel’ ou ‘nature’.
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. XXVII.
1153
ibid.
1154
TRUCHET,
op. cit., p. 71.
281
Hobbes, mas principalmente como Pascal e Nicole, o homem no estado da natureza é
consid
erado por Bossuet como lobos uns para os outros.
1155
Nas pegadas de Aristóteles,
São Tomás de Aquino, Suarez, e até mesmo de Grócio, na
Politique
Bossuet admite a
sociabilidade natural do homem. Mas, como ensinavam os Padres da Igreja, especialmente
Santo Agostinho, ele sustenta que o homem foi corrompido pelo pecado. De modo que,
como observa Chevallier, para Bossuet, “tendo se tornado insociáveis, intratáveis, ‘lobos
uns para os outros’, os indivíduos não foram capazes de se unir a não ser por uma sujeição
c
omum a um mesmo governo que ‘os dirigisse a todos’”.
1156
Após ter demonstrado que os governantes foram estabelecidos por Deus, Bossuet
empenha
-
se em reiterar que o poder dos reis vem diretamente de Deus e não do povo como
afirmavam Grócio e os monarcômacos.
A questão dos fundamentos da autoridade há muito preocupava os teólogos e
teóricos políticos. Em sua
Epístola
aos romanos, São Paulo disse que omnis potestas a
Deo
, “todo poder vem de Deus”. Toda a tradição cristã o repetia. O desejo de São Paulo
era que os homens aceitassem a vontade de Deus: “todo aquele que chega é querido por
ele, incluindo a instauração da autoridade”. Mas na prática havia dificuldades, havia
orientações diferentes entre os teóricos cristãos que se referiam a este preceito.
1157
Admitia
-
se
que o poder do rei vinha de Deus, mas por qual canal era transmitido a ele?
1158
A doutrina tradicional da Igreja, particularmente expressada por São Tomás de
Aquino, concordava que o poder vem de Deus. Mas por qual canal o poder é transmitido
aos governantes? À fórmula de São Paulo, omnis potestas a Deo, a doutrina tradicional
acrescentava as palavras per populum, por intermédio do povo’. Isto significava que “o
poder é transmitido por Deus à sociedade política, e desta aos governantes”.
1159
Grócio afirma que a origem do poder esno povo. Em sua concepção, os homens
reunidos compõem o povo, do qual emana a soberania que é em seguida delegada por ele
ao príncipe. Conforme Grócio, os homens “se associam originalmente para formar uma
1155
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., p. XXVII.
1156
CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 381. Hobbes afirmava, no
Leviathan
, que os homens poderiam sair
da situação terrível em que viviam no estado de natureza, onde cada um vivia em busca de seus interesses
individuais e por isso se voltava uns contra os outros, se eles se submetessem a um poder forte, capaz de pôr
um freio às paixões que os dominavam e assim estabelecer a paz. Baumer constata que, para Hobbes, “desta
infeliz situação, os homens podiam ser libertados submetendo-se a um ‘Deus mortal’, ou poder político
supremo, que podia refrear as suas paixões e, assim, manter a paz”. BAUMER, op. cit., p. 112.
1157
Cf.
TRUCHET
,
op. cit.,
p. 34.
1158
CHEVALLIER, 1973, op. cit., p. 79.
1159
TRUCHET,
op. cit., p. 34.
282
sociedade civil, e dos quais emana o poder que passa em seguida aos governantes”.
1160
Grócio ressalta que os homens fizeram isso porque era extremamente vantajoso para
eles. Para Grócio, a utilidade era a causa da reunião das pessoas em uma vida em sociedade
assim como da sua posterior sujeição a um único governante: “a associação da qual nós
falamos, ou a sujeição a uma autoridade, começa a se estabelecer em vista de alguma
vantagem”.
1161
No livro terceiro da
Politique
, também redigido de 1677 a 1679, Bossuet retoma a
doutrina paulina, aceita por quase todos os cristãos de seu tempo, e afirma que todos os
governantes são estabelecidos por Deus. Ancorado no capítulo XIII da Epístola aos
romanos, do apóstolo Paulo, Bossuet salienta que “todo poder vem de Deus”.
1162
Recorda
Bossuet que,
ainda
que Deus governasse o povo de Israel de uma maneira particular, não
foram apenas os israelitas que tiveram seus reis estabelecidos por Deus, mas todos os
povos
: “é afim de que não se acredite que isso seja particular aos israelitas de terem reis
estabeleci
dos por Deus, eis o que diz o
Eclesiástico
‘Deus a cada povo seu governo, e
Israel lhe é manifestamente reservado’. Ele governa então todos os povos, e lhes dá a todos
seus reis, ainda que ele governe Israel de uma maneira mais particular e mais
declara
da”.
1163
Conforme Le Brun, “se ainda uma vez quanto os exemplos de Bossuet
são
sumários
em relação ao povo judeu”.
1164
Bossuet não admite nenhuma delegação do poder do rei feita pelo povo como
defendiam Tomás de Aquino e os teólogos tomistas, menos ainda que o poder originava-
se
no povo, conforme apregoavam Grócio e os monarcômacos. Da mesma forma que os
juristas galicanos, Bossuet entende que o rei recebe o seu poder diretamente de Deus, o
povo não pode transmitir o poder, já que ele não o possui.
1165
Em contraposição à teoria ascendente do poder da doutrina tradicional da Igreja,
segundo a qual Deus transmite o poder ao povo e este ao rei, “a concepção monárquica e
1160
GRÓCIO, op. cit., p. 141. Esta idéia de que a soberania do príncipe vem do povo é salientada por Grócio
em outro local de sua obra. Conforme Grócio,
“Isocrate disse, e após ele o imperador Juliano, que os Estados
são imortais, isto é, que eles podem ser, porque o povo é uma dessas espécies de corpos compostos de partes
separadas umas das outras, mas reunida sob um único nome, tendo uma mesma maneira de ser, como o diz
Plutarco; um único espírito, segundo a expressão do jurisconsulto Paulo. Ora, este espírito, esta maneira de
ser, no povo, é uma associação plena e perfeita para a vida social, cujo primeiro efeito é a soberania, esse
vínculo pelo qual o Estado se conserva, esse sopro de vida que respira tanto de milhares de homens, como diz
Sêneca”.
GRÓCIO, op. cit., p. 300.
1161
ibid., p. 14.
1162
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 64.
1163
ibid.,
p. 65.
1164
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 65.
1165
Cf. ibid., p. XXVIII.
283
galicana, que tendia a se impor na França, sustentava, como havia escrito Pierre de Marca
em seu De concordia sacerdotii et imperii, que ‘o poder real é conferido por Deus
imediatamente a cada um dos reis’”.
1166
É a teoria descendente do poder. Apesar de ser um
teólogo, devendo guardar certa restrição, Bossuet era um defensor da monarquia galicana.
As idéias revolucionárias defendidas por Grócio e mais tarde pelos monarcômacos da
Fronda ultrapassavam e muito a doutrina tradicional da Igreja, já que o povo deixava de ser
um mero transmissor do poder, passando a ser o seu legítimo detentor. Por isso, elas
representavam uma ameaça à monarquia absolutista. Deste modo, Bossuet as condenou
nos livros primeiro
e terceiro
da
Politique
.
Um ponto importante que se apresenta referente à origem do poder civil é quanto à
alienação ou não do poder do povo ao governante
quando de seu estabelecimento.
São Tomás de Aquino defende, na sua Suma teológica, que, no ato de instituição
dos governantes, o povo é alienado da soberania. De acordo com Skinner, na
Suma
teológica
, São Tomás de Aquino afirma que, “embora seja essencial o consentimento do
povo para se estabelecer uma sociedade política legítima, o ato de instituir um governante
sempre leva os cidadãos a alienar e não apenas delegar a autoridade soberana que
originalmente detinham”.
1167
Para Grócio, após delegar a soberania ao príncipe, o povo não poderá mais exercê-
la. Isto não quer dizer que ele é alienado da soberania. Pelo contrário, a soberania é
conservada no povo como no todo, do qual o chefe é uma parte. De modo que, quando
acontece, por exemplo, de ser extinta a família do príncipe, a soberania volta àquele que a
detinha originalmente, o povo.
1168
No livro primeiro da
Politique,
em contra-ataque à idéia defendida por
Grócio,
de
que os governantes são estabelecidos pelo povo e que este não aliena a sua soberania no
at
o do estabelecimento dos governantes, Bossuet apregoa que os governantes são
estabelecidos por Deus e, neste momento, o povo renuncia completamente a sua vontade.
Bossuet salienta que “é somente pela autoridade do governo que a união é estabelecida
1166
TRUCHET, op. cit., p. 35.
1167
SKINNER, 1999, op. cit., p. 82.
1168
Nas palavras de Grócio, “a autoridade soberana que reside no rei como no chefe permanece no povo
como no todo do qual o chefe é uma parte, de modo que se o rei, quando ele é eletivo, ou se a família do rei
vem a faltar, o direito de soberania retorna ao povo”. GRÓCIO, op. cit., p. 304. Em seguida, Grócio adverte
que “um povo não cessa, após ter empossado um rei, de dever o dinheiro que ele devia estando livre. Ele é,
com efeito, o mesmo povo, e ele conserva a propriedade de coisas que lhe havia pertencido como povo; ele
conserva mesmo a soberania, ainda que ela não deve mais se exercer pelo corpo, mas pelo chefe”. ibid.
284
entre os homens”, e que esta união só ocorre quando cada um renuncia a sua vontade, a
transposta e a reúne à do príncipe.
1169
Segundo ele,
Este efeito do comando legítimo nos
marcou
por essas palavras freqüentemente reiteradas
na Escritura: ao comando de Saul e do poder legítimo, ‘todo Israel sai como um único
homem. Eles eram quarenta mil homens, e toda esta multidão era como um único’. Eis aí o
que é a unidade de um povo, quando cada um renuncia a sua vontade, a transporta e a reúne
a do príncipe e do magistrado. Do contrário, nenhuma união; os povos erram vagando
como um rebanho disperso. ‘Que o Senhor Deus de espíritos, do qual toda a carne é
animada, dá a esta multidão um homem para governá-la, que marcha diante dele, que a
conduz,
de medo que o povo de Deus não
seja como ovelhas que
não têm pastor’.
1170
Como vimos, no primeiro livro da Politique, Bossuet empenha-se em mostrar que
devido aos homens terem se tornado corruptos, deixando
-
se guiar pelas paixões, a injustiça
passou a reinar entre eles. A partir daí, os homens se preocupavam em buscar seus
interesses particulares; com isso, os mais fortes tratavam os mais fracos com violência. Por
isso, os homens sentiram a necessidade de um governo que promovesse a justiça e a paz
entre eles. Assim, consentiram em se submeter ao poder de um único governante que fora
escolhido por Deus para esta finalidade. Bossuet chama a atenção ao fato de que este
consentimento do povo significa a transmissão definitiva de toda a sua vontade ao
governante. Deste modo, Bossuet elimina qualquer espécie de limite colocado à soberania
do príncipe tanto por São Tomás de Aquino como por Grócio e pelos monarcômacos da
Fronda.
Deveres dos súditos em relação ao príncipe: obediência
Tendo firmado que o poder do governante vem diretamente de Deus, Bossuet
esforça
-se em seguida em combater a idéia desenvolvida pelos teóricos calvinistas radicais
durante as Guerras de Religião, que foi defendida pelos ingleses sublevados quando da
Revolução Inglesa de 1640 e pelos monarcômacos franceses durante a Fronda, de que se o
rei passasse a agir injustamente, o povo tinha o direito de resistir-lhe. Nos livros segundo,
terceiro e sexto da
Politique
, escritos entre 1677 e 1679, Bossuet prega a obediência e a
não resistência dos súditos aos soberanos.
1169
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 18
-
19.
1170
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 18
-
19.
285
Nesta
questão, Bossuet refuta somente as idéias defendidas pelos monarcômacos da
Fronda, pois Grócio era contra a resistência dos súditos aos poderes estabelecidos. Na
verdade, neste quesito Bossuet defende muitas idéias professadas anteriormente por
Grócio.
No
livro segundo da
Politique
, baseado em São Paulo, Bossuet afirma que todos os
poderes são estabelecidos por Deus; sendo assim, os súditos devem submissão aos poderes
superiores, resistir a eles é o mesmo que resistir ao próprio Deus: “‘que toda alma seja
submissa aos poderes superiores, pois não poder que não seja de Deus; e todos aqueles
que são, é Deus quem os estabeleceu. Assim, quem resiste ao poder, resiste à ordem de
Deus’”.
1171
No século XVII, a idéia da doutrina paulina segundo a qual todos os poder
es
são instituídos por Deus e resistir aos governantes é o mesmo que resistir a Deus era aceita
entre muitos cristãos. Apesar de não aceitar que os governantes foram instituídos
diretamente por Deus, Grócio recorria à mesma idéia para afirmar que resistir a um
governante era igual a resistir a Deus.
1172
De acordo com Bossuet, “
deve
-se aderir à forma de governo que se encontra
estabelecida em seu país
”.
1173
Este pensamento é um dos lugares comuns da literatura
moral, havia sido expressado por Pascal, no terceiro capítulo dos
Essais,
escritos entre
1656 a 1658, por Descartes (1596-1650), na terceira parte do Discours de la méthode,
publicado em 1637, e por La Bruyère (1640-1696), na parte intitulada Du souverain de
seus
Caracteres
, publicado pela primeira vez em 1688.
1174
No livro segundo da
Politique
,
segundo Bossuet, todas as formas de governos têm seus inconvenientes; assim sendo, as
pessoas devem permanecer na forma de governo muito tempo estabelecida em seu país,
na qual o povo está acostumado. Todos os governos legítimos, independentemente da
forma que tenham sido instituídos, são protegidos por Deus. Resulta daí que, todo aquele
que pretende derrubar o governo estabelecido não é apenas inimigo público, é considerado
inimigo de Deus, que é ainda pior:
Não
nenhuma forma de governo nem nenhum estabelecimento humano que não tenha
seus inconvenientes, de modo que é preciso permanecer no Estado ao qual um longo tempo
acostumou o povo. É porque Deus toma em sua proteção todos os governos legítimos, em
1171
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 59.
1172
De acordo com Grócio, “o apóstolo Paulo, quem, descrevendo em detalhes os deveres dos súditos, diz
entre outras coisas: ‘aquele que resiste às potências, resiste a uma instituição de Deus; e aqueles que se
opõem atrairão a condenação sobre eles’”.
GRÓCIO, op. cit., p. 134
1173
BOSSUET, 1
967, op. cit.,
p. 59.
1174
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit.,
p. 59.
286
qualque
r forma que eles sejam estabelecidos; quem empreende de derrubá-los, não é
somente inimigo público, mais ainda inimigo de Deus.
1175
No livro terceiro da
Politique
, Bossuet ressalta o caráter sagrado da autoridade dos
reis. Ele chama a atenção para o fato de
que
“a autoridade real é sagrada. Deus estabeleceu
os reis como seus ministros, e reina por eles sobre os povos
”.
1176
Com base em São Paulo,
Bossuet afirma que “todo poder vem de Deus. ‘o príncipe, acrescenta São Paulo, é ministro
de Deus para o bem. Se vós fazeis o mal, temas, pois não é em vão que ele tem o gládio. E
ele é ministro de Deus, vingador das más ações’”.
1177
À doutrina paulina, Bossuet
acrescenta que “os príncipes agem então como ministros de Deus, e seus lugares tenentes
sobre a terra. É por eles que Ele exerce Seu império. (...) É por isso que nós vimos que o
trono real não é o trono de um homem, mas o trono do próprio Deus”.
1178
Essa exaltação
do direito divino é um dos lugares comuns na literatura do século XVII. Como observa Le
Brun, “que os reis recebem seu cetro de Deus é a doutrina oficial e tradicional na França”.
Em seus Essais morale
,
publicados em 1671, Nicole (1625-1695) argumenta no mesmo
sentido.
1179
Bossuet chama a atenção para o fato de que “a pessoa dos reis é sagrada e atentar
contra eles
é um sacrilégio
”.
1180
Segundo Bossuet, os reis eram pessoas sagradas porque da
mesma forma que os pontífices eram ungidos pela unção sagrada. Mas adverte logo em
seguida que os reis são pessoas sagradas mesmo sem a unção, são sagrados pelo cargo que
ocupam.
Sendo assim, todo aquele que atenta contra o rei comete sacrilégio, merecendo a
morte:
Deus os faz ungir por seus profetas de uma unção sagrada; como ele fez ungir os pontífices
e seus altares. Mas, mesmo sem a aplicação desta unção, eles são sagrados por seu cargo,
como eram os representantes da majestade divina, deputados por sua providência à
execução de seus desígnios. É assim que o próprio Deus chama Ciro seu ungido. ‘Eis o que
disse o Senhor a Ciro meu ungido, que tomei pela mão para subjugar todos os povos’. (...)
É preciso guardar os reis como coisas sagradas; e quem negligencia de guardá-los é digno
de morte.
1181
1175
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 59
-
60.
1176
ibid., p. 64.
1177
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 64
-
65.
1178
ibid., p. 65.
1179
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 65.
1180
BOSSUET,
1967, op. cit., p. 65.
1181
ibid., p. 66.
287
Desde cedo os teóricos políticos reconheceram que era perigoso fundar o caráter
sagrado dos reis apenas na unção. Essa questão foi muito debatida no início do reinado de
Henrique IV, o ade Luís XIV. Ao defender esta idéia, Bossuet está em perfeito acordo
com as idéias de Luís XIV.
1182
Essa idéia do caráter sagrado da realeza era antiga, e comungada pela maioria dos
teólogos cristãos do século XVII. Grócio também a defendeu.
1183
Bossuet recorre ao
mesmo exemplo utilizado por Grócio para demonstrar que a pessoa do rei é sagrada e por
isso é um sacrilégio atentar contra ele.
1184
Recorda Bossuet que, por duas vezes, Deus
colocou Saul sob as mãos de Davi. O povo querendo se ver livre desse príncipe ímpio e
injusto, incitava Davi para que o matasse. Mas Davi sentia
-
se horrorizado só em pensar em
tal coisa, e rogava a Deus para que jamais permitisse que ele atentasse contra a pessoa do
rei, o Seu ungido. Tal era a crença de Davi de que a pessoa dos reis era sagrada e que um
menor gesto contra eles consistia em uma violação ao respeito que lhes era devido, que ele
ficou apavorado por ter cortado a borda do manto de Saul:
Deus lhe s duas vezes entre as mãos Saul (...). Suas gentes o apressaram de se desfazer
desse príncipe injusto e ímpio; mas esta proposição lhe faz horror. ‘Deus, disse ele, esteja
em meu socorro e que não me aconteça de pôr minha mão sobre meu mestre, o ungido do
Senhor’. Longe de atentar
sobre a pessoa, ele é mesmo apanhado de pavor por ter cortado a
borda de seu manto, ainda que ele só tenha feito para lhe mostrar quanto religiosamente ele
o tinha poupado. (...) Tanto a pessoa do príncipe lhe parece sagrada, e tanto ele acreditava
de ter
violado pela menor irreverência o respeito que lhe era devido.
1185
Enquanto para Grócio os reis eram sagrados porque, no Evangelho, Deus solicitava
aos cristãos que os obedecessem, para Bossuet, o caráter sagrado dos reis decorria da
unção e principalmente do cargo que ocupavam.
Bossuet defende outra idéia inerente à doutrina paulina, aceita por muitos teólogos
políticos do século XVII, inclusive por Grócio
1186
, segundo a qual é preciso que os súditos
obedeçam aos príncipes por princípio de religião e de consciê
ncia. De acordo com Bossuet,
1182
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 66.
1183
Cf. GRÓCIO, op. cit., p. 144.
1184
Na concepção de Grócio, os súditos deviam respeitar os reis, pois esta era uma lei contida no Evangelho.
Cf. GRÓCIO,
op. cit., p. 144.
1185
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 67.
1186
Conforme Grócio, o apóstolo Paulo “acrescenta: ‘o príncipe é o ministro de Deus para nos favorecer no
bem’. E mais adiante: ‘por isto é necessário de se submeter, não somente pelo medo de sua cólera, m
as
também pelo dever de consciência’. O apóstolo compreende nesta submissão a obrigação de não resistir, e
não somente aquela que provém do medo de maior mal, mas ainda aquela que decorre do sentimento de
nosso dever em relação aos homens e em relação a De
us. Ele dá duas razões: a primeira, ‘é que Deus aprovou
este arranjo que remete a uns o comando, e submete os outros à obediência; ele a aprovou antes na lei
288
deve
-
se obedecer ao príncipe por princípio de religião e de consciência.
São Paulo, após ter
dito que o príncipe é o ministro de Deus, concluiu assim: ‘é então necessário que vós lhes
sejam submissos, não somente por medo de sua cólera, mas ainda pela obrigação de vossa
consciência’. É porque é preciso servir-lhe, não aparentemente, como para agradar aos
homens, mas com boa vontade, com temor, com respeito, e de um coração sincero como a
Jesus Cristo’. E ainda: ‘servidores, obedeças em todas as coisas a vossos mestres
temporais, não os sirva
aparentemente
, como para agradar aos homens, mas em
simplicidade de coração e no temor de Deus. Faças de bom coração tudo o que vós fazeis,
como servindo Deus e não aos homens, assegurado de receber do próprio Deus a
recompensa de vosso serviço. Olhe Jesus Cristo como vosso mestre. (...) É porque São
Pedro disse: ‘seja então submisso pelo amor de Deus à ordem que é estabelecida entre os
homens. Seja submisso ao rei como aquele que tem o poder supremo. E àquele a quem Ele
sua autoridade como era enviado Dele para o louvor das boas ações, e a punição das
más’.
1187
Bossuet apregoa a idéia paulina predominante no universo cristão, afirmada por
Grócio
1188
, de que os súditos deviam obedecer tanto os p
ríncipes
justos como os injustos.
Bossuet lembra que os súditos não devem obediência apenas aos príncipes bons, mas
também aos maus. É dever dos súditos obedecerem aos príncipes até mesmo quando eles
não cumprem a sua obrigação, pois o cargo e o ministério que ocupam devem ser
respeitados. Segundo ele, “mesmo quando eles não cumprem esse dever, é preciso
hebraica, e agora no Evangelho. Por isto nós devemos considerar as potências públicas como se elas
tivessem
sido estabelecidas pelo próprio Deus. Nós nos apropriamos, com efeito, as coisas que nós apoiamos de nossa
autoridade. a segunda razão, é que este arranjo é favorável a nosso interesse”. GRÓCIO, op. cit., p. 134.
1187
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 67
-
68.
1188
Grócio afirma que, aos reis cabe o comando e aos súditos a obediência. Os súditos devem obedecer aos
reis justos como aos injustos. A obediência dos cristãos aos reis deve ser ainda mais perfeita que à dos
antigos hebreus aos seus governantes. “o que eu disse é a prática de todas as nações. É um acordo geral da
sociedade humana, diz Agostinho, de obedecer a reis’. ‘Ele é rei absoluto, diz Ésquilo, e não depende de
ninguém’. ‘São reis, lemos em focles: é preciso lhes obedecer; por que não se o faria!’ ‘Se deve suportar,
diz Eurípedes, os erros daqueles que governam’. Acrescenteis a essa citação a passagem de Tácito que nós
citamos mais alto a esse propósito, e o pensamento seguinte do mesmo autor: ‘os deuses deram aos príncipes
a direção suprema das coisas, a glória de obedecer foi reservada aos súditos’. Podemos citar também esse
verso: ‘as faltas cometidas por um rei devem passar por faltas meritórias’. Sêneca havia dito ‘que é preciso
suportar o poder justo ou injusto do príncipe’. Ele havia tomado esse pensamento de Sófocles, segundo o
qual, ‘se deve obedecer àquele que o Estado colocou à cabeça do poder, nas mais pequenas coisas, naquelas
que são justas e naquelas que não o são’. Veja igualmente essa passagem de Sallusto: ‘agir em tudo com
impun
idade, é ser rei’”. GRÓCIO, op. cit., pp. 132-133. “Na lei hebraica, é condenado à morte quem
desobedeceu, seja ao grande pontífice, seja aquele que foi extraordinariamente estabelecido por Deus para
governar o povo. (...) Quando na nova aliança, o Cristo prescreve de render a César o que é de César, ele deu
a entender aos discípulos de sua lei que eles devem às potências soberanas uma obediência não menor, se não
mais perfeita, e que é preciso que ela esteja acompanhada de paciência quanto àquela a qual eram obrigados
os hebreus em relação a seus reis”. ibid., pp. 133-134. Para Grócio, os súditos devem obedecer até os reis
cruéis. “A conduta dos antigos cristãos não se afasta deste preceito do Senhor. Pois ainda que freqüentemente
muitos detestáveis homens tinham governado impérios romanos, e que não faltaram indivíduos que se
sublevassem contra eles sob o pretexto de libertar a república, jamais contudo os cristãos se uniram a seus
esforços. É declarado nas constituições de Clemente que ‘é um crime resistir ao poder de um rei’”. ibid., p.
137.
289
respeitar neles seu cargo e seu ministério. ‘
Obedeça a vossos mestres, não somente àqueles
que são bons e moderados, mas ainda àqueles que são desagradávei
s e injustos’
”.
1189
Apesar de Bossuet defender com tanto ímpeto a obediência dos súditos em relação
ao príncipe, ele não pode esquivar-se do problema que se apresentava aos cristãos: quando
“o governante ordens contrárias à lei de Deus”.
1190
Para Grócio, quando os soberanos
ordenam algo contrário às leis de Deus ou ao direito natural, os súditos não precisam
obedecê
-los. Mas isto não quer dizer que os súditos têm o direito de resistir pela força aos
soberanos que os maltratam. Pelo contrário, devem suportá-
lo
s.
1191
Da mesma forma, no
livro sexto da
Politique
, Bossuet responde a esta questão dizendo que,
uma exceção à obediência que se deve ao príncipe, é quando ele comanda contra
Deus. (...) deve-se obedecer às ordens do rei, se nelas não aparece nada de contrário às
ordens de Deus. (...) pela mesma razão que não se deve obedecer ao governador contra as
ordens do rei, deve-se ainda menos obedecer ao rei contra as ordens de Deus. É então que
tem lugar somente esta resposta que os apóstolos dão aos magistrados: ‘é preciso obedecer
a Deus antes que aos homens’.
1192
Também é só. Bossuet não faz nenhum comentário a este respeito. Aliás, Bossuet
tocou rapidamente no assunto porque não ficava bem para um teólogo deixar de falar
sobre ele em um tratado teológico-político. Assim como Grócio, Bossuet trata de lembrar
que isto não significa que os súditos têm o direito de resistência diante dos reis injustos.
De fato, no livro sexto da
Politique
, intitulado “os deveres dos súditos em relação
ao príncipe”,
Bossuet adv
erte que “o respeito, a fidelidade e a obediência que se devem aos
reis, não podem ser alterados por nenhum pretexto”.
1193
Sustentado na Bíblia e em Santo
Agostinho, Bossuet afirma que o
s
súditos devem obedecer aos príncipes
independentemente de eles serem bons ou maus, devido à santidade que lhes é atribuída
pela unção no momento de sua sagração e, sobretudo, que essa santidade é inerente ao
caráter do cargo que ocupam:
1189
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 68.
1190
TRUCHET, op. cit., p. 88
;
ver CHEVALLIER,
1982, op. cit., p. 381
.
1191
Segundo Grócio, “todas as pessoas de bem estão na verdade de acordo sobre esse ponto que, se os
soberanos comandam alguma coisa de contrário ao direito natural ou às ordens de Deus, não é preciso
executar suas ordens. Pois quando os apóstolos disseram que se deve obedecer a Deus antes que os homens,
eles apelaram a uma regra infalível, gravada em todos os corações, e que vós encontrareis expresso quase
desde os termos de Platão. Mas se por esta razão, ou porque o soberano terá o capricho, qualquer mau
tratamento nos infligiu, convém de sofrê
-
lo antes que resistir pela força”.
GRÓCIO, op. cit., p. 132.
1192
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 193
-
194.
1193
ibid., p. 196.
290
Quer dizer que se os devem sempre respeitar, sempre servir, quaisquer que sejam, bons ou
maus. ‘Obedeçam a vossos mestres, não somente quando eles são bons e moderados, mas
ainda quando eles são duros e desagradáveis’. O Estado está em perigo e o repouso público
não tem mais nada de firme, se é permitido se elevar por qualquer causa que seja contra os
príncipes. A santa unção está sobre eles; e o alto ministério que eles exercem em nome de
Deus, os põe a coberto de todo insulto. Nós vimos Davi, não somente recusar atentar contra
a vida de Saul, mas tremer por ter ousado cortar a borda de sua túnica, ainda que fosse de
boa intenção. ‘Que eu ouso levantar minha mão contra o ungido do Senhor, a Deus não
agrada. E o coração de Davi foi afligido, porque ele havia cortado a borda da armadura de
Saul’. As palavras de Santo Agostinho sobre esta passagem
são notáveis: ‘vós me opondes,
diz ele a Pétilien, bispo donatista, que aquele que não é inocente não pode ter a santidade.
Eu vos pergunto, se Saul não tivesse a santidade de seu sacramento e da unção real, que é
que causava nele a veneração a Davi? Pois
é por causa desta unção santa e sagrada, que ele
honrou durante sua vida e que ele vingou sua morte. E seu coração afligido desfalece
quando ele corta a borda da túnica desse rei injusto. Vós vedes então que Saul, que não
tinha inocência, não deixava de t
er a santidade; não a santidade de vida, mas a santidade do
sacramento divino, que é santa mesmo nos homens maus’. Ele chama sacramento a unção
real ou porque como todos os padres ele esse nome a todas as cerimônias sagradas, ou
porque em particular a unção real de reis no povo antigo era um sinal sagrado instituído de
Deus, para os tornar capazes de seu cargo e para figurar a unção do próprio Jesus Cristo.
Mas o que aqui de mais importante é que Santo Agostinho reconhece, conforme a
Escritura, uma santidade inerente ao caráter real, que não pode ser apagado por nenhum
crime. É, diz ele, esta santidade que Davi injustamente perseguiu à morte por
Saul
, Davi
sagrado para lhe suceder, respeitou num príncipe reprovado de Deus. Pois ele sabia que
cabe somen
te a Deus fazer justiça de príncipes; e que cabe aos homens respeitar o príncipe,
tanto que agrada a Deus de conservá-lo. (...) Todos os profetas que venceram sobre os
maus reis (...) jamais faltaram à obediência nem inspiraram a revolta, mas sempre a
subm
issão e o respeito. Os bons súditos não foram isentos do respeito que eles deviam a
seu rei, mesmo depois que seu reino foi derrubado, e que foi levado como um cativo com
todo seu povo. Eles respeitavam até no fogo e após a ruína do reino o caráter sagrado da
autoridade real.
1194
Baseando
-se na Bíblia e na história da Igreja, Bossuet observa que “a impiedade
declarada, e mesmo a perseguição, não isentam os súditos da obediência que eles devem
aos príncipes”.
1195
Bossuet demonstra que, devido ao caráter santo e sagrado da realeza,
diante da perseguição e impiedade dos imperadores romanos, os cristãos jamais lhes
desobedeceram, e sim faziam preces e promessas a Deus pela sua conversão:
O caráter real é santo e sagrado mesmo nos príncipes infiéis; e s vimos que Ciro é
chamado por Isaías ‘o ungido do Senhor’. Nabucodonosor era ímpio e orgulhoso até a
querer se igualar a Deus, e até fazer morrer aqueles que lhe recusavam um culto sacrílego.
E, entretanto, Daniel lhe diz essas palavras: ‘vós sois o rei dos reis, e o Deus do céu vos
deu o reino, o poder, o império e a glória’. É porque o povo de Deus rogava pela vida de
Nabucodonosor, de Baltazar e de Assérus. Achab e Jézabel tinham feito morrer todos os
profetas do Senhor. Elie se queixa a Deus, mas ele permanece sempre na obediência. Os
profetas durante esse tempo fazem prodígios admiráveis para defender o rei e o reino. (...)
Nada jamais igualou a impiedade de Manassès, que pecou e fez pecar Judá contra Deus, do
1194
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 196
-
198.
1195
ibid., p. 198.
291
qual ele empenha-se para abolir o culto, perseguindo os fiéis servidores de Deus e fazendo
regurgitar Jerusalém de seu sangue. E, entretanto, Isaías, e os santos profetas que o
repreendiam seus crimes, jamais excitaram contra ele o menor tumulto. Esta doutrina é
continuada na religião cristã. Era sob Tibério, não somente infiel, mas ainda mau, que
Nosso Senhor diz aos judeus: ‘dê a sar o que é de César’. São Paulo chama a César e
reconhece seu poder. Ele faz rogar pelos imperadores, ainda que o imperador que reinasse
do tempo desta ordenança fosse Nero, o mai
s ímpio e o pior de todos os homens. Ele dá por
objetivo a esta súplica a tranqüilidade pública, porque ele pede que se viva em paz, mesmo
sobre os príncipes maus e perseguidores. São Pedro e ele ordenam aos fiéis de serem
submissos aos poderes [Romanos]. Nós vimos suas palavras; e nós vimos quais eram então
os poderes nos quais esses dois santos apóstolos faziam respeitar aos fiéis a ordem de Deus.
Em conseqüência desta doutrina apostólica, os primeiros cristãos, ainda que perseguidos
durante trezentos anos, jamais causaram o menor movimento no império. Nós temos
aprendido seus sentimentos por Tertuliano, e nós os vemos em toda a seqüência da história
eclesiástica. Eles continuavam a orar pelos imperadores, mesmo em meio de suplícios aos
quais eles os conde
navam injustamente. ‘Coragem, diz Tertuliano, extraiam
oh bons juízes,
extraiam aos cristãos uma alma que propaga promessas pelo imperador’. Constance, filho
de Constantino, o Grande, ainda que protetor dos arianos e perseguidor da de Nicéia,
encontra na Igreja uma fidelidade inviolável. Juliano, o apóstata, seu sucessor, que
restabelece o paganismo condenado por seus predecessores, não encontra os cristãos menos
fiéis nem menos zelosos para seu serviço. Tanto eles sabiam distinguir a impiedade do
prínci
pe como a sagrada característica da majestade soberana. Tantos imperadores
heréticos que vieram depois: um Valens, uma Justine, um Zenon, um Basilisque, um
Anastácio, um Heraclius, um Constant. Ainda que eles perseguiram de sua os bispos
ortodoxos, e mesmo os papas; e que eles encheram a Igreja de matança e de sangue; não
viram jamais sua autoridade atacada ou enfraquecida pelos católicos.
1196
Sustentado na Bíblia, Bossuet afirma que “os súditos podem se opor à violência
de príncipes por meio de advertê
ncias respeitosas, sem motim e sem
murmúrio, e de preces
para sua conversão”.
1197
De acordo com Bossuet, os cristãos não podem se opor à tirania
de seus governantes mediante a força e sim pelas vias legítimas. Os primeiros podem
resistir à violência dos segundos por meio de advertências respeitosas, através de seus
magistrados. E que a submissão dos súditos não pode ser apenas aparente, exterior, ou seja,
não deve jamais estar condicionada à graça a eles concedida pelo seu governante. Segundo
Bossuet, para pôr os seus filhos à prova ou castigar os seus erros, Deus permite que eles
sofram perseguições. Diante disso, Bossuet adverte que os súditos não devem murmurar
para não estimular revoltas, pois Deus castiga os súditos rebeldes. As únicas armas que
eles possuem são as preces e promessas a Deus, o único que pode livrá-los da opressão de
seus governantes:
Quando Deus quis livrar os israelitas da tirania de Faraó, ele não permitiu que eles
procedessem por via de fato contra um rei cuja desumanidade em relação a eles era
1196
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 198
-
200.
1197
ibid., p. 201.
292
inaudita. Eles pediram com respeito a liberdade para sair, e de ir sacrificar a Deus no
deserto. Nós vimos que os príncipes devem escutar mesmo os particulares; a mais forte
razão devem eles escutar o povo, que lhe traz com respeito suas justas queixas pelas vias
permitidas. Faraó, tão endurecido e tão tirano que era, não deixava de ao menos escutar os
israelitas. Ele escutava Moisés e Aaron. Ele recebeu para sua audiência ‘os magistrados do
povo de Israel, que vieram se queixar a ele com grandes gritos, e lhe diziam: por que trata
vós assim vossos servidores?’ Que seja então permitido ao povo oprimido de recorrer ao
príncipe por seus magistrados e pelas vias legítimas. Mas que seja sempre com respeito. As
queixas repletas de maus modos e de murm
úrios são um começo de sedição que não devem
ser
suportadas
. Assim, os israelitas murmuravam contra Moisés, e não lhe fizeram jamais
uma advertência tranqüila. Moisés não cessa jamais de escutá-los, de suavizá-los, de rogar
por eles, e dá um memorável exem
plo da bondade que os príncipes devem a seu povo. Mas
Deus, para estabelecer a ordem, fez grandes punições desses sediciosos. Quando eu digo
que essas advertências devem ser respeitosas, eu entendo que elas o sejam efetivamente, e
não somente em aparência, como aquelas de Jéroboão e das dez tribos, que disseram a
Roboão: ‘vosso pai nos impôs um jugo insuportável; diminua um pouco um jugo tão
pesado, e nós vos seremos fiéis súditos’. Havia nessas advertências alguma marca exterior
de respeito, em que eles pediam uma pequena diminuição e prometiam ser fiéis. Mas
fazer depender sua fidelidade da graça que eles pediam, esse era um começo de motim.
Não se nada de semelhante nas advertências que os cristãos perseguidos faziam aos
imperadores. Tudo neles é submisso, tudo
neles
é modesto; a verdade de Deus
neles
é dita
com liberdade. Mas esses discursos estão tão afastados de termos sediciosos, que ainda
hoje não se pode os ler sem se sentir levado à obediência. (...) Eis o que podem as
advertências respeitosas; eis o que podem as preces. Assim fazia a rainha Estér, tendo
concebido o desígnio de irritar Assuérus seu marido, depois que ele resolveu sacrificar
todos os judeus para a vingança de Aman. Ela fez dizer a Mardochée: ‘reúna todos os
judeus que vós encontrares em Suse e orem por mim. Não coma nem beba três dias e três
noites. Eu jejuarei com minhas mulheres. Depois, eu me exporei a perder a vida, e eu
falarei ao rei contra a lei, sem entender que ele me chama’. Quando ela apareceu diante do
rei, ‘os olhos cintilantes desse príncipe testemunharam sua cólera. Mas Deus recordou-
se
das preces de Estér e daquelas dos judeus, transformando o furor do rei em doçura’. E
os
judeus foram livrados em consideração da rainha. Assim, quando o príncipe dos apóstolos
foi feito prisioneiro por Herodes, ‘toda a Igreja rogava por ele sem relaxar’. E Deus envia
seu anjo para livrá-lo. Eis as armas da Igreja: votos e preces perseverantes. São Paulo,
prisioneiro por Jesus Cristo, tem esse recurso e essas armas. ‘Prepare-me um
alojamento, pois eu espero que Deus dê a vossas preces’. Com efeito, ele saiu da prisão, ‘e
ele foi livrado da goela do leão’. Ele chama assim Nero o inimigo, não somente dos
cristãos, mas de todo o gênero humano. Que se Deus não escuta as preces de seus fiéis; se,
para pôr à prova e para castigar seus filhos, ele permite que a perseguição se
aqueça
contra
eles, eles devem então se lembrar que Jesus Cristo os tem ‘enviado como ovelhas no meio
de lobos’. Eis uma doutrina verdadeiramente santa, verdadeiramente digna de Jesus Cristo
e de seus discípulos.
1198
A este respeito, Paul Hasard parafraseia a
Politique
de Bossuet, para demonstrar
que, para este,
responsável perante Deus, o rei não é responsável perante seus súditos; não tem que
receber seus conselhos, que seguir sua opinião. Com efeito, atribuir aos que devem
obedecer um poder eficaz sobre aqueles a quem Deus tem destinado a mandar, seria um
1198
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 201
-
204.
293
ilogismo e uma impiedade. Esta máxima é tão forte, que nem sequer a impiedade declarada
por parte do soberano, nem sequer a perseguição, eximem os povos da submissão; hão
de opor à violência dos príncipes convenções respeitosas, sem agitação nem murmúrio,
preces por sua conversão. Deus tem desde o mais alto dos céus as contas de todos os
reinos; os reis mandam em seus súditos segundo seus secretos desígnios; os súditos
obedecem sem murmurar.
1199
Assim como São Gregório Magno fizera muitos séculos anteriormente, Bossuet vai
até as últimas conseqüências da
Epístola aos Romanos
de São Paulo a respeito da origem e
da natureza divinas da autoridade. O objetivo de Bossuet é deduzir desse texto uma total
negação de qualquer tipo de direito de resistência. O que lhe interessa é estabelecer a regra,
difícil de aceitar já naquela época de que é preciso que os súditos obedeçam a
té mesmo aos
príncipes cruéis e injustos'; uma vez que o cargo e o ministério que exercem são
decorrentes do poder divino, eles devem ser respeitados.
1200
Observa Chevallier que, para
Bossuet, um príncipe pode retratar-se se perceber que procedeu mal; entretanto, contra a
sua autoridade, o remédio
pode estar ‘na sua autoridade’. Até o murmurar é condenável,
pois o murmúrio é uma ‘disposição à sedição’”.
