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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
“QUEM ACREDITOU NO AMOR, NO SORRISO, NA FLOR”: A
CONFIANÇA NAS RELAÇÕES AMOROSAS
MARCELA ZAMBONI LUCENA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Sociologia da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito
parcial à obtenção do título de Doutora em
Sociologia sob a orientação do Professor
Doutor Josimar Jorge Ventura de Morais.
RECIFE, MAIO DE 2009.
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Lucena, Marcela Zamboni
“Quem acreditou no amor, no sorriso, na flor”: a
confiança nas relações amorosas / Marcela Za
mboni
Lucena. – Recife: O Autor, 2009.
256 folhas : il., fig.
Tese (doutorado)
Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. Sociologia, 2009.
Inclui bibliografia e anexo.
1. Sociologia. 2. Confiança. 3. Relações Amorosas.
I. Título.
316
301
ed.)
CDD (22. ed.)
UFPE
BCFCH2009/18
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Para minha mãe, pelo exemplo de confiança e amor.
Para Jairo, por ter re-significado o amor.
AGRADECIMENTOS
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, em especial ao
professor Paulo Henrique, pela oportunidade em coordenar as discussões de gênero
realizadas no Encontro do PET, promovido pela UFPE (2007), à professora Salete
Cavalcanti, pelas contribuições em minha formação acadêmica como orientadora de
conclusão de Graduação e de Mestrado – e pelo apoio nos momentos difíceis; à professora
Roberta Campos Bivar, comadre e amiga, pelas sugestões na defesa do projeto e forma
carinhosa com que me acolheu e ao professor Joanildo Burity, pelo empenho e apoio no
meu projeto inicial.
Ao professor Frédéric Vandenberghe, pela indicação bibliográfica, colaboração
intelectual e espírito “habermaussiano”.
Ao professor Édison Gastaldo, pelo material bibliográfico enviado.
Aos funcionários do Programa, particularmente à Zenilda, pelo cafezinho de todo
dia e à Priscila, pela presteza de sempre.
Aos meus colegas de turma, em especial a Rui, pelo humor, disponibilidade,
amizade e pelo abstract.
À Fabiana e ao Cristophe, pelo resume.
Aos novos amigos e colegas da UFPB, em especial à Cristina e ao Anderson, pelas
companhias nos cafés, biscoitinhos e conversas diárias, e aos “paralelos do ritmo”, pelos
momentos de descontração.
Aos amigos confidentes Fafá, Fernando Mota e Dirceu, pelas conversas
terapêuticas e bem-humoradas sobre o amor.
À Eliana, pelo cuidado, amizade e pelos livros enviados.
À Bia, pela paciência e alegria nos momentos de convivência, pela demonstração
de amor nos momentos de tristeza e pelos livros trazidos da Inglaterra.
À Luzia, pela amizade, cumplicidade, suporte e tudo que compartilhamos desde a
graduação. A irmã que eu sempre quis ter.
Ao meu irmão Marquinho, pela “doação” bibliográfica, conversas sempre
acompanhadas de chocolates e apoio.
Ao meu irmão e meio pai, Marcinho, e à minha cunhada-irmã, Patrícia, pelos
empréstimos dos livros, enorme disponibilidade, amizade e pela revisão do texto.
Aos meus amados sobrinhos Daniel e Rafael. Ao primeiro, pelas descobertas
inocentes do amor, traduzida na frase: “eu olhei com olhos de amor para ela” e todas as
suas intrigantes conclusões acerca das relações afetivas e amorosas. Ao pequeno Rafa,
pelos momentos lúdicos.
À minha mãe, Ivete, pela resignação com que me criou, por tudo que fez e faz por
mim e pelas renúncias diante das dificuldades da vida, além do seu apoio na revisão deste
trabalho.
Ao CNPq, pela bolsa de estudos que viabilizou o desenvolvimento desta tese.
Ao professor, orientador, amigo e compadre, Jorge Ventura. Pela generosidade
com que acolheu a idéia desta tese, pela confiança depositada, pelos conselhos e ombro
amigo, pelas críticas e contribuições que viabilizaram este trabalho.
Ao meu amor, Jairo Matemático abstrato, sambista e romântico – pela revisão do
texto e sugestões, pelas tarefas domésticas, pelas broncas resolvidas no computador, pelas
noites e dias de amor, pela paciência diante do adiamento de nossos projetos e dos
momentos de ausência e ansiedade, pela amizade, paz e sublime amor.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar uma discussão do conceito de confiança nas
relações amorosas, que possa ser útil às novas inquietações e indagações sobre as relações
afetivas da contemporaneidade, considerando-se os atuais padrões de relacionamentos
adotados. Para tanto, partiu-se de alguns autores que contribuíram na elucidação do tema
no âmbito das Ciências Sociais: Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann,
Zygmunt Bauman e Anthony Giddens.
Em Georg Simmel, podem-se apontar três possibilidades para pensar o problema
da confiança nas relações amorosas: 1. o surgimento de uma moral geral-particular
resultaria no reconhecimento mútuo entre homens e mulheres, viabilizando a confiança
entre eles, 2. as mulheres conquistariam a “liberdade social”, através da repetição da
objetividade criada pelo homem. Neste caso, a confiança seria restrita ao âmbito público e
3. as mulheres seriam capazes de combinar os elementos subjetivos e objetivos, sendo a
confiança no amor possível apenas entre elas. Os homens viveriam então, num estado
solipsista.
A confiança nas relações amorosas, em Michel Foucault, poderia ser extraída de
uma determinada formação discursiva, e criada pelas subjetividades dos objetos do
mundo, e, portanto, variante e envolvido tanto pelas práticas de sujeição quanto pelas de
liberação.
Segundo Niklas Luhmann, a confiança é importante porque reduz a complexidade
social. Nas relações amorosas, esse conceito deve ser visto a partir de sua teoria dos
sistemas ou perspectiva neo-funcionalista. A fragilidade das relações amorosas no mundo
contemporâneo é refletida na sensação de perigo que depende da ação de terceiros ou de
fatores sociais o que pode levar o indivíduo a correr o risco resultado da decisão do
agente e envolver-se menos. Superando-se esta possibilidade da relação entre risco e
perigo, o amor seria transformado em confiança, esvaziando-se.
Para Zygmunt Bauman, o amor líquido é definido por relações de interesse e de
extremo egoísmo. As relações afetivas são comparadas às bolsas de valores, e a confiança
costuma ser transformada em desconfiança, em um curto período de tempo. A
durabilidade e a estabilidade das relações são trocadas pela preocupação do indivíduo em
conectar-se à rede narcísica do mundo contemporâneo.
Com uma visão mais otimista acerca do amor, e pode-se dizer aqui, da confiança
nas relações amorosas, Anthony Giddens parte da democratização da vida pessoal,
enfatizando as conquistas das mulheres e a combinação entre equidade, liberdade e
autonomia.
Ao final da análise deste trabalho, a fidelidade evidenciou-se como um elemento
central da confiança nas relações amorosas. Tentou-se, portanto, apresentar algumas
categorias que pudessem refletir as motivações dos indivíduos relativas à infidelidade: 1.
Desejo (necessidades biológicas e psico-sociais), subdivido em: a) Desejo sexual e b)
Desejo-paixão; 2. Reconhecimento social/não reconhecimento social; 3. Manutenção da
relação; 4. Combustível da relação; 5. Teste; 6. Auto-encorajamento para terminar a
relação; 7. Forma de encorajar a(o) parceira(o) para terminar a relação; 8. Razão
instrumental; 9. Vingança e 10. Sistema Social. Essas categorias foram criadas para
iluminar o debate sobre a contraditória valorização da fidelidade e sua negativa empírica
no mundo hodierno, e enfatizar a necessidade de re-pactuar o vínculo amoroso, admitindo
que o amor possa ser suplantado, considerando as elevadas chances do esvaziamento do
sentimento, mas preservando os sentidos de amizade e de humanidade.
Palavras-chave: confiança, relações amorosas, Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas
Luhmann, Zygmunt Bauman e Anthony Giddens.
ABSTRACT
The aim of this research is to present a discussion on the concept of trust in love
relationships, which can contribute to new concerns and questions about those
contemporary affectionate relations, taking into account the adoption of new relationship
paradigms. For that we have dialoged with some authors that have contributed to elucidate
the theme within the social sciences: Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann,
Zygmunt Bauman e Anthony Giddens.
Concerning Georg Simmel, it is possible to point out three possibilities to think the
trust matter in love relationships: 1. the emergence of a general-particular moral would en
up in the mutual recognition between men and women, turning possible the trust, 2. the
women would conquer the “social liberty”, through the repetition of the objectivity created
by men. In that case, the trust would be restricted to public space, and 3. the women would
be able to articulate subjective and objective elements, being trust in love possible only
among them. The men would live then in a solipsist state.
As far as Michel Foucault, the trust in love relationships could be drawn from a
certain discursive formation, and created by the objects of the world subjectivities, and,
thereafter, instable and involved by subjection and liberation practices alike.
According to Niklas Luhmann, the trust is important since it reduces social
complexity. In love relationships, this concept must be seen from his theory of systems or
the neo-functionalist perspective. The fragility of love relationships in the contemporary
world reflects on the danger feeling which depends on others action or social matters
that can take the person to run the risk result of the agent’s decision and get less
involved. Overcoming this possibility of the relation between danger and risk, the love
would turn out trust, emptying.
For Zygmunt Bauman, relations of interest and extreme selfishness define the
liquid love. The love relationships are compared with the stock exchange, and the trust
usually becomes suspiciousness, within a short time. The durability and stability of the
relationships are changed for one’s concerning in connecting to the contemporary world
narcissistic web.
With a more optimistic view on love, and, let’s say so, on the trust of love
relationships, Anthony Giddens focus on the democratization of private life, underlining
the women emancipation and the combination between equity, liberty and autonomy.
In the end of this research, the fidelity would come to be a central element for the
trust in love relationship. We have tried, thus, to present some categories that could reflect
the individuals’ motivations as far as infidelity is concerned: 1. Desire (biological and
psycho-social necessities), subdivided in: a) Sexual desire e b) Desire-passion; 2. Social
recognition/lack of social recognition; 3. Maintenance of the relationship; 4. Fuel of the
relationship; 5. Test; 6. Self-encouragement to end the relationship; 7. Way of
encouraging the partner to end the relationship; 8. Instrumental reason; 9. Revenge and 10.
Social system. These categories were created to cast light on the debate about the
contradictory valorization oft fidelity and its empiric negation of the hodiernal world, and
emphasize the necessity of re-agreeing the loving bond, admitting that love can be
overcome, taking into account the high possibilities of feelings emptying, nevertheless the
sense of friendship and humanity must be preserved.
Key Words: trust, love relationship, Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann,
Zygmunt Bauman e Anthony Giddens.
RESUME
L’objectif du présent travail est de présenter une discussion sur le concept de
confiance dans les rapports amoureux, qui pourra être utile aux nouvelles inquiétudes et
interrogations sur les relations affectives dans la contemporanéité, en tenant compte des
nouveaux modèles de rapports adoptés. Pour cela, nous sommes partis d’auteurs qui ont
contribué à l’élucidation du sujet, dans le domaine des Sciences sociales: Georg Simmel;
Michel Foucault; Niklas Luhmann; Zygmunt Bauman et Anthony Giddens.
Chez Georg Simmel, nous pouvons signaler trois possibilités de réflexion sur cette
problématique de la confiance dans les rapports amoureux: 1. l’apparition d’une morale
général-particulier résulte de la reconnaissance mutuelle entre des hommes et des femmes,
ce qui rend possible la confiance entre eux; 2. les femmes ont conquis la “liberté sociale”
par le moyen de la répétition de l’objectivité créée par l’homme. Dans ce cas, la confiance
serait limitée à la sphère publique et 3. les femmes seraient capables de combiner les
éléments subjectifs et objectifs, la confiance en l’amour étant possible seulement entre
elles. Les hommes viveraient dans un état solipsiste.
La confiance dans les rapports amoureaux, chez Michel Foucault, pourrait
s’extraire d’une formation discursive donnée et produite par les subjectivités des objets du
monde, et, pourtant, variable et entourée tant par les pratiques d’assujettissement que par
celles de libération.
Selon Niklas Luhmann, la confiance est importante parce qu’elle réduit la
complexité sociale. La confiance dans les rapports amoureux doit être envisagée à partir
de sa théorie des systèmes ou perspective néo-fonctionnaliste. La fragilité des rapports
amoureux dans le monde contemporain se fait remarquer par la sensation de danger
celle-ci dépendant de l’action de tiers ou de facteurs sociaux – fait qui peut mener
l’individu à prendre le risque résultat de la décision de l’agent et se donner moins aux
rapports. Une fois cette limite surmontée, l’amour serait transformé en confiance, et se
viderait.
Pour Zygmunt Bauman, l’amour liquide est défini par des rapports d’intérêt et
d’égoïsme extrême. Les rapports affectifs sont comparés aux Bourses de valeur, et la
confiance est d’habitude transformée en méfiance, en une courte période de temps. La
durabilité et la stabilité du rapport sont échangées contre la préoccupation de l’individu
qui cherche à se connecter au réseau narcissique de la contemporaineité.
Ayant une vision plus optimiste de l’amour et, disons, de la confiance dans les
rapports amoureux, Anthony Giddens part de la démocratisation de la vie intime, en
soulignant les conquêtes des femmes et la combinaison entre parité, liberté et autonomie.
La fin de l’analyse de cette étude a mis en évidence la fidélité en tant qu’élément
central de la confiance dans les rapports amoureux. Nous avons pourtant essayé de
présenter quelques catégories qui pourraient refléter les motivations des individus par
rapport à l’infidelité : 1. Le désir (les necessités biologiques et psycho-sociales), sous-
divisé en: a) Le désir sexuel et b) Le désir-passion ; 2. La reconnaissance sociale ; 3.
L’entretien de la relation ; 4. Le combustible de la relation ; 5. Le test ; 6. L’auto-
encouragement pour finir la relation ; 7. La façon d’encourager la/le partenaire pour finir
la relation ; 8. La raison instrumentale ; 9. La vengeance et 10. Système social. Ces
catégories ont été créées pour éclaircir le débat sur la mise en valeur contradictoire de la
fidélité, ainsi que sa négative empirique dans le monde actuel, en mettant en évidence la
nécessité de reconstruire le pacte du lien amoureux. Tout cela en admettant que l’amour
peut être supplanté, en considérant les fortes possibilités d’un anéantissement du
sentiment. Cependant, les sens de l’amitié et de l’humanité doivent être préservés.
Mots-clés: confiance, rapports amoureux, Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas
Luhmann, Zygmunt Bauman et Anthony Giddens.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................................19
INTRODUÇÃO.................................................................................................................22
CAPÍTULO I A CONFIANÇA E AS RELAÇÕES AMOROSAS NAS CIÊNCIAS
SOCIAIS............................................................................................................................32
I.1. O lugar da confiança nas Ciências Sociais...................................................................33
I.2. Relações íntimas e amor: fragmentos do passado.........................................................41
I.3. As relações amorosas sob a lente dos cientistas sociais...............................................48
I.4. Confiança nas relações amorosas: redenção ou prisão?...............................................56
CAPÍTULO II “VOCÊ INVENTA O AMOR, EU INVENTO A SOLIDÃO”: DO
ESSENCIALISMO AOS DETERMINANTES CULTURAIS EM GEORG SIMMEL
.............................................................................................................................................64
II.1. Alguns conceitos gerais...............................................................................................67
II.1.a) A “forma formante” e a realidade empírica..................................................67
II.1.b) A porta e a ponte: definindo espaços e unificando relações.........................69
II.1.c) Cultura e sociedade.......................................................................................71
II.2. Amor, sexo e gênero....................................................................................................76
II.3. Confiança, gratidão e fidelidade: o tríplice sustentáculo do amor..............................89
CAPÍTULO III “LUTEMOS, MAS PELO DIREITO AO NOSSO ESTRANHO
AMOR”: MICHEL FOUCAULT E AS POSSIBILIDADES DE SUBVERSÃO NO
AMOR................................................................................................................................97
III.1. Das formas de viver e da sexualidade na antiguidade...............................................99
III.2. A sexualidade moderna entre os campos de saber, os tipos de normatividade e as
formas de subjetividade.....................................................................................................112
III.2.a) Da relação entre a sexualidade e os saberes-poderes................................113
III.2.b) Da relação entre a sexualidade e as formas de subjetividade....................116
CAPÍTULO IV SÃO DEMAIS OS PERIGOS DESSA VIDA, PRA QUEM TEM
PAIXÃO”: DO PERIGO AO RISCO NO AMOR EM NIKLAS LUHMANN..........131
IV.1. O mundo dos sistemas e os sistemas do mundo: uma perspectiva teórica
multidimensional...............................................................................................................133
IV.2. Familiaridade e não-familiaridade, risco e perigo: limites e possibilidades da
confiança...........................................................................................................................139
IV.2.a) Familiaridade e não-familiaridade............................................................139
IV.2.b) Risco e perigo...........................................................................................142
IV.3. Do amor e suas dimensões.......................................................................................145
IV.3.a) O amor: aspectos sócio-históricos.............................................................145
IV.3.b) O significado do amor...............................................................................152
CAPÍTULO V “O TEU AMOR É UMA MENTIRA, QUE A MINHA VAIDADE
QUER”: A DESCONFIANÇA NO AMOR EM ZYGMUNT BAUMAN..................165
V.1. Modernidade e identidade.........................................................................................166
V.2. Homo consumens e redes amorosas..........................................................................173
V.3. Desejo, amor e desconfiança na modernidade líquida..............................................180
V.4. Estratégias de proteção e desconfiança no amor líquido...........................................185
CAPÍTULO VI “QUE SEJA INFINITO ENQUANTO DURE: A CONFIANÇA
NAS RELAÇÕES AMOROSAS À LUZ DE ANTHONY GIDDENS.......................197
VI.1. A confiança na alta modernidade.............................................................................199
VI.2. Das formas de amar: rupturas e continuidades........................................................209
VI.3. Amor e auto-identidade: os manuais de auto-ajuda e a terapia................................220
À GUISA DE CONCLUSÃO.........................................................................................230
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................247
ANEXO............................................................................................................................255
“Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio,
Me salvo e me dano: amor”
.
Carlos Drummond de Andrade
Ainda que mal
...Para viver um grande amor, na realidade,
Há que compenetrar-se da verdade
de que não existe amor sem fieldade –
para viver um grande amor.
Pois quem trai seu amor por vanidade
É um desconhecedor da liberdade,
Dessa imensa, indizível liberdade
Que traz um só amor...
Vinícius de Moraes
Para viver um grande amor
19
APRESENTAÇÃO
O conceito de confiança tem sido amplamente discutido nas Ciências Sociais,
estando relacionado como uma precondição para a prosperidade (Fukuyama, 1995),
cooperação (Gambeta, 1988), capital social (Coleman, 1988 e Putnam, 1993), dentre
outros. A confiança tem sido utilizada para pensar questões sociológicas relevantes, tais
como ordem social, processo social, controle social, etc.
Em particular, dentro do universo das relações amorosas, o conceito de confiança
apresenta-se como um elemento fundamental, que o mundo hodierno tem sido marcado
por mudanças relacionadas tanto à vida íntima quanto aos diversos âmbitos institucionais.
A dificuldade em estabelecer uma relação afetiva estável e durável marca a preocupação
existente no universo íntimo e amoroso. As mudanças decorrentes da revolução sexual
tais como o enfraquecimento do patriarcalismo, seguido das conquistas das mulheres no
âmbito público, a criação dos métodos contraceptivos, o surgimento da AIDS, dentre
outros fatores – criaram uma necessidade urgente de repensar o amor e a confiança
estabelecida nas relações amorosas. Chega-se mesmo a duvidar que a confiança nesse tipo
de relação seja possível. Autores mais otimistas apontam para a necessidade de rever os
velhos padrões do relacionamento íntimo.
Neste trabalho: “Quem acreditou no amor, no sorriso, na flor”
1
: a confiança nas
relações amorosas – pretende-se dar continuidade ao debate sobre a confiança nas relações
1
Trecho da música Meditação, composta por Tom Jobim e Newton Mendonça.
20
amorosas, no âmbito das Ciências Sociais, a partir das contribuições de cinco autores:
Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann, Zygmunt Bauman e Anthony Giddens.
O capítulo I A confiança e as relações amorosas nas Ciências Sociais versa
sobre o lugar da confiança nas Ciências Sociais, situando este conceito dentro de algumas
perspectivas desenvolvidas. Além disso, será realizado um breve levantamento sobre o
problema das relações amorosas, e, posteriormente, da confiança nas relações amorosas.
Os demais capítulos serão formados de alguns conceitos gerais, que poderão
iluminar os problemas propostos, e desenvolvidos a partir da discussão sobre a confiança
nas relações amorosas segundo a perspectiva de cada autor selecionado. Portanto, os
capítulos estarão divididos a partir da seleção dos autores:
O capítulo II – “Você inventa o amor, eu invento a solidão”
2
: do essencialismo aos
determinantes culturais em George Simmel – será composto de três subseções: (II.1.) com
a apresentação de alguns conceitos gerais, (II.2.) formado pela discussão entre o amor, o
sexo e o gênero e (II.3.) onde o conceito de confiança será combinado ao de gratidão e de
fidelidade.
O capítulo III “Lutemos, mas pelo direito ao nosso estranho amor”
3
: Michel
Foucault e as possibilidades de subversão no amor será dividido em duas partes: (III.1.)
a importância da sexualidade no mundo antigo e (III.2.) a sexualidade moderna e as
formas de subjetividade que se opõem às normatividades.
“São demais os perigos dessa vida, pra quem tem paixão”
4
: do perigo ao risco no
amor em Niklas Luhmann, é o título do capítulo IV, formado por uma breve discussão
2
Trecho da música Ui (você inventa), composta por Tom Zé e Odair.
3
Trecho da música Nosso estranho amor, de Caetano Veloso.
4
Trecho de Soneto de Orfeu, de Vinícius de Moraes.
21
sobre a sua teoria dos sistemas (IV.1), por alguns conceitos relacionados à confiança:
familiaridade e não-familiaridade, risco e perigo (IV.2.), e por uma apresentação
multidimensional e histórica do amor segundo a ótica do autor (IV.3.).
O capítulo V “O teu amor é uma mentira, que a minha vaidade quer”
5
: a
desconfiança no amor em Zygmunt Bauman será composto de três seções: (V.1.) acerca
da noção de modernidade e identidade, (V.2.) sobre as redes amorosas e o lugar do amor
no mundo líquido, (V.3.) a desconfiança no amor e (V.4) relacionada às estratégias de
proteção e a desconfiança.
O último capítulo (VI) “Que seja infinito enquanto dure”
6
: a confiança nas
relações amorosas à luz de Anthony Giddens – será dividido em (VI.1.) a confiança na alta
modernidade, (VI.2.) perpetuação e rupturas do amor na alta modernidade e (VI.3.) os
manuais de auto-ajuda, a terapia e a construção da auto-identidade.
Ao final, constatou-se que o problema da infidelidade ocupa um lugar de destaque
quando o tema tratado é confiança nas relações amorosas. Algumas categorias foram então
produzidas, a fim de suscitar um espaço reflexivo sobre o não cumprimento do pacto
amoroso, mesmo diante da valorização da fidelidade, e para expor a complexidade
existente entre o mundo empírico e o mundo ideal.
5
Trecho da música O nosso amor a gente inventa (estória romântica), de Cazuza, Rogério Meanda e José
Rebouça.
6
Soneto de fidelidade, de Vinícius de Moraes.
22
INTRODUÇÃO
Mesmo com uma farta biografia sobre o amor e as relações amorosas, tanto
ficcionais, a exemplo do amor de Nastenka, personagem de Dostoievski, em Noites
brancas, quanto reais, tal como a vida de Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, sobra
espaço para a imaginação. Na tentativa de estabelecer certo distanciamento da idéia de que
as relações íntimas não podem ser compreendidas, dar-seinício a uma reflexão sobre a
confiança nas relações amorosas, enfatizando os elementos tangíveis e padronizáveis,
encontrados nas Ciências Sociais.
A passagem entre o modelo de casamento que durava toda a vida independente
do custo ou do sofrimento proporcionado e a coragem de negar esse modelo corroído,
muitas vezes destrutivo, mas sempre desejado: o amor eterno, a chama que não podia se
apagar; não faz parte de uma história longínqua. É possível compreender bem o
sentimento de algumas gerações que viveram esse conflito no Brasil através de algumas
canções, traduzidas em desesperança e dor: “Eu sei que vou te amar, por toda a minha
vida, eu vou te amar
7
(Tom Jobim e Vinícius de Moraes); “Quantas vezes eu pensei em
voltar e dizer que o meu amor nada mudou, mas o meu silêncio foi maior, e na distância
morro todo dia, sem você saber
8
(Roberto Carlos). De modo mais geral, o mundo
ocidental, as grandes histórias de amor, desde Abelardo e Heloísa
9
(1118), são
acompanhadas desse ingrediente indispensável: o sofrimento. Em muitos casos, esse
7
Trecho da música Eu sei que vou te amar.
8
Trecho da música A distância.
9
A primeira história de amantes ‘apaixonados’ que se tem notícia.
23
elemento encontra-se intimamente ligado à quebra da confiança estabelecida entre os
casais.
Para Stendhal (apud Rougemont, 2003: p.305-307), o ceticismo e o racionalismo
foram os responsáveis pela condenação do amor. Segundo esse autor, existiriam quatro
possíveis tipos de amor: 1. amor-paixão; 2. amor-gosto; 3. amor físico e 4. amor-vaidade.
Pode-se dizer que a paixão é construída a partir de uma ilusão, ou idealização da mulher
amada. Este momento ilusório é conhecido como cristalização. A lucidez é retomada
(descristalização) através da infidelidade. A sua visão do amor é cercada de pessimismo.
Alberoni (1986: p.5-7) fala do enamoramento como um caso especial do fenômeno
coletivo ou movimento que constitui um “nós”. Mas isso não significa dizer que exista
uma diferença entre aqueles que amam e os outros, ou uma especificidade formada entre o
par amado-amante. A sexualidade pode ser observada de forma corriqueira e comum, ou
excepcional e descontínua. No primeiro caso, pode-se falar em sexualidade comum, tal
como o ato de comer ou dormir. Aqui, não faz diferença se a atividade sexual é
estabelecida com um(a) parceiro(a) ou com uma centena de pessoas. No segundo caso, ou
sexualidade extraordinária, pode-se falar em enamoramento e amor apaixonado, pleno. O
perigo atribuído à sexualidade extraordinária diz respeito à natureza subversiva ou
transformadora desse sentimento.
Os movimentos coletivos surgem em meio a um sistema normativo que se
contrapõe aos novos tipos de comportamento, a exemplo do enamoramento de Abelardo e
de Heloísa na Idade Média, onde as regras endogâmicas parentais ou o sistema de classes
foi rompido. Nos dias de hoje, outras transgressões sociais podem ser enumeradas quando
do envolvimento do par amoroso, tanto de natureza externa, em referência ao exemplo
24
citado, quanto de natureza interna, como o rompimento emocional de um adolescente
vinculado afetivamente aos seus pais. Além desses, diferenças políticas, culturais,
lingüísticas, dentre outras (Alberoni, 1986: p.14). O que é preciso salientar é que o
movimento social existe com algum tipo de diferença ou transgressão. O
enamoramento necessita de um obstáculo que o faça mover-se. É assim que as instituições
são formadas e transformadas. O enamorar-se finda na medida em que o amor (como
instituição) é formado. Por outro lado, existe a possibilidade do amor não perder o seu
vigor.
Esses dois tipos de sexualidade, elaborados por Alberoni, poderão servir de ponto
inicial para pensar a confiança nas relações amorosas. A distinção sexual realizada aqui
servirá para suscitar novos questionamentos. Afinal de contas, quais são as possíveis
diferenças e padrões que compõem esse tipo específico de relação?
Considerando a relevância do tema no mundo contemporâneo, marcado pela
ênfase nas relações impessoais, pretende-se discutir o conceito de confiança nas relações
amorosas a partir de perspectivas teóricas diversas que possam contribuir para a
compreensão deste fenômeno nas Ciências Sociais. Este estudo será desenvolvido a partir
da escolha de algumas perspectivas dissonantes, com o intuito de avaliar a contribuição de
cada uma delas e estabelecer possíveis diálogos, indicando também alguns pontos
inegociáveis. A escolha dos autores se deu segundo a relevância de seus estudos sobre as
relações amorosas e/ou a sexualidade. Além disso, a maioria deles – Georg Simmel,
Niklas Luhmann, Anthony Giddens e Zygmunt Bauman também apresenta uma
discussão sobre o conceito de confiança nas Ciências Sociais. Em relação a Michel
Foucault, o conceito de confiança sedesenvolvido a partir da discussão realizada pelo
25
autor sobre sexualidade. Essa diversidade teórica servirá para compor um quadro
conceitual da confiança nas relações amorosas, levando-se em conta tanto as relações de
complementaridade quanto às de contraposições dos autores supracitados.
O conceito de confiança tem sido amplamente utilizado nas Ciências Sociais, em
especial, na Economia, na Psicologia, na Sociologia e na Ciência Política. A sua
relevância aponta para um conjunto de preocupações, tais como interação social, ordem
social, controle social, processo social, cooperação, dentre outras. Ele tem sido utilizado
não só para explicar as relações entre sociedades, bem como para compreender os padrões
sociais endógenos, através da abordagem de diversas dimensões sociais, dentre as quais, a
política, a econômica e a familiar.
Tão importante quanto o debate sobre confiança no âmbito das Ciências Sociais, é
a questão da redefinição de padrões nas relações amorosas, considerando as mudanças
observadas no mundo contemporâneo; tais como o enfraquecimento do modelo patriarcal,
associado a uma maior eqüidade nas relações entre homens e mulheres; o aumento do
número de separações/divórcios; a queda de natalidade no mundo; novas legislações que
regulam e definem outros horizontes às relações amorosas, tais como o casamento
homossexual e o cuidado com as(os) filhas(os) na separação conjugal; o surgimento e
reconhecimento social de novos rearranjos familiares, dentre outros.
Neste trabalho, deseja-se ampliar o debate sociológico contemporâneo sobre
confiança nas relações amorosas, partindo das cinco diferentes perspectivas das Ciências
Sociais indicadas: Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann, Anthony Giddens e
Zygmunt Bauman. Deve-se enfatizar que se trata de um estudo teórico formado pela
análise da confiança nas relações amorosas em cada um dos autores citados, além da
26
realização de um balanço entre essas teorias. Assim sendo, o objetivo deste trabalho é dar
continuidade ao debate sobre a confiança nas relações amorosas. Ao final, pretende-se
estabelecer um diálogo com a literatura apresentada, contrapor os argumentos desses
autores e propor um novo olhar que contribua para a elucidação do tema pesquisado.
A seleção dos autores e das obras citadas foi realizada a partir das seguintes
considerações:
A relevância da obra de cada autor nas Ciências Sociais, além das possíveis
contribuições acerca do debate sobre confiança nas relações amorosas.
Certa distância teórico-metodológica entre os autores selecionados, com o intuito de
contemplar alguns dos paradigmas das Ciências Sociais e de estabelecer possíveis
diálogos entre essas teorias, além de apontar suas respectivas limitações. Em outras
palavras, pretende-se tanto combinar essas teorias e métodos, apresentando possíveis
semelhanças ou pontos convergentes, como demonstrar as diferenças entre as
possibilidades propostas: o interacionismo simbólico simmeliano e suas contribuições
sobre o amor entre homens e mulheres; o pós-estruturalismo foucaultiano, com ênfase
na análise de discurso e nas formas de subjetividade; a teoria da estruturação
giddensiana, a partir da noção de amor confluente; a investigação sistêmica de Niklas
Luhmann e o seu código amoroso; e o pós-modernismo de Bauman, com uma visão
pouco alentadora sobre a questão da confiança nas relações amorosas.
Os procedimentos metodológicos serão desenvolvidos da seguinte forma:
O capítulo I será formado por uma discussão sobre a importância da confiança e das
relações amorosas nas Ciências Sociais, seguida de uma análise do lugar da confiança
nas relações amorosas, com base nas referências bibliográficas indicadas.
27
Depois de uma incursão mais geral sobre a confiança e as relações amorosas nas
Ciências Sociais, dar-se-á início ao desenvolvimento do tema em cada autor
selecionado. Pretende-se, ao final de cada capítulo, apresentar um conceito de
confiança nas relações amorosas segundo a visão desses autores. Para tanto, serão
utilizadas as referências bibliográficas de parte da obra de cada um deles, bem como
alguma literatura secundária.
O balanço das teorias propostas será apresentado ao longo de cada capítulo e nas
considerações finais, levando-se em conta as semelhanças e as diferenças entre os
autores, além das possíveis combinações para pensar o problema da confiança nas
relações amorosas no mundo atual.
As decisões metodológicas foram tomadas para se responder às questões acerca da
confiança nas relações amorosas, a partir das perspectivas citadas: como escapar do jogo
contraditório do amor simmeliano? E quanto às possibilidades de subversão no amor,
dentro de uma perspectiva foucaultiana? Qual o lugar da confiança nesse caso? A
confiança deveria ser vista como uma característica libertária, considerando as mudanças
apontadas por Giddens? Qual o significado desse porto seguro o apoio emocional do
parceiro afetivo-sexual na alta modernidade? Quais as implicações dos questionamentos
do código amoroso e da visão sistêmica luhmanniana para a confiança nas relações
amorosas? E a ênfase nos projetos pessoais de que fala Bauman? Como estabelecer uma
relação de confiança num mundo em que os interesses do indivíduo se sobrepõem aos
interesses de uma vida a dois? Qual a contribuição de cada uma dessas teorias na
construção da confiança nas relações amorosas no âmbito das Ciências Sociais?
28
Portanto, os autores supracitados serão trabalhados segundo as suas perspectivas
teóricas gerais e contribuições no tema pesquisado.
Georg Simmel elaborou uma teoria da “lei individual” que respeitaria as
diversidades dos agentes através de uma lei moral universal. Mas será que esta lei seria
suficiente para aplacar as diferenças de gênero apresentadas pelo autor? O que aconteceria
se as mulheres assumissem a objetividade masculina citada por ele? E se a tragédia
masculina da cultura, ou seja, a incapacidade do homem em combinar elementos objetivos
e subjetivos fosse sustentada? A confiança nas relações amorosas seria possível, nestes
casos?
O conflito não é importante apenas para as relações estabelecidas entre os
indivíduos, mas para a transformação de cada indivíduo (Simmel, 1983: p.60-150). A
interação não é suficiente para definir a associação, devendo haver interação “uns, com e
para os outros”, formando-se uma “unidade” a partir da consciência dos agentes
(Vandenberghe, 2005: p.87).
“Vezes sem conta, a competição consegue o que habitualmente o amor
pode fazer: adivinhar os mais íntimos desejos do outro, antes mesmo do outro
ter consciência deles” (Simmel, 1983: p.139).
Em Michel Foucault, tem-se uma preocupação marcada fundamentalmente pelos
‘sistemas de pensamento’. O seu trabalho foi denominado ‘top-down’
10
porque começa
com um aglomerado de sentenças, num tempo e lugar, usando os indivíduos como dados
para caracterizar uma determinada formação discursiva (Hacking, 2004: p.277-278). A
confiança nas relações íntimas seria desenvolvida em certa formação discursiva, devendo-
se considerar que: 1. a subjetividade do sujeito é móvel e 2. as formações discursivas são
10
Os princípios gerais são pensados e realizados antes dos detalhes práticos.
29
constitutivas tanto de práticas de sujeição quanto de práticas de liberação. Os saberes-
poderes deverão ser questionados no nível da produtividade tática, a partir da análise dos
efeitos desses saberes e no nível da produtividade estratégica, levando-se em conta a
relação de forças estabelecida dentro de determinada formação discursiva. A confiança
nas relações amorosas deverá transpor os limites das categorias de sexo e de gênero, por
serem incapazes de traduzir o desejo dos agentes reflexivos.
Em Niklas Luhmann, a análise da confiança nas relações amorosas deverá partir de
sua noção de sistemas sociais e da atenção destinada às influências multidimensionais.
Neste sentido, as definições de risco e perigo e de confiança e segurança estão imbricadas,
que as decisões dos indivíduos também são formadas com base em seu entorno social.
A ação que indica o risco de perder a(o) parceira(o) relaciona-se com a percepção que
cada um tem da estabilidade nas relações íntimas. Este dado é fornecido pelo entorno
social, além de estar relacionado aos aspectos psicológicos e vitais. Segundo Niklas
Luhmann, a confiança seria o substituto do amor, mas o indivíduo poderia não ser capaz
de chegar a esse estágio apontado pelo autor, porque a sensação de perigo transformaria as
chances do risco, e vice-versa. Isso significa dizer que a confiança no amor seria
inviabilizada pelo tipo de relação estabelecida nos sistemas sociais. O risco ocorreria
quando os danos gerados fossem decorrentes da decisão do indivíduo. No perigo, ele não
seria responsabilizado por suas perdas, geradas a partir da ação de terceiros, de fenômenos
naturais ou de outros fatores fora do seu controle.
Zygmunt Bauman afirma que a leveza do indivíduo líquido transformou as
relações amorosas numa prática de consumo, onde os envolvidos são ao mesmo tempo,
consumidores e objetos de consumo. Pode-se dizer que a modernidade quida é marcada
30
pela falta de engajamento do indivíduo, ao contrário da modernidade sólida. A fluidez das
relações amorosas resulta na comercialização ou alienação do amor. Duas estratégias são
desenvolvidas no amor quido: a fixação e a flutuação. No primeiro caso, pretende-se
escapar dos sentimentos erráticos. No segundo caso, deseja-se manter um tipo de relação
que não exige muito esforço e investimento entre as partes envolvidas. Aqui, a questão da
segurança costuma ser tratada como um elemento inexistente ou sem importância. Nos
dois tipos de estratégias adotadas, a confiança nas relações amorosas costuma ser
construída sem solidez, sendo facilmente transformada em desconfiança.
Os mais “escapadiços” ganham espaço na modernidade “fluida”, era do
“desengajamento, da fuga fácil e da perseguição inútil” (Bauman, 2001: p.140). O
envolvimento mútuo da modernidade sólida foi substituído pela astúcia dos que se
movimentam sem serem vistos, nos diversos contextos sociais.
A possibilidade da confiança estabelecida no âmbito privado é discutida por
Anthony Giddens a partir da democratização da vida pessoal, ou seja, um movimento
possível apenas se estabelecido entre pares amorosos livres, com uma boa dosagem de
equidade e autonomia. As conquistas das mulheres marcariam o início desse processo. O
amor romântico seria substituído pelo relacionamento puro, ou a idéia de que a medida do
amor não é o tempo de duração, mas a qualidade desses vínculos afetivos.
É certo que a questão da infidelidade no amor não é o único elemento contraditório
e paradoxal na confiança estabelecida nas relações íntimas. Ao longo das discussões que
se seguirão, outros elementos serão apontados e discutidos neste trabalho. No entanto, a
questão da infidelidade será tratada aqui como um tópico central à compreensão do tema
proposto. Ao final, algumas categorias da infidelidade serão apresentadas e trabalhadas, a
31
partir das referências teóricas citadas anteriormente. Por hora, dar-se-á início ao debate
acerca da importância da confiança e das relações amorosas para as Ciências Sociais.
32
CAPÍTULO I
A CONFIANÇA E AS RELAÇÕES AMOROSAS NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
“Acreditei na paixão
E a paixão demonstrou
Que eu não tinha razão
Acreditei na razão
E a razão se mostrou
Uma grande ilusão...”
Paulinho da Viola
(solução de vida/ molejo dialético)
Com as mudanças nos padrões dos vínculos afetivos do mundo hodierno,
especialmente a crise do casamento tradicional e a formação de novos rearranjos
familiares, o conceito de confiança é acionado como um elemento a ser considerado nas
relações amorosas. não mais se trata de obedecer a certos dogmas e simplesmente de
aceitar o vínculo matrimonial por toda a vida, independente do sentimento das partes
envolvidas, mas de pactuar dia-a-dia o laço amoroso, bem como o tipo de relação
desejada. Com a revolução sexual, as possibilidades de rompimento dessa relação foram
ampliadas, dando corpo ao sentimento de confiança e fragilizando as relações afetivas sob
um novo formato. O nculo amoroso não é mais pautado no destino social do casal, mas
remodelado a partir dos novos processos de individualização e confiança.
33
Na busca de respostas relacionadas às possibilidades de confiança nos novos
vínculos afetivos, dividir-se-á este capítulo em quatro seções: (I.1.) “O lugar da confiança
nas Ciências Sociais”, onde será realizada uma breve análise sobre o estado da arte do
conceito de confiança, bem como a sua relevância nas Ciências Sociais; (I.2.) Relações
íntimas e amor: fragmentos do passado”, com um breve relato sobre algumas influências
históricas do amor nos dias atuais; (I.3.) “As relações amorosas sob a lente dos cientistas
sociais”; considerando algumas perspectivas teóricas distintas e (I.4.) “Confiança nas
relações amorosas: redenção ou prisão?”, onde serão indicadas algumas referências
bibliográficas que tratam do tema no âmbito das Ciências Sociais.
I.1. O lugar da confiança nas Ciências Sociais
A relevância do conceito de confiança nas Ciências Sociais aponta para um
conjunto de preocupações, tais como interação social, ordem social, controle social,
processo social, dentre outras. Este conceito vem sendo desenvolvido desde o relevante
trabalho de Georg Simmel, que definiu o conceito de confiança como uma combinação
entre boas razões e (Möllering, 2001: p.01). Depois de The moral basis of backward
society, de Edward C. Banfield (1958), autores das mais diversas orientações teóricas têm
trabalhado com o tema confiança. Guido Möllering (2001: p.404-411) afirma que a noção
de confiança pode ser definida de várias formas: pode-se relacionar a confiança com
cooperação (Gambeta, 1988), capital social (Coleman, 1988 e Putnam, 1993), estado de
expectativa favorável com relação às ações e às intenções de outros indivíduos, etc. Além
34
dessas referências, observa-se que este conceito foi utilizado por autores de diversas
abordagens teóricas, tendo sido muito útil à explicação dos fenômenos sociais observados
no mundo hodierno.
Para que se possa ter uma idéia de algumas contribuições teóricas acerca do
conceito de confiança nas Ciências Sociais, bem como para iluminar o problema proposto
nesta tese, serão apresentadas algumas questões consideradas relevantes, à luz de alguns
autores que trabalharam ou vêm trabalhando com o tema.
Segundo Hardin (2001: p.3), aquele que acredita que é amado, “encapsula” os
interesses do seu par, podendo ferir-se porque não se costuma agir com base no valor da
obrigação que se constrói com o outro, mas através das ligações causais estabelecidas nas
interações sociais ou na reputação construída nessas interações. Não se trata de uma
atitude essencialmente cognitiva, mas sim de uma disposição do confiador” em relação
ao confiado. O conceito de confiança percorre um nível essencialmente individual e segue
em direção às concepções de socialização.
Com o intuito de avaliar o desenvolvimento da confiança, o autor fala do
desenvolvimento psicológico, do desenvolvimento evolucionário e do desenvolvimento
funcional. Para explicar como algumas pessoas crescem com expectativas otimistas com
outras, e outras pessoas crescem com expectativas pessimistas, Hardin fala de certa
disposição que pode acarretar em ações ou falta de ações em contextos relevantes. Se o
indivíduo tem expectativas otimistas, ele está mais preparado para correr riscos que
dependem da integridade de outros, e se os outros, nesse contexto, são mais dignos de
confiança, ele pode se beneficiar enormemente da cooperação dos outros. Se, no entanto,
eles não merecerem confiança em um determinado contexto, o indivíduo aprende
35
rapidamente com a situação e protege-se posteriormente da traição deles. Se, ao contrário,
ele tem expectativas pessimistas, ele não está pronto para correr riscos que dependam de
outros. Por isso, ele não pode aprender com o risco. Para Erik Erikson, as expectativas
particulares são desenvolvidas na experiência, sendo essas centrais para a avaliação
racional. O firme estabelecimento do endurecimento dos padrões como solução da base de
confiança do conflito nuclear em oposição à desconfiança na mera existência é a primeira
tarefa do ego, e também a primeira de todas as tarefas do cuidado materno (Hardin, 2001:
p.25).
A confiança é uma categoria do conhecimento; o confiante na confiança é uma
categoria da ação. Talvez, a razão mais forte do freqüente “escorregadio” ou ao menos o
porquê de não ser reconhecido imediatamente como tal é que a integridade cria a
confiança. Minha integridade potencialmente recompensa sua confiança em mim. O
potencial de manter a promessa e ser digno de confiança é primeiro daquele que promete.
(A) faz uma promessa a (B) e espera mantê-la. Entendendo os padrões de obrigação, (A)
impõe a si mesmo tal obrigação quando se compromete. A relação de confiança é muito
diferente. Uma das sobrecargas de ser digno de confiança não advém de quem confia: (A)
confia em (B) e é (B) quem espera satisfazer sua confiança. Mas isto não pode ser visto
como uma obrigação para (B); similarmente, isto deveria ser considerado tão estranho
para moralizar a confiança quanto se opor a ser digno de confiança (Hardin, 2001: p.11-
25).
Quando se refere à integridade como uma comodidade, o autor diz que pode ter
uma motivação instrumental para aprender alguma coisa que poderia ser útil para ele, e
essa motivação e o uso do conhecimento podem ser ambos instrumentais. Mas o
36
conhecimento per se não é instrumental. (A) não tem confiança em (B) para fazer alguma
coisa. (A) meramente tem ou não, incentivos e ações aparentes. Novamente, no entanto, a
integridade poderia ser instrumental, tanto quanto o trabalho para estabelecer uma
reputação para reabilitar ou criar dispositivos institucionais e oferecer um auto-incentivo
que satisfizesse a confiança (Hardin, 2001: p.22). Para Russel Hardin (apud Solomon e
Flores, 2002: p.123), a confiança deveria ser transformada em virtude para que pudesse
ser moralizada.
Em La société de confiance, Peyrefitte (1999: p.32) analisou a questão da liberdade
econômica e suas implicações éticas e a possibilidade de garantir o progresso, através de
um estudo sócio-histórico. O autor trata a questão da confiança como uma atitude das
essências da conduta moral, acompanhada pelas condutas culturais, sociais, políticas e
religiosas. O desenvolvimento sofre a influência determinante desses elementos. Aqui, a
confiança ocuparia um lugar central, manifestando-se através da iniciativa pessoal, da
criatividade e da autonomia empreendedora, que responde e é responsável pelos próprios
atos.
A confiança vem do indivíduo, isso significa que a sociedade não é o resultado de
uma fabricação, mas que deve ser remetida à interiorização do indivíduo. Deve-se
ressaltar a interdependência entre a confiança em si mesmo (pessoal) e a confiança
depositada na outra pessoa (social). A confiança em si mesmo serve para que o indivíduo
seja capaz de assumir riscos, acreditar em seu próprio julgamento, e não no de outrem,
estabelecer um vínculo afetivo, ter filhas(os), dentre outras coisas. Por outro lado, a
confiança na outra pessoa permite que os poderes sejam delegados e divididos, minimiza
37
as diferenças valorativas a partir da tolerância, e estimula o espírito de autoconfiança
(Peyrefitte, 1999: p.449).
Para Dasgupta (2000: p.50), não se costuma confiar em uma pessoa que deve fazer
algo, baseando-se apenas no que ela diz. Existiria uma relação entre as opções e as
informações disponíveis de quem confia, e a habilidade e conseqüências sofridas pela
outra parte. É por isso que se costuma distinguir ‘confiar em alguém’ e ‘confiar em
alguém cegamente’. Assim, a reputação é tomada pelo autor como a base da confiança.
Em seu trabalho sobre confiança, Good (2000: p.31-40) privilegia a dimensão
psicológica para tentar responder às duas questões fundamentais: 1. qual a disposição de
confiança dos indivíduos em situações novas? 2. que elementos são importantes para a
manutenção ou durabilidade da confiança? Utilizando alguns estudos experimentais
realizados por outros pesquisadores, o autor afirma que, no primeiro caso, pode-se dizer
que diante de ambiguidades e situações incertas, os indivíduos costumam adotar
estratégias obscuras. Por outro lado, a vantagem que um jogador pode ter sobre o outro
desaparece quando o primeiro reconhece os recursos do segundo. Em relação à segunda
questão, o autor diz que a durabilidade da relação está associada ao tipo de recompensa e à
forma que ela é oferecida. O comportamento cooperativo não é necessariamente um sinal
de uma mentalidade cooperativa, da mesma forma que a falta de cooperação não indica,
em si mesma, uma mentalidade não cooperativa ou quebra de confiança.
A confiança generalizada cria um ambiente de muitas influências sociais. Tal
assertiva foi desenvolvida por Putnan (1993) em seu estudo sobre a Itália, a partir do
argumento de que diferentes níveis de confiança generalizada e de capital social
produzem muitos níveis de desenvolvimento. Essa relação entre confiança e níveis de
38
desenvolvimento foi também apresentada por Fukuyama (1995). Para Rosenberg (1956),
a confiança estaria diretamente ligada à das pessoas e à idéia de que a promessa é uma
palavra que deve ser cumprida (Lundåsen, 2002: p.305-306).
Tanto para Robert Putnam (1993) quanto para Francis Fukuyama (1995), a
confiança interpessoal estimula a cooperação entre desconhecidos, sendo considerada um
elemento essencial para a estabilidade institucional, no âmbito político, e para o
funcionamento de sistemas de produção, no âmbito econômico (Feres Júnior e Eisenberg,
2006: 459). Segundo Putnam, o valor da confiança aumenta na medida em que dela se
dispõe.
Para Bateson (2000: p.18), a origem da confiança pode ser desvendada a partir
de uma análise evolutiva da cooperação, relacionada às condições em que o
comportamento cooperativo pode ou não ocorrer. Pode-se falar em três tipos de
explicações evolucionárias formadas pela cooperação social não-manipulativa: 1. quando
os indivíduos estão fortemente relacionados; 2. a necessidade de sobrevivência de muitos
indivíduos e 3. quando os benefícios são compartilhados por ambas as partes
11
.
Gellner (2000: p.143-156) afirmou que a anarquia gera confiança, ao contrário do
governo. Em outras palavras, a anarquia estimularia a coesão social. Neste caso, a ordem
social seria mantida pela coesão e confiança. Diferentemente das sociedades urbanas, as
sociedades tradicionais teriam um tipo de confiança gerada pela necessidade de coesão e
pela falta de governo, embora pairasse no ar certo temor de deslealdade.
11
O dilema do prisioneiro é citado como um exemplo desse tipo de cooperação. Segundo a teoria da escolha
racional, quando dois prisioneiros são responsabilizados por determinado crime e interrogados
separadamente, “cada qual agirá com base nos cálculos dos efeitos das ações possíveis dos outros”
(Outhwaite, 1996).
39
Segundo Francis Fukuyama
12
(apud Solomon e Flores, 2002: p.29-68), a confiança
é a precondição da prosperidade. Em sociedades de “alta confiança”, pode-se observar a
existência de parcerias cooperativas duradouras e prósperas. Nas sociedades de “baixa
confiança”, tem-se um fraco desempenho econômico e uma qualidade de vida ruim. Mas
esses destinos não são imutáveis. Em “sociedades de baixa confiança”, dever-se-ia
acreditar na família, não nos outros. Neste caso, a confiança estaria relacionada com o
familiar e a desconfiança com o não-familiar. Em seu estudo no sul da Itália, Edward
Banfield fala sobre o favorecimento da própria família através de um “raciocínio”
amplamente difundido.
Coleman (1990) diz que a confiança pode ser transferida de um grupo mais restrito
para outro generalizado, através da mediação de uma terceira parte ou pessoa. Por
exemplo, a relação de (A) com (B) pode ser mediada por (C), que conhece ambas as
partes. Diferentemente de Coleman, que reconhece a instituição familiar como elemento
definidor da confiança, Putnam acredita no alastramento da confiança a partir das redes
horizontais vinculadas à sociedade civil, a exemplo da região da Emilia Romana,
conhecida pelo seu alto capital social. Esse alto capital social surge com a confiança
generalizada ou social. Putnam cria dois tipos distintos de confiança: densa e delgada. O
primeiro é estabelecido nas interações face-a-face e com o conhecimento direto, com um
grau de risco reduzido. No segundo tipo, a confiança seria mediada, com maior
possibilidade de risco. Yamagishi (1998) afirma que a confiança deve ser exercida de
12
O ressurgimento de velhos padrões sociais nas relações amorosas pode indicar uma reordenação
conservadora pleiteada por Fukayama, por um lado, ou pode significar, em certa medida, um espaçamento
das ‘relações puras’ discutidas em Giddens. É certo que não pode ser reduzido a uma única explicação
(Therborn, 2006: p.455).
40
forma generalizada, até prova em contrário. Diferentemente da confiança, o conceito de
segurança deve ser acionado quando existe pouca ou nenhuma incerteza, sendo o risco
bastante reduzido. O constrangimento das convenções sociais japonesas é citado pelo
autor quando tem a intenção de enfatizar os mecanismos de segurança. Em Yamagishi
(1998), as culturas coletivistas ou fechadas seriam capazes de apresentar um alto índice de
desenvolvimento, mesmo sendo consideradas sociedades de baixa confiança. A sociedade
japonesa pode servir para exemplificar esse argumento e negar a posição de Fukuyama e
de Putnam. Embora se acredite em resultados sub-ótimos no longo prazo. Segundo tal
perspectiva, a sociedade coletivista acabaria com a confiança, e reforçaria a segurança
(Lundåsen, 2002: p.306-310).
Hwang & Burgers (1997) apresentam dois elementos relacionados com a
confiança: a cobiça e o medo. No primeiro, tem-se a tentação de certo benefício ser
conquistado de forma unilateral, sem a cooperação mútua. O segundo elemento, “a
ansiedade de perda pela vitimização, em vez do status quo ou a não-cooperação mútua”.
Embora não seja um elemento suficiente para a cooperação, a confiança é considerada
necessária (Lundåsen, 2002: p.306-307).
Fica evidente, portanto, que este conceito foi utilizado por autores de diversas
abordagens teóricas, tendo sido muito útil à explicação dos fenômenos sociais observados
no mundo hodierno. Pode-se falar em, no mínimo, dois tipos de escalas de confiança:
“confiança no parceiro” – pessoa específica – e “confiança generalizada” – nas pessoas em
geral. A primeira poderia ser chamada de confiança densa e a segunda, confiança delgada.
Neste trabalho, as discussões girarão em torno da confiança densa, considerando o
41
interesse específico das relações amorosas. Pretende-se pensar o objeto da confiança como
probabilidade subjetiva e objetiva estabelecida na vida privada.
I.2. Relações íntimas e amor: fragmentos do passado
A forma com que as relações afetivas vem sendo tratada no mundo contemporâneo
pode estar longe dos vínculos estabelecidos no passado. Por outro lado, não se pode falar
em um movimento linear que começou com a repressão e a solidez das relações e
desaguou em formas mais plásticas e menos duradouras, mas em momentos de mais ou
menos liberdade ou controle social, ou mais ou menos envolvimento afetivo-sexual
relacionados às heranças de um passado longínquo. Não se trata de realizar aqui um
levantamento sócio-histórico rigoroso, mas de retomar, de forma sucinta, alguns
fragmentos que indiquem o tipo de relação estabelecida entre homens e mulheres, no
âmbito privado e, por vezes, afetivo.
Segundo Rougemont (2003: p.80-98), na Grécia contemporânea de Platão e no
Oriente
13
, o amor era tido como mera volúpia física. Tanto para os gregos quanto para os
13
Em relação à distinção realizada por Rougemont (2003:93-94) entre o “Oriente” e o “Ocidente”,
poderíamos dizer que no primeiro sendo a Ásia considerada em sua expressão mais pura o autor deseja
destacar uma mística simultaneamente dualista na visão de mundo e monista em sua realização. A
ascese oriental objetiva negar a diversidade, “a absorção de todos no Uno, a fusão total com o Deus”. Em
não existindo um Deus, a exemplo do budismo, a fusão com o ser uno universal. O termo “Ocidente” é
utilizado com base em uma concepção religiosa que, apesar de ter surgido no Oriente Médio, foi fortemente
expressa no Ocidente. Tal concepção propõe um abismo indissolúvel entre Deus e o homem. A
impossibilidade da fusão ou união substancial seria modificada a partir de uma conversão vinda de Deus
para o homem, materializada no casamento da igreja com o Senhor. Apesar das distinções entre o Oriente e
o Ocidente, o autor destaca diversas tendências orientais no ocidente e vice-versa.
42
romanos, o amor era considerado uma doença (Menandro) porque transcendia a volúpia,
seu fim natural. A paixão era vista como uma doença frenética, trágica e dolorosa.
A moral romana foi modificada por volta do século II, tendo sido radicalmente
transformada antes do ano 200, principalmente no que diz respeito ao aumento da
repressão. No período de Marco Aurélio, o casamento passou a ser um contrato que não
tratava das questões relativas ao amor, mas das formas de procriação. Fica evidente que,
ao contrário do que já foi afirmado, o casamento considerado cristão é anterior aos cristãos
(Simonnet et alii, 2003: p.50-51).
Em Agostinho, a sexualidade é considerada um obstáculo ao verdadeiro amor, por
significar o pecado, a queda e a incapacidade de ser guiado pela força espiritual. Visto
como superior ao desejo carnal, o amor desqualificou o sexo (Costa, 1998: p.55).
A partir do século XII, aproximadamente – no mundo Ocidental a paixão passa a
ser valorizada exatamente porque é marcada pelo sofrimento e pela insensatez. Observa-
se, no entanto, uma contradição entre as doutrinas e os costumes. Tal descompasso
ocorreu em detrimento da falta de poder da igreja primitiva. A partir de Constantino e,
mais adiante, dos imperadores carolíngios, o Cristianismo passou a ser reconhecido e
imposto a todos os povos do Ocidente. O casamento ganhou um lugar de destaque no
mundo católico, contrariando o significado utilitário e limitado que possuía na
Antiguidade. Tais mudanças geradas a partir das citadas repercussões do Cristianismo
inauguraram uma nova prática cultural: o amor cortês.
43
Na Idade Média, o amor não foi tão cortês ou prazeroso como se pode supor, salvo
em casos de adultério. Para reforçar uma lógica presente entre os últimos romanos, o
cristianismo criou o pecado da carne (Simonnet et alii, 2003: p.55).
“Dos costumes da Idade Média, duas imagens ficam retidas: a de um mundo
feudal, brutal, viril, conquistador, no qual as mulheres são as presas. E a do
amor cortês, do gracioso trovador curvado diante de sua dama gentil, que ele
idealiza mas não toca. Dois clichês aparentemente contraditórios” (Simonnet
et alii, 2003: p.56).
O termo amor, desenvolvido na Idade Média, possuía dois sentidos distintos: 1.
referia-se a caritas, ou amor ao próximo, ao desvalido, ao doente. 2. paixão selvagem,
incontrolável, danosa (Simonnet et alii, 2003: p.67). O amor cortês teria surgido em
oposição à desordem dos costumes medievais e estaria alicerçado numa fidelidade baseada
exclusivamente no amor, independente do matrimônio. Amor e matrimônio são tratados
como elementos incompatíveis (Rougemont, 2003: p.50-67).
O poder da igreja sobre o casamento tem início no século XII, tendo sido
reafirmado no século XV, quando transformado em sacramento indissolúvel celebrado
dentro da igreja (Simonnet et alii, 2003: p.59-60). O amor-paixão ou o amor cortês surgiu
no início do culo XII como resposta a certas práticas cristãs, dentre as quais, o
casamento. Não uma justificativa precisa quanto à retórica cortês. No entanto, Vernon
Lee (apud Rougemont, 2003: p.106) argumenta que existiria uma proporção maior de
homens do que de mulheres, significando que nem todos poderiam almejar o casamento.
A idéia mais aceita em relação ao amor cortês é a de que ele seria uma idealização do
amor carnal.
44
No amor cortês, a felicidade poderia ser encontrada quando da aceitação da própria
renúncia
14
. Uma outra característica importante seria o seu caráter laico. A imagem da
mulher – ‘dama’ ou ‘senhora’ passa a ser substituta do lugar ocupado anteriormente por
Deus. A separação da idéia de amor com o vínculo conjugal criou, séculos depois,
condições para o surgimento do amor-paixão romântico (Costa, 1998: p.40-41).
As diversas modificações e mitos envoltos no amor cortês deixam dúvidas acerca
de sua existência. Abelardo e Heloísa são os que mais se aproximam desse tipo de amor,
que findou na castração de Abelardo e no enclausuramento de Heloísa. As
correspondências trocadas entre eles parecem ser autênticas, embora com algumas
alterações. Apesar de poder ter influenciado as classes superiores, deveria ser tratado
como um fenômeno literário, assim como as fábulas. Neste caso, Tristão e Isolda
serviriam como um exemplo (Simonnet et alii, 2003: p.56-57).
Tristão ama a sensação de poder proporcionada pelo risco, dentro de um contexto
celta que valoriza o orgulho cavalheiresco. “O desejo final do risco por si mesmo, a paixão
sem fim, a vontade da morte sem regresso”. A sua paixão se manifesta na medida em que
ela o consome de desejo. O amor-paixão pode ser confundido com a manifestação do
narcisismo. Don Juan possui mil e três mulheres, ao contrário de Tristão, que se preocupa
apenas com Isolda. A avidez do primeiro é o resultado da angústia de não amar, apesar de
amado. Em Tristão, o mundo é concentrado num único objeto de amor. O ato de amor em
Don Juan é profano e voluptuoso, ao contrário de Tristão, que mantém a castidade
divinizante. A violação é a forma de expressão mais significativa em Don Juan, ao
14
Costa (1998: p.40), destaca um ponto de discordância entre Rougemont e Kristeva, de um lado, e Lot-
Borodine, de outro. Para os dois primeiros, o gozo viria acompanhado de sofrimento. Já para o último, a
renúncia poderia ser percebida como espiritualização sublimada.
45
contrário de Tristão, identificado pela virtude que vai além das imposições sociais
(Rougemont, 2003: p.210-288).
“Enfim, tudo se resume nesta oposição: Don Juan é o demônio da pura
imanência, prisioneiro das aparências do mundo, o mártir da sensação cada
vez mais decepcionante e desprezível enquanto Tristão é o prisioneiro da
infinitude do dia e da noite, mártir de um encantamento
15
que se transforma
em pura alegria com a morte” (Rougemont, 2003: p.288).
A contradição existente entre Tristão e Don Juan marca a obra de Sade e sua revolta.
Para Sade, o mal deveria ser praticado contra o próprio amor, porque ele é soberano. “O
crime de amor impuro salvará a pureza” (Rougemont, 2003: p.289-290). As características
citadas acima foram perpetuadas, apesar das mudanças trazidas pelo mundo moderno, ao
menos em forma de discurso:
“Para Rousseau, não existia dever conjugal: uma mulher não era obrigada a
obedecer ao desejo do marido, idéia inacreditavelmente moderna que iria
entusiasmar os contemporâneos do escritor. Mais ainda: o consentimento
mútuo era a base de qualquer relacionamento amoroso. A conseqüência era
evidente: assim como havia o consentimento, também podia ser retirado. O
divórcio se tornava legítimo” (Simonnet et alii, 2003: p.96).
Os camponeses pobres foram os precursores do casamento por amor e
influenciaram as classes superiores, mesmo diante do uníssono discurso médico, jurídico e
teológico acerca do único objetivo do casamento: a procriação. Suspeita-se que o prazer
carnal tenha sido vivido melhor no final da Idade Média do que mesmo no século XVII,
considerando a rigidez desse último período em relação ao tema. A mitologia liberal do
renascimento não deve ser levada tão a sério: houve um movimento espontâneo que
defendeu a liberdade dos sentimentos. Por outro lado, observa-se que em alguns casos,
15
Destaque do autor.
46
certas práticas permaneceram medievais e contraditórias. A Reforma e a Contra-Reforma
seguraram a bandeira da opressão do amor e da sexualidade. Na Inglaterra de Cromwel as
mulheres adúlteras eram condenadas à morte. Os homossexuais do período de Henrique
VIII também tiveram o mesmo fim. Quando se trata de sexualidade, a Idade Média parece
ter sido mais humana e esclarecida do que a Renascença. “Era uma ordem moral terrível
pesando sobre a sexualidade. O Ocidente das reformas intentou aprisionar o sexo”. Apesar
disso, o controle sexual vivenciado na Renascença não atingia a elite, que desfrutava de
considerável liberdade (Simonnet et alii, 2003: p.74-89).
“A libertinagem é fundamentalmente uma apologia ao prazer individual, com o
que comporta de associal. No século XVIII, tornou-se uma moda”, desfeita pela
revolução, contrária à vida privada. As práticas de sedução e de charme do antigo regime
eram consideradas inapropriadas por corroborarem com os conflitos e as depravações’. A
idéia do casamento por amor já tinha se espraiado nas classes sociais mais baixas, apesar
de não ter atingindo em ampla escala os esclarecidos do iluminismo. Entre os aristocratas,
o casamento com sentimento era uma possibilidade, apesar de não ter inviabilizado o
casamento por interesse e os hábitos sexuais masculinos. Estes costumes foram
observados até o século XIX (Simonnet et alii, 2003: p.90-143).
As causas e finalidades últimas do amor se referiam sempre ao objeto. Toda a
literatura ocidental na Grécia Antiga, no Renascimento e no Antigo Regime se referia
a um “bem objetivo” que independia do sujeito. “O supremo bem greco-romano; o Deus
cristão; a dama do amor cortês; ou a posição social nas artes da sedução e da galanteria
no Renascimento e nas Sociedades de Corte”. A crise da Sociedade de Corte contribuiu
significativamente para o surgimento do amor romântico. Em nome dos benefícios
47
conquistados com a proximidade do rei e da manutenção dos prestígios obtidos, os nobres
rurais transformados em cortesãos abafaram os seus sentimentos. Tais frustrações
foram expressas na literatura, a partir de uma visão nostálgica da vida do campo. O amor
cortesão “exclusivamente voltado para a perpetuação do equilíbrio político das casas e
linhagens nobres e para conservar o prestígio dos senhores aristocráticos” cede lugar ao
amor como “virtude privada” (Costa, 1998: p.41-64).
O embate estabelecido entre corpo e alma, amor e sexo, também retardou o
surgimento do que se convencionou chamar amor romântico. O processo de
industrialização e urbanização iniciado na Europa do século XVIII remodelou as
percepções do amor, transformando as relações amorosas. Para os historiadores britânicos,
‘o amor como base do casamento’ teria ocorrido no limiar da modernidade, ou
provavelmente, nos últimos mil anos da ‘história ocidental’. Para os franceses, os
sentimentos amorosos foram drasticamente transformados no século XVIII e início do
século XIX (Del Priore, 2005: p.13).
Segundo Costa (1998: p.46-47), três fontes históricas teriam dado origem ao
sujeito amoroso: 1) “O amor cortês e a mística cristã”; 2) as concepções de sujeito entre os
séculos XVI e XVII, advindas das revoluções culturais, políticas e econômicas; 3) as
experiências relativas ao convívio social criado nas Sociedades de Corte. Pode-se dizer
que o amor de hoje ainda carrega os “demônios” do passado, apesar de ter mudado de
tom. O amor à Tristão, à Dom Joan ou à Sade não são parte apenas de uma rica literatura,
mas estão presentes, nas diversas formas de relacionamentos amorosos. Cabe agora tentar
compreender um pouco mais esses ingredientes presentes nas relações afetivas da
contemporaneidade, sob um ponto de vista sociológico.
48
I.3. As relações amorosas sob a lente dos cientistas sociais
O tema do comportamento sexual e amoroso foi relegado na Sociologia clássica.
Segundo Gagnon (2006: p.14), os estudos posteriores à segunda guerra mundial foram
claramente marcados pela esquerda freudiana, a exemplo de Wilhelm Reich, Herbert
Marcuse, Erich Fromm, Norman O. Brown e Paul Goodman. Para Bozon (2004: p.51-52),
a sexologia contemporânea em meados do século XX teve início com o trabalho de
Alfred Kinsey (1948), que relacionou sexualidade “com uma economia racional da
produção de orgasmos”. Ao final dos anos de 1950, o sociólogo William Goode (1959),
em seu artigo The theoretical importance of love, referia-se ao amor como um fenômeno
tanto da ação quanto da estrutura social. Em 1960, William Masters e Virginia Johnson
descobriram em estudos laboratoriais que certas reações fisiológicas poderiam culminar
no orgasmo, em relações heterossexuais
16
. O comportamento sexual era considerado um
fenômeno guiado pelos elementos biológicos e ambientais, a exemplo das perspectivas de
Freud e de Wilhelm Reich. Em Alfred Kinsey, o sexo foi tratado como um elemento
preponderantemente biológico e pouco influenciado pelo ambiente. Gagnon e Simon, ao
contrário dos modelos anteriores, desenvolveram um trabalho estruturado rigorosamente
16
Além desses, pode-se citar ainda o trabalho de Norbert Elias (1990) O processo civilizador: uma
história dos costumes no capítulo destinado às relações sexuais. Syngly (2007: p.189) destaca a obra de
Vincent Caradec (1996) Le couple à l’heure de la retrait que fala sobre os processos de reestruturação
da identidade na aposentadoria e a distância entre os cônjuges; Jean-Claude Kaufmann (1992, 2002) O
labirinto conjugal: o casal e o seu guarda-roupa que trata dos antagonismos entre o controle explícito da
invenção de um dia-a-dia livre do fardo da divisão sexual do trabalho, a partir do vestuário; Olivier Schwartz
(1990) Le monde privé des ouvriers que enfatiza as diferentes expectativas de homens e mulheres do
meio operário francês; Jocelyne Streiff-Fénart (1989) – Lês couples franco-maghrébins en France – trabalho
destinado aos casamentos mistos, além de seu próprio trabalho, François de Singly (1996) Fortune et
infortune de la femme mariée que toca na questão da desigualdade de gênero e nas restrições de uma vida
a dois. Dentre os trabalhos brasileiros, podem-se destacar os seguintes nomes: Maria Luiza Heilborn (2004)
Gênero e identidade sexual em contexto igualitário um estudo sobre gênero e identidade sexual; Mary
Del Priore (2005) História do amor no Brasil uma discussão sócio-histórica sobre as relações amorosas
do período colonial aos dias atuais.
49
nos elementos sociais, a fim de explicar o comportamento sexual, definido de forma
interacional e simbólica
17
(Gagnon, 2006: p.18-21).
O campo da sexualidade foi então transferido para o espaço sociológico, depois
dos estudos de Gagnon e Simon. Para eles, a prática sexual é definida por “roteiros”
sociais aprendidos que viabilizam os atos sexuais físicos. Os indivíduos desenvolvem uma
capacidade interativa e criam materiais de fantasias e mitos culturais, construindo roteiros
sexuais. Dentro desta perspectiva, três níveis de roteirização foram desenvolvidos: os
cenários culturais, os roteiros interpessoais e os roteiros intrapsíquicos. No primeiro,
tem-se acesso às indicações acerca dos elementos narrativos dos papéis sociais, de forma
geral. Os cenários culturais influenciam tanto os roteiros interpessoais quanto os roteiros
intrapsíquicos, num espaço de símbolos culturais e papéis sociais diversos, tais como as
diferenças de gênero, de classe, dentre outras. Nos roteiros interpessoais, são
institucionalizados padrões sociais a partir da interação do dia-a-dia. Neles, o indivíduo
trabalha a sua auto-representação e a representação dos “outros”. Nos roteiros
intrapsíquicos, os diálogos internos são esmiuçados e formados pelas expectativas
comportamentais sócio-culturais, organizando as imagens e desejos dos indivíduos
(Gagnon, 2006: p.21).
Outros cientistas sociais teceram breves comentários ou dissecaram o fenômeno das
relações amorosas. Segundo Theodor Adorno, a característica utilitarista do mundo não
deixa espaço para amar, que a espontaneidade dos casais tende a ser engolida pela lógica
econômica. Herbert Marcuse se opôs à mercantilização amorosa, enfatizando a falta de
17
O trabalho de Gagnon foi extremamente influenciado pelos sociólogos da Universidade de Chicago que
desenvolveram trabalhos etnográficos detalhados com pessoas marginalizadas, ao contrário do trabalho
desenvolvido pela Sociologia clássica. Em 1959, juntou-se a William Simon a equipe do Instituto de
Pesquisa sobre sexualidade de Alfred Kinsey, já falecido (Gagnon, 2006: p.19).
50
liberdade do indivíduo. Na contra-mão dessas posições, Erich Fromm acreditava na
capacidade do indivíduo em resgatar a autonomia perdida nas sociedades capitalistas,
através da transformação dos objetivos econômicos em meios, e não fins. Desta forma, o
indivíduo viria em primeiro lugar. Para Jürgen Habermas, não se deve utilizar a teoria da
ação comunicativa para compreender o código amoroso de forma ampla, por não se tratar
de uma questão direcionada para o entendimento, apesar de ser uma comunicação afeita ao
mundo da vida. Mesmo não tendo tratado especificamente do tema, o autor sugere que os
estímulos românticos do mercado tomariam a vida cotidiana dos casais, através da
colonização do mundo da vida, evidenciando o seu trágico fim: a incompatibilidade entre
economia e amor (Costa, 2005: p.115-116).
Segundo Bourdieu, possuir sexualmente costuma significar subjugar ou dominar o
outro, podendo também estar relacionado ao abuso. Quando uma pessoa não é levada pela
sedução, deixa de ser enganada. A dominação masculina não é definida a partir do falo”
ou de sua ausência, estando inserida dentro de uma percepção social que se organiza
segundo a divisão relacional de gênero, masculina e feminina, que transforma o “falo” em
símbolo de virilidade e poder, através do reconhecimento da diferença sexual e de um
conhecimento arbitrário do biológico. A virilidade masculina é construída diante de outros
homens (em exibições de força) e em oposição à feminilidade, em uma relação de medo do
feminino que se auto-manifesta, em primeiro lugar (Bourdieu, 1999: p.67). Tal relação de
poder,
“legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza
biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social
naturalizada” (Bourdieu, 1999: p.29-33).
51
Qual a relação existente entre o amor e a dominação? Em resposta a tal indagação,
Bourdieu (1999: p.49-129) responde que quando se trata do tipo de amor marcado pelo
destino ou amor fati, o amor seria dominação consentida, não compreendida como tal e
manifestado através da paixão. No contra-fluxo do amor romântico, as relações afetivas
parecem depender de outros interesses, a exemplo das mulheres que estabelecem vínculos
afetivos aos moldes tradicionais, com homens mais velhos, visando mobilidade social.
Neste caso, existiria uma forma de racionalidade guiada pelo amor fati, amor ao destino
social”. No segundo tipo de amor, a lógica da dominação poderia ser invertida. Neste caso,
o homem seria subjugado pela mulher. Nos dois tipos de amor citados, as relações de
forças podem mudar de lado, mas não são desfeitas. Pode-se falar ainda de um terceiro tipo
de amor, o “amor puro”, considerado uma criação histórica recente e dificilmente
observada no mundo hodierno, que proporciona um tipo de trégua milagrosa”. Este
exemplo raro serve para instituir a norma que indica um reconhecimento mútuo que afasta
o interesse de dominação:
“O sujeito amoroso pode obter o reconhecimento de um outro sujeito,
mas que abdique, como ele o fez, da intenção de dominar” (Bourdieu,
1999: p.132).
No amor fati, o indivíduo deve amar o seu próprio destino social. O autor adota
uma distinção de classe quando destaca que esse tipo de sentimento ocorre entre as
camadas menos favorecidas da população. A dominação masculina é dona das práticas
sociais, das estruturas e dos discursos em descompasso do amor entre as mulheres e os
homens. O amor pode ser tanto um instrumento de proteção quanto um instrumento de
violência, mas a segunda opção costuma ser a regra.
52
Segundo Morin (2005: p.7-9), ser homo não se restringe à qualidade de sapien
racionalidade e sapiência mas ser, na mesma medida, demens, através de manifestações
da paixão e do ódio, acompanhada do delírio. Assim, o ser humano é formado de razão e
desrazão, e o amor é considerado o elemento mais perfeito da loucura e da sabedoria,
mutuamente interligadas.
Em seu texto intitulado “O complexo do amor”, Morin (2005: p.16) fala do amor
como algo que se constrói em conjunto, ou complexus. É por isso que se deve recorrer a
componentes diversos para desvelar o significado do “eu te amo”. O elemento físico pode
ser percebido através de sua manifestação biológica, não se limitando ao sexual, mas ao
“engajamento do ser corporal”. Por outro lado, pode-se citar o componente mitológico
18
ou imaginário, percebido como realidade humana, e não como algo ilusório ou ligado
simplesmente à superestrutura.
O amor não se curva à ordem social, desconsiderando limites ou promovendo a
auto-destruição. Nas palavras de Morin (2005: p.23): “o amor é filho de ciganos, é ‘enfant
de bohème’”. No ocidente, o amor vivido como mito é apartado do amor como desejo. O
amor verdadeiro ultrapassa o limite do coito “felix post coitum” – ao contrário do desejo
esvaziado quando saciado “homo triste post coitum”. A autenticidade do amor é
revelada não através daquilo que se projeta no outro, tal como um auto-retrato, mas na
medida em que se é tomado pela verdade do outro.
“A questão do amor resume-se a essa possessão recíproca: possuir o que nos
possui. Somos indivíduos produzidos por processos que nos precederam;
somos possuídos por coisas que nos ultrapassam e que irão além de nós, mas,
de certo modo, somos capazes de possuí-las” (Morin, 2005: p.31).
18
Segundo Rougemont (2003: p.288), o mito é transformado em literatura na medida em que perde o seu
caráter de esoterismo e sua função sacra.
53
Em Fragmentos de um discurso amoroso, Roland Barthes (2003) resolve recuperar o
discurso sobre o amor, amplamente disseminado, mas relegado por todos, seja na ciência,
na arte e em outros saberes. Na contramão desse cenário, o autor decide criar um espaço
para afirmar esse discurso.
Se o amante encontra-se aprisionado na própria cabeça, o seu discurso se traduz
em ondas de linguagem que se manifestam de forma dispersa e aleatória. Esses “cacos” de
discurso são denominados “figuras”. “A figura é o amante em ação”, mesmo que seja
acompanhada de uma frase desconhecida, talvez inconsciente que altera a economia
significante do sujeito amoroso. A sua importância não é revelada no que ela diz, mas o
que ela relaciona, sendo vista, portanto, como uma “ária sintática”, um “modo de
construção”. Não existe uma ordem quando do surgimento das figuras no decorrer da vida
amorosa porque há uma dependência do acaso interior e exterior (Barthes, 2003: p.XX).
Bozon (2004: p.48-49) afirma que, nas últimas décadas, o ideal de casamento por
amor vem sendo transformado no ideal de juntos por amor. A idéia de casamento como
instituição tem sido enfraquecida, apesar da permanência do desejo de viver junto não ter
sofrido alterações significativas. A sexualidade deixa de ser apenas um direito presente no
casamento de pouca relevância para a formação do casal, e transforma-se no elemento
fundamental da conjugalidade, que não se admite a ausência de atividade sexual entre
os casais, exceto em casos excepcionais, passageiros ou indesejados.
A abertura sexual da contemporaneidade aborda não só as questões relacionadas às
sexualidades alternativas e aos novos rearranjos conjugais, mas trata da diversificação e
individualização presentes nessas relações afetivas, bem como o enfraquecimento dos
princípios absolutos da regulamentação sexual. A infidelidade deixou de ser aceita pelas
54
mulheres o como um retorno à tradição moral, mas pelos danos causados ao contrato
conjugal atual (Bozon, 2004: p.56-58).
No início do século XX, Magnus Hirschfeld e outros sexólogos alemães afirmaram
que a homossexualidade poderia ser explicada através da fisiologia, defendendo a idéia de
um “terceiro sexo”, com o intuito de promover a descriminalização da homossexualidade.
Em meados desse mesmo século, a sexologia contemporânea foi ocupada
fundamentalmente com a preocupação do prazer e do orgasmo, em detrimento da
preocupação com a questão da normalidade sexual, presente no século XIX (Bozon, 2004:
p.51).
A revolução sexual e as transformações trazidas por ela podem ser avaliadas tanto
de forma positiva quanto negativa. Uma perspectiva mais conservadora, advinda
principalmente dos países anglo-saxões, enfatiza a promiscuidade, a possibilidade de
“nomadismo sexual” e a ditadura do prazer. A autonomia das mulheres levaria os homens
à “desvirilização”. Dentro da perspectiva que destaca os benefícios das mudanças sexuais,
o prazer passa a ser visto como um direito, inclusive das minorias sexuais. Em verdade,
tem-se mais um conflito valorativo entre tais perspectivas, que não existem dados
suficientes que possam corroborar suas teses. Além disso, tais transformações sociais não
indicam uma mudança tão radical como alguns podem supor, tratando-se mais de um
processo de interiorização do que um plástico controle social (Bozon, 2004: p.58-59).
Singly (2007: p.170-181) refere-se à modernidade a partir da idéia de um “eu”
mais pessoal e introspecto, de um lado, e um membro da humanidade, de outro lado,
dividindo-a em duas fases. Na primeira, destaca tanto o seu caráter “moderno” como
“contra-moderno” (seguindo as trilhas de Ulrich Beck), onde não se pode falar na
55
expansão do amor (final do século XIX até o 1920), mas na individualização restrita,
que excluía as mulheres dos instrumentos de participação pública (como o voto, por
exemplo) e privada (na sua dependência familiar, tanto do marido quanto dos filhos). A
segunda modernidade nasce no início de 1960, e com ela, certa alforria dos imperativos
culturais que a subjugavam, ligados aos seus “destinos sexuais”.
Para Singly (2007: p.180), as teorias que apontam para um processo de
“(des)socialização” moderna não conseguem enxergar os novos mecanismos de controle e
de restrições sociais. A evolução das sociedades ocidentais tem passado por etapas
distintas, mas ainda inclusas na perspectiva da individualização.
As concepções contemporâneas do amor e das relações amorosas formaram-se a
partir desse passado e das mudanças que marcaram o mundo contemporâneo: o declínio
do patriarcalismo, o impacto do movimento feminista, as conquistas profissionais das
mulheres, certa flexibilidade dos papéis masculinos e femininos, novas formas de
concepção do desejo, que transcenderam as questões de gênero, dentre outras. Para
Therborn (2006: p.455-456), a revolução sexual não significou o fim do casamento nem
da família, mas representou o direito do prazer sexual independente deles. A coabitação
passou a ser vista como casamento experimental e como formação de parcerias
secularizadas e informais. Particularmente, o não-casamento e o casamento observado em
várias gerações, a informalidade na coabitação e as(os) filhas(os) geradas(os) em relações
extramaritais, indicam um retorno à complexidade histórica na família européia moderna.
De fato, a literatura sobre as relações amorosas ampla e diversa apresenta um
conjunto de reflexões acerca dos novos vínculos afetivos. O enfraquecimento do modelo
patriarcal e de um padrão de relação afetiva mais estável evidencia a importância da
56
confiança no amor. Pode-se dizer que houve uma inversão na natureza da angústia: de
uma certeza pouco sedutora e muitas vezes claustrofóbica gerada por um modelo de
relação patriarcal de estabilidade da família e de dominação masculina para uma
incerteza responsável pelos novos mecanismos de proteção/substituição/redefinição dos
códigos amorosos.
I.4. Confiança nas relações amorosas: redenção ou prisão?
Circe, detentora do poder de transformar os homens em porcos, convida
Ulisses (protegido pelos deuses) para a cama, a fim de testar a confiança que
poderia ser criada entre eles (Simonnet et alii, 2003: p.49).
De forma geral, pode-se dizer que as relações afetivas são capazes de resistir ao
tempo quando os agentes envolvidos nesse tipo de acordo ou contrato aceitam um
conjunto de regras, estabelecendo uma cooperação mútua. No universo amoroso, algumas
dessas regras são definidas previamente, sendo o resultado de certo tipo de comunicação
ou código que pode ser alterado no decorrer da relação. Apesar da importância da
racionalidade nesse tipo de cooperação, os ingredientes do amor não se encerram no que
ele tem de racional e previsível. Nem sempre os agentes agem em conformidade com um
acordo geral estabelecido anteriormente. Mas o que fazer quando não se pode controlar a
ação do parceiro e pelo menos um agente envolvido depende do outro? Que tipo de
relação de confiança se deve estabelecer num ambiente cada vez mais instável e plástico?
É aqui que a noção de confiança toma corpo.
57
Annette Baier (apud Overing, 1999: p.81-83) discute o conceito de confiança e de
desconfiança “apropriadas”, dentro da perspectiva de “cuidado”, e não dentro da
“perspectiva de justiça”. Os maiores teóricos modernos (homens) privilegiaram o conceito
de obrigação como um conceito moral fundamental. Desta forma, a confiança (imprópria)
tende a ser posta nos agentes coercitivos, e não nos agentes morais, responsáveis por suas
obrigações. Segunda ela, os gêneros teriam uma natureza moral diferenciada. A mulher
estaria mais preocupada com a moralidade relacionada à idéia de comunidade, ao
contrário do homem, que explicaria a moral a partir das noções de justiça, contrato e
obrigação. Aqui, a confiança nas relações amorosas seria marcada por um recorte de
gênero.
Rempel, Ross e Holmes (apud Giacomozzi, 2006: p.33), dizem que a confiança em
um relacionamento conjugal pode ser definida como a boa vontade mútua na resposta das
expectativas da(o) outra(o), mesmo quando as motivações individuais são conflitantes. “A
confiança pode atuar como um filtro através do qual as pessoas interpretam os motivos de
seus parceiros sobre seus atos”.
Para Solomon e Flores (2002: p.09-40), a confiança precisa ser tratada
cotidianamente, devendo estar presente no tecido emocional do indivíduo. Em especial, se
deve considerar os compromissos assumidos e os compromissos honrados como os
principais tipos de ação. A falta de confiança entre um casal produzirá a desconfiança no
âmbito sexual, sentimento disfarçado com a ilusão de que a emoção genuína é o resultado
das armadilhas sexuais, quando não interpretam um sadomasoquismo sutil com vínculo
romântico. Em verdade, os compromissos não foram cumpridos. Quando a confiança é
posta à prova e traída, grande parte das pessoas decide desistir de confiar. Outra
58
possibilidade para resolver a desconfiança é a hipocrisia cordial, ou simulação polida da
falta de confiança, acionada por medo ou lealdade, mas que também pode destruir a
relação. A simulação da confiança pode ser encontrada no casamento quando alternativas
são por demais incômodas, a exemplo da insegurança, do confronto, do divórcio. O
problema é que as substâncias produzidas, nesses casos, mutilam as relações,
aparentemente refeitas. Deve-se enfatizar, fundamentalmente, que se deve construir
confiança, já que ela não é dada e garantida, mas criada, mantida ou reestabelecida.
“Confiar é algo que exercemos individualmente”.
A “confiança simples” ou ingênua existe porque não enfrentou certos desafios (a
exemplo de uma criança). A confiança “autêntica”, por outro lado, é considerada madura e
articulada. O primeiro amor não é verdadeiro, porque é formado de uma confiança
ingênua, ao contrário daquele que é construído através da confiança autêntica. A traição
não é tida como uma arma devastadora na confiança autêntica, diferentemente da
confiança simples e da confiança cega. Assim, a confiança autêntica não se opõe à
desconfiança (Solomon e Flores, 2002: p.57-140).
Para construir a confiança, deve-se considerar a traição. Tanto o amor quanto a
confiança são parte de um aprendizado, podendo ser instituídos. É através da confiança
autêntica que os obstáculos da desconfiança são definidos, mesmo quando a traição
ocorre. Pode-se falar tanto da confiança quanto do amor em termos de habilidades
emocionais, continuadas e dinâmicas. Amar é uma decisão, não uma fatalidade. “Não
caímos de amores”. A confiança autêntica tem como foco central a criação, a manutenção
e o restabelecimento dos relacionamentos, diferentemente da confiança simples, tida como
certa (Solomon e Flores, 2002: p.21-100).
59
Embora os termos confiança e confiabilidade estejam estreitamente ligados, não se
deve trocar um pelo outro. O primeiro refere-se ao ato de confiar. A confiabilidade está
ligada a idéia de que o indivíduo pode ser digno de confiança. A confiança não pode ser
restrita à previsibilidade. “A confiabilidade é nitidamente uma virtude, a confiança (o
confiar) não o é, obviamente”. Assim, não se deve dizer que confiança e previsibilidade
possuem a face de uma mesma moeda. A confiança ocorre entre pessoas e seus dinâmicos
relacionamentos. A confiabilidade ocorre quando da previsibilidade de certo fenômeno
físico, tal como a força de uma viga-mestra. A confiança carece de previsibilidade e é
constituída de elementos irracionais (Solomon e Flores, 2002: p.110-122).
A infidelidade é um dos temas de grandes controvérsias nas relações amorosas,
tanto do ponto de vista moral, quanto emocional ou físico (quando da ocorrência de
Doenças Sexualmente Transmissíveis). O conceito de confiança é fundamental neste
debate, levando-se em conta os riscos envolvidos.
A necessidade do uso de preservativo é contraposta ao modelo de fidelidade que
sugere uma confiança mútua, valorizada socialmente. A rejeição ao uso de preservativo
pode significar, efetivamente, uma demonstração de confiança entre os casais. Para as
mulheres, essa falta de proteção pode ser explicada pela confiança que elas depositam em
seus parceiros; pelo desejo ou manutenção das relações monogâmicas e pela negação do
risco (Giacomozzi, 2006: p.33-43).
O Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 2002 apresentou um
aumento significativo do número de mulheres contaminadas pelo vírus da Aids, em
relações heterossexuais. Dos casos registrados entre 1980 e 1990, 61,1% eram de
mulheres maiores de 13 anos. Este percentual cresceu para 93,5% em 2002. Entre as
60
categorias “homo-bissexual”, de 1980 a 1990, houve o registro de 44,5%, tendo diminuído
para 16,4% em 2002 (Giacomozzi, 2006: p.15-16). O aumento de mulheres contaminadas
em relações heterossexuais, bem como a diminuição da transmissão do vírus entre os
casais homossexuais pode estar relacionado com a confiança estabelecida entre esses pares
afetivos. Duas considerações podem ser realizadas aqui: 1. o descompasso entre o pacto
monogâmico e as práticas poligâmicas (indicadas em inúmeras pesquisas sobre
comportamento sexual); 2. as implicações e motivações do pacto de fidelidade para a
confiança no amor. As relações extraconjugais são trabalhadas de várias formas, mas
costumam negar a infidelidade da(o) parceira(o), especialmente entre os casais
heterossexuais que estabelecem um acordo sexual que não leva em conta a possibilidade
do envolvimento “extra-relação”, de forma geral. Uma das maneiras de “solucionar o
problema” é o aparente ou real desinteresse pela informação de que uma das partes
relaciona-se sexualmente com outras pessoas, amplamente difundida através da expressão:
“o que os olhos não vêem, o coração não sente”. Neste caso, a confiança amorosa poderia
ser pensada como “confiança cega” ou como um mecanismo de proteção criado para
preservar a relação. Em ambos os casos, o risco de contaminação sexual transforma-se em
um problema social. Entre os homossexuais, a exclusividade sexual não costuma ser uma
questão irrevogável do pacto amoroso. Isto justificaria a queda do percentual de
contaminação da AIDS entre eles, na medida em que se admite que a possibilidade do
risco aumente quando os parceiros sexuais diversificam-se, e as práticas sexuais passam a
ser mais seguras, com o uso do preservativo. Por outro lado, com o surgimento da AIDS,
alguns casais gays têm preferido práticas monogâmicas, como mostra a pesquisa de Worth
(2002). Neste caso, eles costumam entrar na mesma lógica estabelecida entre os
61
heterossexuais, qual seja, a de estabelecer o pacto da fidelidade, mas nem sempre cumpri-
lo.
Goldenberg (2006: p.103-145) realizou uma pesquisa com 1.279 pessoas, entre 17
e 50 anos de idade. Dentre eles, 47% das mulheres e 60% dos homens se declararam
infiéis. Apenas 30% das universitárias estão dentro de um padrão convencional de família.
Em 70% dos casos, buscam-se saídas alternativas, incluindo a possibilidade de ser a
amante. Por outro lado, os dados de 1996 do IBGE mostram que 71% das mulheres que
pediram o divórcio foram motivadas pela traição masculina.
Estudiosos criaram três categorias para explicar a infidelidade conjugal: 1. a
traição como forma de driblar o marasmo do casamento; 2. traição como forma de
reafirmar a masculinidade ou a feminilidade, marcada pela atividade compulsiva e pela
necessidade de renovação das conquistas e 3. a síndrome de Madame Bovary (personagem
do romance de Flaubert), onde a busca por um amor romântico que não existe é o
resultado da insatisfação afetiva (Goldenberg, 2006: p.103-104).
Ao estudar o ponto de vista da amante, Goldenberg (2006: p.86-88) constatou que
a identidade dela é construída em oposição às características da esposa. É desvalorizando
a esposa que a amante foge do estigma que lhe é imposto. Além disso, ela também
costuma acreditar que o seu amante não mantém relações sexuais com a esposa. Mesmo
nas relações em que alguém é traído, neste exemplo, a esposa, as(os) envolvidas(os)
valorizam a fidelidade amorosa.
“Renúncias, compromissos, rupturas, neurastenia, confusões irritantes e
mesquinhas de sonhos, de obrigações, de complacências secretas – metade da
infelicidade humana se resume na palavra adultério” (Rougemont, 2003:
p.26).
62
A partir de sua pesquisa, Goldenberg (2006: p.100-101) dividiu as amantes em três
categorias: passageiras, transitórias e permanentes. As primeiras não têm a intenção de
casar com o amante. As amantes transitórias esperam que os seus amantes assumam a
relação. Neste caso, o desfecho poderia ser a frustração ou uma futura aceitação da vida a
três, tornando-se então uma amante permanente. As amantes permanentes se conformam
com o triângulo amoroso, e são capazes de viver este tipo de situação por muitos anos. As
entrevistadas declararam que desejam preservar a liberdade, ressaltando, por outro lado, a
necessidade de cumplicidade, absoluta sinceridade e complementaridade. Fatores
classificados como simbióticos-românticos por Goldenberg (2006: p.132). Neste caso,
pode-se dizer que há uma clara tensão entre os valores tradicionais e modernos.
Considerações finais
O mundo hodierno é marcado pelas heranças tradicionais do passado, por um lado,
mas apresenta diferentes escolhas afetivas, por outro lado. O desejo de viver num
ambiente amoroso seguro, mais relacionado às expectativas das sociedades tradicionais, e
de ter sensações novas e mais estimulantes são os novos paradoxos do amor. A sensação
de estabilidade não garante mais a longevidade da relação porque ela pode ser destruída de
forma brusca e traumática, acarretando dor e sofrimento para os casais. A manutenção do
pacto amoroso na contemporaneidade não se restringe mais à preocupação com a criação
das(os) filhas(os), às relações comerciais estabelecidas no contrato íntimo ou à simples
manutenção do casamento enquanto instituição social e dogma religioso. Trata-se de
63
inventar uma nova forma de vida que seja satisfatória para ambas as partes. O sofrimento
da obrigatoriedade do matrimônio foi pouco a pouco transformado pelas incertezas
presentes nesse tipo de relação. É por isso que o conceito de confiança é considerado
central neste trabalho.
Depois de demonstrar a importância do amor e da confiança nas Ciências Sociais,
espera-se dar continuidade à discussão iniciada aqui a partir de perspectivas teóricas
diversas que ser úteis à compreensão deste fenômeno nas Ciências Sociais. Pretende-se,
com a seleção realizada dos autores Georg Simmel, Michel Foucault, Niklas Luhmann,
Anthony Giddens e Zygmunt Bauman contribuir com as reflexões realizadas sobre as
relações amorosas ou a sexualidade. Essa diversidade teórica servirá para compor um
quadro conceitual da confiança nas relações amorosas, levando-se em conta tanto as
relações de complementaridade quanto às de contraposições dos autores. Assim,
limitando-se o referencial teórico, deseja-se ampliar o debate sobre a confiança nas
relações amorosas dentro de uma perspectiva sociológica.
64
CAPÍTULO II
“VOCÊ INVENTA O AMOR, EU INVENTO A SOLIDÃO”:
DO ESSENCIALISMO AOS DETERMINANTES CULTURAIS
EM GEORG SIMMEL
“Onde queres revólver, sou coqueiro
E onde queres dinheiro, sou paixão
Onde queres descanso, sou desejo
E onde sou só desejo, queres não”.
Caetano Veloso
(O quereres)
Dentre as muitas áreas abordadas por Georg Simmel, pode-se citar a Economia, a
Sociologia, a Filosofia, a Ciência Política, a Música, a Religião e a Psicologia. Antes de
estabelecer as discussões sobre a confiança nas relações amorosas, a partir de alguns
trabalhos considerados especialmente importantes aqui, tal como Filosofia do amor e o
texto Fidelidade e gratidão, faz-se necessário investigar alguns conceitos gerais e
elucidativos à análise sociológica proposta.
A filosofia da modernidade de Simmel pode ser identificada entre Marx e Weber, a
partir do prolongamento do primeiro e do adiantamento do segundo (Vandenberghe, 2005:
p.131). O campo da Sociologia foi definido por Simmel como possibilidades de sociação
65
humana: “uns contra outros, uns para os outros, ou ainda uns com os outros”. Para
explicar o seu conceito de sociedade, dever-se-ia ainda abordar as questões psicológicas.
O produto de certo conjunto complexo de ões dos indivíduos seria denominado
fenômeno social, e as leis sociológicas não passariam, em geral, de interpretações. Sendo
assim, a sociologia deveria andar nas margens do possível, do provável e do intersubjetivo
(Tedesco, 2006: p.134).
Mesmo nos momentos em que se encontra mais próximo do “atomismo
especulativo e que parece flertar com o nominalismo”, a teoria de Simmel é
inegavelmente interacionista, não se opondo à macrossociologia, desde que as abstrações
do indivíduo não sejam reificadas por ela (Vandenberghe, 2005: p.93-94). Mesmo que os
conteúdos interacionais sejam concebidos através dos sentimentos e dos impulsos
subjetivos, não se pode afirmar que há na teoria de Simmel, um reducionismo psicologista
(Cohn, 1998: p.06).
Ao que se refere à posição social e moral, Simmel (1983: p.10) tinha afinidades
com os pensadores liberais independentes, progressistas e darwinistas. Concebia a norma
ética como anti-racionalista e vitalista. “A ética existe, à maneira nietzschiana e vitalista,
para servir à vida, como manifestação da própria existência”.
A influência da obra de Kant pode ser apreciada em todo trabalho simmeliano, a
começar por sua tese de doutorado e uso do dualismo conceitual entre forma e matéria.
66
Pode-se dizer que Simmel (1983: p.14) foi um neokantiano
19
. O vitalismo e o
neokantismo iluminaram a teoria simmeliana, sendo esta cortada pela oposição
estabelecida por Kant entre “as formas do entendimento e os conteúdos da experiência” e
marcada pelas inter-relações do mundo vivido. As oposições entre as formas e os
conteúdos são transformadas em relações sempre incompletas, posto que não se pode tocá-
las. Esta relação deságua em uma união mística. O mundo relativista é formado pelo
conjunto interligado dessas relações. A oposição mútua de polaridades não pode ser
negligenciada por ser constitutiva da vida. Esse princípio de estruturação dualista pode ser
expresso tanto na oposição neokantiana das formas e dos conteúdos quanto no conceito
vitalista de interação (Vandenberghe, 2005: p.15-53). A idéia de forma substitui a de
estruturas, sendo a primeira uma relação circular entre ação e estrutura (Tedesco, 2006:
p.138).
O foco utilizado por Simmel para interpretar o real é modificado constantemente,
isso porque ele acredita no caráter infindável do real. O conhecimento é então, construído
e reconstruído a partir de certo ponto de vista. Apesar da realidade não poder ser
apreendida em sua totalidade, deve-se considerar diferentes pontos que a compõem, para
que se possa formar um conjunto de objetos científicos independentes.
“Os grupos pequenos, organizados de forma centrípeta, costumam usar e
recorrer a todas as suas energias, enquanto que nos grupos grandes as forças
permanecem potenciais com mais freqüência, tanto absoluta quanto
relativamente” (Simmel, 1983: p.95).
19
Foram criadas duas escolas do movimento neokantiano: escola de Baden representada por Windelband,
Rickert, Max Weber e Lask e a escola de Marbourg, formada por Cohen, Natorp e Cassirer. Na escola de
Baden, a filosofia é mais voltada para as ciências humanas e conduzida por uma teoria axiológica, ou seja,
“uma teoria da gênese dos valores, tais como a ciência, a moral e a arte”. na escola de Marbourg,
acredita-se que o espírito de Kant seria melhor interpretado a partir de uma análise transcendental da lógica e
das ciências da natureza. O trabalho de Simmel apresenta mais afinidades com a escola de Baden
(Vandenberghe, 2005: p.57).