1201
De acordo com Chevallier, Bossuet acata a exceção de obediência dos súditos
aos príncipes, ou seja, quando os governantes dão ordens contrárias à lei de Deus, porque
esta é uma obrigação de todo cristão. No entanto, ele diminui o seu alcance “ao afirmar
também que a impiedade declarada, e até a perseguição, não eximem os súditos do dever
de obedecer e que estes não têm de opor à violência dos príncipes ‘senão respeitosas
representações, sem desordem e sem murmúrio, e preces pela sua conversão’. É possível
pregar uma resistência mais passiva?”
1202
Como a
Politique
foi concebida por Bossuet com o objetivo de instruir o futuro rei
da França, é natural que nela ele dedicasse um maior espaço para falar dos deveres dos reis
do que os dos povos. Entretanto, o livro sexto da
Politique
é destinado por ele “aos deveres
dos súditos em relação ao príncipe”. Segundo Truchet, tais deveres “resumem-se em uma
palavra: obediência”.
1203
1199
HASARD, op. cit.,
p. 225.
1200
Cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 380.
1201
ibid.
1202
ibid., p. 381. A este respeito, ver TRUCHET, op. cit., p. 36.
1203
TRUCHET, op. cit., p. 86.
294
O apologismo de Bossuet à soberania real
Diante dos limites que a autoridade do príncipe sofrera por parte dos
monarcômacos durante a Fronda, Bossuet empenha-se em exaltá-la, nos livros ter
ceiro,
quarto e quinto da
Politique
, redigidos de 1677 a 1679. Das quatro características
essenciais da autoridade, destacadas por Bossuet
1204
, duas são destinadas à apologia da
soberania do príncipe: que a autoridade real é sagrada e absoluta.
Primeiramente
, como vimos, no livro terceiro da
Politique
, Bossuet destaca o
caráter sagrado da autoridade real. Fato importante é que, para Bossuet, o caráter sagrado
da realeza é tal que ele chega a ponto de divinizá-la nos livros terceiro e quinto da
Politique.
No livro terceiro da
Politique
, Bossuet observa que “Deus tem posto nos príncipes
alguma coisa de divino”. Para reforçar esta idéia, Bossuet recorre às palavras de Davi no
Salmo LXXXI, no qual afirma Davi “‘eu disse: vós sois deuses, e vós sois todos filhos do
Altíssimo’”. Segundo Bossuet, “é o próprio Deus quem faz Davi falar assim”.
1205
Conforme Bossuet, o respeito que se deve ao príncipe está tão ligado à religião que todos
aqueles que acreditam em Deus devem honrar o rei: “há então alguma coisa de religioso no
respeito que se rende ao príncipe. O serviço de Deus e o respeito pelos reis são coisas
unidas, e São Pedro põe juntos esses dois deveres: ‘Crê em Deus, honra o rei”.
1206
Bossuet
lembra que foi Deus quem escolheu e estabeleceu os reis. Em seguida, ele acrescenta, “é
então o espírito do cristianismo de fazer respeitar os reis como uma espécie de religião, que
o próprio Tertuliano chama muito bem ‘a religião de segunda majestade’. Esta segunda
majestade é uma decorrência da primeira; quer dizer da divindade, que pelo bem das
coisas humanas, quer fazer refletir alguma parte de seu brilho sobre os reis”.
1207
A divinização da realeza por Bossuet também é feita no artigo quinto do livro
quinto da
Politique
, quando ele define “o que é a majestade”. Segundo Bossuet,
não chamo majestade esta pompa que cerca os reis, ou este brilho exterior que deslumbra o
vulgo. É o reflexo da majestade e não a majestade mesma. A majestade é a imagem da
grandeza de Deus no príncipe. Deus é infinito, Deus é tudo. O príncipe,
enquanto
p
ríncipe,
não é olhado como um homem particular, é olhado como uma pessoa pública; todo o
1204
Segundo Bossuet, “há quatro características ou qualidades essenciais à autoridade real: primeiro, a
autoridade real é sagrada; segundo, ela é paternal; terceiro, ela é absoluta, quarto, ela é submissa à razão”.
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 64.
1205
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 68.
1206
ibid.
1207
ibid., p. 69.
295
estado está nele, a vontade de todo o povo é contida na sua. Como em Deus é reunida toda
perfeição e toda virtude, assim todo o poder dos particulares é reunido na pessoa do
príncipe. Que grandeza que um único homem contém tanto! O poder de Deus se faz sentir
em um instante da extremidade do mundo a outra, o poder real age no mesmo tempo em
todo o reino. Ele mantém todo reino no Estado como Deus nele mantém todo o mundo. Se
Deus retira a sua mão, o mundo recai no nada, se a autoridade cessa no reino, tudo
estará
em confusão. Considere o príncipe em seu gabinete. De lá partem as ordens que fazem ir de
concerto os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados, as províncias e os
exércitos por mar e por terra. É a imagem de Deus, que sentado em seu trono no mais alto
dos céus faz ir toda a natureza. ‘Que movimento se faz, diz Santo Agostinho, um único
comando do imperador? Ele faz mover os lábios, não nele o mais ligeiro movimento,
e todo o império se remove. É, diz ele, a imagem de Deus, que faz tudo por sua palavra. Ele
disse e as coisas foram feitas, ele ordenou e elas foram criadas’. (...) Se o poder de Deus se
estende por toda parte, a magnificência o acompa
nha. Não há local no universo em que não
aparecem marcas brilhantes de sua bondade. Veja a ordem, veja a justiça, veja a
tranqüilidade em todo o reino. É o efeito natural da autoridade do príncipe. Observe em
conjunto as coisas tão grandes e tão augustas que nós temos dito sobre a autoridade real.
Veja um povo imenso reunido em uma única pessoa: veja este poder sagrado, paternal e
absoluto; veja a razão secreta que governa todos os corpos do Estado contido em uma única
cabeça; vós vedes a imagem de Deus nos reis, e s tendes a idéia da majestade real. Deus
é a própria santidade, o próprio poder, a própria razão. Nessas coisas está a majestade de
Deus. Na imagem dessas coisas está a majestade do príncipe. É tão grande esta majestade
que não pode estar no príncipe como na sua fonte; ela é emprestada de Deus, que lhe deu
pelo bem dos povos, a quem é bom estar conservado por uma força superior. Não sei que
de divino se liga ao príncipe, e inspira o medo aos povos.
1208
Essa comparação da realeza com a divindade feita por Bossuet era comum no
século XVII. Nessa época, alguns teóricos, como Mascaron, chegavam a ponto de dizer
que o rei era o próprio Deus na terra.
1209
Como todo bom teólogo, Bossuet dizia que os reis
eram a imagem de Deus, e até “sois deuses”, dirigindo-se diretamente a Luís XIV, em um
sermão pregado em 1662
1210
, mas jamais que era Deus. Compreendemos melhor a
divinização da realeza por Bossuet quando atentamos a uma época em que alguns teóricos
políticos defendiam que os súditos tinham o direito de resistir aos reis injustos, e que tal
resistência não se limitava a derrubá-
los do trono, mas também de matá
-
los.
Em seguida, no livro quarto
da
Politique
, Bossuet chama a atenção para o caráter
absoluto da autoridade real. Bossuet afirma que “a autoridade é absolu
ta”.
Primeiramente,
ele adverte que, “para tornar esse termo odioso e insuportável, muitos fingem confundir o
governo absoluto e o governo arbitrário. Mas não nada mais distinto”.
1211
Em sua
1208
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 177
-
179.
1209
Conforme Le Brun, “a comparação do rei com Deus é no século XVII bastante banal e não se pode tirar a
prova de um particular servilismo de Bossuet (...). textos muito mais fortes que esse de Bossuet, por
exemplo o de Mascaron citado por Truchet em La prédication
”.
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit.,
nota de
rodapé, p. 177.
1210
Cf. BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., p. 82.
1211
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 92.
296
concepção, poder absoluto significava poder indivisível. Esta distinção era encontrada por
Bossuet na
República
de Platão; distinção esta que era retomada pela maioria dos teóricos
do século XVII.
1212
A idéia de que o poder do príncipe era absoluto, portanto indivisível,
foi apregoada também por Grócio.
1213
Para Bossuet, o príncipe não deve dar nenhuma satisfação dos seus atos. A sua
palavra é poder. Os súditos têm a obrigação de obedecer às ordens do príncipe sem
questioná
-lo. O príncipe tem o poder para reprimir os súditos que agem mal; os súditos
obedientes não sofrerão nenhum mal: “o príncipe não deve dar conta a ninguém do que ele
ordena
. Observe as ordens que saem da boca do rei, e guarde o juramento que vós lhe
tendes prestado. Não sonhe em escapar perante a sua face, e não permaneça nas más obras,
porque ele fará tudo o que quer. A palavra do rei é poder; e ninguém lhe pode dizer:
porque vós fazeis assim? Quem obedecer não terá mal’”.
1214
De acordo com Le Brun, “a
exegese é conforme à da maioria dos teólogos políticos”.
1215
De acordo com Bossuet, para fazer o bem e reprimir o mal é necessário que o rei
tenha o poder absoluto. O seu poder deve ser absoluto para que os maus não sonhem em se
desvencilhar do soberano. A inocência dos particulares é a única defesa que possuem
contra o poder público: “sem esta autoridade absoluta, ele não pode nem fazer o bem, nem
reprimir o mal. É preciso que seu poder seja tal que ninguém possa esperar de lhe escapar.
E, enfim, a única defesa dos particulares contra o poder público, deve ser sua inocência.
Esta doutrina é conforme o que diz São Paulo: ‘quereis vós não temer o poder, fazeis o
bem’”.
1216
Bossuet observa que “quando o príncipe julgou, não outro julgamento
”.
1217
Os
príncipes julgam em nome de Deus. Eles julgam segundo a justiça. O julgamento é uma
prerrogativa dos príncipes. Após o seu
julgamento, ninguém tem o direito de rever e julgar.
Os príncipes são a própria justiça. Deste modo, os súditos lhes devem obediência. Eles são
deuses e Deus pode julgar a eles e aos seus julgamentos. Disso resulta que os súditos
que se negam em obedecê-los não serão julgados em outro tribunal, mas condenados à
morte como inimigos da sociedade humana, portanto, da paz pública:
1212
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 92.
1213
Conforme Grócio, referindo-se ao príncipe, “‘ele é rei absoluto, diz Ésquilo, e não depende de
ninguém’”.
GRÓCIO, op. cit., p. 133.
1214
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 92.
1215
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 92.
1216
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 92
-
93.
1217
ibid., p. 93.
297
Os julgamentos soberanos são atribuídos ao próprio Deus. É isso que faz dizer o
Eclesiástico
: não julgue contra os juízes. (...) É que ele julga conforme a justiça. (...) ele é
reputado a julgar; e ninguém tem direito de julgar, nem de rever depois dele. É preciso
então obedecer aos príncipes como à própria justiça (...). Eles são deuses, e participam de
algum modo à independência
divina. ‘Eu tenho dito: vós sois deuses, e vós sois todos filhos
do Altíssimo’. Só Deus pode julgar seus julgamentos e suas pessoas. ‘Deus pôs seu assento
na assembléia dos deuses, e sentado no centro ele julga os deuses’. (...) Daí vem que aquele
que não quer obedecer ao príncipe, não é reenviado a outro tribunal, mas ele é condenado
sem remissão à morte, como o inimigo do repouso público e da sociedade humana.
1218
Segundo Bossuet, ninguém pode ir contra a autoridade do príncipe. O remédio
contra a sua autoridade encontra-se nele mesmo. Somente ele pode se corrigir quando
percebe que fez algum mal a alguém: “o príncipe pode reparar a si próprio, quando ele
reconhece que fez mal, mas contra sua autoridade, somente pode ter remédio em sua
autoridade
”.
O príncipe deve temer a Deus e ter muito cuidado com aquilo que ordena,
pois tudo que ordenar recairá sobre ele: “é porque ele deve bem tomar guarda daquilo que
ele ordena. Tomai guarda àquilo que vós ordena, tudo o que vós julgares recairá sobre
vós; tenha o temo
r de Deus; faças tudo com grande cuidado’”.
1219
Bossuet salienta que, contra o príncipe não existe nenhuma força coativa, esta
pertence somente a ele:
“não há força coativa contra o príncipe. Chama
-
se força coativa um
poder para constranger à execução do que é ordenado legitimamente; somente a ele
pertence a força coativa”.
1220
Com base em São Paulo, Bossuet argumenta que é por isso
que somente o príncipe tem o gládio. E todos aqueles que agem mal devem temer porque o
seu gládio não foi dado em vão: “é também por isso que São Paulo o gládio a ele
somente. Se vós não fazeis o bem, tema, pois não é em vão que ele tem o gládio’”.
1221
Bossuet adverte que, em seu Estado, somente o príncipe pode estar armado; “do contrário
tudo está em confusão, e o Estado recai em anar
quia”.
1222
Conforme Bossuet, quem
estabeleceu os soberanos deu a eles todo o poder do Estado: “quem faz um príncipe
soberano, lhe põe na mão todo o poder, a autoridade soberana de julgar, e todas as forças
do Estado”.
1223
Sustentado no I Livro dos Reis, Bossuet afirma que “o poder de seu
1218
ibid., pp. 93
-
94.
1219
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 94.
1220
ibid.
1221
ibid.
1222
ibid.
1223
ibid.
298
príncipe será absoluto sem poder ser restringido por nenhum outro poder”.
1224
Esse texto
foi muito utilizado pelos teólogos políticos do século XVII.
1225
Ancorado nos padres da Igreja, São Jerônimo e São Ambrósio, Bossuet defende a
idé
ia tradicional em seu tempo, que a justiça humana não pode nada contra o príncipe. Ele
só deve temer a Deus. Os príncipes estão livres das penalidades das leis.
1226
Conforme seus
próprios termos,
é porque Davi dizia: ‘eu pequei contra vós somente. O Senhor tende piedade de mim!’.
Porque ele era rei, diz São Jerônimo sobre esta passagem, e tinha Deus somente a temer. E
São Ambrósio diz sobre essas mesmas palavras:
eu pequei contra vós somente
. ‘Ele era rei;
ele não estava submetido a nenhuma lei, porque os re
is estão livres
das penas
que vinculam
os criminosos. Pois a autoridade de comando não permite que as leis os condenem ao
suplício’.
1227
Mas Bossuet lembra que “os reis não estão por isso livres das leis
”.
1228
Eles devem
obedecer às leis de Deus e às leis do reino. Como os outros homens, eles devem se
submeter à equidade das leis, pois eles devem ser justos. Porém, eles não são submetidos
às penalidades das leis como os outros homens; eles estão livres delas: “os reis estão
então
submetidos como os outros à equidade das leis, porque eles devem ser justos, porque eles
devem ao povo o exemplo de guardar a justiça; mas eles não o submissos às penas das
leis: ou como fala a teologia, eles são submissos às leis, não quanto ao poder coativo, mas
quanto ao poder diret
ivo”.
1229
Esta doutrina de São Tomás de Aquino tornou-se tradicional
no meio teológico. Ela foi retomada por teólogos como Mariana e Suarez.
1230
De acordo com Bossuet, todos os poderes dos reis são muito bem explicados na lei
real dos judeus antigos. O cuidado geral do povo cabe somente ao príncipe. Este primeiro
artigo constitui-se no fundamento dos demais: “a ele às obras públicas, a ele as praças e as
armas; a ele os decretos e as ordenanças; a ele as marcas de distinção; nenhuma potência
independente da sua;
nenhuma assembléia sem ser por sua autoridade”.
1231
É visando o bem do Estado que toda a força é reunida em uma única pessoa, cujo
maior interesse é conservá-lo e engrandecê-
lo.
Do contrário, o Estado seria dividido,
1224
ibid., pp. 94
-
95.
1225
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, nota de rodapé, p. 95.
1226
De acordo com Le Brun, “a exegese é tradicional no século XVII”. ibid.
1227
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 95.
1228
BOSSUET, 1967, op. cit.,
p. 96.
1229
ibid., p.
97.
1230
Cf. LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., nota de rodapé, p. 97.
1231
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 96.
299
haveria dois mestres, o que significaria o fim da paz pública, pois não se pode servir a dois
senhores:
“é assim que pelo bem de um Estado, se reúne em um toda a força. Pôr a força
fora daí, é dividir o Estado; é arruinar a paz pública; é fazer dois mestres, contra este
oráculo do Evangelho: ‘ninguém pode servir a dois senhores’. (...) Não nada de melhor,
que deixar todo o poder do Estado àquele que tem o maior interesse à conservação e a
grandeza do próprio Estado”.
1232
Conforme Bossuet, “o povo deve se conservar em repouso sob a autoridade do
pr
íncipe
”.
1233
Porque, segundo ele, sob a autoridade do príncipe, em todo o reino o povo
vive sem medo, permanecendo no repouso: quando um rei é autorizado, cada um
permanece em repouso, e sem receio sob sua vinha, e sob sua figueira, de uma extremidade
a out
ra’”.
1234
É somente sob a autoridade de um príncipe absoluto que promova a paz não
apenas no exterior como também no interior do reino que o povo poderá usufruir desse
repouso: “para usufruir desse repouso, não é preciso somente a paz no exterior, é preciso a
paz no interior, sob a autoridade de um príncipe absoluto”.
1235
Bossuet adverte que “o povo deve temer o príncipe, mas o príncipe não deve temer
quem faz mal”. Para garantir a paz em seu reino, o príncipe deve se fazer temer por todos
os súditos, sobretudo p
elos Grandes, já que estes são os mais ameaçadores ao seu poder:
O medo é um freio necessário aos homens por causa de seu orgulho, e de sua indocilidade
natural. É preciso então que o povo tema o príncipe; mas se o príncipe temer o povo, tudo
está perdido. (...) O príncipe deve se fazer temer pelos grandes e pequenos. (...) A
autoridade real se deve fazer sentir aos maus, quão grandes eles sejam. (...) o repouso
público obriga os reis a manter todo mundo no medo, e mais ainda os grandes que os
pequenos;
porque é do lado dos grandes que pode acontecer maiores perturbações.
1236
De acordo com Bossuet, “a autoridade real deve ser invencível” para que a paz
pública esteja assegurada no reino. Ninguém estará em segurança em um Estado que exista
qualquer tipo de autoridade que possa deter o curso e embaraçar o exercício do poder
público. No governo fraco, o príncipe teme os Grandes, a autoridade real deixa de ser um
refúgio aos inocentes perseguidos. O príncipe fraco que teme os Grandes perde seu
reino.
1237
Conforme B
ossuet,
1232
ibid.
1233
ibid., p. 98.
1234
ibid.
1235
BOSSUET, 1967, op. cit., p. 98.
1236
ibid., pp. 99
-
101.
1237
Cf. ibid., p. 101.
300
empreende
-se facilmente contra um príncipe fraco. Este, que se deixa intimidar pelas
ameaças de fazê-lo morrer, ele e sua casa, foi destruído em outra ocasião por suas
devassidões e suas injustiças: pois todo príncipe fraco é injusto, e sua casa perde a realeza.
(...) essas fraquezas são perniciosas aos particulares, ao Estado e ao próprio príncipe, contra
quem se ousa tudo quando ele se deixa
iniciar
. (...) Esta fraqueza dos juízes é deplorável
pelo profeta. ‘O grande solicita e os juízes não podem
nada recusar’. Se o próprio príncipe,
que é o juiz dos juízes, teme os grandes, que terá de firme no Estado? É preciso então que a
autoridade seja invencível, e que nada possa forçar a proteção, ao abrigo do qual o repouso
público e a salvação dos partic
ulares estão assegurados.
1238
Bossuet deixa claro que, em seu entendimento, a paz pública só é assegurada
quando toda a autoridade é depositada no príncipe. Ele não precisa prestar contas de seus
atos a ninguém. Nenhum súdito tem o direito de questionar as suas decisões. Se existisse
no Estado outro poder capaz de coagir o soberano, o poder não seria absoluto, ou seja,
independente de qualquer outro poder humano. A este respeito, Chevallier observa que,
para Bossuet,
a autoridade [no caso, a de um só, forma superior do mandamento político] deve, pois, ser
‘invencível’ para desempenhar sua missão unificadora e pacificadora. Ninguém estará em
segurança se houver num Estado alguma autoridade capaz de deter o curso do poder
público e de estorvá-lo no seu exercício, e, por exemplo, se o próprio príncipe, juiz dos
juízes, ‘temer os grandes’. Esse príncipe a ninguém deve prestar contas do que ordena.
Quando ele julgou, não há na terra outro julgamento: ‘quem constitui um príncipe soberano
põe
-lhe nas mãos, ao mesmo tempo, a autoridade soberana de julgar a todas as forças do
Estado’. Não fora assim, os súditos poderiam ter de servir
dois senhores
, eventualidade que
causa profundo desgosto {em Bossuet}. E o governo não seria
absoluto
, vale dizer,
independente de toda autoridade humana, ‘se houvesse algum poder capaz de obrigar o
soberano’.
1239
Ao afirmar que a tranqüilidade do reino, a paz pública, ocorre quando toda a
autoridade é depositada no príncipe, e que o julgamento e a condenação dos reis injustos só
podem ser feitos por Deus e jamais pelos homens, a intenção de Bossuet é interditar
qualquer espécie de coação dos súditos em relação ao príncipe.
Bossuet escreveu os seis primeiros livros da Politique nos últimos anos do
preceptorado do Delfim. Neste momento, o absolutismo de Luís XIV encontrava-se no
auge. Contudo, em seu tratado
Le droit de la guerre et de la paix
, publicado em 1625, além
de dizer que a origem da soberania se encontrava no povo, Grócio limitava a soberania do
príncipe, afirmando que o povo não aliena a sua soberania no ato do estabelecimento de
um governante, apenas a delega, podendo retomá
-
la, caso a família do rei venha a faltar.
1238
ibid., pp. 102, 104.
1239
CHEVALLIER. 1982, o
p. cit., p. 381.
301
Além disso, e o que é mais importante, Bossuet guardava as recordações das
drásticas conseqüências da Revolução Inglesa de 1640 para o absolutismo inglês. Como
também não conseguia se desvencilhar das lembranças da Fronda, (1648-1653). De todo o
perigo que esta revolta civil representou ao poder de Luís XIV, quando este era apenas
uma criança. A decapitação de Carlos I em 1649 coincidiu com o início da Fronda. Nessas
duas guerras civis, os revoltosos defendiam as idéias monarcômacas, segundo as quais se o
governante deixasse de cumprir suas obrigações, o povo voltava a ser o possuidor da
soberania podendo depô-
lo de seu
cargo ou até matá
-
lo.
Ao defender que a soberania residia
na pessoa do príncipe
, já que o seu poder havia
sido conferido diretamente por Deus, condenar qualquer forma de insubordinação dos
súditos em relação a ele e ao mesmo tempo defender a total obediência dos súditos diante
do poder estabelecido, Bossuet tencionava fortalecer a autoridade real, pois, em sua
concepção, isso era fundamental para que o príncipe promovesse e assegurasse a paz na
França.
Como se posicionava Luís XIV a respeito da questão da
soberania?
A luta de Luís XIV para a consolidação de seu poder
A soberania real também foi defendida por Luís XIV, em suas
Memórias
redigidas
entre 1668 e 1672 com o propósito de
instruir o Delfim.
Nas
Memórias
, Luís XIV explicita qual é a sua concepção a respeito da natureza
humana, como era a vida antes do estabelecimento da sociedade política e o que levou os
homens a se submeterem à autoridade de um único governante.
Conforme salienta Luís XIV, em suas
Memórias
, quando os reinos se encontram
em p
rosperidade, os homens se esquecem das vantagens que a monarquia lhes proporciona,
somente invejando o poder dos reis. O orgulho e a ambição tão naturais nos homens os
impedem de compreender por que devem obedecer a um outro. Somente nos momentos de
catást
rofes é que os homens compreendem o valor daqueles governantes que os reprimem,
passando a respeitá-los. São nesses momentos difíceis que os homens compreendem que
sem um governante o mundo seria dominado pelos mais fortes, não havendo segurança a
sua vida e aos seus bens. Desse modo, eles passam a amar a obediência do mesmo modo
que amam a sua própria vida e a sua paz:
302
Apenas notamos a ordem admirável do mundo e o curso tão regular e tão útil ao sol quando
qualquer desarranjo das estações, ou qualquer aparente desordem no seu mecanismo, nos
obriga a refletir sobre isso. Enquanto tudo prospera num Estado podemos esquecer os bens
infinitos que produz a realeza, invejando apenas os que ela possui. O homem naturalmente
ambicioso e orgulhoso nunca encontra em s
i mesmo a razão por que há de ser mandado por
outro homem, até que a sua própria necessidade lhe faça sentir. Mas até esta mesma
necessidade, logo que alcança remédio constante e normal, torna-se insensível em virtude
do hábito. São os acidentes extraordinários que o fazem tomar em consideração a préstimo
daquele que o reprime, compreendendo como sem o mando seria presa do mais forte, não
encontraria justiça no mundo, nem razão, nem segurança para quanto possui, nem recurso
para o que tivesse perdido; e assim chega a amar a obediência tanto como ama a sua
própria vida e a sua própria tranqüilidade.
1240
É possível perceber, acima, que Luís XIV compartilha da concepção agostiniana da
natureza humana, segundo a qual os homens são naturalmente ambiciosos e egoísta
s, aceita
por Bossuet. A idéia aristotélica da utilidade, defendida por Bossuet, segundo a qual é
visando a sua própria tranqüilidade que os homens aceitaram se submeter ao poder de um
governante, também é afirmada por Luís XIV. De modo semelhante a Bossuet, Luís XIV
acredita que a justiça, a segurança da vida e dos bens, enfim, a tranqüilidade dos súditos
somente são possíveis após o estabelecimento da sociedade política.
Como Bossuet, Luís XIV acreditava que era Deus quem estabelecia os reis. Nas
Memória
s, ele diz ao filho: “Deus (...) vos fez rei”.
1241
Contudo, Luís XIV não diz de onde
vem o poder dos governantes. Apesar desse silêncio, sabemos que, da mesma maneira que
Bossuet, Luís XIV era um galicano; o que o levava a acreditar que o seu poder vinha
dire
tamente de Deus e jamais do povo, como defendiam os monarcômacos durante a
Fronda.
Do mesmo modo que Bossuet, Luís XIV também concebia a soberania como sendo
um poder absoluto e indivisível. Vejamos, então, como esta idéia aparece em suas
Memórias
.
Luís XIV explica ao filho, nas
Memórias
, que não foi por negligência que não
assumiu o poder pessoalmente, assim que fora declarado maior de idade, mas pelas
circunstâncias. Ele tinha aversão aos reis que se deixavam dominar por particulares, e
somente deixou que Mazarino continuasse no poder devido à instabilidade em que a Coroa
se encontrava no período. Luís XIV descreve ao filho o estado em que se encontrava o
reino da França antes e depois de sua maioridade. Ele menciona a Fronda (1648-1653); a
guerra contra a Espanha (1649-1658); a traição do Príncipe de Condé, seu primo legítimo,
1240
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 44.
1241
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 41.
303
que liderou a Fronda da nobreza como também se passou para o lado dos inimigos
espanhóis; a autoridade usurpada dos parlamentos; na corte, a fidelidade interesseira da
maioria de seus cortesãos, aparentemente submissos, mas que, na realidade, eram mais
perigosos que os rebeldes declarados; o fato de os pensamentos e modos de agir de
Mazarino, o primeiro-ministro, terem sido diferentes dos seus, mas que procurava não
contradizê
-lo, para não incitar mais revoltas contra ele que, com grande habilidade, tinha
conseguido se restabelecer após a Fronda e a guerra contra a Espanha; a declaração
antecipada de sua maioridade aos 14 anos, em 1652, para evitar maiores males ao reino:
Não sei se devo pôr no número dos meus (erros) o não ter tomado em minhas mãos, desde
o princípio, a direção do meu Estado. Se foi um erro, tratei de repará-lo mais adiante; e
posso assegurar-vos com toda a decisão que jamais fui afetado pela negligência e pela
bran
dura de ânimo. Desde a mais tenra infância, sentia vergonha quando se pronunciava na
minha presença os simples nomes de reis indolentes e de mordomos de palácios. Mas deve
tomar
-se em consideração o estado de coisas na ocasião: terríveis agitações por todo o
reino, antes e depois da minha maioridade; uma guerra estrangeira, na qual as suas querelas
domésticas tinham feito perder à França mil e uma vantagens; um príncipe do meu sangue
e do meu nome à cabeça dos inimigos; muitas cabalas no Estado; os parlamentos a
continuar na posse satisfeita de uma autoridade usurpada; na minha corte muito pouca
fidelidade sem interesse, e, pela mesma razão, os súditos aparentemente mais submissos
eram mais de temer que os mais rebeldes; um ministro reabilitado apesar de tan
tas facções,
muito hábil, muito destro, que me amava e a quem eu amava, que me tinha prestado
grandes serviços, mas cujos pensamentos e maneiras eram, naturalmente, muito diferentes
dos meus, e a quem, no entanto, não podia contradizer sem menosprezar o seu crédito e
talvez excitar novamente contra ele, por esta falsa imagem de desgraça, os mesmos
trabalhos que com tanta dificuldade tinha acalmado; eu mesmo era bastante jovem, maior
na verdade do que a maioria dos reis, a quem as leis do Estado tinham adiantado as suas
faculdades reais para evitar maiores males, mas não dessa idade em que os simples
particulares começam a governar livremente os seus assuntos.
1242
Obedecendo à ordem dos acontecimentos, nas
Memórias
, Luís XIV prossegue
lembrando ao filho que, alguns anos depois, a paz foi restabelecida com a Espanha, por
meio do Tratado dos Pireneus (1659), selado pelo seu casamento com a princesa
espanhola, Maria Tereza, um ano depois. Em 1661, com a morte do seu estimado primeiro
-
ministro Mazarino, ele assumiu pessoalmente as rédeas do poder, o qual havia muito
desejava e ao mesmo tempo temia, sabendo das responsabilidades que isto requeria:
“transcorrido alguns anos (...), restabelecida a paz geral, realizado o meu matrimônio,
fortalecida a minha autoridade e morto o cardeal Mazarino, vi-me obrigado a não adiar
mais o que desejava e temia ao mesmo tempo havia já tantos anos”.
1243
1242
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 11
-
12.
1243
ibid., p. 13.
304
Assim que assumiu o poder pessoalmente, Luís XIV diz ao filho, em suas
Memórias
, que dirigiu o seu olhar atendo a todos os cantos do reino, percebendo que a
desordem reinava de uma extremidade a outra. Conforme seus próprios termos, “comecei a
dirigir os olhares para todos os lados do meu Estado. (...) por todo o lado reinava a
desordem”.
1244
Entre os
motivos
do estado de desordem em que o seu reino se encontrava,
conforme lembra Luís XIV, nas
Memórias
, encontrava-se o atrevimento com que os
cortesão, acostumados a negociar com um primeiro-
ministro, dirigiam
-
se a ele:
A minha corte, em geral, estava bastante afastada dos sentimentos com que espero a
encontrareis. As pessoas de qualidade e de serviço, acostumadas às negociações contínuas
com um ministro a quem não tinham aversão e a quem tinham sido necessárias,
consideravam
-se sempre com um direito imaginário a tudo aquilo que era da sua
conv
eniência; nenhum pedido que não fosse misturado com uma censura do passado ou
com um descontentamento futuro, querendo deixar
-
se antever e temer.
1245
O primeiro meio considerado imprescindível por Luís XIV para pôr ordem em seu
reino e concentrar em si toda a autoridade consistia em muito trabalho. Nas
Memórias
, ele
deixa explícito o seu amor pelo trabalho e, ao mesmo tempo, a aversão pela ociosidade. De
acordo com Luís XIV, o repouso e a tranqüilidade de um reino são possíveis após muito
trabalho por part
e do príncipe:
Quanto ao trabalho, (...) não vos advertirei somente de que é por ele que se reina, para ele
que se reina, e que estas considerações da realeza, que poderiam parecer rudes e molestas
em tão alto lugar, vos pareceriam doces e fáceis se se tratasse de o alcançar. mais
qualquer coisa, meu filho, e espero que não o aprendas nunca pela experiência própria:
nada vos seria mais laborioso do que uma grande ociosidade se tivésseis a desgraça de cair
nela; enfastiado dos negócios, mais tarde dos prazeres, finalmente da própria ociosidade, e
procurando inutilmente por toda a parte o que não se pode encontrar [quer dizer a doçura
do repouso e do recreio], sem a fadiga e a ocupação que o precedem. Impus-me por lei
trabalhar regularmente duas vezes por dia durante duas ou três horas de cada vez, com
diversas pessoas, sem contar as horas que passasse em solidão e o tempo que pudesse
conceder excepcionalmente aos assuntos extraordinários que sobreviriam, e não havendo
momento em que não fosse permitido fal
ar
-
me, por pouco urgente que fosse.
1246
De fato, o amor de Luís XIV ao trabalho era tanto que foi notado por seus
contemporâneos, que não deixaram de reconhecer essa qualidade nele. Conforme Lavisse,
“Colbert conta que, num mesmo dia, o jovem rei preside o Conselho de Finanças, de dez
1244
ibid.
1245
ibid., p. 14.
1246
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 17
-
18.
305
horas da manhã à uma hora e meia, almoça, preside outro conselho, fecha-se duas horas
para aprender o latim (...) e, à noite, tem um terceiro conselho até as dez horas”.
1247
O outro meio utilizado por Luís XIV para concentrar toda a autoridade em sua
pessoa
era se manter sempre vigilante. Aliás, em Luís XIV, o amor pelo trabalho estava
interligado ao seu espírito de vigilância. Nas
Memórias
, conforme Luís XIV, os cortesãos
achavam que o seu amor pelo trabalho seria passageiro, que ele logo se cansaria e que
tomariam conta dos negócios do reino, mas se decepcionaram, pois o amor pelo trabalho e
o
cuidado
de sempre estar informado de todos os assuntos do reino jamais o abandonaram:
Muitos se convenciam de que em pouco tempo se assenho
reariam do meu ânimo e negócio
alguns dos que me rodeavam. A maioria considerava a assiduidade do meu trabalho como
um ardor que bem depressa se apagaria; e os que queriam julgar mais favoravelmente,
esperavam o resultado para se determinarem. O tempo fez ver que se devia pensar sobre
este assunto, e parece-me que este é o décimo ano em que vou caminhando com bastante
constância pela mesma rota e sem perder nada da minha aplicação: informado de tudo,
sabendo a cada momento o número e qualidade das minhas tropas, o estado das minhas
praças; dando ordens incessantes em todos os assuntos; tratando imediatamente com os
ministros estrangeiros; recebendo e lendo os despachos; fazendo eu mesmo parte das
respostas e dando aos meus secretários a essência das restante
s; regulamentando as receitas
e despesas do Estado; fazendo que me seja dada conta diária das atividades dos que coloco
nos empregos importantes; conservando os meus assuntos tão secretos, como nenhum
outro os conservou antes de mim; distribuindo as graças por minha própria escolha, e
retendo
se não me engano aqueles que me servem, numa modéstia muito afastada da
ascensão e do poder dos primeiros ministros, embora cumulando-os de benefícios para si
próprios e para os seus.
1248
A este respeito, mais adiante em suas
Memórias
, Luís XIV diz ao filho, “não
estranheis se vos incito tão freqüentemente a trabalhar, a ver tudo, a escutar tudo, a
conhecer tudo”.
1249
Realmente, Luís XIV fazia questão de se manter informado de todos os
assuntos do reino, desde os mais importantes, como a política e a guerra, aos mais fúteis,
como as festas encantadas.
1250
Ora, o empenho para estar sempre muito bem informado de
1247
LAVISSE, op. cit., p. 123.
1248
LUÍS XIV, 1976, op.
cit., pp. 19
-
20.
1249
ibid., p. 49.
1250
Cf. LAVISSE, op. cit., p. 123. Segundo Lavisse, “para trabalhar, ele não se confinava no silêncio de um
gabinete. (...). Ele não tinha alma meditativa. O trabalho de Luís XIV era a atenção aos conselhos, às
audiências, que eram numerosas, às conversas privadas com os ministros ou com homens dos quais ele
apreciava os conselhos. Eram as ordens dadas de pé a tal secretário de Estado, que espreitava o ouvido do rei
e lhe expunha um assunto entre o levantar e a missa. Era a preocupação dos empreendimentos começados, o
medo de faltar o sucesso e a glória. A aplicação dada às diversões de cada dia e aos programas de festas
encantadas era a mesma que às grandes coisas de política (...). Era o olhar em constante atividade, que quer
ia
tudo ver, e via tudo, com efeito, e o esforço para guardar em toda circunstância o ar de majestade e de calma
soberana. Todo o mundo se agita em torno do rei. Os cortesãos estão em perpétua inquietude, os ministros
deixam perceber que eles penam. Quem via nesses primeiros tempos passar Colbert e Lionne poderia dizer o
306
tudo o que acontecia em seu reino era uma forma encontrada por Luís XIV para dominar e
assim manter o poder concentr
ado em suas mãos.
1251
A primeira decisão tomada por Luís XIV para concentrar a autoridade em sua
pessoa e não dividi-la com ninguém foi a de não ter primeiro-
ministro.
Aliás, isto era algo
que, segundo ele, em suas
Memórias
, deveria ser definitivamente abolido na França. Para
não concentrar o poder de decisão em um ministro, ele resolveu nomear então um
ministro para cada assunto de acordo com suas aptidões, para que todos executassem as
suas ordens. Outra medida consistiu em entrar sempre nos gabinetes dos ministros, de
maneira inesperada, para que compreendessem que ele poderia fazer isso em todos os
assuntos e a todo instante:
Quanto às pessoas que deveriam secundar o meu trabalho, resolvi primeiro que tudo não
arranjar primeiro-
ministro
; e crê-me, meu filho, e convosco todos os vossos sucessores,
essa designação deveria ficar abolida na França, para sempre, pois não nada mais
indigno do que ver de um lado todas as funções e do outro apenas o título de rei. Para tal
era necessário dividir a minha confiança e a execução das minhas ordens sem a dar por
inteiro a nenhum, aplicando essas diversas pessoas a diversos assuntos, segundo as suas
respectivas aptidões, o que é talvez o primeiro e maior talento dos príncipes. Também
resolvi outra coisa; pois para melhor reunir e conservar em mim toda a autoridade do
senhor, embora haja em toda a espécie de assuntos certos aspectos aos quais não nos
permitem ordinariamente descer as nossas ocupações e a nossa própria dignidade, tomei a
decisão
depois de ter escolhido os meus ministros de entrar algumas vezes nos seus
gabinetes, e quando menos o esperavam, para que assim compreendessem que poderia
fazer outro tanto noutros assuntos e em todas as horas.
1252
Luís XIV deixou que Mazarino fosse um ministro poderosíssimo até a sua morte,
em 9 de janeiro de 1661. Porém, durante o longo período em que este esteve doente, o
jovem rei já fazia planos de como organizaria o ministério. No dia 25 de janeiro, deste ano,
a notícia de que não haveria mais primeiro-ministro, de que o rei governaria pessoalmente,
caiu como uma bomba. Em 23 de março, sua mãe diz à Madame de Motteville que os
ministros Le Tellier, Lionne e Fouquet seriam destinados não para governar, mas para
servir o rei. Conforme o abade de Choisy, no dia 5 de maio, percebendo que muitos
acreditavam que Le Tellier seria o sucessor de Mazarino, Luís XIV o advertiu que estava
decidido a governar pessoalmente.
1253
que mais tarde escreve La Bruyère em relação a Colbert e Louvois: ‘não se os tem jamais visto sentados,
jamais fixos e parados’ (...) O jovem mestre vai de uma ocupação a outra, ‘sem pena, sem que seu espírito
seja jamais embaraçado nem tomado’, e ‘não se pode imaginar que esse seja o mesmo príncipe’”. ibid.
1251
Cf. ELIAS, 1993, op. cit., p. 168.
1252
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 46.
1253
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 14.
307
Outro ponto importante para os reis manterem a sua autoridade, segundo Luís XIV,
é ouvir os conselhos dos ministros, mas nas questões mais importante, são eles que devem
tomar as decisões. Conforme adverte Luís XIV ao filho, nas
Memórias
, é importante ouvir
os conselhos dos ministros, visto que, além da idade, estudo e experiência, eles têm
liberdade para recolher conhecimentos e esclarecimentos sobre os mais diversos assuntos
de pessoas de todas as classes, até das mais inferiores, das quais estão mais próximos.
Coisa que os reis encontram
-
se impossibilitados de fazê
-
lo, devido ao distanciamento entre
eles e o seu povo em conseqüência do alto cargo que ocupam. Mas, no momento de tomar
decisões importantes, são os reis que devem decidir, pois o ato de decidir cabe somente aos
soberanos:
A nossa posição afasta
-nos, de certo modo, do nosso povo, do qual estão mais próximos os
nossos ministros, sendo capazes, conseqüentemente, de ver mil particulares que nós
ignoramos e sobre as quais não obstante que tomar uma decisão e que tomar medidas.
Acrescentai a idade, o estudo, a experiência, a liberdade que m, muito maior do que a
nossa, para recolher conhecimentos e esclarecimentos de alguns inferiores, os quais as
tomam por sua vez de outros, e, assim, de grau em grau, até aos mais baixos. Mas, quando
em ocasiões importantes nos trouxeram todas as opiniões e razões opostas, tudo o que se
faz noutras partes em casos semelhantes, tudo o que se fez noutros tempos e se pode fazer
hoje, então, meu filho, somos nós que devemos decidir o que se deve fazer; e atrever
-
me
-
ia
a dizer-vos que essa escolha, se não nos falta senso e valor, ninguém a pode fazer melhor
do que nós; pois a decisão necessita espírito de senhor, e é incomparavelmente mais fácil
fazer o que se é do que imitar o que se não é.
1254
A este respeito, mais adiante, observa Luís XIV, em suas
Memórias
, “a França é
uma
monarquia. O rei representa a nação inteira, e cada particular representa apenas um
único indivíduo, em relação ao rei. Por conseqüência, todo o poder, toda a autoridade
reside nas mãos do rei, e apenas deve haver no reino a autoridade que ele estabelece.
Sendo
o dono, escutai, consultai os vossos conselheiros, mas decidi. Deus que vos fez rei vos dará
as luzes necessárias, desde que mostreis boas intenções”.
1255
De acordo com Luís XIV,
inicialmente, os ministros ficaram surpresos com a sua atitude, mas logo se conformaram
com a idéia de que, ao seu lado, seriam meros coadjuvantes; o papel que realmente cabe a
1254
LUÍS XIV, 1976, op. cit., pp. 21-22. Luís XIV prossegue, dizendo ao filho, “se entre as cartas
particulares que nos damos ao trabalho de escrever e aquelas que escrevem por nós os nossos secretários
mais hábeis, quase sempre se nota uma diferença, descobrindo-se nessas últimas um não sei que de menos
natural e uma falta de segurança na escrita, como quem, eternamente, teme fazer demasiado ou demasiado
pouco, não duvideis que nos assuntos de maior importância seja menor a diferença entre as nossas próprias
resoluções e as que deixamos tomar aos nossos ministros, os quais, quanto mais hábeis forem, mais receio e
dúvidas terão diante dos acontecimentos, e por se terem encarregado disso, algumas vezes os embaraçarão
por muito tempo dificuldades que a nós não deteriam nem um momento”. ibid., p
. 22.
1255
ibid., p. 41.
308
eles. Os ministros compreenderam que isto era o melhor, pois quando um rei deixa os
ministros tomarem as decisões, costumam culpá
-los dos erros e fracass
os também:
Assim que comecei a mostrar esta conduta aos meus ministros compreendi muito bem (...)
e soube logo por várias vias não suspeitas, que não apenas estavam satisfeitos, mas de certo
modo surpreendidos por me verem tomar partido tão facilmente nos assuntos mais difíceis,
sem aceitar precisamente as suas opiniões, nem parecer que me afastava delas por sistema,
e sendo freqüentemente a minha decisão aquela que mais tarde a experiência demonstrava
que tinha sido a melhor. E embora tivessem visto desd
e esse momento que seriam sempre a
meu lado aquilo que os ministros devem ser e nada mais, ficaram muito satisfeitos por um
emprego no qual, entre outras mil vantagens, encontravam completa segurança no
cumprimento do dever, não havendo nada mais perigoso para os que ocupam semelhantes
postos do que um rei que dorme normalmente para acordar de tempos a tempos, como que
sobressaltado, depois de ter perdido o seguimento dos assuntos, e nesta luz turva e confusa
torna responsáveis todas as pessoas dos fracassos, dos casos fortuitos ou dos erros de que
apenas ele se deveria acusar.
1256
No dia da morte de Mazarino, 9 de janeiro de 1661, Luís XIV informou ao príncipe
de Condé, ao duque de Longueville, ao chanceler, aos marechais e a outros principais
ministros e oficiais da França que tinha decidido de se encarregar pessoalmente do
governo, com a ajuda de um conselho que ele estabeleceria. Em seguida, o rei demitiu os
conselheiros, dizendo a eles que os chamaria quando sentisse necessidade de ouvir seus
ótimos consel
hos.
1257
Desse modo, Luís XIV inicia o seu reinado pessoal suprimindo o cargo de
primeiro
-ministro e estabelecendo um conselho muito restrito, o Alto Conselho. Neste,
participavam somente os homens de sua extrema confiança: como Le Tellier, Colbert,
Lionne e Séguier. Este ato revolucionário de Luís XIV causou espanto na corte.
1258
Esta
não acreditava que Luís XIV manteria por muito tempo tal decisão. Porém, a corte se
enganou completamente, pois ainda oito dias antes de sua morte, mais de meio século
depois, era
ele pessoalmente quem presidia o Conselho de Finanças.
1259
O esforço de Luís XIV para concentrar todo o poder nele e jamais dividi-lo com
ninguém se evidencia muito bem em sua luta contra as pretensões do Parlamento de Paris,
cuja composição era venal e here
ditária.
1260
1256
ibid., p. 23.
1257
Cf. ANDRÉ, op. cit., pp. 14-
15.
Luís XIV ordenou ao chanceler “de nada selar e ao secretário de Estado
de nada expedir sem sua ordem”. ibid., p. 15.
1258
Cf. ibid.
1259
Cf. ibid., p. 16.
1260
Segundo Idel Becker, o Parlamento de Paris “não era um parlamento do tipo inglês, ou moderno, mas
apenas uma corte de justiça formada por burgueses que compravam o cargo em leilão e o transmitiam aos
309
Um dos problemas encontrados por Luís XIV, no início de seu reinado pessoal, era
o poder que o Parlamento ainda teimava em exercer. Isto feria a sua soberania. Luís XIV
recorda, em suas
Memórias
, que o excesso de poder do Parlamento em sua menori
dade
causou problemas gravíssimos ao reino. Por isso, assim que assumiu pessoalmente o poder
na França, tratou de submetê
-
lo de vez a sua autoridade:
A posição demasiado elevada dos parlamentos tinha sido perigosa em todo o reino durante
a minha menoridade. Era necessário que os limitasse, menos pelo mal que tinham feito do
que por aquele que poderiam vir a fazer no futuro. A sua autoridade, na medida em que era
considerada em oposição a minha, por muito boas que fossem as suas intenções, produzia
efeitos
muito prejudiciais no Estado, pondo obstáculos a quanto poderia ser feito com
maior grandeza e utilidade. Era justo que essa utilidade decidisse sobre tudo o mais e
reduzisse todas as coisas à sua ordem legítima e natural, inclusivamente embora fosse
neces
sário tirar a esse corpo o que lhe tinha sido dado noutro tempo, como o pintor não tem
qualquer dificuldade em borrar ele próprio o que mais atrevido e belo tenha feito, sempre
que o considere maior do que era mister e em visível desproporção com o resto da sua
obra.
1261
Recordemos que, na segunda metade do século XV, sob Luís XI, (que reinou de
1461 a 1483) a monarquia da França ainda o era um Estado centralizado.
1262
Na esfera
jurídica, segundo Perry Anderson, “desenvolveu-se um conjunto de
parlements
locais
,
cortes provinciais, criadas pela monarquia com suprema autoridade judicial em suas
regiões”. Nesta época, os parlamentos cresceram rapidamente em mero e
importância.
1263
Na primeira metade do século seguinte, Francisco I (cujo reinado se estende de
1515 a 1547) e Henrique II (que reinou de 1547 a 1559) governaram um país próspero e
em desenvolvimento. Houve uma súbita diminuição da atividade representativa: os direitos
jurídicos da monarquia foram gradualmente ampliados por funcionários judiciais, os
maîtr
es de requêtes, e os parlamentos passaram a realizar obrigatoriamente sessões
especiais na presença dos monarcas, denominadas por lit de justice (com a Presença do
Trono). Contudo, na época de Francisco I e Henrique II, para se tornar leis, os editos reais
precisavam do registro formal por parte dos parlamentos.
1264
herdeiros”.
BECKER, Idel. Pequena história da civilização ocidental. edição. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1977, p. 394.
1261
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 28.
1262
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 87.
1263
ibid., p. 88. Conforme Perry Anderson, “entre a ascensão de Carlos VII e a morte de Luís XII, foram
fundados
parlements
em Toulouse, Grenoble,
Bordeaux, Dijon, Rouen e Aix”.
ibid.
1264
Cf. ibid., p. 89.
310
Quando da morte de Luís XIII, em 1643, Luís XIV não havia completado cinco
anos de idade. Sendo assim, a sua mãe, Ana d’Áustria, assumiu a regência. A Rainha-
mãe
conservou Mazarino, provavelmente seu amante, como o primeiro-ministro. Ao mesmo
tempo, objetivando se livrar do Conselho de Regência, ela obrigou o Parlamento a anular o
testamento de Luís XIII. Através desse ato, sem querer, a regente concedia um papel
político ao Parlamento.
1265
O ano de 16
48 assinalou o fim da Guerra dos Trinta Anos (1618
-
1648) e o início da
guerra franco-espanhola, a qual se estenderá até 1658. Em 1648, a França enfrentava uma
grave crise econômica: as más colheitas provocaram fome, epidemias, misérias, que
pioravam com a
guerra.
1266
Justamente no momento em que a França passava por essa
crise em sua economia, Mazarino decretou o aumento de impostos para manter a guerra
contra a Espanha. Houve uma fúria popular.
1267
O descontentamento era geral: os
camponeses, os trabalhadores urbanos, a burguesia e a nobreza não escondiam sua
insatisfação com a monarquia. A nobreza e a burguesia lançaram mão do
descontentamento dos camponeses e trabalhadores citadinos para incitá-los contra a
realeza. O objetivo da nobreza, por exemplo, era ter de volta o papel político e social
diminuídos consideravelmente com a evolução econômica e a centralização do poder.
1268
O Parlamento, objetivando aumentar o seu poder, utilizou-se desse aumento dos
impostos para jogar o povo contra a monarquia. Justamente no instante em que as
pretensões dos Habsburgos espanhóis ao império universal ameaçavam a própria existência
da França e que a corte encontrava-se sem dinheiro para a própria subsistência, o
Parlamento passou a protestar contra os impostos. O Parlamento tratou de convencer os
franceses de que os pesados impostos que pagavam eram injustos, pois se destinavam
exclusivamente para aumentar a glória do monarca e sustentar o luxo da corte.
1269
Talvez as antigas aspirações da alta nobreza não teriam promovido uma revolta tão
ameaçadora ao poder real, conforme constata Corvisier, “se este não tivesse sido traído
pela nobreza togada dirigida pelas cortes soberanas: parlamentos, cortes de socorros,
1265
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 196.
1266
Cf. ibid., p. 197; Cf. ANDERSON, op. cit., p. 98.
1267
Cf. ibid.
1268
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 197.
1269
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 194. Segundo Mousnier, “os membros das cortes soberanas e, em
particular, dos parlamentos julgavam-se arruinados pela criação de cargos que diminuíam o valor e a
importância de suas funções, pelos aumentos das gajas que obrigavam a empréstimos onerosos. Eram lesados
pelos aumentos de impostos como rendeiros do solo e pelos impostos indiretos como contribuintes.
Recusavam
-se, pois, a registrar os editos fiscais, paralisavam em plena guerra a ação da monarquia”. ibid., p.
192.
311
câmaras de contas, os ‘Grandes togados’ que aliavam a competência e uma fo
rtuna
acrescida pelo aumento do preço de seus cargos”.
1270
A Corte precisava das cortes
soberanas para registrar os editos reais. O Parlamento havia se fortalecido quando, em
1643, a rainha reconheceu a ele o direito de cassar o testamento de Luís XIII.
1271
A antiga reivindicação do Parlamento, ter um papel constitucional de aprovar ou
rejeitar os editos reais, se fortaleceu na década de 1640 devido também aos acontecimentos
políticos na Inglaterra, no contexto da Revolução Inglesa. Esta pretensão do Parlamento
vinha de há muito tempo. Ela eclodiu de forma particularmente dura na primeira década do
reinado de Luís XIV, devido ao enfraquecimento da monarquia no período de menoridade
e pelo fato do primeiro-
ministro, Mazarino, ser um estrangeiro.
1272
Ao solicitar sacrifícios financeiros aos oficiais, a Corte os descontentara.
1273
O
Parlement
de Paris liderou a revolta dos
officiers
contra o sistema de
intendants
.
1274
O
Parlamento forneceu aos oficiais argumentos constitucionais e um programa no qual
pretendia o retorno de um passado idealizado: a supressão do ministério e dos intendentes
representantes do rei nas províncias, os quais foram instituídos por Richelieu no reinado
de Luís XIII que haviam usurpado a autoridade dos oficiais. Os parlamentos deviam ser
consultados
sobre os assuntos públicos, seria a reconstituição da antiga Cúria
Regis
. Desse
modo, o Parlamento deu um caráter de revolução reacionária à Fronda.
1275
O Parlamento lutava contra o processo de centralização da monarquia. Enquanto
esta se esforçava para se tornar absoluta, aquele buscava uma monarquia moderada pela
aristocracia. O Parlamento pretendia aumentar o seu poder de decisão em detrimento da
monarquia.
1276
Na verdade, a batalha do Parlamento contra o processo de centralização
1270
CORVISIER, op. cit., p. 197.
1271
Cf. ibid.
1272
Cf. SHENNAN, op
. cit., pp. 20
-
21.
1273
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 197.
1274
Cf. ANDERSON, op. cit., p. 98.
1275
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 197.
1276
Cf. MOUSNIER, 1973, op. cit., p. 192. De acordo com Mousnier, “o rei não está seguro nem sequer de
seus funcionários. (...) O Parlamento de Paris considerava-se herdeiro da antiga Corte do Rei. Desejava
ocupar
-se espontaneamente de assuntos políticos, convocar, por sua exclusiva autoridade, príncipes de
sangue, duques e pares, oficiais da coroa, para deliberar sobre o Estado, como o fez, inutilmente, em 1615 e
1648. Isto significava reconstituir a antiga Corte do Rei, a Assembléia dos vassalos; estabelecer em princípio
que podiam reunir-se por vontade própria e tomar decisões válidas; era realizar uma monarquia moderada
pela aristocracia, quando o rei pretendia ser absoluto e popular. Em política e legislação, o Parlamento, Corte
de Justiça, aspirava a erigir-se em poder independente do rei, atuar por sua própria iniciativa, deliberar à
parte, impor suas resoluções. Queria reunir os demais funcionários do rei para tomar conhecimento dos
negócios de Estado (13 de maio de 1648, decreto de União). O Parlamento esforçava-se por examinar de
novo, a sós, sem o rei, os editos verificados diante do soberano, que assistia a essas sessões que se ch
amavam
lit de justice (com a Presença do Trono), que reconstituíam a velha Corte do Rei. O Parlamento modificava
312
consistia numa forte resistência conservadora, com o fito de manter seus privilégios
tradicionais. A ação do Parlamento buscava somente preservar as posições alcançadas por
seus membros e aliados, bem como os poderes locais adquiridos por eles. O Parlamento
não aceitava que os antigos oficiais perdessem para os intendentes as suas funções de
recolher a
taille
e de julgar e que os parlamentos fossem submetidos à autoridade do
Conselho.
1277
Em maio de 1648, obedecendo a uma convocação do Parlamento de Paris, as cortes
soberanas reuniram
-
se
.
1278
Nesta reunião, foi votada pelas cortes soberanas uma declaração
contendo 27 artigos. Neles, condenava-se o fisco e afirmavam-se as pretensões dos
oficiais. A principal solicitação dos membros das cortes soberanas era a revogação dos
intendentes. Por meio da declaração real de 31 de julho, Mazarino concordou com quase
todas as reivindicações das cortes soberanas.
1279
Em janeiro de 1649, o Parlamento apoderou-se do governo e organizou a milícia
burguesa. Surgem panfletos, denominados de mazarinadas, incitando a população contra o
primeiro
-ministro. Inicia-se a Fronda da nobreza, liderada pelo príncipe de Condé, que
organiza a revolta nas províncias. Em fevereiro, Carlos I é executado na Inglaterra, no
último ano da Revolução Inglesa de 1640. Na França, os panfletos agitavam idéias
revolucionárias, pregando o regicídio. Porém, temendo a reação popular, em 11 de março o
Parlamento negocia com Mazarino. Com exceção da reunião das cortes soberanas,
Mazarino mantém as concessões feitas na declaração de 31 de julho. Assim, termina a
ou revogava por seus arestos os editos ou artigos dos editos verificados na Presença do Trono. admitia a
Presença do Trono sob a forma de uma visita do rei para tomar conselho sobre uma questão de política geral,
pois declarava que a presença do rei violava a liberdade dos sufrágios. Destarte, pretendia deliberar, votar
editos e ordenanças, sozinhos, sem o rei. Convocação espontânea dos representantes do reino, conhecimento
de todos os assuntos, leis votadas sem o soberano, tudo isto significava que se erigia uma assembléia distinta
do rei, com poder legislativo e controle do executivo, ou seja, um esboço de separação imperfeita dos
poderes. O
Parlamento encaminhava
-
se para uma monarquia moderada”. ibid.
1277
Cf. ibid., p. 193. Conforme Mousnier, “a ação do Parlamento visa apenas proteger as posições
conquistadas por seus membros, parentes e aliados destes, por seus iguais, as situações adquiridas
pelos
possuidores de funções e feudo, de poderes provinciais e locais, contra outra revolução, centralizadora e, em
certa medida, igualitária, da monarquia absoluta. O Parlamento luta contra a tendência de substituir o oficial
pelo comissário, as cortes soberanas pelo Conselho, os diferentes corpos de justiça e finanças pelo intendente.
Recusa só ao Conselho, na ausência do rei, o direito de agir como a primeira companhia do reino e de cassar
qualquer decisão dos Parlamentos contra a autoridade real e a utilidade pública. Reclama a supressão dos
intendentes que não se limitam a instruir os assuntos para remetê-los aos juízes ordinários, mas julgam
sozinhos do mérito da questão por comissão do Conselho e privam de suas funções, Presidiais, Conselhos de
bailia
dos e senescalias, prebostes, intendentes que exercem os postos de oficiais das finanças, tesoureiros de
França, Eleitos e outros. O Parlamento exige que os oficiais sejam reintegrados no exercício dos seus cargos,
que não sejam desapossados de suas funções por simples ordem régia, mas tão somente por processo de
acordo com as ordenanças”. ibid.
1278
Cf. CORVISIER, op. cit., p. 197. Na França, as cortes soberanas eram constituídas por “parlamentos,
cortes de socorros, câmara de contas, os ‘Grandes togados’”. i
bid.
1279
Cf. ibid., p. 198.
313
Fronda parlamentar. Mas continuou a Fronda da nobreza. Em 1651, após o exército real ter
derrotado movimentos da nobreza, temendo que Mazarino restabelecesse os intendentes, o
Parlamento se uniu à nobreza, é a união das duas Frondas. Mas, no verão deste ano, as
duas Frondas se desuniram novamente. O Parlamento negocia com a rainha. Já a Fronda da
nobreza só será definitivamente vencida por Mazarino em 1653.
1280
O Parlamento foi de fato submetido à realeza depois da sessão de 13 de abril de
1655, na qual Luís XIV o obrigou a obedecê-
lo.
1281
Nesse dia, o jovem rei tinha apenas
dezessete anos. Sabendo que o Parlamento de Paris pretendia envolver-se nos assuntos
políticos, ele foi à sala de reunião, em traje de caça, e ordenou aos parlamentares
li
mitarem
-se apenas aos assuntos judiciais.
1282
Conforme Pierre Verlet, no dia 13 de abril
de 1655, em Vincennes, Luís XIV é informado “que o Parlamento remete em questão os
editos registrados. Ele se precipita a Paris. (...) O Parlamento pasmo o surgir e
m
roupa vermelha, bota, brandir o chicote de caça parece ter sido acrescentado para a beleza
do quadro. O rei fala com um tom que jamais se ouviu”.
1283
Dirigindo-se aos membros do
Parlamento, diz Luís XIV, “cada um sabe quanto vossas reuniões incitaram pertur
bações
em meu Estado e quão perigosos efeitos elas produziram. Eu tenho informação de que vós
pretendíeis ainda continuá
-
las sob pretexto de deliberar sobre os editos que já foram lidos e
publicados em minha presença. Eu estou vindo aqui expressamente para defender a
continuidade deles e a vós, Monsieur le Président, de não os admitir nem conceder, por
mais que assim insistam os inquéritos”.
1284
Logo no início do reinado pessoal de Luís XIV,
os Grandes togados se queixavam de o jovem rei tratá-los de modo bem diferente daquele
com que os seus predecessores os tratavam.
1285
Eles tinham razão, pois Luís XIV não fazia
questão de esconder a sua desconfiança em relação aos membros do Parlamento.
1286
Em 1661, Luís XIV assumiu o poder pessoalmente reunindo em si toda a
auto
ridade. Todas as deliberações do reino eram presididas pessoalmente por ele em seu
Alto Conselho. Abaixo deste órgão máximo do poder encontravam-se os intendentes, que
foram investidos pelo rei de autoridade suprema para representá-lo. Luís XIV atribuiu ao
s
intendentes novos poderes para coletar e supervisionar a
taille
, uma função de extrema
1280
Cf. ibid.
1281
Cf. ibid., p. 199.
1282
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 15.
1283
VERLET, op. cit., p. 135.
1284
VERLET, op. cit., p. 135.
1285
Cf. ANDRÉ, op. cit., p. 15.
1286
De acordo com Shennan, “o rei nunca confiou nos juízes do supremo tribunal o
Parlament
”.
SHENNAN, op. cit., p. 21.
314
importância, que antes pertencia aos
officiers
.
1287
Conforme Perry Anderson, “os
Parlements
foram silenciados e a sua exigência de apresentar objeções aos editos reais
an
tes do registro foi anulada (1673). As outras cortes soberanas foram reduzidas à
obediência”.
1288
A característica sagrada da autoridade real, incansavelmente abordada por Bossuet,
também é defendida por Luís XIV visando reforçar o seu poder. Ele acreditava na doutrina
paulina, tão professada por Bossuet, segundo a qual os reis eram ministros de Deus na terra
e que a sua autoridade vinha Dele. Nas
Memórias
, Luís XIV diz ao filho, “ocupamos, por
assim dizer, o posto de Deus (...) somos partícipes (...) da sua a
utoridade”.
1289
De onde vinha a crença de Luís XIV de que os reis eram pessoas sagradas, os
representantes de Deus na terra? Da sua sagração. De acordo com Pierre Verlet, no dia 7
de junho de 1654, o jovem Luís XIV é sagrado na igreja de Reims. A partir daí, ele está
“definitivamente situado sobre a comunidade dos humanos. O ungido do Senhor, revestido
de uma dignidade sacerdotal representa Deus em seu reino. É a Deus somente que ele deve
dar contas de um poder ao qual nenhum francês não saberia subtrair sem crime. Luís XIV
tem plena consciência disso. Ele a terá até seu último alento”.
1290
Em Luís XIV, qual era o
sinal concreto de que a sua autoridade vinha de Deus? Era o poder de curar as escrófulas.
Conforme constata Shennan, “o sinal evidente da sua autoridade de origem divina era o
poder milagroso de curar, que o rei exercia, cerimoniosamente, nos grandes dias festivos,
tocando pessoas afligidas com ‘o mal do rei’ ou escrófula”.
1291
De forma semelhante a
Bossuet, Luís XIV também chegava ao extremo de divinizar a realeza. Nas
Memórias
,
segundo ele, os reis estavam “exercendo nesse mundo uma função completamente
divina”.
1292
Apesar de não fazer nenhuma referência explícita, em suas
Memória
s, certamente
Luís XIV comungava da idéia paulina defendida por Bossuet de que, por serem os reis os
representantes de Deus na terra, pessoas sagradas, os súditos tinham o dever de obedecê-
los e jamais se revoltar contra eles; quem atentasse contra um rei estabelecido por Deus
1287
Cf. ANDERSON, op. cit., pp. 99
-
100.
1288
ibid., p. 99.
1289
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 82.
1290
VERLET, op. cit., p. 134. A cerimônia da sagração iniciou-se com o rei francês Pepino, o Breve, no
século VIII. Cf. BLOCH, op. cit., p. 77.
1291
SHENNAN, op. cit., p. 9. A doença conhecida como escrófula era “uma inflamação crônica dos gânglios
linfáticos do pescoço, geralmente de origem tuberculosa, que se manifestava na forma de tumores na pele”.
ibid. Cf. BLOCH, op. cit., p. 51. A cura das escrófulas foi uma cerimônia inaugurada no século XI, pelo rei
francês Roberto II, o Pio. Cf. ibid., pp. 58
-
61.
1292
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 61.
315
estaria cometendo um crime de lesa-majestade. Afinal, isto ficou explícito durante a
cerimônia de sua sagração.
Objetivando fortalecer o seu poder, Luís XIV recorre também ao caráter absoluto
da autoridade real, o qual Bossuet defendeu imensamente. Assim como Bossuet, Luís XIV
afirma, nas
Memórias
, que é para o
bem do Estado que todo o poder é concentrado em uma
pessoa. Do contrário, o reino seria governado por mil senhores acarretando o fim da paz
pública. Luís XIV também defende a idéia de que o príncipe deve ser implacável,
sobretudo com os grandes; que estes são os mais ameaçadores a sua autoridade. Para
Luís XIV, o rei deve ser severo na exigência do cumprimento de suas ordens. Se o rei
desiste do que mandou, conseqüentemente diminui a sua autoridade como também a
tranqüilidade pública. Os súditos que usufruem de algum poder, devido aos altos cargos
que ocupam, são os primeiros a conhecerem a fraqueza do rei e a querer abusar dela. A
indulgência do rei em relação aos grandes causa uma grande desordem. As classes mais
inferiores é que sofrerão as conseqüências, pois, ao invés de estarem submetidas a um
único governante legítimo, serão oprimidas por mil pequenos tiranos:
A maior bondade que poderia ter para com o meu povo consiste num pouco de severidade;
pois uma disposição contrária produzir-
lhe
-ia, tanto por si própria como pelas suas
conseqüências, uma infinidade de males. Porque assim que um rei desiste do que mandou,
a autoridade diminui e com ela a tranqüilidade. Os que vêem o príncipe mais de perto são
os primeiros a dar-se conta da sua debilidade, e os primeiros também a dela abusarem;
depois, os que estão na segunda categoria, e assim sucessivamente com todos os restantes
que gozam de algum poder. A conseqüência é que tudo vem a recair na parte mais baixa,
oprimida assim por mil e mil pequenos tiranos, em lugar de estar sujeita a um único rei
legítimo, cuja indulgência, no entanto, causou toda essa desordem.
1293
Quando aqueles que ocupavam cargos importantes tentavam abusar, deixando de
obedecer imediatamente às ordens de Luís XIV, ele lhes lembrava que o alto posto que
ocupavam não os diferenciavam dos demais súditos. Pelo contrário, eles tinham que dar o
exemplo aos seus inferiores. Isto evidencia-se em sua Carta ao Marquês du Quesne, Vice-
Almirante da Armada, redigida em 13 de junho de 1682. Nesta carta, Luís XIV reprime
severamente o Vice-Almirante por não ter regressado imediatamente a Paris como ele
havia ordenado, deixando claro que não tolerará que o Vice-Almirante desobedeça as suas
ordens novamente:
1293
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 41.
316
Soube pela carta que me haveis escrito de Ténédos, quanto se passou na vossa viagem
depois da que recebi de vós a vinte de março, e vi todas as razões que pretendeis ter para
justificar tão grande atraso na execução das ordens que vos tinha dado para o vosso
regresso. Sobre o que me apresso a repetir
-
vos quanto vos fiz saber a este respeito: como as
ordens que dou são sempre dadas com perfeito conhecimento, desejo que se executem sem
réplica e sem ser tomada a liberdade de as interpretar, e nessas ocasiões nunca vos deveis
valer da confiança que tenho na vossa capacidade e experiência para tomardes nesse ponto
mais liberdade que qualquer outro oficial, dado que deveis dar o exemplo aos que servem
às vossas ordens sobre obediência imediata e sem réplica às que lhes dais para observância
rigorosa no serv
iço.
1294
Assim como Bossuet, Luís XIV professava, nas
Memórias
, a idéia segundo a qual
os reis deviam ser submissos a Deus, que a sua autoridade vinha Dele.
1295
Mas aqui na
terra o seu poder era absoluto, ou seja, indivisível. Por ser absoluto, o poder real não pode
ser restringido por nenhum outro poder terreno. Deste modo, os reis não precisavam
prestar contas de seus atos a ninguém. Em um trecho das
Memórias
, Luís XIV afirma que
“os reis são senhores absolutos”
1296
, em outro, ele observa que o rei “não deve
dar contas a
ninguém de seus atos”.
1297
Isto significa que, igualmente a Bossuet, Luís XIV acredita que
os súditos não têm o direito de questionar as decisões dos príncipes; o papel dos súditos
consiste somente em obedecê-los. Os príncipes devem prestar contas de seus atos somente
a Deus, o único que pode castigá
-
los.
Em sua menoridade, a soberania de Luís XIV foi extremamente ameaçada pelos
Grandes que ainda detinham algum poder na França. Por isso, logo que assumiu
pessoalmente o poder, mediante muito trabalho e constante vigilância, o jovem rei tratou
de concentrar toda a autoridade em suas mãos. Por meio de atos concretos, Luís XIV
mostrou que o seu poder era absoluto, portanto indivisível. E isto ele fez de diversas
maneiras: suprimiu o cargo de primeiro-ministro; decidia sozinho, sem ouvir os conselhos
dos ministros, nos assuntos mais importantes; aboliu de vez a pretensão do Parlamento ao
direito de aprovar ou não os editos reais; fez com que todos os súditos, sobretudo aqueles
que ocupavam cargos importantes, obedecessem as suas ordens prontamente, sem
questioná
-
lo.
Deste modo, Luís XIV buscou eliminar qualquer possibilidade de os grandes se
voltarem novamente contra o seu poder por meio de outra guerra civil. Mostrando ao filho
todas as medidas eficazes
que tomou para concentrar em si todo o poder, Luís XIV acredita
1294
LUÍS XIV, “
Carta ao Marquês du Quesne
, 13 de junho de 1682
”, in LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 102.
1295
LUÍS XIV,
1976, op. cit.,
p. 31.
1296
ibid.,
p. 71.
1297
ibid.,
p. 22.
317
estar deixando a ele lições preciosas para que ele jamais passe pelas atribulações pelas
quais passou durante a Fronda. Assim como Bossuet, Luís XIV acredita que a paz em um
reino somente é p
ossível quando todo o poder está concentrado em um único governante, o
príncipe.
O debate sobre a soberania absoluta do monarca ungido de direito divino não se
restringia apenas à França e à consolidação do poder pessoal de Luís XIV. No império
português a questão continuava atual, por ao menos duas razões: o restabelecimento da
independência portuguesa era recente (1640) e o “terremoto” político do regicídio na
Inglaterra também.
Antônio Vieira em prol da soberania real
No livro anteprimeiro da
História
do Futuro, escrito de 1664 a 1665, e em seu
Sermão da dominga vigésima segunda post pentecosten, pronunciado em 1649, Antônio
Vieira também advogou a favor da soberania real.
Assim como Bossuet, Antônio Vieira professa a doutrina defendida por São Paulo,
no capítulo XIII de sua Epístola aos Romanos, segundo a qual todos os governantes são
estabelecidos por Deus. No livro anteprimeiro da História do Futuro, Antônio Vieira
afirma que Deus o império aos reis.
1298
Segundo ele, os príncipes legítimos são
chamad
os e destinados por Deus ao império.
1299
É Deus quem funda os reinos. Deus
fundou o reino de Portugal.
1300
Conforme seus próprios termos, Portugal com
singularidade única entre todos os reinos do mundo foi reino dado, feito e levantado por
Deus”.
1301
E ainda: “Cri
sto por sua própria pessoa fundou o reino de Portugal”.
1302
Porém, ao discorrer sobre a origem da sociedade política, quanto se trata de saber
de onde vem o poder dos reis no momento do estabelecimento do governo, ao contrário de
Bossuet, que defende a idéia de que o poder dos reis vem diretamente de Deus, Antônio
Vieira comunga da idéia tradicional da Igreja, defendida por São Tomás de Aquino,
segundo a qual o poder vem de Deus aos homens e estes o transmitem ao governante. No
livro segundo da
História do Fut
uro
, concebido provavelmente entre 1649 e 1669, Antônio
Vieira deixa claro que, em seu entendimento, entre os tulos necessários para ser
1298
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., p. 146.
1299
Cf. ibid., p. 208.
1300
Cf. ibid., pp. 216
-
217.
1301
ibid., p. 216.
1302
ibid., p. 217.
318
considerado um rei legítimo encontra-se o do consentimento e aceitação de todos os
homens.
1303
Segundo Antônio Vieira, “este título é o mais natural e jurídico entre os
homens, em cujas comunidades, quando querem viver juntos e politicamente, pôs Deus,
como autor da natureza, o poder e jurisdição suprema de eleger e nomear príncipes. Assim
o tem a comum sentença de todos os juristas e teólogos, e o alcançaram e ensinaram antes
deles, por lume natural, Aristóteles (...) e Platão”.
1304
Outro ponto em comum entre Bossuet e Antônio Vieira é a defesa da doutrina
paulina, segundo a qual os reis são a imagem de Deus na terra, portanto, os súditos lhes
devem total obediência. Desobedecê-los será o mesmo que desobedecer ao próprio Deus;
incorrendo tal ato em um crime.
Primeiramente, da mesma forma que Bossuet, Antônio Vieira professa a idéia
aceita por todos os cristãos de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. No
Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda, pronunciado em
1640, Antônio Vieira diz, “muito honrastes, Senhor, ao homem na criação do mundo,
formando
-o com vossas próprias mãos (...) imprimindo nele o caráter de vossa imagem e
semelhança”.
1305
Em seguida, igualmente a Bossuet, Antônio Vieira empenha-se em salientar o
caráter sagrado da realeza, defendido por São Paulo, com o objetivo de mostrar que os reis
são imagens de Deus na terra, são seus lugares-tenentes. Em seu Sermão da dominga
vigésima segunda post pentecosten, pronunciado em 1649, conforme Antônio Vieira, Deus
fez o homem a sua imagem e semelhança para que governasse o mundo: “façamos o
homem (disse Deus) à nossa imagem e semelhança,
para que tenha a presidência e governo
do mundo”.
1306
Como governador do mundo, Adão era lugar-tenente de Deus “enquanto
senhor do mundo com o governo de todos os animais, era lugar-tenente do mesmo Deus, e
imagem política sua”.
1307
O caráter sagrado da realeza é tal para Antônio Vieira, que, de
forma semelhante a Bossuet, ele chega a ponto de divinizá-la. Conforme Antônio Vieira,
“os reis são os deuses da terra”.
1308
1303
Cf. ibid., pp. 406
-
408.
1304
ibid., pp. 408
-
409.
1305
VIEIRA, Antônio. “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda.”. In:
CIDADE, Hernani.
Padre Antônio Vieira
. Vol. II. Portugal: Agência Geral das Colônias, 1940, p. 179.
1306
VIEIRA, Antônio. “Sermão da dominga vigésima segunda post pentecosten”. In: CIDADE, Hernani.
Padre Antônio Vieira
. Vol. II. Portugal: Agência Geral das Colônias, 1940, p. 265.
1307
ibid., p. 285.
1308
ibid., p. 283.
319
Desse modo, assim como Bossuet, ainda sustentado na doutrina paulina, Antônio
Vieira adverte que os súditos devem obediência aos reis, resistir-lhes é o mesmo que
resistir ao próprio Deus. De acordo com Antônio Vieira, no Sermão da dominga vigésima
segunda
post pentecosten, os súditos devem obedecer e reverenciar os governantes
escolhidos pelo rei para
representá
-lo; que eles são imagens que o representam.
1309
Isto
mostra que, em sua concepção, os reis representam a imagem de Deus na terra; por isso, os
súditos devem a eles a mesma obediência que devem a Deus.
1310
No
Sermão da dominga vigésima segunda
post
pentecosten
, observa Antônio
Vieira que muitas vezes Deus concede aos homens reis para governá
-
los. Porém, devido os
eleitos serem iguais em condição aos de sua pátria, a eleição deles não é bem aceita pela
maioria:
Não terra mais dificultosa de governar que a pátria, nem mando mais sofrido, nem
mais mal obedecido que o dos iguais. Vivendo os hebreus governados por Deus (...) foram
eles tão mal aconselhados que quiseram ser governados por homens, como as outra nações
(...). Os primeiros governadores, pois, que Deus lhes concedeu com poder e soberania real
foram Saul e Davi: Saul que andava buscando as jumentas que se deram a seu pai, e Davi
que andava guardando as ovelhas do seu. Não fez Deus diferença das qualidades, porque
todos eram filhos de Abraão; nem a fez também dos ofícios, porque todos naquele tempo
viviam de suas lavouras e dos seus pastos. teve atenção às pessoas e aos talentos;
porque assim Saul como Davi debaixo do seu saial eram homens de tão grandes espíritos,
como logo mostraram as suas obras. Mas quais foram os aplausos com que foi recebida
naquela república (...) a eleição destes dois governos? A terra era a pátria e os eleitos
eram iguais (como dizia) e não bastou que um fosse Saul e o outro Davi, para serem bem
aceitos. Alegrar
am
-se os parentes, murmuraram os estranhos, e os demais (que eram quase
todos) ficaram descontentes.
1311
Conforme Antônio Vieira, nesse mesmo sermão, a inveja e a ambição levam à
revolta daqueles que não aceitam que seus iguais e não eles foram eleitos para
governantes.
Porém, Deus castiga severamente os revoltosos, mostrando com isso que não aceita a
insubordinação dos súditos em relação aos governantes estabelecidos por Ele. Antônio
Vieira busca mostrar o quanto é melhor para um povo ser governado por alguém de sua
pátria do que por um estrangeiro:
É tal a maldade da condição humana e vício tão próprio da pátria, que por serem naturais,
domésticas e suas as mesmas imagens, em vez de conciliarem maior veneração, obediência
e respeito, degeneram em desprezo, desobediência e rebeldia. Assim lhe sucedeu a Saul e a
1309
Cf. ibid., pp. 287, 289, 293.
1310
Cf. ibid., p. 289.
1311
VIEIRA, in CIDADE, op. cit., p
p. 263
-
264.
320
Davi, sendo ambos eleitos por Deus e os mais dignos do governo da sua pátria. Uns
obedeceram, outros se rebelaram, e em alguns durou a rebeldia não menos que sete anos
inteiros, até que a experiência do seu erro os sujeitou à razão. E se buscarmos as raízes a
este vício, acharemos que todo ele nasce da igualdade das pessoas, presumindo cada um
que a ele se devia a eleição do lugar e a preferência. A eleição do sumo sacerdócio na
pessoa de Arão, foi tão mal recebida de muitos, que Datan, Abiron e Colevantaram tal
tumulto no povo, que para Deus os sossegar e castigar os rebeldes se abriu subitamente a
terra, e vivos foram sepultados no inferno com todas suas casas e famílias, e abrasados com
fogo no céu mais que catorze mil homens que seguiram a mesma rebelião. E por que a
seguiram?
Porque muitos deles eram iguais e parentes de Arão, e não sofriam que lhe
fosse preferido. Mas tanto sente Deus e tão severamente castiga a cegueira de semelhantes
ambiçõe
s, tendo dado por lei ao mesmo povo, que quando em algum tempo houvesse de
eleger quem os governasse a todos, não fossem outrem, senão de seus irmãos, e de nenhum
modo homem estranho (...). Finalmente, se, como diz Cristo Senhor nosso, o bom pastor é
aquel
e que conhece as suas ovelhas e as suas ovelhas o conhecem a ele (...); como as
poderá governar e encaminhar bem o estranho, (e mais se for mercenário) que nem ele as
conhece a elas, nem elas a ele?
1312
Antônio Vieira pregou este sermão quando o Maranhão foi dividido em dois
governos, os quais foram dados por D. João IV a pessoas particulares residentes neste
Estado. Segundo o próprio Antônio Vieira, esta situação poderia causar inconvenientes: os
maranhenses poderiam não querer obedecer e reverenciar àqueles que eram iguais a
eles.
1313
Como, para Antônio Vieira, “a obrigação dos pregadores, a quem a Escritura
chama anjos da paz, é serem ministros da união e da concórdia”, um dos propósitos de seu
sermão é mostrar qual é a obrigação dos súditos maranhenses em relação a esses
governantes.
1314
Não é difícil perceber que, no momento em que pronuncia o Sermão da dominga
vigésima segunda post pentecosten, Antônio Vieira tem em mente o caso de Portugal,
como ele deixa claro no livro anteprimeiro da História do Futuro, redigido quinze anos
depois. Neste livro, Antônio Vieira mostra a sua indignação ao fato de logo após a
insurreição de 1640, por meio da qual a coroa de Portugal foi recuperada aos portugueses,
ao invés de se alegrar por ter alguém de sua pátria para governá-la, grande parte da alta
nobreza portuguesa, tanto residente na Espanha como em Portugal, passou para o lado de
Filipe IV da Espanha, que reinara em Portugal como Filipe III, conspirando contra o novo
rei, D. João IV.
1315
Houve duas tentativas de regicídio frustradas. Referindo-se a esses
fatos, observa Antônio Vieira, “maquinou-se contra a vida de El-Rei D. João por tantos
1312
ibid., 289
-
290.
1313
Cf. ibid., pp. 263
-
264.
1314
Cf. VIEIRA, in CIDADE, op. cit., p. 264.
1315
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 182
-
183.