67
Tradicionalmente, o amor costuma cair no reino da psicologia das emoções, tendo
sido negligenciado como um tópico sociológico relevante. Dentre os clássicos que
influenciaram a obra de Simmel, a exemplo das tradições marxista e weberiana, poder-se-
ia tratar o amor, de forma geral, como um componente ideológico de reprodução do
excesso de trabalho, no primeiro, e afirmar que o sexo era o rival da religião, no segundo
(Bertilsson, 1986: p.19-21).
Assim sendo, pretende-se estabelecer um diálogo com a teoria simmeliana da
confiança no amor. Para tanto, este capítulo será dividido em três seções: a primeira (II.1.)
será composta de alguns conceitos gerais presentes na obra de Simmel, sendo subdivida
entre II.1.a) A “forma formante” e a realidade empírica, que trata da relação entre a
forma e o conteúdo; II.1.b) A porta e a ponte: definindo espaços e unificando relações,
para abordar a definição de sociação e II.1.c) Cultura e sociedade. Estes conceitos serão
úteis à composição do tema proposto. A segunda seção (II.2) tratará da relação
estabelecida entre amor, sexo e gênero. A última seção (II.3) versará sobre confiança,
gratidão e fidelidade, elementos utilizados para a unificação das relações sociais.
II.1. Alguns conceitos gerais
II.1.a) A “forma formante” e a realidade empírica
O formismo, que traz a idéia de “forma formante”, surpreendente e dinâmico, foi
criado como contraponto ao formalismo. A dualidade presente na obra de Simmel pode ser
68
mais bem trabalhada a partir de uma síntese das formas (neokantianas) caracterizadas
pela abstração e da noção vitalista de interação sustentáculo das associações formadas
de objetos.
“Mesmo o pensamento estando subsumido no processo da vida, as formas a
priori da percepção e do entendimento podem ser deduzidas das estruturas
mais profundas do vivido” (Vandenberghe, 2005: p.163-164).
Kant afirma que o conceito deve basear-se na realidade empírica (os conteúdos), e
não apenas nas formas a priori. Por outro lado, os conceitos são imprescindíveis, posto
que transformam a realidade a partir de uma nova orientação, ou seja, aquilo que é
entendido como realidade, ou como a representação da realidade. A base metodológica da
sociologia formal simmeliana é constituída de três elementos: a forma, o conteúdo e a
interação (Vandenberghe, 2005: p.60-70).
A forma pode ser transformada em conteúdo e vice-versa. Dependendo do ângulo
analisado, essa oposição que se estabelece em princípio pode ser desfeita (Simmel, 1983:
p.15). A intuição era um elemento fundamental quando da escolha dos procedimentos
metodológicos.
O uso sociológico da forma e do conteúdo refere-se à vida em sociedade e à
formação moral do indivíduo nessa sociedade. A idéia de lei moral original deve ser
rejeitada por carecer de fundamentação lógica. Assim, a consciência moral é formada a
partir das relações entrecortadas dos indivíduos dentro de determinados grupos sociais.
Deve-se então enfatizar aqui o seu relativismo filosófico. A distinção entre forma e
conteúdo não passa de uma metáfora utilizada para compreender a oposição dos elementos
estudados (Simmel, 1983: p.15-59).
69
“Os interesses baseados nas relações sexuais são satisfeitos na variedade quase
incalculável das formas familiares” (Simmel, 1983: p.62). Desejo, estado psíquico e
interesse são alguns exemplos de conteúdos que podem ser considerados como “coisas-
em-si” vitalizadas (Vandenberghe, 2005: p.85). Se a forma diz respeito ao conceito sobre
as relações sexuais e o conteúdo é a sua realidade empírica, poder-se-ia afirmar que os
interesses sexuais são atingidos dentro de um conjunto teórico pré-determinado do desejo,
ou formas de sociação definidas historicamente, por um lado, e pelos processos sociais
situacionais, por outro, podendo um ser convertido no outro. Na próxima seção, tais
formas de sociação serão apresentadas, a partir de duas metáforas: a porta e a ponte.
II.1.b) A porta e a ponte: definindo espaços e unificando relações
As relações de sociação modernas são traduzidas por Simmel em duas metáforas: a
porta e a ponte. Essas metáforas são percebidas em momentos distintos, mas fazem parte
de um mesmo processo. A porta significa a possibilidade de definir espaços internos e
externos. A ponte representa a unificação das relações sociais (Tedesco, 2006: p.143-144).
“A sociabilidade é o jogo no qual se ‘faz de conta’ que são todos iguais e, ao
mesmo tempo, se faz de conta que cada um é reverenciado em particular; e
‘fazer de conta’ não é mentira mais do que o jogo ou a arte são mentiras
devido ao seu desvio da realidade” (Simmel, 1983: p.173).
Simmel valoriza a unidade e a continuidade da vida. Para ele, cada ato representa
uma totalidade que se pode julgar. A personalidade do autor e de seus atos são os objetos
de julgamento, considerando a relação de interdependência entre a vida inteira e o ato
70
praticado a cada momento (Vandenberghe, 2005: p.191-192). A interação social só é
considerada sociológica em seu momento.
A ação, em princípio, é vista por Simmel como afetiva ou emocional. A ação
estratégica – racional, calculista e reflexiva surge na sociedade moderna dominada pelos
interesses materiais, mais especificamente o dinheiro (Vandenberghe, 2005: p.97). A
socialização é materializada em ações que incluem fenômenos psicossociais e subjetivos,
tais como a fidelidade e a lealdade (Tedesco, 2006: p.145). A sociação é uma forma
dentre uma variedade de possibilidades escolhida pelos indivíduos que se agrupam em
unidades correspondentes a suas motivações (Simmel, 1983: p.166).
“Tudo que está presente nos indivíduos, que possuem aqueles instintos,
interesses, etc., a formarem uma unidade precisamente uma ‘sociedade’.
Tudo o que está presente nos indivíduos (que são os dados concretos e
imediatos de qualquer realidade histórica) sob a forma de impulso, interesse,
propósito, inclinação, estado psíquico, movimento tudo que está presente
neles de maneira a engendrar ou mediar influências, designo como conteúdo,
como matéria, por assim dizer, da sociação” (Simmel, 1983: p.166).
Empiricamente, a unidade pode ser definida como a interação dos elementos. O
conflito é um elemento constante e necessário às formas de sociação. Existem casos
limites – a interação entre o ladrão e sua vítima – onde o conflito parece tomar o espaço de
outros elementos, sendo caracterizado como caso marginal porque a combinação desses
unificadores é quase nula (Simmel, 1983: p.60-132).
“Assim como o universo precisa de ‘amor’ e ‘ódio’, isto é, de forças de
atração e de forças de repulsão, para que tenha uma forma qualquer, assim
também a sociedade, para alcançar uma determinada configuração, precisa
de quantidades proporcionais de harmonia e desarmonia, de associação e
competição, de tendências favoráveis e desfavoráveis” (Simmel, 1983:
p.124).
71
O conflito produz uma estrutura social apenas quando acompanhado de forças
unificadoras. Isto significa dizer que as relações de conflito não existem por si mesmas.
Neste sentido, o amor, por si só, não é suficiente para manter um grupo real (Simmel,
1983: p.128). A forma de associação composta pela harmonia e discórdia é denominada
conflito. Interessante destacar que toda associação traz consigo um elemento de conflito
para ser constituída.
A oposição é considerada um elemento da própria relação porque não como
suportar certa imposição ou mau-humor sem algum tipo de reação. A opressão cresce na
medida em que é sufocada. Além disso, a oposição traz alívio e satisfação íntima,
podendo, também, em outras situações psicológicas, garantir serenidade e humildade
(Simmel, 1983: p.124). Numa sociedade narcísica, esta oposição pode chegar a níveis
insuportáveis, inviabilizando a possibilidade de continuidade nas relações amorosas, por
exemplo.
Ao contrário de outros autores, Simmel acredita que o conflito é uma forma de
coesão social. Possíveis antagonismos, sejam latentes ou reais, promovem o acordo entre
os indivíduos, que esses têm a necessidade de se oporem para que possam sentir a
importância da própria relação, quando da reconciliação. O amor necessitaria desse
ingrediente, posto que a unidade social nasce da luta (Simmel, 1983: p.56). A questão a
ser levantada, por hora, diz respeito às possibilidades da confiança no amor, considerando
a presença do conflito, os aspectos culturais discutidos a seguir e a definição sexual
essencialista do autor.
72
II.1.c) Cultura e sociedade
Três componentes da cultura podem ser isolados, segundo a leitura simmeliana.
Em primeiro lugar, pode-se falar de cultura como um processo de cultivação, ou seja, as
mudanças advindas das experiências dos indivíduos, através da passagem de um estágio
para outro. A cultura pode ser vista também como um tipo de desenvolvimento ou
crescimento do indivíduo a partir de seu estado natural, ou de seu processo inicial. Por
fim, a cultura se a partir do uso de objetos externos ao indivíduo. Este conceito de
cultura está estritamente ligado a sua leitura filosófica mais geral, sendo compreensível
apenas nesse contexto (Coser, 1965: p.124).
Não se pode falar em filosofia da vida sem mencionar a filosofia da cultura e a
filosofia moral, posto que esses ingredientes contribuem com a definição do indivíduo na
modernidade (Vandenberghe, 2005: p.165).
“A cultura não é somente a objetivação da alma nas formas (‘o sujeito se
objetiva’), mas, também, inversamente, a formação da alma através da
assimilação das formas objetivadas (‘o objetivo se subjetiva’)”
(Vandenberghe, 2005: p.170).
O poder supra-individual das instituições sociais encoraja o indivíduo e sua
dignidade, oferecendo-lhe a capacidade de decisão ausente de sua individualidade
(Simmel, 1983: p.102). Como exemplo de poder institucional, pode-se citar o
patriarcalismo, pouco a pouco modificado. A vontade do pai subjetiva e ilimitada foi
substituída por ações e decretos normativos e judiciais. Isso significa que a relação de
subordinação foi transformada, possibilitando a criação de uma unidade ideal. O
dominador também obedece à lei criada por ele, na medida em que transcende sua vontade
73
individual. Portanto, dominantes e dominados passam a obedecer às normas sociais
criadas.
“Para compreender bem a tese da dialética da reificação da vida e da
alienação do indivíduo, é preciso analisar de perto a dinâmica da cultura
moderna e ligar seu destino trágico que se manifesta no fato de que a
cultura se objetiva e se emancipa dos sujeitos voltando-se contra eles para
aliená-los – a lógica da dialética da vida e da antivida, segundo a qual o fluxo
quente da vida pode se exprimir por meio de formas frias e rígidas, que
abafam seu elã e congelam sua expressão no convencionalismo e no
classicismo” (Vandenberghe, 2005: p.165).
Na filosofia da cultura, um caráter trágico na dialética entre vida e forma: na
medida em que as formas sociais e as instituições culturais ganham vida própria, criam
códigos normativos e se rebelam contra aqueles que a geraram.
A cultura filosófica ou o panteísmo estético é formado por um mundo em
expansão, intersubjetivo e um tanto quanto relativista, objetivando alcançar “horizontes de
conjunto, de síntese, ainda que parciais, totalidades-em-ato (Tedesco, 2006: p.158). A
dimensão estética é desenvolvida na ética não segundo os hedonistas e imoralistas, a
exemplo de Foucault, Deleuze e Maffesoli, mas a partir de um modelo de reflexão
encontrado na Crítica do julgamento
20
, e não na Crítica da razão prática
21
kantiana
(Vandenberghe, 2005: p.193).
A sociedade é vista como um ser autônomo, com uma fluidez que independe da
vontade de seus membros. Mas como explicar o caráter supra-individual dos indivíduos se
20
Crítica da faculdade do juízo é a terceira obra da trilogia crítica. Nela, Kant afirma que o “sentimento da
vida” é ampliado pelo prazer e reduzido pelo desprazer, sendo esse sentimento parte constitutiva da natureza
humana. A Crítica da faculdade de julgar estética considera a relação com a natureza através dos juízos de
gosto o papel da experiência ‘subjetiva’ da imaginação e do juízo reflexivo do prazer (Caygill, 2000: p.82).
21
Crítica da razão prática é o segundo texto da trilogia crítica de Kant em filosofia moral, onde o
sentimento de respeito pela lei moral é tratado como uma forma de autodeterminação da vontade. Além
disso, uma distinção entre agir de acordo com o dever e agir por acatamento de um dever que se
identifica com o respeito à lei (Caygill, 2000: p.84).
74
a sociedade é formada senão por esses indivíduos? Poder-se-ia dizer que a concepção
individualista refere-se à realidade e à idéia monista, leitura parcial e limitada das
faculdades de análise dos indivíduos. Segundo a interpretação de Simmel (1983:48-49)
acerca da noção de sociedade:
“Os vínculos que se estabelecem entre os homens são tão complexos que é uma
quimera desejar reduzi-los a seus elementos últimos. Devemos, de preferência,
tratá-los como realidades auto-suficientes”.
Enquanto os grupos sociais permanecem idênticos a si próprios, os seus membros
sofrem alterações ou desaparecem. A unidade social é mantida e apoiada na dimensão
psíquica, e não na permanência do lugar, sendo essa dimensão o sustentáculo da unidade
territorial. Por outro lado, a unidade territorial pode ser um reforço para certo tipo de
unidade fisiológica, a exemplo do enfraquecimento dos judeus depois da diáspora. O
vínculo fisiológico é considerado o último refúgio da manutenção e permanência social
(Simmel, 1983: p.51). Este conceito de unidade territorial difere em muito da separação
tempo-espaço de Giddens.
O resultado dos padrões sociais pode suprimir o indivíduo, caracterizando-o como
instrumento que permite a continuidade de certo fenômeno no grupo, quanto mais
impessoal o indivíduo, mais preparado estará para desempenhar o papel do outro,
garantindo a continuidade ininterrupta da personalidade coletiva (Simmel, 1983: p.54).
Quando um evento externo desestabiliza a unidade social, esta pode ser rompida. O
empobrecimento de uma família pode ser o motivo da quebra dos sentimentos morais que
a envolvem, por exemplo. O mais importante é a preservação do grupo, mesmo que haja
uma perda significativa de partes que não compõem o nervo central (Simmel, 1983: p.55).
75
Pensando nas relações amorosas, se “muitas de suas partes podem cair, não se deve
concluir que o ideal de amor deixa de existir, mas que ele muda de forma. Numa situação
mais extrema, a solidariedade dos indivíduos para manter o amor poderia ser rompida. Por
exemplo, no filme
22
Lua de fel (Bitter moon), de Roman Polanski, tem-se um tipo de
situação limite onde se pode observar a quebra da confiança entre o casal Oscar (Peter
Coyote) e Mimi (Emmanuelle Siegner). A narrativa do primeiro a Nigel (Hugh Grant)
tripulante do navio interessado em sua esposa – é construída a partir da constatação de que
ele e sua mulher foram gananciosos demais: a ambição exacerbada de Mimi pela própria
relação e a de Oscar pela liberdade para se relacionar com outras mulheres. Mimi vinga-se
do desejo de Nigel de possuir outras mulheres, tal como o antigo desejo de seu marido,
como um espelho refletido, relacionando-se com Fiona (Kristin Scott-Thomas), cônjuge
de Nigel.
Para Simmel, as proximidades corporal e mental estabelecidas nas relações íntimas
sobrevivem se houver certo distanciamento, necessário à renovação da própria relação.
Aqui, a polaridade é a chave das formas sociais (Vandenberghe, 2005: p.71). Mas essa
polaridade não define apenas as relações amorosas em Simmel. De fato, tais oposições
foram utilizadas nos mais variados fenômenos sociais. A união conjugal como uma
unidade social pode ser mais ou menos sólida, dependendo das experiências
compartilhadas pelos casais. Apesar disso, as variações produzidas não alteram o princípio
da própria unidade (Simmel, 1983: p.57). Quais as possibilidades de confiança nas
relações amorosas, considerando a combinação entre distanciamento e grau de intimidade?
22
Em resposta à afinidade estabelecida entre a arte e a Sociologia, adotaremos a posição de Robert Nisbet,
que afirma que ambas servem para compreender a realidade (no sentido weberiano), criando formas
diferenciadas de representação ordenada (Teixeira, 1998: p.5-6).
76
A chance do indivíduo de ocupar outros papéis com mais desenvoltura, garantindo certo
tipo de personalidade coletiva, não enfraqueceria os códigos pessoais de confiança no
amor? Dito de outra forma, o grau de intimidade estabelecido pelo indivíduo não
modificaria a forma com que ele define os padrões de confiança no amor? A seguir, serão
discutidas as formas íntimas de sociação entre os homens e as mulheres, com o intuito de
responder a estas indagações e à questão da confiança no amor, considerando as
diferenciações de gênero apontadas pelo autor.
II.2. Amor, sexo e gênero
O conceito moderno de amor ainda carrega marcas do conceito platônico,
especificamente, a idéia de que se vive no amor algo misterioso, atemporal, num certo
sentido, e para além da relação metafísica. Deve-se ir além do pensamento plástico-
substancialista grego, inserindo-o além da vivência imediata. O amor – na natureza erótica
é uma auto-relação, fechada em si mesma. A natureza erótica existe mesmo quando não
existe alguém para amar. O amor é um ser do sujeito, ligado a determinado objeto ou com
a vida apenas de forma secundária (Simmel, 2001: p.157-183).
“Para a natureza erótica, a relação afetiva unicamente possível em relação a
um indivíduo (e, para dizer a verdade, inclusive em relação a um
indivíduo) torna-se uma relação geral permanente (se bem que em diversos
graus), mas sem cair na negação panteísta da individualidade” (Simmel,
2001: p.179).
77
“A sensualidade é, em si, o genérico, e nessa medida o verdadeiro oposto do
amor”. O amor cristão é considerado genérico porque se preocupa com o sofrimento do
outro. O sofrimento geral pode ser amenizado, ao contrário do sofrimento
caracteristicamente individual (Simmel, 2001: p.182-195). A proximidade do estrangeiro é
definida a partir da familiaridade social e humana entre ele e os outros indivíduos. Há uma
distância porque essas características comuns estão acima dele e dos outros, ligando-os
apenas por seu caráter genérico. A condição do estrangeiro é comparada às relações
eróticas. No amor, essa idéia de generalização é inicialmente negada com o argumento de
que existe algo de peculiar e específico na relação construída pelo casal. A singularidade
da relação é desfeita com o desentendimento ou a quebra do vínculo amoroso. Aqui, o
amor assume novamente o seu caráter genérico (Simmel, 1983: p.186). O intercurso
sexual é tido como o processo mais íntimo e pessoal, por um lado, mas também o mais
geral e consumidor dos indivíduos, em nome da natureza (Wolff, 1964: p.131). Assim, o
que é compartilhado apenas com a outra pessoa, dentro de uma relação, passaria a ser
dividido com os outros, na medida em que certas práticas amorosas são estabelecidas.
O amor é tomado por Simmel (2001: p.124-127) como uma categoria primordial,
sem nenhum outro fundamento, além de si próprio. A liberdade de amar outra pessoa
encontra-se na ausência da intenção latente de ser amado. Deve-se reconhecer o amor
como um produto primário e muito desenvolvido na natureza humana, não podendo ser,
portanto, localizado dentro do mesmo espaço cronológico e genético da respiração ou do
instinto sexual. A função do amor é formativa da vida psíquica, possuindo uma dinâmica
auto-sustentada conduzida ao exterior, “do estado latente ao estado atual”.
78
Não se deve, de forma precipitada, conectar instinto sexual a amor, apesar da
necessidade de reconhecer, de forma óbvia, certa relação entre eles. A reprodução da
espécie é desenhada nos bastidores do desejo e do arrebatamento, de forma subjetiva,
servindo à manutenção da espécie, e ligada às mediações psíquicas (Simmel, 2001: p.131).
A prefiguração do amor pode se dar a partir da ‘atração dos sexos’. A evolução
natural transforma-se em amor, para que este volte a ser evolução natural. No momento
em que o amor é simbólico para a teleologia da espécie, ele sofre mais uma metamorfose,
uma espécie particular que existe para si mesma, fazendo com que o amante acredite
que a vida existe para a manutenção duradoura do amor (Simmel, 2001: p.131-134).
Segundo Simmel, “o amor busca o seu objeto, que o outro é ‘meu amor’
assim como o mundo é minha representação, mas também, o que é mais
paradoxal, que o amor pode existir sem objeto, que pode mesmo, no limite,
ser caracterizado como um ‘estado solipsista’” (Vandenberghe, 2005: p.176).
A citação acima se refere à existência apenas do eu e suas sensações. O objeto
pode ser considerado um meio para atingir um objetivo solipsista, apresentando uma clara
oposição entre o amor e o seu objeto.
“O ser do amor, de que o desejo é simplesmente a manifestação fenomenal,
não pode ser abolido pelo aplacamento deste último” (Simmel, 2001: p.94).
O amor recusa as relações finalísticas, a exemplo do interesse pela perpetuação da
espécie. O mundo empírico perde o sentido diante da dimensão do amor, tal como na
tragédia de Romeu e Julieta (Simmel, 2001: p.136). Esta afirmação encontra-se em
contradição com uma segunda posição, encontrada na mesma obra do autor Filosofia do
amor – que compara o amor da mulher ao instinto na escolha do melhor reprodutor:
79
“... podemos considerar o amor, pelo menos o amor da mulher, como o
instinto ou o porta-bandeira do instinto para o pai do melhor filho
possível”(Simmel, 2001: p.147).
A motivação no amor por outra pessoa se solidariza com seu conteúdo mais
fortemente do que em outro tipo de ação, podendo ser superada, provavelmente, pelo
ódio. O amor é um tipo de necessidade lógica que impõe um olhar atento da beleza pura,
“assim que o seu ser-dado anterior ressurge à visão de uma imagem terrestre” (Simmel,
2001: p.116-153). Segundo Frisby (1998: p.280), Simmel analisa em seus últimos
escritos, as relações entre erotismo e amor, uma contribuição à sociologia das emoções e
uma filosofia das relações humanas, atribuindo ao amor “mais-que-vida”. Em última
instância, considera-se que o amor sexual é um tipo de emoção que não se pode
compreender através de outros fatos. No amor, fala-se da relação entre amor e vida,
sendo o primeiro gerado fora da vida, apesar de buscar nessa “a criação de sua própria
autonomia de vida – para ser mais-que-vida.
O amor não possui uma natureza social, mas apenas como sociação. Os instintos
eróticos despertam nos indivíduos sentimentos diversos, fazendo com que eles ajam por
eles, contra eles e com eles. São esses instintos que levam o indivíduo a formar uma
unidade. Mas o amor o é considerado social em si mesmo, mas apenas na medida em
que transforma um agregado de indivíduos isolados, moldando-os com e para o outro
(Simmel, 1983: p.58-166).
80
O resultado do indivíduo auto-centrado, que busca escapar de sua própria alienação
é discutido em Lasch (cultura do narcisismo), Sennet (tiranias da intimidade), Lipovetsky
(a era do vazio), dentre outros (Vandenberghe, 2005: p.187).
“No diagnóstico simmeliano do tempo presente, a subjetividade excessiva e o
culto da personalidade constituem, tanto quanto a reificação das relações
sociais e a alienação do indivíduo, desvios do ideal da cultura como síntese
bem-sucedida das culturas objetiva e subjetiva” (Vandenberghe, 2005:
p.187).
A auto-realização e a autenticidade levam o indivíduo a caminhos exageradamente
subjetivos. Não é o embate da vida fresca contra uma vida sem cor, mas uma luta contra a
forma propriamente dita ou o seu princípio (Vandenberghe, 2005: p.188).
Não é possível alcançar a plenitude sistemática, a não ser pelo indivíduo de forma
subjetiva (Simmel, 1983: p.70).
“Trata-se de descobrir os delicados fios das relações mínimas entre os
homens, em cuja repetição contínua se fundam aquelas grandes formações
que se fizeram objetivas e que oferecem uma história propriamente dita”
(Simmel, 1983: p.73).
Devem-se retomar alguns temas clássicos para pensar o amor em Simmel, em
especial, os paradoxos resultantes da afinidade do amor. Tais paradoxos desenvolvem-se,
frequentemente, entre os significados objetivos e subjetivos do amor. O amor erótico é
encontrado apenas entre os seres humanos, significando tanto um processo objetivo,
ligado à reprodução da espécie, quanto a questões subjetivas (Bertilsson, 1986: p.23-24).
Na sexualidade, o fundamento fisiológico costuma ser substituído pelo
psicológico, isso porque não se sabe exatamente em que momento uma nova geração irá
surgir. Os membros de certo grupo tentam moldar os seus descendentes seguindo os
81
critérios sociais impostos, através de um comportamento estável desempenhado. Assim, o
comportamento do grupo é solidificado (Simmel, 1983: p.52). Verifica-se atualmente, por
exemplo, que existe uma preocupação mais geral com a escolarização e profissionalização
por parte dos pais, não em relação aos seus filhos, mas também às suas filhas. Neste
caso, haveria uma tendência de quebra dos padrões patriarcais e implicações relacionadas
à sexualidade e às diferenças de gênero.
“É por isso que seria muito melhor supor que atividade sensual e atividade
afetiva nascem seja como dois efeitos dessa unidade na superfície da
consciência, seja de seu encontro com a multiplicidade do natural e do dado,
como fragmentações prismáticas realizadas por nossa organização íntima
sobre a realidade erótica unitária” (Simmel, 2001: p.118).
Outro tema bastante desenvolvido por Simmel, e que trata da relação da
ambigüidade entre o desejo da mulher em relação ao homem foi denominado pelo mesmo
de coquetismo. Em geral, a dificuldade em adquirir algo, bem como o grau de sacrifício
envolvido torna a coisa sedutora e desejável. No coquetismo, ao contrário, há uma
inversão psicológica entre homens e mulheres que define tal modelo.
“Isso significa: não é você que me interessa, mas essas coisas; e ao mesmo
tempo: eu jogo esse jogo na sua frente, mas é o interesse por você que me faz
voltar-me para estes outros objetos. Tal imbricação do ter e do não-ter
simbólicos culmina visivelmente na atitude da mulher voltando-se para um
outro homem que não aquele em quem, na verdade, ela pensa (Simmel, 2001:
p.94)”.
O seduzido deverá sentir a instabilidade do jogo, entre o consentimento e a recusa.
Não se pode esquecer que uma ação definitiva acaba com a arte do coquetismo. A
coqueteria é uma forma lúdica do erotismo. Neste tipo de jogo há uma alternância
feminina entre oferecimento e recusa, significando, no final das contas, que o jogo não
82
deve ser levado as últimas conseqüências, ou seja, a relação não deve ser concretizada. O
coquetismo pode ser considerado como um elemento de sociabilidade.
“O que separa seguramente o ser íntimo (poderíamos dizer transcendental)
do coquetismo do ser íntimo da arte, é que a arte se coloca de saída além da
realidade e dela se liberta por um olhar que dela se desvia absolutamente;
o coquetismo, seguramente, não faz senão brincar com a realidade” (Simmel,
2001: p.104).
A performance da atriz não diz respeito à própria realidade, ao contrário do jogo
estabelecido pela coquete. Diferentemente do que alguns possam supor, o coquetismo não é
arte de mulher leviana, sensual ou estúpida, mas uma relação estabelecida entre os sexos:
“Enquanto um momento tão trágico da existência pode revestir-se dessa
forma lúdica, hesitante, que não leva a nada, a que chamamos coquetismo
com as coisas, compreendemos que essa forma encontra sua realização mais
típica, mais pura, na relação entre os sexos, relação que já dissimula em si a
relação que é talvez a mais sombria e trágica desta existência, sob a forma de
sua suprema embriaguez e de seu mais brilhante atrativo” (Simmel, 2001:
p.111).
A tentativa de agradar ao outro não é suficiente na definição do coquetismo,
devendo existir uma antítese/síntese original do desejo, a partir de atenções e ausências
que representem “simbolicamente ao mesmo tempo o dizer-sim e o dizer-não”. O
paradoxo do coquetismo pode ser compreendido da seguinte maneira: o ter e o não-ter são
inerentes ao amor e podem apresentar-se de forma real ou lúdica (Simmel, 2001: p.95).
A ‘unidade’ da natureza feminina não se assemelha ao comportamento da coquete,
acintosamente dualista. Nas palavras de Simmel (2001: p.103):
83
“Possuir justamente a marca do provisório, do incerto, do hesitante tornou-se
– por uma contradição lógica que é, ao mesmo tempo, realidade psicológica –
seu encanto definitivo, sem a menor interrogação que além do momento
presente. É por isso que as conseqüências do comportamento da coquete de
que à sua própria segurança interna correspondam insegurança e
desenraizamento no homem, muitas vezes desesperadamente entregue a um
talvez – invertem-se aqui inteiramente em seu contrário”.
Outro ponto estudado por Simmel, quando da explicação entre a relação entre
homens e mulheres foi o casamento. Para ele, a evolução do casamento poderia ser
justificada a partir de sua eficácia social, através da observação da força das gerações
seguintes, ao contrário dos grupos desprovidos de interesse pessoal, a exemplo de certo
tipo de assistência comunista, ou daqueles entregues às forças isoladas da mãe. Nos mais
variados povos, o casamento é realizado com a intenção de propagação da espécie,
existindo em grande medida, por causa de seus descendentes. A poligamia e a poliandria
parecem ter se desenvolvido com certa liberdade e condições culturais:
“É possível que o ser humano, do mesmo modo que muitos animais, em
particular a maioria dos pássaros, seja monógamo por natureza e tenha
chegado a uma liberdade de relações sem entraves, à poliandria ou à
poligamia, em virtude das circunstâncias especiais, como ocorrem em todos
os domínios para modificar ou desgarrar as aspirações naturais” (Simmel,
2001: p.26-36).
O casamento reúne um conjunto diverso de interesses, abrangendo as dimensões
econômicas, sociais, religiosas e pessoais. Nas relações familiares primitivas,
independente de serem consideradas casamento ou não-casamento, o núcleo fixo é
estabelecido entre mãe e filho, e não entre marido e mulher. Atualmente, o amor
individual é o responsável pela manutenção do casamento, estando ligado à noção de
fidelidade. A manifestação do sentimento afetivo induz ao casamento, ao contrário de
84
antes, onde se esperava que o amor surgisse no decorrer do vínculo conjugal. Assim, o
sentimento afetivo deixou de ser efeito, transformando-se em causa do relacionamento
amoroso (Simmel, 2004: p.56-68).
A profundidade do significado de um casamento pode ser rompida de forma
imperceptível e não verbalizada, de maneira que nem mesmo a maior vontade apaixonada
do casal poderá reverter o que foi perdido (Simmel, 1983: p.142). A oposição entre o
homem e a mulher possibilita a união entre eles. Têm-se duas alternativas no casamento:
aceitá-lo ou recusá-lo. Portanto, não se pode modificá-lo. Ele é um dado da realidade,
sendo pré-determinado socialmente (Wolff, 1964: p.130-131).
A prostituição dirigida à satisfação do homem estaria ligada à existência do
casamento e perderia o sentido apenas quando o amor fosse totalmente liberto, com o fim
da oposição entre relações legítimas e ilegítimas (Simmel, 2001: p.10). A venda feminina
ao homem, tanto na indiferença masculina presente no casamento quanto de maneira mais
furtiva é inaceitável porque o prazer pessoal é trocado pelo valor impessoal do dinheiro.
Se esta relação desqualifica as mulheres em princípio, por um lado, pode “justamente tê-
las elevado, por outro lado, na estima dos homens”. Nas palavras de Simmel (2001: p.38-
44):
“Portanto, embora a compra de mulheres exprima no imediato sua opressão,
sua exploração, sua reificação, ainda assim elas adquiriram valor com isso,
primeiro para o grupo parental que recebia o preço de sua venda, depois
para o marido, aos olhos de quem representavam um sacrifício relativamente
elevado, de modo que, em seu próprio interesse, ele devia tratá-las com
deferência”.
É quando a tradição define um valor único para as mulheres que se transformam
em mercadoria, que uma desvalorização delas, a exemplo de alguns povos africanos. O
85
custo masculino do seu eu é o menor possível, diferentemente da mulher, que apresenta
um comprometimento máximo, de forma geral (Simmel, 2001: p.45-55).
“Admitir-se-á em todo caso, por enquanto, que a formação e os direitos das
mulheres, que estagnaram por tanto tempo numa desigualdade excessiva em
relação aos homens, devem transitar pelo estágio de certa igualdade exterior,
antes que se edifique uma síntese superior, ou seja, o ideal de uma cultura
objetiva enriquecida com a nuança que a produtividade feminina representa”
(Simmel, 2001: p. 89).
A atividade feminina ligada à produção doméstica pode ter limitado as mulheres na
criação de objetos. Em decorrência deste fato, pode-se dizer que a mulher é mais
absorvida por cada situação em particular do que o homem. O trabalho doméstico precisa
ser repetido dia após dia. O alimento que é produzido durante parte do dia é rapidamente
consumido. Os interesses são momentâneos e não resistem ao tempo, por não
apresentarem resultados substanciais para além do tempo presente (Simmel, 2001: p.89-
90).
As relações de gênero são marcadas por certa tensão porque o indivíduo não é
capaz de absorver na cultura subjetiva, todos os elementos provenientes da cultura
objetiva. A tragédia da modernidade se dá a partir da separação entre a cultura objetiva e a
cultura subjetiva, como resultado da incapacidade humana em combinar essas duas
realidades. Mas esta posição é modificada em seus ensaios “Female culture” e “o relativo
e o absoluto no problema dos sexos”. A tragédia da modernização passa a ser a tragédia
dos homens, não a do gênero humano. O reconhecimento da sociedade moderna das
características do gênero feminino seria a saída encontrada pelo autor na reavaliação da
importância feminina, além de reforçar a posição das mulheres nessa sociedade (Tijssen,
1991: p.204-208).
86
Não é porque toda a cultura objetiva teria sido criada pelos homens, possuindo
portanto, características masculinas que eles deveriam ser considerados superiores às
mulheres. Diferentemente dos homens, as mulheres teriam a capacidade de acessar o reino
do absoluto sem o auxílio da racionalidade predominantemente masculina. Tais diferenças
de gênero são expressas por Simmel da seguinte forma: “para o homem, existe a idéia de
que a sexualidade é algo a ser feito. Para a mulher, é um modo de ser”. Portanto, a
sexualidade feminina seria menos carnal que a masculina (Tijssen, 1991: p.204-208).
Para Simmel, a objetividade é uma das principais características do homem, em
oposição à mulher. Como os seus pressupostos são essencialistas, defende um feminismo
diferencialista que se aproxima da “terceira onda” ou feminismo contemporâneo. A ênfase
desse paradigma é que fosse criada uma cultura feminina, juntamente com a cultura
masculina existente. Mas essa cultura feminina poderia surgir de forma parcialmente
contraditória considerando que a cultura objetiva é masculina (em essência) e também, a
necessidade da masculinização da mulher ou a “desdiferenciação” da cultura moderna
(Vandenberghe, 2005: p.173-174).
Simmel realizou algumas considerações acerca do movimento feminista ocorrido
na Alemanha. Com a moderna divisão do trabalho e a nova tecnologia, as mulheres de
classes mais altas deixaram de exercer algumas atividades domésticas. Mas isso não
resultou numa ampliação da capacidade feminina, que a mulher dessas classes
continuou a ocupar apenas o mundo privado ou familiar. A reivindicação das mulheres da
classe trabalhadora não poderia ser a mesma daquelas de classe média. No primeiro caso,
a inserção no mercado de trabalho significava um problema, que as obrigações
domésticas continuaram a ser atividades destinadas às mulheres. No segundo caso, o
87
mercado de trabalho significava a liberação social. Dois conceitos desenvolvidos por
Simmel podem ser utilizados: liberdade social” e “liberdade individual”, considerados
elementos excludentes. A “liberdade social” da mulher trabalhadora implicava na falta de
“liberdade individual” da mesma, considerando a falta de tempo para o desenvolvimento
de sua subjetividade e individualidade. Por outro lado, as mulheres de classe média não
eram aceitas no espaço público, mas tinham a sua liberdade individual em grande medida
preservada (Waizbort, 2006: p.257-258).
A idéia utópica de que a mulher pudesse criar um mundo apartado dos homens
através da criatividade que lhe é peculiar – poderia contribuir para o crescimento da
civilização. A participação da mulher no desenvolvimento da cultura teria sido irrelevante
porque se tratava de uma cultura historicamente masculina. É preciso estar atento para o
fato de que a participação da mulher nas universidades e no funcionalismo público, por
exemplo, não era aceita quando Simmel elaborou tais discussões acerca das diferenças de
gênero (Waizbort, 2006: p.259-261).
Para analisar a importância da obra de Simmel nos estudos feministas
contemporâneos, Witz (2001: p.354-367) questiona algumas idéias desenvolvidas em
estudos anteriores, dentre elas: 1. a idéia de que mulheres e homens têm essências
distintas, ou seja, características próprias independente do contexto social e 2. o seu
interesse pela situação extremamente difícil da mulher, refletida na dominação masculina.
Além disso, ela também desenvolveu um argumento de que a imaginação sociológica de
Simmel foi o seu fracasso. Ao final, considera que a leitura simmeliana, sociológica e
moderna, reforça a posição do controle masculino. Quando analisa as estratégias textuais
de Simmel, Witz não se pergunta como essas refletem o compromisso associado com
88
formações discursivas mais amplas, mas antes como elas induzem uma ontologia
masculina ‘do social’. Na medida em que Simmel considera que o homem tem
características essencialmente objetivas, a questão a ser levantada é como as mulheres
poderão escapar da condenação perpétua de inautenticidade. A única saída seria
“estabelecer uma autonomia do princípio feminino”, a fim de resgatar a mulher de sua
radical ontologia dualista.
A natureza essencialmente masculina e feminina é questionada por Simmel no
contexto da modernidade. Essa sociologia de gênero sugere que as mulheres poderiam
desenvolver apenas algumas atividades objetivas e que não deveria haver uma repetição
da forma com que os homens desempenhavam as mesmas atividades. A participação
objetiva nessas atividades poderia destruir a unidade da existência feminina. O
culturalismo feminino é antecipado por Simmel porque ele fala no domínio masculino da
cultura moderna e propõe uma compensação para as mulheres. As mudanças nas relações
de gênero foram tratadas por Simmel como um fenômeno da teoria da modernidade, tendo
sido um de seus elementos centrais. A intuição e a emoção femininas são valorizadas por
Simmel, ao contrário da cultura ocidental como um todo, que inferioriza as mulheres por
serem possuidoras dessas características. A intuição é considerada um instrumento
importante na compreensão de situações mais complexas e ambíguas. Além disso, ela
seria o contraponto da tendência dissociativa do homem (Tijssen, 1991: p.203-215).
A mudança da interpretação de Simmel acerca da tragédia da cultura, inicialmente
humana e posteriormente masculina, sugere o reconhecimento da diferença e da
importância da mulher no mundo moderno. Mas a capacidade da mulher de alcançar o
“reino absoluto” pode resultar num abismo entre homens e mulheres, refletido no tipo de
89
confiança que se pode estabelecer nas relações amorosas. Por outro lado, pode-se supor
que esta confiança continuaria a existir, que o conflito é considerado um elemento
constituinte das relações sociais. Neste caso, novas formas de sociação iriam surgir.
II.3. Confiança, Gratidão e Fidelidade: o tríplice sustentáculo do amor
Para Simmel, as decisões dos indivíduos são escolhas conscientes, que apresentam
certo risco, já que cada decisão corresponde à totalidade da vida definida a cada momento.
Apesar do caráter individual da escolha, essa não deverá se opor à lei universal, sob o
risco da escolha não ser considerada “humana” (Vandenberghe, 2005: p.196). As
preocupações de como as formas sociais persistentes se somam aos conteúdos psíquicos
passageiros, sem jamais misturarem-se não significa que Simmel tenha negligenciado a
questão do risco. A antecipação das decisões é necessária porque permite que elas sejam
realizadas de forma mais segura e equilibrada (Cohn, 1998: p.05).
As idéias de Simmel sobre confiança foram interpretadas por Möllering (2001:
p.403-417) dentro do que ele chamou noção simmeliana de confiança. Tal modelo,
pensado como um tipo de ou crença forte tem início com um processo mental formado
por três elementos: expectativa, interpretação e suspensão, considerando que a ligação
entre as bases de confiança e a expectativa do estado de confiança é mais fraca do que se
pode supor. O resultado final do processo, que precede a combinação entre interpretação e
suspensão, é chamado expectativa, podendo ser favorável (havendo confiança) ou
desfavorável (quando desconfiança). Já a interpretação captura a idéia de que a
90
confiança (boas razões) baseia-se na experiência do mundo vivido. O mecanismo que
rompe com o desconhecido, proporcionando um salto de confiança, através do
conhecimento interpretativo momentaneamente certo, é chamado suspensão. As
abordagens hermenêuticas e reflexivas são utilizadas na definição de confiança, tanto
conceitualmente quanto empiricamente (Möllering, 2001: p.403).
As dualidades apontadas por Simmel, tais como conhecimento-ignorância e
interpretação-suspensão, servem para apresentar uma posição reflexiva das relações
humanas e da sociedade. Para o autor, a integração da sociedade é garantida através da
confiança, tendo essa a função de apresentar uma hipótese certa o bastante para servir de
referência. Logo, a confiança representa “uma força que trabalha pelos indivíduos e
através deles, mas ao mesmo tempo, pela associação humana de forma geral e através
dela”, em todos os níveis da sociedade. Simmel referia-se à confiança como um tipo fraco
de conhecimento indutivo porque acreditava que ela deveria ser tão forte quanto à
racionalidade profunda ou à observação pessoal e promotora das relações sociais
(Möllering, 2001: p. 405).
Um elemento quase religioso da confiança, relacionado ao crédito, é encontrado na
sócio-psicologia simmeliana. Esse elemento não diz respeito ao conhecimento, mas a um
estado da mente:
“Para acreditar em alguém, sem adicionar ou equilibrar, o que alguém pensa
a seu respeito, é empregar um idioma refinado e profundo. Ele expressa o
sentimento que existe entre a idéia de um ser e o ser por si mesmo, uma
conexão e unidades definidas, certa consistência na nossa concepção, uma
segurança e falta de resistência na rendição do ego para esta concepção, que
pode se apoiar nas razões particulares, mas não é explicada por elas”
(Möllering, 2001: p.405-406).
91
Segundo Simmel, o ‘elemento adicional’ não se restringe a fé religiosa:
“Por outro lado, até nas formas sociais de confiança, não importando
exatamente e intelectualmente, fortes dos que possam parecer pode ainda
existir alguma adição afetiva, também mística, a ‘fé’ do homem no homem.
Talvez, o que tem sido caracterizado aqui é uma categoria fundamental da
conduta humana, que retoma o senso metafísico de nossas relações e que é
realizada de forma meramente empírica, acidental e fragmentada pela
consciência e através das razões particulares da confiança” (Möllering,
2001: p.406-407).
Möllering (2001: p.407) utiliza o conceito de suspensão como o elemento de
religiosa conceituado como um mediador entre as bases da confiança reflexiva e
interpretativa (“boas razões”) e as expectativas momentâneas na confiança.
A interpretação de Misztal a respeito de Simmel é em muitos aspectos similar à de
Giddens, principalmente quando ela destaca o elemento de através das boas razões”.
De forma simplificada, Simmel fala da confiança como uma combinação entre boas razões
e fé (Möllering, 2001: p.411).
Segundo Simmel, “a confiança ‘uma hipótese bastante certa para servir
como uma base da prática de conduta’, mas como tal é ‘realizada de uma
maneira meramente empírica, acidental e fragmentária, através da
consciência e das razões particulares da confidência’, e ‘pode dar suporte às
razões particulares, mas isso não é explicado por eles’” (Möllering, 2001:
p.412).
A confiança é a base de microrrelações que orientam a prática cotidiana. Sendo
assim, a vida é sustentada, em boa medida, por fenômenos psicossociais, como por
exemplo, a fidelidade e a confiança envoltas em sentimentos e normas. Outrossim, a
confiança é um sentimento mais visível na intercambialidade mercantil. A idéia de crédito,
no sentido econômico, é expandida na sociedade moderna. As instituições sociais e as
92
pessoas precisam dar e receber crédito, ou seja, precisam confiar e ser confiáveis
(Tedesco, 2006: p.147).
Conclui-se que a confiança é tida como um sentimento que complementa a
gratidão, que implica em um tipo de antecipação moral, e não em uma memória moral
(Cohn, 1998: p.17). A gratidão tende a estender uma relação que poderia ter fim,
juntamente com o ato de dar e receber. As suas diversas ramificações servem como
importantes instrumentos de coesão social. Além disso, ela vai além do simples
reconhecimento de uma dádiva
23
, tocando a consciência dos indivíduos de forma a
demonstrar que as relações não se limitam às retribuições realizadas (Simmel, 2004: p.43-
47).
Inicialmente, a gratidão pode ser vista como um elemento que alimenta a ordem
legal. As relações são definidas a partir da noção de dar e receber, de forma equilibrada. A
equivalência das diversas dádivas ocorre por meio da força. Em outras situações, por outro
lado, a lógica de equivalência e força não tem lugar. Neste caso, a gratidão surge de forma
completa, ou seja, ela atua independente da imposição, através da reciprocidade
interacional. Pode-se dizer que a gratidão é “a memória moral da humanidade”, de caráter
mais prático e impulsivo, o que a diferencia da fidelidade. A gratidão é capaz tanto de
produzir novas ações como de permanecer como um elemento interno (Simmel, 2004:
p.42). Ela serve de elemento agregador da alma, em face ao estímulo mais tímido, sendo
improvável que possa garantir por si só, uma nova ponte ou ligação. Essa construção de
pontes sociais poderia ser viabilizada também através da fidelidade. Neste caso, existiria
23
Em Simmel, o paradigma da troca é substituído pelo paradigma do dom, mesmo que a originalidade do
último seja inegavelmente atribuída a Marcel Mauss (Cohn, 1998: p.03).
93
uma “indução” do sentimento gerada pela proximidade e continuidade da relação (Cohn,
1998: p.07-08).
A existência da sociedade, tal como ela é concebida, estaria ameaçada sem a idéia
de fidelidade, vista como uma predisposição psicológica que age de dentro para fora, ao
contrário da fidelidade no casamento contratual, comportamento estritamente externo que
significa apenas a negação da não fidelidade (Simmel, 2004: p.31-33).
“A preservação das unidades sociais é psicologicamente sustentada por
múltiplos fatores, de índole intelectual e prática, positiva e negativa. A
fidelidade é o factor ‘afectivo’ entre eles, ou melhor, é ela própria sob a forma
de sentimento, na sua projecção sobre o plano de sentimento. A qualidade deste
sentimento será aqui avaliada apenas na realidade psíquica, quer a aceitemos
quer não como uma definição adequada da idéia de fidelidade” (Simmel, 2004:
p.33-34).
Ainda que os laços afetivos tenham sido gerados por razões externas ou por
questões íntimas não relacionadas com a questão da fidelidade, pode-se desenvolver “a
sua própria fidelidade”, sendo acompanhada de estados sentimentais sólidos, “per
subsequens matrimonium animarum
24
. O matrimônio celebrado por interesses familiares
e sociais pode servir como exemplo aqui. Por outro lado, o sentimento pode existir.
Neste caso, a fidelidade teria certo efeito retroativo, sustentada pelos motivos psíquicos
que deram início à relação (Simmel, 2004: p.35).
A lealdade do renegado serve como um exemplo específico porque se leva em
conta a sua experiência anterior. O rompimento com o passado ou a antiga relação
alimenta o novo vínculo afetivo, ao mesmo tempo em que solidifica tal afastamento. Nos
casos menos irrevogáveis, não se tem a consciência de fidelidade tal como vista no
24
Em latim: “mediante o subseqüente casamento das almas”.
94
renegado (Simmel, 2004: p.37). A antiga decisão de fuga das mulheres que não tinham o
consentimento familiar para casar-se tornava a sua situação irremediável. Neste sentido, a
fidelidade estabelecida entre ela e o seu marido tenderia a ser mais forte do que os
vínculos matrimoniais aceitos socialmente. Um outro exemplo, nos dias atuais seria a
permanência do cônjuge com a(o) amante se descoberto, quando não existe a possibilidade
de perdão pela traição. Em geral, os homens desejam manter a relação com a amante
porque preferem permanecer com uma companhia, ao contrário do comportamento geral
das mulheres, que dizem precisar de um tempo mais longo para reorganização de suas
vidas afetivas. Para elas, a confiança no amor deverá ser reconstruída aos poucos. É claro
que não se trata de uma regra fixa e que outros elementos são importantes, tal como a
possibilidade de cada um no mercado amoroso”, disposições psicológicas e o ânimo de
correr o risco novamente, no caso das mulheres independentes e ousadas.
A fidelidade não pode servir para alimentar o sentimento de posse do outro e nem
para confortar ou cuidar do outro como um bem objetivo e extrínseco. Deve-se então, agir
de forma a preservar a relação com o outro. Pior do que a falta de amor e o envolvimento
social é a ausência de fidelidade. Mas não se pode depender da lei, que é o meio mais
eficiente de aglutinar as relações variáveis internamente, a exemplo do casamento, que
possui um padrão mais rígido. A fidelidade permite que se crie uma sensação de
estabilidade na relação estabelecida na vida interna (Simmel, 2004: p.38-39).
95
Considerações finais
Deve-se lembrar que o conflito é um elemento integrante das interações humanas,
e como tal, não seria o elemento que inviabilizaria a confiança no amor, pelo contrário, o
alimentaria. Se a ponte é a metáfora utilizada para a unificação das relações sociais, e a
confiança é um de seus elementos, seria preciso enfatizar outros dois conceitos: gratidão e
fidelidade. Enquanto o primeiro apresenta um caráter mais empírico, sendo considerado
como “elemento agregador da alma”, o segundo corresponde às predisposições
psicológicas, ambos importantes na definição da confiança. Esses três elementos são
reconhecidos como partes da formação da ponte social. Com a combinação adequada
deles, haveria a possibilidade do reconhecimento recíproco entre o homem e a mulher,
onde a força de atração seria movida pelas diferenças entre eles.
Esta ponte que possibilitaria a confiança nas relações amorosas entre homens e
mulheres pode ser relacionada com a teoria da “lei individual” – uma teoria moral baseada
em Nietzsche e Bergson desenvolvida por Simmel ao final de seus escritos. A idéia
central era a de que haveria uma “lei individual” forte o suficiente para apartar o pessoal e
o universal, a moral e a ética, através de uma personificação da lei moral universal que
considera a variedade individual de forma ampla e plena, atingindo uma “universalidade
individual, feita sob medida, por assim dizer” (Vandenberghe, 2005: p.62). Essa idéia é
apenas a primeira, das três interpretações possíveis da perspectiva simmeliana apontadas
aqui, embora seja, a mais otimista delas.
A indivisibilidade do amor é explicada porque se ama a um indivíduo em especial,
mais do que aos indivíduos em geral, diferentemente do ato sexual em si mesmo. No amor
96
absoluto, a sexualidade é apenas um dos aspectos da união total, ao contrário do amor
geral, encontrado na sexualidade. Mas esta individualização extrema do amor,
acompanhada por uma lógica secreta, costuma ser consumida pelo mundo circundante e
transformada em tragédia. Pode-se apresentar o amor como uma teoria do
desenvolvimento das formas sociais, segundo uma perspectiva filosófica frequentemente
trágica (Bertilsson, 1986: p.24).
A relação inversa entre “liberdade social” e “liberdade individual” pode ser útil à
compreensão da segunda possibilidade de confiança nas relações amorosas. A necessidade
de alimentar o amor através do afastamento entre os casais aliada à preocupação em
desempenhar vários papéis, através do estabelecimento de relações impessoais poderia
resultar num afastamento ainda mais severo entre homens e mulheres. A tragédia da
modernidade poderia ser encenada a partir da confiança nas relações amorosas. As
diferentes características entre homens e mulheres, no que diz respeito à sexualidade,
sendo vista pelos homens como “algo a ser feito”, e pelas mulheres como um “modo de
ser”, levariam os homens a serem mais carnais do que as mulheres. Por outro lado, o
excesso de objetividade e o culto extremo da personalidade seriam os elementos dessa
tragédia, resultando na reificação do amor e na destruição do singular e do absoluto. Ao
final, um sujeito alienado e narcísico vivendo num estado solipsista. As mulheres
poderiam adotar o mesmo padrão de comportamento masculino, levando em conta que a
cultura objetiva foi criada pelo homem e que é tida como essencialmente masculina. Neste
caso, os homens e as mulheres cairiam no mesmo estado solipsista.
Uma terceira opção seria a da tragédia do homem na cultura. Neste caso, a
impossibilidade masculina em combinar os elementos objetivos e os subjetivos
97
representaria a sua própria tragédia. A intuição feminina seria capaz de tocar o reino do
absoluto”, mas a confiança nas relações amorosas estaria mais uma vez fadada ao
fracasso, ao menos entre os casais heterossexuais. A mulher inventaria o amor, o homem,
a solidão.
98
CAPÍTULO III
“LUTEMOS, MAS SÓ PELO DIREITO AO NOSSO ESTRANHO AMOR”:
FOUCAULT E AS POSSIBILIDADES DE SUBVERSÃO NO AMOR
A idéia de que a história é o reflexo do passado
25
, que existe verdade objetiva
26
,
que a sexualidade é produto da natureza, que pode existir relação independente entre saber
e poder
27
, e que os indivíduos são capazes de compreender e inverter a gica do uso
repressivo do poder
28
são apenas alguns conceitos e teorias que foram refutados por
25
Segundo Balbus (1987: p.133), a negação de conceitos como “história contínua”, “totalidade” e sujeito
em fusão” só existem no trabalho de Foucault como discurso. Há um outro discurso – latente – que se baseia
nesses mesmos conceitos. Quando Foucault afirma que a sociedade ocidental nada mais é do que “a
sucessão de diferentes complexos força/conhecimento, diferentes regimes de verdade”, aceita uma
continuidade histórica: “a vontade de força/conhecimento através do qual ele (o homem) é criado e
transformado”.
26
Existiria uma auto-condição no trabalho de Foucault porque ao mesmo tempo em que afirma que a
verdade objetiva não existe mas apenas discursos – considera sua própria análise objetiva (Morrow, 1995:
p.19).
27
Foucault declarou numa entrevista, pouco antes de sua morte, que existe uma relação mais complexa entre
saber e poder, explicitada anteriormente como uma relação de obrigatoriedade (Morrow, 1995: p.30).
28
Esta idéia de que o sujeito é incapaz de escapar dos mecanismos de controle foi modificada em seus
últimos trabalhos. Apesar disso, pesa sob o autor a crítica severa acerca da morte do sujeito.
“Não quero sugar todo o seu leite
Nem quero você enfeite do meu ser
Apenas te peço que respeite
O meu louco querer.”
Caetano Veloso
(O meu estranho amor)
99
Foucault nos seus primeiros trabalhos. Algumas posições foram sustentadas durante toda a
sua carreira, outras, no entanto, sofreram modificações bastante significativas.
Considerando a extensão e as críticas das mudanças adotadas no trabalho de
Foucault, bem como o interesse específico desta tese confiança nas relações amorosas
a utilização de sua obra estará restrita aos três volumes da História da sexualidade, além
da publicação de algumas de suas entrevistas e de cursos por ele ministrados, que
contribuam para a elucidação do tema proposto.
Foucault conseguiu escrever quatro, dos seis volumes que desejava de História
da sexualidade, apesar do último escrito não ter sido publicado. Em História da
sexualidade I – escrito em 1976 ele pretendeu compreender a criação histórica da
sexualidade moderna. Marcada por discursos é considerada também uma história de
saber-poder. O discurso estaria ligado ao saber-poder, sendo impossível falar em um sem
se remeter ao outro. A sexualidade não é considerada natural, mas criada a partir de
discursos que dizem o que ela é ou não é, como uma forma de saber-poder. Os outros dois
volumes, escritos oito anos mais tarde, apresentam uma preocupação menor com a história
de uma sexualidade construída socialmente. O foco central recai sob o uso da sexualidade
como objeto de compreensão da subjetividade (Morrow, 1995: p.15-18).
A última fase da obra de Foucault faz renascer o sujeito, sepultado nos seus
primeiros trabalhos. No primeiro volume da História da sexualidade, havia uma relação
inevitável entre o saber (arqueologia do saber) e o poder (genealogia do poder). Nos
outros dois volumes da História da sexualidade, uma outra questão foi acrescentada a sua
obra: as práticas que fazem o sujeito, ou a auto-experiência do sujeito sexual (Cardoso Jr.:
2005, p.343).
100
O uso dos prazeres diz respeito à forma com que a atividade sexual foi
problematizada por médicos e filósofos, nos textos gregos e latinos do século IV a.C., na
cultura grega clássica. O cuidado de si trata dessa problemática nos textos dos dois
primeiros séculos da contemporaneidade. Por fim, a formação da doutrina e da pastoral da
carne é encontrada no quarto volume: As confissões da carne (Foucault, 1998: p.16).
Neste trabalho, dois conceitos centrais serão relacionados ao final do capítulo:
amor e confiança nas relações amorosas. Para tanto, esse texto será dividido em duas
seções: a primeira (III.1), que trata das formas de viver e da sexualidade no mundo antigo
para que se possa compreender as ligações e refutações efetuadas pelo autor entre a
antiguidade greco-romana e a modernidade. A segunda seção (III.2) que se destina ao
estudo da sexualidade moderna estando subdividida entre: III.2.a) os campos de saber e
os tipos de normatividade sexual moderna e III.2.b) a sexualidade e as formas de
subjetividade
29
.
III.1. Das formas de viver e da sexualidade na antiguidade
O regime que assumiu um valor quase canônico foi encontrado no livro IV das
Epidemias e trata da forma de se viver no mundo antigo. A dieta balanceada não se
restringiria à comida ou à bebida. O sono e as relações sexuais (aphrodisia) também
deveriam ser “medidos” (Foucault, 1998: p.93). Esse levantamento das formas de vida na
29
Deve-se lembrar que não em Foucault uma discussão específica sobre confiança, havendo a
necessidade de construí-la ao longo de sua leitura sobre a sexualidade.
101
antiguidade serviria para negar a existência de uma linearidade histórica, bem como para
propor comparações dessa com a sciencia sexualis do mundo moderno.
As relações das técnicas de si com o regime das Aphrodisia foram discutidos a
partir de quatro exemplos:
Na interpretação dos sonhos
: não se trata de uma definição moral, mas
demonstra um jogo de correlações entre as relações sexuais e a vida
social – formado a partir de significações positivas ou negativas as quais se
referem os sonhos. Pode-se falar ainda em um sistema de análises
diferenciais que estabelece uma hierarquia de um conjunto de atos sexuais
(Foucault, 1997: p.113).
No exemplo dos regimes médicos: o problema central da sexualidade diz
respeito ao seu momento e a sua freqüência. A forma da relação sexual é
pouco citada. Os estudos dos regimes propriamente ditos apresentam uma
preocupação com a vida do indivíduo, orientando-o para o que havia de
nocivo nas relações sexuais (Foucault, 1997: p.113-114). Os médicos
tinham a tarefa de cuidar não do corpo como também dos desvios do
espírito. Dentre esses desvios, encontrava-se a loucura amorosa ou das
paixões – energia contrária à razão (Foucault,1999b: p.61).
Em relação à vida dos casados
: pode-se dizer que havia a condenação do
adultério, considerando como fundamental a função de procriação do
casamento.
102
Na escolha dos amores: Plutarco destacava que poderia existir
reciprocidade no prazer entre os sexos opostos
30
(Foucault, 1997: p.113-
115).
Em relação aos sonhos, podem-se citar os “teoremáticos” – que antecipam o
acontecimento de uma ação futura e os “alegóricos” que dizem respeito a uma relação
indireta, ou seja, onde as imagens deveriam ser interpretadas. O sonho com prostitutas,
por exemplo, poderia significar o prenúncio simbólico da morte, através do desperdício do
esperma que esse tipo de atividade sexual não era exercido com o intuito de gerar
descendente. Segundo Artemidoro, existiria uma separação entre os sonhos daqueles que
tinham uma alma virtuosa e dos que possuíam uma alma comum. Os sonhos teoremáticos
e os alegóricos ocorriam com maior freqüência no primeiro ou no segundo caso,
respectivamente (Foucault,1999b: p.19-28).
A atividade sexual era menos importante do que a preocupação com os alimentos
ingeridos na reflexão dietética. Além disso, não havia uma preocupação com as formas
estabelecidas nas relações sexuais, mas com a freqüência e o contexto em que deveriam
ocorrer (Foucault, 1998: p.104-105).
A preocupação central dos gregos na reflexão moral sobre o comportamento sexual
era definir o uso dos prazeres. Tinha-se uma inquietação muito mais “dietética” do que
“terapêutica”. O equilíbrio da alma estava condicionado ao equilíbrio do corpo, daí a
preocupação em mantê-lo saudável. A dietética era considerada uma técnica de existência
30
Por outro lado, existia uma dificuldade em justificar as relações sexuais entre os homens. O diálogo do
pseudo-Luciano aborda o tema a partir da relação que estabelece entre as relações sexuais e a amizade, a
virtude e a pedagogia (Foucault, 1997: p.115).
103
porque ia além dos conselhos médicos. O regime proposto pelos gregos transformava
tanto o corpo quanto a alma (Foucault, 1998: p.89-97).
A ação moral não era reduzida simplesmente à obediência a um conjunto de leis e
valores. Além da relação estabelecida com o real, tinha-se uma “consciência de si”,
definida a partir de “modos de subjetivação”. Não se poderia falar em ação moral sem
conectar os elementos reais da ação às formas de atividades sobre si (Foucault, 1998:
p.28-29). Além disso, deve-se dizer que não existia um sujeito moral universal. As
práticas de sujeição ou as práticas de liberação a exemplo do mundo greco-romano
constituem esse sujeito.
O debate médico e filosófico da associação entre a atividade sexual e a morte
reaparece na própria idéia de reprodução, como forma de minimização da finitude
humana. Tanto em Platão quanto em Aristóteles, gerar descendentes era uma forma de
imortalizar-se. A preocupação com o vigor do corpo com fins reprodutivos para a
união entre os sexos era definida pela idade. Para as mulheres, o casamento deveria
ocorrer por volta dos dezoito anos, e para os homens, com trinta e sete anos ou menos
(Foucault, 1998: p.111-121).
Os movimentos do ato sexual e a expulsão do sêmen geravam alterações no corpo,
deixando-o mais aquecido ou resfriado; ressecado ou úmido. Assim, a atividade sexual era
considerada importante na medida em que modificava o equilíbrio do corpo. Devia-se
pensar nas combinações ideais entre os elementos do mundo exterior e o corpo humano.
Desta forma, a reflexão dietética não definiria um padrão ideal em relação ao mero de
vezes com que a atividade sexual poderia ser realizada e nem ao ritmo que se deveria
estabelecer. Por outro lado, pensava-se que o excesso da prática sexual costumava trazer
104
doenças e acometer os recém-casados e as pessoas propensas às relações sexuais com um
alto nível de freqüência (Foucault, 1998: p. 105-109).
Os atos injustos praticados durante toda a vida e, especialmente, no período da
fecundação, poderiam alojar-se na alma e no corpo da criança gerada, tornando-a
miserável. A qualidade do sêmen produzido dependia da forma com que o indivíduo
cuidasse do seu corpo e da sua alma, como uma imagem antecipada do filho desejado. A
relação sexual para as mulheres grávidas era considerada importante porque evitava
dificuldades no parto. Por outro lado, não deveria haver excessos, para que o bebê não
corresse o risco de nascer fraco ou o feto não sofrer um aborto espontâneo (Foucault,
1998: p.111-130).
Galeno classificava o ato sexual como um tipo de convulsão que acontecia quando
uma tração do nervo sobre o músculo e que tinha como princípio “certo estado de
secura (que esticava os nervos como uma corda deixada ao sol) ou de repleção (que ao
inflar os nervos os encurtava e puxava exageradamente sobre os músculos)” (Foucault,
1999b: p.114).
O ato sexual poderia deixar o organismo vulnerável e produzir uma série de
sintomas polimorfos. É por isso que a virgindade era considerada uma escolha, um estilo
de vida que privilegiava o cuidado de si, através da forma elevada de existência. Os efeitos
decorrentes da atividade sexual poderiam ser terapêuticos, mas também produzir um
conjunto de patologias. Quando se referia aos efeitos curativos, Galeno dizia que o ato
sexual predispunha a alma à tranqüilidade deixando o homem furioso ou melancólico
num estado mais sensato e arrefecia o ardor descomedido mesmo daquele que
mantivesse relação sexual com outra mulher (Foucault, 1999b: p.121-122).
105
Em relação à vida dos casados, uma imprecisão documental das práticas
matrimoniais no mundo helênico e romano relativas às diferentes regiões e às diversas
camadas sociais. A República e as Leis de Platão, A Econômica, de Xenofonte, Política e
a Ética de Nicômaco e a Econômica do pseudo-Aristóteles foram os grandes textos
clássicos que trouxeram reflexões sobre o casamento. Esses trabalhos discutiam não as
questões relativas à gestão da casa e à criação dos filhos, mas tratavam também das
relações pessoais dos casais, particularmente valorizadas (Foucault, 1999b: p.149-150).
Na sociedade pagã, alguns dados históricos são relevantes. Em primeiro lugar, o
casamento não era um ato que demandava a intervenção do poder público, mas uma
transação privada entre dois homens, o pai e o futuro marido. Além disso, as práticas
matrimoniais dependiam dos interesses das partes e envolviam “efeitos de direito”, apesar
de não serem de natureza jurídica. O casamento era uma prática de poucos
31
e
correspondia a interesses privados, tais como a transmissão do patrimônio aos
descendentes e a perpetuação da casta dos cidadãos. Em seu modelo antigo, o casamento
era efetivado, pois envolvia questões relativas ao direito apesar de seu caráter privado
ou à posição social definição de herdeiros, mudança do nome, junção dos bens
econômicos (Foucault,1999b: p.79-81).
Os estóicos eram a favor do casamento, ao contrário dos epicuristas, que se
opunham, em princípio, a tal idéia. Para os primeiros, o casamento era um ato natural e
racional, não uma escolha guiada pelo desejo, mas antes de tudo, um dever moral. A
diferença entre os epicuristas e os estóicos estava localizada entre a conjuntura e o dever
31
Apesar da constatação do casamento como uma prática de poucos, observou-se, em inscrições sepulcrais,
uma relativa estabilidade das relações matrimoniais em espaços não aristocráticos, e ainda entre os escravos
(Foucault, 1999b: p.82).
106
do casamento. Os epicuristas não admitiam a idéia do casamento como obrigação
(Foucault, 1999b: p.156). A certeza firme e constante era a maior preocupação do sujeito
estóico. Dever-se-ia manter a transparência do raciocínio. As paixões tomariam de arroubo
apenas os fracos e os iludidos (Santoro, 2007: p.206).
Os textos apresentados sobre o matrimônio não traduzem as práticas sociais da
Antiguidade. Deve-se discuti-los, decerto no que eles têm de particular e fragmentado.
Pode-se apontar para a relação de casamento entre homens e mulheres como a mais
privilegiada e que se encontra, dentro de uma ordem classificatória, acima das relações
sanguíneas e de amizade. “A mulher-esposa é valorizada como o outro por excelência;
mas o marido deve reconhecê-la também como formando unidade com ele” (Foucault,
1999b: p.164).
No Egito helenístico de fins do século IV e III a.C., as obrigações matrimoniais
masculinas estavam ligadas à manutenção da esposa, o obrigá-la a conviver com uma
concubina em sua própria casa, não maltratá-la e não ter filhos das relações sexuais que
mantivessem fora do casamento. No que concerne às obrigações da esposa, ela devia
obediência a seu marido, não podia sair de casa desacompanhada, era obrigada a manter
relações sexuais apenas com seu marido e não podia cometer qualquer outro ato que
pudesse desonrá-lo. No entanto, as restrições do marido crescem consideravelmente.
uma cobrança deste em relação ao sustento da mulher. Além disso, lhe foi vetado o antigo
direito de ter uma amante (Foucault,1999b: p.83). As relações do marido com outras
mulheres não eram problemáticas pelo ato sexual em si, mas pelo “desregramento” que
produziam. O ato sexual significava um golpe para a esposa legítima. Plutarco compara a
107
reação das mulheres à dos gatos que sentem o odor da traição (Foucault, 1999b: p.171-
175).
O verbo aphrodisiazein correspondente ao termo aphrodisia
32
possui vários
significados. Em primeiro lugar, pode-se utilizá-lo como uma atividade sexual em geral.
De forma mais restrita, a palavra aphrodisiazein pode significar a função “ativa”
definida pela penetração, ou a função “passiva” o papel passivo do parceiro-objeto. A
idéia de “ativo” e “passivo” é corroborada por Aristóteles quando diz que a fêmea é um
elemento passivo e o macho, um elemento ativo. Entre os gregos, a oposição entre ativo e
passivo delimitava tanto o comportamento sexual quanto a atitude moral. A relação sexual
entre os homens não definia, em si, a feminilidade deles. Para não serem considerados
efeminados os homens precisavam ser ativos no domínio de si e na relação sexual
(Foucault, 1998: p.45-79). Portanto, a passividade em relação aos prazeres era
inadmissível por estar relacionada fundamentalmente à atitude moral e ao comportamento
sexual
33
.
Tanto de forma geral quanto de forma restrita, pouco se pode falar sobre o amor
entre os gregos, devido ao número reduzido de textos, quase todos ligados à corrente
socrático-platônica. Logo, esse parco material, produzido por Antístenes, Diógenes,
Teofrasto e Aristóteles, não pode ser utilizado para traduzir o pensamento grego clássico,
mas será utilizado como uma referência pouco precisa (Foucault, 1998: p.172).
32
O termo aphrodisia foi definido como forma de agir, de gesticular e de tocar que proporcionam certo tipo
de prazer (Foucault, 1998: p.39).
33
Em espaços mais tradicionais, há uma discussão contemporânea em torno da idéia de ser passivo ou ativo
na relação sexual entre os homens. de se questionar a importância desse debate para a construção da
identidade do sujeito e a relação de confiança estabelecida entre os parceiros.
108
Segundo Sócrates, existiriam dois desejos que nos governam: o dos prazeres
inato; e o do desejo adquirido considerado o melhor deles. Quando um desejo nos
governa de forma descomunal e insensata, tem-se a desmedida (hybris), que pode assumir
várias formas, tais como o alcoolismo, a paixão, a gula. A temperança (sophrosyne) surge
quando as opiniões sensatas nos dominam. Em referência à forma de vida ideal, ele sugere
a combinação entre o prazer e o pensar (Santoro, 2007: p.129-147).
Para discutir a teoria socrática, Santoro (2007: p.149-150) relaciona uma referência
mitológica de dois seres atados, utilizados por Sócrates, com a imagem das sereias que
cantam para Ulisses as glórias da guerra de Tróia a Ilíadalevando os marinheiros para
a morte. As sereias servem para entender o discurso de Sócrates, que fala nas
ambigüidades presentes no prazer, na saudade, na ilusão. Para fugir de tal ambigüidade,
deve-se recorrer à harmonia, aprisionando a dor.
A Erótica platônica é considerada uma disputa amorosa, sendo Afrodite, Eros e
Dionísio, os deuses invocados. Vários discursos estão presentes, tais como o médico, o
heróico, o moralista, o filosófico, o do tragediógrafo, o da sacerdotisa, o do general, o do
comediógrafo. “A inspiração, a virtude, a harmonia, a plenitude, a beleza, a carência, a
iniciação e, para arrematar, sempre ela: a ironia” (Santoro, 2007: p.80-85). O fundamento
de Eros se a partir da relação da alma com a verdade. O verdadeiro amor pode ser
encontrado com a fuga do gozo físico. Isto não significa que ocorre uma decifração de si
por si e uma interpretação do desejo que depende do sujeito temperante. Pode-se dizer que
há uma condição estrutural instrumental e ontológica da verdade com o sujeito temperante
(Foucault, 1998: p.82).
109
Empédocles foi o primeiro a formular conceitos importantes para definir uma
teoria naturalista do amor. Segundo ele, o amor (philotés) seria um ímpeto agregador da
natureza e o ódio (neikos), um ímpeto desagregador (Santoro, 2007: p.36).
“Para Erixímaco, a mântica cuida de observar os que amam e se empenha em curá-
los e salvá-los ela é a artífice das afecções entre deuses e homens buscando a justiça
divina e a piedade”. Em Erixímaco, o amor é uma tarefa ou obra que deve ser concluída
(Santoro, 2007: p.95).
As imagens poderiam representar um risco ou desgraça às relações amorosas. Na
literatura amorosa, o olhar era tido como o transmissor mais seguro da paixão. Ovídio
dizia que o amor iria ser conservado se o corpo não fosse exposto durante o dia, para
ocultar as suas imperfeições. A forma de se ver livre de um amor era manter relações
sexuais sem a penumbra necessária: “falhas do corpo, sujeiras e manchas ao despertar se
imprimem no espírito e fazem nascer a repugnância”. Desde o fim da Antiguidade, o
debate sobre as imagens e seus aspectos negativos girava em torno do risco da boa
conduta sexual (Foucault, 1999b: p.141).
Nas relações amorosas, a orientação era ocupar-se de si sem o auxílio de um outro.
Galiano dizia que o homem que ama demais a si mesmo é capaz de curar-se sozinho de
suas paixões (Foucault, 1997: p.125).
“A temperança (sōphrosunē)
é uma espécie de ordem e de império (kosmos kai
enkrateia) sobre certos prazeres e desejos”. Segundo Aristóteles, a sōphrosunē não
suprime o desejo, mas o domina. A relação entre prazeres e desejos é uma forma de luta.
O embate é travado o contra o adversário, mas consigo mesmo. A derrota mais
temida é a auto-derrota (Foucault, 1998: p.61-66).
110
O cuidado de si (epimeleïsthai heautô) era considerado um privilégio social, sinal
de distinção, em contraposição aos que precisavam servir ou ocupar-se de um ofício por
necessidade de sobrevivência. A possibilidade do auto-cuidado, portanto, advinha de uma
posição de riqueza e desejado status (Foucault, 1997: p.121). As “artes da existência”
deveriam ser compreendidas como normas de condutas definidas pelo próprio indivíduo e
para si mesmo, bem como formas de transformações pessoais relacionadas a certos valores
estéticos e estilísticos (Foucault, 2006: p.198-199).
O debate sobre o corpo, o casamento como instituição, a relação entre mulheres e
homens e a sabedoria, formaram na Antiguidade uma “quadritemática”. O cuidado com a
austeridade sexual parecia ser reformulado constantemente. Esses quatro temas não
confluíam com o modelo criado pelo mundo civil e religioso (Foucault, 2006: p.208).
Para falar sobre o comportamento sexual grego clássico, Foucault (1998: p.31)
utilizou a noção de “uso dos prazeres”, identificando os modos de subjetivação
relacionados: substância ética, tipos de sujeição, teleologia moral e formas de elaboração
de si. Em seguida, investigou a forma com que os pensamentos médicos e filosóficos
elaboraram esse “uso dos prazeres” e definiram alguns assuntos de austeridade muito
presentes em algumas bases centrais da experiência: as relações com o corpo, os rapazes,
as esposas e a verdade. Tal investigação foi desenvolvida a partir de práticas culturais
gregas que tinham um status, uma existência e uma regra: a prática da gestão da casa; a
prática do regime de saúde e a prática da corte amorosa.
A partir da quadritemática supracitada, alguns conceitos ou definições servirão
para compor uma concepção do amor e da confiança nas relações amorosas baseada nos
estudos de Foucault sobre a sexualidade no mundo antigo:
111
1. As interpretações dos sonhos alegóricos e teoremáticos serviriam para
definir os modos de ser do sujeito e as formas de significação. Dentre as
práticas que podem servir de guia para a elaboração de tais noções, tem-se a
condenação das relações homossexuais, o descuido com o vigor do corpo e
os atos considerados injustos, todas com vistas à procriação.
2. O estudo de Foucault sobre a sexualidade no mundo antigo não apresenta
definições explícitas acerca do amor. Portanto, esse tema será tratado a
partir da quadritemática apresentada. A leitura sobre a realização do
vínculo matrimonial poderia se dar segundo uma determinada conjuntura
(epicurista) ou como dever social (estóico). Essa oposição entre o prazer e o
dever do casamento pode ser relacionada à concepção socrática da
existência de dois prazeres, o inato e o adquirido. Por outro lado, pode-se
indagar: o amor seria inato, construído socialmente ou as duas coisas?
Tem-se mais de uma resposta para entender o amor na antiguidade, todas
baseadas na relação entre corpo e alma
34
. Três teorias do amor serão
elencadas aqui e retomadas ao final do texto, quando da apresentação da
confiança nas relações amorosas baseada nos estudos de Foucault:
a. Teoria naturalista do amor (Empédocles);
b. Teoria do amor como obrigação moral (estóicos);
c. Teoria do amor contingencial (epicuristas).
34
Deve-se lembrar que o material disponível não é suficiente para compreender a noção de amor de maneira
ampla e diversa.
112
Essas teorias estariam atreladas ao conceito de ação moral, que considera tanto o
conjunto das leis como a consciência de si ou os modos de subjetivação dos sujeitos
reflexivos. Foucault demonstrou em seu estudo sobre a sexualidade na antiguidade, entre
outras coisas, que não se deve pensar na história como a continuidade do passado. Da
mesma forma, o conceito de confiança nas relações amorosas, neste capítulo, não será
apresentado segundo um contínuo histórico
35
.
As exigências de austeridade não eram organizadas de forma homogênea e única.
Os diversos focos de dispersão tinham origem nos movimentos filosóficos e religiosos.
Apesar de algumas proximidades terem sido levantadas entre a antiguidade clássica e a
moral cristã, não se pode concluir que existiu uma linearidade do comportamento sexual.
Na antiguidade, a austeridade sexual estava ligada ao exercício do poder e da prática da
liberdade estilística. Na moral cristã, a austeridade se conectava às normas proibitivas
essenciais (Foucault, 1998: p.23-25).
A austeridade sexual está presente nos discursos dos médicos e filósofos, nos dois
primeiros séculos da antiguidade. Enquanto os médicos sugerem que a abstenção é
preferível ao uso dos prazeres, os filósofos destacam a importância da fidelidade no
casamento (Foucault, 1999b: p.231). A atividade sexual não era considerada, pelos
médicos e filósofos da antiguidade greco-romana, como um mal em si, mas apenas na
medida em que gerava certos efeitos tidos como negativos aos cuidados do corpo e da
alma.
35
A descontinuidade entre o mundo grego e o cristão foi enfatizada por Foucault, através da demonstração
de que não houve uma variação contínua entre um tipo de sociedade mais permissiva a antiguidade
clássica – e outra mais rígida e controladora – o mundo cristão.
113
Foucault – analisando a erótica grega – aponta para uma “estética da existência” ou
uma forma de estilização da vida. Depois de ter realizado um levantamento sobre a relação
entre as formas de viver e as práticas sexuais do mundo antigo, a sexualidade moderna e
suas implicações entrarão em cena.
III.2. A sexualidade moderna – entre os campos de saber, os tipos de normatividade e
as formas de subjetividade
O problema da repressão, presente no primeiro volume da história da sexualidade,
surgiu acompanhado – no volume II deste mesmo trabalho – de um outro elemento
considerado fundamental nos escritos de Foucault: o âmbito científico. Isso não significou
uma redução da importância desse problema, mas uma nova forma de abordagem do
poder. Pretendeu-se, fundamentalmente, entender os caminhos percorridos pelo poder e a
forma como ele é exercido, e não uma resposta que indicasse de onde ele viria e para onde
ele iria (Foucault, 2006: p.73). Não se tratava, portanto, de explicar origem e evolução do
poder, mas de enfatizar as possibilidades e formas de subjetividade desse poder.
Uma das questões abordadas em todo o seu trabalho sobre a sexualidade foi a
austeridade sexual. Para pô-la em prática podia-se agir a favor das normas definidas
socialmente, obedecendo aos padrões de condutas impostas, renunciar de forma plena e
definitiva aos prazeres, estabelecer um embate permanente, através de uma investigação
acurada das possibilidades e formas do desejo, mesmo aquelas ocultas. Deve-se ainda citar
a teleologia do sujeito moral, que não se pode falar unicamente de uma moral em si
114
mesma, devendo-se tocar no conjunto de condutas morais construído socialmente
(Foucault, 2006: p.213).
III.2.a) Da relação entre a sexualidade e os saberes-poderes
No início do século XIX, o termo sexualidade foi adotado para demarcar tanto um
novo conjunto normativo como aqueles existentes. O projeto estava relacionado com
uma história da sexualidade entrelaçada entre campos de saber, tipos de normatividade e
formas de subjetividade (Foucault, 1998: p.09-10).
A sexualidade foi exaustivamente discutida no século XIX porque falava ao
mesmo tempo da vida do corpo e da vida da espécie. Tornou-se não a saída para
desvendar a individualidade, como também tema de campanhas ideológicas. Os controles
médico, familiar, psiquiátrico e pedagógico não negavam as sexualidades errantes e
improdutivas. Em verdade, tais mecanismos incitaram tanto o prazer quanto o poder.
Prazer em exercer o poder de questionar, fiscalizar e revelar; e por outro lado, prazer em
escapar dos mecanismos de controle impostos. O prazer e o poder não se oporiam de
forma alguma. Estariam ligados através dos mecanismos de excitação e de incitação
(Foucault, 1999a: p.45-137).
A arte erótica de ter mais prazer ou dar mais prazer e as formas de fazer amor não
foram ensinadas no ocidente. Em seus lugares, tinha-se uma provável ciência sexual
(scientia sexualis) que tratava da sexualidade das pessoas, e não das formas de obtenção
de prazer. O problema das possibilidades ou formas de prazer cedeu espaço à verdade do
115
sexo, ou seja, a verdade sobre o sexo ou a sexualidade do indivíduo (Foucault, 2006:
p.61).
A confissão foi transformada numa técnica de subjetivação, contrariamente à
técnica de objetivação, realizada através do exame. “O animal de confissão” o homem
ocidental a quem Foucault se refere apregoava o poder libertador ou o movimento de
resistência em relação à objetificação do biopoder. Contrário a essa posição libertária, o
autor mostrou que numa confissão, tem-se um interrogador e um interrogado:
“Aquele que escuta não será simplesmente o dono do perdão, o juiz que
condena ou isenta: será o dono da verdade. Sua função é hermenêutica. Seu
poder em relação à confissão não consiste em exigi-la, antes de ela ser feita,
ou em decidir após ter sido proferida, porém em constituir, através dela e de
sua decifração, um discurso de verdade” (Foucault, 1999a: p.66).
Essa problematização do desejo é seguida da indagação acerca do amor verdadeiro
que findará numa concepção unitária: “a que separa as conjunções de um sexo ao outro e
as relações internas de um mesmo sexo”. Dentro da relação estabelecida entre verdade e
desejo, os novos mecanismos são criados para que o indivíduo diga a verdade sobre o sexo
(Cardoso Jr.: 2005, p.347).
Considerando que o ponto de intersecção da análise do sujeito de desejo encontra-
se entre uma arqueologia
36
das problematizações e uma genealogia
37
das práticas de si,
Foucault (1998: p.16) substitui a história dos sistemas de moral pela história das
problematizações éticas.
36
Análise dos arquivos (textos) que definem o jogo das regras dos enunciados em seus momentos de
aparição e reclusão, sua existência como coisa e acontecimento, apresentada de forma paradoxal
(Charaudeau e Mainguenau: 2004, p.59-60).
37
Investigação da história com o intuito de apontar as relações de poder que originaram idéias, valores,
crenças ou normas. Segundo Lechte, a “história efetiva” (Nietzsche) com vistas à intervenção do presente.
116
Um saber excessivo ou ampliado sobre a sexualidade foi produzido no mundo
ocidental. Em formas teóricas ou simplificadas, um “supersaber” – num plano sócio-
cultural, não individual tratava do discurso da sexualidade, da ciência sobre a
sexualidade, da teoria sexual ou do saber sobre a sexualidade. Sem negar a Psicanálise,
Foucault (2006: p.58-60) sugeriu que um saber coletivo sobre a sexualidade fosse
formado, e não aquele do “desconhecimento pelo sujeito de seu próprio desejo”.
A imposição de algumas práticas – relativas à moral cristã em detrimento da
cultura greco-romana foi veementemente refutada pelo historiador Paul Veyne
38
.
Segundo ele, não foi o cristianismo que impôs às sociedades antigas a prática
monogâmica; a função privilegiada ou principal da atividade sexual com fins reprodutivos
existia na antiguidade, bem como a desqualificação da prática sexual extraconjugal.
Tais práticas já eram adotadas no mundo romano antes mesmo do cristianismo, em geral,
advindas do estoicismo. Nas palavras de Foucault (2006: p.63-64):
“a poligamia, o prazer fora do casamento, a valorização do prazer, a
indiferença em relação aos filhos havia desaparecido, no essencial, do
mundo romano antes do cristianismo”.
Com o intuito de definir uma diferenciação entre a moral antiga e a ética moderna,
faz-se necessário pensar na relação dessas com a verdade. Na última, a moral seria
colocada a partir do desejo, com a sua hermenêutica purificadora. Na antiguidade clássica,
pode-se falar no prazer, com a estética de seu uso (Cardoso Jr.: 2005, p.347).
Os novos mecanismos de controle impostos no mundo cristão servem como
resposta à seguinte indagação: o que mudou no cristianismo em relação às praticas morais
38
Foucault destaca o trabalho do historiador francês Paul Veyne, a quem credita confiança no estudo que se
opõe às outras leituras sobre a sexualidade na antiguidade.
117
já existentes na antiguidade? Se as práticas existiam, por que uma nova realidade
cultural foi criada? O mundo cristão é formado de uma cobrança absoluta em relação à
obediência social, diferentemente do mundo greco-romano. A salvação obrigatória é
fortemente pregada pela igreja. A contribuição fundamental do cristianismo à história da
sexualidade teria sido então a técnica de interiorização da norma, ou a técnica do
“despertar de si sobre si mesmo” (Foucault, 2006: p.65-71).
Não resta dúvida de que modalidades de controle sexual foram adotadas tanto na
antiguidade clássica quanto na sociedade moderna. A questão que precisa ser colocada
refere-se às possibilidades de mudança daqueles que são afetados pelas normas impostas
socialmente, e na relação dessas com a possibilidade de confiança nas relações amorosas.
A resposta a essa indagação poderá ser dada a partir da discussão entre a sexualidade
moderna e as formas de subjetividade discutidas a seguir.
III.2.b) Da relação entre a sexualidade e as formas de subjetividade
Comparada às outras relações de poder, a sexualidade é um elemento dotado de
grande instrumentalidade. Um número considerável de estratégias pode ser utilizado,
servindo de ponto de apoio e de aliança. A sexualidade, originalmente, esteve centrada na
aliança, tendo passado para uma problemática da ‘carne’ a partir da atuação da nova
pastoral – ou seja, da natureza e dos prazeres do corpo (Foucault, 1999a: p.98-102).
Os ingredientes éticos do comportamento sexual na moral cristã são definidos a
partir de um conjunto de normas que levam o sujeito à renúncia de si, em nome da pureza
118
e da virgindade. Na reflexão moral da Antiguidade, pode-se dizer que uma “estilização
da atitude e uma estética da existência”. O sujeito moral era caracterizado no domínio
perfeito de si.
Para Foucault, as formas de subjetividade deveriam ser trabalhadas a partir das
regras de inclusão, exclusão e classificação, contidas nos discursos e tomadas como
unidades de análise (quadro 01).
Quadro 01
Regras de inclusão
Unidade de análise
Regras de exclusão
do discurso do discurso
Regras de classificação
do discurso
Observa-se, no quadro abaixo, que os discursos incluem os conhecimentos
personificados ou derivados da linguagem (falada ou escrita), as práticas (observadas no
cotidiano) e os objetos materiais (livros, CDs, etc.). A localização institucional também é
um elemento importante nos discursos (Morrow, 1995: p.17).
Quadro 02
Conhecimentos personificados
da linguagem
Objetos materiais
Discurso
Conhecimentos derivados
da linguagem
Práticas Localização
institucional
O sentido da linguagem não se encerra com o que é dito. O significado subliminar
ou submerso ganha importância na medida em que não é sufocado pela forma manifesta e
apreendida. Assim, esse significado ofuscado ou obscuro conhecido pelos gregos como
119
allegoria ou hyponia – seria mais importante que o manifesto. Por outro lado, a linguagem
pode ser articulada às formas não verbais, denominadas pelos gregos, grosso modo, como
semäion. A transmissão de conhecimento pode ser realizada também a partir dos gestos e
das ausências da fala (Foucault, 2005: p. 48).
Não há um discurso e um outro contraposto. Dentro de uma mesma estratégia,
podem-se encontrar discursos dissonantes. Como disse Foucault (1999a: p.97):
“Não se trata de perguntar aos discursos sobre o sexo de que teoria
implícita deriva, ou que divisões morais introduzem, ou que ideologia
dominante ou dominada representam; mas, ao contrário, cumpre interrogá-
los nos dois níveis, o de sua produtividade tática (que efeitos recíprocos de
poder e saber proporciona) e o de sua integração estratégica (que
conjuntura e que correlação de forças torna necessária sua utilização em tal
ou qual episódio dos diversos confrontos produzidos)”.
Existem no mínimo quatro definições do conceito de discurso em Foucault:
discurso
autônomo como ‘regras-vinculadas (rule-bound) aos sistemas de declaração,
discurso, ‘práticas não discursivas’ e ‘discursivas’, saber-poder e discurso como
‘discurso’, como uma grande meta-narrativa contra o racionalismo Iluminista. Mas antes
de tudo, o conceito de discurso é utilizado como uma estratégia metodológica que fratura e
desmonta idéias, objetos e conceitos (Caldwell, 2007: p.772).
Segundo Morrow (1995: p.18), os sujeitos deixariam de existir sem os discursos,
assim como a sexualidade e as subjetividades humanas compostas de conhecimentos,
normas e valores apreendidos, internalizados e reproduzidos de forma discursiva pelos
indivíduos. No entanto, se o sujeito e a sexualidade não existissem fora dos discursos que
produzem o saber-poder, a liberação sexual do sujeito também não seria possível.
120
Contra a posição de Morrow, defende-se que não é necessário falar em uma teoria
da ‘prática’ ou em um conceito da teoria porque discurso é prática. Para Foucault, o
discurso subsume o sujeito, não porque o sujeito é meramente um efeito do discurso, mas
porque as ações da fala e da ação apresentam-se de forma inseparável nas práticas
discursivas. O discurso pode referir-se a amplas ‘formações discursivas’ e ao ‘domínio
geral’ de todas as declarações, quase todas as atividades através das quais os sentidos, os
selves e os objetos do conhecimento são constituídos (Caldwell, 2007: p.772-773).
As práticas discursivas são definidas como um jogo de prescrições que apresenta
escolhas e exclusões, não sendo, portanto, um sistema de tipo lingüístico ou lógico. Por
outro lado, o seu significado não se encerra no que elas têm de produtoras de discursos.
Normalmente, são formadas por um conjunto rebuscado e transformado fora delas em
instituições políticas e sociais e nelas mesmas através do acúmulo de informações, das
técnicas de reconhecimento dos objetos ou da nova elaboração do conceito (quadro 03)
(Foucault, 1997: p.11-12).
Acúmulo de informações;
Técnicas de reconhecimento dos objetos;
Nova elaboração do conceito.
Prática discursiva
Instituições políticas e sociais
Quadro 03
121
A imersão na Grécia clássica pode ser justificada no trabalho de Foucault na
medida em que ele acreditou numa vigência milenar da subjetividade que conecta as
formações discursivas ou práticas discursivas da episteme moderna e os mecanismos de
poder da atual sociedade. Em nosso tempo, ecoa uma história longínqua: a história de
como se tornar sujeito através das práticas de si.
Os procedimentos que caracterizam as técnicas de si servem para definir
identidades, modificando-as ou não, a partir dos fins propostos, através das “relações de
domínio de si sobre si ou do conhecimento de si por si”. Essas tecnologias de si levam o
indivíduo a uma reflexão acerca dos modos de vida, formas de existência, controle de sua
própria conduta, etc. (Foucault, 1997: p.109-112).
A estética da existência acontece quando há uma desconstrução de identidades
impostas, criadas pelas representações sociais. Ela objetiva inverter as relações baseadas
na tradição e na norma e surge como possibilidade de transgressão. Tais mudanças,
geradas a partir de novas formas de relação consigo e com os outros, demandam um
esforço muito grande na recusa de oposições que aprisionam, tais como a oposição entre
corpo e alma (Miskolci, 2006: p.11-12).
Algumas noções de verdade da consciência do self ou dos sujeitos autônomos são
historicizadas porque os conceitos de individualidade, racionalidade, intencionalidade e
motivações inconscientes estão relacionados com o discurso dos saberes e poderes
(Caldwell, 2007: p.780). No entanto, o conceito de verdade não possui um valor
ontológico e naturalista, mas um valor instrumental, na disputa dos mecanismos sexuais
de controle.
122
O corpo é formado pelo organismo disposição do corpo que objetiva adaptar o
prazer potência de transformação ou de criação constituinte dele. O prazer seria o seu
lado criativo ou transformacional que estabelece contato com outros corpos, com idéias,
com imagens, etc. Deve-se estabelecer uma oposição entre o corpo-prazer forças de
resistência criativa e o corpo-carne, para deixar evidenciado que é possível driblar o
controle (Cardoso Jr.: 2005, p.345). Apesar de ser contrário ao naturalismo e à cisão
corpo-mente quando se refere aos ‘corpos dóceis’ como objetos sem face, Foucault não
apresenta uma teoria que sustente a agência personificada ou a sua corporificação
(Caldwell, 2007: p.780-786).
Esta posição será rejeitada neste trabalho por se acreditar que o agente é
corporificado no discurso, considerando a composição do conceito de discurso
apresentado: os objetos materiais, os conhecimentos personificados da linguagem, os
conhecimentos derivados da linguagem, as práticas e a localização institucional.
Para Cadwell, a leitura de Foucault do corpo parece estar em desacordo com a
confiança cognitiva do racionalismo iluminista e da objetificação científica do corpo; e
com o dualismo cartesiano e as fundações naturalistas do self. A idéia de tempo que
envolve a personificação do corpo permite que haja um abandono das noções
essencialistas das diferenças sexuais e do comportamento de gênero. Por outro lado,
considerar o corpo como um sujeito “sem face” implicaria num excesso de ênfase da
construção simbólica e discursiva e na negligência das dimensões sociais, materiais e
institucionais das normas de gênero. O corpo não é determinado previamente, mas apenas
com os discursos. O self e o conhecimento do corpo não são fixos. apenas uma
123
imposição definida historicamente e uma resistência voluntária (Caldwell, 2007: p.777-
779).
No trabalho de Foucault, as determinações binárias de sexo e de gênero não são
suficientes para tratar da questão do desejo do sujeito. Mais que isso, elas serviriam para
reforçar os mecanismos de controle social e as práticas de sujeição. As práticas de
liberação são possíveis porque não possuem uma única chave reveladora do desejo.
Foucault utiliza o exemplo de Herculine Babin
39
corpo hermafrodita ou
intersexuado para negar a categoria de sexo, e, portanto, as estratégias reguladoras por
ela formadas. Por não acreditar na correlação necessária entre sexo e significados e
funções corporais, Foucault considera que um aumento do prazer para além dos muros
que impõem uma relação binária. O exemplo de Herculine demonstraria então um
universo não regulado dos prazeres anteriores à lei (Butler, 2003: p.143-145).
Para Foucault, essa noção de sexo foi criada a partir da distribuição da sexualidade.
Uma oposição binária entre os sexos surgiu com a utilização de sexo como um conceito
advindo do modelo jurídico. A saída para subverter esses opostos binários estaria na
multiplicidade das diferenças, a ponto desses opostos perderem o sentido. Assim, a
hegemonia do modelo jurídico não seria quebrada a partir da transcendência das relações
de forças, mas através dos múltiplos significados produzidos (Butler, 1987: p.149-150).
Portanto, o conceito de sexo é trabalhado como um construto unívoco que serve
como instrumento de regulação e controle social. Para se opor a tal posição, Foucault trata
39
Um hermafrodita francês do século XIX que teve os seus diários publicados por Foucault. Com cerca de
20 anos, Herculine foi obrigado a mudar seu sexo para ‘masculino’, tendo praticado o suicídio tempos
depois.
124
esse termo como efeito, e não como origem. As categorias de sexo e diferenças sexuais
são questionadas com a intenção de demonstrar que elas são construídas no discurso.
Se o corpo não é determinado previamente, mas apenas a partir dos discursos,
havendo apenas uma imposição histórica e um self que não é fixo, o conceito de
subjetividade deverá ser acionado. Mas como definir esse conceito na teoria foucaultiana?
Toda subjetividade é uma forma que se desmancha por processos de subjetivação.
A forma-sujeito é interpretada pelos saberes e poderes, mas a subjetivação transborda de
forma abundante a subjetividade, que contém “uma reserva de resistência ou de fuga à
captação de sua forma” (Cardoso Jr.: 2005, p.344).
O conceito de subjetividade foucaultiano é formado tanto de uma perspectiva
teórica quanto pragmática, já que diz respeito a uma forma de vida. A subjetividade
expressa o que no sujeito, em seu núcleo, se relaciona com o mundo, com os objetos,
existindo assim, uma relação com o tempo. Afirmar que uma relação entre a
subjetividade e o tempo, implica assumir que a primeira é móvel (quadro 04). Esta forma
de conceber a subjetividade é oposta àquela definida por Freud – ligada a um inconsciente
onde a temporalidade estaria conectada a uma estrutura pulsional praticamente invariante
(Cardoso Jr.: 2005, p.344-345).
Quadro 04
Perspectiva teórica
Subjetividade móvel
Perspectiva pragmática
Tempo
125
Para Cadwell, faltaria em Foucault uma resposta de como a reflexividade do self
poderia ser ligada a um objeto categórico de seu saber e de sua formação que apontasse
para novos caminhos da identidade e da ação moral-política, mas do que apresentar
imagens negativas do self subjugado. Apesar de ter tentado responder essa indagação em
seus últimos trabalhos, conectando a reflexividade do self com uma ontologia ética de sua
formação, a noção de criação do self através de uma ‘estética da existência’ reproduz uma
tendência oculta do voluntarismo, combinando toda a noção de agência com a
flexibilidade do self através da ética de sua disciplina (Caldwell, 2007: p.780-788).
Ainda segundo Cadwell, por descentrar o ‘sujeito’ moral e epistemológico do
pensamento racionalista e humanista, Foucault parece remover os agentes humanos do
palco central com uma aparente destruição desse sujeito. Essa aparente destruição desse
sujeito epistemológico e moral da ciência e do racionalismo, e o ocultamento da ação
social individual e coletiva dificultam, de forma excessiva, a disposição profícua de
conectar agência e mudança. Segundo Giddens, a ausência de uma definição sintética de
agência desqualificaria o conceito de mudança. A agência deveria ser capaz de ‘fazer a
diferença’, e não apenas indicar que é possível resistir ou ‘agir de outra forma’ (Caldwell,
2007: p.770-771).
Admitir que certas categorias não sejam suficientes para explicar o desejo,
descentrando o sujeito moral e epistemológico não é uma tarefa fácil porque não se pode
visualizar facilmente esse sujeito, mas porque esse sujeito se multiplica, e com ele, os
sentidos que são criados para compreender a realidade. Assim, partir da teoria
foucaultiana da sexualidade para explicar a confiança nas relações amorosas é possível
na medida em que esses múltiplos sujeitos e possibilidades forem levados em conta.
126
Em Cadwell, para que pudesse haver mais clareza no argumento utilizado por
Foucault de como os sujeitos se transformam em agentes dos selves através da criação dos
discursos e das novas identidades do self, o autor deveria criar uma conexão entre agência,
resistência, transformação do self e mudança. A agência tem uma tendência a ser tratada
como um efeito exógeno do discurso e do saber-poder. A ação intencional não é levada em
conta em muitas noções de agência. Não se admite um self pré-discursivo. O anti-
essencialismo vem acompanhado do anti-realismo, dificultando a possibilidade de
compreensão de sua teoria. A noção de agência e mudança diz respeito ao desejo
voluntarístico, erótico e ascético para ‘agir de outra maneira’, e não “uma visão moral ou
uma missão política programática para fazer a diferença”. O legado de Foucault poderia ser
re-conceitualizado como uma teorização do descentramento da agência através de quatro
conceitos fundamentais: discurso; saber-poder; reflexividade do self (self-reflexivity) e
personificação (Caldwell, 2007: p.769-781).