321
meios e instrumentos (e alguns deles, sobre indecentes, sacrílegos)”.
1316
É claro que, no
entendimento de Antônio Vieira, o que levou a alta nobreza portuguesa a tal
comportamento foi a inveja e a ambição. Parte considerável da alta nobreza não aceitava se
submeter ao poder daquele que, antes da cerimônia de coroação realizada em 1 de
dezembro de 1640, era apenas o duque de Bragança. Assim como no Sermão da dominga
vigésima segunda post pentecosten, no livro anteprimeiro da História do Futuro, Antônio
Vieira faz questão de mostrar que os súditos que se engajam em revoltas contra seus reis
são castigados terrivelmente por Aquele que os estabele
ceu.
1317
Nessas obras, Antônio
Vieira mostra que não entendia como é que parte da nobreza portuguesa preferia ser
governada por Filipe IV, um rei estrangeiro, a aceitar o seu compatriota, D. João IV, como
rei.
Ao dizer que a inveja e a ambição movem os homens a se revoltarem contra seus
governantes, Antônio Vieira deixa claro qual é a sua concepção a respeito da natureza
humana. A visão pessimista do homem, defendida por Santo Agostinho e aceita por
Bossuet, também era compartilhada por Antônio Vieira. No livro anteprimeiro da
História
do Futuro, observa Antônio Vieira, “a natureza humana sempre soberba, rebelde e
ingrata”.
1318
Acreditamos que, assim como em Bossuet, foram a teologia agostiniana e as
revoltas dos súditos contra D. João IV que contribuíram para esta visão pessimista do
homem em Antônio Vieira.
Como vimos, no livro anteprimeiro da História do Futuro, Antônio Vieira está se
referindo às revoltas da alta nobreza portuguesa empreendidas contra D. João IV no início
da década de 1640. Ele também tem essas revoltas em mente quando, em 1649, pronuncia
o Sermão da dominga vigésima segunda post pentecosten. Ora, não devemos nos esquecer
que a Revolução Inglesa de 1640 somente foi concluída em 1649, com a decapitação de
Carlos I. Este evento abalou o mundo. Assim como Bossuet, Antônio Vieira certamente
ficou consternado diante da audácia dos revoltosos ingleses que puseram abaixo a realeza e
tomaram o poder na Inglaterra.
A instabilidade do trono; a coroa portuguesa constantemente ameaçada por Filipe
IV, inconformado com a perda sofrida; conspirações internas da alta nobreza portuguesa
aliada a esse rei espanhol contra D. João IV; duas tentativas de regicídio; os
acontecimentos na Inglaterra. Tudo isso motiva Antônio Vieira a empenhar
-
se na defesa da
1316
ibid., p. 181.
1317
Cf. ibid., p. 184.
1318
VIEIRA, 2005, op. cit., p. 145.
322
soberania
deste rei. Ao afirmar que os reis são estabelecidos por Deus, são a imagem de
Deus na terra, são deuses e, por isso, os súditos devem obedecê-los, do contrário serão
duramente castigados por Deus, Antônio Vieira busca vedar qualquer forma de resistência
da
alta nobreza portuguesa a D. João IV. Assim, ele acredita estar contribuindo para o
fortalecimento da autoridade deste rei e, simultaneamente, ao estabelecimento da ordem e
da paz em Portugal.
Bossuet, Antônio Vieira e Luís XIV, dois teólogos políticos e um rei. Todos em
batalha a favor da soberania real. As lembranças dos perigos que o poder real havia
enfrentado durante as guerras civis os levavam a afirmar que os governantes foram
estabelecidos por Deus. Por isso, eram seus representantes na terra, o que os tornavam
pessoas sagradas e até mesmo divinas. Os súditos deviam obedecer-lhes e jamais se
revoltar contra eles, pois isso era um sacrilégio. Deus castigava aqueles que se insurgiam
contra os reis que Ele havia estabelecido. Os súditos não tinham nenhum direito de coagir
os príncipes que não agiam corretamente. Somente Deus, que estava acima deles, podia
julgá
-los e castigá-los por seus maus procedimentos. A paz em um reino era possível
quando todo o poder encontrava
-se na pessoa do príncipe.
323
CAPÍTULO X
BOSSUET EM CAMPANHA CONTRA PIERRE JURIEU
A idéia de resistência ativa ao poder constituído, sustentada por Pierre Jurieu, após
a revogação do Edito de Nantes, em 1685, e a Revolução Inglesa de 1688/89, ameaçavam
o absolutismo de direito divino de Luís XIV e, conseqüentemente, a paz na França. Como
um grande defensor do poder de direito divino e da paz, em contra-ataque a Pierre Jurieu,
Bossuet nega qualquer forma de resistência aos soberanos. Para um melhor entendimento
desta
questão, sentimos a necessidade de saber como
se
desenvolveu a idéia de resistência
por meio da força aos governantes legítimos, defendida pelos protestantes, particularmente
por Pierre Jurieu, em 1689, e fortemente criticada por Bossuet, no ano seguinte.
O desenvolvimento da idéia de resistência ativa
De início, o movimento reformador deu grande contribuição aos poderes
estabelecidos. Tanto o alemão Martinho Lutero (1483
-
1546) quanto o francês João Calvino
(1509
-1564) aceitavam e pregavam em suas obras a doutrina de São Paulo, contida no
capítulo XIII de sua
Epístola aos romanos
que mais tarde será defendida por Bossuet, em
sua batalha contra a idéia de resistência sustentada por Pierre Jurieu –, segundo a qual os
governantes foram instituídos diretamente por Deus, eram Seus ministros na terra. Sendo
assim, resistir a eles era o mesmo que resistir a Deus. Os súditos tinham o dever de
obedecer aos governantes, independente de serem eles bons ou maus. Deviam suportar a
tirania dos reis pacientemente. Enfim, Lutero e Calvino eram contrários à idéia de
resistência ativa aos soberanos por parte dos súditos.
1319
Porém, diante da violenta
perseguição dos governantes católicos à religião protestante, os luteranos desenvolverão a
teoria da resistência pela força aos soberanos, a qual será tomada de empréstimo e
ampliada pelos calvinistas.
1319
Cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 286
-
298; TOUCHARD, v. 3, op. cit., pp. 37, 43.
324
Conforme constata Skinner, depois de muitos anos de oscilações e concessões, os
governantes católicos do norte europeu “voltavam-se com violência contra os
reformadores”. Nas cadas de 1540 e 1550, os governantes da Alemanha, Inglaterra,
Escócia e França “se mostravam empenhados em restaurar à força a unidade religiosa no
interior do cristianismo”.
1320
A Alemanha foi o primeiro país a sofrer essa reviravolta, com a guerra santa
empr
eendida por Carlos V (1500-1558), imperador do Sacro Império Romano-
Germânico,
contra os príncipes luteranos da Liga de Schmalkalden, em 1547. Em 1546, devido às
perseguições do imperador Carlos V para obrigá-los a retornar ao catolicismo, os luteranos
da
Alemanha não encontraram dificuldade para defender a idéia da resistência ativa a seu
senhor legítimo. Dezesseis anos antes, em 1530, os luteranos cogitaram pela primeira vez a
possibilidade de resistir ao imperador Carlos V, munindo-se assim de um conside
rável
estoque de argumentos sobre o caráter justificável da violência política. Em 1521, na Dieta
de Worms, Carlos V anunciou pela primeira vez sua intenção de usar da força para obrigar
os luteranos a retornarem ao seio da Igreja católica. Em 1529, Carlos V convocou a Dieta
Imperial para a realização de uma assembléia em Speyer, na qual ordenou que todas as
concessões feitas aos luteranos anteriormente fossem revogadas.
1321
Apesar de os luteranos
terem reagido com um protesto formal, segundo Skinner, a maioria católica na Dieta,
porém, permaneceu inabalável, (...) e tratou de redigir uma resolução na qual proclamava
que deveria ser prontamente posta em vigor, se necessário pela força, o Edito de Worms,
que declarava a ilegalidade da heresia luterana”.
1322
Foi nesse momento que os líderes luteranos, pela primeira vez, se viram diante do
problema de resistência ativa. A questão que se apresentava diante deles era a seguinte: “se
seria (...) lícito formar uma aliança defensiva para resistir ao imperador, se ele os a
tacasse
na posição de chefe da maioria católica”.
1323
A iniciativa partiu do príncipe Filipe de
Hesse, que debateu o problema com inúmeros juristas que eram a favor dessa causa. Isto
resultou em “uma engenhosa reafirmação da constituição imperial”. Foi baseado nessa
teoria que, em 1400, os eleitores se opuseram ao imperador Wenzel.
1324
Em 1529, Filipe de
Hesse enviou cartas aos seus correligionário, o margrave de Brandenburgo-Ansbach e o
eleitor da Saxônia, propondo a resistência aos magistrados superiores por parte dos
1320
SKINNER, 1999, op. cit., p. 465.
1321
Cf. ibid., pp. 465, 470, 471.
1322
ibid., p. 471.
1323
ibid.
1324
Cf. ibid.
325
magistrados inferiores. Na carta dirigida ao margrave, Filipe de Hesse argumenta que, ao
dizer que todos os governantes foram estabelecidos por Deus, São Paulo não estava se
referindo apenas aos magistrados superiores, mas também aos inferiores. Todos os
governantes foram ordenados para cumprir algumas funções, entre as quais está a
obrigação de garantir o bem-estar e a salvação de seus súditos.
1325
Filipe de Hesse conclui
que “se o imperador ultrapassar os limites de seu cargo, perseguindo o Evangelho ou
tratando com violência qualquer um dos príncipes, estará violando as obrigações a ele
impostas por ocasião de sua eleição, sendo, portanto, legítimo combatê-
lo”.
1326
Num
primeiro instante, a estratégia militante de Filipe de Hesse não surtiu nenhum efeito. O
principal motivo era que os principais teóricos luteranos ainda se sentiam “totalmente
incapazes de superar seus escrúpulos ante a idéia de uma resistência pela força”. Lutero
deu uma resposta inflexivelmente conservadora ao eleitor João da Saxônia quando este o
consultou a respeito da carta recebida de Filipe de Hesse. No entendimento de Lutero, nem
mesmo o fato de o príncipe agir injustamente suprimia o dever de obediência dos súditos
em relação a ele.
1327
Entretanto, após a reunião da Dieta de 1530, a situação pareceu mais ameaçadora
aos luteranos. Carlos V deu ordens para que fosse lida uma
Refutação
à Confissão de
Augsburgo
escrita por Filipe Melanchthon no mesmo ano, em que este propunha um
acordo com os príncipes católicos. Nessa
Refutação
, Carlos V afirmava que dali em diante
se recusava a participar de qualquer outra discussão.
1328
Segundo Skinner, “no fim do mês
seguinte, a maioria católica havia concordado em afirmar uma resolução exigindo que
todos os luteranos retomassem à unidade da Igreja até a próxima Páscoa e que nesse
ínterim fossem suspensas todas as pregações luteranas. A Dieta encerrou-se com um
acordo entre os príncipes católicos para a formação de uma liga de defesa do império,
medida que deliberadamente impunha uma ameaça militar direta
aos protestantes”.
1329
Assim, em fins do ano 1530, a situação se apresentava ainda mais alarmante, o que
levou Filipe de Hesse a retomar sua antiga idéia de uma aliança defensiva formada pelos
príncipes luteranos; ressuscitando com isso a questão da possibilidade de uma oposição
legítima ao imperador Carlos V. Em outubro de 1530, Filipe de Hesse escreveu uma carta
direcionada a Lutero, a João da Saxônia e a seu chanceler Gregory Brück (1483-1547), na
1325
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 471
-
472.
1326
ibid., p. 472.
1327
Cf. ibid.
1328
Cf. ibid., pp. 472
-
473.
1329
ibid.,
p. 473.
326
qual expunha a sua teoria constitucional da resistência e bu
scava convencê
-
los da formação
de uma liga protestante para uma resistência armada contra o imperador. Percebendo a
gravidade da crise, João da Saxônia consultou seus juristas, entre eles Brück. No final de
outubro, este último entregou a ele uma súmula na qual justificava definitivamente e sem
margem de erro “a idéia de resistência violenta ao imperador”. A posição de Brück foi
baseada completamente em uma adaptação da antiga doutrina do direito privado, segundo
a qual, em algumas ocasiões, a recorrência à violência não é considerada uma injúria.
Brück recorreu também à tese canônica, segundo a qual, “às vezes pode ser cito resistir a
um juiz injusto”.
1330
Em sua súmula intitulada Se é justo defender-se de um juiz que
procede injustamente, referindo-se especificamente ao caso do imperador Carlos V, Brück
observa que ele “está tentando impor sua opinião em um assunto de fé”; mas “‘em
questões de o imperador não possui absolutamente jurisdição alguma’, porque ‘não é
juiz em tais assuntos’”. Assim, Brück conclui que por ter cometido uma injustiça notória,
do mesmo modo que um juiz, o imperador deixa de ser um juiz, “possuindo o
status
de um
‘cidadão privado’, que está infligindo ‘injúrias notórias’”, sendo lícito resistir
-
lhe.
1331
Desse modo, no final de 1530, Lutero e os outros líderes do luteranismo estavam
diante de duas diferentes teorias que justificavam a legitimidade de resistência ao
imperador Carlos V: a teoria constitucional elaborada pelos juristas de Hesse e a teoria do
direito privado usada pelos juristas da Saxônia. No final de outubro de 1530, Lutero,
Melanchthon e Jonas Spalatin se renderam à idéia de resistência pela força, declarando-
se
dispostos a apoiar a teoria da resistência apresentada por Brück.
1332
Após a crise de 1530, vários teólogos luteranos deram importantes contribuições ao
desenvolvimento da teoria da resistência. Eles não continuaram a apoiar uma doutrina
da resistência alicerçada no direito privado, mas também a desenvolveram. Em A
advertência do doutor Martinho Lutero a seu querido povo alemão, publicada em 1531,
tendo cinco edições no mesmo ano, Lutero “conferia um apoio bem menos condicional ao
mesmo argumento do direito privado”. Melanchthon empreendeu uma defesa ainda mais
elaborada dos mesmos argumentos em favor da resistência legítima”. Na segunda edição
dos
Prolegômenos ao tratado de Cícero sobre a obrigação moral, publicado em 1530, ele
acrescentou uma nova parte na qual trata do ofício do magistrado. Observa que somente as
1330
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 473.
1331
Cf. ibid., pp. 473
-
474.
1332
Cf. ibid., pp. 474
-
475.
327
autoridades instituídas podem resistir a outras aut
oridades e jamais indivíduos privados.
1333
Conforme Skinner, “longe de apenas ceder ao argumento do direito privado, os luteranos
foram na verdade capazes de suplementá-los, e isso com o cuidado de evitar o alarmante
corolário de que poderia ser legítimo aos cidadãos, enquanto indivíduos, resistir a seus
magistrados legalmente instituídos”.
1334
Diante da crise de 1529-1530, os luteranos defendem a teoria constitucional da
resistência, apresentada pelos juristas de Hesse, em 1529, afirmando que não os
magistrad
os superiores foram instituídos por Deus, mas também os inferiores. Assim
sendo, quando os primeiros agem incorretamente, deixando de cumprir o seu dever, os
segundos têm o dever de resistir-lhes. Parece ter sido Andreas Osiander o primeiro teólogo
luteran
o ilustre a adotar a teoria constitucional da resistência, em uma carta redigida em
fins de 1529 objetivando convencer os cidadãos de Nuremberg “a participar da aliança
defensiva que Filipe de Hesse estava tentando formar contra o imperador”. No entanto, f
oi
Martin Bucer quem melhor desenvolveu essa teoria. Em 1530, na edição da
Explicação
dos quatro evangelhos, publicada em 1527, Bucer inclui uma parte em que sintetiza a
teoria constitucional.
1335
O argumento mais importante que os luteranos conseguiram reviver na década de
1550, quando da Guerra de Schmalkalden (1546-1552) em favor da oposição pela força ao
imperador Carlos V, foi a teoria constitucional, que legitimava a resistência por parte dos
magistrados inferiores, elaborada inicialmente pelos juristas
hessianos, em 1529, e repetida
nos anos seguintes por Bucer, Osiander e outros renomados luteranos.
1336
Diante da crise de meados do século XVI, os calvinistas adotaram e repetiram os
mesmos argumentos em favor da resistência pela força que os luteranos desenvolveram na
década de 1530 e retomaram na década de 1550 para legitimar a guerra contra o imperador
Carlos V, liderada pela Liga de Schmalkalden, após 1546.
1337
uma diferença entre os argumentos utilizados pelos calvinistas no norte da
Europa e os argumentos bem distintos e muito mais radicais empregados pelos calvinistas
na Inglaterra e Escócia no mesmo período. Essa diferença deve-se ao fato de a posição dos
1333
Cf. ibid., p. 478.
1334
SKINNER, 1999, op. cit., p. 479.
1335
Cf. ibid., pp. 479
-
480.
1336
Cf. ibid., p. 483. Conforme Touchard, na
Confissão
, assinada em 1550 por nove pastores alemães de
Magdeburgo, justifica-se “a revolta contra um soberano inimigo de Deus, mas no caso presente é a
autoridade inferior’ que se ergue contra a autoridade suprema do imperador: não se trata do povo contra a
autoridade que exerce dire
tamente sobre ele”.
TOUCHARD, v. 3, op. cit., pp. 46
-
47.
1337
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 482, 484.
328
calvinistas no sul da Alemanha e Suíça ser mais ambígua nesse período. O principal
objetivo de sua propaganda era difundir o calvinismo na França; essa ambição exigia que
eles agissem com prudência, que ainda alimentavam a esperança de evitar um confronto
violento com o governo católico. Diferentemente, a posição dos calvinistas na Escócia e
Inglate
rra era mais segura. Na Escócia, os calvinistas contavam com uma ampla base de
apoio popular. Na Inglaterra, os calvinistas gozavam de uma situação ainda mais
favorável.
1338
Devido a essas diferenças, os calvinistas do norte da Europa contentavam-
se
em repetir uma cautelosa teoria da resistência pelos magistrados inferiores, enquanto que
os calvinistas revolucionários da Escócia e Inglaterra passaram “a explorar as implicações
mais individualistas e radicalmente populistas do argumento do direito privado”.
1339
Foi com Calvino, no 29º sermão de suas Homilias sobre o primeiro livro de
Samuel
, obra concebida entre 1562-1563, mas publicada somente em 1604, e os seus
discípulos da Europa, Teodoro de Beza (1519-1625), em Da punição dos hereges pelo
magistrado civil, de 1554, e Pedro Mártir (1500-1562), em seus Comentários sobre a
Epístola de São Paulo aos romanos, de 1558, e em Um comentário sobre o Livro dos
Juízes,
de 1561, que a teoria constitucional encontrou o seu principal desenvolvimento.
Eles afirmavam que, se os magistrados superiores se tornassem tiranos, os magistrados
inferiores teriam condições de resistir
-
lhes.
1340
Os calvinistas enfrentaram a crise do protestantismo de meados do século XVI
adotando e repetindo a teoria da resistência alicerçada no direito privado de origem
luterana. Porém, eles usaram essa argumentação com a máxima cautela, a qual raramente
aparece nas obras dos líderes calvinistas da Europa. Parece ser o próprio Calvino a única
exceção. A teoria da resistência alicerçada no direito privado aparece na última edição de
suas
Instituições da religião cristã, publicada em 1559
1341
, no Comentário sobre os Atos
dos apóstolos
, publicado entre 1552
-
1554, e nas
Preleções sobre o profeta Daniel
, vindas a
público em 1561. Nestes textos, Calvino afirma que quando os príncipes ordenam contra
Deus, impedindo que Este seja honrado pelo culto da verdadeira religião, eles deixam de
ser príncipes tornando-se homens comuns e é necessário que sejam derrubados.
1342
Apesar
disso, essas referências à teoria da resistência alicerçada no direito privado são muito raras
entre os líderes calvinistas da Europa nessa época. O argumento do direito privado o é
1338
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 485
-
486.
1339
ibid., p. 486.
1340
Cf. ibid., pp. 487
-
489.
1341
A primeira edição desta obra foi publicada em latim, no ano de 15
36.
1342
SKINNER, 1999, op. cit., pp. 494
-
495.
329
citado por Beza e Martir na década de 1550, e até mesmo Calvino sempre foi
extremamente cauteloso a esse respeito, preo
cupando
-se em salientar, mesmo na década
seguinte, que as exceções admitidas por ele jamais incluiriam a possibilidade de resistência
por parte de indivíduos privados ou pelo conjunto do povo.
1343
Já os líderes calvinistas da
Inglaterra
eram mais revolucioná
rios. Eles enunciavam o
argumento do direito privado como a principal justificativa para a legitimação da
resistência pela força. Em seu Breve tratado sobre o poder político, escrito e publicado em
1553, em Frankfurt, o inglês John Ponet (1514-1556), exilado, após a rainha Maria ter
ascendido ao trono, usou essa argumentação pela primeira vez. O inglês Cristopher
Goodman (1520-1603) desenvolveu essa teoria na sua obra Como os poderes superiores
devem ser obedecidos por seus súditos, publicado em 1558, em Genebra, onde ele se
encontrava exilado.
1344
Apesar de na década de 1550 os calvinistas se contentassem em adotar e repetir os
argumentos radicais desenvolvidos pelos luteranos da geração anterior, eles
acrescentaram alguns elementos importantíssimos ao desenvolvimento das ideologias
políticas revolucionárias nessa época.
1345
Uma contribuição importante dada pelos
calvinistas à teoria da revolução na década de 1550 foi o fato de alguns deles mostrarem
-
se
bem mais flexíveis do que os luteranos diante da importante questão de quem poderia
resistir, legitimamente, a um governo idólatra ou tirânico. Enquanto os luteranos sempre
frisaram que os magistrados superiores somente poderiam sofrer oposição por parte de
outros magistrados ordenados por Deus, no caso os magistrados inferiores, vários
calvinistas passaram a acrescentar uma nova dimensão à teoria da resistência, mostrando a
existência de duas outras categorias que, em determinadas circunstâncias, podem pegar em
armas contra seus governantes.
1346
Dentre essas categorias encontra-se uma classe especial de magistrados eleitos pelo
povo, os quais Calvino descreve em suas
Institutas
como “‘magistrados do povo,
nomeados para restringir as arbitrariedades dos reis’”.
1347
Tal idéia não era dos calvinistas,
e sim uma concepção antiga. Nas
Leis
, Cícero observava “que não foi sem razão’ que ‘se
1343
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 495. Segundo Chevallier, nas
Instituições
, “Calvino excluía toda
resistência ativa por parte das pessoas privadas, mas reservava a intervenção legítima dos ‘magistrados
inferior
es”.
CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 302
-
303.
1344
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 496
-
498. Ver CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 301
-
302.
1345
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 499.
1346
Cf. ibid., pp. 505.
1347
ibid.
330
instituíram os éforos’ em Esparta, para refrear o poder dos reis”.
1348
No entanto, não
obstante a idéia de autoridade eforal ter sido mencionada anteriormente, o seu principal
desenvolvimento deve-se aos calvinistas, sendo o próprio Calvino quem a enunciou de
maneira mais relevante. Calvino apresenta essa idéia em uma única passagem, na última
página do último capítulo das
Institutas
. Nessa passagem, Calvino demonstra que, mesmo
considerando
os magistrados eforais como sendo ordenados por Deus, eles são também
eleitos pelo povo, e por isso devem lhes prestar contas.
1349
Quanto a quem tem o direito de
resistir aos governantes tiranos de sua época, Calvino propõe “que ‘o poder de resistir a
govern
antes tirânicos (...) poderia ser legitimamente conferido a vários magistrados eleitos
pelo povo, agindo como seus representantes e tendo o dever de prestar contas a seus
mandatários”.
1350
Apesar de a análise de Calvino não ter tido um impacto imediato, ela deu uma
importante contribuição para o elenco de idéias políticas radicais que estavam à disposição
de seus seguidores ao ocorrer a crise do protestantismo, em meados do século XVI. A
interpretação de Calvino introduziu um aspecto secular e constitucionalista na discussão a
respeito da autoridade política, o qual todos os teóricos luteranos evitaram. De acordo com
Skinner, “enquanto os ‘magistrados inferiores’ das teses de Martin Bucer e seus seguidores
ainda serem considerados autoridades porque constituem poderes ordenados por Deus, os
magistrados populares de Calvino são vistos não apenas como poderes ordenados, mas
como funcionários eleitos, tendo assim uma responsabilidade direta para com aqueles que
os elegeram”.
1351
Houve outra maneira, certamente mais radical, mediante a qual os teólogos
calvinistas se mostraram mais flexíveis que os teólogos luteranos no que se refere à
resistência lícita a um governante idólatra ou tirânico. Dentre as obras dos calvinistas mais
radicais da década de 1550, algumas reconheceram que, em certas circunstâncias, era
legítimo não somente aos magistrados inferiores, mas também aos cidadãos na condição de
indivíduos, e, portanto a todo o conjunto do povo, o uso da força contra os magistrados
superiores. Um dos meios pelos quais os calvinistas chegaram a tal conclusão foi
ampliando a teoria da resistência alicerçada no direito privado, ressaltando suas
implicações mais individualistas e populistas. Sempre se admitiu que a teoria do direito
1348
Cf. ibid.
1349
SKINNER, 1999, op. cit., p. 506. A respeito da legitimidade de resistência ativa aos soberanos por parte
de autoridades eforais, proposta por Calvino, ver CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 297
-
298.
1350
SKINNER, 1999, op. cit., p. 507.
1351
ibid., pp. 507
-
508.
331
privado, ao defender que era legítimo usar da força para repelir a força injusta, parecia
estar dando autoridade não somente aos magistrados inferiores, mas também aos
indivíduos privados para se opor aos tiranos. Contudo, enquanto os luteranos tiveram o
máximo de cuidado para não entrar em vias que levassem a tal sugestão, inúmeros
calvinistas revolucionários passaram a ressaltá-
la.
1352
Conforme observa Skinner, “Ponet e
Goodman se afastaram deliberadamente da tese
que até então nenhum luterano radical ou
calvinista se atrevera a contestar segundo a qual a um magistrado ordenado é lícito
combater um governante legítimo, por mais tirânico que sejam os atos deste último”.
1353
Recorrendo a argumentos conciliaristas, Ponet observa que assim como o papa pode ser
deposto pelo corpo da Igreja, do mesmo modo os governantes que abusam de seus cargos
podem ser depostos pelo corpo do povo. Lançando mão dos mesmos argumentos,
Goodman chega a mesma conclusão populista e revolucionária. Afirma que todos os
magistrados são ordenados por Deus para cumprir suas fun
ções, especificamente fazer com
que Suas leis sejam cumpridas suprimindo a heresia. Não cumprindo o seu dever, eles
deixam de ser autoridades, o passando de criminosos privados. Assim, qualquer um de
seus súditos ou mesmo o conjunto do povo pode resistir
-
lhes.
1354
Os mais radicais calvinistas da década de 1550 chegaram a esta conclusão
revolucionária, porém, por outra via: “o conceito da aliança”. Embora de maneiras
diferentes, a idéia de uma aliança entre Deus e seu povo havia sido ressaltada por Lutero e
Calvino. Para Lutero, todos aqueles que receberam o batismo em nome de Cristo eram
assumidos por uma aliança da Graça que substituíra a Antiga Lei. Calvino considera as
promessas de Cristo no Novo Testamento como uma reafirmação da Antiga Lei, que se
con
stituiu em acordos formais necessários devido à desobediência de Adão. No livro II das
Institutas
, Calvino mostra que o desenvolvimento religioso da humanidade é medido por
uma seqüência de alianças, sendo que a primeira dela é firmada entre Deus e Adão, as
posteriores foram ratificadas por Noé, Abraão e Moisés, e renovadas pelo sacrifício de
Cristo. Na concepção de Calvino, em todos esses casos, a essência da aliança consistia em
um acordo de obediência aos Dez Mandamentos; sendo assim, ele prega que em qualquer
época, seria lícito um grupo de fiéis reafirmar formalmente sua relação contratual com
Deus. A idéia de que todo devoto pode tornar-se signatário de uma aliança com Deus
proporcionou a Goodman, em seu Como os poderes superiores devem ser obedecid
os
,
1352
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 508.
1353
ibid., p. 509.
1354
ibid., pp. 509
-
510.
332
publicado em Genebra em 1558, e ao escocês John Knox (1514-1572), no Apelo à
nobreza
, como também em seu apelo direto ao povo, a Carta dirigida à República da
Escócia
, um segundo argumento em favor da revolução popular.
1355
É com base na interpretação que fazem dessas promessas que finalmente Goodman
e Knox chegam à defesa da revolução popular. Ambos recorrem à conhecida tese de que
prometer fazer algo implica na obrigação de fazê-lo para desenvolver a sua argumentação.
Eles entendem que cada cidadão fez uma promessa a Deus de observar as suas leis.
Conseqüentemente, cada um tem o dever sagrado de ajudar no combate e destituição de
todos os magistrados idólatras ou tiranos. Goodman e Knox dizem que não somente os
magistrados inferiores, mas todo o corpo do povo ou indivíduos têm o dever de resistir à
idolatria e à tirania de seus superiores, que todos se comprometeram a seguir os
mandamentos de Deus.
1356
O fato de Goodman e Knox, dois dos três calvinistas mais radicais da década de
1550, conceberem a resistência à idolatria e à tirania como um dever imposto por Deus a
todos os cidadãos, “os credencia a reverter a mais fundamental de todas as teses do
pensamento reformador ortodoxo”, segundo Skinner. Pois, agora, eles “não dizem mais aos
fiéis que serão condenados à danação eterna se resistirem às autoridades constituídas, mas,
pelo contrário, que serão condenados se não o fizerem, pois isto equivaleria a transgredir o
‘pacto e aliança’ que (...) firmaram com o próprio Deus”.
1357
A teoria da revolução popular desenvolvida pelos calvinistas radicais na década de
1550 daria início à teoria que se tornaria a corrente dominante no pensamento
constitucional moderno: a clássica teoria liberal da revolução popular. Esta foi defendida
por John Locke (1632-
1704
) no seu texto clássico da política radical calvinista, os
Dois
tratados de governo, publicado em 1689. Mas, apesar de Locke defender as mesmas
conclusões lançando mão dos mesmos argumentos de Ponet, Goodman e Knox, um
aspecto em que um abismo conceptual separa a clássica teoria liberal defendida por ele das
teorias defendidas por seus predecessores.
1358
Em 1689, Locke defende a legitimidade da
resistência sempre como “‘um direito de resistir’, e especificamente como um direito de
defender
-
se’, que assiste ao ‘corpo do
povo’ em virtude da natureza e dos fins da sociedade
1355
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 510.
1356
Cf. ibid., p. 511. Sobre a concepção de Goodman e Knox de que todo o povo tinha o dever de resistir aos
tiranos, cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 301
-
302.
1357
SKINNER, 1999, op
. cit., p. 512.
1358
Cf. ibid., p. 513.
333
política”.
1359
Em contraste, a resistência política não é concebida pelos radicais calvinistas
da década de 1550 como sendo um direito. Apesar de defenderem a sugestão
revolucionária de que todo o corpo do povo pode limitar e depor um governante tirano,
ainda presumem que o principal motivo da existência da sociedade política consiste na
“defesa das leis de Deus e o exercício da verdadeira fé”, a calvinista, é claro.
Conseqüentemente, eles “continuam a ver a sociedade política como ordenada por Deus, a
considerar a tirania uma forma de heresia e a interpretar a legitimidade da resistência um
dever religioso alicerçado na promessa de defender as leis de Deus e não um direito
moral”.
1360
Entre os teóricos protestantes, em que momento o conceito de resistir por dever
religioso se transformou no conceito moderno e estritamente político de um direito moral
de resistir? Foi durante as guerras religiosas ocorridas na França na segunda metade do
século XVI que os huguenotes articularam a teoria moderna, de maneira consistente, pela
primeira vez. Da França, tal teoria passou para os calvinistas dos Países Baixos, depois
chegou à Inglaterra, onde adquiriu uma grande importância no contexto ideológico da
Revolução Ingle
sa de 1640.
1361
De que maneira e por que a teoria moderna começou a ser desenvolvida durante as
guerras religiosas francesas? No período em que eclodiram as guerras religiosas na França,
a posição dos huguenotes era muito diferente da dos calvinistas na Inglaterra e Escócia,
Ponet, Goodman e Knox, na cada de 1550; o que fez com que os huguenotes
desenvolvessem uma estratégia diferente e os induziu a articular uma teoria da resistência
distinta e mais radical, em alguns aspectos.
1362
Durante a primeira década da
s guerras religiosas francesas, os huguenotes adotaram
a estratégia básica de evitar o máximo possível um confronto direto com o governo de
Catarina de Médicis (1519-1589), rainha-mãe e verdadeiro poder por trás de Carlos IX,
que reinou de 1560 a 1574. Os huguenotes esforçavam-se para defender a tese, falsa, de
que estavam se opondo somente aos inimigos do governo, os Guise, e continuavam a nutrir
a esperança de conquistar pelas vias oficiais um certo grau de tolerância religiosa, como
produto obtido a partir dos esforços de Catarina de Médicis para pacificar os católicos e
protestantes em guerra na França. Em parte, os huguenotes se viram obrigados a adotar
1359
ibid., pp. 513
-514.
1360
SKINNER, 1999, op. cit., p. 514.
1361
Cf. ibid.
1362
Cf. ibid., pp. 514
-
515.
334
essa estratégia relativamente passiva porque não contavam com uma base consistente de
apoio popular. Em nenhum lugar da França eles dispunham de predominância numérica.
Por causa disso, eles nunca pensavam em convocar, no estilo dos calvinistas
revolucionários da Inglaterra e Escócia da década de 1550, Ponet, Goodman e Knox, “todo
o corpo da república” a
opor
-se aos governantes idólatras ou tiranos. Além disso, o apoio
alcançado por eles tendeu a concentrar
-
se nas áreas mais remotas do país.
1363
Em 1562, ano em que eclodiram as guerras religiosas, Luís I (1530-1569), príncipe
de Condé, publicou a sua
Declaraç
ão
, na qual justificava a sua decisão de recorrer à luta
armada. No entanto, a justificativa apresentada por ele para a resistência armada era
estritamente limitada e cuidadosamente constitucional. Isto é compreensível se levarmos
em conta as restrições que limitavam as ações dos huguenotes. Eles constituíam um grupo
minoritário, que se empenhava para conquistar aliados e desejavam apaziguar os católicos
moderados. Por isso, precisavam repudiar explicitamente a forte herança do calvinismo
revolucionário, especialmente a idéia de que poderia ser lícito, conforme Ponet, Goodman
e Knox afirmavam na década de 1550, que todo o povo se insurgisse contra um governo
idólatra e tirânico.
1364
No entanto, no decorrer da década de 1560, os huguenotes foram encontrando cada
vez mais dificuldade para sustentar a ficção de que estavam apenas defendendo o governo
legítimo dos Valois contra a usurpação dos Guise. Após 1567, Catarina de Médicis e os
huguenotes passaram a se olhar com crescente desconfiança. O príncipe de Condé to
rnou
público um manifesto, muito ameaçador, invocando os argumentos que estavam sendo
elaborados pelos constitucionalistas radicais. Ele alegava que a conduta do governo
estava deturpando a constituição fundamental da França. Os mesmos argumentos apa
recem
nos inúmeros tratados anônimos publicados entre 1567 e 1568. A Francogália, do francês
François Hotman
(1524
-1590), que se constitui no maior e mais radical tratado huguenote
sobre a constituição fundamental da França, também foi escrita nesta época, mas seria
publicada somente em 1573.
1365
As tentativas dos huguenotes em conciliar a resistência ativa com a defesa da
monarquia foram abandonadas após a Noite de São Bartolomeu, em 9 de agosto 1572, um
sangrento massacre generalizado de protestantes, que se estendeu por toda a França no
final deste mês. Nesse período, surgiram os textos clássicos do pensamento político
1363
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 515.
1364
Cf. ibid., p. 573.
1365
Cf. ibid., pp. 574
-
575.
335
revolucionário dos huguenotes para legitimar o ataque direto à monarquia Valois. Hotman
aprimorou o rascunho da Francogália, publicando-o em Genebra em 1573. Na mesma
época, ele foi consultado por Theodore de Beza que começava a escrever o seu tratado
O
direito dos magistrados, o qual possuía certa semelhança com a
Francogália
, publicado
em francês em 1574 e em latim em 1576. Em 1574 surgiram três importantes tratados
anônimos em francês: O político e O
despertador
em forma de diálogos; mas os
Discursos
políticos
foi o tratado mais revolucionário, já que apresentava “uma teoria da resistência
mais anárquica do que todas as outras obras do pensamento político huguenote”.
1366
Em
1576, Simon Goulart (1543-1628) publicou em três volumes uma série de
Memórias
do
Estado da França sob Carlos IX, na qual numerosos tratados revolucionários foram
reimpressos, conhecendo uma difusão mais ampla. Um relato anônimo, intitulado
O
rebate
, a respeito da Noite de São Bartolomeu, foi publicado em 1577. Em 1579 foi
publicada a Defesa da liberdade contra os tiranos de Philippe du Plessis Mornay (1549-
1623) a qual apresentava a súmula de todos os principais argumentos desenvolvidos pelos
monarcômacos huguenotes na década de 1570. Esta foi a maior e mais célebre contribuição
para a teoria revolucionária huguenote.
1367
Apesar de que o principal objetivo desses tratados fosse justificar um ataque direto
à monarquia Valois, mesmo após a Noite de São Bartolomeu, em 1572, os huguenotes
ainda se preocupavam em rejeitar o mais que podiam quaisquer elementos populistas
presentes no legado do pensamento político calvinista. Apesar de que o seu maior interesse
fosse o de aconselhar seus
correligionários a pegar em armas contra os governantes Valois,
eles também precisavam ampliar sua base de apoio entre os o protestantes e diminuir a
crescente hostilidade dos católicos moderados, dos quais vinham perdendo as simpatias a
cada dia devido à contínua tendência à anarquia. Por causa dessas pressões, embora os
líderes huguenotes desejassem injetar a idéia de resistência ativa em seus seguidores, ao
mesmo tempo continuavam a salientar “o caráter limitado, constitucional e essencialmente
defensi
vo de seu apelo às armas”.
1368
O primeiro modo pelo qual os huguenotes procuraram insistir, mesmo após 1572,
no caráter puramente defensivo de sua resistência foi tomar o cuidado de eliminar toda a
idéia de resistência ativa por parte de indivíduos e até mesmo de todo o conjunto do povo.
1366
SKINNER, 1999, op. cit., p. 575.
1367
Cf. ibid., pp. 575-576. Referente à literatura monarcômaca francesa, ver CHEVALLIER, 1982, op. cit.,
pp. 302-
310; TOUCHARD, v. 3, op. cit., pp. 49
-
50.
1368
SKINNER, 1999, op. cit., p. 576.
336
O outro modo foi ressaltando que eram forçados a renegar sua lealdade à Coroa por causa
da extrema vileza de Catarina de Médicis. Após enfatizar a tirania do governo, os
huguenotes apresentaram sua decisão de resistir como um ato necessário, portanto
legítimo, de autodefesa. Esse foi o tema quase exclusivamente abordado por vários tratados
publicados logo após o massacre de 1572.
1369
Logo a seguir, os huguenotes tomaram uma providência mais positiva. Esforçaram-
se em desenvolver o legado do calvinismo revolucionário visando atender as suas duas
necessidades ideológicas mais urgentes: de um lado, era necessário elaborar uma ideologia
que pudesse justificar a resistência baseada em razões de consciência, que precisavam
tranqüiliz
ar os protestantes de que era legítimo envolver-se em uma revolução contra o
poder constituído; de outro, era necessário produzir uma ideologia de oposição mais
constitucionalista e menos sectária, já que precisavam ampliar sua base de apoio.
1370
Mas não havia nada nas tradições vigentes do pensamento protestante radical a que
os huguenotes pudessem recorrer para seguir adiante. Até agora, os protestantes
procuraram legitimar sua resistência ao poder constituído recorrendo a um dos três
principais argumentos: a teoria luterana dos magistrados inferiores, a teoria calvinista das
autoridades eforais e a teoria da resistência individual nos casos de legítima defesa,
fundamentada no direito privado. Entretanto, eles haviam explorado ao máximo os dois
primeiros a
rgumentos, enquanto evitavam o terceiro devido as suas implicações anárquicas
terem sido escancaradas de modo assustador por Ponet, Goodman e Knox.
1371
Diante desse dilema, Beza, Mornay e os demais líderes huguenotes adotaram uma
solução paradoxal. Eles “recorreram às duas tradições do constitucionalismo radical: a
tradição dos escolásticos e a tradição do direito romano”.
1372
Como observa Skinner, “talvez a mais significativa vertente da teoria política
radical de fins da Idade Média tenha surgido a partir do movimento conciliarista”.
1373
Durante o Grande Cisma do Ocidente (1378-
1417),
Jean Gerson (1363-1429) e seus
discípulos desenvolveram a tese do conciliarismo articulada por Huguccio e seus
seguidores no final do século XII.
1374
Segundo o mesmo autor, “ao defender a autoridade
dos concílios, Gerson se viu obrigado a enunciar uma teoria a respeito das origens e da
1369
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 576
-
577, 579.
1370
Cf. ibid., p. 580.
1371
Cf. ibid., p. 589.
1372
ibid.
1373
ibid.,
p. 394.