Ao invés de considerar a agência como um efeito exógeno do discurso e do saber-
poder, criando-se um self pré-discursivo, tem-se uma reflexividade do self que surge num
determinado discurso. Afirmar que as possibilidades dos agentes em relação ao desejo não
se limitam às categorias binárias citadas anteriormente é uma forma de fazer a diferença,
ou um tipo de visão moral que inverte a lógica das semelhanças com o intuito de defender
as diferenças. Cabe então perguntar de que forma essas diferenças, ou conjunto de
possibilidades acerca do desejo, na obra de Foucault, e da confiança nas relações amorosas,
nesse trabalho, podem ser explicitadas.
O dispositivo disciplinar visa congelar a subjetividade numa identidade construída
pela história sexual do indivíduo. Por estar inserida em um processo ou prática de
127
subjetivação, a subjetividade não possui um mecanismo estático. Pode-se dizer que a
diferenciação e a não identidade são características fundamentais dessa subjetividade
(Cardoso Jr.: 2005, p.347).
Segundo Balbus (1987: p.129), a luta contra a sociedade disciplinar deveria ser
estabelecida a partir da negação de qualquer tipo de identidade, que não existiria, para
Foucault, nada de estável no indivíduo que pudesse servir de auto-reconhecimento e
reconhecimento identitário. Neste contexto, nem o corpo serviria para tal finalidade, sendo
também esse uma referência a ser destruída porque seria insuficiente na definição da
identidade sexual
40
.
Negar o dispositivo disciplinar moderno da sexualidade, enfatizando que existem
múltiplas possibilidades de definições do desejo não significa dizer que não possa haver
um conjunto de regularidades reconhecidas nos discursos. Os processos de subjetividade
não se encontram isolados do mundo social, mas são concebidos sob a sua influência. A
regularidade não seria encontrada no corpo porque as definições relacionadas a esse corpo
não responderiam a questão da identidade. Por outro lado, os discursos continuariam a
produzir certo tipo de identidade, mais plástica e menos restrita. Foucault apontou para
uma necessidade urgente: descartar as categorias binárias utilizadas nas Ciências Sexuais
como mecanismos de controle insuficientes à busca da resposta dos desejos.
40
Segundo Balbus (1987: p.132), as armas femininas são roubadas na genealogia foucaultiana, impedindo as
mulheres de compreenderem, de lutarem e de superarem o processo de dominação masculina em todo
mundo.
128
Considerações finais
A não-identidade do corpo, somada a uma subjetividade móvel sustentada nos
discursos, levanta um mastro de incertezas. Que novos elementos serão apoiados ou
sustentados? A que embarcação eles se referem? Ou, dito de outro modo: quais as
traduções possíveis do sujeito a serem realizadas? Como a confiança nas relações
amorosas pode ser interpretada nos estudos foucaultianos sobre a sexualidade?
Como o tema deste trabalho é confiança nas relações amorosas, o exemplo de
fidelidade, utilizado por Foucault, será citado como instrumento reflexivo para pensar
algumas possibilidades dessa confiança. Segundo ele, as possibilidades da fidelidade
poderiam ser definidas das seguintes formas: a obediência às interdições; o controle dos
desejos, ou o êxito da vigília de si, onde os atos em sua efetivação seriam considerados
menos importantes na matéria da prática moral do que os movimentos contraditórios da
alma; uma prática da fidelidade a partir da intensidade, reciprocidade e continuidade dos
sentimentos, bem como a qualidade da relação que une o casal (Foucault, 1998: p.25);
fidelidade como forma do aumento do controle de si mesmo;
41
um afastamento do mundo,
se tal conduta se opusesse aos padrões normativos vigentes; imortalidade bem-aventurada
ou a possibilidade de outra vida após a morte, etc. Em todo caso, não se deve simplificar
uma ação ou ações com base em um valor, norma ou lei porque a ação baseia-se também
na relação que o sujeito estabelece consigo mesmo (Foucault, 2006: p.213).
41
“O termo enkrateia no vocabulário clássico parece referir-se em geral à dinâmica de uma dominação de si
por si e ao esforço que ela exige” (Foucault, 1998: p.62).
129
Muitas das formas de fidelidade propostas por Foucault baseiam-se em normas
sociais vigentes que são reforçadas por um determinado conjunto de discursos ou práticas
de sujeição produzidas acerca da confiança nas relações amorosas. Alguns desses
conceitos são trazidos de um mundo bastante distante: a antiguidade. Tanto o discurso do
estóico sobre o amor e a fidelidade como obrigação moral quanto à premência da
felicidade epicurista estão presentes em muitos dos discursos que abordam o tema da
confiança nas relações amorosas no contexto atual. As práticas de liberação também
existem como um discurso que nega as práticas de sujeição e os mecanismos de controle.
Entender a ligação existente entre a sexualidade, a subjetividade e a obrigação de
verdade foi uma das tarefas sugeridas por Foucault.
42
A relação entre a verdade, o sujeito e
as práticas de sujeição foi um problema permanente em sua obra. As perspectivas
adotadas sofreram mudanças, mas sempre buscaram compreender o que liga esses
elementos (Foucault, 2006: p.97-289). No entanto, as práticas de liberação pouco
evidenciadas ou até mesmo sufocadas em seus primeiros trabalhos, deram outro tom à sua
obra (quadro 05).
Quadro 05
Verdade
Sujeito
?
Práticas de liberação/
Práticas de sujeição
42
Segundo Foucault, este problema aproximava o seu trabalho ao de Richard Sennett.
130
A distinção entre saber e conhecimento, bem como a distinção entre vontade de
saber e vontade de verdade; e a postura do e dos sujeitos em relação a essa verdade são
questões que indicam possíveis direções tomadas (Foucault, 1997: p.13). O conceito de
confiança nas relações amorosas pode então ser criado, em Foucault, a partir do confronto
e reafirmação desses elementos e ações produzidos no discurso.
Os mecanismos de controle utilizados pela ciência médica, a angústia e
possibilidade de escapar de suas garras é muito bem traduzido no filme As horas (The
hours), de Stephen Daldry, baseado no romance de Virgínia Woof: Mrs. Dalloway. A
personagem Virgínia (Nicole Kidman) se opõe aos mandos médicos acerca da melhor
forma de tratar da sua doença, em Richmond (no ano de 1923) interior da Inglaterra:
“Minha vida me foi roubada. Não quero a calma sufocante dos subúrbios,
prefiro o solavanco violento da capital. É minha escolha. Mesmo o mais
humilde dos pacientes pode expressar sua opinião sobre o tratamento que lhe é
dado. É isso que define a condição de ser humano”.
No mesmo filme, Laura Brown (Julianne Moore), mãe de Richard (Jack Rovello),
tal como o confessionário explicitado por Foucault, declara a Clarissa Vaugham (Meryl
Streep), pouco depois da morte de seu filho (em 2001), a sua incapacidade de se enquadrar
nos moldes convencionais de mãe e esposa:
“...seria ótimo dizer que me arrependi...mas o que significa se arrepender
quando não se tem escolha? É o que se pode agüentar. É isso. Ninguém vai me
perdoar. Era a morte. Eu escolhi a vida”.
Para não cometer o suicídio, decidiu abandonar Richard, um filho recém-nascido e
o seu marido, indo morar em outro país. O que ela não confessa é o amor e o desejo que
131
nutria por sua amiga Kitty (Toni Collete). A Los Angeles do início dos anos 1950 não
perdoaria tais sentimentos. O isolamento foi à saída encontrada por ela.
Deve-se, ao mesmo tempo, questionar tanto o nível da produtividade tática da
confiança nas relações amorosas, ou seja, os efeitos mutuamente produzidos do saber-
poder, quanto o nível da integração estratégica ou, dito de outro modo, analisar a
conjuntura e a correlação de forças necessárias à determinada estratégia de certo episódio
que produz confrontos diversos. A confiança nas relações amorosas pode ser discutida,
com base na perspectiva foucaultiana, a partir de dois conceitos: o desejo e a moral;
levando em conta não as práticas de sujeição, mas, sobretudo, as práticas de liberação.
Deve-se mais uma vez enfatizar que as categorias de sexo e de gênero não são suficientes
para a definição do desejo, que nem a constituição do corpo sexual nem o
reconhecimento dos agentes possuidores desses corpos são capazes de sintetizar o desejo
dos agentes reflexivos. A confiança nas relações amorosas surgiria como um conjunto de
possibilidades nas formas de vida presentes nos discursos contemporâneos. Nas palavras
de Caetano Veloso: “Lutemos, mas só pelo direito ao nosso estranho amor”.
132
CAPÍTULO IV
“SÃO DEMAIS OS PERIGOS DESSA VIDA, PRA QUEM TEM PAIXÃO”:
DO PERIGO AO RISCO NO AMOR EM NIKLAS LUHMANN
Sabrá Diós
Si tu me quieres
O me engañas
Lucho Gatica
(Sabrá Dios)
A função social dos subsistemas estudada por Niklas Luhmann atingiu diversas
dimensões, tais como a lei (1993), a política (1975), a religião (1977), a educação (1988),
a economia (1988), a ciência (1990), a arte (1995), dentre outras (Moeller, 2006: p.29). A
pretensão de universalidade na teoria de Luhmann não exclui outras abordagens teóricas,
construída com conceitos advindos da Filosofia, do Direito, da Biologia, da Física e de
outras áreas do conhecimento. Ao longo de sua carreira, ele trabalhou com diversos temas
da Teoria sociológica, da Sociologia das organizações e da Sociologia Jurídica, dentre os
quais, o dinheiro, o amor, a confiança, etc. Em todos esses casos, alguns conceitos foram
evocados com o objetivo de construir uma teoria geral.
A utilização de novos conceitos no decorrer da obra de Luhmann não significou
uma mudança de perspectiva, mas um refinamento teórico de sua produção acadêmica.
133
Para exemplificar, podem-se citar os conceitos de auto-referência e de auto-organização
que se encontram mais bem desenvolvidos na sua definição biológica de autopoieses,
discutida mais adiante (Luhmann, 2005: p.XVII). Deve-se enfatizar também que o
esquema teórico desenvolvido pelo autor desfaz as contraposições criadas entre
individualismo/holismo e agência/estrutura (Cohn, 1998: p.12).
O seu trabalho sobre confiança começou a ser desenvolvido em 1968. De para
cá, a confiança tem sido tratada como um mecanismo de redução da complexidade social
que serve para maximizar as garantias do presente e do futuro. A confiança é uma aposta
realizada no presente, relacionada com o passado e direcionada para o futuro. Deve-se
destacar a importância da frustração neste tipo de relação. Pode-se falhar e preservar a
confiança da outra pessoa, dependendo do dano causado a ela e do crédito do confiado.
Por outro lado, a confiança é possível quando se pode alcançar a verdade (Luhmann,
2005: p.XXII-XXIV).
“A confiança se dentro de um marco de interação que está influenciado
tanto pela personalidade como pelo sistema social, e não pode estar
associado exclusivamente com um e outro” (Luhmann, 2005: p.9).
Considerando a ampla diversidade de temas abordados por Luhmann, o interesse
específico deste trabalho e as limitações decorrentes de sua vasta obra este capítulo
estará restrito à bibliografia apresentada. Pretende-se, a partir de uma visão mais geral de
sua teoria, abordar as questões específicas da confiança e do amor tratadas pelo autor. Para
tanto, este capítulo será composto da seguinte forma:
IV.1. “O mundo dos sistemas e os
sistemas do mundo: uma perspectiva teórica multidimensional”, apresentando de forma
sintética, algumas idéias da teoria geral e sistêmica desenvolvidas por ele; IV.2.
134
“Familiaridade e não-familiaridade, risco e perigo: limites e possibilidades da confiança”,
onde serão abordados alguns conceitos interligados com a noção de confiança e IV.3. “Do
amor e suas dimensões”, que versará sobre os aspectos sócio-históricos (IV.3.a.) e sobre o
significado do amor (IV.3.b.).
IV.1. O mundo dos sistemas e os sistemas do mundo: uma perspectiva teórica
multidimensional
A sociedade é um, dentre outros, sistema que se distingue do ambiente. O sistema
psíquico é um dos ambientes da sociedade, sendo formado por seres humanos. Sendo
assim, os indivíduos não fazem parte da sociedade, mas do seu ambiente (Cohn, 1998:
p.09). Na teoria luhmanniana, a diferenciação social e a formação do sistema caracterizam
a sociedade moderna, o que implica numa relação de dependência entre a teoria dos
sistemas e a teoria da sociedade. Neste sentido, a sociedade é um sistema de ordem maior
definida a partir da diferenciação entre o sistema e o ambiente. Diferentemente de Parsons,
Luhmann não confiou na preservação dos sistemas sociais, enfatizando a contingência e a
complexidade do social. Três premissas básicas compõem o conceito de sociedade: (1) a
sociedade não é formada por pessoas; (2) a sociedade é considerada um sistema
autopoiético formado pela comunicação; (3) a sociedade pode ser vista como a
sociedade do mundo (Luhmann, 2008: p.XIII-XV).
135
A teoria sociológica passa da teoria dos fatores para a teoria dos sistemas. Isso
significa dizer que os fenômenos sociais não devem ser explicados a partir da relação
estabelecida entre causa e efeito, porque as causas podem produzir efeitos diversos ou
semelhantes. O fenômeno passa a ser refletido em termos não causais, a partir do
rompimento do conceito tradicional de função, estabelecido como relação de invariância
entre as causas e os efeitos específicos. A equivalência funcional pode ser discutida entre
um conjunto de causas possíveis “com vista a um efeito problemático”. Em outras
Sistema
vital
Sistema
social
Sistema
psíquico
Ambiente
Sociedade
136
palavras, deve-se elaborar uma pesquisa comparada que considere “várias causas possíveis
de um mesmo efeito ou vários efeitos possíveis de uma mesma causa”. Além disso, as
causas e os efeitos de um determinado fenômeno devem ser vistas como variáveis
intermutáveis. A articulação dos sistemas e dos sub-sistemas é definida a partir do
processo de interação social. Vale ressaltar que mesmo os sistemas considerados mais
relevantes socialmente, não assumem um papel central no processo social. A diferenciação
funcional ganha espaço na teoria dos sistemas, ao contrário dos conflitos decorrentes das
interações sociais. A estruturação dos sistemas se através da análise intersubjetiva dos
processos sociais (Luhmannn, 1991: p.VIII-IX). Partindo do fenômeno estudado aqui a
confiança nas relações amorosas poder-se-ia levantar como possíveis causas de seu
rompimento do pacto amoroso: traição, instabilidade emocional dos envolvidos e falta de
amor. Mas essas causas podem também ser transformadas em efeitos ou apresentar efeitos
diversos.
A idéia de que as decisões ocorrem por eventos, considerados contingenciais, se
contrapõe à leitura de alguns críticos que vêem a teoria do sistema de Luhmann como
determinista. O sistema não deve ser considerado limitado porque é tomado de forma
processual, portanto, dinâmico. Neste caso, tem-se uma base perpétua de seleções
contínuas e auto-referenciais (Curvello, 2001: p.30). A auto-referencialidade dos sistemas
sociais é explicada por Luhmann a partir do conceito de autopoiese, que ocorre de três
formas:
“autopoiese dos sistemas vivos (vida e sistemas vitais), autopoiese dos
sistemas psíquicos (que se traduz via consciência) e autopoiese dos sistemas
sociais (que se opera via comunicação)” (Curvello, 2001: p.32).
137
que o sistema está ligado às exigências funcionais e que tais exigências surgem
dentro do ambiente contingencial, cabe a ele elaborar os seus elementos através de
operações autoconstitutivas, nomeadas por Luhmann como autopoieses (Cohn, 1998:
p.11). Desta forma, os sistemas seriam auto-produzidos.
A sociedade é considerada um sistema auto-referente e autopoiético, formada de
comunicações. Partindo da improbabilidade da comunicação, Luhmann utiliza esse
conceito como um mecanismo que propicia a dinâmica evolutiva dos sistemas sociais que
reduz a complexidade social (Curvello, 2001: p.32-33). A teoria dos sistemas deve
desenvolver-se em sintonia com a teoria da evolução, permitindo que se possa explicar a
transformação das sociedades arcaicas em modernas (Luhmann, 2005: p.XV). A sociedade
não existe sem a comunicação, assim como a comunicação não existe sem a sociedade. O
ambiente é considerado um estímulo, não uma fonte real de informação (Luhmann, 2008:
p.xvii).
O sistema de comunicação pode ser chamado de “individual”, bem como outros
sistemas, a exemplo do sistema econômico. Apesar do reconhecimento de que existe uma
individualidade da mente, questiona-se a importância desse elemento na explicação do ser
humano. Assim, o sistema psíquico não é mais individualizado que o sistema de
comunicação ou o sistema da vida (Moeller, 2006: p.10).
Cabe ressaltar também o retorno do conflito na teoria luhmanniana, ao contrário da
perspectiva funcionalista clássica, tratado como uma possibilidade a mais, um equivalente
funcional ou um mantenedor de certo sistema. Mesmo nos processos de cooperação, o
conflito é acionado para edificá-los e mantê-los (Luhmann, 2005: p.XIII).
138
Pode-se falar em três tipos de dimensões da complexidade: a real – relacionada aos
objetos; a social – dirigida aos sujeitos; e a temporal. Na medida em que a complexidade é
reduzida no entorno do sistema, um aumento proporcional de complexidade neste
entorno. Esta lógica acompanha o sentido advindo do conceito de função:
“Ao entender a complexidade como um problema e sua redução como uma
solução, se transforma o fenômeno em uma relação funcional, em um
esquema comparativo entre complexidade e sentido, entre problema e
equivalentes funcionais de solução. Assim o aumento da complexidade se
corresponde com o aumento da capacidade de redução da dita
complexidade” (Luhmann, 2005: p.XXIII).
As operações sistêmicas reduzem a complexidade externa do ambiente e
aumentam a complexidade interna do sistema (Moeller, 2006: p.18).
Mesmo a comunicação de relevância estritamente pessoal diz respeito tanto ao
indivíduo quanto ao mundo. “Aquele que toma parte nisto como alter-ego se empenha
duplamente: consigo mesmo e com os outros”. Os meios de comunicação simbolicamente
generalizados tratam dos dispositivos gerais que são acionados na comunicação, mesmo
aquela considerada improvável. A comunicação estritamente personalizada refere-se à
tentativa do falante de diferenciar-se dos demais. Este tipo de ação limita a possibilidade
de consenso e do funcionamento de práticas coletivas. Frente à inevitável cobrança social,
o indivíduo opta por fazer parte ou não do “projeto egocêntrico de mundo(Luhmann,
1991: p.16-23).
A comunicação íntima deve ser abordada a partir do contato ou vínculo sexual
considerando a sua relação com a realidade e o coquetismo, ou jogo com a solidão,
relacionado com a incomunicabilidade. Neste caso, o experimento vale como uma
possibilidade, não como parte fundamental da relação social (Luhmann, 1991: p.166).
139
Mesmo quando uma conversa entre duas pessoas, por mais íntimas que elas sejam, a
comunicação estabelecida será exterior a elas. Tal afirmativa vale para a comunicação que
ocorre nas relações de proximidade (Moeller, 2006: p.08).
O ser humano não existe como uma entidade. Pode-se falar apenas em corpos,
mentes e comunicações como “individuais”. Isto significa que, para a teoria dos sistemas,
o ser humano é apenas uma simplificação da complexa existência humana. De fato, não
existe um mundo comum, que a realidade sofre mutações ocasionadas pelo sistema
“individual” autopoiético, criando diferenças. Existe uma realidade para cada sistema
funcional, apesar de não existir “partes” de um “todo”. Isso significa dizer que um sistema
pode perder a sua função sem que a dinâmica dos outros sistemas seja perdida. Cabe
lembrar que não se tratam de “super-sistemas” ou sistemas fixos que não podem ser
alterados (Moeller, 2006: p.14-24).
As transformações na forma semântica do amor devem ser discutidas com base na
teoria dos sistemas. As relações amorosas precisam ser compatíveis com as expectativas
dos envolvidos, com o risco de ameaçarem os sistemas sociais. A preocupação de
delimitação das relações duais satisfaz a “correlação entre a expectativa pessoal e a ameaça
à coesão social”. Este código-norma reforça a idéia de que se deve amar uma pessoa de
cada vez (Luhmann, 1991: p.231).
Pode-se afirmar então que não se deve falar em confiança nas relações amorosas,
abrindo mão da teoria dos sistemas. A seguir, serão abordados alguns conceitos relevantes
à definição da noção de confiança.
140
IV.2. Familiaridade e não-familiaridade, risco e perigo: limites e possibilidades da
confiança
Na tentativa de compreender a sociedade moderna, deve-se atentar para duas
mudanças estruturais independentes: 1. o aumento das familiaridades e não-
familiaridades, tanto no que se refere à diversificação quanto à particularização. 2. o
crescimento da substituição do perigo pelo risco e uma avaliação das conseqüências das
ações e omissões de perigos futuros. A exigência de correr o risco levará os agentes a
necessitarem mais e mais de confiança. Isso não significa que eles poderão evitar o
destino, apenas explicar os acontecimentos de forma mais clara (Luhmann, 2000: p.100).
IV.2.a) Familiaridade e não-familiaridade
“Em sua maior parte, a familiaridade próxima impede que o problema da
confiança se converta em matéria de reflexão. E quando a reflexão realmente
ocorre em tais circunstâncias, sua primeira vítima é precisamente a
familiaridade no sentido de que totalmente por feitas as coisas. Um
abismo de falta de familiaridade se produz inclusive com respeito às coisas e
às pessoas mais próximas, e a dúvida se transforma em uma estranheza
surpreendente” (Luhmann, 2005 p. 56).
A familiaridade é a precondição para confiança ou desconfiança. As situações
perigosas ou propícias necessitam dessa familiaridade, construída socialmente. Apesar
disso, a familiaridade se une à confiança da mesma forma que o passado se integra ao
futuro (Luhmann, 2005: p.32-33).
141
Falar em familiaridade ou relações de proximidade não é o mesmo que falar em
confiança. A primeira é considerada um fato inevitável da vida, enquanto a segunda, uma
solução que explicita os problemas do risco. Por outro lado, a confiança ocorre no mundo
familiar (Luhmann, 2000: p.94). Assim, a familiaridade cria uma distinção entre o familiar
e o não familiar, tocando o campo familiar e encobrindo o não familiar. A familiaridade e
a segurança apresentam uma assimetria entre o sistema e o ambiente. A segurança surge
em situações contingenciais e perigosas. Por um lado, algumas sociedades estabelecem a
distinção entre o familiar e o não familiar através do poder religioso. Por outro lado, a
diferenciação dos atores sociais é realizada pela lei e pela política (Luhmann, 2000: p.97).
Em sua reformulação do conceito de mundo da vida, Luhmann (2000: p.95) afirma
que se tem permanecido num mundo familiar e que ele produz a falta de familiaridade.
Apesar da possibilidade de se operar apenas com termos familiares, tais procedimentos
são apresentados paradoxalmente. Não se deve, portanto, elaborar uma teoria operacional
da familiaridade, mas apresentar uma contribuição acerca de dois conceitos centrais:
segurança e confiança, levando em conta que os símbolos formas de auto-referência
servem para criar distinções entre o mundo familiar e o não familiar, dentro do mundo
familiar.
A liberdade origina a necessidade de confiança e pode ser observada quando alguém
é responsável por certos tipos de ação. Com o intuito de manter a função da confiança, a
liberdade deve transitar de um sistema pré-social a outro (Luhmann, 2005: p.69).
A confiança se privatiza ou psicologiza, tornando-se individualmente maleável. Além
disso, ela pode ser restrita a certos modelos de comunicação onde a pessoa é aparentemente
mais competente. O vínculo emocional não é o elemento mais adequado à resposta da
142
confiança. Deve existir uma redução conjunta da complexidade, e não permitir que os
aspectos emocionais turvem a visão (Luhmann, 2005 p.96-112).
A confiança perceptiva apresenta certa desvantagem em relação à confiança
espontânea. Inicialmente, a primeira depende das razões apresentadas pela outra pessoa e
exige mais discrição e atenção daquele que confia. Assim, na confiança pessoal ou
espontânea, a reflexão é considerada uma exceção, ao contrário da confiança no sistema,
onde se confia no que os outros confiam, sendo a consciência formada a partir dessa
relação. Não é necessário relembrar em cada caso individual o fato de que se pode confiar
na confiança. A confiança espontânea cumpre melhor a função de reduzir a complexidade
social do que a confiança perceptiva, por exigir mais das partes envolvidas (Luhmann,
2005 p.118-121).
“A confiança adota uma diversidade de formas. Tem um caráter diferente nos
sistemas sociais arcaicos dos civilizados; pode ser confiança que se origine
espontaneamente ou que é pessoal e se forma de uma maneira tática
perceptiva, ou pode ser confiança nos mecanismos gerais do sistema”
(Luhmann, 2005 p. 164).
Já que as características negativas que permeiam a desconfiança, tais como o
caráter emocionalmente tenso e desequilibrado, não facilitam a interação social, as relações
costumam surgir com base na confiança. Em outras personalidades e sistemas sociais, no
entanto, pode-se optar pela desconfiança, quando da resolução de situações problemáticas
(Luhmann, 2005 p.125). A desconfiança encontrada no espaço familiar desenvolve-se
através da aparição inusitada de inconsistências.
Apesar de a experiência cotidiana indicar que as pessoas que possuem segurança
interior, bem como os sistemas sociais, costumam estar mais dispostas à confiança, deve-se
143
dizer que tal afirmação não passa de uma conjectura que lança uma outra questão: o que
significa confiar em si mesmo? As expectativas seguras costumam oferecer uma maior
instabilidade psicológica do que as expectativas inseguras, isto porque a primeira tem a
tendência de romper-se na primeira desilusão. No segundo caso, as expectativas positivas
não são abandonadas, mas se espera também o oposto. O problema da confiança é marcado
por essa estabilização das expectativas (Luhmann, 2005: p.136-138).
IV.2.b) Risco e perigo
Em Niklas Luhmann (apud Brüseke, 2007: p.71), o conceito de confiança vem
acompanhado de uma distinção entre o risco e o perigo. O primeiro só ocorreria quando os
danos gerados fossem decorrentes da decisão do indivíduo. No segundo caso, ele não seria
responsabilizado por suas perdas, geradas a partir da ação de terceiros, de fenômenos
naturais ou de outros fatores fora do seu controle.
O término de uma relação amorosa pode significar um risco para quem tomou a
decisão – que poderá sofrer as conseqüências caso venha a se arrepender e um perigo
para quem sofreu a ação, considerando que não haveria mais nada a fazer, diante da
decisão do outro. Dentro de uma lógica monogâmica, aquele que trai prefere correr o risco
advindo de sua ação, e não o perigo, decorrente da ação do outro. Assim, a fidelidade do
outro costuma ser valorizada mesmo por aqueles que não a praticam.
O século XVIII veio acompanhado da perda de confiança na performance corporal.
Além disso, anuncia-se o término da retórica. Nas palavras de Luhmann (1991: p.140):
144
“Com isto relaciona-se o colapso da confiança absoluta nos esquematismos
cognitivos e morais anunciados através da superficialidade de novos
conceitos morais, através das tentativas para desmascarar não o pecado nem
o amor-próprio, mas a mediocridade (La Bruyère) e não menos importante,
através do diagnóstico do «mundo» enquanto turbulento (termos na moda
tourbillon, torrent) e frívolo”.
A confiança no sistema não está ligada unicamente aos sistemas sociais, mas a
outras pessoas, como sistemas pessoais. Percebe-se que o ato de confiar pode sofrer
influências emocionais desenvolvidas em termos de apresentação, fundamentalmente
(Luhmann, 2005: p.36).
“A confiança reflete a contingência. A esperança elimina a contingência. A
confiança pode também mostrar-se imprudente, descuidada e rotineira e
deste modo não requer gasto desnecessário de consciência, especialmente se
a expectativa se aproxima à certeza (Luhmann, 2005: p.41).
A natureza instável da confiança pode ser exemplificada com a mentira. Neste caso, a
confiança pode ser alterada de maneira implacável. Por outro lado, ela pode estar apoiada
em uma ilusão. O déficit de informação pode substituir a necessidade de informação ao
êxito (Luhmann, 2005: p.53).
O mundo da observação de segunda-ordem atinge tanto a consciência individual
quanto a comunicação e é considerado limitado por transportar tudo que é dito e pensado.
Neste caso, o mundo é considerado uma enorme caixa preta, podendo ser mais visível
através da observação de primeira-ordem (Luhmann, 2008: p.229). Por outro lado, toda
observação é formada por um ponto cego, tanto do ponto de vista do observador quanto do
observado (Luhmann, 2005: p.IV).
Diferentemente do conceito de segurança, deve-se falar em confiança quando este
conceito refere-se a um envolvimento prévio do agente e certa situação de risco. Tal
145
diferenciação envolve tanto a percepção quanto a atribuição. Quando alternativas não são
consideradas pelo agente, pode-se falar em segurança. A confiança exige que o agente aja
de uma forma, dentro de um determinado conjunto de possibilidades, com o intuito de não
ser desapontado. Na segurança, a frustração é o resultado de uma atribuição externa ao
agente, ao contrário da confiança. O amplo sistema funcional depende tanto da segurança
quanto da confiança. A falta de segurança pode gerar um estado de insatisfação e até
mesmo de anomia social. Por outro lado, a falta de confiança está relacionada à
experiência pessoal. As decisões implicam na aceitação dos riscos envolvidos. “A falta de
segurança e a necessidade de confiança podem ser transformadas em um círculo vicioso”
(Luhmann, 2000: p.96-99). A distinção entre segurança e confiança está relacionada à
diferenciação entre perigo e risco.
uma relação de influência mútua entre a segurança e a confiança, ou seja, as
relações sistêmicas podem modificar as relações das(os) parceiras(os) e vice-versa
(Luhmann, 2000: p.97). Nas relações amorosas, a confiança na(o) parceira(o) afeta a
segurança presente no sistema social, sendo também verdadeira a proposição inversa.
“Portanto, a consolidação da confiança constitui uma solução vantajosa
para o problema primordial da ordem social, a existência de um alter ego
livre, embora sujeito a toda classe de condições. Em vez de amar mesmo
contra a incerteza da outra pessoa na intensa complexidade de todas as
possibilidades, alguém pode tratar de reduzir a complexidade concentrando-
se na criação e conservação da confiança mútua, e comprometer-se numa
ação mais significativa com respeito a um problema agora mais estreitamente
definido” (Luhmann, 2005 p. 112).
A relação existente entre a confiança e o risco existe porque esse último ocorre
em decorrência de algum tipo de ação ou decisão, não existindo por si mesmo. O risco
acontece quando existe um cálculo interno das condições externas. Assim, a pessoa que
146
arrisca tem consciência de suas vantagens e desvantagens. Como diria Luhmann (2000:
p.98): “A confiança baseia-se numa relação circular entre risco e ação, ambas com
exigências de complementaridade”. A percepção do risco é bastante subjetiva, podendo
ser buscada ou evitada de diferentes formas.
IV.3. Do amor e suas dimensões
IV.3.a) O amor: aspectos sócio-históricos
O amor cortês não desconsidera a demarcação realizada entre a reprodução
familiar e o affair amoroso, mas acrescenta a idéia de um forte amor, que segue em
direção a apenas uma mulher. A relação entre amor e sexualidade é superada no século
XVII, integrando a idéia de sexualidade como elemento fundamental do amor. O romance
não parece vir acompanhado de uma narrativa plausível, mas de uma galanteria. Falar em
amor como formas de paradoxo não foi uma novidade do século XVII, tendo sido
encontrado na Idade Média e na tradição clássica (Luhmann, 1991: p.50-71).
Diferentemente do amor, relacionado com Deus ou consigo mesmo, a amizade
precisa da outra pessoa. Por volta de 1700, a reflexividade social passou a ser um
instrumento importante para pensar a ética e o direito natural. O amor e a amizade não
foram transformados em sinônimos porque eram concorrentes na determinação do código
das relações íntimas. O código da intimidade foi definido pelo amor, e o pela amizade.
O elemento simbiótico da sexualidade pode ser apontado como uma das possíveis
justificativas da definição do código (Luhmann, 1991: p.106-108).
147
É na caracterização do amor como paixão que se pode falar numa mudança
significativa do código amoroso, útil à demarcação das relações morais e sociais
estabelecidas. Em princípio, a passion paralisa o sujeito, consumindo a sua alma e
imobilizando-a, significando a sua passividade. Por outro lado, a passion pode ser tratada
como um tipo de instituição, servindo como instrumento para a constituição de sistemas
sociais. A passividade é explorada semanticamente na exortação da mulher na realização
dos desejos, que o sofrimento do homem existe em decorrência da beleza da mulher.
Este conceito passivo da passion ultrapassa o século XVII. Trata-se de “sofrer um
estímulo”. Pode-se associar a galanteria
43
a uma semântica romanesco-idealista, com
estilo vinculativo que pode ser falacioso e sedutor ou amoroso e verdadeiro. O amour
passion é transformado em amor romântico. A paradoxização é o elemento fundamental
da unidade amorosa, sendo um fator complicador do casamento. A semântica do amour
passion foi associada ao frívolo ou superficial, podendo ser citada quando da existência de
um amor desenfreado. Apesar disso, o amour passion não é aceito como código
lingüístico por parte de seus participantes. “O amor como paixão” marcado pela ênfase
na liberdade da escolha nas relações amorosas, e considerado um dentre os elementos que
originaram o amor romântico – que surgiu na França do século XVII, tendo sofrido
diversas mutações. Ainda no amor cortês, pensa-se na união mundana como símbolo do
amor de Deus. Ao mesmo tempo, outros códigos de intimidade surgiam, a exemplo da
vida doméstica na Inglaterra e da exaltação do indivíduo na Alemanha (Luhmannn, 1991:
p.73-145).
43
A galanteria representa a diversidade de vínculos, ou seja, formas distintas de relações amorosas,
universalmente válidas. Na medida em que a estilização individual do amor passa a ser valorizada
socialmente e que a burguesia absorve os padrões aristocráticos, a galanteria é tomada pelo “repúdio e à
troça”, e a reintegração amorosa e social dá espaço à legitimação do sentimento (Luhmann, 1991: p.102).
148
“A transição do conceito passivo de passion para o ativo constitui-se mais
tarde na pré-fase de qualquer individualização possível, pois apenas o agir e
não o viver é algo que pode acontecer individualmente” (Luhmann, 1991:
p.75).
A definição de um novo conceito de passion, formada a partir da mistura entre a
atividade e a passividade não exclui a assimetria entre os sexos. Neste sentido, o amor
pode ser apresentado de duas formas: 1. como uma luta caracterizada pelo assédio e
conquista feminina e 2. auto-submissão da amada, através da renúncia plena das
especificidades pessoais. Neste caso, poder-se-ia falar em perda de identidade. A relação
de reciprocidade funciona como uma espécie de obrigação (Luhmann, 1991: p.77-78).
Por volta de 1700, os franceses não acreditavam na estabilidade do casamento.
Entre os ingleses, constatou-se no mesmo período que o amor e o ódio foram mais
cultivados, acompanhados do aumento de sensibilidade. O mundo moderno não apresenta
posições contrárias ao conflito existente nas relações amorosas (Luhmann, 1991: p.210).
A art de plaire e a galanterie do século XVII – utilizadas para dar início e
continuidade às relações amorosas, com pretensões verdadeiras ou falsas passaram a ser
consideradas danosas, frente às mudanças advindas da compreensão da pessoa e do
sentimento. Na tentativa de obtenção do sucesso, aconselhava-se “imitar a falsidade e de
um modo tão exagerado que lhe permita lucrar assim em individualidade”. A partir de
1760, o sedutor deixa de ser visto como personagem moral, passando a ferir por ferir, logo
que seus encantos sejam naturalizados, sendo transformados em algo insignificante pelas
damas (Luhmann, 1991: p.137-141).
149
“Todavia de Montaigne a Rousseau correm paralelamente duas orientações.
Existe já a dúvida radical quanto à possibilidade de ser sincero como atitude e o
desmascaramento do absurdo da tentativa. Tal dúvida resultará na tomada de
conhecimento da incomunicabilidade da experiência individual, do ser próprio
autêntico” (Luhmann, 1991: p.139).
Em relação ao amor, o século XVII valorizou os grandes acontecimentos heróicos,
frustrados e felizes. No século seguinte, surge um interesse pelo que é normal, tanto da
literatura que destaca o vulgar quanto a moral através de uma técnica do
desmascaramento (Luhmann, 1991: p.161).
O sentimentalismo inglês e a sexologia do século XVIII valorizaram o casamento.
Os interesses mais gerais, ligados à diferenciação da economia, se sobrepuseram à família,
enfraquecendo-a (Luhmann, 1991: p.193).
As mudanças da sexualidade mais importantes ocorreram no século XVIII,
principalmente no que diz respeito ao mecanismo simbiótico relacionado à semântica do
amor, menos do que à práxis sexual. Além disso, com a ampliação da reflexividade pessoal
e social, a sexualidade é estudada como um fenômeno que não se restringe às dimensões
religiosas e ético-políticas (Luhmann, 1991: p.147-149).
O modelo francês da segunda metade do século XVIII foi marcado pela libertação
sexual, especificamente nas camadas sociais elevadas. As relações extramaritais foram
formadas por um código bastante complexo. Diferentemente do modelo francês, o modelo
inglês pode ser identificado por seu retraimento, através de uma norma social rígida que
favorece a incomunicabilidade. “A hipocrisia «vitoriana» não passa de uma designação
incorreta”. Foi na Inglaterra que se proclamou, pela primeira vez, a ligação entre amor e
casamento, com ênfase na virgindade antes do casamento. Mas o amor não deveria ser
150
restrito a tal exigência. Esta incongruência acabou com a integração psicológica e
semântica. Apesar das influências, tanto na Alemanha quanto na França do
sentimentalismo inglês, a sexualidade foi trabalhada de forma tímida na Alemanha do
século XVIII. Sensibilidade (empfindsamkeit) e ternura surgem como conceitos
entrelaçados às qualidades objetivas e morais da pessoa amada. A evolução do meio de
comunicação do amor se deu a partir de algumas orientações e funções: as paixões
extramatrimoniais ocorridas na França; a vida privada da Inglaterra e a cultura Alemã
(Luhmann, 1991: p.151-194).
A obrigatoriedade do matrimônio sem o desejo das partes é negada com base em
princípios da razão e da moral. O amor como dever é tomado pelo amor como simpatia,
privilegiando a relação de amizade estabelecida entre os casais. Esta amizade íntima foi
tema relevante durante todo o século XVIII. Tinha-se como objetivo transformá-la no
código íntimo do amor. A constância dos comportamentos sexuais mina o amor, que
precisa de imprevisibilidade para não arrefecer. A identidade também necessita da
inconstância para sobreviver, e é consumida pelo amor. A partir do século XVIII, esta
lógica é quebrada. A identidade é sugada pelo amor, podendo libertar-se através da
inconstância (Luhmann, 1991: p.105-132).
O século XVIII é marcado pelo fim da retórica, ou seja, a falta de confiança técnica
na comunicação. O fracasso da performance abala o amor falso, não o verdadeiro. Como as
relações sociais são consideradas amplamente reflexivas, os erros de comunicação são
vistos como padrões de comunicação, a exemplo do cinismo e da ironia (Luhmann, 1991:
p.165).
151
É a partir da segunda metade do século XVII e próximo de 1800 que se pode
estabelecer uma distinção entre amor passion e amor romântico, a partir da distinção de
quatro campos de sentido: 1. o tipo de código; 2. a justificativa do amor; 3. “o problema
ao qual reage a transformação ao procurar abrangê-lo e 4. a antropologia que se deixa
integrar no código”. Na definição de uma semântica das relações íntimas, o campo das
relações amorosas pode ser visto de formas diversas. A passagem da idealização para a
paradoxização foi identificada na segunda metade do século XVII. Por volta de 1800,
outra mudança é observada, desta vez, o amor é transformado em uma reflexão da
autonomia ou da auto-referência. A unidade do código amoroso sofreu algumas
modificações (Luhmann, 1991: p.49-50).
Três dimensões foram utilizadas por Luhmann na passagem da sociedade
tradicional européia para a sociedade moderna: 1. a dimensão social mídia e
comunicação – formada pela distinção entre alter e ego, em oposição à semântica européia
tradicional da pessoa e do sujeito; 2. a dimensão temporal marcada pela separação entre
o passado e o futuro; e 3. a dimensão factual caracterizada pela diferenciação funcional
que deve efetuar a determinar o sistema e o ambiente (Luhmann, 2008: p.xvi-xvii).
“O romance do século XIX conduz por fim à reocupação da posição, a partir
da qual o amor pode ser refletido: no lugar do amour passion surge o amour
vanité superior pelo fato de ter de refutar não todos os outros prazeres,
mas por ter de negar-se a si próprio” (Luhmann, 1991: p.186).
No romantismo, o casamento passa a ser um ato de amor. O amour passion deixa
de valer como código clássico estrutural quando não se pode mais distinguir o amor
sincero e falso. A diferenciação entre amar e não amar mais não é traduzida na
comunicação, considerando o reflexo desta no âmbito social. “O próprio amor transforma-
152
se no ponto de vista do fracasso da sua codificação”. A tradição do amor passion não é
mais reconhecida, restando apenas o envolvimento sexual, independente do vínculo
emocional. O elemento sexualmente simbiótico serve de parâmetro para o amor romântico
(Luhmann, 1991: p.187-214).
Diferentemente do amor cortês ou galante, onde as investidas se realizam entre
conhecidos, tem-se posteriormente a combinação entre acaso/destino, onde a ausência de
pressupostos anteriores não representa uma dificuldade ao significado da relação amorosa,
reforçando-a inclusive, já que independe das mudanças exteriores (Luhmann, 1991: p.190).
“Através da simbólica da diferenciação plena da passion e do acaso e da
técnica de codificação da paradoxização, o mundo moderno não dispõe de
qualquer princípio pelo qual foi possível prever a estabilidade quer do
casamento quer das outras relações íntimas. Face a esta situação, na qual a
semântica do amor entra em conflito com as exigências de sentido duradouro
para mundos pessoais, o romantismo reage através da fuga para a
intensificação excessiva” (Luhmann, 1991: p.191).
Se o amor refere-se a uma relação entre um eu e um tu, a reciprocidade da relação
poderá existir diante das diferenciações sociais: beleza, poder aquisitivo, etc. Por outro
lado, não se pode falar em democratização do amor em si no romantismo, considerando a
falta de igualdade de condições. A função do amor romântico é a de transformar a
insegurança e certeza subjetiva, tal como “um substituto mágico de antevisão”. Através dos
tipos de representações, a insegurança pode ser interpretada como certeza nos processos
interacionais, podendo ser corroborada socialmente e, consequentemente, chegar à certeza.
O romantismo “celebra o invulgar através de uma orgia delirante”, já que reforça a idéia de
casamento quando das pressões sociais, mas não soluciona o problema do dia-a-dia do
amor dos casados, transformando o futuro destes em culpa (Luhmann, 1991: p.184-198).
153
“Só mesmo em uma de suas dimensões o amor romântico parece refratário
ao mercado: a de interação mediada por um código especial. Para que se
configure a relação romântica é necessária a criação de um âmbito de
comunicação (improvável) que destaque e aparte os amantes do entorno
social” (Costa, 2005: p.124).
Depois da passion desenfreada, a diferenciação do amor foi tomada pela frustração
dos quadros cognitivos e morais referentes ao amor, expressos de forma autônoma.
Portanto, é improvável que se consiga apresentar uma distinção plena dele.
IV.3.b) O significado do amor
É possível estabelecer uma codificação da intimidade partindo em primeiro lugar
“da inclusão do ambientee da relação com o ambiente”, com o intuito de investigar a
forma de comportamento do investigado, a partir de seu ambiente. Em segundo lugar,
deve-se estar atento “à inclusão da informação e tratamento da informação”, ou seja, a
comparação da realidade vivida no sistema estudado com questões contingenciais. Por fim,
a valorização da auto-representação (Luhmann, 1991: p.226).
“Logo que a sociedade simula de um modo estrutural o interesse
contraditório pelas relações impessoais e pelas pessoais é possível resolver
com muito mais à vontade este problema relativo à codificação da
intimidade. Ou seja, a semântica do amor pode ser simplificada, banalizada
mesmo; o que não significa porém que o próprio amar se torne mais simples”
(Luhmann, 1991: p.228).
Segundo Luhmann (1991: p.182-220), a sociologia de 1920 e1930 concluiu que o
amor romântico não era capaz de ser estendido até o casamento, considerando que existiria
154
um problema de programação. Esta explicação foi substituída pela idéia de «regressão
social», provocada pela liberalização entre os casais, de caráter mais pessoal. Neste caso,
deve-se realizar uma separação entre análise sociológica estrutural e análise semântica. Em
geral, o casamento não passa de uma tentativa, apesar de se saber o que se espera dele. A
frivolidade substitui a amizade no amor. Um dos maiores obstáculos da cultura é apoderar-
se do “si-mesmo transcendental”, mas costuma ser derrotada, tornando-se idealista, quando
da passagem do amor para o casamento estruturado empiricamente. O maior objetivo do
amor – a promoção da individualidade – é então desfeito (Luhmann, 1991: p.220).
“A exigência imposta, sobretudo em Inglaterra, relativa a uma vida familiar
pessoal e íntima associa-se a um sentimentalismo moral e novo. Em ambos os
aspectos, a distinção que gera os temas coincidem com a recusa da
submissão estrutural da mulher e do decalque da hierarquia política no seio
da família. A diferença estrutural entre família e soberania política produz,
portanto, por seu lado, a distinção semântica que impulsiona a evolução do
código das relações íntimas” (Luhmann, 1991: p.174).
O amor foi visto por Luhmann como uma “interpenetração interpessoal”, através de
símbolos comunicativos e modelos de significação e interpretação considerados bastante
diferenciados, chegando mesmo à inacessibilidade daqueles que se encontram fora da
lógica do casal (Costa, 2005: p.115).
“Por interpenetração deve entender-se também a situação em que os amantes
admitem reciprocamente o respectivo mundo, renunciando à possibilidade de
integrar tudo numa totalidade” (Luhmann, 1991: p.235).
Segundo Korfmann (2002: p.84), o discurso amoroso é tratado por Luhmann como
uma semântica ou medium de comunicação generalizado simbolicamenteque tem como
função a superação da improbabilidade da comunicação, tornando-a legível. O amor não é
reconhecido como um sentimento, mas como um código de comunicação formado por
155
regras que transmitem, simulam e negam os sentimentos amorosos. Ao contrário do que
foi sugerido por Korfmann, Luhmann (2005: p.141) afirma que os sentimentos tentam
escapar dos questionamentos sempre que possível. Com algum tipo de confirmação, a
ansiedade é arrastada para o fundo do sentimento e alimenta a continuidade da relação. “O
amor e o ódio nos cegam”. Em outro momento, porém, Luhmann (1991: p.7) afirma que o
amor, fundamentalmente, é tratado como um código simbólico que anuncia o êxito na
comunicação, e não um sentimento ou o seu reflexo.
“Os amantes podem manter uma conversa interminável com o outro, uma vez
que tudo o que é vivido é digno de ser comunicado, pois encontra ressonância
comunicativa” (Luhmann, 1991: p.212).
A semântica do meio de comunicação é simbolizada, mais do que formulada, na
medida em que o amor é narrado, através do seu símbolo central: a paixão, aquilo que não
se controla, ou seja, que foge ao controle social, apesar de aceito e cultivado. A
compreensão no amor é nociva por corroborar com a aceitação de que o amor é instável.
Neste caso, convive-se com certo conformismo social e cria-se uma barreira para tratar
dos problemas existentes entre o casamento e o amor. O amor não se refere apenas às
ações mútuas dos indivíduos na busca do plaisir, mas fundamentalmente às vivências que
transformam a realidade social (Luhmann, 1991: p.27-29).
No casamento, a sensualidade é reduzida, sendo formado pela compreensão mútua
e longe da paixão. Nas palavras de Luhmann (1991: p.158):
“Num quadro de relações sexuais sem barreiras, o casamento não poderia
ser transformado num relacionamento íntimo; experiências semelhantes
podiam ser obtidas através das amizades”.
156
A codificação da intimidade (caracteristicamente sexual) surgiu como um
elemento de contraposição à ordem pré-estabelecida e firmou-se através de concessões
feitas à semântica, em especial nas manifestações de insensatez e de instabilidade
observadas. O código de comunicação do amor como paixão relaciona-se com a
individualização e informa os modos de viver e de agir futuros (Luhmann, 1991: p.38-
111).
Os parceiros envolvidos amorosamente são vistos de forma condensada, a partir de
duas dimensões: o sistema social construído socialmente e a participação do casal. A
unidade do amor passa a criar enquadramentos sociais que reproduzem os paradoxos do
dia-a-dia. O acaso do amor não costuma ser duplo, considerando a irracionalidade da
paixão (Luhmann, 1991: p.43-76).
No que toca aos condicionantes da comunicação íntima, deve haver a
individualização entre os participantes, de modo que os interesses próprios e a reflexão
acerca da relação sejam preservados. Um outro aspecto desse tipo de comunicação refere-
se à distinção entre o que se faz e o que se observa. Tal diferenciação pode desaguar em
um conflito de papéis, onde o agente justifica o seu comportamento segundo as
características situacionais, e o observador enfatiza a personalidade do agente. Por outro
lado, o amor pode ser simbolizado apenas quando existe uma mútua e constante
disponibilidade no que se refere às ações e às atenções do casal (Luhmann, 1991: p.39-
42).
A distinção ilegitimável entre os sexos não tem mais lugar no mundo hodierno.
Neste cenário, a insegurança surge da incapacidade da antiga distinção sexual, podendo ser
157
vista como alternativa entre o amor verdadeiro e o falso amor, recebendo da semântica uma
forma de vida (Luhmann, 1991: p.36-215).
“O caráter trágico o reside no fato de os amantes não se encontrarem,
mas no fato de as relações sexuais gerarem amor e no fato de não ser
possível viver segundo ele nem libertarmo-nos dele” (Luhmann, 1991: p.215).
A relação íntima tem início com a estratégia biográfica, ou seja, quando uma das
partes fala de sua vida pessoal a outra parte, dependendo tanto de fatores psicológicos
quanto sociais. Apesar de valorizar um mundo extremamente pessoal, a sociedade moderna
suspeita que não seja possível sustentar tal concepção (Luhmann, 1991: p.219-229).
Os psicoterapeutas substituem o romance, passando a orientar os amantes. Nas
palavras de Luhmann (1991: p.224):
“É difícil avaliar a influência dos terapeutas sobre a moral (e a da moral
sobre as terapeutas), mas decerto que ela é temível. Tal influência coloca no
lugar do amor a saúde precária, a constituição individual carente de
tratamento; para o amor produz então apenas a idéia de uma terapia
recíproca prolongada com base num falso entendimento da sinceridade” .
No amor, a reflexividade implica em ambiguidades advindas da tentativa de
explicar esse sentimento e nas incertezas que o cercam. O maior dos sentimentos pode
resultar em repugnância (Korfmann, 2002: p.85). A reflexividade no amor descortina a
vulnerabilidade do amante do amor, traduzida em gestos que denunciam a sua mácula,
através da distinção do eu que ama a outra parte (Luhmann, 1991: p.185).
Existe um princípio essencialmente racional no amor conjugal. O
compartilhamento de determinado espaço pode ser visto como uma forma de dar
continuidade a certo estilo de vida. O matrimônio não se realiza com o intuito de alimentar
158
permanentemente os sentimentos passionais e um mundo ideal, mas de realizar aquilo que
é significativo e importante para a pessoa.
Ao contrário dos interesses, o amor não calcula perdas e ganhos. Mesmo que se
possa atingir certos objetivos, eles não serão alocados para o amor, que os seus pontos
são fluidos e servem para conscientizar o amor. Por outro lado, o altruísmo pode ser
negado no amor na medida em que se destaca a vontade da(o) amante em também ser
objeto de desejo (amado) (Luhmann, 1991: p.32-84).
As diferenciações sexuais diminuem quando os próprios motivos são resgatados ou
quando se deseja atribuir ao outro sexo, justificativas ao casamento. Pesquisas revelam que
os homens, mais do que as mulheres, costumam inicialmente criar um ser-amado
romântico. Além disso, o sexo é considerado um elemento que mantém e intensifica o
amor (Luhmann, 1991: p.195-198).
O amor é visto como um meio de comunicação simbólica na interação entre o
“alter” e o “ego”. O fluxo de informação, a transferência da seletividade do alter (amado)
para o ego (amante) transfere, portanto, o viver para o agir” (Luhmann, 1991: p.25).
“Quando nos apercebemos que, quer para o ego quer para o alter, se trata
da questão relativa às relações entre pessoas e ambiente, de uma questão
afinal que o pode ser simplesmente fixada através da descrição de
características pessoais desejadas, torna-se difícil imaginar soluções ao nível
de uma semântica transmissível de geração em geração pela tradição”
(Luhmann, 1991: p.214).
A identidade é vista como um elemento dinâmico nas relações amorosas. Não se
trata “do-modo-como-ela-sempre-é”, mas “crescendo-com-o-amor”. Por outro lado, não se
deve descartar o conceito de estabilidade (Luhmann, 1991: p.43).
159
O marido não adverte a sua mulher dos riscos das investidas dos sedutores para
não despertar-lhe a atenção e o interesse. Além disso, não se deve confiar unicamente na
habilidade. A combinação entre conquista e auto-submissão pode ser interpretada como
contraditória, apesar da submissão ser concebida pela mulher. Isto ocorre porque ambos
acreditam na potencialidade do amante (Luhmann, 1991: p.77-79).
“Paradoxos semelhantes associam-se, corroborando a impressão segundo a
qual é exatamente da construção que depende a obtenção de algo que não
seria possível de outro modo. Assim, o amor pode ser considerado uma
prisão, da qual não se gostaria de sair, ou também uma doença, preferível à
saúde, ou uma prevaricação cuja respectiva penitência o prevaricador tem de
pagar. Trata-se aqui, obviamente, de caracterizar uma oposição à
normalidade, uma situação invulgar, situação essa que faz com que um
comportamento invulgar se torne compreensível e aceitável” (Luhmann,
1991: p.80).
O ódio é considerado uma parte do amor, e vice-versa, ou seja, existe uma relação
de mútua dependência entre eles. A falta de réplica no amor pode ser transformada em
ódio (Luhmann, 1991: p.87-88).
“Os diferentes paradoxos (auto-submissão cativante, sofrimento desejado,
cegueira que vê, doença desejada, prisão preferida, doce martírio) culminam
na tese central do código: o desregramento, o excesso; aliás, apesar do alto
apreço que o comportamento moderado desfruta, no amor tal vale como erro
decisivo. O próprio excesso constitui o padrão de comportamento. Tal como
acontece com todos os meios de comunicação, também neste caso o código
necessita de prever em si próprio uma exceção para o seu próprio caso; só se
torna institucionalizável através da assimilação de uma auto-referência
negativa. Uma distância mais ou menos marcada face à raison e a prudence
faz parte da semântica e das exigências para representar o amor” (Luhmann,
1991: p.84).
O amor é auto-destrutivo quando se considera o tempo, e deixa escapar aquilo que
originou o amor ou o que alimentou a imaginação. Neste caso, o amor cede espaço à
160
confiança. É por isso que se pode afirmar que o casamento não alimenta o amor, pelo
contrário, é transformado em indiferença (Luhmann, 1991: p.95-96).
A falta de continuidade no amor justifica a sua dificuldade, especialmente para as
mulheres. É por isso que os temas morais surgem como instrumentos utilizados para a
permanência do amor, mesmo que seja, em verdade, mera retórica. Valoriza-se a virtude
porque se deseja eternizar o amor. Seria necessário estabelecer uma tensão entre
sexualidade e moral, obrigatoriamente privadas e públicas. Algo de privado anunciado num
espaço público (Luhmann, 1991: p.97-214).
O plaisir existe independentemente do amor, podendo o primeiro estar associado ao
segundo. O plaisir é um auto-reconhecimento do sujeito, não existindo a dualidade
inquietante entre amor verdadeiro e falso. Diante do próprio plaisir individual, não existe
nenhum tipo de liberdade. Os plaisires podem ser subtraídos através do plaisir, a exemplo
do amor paixão e das práticas masoquistas. A auto-tortura substitui a liberdade que não se
pode alcançar. A extensão social se contrapõe à diminuição temporal do plaisir, vivido
apenas de forma momentânea. O juramento do amor eterno é necessário e válido apenas
momentaneamente porque precisa aplacar o temor da inconstância. A coquetterie
44
evita a
decepção porque pressupõe a traição, e age de forma a maximizar conquistas. Não deseja
perder-se no amor, mas colecionar conquistas através da galanteria. Na luta de braço entre
o prazer e o amor, o primeiro sai vitorioso. O amor honesto é também vítima do fim do
desejo, sendo transformado em obrigação, contradição apresentada a partir da distinção
entre o amor e o casamento (Luhmann, 1991: p.114-119).
44
O termo coquetterie não é utilizado da mesma forma por Simmel, sendo considerado um jogo feminino
que vai da recusa à aceitação, mas que não é levado às últimas conseqüências, ou seja, o jogo amoroso não é
concretizado.
161
A diferenciação entre o amor frívolo e o amor sentimental não pode ser criada
dentro de um código plaisir-amour. Os elementos que compõem a trama amorosa devem
ser analisados por si só: frivolidade como frivolidade, sentimento como sentimento. Tanto
o “forçar da frivolidade” quanto o “idealizar do sentimento” não são observados de forma
equilibrada na rotina do casamento, servindo para estimular o seu fim, de uma forma ou de
outra (Luhmann, 1991: p.145-147).
“O amor parece ser todavia necessário à mediação entre os sexos. A
aproximação é improvisada de um modo perspicaz, frívolo, cil, a partir de
cada situação oportuna; realiza-se sensível à ressonância, mas jamais de
forma grosseira; sendo sustentada por sofismas que não temem ser
descobertos, tornando-se já, pelo contrário, na base para o passo seguinte”
(Luhmann, 1991: p.150-151).
Apesar da distinção bastante enfática entre amizade (espiritual) e amor (sensual), a
sexualidade é utilizada como instrumento de revalorização da sexualidade. O amor não
existe apenas em sua dimensão sexual, sendo enobrecido por essa na existência do amor
(Luhmann, 1991: p.145-156).
O desenvolvimento da relação amorosa pode ser discutido a partir da distinção
entre simulação do amor (“não sentido como tal”) e dissimulação do amor (“sentido como
tal”). Esta distinção vai além da diferenciação estabelecida entre amor verdadeiro e amor
falso porque apresenta uma dupla dissimulação que pode por em risco a relação amorosa
(Luhmann, 1991: p.118).
O amor não é percebido de forma imediata, já que é desde o início acompanhado de
uma art de plaire. A galanteria pode ser observada tanto no amor verdadeiro como no falso
amor. A troca de gentilezas ou amizade pode resultar no envolvimento amoroso, mesmo
que não se tenha consciência disso. Neste caso, deve-se tornar o amor consciente de si
162
mesmo. O teste do amor pode ser citado como um obstáculo futuro do amor. O amor pode
ser o resultado da coquetterie quando uma pessoa absolve as suas próprias mentiras acerca
do amor, ou seja, quando a performance é transformada em realidade. O código do amor
apaixonado sustenta-se no curto período de tempo e dispensa qualquer fundamentação
moral, considerando a sua natureza instável (Luhmann, 1991: p.116-122).
Para Luhmannn (1991: p.10), os comportamentos sociais são codificados e
absorvidos no romance. Isso explica a sua preocupação com a literatura. Nos romances, os
personagens agem segundo determinado código, apesar da dificuldade em defender teses
particulares que indiquem conceitos e padrões de comportamento. Sabe-se que a
estruturação foi formada pelas diferenças históricas e regionais e que o romance tem
servido de bússola do amor desde o século XVII.
Considerações finais
A semântica amorosa, tal como concebida por Luhmann, é marcada por um
historicismo que limita o seu sentido teórico, restringindo-se a um discurso eurocêntrico
incapaz de perceber as diversidades culturais. Em primeiro lugar, deve-se resgatar o
sentido do conceito utilizado: semântica. Não se trata apenas de um conjunto de símbolos,
mas da forma com que esses símbolos são significados dentro de cada contexto social.
Deve-se, portanto, recusar o uso macrossocial de sua teoria e considerar a interação social
proposta pelo autor. Do contrário, ter-se-ia de admitir que a semântica moderna tivesse
163
sido criada pelos europeus, sendo vista como um movimento centrífugo, e não
descentralizado, como de fato ocorreu (Costa, 2005: p.122-123).
Como explicitado anteriormente, a noção de sistemas sociais é definida a partir dos
sistemas aupoiéticos, podendo ser percebidos de três maneiras: os sistemas vivos, os
sistemas psíquicos e os sistemas sociais. Para pensar o amor, poder-se-ia falar na relação
entre os efeitos produzidos pelo corpo quando se ama; os processos psicológicos
decorrentes desse sentimento e os resultados operados advindos do processo de
comunicação, dentro de um ambiente contingencial.
“Importante, diz Luhmann, numa formulação quase simmeliana, é que a
confiança tem de ser dada livremente (o que, para ele, é sinônimo de
contingente). Não pode ser exigida ou normativamente prescrita. Vale pela
sua rejeição da alternativa possível da desconfiança. Isso não significa que
toda confiança seja espontânea ou, como também diria Luhmann, ingênua”
(Cohn, 1998: p.18).
que a segurança independe da ação do agente, o descompasso amoroso poderia
ser associado aos elementos externos ao casal. Neste caso, o padecer do amor poderia ser
tratado como uma realidade inconteste e a concretização do perigo, uma questão de tempo.
O auto-engano pode ser também considerado nestes termos, quando da não aceitação de
uma das partes do fim da relação e de sua incapacidade em perceber os efeitos causados
pelas ações de ambos. Por outro lado, a segurança garantiria certa estabilidade no sistema
amoroso e serviria de descanso ao indivíduo, não exigindo dele o gasto de energia
observado na confiança. Na medida em que a confiança reduz a complexidade social, o
sistema amoroso é sustentado dentro de determinada ordem social, mesmo que o vínculo
amoroso por si mesmo não responda aos anseios da confiança, devendo-se considerar os
objetos, os sujeitos e o tempo, ou seja, as dimensões da complexidade social.
164
Os processos de intensificação da diferenciação funcional da modernidade
contribuem para a regulação mais satisfatória das interdependências entre relações sociais
variadas, selecionando as interferências de forma mais equilibrada. Desta forma, as
relações amorosas criam uma espécie de escudo contra outros sistemas funcionais e a
tradição. O amor moderno é apresentado como um código de comunicação capaz de
operar as trocas efetuadas entre os casais, respeitando as singularidades de cada um, de
maneira fortemente individualizada, e, transformado em um ideal muito difícil de ser
alcançado, ainda que recorrente. Mais importante do que os assuntos tratados pelo casal
são as afinidades entre os temas tratados, elemento de formação da esfera íntima. Neste
caso, a comunicação não se restringe a sua natureza discursiva, mas é ampliada através de
olhares, gestos e contatos corporais (Costa, 2005: p.120). A superação da improbabilidade
da comunicação amorosa pode ser exemplificada a partir do filme “A vida secreta das
palavras” (La vida secreta de las palabras), de Isabel Coixet. O trauma sofrido por Hanna
(Sara Polley) – violentada e estuprada por soldados em período de guerra – não a impediu
de envolver-se com Jossef (Tim Robins). A “interpenetração interpessoal” foi construída
através dos símbolos comunicativos da dor, ou marcas da violência sofridas por Hanna,
superando a improbabilidade da comunicação, decorrente da individualização e da
diferenciação.
É certo que o amor não é sustentado apenas pelo prazer, estando relacionado
também à manutenção da vida social e aos interesses individuais. Por outro lado, a
confiança no amor não se impõe, sendo oferecida ou negada de forma livre e
contingencial. A segurança influencia a confiança, e vice-versa, na medida em que as
relações são pensadas a partir da teoria dos sistemas. Neste sentido, o risco e o perigo
165
estão associados posto que o primeiro pode ser influenciado pelo segundo, ou seja, num
mundo onde não espaço para a privatização dos afetos, correr o risco pode significar
apenas uma forma de auto-proteção ou caminho mais curto para a solidão sempre
renovada em cada novo desencontro. Uma forma de minimizar o perigo nas relações
amorosas é lançar-se ao desconhecido, arriscando-se. Neste caso, o sentimento de fracasso
poderia ser mascarado ou minimizado. De fato, a confiança no amor seria negada,
transformando a familiaridade precondição da confiança, mas não a garantia da sua
permanência em não-familiaridade. O processo de reflexividade dependeria do aumento
da sensação de perigo. Nos casos em que essas barreiras fossem transpostas, o amor seria
substituído pela confiança, através da redução da complexidade social. O desnudamento
do amor simbolizaria o seu aniquilamento.
166
CAPÍTULO V
“O TEU AMOR É UMA MENTIRA, QUE A MINHA VAIDADE QUER”:
A DESCONFIANÇA NO AMOR EM ZYGMUNT BAUMAN
“Procurei viver, novas emoções
Talvez animado pela vaidade
De fazer sofrer outros corações
E bati na porta da infelicidade”.
Cartola e Elton Medeiros
(Sofreguidão)
Dentre os autores que influenciaram a trajetória de Zygmunt Bauman, destacam-se
três nomes fundamentais: Antonio Gramsci, Albert Camus e Emmanuel Levinas. Em
Gramsci, através de sua preocupação com as estruturas sociais e com as condições de
convicção na necessidade”; o niilismo de Caumus e a ênfase na alteridade das relações e
na importância da moderação ética desenvolvida por Levinas (Tester, 2002: p.55). Apesar
dessas e de outras influências intelectuais, de diferentes orientações teóricas, Bauman é
considerado um autor pós-moderno.
Os diversos temas trabalhados por Bauman: identidade, confiança, comunidade,
globalização, política, modernidade, pós-modernidade, consumo, dentre outros; serão
acionados quando relacionados com o tema proposto, qual seja, o da confiança nas
167
relações amorosas. Neste sentido, este capítulo será dividido em quatro seções: V.1.
“Modernidade e identidade” onde serão apresentadas as distinções entre a modernidade
sólida e a modernidade líquida, bem como a relação destes dois tipos de modernidade com
a construção e os limites do conceito de identidade; V.2. Homo consumens e redes
amorosas – que traz a cena o excesso de individualizão e a fragilidade dos laços afetivos
na modernidade líquida; V.3. Desejo, amor e desconfiança na modernidade quida que
trata da tentativa de dissipação do paradoxo existente entre o homo consumens e o lugar
do amor e V.4. Estratégias de proteção e desconfiança no amor líquido formada pelas
possibilidades estratégicas de definição das relações amorosas e da desconfiança
característica da modernidade líquida.
V.1. Modernidade e identidade
A diferença da modernidade encontrada no século XXI, se comparada à
modernidade do século XX, está na compulsividade e na obsessão da incompleta
modernização. Uma sede de destruição criativa que se alastrou em nome da produtividade
e da competitividade (Bauman, 2001: p.36). Inicialmente, a modernidade se caracterizaria
pela crença na possibilidade de resolução de conflitos. Logo, as contradições seriam
acompanhadas de um “manual” que apresentaria a melhor forma de resolvê-las. A
universalidade e a fundamentação foram os instrumentos utilizados no moderno
pensamento ético (Bauman, 2006: p.13). O controle exercido na modernidade sólida não
168
era exposto às grandes oscilações. As relações amorosas eram marcadas por certo padrão
de estabilidade e controle, ao contrário da modernidade líquida.
A modernidade de hoje é diferente em dois aspectos. Em primeiro lugar, a quebra
da antiga ilusão moderna de que se poderia construir um tipo de sociedade livre de
conflitos e justa, que acabasse com as ambivalências ou as contradições existentes. A falta
da regulação e a privatização das atividades é a segunda característica. A ênfase é dada à
possibilidade de escolha do indivíduo, a partir do modelo de vida e de felicidade
considerados por ele (Bauman, 2001: p.36-38).
Reconhecida por seu admirável tamanho, volume, maquinário pesado e conquista
territorial, a era do hardware ou modernidade pesada foi substituída pela modernidade
leve ou era do software. A “fábrica fordista” serve como modelo bem sucedido na
modernidade pesada, um casamento que prometia fidelidade eterna quando da relação
entre o trabalho e o capital (Bauman, 2001: p.132-134). na modernidade fluida ou era
do software, o capital é cada vez mais extraterritorial e inconstante.
A liberdade das pessoas com as mãos livres existe em contraposição ao domínio
daquelas que se encontram de mãos atadas. Tal afirmativa serve para pensar as relações
tanto na modernidade pesada quanto na modernidade leve. O que muda é a forma com que
essas relações são definidas. A agilidade ou a possibilidade de ação definem a capacidade
de domínio sobre aqueles que não conseguem mover-se com a mesma agilidade ou não
têm condições de deixar o lugar que ocupam quando desejam. Assim, a dominação se
desenvolve na medida em que se é capaz de desengajar-se ou estabelecer a velocidade de
tais mudanças, usurpando, concomitantemente, o direito dos que não conseguem
estabelecer o mesmo ritmo, através da criação de barreiras (Bauman, 2001: p.139).
169
Os mais “escapadiços” ganham espaço na modernidade “fluida”, era do
“desengajamento, da fuga fácil e da perseguição inútil”. O engajamento mútuo da
modernidade lida é então substituído pela astúcia dos que se movimentam sem serem
vistos (Bauman, 2001: p.140-144).
A agilidade de Bill Gates impressionou Richard Sennett (apud Bauman, 2001:
p.144). Gates preferia “colocar-se numa rede de possibilidades a paralizar-se num
trabalho particular”, jogando sempre de forma a desenvolver o desapego sentimental e
impressionando com a sua capacidade de criação em meio aos seus deslocamentos. A
destruição de suas próprias criações se em nome das novas demandas, para o espanto
de Sennett.
Diferentemente do espaço, o tempo pode ser modificado, tendo se transformado
em um fator de disrupção: o parceiro dinâmico no casamento tempo-espaço”. Isso
significa dizer que a relação tempo e espaço deve ser vista como processual e não
predeterminada. A valorização da duração é substituída pelo carpem diem. Tal indiferença
transforma a imortalidade de uma idéia em um instrumento descartável de consumo, visto
como uma mera experiência (Bauman, 2001: p.130-144).
A durabilidade deixa de ser um recurso e se transforma em um risco, na medida em
que as múltiplas possibilidades enfraquecem a infinitude do tempo e desvalorizam a
imortalidade. O advento do capitalismo pode não ter sido tão importante quanto os efeitos
advindos da passagem da modernidade sólida à líquida (Bauman, 2001: p.146).
Michael Thompson (apud Bauman, 2001: p.145) afirma que as pessoas que se
encontram próximas ao topo visam garantir a durabilidade de seus objetos e a
transitoriedade dos outros. Para essas pessoas, a regra é nunca perder. Esta capacidade de
170
monopolização dos objetos pode ser útil à explicação da ocupação dessas posições. A
ética do trabalho é transportada para as relações amorosas, criando outros padrões de
relacionamento e transformando as formas de confiança existentes. Neste caso, poder-se-
ia dizer que a escolha do par da pessoa bem-sucedida profissionalmente tenderia a ser
desigual, uma relação clara entre dominante e dominada(o), porque existe um desnível
profissional, diferenças de classe ou geracional. Em todo caso, situações de dependência.
No mundo instantâneo, o que importa é a busca da satisfação, independente das
suas conseqüências, especialmente as responsabilidades dessa “escolha racional”. Sinais
significativos da gratificação momentânea não sobrevivem às chances de gratificações
futuras. Tudo que é volumoso, pesado e durável, enfim, tudo que iniba e faça cessar o
movimento, passa a ser considerado um risco (Bauman, 2001: p.148).
Como aceitar uma cultura que nega a durabilidade? A cultura e a ética padecem de
sentido. Segundo Bauman (2001: p.149):
“A memória do passado e a confiança no futuro foram até aqui os dois pilares
em que se apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade e a
durabilidade, a mortalidade humana e a imortalidade das realizações
humanas, e também entre o assumir a responsabilidade e viver o momento”.
Desde a perspectiva moderna, os fenômenos morais antecedem ao cálculo de
benefícios e desvantagens, além de não se renderem a eles, visto que não obedecem a
padrões regulares. Por isso, são considerados o racionais”. A ambivalência é inata do
indivíduo, apesar dele tentar escapar desse tipo de fraqueza. A moralidade é
inevitavelmente aporética. Apenas as questões triviais podem ser tidas como boas, sem
revelarem qualquer tipo de contradição. O seu provável destino é a irracionalidade, já que,
desde a ordem racional”, pretende-se moldar e disciplinar a ação. Aqui, a autonomia do
171
eu não tem lugar. A responsabilidade moral é o ponto de partida da sociedade, e não o seu
resultado. A ambigüidade existente no âmbito da legislação ética evidencia a importância
de tal assertiva (Bauman, 2006: p.15-20).
A afirmação de que a moralidade é não-universalizável não é utilizada para
reforçar a concepção do relativismo cultural, mas antes para servir de contraposição a uma
“versão concreta do universalismo moral”. A perspectiva pós-moderna da moralidade não
foi criada para reforçar o argumento do relativismo da modernidade, servindo exatamente
para negar certo paroquialismo moral disfarçado de uma ética universal (Bauman, 2006:
p.15-22).
Segundo Bauman (2005: p.22-38), não nada por descobrir na identidade, mas
sim inventar com o intuito de atingir determinado ‘objetivo’, mesmo que se tenha que
ocultar a verdade “sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade”. As
identidades fixas e inegociáveis não são permitidas ou aceitas no mundo líquido
moderno.“Em nosso mundo de ‘individualização’ em excesso, as identidades são bênçãos
ambíguas”, variando entre o sonho e o pesadelo. É possível que essa relação ambivalente
da sociedade líquido-moderna seja a mais comum e perturbadora, ocupando um lugar
central nas discussões existenciais.
“Em nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para
toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à
frente, é um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, não
para armazenar e manter” (Bauman, 2005: p.96).
A modernidade tornou-se sinônimo de movimento como causa da incapacidade de
atingir a satisfação. Neste cenário, a identidade surge como um projeto não-realizado. “A
172
esse respeito, não há muito que distinga nossa condição da de nossos avós” (Bauman,
2001: p.37).
Na sociedade de consumidores, os símbolos relacionados à construção da identidade
são considerados as moedas de troca e de venda, observados a partir da suposta expressão
pública do self. A subjetividade dos consumidores é definida a partir das escolhas de
compra. O que se define como a “materialização da verdade interior do self” não passa de
uma “objetificação” material dessas escolhas (Bauman, 2008: p.24).
A questão do quem sou?” surgiu na modernidade com a idéia de uma sociedade
meritocrática, que se sobrepôs à sociedade pré-moderna de nascimento. A modernidade
exige uma auto-definição a partir da biografia do indivíduo. O exemplo de Jean-Paul
Sartre é bastante ilustrativo: para ser burguês, é necessário viver a vida toda como
burguês. A pergunta “Quem sou eu?” pode ser respondida a partir dos vínculos criados
com os outros. Os relacionamentos humanos contribuem para as auto-definições, apesar
de seus riscos. tanto uma preocupação moral em relação ao outro quanto uma auto-
constituição do indivíduo (Bauman, 2005: p.56-75).
Não existe uma definição clara entre o que é “perverso” ou “saudável” no líquido
espaço moderno. Salvo alguns casos, a exemplo da pedofilia e a da pornografia infantil, as
formas de atividades sexuais costumam ser reconhecidamente benéficas para os males da
mente humana, sendo cada vez mais legitimadas e aceitas. O homo sexualis não deve
esforçar-se em responder se os desejos sexuais são naturais ou construtos sociais, mas
preocupar-se com a forma mais adequada para si mesmo, dentre as diversas identidades
sexuais, transformando uma sina imutável numa “vocação pessoal”. Por outro lado, na
medida em que a performance suplanta o êxtase, o mistério que cercava a relação é
173
quebrado, “o físico está por dentro, a metafísica, por fora”. Apesar do atual estímulo
sexual – cultivado nas novas academias que prometem resultados físicos milagrosos, além
de excelentes remédios o homo sexualis está fadado à frustração porque tais
performances não suprem o vazio deixado (Bauman, 2004: p.64-76).
Os novos movimentos ou atores sociais são criticados por Bauman por ele não
acreditar num lar óbvio a ser dividido pelos insatisfeitos sociais. O problema apontado da
identidade pode ser identificado a partir de duas dúvidas centrais: a escolha da identidade
e a permanência decorrente dessa escolha, que a opção da identidade na modernidade
líquida não se restringe à “construção social”. de se ter consciência de que a seleção
das identidades é um exercício político (Szwako, 2006: p.3-4).
Neste novo cenário moderno, as identidades não ocupam mais o lugar de antes.
Diante das indefinições próprias do mundo líquido moderno, a confiança nas relações
amorosas flutua em meio a um oceano instável e turbulento. Afinal de contas, quem é esse
sujeito que sobrevive a tantas incertezas? Por que navega? Onde pretende chegar?
174
V.2. Homo consumens e redes amorosas
As estratégias utilizadas entre desconhecidos, ou aquilo que Goffman denominou
“desatenção civil”
45
, são dispensáveis no mundo líquido moderno. Os celulares são
suficientes para indicar a indisponibilidade e o isolamento que se quer manter com
estranhos, em situações de co-presença. A recepção de mensagens exclui o risco presente
no contato visual. O contato auditivo é menos arriscado do que o visual, com seus gestos e
expressões involuntárias que não se adequam à rapidez com que os desejos de hoje são
sufocados e substituídos pelos de amanhã (Bauman, 2005: p.32-77).
O consumo entre os indivíduos é anterior à modernidade líquida, não sendo,
portanto, um fenômeno novo. O que se pode destacar no mundo líquido-moderno é a sua
natureza fortemente social, e apenas secundariamente psicológica ou comportamental: o
consumo individual conduzido no ambiente de uma sociedade de consumidores”. Nesta
nova realidade, a permanência cede espaço à transitoriedade, na hierarquia dos valores
(Bauman, 2007: p.109-110).
A vida é normativamente regulada quando é distribuída em torno do papel de
produtor. a vida gerida pelo consumo não precisa de normas. A “crítica ao estilo do
produtor” foi substituída pela “crítica ao estilo do consumidor” (Bauman, 2001: p.90).
45
Goffman distingue o envolvimento ‘principal’ ou ‘dominante’ do envolvimento ‘lateral’ ou ‘subordinado’.
Para ele, os envolvimentos principais e subordinados são importantes porque nos permite mostrar que, a
despeito da boa socialização dos membros dos grupos, mantém-se certa autonomia e distância (Manning,
2005: p.84). A análise das razões e ocasiões em que os indivíduos infringem uma determinada regra da
desatenção civil é estendida pela questão da acessibilidade. A exigência do envolvimento nimo pelos
indivíduos visando realizar as regras de acessibilidade – é provável no cotidiano dos encontros nas ruas de
pedestres.
175
Bauman se aproxima de Simmel quando se utiliza de eventos da vida cotidiana,
contados de forma quase anedóticas, através da dimensão psicossociológica e patológica
dos processos sociais contemporâneos (Szwako, 2006: p.2). Um exemplo citado por
Bauman compara a prática de largar o parceiro” com a maneira com que os donos de
cachorros m abandonado esses animais. Três meses são suficientes para que seus donos
percam o interesse por eles e simplesmente os joguem na rua, a fim de possuírem outro
cachorro, mais ‘atual’ e valorizado pela cultura de massa (Bauman, 2005: p.71). Essa
atitude suscita uma discussão moral acerca do ser humano:
“Os seres humanos podem ser reciclados em produtos de consumo, mas estes
não podem ser transformados em seres humanos. Não em seres humanos do
tipo que inspira a nossa busca desesperada por raízes, parentesco, amizade e
amor não em seres humanos com que possamos identificar-nos” (Bauman,
2005: p.101).
Contrário à teoria de Giddens que acredita que a transformação das relações
amorosas foi movida pela reestruturação capitalista, formada a partir do avanço das
economias industrializadas Bauman considera a individualização moderna
extremamente perversa e danosa às relações humanas e aos laços afetivos (Redman, 2003:
p.541).
A liberdade apresentada por Giddens quando se refere às relações puras é marcada
por algumas limitações não apontadas pelo autor. Segundo Bauman (2005: 72), o primeiro
problema deste tipo de relação estaria localizado na ansiedade gerada entre os parceiros
quando da liberdade existente entre ambos. A abertura na relação não faz calar a constante
pergunta geradora de ansiedade: “e se a outra pessoa se aborrecer antes de mim?”. A outra
questão estaria ligada ao baixo esforço desprendido nas relações de longo prazo, em
176
decorrência dos aparentes substitutos disponíveis no mercado. Nas palavras de Bauman
(2005: p.72): “Somos cada vez mais moldados e treinados como, acima de tudo,
consumidores, todo o resto vindo depois”.
Bauman (2008: p.32) afirma que nas “relações puras” giddensianas, os parceiros são
tratados como objetos de consumo, da mesma forma que os mercados de bens, na medida
em que se permite e se estimula a substituição ou rejeição daquele que não satisfaz de
forma plena os anseios da outra parte.
“Uma ‘relação pura’ centralizada na utilidade e na satisfação é,
evidentemente, o exato oposto de amizade, devoção, solidariedade e amor
todas aquelas relações ‘eu-você’ destinadas a desempenhar o papel de cimento
no edifício do convívio humano. Sua ‘pureza’ é avaliada, em última instância,
pela ausência de ingredientes eticamente carregados” (Bauman, 2008: p.32).
Ao final, as relações puras exercem certo magnetismo na medida em que
transformam as ligações e os desfechos amorosos em “ações moralmente ‘adiafóricas’
(indiferentes, neutras)”, eximindo aquele que decide quebrar a aliança existente da
responsabilidade da promessa do amor de construção e de preservação do vínculo afetivo.
O cuidado pelo outro deixa de ser questão fundamental. Inspirada pelo modo de vida
consumista, as relações puras prometem facilidade e liberdade, além de transformarem a
felicidade em destino ou sorte, menos do que esforço pessoal (Bauman, 2008: p.33).
“O consumismo não se refere à satisfação dos desejos, mas à incitação do
desejo por outros desejos, sempre renovados preferencialmente do tipo que
não se pode, em princípio, saciar” (Bauman, 2007: p.121).
Phil Hogan (apud Bauman, 2007: p.115) discute as novas mudanças do
matrimônio, destacando a rapidez com que os casais entram em crise, entre oito meses a
dois anos, e não mais a crise dos sete anos. As atuais noções de paciência e compromisso
177
levam uma das partes a desejar o fim daquele que não satisfaz os seus anseios. Mas
descartar um computador estragado não é o mesmo que romper um relacionamento com
alguém muito próximo.
Bauman (2004: p.28-30) apresenta as insensibilidades produzidas no mundo
líquido-moderno a partir de algumas observações de um conceituado especialista em
relacionamentos’ de um dos mais reconhecidos jornais ingleses, partindo da idéia de que
as promessas de compromisso são irrelevantes em longo prazo porque existem outros
elementos que dão sustentação as nossas decisões: o grau de satisfação no relacionamento,
sua viabilidade, considerando bens em comum, tempo despendido com a(o) parceira(o),
filhas(os) etc. Desta forma, não se deve supor que o investimento despendido nas relações
amorosas garante a estabilidade da relação. O parceiro amoroso é tratado como uma ação
lucrativa ou um prejuízo que deve ser descartado. O problema é que “ninguém consulta as
ações antes de devolvê-las ao mercado, nem os prejuízos antes de cortá-las”.
Entre as novas famílias constituídas, antolhos e protetores auditivos foram postos
de lado. Tem-se, atualmente, uma disposição em refazer as relações definidas e retribuir o
amor recebido. Os poderes de enlace da parentela são acionados quando da redução do
magnetismo e do poder de controle da afinidade (Bauman, 2004: p.48).
“As alegrias da paternidade e da maternidade vêm, por assim dizer, num
pacote que inclui as dores do auto-sacrifício e os temores de perigos
inexplorados” (Bauman, 2004: p.60).
A interação acelerada e aparentemente frívola que revela os segredos mais
obscuros no mesmo espaço em que apresenta uma lista de compras é quebrada na medida
178
em que o agente se dá conta que a única questão em jogo é a manutenção ou
funcionamento do chat (Bauman, 2004: p.52).
“Não se deixe apanhar. Evite abraços muito apertados. Lembre-se de que,
quanto mais profundas e densas suas ligações, compromissos e
engajamentos, maiores os seus riscos. Não confunda a rede – um turbilhão de
caminhos sobre os quais se pode deslizar – com uma malha, essa coisa
traiçoeira que, vista de dentro, parece uma gaiola...e lembre-se, claro, de que
apostar todas as suas fichas em um só número é a máxima insensatez!”.
Para Szwako (2006: p.04), o distanciamento e o autocontrole exigidos como pré-
condição dos laços amorosos existiam na sociedade cortesã, tendo sido uma herança
recebida pela sociedade burguesa. Portanto, a preocupação com o envolvimento deixaria
de ser uma característica do mundo líquido moderno sugerido por Bauman.
Se “estar conectado” é menos custoso, pelo baixo grau de envolvimento exigido, é,
por outro lado, considerado pouco produtivo, quando se pensa em termos de vínculos
sociais mais duradouros. A principal vantagem do namoro pela internet é a facilidade do
término da relação, sem remorsos e de forma simplificada. A ausência de compromissos
mútuos é a tônica desse tipo de relação, e atende de forma satisfatória às novas exincias
da escolha racional. A aparente comodidade dos namoros pela internet oculta uma
realidade maior: o sentimento de vazio que circunda as relações amorosas, bem como a
falta de confiança nos nculos afetivos. A diferenciação presente na modernidade servirá
para pontuar as mudanças elencadas: inicialmente, tem-se o homem sem qualidades,
proveniente da modernidade precoce, pouco a pouco transformado no homem sem
vínculos. “O homo economicus e o homo consumens são homens e mulheres sem vínculos
sociais” (Bauman, 2004: p.82- 90).
179
Os altos índices de audiência dos programas que estimulam a idéia do amor
romântico servem para ilustrar a necessidade e a carência dos expectadores. Em verdade,
eles correspondem aos seus anseios (Cioffi, 2007: p.9). Por outro lado, esses mesmos
anseios encontram-se cercados por sua lógica destrutiva, qual seja, a desvalorização dos
vínculos afetivos e a conseqüente desconfiança nas relações amorosas.
Não existindo uma fórmula pronta e definitiva para escapar das ambivalências
constitutivas das relações amorosas, lança-se mão de soluções temporárias ou placebos
que possam postergar as questões fundamentais e irrespondíveis, garantindo que o
indivíduo continue em movimento no jogo quase inevitável do mundo líquido-moderno
(Bauman, 2005: p.75). “Chateação zero” é um termo que começou a ser utilizado, em
1997, no Vale do Silício, nos Estados Unidos, onde a revolução da informática teve início;
e diz respeito à dedicação do empregado, ou a sua capacidade em responder de forma
satisfatória aos chamados de emergência ou às atividades extras. Ter mulher e filhas(os)
aumentaria o “coeficiente de chateação porque dividiria a atenção do funcionário em
outras áreas da vida (Bauman, 2008: p.17). O perfil profissional é modificado na
modernidade líquida. Tradicionalmente, costumava-se dar preferência aos funcionários
casados, por se acreditar que existiria, nestes casos, um maior grau de envolvimento e
comprometimento, além da reduzida possibilidade de perda do funcionário, considerando
o aumento da responsabilidade gerada pelo vínculo familiar.
Se o fetichismo da mercadoria não revelou o componente humano da sociedade de
produtores, o fetichismo da subjetividade faz desaparecer o cenário excessivamente
comodificado da sociedade de consumidores. Aqui, a subjetividade transforma-se em
fatiche, segundo Bruno Latour. Nas palavras de Bauman (2008: p.23):
180
“Um fatiche um produto profundamente humano elevado à categoria de
autoridade sobre-humana mediante o esquecimento ou a condenação à
irrelevância de suas origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto
de ações humanas que levaram ao seu aparecimento e que foi condição sine
qua non para que isso ocorresse”.
O resultado dos mimos do mercado, que prometem segurança nas transações e falta
de compromisso com a(o) outra(o) é a desabilitaçãosocial. O constrangimento face-a-
face pode ser observado na medida em que ambas as partes são transformadas em objeto,
significando não apenas avaliar o outro, mas também ser avaliado (Bauman, 2008: p.25-
26).
O medo da solidão atrai os internautas, que adiam os seus encontros reais a fim de
minimizarem os riscos. Mas a busca virtual de um parceiro ideal vem acompanhada de um
inevitável desconforto (Bauman, 2008: p.24-25).
A substituição do termo “relações” por
“redes” serve para iluminar o que está em jogo aqui. Se o primeiro termo refere-se
necessariamente a certo tipo de compromisso estabelecido entre as partes, o segundo não
deixa dúvidas quanto à possibilidade de quebra do vínculo afetivo, ou seja, a liberdade
para desconectar-se do outro. Cria-se uma necessidade de manter-se em rede, quando a
segurança de uma relação estável é substituída pela necessidade do indivíduo em
movimentar-se, posto à necessidade dele em permanecer na rede. O prazer da novidade e
da diversidade é transformado em uma tarefa excessivamente cansativa. Os riscos são
espraiados e promovem uma série de ansiedades (Bauman, 2004: p.13).
A forma obcecada com que as redes são evocadas simboliza a ausência de laços
verdadeiramente seguros, a exemplo dos vínculos parentais e de amizade. Não se pode
181
substituir a agenda dos celulares pelo sentido de comunidade e intimidade que ficou para
trás (Bauman, 2005: p.101).
Nas relações amorosas, a mudança dos termos “relações” por “redeso deixa
dúvidas quanto à relação de desconfiança estabelecida entre os casais da modernidade
líquida. Paradoxalmente, o amor não deixa de ser cultivado e valorizado, ao menos em
termos ideais.
V.3. Desejo, amor e desconfiança na modernidade líquida
Partindo de Leônia, uma das invisíveis cidades de Ítalo Calvino, marcada pelo
desfrute de novas paixões, Bauman (2004: p.11) questiona o desejo cultivado no atual
mundo líquido, lançando a seguinte questão: será que o desejo de relacionar-se não é
substituído pela tentativa de evitar a paralisia que costuma tomar as relações duradouras?
Afinal de contas, os relacionamentos devem durar?
A o satisfação do desejo, bem como a permanente crença de que se pode criar
novos desejos, ou ainda satisfazê-los, movem a economia e o consumidor, transformando
as suas necessidades em vícios (Bauman, 2007: p.106-107). O fato de o desejo ter a si
mesmo como eterno objeto constante sufoca-o, mantendo-o insaciável. Por ter
transformado o indivíduo num consumidor viciado, o desejo deverá ser substituído pelo
“querer”, que supre a libertação do princípio do prazer. “A substância naturalmente gasosa
foi finalmente liberada do contêiner” (Bauman, 2001: p.88-89). A combustão realizada
182
pelo desejo tem como matéria prima a presença da alteridade, que tenta aplacar certa
humilhação e responder de forma vingativa certa afronta (Bauman, 2004: p.23).
Mas o desejo não nasce de uma hora para outra, ele precisa ser cultivado e
alimentado. A questão colocada aqui diz respeito à ansiedade do mundo contemporâneo e
a necessidade de satisfação imediata. Nas parcerias sexuais, há uma possibilidade de
maior satisfação quando se opta por seguir os impulsos, em detrimento do desejo. Aos que
resolvem seguir no contra-fluxo do consumo, resta um desejo tímido ou desconcertante
em direção ao compromisso amoroso (Bauman, 2004: p.26-27).
O amor pode ser traduzido na disposição da junção de duas biografias, com
experiências e recordações compartilhadas. “Significa um acordo sobre o futuro e,
portanto, sobre um grande desconhecido”. A liberdade pode ser ofertada quando se deseja
amar e ser amado, visando a não violação da liberdade da pessoa amada (Bauman, 2005:
p.69). Seguindo as trilhas de Erich Fromm, Bauman (2004: p.21) considera a capacidade
de amar uma rara conquista, num mundo carente de humildade, fé e coragem.
O amor não possui história própria, sendo um evento que não se controla ou
planeja. Com o enfraquecimento do amor romântico, as experiências amorosas podem ser
mais facilmente medidas do que antes, apesar da visível redução dos elevados padrões de
amor (Bauman, 2004: p.17-19).
A irremediável dualidade dos seres constitui o pathos do amor. Eros não pretende
sobreviver à dualidade. Todo amor tem a intenção de dominar. O problema em tal
conquista é que o feitiço vira contra o feiticeiro, e o amor cai doente, assim que as
incertezas e as precariedades são dissipadas (Bauman, 2004: p.22). O pathos do amor é
183
alimentado por um mistério que se deseja desvendar, podendo acabar pelo cansaço da
espera ou pelo esvaziamento da curiosidade, quando satisfeita.
“O amor precisa de dualidade que permaneça insuperável. Mas o amor vive
tentando superá-la. O sucesso, porém, é o toque de finados do amor”
(Bauman, 2006: p.111-112).
Uma scientia sexualis foi fortemente produzida, sufocando a ars erotica. O irmão
de Eros, Antero gênio vingativo do amor rejeitado” –, conseguiu usurpar o domínio
sobre o reino do seu irmão. Longe de ser uma fonte de felicidade e prazer, a sexualidade é
tida como “fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal”. Depois
de assumir o reino, Antero esquece a sua passionalidade e lascividade, proibindo a paixão
entre os súditos e declarando que o sexo deveria ser racional e seguro, além de não dever
alimentar nenhum tipo de ilusão (Bauman, 2004: p.56).
A promessa da sciencia sexualis seria realizada quando da alforria do homini
sexuali. Esta crença ainda tem força porque os homini sexuali são agora “objetos naturais”
da investigação da ciência, e se reconhecem apenas em laboratórios e nas sessões
terapêuticas, sendo isso, tudo o que lhes resta (Bauman, 2004: p.56-57).
Segundo Bauman (2006: p.113-114),“a afeição não é adorno, tempero ou
suavização da desigualdade é a fonte constante e mais profusa de desigualdade”. A
dialética entre o amor e a dominação é discutida pelo autor a partir das reflexões
produzidas por Max Scheler: Ágape movido pelo pecado de concupiscência é tido
como o ideal do amor cristão. Ágape, a exemplo de Cristo, tudo oferta, sem nada pedir.
A morte do amor é pré-programada”, não necessitando de doenças contingentes.
A essência do amor é formada por um distúrbio que não se pode curar. O antídoto do
184
distúrbio mata também o amor. O dever pode ser o substituto do amor, assim como a
“rotina confortavelmente familiar” ocupa o lugar de aventuras excitantes. Se o amor
sobrevive na luta árdua, o dever segue um rumo tranqüilo, podendo ser transformado em
hábito. Ao final, o dever apunhala o amor, levando consigo o seu tormento e encanto
(Bauman, 2006: p.114-117).
A excreção da oxitocina, substância química que alimenta a libido, ativa a
dopamina, substância que deixa o indivíduo em estado pleno de felicidade. Estudos
recentes mostram que essa “paixão” ou amor” é mantido certo período de tempo, em
geral cerca de dois anos. Se o amor é uma droga, a culpa de alguns poderia ser minimizada
com a justificativa biológica, eximindo o indivíduo, por exemplo, da acusação de falta de
caráter, quando da quebra narcísica do pacto amoroso. Poder-se-ia esperar que os novos
produtos farmacêuticos resolvessem o problema da falta de amor. Ou então, dependendo
do cliente, que se produzisse alguma outra droga que neutralizasse a dor do fim de um
relacionamento, quando o desejo de uma das partes acabasse, e com ela o interesse pela
relação (Bauman, 2007: p.137-138). Aqui, o problema da confiança nas relações amorosas
seria resolvido num balcão farmacêutico.
Em oposição às fantasias do amor, tem-se apenas a rotina fixada como uma
possível saída ou abrigo (Bauman, 2006: p.121). Essencialmente, o desejo é a vontade de
destruição ou auto-destruição, formado por um impulso centrípeto, ao contrário do amor,
que é a vontade de cuidar e de zelar pelo objeto cuidado, sendo considerado, portanto, um
impulso centrífugo. Enquanto o amor pretende assimilar o sujeito no objeto, através de um
movimento expansivo, o desejo tem a intenção simplesmente de aniquilar o seu objeto.
Assim, tanto o amor quanto o desejo ameaçam o seu objeto. No primeiro caso, o amor
185
pode escravizar o seu objeto, através de uma cuidadosa malha protetora, com vistas à
proteção. No segundo caso, o desejo destrói o seu objeto e a si mesmo. O esforço
observado do amor em perpetuar o desejo não ocorre de forma inversa, já que o desejo não
aceitaria os grilhões do amor. Desejo e amor são “e/ou” (Bauman, 2004: p.24-25).
A relação estabelecida entre sexo e amor, dentro do modelo de família tradicional,
não era tão inútil e constrangedora como se supunha. As atuais contradições da
sexualidade sugerem que as restrições do passado poderiam ser vistas como habilidades
culturais, ao invés de um modelo fracassado e equivocado (Bauman, 2004: p.65). Por
outro lado, não se pode negar a relação de dominação masculina existente no mundo
patriarcal. As habilidades culturais a que Bauman se refere tratam da falta de liberdade
feminina, elemento definidor da relação entre o amor e o desejo. Mais importante do que
pensar na manutenção ou permanência das relações amorosas nas sociedades tradicionais
seria discutir a forma com que essas relações afetivas foram perpetuadas. Neste sentido,
não se poderia falar, por exemplo, em liberdade feminina. Consequentemente, a confiança
nas relações amorosas teria de ser pensada dentro desta relação de dominação masculina.
O sexo do homo faber era acompanhado pelo amor e pela vontade de perpetuar a
espécie. A estabilidade nas relações amorosas era considerada “produto principal”, e não
refugo dos atos sexuais, a exemplo do que ocorre com o homo consumens, que é mais
reconhecido segundo os parâmetros de maior rotatividade das relações. Aqueles que não
se enquadram neste modelo, porque são mais propensos a se ligarem a um único “bem”,
são considerados fracos, sendo excluídos da sociedade de consumo. O homo faber erigia e
sustentava as relações humanas através de sua capacidade sexual. O homo consumens,
liberto dessa lógica, utiliza as suas habilidades sexuais de maneira mais imaginativa e
186
original. Apesar disso, as angústias do homo faber não são diferentes das do homo
consumens, havendo, portanto, uma mesma origem entre eles. A insegurança é um
componente constante na modernidade líquida. Portanto, não existem mecanismos que
imobilizem as conseqüências de certo episódio, podendo apenas ser adiado ou suspenso
por determinado tempo. Mas as dúvidas do próprio recipiente da suspensão se alastram
sem que se possa evitar a fonte desgastante de insegurança. Neste sentido é que se pode
afirmar que as angústias do homo sexualis não são diferentes das do homo consumens
(Bauman, 2004: p.66-70).
Qual a relação entre tais angústias e a confiança nas relações amorosas? Por que a
estabilidade e a criatividade não são suficientes na manutenção do amor? Neste caso,
haveria saída para a confiança nas relações amorosas, ou se pode condená-la à morte?
V.4. Estratégias de proteção e desconfiança no amor líquido
Claude Lévi-Strauss (apud Bauman, 2001: p.118) refere-se a duas estratégias
humanas de enfretamento da alteridade: a antropoêmica e a antropofágica. A primeira
estratégia consiste em isolar ou eliminar o estranho, como por exemplo, o aprisionamento,
o homicídio ou o isolamento espacial. Os espaços de consumo representam a estratégia
fágica, objetivando minimizar ou combater a alteridade.
As estratégias de proteção, diante do risco apresentado pela modernidade líquida,
são as de fixação ou de flutuação. No primeiro caso, pretende-se conservar a relação,
mesmo diante das incertezas. Para tanto, cria-se uma teia de proteção que abarca a
187
renúncia e a rotina. O problema é que essa teia pode significar uma prisão. No segundo
caso, não existe uma disposição prévia para concessões, a não ser que haja certo equilíbrio
no cálculo custo-benefício. Diante da insegurança inveterada no amor, deve-se escolher
uma das duas estratégias citadas. Na estratégia de fixação, um esforço em fugir dos
sentimentos erráticos, para que se possa manter a estabilidade da relação vivida. na
estratégia de flutuação, observa-se um movimento de abandono ou fuga da insegurança.