1374
Cf. ibid.
337
localização do poder político legítimo na república secular. E, ao expor esse argumento,
contribuiu (...), de forma notável e fadada a exercer profunda in
fluência, para a evolução de
uma concepção radical e constitucionalista do Estado moderno”.
1375
Gerson contribuiu
imensamente para a teoria do Estado. No final de seu tratado Sobre o poder eclesiástico
,
apresentado em 1417 no Concílio de Constância (1414-
1418
), ele afirmou que o poder
político está localizado na república secular. Para Gerson, “todo governante digno do nome
deve sempre agir ‘para o bem da república’ e ‘de acordo com a lei’. Ele não está ‘acima’ da
comunidade, mas faz parte dela; está comprometido com suas leis e limitado por uma
obrigação absoluta de ‘visar ao bem comum em seu governo’”.
1376
No início do culo
XVI, na Sorbonne, a tese do conciliarismo de Gerson foi revivida por John Mair (1467-
1550) e seus discípulos, sobretudo Jacques Almain (1480-1515). Eles “também reviveram
e reafirmaram sua teoria (...) acerca da localização do poder político na república
secular”.
1377
As idéias de Gerson são retomadas e ampliadas pelos sorbonistas. Eles
aceitam a idéia antitomista de Gerson de que o governante escolhido livremente pelo povo
para liderá-lo não pode “ser maior em autoridade que o próprio povo”.
1378
De acordo com
Skinner,
os
sorbonistas “afirmam que a autoridade política não é meramente derivada do
povo, mas inerente a ele. Concluem (...) que o povo apenas delega seu poder supremo aos
governantes, sem jamais aliená
-lo; portanto, o estatuto de um governante jamais pode ser o
de um soberano absoluto, mas somente o de um ministro ou funcionário da república”.
1379
Conforme o mesmo autor, “Mair e Almain apresentam (...) com confiança bem maior que
Occam e até mesmo que Gerson, a mais subversiva implicação dessa teoria radical do
Imperium
”.
1380
Segundo eles, os governantes que não governam corretamente devem ser
depostos pelos súditos. Mas, como Mair deixa claro, em sua História da Grã-
Bretanha
,
publicada em 1521, o poder de depor um rei tirano restringe-se a uma assembléia
representativa dos três estados e não a todo o povo.
1381
Além do movimento conciliarista, o direito romano também está entre as principais
fontes do constitucionalismo moderno. Teólogos radicais recorrem à autoridade do
Digesto
, particularmente “a máxima do direito civil segundo a qual sempre esdentro da
1375
SKINNER, 1999, op. cit., pp. 394
-
395.
1376
ibid., p. 397.
1377
ibid.
1378
ibid., p. 398.
1379
ibid., p. 399.
1380
ibid., p. 401.
1381
Cf. ibid., pp. 401
-
403.
338
lei repelir pela força a força injusta”.
1382
No princípio da década de 1340, nas
Oito questões
so
bre o poder papal
, obra escrita provavelmente em 1342, o teólogo escolástico Guilherme
de Occam (1285-1347) lançou mão dessa teoria da resistência surgida no direito privado.
Occcam afirma que “‘o rei é superior a seu reino como um todo no decurso regular
dos
acontecimentos’, mas, ‘em circunstâncias excepcionais pode ser inferior ao reino’. Isso é
comprovado pelo fato de que ‘em casos de calamitosa necessidade’ é legítimo que o povo
‘deponha o rei e o mantenha em custódia’. O que, por sua vez, afirma Occam, é justificado
pelo fato de que ‘a lei da natureza, como determina o primeiro
Digesto
, torna legítimo
repelir a força com a força’”.
1383
Essa doutrina radical de Occam foi retomada
posteriormente por Gerson e passando de seus textos “para a corrente dominante do
pensamento político escolástico radical”. No seu panfleto Dez considerações utilíssimas
para os príncipes e senhores
, Gerson recorre ao mesmo argumento do direito privado e diz
que os reis devem justiça e proteção aos súditos. Se os reis falharem nessa missão, “‘será
(...) hora de aplicar a lei da natureza que estabelece que podemos repelir a força pela
força’”.
1384
Quanto a quem poderia repelir ao governante tirano por meio da força, tanto
Occam como São Tomás de Aquino aceitaram a idéia defendida pelo jurista Azo, no final
do século XII. Baseado no
Código
de Justiniano, Azo defendia que os magistrados
inferiores podiam depor um governante tirano que violasse o contrato.
1385
Inúmeros juristas
profissionais recorreram à autoridade do
Digesto
para fundamentar a sua posição política
radical. O jurista Bartolo (1313-1357) e seus alunos desenvolveram a idéia de que quando
um povo livre escolhe um governante para chefiá-lo, ele meramente delega ao governante
a sua soberania original, não renuncia a ela. No início do século XVI, em Da soberania do
patriciado romano, concluída em 1514, o jurista Mário Salamonio (1450-1532) mostra
“que toda sociedade política legítima deve originar-se de uma decisão livre, por parte dos
cidadãos, de firmar um contrato com um governante”.
1386
Salamonio defende o direito
inalienável do povo. Segundo ele, “o povo jamais aliena, mas apenas delega sua soberania
por ocasião do estabelecimento de um governo”.
1387
Salamonio observa ainda que o
príncipe é apenas um funcionário eleito pelo povo, que deve agir como um ministro da
1382
ibid., p. 405.
1383
SKINNER, 1999, op. cit., p. 406.
O
D
igesto
foi publicado entre 529 e 534, por ordem do imperador
Justiniano I.
1384
SKINNER, 1999, op. cit., p. 406.
1385
Cf. ibid., pp. 406
-
408.
1386
ibid., p. 411.
1387
ibid., p. 412.
339
república, visando o bem comum. O povo que criou o príncipe é maior que ele. O príncipe
não é
legibus solutus
, está abaixo das leis da natureza e costumeiras de seu reino.
1388
Sustentados nas duas tradições do constitucionalismo radical, a tradição do direito
romano e a tradição dos escolásticos, Beza, Mornay e os demais líderes huguenotes
afastaram
-se da tendência protestante, segundo a qual todos os homens são colocados por
Deus na condição de sujeição política para poderem pagar os seus pecados.
1389
Em
contraposição, eles passaram a argumentar que a condição original de um povo deve ser de
liberdade natural. O que lhes permitiu deixar de lado a ortodoxia paulina expressa na tese
de que todas as autoridades constituídas são ordenadas diretamente por Deus.
Desse modo,
puderam deduzir o contrário, “que toda sociedade política legítima deve originar-se de um
ato de livre consentimento por parte do povo inteiro”.
1390
No decorrer da década de 1570,
os huguenotes passaram a usar sistematicamente as teorias radicais da escolástica e do
direito romano a respeito do
Imperium
.
1391
Como é possível perceber, não na teoria política da revolução elementos que
sejam específicos dos calvinistas. Na década de 1550, os primeiros revolucionários
calvinistas utilizavam em grande parte os argumentos luteranos que, por sua vez,
derivavam do direito civil e canônico; e na década de 1570, os novos argumentos que serão
acrescentados derivavam em boa medida da escolástica. Dessa forma, os principais
fundamentos da teoria calvinista da revolução foram, na verdade, construídos
integralmente por seus adversários católicos. Esse paradoxo se compreende se levarmos
em conta os principais objetivos dos huguenotes após o massacre da Noite de São
Bartolomeu: a necessidade de uma revolução legítima aos olhos de seus correligionários
protestantes, como também da maioria católica. Precisavam encontrar algo que lhes
permitisse apresentar um conselho à resistência como um argumento político e não
sectário. Sendo assim, cumpririam co
m a essencial tarefa
ideológica de não apelar somente
para seus correligionários protestantes, mas aos católicos moderados e aos descontentes
que constituíam um espectro mais amplo.
1392
Os calvinistas revolucionários da década de 1570 não empregaram argumento
s
especificamente calvinistas. Para elaborar uma nova política, eles não romperam com as
restrições da escolástica; em grande parte, adotaram e consolidaram uma postura que
1388
Cf. ibid., pp. 412
-
413.
1389
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 589
-
590.
1390
ibid., p. 590.
1391
Cf. ibid.
1392
Cf. ibid., pp. 591
-
592.
340
juristas como Bartolo ou Salamonio, e teólogos como Occam, Gerson, Almain e Mair ma
is
radicais já haviam assumido.
1393
Após 1572, o maior problema dos huguenotes passou a ser o de desenvolver uma
maneira mais secular e mais radical para justificar a resistência ativa ao governante. A
principal questão a ser desenvolvida por eles consistia na utilização de argumentos
racionais para mostrar que a solução para a tirania deveria se encontrada em instituições
humanas. A resposta principal proposta por eles os conduziu a abandonar as premissas
providencialistas para se dedicar a uma teoria essencialmente escolástica a respeito das
origens e o caráter das legítimas sociedades políticas.
1394
Da mesma forma que os seus predecessores escolásticos, o primeiro passo que os
calvinistas deram neste sentido consistiu em refutar a tese do patriarcalismo, de que os
povos vivem naturalmente num estado de sujeição, argumentando o contrário, ou seja,
“que a condição fundamental do homem é de liberdade natural”.
1395
Surge então a seguinte
questão: “se ninguém se encontra naturalmente num estado de sujeição, como e por q
ue
teriam sido criadas as sociedades políticas?” A análise empreendida pelos huguenotes para
responder a essa questão corresponde à dos teólogos escolásticos radicais. Lançando mão
do vocabulário específico da escolástica, discutem “a causa final para o es
tabelecimento de
uma república”. Todos concordam com a idéia de que os magistrados foram criados pelo
povo para promover a sua segurança, bem estar e preservação.
1396
Por vezes, sobretudo na
Defesa
de Mornay, a idéia de que o povo estabelece
sociedades políticas para melhorar sua condição natural, não aparece como um argumento
em favor da conservação do bem estar comum, mas da preservação dos direitos
individuais. Mornay fala do conceito de direito segundo a análise encontrada nas obras de
teólogos conciliaristas Gerson e seus seguidores, particularmente nas
Questões
de Mair e
nas
Sentenças de Lombardo. Na terceira
Questão
da
Defesa
, Mornay apresenta o mesmo
conceito de direito exposto por Mair em suas
Questões
. Ao identificar o bem do povo com
a necessidade de garantir que seus direitos e privilégios nunca sejam abandonados à
desmedida liberdade de seus reis, Mornay centraliza-se, sobretudo, no direito das pessoas
1393
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 593.
1394
Cf. ibid., p. 596.
1395
ibid.
1396
Cf. ibid., p. 597.
341
de manter os bens que teriam possuído antes da instituição da república, insistindo que são
princi
palmente esses bens que devem ser protegidos após o estabelecimento desta.
1397
Na terceira
Questão
da
Defesa
, Mornay defende a tese escolástica, segundo a qual
foi no momento em que os conceitos de meu e teu apareceram no mundo pela primeira
vez, começando a promover diferenças no conjunto do povo com respeito à questão da
propriedade de bens materiais, que o povo teria julgado necessário instituir sociedades
políticas. Mornay acrescenta ainda que foi o desejo de garantir maior segurança para sua
propriedade o principal motivo que levou o povo a estabelecer uma república. Ao
considerar o bem do povo a causa final para a instituição de uma república, igualando-o ao
direito de usufruir suas propriedades, os huguenotes deixam claro que estão pensando na
obrigação do governante de defender os direitos inalienáveis e naturais das pessoas à vida e
à liberdade, propriedades fundamentais detidas por todos numa situação pré-política. Na
Declaração
, Mornay afirma que os massacres da Noite de São Bartolomeu levaram o povo
francês aos limites da obrigação política. Isto porque, de acordo com ele, o extermínio de
tantas pessoas pelo governo deve ser encarado como um ato contrário ao inviolável direito
dos homens, oposto aos fins para os quais o governo foi instituído. A tese
correlacionada,
segundo a qual a justificativa fundamental para a existência do governo reside na sua
capacidade de preservar os direitos naturais dos cidadãos, particularmente a livre fruição
da vida, liberdade e propriedade, foi esboçada claramente em
O
político
, desenvolvida nos
Discursos políticos e resumida na terceira
Questão
da
Defesa
de Mornay. O autor de
O
político
aborda a questão de se é lícito aos súditos pegarem em armas para defender sua
vida e liberdade, em casos de extrema violência por parte do governo. O autor dos
Discursos políticos responde afirmando que sempre deve existir um direito de resistência
contra os governos que escravizam o seu povo. E quando este se recusa ao cativeiro está
apenas defendendo o bem da liberdade. E ao defender sua liberdade o povo apenas está
exigindo o seu direito natural. Mornay enuncia essas teses com maior clareza. Ele conclui
sua análise do direito do povo salientando que nenhuma ação de um governo legítimo pode
de alguma maneira desprezar o direito de liberdade do povo. Segundo ele, o principal
motivo para isso é que a maior preocupação de todo governante deve ser sempre a de agir
como defensor da liberdade e segurança de seu povo.
1398
1397
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 597.
1398
Cf. ibid., pp. 597
-
599.
3
42
Para os huguenotes, o principal motivo para se instituir uma república é o bem do
povo, principalmente a preservação de seus direitos. Segundo eles “a única causa eficiente
possível seria o consentimento geral, livremente expresso, de todos os cidadãos
envolvidos”. Beza, em O direito dos magistrados, Mornay, na terceira
Questão
da
Defesa,
e o autor de O despertador defendem que todo governante legítimo é constituído com o
livre consentimento do povo.
1399
Apesar de os huguenotes afirmarem que o consentimento do povo é imprescindível
para que um governo seja investido, eles reconhecem que esse requisito, sobretudo em um
país como a França, imenso e populoso, apresenta algumas dificuldades de ordem prática.
Desta forma, a solução proposta por eles é que se parta do princípio de que o povo delegou
a sua autoridade a um conjunto de magistrados inferiores para escolher e
subseqüentemente controlar o supremo magistrado.
1400
Ao se referirem ao povo como uma
coletividade, Beza e Mornay não se referem a todo o conjunto dos cidadãos, mas apenas
àqueles que recebem a autoridade do povo: os magistrados abaixo do rei, que o povo
elegeu. Apesar de o povo jamais ser destituído de sua soberania, ele abre mão de seu
direito de exercê-la diretamente. Isso significa que somente os magistrados inferiores,
representantes do povo, têm direito de exigir que o rei
cumpra as promessas proferidas.
1401
A conclusão dos huguenotes a respeito do processo de estabelecimento de uma
república legítima resulta dessas teses quanto ao bem comum e ao consentimento: se a
república tem de ser estabelecida com o consentimento popular e se a razão para instituí-
la
consiste em aprimorar o bem do povo e em garantir os direitos dele, parece então que o
mecanismo que lhe dá vida efetiva deve ter a forma de um contrato, ou Lex Regia
,
afirmado entre os representantes do povo e o pretendente a governante”.
1402
Esse contrato
determina que o rei tem por obrigação promover o bem comum e defender os direitos de
seus súditos que concordaram em tê
-
lo como governante para esta finalidade.
1403
Contrato esse que é totalmente diferente da idéia de pacto ou aliança religiosa
também evocada pelos huguenotes. Quando tratavam a respeito da aliança religiosa, a
preocupação dos calvinistas era com a obrigação de defender as leis de Deus, tarefa que
1399
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 599.
1400
Cf. ibid.
1401
Cf. ibid.,
p. 600.
Chevallier observa que, em suas obras, Beza e Mornay desenvolvem “a teoria huguenote
da ‘resistência constitucional’”, segundo a qual é legítima a resistência ativa por magistrados inferiores.
CHEVALLIER, 1982, op. cit., p. 306. Ver, a este respeito, TOUCHARD, v. 3, op. cit., p. 53. No que se
refere ao conceito de povo para Mornay, cf. CHEVALLIER, 1982, op. cit., pp. 308
-
310.
1402
SKINNER, 1999, op. cit., pp. 600
-
601.
1403
Cf. ibid., p. 601.
343
cabe aos magistrados e ao povo. No entanto, ao discorrer sobre o pacto, conforme afirma
Beza, “tudo o que procuram é estabelecer (...) que ‘em toda a parte onde prevalecem a lei e
a igualdade’, nenhuma nação jamais ‘criou nem aceitou reis, exceto sob condições
definitivas’”. Essa certeza é o que os conduz a mencionar um segundo contrato, puramente
político, que, de acordo com Beza, “assume a forma de ‘um juramento recíproco trocado
entre o rei e o povo’”.
1404
Todos os teóricos protestantes de maior destaque explicitaram o
caráter desse acordo: o autor de O político, o autor d
e
O despertador e Mornay na terceira
Questão
da
Defesa
tratam da obrigação recíproca entre o rei e seus súditos.
1405
Os huguenotes também estavam em comum acordo com os mais radicais de seus
predecessores escolásticos no que se refere às características que teria uma república que,
em uma condição pré
-
política, os povos consentissem em instituir por meio de um pacto. A
conclusão principal alcançada por eles é uma teoria da soberania popular que compõe o
cerne de seu constitucionalismo, em que o seu argumento mais notório, a defesa da
resistência, é apenas uma implicação dessa teoria.
1406
Conforme sustenta Mornay, em sua
Defesa
, o povo é o verdadeiro proprietário da república; todo o corpo do povo está acima
do rei, é maior que ele; o povo não aliena a sua soberania ao rei, apenas lhe delega para
que ele possa agir em prol do bem comum.
1407
Essa análise escolástica das origens e caráter das sociedades políticas legítimas
proporcionou aos huguenotes uma completa solução para os problemas ideológicos que
enfrentavam. Graças a ela, os huguenotes puderam reduzir os temores que ainda pudessem
continuar a existir quanto à possível natureza anárquica ou subversiva de seu pensamento
político. Agora, os huguenotes podiam assegurar que não defendiam que indivíduos
tivessem o direito de matar ou sequer oferecer resistência ao seu magistrado. Isto porque,
conforme afirmavam, o ato de consentimento que institui uma república legítima provém
de todo o conjunto do povo.
1408
O recurso constante a argumentos escolásticos também tornou possível que os
huguenotes afirmassem o caráter legítimo e constitucional de sua teoria da resistência,
jamais se tratando de um conselho à multidão para que se revoltasse contra seus
governantes legítimos. Conforme os calvinistas, essa observação adicional à teoria era
decorrente da tese segundo a qual apesar de conservar em si a suprema soberania, o povo
1404
SKINNER, 1999, op. cit., p. 601.
1405
Cf. ibid.
1406
Cf. ibid., pp.
601
-
602.
1407
Cf. ibid., p. 602.
1408
Cf. ibid., p. 603.
344
como um todo delega o direito de exercê-la aos magistrados inferiores que foram
escolhidos por ele para essa finalidade. Sendo assim, como afirma Mornay, “a a
utoridade
para opor-se a um tirano nunca deve estar com o corpo do povo, mas apenas com os
magistrados ‘a quem o povo transferiu sua autoridade e poder’”.
1409
Uma dificuldade ideológica adicional que os huguenotes da década de 1570
precisavam resolver decorria da necessidade que sentiam de justificar a resistência de uma
maneira que atraísse um público mais amplo do que as teorias defendidas pelos
revolucionários calvinistas da década de 1550, as quais obtiveram sucesso em um ambiente
mais sectário. Agora, os huguenotes estavam aptos a cumprir essa tarefa, graças ao mesmo
conjunto de argumentos escolásticos. Isto é,
neste momento,
os huguenotes se encontravam
em plenas condições de realizar a transição decisiva de uma teoria da resistência
genuinamente religiosa, subordinada à idéia de pacto que objetivava defender as leis
divinas, para outra teoria puramente política da resistência, fundamentada na idéia de um
contrato que institui um direito moral, e não somente um dever religioso, de resistir aos
governantes
que deixam de cumprir as suas obrigações, que é buscar o “bem do povo em
todos os seus atos públicos”.
1410
A argumentação dos huguenotes fundamenta-
se
essencialmente na tese natural de que o ato de prometer implica a obrigação moral de
quem fez a promessa e um direito moral da parte do outro signatário de exigir que ela seja
cumprida. O autor de O despertador, Beza e Mornay dizem que os reis prometeram
promover o bem comum, se eles violarem as condições do contrato, tornando
-
se tiranos, os
magistrados inferiores e os representantes do povo, que lhes concederam a autoridade, têm
o direito de resistir
-
lhes.
1411
Com a publicação dos tratados de Beza, Mornay e seus seguidos, que são os
principais tratados huguenotes da década de 1570, a teoria política protestante passa por
uma divisão conceptual decisiva. Até esse momento, mesmo os mais radicais calvinistas
legitimavam a resistência com base no dever que as autoridades constituídas tinham de
defender a verdadeira fé, a protestante. Entretanto, Beza Mornay e seus segu
idores
abandonaram a idéia de que a preservação da uniformidade religiosa era a única
justificativa para a resistência legítima.
1412
Conforme Skinner, “o resultado é uma teoria da
1409
SKINNER, 1999, op. cit., p. 604.
1410
Cf. ibid., pp. 604
-
605.
1411
Cf. ibid., pp. 605
-
606.
1412
Cf. ibid., p. 607.
345
revolução inteiramente política, alicerçada numa tese moderna e secularizada acima dos
direitos naturais e da soberania original do povo”.
1413
Contudo, ao compararmos esses argumentos utilizados por Beza, Mornay e seus
discípulos com o defendido nos Dois tratados de governo por John Locke, publicado em
1689, perceberemos que, apesar desses desenvolvimentos, a tese defendida pelos
huguenotes diferencia-se em dois pontos determinantes da visão clássica do
constitucionalismo do começo da época moderna. Beza, Mornay e seus seguidores
continuam raciocinando em termos do dever religioso e moral de resistir, limitando esse
direito aos magistrados inferiores e a outros representantes eleitos pelo povo, excluindo
deliberadamente os cidadãos enquanto indivíduos e até mesmo todo o conjunto do povo da
capacidade de tomar uma iniciativa política direta. Locke, além de legitimar a resistência
baseada completamente na linguagem dos direitos e dos direitos naturais, localiza a
autoridade para resistir em todo o corpo do povo e até mesmo em um indivíduo no caso de
ser privado de seu direito.
1414
Quando foi que ocorreu essa mudança decisiva? Na Escócia, no final da década de
1550, logo após a primeira revolução calvinista bem sucedida. Após essa revolução, a
Escócia tornou-se calvinista. Assim, o ato de convocar todo o povo a resistir aos reis
católicos tornara-se uma opção plausível numa tal intensidade que jamais seria viável para
os huguenotes. Além disso, as teorias apresentadas por
Ponet,
Goodman e Knox na década
de 1550 contribuíram para tornar legítima a idéia de que seria lícito todo o povo fiel a
Deus, e os santos tomados de forma individual, resistir a um governo tirano e idólatra. A
única coisa que restava por fazer era reformular essa teoria da linguagem dos deveres
religiosos para a dos direitos e assim se ter uma teoria da revolução totalmente secul
arizada
e populista. A quem coube esta proeza? Ao calvinista escocês afrancesado George
Buchanan
(1506
-
1582), em
O direito do reino entre os escoceses
, obra concebida em 1578,
mas publicada em 1589, na esteira dos tratados de Beza e Mornay. Na Escócia, ao
retornar
do exílio, depois da bem sucedida revolução calvinista de 1560, Buchanan desenvolveu o
legado do pensamento radical escolástico colocando-o a serviço da revolução
calvinista.
1415
Uma diferença decisiva entre Buchanan e Beza, Mornay e seus discípulos
decorre
de sua interpretação do contrato afirmado no ato de estabelecimento de uma república
1413
SKINNER, 1999, op. cit., pp. 607
-
608.
1414
Cf. ibid., p. 608.
1415
Cf. ibid., pp. 608
-
609.
346
legítima. No lugar da teoria da soberania popular direta, os huguenotes haviam
desenvolvido uma teoria da soberania representativa, segundo a qual o povo abre mão
de
sua autoridade em favor de magistrados inferiores para escolher e controlar os governantes.
Em contraste, Buchanan afirma que o povo instituiu um governante mediante um contrato
direto, sem intermediários, no qual os signatários são, de um lado, o governante e, de
outro, todo o corpo do povo. Buchanan salienta que essa condição da maneira de se formar
a sociedade política implica em uma leitura radical da soberania popular. Diferentemente
do que pensavam os tomistas, Buchanan afirma que, ao consentir em estabelecer um
governante e em seguida firmar um contrato para investi-lo, o povo de forma alguma
aliena sua soberania original.
1416
Buchanan está de acordo com os escolásticos mais
radicais, especialmente Almain e Mair “em que o povo apenas delega sua autoridade a um
governante cujo estatuto não é o de um soberano maior
universis
e
legibus
soluto
, e sim o
de um
minister
que permanece minor universis e, em conseqüência, está sujeito às leis
positivas da república”.
1417
Embora essa análise escolástica radical do caráter jurídico de toda república
legítima tenha sido elaborada por Beza, Mornay e seus seguidores, Buchanan se
apresenta muito mais revolucionário que eles em sua maneira de conceder o direito de
resistir a um governante que deixa de cumprir suas obrigações estabelecidas no contrato
firmado. Seu argumento é fundamentado na descrição estóica que faz da condição em que
os homens teriam resolvido fundar uma república. Um dos motivos que levaram Buchanan
a insistir em uma interpretação estóica, e não aristotélica, da condição pré-política do
homem, pode ter sido devido ao fato de que ela o ajudasse a legitimar uma concepção
marcadamente individualista e anárquica do direito à resistência política. Buchanan afirma
que como o governo legítimo foi estabelecido com o acordo de todo o povo, não somente
os seus representantes, mas todo o povo conserva nele o direito de resistir. Inúmeros
seguidores de Gerson, sobretudo Mair na sua História da Grã-
Bretanha
, já haviam
insinuado tal argumento em seus textos. Contudo, é Buchanan o primeiro teórico
constitucionalista a defendê-lo de maneira inequívoca e coerente.
1418
Para Buchanan,
“uma
vez que o povo como um todo cria seu governante, é possível, em qualquer época, ‘que o
povo se livre de todo
Imperium
que possa ter imposto a si mesmo, pois ‘tudo o que é feito
1416
Cf. SK
INNER, 1999, op. cit., pp. 610
-
611.
1417
ibid., p. 611.
1418
Cf. ibid., pp. 611
-
612.
347
por uma determinada autoridade pode ser desfeito pela mesma autoridade’”.
1419
Além
disso, acrescenta Buchanan que, como “cada indivíduo tenha concordado com a formação
da república no interesse de sua maior segurança e benefício, então, o direito de executar
ou depor um tirano deve situar-se, em todas as épocas, ‘não apenas com todo o povo’, mas
‘até mesmo com cada cidadão individual”.
1420
Em seu estilo escolástico radical, Buchanan
repete mais uma vez que o direito à resistência e deposição deve sempre residir no povo
como um todo”.
1421
Pierre Jurieu e a revogação do Edito de Nantes
A idéia de resistência ativa ao poder constituído, desenvolvida pelos luteranos e
mais ainda pelos monarcômacos calvinistas, na segunda metade do século XVI, se
utilizada por todos aqueles, sejam protestantes ou católicos, que visam combater os seus
governantes. Foi o que aconteceu, por exemplo, na Revolução Inglesa de 1640, que se
estendeu até 1649, na Fronda (1648-1653), como também na Revolução Inglesa de
1688/89. A indignação contra Luís XIV após a revogação do Edito de Nantes, em 1685,
misturada com a esperança proporcionada pelo êxito obtido pelos calvinistas ingleses
contra o rei católico Jaime II, na Revolução Inglesa de 1688/89, levam Pierre Jurieu a
defender essa idéia de resistência por meio da força, convidando os calvinistas franceses a
se insurgirem contra Luís XIV.
Após a revogação do Edito de Nantes, inúmeros protestantes franceses, refugiados
fora da França, empenharam-se em criticar o absolutismo de Luís XIV, bem como as teses
que defendiam esta forma de governo. Como observa Touchard, “a revogação do Edito de
Nantes (1685) é uma data importante na história das idéias políticas. (...) Ela provoca a
perseguição e a emigração dos protestantes franceses que constituem nos Países Baixos, na
Inglaterra e na Alemanha ardentes focos de oposição às teses absolutistas”.
1422
A perseguição aos protestantes, intensificada com a revogação do Edito de Nantes,
deu origem a inúmeros panfletos protestantes produzidos fora da França acusando Luís
XIV de tirania. Os panfletistas criticavam a perseguição de Luís XIV aos huguenotes,
mostrando
-o como impiedoso, cruel, opressor, enfim, um tirano. Nesta modalidade
1419
ibid., p. 612.
1420
SKINNER, 1999, op. cit., p. 612.
1421
ibid., p. 613.
1422
TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 12.
348
destacou
-se o panfleto revolucionário do
min
istro protestante francês refugiado na
Holanda,
Pierre Jurieu, intitulado Les soupirs de la France esclave, escrito em 1688.
1423
Segundo Louis André, com os protestantes franceses refugiados na Holanda, “a polêmica
toma característica violenta, rude e mesmo revolucionária”. Em
Les
soupirs de la France
esclave,
Pierre Jurieu “não hesitara em opor ao poder dos reis o do povo e defender o
direito à insurreição”. Ele fundou um serviço de espionagem na França, sendo logo
descoberto pelo governo francês.
1424
A Revolução Gloriosa ocorrida na Inglaterra em 1688-1689 piorou a situação. Esta
segunda Revolução Inglesa
que na verdade foi o desfecho tardio da Revolução de 1640
representou “o triunfo da monarquia
contratual
e do parlamentarismo sobre o direito
divino e o absolutismo. E, ainda mais, o do protestantismo perseguido e ameaçado sobre o
catolicismo perseguidor”. Os indignados e rancorosos protestantes franceses, refugiados
fora da França desde a revogação do Edito de Nantes, difundiam, por todos os lugares onde
tinham influência, o elogio à regeneração da Inglaterra e ao mesmo tempo justificavam o
ato de 1688
-
1689, dizendo que “a revolta dos ingleses contra seu rei papista não era menos
legítima do que a dos protestantes franceses contra o tirano Luís XIV”.
1425
De 1686 a 1689, de seu refúgio em Roterdã, Pierre Jurieu deu um depoimento
ameaçador aos olhos da ortodoxia. Ele publicou suas Lettres pastorales adressées aux
fidèles de France qui gémissent sous la captivité de Babylone, publicadas na Holanda e
difundida clan
destinamente na França, a contragosto de Bossuet, e imediatamente em toda
a Europa. Nesta carta de caráter teológico-
político,
Pierre
Jurieu contesta a legitimidade do
Edito de Fontainebleau ao mesmo tempo em que desenvolve uma teoria contratual do
poder.
No ano de 1689, particularmente, ele publicou “as cartas que sustentam a
legitimidade do direito de resistência ativa”. O grande objetivo de Pierre Jurieu era, de um
lado, exaltar o ato dos protestantes ingleses e, de outro, condenar com severas críticas
o
absolutismo de Luís XIV.
1426
Pierre Jurieu defendia a teoria do contrato que limita o poder
real e deposita a soberania no povo. Para Pierre Jurieu, se o monarca violasse as cláusulas
do contrato, o povo teria o direito de resistir
-
lhe.
1427
1423
Cf. BURKE, 1994, op. cit., pp. 149
-
150, 220.
1424
Cf. ANDRÉ, op. cit., p.
224.
1425
CHEVALLIER, Jean J. Pensamento político. Tomo 2. O declínio do Estado-nação monárquico. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1983, p. 13.
1426
Cf. ibid., p. 14.
1427
Cf. ibid., p. 15.
349
Nas Lettres pastor
ales
, de 1689, Pierre Jurieu critica o absolutismo de Luís XIV e
defende o empreendimento de Guilherme de Orange na Revolução Gloriosa. O mais grave
era que, nessas cartas de 1689, Pierre Jurieu enfatizava não ser importante saber se a
Inglaterra teve ou não razão, pois “a necessidade absoluta que encontrava a Inglaterra de
preservar o protestantismo bastava para justificar a expulsão do seu rei”.
1428
Nas
Lettres
pastorales
, a Revolução Inglesa de 1688-89 é totalmente justificada por Pierre Jurieu.
1429
Bossuet, que sempre fora um grande defensor da ortodoxia, ao perceber o alcance desta
ameaça heterodoxa, mostrou
-
se logo um “Bossuet anti
-
Jurieu”. Compreende
-
se então a sua
amarga lamentação quando, em dezembro de 1688, disse: “‘não faço outra coisa se não
prantear
o infortúnio da Inglaterra’”.
1430
Em 1690, Bossuet censurou as idéias de Pierre
Jurieu, em seu
Cinquième avertissement aux protestants
.
1431
A famosa polêmica entre Bossuet e Pierre Jurieu é considerada clássica.
1432
Pierre
Jurieu escreveu as
Lettres pastorales
, pu
blicadas entre 1686 e 1689, para rebater a
História
das Variações de Bossuet, publicada em 1688. Em seus Avertissement aux protestants sur
les lettres du ministre Jurieu contre l’Histoire des variations, sobretudo no quinto,
intitulado
Cinquième avertissement aux protestants, publicado em 1690, Bossuet responde
às provocações que Pierre Jurieu lhe faz nas Lettres pastorales. Essas cartas são os textos
mais conhecidos de Pierre Jurieu e notabilizaram-se dentre os panfletos que criticavam o
absolutismo de Luí
s XIV.
1433
Bossuet contra a idéia de soberania do povo
Como teólogo, Pierre Jurieu era ultraconservador. no campo da política, os seus
pontos de vistas eram muito liberais, assumidos de sua tradição calvinista, de Grócio e da
Revolução Inglesa de 1688-89 tão admirada e louvada por ele. Na esfera política, Pierre
Jurieu posicionou-se do lado oposto ao de Bossuet. Nas Lettres pastorales, Pierre Jurieu
defende a teoria inerente à tradição calvinista, segundo a qual a soberania reside
originalmente no povo e este a delega ao rei. Ele afirma que, conforme o contrato político,
firmado no ato da instituição dos governantes, não existe nenhum governo de direito
1428
CHEVALLIER,
1983, op. cit., p. 15.
1429
Cf. TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 13.
1430
CHEVALLIER, 1983, op. cit., p. 15.
1431
Cf. ibid., p. 14.
1432
Cf. TOUCHARD, v. 4, op. cit., p. 12.
1433
Cf. ibid. Ver CHEVALLIER, 1983, op. cit., pp. 13
-
14.
350
divino. Apesar de os reis serem lugares-tenente de Deus, ‘seus vigários e suas imagens
vivas’, o seu poder não vem imediatamente de Deus, mas dos povos. Inicialmente, a
soberania reside no povo.
1434
Nas Lettres pastoralles, Pierre Jurieu defende “tanto a soberania como os direitos
populares anteriores ao estabelecimento do governo”.
1435
Nessa obra,
Pierre Jurrieu
prega
a
soberania absoluta da nação. Segundo ele, “o povo é a fonte da autoridade dos soberanos; o
povo é o primeiro súdito em que reside a soberania; o povo volta a entrar na posse da
soberania logo que a pessoa ou as famílias a quem ele a havia concedido falham na sua
missão; o povo, numa palavra, é quem faz os reis”.
1436
Essa teoria de que toda autoridade política pertence ao povo e que este instituiu os
governantes nasceu na Idade Média, no interior da tradição escolástica, alcançou um
significativo desenvolvimento no século XVI, e é, sem dúvida, a grande inimiga teórica da
ideologia absolutista.
1437
Em 1625, Grócio a defendeu veementemente no seu Le droit de
la guerre et de la paix. Durante a Fronda (1648-1653), os monarcômcos franceses a
reviveram. E agora Pierre Jurieu recorria a ela para atacar o absolutismo de Luís XIV, bem
como o maior defensor de sua soberania, Bossuet.
Pierre Jurieu difere de Grócio ao dizer que quando os reis falham em sua missão a
soberania volta aos súditos. Recordemos que, para Gró
cio, no
Le droit de la guerre et de la
paix
, a soberania somente retornava ao povo no caso da extinção da família do rei. Dessa
forma, podemos afirmar que a maior influência sobre Pierre Jurieu, na defesa dessa teoria,
vem dos calvinistas franceses radicais da década de 1570 que, por sua vez, beberam na
vertente radical da escolástica. É evidente que as idéias defendidas anteriormente por
Grócio foram bem menos ameaçadoras ao absolutismo de direito divino que às sustentadas
agora por Pierre Jurieu.
Bossue
t fica horrorizado diante das afirmações de Pierre Jurieu. As teorias
apregoadas por Pierre Jurieu eram inadmissíveis para ele. Desse modo, Bossuet se
empenha em refutá-las em seu Cinquième avertissement aux protestants. Nesta obra,
Bossuet contesta a teoria defendida por Pierre Jurieu de que a origem da autoridade se
encontra no povo e este a deposita em quem lhe aprouver. Argumenta Bossuet que, antes
do estabelecimento de qualquer governo, no estado natural, os homens viviam em uma
1434
Cf. CHEVALLIER, 1983, op. cit., p. 14.
1435
BAUMER, op. cit.,
p. 131.
1436
apud TOUCHARD, v. 4,
op. cit.,
p
. 12.
1437
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., p. 394.
351
anarquia, ou seja, em guerra contínua uns contra os outros. Nesse estado natural, os
homens eram independentes e regidos pelo direito da natureza, pelas paixões, e não pela
razão. Bossuet afirma que nesse estado não havia governo e conseqüentemente nenhum
direito assegurado, como o direito ao repouso e à propriedade; na verdade, segundo ele,
não existia nenhum direito. Sendo assim, nesse estado natural de anarquia é impossível que
houvesse soberania no povo. Aliás, até mesmo a idéia da existência de povo nesse estado é
contestada
por Bossuet. Segundo ele, não existia povo, que para que este exista é
necessário que haja regras e direitos estabelecidos, coisas que não existiam nesta anarquia:
Ele (Pierre Jurieu) imaginou que o povo é naturalmente soberano; ou, para falar como ele,
que ele (o povo) possui naturalmente a soberania, visto que ele a a quem lhe agrada.
Ora, isso é errar no princípio e não entender os termos. Pois, a olhar os homens como eles
são naturalmente e antes de todo governo estabelecido, se encontra anarquia, isto é, em
todos os homens uma liberdade feroz e selvagem, onde cada um pode tudo pretender e no
mesmo tempo tudo contestar; onde todos estão em guarda e, por conseqüência, em guerra
contínua contra todos; onde a razão não pode nada, porque cada um chama
razão
a paixão
que o transporta; onde o direito mesmo da natureza permanece ser força, visto que a razão
não fez ponto; onde, por conseqüência, não nem propriedade, nem domínio, nem bem,
nem repouso assegurado, nem, a dizer verdade, nenhum direito, se esse não é o do mais
forte. Ainda não se sabe jamais quem o é, visto que cada um a sua vez o pode tornar-
se,
conforme as paixões farão conjurar um conjunto mais ou mesmo de gentes. Saber se o
gênero humano jamais esteve inteiro neste estado, ou quais povos estiveram e em quais
locais, ou como e por quais etapas dele saíram, seria preciso, para decidi-lo, contar o
infinito, e compreender todos os pensamentos que podem surgir no coração do homem.
Seja o que for, eis aí o estado onde se imagina os homen
s antes de todo governo. Imaginar
-
se agora, com o Sr. Jurieu, no povo considerado neste estado, uma soberania que é uma
espécie de governo, é pôr um governo antes de todo governo, e se contradizer a si mesmo.
Longe de o povo neste estado ser soberano, não sequer povo neste estado. Pode bem
neste estado ter família, e ainda que mal governadas e mal asseguradas, bem que pode
existir uma tropa, uma turba de gente, uma multidão confusa; mas não se pode falar de
existir um povo, porque povo supõe alguma coisa que reúna alguma conduta regrada e
algum direito estabelecido, o que acontece àqueles que começaram a sair desse estado
infeliz, isto é da anarquia.
1438
Como é possível perceber, no entendimento de Bossuet, o direito à propriedade está
relacionado
à autoridade do príncipe. Essa idéia de Platão havia sido defendida por ele
no livro primeiro da
Politique
, escrito entre 1677 e 1679, para refutar Grócio.
No
Le droit
de la guerre et de la paix, Grócio salienta que o direito à propriedade existiu desde o
começo do mundo. Ele argumenta que o direito universal, concedido aos homens por Deus
sobre as coisas da natureza, foi renovado após o dilúvio. Esse direito universal dava direito
à propriedade, pois se uma pessoa tomasse àquilo que estava sendo ocupado por outra
1438
BOSSUET, “
Cinquième avertisement aux protestants
, 1690”, in TRUCHET, op. cit., pp. 83
-
84.
352
estaria cometendo injustiça. Apesar de as coisas serem de uso coletivo, cada um tinha
direito sobre aquilo que ocupava.
1439
Com o tempo, os homens sentiram a necessidade de
dividir os bens que eram coletivos. E fizeram isso por meio do acordo que
levava em conta
o lugar ocupado por cada um.
1440
No livro primeiro da
Politique
, Bossuet recorre ao direito à propriedade para
mostrar que, ao contrário do que pregava Grócio, “todo direito deve vir da autoridade
pública”. Argumenta Bossuet que, no estado primitivo, no qual não havia governo, os
homens não tinham nenhum direito à propriedade, tudo era de uso comum. O direito à
propriedade nasceu da autoridade pública:
Em um governo regrado, cada particular renuncia ao direito de ocupar pela força o que lhe
convém. Excluído o governo, a terra e todos os seus bens são tão comuns entre os homens
quanto o ar e a luz. Deus diz a todos os homens: ‘crescei e multiplicai
-
vos e enchei a terra’.
Ele lhes a todos indistintamente ‘toda erva que traz seu germe sobre a terra e todos os
bosques que nela nascem’. Segundo esse direito primitivo da natureza, ninguém tem direito
particular sobre seja o que for, e tudo é em prol de todos. Em um governo regrado, nenhum
particular tem direito de nada ocupar. Abraão estava na Palestina, pede aos senhores do
país até a terra onde ele enterra sua mulher Sara: ‘dai-me direito de sepultura entre vós’.
‘Moisés ordena que após a conquista da terra de Canaã ela seja distribuída ao povo pela
autoridade do soberano magistrado. ‘Josué, diz ele, vos conduzirá’. E ele diz ao próprio
Josué:
‘vós introduzireis o povo na terra que Deus lhe prometeu, e s a ele distribuireis
por sorte’. A coisa foi assim executada. Josué com o conselho fez a divisão entre as tribos
e entre os particulares, segundo o projeto e as ordens de Moisés. Daí nasceu o direito de
propriedade. E em geral todo direito deve vir da autoridade pública, sem que seja permitido
nada invadir, nem nada atentar pela força.
1441
1439
De acordo com Grócio, “logo após a criação do mundo, Deus confere ao gênero humano um direito geral
sobre as coisas desta natureza inferior, e renova esta concessão após a regeneração do mundo pelo dilúvio.
‘Todas as coisas, como disse Justin, permaneciam comuns e pertenciam por indivisível a todos como um
patrimônio comum’. Daí acontecia que cada homem podia se amparar por suas necessidades do que ele
queria, e consumir o que podia ser consumido. O uso desse direito universal tinha então direito de
propriedade. Pois se então cada um era assim amparado, outro não podia lhe o tomar sem injustiça. Podemos
fazer uma idéia disso pela comparação que se encontra em Cícero (...): ‘ainda que o teatro seja comum,
podemos, contudo, dizer, com razão, que cada lugar é daquele que o ocupa’”. GRÓCIO, op. cit., p. 179.
1440
Conforme Grócio, “nós aprendemos, (...) como as coisas são tornadas propriedades. Isso não teve lugar
por um simples ato de vontade; pois os outros não podiam saber, a fim de se abster, o que cada um queria
tornar seu, e várias pessoas podiam querer se apropriar do mesmo objeto; mas esse foi o resultado de uma
convenção,
seja expressa: por meio de uma divisão, por exemplo; seja tácita: por meio, por exemplo, de uma
ocupação. É preciso presumir, com efeito, que do momento em que a comunidade de bens descende sem
chegar a uma divisão, todos caíram de acordo que o que cada um ocupava, ele o possuiria propriamente. ‘É
permitido a cada um, diz Cícero, de preferir adquirir para si, que de ver adquirir por outros, as coisas que são
de uso na vida, quando a natureza não repugna’. Podemos a este pensamento acrescentar essa passagem de
Quintiliano: ‘se tal é o estado de coisas, que tudo o que serve ao uso do homem permanece próprio àquele
que é o possuidor, asseguradamente, o que é legitimamente possuído pode ser arrebatado com injustiça”.
ibid., p. 182. “Cícero diz que, ‘depois que as coisas que eram naturalmente comuns começaram pertencer a
tal ou tal em particular, cada um tem o direito de conservar o que ele ocupa. (...) O Scholiaste de Horácio (...)
se exprime assim: ‘... uma casa ou um campo sem mestre é uma coisa comum; mas desde que elas são
ocupadas elas se tornam próprias...’”.
ibid., nota de rodapé, p. 182.
1441
BOSSUET, 1967, op. cit., pp. 19
-
20.
353
A leitura de Platão leva Bossuet a não admitir a existência de um direito natural.
Desde as primeiras páginas da
Politique
ele afirma que “‘todo direito deve vir da
autoridade pública’”.
1442
Em sua concepção, não pode sair nenhum direito de um estado de
anarquia, guerra, desordem. Lembremos que a experiência de três guerras civis, a
Revolução Inglesa de 1640, a Fronda (1648-53) e a Revolução Gloriosa de 1688/89, assim
como uma teologia agostiniana se faziam presentes em Bossuet.
1443
A afirmação de Bossuet de que após o estabelecimento da autoridade pública é
que nasce o direito à propriedade, bem como a idéia de estado de guerra primitivo em que
os homens se tornam inimigos uns dos outros, aproximam-se das de Hobbes, no De Cive,
publicado em 1642.
1444
Nesta obra, Hobbes ressalta que o direito à propriedade não se
conceb
e sem o Estado.
1445
Da mesma forma, Hobbes afirma que, no estado natural,
imperava o egoísmo da humanidade, a guerra, enfim, a anarquia.
1446
Bossuet ressalta, no Cinquième avertissement aux protestants, que, como não havia
povo nem soberania no estado de anarquia, é completamente equivocada a idéia defendida
por Pierre Jurieu de que o povo possuía a soberania e instituiu os governos. Para Bossuet, a
soberania não é algo que é preciso que alguém tenha para dá
-
la a outra pessoa, ela se forma
quando a multidão se cansa de viver na anarquia, em que todos são livres e independentes,
mas não têm nenhum direito assegurado, onde prevalece a força, e renuncia a sua liberdade
se submetendo à lei e a um governante que lhe convenha:
Do fundo desta anarquia que saíram todas as formas de governos: a monarquia, a
aristocracia, o estado popular e os outros. (...) é isso que quiseram dizer aqueles que
disseram que todas as espécies de magistraturas ou de poderes legítimos vinham
originalmente da multidão ou do povo. Mas não é preciso concluir daí, com o Sr. Jurieu,
que o povo como um soberano distribuía os poderes a cada um. Pois para isso seria preciso
que houvesse aí ou um soberano ou um povo regido, o que nós vimos que não havia. Não é
preciso mais imaginar-se que a soberania ou o poder público seja uma coisa como
subsistente, que é preciso ter para dá-la. Ela se forma e resulta da cessão de particulares,
quando fatigados do estado onde todo o mundo é o mestre e onde ninguém o é, eles se
deixaram persuadir de renunciar a esse d
ireito que põe tudo em confusão, e a esta liberdade
que faz tudo crer a todo o mundo, em favor de um governo do qual se convém. Se agrada
ao Sr. Jurieu de chamar soberania esta liberdade indócil que faz ceder à lei e ao magistrado,
ele o pode. Mas isso é confundir tudo; é confundir a independência de cada homem na
anarquia com a soberania. Mas é aí ao contrário o que a destrói. Onde tudo é independente,
não há nada de soberano; pois o soberano domina o direito, e aqui o direito de dominar não
1442
LE BRUN, in BOSSUET, 1967, op. cit., pp.
XXVII
-
XXVIII.
1443
Cf. ibid., p. XXVII.
1444
ibid., nota de rodapé, p. 19.
1445
Cf. MERÊA, op.
cit., p. 176.
1446
Cf. ibid., pp. 166
-
171
.
354
existe ainda. se domina sobre aquele que é dependente. Ora, nenhum homem é suposto
tal neste estado. E cada um nele é independente, não somente de outro, mas ainda da
própria multidão. Até essa que ela se
reduz
a fazer um povo regrado, não tem outro direito
que o da
força. Eis aí a soberania do Sr. Jurieu: é na anarquia o mais forte, isto é a multidão
e o grande número contra o pequeno. Eis o povo que faz o mestre e o soberano sobre
todos os reis e todo poder legítimo; eis aquele que ele chama o
Tuteur
e o
Défen
seur
naturel
de la véritable
religion
; eis aquele, em uma palavra, que, segundo ele, ‘não tem
necessidade de ter razão para validar seus atos’; pois, disse o Sr. Jurieu,‘esta autoridade
está no povo’, e se vê o que ele chama povo.
1447
A clássica polêmica entre Bossuet e Pierre Jurieu não foi somente uma questão de
católicos e protestantes; nesta disputa intervinha o direito natural. O fato é que Pierre
Jurieu sofreu a influência de Grócio.
1448
Como vimos, no Le droit de la guerre et de la
paix
, Grócio defendia a idéia de que antes do estabelecimento do governo, no estado
natural, o povo, regido pela razão que lhe era própria, possuía direitos como também a
soberania. Bossuet considera esta idéia absurda. Em seu entendimento, é impossível haver
soberania no
estado de anarquia. A este respeito, Hasard, observa que
Jurieu havia se apoiado em Grócio. A Grócio, Bossuet conhecia bem; era um homem sábio
de verdade, e bem intencionado; porém sociniano, espírito perigoso, que confundia o
divino e o humano. Que queria dizer com seu direito natural? Imaginar-se que o povo é
inteiramente soberano é pensar sem vida que a humanidade, em seu estado primitivo,
tem a noção de um direito de soberania que lhe é próprio e do poder que possui de delegar
essa soberania em quem lhe agrada. Que erro! Grócio, e Jurieu depois dele, erram no
princípio e não entendem os termos. Não tem que enganar-se: se o primeiro estado da
humanidade era uma anarquia feroz e selvagem, e os primeiros grupos de homens
constituíam, como a razão permite supor, não um povo, sim uma horda, como conceber
então uma soberania que fora uma espécie de governo? (...) Bossuet não pode conceber
que uma anarquia delegue em uma soberania.
1449
Bossuet em batalha contra a idéia de pacto e o direito à insurreição
Conforme observa Hasard, após a revogação do Edito de Nantes, “da França que se
constitui fora da França, dos refúgios estabelecidos em terras estrangeiras, partem
chamados
à rebelião”.
1450
Mas é preciso considerar que, mesmo após a perseguição e
expulsão, não eram todos os reformadores que acreditavam ter se desligado do juramento
de fidelidade em relação ao seu rei; nem todos eles resolveram da mesma maneira o
1447
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., pp. 84
-
85.
Recordemos que no século XVII, a expressão “estado popular” era usualmente utilizada para designar o
regime republicano.
Cf. TRUCHET, op. cit., nota de rodapé, p. 84.
1448
Cf
.
HASARD, op. cit.,
p. 232.
1449
ibid.
1450
ibid., pp. 231
-
232.
355
problema de consciência “que se lhes punha”, visto que muitos continuavam acreditando
que “como o direito divino funda a obediência ao príncipe, as faltas do príncipe não
alteram a autoridade do rei de direito divino”. Enfim, nem todos os reformados incitaram a
rebelião.
1451
De fato, por muito tempo, os protestantes nutriram sentimentos de lealdade em
rel
ação à monarquia. Quando foi expulso da França, em 1685, o pastor Eli Merlat declarou,
em seu Tratado do poder absoluto dos soberanos, publicado na Colônia no mesmo ano,
que “‘os soberanos a quem Deus permitiu ascender ao poder absoluto não têm nenhuma lei
que os coloque sob a alçada dos seus súditos... Resulta daí a impunidade universal das suas
ações entre os homens e a conformação dos povos para sofrer sem rebeldia tudo o que tais
príncipes podem fazer-lhes sofrer’”.
1452
Da mesma forma, em As lamentações do
s
protestantes cruelmente oprimidos no reino da França, publicado na Colônia em 1686, o
pastor Jean Claude, em nome da razão e dos irrevogáveis direitos da natureza humana,
protesta contra a revogação do Edito de Nantes, mas de forma alguma admite que os
súditos possam revoltar-se contra o poder de seu rei.
1453
Até mesmo Pierre Jurieu, antes da
revogação do Edito de Nantes, declarara que os protestantes são os fiéis súditos do rei e
que têm o dever de obedecer
-
lhe”.
1454
No entanto, após 1685, dentro da tradição calvinista, Pierre Jurieu, indignado, pede
em alta voz, “que à violência responda a violência”.
1455
Em 1687, em Des droits des deux
souverains en matière de religion. Le philosophe de Rotterdam, ele afirma que “um povo
tem direito de recusar obediência a um t
irano”.
1456
Em suas Lettres pastorales, de 1689,
o
direito à insurreição é proclamado por Pierre Jurieu. Segundo ele, “‘o uso da espada dos
príncipes não se estende às consciências’”. Ao ter usado a espada para forçar as
consciências, Luís XIV se coloca fora da lei, portanto, a partir desse momento, a rebelião é
considerada legítima.
1457
Ao dizer que a autoridade do príncipe não se estende às consciências, Pierre Jurieu
está se referindo apenas a sua religião. Não nos enganemos achando que ele fosse um
defensor da liberdade de consciência, que se posicionasse contra a intolerância religiosa
1451
Cf.
HASARD, op. cit.,
p. 231.
1452
TOUCHARD, v. 4,
op. cit.,
p. 13.
1453
ibid.
1454
Cf. ibid., p. 14.
1455
Cf. ibid., p. 231.
1456
JURIEU, op. cit., p. 152.
1457
Cf. HASARD, op. cit., p. 231.
356
por parte dos príncipes. Pelo contrário. Em Des droits des deux souverains en matière de
religion
, Pierre Jurieu censura o autor do
Commentaire Philosophique
, Pierre Bayle (164
7-
1706), também protestante refugiado na Holanda, por defender a total liberdade de
consciência e que os soberanos não têm o direito de interferir na religião de seus súditos.
Em contra
-
ataque a Bayle, Pierre Jurieu utiliza
-
se de inúmeros argumentos para p
rovar que
os soberanos têm o direito de perseguir as falsas religiões para suprimi-las de seu reino.
1458
Logo Jurieu não chega a ser tão moderno, na medida em que defende o mesmo princípio
do monopólio da autoridade, com relação à confissão religiosa.
Pierre
Jurieu era um polemista temível. Em Le vrai système de l’Église,
ele
defendia a teoria do contrato. O Edito de Nantes era visto pelos jurisconsultos protestantes
como um contrato estabelecido entre os reformados e o rei.
1459
Em Des droits des deux
souverains
en matière de religion, referindo-se a Bossuet, Pierre Jurieu observa que “certo
autor que escreveu um tratado de poder absoluto dos soberanos (...), debitou máximas
fortes próprias a fazer tiranos e a favorecer os opressores da verdade e os violadores dos
tratados”.
1460
A idéia de que o Edito de Nantes era um contrato firmado entre os
protestantes e os soberanos franceses é generalizada por Pierre Jurieu na
Le vrai systême de
l’Église
; nesta obra, Pierre Jurieu “faz do contrato o princípio de toda autoridade”
.
1461
Nas Lettres pastorales, Pierre Jurrieu salienta que, independente de qualquer coisa
que possam argumentar os absolutistas, entre o povo e o rei um contrato, um pacto
mútuo, expresso ou tácito. A relação dos súditos com o rei tanto quanto a da esposa com o
marido, do filho com o pai, a do servidor com o patrão é e pode ser uma relação
contratual.
1462
De acordo com Pierre Jurieu, nas
Lettres pastorales
, “existe um pacto mútuo
entre o povo e o rei; quando uma das partes chega a violar este pacto, a outr
a fica desligada
do compromisso...”.
1463
Em seu
Cinquième avertissement aux protestants
, Bossuet esforça
-
se para combater
tais idéias. Ele refuta a doutrina do
pacto
defendida por Piere Jurieu. Bossuet contesta as
idéias defendidas por ele de que é contra a natureza e a razão que um povo se submeta a
um soberano sem a existência de algum pacto, e que a existência de algum tratado que
estabelecesse a submissão de um povo a um soberano sem pacto seria nulo, que seria
1458
Cf. JURIEU, op. cit.
, pp. 143
-
155
.
1459
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 83.
1460
JURIEU, op. cit., p. 144.
1461
Cf. TRUCHET, op. cit., p.
83.
1462
Cf.
CHEVALLIER, 1983, op. cit., p. 14.
1463
apud TOUCHARD, v. 4,
op. cit.,
p. 12.
357
contrário à própria natureza das coisas; de que todas as relações entre os homens são
estabelecidas mediante um pacto que estabelece direitos e obrigações mútuas; de que, em
decorrência, o descumprimento das obrigações por uma das partes anula as obrigações da
outra parte envolvida:
É a doutrina dos pactos, que o ministro explica nestes termos: ‘é contra a razão que um
povo se submeta a um soberano sem qualquer pacto, e que tal tratado seria nulo e contra a
natureza’. Não se trata, como se vê, da constituição particular de qualquer Estado; trata-
se
do direito natural e universal, que o ministro quer encontrar em todos os Estados. ‘É, diz
ele, contra a natureza se submeter sem qualquer pacto’, isto é se submeter sem se reservar o
direito soberano; pois é o pacto que ele quer estabelecer. Como ele dizia: é contra a
natureza arriscar qualquer coisa para sair do mais terrível de tosos os estados, que é a
anarquia; é contra a natureza fazer o que tantos povos faziam, como vimos. Mas deixemos
todas essas razões. Como esses pactos do Sr. Jurieu não se en
contram mais, e que há muito
tempo que o original se perdeu, a menos que se possa solicitar a esse ministro que prove o
que afirma. E ele o faz do seguinte modo: ‘não relação no mundo que não seja fundada
sobre um pacto mútuo, expresso ou tácito, exceto a escravidão, tal como era entre os
pagãos, que deram a um mestre poder de vida e de morte sobre seu escravo sem nenhum
conhecimento de causa. Esse direito era falso, tirânico, puramente usurpado e contrário a
todos os direitos da natureza’. E um pouco mais adiante: ‘é então certo que não
nenhuma relação de mestre, de servidor, de pai, de filho, de marido, de mulher, que não
seja estabelecida sobre um pacto mútuo e sobre obrigações mútuas. De modo que, quando
uma parte destrói essas obrigações, elas são destruídas do outro’. Por especioso que seja
esse discurso em geral, se o lermos com mais vagar, encontramos nele tanta ignorância
quantas palavras contém.
1464
Essa teoria de que, no período pré-político, o povo era livre é consentiu em se
submeter ao poder de um governante mediante um pacto que estabelecia as obrigações de
cada uma das partes; e que se o governante deixasse de cumprir as suas obrigações,
simultaneamente, o povo estaria livre da sua obrigação de obedecer-lhe, vinha da tradição
escolástica
, sendo defendida tanto em sua vertente antiga, representada por São Tomás de
Aquino, como na moderna, defendida por Occam e Gerson. A teoria do pacto foi retomada
pelos monarcômacos calvinistas, na segunda metade do século XVI, no decorrer das
Guerras de Religião na França, passando pelos revolucionários ingleses quando da
Revolução Inglesa de 1640, e pelos monarcômacos franceses durante a Fronda. Um ano
depois da revogação do Edito de Nantes, Pierre Jurrieu passou a ressaltá-la. Aqui, Pierre
Jurieu é totalmente contrário a Grócio. No Le droit de la guerre et de la paix, apesar de
afirmar que a soberania pertencia ao povo e que foi este quem estabeleceu os soberanos,
Grócio não fala da existência de um pacto firmado neste momento, embora tudo leva a crer
qu
e acreditava nele. Por outro lado, Grócio deixou bem claro que não admitia a idéia
1464
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., pp. 85
-
86.
358
defendida pelos tomistas e os calvinistas radicais de que se o soberano deixasse de cumprir
suas obrigações os súditos não precisariam mais obedecê-lo. Mais uma vez fica claro que
as teorias ressaltadas por Pierre Jurieu eram bem mais perigosas aos soberanos que às
defendidas anteriormente por Grócio.
As idéias inerentes às tradições escolástica e calvinista de que a soberania pertence
ao povo, por ele delegada ao soberano mediante um pacto que estipula as obrigações de
ambas as partes, com a cláusula suspensiva de que, no caso de o soberano deixar de
cumprir as suas obrigações, o povo ficar dispensado do compromisso de obediência,
professadas por Pierre Jurieu, representavam sério risco para a tese oposta, expressa no
absolutismo de Luís XIV. Ademais, na linha da tradição escolástica e da vertente
conservadora da tradição calvinista, representada pelos calvinistas do Norte, difundidas na
segunda metade do século XVI, Pierre Ju
rieu afirma que o povo tem o direito de resistir ao
soberano.
A idéia de resistência aos tiranos por magistrados inferiores tem raízes profundas,
remonta ao século XIII. Ela era aceita tanto pelos escolásticos da via antiga como da
moderna. A via antiga d
a escolástica é representada por São Tomás de Aquino.
No
Do governo dos príncipes
, publicado em 1265, São Tomás de Aquino aconselha
que quando a tirania não é excessiva, é melhor suportá
-
la. Pois, na luta contra um tirano, os
súditos correm o risco de mergulhar o Estado em perigos ainda maiores que a própria
tirania.
1465
Diante da questão de se “é lícito matar o tirano”, São Tomás de Aquino defende
o “mérito da submissão”.
1466
Ele observa que, quando a tirania é insuportável, alguns
defendem que compete aos homens fortes exporem-se aos perigos de morte para livrar o
seu povo do tirano; exemplo de casos assim até mesmo no Antigo Testamento.
Contudo, São Tomás de Aquino lembra que tal prática não está de acordo com a doutrina
apostólica, segundo a qual os súditos devem obedecer não somente aos governantes bons,
mas também aos injustos. Ele salienta que suportar pacientemente as injustiças de um
1465
Segundo São Tomás de Aquino, “se não for excessiva a tirania, mais conveniente é temporariamente
tolerá
-la branda, do que, na oposição ao tirano, ficar-se amaranhado em muitos perigos mais graves do que a
própria tirania. Pode, certamente, acontecer não cheguem a prevalecer contra o tirano os que se lhe opõem e
assim, provocado, se enfureça mais. Se, entretanto, puder alguém vencer o tirano, deste fato mesmo advirão,
muitas vezes, gravíssimas dissensões no povo, dado que, durante a insurreição contra o tirano ou derrubado
ele, a multidão se divida em facções quanto à organização política. Dá-se, por vezes, o caso de, quando a
multidão expele o tirano, ajudada de alguém, este, apanhando o poder, assumir a tirania e, temendo sofrer de
outro o que fez contra um, oprimir os subordinados em mais grave servidão. Verdadeiramente, sói acontecer,
na tirania, tornar-se a posterior mais grave que a precedente, como não retira os agravantes anteriores e, até
pela perversidade do coração, excogita novos”. AQUINO, op. cit., pp. 47
-
49.
1466
ibid.,
p. 49.
359
tirano consiste em uma graça, pois é assim que os cristãos provam a sua em Deus. Por
isso é que quando os antigos cristãos foram perseguidos pelos imperadores romanos por
causa de sua fé, eles não resistiram, pelo contrário, sofreram pacientemente até a morte.
1467
Mas, quando a tirania se torna insuportável, São Tomás de Aquino aceita a
resistência dos súditos. Quanto a que
m poderia agir contra um soberano cuja tirania se haja
tornado insuportável, São Tomás de Aquino adverte que não é lícito que particulares ajam
contra ele.
1468
Em seu entendimento, somente as autoridades públicas têm o direito de agir
contra os tiranos. São Tomás de Aquino observa que quando os reis deixam de cumprir as
obrigações contidas no pacto contraído no momento em que o seu poder foi instituído,
passando a abusar de seu poder, tornando-se tirano, o povo fica desobrigado do juramento
de obediência. Mas ele adverte que somente as autoridades públicas, isto é, os magistrados
inferiores passam a ter o direito de destituí-lo do poder; aos particulares fica vedado este
direito.
1469
Quando os súditos não têm nenhum magistrado inferior a quem recorrer,
conforme São Tomás de Aquino, eles devem pedir a ajuda de Deus, o único que pode
abrandar o coração dos tiranos.
1470
Os escolásticos radicais, representantes da via moderna,
1467
Conforme São Tomás de Aquino, “se é insuportável o excesso de tirania, pareceu, a alguns, competir ao
valor dos homens fortes matarem o tirano, e exporem-se aos perigos de morte pela libertação do povo, coisa
de que há exemplo até no Velho Testame
nto, pois certo Aiot tornou
-
se juiz do povo por ter matado, com uma
punhalada na coxa, a Eglão, rei de Moab, que oprimia o povo com pesada escravidão. Isto, porém, não
convém com a doutrina apostólica. Ensina-nos São Pedro que devemos ser reverentemente submissos tanto
aos senhores bons e moderados, como também aos díscolos. É, de fato, uma graça o sofremos molestações
injustas, para darmos testemunho [de fé] em Deus, razão por que, quando muitos imperadores romanos
perseguiam tiranicamente a cristã, sendo convertida a ela grande multidão tanto de nobres como de
povo, são louvados não por resistirem, senão por padecerem paciente e resolutamente à morte (...) Quanto a
Aiot, deve-se julgá-lo ter morto antes um inimigo que um cabeça do povo, embora tirano. Lê-se no Velho
Testamento, haverem sido mortos os que mataram a Joás, rei de Judá”.
AQUINO, op. cit., pp. 49
-
50.
1468
De acordo com São Tomás de Aquino, para o povo é mais perigoso perder um rei do que viver sob um
tirano. “Seria, sem dúvida, perigoso para
o povo e seus governos que algumas pessoas, por iniciativa privada,
tomassem a si o assassinarem os governantes, embora tiranos. Com efeito, aos riscos de tal ato expõem-
se
mais freqüentemente os maus que os bons. Ora, aos maus sói ser pesado o senhorio dos reis, não menos que o
dos tiranos, porquanto, conforme a sentença de Salomão: o rei sábio afugenta os ímpios. Assim, pois, da
iniciativa de quejandos, mais correria o povo o perigo de perder o rei, do que ser remediado com o
afastamento do tirano”. ibid.
, p. 50.
1469
Conforme São Tomás de Aquino, “quer, assim, parecer que se não deva proceder contra a perversidade
do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública. Primeiro, porque competindo ao direito de
qualquer multidão prover-se de um rei, não injustamente pode ela destruir o rei instituído ou refrear-lhe o
poder, se abusar tiranicamente da régia potestade. Nem se de julgar que tal povo age com infidelidade
destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, por ist
o que mereceu não cumpram
os súditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, na governação do povo, como exige o
dever de rei. (...) Se, pois, ao direito de alguém superior pertence providenciar sobre o rei, também dele se há
de esperar rem
édio contra a maldade do tirano”. ibid., p. 51.
1470
Segundo São Tomás de Aquino, “se, no entanto, de modo nenhum se puder obter humano auxílio contra
o tirano, deve-se recorrer ao rei de todos, Deus (...). Que em seu poder está converter à mansidão o coração
cruel do tirano”. ibid., p. 52.
360
Occam e Gerson, no século XIV, Mair e Almain, no início do século XVI, também
acreditavam que so
mente os magistrados inferiores poderiam se opor aos tiranos.
1471
No século XVI, ancorados no direito privado, os luteranos radicais da década de
1530, Melanchthon, Andreas Osiander e Martin Bucer, desenvolveram essa teoria da
resistência pelos magistrados inferiores, a qual será retomada e difundida pelos luteranos
da década de 1550.
1472
Essa teoria será tomada de empréstimo pelos calvinistas radicais da
década de 1550. Mas enquanto os calvinistas radicais do norte da Europa, Teodoro de Beza
e Pedro Mártir, continuaram a defender que somente os magistrados inferiores podiam
resistir aos tiranos, os calvinistas ingleses, que eram ainda mais radicais, passaram a
defender a teoria da revolução popular. Ponet e Goodman, afirmavam que o dever de se
opor à idolatria e à tirania de reis que se tornavam tiranos não cabia apenas aos
magistrados inferiores, mas a todo o conjunto do povo, ou seja, aos indivíduos particulares.
Essa teoria deu início à clássica teoria liberal da revolução popular, a qual se tornará a
corrente
dominante no pensamento constitucional moderno, e que é defendida por Locke
em 1689. Porém, enquanto Locke legitima a resistência como um direito moral de resistir,
particularmente como um direito de se defender, que pertence a todo o corpo do povo, em
dec
orrência de a finalidade de uma sociedade política ser a segurança e a tranqüilidade de
seus integrantes, Ponet e Goodman a mostram como um dever religioso, imposto a todos
os indivíduos, de defender as leis de Deus e a verdadeira religião. Na década de 1570, os
calvinistas radicais do norte da Europa, Beza, Mornay e seus discípulos transformaram o
conceito de dever religioso de resistir em um direito moral, uma teoria totalmente secular,
desligada da religião. Mas eles só concediam esse direito aos magistr
ados inferiores. Será o
escocês Buchanan que, em 1578, converterá o
dever
de resistir a todo o povo
que Ponet e
Goodman haviam defendido na década de 1550 para o
direito
que todo o povo tem de
resistir, teoria esta que será utilizada por Locke em 1689.
1473
Em 1625, no Le
droit de la guerre et de la paix
, Grócio diz que a defesa da vida é o
primeiro motivo legítimo de se fazer a guerra; que todos têm o direito de se
preservar.
1474
Segundo ele, “se nosso corpo é atacado por um ato presente de violência,
1471
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 402
-
403, 406, 408.
1472
Cf. ibid., pp. 470
-
484.
1473
Cf. ibid., pp. 484
-
613.
1474
De acordo com Grócio, “nossa tese é provada pelo acordo unânime de todas as nações e principalmente
de todos os sábios. Conhece-se esta passagem de Cícero, onde, tratando do direito de empregar a força para
defender sua vida, ele toma testemunho a própria natureza: ‘é, diz ele, uma lei que não é escrita, mas que
nasce conosco; (...) extraída da natureza mesma, a qual nós não temos formado, mas pela qual nós fomos
feitos, da qual nós não temos sido instruídos, mas da qual nós somos imbuídos, que se atenta à nossa vida por
361
acar
reta perigo de vida, e que se não possa de outro modo evitar, nesse caso, a guerra é
lícita, mesmo até a matar aquele que nos expõe a este perigo”.
1475
Mas quando se trata da
questão “de saber se é permitido a particulares ou a pessoas pública fazer a guerra
contra
àquelas autoridades às quais estão submetidos”
1476
, em caso de tais autoridades cometerem
injúrias contra eles, Grócio é extremamente cauteloso.
Primeiramente, Grócio interdita a resistência de particulares. Como vimos no
capítulo anterior, no entendimento de Grócio, os homens resolveram se submeter à
autoridade de um soberano motivados pelas vantagens que a sociedade civil lhes
proporciona. Grócio adverte que, apesar de todos os indivíduos possuírem o direito natural
de se defender contra uma injúria recebida, como a sociedade civil foi instituída para a
conservação da tranqüilidade pública, o Estado tem o poder de proibir este direito de
resistência. Pois a conservação de tal direito particular seria o fim da sociedade civil,
desembocando em uma multidão desordenada sem governantes e, portanto, sem leis.
1477
Conforme Grócio, o poder do povo ou do rei que exerce a soberania não se conservaria se
cada um tivesse o direito de resistir.
1478
Sendo assim, segundo Grócio, ‘lemos em
traição, seja pela força aberta e que se nós caímos entre as mãos ou de bandidos, ou de inimigos, todo meio
de salvação é honesto’. ‘É, diz ainda o mesmo autor, uma lei que a razão ditou aos espíritos cultivados, que a
necessidade prescreveu às pessoas incultas, praticada às nações, a natureza mesma às bestas selvagens, de
repelir sempre de seu corpo, de sua cabeça, de sua vida, e por qualquer meio que esteja em seu poder, toda
violência que lhes ameaça’. O jurisconsulto Graius dizia que ‘a razão natural permite de se defender contra o
perigo’. ‘É uma regra do direito, diz o jurisconsulto Florentinus, que tudo o que se faz para a defesa de seu
corpo, seja tido por cumprido legitimamente’. ‘É, com efeito, diz Josephe, uma lei da natureza, que reina no
seio de todos os seres animados, que todos querem viver; e eis porque s consideramos como inimigos,
aquel
es que buscam abertamente a nos despojar da vida’”. GRÓCIO, op. cit., pp. 53
-
54. E ainda, “Sêneca diz
que ‘o homem mais seguro de se defender está próximo de cada um; cada um é encarregado do cuidado de
sua própria defesa’. Segundo Quintiliano a defesa deve sempre ocupar o primeiro lugar, porque a
conservação de si mesmo passa naturalmente antes do cuidado de perder seu adversário. É então com razão
que Sófocles exprime o pensamento que ‘se Hércules só tivesse pensado em se defender abertamente, Júpiter
lhe
teria perdoado, pois ele teria legitimamente combatido’”. ibid., nota de rodapé, p. 54.
1475
ibid., p. 165.
1476
ibid., p. 132.
1477
Conforme Grócio, “é certo que todos os homens têm naturalmente (...) o direito de resistir para repelir a
injúria que lhe é feita. Mas a sociedade civil tendo sido estabelecida para conservar a tranqüilidade, o Estado
adquire primeiramente sobre nós e sobre o que nos pertence, uma espécie de direito superior, tanto que
isso
é
necessário
para este fim. O Estado pode então, pelo bem da paz pública e da ordem, interditar esse direito
comum de resistência; (...) Pois se esse direito comum subsistisse em cada particular, essa não seria mais uma
sociedade civil; essa seria uma multidão desordenada, semelhante àquela dos cyclopes, onde ‘cada
um
governa sua família e reina sobre sua mulher e sobre seus filhos’, tropa confusa onde ninguém obedece a
outro. Tal era também aquela dos aborígenes, que Salluste nos apresenta como uma raça de homens
grosseiros, sem leis, sem governo, livre e desunido. O mesmo autor em outro local diz a mesma coisa dos
gelules, que não eram regidos nem pelos costumes, nem pelas leis, nem pela autoridade de ninguém”. ibid.
“Valério diz a mesma coisa dos Bebrycianos: ‘eles não observam nenhuma lei; nenhum direito não se i
mpõe
as suas vontades para torná
-
los pacíficos”. ibid., nota de rodapé, p. 132.
1478
Segundo Grócio, “a majestade, isto é, a dignidade seja do povo, seja do indivíduo que exerce o poder
soberano, se encontra em toda parte por tantas leis, tantas sanções; ela não poderia se conservar se a tivesse
deixado a cada um a liberdade de
resistência”. GRÓCIO, op. cit., p. 133.
362
Aristóteles que se um magistrado atormentar alguém, este não deve lhe atormentar a seu
turno’”.
1479
Segundo Grócio, como os interesses individuais estão contidos nos interesse
públicos, deve-se buscar o interesse do todo e não dos particulares. Em um Estado, as
partes só serão conservadas com a conservação do todo. Assim, se um particular resistir ao
poder público ele estará colocando em risco a sua própria vida.
1480
Conforme Grócio, “ora,
em matéria de coisas públicas, o que é sem contradição o mais importante é este arranjo
(...) segundo o qual uns comandam e os outros obedecem. É incompatível com a liberdade
que cada particular tivesse de resistir”.
1481
Segundo Grócio, os particulares não devem se
armar contra a sua pátria para livrá-la de tiranos.
1482
É preferível que os particulares
obedeçam aos poderes estabelecidos.
1483
Grócio recorre à idéia do “herói manifesto”
defendida por Calvino, nas Institutas da religião cristã
1484
, e diz que um particular tem
o direito de resistir a um tirano se ele tiver um mandato especial de Deus para isso.
1485
1479
ibid.
1480
Grócio observa que, segundo Ambrósio “‘o interesse individual é o mesmo que o interesse geral’. Os
jurisconsultos dizem também: ‘devemos sempre observar, não o que interessa cada associado em particular,
mas o que é vantajoso para o conjunto da sociedade’”. ibid., nota de rodapé, p. 135. “Devemos ainda citar
aqui as seguintes palavras de Péricles (...) que se encontram em Tucídedes: ‘por minha parte, estimo que os
indivíduos são mais felizes em uma cidade na qual o conjunto prospera, que se o indivíduo prospera o Estado
enfraquece. O indivíduo, qualquer que seja seu bem estar, não é menos, necessariamente, envolvido no
desastre de sua pátria; ainda que, se ele prova fracassos pessoais, ele tem na prosperidade pública maior
chance de salvação. (...) Tito Lívio expressa em poucas palavras o mesmo pensamento: ‘um Estado que
prospera põe comodamente os interesses privados ao abrigo; traindo o interesse comum, é vão que vós
pensais pôr o vosso próprio ao abrigo’. Platão havia dito, no livro IV de seu Tratado das leis, que ‘o que faz
o vínculo dos Estados é o zelo do bem público, e o que os destroem é pensar no interesse individual; de
onde a conseqüência que é mais vantajoso para o Estado e para os particulares os interesse públicos que os
interesse privados’. Xenofonte, de seu lado, declara que aquele que, em uma guerra, conspira contra o chefe
do exército, compromete, agindo assim, sua própria vida. Podemos citar também as palavras seguintes de
Jamblique: ‘o interesse particular não é distinto do interesse público; ao contrário, o bem dos indivíduos se
encontra contido no bem geral; e como a respeito dos animais e de todos os outros seres, a conservação das
partes dependem da do todo, é o mesmo em um Estado’”. ibid., pp. 135
-
136.
1481
ibid., p. 136. Segundo Grócio, “explicarei isso por uma bela passagem de Dion Cassius: ‘não penso que
seja conveniente que aquele que governa o Estado seja obrigad
o de ceder, nem que haveria alguma esperança
de salvação se aqueles que estão na situação de obedecer querem comandar. (...) a natureza quis que essa seja
uma necessidade e uma fonte de salvação para os homens, que uns comandem e que os outros obedeçam”.
i
bid.
1482
ibid., p. 153. “Thomas afirma que a destruição de um governo, ainda que tirânico, é freqüentemente um
ato sedicioso”. ibid., p. 154.
1483
Grócio observa que, “um particular não deve se atribuir o direito de decidir; mas seu dever é de seguir o
partido
daquele que o possui. É assim que o Cristo ordenava de pagar o tributo a César, porque a moeda
trazia sua efígie, isto é, por que ele estava em possessão do poder”. ibid.
1484
Nas Instituições da religião cristã, além da resistência de magistrados inferiores, Calvino reserva um
lugar para “a intervenção de um herói manifesto’, de vocação excepcional”. CHEVALLIER, 1982, op. cit.,
p. 303. Segundo Calvino, casos excepcionais em que Deus arma heróis para defender o seu povo de uma
dominação injusta, como fizer
a em Israel, quando armou Moisés para lutar contra o Faraó. Cf. ibid., p. 298.
1485
Adverte Grócio que, “a ação de Aod contra Églon, rei dos moabitas não deve nos fazer pender para a
opinião contrária; pois o texto sagrado testemunha claramente que Aod havia
sido suscitado por Deus mesmo
como um vingador, e que ele havia agido em virtude de um mandato especial. (...) Deus se servia (...) mesmo
363
Em seguida, Grócio também se mostra contrário a resistência aos soberanos por
parte de magistrados inferiores. Grócio censura a idéia defendida pelos calvinistas radicais
segundo a qual o direito de resistir às injúrias recebidas por parte dos soberanos estava
in
terditado aos particulares e não às autoridades inferiores; e que os magistrados inferiores
seriam considerados culpados se não resistissem às injúrias dos soberanos. Tal idéia é
inadmissível para Grócio. Pois, em seu entendimento, os magistrados inferiores são
considerados particulares em relação aos soberanos. De modo que, se agirem
contrariamente às ordens ou vontade dos soberanos, tais atos serão considerados como
privados.
1486
Na concepção de Grócio, somente os magistrados inferiores que tiverem um
mandat
o especial de Deus têm o direito de resistir ao soberano; do contrário, devem
obedecer
-
lhe mesmo que ele governe mal.
1487
Após ter se posicionado contra a resistência de particulares e magistrados
inferiores, diante das injúrias dos soberanos, Grócio observa que à essa regra uma
exceção. Ele afirma que em “casos de extrema necessidade”, diante de um perigo evidente
que ameaça a sua vida, tanto os indivíduos como os magistrados inferiores têm o direito de
resistir para se defender. Porém, Grócio alerta que
não se deve recorrer a esse caso extremo
sem se levar em conta o bem público. Sendo assim, essa resistência deve ocorrer após
ter sido primeiramente atacado.
1488
Grócio adverte ainda que esta resistência consiste
contra outros reis de tais ministros que lhe agradava para executar seus julgamentos, como, por exemplo, ele
emprega J
ehu contra Joram”. GRÓCIO, op. cit., p. 154.
1486
Conforme Grócio, “encontrou-se em nosso século homens certamente instruídos, mas que, muito
dominados aos tempos, se convenceram a princípio eu o creio, com efeito, assim –, depois persuadiram os
outros, que o que acaba de ser dito só tinha lugar a respeito das pessoas privadas, mas não tocava as
autoridades inferiores que eles consideram como autorizados em direito a resistir às injúrias daqueles que têm
em suas mãos o poder soberano. Eles pensam mesmo que eles se tornariam culpados de uma falta, se eles se
abstivessem de resistir. Esta opinião não deve ser admitida. (...) os magistrados subalternos são pessoas
públicas, em relação a seus subordinados, mas são particulares, se se considera seus superiores. Toda a
faculdade de comando que pertence aos magistrados é de tal modo dependente do poder soberano que o que
eles fazem de contrário à vontade do soberano é desprovido de autoridade, e, por conseqüência, deve ser
considerado como um ato privado”. ibid.,
p. 139.
1487
Segundo Grócio, “no seio do povo hebreu, do qual tantos reis são situados acima do direito divino e
humano, jamais se encontrou magistrados inferiores (...) que fossem arrogados o direito de resistir aos reis
pela força, a menos que eles tivessem recebido o mandato especial de Deus, do qual o poder supremo se
estende sobre os reis. Ao contrário, Samuel ensina qual deve ser o dever dos grandes quando, em presença
desses últimos e do povo, ele rende suas homenagens ordinárias a Saul, que já havia começado a mal
governar”. ibid., p. 140.
1488
De acordo com Grócio, “uma questão mais grave é a de saber se a obrigação de não resistir nos vincula
em um maior e mais evidente perigo. Pois certas leis, mesmo entre as de Deus, ainda que concebidas em
termos gerais, contém nelas mesmas uma exceção tácita para os casos de extrema necessidade”. GRÓCIO,
op. cit., p. 141. Segundo Grócio, só se pode pegar em armas diante de um perigo extremo e evidente, para
defender
-se e só pegar em armas quando se é primeiramente atacado. Cf. ibid., p. 143. “Barclay, esse
defensor da autoridade real, chega, entretanto, ao ponto de conceder ao povo, e a uma parte notável do povo,
o direito de se defender contra uma atroz crueldade; e, portanto, ele reconhece que o povo em inteiro é
sub
misso ao rei. Para mim, compreendo facilmente que mais é precioso a coisa que se quer conservar, mas é
364
apenas em fugir. Ele o exemplo da resistência de Davi contra o rei Saul, como também
dos macabeus contra o governante tirano que os perseguia. Segundo Grócio, tanto Davi
como os macabeus só resistiram após terem sido primeiramente atacados e que essa
resistência limitava
-se a defender-se, escond
endo
-
se e, portanto, fugindo do perigo.
1489
Grócio observa que os cristãos devem observar esses princípios de não resistência
diante dos poderes superiores de uma maneira ainda mais perfeita que Davi e os macabeus.
Segundo Grócio, é preciso seguir o exemplo de Cristo que, sendo maltratado e injustiçado,
não resistiu, pelo contrário, entregou a sua causa nas mãos de Deus.
1490
Quando os antigos
cristãos eram ameaçados de morte pelos imperadores por sua religião, mesmo sendo em
número superiores e possuindo armas, não resistiam. Eles entendiam que não se devia
resistir pela salvação terrena, pois o que importava era a salvação eterna.
1491
grande a equidade que estende à exceção contra as armas da lei. Entretanto, eu ousaria apenas condenar
indistintamente seja os particulares, seja uma parte do povo que recorriam ao último recurso que lhe deixa a
necessidade, sem, contudo, perder de vista o bem público”. ibid., p. 142.
1489
“Davi que, com exceção de um pequeno número de fatos, é representado como tendo vivido na
observação das leis, se fez escoltar a principio de quatrocentos homens, e de um maior número em seguida.
Qual era seu objetivo, se não era de repelir as violências das quais ele poderia ser o objeto? Mas observamos,
ao mesmo tempo, que Davi não toma esta precaução antes de ter sido pre
venido por Jônatas, antes de ter sido
advertido por vários outros indícios que sua vida era ameaçada por Saul. Do mais, ele não invade cidades, ele
não busca ocasião de combater; sai em busca de retirada, logo se escondendo nos lugares afastados, logo
vive
ndo em meio de povos estrangeiros, e sempre com o piedoso escrúpulo de não prejudicar os seus
concidadãos. A conduta dos macabeus pode ser comparada a de Davi. (...) Nada então põe à sombra os
macabeus, se não é a eminência de um perigo extremo e evidente, tanto que eles permaneciam, bem
entendido, nos limites da defesa que, a exemplo de Davi, eles se retiraram nos lugares afastados, para neles
buscar um asilo, e que eles só se serviam de armas quando eles eram atacados”. ibid., pp. 142
-
143.
1490
“A questão é mais grave de saber se o que foi permitido a Davi e aos macabeus é também aos cristãos,
dos quais o mestre que tantas vezes ordenou de carregar sua cruz, parece exigir um degrau mais eminente de
paciência. É de fato que nos casos em que os poderes superiores ameaçam de morte os cristãos por causa de
sua religião o Cristo lhe concede o direito de fugir (...). Além da fuga, ele não concede nada. Pedro nos diz
que o Cristo, sofrendo por nós, nos deixou um exemplo a seguir; ele que não havia cometido nenhum pec
ado,
e da boca do qual nenhuma palavra enganadora jamais saiu, quando se o acometeu de injúrias, ele não
respondeu por injúrias; quando se o maltratou, ele não fez ameaças; mas ele entregou sua causa entre as mãos
daquele que julga segundo a justiça (...).
O mesmo apóstolo acrescenta que os cristãos devem render ações de
graça a Deus, e se alegrar se eles sofrerem torturas em qualidade de cristãos (...). E nós lemos que é esta
constância a sofrer que mais contribui ao desenvolvimento da religião cristã”. ibid.,
p. 145.
1491
“Os antigos cristãos, que saíram vigorosamente da escola dos apóstolos e de homens apostólicos,
entendiam e observavam seus preceitos de uma maneira mais completa e mais perfeita, eles foram, segundo
eu, muito injuriosamente acusados por aqueles que atribuíam sua abstenção de se defender em presença de
um perigo certo de morte, a uma falta de força, e não a uma ausência de intenção”. Tertuliano dizia diante
dos imperadores: “que guerra não seríamos capazes de empreender, e com que vigor não nos conduziríamos,
mesmo com inferioridade de tropas, nós que nos deixamos matar tão voluntariamente, se, segundo nossa
doutrina, não fosse mais lícito de se deixar matar que matar os outros’. Cipriano segue também sobre esse
ponto o ensinamento de seu mestre, e se declara abertamente nesses termos: eis porque nenhum de nós não
resiste quando se assenhora-se dele, e não se vinga de nossas violências injustas, ainda que nosso povo seja
extremamente numeroso e provido de tudo o que lhe é necessário. É que a confiança que nós temos em uma
vingança futura nos torna paciente. Por ela os inocentes curvam-se sob os culpados’. ‘Nós confiamos, diz
Lactance, à majestade daquele que pode tirar vingança não somente do desprezo que se faz dele, mas dos
sofrimentos e injúrias das quais se oprime seus servidores. Por isto, ao meio mesmo desses tratamentos tão
abomináveis que nós sofremos, nós não resistimos mesmo de boca, mas nós remetemos a Deus de cuidar da
365
Ao contrário de Grócio, nas Lettres pastorales, a resistência é defendida por Pierre
Jurieu.
Em oposição ao pensamento de Grócio, Pierre Jurieu defende, nas
Lettres
pastorales
, a resistência em termos amplos.
1492
Em comum acordo com as tradições
escolástica e calvinista, Pierre Jurieu afirma que o poder do príncipe é limitado por um
contrato político, o qual estipula claramente quais são os objetivos a serem alcançados por
esse poder; o povo somente confere a soberania ao príncipe para que este zele para que a
vida, a liberdade, os bens, assim como a religião dos seus súditos sejam conservados. Caso
essas cláusulas fundamentais do contrato sejam violadas pelo príncipe, passando a tratar o
seu povo com injustiça e violência, este tem o direito de resistir
-
lhe.
1493
Ainda nas Lettres pastorales, Pierre Jurieu defende a idéia inerente à tradição
escolástica, aceita pelos calvinistas, segundo a qua
l como “o direito da própria conservação
é um direito inalienável”, quando um governante se torna um tirano, passando a ser injusto
para com os seus súditos, perseguindo-os com extrema violência, eles têm o direito de
resistir
-lhe. Pierre Jurieu vai além e diz que os antigos cristãos possuíam tal direito, e
não resistiram com armas na mão aos imperadores tiranos que moviam sangrentas
perseguições contra eles porque não dispunham dos meios para isso. Mas agora os cristãos
tinham os meios. Por isso, afirma, diante da perseguição que os protestantes ingleses
sofriam pelo tirano Jaime II, parte deles resistiu por meio da força na Revolução Inglesa de
1688/89.
1494
Um ano depois, no Cinquième avertissement aux protestants, Bossuet contesta a
idéia defendida por Pierre Jurieu nas Lettres pastorales, de que “o direito da própria
vingança’. Agostinho não teve outro objetivo em dizer: ‘que o justo, nessas ocasiões, pensa antes de todas as
coisas que deve fazer a guerra quem é permitido de fazê-la; pois isso não é permitida a todo mundo’. O
mesmo autor diz ainda: ‘todas as vezes que os imperadores estão no erro, eles fazem, para defender o erro
co
ntra a verdade, leis pelas quais os justos são postos à prova e coroados’. Ele diz algures: ‘os príncipes
devem ser suportados por seus povos (...) de tal maneira que a prática da paciência na dor ajuda a suportar os
males temporais, e faz esperar os bens eternos’. É o que ele explica algures assim, invocando o exemplo dos
antigos cristãos: ‘quando mesmo a cidade de Cristo, ainda que ela fosse disseminada por toda a terra, e que
ela tivesse tantos exércitos de grandes povos a opor a seus ímpios perseguidores, jamais combateu pela
salvação temporal, ou antes ela jamais resistiu, a fim de adquirir a salvação eterna. Eles eram presos,
fechados, batidos, torturados, queimados, dilacerados, degolados, e eles se multiplicaram. Combater pela
salvação não era outra coisa para eles que desprezar a salvação desta vida para a salvação eterna’”. Mesmo
sendo mais numerosos e tendo armas, os cristãos nunca tomaram armas para se defender da perseguição dos
imperadores. Porque, a exemplo de Cristo, eles foram pacientes, carr
egaram consigo essa virtude até a morte.
O próprio Cristo diz “que aquele que perdeu assim a vida, a recupera verdadeiramente”. GRÓCIO, op. cit.,
pp. 145-
146, 48.
1492
Cf. TOUCHARD, v. 4,
op. cit.,
p. 12.
1493
Cf. CHEVALLIER, 1983, op. cit., p. 14.
1494
apud
BOSSUE
T, in TRUCHET, op. cit., pp. 90
-
91.
366
conservação é um direito inalienável”. Bossuet adverte que tal máxima é extremamente
perigosa, pois isto significa que não somente uma parte do povo tem o direito de tomar as
armas para se opor a um governante tirano que os persegue com injusta violência, mas
também os indivíduos privados. Bossuet fica escandalizado pelas idéias defendidas por
Pierre Jurieu de que os cristãos antigos pretendiam possuir esse direito, e que, se tivessem
os meios, se armariam contra os imperadores que os perseguiram injustamente; e que uma
parte dos protestantes o fez na Revolução Inglesa de 1688/89. Bossuet adverte para o
perigo que tais idéias representam para os governos estabelecidos, pois desencadearão
guerra
s civis e toda a matança decorrente delas:
‘O direito’, diz ele (Pierre Jurieu), ‘da própria conservação é um direito inalienável’. Se é
assim, todo particular injustamente atacado em sua vida pelo poder público tem direito de
tomar as armas, e ninguém não lhe pode arrebatar esse direito. (...) E é porque ele sustenta
que os cristãos poderiam se armar contra seus príncipes, se eles tivessem os meios; e, pela
mesma razão, que os protestantes puderam fazê-lo. Ainda que uns e outros, longe de ser
todo o povo, faz a menor parte. Que se tornariam os Estados se se estabelece tais
máximas? Que se tornariam, repito, se não em carnificina e em um teatro perpétuo e
sempre sangrento de guerras civis? Pois, como a opinião tem o mesmo efeito no espírito
dos homens que a verdade, todas as vezes que uma parte do povo imaginar que ela tem
razão contra o poder público, e que a punição de sua rebelião é se atacar injustamente a sua
vida, ela se crerá no direito de tomar as armas e sustentará que o direito de se preservar n
ão
lhe pode ser retirado
.
1495
No que se refere à idéia defendida por Pierre Jurieu de que o direito da própria
preservação é um direito inalienável” e, em decorrência disso, ao ser injustamente atacado
por um soberano que se torna tirano, o povo tem o direito de se lhe opor para conservar a
sua vida, Bossuet já havia deixado bem claro, no livro primeiro da
Politique
, redigido entre
1677 e 1679, bem como nas páginas anteriores de seu Cinquième avertissement aux
protestants
, que não aceitava a idéia de que qualquer povo tivesse direito algum antes da
instituição de uma sociedade política, como pregava Grócio.
Com respeito àquele que poderia resistir ao soberano, Grócio dizia que todas as
pessoas têm o direito de pegar em armas para se defender do ataque de inimigos, pois o
direito à conservação de sua vida é inalienável. Mas Grócio advertia que isso não queria
dizer que os magistrados inferiores e muito menos os particulares tinham o direito de usar
armas contra os seus governantes. No entendimento de Grócio, somente aqueles que
houvessem recebido um mandato especial de Deus, possuiriam o direito de tal
1495
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., pp. 90
-
91.
367
empreendimento. Pierre Jurieu, entretanto, defendia a resistência armada dos
representantes do povo aos reis que se tornassem tiranos. O fato de acreditar piamente na
doutrina paulina da absoluta não-resistência leva Bossuet a não aceitar que os
representantes do povo, e muito menos particulares, possuam o direito de resistir aos
soberanos.
Ao afirmar que os antigos cristãos pretendiam ter o direito de resistir ao
s
imperadores que os perseguiam injustamente, Pierre Jurieu afasta
-
se de Grócio, já que este,
em comum acordo com a doutrina de São Paulo, afirmava que, diante da perseguição, os
antigos cristãos não resistiam, suportavam os maus tratos dos imperadores pac
ientemente e
pediam a Deus para que os ajudasse, pois esta era a única coisa que poderiam fazer. Assim
como Grócio, Bossuet busca mostrar, apoiado na doutrina paulina, que os antigos cristãos
perseguidos pelos imperadores tiranos nunca pretenderam ter o direito de se opor a eles.
Em sua concepção, a única coisa que o povo pode fazer diante de um governante injusto é
suplicar a ajuda de Deus. Bossuet recorre ao exemplo da cidade de Antioquia, conhecida
como o Olho do Oriente, cujos habitantes revoltaram-se contra a violenta e injusta
perseguição do imperador Teodósio a sua religião, derrubando suas estátuas. Diante disso,
São João Crisóstomo, um padre da Igreja, aconselhava o povo a obedecer ao poder
estabelecido, e que o povo poderia rogar a Deus, um poder maior que o do imperador,
para que o ajudasse:
Os cristãos perseguidos jamais sonharam a esse pretenso direito. E para não somente falar
do tempo de perseguições e da causa da religião, Antioquia, a terceira cidade do mundo,
que se chamava o Olho do Oriente, e por excelência Antioquia a Populosa, se viu em
perigo de ser arruinada por Teodósio o Grande, do qual se havia derrubado as estátuas.
Poder
-
se
-ia dizer que não era justo punir toda uma cidade por causa do atentado de alguns
particulares que eram até estrangeiros, nem de misturar o inocente com o culpado. E, com
efeito, São João Crisóstomo põe esta razão na boca de Flaviano, patriarca de Antioquia,
que ia solicitar perdão ao Imperador para todo o povo. Mas, entretanto, não se dizia de
forma alguma, (
...) não tinha no pensamento que fosse permitido defender sua vida contra o
príncipe. Ao contrário, se falava a esse povo da obrigação de reverenciar o magistrado.
Dizia
-lhe que ele tinha que respeitar a maior potência que fosse sobre a terra, e que ele
tinha que invocar somente a de Deus, que era superior. É isso o que São João Crisóstomo
inculcava sem cessar; e este Demóstenes cristão fez sobre esse assunto homilias dignas por
sua eloqüência da antiga Grécia, e dignas por sua piedade dos tempos apostól
icos.
1496
No
Cinquième avertissement aux protestants, Bossuet refuta a idéia defendida por
Pierre Jurieu de que os antigos cristãos tinham o direito de resistir pelas armas aos
1496
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., p. 92.
368
imperadores romanos não somente pelas causas religiosa e de consciência como tamb
ém
por qualquer outra, no caso de serem oprimidos por eles. Sustentado na doutrina paulina,
Bossuet diz que os antigos cristãos não pretendiam possuir tal direito. Pelo contrário,
sabiam que pelo bem de sua causa, o melhor a fazer era suportar com paciênci
a, já que eles
tinham conhecimento de que as autoridades legítimas foram instituídas por Deus e, por
isso, tinham direitos sagrados para governá-los. E foi sobre esses direitos que Deus
estabeleceu a tranqüilidade da humanidade:
Ele (Pierre Jurieu) decide
contra os reis tudo o que se pode avançar de mais ultrajante. Pois
ele concluiu ousadamente de seu princípio que os cristãos, súditos do império romano,
podiam resistir pelas armas a
Diocleciano
, ‘visto que, disse ele, se seus imperadores por
toda outra causa que por aquela da religião, os tivessem oprimido, da mesma maneira, eles
teriam direito de se defender. Pese essas palavras, ‘por toda outra causa’; não é somente a
causa da religião e da consciência que arma os súditos contra os príncipes, é agora ‘t
oda
outra causa’. O que não é compreendido nessas expressões tão gerais? Eis o espírito do
ministro. E bem que ruborizado de seus excessos, ele incumbiu-se de trazer algures
fracas
atenuações as suas sediciosas máximas, seu espírito subsiste sempre. Mas, para o bem de
sua causa, esses cristãos tão oprimidos sob Diocleciano, longe de sonhar com essa defesa
que se quer tornar legítima, desmentiram todas as razões da qual se autoriza, não somente
por seus discursos, mas ainda por sua paciência.
Pode
-se mesmo dizer que firmaram com
seu sangue os direitos sagrados da autoridade legítima sobre os quais Deus estabeleceu o
repouso do gênero humano, ou seja, a fé e o Evangelho.
1497
Como é possível perceber, o caráter divino e sagrado da realeza, inúmeras vezes
abord
ado por Bossuet na
Politique
, nos cinco livros escritos entre 1677 e 1679, mais uma
vez é lembrado por ele para reforçar o poder real.
Bossuet recorda, no Cinquième avertissement aux protestants, que até mesmo os
pagãos, que não eram instruídos pela revelação celeste e se guiavam pela razão natural,
sofriam a violência dos maus governantes com paciência, pois sentiam que a opressão não
era eterna e que dias melhores viriam. Para Bossuet, não se pode tentar combater os males
de um governante com a divisão intestina, pois este é um mal ainda maior. Por essa razão,
os pagãos não permitiam a todo o povo o que Pierre Jurieu permite a cada cidadão
particular, que é o direito de se opor à violência do príncipe por todas as vias:
Mas por que alegar aos cristãos instruídos pela revelação celeste? Os pagãos, por sua
simples razão natural, viam bem que era preciso sofrer as violências dos maus príncipes,
desejar melhores príncipes, suportá-lo tais quais; esperar um tempo mais sereno durante a
tempestade, e compreender
que a Providência, que não quer a ruína do gênero humano nem
da natureza, não expõe o povo oprimido eternamente a maus governantes, assim como ela
1497
ibid., pp. 93
-
94.
369
não submete o universo à tempestade ininterrupta. Os belos dias poderão então refazer o
que os maus estragaram. E é desejar muito mal às coisas humanas, juntar aos males de um
mau governante um remédio mais mortal que o mal mesmo, que é a divisão intestina. Por
essas razões, os pagãos não permitiam a todo o povo o que o Sr. Jurieu ousa permitir à
menor parte contra a maior. Pior ainda! Isso que ele ousa permitir a cada particular. ‘Tal
homem’, aquele que dizia que um soberano ‘tem o direito de fazer violência à vida de uma
parte de seu povo, e que os súditos não têm o direito de se defender e de opor à força a
violência, será refutado por todos os homens. Pois não quem não acredite estar no
direito de se preservar por qualquer meio, quando ele é atacado por uma injusta violência’.
Eis então, não somente todo o povo ou uma parte do povo, mas ainda todo part
icular
legitimamente armado contra o poder público, e no direito de se defender contra ele ‘por
qualquer meio, sem nada excetuar, nem mesmo o que mais horripila pensar.
1498
A via que Bossuet não cita, mas à qual apenas alude, que sente horror de
pensar
nela, é o regicídio. Para um francês, como Bossuet, que acreditava no caráter
sagrado da realeza, o regicídio era mesmo algo terrível, impensável. Mas é bom lembrar
que
Pierre Jurieu não era a favor do regicídio, como insinua Bossuet. Em Des droits des
de
ux souverains en matière de religion, Pierre Jurieu diz que “na consciência de um
protestante, é um grande crime assassinar um tirano inimigo da Igreja”.
1499
Como vimos, Bossuet esforça-se em mostrar que a idéia da resistência aos
soberanos, defendida por Pierre Jurieu, referia-se não somente aos representantes do povo,
mas a todo o povo, ou seja, aos indivíduos particulares. No entanto, Pierre Jurieu
sublinhava, nas Lettres pastorales, que somente parte do povo é que tinha esse direito. Na
verdade, quem defendeu a teoria da resistência popular foi Locke, nos Dois tratados de
governo
, publicados em 1689. Nesta obra que, segundo Skinner, é “o texto clássico da
política radical calvinista”
1500
, Locke defende a tese populista, formulada por
Buchanan,
em seu O direito do reino entre os escoceses, redigido em 1578, de que a autoridade para
destituir um rei que se torna um tirano não deve permanecer apenas nas mãos dos
magistrados inferiores, mas nas mãos de todo o povo.
1501
Os Dois tratados de governo
encontravam
-
se na bi
blioteca de Bossuet. E tudo indica que ele já os havia lido quando, em
1690, escreveu o Cinquième avertissement aux protestants, pois a leitura dos tratados nela
transparece.
Diante do problema o “que fazer se se é oprimido por um governo injusto?”, como
vimos, Bossuet nega totalmente o direito à insurreição.
1502
A questão do direito à
1498
BOSSUET, in TRUCHET, op. cit., pp. 91
-
92.
1499
JURIEU, op. cit., p. 28.
1500
SKINNER, 1999, op. cit., p. 513.
1501
Cf.
SKIN
NER, 1999, op. cit.,
pp. 402, 513.
1502
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 36.
370
insurreição foi muito debatida nos século XVI e XVII. Ela se encontrava inter-
relacionada
às perseguições religiosas. Esse direito era reivindicado pelos protestantes perseguidos. Na
nona de suas Lettres pastorales, de 1689, Pierre Jurieu reivindicava tal direito, o qual é
censurado por Bossuet, no Cinquième avertissement aux protestants, redigido no ano
seguinte. A refutação de Bossuet baseia-se no princípio de que “a única forma legítima de
resistência a respeito de um poder ímpio consiste em uma resistência passiva, conforme o
exemplo dos mártires”, segundo observa Truchet.
1503
No
Cinquième avertissement aux protestants, Bossuet adverte que Pierre Jurieu
defende “máximas sedicios
as, que tendem à subversão de todos os impérios e a degradação
de todos os poderes estabelecidos por Deus”. Ora! A antiga Igreja cristã sofria a
perseguição dos imperadores sem nunca se rebelar contra eles. Os próprios protestantes
muito tempo vêm difundindo de terem sido na França e na Inglaterra rebeldes à autoridade
dos reis. E hoje Pierre Jurieu afirma que os súditos têm o direito de empreender a guerra
contra seu próprio rei e seu próprio país. Tal espírito de rebelião é execrável. “Intento
provar que vossa Reforma não é cristã, porque não tem sido fiel a seus príncipes e a sua
pátria”.
1504
Num primeiro momento, é inegável que a Reforma deu grande parcela de
contribuição ao absolutismo. O conceito de Igreja de Lutero contribuiu imensamente para a
emergê
ncia das monarquias nacionais na Europa. De acordo com Skinner, Lutero
“desqualifica a importância da Igreja enquanto instituição visível”; em sua concepção, “a
verdadeira Igreja não passará de uma invisível congregatio fidelium de uma comunidade
de fiéis
unidos em nome de Deus”.
1505
Esta tese de Lutero sobre a Igreja trouxe sérias conseqüências políticas, pois serviu
para fortalecer o poder dos príncipes em detrimento do poder da Igreja.
1506
Em um tratado
de 1523, intitulado A Autoridade temporal, e em que medida ela deve ser obedecida, que
se constitui num documento essencial para entendermos o pensamento social e político de
Lutero, ele deixa claro que a Igreja e o papa têm jurisdição apenas espiritual. Conclui “que
toda pretensão do papa ou da Igreja a exercer qualquer jurisdição mundana em decorrência
de seu ofício deve representar uma usurpação dos direitos das autoridades temporais”.
1507
Os princípios teológicos de Lutero o levaram a defender não somente as autoridades
1503
ibid.,
p. 90.
1504
BOSSUET, in
HASARD, op. cit., p. 231.
1505
SKINNER, 1999, op. cit., p. 292.
1506
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 294, 296.
1507
ibid., p. 296.
371
seculares como também um sistema de Igrejas nacionais, independentes do papa e
submetidas às autoridades seculares.
1508
As idéias teológico-políticas de Lutero foram
adotadas e difundidas pelos primeiros luteranos, Osiander, Eberlin, Von Gunzburg,
Melanchthon, Tyndale e Barnes, em seus textos políticos, escritos e publicados na década
de 1520.
1509
O conceito luterano de Igreja foi imediatamente acatado e propagado por
muitos governantes europeus que desejavam fortalecer o seu poder político em detrimento
da Igreja.
1510
Contudo, na Autoridade Temporal, ao tratar da conduta adequada a ser seguida
pelos súditos na vida social e política, Lutero estabelece um limite para a autoridade dos
príncipes. Segundo ele, os príncipes são apenas ministros de Deus na terra, e se eles
ordenam que seus súditos ajam de forma
ímpia e escandalosa jamais devem ser respeitados
e obedecidos: “o súdito deve seguir sua consciência, ainda que isso implique desobedecer
ao príncipe”. Se um príncipe agir errado, os súditos não têm obrigação de segui-lo, pois
“ninguém tem o dever de agir erradamente”. Para melhor justificar essa sua convicção,
Lutero recorre várias vezes ao livro dos Atos dos Apóstolos, segundo o qual “‘devemos
obedecer a Deus [que deseja o direito] mais do que aos homens’”. Lutero recorre a este
livro com a intenção de “impor uma limitação ao dever genérico de obediência
política”.
1511
No entanto, ao abordar a questão dos fundamentos dos poderes dos príncipes,
Lutero empreende uma defesa radical das autoridades temporais. Fundamentado no
capítulo XIII da Epístola aos Romanos, de São Paulo, Lutero afirma que toda autoridade
política provém de Deus, portanto, os homens devem se sujeitar a todo o poder constituído.
Por entender que todos os poderes são ordenados por Deus, Lutero prega, em
A autoridade
temporal
, que os súditos dev
em obediência até mesmo aos príncipes tiranos; resistir as suas
ordens seria o mesmo que resistir a vontade de Deus. Lutero insiste que “não se deve
resistir tirania], porém, simplesmente suportá-
la”.
1512
Os principais textos políticos de
Lutero influenciaram decisivamente a história ocidental.
1513
Os primeiros luteranos,
1508
Cf. ibid., pp. 296
-
297.
1509
Cf. ibid
., p. 352.
1510
Cf. ibid., pp. 362
-
367.
1511
ibid., p. 299.
1512
SKINNER, 1999, op. cit., p. 299.
1513
Cf. ibid., p. 301.
372
Osiander, Von Gunzburg, Enerlin e Melanchthon, em seus textos políticos concebidos na
década de 1520, defenderam a doutrina da não resistência de seu mestre.
1514
As teorias políticas dos primeiros luteranos exerceram papel importantíssimo na
legitimação das monarquias absolutistas emergentes no Norte da Europa.
1515
Segundo
Skinner, “não resta dúvida de que a principal influência da teoria política luterana nos
primeiros tempos da Europa moderna se fez sentir no incentivo à emergência das
monarquias absolutistas unificadas e na legitimação desses regimes. As doutrinas de
Lutero revelaram-se tão úteis para esses propósitos que seus argumentos políticos mais
característicos acabaram repetidos até mesmo
pelos maiores defensores católicos do direito
divino dos reis”.
1516
Toda a exposição da Politique tirée des propres paroles de l’Ecriture
Sainte
, de Bossuet, foi fundamentada na tese luterana de que “todos os princípios políticos
devem derivar das páginas da Bíblia”; o próprio título desse tratado o evidencia. Além
disso, ao tratar da autoridade e da obrigação política, Bossuet enfatizou as duas doutrinas
que melhor caracterizam o pensamento político dos primeiros luteranos. No livro quarto,
quando trata da natureza da autoridade régia, ele afirma que o poder dos reis deve ser
absoluto, pois não na terra ninguém a quem ele deva prestar contas. No livro sexto, ao
falar da natureza dos deveres dos súditos em relação aos príncipes, fundamenta-se na
doutrina
paulina da obediência passiva, à qual os reformadores haviam recorrido muitas
vezes. Primeiramente, Bossuet cita a ordenação paulina de que “‘todo homem deve
submeter
-se às autoridades constituídas, pois todo poder é de Deus’. E conclui que todo
súdito que resista às determinações de um rei, mesmo que este seja perverso, ‘seguramente
receberá a condenação eterna’, pois, ‘toda resistência à autoridade constitui uma resistência
ao mandamento divino’”.
1517
Contudo, as teorias políticas ligadas à propagação da Reforma não possuíam
somente esse caráter fortemente conservador. É claro que, se voltarmos nossa atenção
apenas para os primeiros momentos da Reforma, concluiremos que Lutero e os demais
líderes luteranos defenderam veementemente a teoria da não-
resistência.
Porém, se
olharmos atentamente para depois de 1530, nos deparamos com uma profunda
modificação. Constataremos que Lutero, Melanchthon, Osiander e inúmeros de seus
discípulos mais ilustres mudaram rapidamente o seu modo de pensar a esse respeito. Eles
1514
Cf. ibid., pp. 347
-
349.
1515
Cf. ibid., p. 355.
1516
ibid., p. 393.
1517
ibid.
373
pass
aram a sustentar “que é legítimo opor-se, pela força, a todo governo que se torne
tirano”. Essa tendência revolucionária do luteranismo, apesar de não ser dominante,
exerceria uma poderosa influência: inspiraria as teorias radicais dos calvinistas na segun
da
metade do século XVI, contribuindo imensamente para a constituição das teorias políticas
revolucionárias que surgiram neste período.
1518
As teorias da resistência desenvolvidas no
seio da Reforma estavam disponíveis a serem utilizadas pelos revolucionários que
surgissem. Foi com base
na teoria constitucional da resistência ativa que os revolucionários
ingleses obtiveram sucesso nas duas revoluções empreendidas no século XVII contra os
reis absolutistas, Carlos I e Jaime II.
muito tempo Bossuet combatia a Reforma, pois ele a via como a causadora do
espírito de insubordinação dos súditos aos monarcas absolutistas. Em 1669, quando fora
convidado para pronunciar a oração fúnebre da rainha Henriette-Marie, tia de Luís XIV e
viúva do rei inglês Carlos I, Bossuet lamentou as conseqüências da Revolução Inglesa de
1640 para o absolutismo inglês. A prisão, julgamento, condenação e decapitação de Carlos
I pelos revoltosos ingleses foram atos considerados pecaminosos para Bossuet. É fato
inegável que a teoria da resistência constitucional desenvolvida pelos calvinistas, na
segunda metade do culo XVI, serviu de alicerce aos insurgentes ingleses. Sendo assim,
na
Oraison funèbre de Henriete-
Marie
, pregada em 1669, Bossuet se serviu de diversos
argumentos para sustentar que a Reforma foi a culpada por essa guerra civil; que os
calvinistas ingleses que a lideraram, inculcaram no povo a idéia de que era legítimo
revoltar
-se contra o seu rei.
A idéia de que havia uma inter-relação entre a Reforma e as revoltas dos súdit
os
aos governantes era tão forte em Bossuet que este foi um dos motivos que o levaram a
abandonar a
Politique
em 1681 para retomá-la somente em 1700. Durante os quase vinte
anos que separam a redação dos seis primeiros livros da
Politique
dos demais, o combate à
Reforma, através de suas inúmeras controvérsias com renomados protestantes, foi uma das
atividades que mais ocuparam Bossuet.
Na Revolução Inglesa de 1688/89, os calvinistas ingleses e holandeses estiveram à
frente dos revoltosos contra o rei inglês Jaime II, destituindo-o do poder e colocando em
seu lugar o seu genro, Guilherme de Orange, um calvinista holandês. E, mais uma vez,
serviram
-se da teoria da resistência constitucional desenvolvidas pelos calvinistas de
meados do século XVI. Como se isso não bastasse, em 1689, nas
Lettres pastorales
, Pierre
1518
Cf. SKINNER, 1999, op. cit., pp. 355
-
356.
374
Jurieu exalta o ato dos calvinistas ingleses e, ainda mais radicalmente, convida os
calvinistas franceses, seus conterrâneos, os chamados huguenotes, para se revoltar contra
Luís XIV.
Nesse mesmo ano, na Inglaterra, Locke publica os seus Dois tratados de governo,
justificando essa revolução e defendendo abertamente a teoria da resistência popular, ou
seja, o direito de resistência aos indivíduos particulares. Apesar de todo o sistema de
vigilância do governo de Luís XIV, essas obras “perigosas” ao absolutismo entravam na
França clandestinamente. Bossuet as lera e sabia que muitos franceses também tiveram
acesso a elas. Por isso, ele combate as idéias revolucionárias nelas contidas.
Diante desse contexto conturbado, Bossuet conclui, no Cinquième avertissement
aux protestants
, que o único princípio que pode trazer a estabilidade aos estados é que nem
um indivíduo privado nem parte do povo têm o direito de defesa diante de um governante
legítimo. E que a defesa de outro princípio contrário consiste em enfraquecer as bases em
que os estados estão alicerçados e, portanto, quem o faz, como Pierre Jurieu, estará se
declarando inimigo da paz pública:
Nós concluímos que o único princípio que possa fundar a estabilidade dos estados, é que
todo particular, ao
risco
de sua própria vida, deve respeitar o exercício do poder legítimo e
a forma de julgamento público. Ou, para falar mais claramente, que nenhum particular ou
nenhum súdito, nem por conseqüência qualquer parte
do povo que seja, visto que esta parte
do povo
pode ser, a respeito do príncipe e da autoridade soberana, uma multidão de
particulares e de súditos, não tem direito de defesa contra o poder legítimo. E que enunciar
outro princípio é, com o Sr. Jurieu, abalar o fundamento dos estados e se declarar inimigo
da tranqüilidade pública.
1519
Na
Défense de l’Histoire des variations, publicada em 1691, que também foi
concebida para refutar Pierre Jurieu, Bossuet recorre ao exemplo de Santo Agostinho, em
que este cita o caso dos soldados cristãos que obedeceram às ordens do imperador Juliano,
o apóstata, mostrando que, para a manutenção da ordem, cabe somente ao príncipe
empreender a guerra e aos soldados executá-la. Bossuet conclui daí que ao príncipe cabe a
autorid
ade e aos soldados a submissão. Os soldados ou todos aqueles que combatem o
inimigo sem a ordem do príncipe ou contra ela merecem ser castigados; e este castigo deve
ser pior quando eles combatem contra o próprio príncipe, como se faz nas guerras civis.
Ag
indo assim, eles destroem a ordem pública, pois de membros passam a ser a cabeça
pondo tudo em confusão:
1519
BOSSUET, in TRUCHET, op. ci
t., p. 94.
375
Ele [Santo Agostinho] entra necessariamente no princípio que torna as guerras legítimas
entre os homens. E aí, considerando-se a lei eterna que ordena conservar a ordem natural,
ele esta bela regra: ‘a ordem natural, disse ele, sobre a qual é estabelecida a
tranqüilidade pública, pede que a autoridade e resolução de empreender a guerra estejam no
príncipe; e, ao mesmo tempo, que a execução de ordens da guerra esteja no soldado, que
deve esse ministério à salvação e à tranqüilidade pública’. Assim, segundo a ordem da
natureza que a lei eterna quis conservar, Santo Agostinho estabeleceu no príncipe, como no
chefe, a razão e a autoridade, e nos soldados, como os membros, um ministério que lhe é
atribuído. Do que resulta que ninguém a não ser o príncipe pode comandar ou empreender
a guerra. Se não, contra a natureza, ele tira da cabeça a autoridade e o conselho para
transportá
-los aos membros, que têm o ministério e a execução; ele divide o corpo do
Estado; ele põe dois príncipes e dois chefes; ele faz dois estados num Estado; e, rompendo
o vínculo comum dos cidadãos, ele introduz em um Império a maior confusão que se possa
ver e a mais próxima disposição à sua total ruína. Conforme esta palavra de nosso
Salvador: ‘todo reino dividido em si mesmo será desolado, e as casas cairão umas sobre as
outras’. Não é, pois, de se espantar que Santo Agostinho não tenha deixado aos soldados de
Juliano outra opção a to
mar na guerra do que a de obedecer a seu imperador quando ele lhe
dizia: ‘marchem!’. Se eles marchassem sem sua ordem, e ainda mais se eles marchassem
contra sua ordem, de membros eles se fariam os chefes e derrubariam a ordem pública. E
isso tem a conseqüência longínqua de que mesmo quem combate o inimigo sem a ordem
do príncipe se torna digno de castigo. E quanto mais se ele tomar as armas contra o próprio
príncipe e contra sua pátria, como se faz nas guerras civis?
1520
Aqui, Bossuet recorre à teoria organi
cista
, que faz parte da antiga idéia geral de
corpus mysticum. A idéia do corpus mysticum foi desenvolvida pela Igreja e tomada de
empréstimo pelo Estado secular.
1521
O historiador alemão Ernst Kantorowicz observa que,
por volta do século XIV, Lucas de Pena, um jurista napolitano, argumentava que, “‘o
Príncipe é a cabeça do reino e o reino o corpo do Príncipe’. O princípio corporativo,
contudo, era formulado ainda mais sucintamente quando prosseguia: ‘e tal como os
homens estão reunidos espiritualmente no corpo espiritual, cuja cabeça é Cristo [...], assim
também estão os homens reunidos moral e politicamente na república, que é um corpo cuja
cabeça é o príncipe’”.
1522
Na França, essa comparação do Estado com um corpus mysticum era antiga. Ela
coincidia com todo o misticismo que envolvia a realeza francesa. No século XIV, o
escolástico radical Gerson, então reitor da Universidade de Paris, recorria a ela
constantemente.
1523
Lançando mão de um argumento costumeiro, Gerson afirmava que “tal
1520
BOSSUET, “
Défense de l’Histoire des variations
, 1691”, in TRUCHET, op. cit., pp. 279
-
280.
1521
Conforme constata Kantorowicz, no século XIII, em sua ânsia para reforçar o poder dos reis, alguns
juristas recorreram à idéia eclesiástica do corpus m
ysticum
. Ao transferir essa idéia para a esfera secular, os
juristas mudaram o conceito teológico, segundo o qual a Igreja era um corpo do qual Cristo era a cabeça e os
fiéis os membros, para o conceito secular, segundo o qual a república constituía um corpo, cujo rei era a
cabeça e os súditos os membros. Cf. KANTOROWICZ, op. cit., pp. 133
-
139.
1522
KANTOROWICZ, op. cit., p. 137.
1523
Cf. ibid., p. 139.
376
como no corpo natural todos os membros se expunham para proteger a cabeça, assim
também todos os súditos do ‘corpo místico’ se dispunham a defender seu senhor; alertava o
povo para que cada um se contentasse com a sua condição, pois, do contrário, a ordem do
corpo místico, da coisa pública, se veria totalmente subvertida, l’ordre du corps mystique
de la chose publique seroit tout subverti’
”.
1524
No século XVII, a sociedade política era comparada com o corpo humano. Os
teóricos políticos tomaram emprestado da doutrina cristã a teoria do corpus mysticum
.
Observa Mousnier que, assim como a doutrina cristã considerava Cristo como a cabeça do
corpo místico da Igreja, os teóricos políticos defendiam que o rei era a cabeça do corpo
místico do povo francês, como fundamento da monarquia. De acordo com tal doutrina, era
decisivo que se obedecesse à hierarquia estabelecida desde tempos remotos: “o corpo
místico da Igreja é constituído de uma hierarquia de ordens onde circula o Espírito Santo, e
o corpo místico do povo da França também o é, de uma hierarquia de ordens inspiradas
pelo espírito da monarquia encarnada no rei”.
1525
Esta idéia do corpus mysticum
apregoava
que o rei, como a cabeça pensante, por
sua vez superior, devia orientar e dirigir os súditos, que eram os membros inferiores.
Segundo um dos princípios desta idéia cada um devia se contentar com sua condição. Os
súditos deviam sempre obedecer às ordens do rei, pois era esta a condição dos membros
inferiores. A concepção organicista foi recorrente na Idade Média e continuada por reis e
teóric
os no transcorrer da Idade Moderna. O
emprego dessa concepção organicista foi mais
uma das várias imagens simbólicas recorrentemente utilizadas pelos teóricos e reis.
1526
Sendo assim, era um dos argumentos que Bossuet se utilizava para reforçar o poder do
mon
arca absolutista por quem nutria um sentimento sincero de amor e fidelidade, Luís
XIV.
Dos escritos polêmicos de Bossuet, os Avertissements aux protestants e a
Défense
de l’histoire des variations
são os mais políticos. Concebidos após a revogação do Edit
o de
Nantes como resposta a Pierre Jurieu, tais escritos constituíam-se em ataques às idéias de
soberania do povo e de resistência defendidas por ele.
1527
As idéias de soberania do povo, pacto e direito de resistência ativa, defendidas por
Pierre Jurieu, haviam sido defendidas pelos monarcômacos franceses durante as Guerras
1524
ibid.
1525
MOUSNIER,
1971, op. cit., p. 294.
1526
Cf. TORRES, João C. B. Figuras do Estado Moderno
:
representação política no Ocidente. São Paulo:
Brasiliense em co
-
edição com o CNPq, 1988, pp. 127
-
166.
1527
Cf. TRUCHET, op. cit., p. 24.
377
Religiosas do século XVI contra os reis Carlos IX, Henrique III e Henrique IV, porém
estavam sendo adaptadas ao tempo do autor, sobretudo aos eventos da Inglaterra. É
importante ter claro que, para Pierre Jurieu, o povo não significava a multidão, mas os
grandes que os representavam: os Estados, os Parlamentos, as cidades. Recordemos que os
monarcômacos franceses do século XVI, assim como os da Fronda, também pensavam
assim.
1528
As teses defendidas por Pierre Jurieu não tiveram um longo alcance. A veemência
utilizada por ele para sustentar suas teses, não consegue disfarçar que o seu pensamento
político não é nada ousado nem original. Pierre Jurieu não defende a república nem a
monarquia moderada; o seu pensamento político está muito longe do de Locke. Pierre
Jurieu não é nem um democrata nem um precursor dos filósofos do século seguinte, mas
sim um herdeiro dos monarcômacos das Guerras de Religião da segunda metade do século
XVI, bem como da F
ronda no início da segunda metade do século XVII.
1529
Com exceção de Locke, de uma forma geral, as idéias políticas defendidas pelos
calvinistas, na segunda metade do século XVII, estão longe de ser democráticas. Até
mesmo quando defendem a soberania do povo, suas idéias são inspiradas na Idade Média,
as quais são parecidas com às defendidas pelos parlamentares ou pela alta nobreza durante
a Fronda, ou seja, suas idéias políticas não expressam os interesses de todo o povo e sim
da aristocracia.
1530
Apesar de as idéias apregoadas por Pierre Jurieu não serem inéditas, ele se
notabilizou pela veemência com que as defendia e difundia na França absolutista de Luís
XIV.
Durante a Fronda, testemunhada pessoalmente por Bossuet em sua juventude, o
poder absoluto e de direito divino do menino rei, Luís XIV, sofreu sérios riscos, diante das
idéias monarcômacas defendidas por Claude Joly e os demais líderes dessa guerra civil.
Nas revoluções Inglesas de 1640 e 1688/89, o absolutismo na Inglaterra, sob Carlos I e
Jaime II, foi a nocaute pelos calvinistas ingleses que defendiam essas mesmas idéias. Em
1689, sustentado nas idéias monarcômacas que puseram abaixo o absolutismo na
Inglaterra, Pierre Jurieu incita os calvinistas franceses a se insurgirem contra Luís XIV. A
Revoluçã
o Inglesa de 1640 e a Fronda jamais saíram da memória de Bossuet. A Revolução
Inglesa de 1688/89 era o acontecimento recente que mais o perturbava. Assim, no
1528
Cf. CHEVALIER, 1983, op. cit., p. 15.
1529
Cf. TOUCHARD, v. 4,
op. cit.,
p. 13.
1530
Cf.
ibid., p. 14
.
378
Cinquième avertissement aux protestants, redigido em 1690 para atacar as idéias
sustentadas por Pierre Jurieu nas Lettres pastorales de 1689, Bossuet se apresenta como o
maior defensor do absolutismo de direito divino de seu tempo.
No
Cinquième avertissement aux protestants, divergindo das idéias tomistas
predominantes no meio teológico a que pertencia, Bossuet nega a idéia de que a soberania
pertence originalmente ao povo e este apenas a delega ao rei no ato da instituição de seu
governo, voltando a possuí-la em caso do rei violar as cláusulas do contrato firmado entre
ambos nesse momento. Bossuet refuta a idéia da existência de qualquer pacto entre rei e
súditos. Se não existe delegação do poder, também o existem limitações. Sob a
influência de Platão, Bossuet afirma que antes do estabelecimento de qualquer governo o
povo não tinha nenhum direito, portanto, não possuía a soberania para dá-la ao príncipe. A
crença na visão agostiniana da natureza humana conduz Bossuet a afirmar que, no estado
natural, o povo era dominado pelas paixões, imperava o desejo dos mais fortes, não
havia nenhum direito assegurado. Diante de tanta insegurança e injustiça, o povo reunido
resolveu se submeter a um governante escolhido por Deus para dirigi
-
lo, renunciando a sua
vontade e a transmitindo completamente ao príncipe.
Apoiado em São Paulo, Bossuet nega qualquer direito de resistência dos súditos
perante os soberanos. Bossuet salienta que os reis são estabelecidos por Deus. Portanto,
são divinos e sagrados, atentar contra eles é um sacrilégio. Bossuet defende
veementemente a idéia paulina, também aceita por Grócio, segundo a qual os cristãos
devem obediência tanto aos reis justos como aos injustos. A perseguição injusta dos reis
aos súditos não os isenta do dever de obediência que têm para com eles. Enfim, a única
forma de resistência admitida por Bossuet é a resistên
cia passiva, formulada por São Paulo,
segundo a qual o único recurso dos súditos perseguidos era suplicar a Deus para amolecer
o coração dos tiranos.
As recordações de três guerras civis levam Bossuet a afirmar, na Défense de
l’histoire des variations, escrita no ano seguinte também com o intuito de combater Pierre
Jurieu, a idéia defendida por Santo Agostinho de que a paz pública somente será
assegurada em um reino onde o comando cabe ao príncipe e a obediência aos súditos. De
modo que, para manter a ordem
e a paz em seu reino, somente ao príncipe cabe o direito de
fazer a guerra. Os súditos jamais podem fazer a guerra contra o seu príncipe. Pois isto seria
inverter a ordem das coisas, portanto, o fim da paz pública.
379
Luís XIV contra o direito de resistênc
ia ao poder real
Recordemos que no decorrer da Revolução Inglesa de 1640 os revoltosos
calvinistas ingleses defenderam as idéias monarcômacas desenvolvidas pelos calvinistas
radicais da segunda metade do século XVI, de que o poder dos reis vem do povo que o
delega ao rei mediante um pacto que estabelece os direitos e deveres de cada uma das
partes envolvidas. Pacto este que impõe limites ao poder real, pois, caso o rei viole as
cláusulas contidas no contrato, tornando-se um tirano, o poder volta ao povo que, através
de seus representantes, tem o direito de depô
-
lo de seu cargo e até matá
-
lo.
Quando Luís XIV redigiu as suas
Memórias
, entre 1668 e 1672, o absolutismo de
direito divino estava no auge na França. Os huguenotes não ofereciam nenhum risco ao seu
poder. Inclusive, durante a Fronda, eles se mostraram leais ao absolutismo. No período de
esplendor do absolutismo francês, em que as
Memórias
foram concebidas, os huguenotes
não ousavam professar a idéia de resistência ao poder constituído bem como as idéias de
soberania do povo e de pacto inerentes a ela –, desenvolvida e defendida por seus
correligionários radicais da segunda metade do século XVI. Mesmo porque, nesta época,
Luís XIV usava uma política de moderação para com eles. Isto é, procurava, à medida do
possível, respeitar os editos de tolerância promulgados por seu avô e seu pai. Desse modo,
nas
Memórias
, Luís XIV não dialoga diretamente com os huguenotes a respeito da idéia de
resistência aos poderes estabelecidos. Mas isso não nos impede de saber qual é a sua
concepção sobre isso. Pois, na época da Fronda, os revoltosos franceses defenderam essa
mesma idéia, a qual ele procura combater em sua obra.
Do mesmo modo que Bossuet, Luís XIV professa a idéia paulina de que os reis são
estabelecidos por Deus. Em suas
Memórias
,
dirigindo
-se ao filho, ele diz: “Deus vos fez
rei”.
1531
Quanto à idéia defendida pelos monarcômacos de que o povo o poder ao rei,
apesar do silêncio de Luís XIV, é possível notar que ele era contrário a ela. De forma
idêntica a Bossuet, Luís XIV comunga da idéia platoniana de que não havia direitos antes
do estabelecimento do poder público. Ele entende que no estado natural, antes do
estabelecimento das sociedades políticas, imperava a anarquia; não havia nenhum direito,
como o direito à propriedade, o mundo era dominado pelo desejo dos mais fortes. Nas
Memórias
, ele fala ao filho que, “sem o mando, (o homem) seria presa do mais forte, não
encontraria justiça no mundo, nem razão, nem segurança para quanto possui, nem recurso
1531
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 41.
380
para o que tivesse perdido”.
1532
Como desdobramento de seu pensamento, podemos
deduzir, sem possibilidade de erro, que, em seu entendimento, se o povo não tinha nenhum
direito, ele também não poderia possuir a soberania para dá-la ao governante, como
observava Bossue
t.
Em sua querela com a Igreja de Roma, em contra
-
ataque à idéia tomista, professada
pelos teólogos defensores do papa, de que o poder vinha de Deus ao povo que o delegava
ao governante, Luís XIV apregoava a idéia galicana, muito tempo defendida na Fra
nça,
segundo a qual o poder dos reis vem de Deus diretamente, sem nenhum intermediário.
Conforme constata Bertrand, “ele é firmemente convencido que seu poder vem diretamente
e absolutamente de Deus, fonte de toda autoridade: é a pura doutrina galicana, que Luís
XIV não inventou, como se crê comumente, mas que era professada muito tempo na
França e que foi sempre combatida pela Igreja: esta, com efeito, admite o direito divino
dos reis com a sanção da voz popular”.
1533
A unção recebida quando da cerimônia de sua sagração é, para Luís XIV, como
para os franceses de sua época, a prova concreta de que o seu poder vem diretamente de
Deus. Pois, assim como o papa e os bispos, ele também foi ungido com o óleo sagrado. De
acordo com Bertrand, “o rei a prova e a manifestação sensível na unção da sagração
real, que lhe aparece como uma espécie de oitavo sacramento. Ele também é sagrado como
o papa e os bispos”.
1534
Igualmente a Bossuet, para Luís XIV, devido o poder dos reis vir de Deus, eles são
os seus representantes na terra, seus lugares-tenentes. Em suas
Memórias
, ele lembra ao
filho, referindo-se a Deus, “Aquele de quem não somos mais que lugares-
tenentes”.
1535
E
ainda: “é sem dúvida certo que ocupamos, por assim dizer, o posto de Deus (...) somos
partícipes (...) da sua autoridade”.
1536
Conforme observa Mousnier, a esse respeito, “lugar-
tenente de Deus, o rei é soberano”.
1537
Todos os atos de Luís XIV são inspirados nessa
convicção; na corte, a sua pessoa é objeto de um culto monárquico. Segundo Le Brun,
“elevado de tais princípios, profundamente imbuído da dignidade real e de direitos e
deveres que ela implica, Luís XIV se considera verdadeiramente como ‘o lugar-tenente de
Deus sobre a terra’. Esta convicção inspira todas as suas ações e todos os seus gestos mais
1532
ibid., p. 44.
1533
BERTRAND, op. cit., p. 282.
1534
ibid.
1535
LUÍS XIV, 1976, op. cit., p. 31.
1536
ibid., p. 82.
1537
MOUSNIER,
1973,
op. cit.,
p. 260.
381
cotid
ianos; e sua pessoa torna-se o objeto de um verdadeiro culto se exercendo no quadro
da corte”.
1538
A crença em Luís XIV, de que o poder dos reis vem diretamente de Deus,
certamente o leva a não aceitar, assim como Bossuet, a idéia da existência de um pacto qu
e
limita a ação dos reis, defendida pelos monarcômacos. De acordo com Bertrand, “para Luís
XIV, como para os doutores e os juristas galicanos, a autoridade real é uma delegação
direta e sem intermediário da autoridade divina. (...) Somente ele sabe, ou crê saber, em
quais limites deve se exercer esse poder de direito divino”.
1539
A idéia defendida pelos monarcômacos de que os súditos têm o direito de
resistência aos reis também não era aceita por Luís XIV. Como Bossuet, ele comungava da
idéia paulina muito tempo arraigada na França de que os reis eram a imagem de Deus
na terra, a sua pessoa era sagrada. De modo que atentar contra o rei era considerado um
sacrilégio. Essa idéia foi reforçada no momento de sua sagração.
Assim como Bossuet, na concepção de Luís
XIV, somente o rei tem direito de fazer
a guerra em seu reino. Os súditos não têm direito de pegar em armas contra o príncipe. Já o
príncipe, em nome da ordem e da paz, pode fazer a guerra contra os súditos rebeldes,
castigando
-
os severamente. Nas Memória
s
, ele ensina ao filho que,
quem perdoa demasiado freqüentemente castiga quase inutilmente no resto do tempo; pois,
nesse temor que afasta os homens do mal, a esperança de impunidade apenas faz menos
efeito que a própria impunidade. Não acabareis a leitura dessas
Memórias
, meu filho, sem
encontrar momentos em que eu soube vencer-me a mim próprio e perdoar ofensas que
poderia justamente nunca mais esquecer. Mas nessa particular ocasião em que se tratava do
Estado, dos mais perniciosos exemplos e do mal mais contagioso do mundo para o resto
dos meus súditos, em suma, de uma revolta à mão armada, que não atacava a minha
autoridade no menos importante, mas antes no seu próprio fundamento, achei que me devia
vencer de outra maneira, deixando castigar esses miseráveis a quem desejaria perdoar. A
dor que tal severidade me produziu foi largamente recompensada pela satisfação de ver que
esse castigo me evitou posteriormente a ocasião de ter de empregar semelhante remédio.
1540
Por meio de um organizado sistema de policiamento, reforçado em 1667, sem um
prévio julgamento, Luís XIV não hesitava em acusar de ter cometido crime de lesa-
majestade e enviar à Bastilha qualquer um, sem distinção de classe social, que aparentasse
estar conspirando contra o seu poder. De acordo c
om Mousnier,
1538
LE BRUN, François.
Le XVII siècle
. Paris: Librairie Armand Colin, 1967, p. 221.
1539
BERTRAND, op. cit., p. 282.
1540
L
UÍS XIV, 1976, op. cit.,
p. 60.
382
o rei utiliza uma polícia política. Ela é exercida através dos intendentes, de espias e agentes
espalhados por toda a parte, em Paris, através do governador da Bastilha, do lugar-
tenente
criminal e, após 1667, do tenente
-
geral da polícia La
Reynie. Uma palavra mal interpretada
e, duque ou lacaio, o indivíduo é atirado na Bastilha. Sobre frágeis indícios, os intendentes
ou o Conselho arquitetam acusações de lesa-majestade, e o julgamento é proferido à base
de simples conjecturas, pois Richelieu, Luís XIII e Luís XIV professavam que, em matéria
de conspiração, é quase sempre impossível coligir provas matemáticas e que não se deve
esperar o evento que deita tudo a perder. Mais ainda do que a processos, o rei recorre à
prisão preventiva, indefinid
a, mediante simples
lettre de cachet
.
1541
Luís XIV era uma criança na época da Revolução Inglesa de 1640. No entanto, ele
percebia o quanto as idéias defendidas pelos revolucionários ingleses eram prejudiciais
ao absolutismo de direito divino. Os franceses, notadamente Bossuet, ficaram horrorizados
com a decapitação de Carlos I decretada por um parlamento composto em sua maioria por
calvinistas ingleses. Se este foi o sentimento da população francesa, imagine, então, o que
sentiu Luís XIV, pois a rainha H
enriette
-Marie, viúva de Carlos I, era sua tia. Portanto,
havia um forte laço de parentesco entre as duas famílias reais. Assim como Bossuet, Luís
XIV certamente temia que o mesmo ocorresse na França. É importante lembrar que o ano
de 1649 assinalou o fim da Revolução Inglesa de 1640 e o segundo ano da Fronda. E que
os panfletários dessa guerra civil defendiam a mesma idéia de resistência professada pelos
insurretos ingleses.
O absolutismo de direito divino encontrava-se em seu clímax na França quando
Luís
XIV concebeu as
Memórias
, quase duas décadas depois do término dessas duas
guerras civis. Mesmo assim, as tristes impressões que elas lhe deixaram conduziram-no a
agir energicamente contra àqueles que, mesmo que supostamente, ameaçassem a sua
soberania. Assim, objetivando manter a paz na França, logo na primeira década de seu
reinado pessoal, Luís XIV reforça a polícia francesa para inibir qualquer um que pense em
tramar revoltas contra ele.
Antônio Vieira perante o direito de resistir
Do mesmo modo que Bossuet, Antônio Vieira era contrário à resistência ativa dos
súditos perante os seus governantes.
1542
O regicídio era considerado um sacrilégio para
ele.
1543
Antônio Vieira deve ter estudado Molina, Soares, Sanches e Vasques.
1544
Todos
1541
MOUSNIER, 1973, op. cit., pp. 264
-
265.
1542
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., p. 184; VIEIRA, in CIDADE, op. cit., pp. 287, 289
-
290, 293.
1543
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., p. 181.
383
eles defendiam a idéia, aceita por São Tomás de Aquino, de que os magistrados inferiores
têm direito de resistência armada aos tiranos. a doutrina do tiranicídio de Mariana fora
proibida de ser ensinada aos jesuítas desde 1614, por Aquaviva, o Geral da Companhia na
época.
1545
Em 1647, quando se encontrava na França com a missão diplomática de negociar o
casamento do príncipe Teodósio com uma princesa francesa, para assim assegurar o
auxílio da França a Portugal contra as investidas da Espanha, Antônio Vieira teve de ir a
Dover; de lá, precisou ir a Londres.
1546
Certamente, ele o devia estar trajando a roupa
característica da ordem a qual pertencia. Pois, como observa Azevedo, “passando à terra de
heréticos, viam-se os jesuítas forçados a deixar a roupeta”.
1547
Esta viagem a Londres,
quando
estava ocorrendo a Revolução Inglesa de 1640, era extremamente perigosa para
um jesuíta. Nesta época, a doutrina dos puritanos, como eram denominados os calvinistas
na Inglaterra, era dominante neste país. A embaixada de Portugal em Londres estava
va
cante, já que o antigo embaixador, Antônio de Souza Macedo, por manter relações
clandestinas com Carlos I, se indispôs com o Parlamento e saiu da embaixada. Sendo
assim, se Antônio Vieira e o seu companheiro, o padre francês Jean Ponthelier, fossem
persegu
idos pelos puritanos, não teriam, na Inglaterra, uma proteção segura a que
recorrer.
1548
O curioso é que, nos poucos dias em que esteve na Inglaterra, Antônio Vieira, que
era tão atento a tudo o que acontecia a sua volta, não fez a mínima menção, em seus
esc
ritos, dos fatos que incendiavam este país.
1549
É como se ele tivesse ignorado
completamente o que aí se passava. Como observa Azevedo,
nesses poucos dias que passou na Inglaterra este homem tão perspicaz parece surdo ao
rumor dos acontecimentos que então a
gitavam o país; pelo menos, se o ouviu, não lhe ficou
impressão permanente, que alguma vez ressumasse em seus escritos. O rei prisioneiro, o
exército constituído em poder do Estado, a nação convulsa, e uma espécie de novo
judaísmo, na exuberância das aplicações blicas, a triunfar com a rebelião; a tão
importantes fatos nem a mais leve referência em suas cartas.
1550
1544
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 37.
1545
Cf. ib
id.
1546
Cf. ibid., pp. 120
-
122.
1547
ibid., p. 139. Segundo Azevedo, “Vieira trajava de grã, escarlate flamante; ao lado a espada, cheia a
tonsura, bigode crescido. Assim andava na Holanda”. ibid. E certamente na Inglaterra, neste período.
1548
Cf. ibid., p. 122
.
1549
Cf. AZEVEDO, tomo primeiro, op. cit., p. 122.
1550
ibid.
384
De Dover, Antonio Vieira escreveu uma carta para o secretário de Estado, na qual
relatava a seqüência da viagem que faria até chegar em Paris. Nela, não nenhuma
referência a respeito dos acontecimentos políticos da Revolução Inglesa de 1640.
1551
Será que na carta, desconhecida, que escreveu de Londres a D. João IV, Antônio
Vieira fez referências à política inglesa? Se levarmos em conta o silêncio que manteve em
todas as outras cartas que escreveu neste período, a resposta é não.
1552
Mas o desinteresse
de Antônio Vieira referente aos eventos políticos da Inglaterra torna-se compreensível se
consideramos que, a rígida disciplina jesuítica na qual foi educado o levava a ignorar tudo
aquilo que se encontrava alheio aos seus objetivos, que, no momento, eram conseguir o
auxílio da França, mediante o casamento do príncipe português com uma princesa
francesa, como também fazer a paz com a Holanda. Desse modo, naquele momento, as
rixas dos hereges ingleses com o rei Carlos I eram consideradas insignificantes para
Antônio Vieira.
1553
Certamente, Antônio Vieira sabia que os calvinistas defendiam a teoria da
resistência ativa aos soberanos e não os aprovava. Pois, no Sermão pelo bom sucesso das
armas de Portugal contra as da Holanda, pronunciado em 1640, justamente quando
eclodiu a Revolução Inglaterra de 1640, ele observa que “os holandeses são rebeldes a seu
rei e a Deus”.
1554
Isto porque, assim como os revolucionários ingleses, os holandeses, que
após ter tomado Pernambuco dos portugueses, neste ano estavam às portas da Bahia,
decididos a conquistá-la, também eram calvinistas. Lembremos que a Bahia era a segunda
pátria de Antônio Vieira.
De modo semelhante a Bossuet, Antônio Vieira acredita que, em nome da ordem e
da paz no reino, os reis têm o direito de fazer a guerra contra os súditos, esses jamais
podem pegar em armas contra os reis. Isto fica claro quando, no livro anteprimeiro da
História do Futuro, redigido de 1664 a 1665, Antônio Vieira reprova a revolta da alta
1551
ibid., p. 123.
1552
Cf. ibid.
1553
Cf. ibid. Conforme Azevedo, “tenha-se por plausível que seu espírito, formado na rígida disciplina
jesuítica, possuía capacidade de abstração maravilhosa. Seguia a sua idéia, desinteressado do mundo que o
rodeava, e bastando-lhe a vida interior. Nesta conjunção, o pensamento demorava-lhe nas coisas grandes que
tinha de realizar: um matrimônio de príncipes; uma paz necessária; intrigas diplomáticas que inutilizar. Com
ta
l fito não podia demovê-lo de suas cogitações a curiosidade das cizânias de um povo herético,
necessariamente mesquinhas”. ibid.
1554
VIEIRA, in CIDADE, op. cit., p. 169.
385
nobreza portuguesa contra D. João IV e, em seguida, mostra que tal revolta foi combatida
com sucesso por esse rei.
1555
As recordações da instabilidade política existente durante as guerras civis contra a
realeza na França, no início do reinado de Luís XIV, e em Portugal, no início do reinado de
D. João IV, fizeram com que Bossuet, Luís XIV e Antônio Vieira, em suas respectivas
obras, não admitissem, em hipótese alguma, que os súditos pudessem resistir aos
governantes estabelecidos. Eles entendiam que, para manter a paz em seu reino, os reis
deviam combater todos aqueles que se insurgiam contra eles com armas na mão. Os
súditos, pelo contrario, não tinham o direito de empreender guerra contra seus governant
es;
haja vista que atentar contra os reis por Deus estabelecidos seria incorrer não somente em
um crime de lesa-majestade, mas em um sacrilégio, que o seu poder vinha de Deus, o
que os tornavam pessoas sagradas.
1555
Cf. VIEIRA, 2005, op. cit., pp. 183
-
184.
386
CONCLUSÃO
Luís
XIV assumiu o poder pessoalmente em 1661, após A Guerra dos Trinta Anos
(1618
-1648) e a guerra franco-espanhola (1648-1659). A França saiu-se fortalecida dessas
guerras. De modo que todos os países da Europa passaram a aceitar a preponderância da
França e reconhecer o rei francês como o mais ilustre da cristandade. Na primeira década
do reinado pessoal de Luís XIV, Le Tellier e Louvois transformaram o exército francês no
maior do mundo. Objetivando aumentar a sua glória e o seu poder, Luís XIV lançou-se em
guerras de conquista: A Guerra da Devolução (1667-1668), a Guerra da Holanda (1672-
1678) e a tomada de Estrasburgo (1681).
A ambição desmedida de Luís XIV despertou o ódio dos seus inimigos estrangeiros
que começaram a fazer alianças contra ele. No final da Guerra da Devolução, em 1668, a
Inglaterra, a Holanda e a Suécia formaram a Tríplice Aliança de Haia, uma frente
protestante que representava o primeiro empecilho à expansão francesa. Durante a Guerra
da Holanda, formou
-
se uma coligação da Holanda, Ingl
aterra e Espanha contra a França.
A política expansionista de Luís XIV foi muito criticada pelos seus inimigos
estrangeiros. Geralmente, as críticas externas ocorriam quando Luís XIV invadia seus
países respectivos. Este foi o caso do panfleto de Lisola, Le Bouclier d’État, de 1667,
quando da Guerra da Devolução; e o panfleto Mars Christianissimus de Leibniz, de 1683,
redigido dois anos após a tomada de Estrasburgo. Eles criticavam a política expansionista
de Luís XIV e o seu desejo de dominar toda a Europa.
Logo após a revogação do Edito de Nantes, em 1685, os protestantes franceses,
refugiados na Inglaterra e na Holanda, passaram a difundir libelos nos quais mostravam a
arbitrariedade do governo de Luís XIV, comparando-o até mesmo ao sultão do império
oto
mano que, na época, era considerado o pior governante do mundo. A revogação do
Edito de Nantes prejudicou a imagem de Luís XIV na Europa. Com isso, o seu grande
inimigo Guilherme de Orange, príncipe da Holanda, saiu
-
se fortalecido.
Em 1686, sob a liderança de Guilherme de Orange, formou-se a Liga de
Augsburgo, cujo objetivo de seus integrantes consistia em aguardar o momento favorável
para lançar
-
se contra a França e acabar com a ambição do Grande Rei.
387
A invasão e devastação do Palatinado em 1688 por Luís XIV fortaleceu a coalizão
de seus inimigos. Luís XIV deu a eles o pretexto que esperavam para pôr fim a sua política
belicosa e expansionista. Assim, a Holanda, a Inglaterra, a Áustria, a Espanha, a Sabóia e
vários príncipes alemães formaram a Grande Aliança de Viena para combater a França.
Esta coligação era liderada por Guilherme de Orange que, neste ano, tornou-se o rei da
Inglaterra. Iniciou-se, então, a Guerra da Liga de Augsburgo, que seria concluída somente
em 1697.
Os altos custos dessa guerra foram sofridos pela população francesa, que teve de
pagar um alto preço para que a França assegurasse as suas conquistas. Para manter essa
guerra, todas as finanças da nação foram subordinadas ao exército. Os males decorrentes
da economia de guerra, como o aumento dos impostos e a inflação, somou-se à Grande
Fome de 1693-1694. A extrema miséria da maioria dos franceses foi criticada
imensamente na França e no estrangeiro. Nesse período surgiu uma oposição interna a Luís
XIV. La Bruyère e Fénelon, preceptor do duque de Borgonha, criticavam o fato de Luís
XIV preocupar-se excessivamente com a sua glória enquanto o seu povo perecia de
miséria. Em torno do duque de Borgonha nasceu uma oposição interna a Luís XIV, a qual
era encabeçada por Fénelon.
No final da Guerra da Liga de Augsburgo, em 1697, a França estava
financeiramente arrasada. Porém, a economia estava se refazendo rapidamente. Nesse
período entre Guerras (1697-1701), assim que assinou o tratado de paz de Ryswick (1697)
com Leopoldo I, Luís XIV passou a se dedicar ao assunto da sucessão espanhola, o qual
preocupava todos os governantes da Europa.
Carlos II da Espanha morreu em 1700. Luís XIV aceitou a cláusula de seu
testamento, a qual estabelecia que o neto de Luís XIV somente poderia assumir o reino da
Espa
nha se renunciasse formalmente ao seu direito ao trono da França. Porém, em
fevereiro de 1701, Luís XIV cometeu dois atos provocadores. Primeiramente, após o seu
neto ter assumido o reino da Espanha como Filipe V, Luís XIV fez o Parlamento de Paris
registr
ar a manutenção de seus direitos à coroa francesa. O seu ato irritou toda a Europa,
que o interpretou como sendo de uma enorme arrogância. Em segundo lugar, ele violou o
tratado de paz de Ryswick enviando tropas francesas auxiliadas por espanholas para tom
ar
as fortalezas holandesas. Tal ato fortaleceu os argumentos de seus inimigos europeus que
diziam que ele queria dominar o universo.
388
Neste contexto turbulento de uma relativa paz é que, em 1700, de seu bispado de
Meux, aos 73 anos de idade, Bossuet retoma a sua
Politique
, redigindo os últimos quatro
livros dessa obra. O livro nono, em que ele se dedica a tratar da guerra, é concebido entre
janeiro a abril de 1701. Justamente no momento em que os atos provocantes de Luís XIV
estavam prestes a desencadear outra grande guerra européia. Bossuet percebia que a França
teria dificuldades para enfrentar uma guerra contra a Grande Aliança, que ainda não
havia se recuperado totalmente da guerra anterior, e o quanto uma guerra seria fatal ao
poder de Luís XIV. É c
om a intenção de evitar essa guerra e defender o poder de Luís XIV
que o pacifismo é o tema elegido por Bossuet no livro nono da
Politique.
Assim, sustentado na Bíblia e em Santo Agostinho, no artigo II do livro nono da
Politique
, concebido em 1701, o Bispo de Meaux utiliza-se de todo o seu poder de
persuasão para que Luís XIV compreenda o quanto as guerras de conquista são
desvantajosas. Bossuet busca mostrar ao monarca que os príncipes cristãos só devem
empreender as guerras ordenadas por Deus. Pois nas guerras de conquista, consideradas
guerras injustas, os príncipes não recebem a Sua ajuda.
Ao contrário de Maquiavel que colocava a glória do príncipe em primeiro plano,
Bossuet defende a virtude oposta a esse vício, a humildade. Bossuet lembra ao rei que
os
príncipes ambiciosos e conquistadores são condenados por Deus. Bossuet critica os reis
que devastam, incendeiam e pilham durante as guerras de conquista, como fez Luís XIV na
Guerra da Liga de Augsburgo.
No livro anteprimeiro da História do Futuro, escrito de 1664 a 1665, Antônio
Vieira comunga das mesmas idéias de Bossuet. O nosso Bossuet luso
-
brasileiro condena as
guerras de conquista empreendidas por Filipe IV da Espanha contra Portugal. Luís XIV
deixa claro, em suas
Memórias
, redigidas entre 1668
e 1672, assim como em seus atos, que
a glória ocupava o primeiro posto em sua vida.
O livro nono da
Politique
foi concebido por Bossuet após inúmeras guerras e as
conseqüências delas advindas, como o aumento da pobreza e as críticas à política belicosa
e expansionista de Luís XIV. Antônio Vieira redigiu o livro anteprimeiro da História do
Futuro
durante a Guerra da Restauração (1640-1668), época marcada pelas inúmeras
tentativas de invasão de Filipe IV em solo português por não aceitar a independência de
Po
rtugal, buscando reconquistá-lo a todo custo. Luís XIV concebeu as
Memórias
no
período de esplendor do absolutismo na França, em que o seu poder aumentou em
detrimento ao dos Habsburgos da Áustria e da Espanha e contava com o maior exército da
389
Europa. Ele fazia guerras de conquista visando reforçar as fronteiras da França para evitar
futuros ataques estrangeiros; aumentar a honra de sua família, deixando aos seus
sucessores um poder ainda maior que o seu; a reivindicação de diversos territórios
europeus
por ele pode ser compreendida também devido a sua família ter tido no passado
laços de parentesco com renomados reis de diversas partes da Europa; assim como a
maioria dos franceses de sua época ele acreditava que os reis da França eram os mais
importantes
do mundo, portanto, não podiam se submeter a nenhum outro; some
-
se a isso o
fato de que as lembranças da Fronda o impulsionavam a esforçar-se para aumentar a sua
glória e poder em detrimento da nobreza que se insurgiu contra o seu poder em sua
menoridade.
A humildade do príncipe era apregoada por Bossuet e Antônio Vieira devido esta
ser uma virtude muito defendida no meio teológico ao qual pertenciam. Luís XIV
pertencia à aristocracia, e neste meio a glória era a virtude mais valorizada.
As guerras justas, que são empreendidas pelos príncipes visando defender o seu
reino de ataques externos, são defendidas por Bossuet no artigo IV do livro nono da
Politique
. Bossuet observa que os príncipes que empreendem guerras justas são ajudados
por Deus. Segundo el
e, mesmo sabendo que o inimigo tem um exército superior, o príncipe
não deve temê-lo, deve ir ao combate, pois Deus lhe daa coragem e o auxiliará nos
campos de batalha, dando-lhe a vitória. Antônio Vieira defende a mesma idéia no livro
anteprimeiro da História do Futuro. nas
Memória
s, Luís XIV diz ao Delfim que para
salvar a honra de sua coroa os príncipes devem empreender as guerras. Para ele, quando as
guerras são consideradas necessárias, os reis são obrigados a empreendê
-
las. Na concepção
de Luís
XIV, todas as guerras empreendidas por ele eram necessárias, portanto, justas. Luís
XIV também acreditava que os príncipes eram ajudados por Deus nos campos de batalha.
Ao defender as guerras justas, o objetivo de Bossuet era mostrar a Luís XIV que se
a Grande Aliança o atacasse ele não precisava temê-la. Deveria confiar em Deus e
enfrentá
-la. Pois essa seria uma guerra justa e Deus o ajudaria a vencer o inimigo, mesmo
sendo ele mais forte. Da mesma maneira, Antônio Vieira pretendia encorajar o rei de
Portu
gal, D. Afonso VI, a enfrentar o rei da Espanha mesmo contando este com um
exército superior.
Ainda no artigo IV do livro nono da
Politique
, depois de ter defendido as guerras
justas, Bossuet lembra que Deus prefere os príncipes pacíficos aos guerreiros.
390
A defesa do pacifismo por Bossuet não era recente. Em diversos textos de
circunstâncias, concebidos ao longo da segunda metade do século XVII, como no
Panégyrique de Saint Bernard, de 1653, no Sermon sur les démon, de 1660, no
Sermon
pour la purification de la Saint Vierge, de 1666, e na Oraison funèbre de Louis de
Bourbon, Prince de Condé, de 1687, ele vinha defendendo esta idéia.
Esses textos foram concebidos após a Fronda. A crise econômica decorrente da
Guerra dos Trinta Anos e do início da guerra fran
co
-espanhola foi um dos motivos que
impulsionaram as massas parisienses a aderir às frondas do Parlamento e da nobreza contra
o poder constituído, no período de menoridade de Luís XIV.
A crise econômica gerada pela Guerra da Liga de Augsburgo deu origem às
críticas
internas à política belicosa de Luís XIV. Nas Lettres à Louis XIV, de 1695, Fénelon
condenava o Grande Rei por não priorizar a paz, alertando-o que a situação miserável em
que muitos franceses se encontravam poderia levá
-
los à revoltas.
No início de seu reinado pessoal, Luís XIV não escondia de ninguém o seu amor à
glória, relegando a paz em último plano. Durante a Guerra da Liga de Augsburgo,
comovido com a miséria de seu povo, ele empenhou-se em alcançar a paz, porém, o desejo
de glória não o ab
andonou. Em duas cartas a Filipe V, de 1703 e 1707, durante a Guerra de
Sucessão Espanhola (1701-1714), ele se mostra preocupado com a miséria da maioria dos
franceses e dos espanhóis, mas aconselha o neto a fazer a paz somente em condições
honrosas. Luís XIV deixa claro que somente fará uma paz que assegure a sua glória e à do
neto. Somente no leito de morte é que o rei, moribundo, mostra-se arrependido de ter
colocado a glória em primeiro lugar em sua vida e aconselha o bisneto a priorizar a paz.
O pacifismo também foi muito defendido por Antônio Vieira no livro anteprimeiro
da
História do Futuro
. Em meio a tantas guerras, ele empenha
-
se em convencer Filipe IV a
conceder a paz a Portugal.
Enquanto a defesa da paz foi constante em Bossuet e Antônio Vie
ira, Luís XIV agia
de acordo com as circunstâncias. Quando a Europa encontrava-se enfraquecida, ele
lançava
-
se em guerras de conquista; já quando o equilíbrio europeu se restabelecia e toda a
Europa se unia contra ele, como no caso da Guerra da Liga de Augsburgo, ele passava a
agir com prudência, recorrendo a meios pacíficos. Por outro lado, quando pôde contar com
um forte exército, uma marinha fortalecida e uma situação financeira excelente, ele se via
estimulado a empreender guerras de conquista para aumentar a sua glória; quando as
391
finanças, o exército e a marinha encontravam-se debilitados, ele se tornava moderado e
buscava a paz.
As inúmeras guerras empreendidas por Luís XIV, na segunda metade do século
XVII, provocavam crises econômicas na França no final desse século. A experiência
ensinou a Bossuet que as críticas internas e externas a Luís XIV eram maiores nesses
momentos. Por isso é que no livro nono da
Politique
ele lança mão de todo o seu poder
persuasivo para apresentar a imagem de um príncipe pacífico, que, em sua concepção,
esta seria a melhor maneira para Luís XIV conservar o seu poder.
Durante a Revolução Inglesa de 1640 e a Fronda (1648-1653), os revoltosos
defenderam a teoria da resistência ativa de origem escolástica, desenvolvida na
segunda
metade do século XVI pelos luteranos e melhor elaborada pelos calvinistas. Tal teoria é
composta pelas idéias de soberania do povo, contrato e direito de resistência dos súditos
aos seus governantes.
Como o maior defensor da soberania de Luís XIV, nos seis primeiros livros da
Politique
, redigidos entre 1677 e 1679, quando do preceptorado do Delfim, Bossuet
empenha
-
se em contestar esta teoria.
Sustentado na doutrina de São Paulo, Bossuet afirma que o poder dos reis vem
diretamente de Deus e não do povo como defendiam Grócio e os monarcômacos da
Revolução Inglesa de 1640 e da Fronda. Em contra-ataque à idéia defendida pelos
monarcômacos de que o povo tem o direito de resistir ao reis injustos e tiranos, Bossuet
professa a característica sagrada da aut
oridade real, segundo a qual o poder dos reis vem de
Deus, por isso eles são pessoas sagradas, atentar contra eles significa atentar contra o
próprio Deus. Aqueles que incorrem em tal ato o cometem somente o crime de lesa-
majestade mais um sacrilégio, sendo castigados por Deus. Os súditos devem obedecer até
mesmo aos reis injustos, pois eles também foram ordenados por Deus. A única forma de
resistência dos súditos admitida por Bossuet é a resistência passiva, que consiste somente
em suplicar a Deus para que suavize o coração dos tiranos. Bossuet recorda que os antigos
cristãos jamais resistiram aos seus governantes, mesmo quando eram perseguidos por eles.
A autoridade real é divinizada por Bossuet. Ele afirma que os reis são deuses. Isto para
reforçar a s
ua autoridade perante os súditos.
Bossuet recorre ao caráter paternal da autoridade real, lembrando que os súditos
devem obedecer aos reis como os filhos aos pais. Por fim, Bossuet lembra que o poder dos
reis é absoluto. No sentido de ser indivisível, não estar submetido a nenhum outro poder
392
aqui na terra. Assim, os reis não devem dar satisfação a ninguém de seus atos. Ninguém
tem o direito de julgá
-
los. Quando eles procedem mal, somente Deus, que está acima deles,
pode fazer isso. Ao exaltar a autoridade real de tal maneira, Bossuet está participando do
movimento de exaltação à glória de Luís XIV dirigido por Colbert na década de 1670.
Alicerçado em Santo Agostinho, Bossuet salienta que somente o príncipe tem o direito de
fazer a guerra em seu reino. Do contrário, seria o fim da paz pública. Para conservar o seu
poder, o príncipe deve combater as revoltas dos súditos energicamente, sobretudo as
revoltas dos Grandes, já que estes são os mais perigosos.
Depois da Revogação do Edito de Nantes, 1685, e a Revolução Inglesa de 1688/89
Pierre Jurieu passa a professar a teoria da resistência ativa em alta voz, em suas
Lettres
pastorales
de 1689. No Cinquième avertissement aux protestants, concebido em 1690 com
o propósito de refutar as idéias monarcômacas defendidas por Pierre Jurieu, Bossuet
ressaltará novamente as mesmas idéias da doutrina paulina, defendidas por ele nos seis
primeiros livros da
Politique.
No livro nono da
Politique
, de 1701, Bossuet observa que, para conservar o seu
poder, os príncipes devem manter a alta nobreza na corte, longe do poder e das armas. Ao
mesmo tempo, os príncipes devem possuir um forte exército. E que a vigilância dos
príncipes em relação aos Grandes deve ser ainda maior no início e no fim dos reinos.
Luís XIV e Antônio Vieira também defenderam a soberania real em suas obras. As
revoltas dos súditos, sobretudo dos Grandes, foram condenadas por eles. Assim como
Bossuet, ambos entendiam que para a conservação do poder de um príncipe era necessário
um exército potente.
Ao defender essas idéias, tanto Bossuet como Luís XIV e Antônio Vieira tinham
em mente as guerras civis lideradas pelos Grandes contra o poder constituído no início dos
reinados e pretendiam evitar futuras revoltas. Eles entendiam que a paz em um reino
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m todo o poder centralizado nas mãos de um único governante.
393
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