Neste caso, busca-se encontrar a segurança sem desprender muito esforço (Bauman, 2006:
p.115).
O amor clama pela fixação, quando inseguro e temeroso de si mesmo. Em um
movimento contraditório e ambivalente, esvai-se na medida em que se aproxima de seu
ideal.“O ideal do amor é a sua tumba, e o amor pode chegar lá apenas como cadáver”. O
alicerce do amor é formado tanto pela alegria quanto pelo sacrifício contínuo. Na
estratégia da flutuação, pretende-se usufruir apenas quando as alegrias excedem as
concessões feitas numa vida a dois (Bauman, 2006: p.118-122).
“A fixação alarga a vida de amor, mas apenas na forma de aparição pairando
sobre a tumba; ao passo que a flutuação cancela o laço irritante entre
estabilidade e não-liberdade à custa de impedir o amor de visitar as
profundezas que ele, aliás alegremente, se bem que perigosamente, intui.
Parece que não pode sobreviver o amor às tentativas de curar sua aporia; que
ele pode perdurar, como amor, somente em sua ambivalência. Com o amor,
como a própria vida, é a mesma de novo: somente a morte é sem ambigüidade”
(Bauman, 2006: p.127).
É exatamente porque se vive num mundo líquido e instável, que os laços de
confiança e segurança são importantes. Para que se possa seguir adiante, é importante que
se tenha em quem se apoiar, principalmente nos momentos difíceis. Por outro lado, a
exigência de uma velocidade cada vez maior consome o tempo que se tinha para se
188
construir e fortalecer os laços de intimidade. Como diria Bauman (2007: p.142): “não se
pode ficar com a torta e comê-la”.
O tamanho da hipoteca sugere o grau de insegurança quando das flutuações
emocionais futuras. Ou seja, se o investimento é baixo, o grau de insegurança tenderá a ser
menor. “Uma relação de bolso é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade”
(Bauman, 2004: p.36-37).
A segurança e a confiança buscadas no amor são confrontadas com as exincias
desse amor, não existindo uma forma de evitar os seus riscos. Os recursos pagos para
inibir os riscos, numa sociedade de consumo, não podem ser utilizados no amor. Por outro
lado, os relacionamentos amorosos são deformados e reduzidos à fórmula ‘consumista’,
que
“requer que a satisfação precise ser, deva ser, seja de qualquer forma
instantânea, enquanto o valor exclusivo, a única ‘utilidade’, dos objetos é a
sua capacidade de proporcionar satisfação. Uma vez interrompida a
satisfação (em função do desgaste dos objetos, de sua familiaridade excessiva
e cada vez mais monótona ou porque substitutos menos familiares, não
testados, e assim mais estimulantes, estejam disponíveis), não motivo para
entulhar a casa com esses objetos inúteis” (Bauman, 2005: p.70).
Na falta de compromisso, os riscos não intimidam tanto nas relações amorosas.
Mas não se pode traduzir este tipo de relação apenas em comodidade. O outro lado da
moeda é que a “coisa” a ser consumida é outro ser humano (Bauman, 2007: p.140). O
problema desse jogo é que não se trata da relação de um indivíduo com um produto, mas
de um indivíduo “contra” o outro. O permanente risco do auto-reprovação leva mulheres e
homens a minimizarem a complexidade vivenciada, a fim de tornar os seus sofrimentos
inteligíveis e tratáveis (Bauman, 2001: p.48).
189
“Lutamos veementemente pela segurança que apenas um relacionamento
com compromisso (e, sim, um compromisso de longo prazo!) pode oferecer
e no entanto tememos a vitória não menos que a derrota”. Nossas atitudes em
relação aos vínculos humanos tendem a ser penosamente ambivalentes, e as
chances de resolver essa ambivalência são hoje em dia exíguas (Bauman,
2005: p.75).
A ambiguidade cerca a posição do “indivíduo sem vínculo” na modernidade
líquida. A liberdade dos relacionamentos “sem compromisso” é ao mesmo tempo desejada
e temida. O resultado dessa ambivalência é a presença corriqueira da insegurança e a
dúvida sobre as possibilidades existentes. A oferta de compromissos existentes e a
fragilidade presente em cada um desses compromissos servem como fatores inibidores das
relações íntimas duradouras por não inspirarem confiança. O medo da solidão tem como
cenário a atual falta de confiança em espaços tradicionalmente seguros, a exemplo do
ambiente familiar e de trabalho. A liberdade do movimento ou alta velocidade deixa de ser
um benefício e transforma-se em uma atividade exaustiva. Além disso, as incertezas não
se evaporam com a velocidade, sendo apenas distribuídas de outra forma (Bauman, 2005:
p.38-69).
O conceito de identidade é importante por estar relacionado a outro mais central
neste trabalho: o de segurança. Na sociedade líquido-moderna, a ansiedade ocupa o
indivíduo que possui um lugar pouco definido e fluido. Por outro lado, a fixação do
indivíduo não tem boa aceitação social, dado as inúmeras oportunidades que o cercam
(Bauman, 2005: p.35).
O significado do amor não pode ser decifrado com o que há de permanente,
completo e imutável, mas com o que há de transcendente e criativo. Desta forma, não se
pode evitar o risco no amor. Amar é invariavelmente, arriscar (Bauman, 2004: p.21).
190
As ações guiadas pela insegurança dos amantes costumam ser pouco construtivas,
variando entre a tentativa de agradar e a de controlar o seu parceiro. O échangisme
conhecido no Brasil como troca de casais ou suingue – não é considerado adultério porque
todos participam de forma a garantir que o interesse dos casais seja preservado, com o
intuito de deixá-los menos inseguros, através inclusive da tentativa de respaldo legal. Para
ser considerado um échangisme, deve-se associar-se aos clubes que definem previamente
as regras e garantem a satisfação sexual do impulso de forma prática e rápida. Além disso,
os interessados evitam a possível exigência de benefícios, por se tratar de um encontro
episódico. Mais uma vez, deve-se trazer aqui a questão das angústias ou frustrações
amorosas. Será que o sexo em si é importante? Nas trilhas de Volkmar Sigusch, Bauman
(2004: p.71-72) afirma que “se a substância da atividade sexual é a obtenção do prazer
instantâneo, ‘então o mais importante não é o que se faz, mas simplesmente que
aconteça”.
A promessa de fidelidade na relação baseada em fortes sentimentos é arriscada e
gera um grau de dependência não muito valorizada nos dias de hoje. Mas Bauman (2004:
p.112) diz que essa dependência é considerada uma responsabilidade moral pelo outro,
tanto na visão de Knud Løgstrup quanto na de Emmanuel Levinas. Løgstrup enfatizou a
“naturalidade” e a normalidade” da confiança quando as parcerias instáveis ganharam
força, em detrimento do tradicional “até que a morte nos separe”. Para ele,
“Era a suspensão ou supressão da confiança, e não o seu dom incondicional
e espontâneo, que constituía uma exceção causada por circunstâncias
extraordinárias que, portanto, exigiam uma explicação” (Bauman, 2004:
p.112).
191
A confiança não é muito estimulada nas relações atuais porque exige um alto grau
de reflexividade. Mas existem evidências contrárias a tal assertiva que apresentam uma
variabilidade nas regras e uma deficiência ou fraqueza das relações. Será que a incerteza
endêmica que assola a confiança no atual contexto não permite que se possa levar em
conta as considerações de Løgstrup de que se deve “investir as esperanças de moralidade
na espontânea tendência endêmica à confiança?” Bauman responde a essa questão
afirmando que Løgstrup acredita numa espontaneidade pré-reflexiva. Ou seja, a
desumanidade pode ser gerada pela reflexão (Bauman, 2004: p.114). No lugar da
esperançosa confiança do impulso moral, tem-se hoje a ansiedade jamais mitigada da
incerteza. “A confiança é o modo-de-viver-com-ansiedade, não o modo de dispor da
ansiedade” (Bauman, 2006: p.133).
Em Bauman (2006: p.134), confiar ou desconfiar é uma ambivalência sem solução.
Se a confiança pode significar a vulnerabilidade de quem confia, a desconfiança pode
levar o indivíduo a níveis insuportáveis de esgotamento. A confusão e a instabilidade
gerada pelo ato de confiar e desconfiar, simultaneamente, leva o indivíduo a buscar ajuda
na própria sociedade. Segundo ele, Stephen Toulmin diz que na “ética dos estranhos”, o
mais importante é a obediência às normas, sendo esparsas as oportunidades de discrição.
Na “ética da intimidade”, é a discrição que importa. Aqui, as regras estritas não são
relevantes.
“Mas o que aprendemos antes de mais nada da companhia de outros é que o
único auxílio que ela pode prestar é como sobreviver em nossa solidão
irremível, e que a vida de todo mundo é cheia de riscos que devem ser
enfrentados solitariamente” (Bauman, 2001: p.45).
192
Considerações finais
A individualização é considerada uma fatalidade tanto no estágio sólido e pesado
quanto no estágio fluido e leve da modernidade. Isso significa que não se pode escolher
acerca do processo de individualização. Os riscos e as contradições não são mais
resolvidos socialmente, mas de forma individualizada. Apesar de serem produzidos
socialmente, precisam ser resolvidos individualmente (Bauman, 2001: p. 43).
O término da relação entre os casais é um fator complicador, considerando a
relação consumista existente das partes. O conflito entre os indivíduos é definido a partir
da “soberania do consumidor”, que eles são tanto consumidores quanto objetos de
consumo. Por outro lado, tem-se um problema com a consciência moral (Bauman, 2007:
p.141). “Se 'ser-para' significa agir por causa do outro, é o bem-estar ou a dor do outro que
emoldura minha responsabilidade, conteúdo ao ‘ser responsável.’” (Bauman, 2006:
p.106).
Perguntar o motivo pelo qual se deve ajudar o outro representa um indício da morte
da conduta moral, segundo Emmanuel Levinas. Løgstrup enfatiza que se deve excluir um
motivo ulterior nas ações morais (Bauman, 2004: pl.114-115). A conduta ética deve estar
acima das distorções motivacionais. A desistência ou abandono em certa relação amorosa
não deveria motivar a parte prejudicada na relação, mas servir para alimentar o desejo de
uma relação mais profícua. Mais importante do que a certeza que não se tem, é a
esperança que se alimenta (Bauman, 2004: p.115).
“O que se chegou a associar-se com a noção pós-moderna da moralidade é
muitíssimas vezes a celebração da ‘morte do ético’, da substituição da ética
pela estética.” (Bauman, 2006: p.06).
193
A sociedade deixa de ser um árbitro de princípios, por vezes duro e gido, para ser
um “jogador astuto, ardiloso e dissimulado”. A coerção direta é substituída pela
obrigatoriedade que o indivíduo tem de manter-se no jogo, sem definições de como se
viver nem regras definidas. A forma de derrotar esse tipo de jogador seria adotar o seu
próprio jogo. O Dom Juan de Molière, Mozart ou Kierkegaard foi tido como o fundador
desse estratagema. Para Kierkegaard (apud Bauman, 2005: p.58-59), o segredo das
conquistas de Dom Giovanni de Mozart estava na sua capacidade de terminar rapidamente
uma relação, aventurando-se em outra, num constante estado de autocriação. A estratégia
do carpem diem reflete um mundo oco que dissimula durabilidade e consistência.
“A distinção entre liberdade ‘subjetiva’ e ‘objetivaabriu uma genuína caixa
de Pandora de questões embaraçosas como ‘fenômeno versus essência’ de
significação filosófica variada, mas no todo considerável, e de importância
política potencialmente enorme” (Bauman, 2001: p.24).
A necessidade de liberdade não é necessariamente uma regra, que pode haver o
sentimento de liberdade mesmo entre os que vivem em algum tipo de escravidão.
Argumenta-se de forma falaciosa que alguns indivíduos deveriam ser levados ou forçados
a compreender a necessidade de serem “objetivamente” livres (Bauman, 2001: p.25). A
falta ou a crise de normas, caracterizada como anomia social, apresenta essa
incapacitação. Por outro lado, a rotina criada pelo funcionamento das normas pode
proteger, mesmo que também possa apequenar, diria Bauman (2001: p.28) acerca do
pensamento de Richard Sennett. O “interesse público” é regido pelo “privado”, estando o
primeiro restrito ao interesse pela vida privada das pessoas públicas. Richard Sennett
acredita que o compartilhamento da intimidade serve como um método, senão o único
194
método de “construção da comunidade”. Tais comunidades são formadas por frágeis
relações e pela procura inalcançável de um porto seguro (Bauman, 2001: p.46-47).
Declarar a própria infelicidade é mais fácil do que identificar os seus sintomas.
Objetivando apresentar o sentimento de forma tangível, o indivíduo se utiliza de outros
exemplos ao redor de sua vida. Neste sentido, as experiências íntimas são compartilhadas
em programas de entrevistas, com a aprovação do público em geral (Bauman, 2001: p.78-
82). O “privado” coloniza o “público”, ou seja, o primeiro tolhe e expulsa aquilo que não é
expresso completamente, “sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, angústias e
iniciativas privadas” (Bauman, 2001: p.49).
“O indivíduo de jure o pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-
se cidadão. Não indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a
autonomia da sociedade requer uma auto-constituição deliberada e perpétua,
algo que pode ser uma realização compartilhada de seus membros
(Bauman, 2001: p.50).
A teoria crítica pretendia se opor a um mundo totalitarista, contrário a qualquer
tipo de variedade ou contingência. A autonomia e a liberdade eram as suas bandeiras, ou o
direito à diferença. O significado é o de reestabelecer a ligação entre as perspectivas do
indivíduo de facto e a do indivíduo de jure. Nas palavras de Bauman (2001: p.34-51):
“Indivíduos que reaprenderam capacidades esquecidas e reapropriaram
ferramentas perdidas da cidadania são os únicos construtores à altura da
tarefa de erigir essa ponte em particular”.
Os açoites foram substituídos pelo “faça você mesmo” e transformou-se em auto-
flagelação. Isso significa que os capatazes não precisam receber ordens dos faraós para
que punam os displicentes (Bauman, 2001: p.60). O poder político não perdeu apenas em
potência criadora, mas principalmente em potência capacitadora. Não se pode dizer que a
195
guerra contra a emancipação foi inútil, mas saber que se deve valorizar aquilo que outrora
fora esquecido: a participação da “esfera pública” e do “poder público”. A saída para
uma nova vida em comum leva em conta o exame das alternativas de política-vida
(Bauman, 2001: p.62).
Deve-se concordar com Bauman que trazer à tona o argumento da “falta de
intencionalidade” esconde ou mascara a cegueira ética do mundo hodierno. Quando se
compartilha angústias, desejos e realizações com outra pessoa, mais especificamente numa
vida a dois, supõe-se que exista um alto grau de cumplicidade e de confiança. A árdua
construção que esse tipo de ‘empreendimento’ exige parece nada significar ao término das
relações amorosas. Em muitos casos, a confiança se transforma rapidamente em
desconfiança. Isso acontece porque não uma preocupação ética com o outro. Sair ou
desistir de uma relação não deveria significar a destruição ou a falta de compromisso com
a pessoa que não se deseja mais conviver, ao menos nos termos estabelecidos por um
casal. Se uma enorme capacidade criativa e adaptativa para estender uma relação por
anos e anos, dever-se-ia desenvolver outra, mais admirável em termos éticos, a capacidade
de enxergar o sofrimento de quem fica e a preocupação com a sua reabilitação para amar.
Em outras palavras, substituir o impulso egoísta que costuma tomar aqueles que estão
prontos para uma nova relação por um cuidado altruísta pelo antigo bem amado. A prática
egoísta e auto-centrada pode ser facilmente observada quando da brusca substituição da(o)
parceira(o). Trata-se de um cálculo racional para minimizar os riscos de sofrimento e
frustração. Envolver-se com uma terceira pessoa pode proporcionar certo sentimento de
conforto e bem-estar quando do término de uma relação mais estável. Normalmente, a
parte deixada é pega de surpresa e precisa trabalhar a perda da(o) outra(o) na sua ausência,
196
ao contrário dessa(e) outra(o), que saiu da relação de forma mais elaborada, despedindo-se
silenciosamente e a cada dia. Mas por que uma relação tão duradoura e densa é facilmente
transformada num sentimento de desprezo ou desdém? Como reduzir a importância de
alguém com quem se dividiu por anos e anos, sonhos e frustrações? O sentimento de
preservação dos laços familiares deveria ser estendido às relações amorosas. Aquela
sombra que insiste em apontar os defeitos de um amor perdido, e persegue o presente do
outro em busca de um passado morto tal como a personagem Sofia (Anália Couceyro)
em
O passado (El pasado), filme dirigido por Hector Babenco poderia ser reinventada,
como parte daquilo que se é, formado a partir do que se foi. É certo que a relação que
Sofia estabelece com Rimini (Gael García Bernal) é obsessiva. A sua incapacidade de
lidar com a perda é pouco a pouco revelada no filme.
Independente das motivações que levam um casal à separação, dever-se-ia tentar
desenvolver a capacidade crítica de Virgínia Woof, interpretada por Nicole Kidman no
filme As horas: “não posso continuar estragando a sua vida”. Em nome de tudo o que ela
viveu com o seu marido Leonard Woof, interpretado por Stephen Dillane, ela diz ainda:
“não acho que duas pessoas tenham sido mais felizes do que nós fomos”. Em contraste
com esse amor, considerado raridade no mundo líquido moderno, o filme Closer (Perto
demais), dirigido por Mike Nichols, traz a indagação da personagem Jane Jones ou Alice
Ayres (Natalie Portman); como era conhecida por Daniel Woof (Jude Law), acerca do
risco que se pode correr quando do envolvimento com uma terceira pessoa, referindo-se à
relação dele com Ana (Julia Roberts). Corre-se o risco porque se deseja, de forma
consciente – “tem sempre um momento: posso me entregar ou resistir. Não sei quando foi
o seu, mas ele existiu”, afirma Alice. A escolha do falso nome da personagem, Alice
197
Ayres, se em uma praça de Londres que homenageia pessoas comuns que morreram
para salvar outras vidas. Em uma das placas, o nome de Alice, filha de um pedreiro que
salvou três crianças em um incêndio. Mesmo num tempo em que o amor é transformado
em consumo, e a confiança nas relações amorosas é substituída pela necessidade de
manter-se em uma rede narcísica, Jane escolhe ser Alice. O sentido moral de sua escolha
poderia ser expandido para a confiança no mundo privado dos afetos. Mas Bauman não
apostaria nisso.
Hannah Arendt deixa a questão da verdade em aberto quando a confia a Deus. Isto
significa dizer que não existe um dono absoluto da verdade e que esta poderá ser
descoberta, caso ela exista, numa conversa verdadeiramente genuína. Bauman (2004:
p.107-179) afirma que “a vitimização dificilmente humaniza suas vítimas” e nem reserva
um lugar nos píncaros da moral. A verdade sobre o amor poderia começar então com uma
reflexão moral acerca dos comportamentos adotados no mundo líquido moderno.
Bauman conclui que apesar da necessidade dos afetos, relacionada ao
distanciamento criado pelo sistema de proteção do mundo líquido moderno, as relações
amorosas são vistas com extrema desconfiança. A sociedade de consumo não consegue
escapar de sua própria armadilha. A insatisfação é sempre renovada.
198
CAPÍTULO VI
“INFINITO ENQUANTO DURE”:
A CONFIANÇA NAS RELAÇÕES AMOROSAS À LUZ DE ANTHONY GIDDENS
“Me dá medo e vem me encorajar
Fatalmente, me fará sofrer
Ando escravo da alegria
Hoje em dia, minha gente
Isso não é normal
Se o amor é fantasia
Eu me encontro ultimamente
Em pleno carnaval”.
Vinícius de Moraes e Toquinho
(Escravo da alegria)
O trabalho de Antony Giddens é marcado por uma série de influências teóricas
tanto dos clássicos uma exegese comparativa das obras de Karl Marx, Max Weber e
Émile Durkheim – quanto de perspectivas sociológicas mais recentes – o estrutural-
funcionalismo de Parsons e Merton, o situacionismo de Goffman, a fenomenologia de
Schutz, a etnometodologia de Garfinkel. Além disso, em um contexto mais amplo e
interdisciplinar, pode-se citar ainda o pós-estruturalismo de Foucault, a psicanálise de
Freud, a geografia de Hagerstrand, as contribuições de Erikson e Mead, dentre outros.
199
Essas abordagens serviram de alicerce à teoria da estruturação
46
Giddensiana, formada a
partir das práticas sociais ordenadas pelos agentes no tempo e no espaço de forma
reflexiva. Nas palavras do autor:
“Na teoria da estruturação, a estrutura sempre foi concebida como uma
propriedade dos sistemas sociais, ‘contida’ em práticas reproduzidas e
inseridas no tempo e no espaço (Giddens, 2003: p.200)
47
.
Analisando o fenômeno da confiança nas relações amorosas em Giddens, dever-se-
ia falar no modo com que as interações sociais em situações de co-presença estão
interligadas aos sistemas de distanciamento de tempo-espaço, situando as conexões entre
análises sociológicas “micro” e “macro”.
O debate mais amplo acerca da teoria formulada por Giddens na tentativa de
explicar as transformações da alta modernidade será útil à discussão da confiança nas
relações amorosas. Na apresentação das peculiares mudanças advindas da modernidade,
deve-se tocar em três pontos fundamentais: a separação tempo e espaço, os mecanismos
de desencaixe e a reflexividade institucional. Depois dessa incursão mais geral, duas obras
serão analisadas com mais vagar: A transformação da intimidade e Modernidade e
identidade, além das críticas desses dois trabalhos, apresentadas por outros autores.
Considerando a prioridade do tema dessa tese, este capítulo será dividido da seguinte
forma: VI.1) a confiança na alta modernidade; VI.2) das formas de amar: rupturas e
continuidades; e VI.3) amor e auto-identidade: os manuais de auto-ajuda e a terapia.
46
Quando criou a teoria da estruturação, Giddens (2003: p.233) pretendeu fugir dos enfoques unilaterais, ou
da agência ou da estrutura. Segundo ele, poder-se-ia falar tanto no conflito – “luta entre atores ou
coletividades expressas como práticas sociais definidas” quanto em contradição (estrutural) “disjunção
de princípios estruturais da organização do sistema”.
47
Giddens (2003: p.433) não vê diferença lógica ou metodológica entre a Sociologia e a Geografia humana.
200
VI.1. A confiança na alta modernidade
Para os gregos, a palavra sina (moira) era considerada poderosa, pois era
responsável até pela condenação à morte. Era a “mais antiga que o mais antigo dos
deuses”. Já na alta modernidade – referente a um mundo direcionado para a dominação da
natureza, onde não espaço formal que trate das noções de sina e destino uma
preocupação em controlar e aferir os riscos dos eventos vivenciados de forma racional,
sempre que possível. Apesar do grau de racionalidade implicado, esses conceitos podem
ser bastante úteis quando do exercício de análise da auto-identidade e da modernidade
(Giddens, 2002: p.104).
Quando se fala em modernidade, num sentido geral, há uma relação inicial entre as
instituições e os modos de comportamento da Europa pós-feudal. No entanto, tais
mudanças se espraiaram em nível mundial no século XX, alterando formas particulares de
organização social. Pode-se dizer que uma equivalência aproximada entre a
modernidade e o ‘mundo industrializado’, ressaltando que o industrialismo não é a única
dimensão institucional moderna (Giddens, 2002: p.21).
Um dos elementos definidores da alta modernidade é a separação tempo e espaço.
A vida social moderna pode ser traduzida a partir de processos que reformulam o tempo e
o espaço, relacionados ao crescimento de mecanismos de desencaixe que desconectam
as relações sociais de seus locais de origem, através da reconstrução no espaço e no
tempo. Nas palavras do autor:
201
“A reorganização do tempo e do espaço, somada aos mecanismos de
desencaixe, radicaliza e globaliza traços institucionais preestabelecidos da
modernidade; e atua na transformação do conteúdo e da natureza da vida
social cotidiana” (Giddens, 2002: p.10).
A modernidade emergiu na Europa do século XVII e se tornou posteriormente
mundial em suas influências. Esse conceito diz respeito a estilo, modo de vida ou
organização social e refere-se ao forte dinamismo das instituições modernas caracterizadas
por suas descontinuidades quando comparadas às culturas tradicionais. Com o intuito de
compreender tais diferenciações, faz-se necessário definir as fontes da natureza dinâmica
da modernidade. Não é o ritmo acelerado da mudança social que distingue o mundo
moderno das sociedades tradicionais, mas também o conteúdo amplo e profundo das
mudanças que transformam as práticas sociais.
Três aspectos marcam a importância da separação tempo-espaço quando se
pretende explicar as distinções que são características da modernidade. Em primeiro lugar
porque o processo de desencaixe está condicionado a essa separação entre o tempo e o
espaço. Em segundo lugar porque os mecanismos de engrenagem que são característicos
das organizações racionalizadas são sustentados por ela. Apesar do caráter por vezes
estático dessas organizações – associado aos processos de burocratização do mundo
moderno pode-se afirmar que tais organizações apresentam comumente um dinamismo
inexistente nas sociedades tradicionais. A forma distinta com que o local e o global são
articulados nas sociedades modernas é bastante peculiar. Por fim, a historicidade radical
relacionada à modernidade foi desenvolvida a partir da “inserção” no tempo e no espaço.
Essa estrutura histórico-mundial genuína de ação e experiência é formada através da
recombinação do tempo e do espaço (Giddens, 1991: p.28-29).
202
A separação entre o tempo e o espaço possui pontos dialéticos que provocam
características divergentes. Sendo assim, ela não deve ser vista de forma unilinear, ou seja,
não se pode dizer que a modernidade é formada por um padrão simétrico e constante.
O segundo conceito para compreender as transformações do mundo moderno é
conhecido como mecanismo de desencaixe. Pode-se falar no desencaixe como um
‘deslocamento’ das relações sociais de espaços locais de interação e o seu realinhamento,
definido nas extensões indeterminadas de tempo-espaço, ou seja, a atividade social é
retirada dos contextos localizados e as relações sociais são reorganizadas através da
distância tempo-espaço. As fichas simbólicas e os sistemas peritos são dois tipos de
mecanismos de desencaixe intimamente relacionados no desenvolvimento das instituições
modernas (Giddens, 1991: p.29-30).
As fichas simbólicas são definidas como meios de intercâmbio que independem
das características particulares dos indivíduos ou grupos sociais e que podem ser
‘circulados’ por eles em qualquer situação particular. Pode-se citar, por exemplo, os meios
de legitimação política e a ficha do dinheiro. os sistemas peritos são responsáveis por
grande parte dos ambientes materiais e social e se destacam pela excelência
contemporânea profissional ou técnica (Giddens, 1991: p.30-35).
A confiança nesses sistemas peritos ou em uma pessoa é vista como crença na
credibilidade, apoiada num determinado conjunto de resultados ou eventos, a partir da
na probidade ou amor de um outro, ou no conhecimento técnico baseado em princípios
abstratos (Giddens, 1991: p.41).
Esses sistemas peritos podem ser úteis à manutenção das relações amorosas.
Quando a palavra não é suficiente para justificar certo tipo de comportamento considerado
203
“suspeito” na relação, a tecnologia pode ser acionada, a exemplo do exame de DNA. Mas
diferentemente das relações estritamente econômicas estabelecidas de forma cada vez
mais impessoal uma exigência de reinventar o amor ou as relações amorosas com
base numa confiança mais abstrata e menos tradicional.
A apropriação reflexiva do conhecimento é o terceiro conceito que caracteriza as
mudanças ocorridas no mundo moderno. A vida social passa a fazer parte da reprodução
do sistema, deslocando-se num sentido oposto à tradição (Giddens, 1991: p.58-59). Isso
não quer dizer, obviamente, que as práticas tradicionais são de todo esquecidas, mas que
elas são enfraquecidas pelas novas situações da modernidade.
Segundo Giddens (2003: p.332), a capacidade cognitiva dos atores sociais está
ligada ao inconsciente e às conseqüências não pretendidas da ação. Cabe à ciência social a
incumbência de investigar a importância desses processos na reprodução de sistema e nos
contextos ideológicos.
A especialização observada no mundo moderno encontra-se em aperfeiçoamento
contínuo, sendo altamente reflexiva. Resultados indesejados, mas inevitáveis ou não
previstos surgem em decorrência do reduzido foco da perícia. Tais resultados podem ser
evitados apenas através da especialização adicional, com a repetição do mesmo fenômeno.
O conhecimento produzido na modernidade encontra-se acessível para os indivíduos que
tenham recursos, tempo e energia para compreendê-lo. Assim, a especialização leva o
indivíduo aos sistemas abstratos modernos (Giddens, 2002: p.35).
O contexto da reflexividade é consumado na modernidade através da
transformação do tempo e do espaço, e também com os mecanismos de desencaixe,
rompendo com práticas e preceitos preestabelecidos. Deve-se aqui fazer uma distinção
204
entre a reflexividade típica da modernidade do monitoramento reflexivo da ação inerente a
qualquer atividade humana. Pode-se afirmar que a reflexividade moderna está relacionada
com a suscetibilidade de grande parte dos aspectos da vida social e com as relações
materiais da natureza que são constantemente revisados com base no novo conhecimento
advindo das instituições modernas, sendo esse considerado bastante complexo devido às
múltiplas possibilidades de explicar a reflexividade nas condições sociais da modernidade
(Giddens, 2002: p.25-26).
Com o intuito de analisar a conduta estratégica, deve-se priorizar as consciências
discursivas e práticas, além das estratégias de controle em contextos específicos. O termo
que mais se aproxima de consciência prática é o conceito psicanalítico pré-consciente”,
apesar de possuir um significado diferente. A maneira de relembrar o passado vivido é
denominada consciência discursiva. a consciência prática refere-se à recordação
acionada durante a ação (Giddens, 2003: p.08-56). Os questionamentos sobre nós
mesmos, os outros e o mundo dos objetos são comumente suspensos pela atitude natural
na atividade cotidiana. Assim, as ansiedades geradas por tais indagações são estancadas
por um ambiente de “faz de conta” criado nas rotinas diárias (Giddens, 2002: p.40).
As questões existenciais referem-se a parâmetros sicos definidos na vida
cotidiana e são respondidas nos contextos da atividade social, a partir da suposição dos
seguintes elementos ontológicos e epistemológicos: 1. Existência e ser “a natureza da
existência, a identidade dos objetos e dos eventos”; 2. Finitude e vida humana – “a
contradição existencial por meio da qual os seres humanos são parte da natureza, mas
postos à parte como criaturas que sentem e refletem”; 3. A experiência dos outros – “como
os indivíduos interpretam os traços e ações de outros indivíduos” e 4. A continuidade da
205
auto-identidade – “a persistência de sentimentos de pessoidade num eu e num corpo
contínuos” (Giddens, 2002: p.56).
O princípio da dúvida radical é institucionalizado na modernidade com a ênfase de
que todo conhecimento deve ser visto como uma hipótese, destacando assim o caráter
provisório da verdade, podendo ser sempre revistas. Isso significa que as referências de
apoio da vida social estão em constante mudança. Mas é engano pensar que na ordem pós-
tradicional da modernidade, o conhecimento racional substitui as certezas da tradição e do
hábito. Tanto a consciência filosófica quanto a dúvida característica da razão crítica
moderna formam a vida cotidiana. Os sistemas de conhecimento acumulado discutidos
anteriormente como criadores de importantes mecanismos de desencaixe simbolizam
múltiplas fontes de autoridade que são frequentemente contestadas internamente e são
divergentes em suas implicações. O eu, assim como os contextos institucionais mais
gerais, precisa ser formado reflexivamente. Não existe, por certo, uma fórmula definida,
devido ao caráter diverso de possibilidades. A intensificação dessa complexidade é
denominada modernidade ‘alta’ ou ‘tardia’, ou seja, o mundo hodierno (Giddens, 2002: p.
10-11). A importância do conceito de reflexividade na alta modernidade se porque
ele vai além da noção de auto-identidade, diz respeito ao monitoramento contínuo da vida
social multidimensional e institucional, marcada pela particularidade de elementos ligados
a um conjunto de tradições simbólicas.
O pensamento moderno é contrafactual, principalmente, devido à combinação do
conhecimento especializado, das conseqüências excêntricas e do conceito fundamental do
risco. Em sociedades tradicionais, se ‘pensava adiante’ através do uso indutivo da
experiência pré-existente ou da consulta a adivinhos (Giddens, 2002: p.35).
206
As mudanças advindas da modernidade suscitaram um questionamento a respeito
do surgimento de uma nova ordem social. Em resposta a tal indagação, o autor declara que
se vive um período em que os efeitos da modernidade são cada vez mais radicalizados e
universalizados. Sem negar os contornos de uma nova ordem, que é ‘pós-moderna’, se
opõe veementemente a idéia de pós-modernidade (Giddens, 1991: p.13).
Ao mesmo tempo em que se fala em mudança social, tem-se o cuidado de enfatizar
as permanências sociais. A constatação de que um alto grau de ansiedade na sociedade
moderna não pode ser definida como uma característica peculiar dela, que em épocas
passadas podia-se observar também o fenômeno da ansiedade e da insegurança, sendo
pouco provável que existisse um maior equilíbrio nas culturas tradicionais, em relação à
moderna. A diferença entre a sociedade moderna e às sociedades tradicionais localiza-se
no conteúdo e na forma das ansiedades (Giddens, 2002: p.37).
Na alta modernidade, o risco não é maior do que em épocas anteriores, a diferença
é que nela, tanto leigos quanto peritos avaliam as estimativas de risco de forma quase
inevitável. Se a pretensão em preservar certo estilo de vida, deve-se evitar viver “no
piloto automático”. Aqui, as exigências são maiores porque as situações impõem um
padrão cada vez mais reflexivo (Giddens, 2002: p.117-119). Nas relações amorosas, uma
ação impensada pode significar o fim de um relacionamento. Como exemplo, pode-se
citar a menor aceitação feminina à infidelidade do sexo oposto (quando a exclusividade
sexual é um pressuposto básico da relação) considerando o enfraquecimento do
patriarcalismo, o aumento da autonomia da mulher e a possibilidade de novas
combinações amorosas. Mas não é o fato de arriscar ou deixar de arriscar que nos garante
207
a estabilidade nos vínculos amorosos. É por isso que o conceito de confiança é tão
importante aqui.
Em Giddens (2002: p.41-42), antes de discutir confiança, deve-se falar em
segurança ontológica, já que a primeira é fundada na confiabilidade adquirida nos
primeiros estágios de socialização da criança, a partir de um processo preponderantemente
inconsciente que antecede um ‘eu’ e um ‘mim’, sendo a base anterior da diferenciação
entre os dois. Essa orientação emotivo-cognitiva que relaciona o mundo dos objetos e à
auto-identidade foi chamada por D.W. Winnicott de ‘confiança básica’. A organização
interpessoal do tempo e do espaço está fortemente relacionada com a confiança básica. A
separação dos pais tem origem com a aceitação da ausência, ou seja, a desenvolvida
pela criança de que aqueles que a protegem irão voltar. As atividades posteriores dos
indivíduos são marcadas pela ligação estabelecida entre a rotina, os sentimentos de
segurança ontológica e a reprodução de convenções coordenadas.
A ‘confiança básica’ gera um sentimento de esperança generalizado e de
‘invulnerabilidade’ para lidar com as ausências de tempo e espaço. Mais do que confiança
gerada pela certeza, o casulo protetor representa um sentido de ‘irrealidade’. A auto-
identidade é relacionada à apreciação dos outros através do conceito de “confiança
básica”, definido como a atenção afetiva dos pais ou responsáveis pela criança, sendo a
sociabilidade inicial substancialmente inconsciente (Giddens, 2002: p.40-43). O
casamento e a separação são considerados momentos decisivos porque ameaçam o casulo
protetor que proporciona a segurança ontológica do indivíduo (Giddens, 2002: p.108).
A confiança básica é um elemento importante da segurança emocional, que o
processo de socialização relacionado com as pessoas e os objetos ausentes, ou a aceitação
208
do mundo real é um reflexo das experiências vivenciadas na infância. Apesar da relação
de interdependência existente entre as rotinas assumidas e a segurança ontológica, não se
deve concluir que a sensação de segurança surge através da adesão naturalizada do hábito.
O risco continua sendo um fator a ser considerado na confiança. Segundo Giddens, confiar
é, em certo sentido, arriscar.
As conseqüências desestabilizadoras da modernidade resultam do caráter
inerentemente globalizante e fortemente reflexivo. Neste novo contexto, o risco e o acaso
assumem novas formas. As tendências globalizantes da modernidade são tanto
extensionais quanto intencionais, que ligam os indivíduos a sistemas de grande escala,
local e global, como parte da dialética de mudança (Giddens, 1991: p.176).
No projeto das relações íntimas da alta modernidade, a confiança masculina
caracteriza-se não pelo domínio da sexualidade, mas também perpassa os laços de
amizade. Entre os casais, a confiança não se restringe à boa do outro, passando pela
aposta de que cada um possa agir com integridade. Para explicar a tendência dos
relacionamentos diádicos, pode-se recorrer à justificativa psicanalítica relacionada à
dependência materna do bebê ou podem ser reafirmados com base na pretensa
confiança, através da renúncia de controle do outro. A confiança básica masculina esteve
ligada, desde a tenra idade, ao controle e ao domínio sobre as mulheres. Pode-se, de certa
forma, justificar o atual temor masculino ao compromisso ou ao vínculo afetivo num
contexto mais democrático (Giddens, 1993: p.141-171).
Considerando que as relações sociais, na alta modernidade, não são estabelecidas
em situações de co-presença, mas através de uma separação tempo-espaço, a confiança
deixa de se apoiar em instituições tradicionais, passando a se utilizar dos sistemas
209
abstratos (sistemas peritos), observados nas diversas áreas científicas. Assim, a confiança
moderna poderia ser construída a partir de um conjunto de fatores: acesso aos sistemas
abstratos, consciência prática e consciência discursiva. A separação tempo-espaço pode
ser observada em contextos mais tradicionais influenciados pelas novas formas de
vínculos afetivos.
O caráter “não decisivo” de grande parte do cotidiano é possível porque
desenvolvemos uma capacidade de observação fundamental ao casulo protetor. A noção
de umvelt de Goffman “um núcleo de normalidade (realizada) com que os indivíduos e
grupos se cercam” é utilizada por Giddens na definição da capacidade humana em
desenvolver determinado tipo de sensibilidade que possa medir os riscos potenciais
situacionais (2002: p.120-121).
O casulo protetor possibilita um umwelt satisfatório, sendo visto como uma capa
de proteção de confiança produzida pela relativa rotinização dos eventos. Pode-se dizer
que aceitar o risco é testar a confiança básica, alterando assim a auto-identidade do
indivíduo (Giddens, 2002: p.125).
Nas relações amorosas, modificar a auto-identidade pode significar uma
flexibilização ou desistência de controle, considerando os novos padrões amorosos que se
opõem ao modelo patriarcal. Para Giddens, as relações de confiança que são estabelecidas
nesses novos rearranjos amorosos não necessitam de um controle contínuo, mas de uma
inspeção espaçada, caso necessário. Nas relações puras, a confiabilidade é obtida através
das boas razões apresentadas ao outro das ações que interferem na vida de ambos
(Giddens, 1993: p.208-209). Mas esta pode ser uma visão otimista das novas
possibilidades no amor. Segundo Hughes (2005: p.71), a percepção da fragilidade nas
210
relações amorosas é responsável pela utilização de estratégias de ‘diminuição do risco’,
tais como a rejeição ao casamento e à maternidade/paternidade.
Neste tópico, foram apresentados os elementos que compõem a modernidade, ou,
nas palavras de Giddens, a alta modernidade. O objetivo dessa incursão foi o de relacionar
as mudanças decorrentes de uma nova ordem social com as novas possibilidades de
confiança estabelecidas. Viu-se que a confiança básica estabelecida através da
diferenciação entre ausência e deserção, ainda nos primeiros momentos de vida deve ser
considerada como um elemento intrínseco do indivíduo. Um outro aspecto destacado foi a
importância da rotina. Sem ela, a segurança ontológica pode ser rompida, retirando a
serenidade psicológica e moral do indivíduo. Deve-se agora focar o trabalho no tema
proposto. Para tanto, faz-se necessário apresentar uma pequena discussão sócio-histórica
acerca do amor realizada pelo autor.
VI.2. Das formas de amar: rupturas e continuidades
Para chegar à idéia de amor puro, Giddens precisou trilhar um caminho que
indicasse as mudanças decorrentes da alta modernidade. Pode-se dizer que a separação
tempo-espaço que rompe com a noção de padrão simétrico e constante influenciou de
forma direta os padrões amorosos. Um outro aspecto mais geral que explica as mudanças
no amor são os mecanismos de desencaixe. A circulação do dinheiro e o “espírito do
capitalismo” criaram um novo código amoroso, ou seja, um dos elementos norteadores
dessa mudança seria a estreita ligação entre o romantismo do século XVIII e os padrões de
211
consumo atuais
48
. Já que existem rupturas e continuidades entre o modelo tradicional e as
novas proposições amorosas, dois modelos tradicionais de amor serão apresentados,
segundo uma interpretação do autor: o amor paixão e o amor romântico. Em seguida, os
elementos que compõem a noção de relações puras serão apresentados.
O amor apaixonado (amour passion)
49
relaciona o amor ao sexo, sendo
considerado extremamente perturbador, por comumente levar o indivíduo a assumir
posições extremas e sacrificantes. Não registro de que o amor apaixonado tenha sido
considerado necessário nem suficiente ao casamento, tendo sido rejeitado na maior parte
das vezes. O amor apaixonado deve ser diferenciado do amor romântico porque o primeiro
é um fenômeno menos universal, diferentemente do amor romântico, culturalmente
reconhecido (Giddens, 1993: p.48-49).
Os elementos do amor passion foram incorporados ao amor romântico. Deve-se
atentar para os novos elementos constitutivos do amor romântico para que se possa
distingui-lo do amor passion. No primeiro, tem-se a narrativa de uma vida particular, onde
o amor sublime se contrapõe ao ardor sexual. Isso significa que a atração imediata
atribuída a esse tipo de amor precisa vir acompanhada do reconhecimento das
qualidades do outro. Os efeitos do amor passion não foram tão amplos quanto os do amor
romântico. Neste último, as idéias difundidas modificavam não o casamento como
outras questões pessoais que envolviam o autoquestionamento (Giddens, 1993: p.50- 56).
Na Alemanha e na França do século XVII, as demonstrações de afeto relacionadas
ao sexo – tais como beijos e carícias eram raras entre os camponeses. Existia, no
48
Ver Campbell (2001).
49
A palavra paixão teve o seu sentido modificado no mundo secular. Originalmente, ela referia-se à paixão
religiosa (Giddens, 1993: p.48).
212
entanto, a aceitação dos aristocratas de relações extraconjugais por parte das mulheres,
sendo inclusive liberadas das exigências de reprodução para que pudessem encontrar
prazer sexual. Estas práticas não faziam parte dos critérios definidos pelo casamento. Em
grande parte das civilizações, o desejo de eternizar as relações geradas pelo amor
apaixonado é comumente condenado (Giddens, 1993: p.49).
Quando se fala no surgimento do amor romântico, de se pensar nas mudanças
do final do XVIII, tais como as relações entre pais e filhos e “a invenção da
maternidade”. Essas transformações reforçavam a subordinação da mulher, a partir da
delimitação do espaço de trabalho doméstico. Por outro lado, a literatura romântica trazia
consigo esperança, um tipo de negação ao padrão de vida proposto. O herói das histórias
que elevava a imaginação feminina era autêntico e costumava se opor às convenções,
diferenciando-se do típico provedor (Giddens, 1993: p. 52-55).
No século XIX, os laços matrimoniais foram estabelecidos não só através de
acordos econômicos, mas também a partir das idéias de amor romântico. Essa nova
tendência foi observada inicialmente entre os burgueses, tendo sido difundida em outros
contextos sociais. Esse romantismo rompeu com a prática de vínculos conjugais entre
parentes e redefiniu esses vínculos, atribuindo-lhe um sentido especial (Giddens, 1993:
p.36).
De posse dos ideais do amor paixão e do amor romântico, Giddens passa a
relacioná-los com o relacionamento puro. Em A transformação da intimidade, discute os
impactos das mudanças decorrentes da contracepção e emancipação econômica das
mulheres, o feminismo, o conhecimento da diversidade ‘natural’ das opções sexuais e o
estabelecimento de mais equidade entre os casais. Não se trata de um estudo que privilegia
213
o contexto social e econômico
50
, ou que fala de um tempo específico. Mais do que isso,
tem-se uma ampla discussão sobre um novo tipo de identidade (Fontana, 1994: p.375).
Segundo Anthony Giddens (1993: p.10-15), o relacionamento puro procedente
do amor romântico
51
– diz respeito à sexualidade livre da obrigação da reprodução. Dentro
desta nova ordem pessoal democrática, o princípio da autonomia apresenta-se como um
elemento definidor das novas relações amorosas.
No relacionamento puro, a igualdade sexual acaba com a separação anteriormente
estabelecida entre as mulheres virtuosas e as mulheres impuras. A possibilidade da
sedução via dominação masculina não tem lugar nessa ordem democrática. Por outro lado,
os homens também sofreram as influências do amor romântico e os poucos que
sucumbiram à força feminina passaram a ser reconhecidos como “românticos” (Giddens,
1993: p. 70-97).
Um relacionamento puro diz respeito ao vínculo afetivo de duas pessoas onde os
seus interesses são restritos à própria relação, que pode ser desfeita com a insatisfação de
uma das partes. Tendo sido alimentado pelo amor romântico no âmbito da sexualidade, o
amor puro contribuiu posteriormente para o enfraquecimento das influências daquele
(Giddens, 1993: p.69).
O amor confluente ou relacionamento puro não permite a existência de termos
como “único” e “para sempre” e tende a enfatizar o “relacionamento especial” em
detrimento da “pessoa especial”. Uma característica que parece diferenciar de forma
50
Para Jamieson (1999: p.482), uma revisão mais geral das relações pessoais deveria ser vista de forma
multidimensional. Neste sentido, as relações de classe, gênero e etnia deveriam ser mais enfatizadas do que
a vida pessoal democratizada.
51
Segundo Giddens (1993:10), o amor romântico contribuiu para definir o espaço privado como sendo “o
lugar das mulheres”, sendo também um compromisso com o “machismo” da sociedade moderna.
214
marcante o amor confluente do amor romântico é a possibilidade do primeiro não ser
monogâmico. Neste sentido, a relação poderá ser exclusiva apenas se considerada
fundamental (Giddens, 1993: p.72-74).
A política emancipatória é caraterizada pelas oportunidades de vida (Giddens,
2002: p.197). Giddens sugere que as escolhas amorosas definem quem o indivíduo é, ou
seja, elas são constitutivas do processo reflexivo do self, estando relacionadas a certo
estilo de vida (Hughes, 2005: p.77).
Segundo Giddens, o relacionamento puro conecta a democratização interpessoal,
com a democracia na esfera pública. Esta visão de democracia é bastante limitada,
alicerçada em valores (neo)liberais, tais como autonomia e auto-realização, em
contraposição ao suporte mútuo (Hazleden, 2004: p.215). Para Hughes (2005: p.71),
Giddens tem uma visão otimista das mudanças relativas ao estilo de vida, desejos e
necessidades das relações amorosas, advindas da alta modernidade. Essa posição baseia-se
em alguns pressupostos tidos como fundamentais: o processo de democratização das
relações, com a possibilidade de satisfação das partes envolvidas e a consequente mudança
nas relações de gênero.
Fontana (1994: p.375) afirma que o conceito de plasticidade, em princípio, é
apresentado por Giddens como uma categoria descritiva que tenta apresentar a essência da
experiência da intimidade contemporânea, sendo posteriormente transformada num
projeto ético, um programa de trabalho escondido da democracia moderna que substitui
padrões considerados autoritários e egoístas.
Tem-se observado por décadas a existência de um discurso sobre a equidade e a
intimidade nas relações amorosas que apresenta o homem mais expressivo
215
emocionalmente, mais afetivo e comunicativo (Jamieson, 1999: p.487-480). Para Giddens,
as ‘relações puras’ foram desenvolvidas inicialmente por casais do mesmo sexo,
especialmente lésbicas, com um índice elevado de rompimento das relações. Em geral,
acredita-se que tais vínculos apresentam mais intimidade e abertura.
Bárbara música que se tornou um clássico lésbico da MPB
52
– fala sobre o amor
entre duas mulheres de forma a corroborar com a teoria de Giddens. Na peça original:
Calabar o elogio da traição, escrita por Chico Buarque e Ruy Guerra, a personagem de
Ana de Amsterdã cantava para Bárbara:
“Vamos ceder enfim à tentação
Das nossas boas cruas
E mergulhar no poço escuro de nós duas
Vamos viver agonizando
Uma paixão vadia
Maravilhosa e transbordante
Feito uma hemorragia”
A paixão vadia a que se refere à música vem sendo pouco a pouco discutida, tanto
no que se refere ao espaço do indivíduo em relação a sua liberdade sexual quanto ao
próprio formato das relações gays.
uma contraposição à leitura de Giddens em relação à questão da monogamia
entre os gays, fenômeno decorrente da AIDS. Worth (2002: p.239-240) afirma que, com a
maior conscientização da AIDS, não é apenas a identidade sexual que define um gay como
sendo de ‘alto risco’, mas fundamentalmente suas práticas de intimidade. A monogamia
entre os gays, decorrente desse risco, tem tornado a relação mais afetuosa e terna. No
entanto, uma pesquisa realizada com 1852 homens gays, em 1996, na Nova Zelândia,
52
Em decorrência do regime militar, rbara foi censurada em 1972. O trecho “nós duas” foi abafado com
aplausos por se tratar do amor entre duas mulheres (Faour, 2006: p.379-380).
216
revelou que 46% dos homens com relações estáveis não estavam utilizando camisinha, e a
maioria deles não tinha um acordo acerca das relações casuais. Constatou-se também uma
enorme discrepância entre a confiança de que o seu parceiro não tinha encontros sexuais
fortuitos e os números revelados na pesquisa. Poder-se-ia aqui questionar a teoria das
relações puras giddensianas, principalmente ao que tange à dificuldade da manutenção dos
laços íntimos e a abertura na relação.
O fato de muitos gays não conversarem com os seus parceiros sobre o sexo fora do
casamento desmente a crença giddensiana de que existe uma relação mais democrática,
baseada numa ‘auto-revelação’ mútua entre eles. A pesquisa realizada na Nova Zelândia
sugere que existe o mesmo tipo de ciúme e medo observado nas relações heterossexuais.
Haveria então uma intensificação da ansiedade nas relações homossexuais, considerando a
ausência do comprometimento observado nas famílias tradicionais e a preocupação desses
casais com o significado da relação (Worth, 2002: p.248).
Os casos extraconjugais das mulheres heterossexuais costumam ser mantidos em
segredo. Entre as lésbicas não monogâmicas, as relações extra-conjugais tendem a ser
sabidas e aceitas. A comunicação entre as mulheres parece ser maior do que a dos homens
e mulheres. Entre os homens gays, este percentual de sexo episódico aumenta
significativamente (Giddens, 1993: p.157).
As construções de masculinidade também afetam os casais gays, bem como o
modelo heterossexual do amor romântico. Os ideais heterossexuais de masculinidade
servem também de espelho para a definição dessas relações. A rejeição à intimidade, ou
certo tipo de intimidade, pode estar associada à negação da relação determinante entre
homossexualidade e feminilidade. Em relação à influência do amor romântico e da
217
exclusividade sexual, pode-se dizer que há uma tentativa de reconciliação da crença de
que a não exclusividade sexual signifique necessariamente rejeição (Worth, 2002: p.250).
O discurso da ampla comunidade gay não apóia a tentativa da manutenção das
relações monogâmicas duradouras, por suspeitar que não exista possibilidade de sustentá-
las. Por outro lado, o resultado da pesquisa de Worth (2002: p.251), apresenta um índice
elevado de crença no amor romântico e na realização do self a partir do outro, através da
prática monogâmica. Para a maioria dos casais, o principal medo da infidelidade estaria
conectado ao risco da perda emocional, mas do que o medo do contágio da AIDS. Tal
afirmativa pode ser corroborada com o silêncio entre os casais com relação ao acordo do
sexo fora do casamento.
O modelo de casamento tradicional é apenas uma forma de opção de vínculo
afetivo, apesar de existir uma incapacidade das instituições sociais em traduzir tais
mudanças. Grande parte dos casamentos heterossexuais (e boa parte dos vínculos
homossexuais) que criam caminhos próprios, afastando-se do relacionamento puro, pode
ser apresentada, além da co-dependência, de duas outras formas: 1. a versão do casamento
por companheirismo com baixo envolvimento sexual e uma forte relação de amizade,
construída com certo grau de igualdade e simpatia; 2. o casamento como base doméstica
dos parceiros, seria a segunda forma citada anteriormente. Aqui, um baixo
envolvimento emocional das partes. Tanto o homem quanto a mulher desempenham
atividades profissionais e tratam o casamento como um lugar parcialmente seguro. Nas
palavras de Giddens:
218
“Ninguém sabe ao certo até que ponto o advento do relacionamento puro irá
se comprovar mais explosivo do que integrador em suas conseqüências. A
transformação da intimidade, juntamente com a sexualidade plástica,
promove condições que poderiam provocar uma reconciliação dos sexos.
Entretanto, mais coisa envolvida do que uma maior igualdade econômica
e uma reestruturação psíquica, por mais extremamente difícil que possa ser
atingi-las” (Giddens, 1993: p.171-173).
Para Fontana (1994: p.375-376), existiriam duas abordagens da liberação sexual,
uma positiva e outra negativa. No primeiro caso, a aceitação das alegrias da relação ‘pura’,
com base no respeito aos sentimentos e aspirações dos casais. No segundo caso, o
comportamento obsessivo ou compulsivo ocupa um lugar de destaque, com relações
sexuais mecânicas e repetitivas às expensas da intimidade afetiva genuína e da
solidariedade.
Giddens (1993: p.45) acusa Foucault de ter desconsiderado a natureza do amor,
especialmente os ideais do amor romântico. Para o primeiro, a emergência da sexualidade
e do amor no mundo moderno está conectada à auto-identidade reflexiva. Jamieson
(1999: p.480) diz que Giddens refere-se a uma difusão de mudanças que começa na vida
social e é expandida para outras áreas, mas o apresenta uma explicação sociológica
acerca dos mecanismos envolvidos em tais mudanças.
Particularmente, o não-casamento e o casamento observados em várias gerações, a
informalidade na coabitação e as(os) filhas(os) geradas(os) em relações extramaritais,
indicam um retorno à complexidade histórica na família européia moderna. O
ressurgimento de velhos padrões sociais pode ser visto como uma reordenação
conservadora pleiteada por Fukuyama, por um lado, ou pode significar, em certa medida,
um espaçamento das ‘relações puras’ discutidas em Giddens (Therborn, 2006: p.456).
219
A literatura sobre as relações amorosas ampla e diversa apresenta um conjunto
de reflexões acerca dos novos vínculos afetivos. O enfraquecimento do modelo patriarcal
e a ausência de um padrão de relação afetiva mais estável evidenciam a importância da
confiança no amor.
Longe da pretensão de definir “o modelo” sobre as relações amorosas, tem-se neste
trabalho a intenção de refletir sobre aqueles existentes com o intuito de indicar o
alcance dessas teorias no mundo contemporâneo. Além disso, contribuir com o debate das
Ciências Sociais sobre o tema tratado.
O ideal de uma visão democrática apoiada nos modelos neoliberais, onde a
sociedade decide o que consumir, poupar, estudar, ou seja, a menor ingerência do Estado
na vida privada, não garante que as relações íntimas sejam pautadas em posições éticas
que preservem a outra parte da relação, quando do seu término ou durante esse vínculo
afetivo. De formas diferenciadas, as decisões unilaterais podem indicar uma crise moral
social, no âmbito privado. O que significa dizer que a falta de confiança nas relações
sugere tomadas de decisões diferentes das apresentadas por Giddens. Algumas questões
parecem ser problemáticas: quando a monogamia é uma questão fundamental para o casal
ou para uma das partes na relação, o problema parece ser resolvido com a não confiança
ou o auto-engano
53
. No primeiro caso, há um acordo tácito estabelecido em que as duas
partes envolvidas ou uma delas suspeita que o “acordo” poderá não ser posto em prática,
rompendo o contrato íntimo por falta de confiança no outro. No segundo caso, uma
cegueira generalizada toma uma das partes ou ambas. Neste caso, a crença na fidelidade
53
O auto-engano poderia ser relacionado aqui com a confiança básica e o sentido de irrealidade gerado pelo
casulo protetor.
220
existe apenas na imaginação da(o) iludida(o). Esta afirmativa poderia ser pensada, em
alguma medida, tanto nas relações heterossexuais quanto nas relações homossexuais.
As diferenças de gênero e as conquistas femininas criaram dois novos ingredientes:
a “vingança” da mulher e uma maior liberação do desejo feminino. No primeiro caso, tem-
se certo sentimento de “vingança geracional”, ou seja, se no modelo patriarcal a
infidelidade masculina é uma realidade aceita socialmente, mesmo considerando o ciúme
e o sofrimento gerados, com a autonomia da mulher, a exincia feminina cresce e a
traição ganha um outro tom. Esses dois ingredientes não arrefecem a disputa de braço
entre os padrões tradicionais e atuais nas relações entre os sexos.
O desejo pode ser explicado a partir do sexo ou do gênero na medida em que esses
padrões são impostos socialmente de maneira excessiva. O que significa dizer que não
haveria maior libido entre os sexos, mas que o comportamento padronizado justificaria a
traição feminina. Para entender o argumento, pode-se começar com a seguinte questão:
qual o grau de satisfação nas traições corriqueiras entre homens e mulheres? A questão
não estaria restrita à quantidade, mas ao prazer extraído de relações fortuitas. Em relação
aos homens, uma das possíveis respostas poderia ser: a traição é um hábito. Entre as
mulheres, o elemento a ser explorado seria a questão da culpa da traição, inclusive como
inibidor de prazer. A transferência do desejo para outras áreas da vida, tais como a
profissão ou o próprio companheirismo da relação ou o vício do sexo, poderia ser
característica tanto masculina quanto feminina, não fossem os imperativos culturais de
gênero. Com uma maior flexibilização nas relações, esses padrões são pouco a pouco
quebrados. Mas isso não parece resolver a questão da confiança no amor.
221
Além dos elementos culturais, associados a um mundo mais democrático e
“liberto”, Giddens utiliza a psicanálise e os manuais de auto-ajuda para pensar as
mudanças nas relações amorosas e a construção e reconstrução da auto-identidade, vistas a
seguir.
VI.3. Amor e auto-identidade: os manuais de auto-ajuda e a terapia
Nas condições da alta modernidade, as transformações na auto-identidade e a
globalização são consideradas os dois pólos da dialética do local e do global, ou seja, as
mudanças na vida pessoal dos indivíduos ligam-se, de forma direta, ao estabelecimento de
conexões sociais mais amplas. Desta forma, pode-se observar uma inter-relação entre ‘eu’
e ‘sociedade’ num meio global, devido ao amplo nível de distanciamento tempo-espaço
(Giddens, 2002: p.36).
Com o intuito de responder a preocupação geral acerca da sexualidade no mundo
moderno, Giddens (1993: p.194-195) apresenta algumas interpretações: a primeira delas
acompanha os passos de Marcuse e trata a transformação do sexo como mercadoria. O
prazer gerado pela sexualidade é um incentivo ao consumo. A segunda é uma crítica à
idéia de Foucault quando se refere ao sexo como a “verdade” proferida, “o âmago de um
princípio confessional generalizado da civilização moderna”. A idéia do “sexo como
verdade” é rebatida por não ter poder de análise. Outra interpretação acerca da sexualidade
aponta para o vício do sexo. A nica da sexualidade moderna seria a compulsão. O vício
disseminado na pornografia, nos filmes, e em outros espaços sociais, além da busca
222
desenfreada de muitos por experiências sexuais são o cenário necessário para esse tipo de
interpretação, sendo considerada a mais satisfatória, do ponto de vista descritivo. O autor
sugere que as origens desse cenário moderno sejam investigadas, levando em conta que a
sociedade moderna está alicerçada numa suposta repressão sexual.
Reich dizia que a reforma política seria realmente possível com a ocorrência da
liberação sexual. Para ele, saúde mental e liberdade eram uma coisa só. A livre-associação
através da conversa afastava o indivíduo da possibilidade de cura porque ocultava os
problemas, ao invés de revelá-los. Opondo-se ao trabalho de Freud, afirmou que o corpo
possui uma linguagem própria. Portanto, a cura não seria alcançada pela conversa, e sim
pelo corpo, através de sessões de massagem, relaxamento e da organoterapia”
alicerçada na expressividade do sexo no orgasmo genital. O indivíduo deveria se expressar
somaticamente, diluindo fortemente a linguagem (Giddens, 1993: p181-182).
Marcuse privilegia o inconsciente e se opõe à psicologia do ego. O
restabelecimento do inconsciente resultaria em uma fonte significativa para a crítica social
radical. Na psicologia do ego, a vida é aceita tal como apresentada. Com o retorno ao
instinto, poder-se-ia apresentar os mecanismos de repressão e oferecer um conteúdo à
promessa de emancipação moderna, que estaria relacionada à primazia do prazer. Apesar
de não aceitar por completo a idéia da sexualidade plástica, acredita que as perversões”
são armas que servem de crítica ao regime sexual genital. “Elas assinam os pontos de
resistência à subjugação da atividade sexual à procriação” (Giddens, 1993: p.182-184).
Excluindo a hipótese repressiva de que a sociedade moderna seria altamente
dependente da repressão sexual, observada inicialmente no vitorianismo, Giddens (1993:
p.186-199) compara as idéias de Reich e Marcuse com as de Foucault, apontando algumas
223
similaridades: “a permissividade da época atual é um fenômeno do poder, e não um
caminho para a emancipação”. Foucault acena com uma possibilidade futura de
mudança, tempo em que a relação entre o corpo e o prazer seria redefinida. Esta não seria
uma posição contrária a Marcuse e Reich, apesar das diferentes formas apresentadas por
cada um desses autores. Uma sociedade não-repressiva à Reich ou à Marcuse teria a
sexualidade em grande parte liberta da compulsão.
As variações da sexualidade plástica sugerem que possa haver uma variedade de
tendências sexuais. Esta posição se opõe à “justificativa biológica” de que apenas os
heterossexuais poderiam ser considerados “normais”, e significa uma mudança de atitude
política. O caráter ampliado e diverso da auto-identidade, bem como a reflexividade do
corpo são questões que marcam a contemporaneidade. A identidade sexual não é
suficiente no processo de auto-reconhecimento (Giddens, 1993: p.41-197).
A igualdade entre os sexos poderia declinar para uma convergência da
masculinidade e da feminilidade para alguma forma andrógena. Mas esta questão é
colocada apenas como uma conduta desejável. O que se tem ainda é a construção da
identidade sexual via diferença sexual (Giddens, 1993: p.215-216).
Segundo Giddens (1993: p.41), a obra de Freud é importante por ter revelado uma
conexão inusitada entre a sexualidade e a auto-identidade, bem como os problemas
decorrentes dessa ligação. Assim, a auto-identidade pode ser pensada a partir dos recursos
teóricos e conceituais oferecidos pela psicanálise.
A terapia é considerada uma versão secular do confessionário, vista como um
ambiente criado para que os indivíduos possam buscar algum tipo de suporte. A proteção
que existia nas sociedades tradicionais cede espaço às organizações maiores e impessoais
224
(Giddens, 2002: p.38). Diferentemente da visão de Foucault, que vê a terapia como
instrumento de controle, Giddens acredita no seu poder instrumental.
Os manuais de auto-ajuda podem servir como um importante instrumento na
‘reconciliação’ dos sexos, afirma Giddens. A identificação de doenças como a co-
dependência e o vício sexual poderiam auxiliar no processo de ‘democratização da vida
social’, a partir da ênfase no desenvolvimento do self (Hazleden, 2004: 202).
Os bioquímicos analisam as substâncias químicas produzidas no corpo de quem
ama indicando que elas podem ser consideradas narcóticas, ou seja, a amor pode ser
caracterizado como um vício, assim como o cigarro, as bebidas alcoólicas ou o jogo. A(o)
viciada(o) em amor apresenta uma série de sintomas físicos, a exemplo da alta de pressão
sanguínea. No entanto, o tratamento psicológico é considerado o mais adequado,
considerando a incapacidade do médico de analisar os sintomas dentro de um contexto
mais amplo (Hazleden, 2004: 206).
Hazleden (2004: p.214) se opõe à idéia de Giddens de que os livros de auto-ajuda
podem ser emancipatórios. Para ela, tais textos alimentam a patologia nas relações
amorosas, caracterizando o amor como potencialmente prejudicial e bioquimicamente
viciador.
Pode-se dizer que as relações sociais são marcadas pelas rotinas ou modos
específicos e repetitivos da vida cotidiana. Apesar disso, as rotinas podem ser
diferenciadas segundo as formas também diferenciadas do comportamento humano.
Giddens (1993: p.83-85) considera útil o conjunto de distinções comportamentais criado
por Craig Nakken, dividido em padrões, hábitos, compulsões e vícios. Segundo os
critérios de diferenciação utilizados, o padrão é uma forma de sistematizar a vida social,
225
podendo ser modificado a qualquer tempo. O conceito de hábito é marcado por certa
relação psicológica distinta da vontade, podendo ser observado pelo uso freqüente da
palavra “sempre”. Como exemplo, pode-se dizer: “eu sempre acordo às seis horas da
manhã”. Na compulsão, observa-se que o agente não se reconhece como capaz, ou
acredita que é improvável que possa suspender certo tipo de comportamento a partir de
sua força de vontade. Essa incapacidade do agente em realizar certas atividades
desemboca numa crise de ansiedade. Por fim, pode-se definir o vício a partir de algumas
características especificas: o “êxtase” momento de exaltação advinda de uma sensação
“especial” e a “dependência” vício em determinada atividade ou experiência. Tanto
para o êxtase quanto para a dependência, o indivíduo se descola momentaneamente da
realidade. Temendo a falta de controle de situações futuras, ele pode ainda livrar-se do
vício de forma inesperada.
Observa-se que o indivíduo “co-dependente” atua segundo uma reflexividade
inversa por ser considerado “dependente da dependência do viciado”. Nos
relacionamentos fixados, a própria relação se traduz no vício. Mas uma oscilação em
relação ao grau dessa dependência, podendo variar entre aqueles que são consolidados no
hábito até a destruição de ambas as partes. Nos laços viciados, uma tendência de
existirem práticas sexuais e de gênero não-igualitárias e um controle mútuo do casal
(Giddens, 1993: p.102-103).
“A ajuda é o lado ensolarado do controle”. Pode-se descobrir que uma aparente
motivação altruísta pode ser na verdade uma forma de controle. Nas relações amorosas, há
um limite tênue entre ajudar e ferir, apoiar e destruir (Hazleden, 2004: 209).
226
Os sintomas de co-dependência são: sentimento de responsabilidade pela(o)
parceira(o) e sentimentos de piedade ou de ansiedade relacionados aos problemas da(o)
parceira(o). Giddens enfatiza que a cura da co-dependência está atrelada aos processos de
“emancipação” e “democratização” de gênero e é mais comum entre as mulheres.
(Hazleden, 2004: 207).
Segundo Giddens, Foucault não deveria ter conectado o desenvolvimento das
práticas regulatórias, como a psicanálise, com a emergência histórica dos tipos particulares
de práticas sexuais e corpos sexuais (Alice, 1994: p.222). Para Jamieson (1999: p.408), a
preocupação de Giddens sobre as inter-relações entre o trabalho sobre a sexualidade,
cultura popular e discurso terapêutico, não responde de forma satisfatória a questão da
influência da literatura terapêutica, como documentos e sintomas das mudanças da vida
pessoal e social. Giddens (2003: p.10-33) afirma que o conceito de agência refere-se, em
primeiro lugar, à capacidade que as pessoas têm para resolver certas questões. Enquanto
que a integração social supõe a co-presença e interação dos atores, a integração de sistema
estabelece uma interação entre atores sociais e coletividades a partir da ampla noção
tempo-espaço. Para Fontana (1994: p.376), Giddens lança mão de inúmeras referências da
psicanálise doutrinária e prática, mas não indica se o caminho para a realização coletiva da
sexualidade plástica seria a intervenção terapêutica ou o esforço individual do agente.
Outra crítica do mau uso da psicanálise na tentativa de Giddens de discutir a auto-
identidade na alta modernidade é a de que:
227
“O modelo de relação eu-e-mundo, que sustenta a perspectiva identitária tal
com Giddens a explicita, ao mesmo tempo em que se mantém tributário da
filosofia do sujeito e do primado de uma razão instrumental fundada na
consciência, simplifica a compreensão psicanalítica da vida emocional e
desconsidera a radicalidade da invenção freudiana e toda a gramática
inconsciente fundada no jogo mortífero das intensidades que invadem e
constituem o aparelho psíquico” (Cunha: p.2007).
Alice (1994: p.222) afirma que Giddens não deu a devida atenção aos interesses de
classe e raça quando se referiu aos tipos de tratamentos terapêuticos. Além disso, fechou
os olhos para o fato de que a terapia popular não costuma tratar das questões relacionadas
à equidade de gênero.
228
Considerações finais
Trocando em miúdos (1978)
“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim!
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado
Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde”.
Letra: Chico Buarque.
Composição : Chico Buarque e Francis Hime.
Todo o sentimento (1987)
“Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente
Preciso conduzir
Um tempo de te amar
Te amando devagar e urgentemente
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente
Prefiro então partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente
Depois de te perder
Te encontro com certeza
Talvez num tempo da delicadeza
Onde não diremos nada
Nada aconteceu
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu”.
Letra: Chico Buarque.
Composição: Chico Buarque e C. Bastos.
A primeira música trocando em miúdos é o resumo de uma separação
traumática e cheia de ressentimentos. em todo o sentimento há a demonstração de certa
franqueza e a clareza de que a relação não é eterna, tal como concebida no amor
romântico. Aqui, não há mágoa, mas a constatação de que o amor acaba. Estas duas
músicas são ilustrativas para pensar o tipo de laço afetivo construído, bem como a
possibilidade de perder o outro para sempre (quando o ideal do amor romântico é desfeito)
229
ou construir uma relação de confiança que caiba um outro tipo de laço afetivo, baseado
principalmente no respeito ao outro e ao passado compartilhado. Esta segunda opção
estaria mais próxima das relações íntimas de Giddens.
Giddens (2002: p.66-69) destaca que a vergonha deve ser considerada a
característica fundamental da organização psíquica na modernidade, e não a culpa, que
a primeira atinge de maneira decisiva as raízes da confiança, estando fortemente
relacionada com o medo do abandono na infância.
Simmel argumentou que a total ausência de segredos poderia esgotar uma relação
por não reservar algum tipo de surpresa. Bauman se refere ao conceito de “comunidade
destrutiva” de Richard Sennett, para destacar “o prejuízo que é causado pela coesão social
pelo fardo psicológico da mútua reabertura” (Jamieson, 1999: p.480). O discurso de várias
possibilidades afetivas surge em meio a uma falta de compromisso com o outro, não no
sentido de “obrigação eterna”, mas na forma com que as relações são desfeitas. As
motivações e os desejos dos agentes deveriam ser combinados, essencialmente, com uma
postura ética adequada. um movimento que se contrapõe ao modelo tradicional
moderno que combina amor, equidade, liberdade e autonomia, sendo considerado apenas
numa relação entre iguais. A democratização da vida pessoal envolve mudanças bastante
profundas, apesar da dificuldade de observá-la, por se tratar de espaços privados. A
liberdade pode indicar tanto uma escolha de adequação a certo tipo de padrão quanto à
priorização dos instintos e a separação entre sexo e amor. Mais importante do que a
definição dos tipos de relações possíveis é a convicção ou a falta dela, da confiança
definida no âmbito privado, enfraquecida por uma crise moral moderna. Dialogando um
pouco com as elucubrações de Woddy Allen em Manhattan, pode-se citar a última frase
230
do filme, inquietante e reveladora dita por Tracy (Mariel Hemingway), ex-namorada de
dezessete anos do quarentão Isaac (Woddy Allen): “not everybody gets corrupted. You
have to have a little faith in people”
54
.
54
Nem todos se corrompem. Você precisa acreditar um pouco mais nas pessoas.
231
À GUISA DE CONCLUSÃO
Após a análise dos autores selecionados, tem-se explicitado a importância do
conceito de confiança nas Ciências Sociais, especialmente na elaboração de questões
sociológicas fundamentais: ordem social, controle social, processo social, dentre outros. O
diálogo estabelecido com as perspectivas teóricas que discutem o problema da confiança,
já relacionado à cooperação, ao capital social, à precondição da prosperidade, etc., indicou
alguns caminhos possíveis à reflexão sobre essas contribuições teóricas acerca do
problema da confiança nas relações amorosas, além de ter contribuído no
desenvolvimento do tema proposto em cada autor específico. Assim, algumas das
discussões apresentadas sobre a confiança nas referidas relações, serviram tanto para
pensar este fenômeno específico quanto para relacioná-lo a outros problemas sociológicos
e instituições sociais.
A proposta deste trabalho não foi apenas de apresentar algumas idéias sobre a
noção de confiança nas relações amorosas, segundo a perspectiva dos autores
mencionados, mas de indicar, a partir do embate e reconhecimento dessas idéias, novas
possibilidades ou combinações úteis à reflexão do tema. Em particular, podem-se
apresentar as seguintes reflexões sobre a confiança nas relações amorosas:
Tanto em Georg Simmel quanto em Niklas Luhmann, o conflito é um elemento
importante ao processo de cooperação. Esta consideração é importante quando se leva em
conta a falta de disposição para as questões que se apresentam problemáticas no mundo
contemporâneo, relacionadas ao vínculo afetivo. A aceitação do conflito nas relações
232
amorosas é condição irrevogável no estabelecimento e desenvolvimento da confiança
entre duas pessoas que precisam negociar as suas diferenças. Por outro lado, não se dispõe
de muita energia, frente à complexidade e às novas exigências e prioridades estabelecidas
no mundo contemporâneo.
A Sociologia de Georg Simmel é formada pela análise dos processos sociais e pela
flexibilização do conceito clássico de forma, tendo sido substituído pelo termo
“formismo”. Isso significa considerar que não é a forma que define o conteúdo, mas
que existe uma relação de influências mútuas. Deve-se falar, portanto, em forma, conteúdo
e interação social.
Simmel discute a possibilidade de rompimento da unidade social gerada por um
elemento externo. E o elemento interno ou psicológico? Se o fenômeno tratado é a
confiança nas relações amorosas, quais seriam os elementos fundamentais para a
manutenção dessa relação? Para o autor, o distanciamento seria considerado uma atitude
renovadora da vida íntima. Mas quais as disposições sócio-psicológicas para amar e
manter uma relação baseada em certo afastamento, por um lado, e as fortes características
individualistas do mundo moderno, por outro lado?
Deve-se ressaltar aqui o lugar do conflito processo social indispensável à
formação das unidades sociais – na teoria de Simmel. A necessidade desse processo social
como forma de definir relações pode ser problemática no mundo hodierno, considerando
as tendências ao isolamento social e a individualização. Não se trata apenas de apontar os
casos limites, tal como o processo de conflito entre o ladrão e sua vítima, mas de enfatizar
os aspectos contraditórios da existência desse conflito. Considerando a possibilidade de
uma “lei individual”, a tendência das mulheres em adotarem a objetividade construída
233
pelos homens, ou ainda a incapacidade dos homens de relacionar os elementos objetivos e
subjetivos, ao contrário das mulheres, que conseguiriam tocar o “reino do absoluto”,
através da intuição, ter-se-ia três possibilidades relativas à confiança nas relações
amorosas: 1. o reconhecimento recíproco entre homens e mulheres; 2. a “liberdade social”
e solidão entre os homens e as mulheres no espaço privado ou desvalorização do campo
dos afetos e 3. o amor feminino e a solidão masculina.
No primeiro caso, a “lei individual” criada por Simmel poderia ser formada a partir
de três elementos do amor: confiança, gratidão e fidelidade. A confiança ou um tipo de
conhecimento indutivo fraco seria acompanhada da gratidão, observada nos processos
sociais de forma prática e impulsiva; e da fidelidade, ou tipo de predisposição psicológica.
Se a teoria da “lei individual” funcionasse tal como previu Simmel, a confiança
que é uma força que age através dos indivíduos e por eles – suplantaria o ego e o
narcisismo, atingindo a “universalidade individual”. Ou seja, as diferenças de gênero
seriam apartadas em nome de uma moral geral-particular, a partir do confronto interior do
sujeito com “um outro” presente em si mesmo, resultando no reconhecimento mútuo entre
homens e mulheres. A confiança amorosa seria possível, neste caso.
No segundo caso, as mulheres seriam levadas a repetir a objetividade criada pelos
homens, resultando na “liberdade social” e na solidão de homens e mulheres. A confiança
nas relações amorosas seria substituída pela possibilidade do espaço social e valorização
do âmbito público.
Por fim, as mulheres conseguiriam escapar da armadilha da objetividade
masculina, sendo capazes de combinar tanto os elementos objetivos quanto os elementos
subjetivos. Os homens seriam condenados a viver num estado solipsista. A confiança no
234
amor seria possível apenas entre as mulheres.
que a teoria da lei individual foi criada por Simmel tardiamente, dever-se-ia
considerar esta a alternativa mais aceita, dentre as três apontadas, sem, contudo,
desconsiderar as demais.
O deslocamento do discurso não é estável, nem constante, nem absoluto. Não
uma categoria acabada de discursos. Apesar das mudanças de seus pontos de aplicação, a
sua função permanece. Nas palavras de Foucault (2000: p.23): “o novo não está no que é
dito, mas no acontecimento de sua volta”. Portanto, dever-se-ia avaliar tanto os efeitos do
discurso quanto à conjuntura em que eles ocorrem.
Inicialmente, os contornos de uma história do progresso da razão, do conhecimento
ou da verdade foram neutralizados através da separação dos conceitos como
independentes da ciência. Assim, o foco da arqueologia foi direcionado à explicação dos
saberes específicos (Machado, 2001: p.9-10). A introdução do discurso psiquiátrico
transforma a difícil tarefa de punir em um admirável ofício de curar, através da
constatação da relação existente entre as anomalias mentais e as possíveis infrações
cometidas.
Foucault referiu-se aos discursos como práticas descontínuas e como a violência
que praticamos contra as coisas. As disputas estabelecidas entre os saberes-poderes
transformaram a sociedade moderna num campo de lutas e disputas. O saber-poder
médico ou a sciencia sexualis a partir dessa perspectiva do conflito impõe uma lógica
de dominação própria, sendo considerada mais complexa e inclusiva”, já que estabelece
um tipo de controle que não cria separações físicas entre os indivíduos estigmatizados
sexualmente do resto da sociedade, salvo nos casos considerados mais extremos, tal como
235
a prática sexual não consentida; além de outras identidades sexuais recentemente
normatizadas, a exemplo da masturbação na infância.
Se a subjetividade do “eu” em Foucault é formada socialmente e a sexualidade é
moldada pela interação social e pela coordenação do corpo, a partir de certa formação
discursiva (apud Gagnon, 2006: p.25), pode-se aproximar o seu trabalho à perspectiva
interacionista, mas, ao contrário desta, a unidade de análise não seria a situação, e sim o
discurso, tal como definido anteriormente.
A relação estabelecida entre tempo e subjetividade permite que o segundo
elemento seja desenvolvido a partir das experiências com os objetos no mundo, ao
contrário do inconsciente freudiano, quase invariante. As formas de subjetividade devem
ser avaliadas a partir das regras de inclusão, exclusão e classificação do discurso, vistas
como unidades de análise. A confiança nas relações amorosas partiria então dos discursos
definidores dessas subjetividades móveis.
A ética não é considerada o ponto final de sua verdade – segundo a razão clássica –
estando presente desde o início de todo pensamento ordenado, através da trajetória de uma
liberdade traduzida na própria iniciativa da razão, ao longo de um processo reflexivo
(Foucault, 2005: p.142). Pode-se dizer então que a confiança nas relações amorosas está
situada dentro de uma determinada formação discursiva constituída tanto por práticas de
sujeição quanto por práticas de liberação. Vale lembrar que essas práticas discursivas
estão situadas dentro de um determinado contexto histórico e social. A diversidade das
práticas sexuais do mundo contemporâneo indica a grande variabilidade dos discursivos.
As diferenças de gênero apontadas por Simmel são veementemente negadas por
Foucault. Para o primeiro, o homem e a mulher teriam uma essência distinta. Apesar
236
disso, a leitura de sua obra sugere que os determinantes culturais poderiam ser sobrepostos
às diferenças sexuais. Em Foucault, essas categorias binárias não seriam suficientes à
explicação do desejo e à própria formação da identidade, constituídos nos discursos.
Em defesa à perspectiva foucaultiana, pode-se citar Sexo e temperamento estudo
clássico realizado por Margaret Mead (2006: p.267-268), com três povos primitivos,
acerca da questão da padronização do temperamento sexual, onde foram apresentadas
diferenças significativas nas três tribos. Entre as(os) arapesh, observou-se que homens e
mulheres adotavam o mesmo padrão de comportamento: maternal (dentro de uma
perspectiva ocidental etnocêntrica e essencialista) e feminino, considerando os padrões
sexuais tradicionais adotados pelas mulheres. As(os) mundugumor relacionavam-se de
forma extremamente violenta (seguindo os moldes ocidentais tradicionais), podendo ser
comparados(as) a um(a) ocidental brutalizado(a) e com poucas tendências para a
maternidade/paternidade. Já entre as(os) tchambuli, observou-se uma inversão de papéis
sociais. As mulheres ocupando posições de dirigentes e dominadoras, e os homens menos
envolvidos com as preocupações da subsistência e mais dependentes emocionalmente.
Em Niklas Luhmann, a sociedade moderna é constituída pela diferenciação social e
pela formação dos sistemas, havendo uma mútua dependência entre a teoria dos sistemas e
a teoria da sociedade, sendo a sociedade um sistema de ordem superior formado pela
diferenciação entre o sistema e o ambiente, definidos dentro da complexidade social e
contingencial. Logo, a sociedade pode ser explicada a partir da avaliação dos diversos
efeitos de uma mesma causa ou das várias causas de um mesmo efeito, levando-se em
conta a possibilidade de variações entre elas.
Se a sociedade é tomada como um sistema autopoiético formado de comunicações,
237
a confiança nas relações amorosas será definida a partir da possibilidade dessa
comunicação via vínculo sexual. Neste caso, o coquetismo seria um exemplo de
incomunicabilidade das relações afetivas e impossibilidade da confiança. A comunicação
que se estabelece nas relações íntimas é também o resultado de influências externas ao
casal.
A confiança espontânea apresenta certa vantagem em relação à confiança
perceptiva, por quase não exigir que o agente reflita sobre a confiança depositada no
outro. Apesar disso, a confiança perceptiva parece ocupar um lugar cada vez mais
relevante nas relações amorosas, ainda que se deseje confiar quando se ama. Mas a
confiança espontânea não seria o antídoto da manutenção do amor, mas antes o prenúncio
de sua morte. A desconfiança não construiria o amor, sendo necessária, mas não suficiente
à duração das relações amorosas.
O risco e o perigo são dois elementos importantes na definição da confiança. Nas
relações amorosas, esses conceitos são importantes por estarem diante da ocorrência de
uma maior instabilidade nas relações, ligada à questão da durabilidade desse tipo de
vínculo afetivo. Como demonstrado no capítulo I (A confiança e as relações amorosas nas
Ciências Sociais), tem-se uma visão social corrente de que o pacto amoroso pode ser
facilmente desfeito, ao contrário das relações matrimoniais tradicionais onde a confiança
de que a relação não iria terminar estava próxima da certeza. Uma das explicações acerca
da valorização da fidelidade, mesmo entre pessoas que não a praticam, poderia estar
relacionada a essas instabilidades, além de outras justificativas possíveis, como a crença
no domínio de si mesmo. O pacto de fidelidade é importante porque cria certa obrigação
moral com o outro e com a própria relação, atribuindo-lhe, de certa forma, um sentido de
238
permanência diante de tantas possibilidades. Em tese, o acordo de fidelidade aumentaria
as chances do infiel não ser descoberto. Por outro lado, não como escapar do grande
perigo ou armadilha do amor, qual seja, a “deserção” da(o) parceira(o). A vigília ou
observação de primeira-ordem não é capaz de escapar do ponto cego presente em qualquer
tipo de relação, mesmo que não seja considerada uma caixa-preta, como é o caso da
observação de segunda-ordem. Não se trata de uma cegueira que acomete aqueles que
amam, mas de uma constatação quase religiosa: o conteúdo do amor é esvaziado na
medida em que a confiança é construída, com a redão da complexidade social. A
confiança pressupõe algum tipo de ação ou cálculo interno do agente, ao contrário da
segurança, onde os resultados não esperados estão relacionados aos elementos que
independem do seu processo reflexivo.
Segundo Zygmunt Bauman, a modernidade líquida ou fluida difere da
modernidade sólida porque não alimenta a possibilidade de existir um tipo de sociedade
mais humana e sem conflitos. Além disso, as atividades passam a ser privatizadas e a
regulação característica da sociedade sólida deixa de existir. Neste novo cenário, a escolha
individual é determinante. Diante dos novos riscos existentes na sociedade líquida, duas
estratégias de proteção são identificadas, a fim de resolver a questão do risco no amor: a
fixação e a flutuação. A primeira estratégia difere da segunda porque tenta criar
mecanismos que garantam a estabilidade da relação. Na estratégia da flutuação, a questão
da insegurança é ignorada ou tratada como um problema pouco relevante. Mesmo quando
a opção adotada é a estratégia de fixação, não se pode evitar o fim da relação,
normalmente turbulento, por se tratar de um vínculo consumista estabelecido entre as
partes, onde o conflito é marcado pela soberania do consumidor”, dentro da gica de
239
consumidores e objetos de consumo. É aqui que se percebe a importância da consciência
moral.
A falaciosa “falta de intencionalidade” ofusca o problema ético vivido no contexto
atual. Quando os mais esperançosos ou iludidos continuam a acreditar em uma postura
mais humana e menos egoísta daquelas pessoas que resolvem não mais investir no
relacionamento que não é mais “rentável”, tal como o investimento na bolsa de valores,
costumam ser surpreendidos por seus pares amorosos, sem nenhum tipo de aviso prévio.
Mais importante do que a preocupação em preservar algum tipo de vínculo afetivo com
quem se dividiu sonhos e frustrações, e que se supõe que haja algum tipo de afinidade e
afetividade entre eles, é “livrar-se” do peso e reinvestir rapidamente no mercado amoroso,
conectando-se novamente à rede narcísica.
A confiança depositada na relação amorosa é facilmente desfeita e transformada
em desconfiança. Cabe ressaltar aqui a possibilidade de preservar a relação, ou ao menos,
a parte transformada em objeto de consumo. A preocupação com certa manutenção dos
vínculos familiares (paternais/fraternais) poderia ser estendida ao par amoroso. Os rituais
de separação costumam ser marcados pela vingança, desapego e desconfiança. Mesmo
entre os mais lúcidos, as práticas tendem a ser extremamente egocêntricas e mesquinhas,
tanto em relação à divisão dos bens quanto ao cuidado e à preocupação com o estado
emocional da(o) outra(o). A confiança costuma ser precariamente construída e facilmente
desfeita.
Para Singly (2007: p.175-177), o mundo moderno que nega tudo que é durável,
enfatizado por Bauman, não parece ter correspondente empírico. Deseja-se divorciar-se da
durabilidade que se vincula, obrigatoriamente, à institucionalização do casamento, não da
240
qualidade relacional. o se trata de uma trajetória desprovida de projetos, mas do desejo
do duplo movimento (ir e vir). Desta forma, a vida do indivíduo seria definida com base
nessa diversidade de experiências. A necessidade de segurança não deve ser considerada
contramodernista, por ser parte do processo dos agentes individualizados e ser importante
para a formação de sua identidade pessoal.
Mesmo que os processos apontados por Bauman não sejam manifestados tal como
descrito pelo autor, a confiança nas relações amorosas tem sido marcada por práticas
antropofágicas ou antropoêmicas, à Lévi-Strauss. Tais estratégias são estabelecidas através
do que se poderia chamar “lógica de consumo total” ou satisfação egoísta do prazer. A
confiança nas relações amorosas estaria pautada na dupla lógica de objeto de consumo e
consumidor.
Para Anthony Giddens, as características que marcam a alta modernidade estão
relacionadas ao processo de globalização, definidos pela dialética entre o local e o global.
Isso significa que a vida de cada um está necessariamente conectada aos aspectos sociais
mais gerais. O ‘eu’ e a ‘sociedade’ estabelecem uma relação de ligação firmada a partir do
distanciamento tempo-espaço.
O problema do risco na alta modernidade é posto de outra forma, que é formado
a partir de um processo de reflexividade cada vez mais intenso e onde se evita viver “no
piloto automático". A confiança básica permite que o indivíduo trabalhe com as questões
relativas ao tempo e ao espaço, garantindo-lhes um sentimento de grande estabilidade ou
de não vulnerabilidade. O casulo protetor produz um sentido irreal. Parte da auto-
identidade é formada pela confiança básica e o processo de socialização primário é
fortemente inconsciente. Desta forma, a definição e aceitação do mundo real é garantida
241
por esse tipo de confiança que ocorre na infância e que garante a segurança emocional dos
indivíduos. Por outro lado, não se pode supor que a sensação de segurança pode ser
garantida através da adesão cotidiana cega, mesmo considerando a relação de
interdependência entre o dia-a-dia adotado e a segurança ontológica, sendo o risco um
elemento inevitável da confiança, já que o ato de confiar também pressupõe o risco.
A questão da fidelidade está ligada aos problemas citados anteriormente acerca da
segurança, que o indivíduo tem a tendência de reproduzir os seus traumas vivenciados
na infância. Mas não se trata apenas de considerar o processo de socialização primário,
sendo a reflexividade um elemento constante e transformador das relações sociais, em
especial aquelas definidas no campo dos afetos ou das relações íntimas.
Por um lado, pode-se destacar como aspecto positivo, o aumento da
democratização interpessoal. Por outro lado, essa mudança, de certa forma “neo-liberal”,
que sugere uma auto-regulação das demandas individuais, quando transportada para o
espaço dos afetos e da ordem privada, poderia por em risco a cumplicidade e a confiança
estabelecidas na vida íntima e amorosa. Tal risco seria provocado pelo excesso de
individualismo, contrário às necessidades monogâmicas apontadas. É preciso que a
democratização interpessoal seja de fato consolidada e que surja uma nova ética dos afetos
que considere as particularidades de cada um e que preserve certo sentido de humanidade
e cuidado.
O problema da fidelidade/infidelidade ocupa um lugar de destaque na história da
vida privada e na vasta literatura sobre o tema. Apesar de o enamoramento ter sido
responsabilizado pelo fim dos laços matrimoniais, considera-se aqui a posição de Alberoni
(1986) quando afirma que o adultério é apenas um caso particular de um padrão geral,
242
qual seja, o de que o enamoramento aparta o que estava junto e liga o que estava separado
anteriormente.
Segundo Singly (2007: p.176), a teoria giddensiana padece de sentido quando
todas as pesquisas apontam para a valorização da fidelidade. Em verdade, deseja-se ao
mesmo tempo “ter asas e criar raízes”, é por isso que a falta de informação acerca da
origem familiar de alguns indivíduos continua a ser um incômodo, mesmo com a
flexibilização desses vínculos. A combinação dessa valorização da fidelidade citada por
Singly, e reiterada nos variados trabalhos supracitados, por exemplo com a flexibilidade
ou plasticidade das relações amorosas e o individualismo, precisa adicionar um elemento
central na compreensão dessa ação: a confiança. Mas por que a valorização da fidelidade
não reflete os resultados de infidelidade apontados anteriormente pelos referidos estudos?
Se alguns caminhos foram trilhados no sentido de indicar a importância do pacto de
fidelidade nas relações afetivas, apesar de sua não correspondência empírica, é preciso
refletir sobre as motivações do indivíduo relativas à infidelidade. Acredita-se que a
questão do desejo não se restringe às categorias binárias de sexo e de gênero, e que outros
elementos podem ser apontados na explicação desse fenômeno social. As seguintes
categorias da infidelidade foram criadas:
243
Infidelidade
1. Desejo necessidades biológicas e psico-sociais
a. desejo-sexual
b. desejo-paixão
2. Reconhecimento social/ não reconhecimento social
3. Manutenção da relação
4. Combustível da relação
5. Teste
6. Auto-encorajamento para terminar a relação
7. Forma de encorajar a(o) parceira(o) para terminar a relação
8. Razão instrumental
9. Vingança
10. Sistema Social
Na categoria Desejo, a subdivisão realizada indica a satisfação física ou sexual, no
primeiro caso; e o processo de enamoramento ou envolvimento sexual-afetivo, no segundo
caso; ambos relacionados às necessidades biológicas e psico-sociais. Um exemplo de
desejo-sexual pode ser apontado no filme “Kinsey: vamos falar de sexo” (Kinsey título
original), dirigido por Bill Condon. Um senhor entrevistado por Kinsey (Liam Neeson)
revela a sua compulsão por sexo, mostrando-lhe um diário com as suas inúmeras
experiências sexuais. Por outro lado, o desejo-paixão estaria dentro do padrão amplamente
difundido, seja na literatura, nos filmes e nos meios de comunicação de massa. Um, dentre
244
os dois tipos de fidelidade desenvolvidos por Simmel, é visto como uma predisposição
psicológica do indivíduo. Mas a categoria criada aqui ainda leva em conta os fatores
biológicos e psicossociais. Para Foucault, o controle dos desejos é uma das formas de
pensar em fidelidade, sendo a infidelidade marcada pelo seu descontrole.
O reconhecimento social/não reconhecimento social é o componente mais
importante no ato da traição. Um tipo de fidelidade citada por Simmel é guiado pelos
elementos externos, tais como a valorização do casamento e da família. No mundo
hodierno, tem-se tanto um discurso que reforça os valores da família enquanto instituição
quanto os que desvalorizam a monogamia, a exemplo da flexibilidade das relações vividas
no mundo líquido a que se refere Bauman. Segundo ele, a infidelidade seria um dos
resultados do amor consumo. Para Foucault, uma das possibilidades de fidelidade estaria
relacionada à obediência às interdições. A infidelidade seria então o resultado da
desobediência social. Outra possibilidade estaria ligada ao afastamento do mundo ou ao
não reconhecimento social. Em Luhmann, a compatibilidade das expectativas amorosas
ditada pelo código-norma estabiliza os sistemas sociais, através da idéia de que não é
indicado amar mais de uma pessoa de cada vez. O casamento com base doméstica dos
parceiros, citado por Giddens, contemplaria essa categoria, considerando o baixo
envolvimento emocional do casal.
A traição como elemento para a manutenção da relação serviria para preservar
um vínculo onde não se tem mais desejo, mas o interesse motivado por comodismo,
criação das(os) filhas(os), valores religiosos ou outros fatores ligados à instituição
familiar. O casamento por companheirismo, citado por Giddens, pode também ser um
caso deste tipo de traição, já que é formado por um baixo vínculo sexual, mas uma relação
245
de amizade consistente.
A traição como uma forma de combustível da relação pode ser acompanhada do
estímulo criado pela diversidade ou da culpa. No primeiro caso, a monotonia da relação
seria quebrada e realimentada por relações extra-conjugais. No segundo caso, o cuidado
com a(o) parceira(o) estaria fortemente baseado no sentimento de culpa.
O teste serve para minimizar ou dirimir as dúvidas ou questionamentos da relação,
quando não se tem claro a sua importância, podendo ser aplicado de forma espaçada,
como sugere Giddens.
No auto-encorajamento para terminar a relação, buscam-se estímulos externos
que possam motivar o movimento de retirada. Acredita-se que os homens costumam ser
mais adeptos a essa prática, definida por imperativos culturais e oportunidades no mercado
matrimonial.
A traição pode servir como uma justificativa ou forma de encorajamento da(o)
parceira(o) para terminar a relação. Neste caso, a infidelidade seria uma forma covarde
de por fim à relação, através da instrumentalização da(o) parceira(o).
Um exemplo de traição como razão instrumental, ainda que não consumada,
pode ser extraído de A outra (The other boleyn girl), filme de época dirigido por Justin
Chadwick, que demonstra como as relações amorosas podem interferir e definir as
relações políticas de um país. Depois de ter conseguido anular o casamento do rei
Henrique VIII (Eric Bana) com a rainha Catarina de Aragão (Ana Torrent), a jovem Anne
Boleyn (Natalie Portman) casa-se com ele, mas não consegue dar-lhe um herdeiro.
Desesperada com a possibilidade de perder a sua posição, por ter gerado apenas uma
menina e ter sofrido um aborto natural, Anne sugere a seu irmão George que a engravide
246
antes que o rei pudesse descobrir que ela havia abortado. Denunciada por sua cunhada,
Anne é julgada e condenada por infidelidade incestuosa, e ela e o seu irmão são
decapitados mesmo sem a concretização de seus planos.
Em Amarelo manga (2003), filme brasileiro dirigido por Cláudio Assis e filmado
no centro da cidade do Recife, a traição por vingança ocorre quando a personagem Kika
(Dira Paes), muito recatada e religiosa, descobre que o seu marido, o açogueiro
Wellington (Chico Diaz), tem uma amante. Antes de pegar uma carona com o
desconhecido Isaac (Jonas Bloch), com quem tem relação sexual para vingar-se do
marido, segue-o e arranca parte da orelha da sua amante.
Para explicar a categoria de infidelidade como Sistema social, recorre-se a teoria
de sistemas luhmanniana e a sua distinção entre os conceitos de risco e perigo. O resultado
da infidelidade pode ser compreendido na medida em que a sensação de perigo aumenta,
evidenciando a fragilidade das relações íntimas. O baixo investimento na relação pode,
portanto, levar o indivíduo a arriscar-se mais, tendo em vista a sombra eminente do
perigo.
As significativas mudanças da individualização do sujeito, especialmente a
liberdade e os novos espaços ocupados pela mulher, marcados por conquistas pessoais e
independência profissional, foram também responsáveis pelo surgimento de uma nova
modalidade de angústia, qual seja, a necessidade de desenvolver certo tipo de estabilidade
emocional que garanta a manutenção ou a renovação das relações entre os pares amorosos.
O conformismo social no âmbito da vida privada tradicional foi tomado de assalto pelo
desregramento moral do mundo hodierno. No mundo tradicional, o dilema vivido
relacionava-se à criação de mecanismos que minimizavam a insatisfação do nculo
247
matrimonial dissolvido apenas na morte (influenciado pelo ideal do amor romântico e por
algumas doutrinas religiosas). Neste caso, a confiança estabelecia-se dentro de uma ordem
familiar feita para durar. O novo desafio lançado sugere que se possa combinar liberdade,
franqueza e humanidade, sob o risco da desvalorização do espaço amoroso compartilhado
e do surgimento de uma nova ordem social. Ressalta-se que as mudanças familiares foram
influenciadas pelas diversas dimensões sociais, a exemplo da prática consumista do amor.
Deve-se, portanto, considerar as multidimensões sociais em estudos posteriores sobre a
confiança nas relações amorosas.
A elaboração das categorias da infidelidade apresentadas nesse trabalho servem
não só para justificar o não cumprimento do pacto amoroso, mas, fundamentalmente, para
demonstrar que a relação entre o mundo ideal e as práticas amorosas não é trivial. A fim
de escapar das armadilhas impostas pelo fatalismo amoroso, ou a crença de que a
confiança no amor não é mais possível nos dias atuais, deve-se questionar aquilo que se
costuma cultuar, de forma cínica e narcísica, nos discursos produzidos sobre o mundo dos
amantes. A contradição entre o mundo ideal e as práticas amorosas revela uma
necessidade urgente: a redefinição e o cumprimento dos acordos amorosos, baseados na
amizade e na humanidade, para além do amor/desamor.
248
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256
ANEXO: FILMOGRAFIA
Título original Título no Brasil Diretor Ano
Bitter Moon Lua de fel Roman Polanski 1992
The hours As horas Stephen Daldry 2002
La vida secreta de las palabras A vida secreta das palavras Isabel Coixet 2005
El pasado O passado Hector Babenco 2007
Closer Perto demais Mike Nichols 2004
Manhattan Manhattan Woody Allen 1979
Kinsey Kinsey: vamos falar de sexo Bill Condon 2004
The other boleyn girl A outra Justin Chadwick 2008
Amarelo manga Amarelo manga Cláudio Assis 2003
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
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Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
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Baixar livros de Medicina
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Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
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Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo