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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CAMPUS DE SANTO ÂNGELO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO
O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS E SUA APLICABILIDADE
NO CONTEXTO DA BIOÉTICA:
UMA ANÁLISE JURÍDICA DA LIBERAÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-
TRONCO EMBRIONÁRIAS NO BRASIL
ISABEL CRISTINA BRETTAS DUARTE
Santo Ângelo
2009
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1
ISABEL CRISTINA BRETTAS DUARTE
O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS E SUA APLICABILIDADE
NO CONTEXTO DA BIOÉTICA:
UMA ANÁLISE JURÍDICA DA LIBERAÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-
TRONCO EMBRIONÁRIAS NO BRASIL
Dissertação para a obtenção do título de Mestre em
Direito, Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões URI Campus de Santo
Ângelo, Departamento de Ciências Sociais Aplicadas,
Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu - Mestrado
em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Noli Bernardo Hahn
Co-orientadora: Profª Dr. Liliana Locatelli
Santo Ângelo
2009
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ISABEL CRISTINA BRETTAS DUARTE
O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS E SUA APLICABILIDADE
NO CONTEXTO DA BIOÉTICA:
UMA ANÁLISE JURÍDICA DA LIBERAÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-
TRONCO EMBRIONÁRIAS NO BRASIL
Dissertação de Mestrado submetida à Comissão Julgadora do Programa de Pós-Graduação em
Direito – Mestrado da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI
Campus de Santo Ângelo, como parte dos requisitos necessários à obtenção do Grau de
Mestre em Direito, Área de Concentração: Direitos Especiais, Linha de Pesquisa: I- Direito e
Multiculturalismo.
Comissão Julgadora:
_________________________________________
Prof. Dr. Noli Bernardo Hahn, Doutor em Ciências da Religião,
Orientador.
________________________________________
Profª Dr. Liliana Locatelli, Doutor em Direito,
Co-orientadora.
________________________________________
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira, Doutor em Direito,
Examinador.
________________________________________
Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Junior, Doutor em Direito,
Examinador.
Santo Ângelo (RS), 22 de junho de 2009.
3
Dedico este trabalho ao Senhor Deus, a quem
pertence toda a sabedoria e o conhecimento, e
à minha família, por me proporcionarem a
alegria e o privilégio de chegar aqui.
“Ó profundidade das riquezas, tanto da
sabedoria, como da Ciência de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos, e quão
inescrutáveis os seus caminhos! Porque Dele e
por Ele, e para Ele são todas as coisas...”
Romanos 11: 33-36.
4
AGRADECIMENTOS
Ao Senhor, meu refúgio e fortaleza, socorro bem presente, minha infinita gratidão pelo
Seu incomensurável amor, zelo e fidelidade, por ter me proporcionado a alegria de viver.
Aos meus queridos pais, João José Duarte e Neida Brettas Duarte, e minha avó Anália
Marques dos Santos fontes de minha força e caráter -, meu eterno amor e admiração, pelo
exemplo e amor incondicional, pelo incentivo nesta e tantas outras caminhadas vitoriosas,
pelas condições proporcionadas, pelas expectativas depositadas, pela dedicação demonstrada.
Aos demais familiares, padrinhos e amigos queridos – em especial às minhas irmãs de
coração; aos meus muito amados Cursos de Graduação em Letras-Espanhol da URI - Campus
de Santo Ângelo e de Mestrado em Letras da URI - Campus de Frederico Westphalen
sonhos que se tornaram realidade: na pessoa da Dr. Nelci Müller e da Dr. Ada Maria
Hemilewski (in memoriam), agradeço a todos os professores e colegas pelo apoio e carinho.
À Defensoria Pública de Santo Ângelo, especialmente aos Defensores Dra. Angelita
Maria Maders, Hotony de Jesus Braga e Waldemar Menchik Jr., pessoas marcantes e
inestimáveis em minha vida, pelo carinho e amizade de tantos anos.
Ao Dr. Noli Bernardo Hahn e à Dr. Liliana Locatelli, pelo esmero e incentivo, pelas
contribuições e experiências compartilhadas, pela disponibilidade de tempo e paciência na
orientação deste trabalho, mas acima de tudo, pela amizade e confiança - por não terem preço.
Ao Coordenador do Curso de Mestrado em Direito, Dr. José Alcebíades de Oliveira
Junior, na pessoa de quem agradeço a todo o corpo discente e docente, em especial à Dr.
Salete Oro Boff; por dividirem conosco seus conhecimentos e experiências.
À Diretora Acadêmica da URI Campus de Santo Ângelo, Ms. Dinalva Alves Agissé
de Souza, pela mão sempre estendida, agradecendo também à URI pela grande parte da minha
vida e da minha energia, impregnados em sua essência, em suas paredes, em seus corredores...
A todos que de alguma forma passaram pela minha vida, deixando um pouco de si e
levando um pouco de mim, contribuindo para minha formação pessoal e acadêmica. Obrigada
5
RESUMO
A presente dissertação versa sobre o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas e sua
aplicabilidade no contexto da Bioética, tendo por escopo analisar juridicamente a liberação
pelo Supremo Tribunal Federal das pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. A
questão central da qual se ocupa, após recorrer o campo teórico que cerca a Bioética e o
Princípio Responsabilidade jonasiano, é verificar se e como este está presente naquela
decisão, por meio do modo de raciocínio dedutivo e valorizando a interdisciplinaridade.
Verificou-se que a dignidade humana foi o critério hermenêutico utilizado pelo STF no
julgamento da ADIN 3.510, tendo sido utilizada como principal argumento para a solução da
controvérsia jurídica, servindo de diretriz material para a identificação do Princípio
Responsabilidade, partindo do pressuposto de que existem direitos e princípios implícitos ou
decorrentes que pertencem ao corpo fundamental da Constituição Federal, mesmo não
constando expressamente no texto constitucional. A questão posta exemplifica a necessidade
do Direito de enfrentar esse tipo de discussão de forma inovadora e reflexiva, pois as
implicações tecnocientíficas no seio da sociedade multicultural são uma realidade inexorável.
Assim, a ética da responsabilidade se coaduna com a era tecnológica e a complexidade que
lhe é inerente, e como ambas representam uma das facetas do multiculturalismo, é de suma
importância que o Direito volte sua atenção para os novos desafios que lhe são colocados na
atualidade.
Palavras-chave: Bioética – complexidade – responsabilidade - células-tronco
6
ABSTRACT
This dissertation is about the Principle Responsibility of Hans Jonas and their applicability in
the context of Bioethics, with the scope legal analysis released by the Supreme Court of the
research with embryonic stem cells in Brazil. The central question of which is, after use the
theoretical field that surrounds the Bioethics and Responsibility Principle jonasiano is
determine if and how it is that this decision, by the method of deductive reasoning and
valuing interdisciplinarity. It was found that human dignity was the criterion used by
hermeneutic STF trial of ADIN 3510 and was used as a main argument for the legal
settlement of the dispute, serving as guidance material for the identification of the
Responsibility Principle, on the assumption that there rights and principles implicit or implied
that belong to the basic body of the Federal Constitution does not explicitly appear in the text.
The issue illustrates the need to put right to face this kind of discussion of an innovative and
reflective, because the implications technoscientific within the multicultural society is an
inescapable reality. Thus, the ethics of responsibility is in line with the technological age and
the complexity inherent to it, as both represent one of the facets of multiculturalism, it is
critical that the law turned its attention to the new challenges they face at present.
Keywords: Bioethics - complexity - responsibility - stem cells
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8
1 A BIOÉTICA NO CONTEXTO DA ÉTICA E DA CIÊNCIA........................................14
1.1 Breve histórico da evolução científico-tecnológica................................................15
1.2 A moral, a ética e o Direito.....................................................................................17
1.3 Ciência, ambivalência e complexidade...................................................................25
1.4 Bioética: origem e conceitos ..................................................................................33
1.5 A Bioética, o Direito e as limitações do conhecimento científico..........................52
1.6 Conclusões parciais.................................................................................................64
2 O PRINCÍPIO VIDA/RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS................................69
2.1 O Princípio Vida......................................................................................................72
2.2 Bioética, descentração e responsabilidade..............................................................86
2.3 O Princípio Responsabilidade.................................................................................91
2.4 Estudos e considerações da obra O Princípio Responsabilidade..........................119
2.5 Conclusões parciais...............................................................................................134
3 A LIBERAÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO NO BRASIL À LUZ
DO PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE E DA BIOÉTICA...........................................139
3.1 O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3.510 pelo Supremo
Tribunal Federal......................................................................................................................140
3.2 Principais fundamentações do julgamento da ADIN n.° 3.510 à luz do Princípio
Responsabilidade....................................................................................................................145
3.3 A fundamentação constitucional da ADIN 3.510: vinculações ao Princípio
Responsabilidade e à Bioética.................................................................................................170
3.4 Conclusões parciais...............................................................................................176
CONCLUSÃO.......................................................................................................................181
REFERÊNCIAS....................................................................................................................193
8
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da biotecnologia está indissociavelmente atrelado à evolução da
sociedade multicultural, mas principalmente quando se fala em manipulações genéticas é que
se pode perceber a importância do assunto e o quanto ele carece de reflexão ética acerca dos
seus limites. Hoje, mais do que nunca, isso demanda uma série de discussões e elucubrações,
que são um caminho viável numa época de tantas incertezas, daí o crescente interesse pela
Bioética. Historicamente, a Bioética nasceu como uma resposta da cultura contemporânea às
implicações morais da tecnociência, podendo ser considerada sob o aspecto dos movimentos
culturais e sociais, surgidos nas sociedades democráticas e pluralistas do Ocidente, tendo-se
espalhado, desde então, aos quatro cantos do planeta.
1
A importância da Bioética é inegável, e vem sendo cada vez mais reconhecida ao
longo do tempo, seja pelos seus encantamentos, seja pelos seus desencantamentos. Nesse
último sentido, é possível afirmar que houve bastante desencantamento com os rumos da
tecnologia, principalmente com sua utilização na Segunda Guerra Mundial, quando surgiu no
horizonte um poder tecnológico onipotente, utópico e de efeitos perversos, e também da
biotecnologia, com possibilidades de transformações aleatórias do homem e da natureza.
Tudo isso traz a necessidade de novos imperativos para o agir tecnológico, que atendam os
novos espaços de ação e de poder, principalmente no que tange ao uso responsável da
tecnologia,
2
situação esta em relação à qual o Direito não pode ficar à margem.
É nesse contexto que o princípio responsabilidade, elaborado por Hans Jonas, reveste-
se de grande importância frente aos poderes que o ser humano alcançou mediante os
conhecimentos científicos. Na medida em que as potencialidades tecnológicas, que tanto
podem ser destruidoras quanto transformadoras, podem provocar conseqüências imprevisíveis
1
SCHRAMM, Fermin Roland. As diferentes abordagens da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa; MARTINS,
André; PEGORARO, Olinto A. (Org.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001,
p. 42.
2
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Org.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 138.
9
no futuro, verifica-se o temor expressado por Morin: “pressentimos que a engenharia genética
tanto pode industrializar a vida como biologizar a indústria”.
3
Trata-se de um assunto cujo interesse extrapola os limites da ciência, estendendo-se à
sociedade. Portanto, interessa ao Direito, a julgar pela premissa básica de que onde há
sociedade há Direito, e onde há Direito há sociedade. A cadeia de implicações sociais,
econômicas, políticas e éticas decorrentes disso é incomensurável nos dias atuais. O debate
gerado pela liberação das pesquisas com células-tronco no Brasil, tema do qual se ocupa esta
dissertação, é apenas um exemplo disso. Assim, o debate deve ser conduzido racionalmente,
construindo-se e reconstruindo-se conceitos, pois a biotecnologia te sentido para a
humanidade se aplicada com responsabilidade.
Quanto à metodologia, este trabalho é orientado pelo modo de raciocínio dedutivo,
pelo método procedimental monográfico e dissertativo e pela técnica de pesquisa
bibliográfica, valorizando a interdisciplinaridade. As referências teóricas utilizadas foram
extraídas das mais variadas áreas do conhecimento, na medida em que o tema proposto o
pode ser discutido apenas à luz do Direito, mas sim a partir de uma compilação de
conhecimentos e informações de áreas como, por exemplo, a Medicina, a Biologia e a
Filosofia.
O desafio do trabalho proposto é verificar a aplicação do Princípio Responsabilidade
na decisão da mais alta Corte do País a respeito do assunto, esclarecendo-se, mais uma vez,
que não se adentrará no mérito dos posicionamentos prós e contras. A análise será, por
exemplo, de como o Princípio Responsabilidade foi trabalhado, por exemplo, diante do
fundamento da dignidade humana; não o estatuto jurídico do embrião.
Da mesma forma, é importante fazer menção a dois esclarecimentos de ordem
metodológica de suma importância. O primeiro é com relação aos votos trazidos a lume neste
trabalho, esclarecendo que o fato de não terem sido todos individualmente mencionados se dá
por uma razão metodológica, pois a extensão dos mesmos não condiz com os limites e
proporções de uma pesquisa de dissertação de Mestrado como esta, sob pena de se alongar
demasiadamente. Já a segunda diz respeito à escolha dos votos, cujo critério foi bastante
prático, qual seja, evitar repetições desnecessárias com relação aos argumentos desenvolvidos
pelos ministros, sem prejudicar a visão do todo da decisão.
De acordo com o exposto até o momento, os objetivos da presente dissertação podem
ser explicitados da seguinte maneira:
3
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 18.
10
1) Analisar a Bioética no contexto da ética, da moral e do Direito, a partir da questão
da ambivalência, da complexidade e das limitações do conhecimento científico, conceituando-
a e situando-a historicamente, de forma a estabelecer sua relação com o Direito.
2) Estudar o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas com base nas obras “O
Princípio Vida” e “O Princípio Responsabilidade”, bem como a pesquisa de estudiosos a
respeito, de forma a explicitar suas vinculações com a Bioética e o Direito.
3) Fazer uma análise do julgamento da ADIN n.° 3.510, referente à liberação das
pesquisas com células-tronco no Brasil à luz do Princípio Responsabilidade jonasiano.
Dessa forma, no primeiro capítulo, iremos analisar como a Bioética está
contextualizada nos dias de hoje em meio às descobertas e inovações científicas, a partir de
questões como a complexidade, a consciência na ciência e as limitações do conhecimento
científico, com supedâneo nas idéias de Edgar Morin. Esse é um primeiro passo para a
compreensão da importância e a atualidade do pensamento jonasiano, pois retomando as
relações entre ética, moral e Direito, preparamos o caminho para a compreensão da
ambivalência e da complexidade da ciência e da sociedade modernas, para então nos
lançarmos à origem e às principais conceituações da Bioética e suas relações com o Direito.
No segundo capítulo, serão estudadas as principais idéias de Hans Jonas desenvolvidas
em “O Princípio Vida”, bem como as relações da Bioética com a questão descentração do
sujeito, para finalmente estudarmos “O Princípio Responsabilidade”, mais precisamente no
que consiste a proposta de Hans Jonas. Assim, a partir do estudo do Princípio Vida, que
introduz e esclarece o estudo do Princípio Responsabilidade, e também a retomada dos
principais aspectos da Bioética, será possível referir alguns estudos feitos da obra de Jonas.
No terceiro capítulo, voltaremos a atenção para a fundamentação do julgamento da
Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3.510 pelo Supremo Tribunal Federal, que liberou as
pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil. Tal enfoque será feito à luz do Princípio
Responsabilidade de Hans Jonas. Assim, tendo essa noção do todo proporcionada pelos
capítulos anteriores, será possível compreender os meandros e as implicações desse princípio,
mais precisamente como ele foi levado em consideração na decisão do STF.
Foi escolhido o Princípio Responsabilidade como matriz teórica do presente trabalho
graças ao entendimento de que não se pode discutir a liberação das células-tronco
embrionárias no Brasil sem tratar da responsabilidade que implica uma ou outra decisão, na
medida em que a responsabilidade está imbricada no cerne da questão que se instaurou com a
ADIN 3.510. A intenção é refletir sobre essas questões num âmbito interdisciplinar, a partir
de preocupações que de forma alguma denotam alguma atitude negativa, por exemplo, com
11
relação à ciência. É preciso lembrar mais uma vez que a Ciência é falha; não progride pelos
acertos, e sim pelos erros.
4
Mas também é preciso lembrar que nem sempre se deve buscar o
progresso a custas de erros. Mesmo as críticas eventualmente feitas ao Direito são
construtivas e com vistas ao seu aperfeiçoamento, ou melhor, sua adequação aos novos
tempos e às novas realidades.
O Direito é um fenômeno do mundo da cultura, a qual está imbricada na sociedade,
demonstrando que a discussão ultrapassa as lindes jurídicas, penetrando nas diferentes formas
de culturas e sociedades que coexistem na contemporaneidade numa situação multicultural
por excelência. E do reconhecimento de que a ciência também é falha decorre a insegurança -
pode-se dizer que hostilizada na seara jurídica -, que traz o medo e a desconfiança ao novo.
Nesse sentido, a Bioética lembra ao Direito – em sua arraigada busca pela segurança jurídica -
de que a insegurança, a provisoriedade e a relatividade fazem parte da condição humana.
5
O conceito de responsabilidade no âmbito jurídico, na verdade, busca uma segurança
jurídica, que afaste essa provisoriedade e relatividade. A responsabilidade, em termos
jurídicos, significa a capacidade de assumir as conseqüências dos atos e das omissões, o que
pressupõe a ocorrência de um ilícito; penal se ferida uma norma penal, civil se ferida uma
norma civil. A conduta pode ser voluntária ou involuntária; neste último caso, a coerção
moral irresistível é uma causa excludente da ilicitude. Para que haja responsabilidade, é
preciso que haja uma conduta ilícita, um nexo causal e um resultado. É nesse tríplice itter que
se dá a responsabilidade jurídica, tal como o Direito tradicionalmente a concebe.
a responsabilidade de que tratou Hans Jonas na obra “O Princípio
Responsabilidade” foge completamente desse modelo em que o Direito se basta, recaindo em
uma outra dimensão da responsabilidade, que exige uma tomada de consciência para prevenir
os possíveis riscos ao invés de ter que corrigir os empregos danosos, pois as aplicações das
descobertas são extremamente rápidas e causam uma espécie de ‘atordoamento’, que dificulta
uma adequada reflexão e compreensão do que são e como podem nos atingir os eventos
técnico-científicos.
Um dos problemas que se coloca é justamente a multiplicidade de sociedades
existentes na atualidade, marcadas por diferenças culturais, e também religiosas, políticas,
econômicas, sociais, enfim, por uma pluralidade de saberes e de traços que as caracterizam.
4
POPPER, Karl Raimund. A lógica da investigação científica. Três concepções acerca do conhecimento
humano: A sociedade aberta e seus inimigos. Traduções de Pablo Ruben Mariconda e Paulo de Almeida. São
Paulo: Abril Cultural, 1980.
5
SILVA, Josué Cândido da. SUNG, Jung Mo. Conversando sobre Ética e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 2001,
p. 31.
12
Nesse contexto, “os avanços tecnológicos chegam e atuam sobre as sociedades de formas
diferentes, impactando-as de diferentes formas, o que explica serem elas mais ou menos
fechadas ou abertas a discussões polêmicas como é o caso das manipulações genéticas”.
6
Todavia, é na Bioética que a experiência ética adquire essa angústia existencial
profunda. Já dizia o poeta que o caminho se faz caminhando.
7
Porém, talvez o caminho seja à
luz de velas. Talvez leve a um oásis, ou a um deserto. Talvez. Movemo-nos no campo das
incertezas e das complexidades, as quais avultam a importância da responsabilidade a
conduzir a conduta humana, nos termos jonasianos. Mas, como afirma Boff, o certo é que
uma crise ética que traz perplexidade e confusão, e que estamos entrando num novo patamar
de consciência.
8
Assim, as reflexões da presente dissertação certamente contribuirão para o curso de
Mestrado em Direito e, especialmente, para a linha de pesquisa Direito e Multiculturalismo,
na medida em que o tema proposto carece de discussões. Apesar de e justamente por ser um
tema polêmico sobre o qual não há respostas objetivas e imediatas, o importante e gratificante
é trilhar o caminho, descobrindo que a cada passo dado, haverão muitos outros passos. Por
isso, o papel do Direito é trilhar esse caminho juntamente com outras áreas do conhecimento,
de forma a estar num permanente processo de discussão e reflexão.
6
SGRECCIA, Élio. A Bioética e o novo milênio. Tradução de Cláudio Antonio Pedrini. Bauru: EDUSC, 2000,
p. 07.
7
Dizia o poeta espanhol andaluz Antônio Machado, em “Provérbios y Cantares XXIX” (In: Poesías Completas.
Editorial ESPASA CALPE: Madrid, 1973, p. 158):
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en el mar.
Caminhante tuas pegadas
São caminho, nada mais
Caminhante não há caminho
Se faz caminho ao andar
Ao andar se faz caminho
E ao voltar a vista atrás
Se vê a estrada que nunca
Se vai voltar a pisar
Caminhante não há caminho
Só estrelas sobre o mar (tradução nossa).
8
BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 9. O autor traz a
advertência de que o tempo atual se assemelha muito às épocas de ruptura no processo de evolução, épocas de
extinção em massa, não por ameaça smica, mas por causa da atividade humana altamente depredadora de
todos os ecossistemas (p. 13).
13
Nesse contexto, é grande o desafio que esse imbróglio representa para o Direito.
Afinal, para que seja possível uma discussão jurídica sobre os avanços da manipulação
genética no que tange à liberação das pesquisas com células-tronco embrionárias, faz-se
mister que os pesquisadores das Ciências Humanas, em especial das Ciências Jurídicas e
Sociais, tomem conhecimento de aspectos técnicos, bem como de conceitos da Biologia e da
Medicina, além de outras áreas do conhecimento. Somente assim é possível propiciar um
alicerce para os estudos e as futuras conclusões. Evidentemente, longe está de se ter a
pretensão de contemplar todos os aspectos técnicos e conceituais, mas sim de abarcar o
principal e suficiente embasamento teórico para desenvolver o raciocínio proposto.
O Direito emerge das relações sociais, seu desenvolvimento através dos tempos
obedeceu inexoravelmente aos vetores culturais, que trazem implicações jurídicas. Assim, se
mudam os tempos, mudam as vontades e muda o Direito, que necessita amparar
eficazmente as novas demandas que lhe são colocadas. Nesse sentido, mais do que nunca, o
Princípio Responsabilidade necessita ser pensado no contexto da tecnociência, em quaisquer
ações humanas que digam respeito à biotecnologia.
Portanto, a questão central deste trabalho, cujo desafio é respondê-la no decorrer da
dissertação, é verificar se o Princípio Responsabilidade jonasiano está presente na decisão do
STF que liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil, investigando como a
referida decisão albergou esse princípio e se de fato a sua consideração é imprescindível no
deslinde da questão, a partir da premissa de que é preciso pensar a mudança de paradigmas
9
trazida pela ciência, situação esta vivenciada na sociedade multicultural.
Isso porque tais rupturas não têm o condão de transformar conceitos, mas também
de transformar a vida das pessoas, ensejando, também, transformações no conhecimento
jurídico e, principalmente, anseio por novos conhecimentos que precisam se integrar ao
arcabouço jurídico para que o Direito possa dar respostas satisfatórias e coerentes às questões
que lhe são postas pela atual conjuntura social, como é o caso do julgamento em comento.
Portanto, a importância do presente estudo se consubstancia na busca de uma reflexão ética e
jurídica capaz de pensar o aparato jurídico diante das transformações trazidas pela
biotecnologia à luz da Bioética, capaz de satisfazer às novas necessidades advindas da
tecnociência moderna, tendo como idéia-chave o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas.
9
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 45. Segundo o autor, “o paradigma é aquilo que está no princípio da
construção das teorias, é o núcleo obscuro que orienta discursos teóricos neste ou naquele sentido. Existem
paradigmas que dominam o conhecimento científico numa certa época e as grandes mudanças de uma revolução
científica acontecem quando um paradigma cede seu lugar a um novo paradigma, isto é, uma ruptura das
concepções do mundo de uma teoria para outra”.
14
1 A BIOÉTICA NO CONTEXTO DA ÉTICA E DA CIÊNCIA
Hominum causa omne jus constitutum est
(Por causa do homem é que se constituiu todo o Direito).
Neste primeiro momento, para um salutar desenvolvimento do trabalho, é
imprescindível tecer uma série de contextualizações e conceituações. Para que se possa
entender o alcance da Bioética e toda a problemática que envolve a ciência nos dias de hoje, é
preciso entender, primeiramente, como se deu esse processo em que ela surgiu e se
desenvolveu, destacando os principais aspectos históricos. Da mesma forma, para que se
possa entender a importância do pensamento jonasiano, é preciso saber em que termos é
entendida a complexidade e a ambivalência da ciência na atualidade.
A partir de uma definição de ética e moral, parte-se para o estudo da origem e do
processo evolutivo da Bioética, bem como das principais conceituações que lhe
correspondem. Percorrido o seu campo conceitual, passa-se à ciência e às principais
considerações sobre o seu papel e os seus propósitos, bem como acerca das limitações do
conhecimento, ainda que científico, e o porquê da necessidade de se considerar tais limites.
Por fim, após refletir sobre o elemento fálico da ciência, faz-se mister introduzir o
Princípio Responsabilidade de Hans Jonas, relacionando o desafio bioético com a exigência
da adoção do Princípio Responsabilidade como parâmetro comportamental em que as
questões bioéticas emergentes precisam ser pautadas. Assim, relacionando-o com as
preocupações bioéticas hodiernas e também contextualizando-o no seio da tecnociência
moderna, hoje infinitamente mais avançada do que aquela presenciada pelos olhos atentos
desse que é um dos mais reconhecidos pensadores do século XX.
15
1.1 Breve histórico da evolução científico-tecnológica
Segundo Barchifontaine, três revoluções da biologia ao longo da história. A
primeira foi a Teoria Celular, elaborada nos anos de 1838 e 1839, pelo botânico alemão
Mathias-Jacob Scheidein e pelo zoólogo prussiano Theodor Schwann, dois séculos após a
descoberta da célula pelo físico inglês Robert Hooke, em 1665. A segunda revolução se deu
com a Teoria da Evolução, dos naturalistas ingleses Darwin/Wallace, elaborada em 1858. a
terceira revolução foi a descoberta da estrutura da molécula do DNA, a dupla hélice, em 1953,
pelo biólogo americano James Watson e pelo físico inglês Francis Crick, decorrendo dessa
descoberta o desenvolvimento da engenharia genética.
10
Em 1866, quando o abade Gregor Mendel e botânicos austríacos concluíram que
partículas indivisíveis transmitem características de geração para geração, provavelmente não
imaginavam que seriam apenas os primeiros passos rumo a uma revolução científico-
tecnológica. Depois da descoberta da hereditariedade, outro processo importante foi o início
do processo de melhoramento genético de plantas, a partir de 1900.
11
Posteriormente, em 1949, o austríaco Erwin Chargaff descobriu, nos Estados Unidos,
uma relação entre as bases do DNA, e em 1952, os norte-americanos Alfred Hershey e Martha
Chase, através de experimentos, reforçaram a idéia de que os genes estão contidos no DNA.
Foi tudo isso que abriu caminho para a descoberta de 1953, quando o norte-americano James
Watson e o britânico Francis Crick desvendaram a estrutura da molécula da vida, o DNA,
permitindo com isso entender como as informações genéticas são duplicadas e como são
transmitidas de geração para geração.
12
Consoante o histórico elaborado por Barros, em 1958, Joshua Ledenberg recebeu o
prêmio Nobel pela descoberta da recombinação genética e a organização do material genético
da bactéria e em 1960, o norte-americano Arthur Komberg identifica a polimerase, enzima
que catalisa a síntese de DNA e que posteriormente se mostrou uma ferramenta importante na
engenharia genética. Em 1966, grupos de pesquisas liderados por Marshall Niremberg e pelo
indiano Har Gobind Khorana decifraram, com outros pesquisadores dos Estados Unidos, da
Inglaterra e da França, a série completa de “palavras” do código genético.
10
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Genoma Humano e Bioética. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 245.
11
BARROS, Wellington Pacheco de. Estudos Tópicos sobre os Organismos Geneticamente Modificados.
Edição Especial do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Abril de 2004.
12
Idem, p. 27.
16
Em 1968, Robert Holley, Har Gobind e Marshall Niremberg interpretam o código
genético e a função da síntese de proteínas. Em 1972, o norte-americano Paul Berg obtém as
primeiras moléculas de DNA recombinante, unindo DNA de diferentes espécies. Em 1973, os
cientistas norte-americanos Stanley Cohen e Herbert Boyer criaram uma técnica para
introduzir um gene estranho no DNA de uma bactéria. Dessa forma, conseguiram transferir
genes, unidades hereditárias que determinam as características do indivíduo, de um organismo
para o outro, dando início à era dos organismos manipulados geneticamente.
Também em 1973, Stanley Cohen, Annie Chang e Herbert Boyer transferiram com
sucesso DNA de uma forma de vida (vírus) para outra (bactéria), produzindo o primeiro
organismo com DNA recombinado. Em 1976, foi criada a primeira companhia de engenharia
genética, a Genentech, que produziu a primeira proteína humana em uma bactéria
geneticamente modificada e, em 1982, comercializou a primeira droga recombinante, insulina
humana. Os cientistas da primeira companhia de engenharia genética produziram a clonagem
do gene da insulina.
13
Conforme Barros,
em 1980, a Suprema Corte dos EUA decide que formas de vida alteradas podem ser
patenteadas. Ainda no mesmo ano, Baruj Benacerraf, Jean Dausset e George Snell
descobrem a relação da estrutura geneticamente determinada da célula que regula
as reações imunológicas. Em 1982, o primeiro produto da biotecnologia passa a ser
amplamente utilizado: a insulina humana para tratamentos de diabetes é produzida
por engenharia genética. Em 1983, as primeiras plantas são desenvolvidas por meio
da biotecnologia. Ainda no mesmo ano, companhias dos EUA conseguem obter
patentes parar plantas geneticamente modificadas.
14
Em 1989, foi criado o National Center for Human Genome Researc (NHGRI),
liderado por James Watson, com o objetivo de mapear e seqüenciar todo o DNA humano. Em
1990, passaram a ser comercializadas as primeiras plantas modificadas: as do fumo e do
tomate resistentes a vírus inauguram a grande evolução da biotecnologia. Em 1991, nasceu na
Holanda o primeiro touro transgênico do mundo, cujas crias poderão produzir leite
enriquecido com lactoferina, uma rara proteína humana que combate infecções. Em 1992,
nasceu o primeiro porco transgênico do mundo. Em 1996, acontece o nascimento da ovelha
Dolly, primeiro mamífero clonado a partir de uma célula de um animal adulto pelo Instituto
Roslin (Escócia) e pela empresa PPL Therapeutics, porém, em fevereiro do ano seguinte o
13
BARROS, Wellington Pacheco de. Estudos tópicos sobre os Organismos Geneticamente Modificados.
Edição Especial do Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Abril de 2004,
p. 30.
14
Idem, p. 31.
17
feito foi divulgado. Em 14 de janeiro de 2001, um artigo da revista Science revelou a criação
do macaco transgênico ANDi para estudar novas terapias contra enfermidades hoje
incuráveis, principalmente dos genes causadores de enfermidades como AIDS, mal de
Alzheimer, câncer e diabetes.
Em 12 de fevereiro de 2001, é decifrado o ‘código da vida’, por grupos de
pesquisadores liderados pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) e pelo
Departamento de Energia norte-americano (DOE), que reuniram centros universitários de
pesquisas de 20 países. Dessa forma, foi revelado o seqüenciamento completo dos genes, ou
melhor, dos três bilhões de bases químicas que compõem o DNA humano. No ano de 2003,
foi concluído o Projeto Genoma
15
, que identificou o mapa genético humano, chamado de ‘o
alfabeto de Deus’, sendo finalmente conhecido o significado do seqüenciamento das bases
nitrogenadas que compõe o DNA. Dessa forma, tornou-se possível identificar os genes da
espécie humana, formados por aquela seqüência.
16
Esse é um breve histórico, contendo apenas alguns dos grandes eventos que marcaram
a evolução da ciência, na medida em que é praticamente impossível relatar todos os seus
eventos, principalmente quando ela passou a ser tecnociência, aliançada à biotecnologia.
Porém, servem para trazer uma visão panorâmica de como foi possível hoje a ciência ter
alcançado um nível tão profundo de descobertas, causando tantas transformações no mundo
científico, e principalmente, na vida social.
1.2 A moral, a ética e o Direito
Primeiramente, é necessário desde mencionar e explicar o porquê de adotar uma
postura que diferencia moral e ética, data venia os entendimentos que sustentam serem elas
sinônimos. A escolha do Princípio Responsabilidade implica, entre outras coisas, aceitar sua
faceta normativa, que embora não possa ser confundida com a rigidez de princípios fixados,
diz de princípios que são pensados de acordo com a situação temporal e espacial, em
consonância com as situações concretas, moldando-os e por eles se deixando moldar.
15
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998. Conforme explica a autora, o Projeto Genoma Humano, uma das grandes
expansões da Bioética, trouxe a identificação de genes, descrevendo e conhecendo as funções de
aproximadamente 100.000 genes do corpo humano (p. 62).
16
FLOR, Ana. Promessas da Ciência. Jornal ZH, Cad. Eureka, 13/08/03.
18
Historicamente, podem ser apontados três fundamentos para a Ética: o fundamento
cósmico, o fundamento religioso e o fundamento antropológico. Isso porque visões de mundo
diferentes produzem éticas diferentes, sendo justamente este um dos grandes embates e
desafios do multiculturalismo. Segundo o fundamento cósmico, o bom é a natureza, segundo
a qual temos que viver. Pelo fundamento religioso, o bom é Deus, revestir-se dos atributos da
divindade: beleza, bondade, verdade. no fundamento antropológico da ética, o bom é a
liberdade do homem em se autocriar, decidir o Bem e o Mal.
17
Em breves palavras, essas três
concepções revelam que o fato de o homem ser consciente não significa apenas ter o
conhecimento de nós mesmos, mas também perceber que podemos agir de diversas maneiras.
O tema da ética é uma constante desde os primeiros momentos da crise da metafísica
ocidental, iniciada com o puro racionalismo das filosofias dos séculos XVIII e XIX: “o
homem, livre dos deuses, sozinho diante de si, descobre que apesar de tudo o que foi, não
deixa de ser um existente vazio sem nada de si e por si”.
18
Nesse sentido, a dimensão da
filosofia existencialista de Heidegger, mestre de Hans Jonas, na busca ontológica pelo homem
perdido por causa da metafísica, um ser a realizar-se plenamente que descobre a sua missão
de “pastor do ser” - conforme denominação empregada por Heidegger -, o qual deseja
conduzir sua vida reformulando seus valores pessoais e humanos, como adiante retomaremos.
Importante observar que a ética, sendo normativa da práxis humana, não pode ser
entendida como descrição do modo de agir dos homens em épocas e sociedades diferentes.
Nesse sentido, afirmou Sidekum:
A ciência moral não é apenas uma simples exposição do fato moral dos elementos
de ordem jurídica que existem entre os povos. As exigências morais decorrem de
necessidades apresentadas pela sociedade, para que esta possa existir. A moral
envolve o aspecto profundo – moral – do ser humano. É profundamente uma
questão da consciência do ser humano. Sendo a ética, entretanto, ciência prática,
não somente possui como objeto a práxis humana, mas ordena a práxis a uma
valorização moral. Essa valorização atinge o sujeito em sua subjetividade íntima,
fazendo-o viver como convém à sua condição humana singular.
19
Como é possível perceber, os termos moral e ética não podem ser considerados
sinônimos. Segundo Maria Celeste Santos
17
MARCHIONNI, Antônio. A ética e seus fundamentos. In: MARCILIO, Maria Luíza; RAMOS, Ernesto Lopes
(Coordenadores). Ética na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo: LT&r, 1997, p. 29-49.
18
SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida: Porto Alegre: Editora Unisinos, 2002, p. 17.
19
Idem, p. 21.
19
por moral entende-se um sistema de normas de conduta que visam regular a ação
humana. Do latim mos, moris, que também significa uso, costume, maneira de
viver. a palavra ética, de origem grega, procede de ethos, que significa lugar
onde se habita, morada. Aponta esta palavra para a concepção de lugar privilegiado
que tem o homem e que o distingue e qualifica. Nas línguas latinas, não possuímos
um termo específico para nos referir a esse sacrário que cobiça a moralidade.
Utilizamos a idéia de consciência que não representa totalmente o mesmo.
Posteriormente, a palavra ethos adquiriu a concepção de modo de ser, de caráter. É
também entendida como um conjunto de argumentações pelos quais damos um
fundamento às normas morais, isto é, justificamos sua validade e seu caráter
obrigatório. Ética em sentido estrito é a ciência do dever moral. Ela não é um ideal
a ser alcançado por um sujeito ideal. Está sujeita às leis da cultura e da moral.
20
Assim, é possível perceber que moral e ética se referem às ações humanas;
21
a moral
refere-se às normas do agir correto, enquanto que a ética é a reflexão sobre as justificativas
destas ações. Também é possível dizer que as normas morais são regras de convivência social,
dizendo o que devemos ou não fazer e como o fazer. Sempre caracterizadas por uma auto-
obrigação, ou seja, valem por si mesmas independentemente do exterior. Também são
universais, porque são válidas para todos, ninguém está fora delas e todos são abrangidos por
elas. As normas morais são também incondicionais, visto que não estão sujeitas a sanções, e
mesmo que não sejam cumpridas, existem sempre, na medida em que o ser humano é um ser
em sociedade e nas suas decisões tenta fazer o bem e não o mal.
A palavra moral designa os costumes, a conduta da vida, as regras do comportamento.
Etimologicamente, há, então, um sentido muito amplo. Ela se refere ao agir humano, aos
comportamentos cotidianos, às opções existenciais. Ela faz pensar de maneira espontânea em
20
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 30. A palavra moral tem que ver etimologicamente com os costumes,
pois é precisamente costumes que significa a palavra latina mores, e também com as ordens, mas a maior parte
dos preceitos morais dizem qualquer coisa como deves fazer isto ou não te lembres sequer de fazer aquilo.
Todavia, costumes e ordens que podem ser maus, ou seja, imorais, por muito ordenados e costumeiros que se
nos apresentem. Se quisermos aprofundar deveras a moral, se quisermos aprender a sério como empregar bem a
liberdade que temos (e nessa aprendizagem consiste justamente a moral ou ética), o melhor será deixarmo-nos de
ordens, costumes e caprichos. O primeiro aspecto que devemos deixar claro é que a ética de um homem livre
nada tem a ver com os castigos ou os prêmios distribuídos por qualquer autoridade que seja – autoridade humana
ou divina, para o caso tanto faz. Moral é o conjunto de condutas e normas que tu, eu e alguns dos que nos
rodeiam costumemos aceitar como válidas; ética é a reflexão sobre o porquê de as considerarmos válidas, bem
como a sua comparação com as outras morais, assumidas por pessoas diferentes.
21
A diferenciação trazida por Marchionni é a seguinte: Ética, do grego éthos, significa costume, hábito adquirido
com esforço e repetição, um estilo de pensar e agir, um modo de habitar esse mundo (éthos, além de habitude,
significa habitação, aconchego). Moral, do latim mos e plural mores, significa costume, valores e virtudes,
legado da tradição (MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 29).
20
normas, regras de comportamento, valores. Segundo Durand, três sentidos da palavra
“moral”, relacionados às suas três funções: pesquisa, doutrina e prática:
A moral é, antes de mais nada, uma pesquisa. Ela é uma procura daquilo que é
necessário fazer, uma pesquisa daquilo que é certo. Repete-se muito que a moral é a
ciência do bem e do mal. Antes de seguir normas ou de interiorizar valores, ela se
importa em conhecê-los, procurá-los e descobri-los. A moral supõe, então, um
esforço de reflexão e de criação. [...] A pesquisa moral não é reservada a
especialistas, ela é uma responsabilidade de cada ser humano. Poder-se-ia defini-la,
também, a partir dos resultados desta pesquisa, ainda que provisórios. Pode-se
defini-la como um conjunto organizado, sistemático, hierarquizado de regras e de
valores. A palavra “sistema” serve bem para descrever esta dupla dimensão com a
dupla conotação da palavra: a moral pode ser concebida como um conjunto fechado
de normas ou, na verdade, como uma ordenação sistemática de regras e de valores.
Este segundo sentido admite aplicações diversas: pode referir-se a um indivíduo ou
a um grupo ou sociedade. A palavra “moral” nos envia, enfim, a uma prática. Ela se
refere a uma experiência concreta do cotidiano. A moral lembra, então, de um
esforço para aplicar meus princípios, para colocar em ação meus valores. Existe às
vezes, senão sempre, uma distância entre a moral proposta e a moral vivida, entre a
realidade e o ideal. As normas, escreveu o teólogo francês Maurice Bellet, indicam
um caminho possível e necessário.
22
a ética também se refere aos costumes, à conduta da vida, às regras do
comportamento, tanto que muitos autores empregam ética e moral como sinônimos. Segundo
Durand, a ética abrange os três conceitos assinalados, mas também adverte que também
muitas distinções, como por exemplo, a histórica:
A vida cotidiana confere às palavras uma história específica que agrega a cada uma
um sentido próprio. No Ocidente, onde prevaleceu o latim, difundiu-se o emprego
da palavra moral. E com a primazia cultural do cristianismo, a palavra moral
facilmente ganhou uma conotação religiosa. Da mesma maneira, a descoberta dos
filósofos gregos colocou em realce a palavra ética, com a conotação de moral não
religiosa.
23
A ética não pode partir de princípios fixos e válidos para todos os tempos. Sendo a
ética de feitio histórico, por ligar-se necessariamente à temporalidade da existência humana, é
flexível e se adapta às situações reais da vida. São estas situações que moldam os princípios
22
DURAND, Guy. Natureza, princípios, objetivos. Tradução de Porphírio Figueira de Aguar Netto. São Paulo:
Paulus, 1995, p. 10-13.
23
Idem, p. 6.
21
éticos e estes aquelas. Ela se concentra na idéia de um estilo de vida, um rumo, um horizonte
ético que a pessoa traça para si.
24
Apesar de terem um fim semelhante: ajudar o ser humano a construir um bom caráter
para ser humanamente íntegro; a ética e a moral são muito distintas. A moral tem um
caráter prático imediato, visto que faz parte integrante da vida quotidiana das sociedades e
dos indivíduos, não por ser um conjunto de regras e normas que regem a nossa
existência, dizendo-nos o que devemos ou não fazer, mas também porque está presente no
nosso discurso e influencia os nossos juízos e opiniões.
A noção do imediato vem do fato de a usarmos continuamente. A ética, pelo
contrário, é uma reflexão filosófica, logo puramente racional, sobre a moral. Assim, procura
justificá-la e fundamentá-la, encontrando as regras que, efetivamente, são importantes e
podem ser entendidas como uma boa conduta, aplicável a todos os sujeitos, o que faz com
que a ética seja de caráter universalista, por oposto ao caráter restrito da moral, visto que
esta pertence a indivíduos, comunidades e/ou sociedades, variando de pessoa para pessoa,
de comunidade para comunidade, de sociedade para sociedade. O objeto de estudo da ética
é, portanto, o que guia a ação: os motivos, os princípios, as máximas, as circunstâncias; mas
também as conseqüências dessas ações.
A ética está indissociavelmente atrelada à questão da busca por um ethos. Ethos, em
seu sentido primitivo, significava a morada de animais e homens. Significava o lugar interno e
sagrado do homem, sua atitude interior, seu caráter moral, a forma e vida que vai
desenvolvendo e realizando
25
. Conforme Pegoraro, a ética nunca foi um código de normas,
“ela é antes de tudo uma concepção de vida, um estilo, um modo de existir do homem, um
24
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 12.
Segundo o autor, o horizonte é uma referência, situado adiante e que nunca se alcança. Assim é a ética: nunca
chegamos a alcançar a meta, o rumo traçado. Nem há um caminho aplainado para chegar lá: em cada situação há
que inventar, descobrir, criar o caminho. Os grandes tratados de ética, desde os gregos até hoje, traçaram o
horizonte ético que pode ser concentrado em três referências conjugadas: justiça, solidariedade e paz. São as
virtudes das pessoas e das estruturas sociais. Cada época tem seu estilo de fazer justiça, criar solidariedade e paz.
Por isso a ética é inventiva e criativa. Não são os princípios que garantem o bom caminho, mas o horizonte ético.
25
SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2002, p. 21.
Para o autor, ethos é a personalidade moral adquirida através de seus atos e hábitos, a disposição criada pelo
próprio sujeito, que surge através de seus atos e hábitos. Cada sujeito constrói e cria seu ethos, age segundo esse
ethos, que é, portanto, resultado e fonte de atividade moral. Ethos é o modo de proceder, o fundamento da práxis
humana em sua história concreta. É também a raiz em que brotam todos os atos humanos morais. A ética,
etimologicamente derivada de ethos, é uma ciência especulativamente própria, enquanto procura o conhecimento
das normas que orientam a práxis humana. É ciência diretiva do agir humano no que se refere aos princípios
gerais. A ética não se propõe a orientar cada indivíduo, o que deve fazer ou omitir, mas fornece normas,
elementos gerais para que cada sujeito em sua situação concreta e histórica realize um ethos verdadeiramente
humano e humanamente justificável.
22
horizonte que exprime o sentido, o rumo que procuramos traçar para a história humana e
cósmica”.
26
Para Bittar, o saber ético tem por objeto de estudo a ação moral e suas tramas, o que não
significa que esse saber ético possua natureza puramente normativa, pois não se dedicam
exclusivamente à compreensão do dever-ser ético. Assim, pode-se estudar, além do problema
da ação e suas questões correlatas, por meio de um método científico, pelo saber ético, o
conjunto de preceitos relativos ao comportamento humano. Assim, o saber ético estuda o agir
humano. E dentre as normas sociais, destacam-se as normas jurídicas, com as quais interagem
as normas morais.
27
Nesse sentido, é válida a lição de Habermas de que moralidade e eticidade sofrem um
processo de mediatização histórica, pois “los sujetos que juzgan moralmente solo pueden
normalmente actuar conforme a su próprio juicio tras haberse convertido en sujetos capaces
de actuar moralmente por via de socialización en contextos de vida ética. La eticidad de una
forma de vida se acredita, pues, sean procesos de formación”.
28
Embora seus escritos tenham
reflexões que são mais voltadas a um Estado de Direito, também traz uma advertência no que
diz respeito à moralidade/eticidade, defendendo que o Direito necessita de uma racionalidade
insrumental do tipo ético: “una historización de la razón no puede significar ni una apoteosis
de lo existente en nombre de la razón, ni tampoco una liquidación de la razón en nombre de lo
vigente y existente”.
29
Durand indica quatro traços que distinguem a moral do Direito:
A moral visa à interioridade e solicita convicções próprias. O Direito não se
preocupa senão por uma submissão exterior. A moral é sempre uma perspectiva de
universalidade. O Direito se relaciona a uma comunidade partícular, bem
determinada e situada. A moral concerne à faculdade a longo prazo; o Direito se
preocupa sobretudo a curto prazo. A moral, enfim, se coloca sobre um ideal, e faz
um chamado a certo heroísmo. O Direito impõe um mínimo de regras.
30
26
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 28.
27
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22.
28
HABERMAS, Jürgen. Escritos sobre Moralidad y Eticidad. Traducción de Manuel Jiménez Redondo.
Barcelona: Ediciones Paidós, Colección Pensamiento Contemporaneo, 1991, p. 76. “Os sujeitos que julgam
moralmente somente podem normalmente atuar conforme seu próprio juízo após convertidos em sujeitos capazes
de atuar moralmente por via da socialização em contextos de vida ética. A eticidade de uma forma de vida,
acredita-se que sejam processos de formação” (Tradução nossa).
29
Idem, p. 93. “uma historização da razão não pode significar nem uma apoteose do existente em nome da razão,
nem uma liquidação da razão em nome do existente e vigente” (Tradução nossa).
30
DURAND, Guy. Natureza, princípios, objetivos. Tradução de Porphírio Figueira de Aguar Netto. São Paulo:
Paulus, 1995, p.11.
23
As normas morais ligadas à consciência - possuem autonomia com relação ao Direito,
assim como as normas jurídicas ligadas ao Estado - possuem autonomia em relação às
normas morais, o que não significa dizer que não haja relações e imbricações recíprocas. É
estreita a relação entre Direito e ética, entre normas jurídicas e normas morais, em que pese as
diferenças, de forma que “por vezes, as ações são coincidentemente ética e juridicamente
relevantes, o que não prejudica a autonomia das referidas ciências, nem faz confundir o
campo do jurídico com o campo da ética. [...]. Às vezes ética e Direito convergem, às vezes,
divergem”.
31
Assim, é justamente em face das diferenças e das convergências que a pesquisa
jurídica deve ser uma pesquisa conjugada com a ética.
As normas jurídicas distinguem-se das normas morais em função da cogência e da
imperatividade que as caracterizam. Nesse sentido, toda lei tem uma função ordenadora, é um
imperativo de ordem, mandando ou ordenando que assim se faça, funcionando como
instrumento de realização de uma ordem ou equilíbrio na vida social, o que de certa forma,
permite afirmar que a lei é o mais poderoso instrumento direto de configuração da vida social.
Graças à intervenção direta da lei, medidas são determinadas na solução de conflitos e na
aplicação a casos concretos, e também graças ao controle social indireto exercido pelo
Direito, a simples presença da norma jurídica inspira e condiciona o comportamento social.
Uma segunda função do Direito é a função educativa, que faz com que a simples
existência de uma regra de Direito seja um ponto de referência, no sentido de que pode gerar a
convicção de que a conduta determinada na lei seja a mais conveniente, na medida em que o
Direito é uma força que cria opiniões e, portanto, exerce uma poderosa função educativa. Já a
função transformadora do Direito faz com que este seja um agente de mudanças sociais.
Assim como é grande a sua capacidade de conservar as estruturas e instituições sociais,
também funciona como agente transformador do meio social rumo ao desenvolvimento e à
modernidade:
Se a moral demanda do sujeito uma atitude (solidariedade), seu estado de espírito,
sua intenção e seu convencimento interiores devem estar direcionados no mesmo
sentido vetorial das ações exteriores que realiza (intenção solidária e não
interesseira). É certo que a norma ética se constitui, na medida da norma jurídica,
de um comando de ordenação e orientação da conduta humana (dever-ser),
tornando-se critério para averiguação da ação conforme ou desconforme, mas
que se notar esse diferencial. Se o direito demanda do sujeito uma atitude (não
matar), se conformou com a simples não-ocorrência do fato considerado criminoso,
não argüindo acerca da volição (rivalidade).
32
31
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 23.
32
Idem, p. 27.
24
Catão estabeleceu uma relação entre justiça e ética, ao afirmar que “justiça é uma
palavra quase tão ampla quanto ética, pois exprime a idéia de retidão do agir humano na sua
universalidade, não porém como agir do sujeito, como o encara fundamentalmente a ética,
senão como agir reto em relação ao outro”.
33
Nesse sentido, a ética não é um elemento a mais
nem um elemento como qualquer outro a ser levado em consideração quando se pensa sobre a
questão filosófica fundamental: a condição humana. A própria idéia de pensar pressupõe a
ética; ser humano é viver na multiplicidade do humano, entendida no sentido de
multiplicidade ética do agir de uns com relação aos outros.
34
A solução para conflitos oriundos do desentendimento humano, do entrechoque de
interesses, da disparidade de interpretações sobre fenômenos sociais, do abuso de um diante
do outro, da lesão à esfera da liberdade alheia pode dar-se ou por força da ética ou por força
do Direito. É certo que o Direito intervém para pacificar relações humanas, inclusive com
recurso à sanção, tendo em vista a inabilidade humana para lidar com soluções éticas para
conflitos.
35
A partir do que foi dito anteriormente, é possível perceber que uma infindável lista
de avanços e descobertas no campo das novas descobertas científicas. Tal realidade é cada vez
mais presente na vida das pessoas, e traz a necessidade de uma ética para a civilização
tecnológica, da qual nos ocuparemos nos próximos capítulos. Porém, para tanto, é necessário
compreender no que consiste a ambivalência e a complexidade da ciência, conceitos estes de
suma importância para a compreensão do contexto atual em que se faz presente e necessária a
teoria jonasiana.
33
CATÃO, Francisco Augusto Camil. Ética, educação e qualidade. In: MARCILIO, Maria Luíza; RAMOS,
Ernesto Lopes (Coordenadores). Ética na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo: LT&r, 1997,
p. 118.
34
SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI,
Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 107. Nesse sentido, “não existe ética morta, ética de coisas despossuídas de seu ser. A ética é
uma relação da vida com a vida, é uma reconstituição radical das possibilidades de revitalizar a vida. E assim, de
uma forma apenas aparentemente reducionista, poderíamos sugerir que não existe ética que não seja, a rigor,
uma bio-ética. Ou, de outra forma: não existe ética sem bio-ética, nem bio-ética sem uma base de compreensão
ética da realidade como tal” (p. 121).
35
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 38. Para o autor, “a solução
jurídica dada a um caso, via de regra, pressupõe julgamento por terceiro, imposição de uma vontade/visão sobre
duas outras, autoridade e imperatividade da decisão proferida, a par todo um deslocamento do aparato estatal
com seus custos e ônus para as partes, aí contabilizados também desgastes emocionais e a delonga temporal para
o encerramento do litígio. Representa a solução ética o avesso desta, pois pressupõe que a decisão se origine das
próprias partes envolvidas, o que se alcança com consenso e sensatez, dispensando-se a autoridade, o custo, o
prejuízo e a demora” (p. 39).
25
1.3 Ciência, ambivalência e complexidade
Uma ética que sirva para aplacar o receio de que o ser humano venha a perder a sua
noção de humanidade, porque, conforme a previsão catastrófica de Fukuyama, “com uma
investigação científica livre de qualquer restrição, poderia-se chegar ao ponto de que teríamos
misturado genes humanos com os de tantas outras espécies que não teríamos uma idéia
clara do que é um ser humano”.
36
Essa idéia pode parecer extremista, mas ao analisar as vicissitudes da história humana,
percebe-se que nunca houve nada que pudesse representar um caminho tão dicotômico como
a manipulação genética,
37
que causa fascinação e perplexidade, aliados ao sentimento de
medo e insegurança. Porém, a principal preocupação hoje não é a de minimizar ou julgar a
ciência, mas sim de chamar atenção sobre a sua ambivalência, bem como sobre os novos
contornos que se desenham na manipulação genética, cujos questionamentos eram até pouco
tempo inimagináveis, graças á complexidade dos sistemas científicos, tecnológicos e
tecnocientíficos.
Os sistemas científicos podem ser condenáveis ou louváveis, segundo os fins que
pretendam alcançar, os resultados que de fato produzam, os meios que utilizem, e o
tratamento que atribuam às pessoas. Isso porque a tecnologia é muito mais do que o conjunto
de artefatos e de técnicas, e nem as técnicas nem os artefatos existem à margem das pessoas
que as aplicam ou que os usam com determinadas intenções. Os sistemas tecnológicos
também envolvem crenças e valores, e como a ciência e a tecnologia se baseiam em sistemas
de ações intencionais, nenhuma delas é eticamente neutra. Hoje em dia, os sistemas
tecnológicos podem ser muito complexos, e em muitos deles encontram-se imbricadas
indissociavelmente a ciência e a tecnologia, razão pela qual costumam ser chamados de
sistemas tecnocientíficos.
38
36
FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução da biotecnologia.
Tradução de Maria Luíza X. de A. de Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 225.
37
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 160. Segundo a autora, a expressão manipulação genética tem sido
definida como: a) em sentido restrito e próprio de modificação dos caracteres naturais do patrimônio genético e,
portanto, de criação de novos genótipos, através do conjunto das técnicas de transferência de um específico
segmento de DNA que contenha uma particular informação genética; b) em sentido mais amplo e impróprio (por
sua heterogeneidade de conteúdos), que compreende também a manipulação dos gametos e embriões (nem
sempre dirigida à modificação do patrimônio genético), assim como as técnicas de reprodução assistida. Nestas
existe só uma manipulação germinal e obstétrica, cujos delicados problemas envolvem diretamente a Bioética; c)
no âmbito das manipulações genéticas, ou de engenharia genética, inclui-se também a análise dos genes na
consulta genética e nos diagnósticos pré-implantatório, pré e/ou pós-natal.
38
OLIVÉ, Leon. Epistemologia na ética e nas éticas aplicadas. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel;
SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana
26
os sistemas tecnocientíficos são aqueles que constam de um complexo de saberes,
de práticas e de instituições nos quais a ciência e a tecnologia são interdependentes, razão pela
qual, de forma especial, é sobre eles que recaem as preocupações de ordem biotecnológica.
São, portanto, sistemas de ações regradas, vinculadas a sistemas informáticos, à ciência, à
engenharia e muito freqüentemente à política, às empresas, etc. Os sistemas tecnocientíficos
procuram descrever, explicar ou predizer o que ocorre, mas não se limitam a isso; eles têm
também o propósito de intervir em partes do mundo natural e social e de transformá-las. Por
isso, uma de suas características é que produzem em seu entorno efeitos de curto, médio e
longo prazo, muitos dos quais são significativos para os seres humanos e impossíveis de
predizer no momento de implementação do sistema tecnocientífico: “os sistemas
tecnocientíficos geram situações de risco, de incerteza e de insegurança”.
39
Daí Morin ter afirmado que a ciência é complexa porque é inseparável de seu contexto
histórico e social, e que a ciência não é científica, pois sua realidade é multidimensional, ou
seja, os efeitos da ciência envolvem riscos e não são simples nem para o melhor, nem para o
pior; são profundamente ambivalentes”.
Isso tudo porque
“a ciência é, intrínseca, histórica,
sociológica e eticamente, complexa. A ciência tem necessidade não apenas de um pensamento
apto a considerar a complexidade do real, mas desse mesmo pensamento para considerar sua
própria complexidade e a complexidade das questões que ela levanta para a humanidade”.
40
É altamente provável que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das
instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, muitos séculos, a ciência nada faz,
senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas
as dimensões da vida: “o ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional,
tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo o mais
Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 131-132.
Segundo Olivé, o principal
conceito para entender e avaliar a tecnologia e seus impactos é o de sistema tecnológico. Um sistema tecnológico
consta de agentes intencionais que perseguem ao menos um fim. Por exemplo, um grupo de cientistas e
empresários que quer produzir uma nova vacina e comercializá-la. O sistema também inclui os objetos que os
agentes usam com determinados propósitos (por exemplo, instrumentos utilizados para modificar genes e
produzir organismos com determinadas características fenotípicas). O sistema também contém ao menos um
objeto concreto que é transformado (os genes que são modificados). O resultado da operação do sistema
tecnológico, o objeto que foi transformado intencionalmente por alguém, é um artefato (um organismo
geneticamente modificado, ou um fármaco).
39
OLIVÉ, Leon. Epistemologia na ética e nas éticas aplicadas. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel;
SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana
Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 132-133.
40
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 09.
27
especialmente outras formas de racionalidade é sacrificado”.
41
Porém, essa racionalidade
tem uma faceta objetiva e outra subjetiva:
As teorias científicas são construções do espírito, não são reflexos do real, por mais
que tentem aplicá-lo: são traduções do real numa linguagem que é a nossa, ou seja,
aquela de uma dada cultura, num dado tempo. De um lado, as teorias científicas são
produzidas pelo espírito humano; portanto, elas são subjetivas. De outro, estão
fundamentadas em dados verificáveis e portanto objetivos.
42
Segundo Morin, os cientistas formados segundo os modelos clássicos do pensamento
se afastam dessa complexidade, mais precisamente no que se refere ao dogma clássico da
separação entre ciência e filosofia, e não conseguem entender que
todas as ciências avançadas deste século encontraram e reascenderam as questões
filosóficas fundamentais: o que é o mundo? a natureza? a vida? o homem? a
realidade? e que os maiores cientistas desde Einsten, Boher e Heisenberg
transformaram-se em filósofos selvagens. É de se esperar que as transformações
que começaram a arruinar a concepção clássica de ciência vão continuar em
verdadeira metamorfose. [...] Não haverá transformação sem reforma do
pensamento, ou seja, revolução nas estruturas do próprio pensamento. O
pensamento deve se tornar complexo.
43
O conceito de complexidade está indissociavelmente ligado à idéia do
desaparecimento das sociedades como sistemas integrados e portadores de um sentido geral,
definido ao mesmo tempo em termos de produção, de significação e de interpretação, o que
coloca os seres humanos diante de um mundo objetivo, em que uma crise dos indivíduos
sobrecarregados de problemas para cuja solução não encontram nenhuma ajuda nas
instituições nem civis nem jurídicas nem religiosas, redundando na inquietude, e mesmo
41
SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI,
Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 114.
42
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 38.
43
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 09-10. Para o autor, “o progresso da ciência é idéia que comporta em si
incerteza, conflito e jogo. Não se pode conceber absoluta ou alternativamente Progresso e Regressão,
Conhecimento e Ignorância. E, sobretudo, para que haja novo e decisivo progresso no conhecimento, temos de
superar esse tipo de alternativa e conceber em complexidade as noções de progresso e de conhecimento” (p.
105).
28
angústia, que nascem da perda de nossos pontos de referência habituais.
44
Por isso, é preciso
compreender o que foi dito por Morin sobre a complexidade:
A complexidade é um problema, é um desafio, não é uma resposta. O que é a
complexidade? [...] Num primeiro sentido, a palavra complexus significa aquilo que
está ligado em conjunto, aquilo que é tecido em conjunto. E é este tecido que se
deve conceber. Tal como a complexidade reconhece a parte da desordem e do
imprevisto em todas as coisas, também reconhece uma parte inevitável de incerteza
no conhecimento. É o fim do saber absoluto e total. A complexidade tem a ver, ao
mesmo tempo, com o tecido comum e com a incerteza.
45
É sabido que uma das facetas da modernidade é a ciência, que de certo modo perdeu
boa parte da aura de autoridade que um dia possuiu; provavelmente resultado da desilusão
com os benefícios que, associados à tecnologia, ela alega ter trazido para a humanidade.
Como afirmou Beck, duas guerras mundiais, a invenção de armas destrutivas, a crise
ecológica global e outros desenvolvimentos do presente século poderiam esfriar o ardor até
dos mais otimistas defensores do progresso por meio da investigação científica desenfreada.
Mas a ciência pode e deve ser encarada como problemática nos termos de suas
premissas.
46
Uma das facetas dessa problemática são as certezas tidas como inamovíveis:
La Ingeniería Genética se ha convertido a lo largo de los últimos años en uno de los
desafíos más intensos y complejos a conceptos de la ética consolidados a lo largo
de los siglos. Nos ha obligado a replantearmos a velocidad de vértigo certidumbres
que creíamos inamovibles. […] La Ingeniería genética ha asumido el papel de
interrogador en un apasionante debate de la contemporaneidad. Como en un
diálogo platónico en la era de la información, se nos interpela permanentemente y
se nos obliga a se autocriticar nuestras convicciones más íntimas. Y, como ícaros
inconscientes corremos, además, el riesgo de caer deslumbrados y abrasados por un
sol denominado Progreso Científico.
47
44
TOURAINE, Alain. Um novo paradigma para compreender o mundo de hoje. Tradução de Gentil Agelino
Titton. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 60. Para Touraine, a idéia de modernidade opõe-se à idéia de uma sociedade
que seria seu próprio fundamento, sua própria legitimação, opondo o discurso da modernidade, que subordina a
organização social a princípios não sociais, universalistas, e o discurso da sociedade, que não fundamenta as
normas sociais senão no interesse da sociedade, pois “a razão é universalista e não depende totalmente de seu
papel no funcionamento da sociedade”.
45
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 495.
46
BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética na
ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997, p. 109.
47
HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería Genética y Derechos Humanos: legislación y ética ante el reto
de los avances biotecnológicos. Barcelona: Icaria Antrazyt, 2000, p. 127. “A engenharia genética se converteu
nos últimos anos em um dos desafios mais intensos e complexos a conceitos de ética consolidados ao longo dos
séculos. Obrigou-nos a repensarmos em alta velocidade certezas que nós pensávamos imutáveis. [...] A
29
Dessa forma, uma das facetas da modernização – e portanto da globalização e também
do multiculturalismo é o desenvolvimento científico e tecnológico, que aumenta a chamada
complexidade.
Segundo Morin
a necessidade, para a ciência, de se auto-estudar supõe que os cientistas queiram
auto-interrogar-se, o que supõe que eles se ponham em crise, ou seja, que
descubram as contradições fundamentais em que desembocam as atividades
científicas modernas e, nomeadamente, as injunções contraditórias a que está
submetido todo cientista que confronte sua ética do conhecimento com sua ética
cívica humana. A crise intelectual que concerne às idéias simplórias, abstratas,
dogmáticas, a crise espiritual e moral de cada um diante de sua responsabilidade,
são as condições sine qua non do progresso da consciência. As auto-glorificações
abafam a tomada de consciência da ambivalência fundamental, ou seja, da
complexidade do problema da ciência.
48
Assim, um conhecimento pertinente exigiria religar, contextualizar, globalizar os
saberes e informações, na busca de um conhecimento complexo, nos termos expostos por
Morin. Por isso, partindo da problemática da inadequação entre os conhecimentos disjuntos,
partidos, compartimentados, bem como das realidades ou problemas cada vez mais
polidisciplinares e multidimensionais, Morin propôs uma reforma paradigmática do
pensamento, consistente na aptidão de organizar o conhecimento; um conhecimento para a
reintrodução da consciência na ciência: “penso ser uma aposta não somente científica. Mais
do que isso: é profundamente política e humana, humana no sentido que concerne, talvez, ao
futuro da humanidade”.
49
O conceito de complexidade trazido por ele está ligado ao da incerteza, e está
diretamente relacionado às potencialidades manipuladoras produzidas pelo desenvolvimento
do próprio conhecimento científico: “toda a teoria é uma ideologia, isto é, construção, sistema
de idéias, e todo sistema de idéias revela ao mesmo tempo as capacidades inerentes ao
cérebro, as condições socioculturais, a problemática da linguagem. Nesse sentido, uma teoria
Engenharia Genética tem assumido o papel de interrogador em uma discussão fascinante da contemporaneidade.
Como num diálogo platônico na era da informação, que nos desafia constantemente, somos forçados a auto-
criticar nossas convicções mais profundas. E, como Ícaros inconscientes, corremos, também, o risco de cair
deslumbrados e queimados por um sol chamado Progresso Científico” (Tradução nossa).
48
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 36.
49
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 41.
30
científica comporta inevitavelmente um caráter ideológico”.
50
Ou seja, o conhecimento
científico tem caráter tragicamente ambivalente; progressivo/regressivo, pois no universo
físico, biológico, sociológico e antropológico, há uma problemática complexa do progresso, já
que
complexidade significa que a idéia de progresso comporta incerteza, comporta sua
negação e sua degradação potencial e, ao mesmo tempo, a luta contra essa
degradação. Em outras palavras, que fazer um progresso da idéia de progresso,
que deve deixar de ser noção linear, simples, segura e irreversível para tornar-se
complexa e problemática. A noção de progresso deve comportar auto-crítica e
reflexividade.
51
Com relação a esse progresso, Morin também referiu que o dinamismo do
conhecimento científico sustenta uma curiosidade inesgotável, pois um conhecimento, uma
descoberta, a resolução de um enigma faz surgir novos enigmas, novos mistérios: “a aventura
do conhecimento é non stop, porque, quanto mais se sabe, menos se sabe. Quanto mais sábio,
mais ignorante. Essa aprendizagem da nossa ignorância é positiva já que nos tornamos
conscientes da ignorância de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo que
está no seu próprio movimento”.
52
Morin manifestou espanto com o fato de que as teorias se desatualizam e ainda assim a
ciência continua: “a verdade científica não está na certeza teórica. Uma teoria é científica não
porque ela é certa, mas, ao contrário, porque ela aceita ser refutada, seja por razões lógicas,
seja por razões experimentais ou de observações”.
53
Nesse sentido, ainda conforme Morin,
Habermas fez uma elucubração acerca do que ele chama de os diferentes interesses
relacionados aos diferentes tipos de conhecimento científico, enfatizando que somente
existem tipos diferentes de conhecimento científico na medida em que são impulsionados por
interesses diferentes:
50
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 64.
51
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 98. O autor se pergunta: “Qual o sentido da evolução, se é que existe
algum? E qual é a natureza desse espírito com que pensamos tudo isso? Em outras palavras, correlativo ao
progresso dos conhecimentos, o progresso da incerteza e, diria mesmo, da ignorância. Os fenômenos
progressivos/regressivos, ou seja, que fazem progredir simultaneamente o conhecimento e a ignorância,
constituem progressos reais: reconhecer uma ignorância e uma incerteza constitui progresso” (p. 100-101).
52
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 76.
53
Idem, p. 39.
31
o interesse técnico que é o interesse de domínio da natureza que marca
profundamente as ciências empírico-formais; o conhecimento prático, quer
dizer, o controle (especialmente o controle da sociedade) que, segundo Habermas, é
a característica principal das ciências histórico-hermenêuticas; e há o interesse
reflexivo: ‘quem somos nós, o que fazemos?que impulsiona o que ele chama de
ciência crítica. Para ele, esse é o bom interesse porque a ciência crítica, motivada
pela reflexividade, tem por interesse a emancipação dos homens, enquanto os
outros interesses conduzem à dominação e à sujeição. Interesses diferentes se
misturam na mente dos pesquisadores de modo completamente diverso; justamente
essa mistura é o problema. Habermas diz o seguinte: na medida em que a ciência
precisa, em primeiro lugar, conquistar a objetividade, ela dissimula os interesses
fundamentais aos quais ela deve não os impulsos que a estimulam, mas também
as condições de toda a objetividade possível. Ele então propõe: conscientizem-se
dos interesses que os animam, dos quais você não tem consciência.
54
Felizmente, ainda que não na mesma proporção, o avanço da ciência veio
acompanhado por crescentes preocupações:
Es indiscutible que hubo un avance extraordinario cuando la ciencia, en el siglo
XVII se desvinculó de la religión y del Estado, creando desde entonces su propio
imperativo: “conocer por conocer” sin respetar límites y gozando de total libertad.
Hoy vivimos un momento de autocrítica. En las palabras de un pensador francés
contemporáneo, para quien la guerra es un hecho demasiado complejo para que lo
dejemos exclusivamente en manos de los generales, diríamos que la tecnociencia es
demasiado poderosa para que la dejemos exclusivamente en manos de los
científicos.
55
54
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 47. Por isso, pode-se perceber as inter-relações entre consciência e
responsabilidade, entendendo-se consciência nos termos propostos por Morin, ou seja, em duplo sentido.
Consoante suas considerações, “o primeiro sentido da palavra consciência foi formulado por Rebelais em seu
preceito ‘ciência sem consciência é apenas ruína da alma’. A consciência de que ele fala é a consciência moral.
O conceito rebelaisiano é pré-científico, uma vez que a ciência moderna se pôde desenvolver em se livrando
de qualquer julgamento de valor, obedecendo a uma única ética, a do conhecimento. Mas ele se torna
paracientífico, no sentido que múltiplos e prodigiosos poderes de manipulações e destruições, originários das
tecnociências contemporâneas, levariam, apesar de tudo, para o cientista, o cidadão e a humanidade inteira a
questão do controle ético e político da atividade científica. O segundo sentido da palavra consciência é
intelectual. Trata-se da aptidão auto-reflexiva que é a qualidade-chave da consciência. O pensamento científico é
ainda incapaz de se pensar, de pensar sua própria ambivalência e sua própria aventura. A ciência deve reatar
como reflexão filosófica, como a filosofia, cujos moinhos giram vazios por não moer os grãos dos
conhecimentos empíricos, deve reatar com as ciências. A ciência deve reatar com a consciência política e ética,
pois uma ciência empírica privada e reflexão e uma filosofia puramente especulativa são insuficientes,
consciência sem ciência e ciência sem consciência são radicalmente mutiladas e mutilantes” (p. 10-11).
55
SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001,
vol.7,n.2,p.277a285.Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X200100
0200009&lng=es&nrm=iso>. Acesso em 05/01/2009.
“É indiscutível que houve um notável desenvolvimento quando a ciência, no século XVII, foi desvinculada da
religião e do Estado, criando seu próprio imperativo: "conhecer por conhecer", sem respeitar limites e desfrutar
de total liberdade. Hoje vivemos um momento de auto-crítica. Nas palavras de um pensador francês
contemporâneo, para quem a guerra é um fato complexo demais para ser deixado exclusivamente nas mãos dos
32
Desse modo, a partir da vivência da complexidade, houve um crescente despertar de
consciência ética em relação a diversos desafios levantados pelos avanços científicos e pelo
progresso econômico e técnico, pois começou a se perceber que “nem toda descoberta
científica e nem toda vantagem tecnológica trazem sempre efeitos puramente benéficos para
as pessoas e a sociedade. Ela acorda da visão ingênua de uma ciência isenta de interesses
espúrios e de uma técnica limpa e benéfica”,
56
mesmo porque não instante isolado, neutro
ou indiferente para a vida; há apenas instantes que conspiram, ou para a promoção da vida, ou
para sua corrosão. Esta é sua essencial não-neutralidade, pois o ser humano é um ser não-
neutro por excelência.
57
Portanto, a partir da compreensão do que significa a complexidade no âmbito da
tecnociência e da vida social como um todo, também é preciso analisar como surgiu e se
desenvolveu o ramo do conhecimento humano que tem se dedicado ao estudo e à reflexão das
questões tecnocientíficas e biotecnológicas. Eis a Bioética, que aglutina e reflete saberes de
diferentes locus do conhecimento, de forma inovadora e relativamente decente, levando-se em
consideração que essa terminologia vem sendo usada a partir da década de setenta.
generais, diríamos que a tecnociência é poderosa demais para ser deixada exclusivamente nas mãos dos
cientistas” (Tradução nossa).
Nesse sentido, as palavras do mencionado autor: “En suma, debido a la técnica, el hombre se volvió peligroso
para el hombre, en la medida que pone en peligro los grandes equilibrios smicos y biológicos que constituyen
los cimientos vitales de la humanidad. La amenaza que el hombre hace pesar sobre el hombre toma, de algún
modo, el lugar de las amenazas a las cuales los otros seres vivos ya están sometidos debido a las acciones
humanas. A la vulnerabilidad de la vida, el hombre de la era tecnológica añade un factor desintegrador
suplementario, el de su propia obra. Por su dimensión cósmica, por sus efectos acumulativos e irreversibles, las
técnicas introducen distorsiones tan definitivas que crean una dimensión de peligro sin precedentes en la historia
de la vida. La preservación de la vida siempre tuvo un costo, pero con el hombre moderno ese costo, puede ser el
de la destrucción total. En proporción al aumento del grado de peligro del hombre crece en importancia su
responsabilidad como tutor de todas las formas de vida”.
“Em suma, devido à tecnologia, o homem tornou-se perigoso para o homem, na medida em que põe em risco os
grandes equilíbrios smicos e biológicos que são fundamentos essenciais da humanidade. A ameaça que o
homem faz pesar sobre o homem toma, de alguma forma, o lugar das ameaças a que todos os outros seres vivos
estão sujeitos devido à ação humana. À vulnerabilidade da vida, o homem da era tecnológica fator acrescenta
um fator desintegrador adicional, o de sua própria obra. Pela sua dimensão cósmica, por seus efeitos cumulativos
e irreversíveis, tais técnicas introduzem distorções tão definitivas que criam uma escala de perigo sem
precedentes na história da vida. A preservação da vida sempre teve um custo, mas com o homem moderno esse
custo pode ser o da destruição total. Na proporção do aumento do grau de perigo do homem cresce em
importância sua responsabilidade como tutor de todas as formas de vida” (Tradução nossa).
56
JUNGES, José Roque. Bioética: perspectivas e desafios. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 09.
57
SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI,
Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 108.
33
1.4 Bioética: origem e conceitos
Ao longo da história humana houve muitas revoluções, porém, que agiam de fora para
dentro, enquanto a revolução biotecnológica passa a agir de dentro para fora. Daí a estranha e
paradoxal sensação de fascínio e temor e a conseqüente pergunta: diante de tudo isto, para
onde vamos? Para responder a esta pergunta, surge a Bioética como uma “ciência que se
propõe a estabelecer uma ponte entre as mais diversas tecnologias. Encontrando-se no ponto
de convergência de uma multiplicidade de saberes, a Bioética é uma das esperanças de que,
em meio às possibilidades oriundas de tamanho saber e de tamanho poder, acabe triunfando o
bom senso”.
58
Hoje, postula-se uma mudança de paradigmas, pois não mais se admite o dualismo
cartesiano como modelo científico, embora haja o entendimento de que o modelo hegemônico
de métodos científico continua sendo o cartesiano.
59
Nesse sentido, interessante trazer o que
Capra mencionou a respeito do modelo cartesiano: “sua rigorosa divisão entre corpo e mente
levou os médicos a se concentrarem na máquina corporal e a negligenciarem os aspectos
psicológicos, sociais e ambientais da doença”,
60
para então tratar da nova realidade, que exige
58
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 8. Nesse bom senso, o questionamento passa pela reflexão: “ser humano é ousar, sim,
avançar, progredir, crescer; não obstante, para onde e para quê? Para ser feliz.... Tecnologia para ser feliz?
Comumente, quem é feliz vive com amor ou sabe amar e lutar. Por conseguinte, progresso verdadeiro, é amar,
amizade, solidariedade, vida sem estresse, ser humano respeitado, aceitação do outro, medicina promotora da
saúde. Como nossas instituições sociais têm priorizado tais fins humanos? Que impacto tem em nossa
consciência a precariedade dada nas doenças da pobreza, e mais, das grandes doenças causadas pela riqueza, ou
acumulação dela? Quais os direitos das gerações futuras? Somos máquinas nas mãos de médicos-mecânicos ou
seres afetivo-simbólicos culturais? Somos passíveis de melhoramento genético ou é melhor investir mais no
progresso humano-pessoal?” (p. 11).
59
MARTINS, Paulo Henrique. O paradigma energético e os novos paradigmas do corpo e da cura. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 15. Este, ao delimitar um território restrito de observação e de compreensão da
realidade fundado numa percepção que separa o observador (caracterizado pelo cientista no laboratório) do
observado (o experimento-coisa) gera, fatalmente, uma representação dualista da ação social. Passa-se a
impressão errônea de que a realidade é fundada sobre dois elementos essencialmente diferentes: de um lado,
o sujeito, dotado de um olhar clínico e científico, de outro, o objeto, visualizado por um corpo mecânico.
60
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Tradução de Álvaro
Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1982, p 119. Também referiu que “o modelo biomédico está firmemente
assente no pensamento cartesiano. Descartes introduziu a rigorosa separação entre mente e o corpo, a partir da
idéia de que corpo é uma máquina que pode ser completamente entendida em termos da organização e do
funcionamento de suas peças. Uma pessoa saudável seria como um relógio bem construído e em perfeitas
condições mecânicas; uma pessoa doente, um relógio cujas peças não estão funcionando apropriadamente” (p.
132), e que “a divisão cartesiana influenciou a prática da assistência à saúde em vários e importantes aspectos:
em primeiro lugar, dividiu a profissão em dois campos distintos com muito pouca comunicação entre si. Os
médicos ocupam-se do tratamento do corpo, os psiquiatras e psicólogos, da cura da mente” (p. 134). Também é
importante explicar o porquê dessa obra de Capra ser considerada relevante para esse estudo. Primeiramente, na
própria capa do livro, após o título, a intrigante frase: A reconciliação da ciência e do espírito humano e o
futuro que está para acontecer” traz em si uma proposta bastante coerente, se analisarmos a necessidade de uma
transformação social e cultural para que haja uma mudança no modelo de ciência e biomedicina que hoje impera:
34
uma concepção sistêmica da vida, baseada na “consciência do estado de inter-relação e
interdependência essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos, sociais e
culturais, visão esta que transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais”.
61
A humanidade como um todo está contextualizada num ambiente de diferenças e
contradições, tendo que conviver com diversos pontos de vista, muitas vezes incompatíveis
entre si. E a Bioética, por seu caráter multidisciplinar, tem muitas contribuições a dar,
justamente porque abrange diversas áreas do conhecimento científico, como a Biologia, a
Medicina, a Sociologia, a Psicologia, a Filosofia, a Antropologia, o Direito, entre outros. E,
certamente, o Direito, que não pode furtar-se aos desafios levantados pela ciência: deve estar
imiscuído nessa interface entre as ciências. Para tanto, é necessário abrir-se a novos campos
conceituais, terminologias até então estranhas ao seu arcabouço, o que de certa forma explica
o desinteresse com que muitas vezes a Bioética é tratada no âmbito jurídico.
62
A Bioética possui uma dimensão descritiva e outra normativa. Encarrega-se, por um
lado, da análise de certas práticas sociais tal e como estas existem e se desenvolveram de fato,
mas essa análise deve ser crítica e conduzir ao estabelecimento de normas mais adequadas
para certos fins. A partir de um conhecimento factual das práticas pertinentes, a Bioética deve
revisar constantemente as normas e os valores constitutivos dessas práticas para propor e
defender autênticas normas e valores bioéticos.
63
Por isso, nem o problema central da
epistemologia nem o da Bioética devem ser entendidos como explicitação de princípios
gerais, universais e absolutos. A tarefa central de ambas as disciplinas deve ser vista como a
análise de certas práticas sociais.
64
Para a Bioética, as práticas cognitivas particulares têm
relação com a vida em seus sentidos muito diversos:
“como sociedade, somos propensos a usar o diagnóstico médico como cobertura para problemas sociais.
Preferimos falar sobre a ‘hiperatividade’ de nossos filhos, em lugar de examinarmos a inadequação de nossas
escolas; preferimos dizer que sofremos de ‘hipertensão’ a mudar nosso mundo supercompetitivo dos negócios;
aceitamos as taxas sempre crescentes de câncer em vez de investigarmos como a indústria química envenena
nossos alimentos para aumentar seus lucros” (p. 155).
61
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Tradução de Álvaro
Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1982, p 259.
62
Nesse sentido, “para que seja possível a discussão jurídico-filosófica sobre os avanços da manipulação
genética, faz-se imprescindível que os pesquisadores das ciências humanas tomem conhecimento de aspectos
técnicos da reprodução, estudando conceitos da Biologia bem como da Medicina, que propiciem um alicerce
para seus estudos e suas futuras conclusões. Além de conhecer os aspectos técnicos da manipulação genética, o
filósofo bioético tem que se manter atento às investigações e seus resultados” (MARTINS, Paulo Henrique.
Manipulação genética e reprodução humana. In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por
um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 90).
63
OLIVÉ, Leon. Epistemologia na ética e nas éticas aplicadas. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel;
SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana
Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 123-124.
64
Idem, p. 125-127.
35
O mundo (a vida) é ordenado (a) porque é capaz de desordenar-se auto-
organizadamente (espontaneamente) para voltar a se ordenar e para desordenar-se
em seguida...; é estável porque é capaz de desestabilizar-se para estabilizar-se
ulteriormente; é equilibrado (a) porque é capaz de desequilibra-se para voltar a se
equilibrar e desequilibrar; apresenta facetas necessárias que são produto do acaso e
que por sua vez se tornam casuais; manifesta aspectos predizíveis que são o
resultado de aspectos impreditíveis que geram novos aspectos predizíveis... Os
problemas e urgências bioéticos estão cheios de circunstâncias desse tipo,
características de uma dinâmica complexa. [...] A Bioética, na abordagem dos seus
problemas, não deve almejar uma ordem, uma estabilidade, um equilíbrio
completos e perfeitos, nem almejar uma ausência total de incidência do acaso, uma
preditibilidade perfeita.
65
A importância da Bioética quando se trata de questões envolvendo a biotecnologia
reside em evitar que o homem avance sobre a humanidade, manipulando a natureza humana
de maneira a por em risco a vida humana, pois deve ser deixada de lado a “doutrina ingênua
segundo a qual toda ciência é necessariamente verdadeira e todo conhecimento verdadeiro é
necessariamente científico”.
66
Daí a comparação de Hernández com uma lendária história
mitológica:
La ingeniería genética ha abierto la caja de Pandora de nuestros temores
ancestrales. De repente, algunas de nuestras seguridades más íntimas se han vuelto
inseguras, y nos hemos visto obligados a elaborar respuestas a preguntas complejas
para las que no estábamos preparados. En la confusión, hemos buscado referentes
claros y nos hemos visto obligados a legislar rápida y, en ocasiones,
65
SOTOLONGO, Pedro Luis. O tema da complexidade no contexto da Bioética. In: GARRAFA, Volnei;
KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano.
Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 110-111.
Sotolongo, quando mencionou a atual capacidade transformadora da ciência e da tecnologia, fez uma distinção
radical em relação a um dos traços do ideal clássico moderno de racionalidade instrumental - aquele que
preconizava a utilização dos conhecimentos científicos sempre em função da melhora e do bem-estar dos seres
humanos, considerando que tudo pode ser conhecido, predito e manipulado - e o âmbito da criação do mundo no
qual a ciência entrou, ou seja, da criação de vida e da criação de capacidades intelectuais artificiais. O contrário
dessa criação, isto é, a destruição (do mundo, da vida e das capacidades intelectuais), transformou-se de uma
potencialidade teórica para uma potencialidade prática, concreta e real: a bomba atômica, a de hidrogênio e de
nêutrons; organismos mutantes prejudiciais ao homem, etc. Também menciona o caráter não-clássico das novas
criações científicas, vinculando-o à não-factibilidade de conhecer todas as possibilidades de utilização, pelos
seres humanos, de muitas dessas criações de mundo, de vida e de capacidades intelectuais que a ciência e a
tecnologia tornaram possíveis, e tampouco de conhecer todo o alcance das conseqüências de um ou outro (p. 95).
66
ZIMAN, John Michael. O conhecimento confiável: uma exploração dos fundamentos para a crença na
ciência. Tradução de Tomáz R. Bueno. Campinas: Papirus, 1996, p. 13. Segundo o autor, “o conservador teme
que a ciência destrua o único mundo que ele conhece; o progressista imagina que ela envenenará o paraíso que
está por vir; o democrata acautela-se contra as tiranias da técnica; o aristocrata teme a tendência niveladora das
máquinas. Os arrazoados da defesa são igualmente incoerentes: uns dizem que o progresso científico é
automático e inevitável; outros, que o futuro deve ser determinado pelo planejamento racional; os tecnocratas
adoram dizer-nos que a ciência tornará a vida mais confortável; os viciados em espaço proclamam que o homem
deve avançar e conquistar o universo” (p. 12-13).
36
desordenadamente, sobre temas dudosos y de una dificultad tecnológica y
conceptual considerables.
67
Afirmou Durand que
A reflexão bioética é feita sobre os fatos e sobre os princípios e regras. Os fatos não
constituem a moral. uma distinção importante entre o indicativo e o imperativo
e uma distância incontornável entre os fatos e sua qualificação. A Bioética não
deseja princípios abstratamente determinados e que se imponham sobre a realidade.
Ela não quer um sistema de princípios que funcione com interdições, isto é, que
negue o direito de questionar, criticar, modificar, relativizar, equilibrar umas partes
pelas outras. Ela quer unir os fatos. E, a partir deles, sempre a eles voltar. Por isso
mesmo a reflexão bioética precisa de princípios e regras. Esta mesma reflexão
bioética repousa sobre dois princípios fundamentais, reconhecidos unanimemente.
Esses princípios são complementares: um se dedica ao domínio da subjetividade
essencial em ética, o outro evidencia a objetividade, que também é absolutamente
necessária. Esses princípios são o respeito à vida e o respeito à autodeterminação da
pessoa. Esses dois grandes princípios não suprimem, entretanto, as regras e as
normas mais concretas e específicas que a tradição ocidental colocou em realce ao
longo das idades.
68
A Bioética é justamente uma das facetas da ética, sendo que uma das suas principais
atribuições é conter e impor limites, utilizando-se dos ensinamentos e princípios bioéticos,
que este ramo da ética filosófica surgiu recentemente para analisar teoricamente os valores,
normas e princípios que ordenam os avanços científicos e tecnológicos. A magnitude
alcançada pela Bioética na atualidade é revelada justamente pela diversidade de tópicos que
florescem e evoluem desde a sua gênese, de modo acelerado e contínuo, descortinando o rol
das complexas preocupações de ordem ética:
As condições de origem da Bioética nos revelam um forte sentimento de defesa e
salvaguarda do homem, em sua singularidade, individualidade e na universalidade
de sua humanidade. Isto ocorreu juntamente com uma inequívoca afirmação do
respeito à condição humana e do valor incondicional do próprio homem. uma
67
HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería Genética y Derechos Humanos: legislación y ética ante el reto
de los avances biotecnológicos. Barcelona: Icaria Antrazyt, 2000, p. 12. “A engenharia genética abriu a caixa de
Pandora de nossos medos ancestrais. De repente, algumas das nossas seguranças mais íntimas tornaram-se
inseguras, e fomos forçados a desenvolver respostas a perguntas complexas para as quais não estávamos
preparados. Na confusão, buscamos referências claras e fomos forçados a legislar rapidamente e, por vezes
desordenadamente, sobre questões duvidosas e de uma considerável dificuldade conceitual e tecnológica”
(Tradução nossa).
68
DURAND, Guy. Natureza, princípios, objetivos. Tradução de Porphírio Figueira de Aguar Netto. São Paulo:
Paulus, 1995, p. 31.
37
orientação aceita no sentido de impor limites ao vasto campo da investigação
científica aplicada ao ser humano, na multiplicidade de seus modos de ser e de
existir. A generalização das inquietudes sociais deve ser limitada a um plano da
normatividade e de reflexão enquanto exigência de fundamentação do
comportamento. Não basta, porém, estabelecer como se deve atuar (formular
normas), mas, também, por que se deve agir dessa maneira (determinação dos
princípios bioéticos).
69
O avanço da biotecnologia demonstra o surgimento de complexas e novas relações
sociais e jurídicas, que envolvem valores religiosos, morais, culturais, políticos, econômicos.
Diante da complexidade dessas relações, a Bioética não pode limitar-se à abstração teórica,
que é constantemente chamada a dar uma solução ou uma resposta aos questionamentos
práticos, uma justificativa racional e legítima dentro de um equilíbrio com o Direito.
Pela Encyclopedia of Bioethics de 1978, o verbete Bioética é entendido como o estudo
sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde. É aceito
o início da utilização do conceito de Bioética no ano de 1971, com a publicação da obra
Bioethics - a bridge to the future do oncologista norte-americano Van Ressealer Potter, da
Universidade de Wisconsin, em que ele propunha a necessidade de uma relação de equilíbrio
entre os seres humanos e o ecossistema como condição para manutenção da vida no planeta.
70
Depois disso, o obstetra holandês André Hellegers, da Universidade de Georgetown,
foi o primeiro a utilizar a terminologia Bioética num contexto institucional para designar a
área de pesquisa que hoje celebramos, aplicando o termo à ética da Medicina e das ciências
biológicas, de tal forma que o nome acabou por se consagrar nos círculos acadêmicos e do
público.
71
Porém, na verdade, o nascimento da Bioética data de década anterior, período este
chamado de Portobioética (1960-1972). O segundo estágio, chamado de Bioética Filosófica
(1972-1985), foi o estágio da ética aplicada aos dilemas complexos da área da saúde, baseado
numa linguagem filosófica. No terceiro, chamado de Bioética Global (1985 até o presente), a
Bioética apresentou-se mais como um movimento do que como uma disciplina, e seu caráter
69
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 37.
70
CLOTET, Joaquim; FEIJÓ, Anamaria Gonçalves dos Santos; OLIVEIRA, Marília Gerhardt (Coordenadores).
Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p. 10.
71
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 18. Trata-se da obra “Bioética: uma ponte para o futuro” (tradução nossa).
38
de multidiciplinaridade tornou-se imprescindível na compreensão dos complexos dilemas da
prática médica.
72
Potter proclama a Bioética Global como sendo uma nova ciência ética, portanto, uma
necessidade para a sobrevivência humana a longo prazo, resultante da construção de uma
ponte entre ética médica e ética ambiental. Ele explica o surgimento da Bioética Ponte
(Bridge Bioethics), no sentido de que a Bioética era vista como uma nova disciplina que
construiria uma ponte entre ciência e humanidade, ou mais explicitamente, uma ponte entre a
ciência biológica e a ética – Bioética.
73
Assim, Potter, que criou a teoria original da Bioética, pensou-a como uma ponte para o
futuro, desenvolvendo seu pensamento até chegar à idéia de uma Bioética Global, baseada em
intuições e reflexão circunscrita pelo conhecimento empírico de todas as ciências. Segundo
ele, uma ética médica reconstruída seria, a longo prazo, uma ponte com a ética ambiental e
suas diretrizes imediatas, as quais, juntas, formam a segunda fase da Bioética Ponte, a
chamada Bioética Global, de modo a definir e desenvolver uma ética para a sobrevivência
humana sustentável.
74
Potter, pouco antes de sua morte, elaborou a chamada Bioética Profunda, em que a
abordagem deveria ser vista como uma busca de sabedoria pela humanidade, conceituando a
Bioética como uma nova ciência ética que combina humildade, responsabilidade, com
competência interdisciplinar, potenciadora do sentido de humanidade, antecipando, assim,
uma das grandes preocupações do multiculturalismo e também desta pesquisa. Para ele,
humildade é a conseqüência apropriada que segue à afirmação “posso estar errado”, e exige a
responsabilidade de aprender das experiências e do conhecimento disponível.
75
A tese original da reflexão Bioética, enquanto “ponte para o futuro”, é que é impossível
separar os valores éticos (ethics values) dos fatos biológicos (biological facts). Daí a
explicação para a composição grega do neologismo: “bio”, que representa a ciência dos
72
EULÁLIO, Maria Lucinda de Oliveira. A situação jurídica do embrião como premissa para a identificação da
individualidade humana sob a perspectiva da Bioética e do Biodireito. In: Revista do Centro Universitário São
Camilo. Cachoeiro do Itapemirim, ES: Cadernos Camilliani, v. 8, n. 2, maio/ago. 2007, p. 15.
73
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global e sobrevivência humana. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 337.
74
Idem, p. 338. Para o autor, “a ética médica junto com a Bioética é uma tática a curto prazo. Atualmente é a
ética clínica que lida com os dilemas enfrentados pelos médicos, pacientes e cuidadores dos pacientes. A
Bioética Global interpela os eticistas médicos a considerar o significado original de Bioética e a ampliar seus
pensamentos e atividades, para questões de saúde pública em escala mundial. Os eticistas médicos são obrigados
a levar em conta não somente as decisões clínicas do dia-a-dia, mas também as conseqüências a longo prazo das
ações que eles recomendam ou falham em considerar”.
75
Idem, p. 347.
39
sistemas viventes, e “ethike”, o conhecimento dos sistemas de valores humanos.
76
Os Estados
Unidos foram o berço da reflexão bioética, em razão de escândalos éticos na “revolução
terapêutica”, mais especificamente envolvendo seres humanos, alguns até deixando pouco a
dever aos desmandos nazistas. Assim, a Bioética seria também uma reação contra a
insensibilidade tecnocientífica.
Reagindo contra grandes escândalos,
77
que causaram grande repercussão na mídia e
mobilizaram a opinião pública norte-americana, o governo norte-americano constituiu, em
1974, a Comissão Nacional para a Proteção dos Seres Humanos da Pesquisa Biomédica e
Comportamental (Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and
Behavioral Research), para identificar os princípios éticos capazes de nortear a
experimentação envolvendo seres humanos. Após quatro anos de trabalho, a aludida
Comissão publicou o que passou a ser conhecido como o Relatório Belmont, por ter sido
elaborado no Centro de Convenções Belmont.
O Relatório de Belmont tornou-se a declaração principialista da reflexão bioética,
partindo do pressuposto de que não ação humana autônoma senão pelo prévio
consentimento livre e informado. Trata-se de um marco histórico e normativo para a Bioética,
em que foram identificados os três princípios éticos, universais, constituintes do arcabouço
epistemológico da Bioética, e aos quais se incorporou o princípio da não-maleficiência. Estes
foram os princípios identificados:
a) Autonomia: o respeito pela pessoa.
b) Beneficência: não causar dano e minimizar os possíveis riscos.
c) Justiça: imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios.
78
Pelo princípio da autonomia, o ser humano tem o direito de usufruir do seu livre-
arbítrio. Os serviços e profissionais de saúde devem respeitar a vontade, os valores morais e
as crenças, a historicidade, as idiossincrasias de cada pessoa, ou, em caso de ausência de sã
76
SILVA, Reinaldo Pereira. Biodireito: o novo direito da vida. In: WOLKER, Antônio Carlos e LEITE, José
Rubens Morato (Orgs.). Os Novos Direitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 296.
77
O primeiro caso foi em 1963, no Hospital Israelita de Doenças Crônicas de Nova York, quando células
cancerígenas foram injetadas em pacientes idosos doentes. O segundo caso foi no Hospital de Willowbrook,
Stand Island, New York, entre as décadas de 50 e 70. Crianças com retardo metal foram expostas ao vírus da
hepatite, com o objetivo de determinar sua infecciosidade. Já o terceiro caso, conhecido como Tuskegee Study,
aconteceu desde 1940, quando 400 negros portadores de sífilis foram submetidos a um estudo para pesquisar o
histórico natural da doença. Em decorrência do estudo, vários morreram, o que levou o governo americano a
pedir desculpas públicas à população negra em 1996. Para maiores esclarecimentos, vide EULÁLIO, Maria
Lucinda de Oliveira. A situação jurídica do embrião como premissa para a identificação da individualidade
humana sob a perspectiva da Bioética e do Biodireito. In: Revista do Centro Universitário São Camilo.
Cachoeiro do Itapemirim, ES: Cadernos Camilliani, v. 8, n. 2, maio/ago. 2007, p. 15.
78
SILVA, Reinaldo Pereira. Biodireito: o novo direito da vida. In: WOLKER, Antônio Carlos e LEITE, José
Rubens Morato (Orgs.). Os Novos Direitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 300.
40
consciência, de seu representante legal. Assim, a proeminência da vida estabelece um limite
objetivo ao exercício da liberdade de cada ser humano, possibilitando aquilatar seu grau se
responsabilidade em relação a si mesmo e em relação ao outro, e também traz uma condição
inexorável: a da vulnerabilidade: “a autonomia é a de um ser frágil, vulnerável. E a fragilidade
não passaria de uma patologia se não fosse a fragilidade de um ser chamado a tornar-se
autônomo, porque o é desde sempre, de uma certa maneira”.
79
O princípio da beneficência (fazer o bem, do latim bonum facere) é o que diz que é
dever nosso fazer o bem aos outros, independentemente de assim querer ou não. Aqui mais
tarde foi inserido por Beuchamp e Childess o princípio da não-maleficência (não causal mal,
do latim non nocere), o qual propõe a obrigação de não infligir dano intencional. É a
obrigação ética de maximizar benefícios e minimizar danos ou prejuízos, a partir do
reconhecimento do bem supremo da vida e de sua dignidade. Na verdade, ambos significam
que o homem deve agir de acordo com as exigências da natureza de sua própria pessoa e
também dos outros homens, sendo desdobramentos do reconhecimento da dignidade da
pessoa humana no âmbito biomédico.
80
o princípio da justiça diz com a visão da justiça distributiva: a justa distribuição dos
bens e serviços implica que o acesso a eles deve ser sempre universal; avaliar quem necessita
mais deve preceder a atenção igualitária.
81
Nesse sentido, trata-se da plena compreensão de
que o bem próprio não se realiza divorciado do bem dos outros, razão pela qual advoga que as
pessoas não sejam deixadas sozinhas a braços com os seus problemas.
82
Vale lembrar que não se desconhece a linha principiológica européia, que difere
substancialmente da anglo-saxônica. Vulnerabilidade, dignidade, integridade e autonomia são
os quatro princípios postulados pelo pensamento europeu. No entanto, os três primeiros, mais
que princípios normativos, são atributos que descrevem a condição humana, são descrições de
traços antropológicos que evocam muito vagamente a obrigação de respeitá-los e protegê-los.
Como descrições, eles devem se submeter à validade cognitiva. Mas mesmo reconhecendo
79
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 175.
80
Idem, p. 174.
81
Vide MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético.
In: PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e
biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 70-87.
82
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 177.
41
sua veracidade, não constituem guias para a ação, ou seja, carecem de um momento
normativo forte,
83
razão pela qual nos detivemos na linha principiológica anglo-saxônica.
Vale lembrar também que esse paradigma principialista anglo-saxônico tem como
protagonistas Tom Beuchamp o qual era membro da comissão que redigiu o Relatório
Belmont - e James Childress, autores da obra Principles of biomedical ethics, na qual
propuseram quatro princípios norteadores da ação: beneficência, não-maleficência, justiça e
autonomia, pois desdobraram os três princípios do Relatório Belmont em quatro princípios.
Essa primeira Bioética, cujos três princípios emanaram do Relatório de Belmont, teve uma
base epistemológica médica e clínica, mas logo após, quando em 1979 Tom Beauchamp e
James Childress publicaram a primeira edição da obra tida como referência da chamada
Bioética principialista anglo-saxônica de origem estadunidense Principles of biomedical
ethics, foram incorporados aos três princípios acima mencionados um quarto, o da não-
maleficência, baseado no juramento hipocrático do primum non nocere (não causar dano).
84
Na visão desses autores, esses princípios não têm nenhuma disposição hierárquica e
são válidos prima facie, e a vantagem desse paradigma seria de “fornecer um sistema
metódico para os problemas que são, por sua natureza, complexos; aclarar o pensamento nos
debates sobre assuntos muito difusos; oferecer uma precisão de linguagem em um mundo
científico que trata a objetividade e a precisão como grandes valores; uma língua comum
frente ao pluralismo”.
85
O termo Bioética foi empregado pela primeira vez por Potter num sentido ecológico,
considerando-a a ciência da sobrevivência, com objetivo moral-pedagógico. Em sua
concepção alargada, passou a designar os problemas éticos gerados pelos avanços nas ciências
biológicas e médicas, como algo de grande problemática, envolvendo o ser humano no que
83
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípios na Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Org). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-
americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 39.
84
GARRAFA, Volnei. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais
da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário.
São Paulo: Gaia, 2006, p. 12. Trata=se da obra “Princípios da ética biomédica” (tradução nossa).
85
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 35. Além deste, são colocados outros paradigmas: o paradigma libertário, o paradigma
das virtudes, o paradigma casuístico, o paradigma fenomenológico e hermenêutico, o paradigma narrativo, o
paradigma do cuidado, o paradigma do direito natural, o paradigma contratualista, o paradigma antropológico
personalista, para então alertar que “as dimensões morais da experiência humana não podem ser capturadas por
uma única perspectiva. Os diversos paradigmas bioéticos o caminhos diferentes para uma plataforma comum.
Cada método visa explorar as densas camadas da experiência humana num esforço para atingir novos insights
partilhados e promover a ação informada”. Cada um, de maneira característica, sugere que o modelo
principialista, embora valioso, também tem sérias limitações. Isso não é nenhuma surpresa, uma vez que a
grandeza e a profundidade da experiência humana sempre estarão além de qualquer sistema filosófico ou
teleológico. Cada alternativa vai além do principialismo ao dar acesso a diferentes possibilidades de sentido e
rotas alternativas de ação em face da ambigüidade ética (p. 38).
42
diz respeito à sua dignidade e à crescente interferência do homem no processo de nascimento
e morte. Então, essa possibilidade de controle da vida, despertou na humanidade a
necessidade de estabelecer limites para o atuar da ciência.
86
Porém, no início dos anos 1990, começaram a surgir críticas ao principialismo e à
universalidade dos seus princípios a partir, principalmente, da necessidade de que fossem
respeitados os diferentes contextos sociais e culturais existentes em um mundo globalizado.
Assim, no final do século XX, a Bioética passou a expandir seu campo de estudo e ação,
incluindo temas como o dos direitos humanos e da cidadania, a preservação da
biodiversidade, a finitude dos recursos naturais planetários, o equilíbrio do ecossistema, os
alimentos transgênicos, o racismo, outras formas de discriminação, etc. Segundo Volnei
Garrafa, até 1998, a epistemologia da Bioética se restringia a caminhos que apontavam para
temas e problemas/conflitos preferencialmente individuais em relação aos coletivos: “o eu
deixou o nós em posição secundária, pois a teoria principialista se mostrava impotente para
desvendar, entender, propor soluções e intervir nas gritantes questões coletivas [...]”.
87
Marcelo Palácios, no que tange aos pilares da Bioética, entende que ela deve ser:
Civil, laica e independente: a la par que se producen los avances científicos y
tecnológicos, va apareciendo una sensibilidad diferente, que configura nuevos
valores sociales y culturales cuantitativa y cualutativamente evaluables. No son
valores homogéneos ni uniformes, porque en su aparición influyen y confluyen
circunstancias, sentimientos y reacciones muy dispares, de naturaleza individual,
grupal, ideológica, religiosa, moral, etc... que los diferencia e incluso enfrenta.Y
por lo mismo, al no ser las actitudes o juicios éticos o morales patrimonio absoluto
o universal de una sociedad y mucho menos de un sector o individuo, no pueden
imponerse a la comunidad si no es bajo el ejercicio de un poder dañoso y
autoritario, subliminal o evidente. En un Estado de Derecho plural y protector de
los derechos y libertades fundamentales de los ciudadanos, como es el nuestro,
tampoco es posible.
Social: al servivio del individuo y del interés general, porque siendo cultural el
origen de la dignidad, también ha de serlo su soporte social. Ello exige que la
expresión del trabajo bioético atenta a situaciones y conflictos del tiempo en que ha
de aplicarse, sin desatender las enseñanzas del ayer ni las consecuencias de los
hechos científicos y tecnológicos para generaciones venideras.
Convivencial: no fundamentalista ni parasitada por ideologias o interesses
focalizados, complacencias o apriorismos monolíticos. Ello significa que de ser
respetuosa con la pluralidad moral y las opciones minoritárias, no excluyente, em
suma, y valorando mo influyen las propuestas éticas mayoritarias sobre quienes
no las comparten aunque ello no deba ser óbice para que se formulen y sin
dejarse tiranizar por la caja de resonancia de inaceptables exigencias.
86
BARRETO, Vicente de Paulo. As relações da Bioética com o Biodireito. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.
43.
87
GARRAFA, Volnei. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais
da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário.
São Paulo: Gaia, 2006, p. 12-13.
43
Universal: afronteriza, aunque las diferencias entre las culturas y tradiciones y los
interesses a veces en juego mediatizan y estrechan la pretensión. La expansión
estará condicionada a a incidencia territorial de la ciencia y la tecnología, los
supuestos tradicionales y culturales, la presión de grupos morales no civiles, la
influencia de factores mercantiles más prosaicos, etc.
Con un lenguaje proprio, transitorio por la fuerza de los hechos cambiantes y
entremezclado con la tradicción, la realidad como es y la previsión cuando sea
posible intuirlo de lo que puda ocurrir en el ámbito científico y tecnológico a no
tardar demasiado. Debe contar con un lenguaje propio, pertinente, acomodando los
términos com precisión a las cuestiones que le incumben para facilitar la reflexión
interdisciplinar, configurar el cuerpo bioético operativo y expresar adecuadamente
sus orientaciones; lenguaje que por la propia e incesante dinámica de los hechos
científicos y tecnológicos exigirá adaptaciones ocasionales.
88
Quando se pensa em Bioética, surge a necessidade de diferenciar o uso do termo em
seu sentido global, para se referir à ética das ciências da vida e do cuidado com a saúde, dos
adjetivos que especificam as diversas áreas de preocupação dentro da Bioética, como por
exemplo a ética médica, ambiental, religiosa, etc.
Segundo rcio dos Anjos, Potter, embora
não empregasse o termo globalidade, entendia a Bioética como global em três sentidos:
enquanto diz respeito a toda a terra, é uma ética referente ao bem de todo o mundo; enquanto
conjunto includente de todos os temas éticos nas ciências da vida e cuidados de saúde (temas
clássicos da ética biomédica e da biomedicina); e enquanto visão abrangente dos métodos de
88
PALACIOS, Marcelo. Bioética práctica para el siglo XXI. In: PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética
2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 22-27.
“Civil, secular e independente: ao par que se produzem os avanços científicos e tecnológicos, vai aparecendo
uma sensibilidade diferente, o que configura novos valores sociais e culturais quantitativa e qualitativamente
mensuráveis. Os valores não são homogêneos ou uniformes, porque em sua aparição influem e confluem
circunstâncias, sentimentos e reações diferentes, de natureza individual, grupal, ideológica, religiosa, moral,
etc... que os diferencia e inclusive enfrenta. Portanto, como as atitudes e julgamentos éticos ou morais não são
herança absoluta ou universal de uma sociedade, muito menos de um setor ou indivíduo, não podem ser impostas
à comunidade senão sob o exercício um poder autoritário e nocivo, subliminar ou óbvio. Em um Estado de
Direito plural e protetor dos direitos fundamentais e liberdades dos cidadãos, como o nosso, não é possível.
Social: ao serviço do indivíduo e do interesse geral, porque sendo cultural a fonte da dignidade, também de
ser o seu suporte social. Isso exige que a expressão do trabalho bioético esteja atenta a situações e conflitos na
hora de aplicar, sem esquecer as lições do passado e as conseqüências da atual evolução científica e tecnológica
para as futuras gerações.
Convivial: não fundamentalista nem parasitada por ideologias ou interesses focalizados, complacências ou
apriorismos monolíticos. Isso significa que ela deve ser respeitosa com o pluralismo moral e as opções
minoritárias, e avaliar como elas influenciam as propostas éticas majoritárias sobre aqueles que não
compartilham - embora isso não deva ser um obstáculo para a formulação - e sem se deixar tiranizar por
exigências inaceitáveis.
Universal: na fronteira, embora as diferenças entre as culturas e tradições e às vezes os interesses em jogo
mediatizam e estreitam a pretensão. A expansão estará condicionada à incidência territorial da ciência e da
tecnologia e seus aportes tradicionais e culturais, à pressão de grupos morais não civis, à influência de fatores
mercantis mais prosaicos. Com uma linguagem própria, de transição pela força dos fatos e entrelaçada com a
tradição, a realidade é, e a estimativa - quando possível intuir do que possa ocorrer no âmbito científico e
tecnológico não demora muito. Deve ter linguagem própria, relevância, ajustando os termos e problemas com
precisão para facilitar a reflexão interdisciplinar, configurar o corpo bioético operativo e expressar
adequadamente suas orientações, linguagem que pela própria e incessante dinâmica dos fatos científicos e
adaptações tecnológicas exigirá adaptações ocasionais” (Tradução nossa).
44
aproximação desses temas, incorporando expansivamente todos os valores relevantes,
conceitos, modos de pensar e disciplinas.
89
Potter utilizou o vocábulo para designar uma participação racional, mas cautelosa, da
humanidade, no processo da evolução biológica e cultural. Segundo tal acepção, bio vem
representar o conhecimento biológico, enquanto ética representa o conhecimento dos sistemas
de valores humanos.
90
Enquanto a Bioética Ponte foi o primeiro estágio do pensamento
Bioético, a Bioética Global foi o segundo estágio, entendida como uma moralidade que
resultaria na construção de uma ponte entre ética médica e ética ambiental. o terceiro
estágio da Bioética é a Bioética Profunda, concebida pelo professor Peter Whitehouse,
dimensão esta que explora a Bioética mais profundamente que o puro empirismo, exigindo
distinções interiores do certo e errado, que não são rapidamente quantificadas.
91
Nesse estágio, as profissões educacionais e éticas podem lidar com o ritmo dos novos
desenvolvimentos das descobertas científicas, que ligam os genes à personalidade, e ligar o
comportamento humano com a nossa herança biológica e a dinâmica interação entre os
processos complexos do cérebro e a vasta gama de contínuos estímulos sociais. Potter enfatiza
que a ciência genética é muito importante para ser deixada somente para os cientistas.
92
Outra divisão passível de ser feita é entre as dimensões material e formal da Bioética.
A dimensão material evoca a realidade, fatos e dados em que a vida e a saúde se realizam e
trazem implicações éticas. Já a dimensão formal contempla os elementos que contribuem para
a análise de propostas éticas diante da realidade; assumindo, portanto, as questões de fundo
metodológicas epistemológicas e ontológicas:
93
A dimensão material é a Bioética polarizada pelas inúmeras potencialidades
técnicas, transformadas ou não em práticas, que são evidenciadas pelas ciências
biomédicas atuais, tais como reprodução assistida, aborto, transplantes, eutanásia,
89
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: abrangência e dinamismo. In: BARCHIFONTAINE, Christian de Paul
de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 19.
90
MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Bioética e Biodireito. In: BARBOSA, Heloísa Helena; BARRETO,
Vicente de Paula (Orgs.). Temas de Biodireito e Bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 85-97.
91
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global e sobrevivência humana. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 344.
92
Idem, p. 345.
93
Nesse sentido, é de se lembrar que epistemologia diz da raiz e procedimentos que guiam determinado saber
colocado em cada ciência particular. São de alta ordem, pois estão correlacionadas aos paradigmas, concepções e
pressupostos que guiam a relação com o mundo ditada pelo conhecimento. Isso tudo tendo em vista como vejo o
mundo e o saber: o mundo muda, as pessoas mudam, os sentidos se alteram. Essa é a ontologia, que diz aquilo
que é, a essência por trás das aparências. A ciência tem por trás de si toda uma ontologia, muitas vezes
impensada, relativa ao modo como concebe o real, a matéria, o corpo humano, os animais, etc. Mudança
ontológica é uma transformação em essência, pois com a civilização técnica, a própria essência do homem está
em jogo.
45
conquistas da genética, etc. na Bioética formal, o desafio metodológico de
como tratar as questões levantadas e fundamentar seu encaminhamento ético, ou
seja, trata-se de questões mais de fundo sobre o sentido, fundamentos e direção a
serem dados para a vida e a saúde. Portanto, abre-se aqui um amplo espaço em que
a Bioética se alimenta epistemologicamente da interdisciplinaridade.
94
Tratar de Bioética é tratar de juízos de valor que se referem a atos humanos; atos
realizados com liberdade e responsabilidade, de sorte que esses juízos podem ser tanto
normativos quando prescrevem quanto narrativos descrevem atos: os juízos éticos têm
de falar validamente tanto sobre o que deve ser como sobre o que é. enunciados que
possuem uma aceitação tão generalizada que podem ser considerados como verdades morais,
mas que podem ser corrigidos, do mesmo modo que as verdades científicas
.
Essa verdade
científica difere da verdade racional, pois a ética é cognoscível e se constitui em quatro níveis
epistemológicos no discurso ético: o conhecimento dos juízos morais desenvolvidos pela ética
filosófica, a percepção dos valores que estão em jogo, a análise das situações práticas, que
exigem a aplicação da ética para a solução de dilemas e problemas e, por fim, o conhecimento
das argumentações que a ética aplicada apresenta progressivamente.
95
Bio exige que levemos seriamente em conta as disciplinas e as implicações do
conhecimento científico, de modo que possamos entender as questões, perceber o que está em
jogo e aprender a avaliar possíveis conseqüências das descobertas e suas aplicações. A ética
por sua vez, é uma tentativa para se determinar os valores fundamentais pelos quais vivemos.
Quando vista num contexto social, é uma tentativa de avaliar as ações pessoais e as ações dos
outros de acordo com uma determinada metodologia ou certos valores básicos.
96
Assim, concluiu Potter que um conceito de progresso filosófico/científico que coloca
sua ênfase na sabedoria a longo prazo é o único tipo de progresso que pode levar à
sobrevivência. Por essa razão, entende a Bioética como uma ciência da sobrevivência humana
que deve estabelecer pontes com as idéias da ética social existentes hoje, enfatizando a
humildade com responsabilidade, de forma que “humildade é a conseqüência apropriada que
94
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: abrangência e dinamismo. In: BARCHIFONTAINE, Christian de Paul
de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 22.
95
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípios na Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque
latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006,
p. 31.
96
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e Biodireito. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999, p. 16.
46
segue a afirmação ‘posso estar errado’, e exige a responsabilidade de aprender das
experiências e do controle disponível”.
97
Nesse sentido, Alain Pompidou destacou três princípios, no sentido de compromissos
morais, em que a abordagem bioética deve ser fundamentada, os quais a sua maneira pode-se
dizer que estão relacionados à responsabilidade e à humildade de que tratou Potter:
Precaución: para evitar efectos adversos e irreversibles que pongan en peligro la
supervivencia de futuras generaciones. Una medida provisional que permite la
evaluación equilibrada de los intereses en juego. Se fundamenta en la evaluación
objetiva de los riesgos y sienta las bases para la toma de decisiones.
Experiencia: recogita de datos resultantes de la experimentación a fin de que la
moratoria esté limitada en el tiempo. Este principio opera paso a paso y permite la
evaluación continua del proceso.
Vigilancia: atención a las enseñanzas de alarma y mantenimiento de la capacidad
de respuesta.
El principio de precaución se fundamenta en las decisiones y acciones políticas
orientadas a preservar el futuro. Los principios de experiencia y vigilancia
requieren de la movilización y participación de la comunidad científica.
98
Tratar de Bioética é tratar de juízos de valor que se referem a atos humanos; atos
realizados com liberdade e responsabilidade, de sorte que esses juízos podem ser tanto
normativos quando prescrevem quanto narrativos descrevem atos: os juízos éticos têm
de falar validamente tanto sobre o que deve ser como sobre o que é. enunciados que
possuem uma aceitação tão generalizada que podem ser considerados como verdades morais,
mas que podem ser corrigidos, do mesmo modo que as verdades científicas
.
Essa verdade
científica difere da verdade racional, pois a ética é cognoscível e se constitui em quatro níveis
epistemológicos no discurso ético: “o conhecimento dos juízos morais desenvolvidos pela
ética filosófica, a percepção dos valores que estão em jogo, a análise das situações práticas,
97
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global e sobrevivência humana. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 347. Em um momento
de reflexão, o autor escreve “à medida que entro no ocaso da minha vida, sinto que Bioética Ponte, Bioética
Profunda e Bioética Global chegaram ao limiar de um novo dia, que vai muito além de tudo quanto eu poderia
imaginar ou desenvolver” (p. 346).
98
POMPIDOU, Alain. Bioética: un compromiso compartido. In: PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética
2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 45-46.
Precaução: Para evitar os efeitos adversos e reversíveis que ponham em perigo a sobrevivência das gerações
futuras. Uma medida que permite uma avaliação equilibrada dos interesses em jogo. É baseado na avaliação
objetiva do risco e fornece a base para a tomada de decisão.
Experiência: recogita dados resultantes das experiências de modo que a moratória é limitada no tempo. Este
princípio funciona passo a passo e permite a avaliação contínua do processo.
Fiscalização: atenção aos ensinamentos de alarme e manutenção da capacidade de resposta. O princípio da
precaução é baseado em decisões políticas e ações políticas destinadas a preservar o futuro. Os princípios da
experiência e da fiscalização exigem a mobilização e participação da comunidade científica (Tradução nossa).
47
que exigem a aplicação da ética para a solução de dilemas e problemas e, por fim, o
conhecimento das argumentações que a ética aplicada apresenta progressivamente”.
99
Lepargneur concebeu a Bioética como um processo de comunicação, em que a
argumentação almeja à implementação de normas concernentes aos fenômenos vitais.
100
A
proposta da Bioética é orientar sistematicamente a conduta humana sobre as suas
possibilidades, para dialogar com a biotecnologia. Porém, com uma diferença básica: o exame
dessa conduta à luz de outros valores e princípios que não os meramente econômicos,
políticos, técnicos ou científicos.
101
Também Marcelo Palácios expressou o seu entendimento sobre Bioética:
Entiendo la Bioética como un alambique entre la duda y la certeza a la búsqueda y
propuesta de ideas utilizables; como un motor de pensamientos transterritoriales y
transculturares simbióticos, con pulso proprio para vulir, contrastar, intercambiar,
prevenir con sus indicaciones que se consuma el hecho dañoso o impedir que
persista neciamente. Consecuencia de todo ello, la propuesta bioética será
consensuada siempre que sea necesario y posible, y como reflejo de la voluntad
positiva y de la tolerancia, sin cercar los territorios propios ni intentar amaestrar los
ajenos o apropiárselos.
102
Para Márcio dos Anjos, a Bioética não dispensa a visão do horizonte cultural da época
e suas conexões com o mundo da vida.
103
O campo em avaliação depende da natureza e de
suas leis, mas também da atuação humana, aqui julgada em relação ao conjunto do bem
99
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípios na Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque
latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006,
p. 31.
100
LEPAGNEUR, Hubert. Bioética e Clonagem Humana. In: MARCILIO, Maria Luíza; RAMOS, Ernesto
Lopes (Coordenadores). Ética na virada do século: busca do sentido da vida. São Paulo: LT&r, 1997, p. 163.
101
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 76.
102
PALACIOS, Marcelo. Bioética práctica para el siglo XXI. In: PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética
2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 25. “Entendo a bioética como ainda entre dúvida e certeza na
busca de propostas e idéias utilizáveis, como um motor de pensamentos e transterritoriais e transculturais
simbióticos, com pulso próprio para contrastar, intercambiar, prevenir com suas indicações ou impedir que
persista. Conseqüência de tudo isso, a proposta bioética será consensual sempre que necessário e possível, e
como reflexo da vontade positiva e da tolerância, aproximando os próprios territórios sem tentar ameaçar dos
distantes, nem se apropriar deles” (Tradução nossa).
103
HABERMAS, Jürgen. Escritos sobre Moralidad y Eticidad. Traducción de Manuel Jiménez Redondo.
Barcelona: Ediciones Paidós, Colección Pensamiento Contemporáneo, 1991, p. 12. Com relação ao mundo da
vida, importante esclarecer que se trata de um conceito complementário na Teoria da Ação Comunicativa,
elaborada por Habermas.
48
humano.
104
Assim, tendo em vista as constantes inovações da moderna ciência biomédica, o
campo de atuação da Bioética vem constantemente evoluindo e ampliando, abrangendo área
das mais diversas, tais como: relacionamento profissional-paciente, saúde pública, reprodução
humana, pesquisa biomédica e comportamental, saúde mental, sexualidade e gênero, morte e
morrer, genética, ética da população, doação e transplante de órgãos, meio ambiente, etc...
No entendimento de Durand, o núcleo central da Bioética trata dos seguintes temas:
aborto, inseminação artificial, manipulação genética, critérios de esterilização,
transexualismo, doação de órgãos humanos, HIV, tratamentos no fim da vida, neurocirurgia,
experimentação com o ser humano, pesquisa sobre o genoma, saúde pública e alocação de
recursos e políticas de saúde.
105
A classificação de Durand tem por base os dilemas com que
nos deparamos atualmente, sem pretensões de esgotá-los.
As experimentações levadas a cabo pelo regime nazista da Alemanha e a subseqüente
condenação, pelo Tribunal de Nuremberg,
106
de médicos considerados culpados de conduta
107
contrária aos valores do humanitarismo, assentaram uma nova fase da Bioética, a qual “se
origina en una toma de conciencia ética y existencial de la impotencia de la moral y de la
omnipotencia de la ciencia en el campo biomédico y de la falta de comunicación entre ellas.
La nueva bioética lucha por la dignidad e integridad de toda persona humana”.
108
Nesse
sentido, é possível afirmar que um saber sempre precisa de outro saber:
O saber simbólico ganha firmeza e concretude ao servir-se das informações da
Ciência, graças às informações biológicas, a Ética, a Religião, a Filosofia e o
Direito podem elaborar teorias globais em bases mais seguras. Do mesmo modo, o
saber científico reconhece a importância do saber simbólico para enquadrar seus
resultados na história da evolução e no crescimento cultural das pessoas e das
104
ANJOS, Márcio Fabri dos. Bioética: abrangência e dinamismo. In: BARCHIFONTAINE, Christian de Paul
de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 19.
105
DURAND, Guy. Introdução geral à Bioética: história, conceitos e instrumentos. Tradução de Nicolás
Nyimi Campanário. São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo e Edições Loyola, 2003, p. 115-116.
106
A atuação de regimes totalitários, que determinaram normas de extermínio, genocídio e violação de direitos
humanos fundamentais provocou a revolta da consciência mundial e a constituição de um Tribunal Internacional,
em Nuremberg, em 1947, para julgar os crimes contra a humanidade. Deu origem ao movimento que culminou
com a Declaração dos Direitos da pessoa Humana, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em
1948. Então, até a década de 70, o digo de Nuremberg foi o fato mais relevante, pois por muito tempo
constituiu-se como indicador da valorização e do respeito ao ser humano no campo da experimentação científica.
107
BARRETO, Vicente de Paulo. As relações da Bioética com o Biodireito. Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p.
50.
108
ETCHEVERRIA, Manuel Trevijano. Que es la bioética? Salamanca/Espana. Ediciones Sígueme, S.A., 1998,
p. 81. “A Bioética se origina de uma tomada de consciência ética e existencial da impotência da moral e da
onipotência da ciência no campo biomédico, bem como da falta de comunicação entre elas. A nova bioética luta
pela dignidade e integridade de todo ser humano” (Tradução nossa).
49
sociedades. Ao mesmo tempo, a interação dos dois saberes coíbe a tentação do
fundamentalismo dogmático.
109
A Bioética, desde o princípio, impôs-se como uma reação à realidade da pesquisa
científica no campo da vida humana, que estava mergulhada em um “vazio ético”, que se
negava a existência de qualquer valor ético universal, surgindo como uma limitação a essas
pesquisas. A discussão Bioética foi suscitada quando se percebeu que o rumo dos
acontecimentos, principalmente envolvendo a pesquisa em seres vivos, poderia levar a
conseqüências graves e indesejadas pela falta de conscientização da responsabilidade ética,
situação esta que exige o compasso entre a ciência e o Direito:
La Bioética ha estimulado al derecho a moverse a la par de las biociencias y sus
tecnologias, y no con el retraso que le caracterizó hasta no hace mucho, abordando
desde la interpretación jurídica las consecuencias de sus aplicaciones. En las
instituciones internacionales y en muchos países las reglas, las normas legales y el
derecho han cogido el paso de lo científico, puesta al día que permite sincronizar
sus planteamientos con el hecho científico y tecnológico cuando este se produce y
reclama su atención, en el futuro, la celeridad de los descubrimientos científicos y
tecnológicos puede dificultar que mantenga este ritmo.
110
Consoante ensinamento de Sgreccia, a Bioética tem como objetivo indicar os limites e
as finalidades da intervenção do homem sobre a vida, identificar os valores de referência
racionalmente proponíveis, denunciar os riscos das possíveis explicações.
Assim, trata-se “de
assegurar um dos resultados mais trabalhosos e difíceis do caminho da civilização, isto é, a
harmonia entre o progresso de caráter cognitivo e técnico e aquele de ordem moral e
cultural”.
111
Pegoraro entende que a Bioética
109
PEGORARO, Olinto A. Fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa, MARTINS, André,
PEGORARO, Olinto A. (Orgs.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da Bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 46.
Para o autor.
110
PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética 2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 17. “A
Bioética tem estimulado o Direito a se mover no compasso das ciências biológicas e da tecnologia, não com o
atraso que o caracterizava até recentemente, abordando a interpretação jurídica das conseqüências de suas
aplicações. Em instituições e regras internacionais em muitos países, as normas jurídicas e de direito têm
acompanhado a comunidade científica, a atualização, sincronizando-se com os feitos científicos e tecnológicos
quando estes se produzem e reclamam sua atenção, no futuro, a velocidade das descobertas científicas e avanços
tecnológicos podem tornar difícil manter esse ritmo” (Tradução nossa).
111
SGRECCIA, Élio. A Bioética e o novo milênio. Tradução de Cláudio Antonio Pedrini. Bauru: EDUSC,
2000, p. 08.
50
é o debate sobre as recentes descobertas tecnocientíficas da biologia, biofísica,
bioquímica, genética e das ciências médicas que levantam novos problemas às
Ciências Humanas dos valores éticos, das convicções milenares de pessoas, de
escolas filosóficas, teológicas e jurídicas que tratam do sentido da vida e da morte,
da convivência política e da relação da natureza com o homem, tornando-se,
portanto, o desaguadouro de duas grandes formas do conhecimento humano: o
saber simbólico e o saber científico.
112
Assim, a Bioética é uma disciplina que amalgama conhecimentos teóricos de ética, se
submete aos rigores do debate analítico, abre-se para o conhecimento empírico e o incorpora à
medida que o requer para avaliar as realidades, as projeções, os dilemas e as situações
problemáticas que ocorrem no âmbito da reflexão. O discurso da Bioética se submete a
critérios de racionalidade, razoabilidade ou plausibilidade, prudência, coerência interna dos
pronunciamentos e coerência externa do que é asseverado em relação aos antecedentes
históricos e à realidade social contemporânea.
113
E como o ser humano é um ser cultural, que se socializa, acultura-se, profissionaliza-
se, politiza-se, enfim, estrutura-se dinamicamente em contato com o meio em que vive, então
se constrói a partir do contexto em que está inserido, de forma que é de suma importância
considerar a temporalidade da Bioética ao tratar dos diferentes temas que ela enfrenta em
diferentes épocas. Afinal, os valores não se encontram nos genes, nem são produtos
espontâneos da genética, mas são culturais, frutos de uma longa experiência e tradição
humana:
O processo evolutivo não nos deu de saúde um código de valores éticos, mas deu-
nos as condições e a capacidade de adquiri-los. [...] A ciência nunca descobrirá ou
isolará um valor ético no laboratório: este pode nos revelar tudo o que somos do
ponto de vista biofísico e bioquímico, mas nunca terá condições científicas para
revelar o que seja uma pessoa, um valor, pois estes conceitos fundamentalmente
foram construídos lentamente pela tradição filosófica, ética, religiosa, jurídica...
114
112
PEGORARO, Olinto A. Fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa, MARTINS, André,
PEGORARO, Olinto A. (Org.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 46.
113
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípios na Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Org). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-
americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 35.
114
PEGORARO, Olinto A. Fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa, MARTINS, André,
PEGORARO, Olinto A. (Org.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 52.
51
Sendo a ética a ordenação destinada a conduzir o homem de acordo com uma
hierarquia de bens, uma tábua de valores, um sistema axiológico de referência, tornando-o
cada vez mais homem, cada vez mais aquele ser que a natureza dotou de consciência e
espiritualidade, então a reflexão Bioética nada mais é do que um antigo esforço em
reconhecer o valor ético da vida humana e de agir conforme esse valor.
A Bioética principialista, ao que tudo indica, é uma das abordagens bioéticas mais
significativas, pois não se resume a uma função meramente instrumental, mas sim um
substrato valorativo que assegura critérios de discernimento entre o que é tecnicamente
possível e o que é eticamente lícito, guardando correspondência com um padrão humanista,
material e objetivista, pois contêm uma fundamentação ontológica e antropológica.
115
Porém, com relação à Bioética principialista, é possível afirmar, na esteira de Kottow,
que os princípios apresentados à Bioética padecem de deficiências estruturais por carecer da
tendência à universalidade inerente a todo princípio,
116
crítica esta muito pertinente se
pensarmos que o desenvolvimento da Bioética estabeleceu-se sem que existam postulados
absolutos, sendo a missão de uma Bioética racional a adoção de modos argumentativos
abertos à pluralidade, à tolerância e ao intercâmbio comunicativo. Por isso, a rigidez de
máximas e princípios de validade pretensamente geral não fazem senão prejudicar e descuidar
o reconhecimento do outro diferente.
Portanto, ao que se constata, todos os conceitos sobre Bioética, alguns dos quais foram
mencionados anteriormente, trazem uma profunda preocupação com os limites do progresso
biotecnológico, afirmando que nem tudo aquilo que seja possível fazer, científica e
tecnicamente, deve-se necessariamente fazer. Logo, nem tudo o que se pode fazer é
eticamente irrepreensível. À Bioética incumbe, partindo de princípios que não são rígidos
nem imutáveis, a limitação moral e axiológica do avanço científico, trazendo respostas à
problemática que se instala sob as mais diversas formas nos dias de hoje, de sorte que o tema
ainda exige aprofundar suas relações com a ciência, reconhecendo-se as limitações do
conhecimento científico. Para tanto, é preciso partir de tudo o que foi estudado sobre a
complexidade, na medida em que está indissociavelmente atrelada às limitações do
conhecimento científico, razão pela qual será retomada em alguns tópicos.
115
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 172.
116
KOTTOW, Miguel. Bioética prescritiva. A falácia naturalista. O conceito de princípios na Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque
latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006,
p. 39-43.
52
1.5 A Bioética, o Direito e as limitações do conhecimento científico
O questionamento acerca da verdade das coisas do mundo e da imortalidade tem sido a
busca constante do homem na construção do seu meio. Para tanto, parte do conhecimento
científico em busca de descobertas nos mais diversos setores. Esse conhecimento científico é
uma conquista recente da humanidade, mas nessa busca incessante e até descontrolada da
objetividade e certeza das coisas, o ser humano muitas vezes deixa de lado valores éticos, os
quais têm de fazer parte da ciência, pois a ciência não constitui um valor em si mesma; não é
capaz de se pensar. Nesse contexto, pode-se dizer que a Bioética é um tema relativamente
recente, e que se enquadra numa vasta tradição cultural filosófica:
Podemos relacionar a Bioética com a filosofia da natureza do mundo antigo e
moderno ou com a história da deontologia médica, que vai de Hipócrates a nossos
dias. Do mesmo modo, é possível ligar a Bioética à atual filosofia dos direitos
humanos ou às teorias éticas do meio ambiente. Isto é, a Bioética se enquadra num
amplo contexto filosófico, científico e sociopolítico. [...] Ao situar a Bioética num
horizonte amplo, ela se torna o desaguadouro de duas grandes formas de
conhecimento humano: o saber simbólico e o saber científico. Então, ela ganha
visibilidade total e pode ser descrita assim: a Bioética é o debate sobre as recentes
descobertas tecnocientíficas em biologia, biofísica, bioquímica, genética e ciências
médicas que trazem novos problemas ás ciências humanas dos valores éticos, das
convicções milenares de pessoas, de escolas filosóficas, teleológicas e jurídicas que
tratam do sentido da vida e da morte, da convivência política e da relação da
natureza com o ser humano.
117
Os debates que gravitam em torno da Bioética são eminentemente
multidisciplinares,
118
pois diz respeito a várias áreas do conhecimento, entre as quais o
Direito. Mais do que isso, diz respeito a todos os seres humanos, que de uma ou outra maneira
se vê afetado pelas suas implicações cotidianas.
Porém, a grave crise em que a humanidade se encontra, indissociavelmente atrelada à
117
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 65-66.
118
Segundo Garrafa, a multidisciplinaridade (também chamada pluridisciplinaridade) diz respeito ao estudo de
um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo. A análise multidisciplinar
traz “algo mais” à disciplina em questão, enriquecendo o objeto de estudo, mas está a serviço apenas desta
mesma disciplina. Tal abordagem multidisciplinar ultrapassa a disciplina, mas seu resultado continua limitado à
estrutura do estudo disciplinar (GARRAFA, Volnei. Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade
concreta em Bioética. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da
Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. o
Paulo: Gaia, 2006, p. 75).
53
perda de certezas, também faz pensar que talvez o comprometimento ético não tenha sido
colocado no lugar que lhe é devido, pois o ser humano, ante o utopismo tecnológico, esquece
a racionalidade e, sem poder administrar o hoje, pretende decidir o amanhã.
Isso faz pensar até
que ponto a biotecnologia tem curado o mundo de seus males, pois ao mesmo tempo em que
promove aclamadas pesquisas, permite que crianças morram de subnutrição e que os pólos se
degelem, conseqüência da degradação ambiental imposta pelo avanço tecnológico.
119
No contexto desse utopismo tecnológico, pode-se citar a eugenia, cuja perspectiva
visava um processo de seleção e cruzamento racionais para evolução e conservação de uma
raça constituída de seres humanos superiores.
120
Porém, essa predominância da técnica foi
instaurada em todo o sistema político-militar nazista, culminando em suas práticas de
holocausto, o que fez com que se repensasse esse tipo de ideologia. Assim, operando a partir
da noção de mudanças de paradigmas no sentido da compreensão de que o conhecimento
científico não cresce de modo contínuo, mas sim opera por saltos qualitativos que têm lugar
nos períodos de desenvolvimento, chegamos ao final do século XX com uma ciência cooptada
ou “hibridizada” pela técnica, a tecnociência.
121
Assim, a Bioética pode ser o privilegiado lugar de encontro dessas duas formas de
saber, o simbólico e o científico, cuja interação coíbe a tentação do fundamentalismo
dogmático; antes buscando consensos nimos e provisórios que sirvam de plataformas de
conciliação e de chaves reguladoras das diferenças:
O saber simbólico ganha firmeza e concretude ao servir-se das informações da
ciência: por exemplo, os filósofos clássicos que pouquíssimo sabiam sobre a
119
RODRIGUEIRO, Daniela. Biotecnologia: uma injustiça poética? O contexto da nova Lei de Biossegurança à
luz da Bioética e da exclusão social. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese,
IBDFAM, v. 9, n. 43, ag./set., 2007, p. 158. A autora traz uma afirmação no mínimo inquietante: “Vivemos
diante de tantas inovações efetivamente disponibilizadas à parcela insignificante da população mundial e
submetemos todo o restante às denominadas chuvas ácidas, ao efeito estufa, à degradação da camada de ozônio,
à escassez da água e dos recursos naturais como um todo. A liberdade de agir, de pensar, de criar, de
transformar, de investigar deverá curvar-se em termos de solidariedade, sob pena de morrer a humanidade em si
mesma. O fim do mundo: o átomo é um monumento à sabedoria da raça humana. Um dia poderá ser a lápide se
sua insensatez”.
120
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 71. O termo eugenia foi cunhado em 1883 pelo inglês Francis Galton, formado em
medicina e pesquisador em estatística, além de um dos mais conhecidos primos de Darwin o qual lhe exerceu
grande influência a partir do livro A origem das Espécies. Eugenia significa o estudo dos agentes sob o controle
social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações. Posteriormente, eugenia
também foi um termo emprestado a conceitos como os de bem nascido ou de boa geração. Galton estava
convencido de que o determinismo biológico era responsável por grande parte das características sicas, morais
e mentais dos seres humanos.
121
Idem, p. 73.
54
fisiologia humana, formularam teorias sobre a reprodução hoje superadas; em
nossos dias, graças às informações biológicas, a ética, a religião, a filosofia, o
Direito e a psicologia podem elaborar teorias globais com bases mais seguras. Do
mesmo modo, o saber científico reconhece a importância do saber simbólico para
enquadrar seus resultados na história da evolução e no crescimento cultural das
pessoas e sociedades. Com efeito, hoje são poucos os cientistas que entendem a
ciência como última e final explicação de tudo; por seu turno, o saber simbólico vai
esquecendo o antigo sonho da verdade única e universal da metafísica, da teologia e
da moral, que apelavam a princípios eternos.
122
Partindo-se do pressuposto de Ellul de que a ciência tornou-se um meio a serviço da
técnica, bem como de que a técnica antecede a ciência, resta a pergunta: deve-se fazer tudo o
que é possível de ser feito?
123
É justamente essa tensão gerada pelo poder tecnológico que fez
Rifkin apontar as tecnologias da engenharia genética como ferramentas da eugenia
contemporânea, classificando-a em dois segmentos: a positiva, de aprimoramento ou
incentivo de traços desejáveis, e a negativa, de aperfeiçoamento ou de eliminação sistemática
de traços indesejáveis.
124
O que começara com a especulação de aperfeiçoamento acabou
promovendo uma reinvenção. Para essa reinvenção foi refinado o termo algenia. Para Rifkin,
algenia significa muito mais do que mudar a essência de uma coisa viva: é a tentativa da
humanidade em dar significado metafísico à sua emergente relação tecnológica com a
natureza. Para ele, a algenia é um modo de pensar que determina o rumo da próxima grande
época da história.
125
A ciência não é infalível, já que está a mercê de novas experiências que podem
modificar a verdade vigente. Por isso, o conhecimento da realidade deve sempre ser encarado
como relativo. Isso implica uma crise do conceito de ciência, que não leva à sua falência,
pois, ao contrário, seu desenvolvimento é cada vez mais vertiginoso. No entanto, deve pautar-
se por critérios e limites éticos,
126
que está estreitamente ligada ao poder sobre as coisas e
sobre os próprios seres humanos. Segundo Morin, não haveria lugar para extremismos, pois
122
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 65-66.
123
ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
124
RIFKIN, Jeremy. O século da biotecnologia a valorização dos genes e a reconstrução do mundo.
Tradução de Arão Sapiro. São Paulo: Makron Books, 1999. O termo algenia foi cunhado na década de 50 pelo
Dr. Joshua Lederberg, biólogo laureado com o Nobel e ex-presidente da Universidade Rockefeller, o qual
afirmou que a algenia deve emergir como uma nova estrutura filosófica e uma metáfora arqueada para o século
biotecnológico.
125
Idem, p. 34-35. Segundo o autor, as artes algênicas são dedicadas à melhoria dos organismos existentes e ao
desenho de outros completamente novos, com o intuito de tornar seu desempenho “perfeito”; mas a algenia é
muito mais que isso.
126
Nesse sentido, “o mundo físico e biológico, que compreende os seres humanos, encaminha-se a uma condição
de alto risco para sua integridade e mesmo sobrevivência. A idéia de um contrato social que possa ser baseado na
harmonização de interesses naturais tende a projetar-se em outras áreas; das gerações humanas atuais às futuras,
55
há que se acabar com a tola alternativa da ciência boa, que traz benefícios, ou da
ciência má, que só traz prejuízos. Pelo contrário, há que, desde a partida, conceber e
de compreender a ambivalência, isto é, a complexidade intrínseca que se encontra
no cerne da ciência. É evidente que o conhecimento científico determinou
progressos técnicos inéditos. A ciência é, portanto, elucidativa (resolve enigmas,
dissipa mistérios), enriquecedora (permite satisfazer necessidades sociais e, assim,
desabrochar a civilização); é, de fato, justamente, conquistadora, triunfante. E, no
entanto, essa mesma ciência nos apresenta, cada vez mais, problemas graves que se
referem ao conhecimento que produz, à ação que determina, à sociedade que
transforma. Essa ciência libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terríveis
de subjugação. Esse conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do
aniquilamento da humanidade.
127
A idéia-chave de Morin, retomando o que foi anteriormente analisado, era a de que as
ciências humanas não têm consciência dos caracteres físicos e biológicos dos fenômenos
humanos, nem da sua inscrição em uma cultura, numa sociedade, numa história. As ciências
não têm consciência do seu papel na sociedade, nem dos princípios ocultos que comandam as
suas elucidações. Em suma, as ciências não têm consciência de que lhe falta uma consciência.
Nesse sentido, manifestou-se Souza:
Se quisermos pensar uma articulação entre ciência e ética, teremos que estabelecer
uma hierarquia clara. Qual a hierarquia com que temos convivido a partir da
Modernidade? Exatamente a hierarquia entre a ciência e a ética, onde primeiro se
pensa os interesses científicos, e depois se tenta resolver, se é que se tenta, os
problemas éticos daí decorrentes. Porém, situações complexas que a
contemporaneidade tem vivido instigam a inversão dessa hierarquia que apareceu, e
muitos modernos, natural. Ciência sem consciência é uma contradição suicida,
mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de todas as
situações, como nos discursos que tentam legitimar suas técnicas e procedimentos.
A ciência com consciência, por outro lado, deve significar ciência com ética como
base. A consciência da ciência é a ética, ou seja, a reflexão sobre seu antes, durante
e depois, seu sentido humano e histórico e, direta ou indiretamente, seu sentido
vital. A ética é, desta forma, a possibilidade fundante e metacientífica da
racionalidade científica, aquilo sem a qual a racionalidade científica, fechada em si
mesma, acaba por implodir em sua totalização de poder e sentido, destruindo tudo
em seu autodestrui-se.
128
de nossa espécie aos outros seres vivos. Tal condição de alto risco é caracterizada pelo fato de que uma das
maiores criações do gênero humano, a ciência, acaba por assumir tríplice função: é concausa, instrumento de
definição e meio de solução desse problema” (SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do
pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 34).
127
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 16.
128
SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI,
Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 117. Nesse sentido, uma inquietante afirmação de Capra: “A evolução da consciência deu-nos
não somente a pirâmide de Quéops, os Concertos de Brandemburgo e a teoria da relatividade, mas também a
56
A necessidade dessas reflexões é oriunda de um contexto histórico e social hodierno,
fruto da evolução da ciência, do saber, da consciência moral dos povos e de concepções novas
geradas pelas atuais realidades da medicina, da biologia, da antropologia, da sociologia e da
filosofia. É nesse contexto que se deve analisar os limites éticos e jurídicos da manipulação
genética, pois nem tudo aquilo que seja possível fazer, científica e tecnicamente, deve-se
necessariamente fazer. Nesse sentido, Rodrigueiro trouxe uma reflexão muito importante:
Com a mesma frieza e talvez com a mesma certeza de que melhores e piores,
seres superiores e inferiores, uns a merecer melhor qualidade de vida e outros não,
vimos surgir entre s um deus ou um demônio: o poder da biotecnologia. [...] A
ciência muitas vezes se vale do poder econômico que financia projetos de pesquisa,
a indústria farmacêutica alavanca sobressaltos incríveis na economia, e as ações das
empresas de biotecnologia se igualam à indústria da informática, ganhando o topo
do mundo; à sombra de cientistas honestos, idealistas e obstinados, outros tantos
ungidos pela fama e pela obsessão do poder acabam comprometendo o verdadeiro
progresso científico.
129
Crescer é, hipoteticamente, progredir, dar um passo à frente, a um degrau acima.
Todavia, o crescimento, que teoricamente é situação melhor que a anterior, não implica em
desenvolvimento, pois no crescimento, na maioria das vezes, a situação nova aniquila ou
ignora a situação anterior, enquanto o desenvolvimento implica soma de habilidades. Assim,
o desenvolvimento implica na necessidade de preservar o estado anterior para que haja seu
aperfeiçoamento, e não sua destruição. Foi assim que, conforme lembrou Rodrigueiro, “no
decorrer do crescimento das sociedades foram ignoradas pessoas, desrespeitados limites e
dignidades, tudo em nome do famigerado progresso. Daí a preocupação com os rumos da
ciência”.
130
queima de bruxas, o Holocausto e a bomba de Hiroxima. Mas essa mesma evolução da consciência deu-nos o
potencial para vivermos pacificamente e em harmonia com o mundo natural no futuro. Nossa evolução continua
a oferecer-nos liberdade de escolha. Podemos deliberadamente alterar nosso comportamento mudando nossas
atitudes e valores, a fim de readquirir a espiritualidade e a consciência ecológica que perdemos” (CAPRA,
Fritjof. O ponto de mutação: a ciência, a sociedade e a cultura emergente. Tradução de Álvaro Cabral. São
Paulo: Editora Cultrix, 1982, p. 293).
129
RODRIGUEIRO, Daniela. Biotecnologia: uma injustiça poética? O contexto da nova Lei de Biossegurança à
luz da Bioética e da exclusão social. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese,
IBDFAM, v. 9, n. 43, ag./set., 2007, p. 147.
130
Idem, p. 144.
57
Nesse sentido, Morin, em várias passagens de “A inteligência da complexidade”,
explicou o porquê de a ciência ser um típico exemplo da complexidade,
131
de forma que o
conflito ético surge justamente com os questionamentos de como agir, com que fim agir, qual
a diferença entre agir desta ou daquela maneira, para quem agir. E como pano de fundo dessas
perguntas, a grande interrogação: tal ão auxilia a construir um modelo para a humanidade?
Ou ainda, a escolha da ação a ser efetuada colabora para engrossar o conjunto das ações
destrutivas ou construtivas da humanidade?
132
Diante disso, a opção pela ética é uma opção
que procura direcionar esforços no sentido do enriquecimento do estoque de paradigmas
construtivos e dignificantes da humanidade, que precisa parar de crescer para poder se
desenvolver, nos termos já expostos.
Os perigos das experimentações científicas descompromissadas justificam o estudo da
Bioética e a adoção do Princípio Responsabilidade, pois os retrocessos e distorções que tantas
vezes estiveram presentes no crescimento das sociedades precisam ser fustigados para que
haja um desenvolvimento responsável, que não se deixe levar pelo encantamento da
prosperidade. um grande perigo no fascínio exercido pela superação de limites, quando a
ciência traz expectativas de cura de doenças, longevidade, etc. A ciência não é mágica e não
está acima de qualquer suspeita, não pode agir ao seu bel-prazer.
133
131
Entre essas passagens, é possível destacar as seguintes:
“O drama, a tragédia das ciências humanas e das ciências sociais notadamente, é que, pretendendo fundar sua
cientificidade sobre as ciências naturais, elas encontraram os princípios simplificadores e mutilados com os quais
era impossível conceber o ser, impossível conceber a existência impossível conceber a autonomia, impossível
conceber o sujeito, impossível conceber a responsabilidade” (p. 60).
“Toda a teoria é uma ideologia, isto é, construção, sistema de idéias, e todo sistema de idéias revela ao mesmo
tempo as capacidades inerentes ao cérebro, as condições socioculturais, a problemática da linguagem. Nesse
sentido, uma teoria científica comporta inevitavelmente um caráter ideológico” (p. 64).
“O inferno está cheio de boas intenções, ou seja, as melhores intenções levam a conseqüências espantosas das
quais não se dão conta aqueles que as fizeram. Mas, felizmente, o inverso pode ser verdadeiro também.
Infelizmente, o paraíso não existe e as ações muito más podem ter resultados positivos. [...] Quanto mais sábio,
mais ignorante. Essa aprendizagem da nossa ignorância é positiva já que nos tornamos conscientes da ignorância
de que éramos inconscientes. Portanto, existe um dinamismo que está no seu próprio movimento” (p. 76).
“Aquilo que se chama de cientificismo não é outra coisa senão colocar a ciência no lugar da religião, achando
que ela vai desempenhar a mesma função, que vai trazer a certeza. E, ainda hoje em dia, a crença é que a ciência
é a certa. Evidentemente é o certo sobre o plano dos dados. Mas não é o certo no que diz respeito ao pensamento,
à teoria. Esse movimento inquietante da incerteza e a descoberta de zonas do real onde a lógica não funcionava
mais puseram novamente em marcha a problemática da complexidade” (p. 77).
132
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 62. O autor denomina
“acervo ético da humanidade” o conjunto de todas as ações, tendências, ideologias, posturas, decisões,
experiências compartilhadas, normas internacionais, conquistas políticas, lições éticas, preceitos morais,
máximas religiosas, ditos célebres, hábitos populares, sabedorias consagradas, que, por seu valor e sua
singularidade, servem de referência e espelho para as demais gerações. Contratando com esse acervo, está o
conjunto de nódoas, desencontros, ações delituosas, tempestades morais, opressões culturais, guerras fratricidas,
desordens e desmandos, desatinos e incongruências, lamentáveis exemplos morais, reprováveis comportamentos
políticos, questionáveis valores éticos, que também compõe momentos históricos da humanidade, mas de caráter
subterrâneo.
133
As características epistemológicas básicas da revolução científica bem demonstram a pertinência dessa
afirmação; porém, não sem antes esclarecer que a epistemologia é uma das palavras mais importantes na ciência,
58
Diante de tamanho potencial transformador da ciência, a sociedade não pode ser
excluída das considerações bioéticas, pois se tratam de questões que ultrapassam o individual,
entrando na dimensão social, envolvendo decisões de caráter ético que afetam toda a
sociedade atual e futura, pois “lo nuevo no es sólo por eso mejor, siendo el denominado
progreso sobre todo un valor semántico, con la creciente duda de si éste sirve para salvarnos o
para destruirnos: si es la cima más avanzada del bienestar o de la decadencia humana”.
134
As considerações anteriores não significam qualquer atitude negativa para com a
ciência, e sim uma atitude positiva com vistas a algo mais importante: o ser humano e seu
em razão da reflexão sobre os fundamentos dos modelos científicos vigentes, seus métodos, hipóteses, teorias.
Toda área tem fundamentos epistemológicos, de onde partem as orientações de pesquisa, do objeto de estudo,
dos modelos de validação do conhecimento considerado verdadeiro e científico. Primeiramente, a instituição do
método como fundamental: apenas o que passa pela determinação formal e material de determinado método
(chamado científico) poderá ser validado. O reducionismo, a partir do método, é a ênfase na abordagem de
elementos isolados, fragmentados, analíticos, compartimentados. Então, temos a fragmentação do saber e das
disciplinas até hoje presenciada. Tal fragmentação e o papel diretivo do método geram a perda da dimensão da
complexidade e da interdependência de fatores, ou seja, a visão sistêmica e sintética, que a visão imperante é
analítica. A complexidade exigiria cuidados procedimentais redobrados e um princípio de precaução que
“atrasariam” o chamado progresso. Abre-se caminho para um materialismo científico, na consideração de
elementos de ordem físico-química. A ênfase foi quantificadora muito mais do que qualificadora ou
humanizadora na pesquisa. O papel enfático da matemática gera o apelo exaustivo ao calculismo. Ela será a
grande linguagem explicativa (mas não compreensiva) de mundo, já que este seria ordenado por leis mecânicas,
físico-materiais, químicas. Predomínio absolutista das ciências naturais e seu estatuto epistemológico-
metodológico sobre todo o saber. Ocorre a exigência de um pretenso rigor às ciências humanas, devendo estas
serem rebocadas cientificamente pelas ciências naturais. Passou-se então ao reforço do processo de secularização
(exclusão gradual do poder religioso e do papel da espiritualidade) e a conseqüente expulsão do elemento
sagrado da vida. Junto disso, o desencantamento do mundo, pela perda da dimensão simbólica, mítica, tradições
culturais. Iniciou-se a clara concepção do saber como poder (Bacon). Um poder científico que separa saber e
ética, e poder se liga ao empobrecimento de um ego cogito ligado a um ego conquiro (eu conquisto, venço).
Surge o mecanicismo como grande explicadora do real (metáfora do homem e do corpo como uma máquina). O
universo compõe-se de compostos particulares engenhados, tal como engrenagens. O futurismo tecnológico
deixa para trás, como sem valor para o saber, a tradição, tudo o que foi conquistado como saber não metódico e
não considerado científico. Isto gera a perda da dimensão orgânica e viva da natureza, incluindo o homem e seu
corpo. É como se a natureza e o corpo não operassem com vitalidade ecossistêmica, processual, interdependente,
não tendo uma sabedoria própria, mas precisasse o tempo inteiro ser corrigida, sanada, limpa, assistida,
combatida no mais das vezes. Isso gera a perda da dimensão psicossomática, especialmente na medicina e nas
ciências em geral. O cartesianismo não sabe lidar com dimensões psicológicas e existenciais. Por fim, em suma,
a objetificação das relações homem-natureza e então homem-homem, pautadas na relação de dominação Sujeito-
Objeto. Por conseguinte, a dicotomização (pensamento-matéria, corpo-alma, razão-emoção, eu-outro) é
acentuada. Não se trata somente de produzir objetos, ou no sentido de separação da natureza, mas o
estabelecimento de padrões e paradigmas que moldam as relações instrumentais, a ponto de que homem e
natureza devam ser constantemente modificados e “melhorados”. Nessa base se assentou o determinismo
científico, como explicação totalitária de tudo o que é investigado; sinônimo de cientificismo: aqui estão as bases
para a Revolução Industrial. Cai-se, pois, numa abordagem mecanicista que retira a ambigüidade, o mistério e a
complexidade das realidades ou dos seres vivos. O que significa também dizer da perda da visão holística do
todo, da unidade e da participação da consciência no mundo, o que serviu de respaldo ao positivismo, não apenas
no sentido de Augusto Comte, mas como visão geral de dominação do mundo como fatos objetivos em evolução,
a serem inventariados e à disposição da manipulação objetificadora. Para melhor entender esse esboço das
características da abordagem do saber no espírito da revolução científica, vide PELIZZOLI, Marcelo (Org.).
Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007.
134
HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería Genética y Derechos Humanos: legislación y ética ante el reto
de los avancesbiotecnológicos. Barcelona: Icaria Antrazyt, 2000, p. 128. “O novo não é apenas por isso melhor,
sendo o denominado progresso sobretudo um valor semântico, com a crescente vida se ele serve para nos
salvar ou nos destruir: se é o bem-estar superior mais avançado ou a decadência humana” (Tradução nossa).
59
patrimônio genético. Segundo Fukuyama, é preciso questionar: “o que queremos proteger
contra quaisquer avanços futuros na biotecnologia? Queremos proteger toda a extensão de
nossas naturezas complexas contra as tentativas de modificação por parte do próprio
homem”.
135
Deve existir um limite além do qual a ciência não possa ultrapassar em respeito à
ética, pois uma ciência que não presta serviço à humanidade por estar desvinculada dos
valores éticos é uma falsa ciência. Não neutralidade ética, na medida em que a tecnologia
se ocupa da ação humana sobre coisas e pessoas, isto é, “a tecnologia garante poder sobre
coisas e pessoas. É ilusório reivindicar a neutralidade da pesquisa científica e das suas
aplicações tecnológicas porque tais recursos, em sendo recursos humanos, são sempre
expressão de uma intencionalidade”.
136
Certamente que a ciência precisa de liberdade, pois ciência sem liberdade não existe,
mas esta retórica, apesar de muito eloqüente e de ter a sua porção de verdade, também
apresenta uma faceta de extrema periculosidade: mito da ciência neutra é muito conveniente
àqueles que a manipulam, e que, com ela, manipulam os outros.
137
Conforme Souza, essa
questão parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico, ao fim da famosa querela do
positivismo, onde se evidencia com clareza que não ciência nem cientista sem interesses
muito além dos meros interesses científicos; interesses que, se não são claros, podem ser
dissecados a ponto de exporem o seu núcleo de claridade.
138
Como referiu Morin, “o combate pela verdade progride de modo negativo, através da
eliminação das falsas crenças, das falsas idéias e dos erros. [...] A ciência é constantemente
135
FUKUYAMA, Francis. Nosso futuro pós-humano: conseqüências da revolução da biotecnologia.
Tradução de Maria Luíza X. de A. de Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 2003, p. 179.
136
SILVA, Reinaldo Pereira. Biodireito: o novo direito da vida. In: WOLKER, Antônio Carlos e LEITE, José
Rubens Morato (Orgs.). Os Novos Direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
307.
137
O processo da investigação científica não é neutro, pois o chamado conhecimento puro, enquanto fim
investigativo, não aparece completo como Minerva, que já nasceu adulta e armada, mas é o resultado do
emprego de determinados meios preferidos a outros tantos meios. Na verdade, tanto a seleção dos problemas,
que inicia uma investigação, quanto a avaliação de seus resultados, que a coroa, podem estar sujeitas a pressões
comerciais e políticas. A tecnociência tem fortes bases ideológicas, já que está fundada sobre um modo de pensar
a razão instrumental que não é neutro ao valor ético. Ao contrário, tem seus próprios valores: eficácia,
utilidade, domínio; seus próprios pressupostos filosóficos: materialismo, empirismo positivista, evplucionismo; e
suas próprias atitudes frente à vida: hedonismo, economicismo, secularismo (Vide SILVA, Reinaldo Pereira.
Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São
Paulo: LTr, 2002, p. 169).
138
SOUZA, Ricardo Timm de. Bases filosóficas atuais da Bioética e seu conceito fundamental. In: PELIZZOLI,
Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis:
Vozes, 2007, p. 115-116. O autor faz uma comparação aparentemente exagerada, mas digna de constar: “a
ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica, é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala
repleta de arte e cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que ali se encontra. Essa
é uma das dimensões do problema, que pode levar á transformação da ciência em uma espécie de braço
intelectual armado das lógicas de poder hegemônico” (p.115).
60
submergida, inibida, embebida, bloqueada e abafada por efeito de manipulações, de prática,
de poder, por interesses sociais, etc”.
139
Nesse sentido, ele cita o papel positivo do negativo à
luz da teoria hegeliana: a ciência progride por refutação de erros, na medida em que o
progresso da ciência está no fato de os erros serem eliminados. Assim, nunca haveria a certeza
de possuir a verdade, já que a ciência estaria marcada pela falibilidade.
Guerreiro Ramos e Frijol Capra entenderam que a ciência é uma atividade que exige,
sobretudo, equilíbrio entre razão e intuição, e por isso, o paradigma social emergente
140
exige
a reformulação dos valores que contextualizam a ciência.
141
Portanto, pode-se chegar a um
senso comum diante do que foi exposto: a construção da ética necessita estar em contínuo
diálogo com a ciência, a tecnologia e a política, tendo no modo de ser do cuidado uma atitude
básica em que todo ser humano deve se pautar.
142
E como defendeu Bittar, o fundamental de todo sistema ético é que não seja excluída a
possibilidade de outras éticas, a partir de uma tolerância ética que permita que se um sistema
ético existe, conviva com outros, sem excluí-los. Para ser garantida o que o autor denominou
de “ética do plural”, é preciso impedir a formação de extremos e a exclusão de outras éticas
por sistemas éticos contextualmente predominantes, de forma que
o essencial de toda ética, para que sobreviva como tal e não se transforme em puro
arbítrio axiológico, é que garanta e defenda o desenvolvimento de outras
alternativas éticas, desde que estas também sejam éticas distanciadas do arbítrio
139
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 57. Para o autor, “a objetividade científica não exclui a mente humana,
o sujeito individual, a cultura, a sociedade: ela os mobiliza. E a objetividade se fundamenta na mobilização
ininterrupta da mente humana, de seus poderes construtivos, de fermentos socioculturais e de fermentos
históricos. [...] A história das ciências, como a de todas as idéias humanas, é uma história de sonhos
irresponsáveis, de teimosias e de erros. Porém, a ciência é uma das raras atividades humanas, talvez a única, na
qual os erros são sistematicamente assinalados e, com o tempo, constantemente corrigidos”.
140
Na expressão de Boaventura, tal paradigma remete à transição epistemológica de um conhecimento prudente
para um conhecimento decente, a partir da gestão reconstrutiva dos défices e dos excessos da modernidade
confiada à ciência moderna e ao direito moderno. Assim como em outros períodos de transição, advoga o retorno
às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples, mas que depois de feitas, são capazes de trazer
uma nova luz à nossa perplexidade. Perplexidade que, segundo o autor, decorre do fato de não sabermos o que
haverá, de fato, a ganhar. Para ele, é preciso perguntar pelo papel do conhecimento científico acumulado no
enriquecimento ou no empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, pelo contributo positivo ou negativo da
ciência para a nossa felicidade (SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum: a ciência, o
direito e a política na transição paradigmática. Vol. 1. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. São Paulo: Cortez, 2007, p. 55-61).
141
BOEIRA, Sérgio Luís. Ecologia Política: Guerreiro Ramos e Fritjof Capra, p. 01-20. Disponível em
www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16887.pdf. Acesso em 20/11/2007. Como para Capra todas as áreas da ciência
moderna hoje desembocam na visão ecológica do mundo, é preciso haver a preocupação de que também as
novas tecnologias frutos dos avanços científicos tenham tal concepção sistêmica, no sentido de que é preciso
analisar a natureza dos sistemas e a interrrelação entre suas partes, assim como a interrrelação entre eles em
diferentes espaços.
142
JUNGES, José Roque. Ética Ambiental. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2004.
61
axiológico. O fato de postular pela adoção de seus preceitos éticos não faz de
determinada ética um movimento arbitrário, o que torna determinada doutrina ética
arbitrária é o fato de prever como programa próprio de realizações a exclusão de
outras éticas, até a sua total predominância sobre os espíritos e as consciências.
143
Partindo dessa consciência ética, é necessário entender que os avanços na área da
ciência e da tecnologia precisam “promover uma cidadania ativa e uma democracia de alta
intensidade, que não podem prescindir do envolvimento ativo com a ciência, o conhecimento
e a tecnologia”,
144
pois a produção científica tem um profundo sentido social. Por esta razão, é
preciso chegar a um consenso sobre o uso da produção científica, o que se alcança pelo
diálogo entre os cientistas e a sociedade. Este diálogo não visa a colocar limites à ciência, mas
decidir sobre o uso de um produto científico.
A ciência não pode desprezar a pluralidade ética existente, mesmo porque, se não
fossem a diversidade, as diferenças, as divergências, estaria-se garantindo um futuro não-
criativo, homogêneo e indiferente, de forma que a ética deve experimentar a tolerância pela
diversidade.
145
Não se pode aceitar que somente por se tratar de uma realidade técnico-
científica, haja uma espécie de selo de verdade, até mesmo porque
la finalidad natural, primaria y principal de la medicina y del progreso técnico-
científico es la defensa y protección de la vida, no su manipulación o eliminación.
No se trata de desconfianza ni de oposición al desarrollo técnico-científico, sino de
hacer que esté al servicio del hombre. No todo aquello que es tecnicamente posible
es moralmente admisible. El moderno desarrollo científico y sus aplicaciones
tecnológicas sin duda han mejorado las condiciones de vida del hombre pero, al
mismo tiempo, han contribuido a cambiar nuestro modo de vivir, nuestro modo de
pensar, y es este cambio en el modo de pensar que puede ser llamado cientificismo
o tecnicismo. Esta mentalidad cienificista sostiene que no existe otra realidad que la
verdad de orden científico-técnico. Es verdadero y real lo aquello que se puede
medir y verificar empíricamente. Toda la realidad del mundo y del hombre es
explicable mediante la ciencia. [...] No se trata de negar el valor de la ciencia. El
problema decisivo es afirmar que existe solamente aquello que es demostrable por
la ciência; tomar un aspecto, verdadero y real, como el todo, pretender que todo lo
que es técnicamente posible lo sea también desde el punto de vista moral; olvidar
que la ciencia y la cnica son para el hombre y están al servicio del hombre y no
viceversa.
146
143
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 44. Para o autor, “todo
sistema ético tem de administrar diferenças e igualdades, e prever em sua preceptística um conjunto de
determinações que satisfaçam à exigência mínima da tolerância para com os demais sistemas éticos” (p. 45).
144
SANTOS, Boa Ventura de Souza (Org.). Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos
conhecimentos rivais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, volume 4, p. 81.
145
BITTAR, Eduardo. C. B. Curso de Ética Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 46.
146
LUCAS, Ramón Lucas. Antropologia y problemas bioéticos. Traducción de Salvador Antuñano y Cristina
Miguel. Madrid: Estudios y Ensaios BAC, 2001, p. 7-8. “A finalidade natural, primária e principal da medicina e
62
Diante disso tudo, não é de se espantar que o mundo jurídico, de uma hora para outra,
tenha sido solicitado, tanto pelos pesquisadores quanto pelos profissionais, como meio de
garantir mais segurança e maior legalidade à audácia das novas práticas tecnocientíficas. O
desenvolvimento ilimitado das ciências biomédicas desencadeou reações em cadeia, para as
quais o homem não estava preparado, nem material nem espiritualmente falando. Nesse
sentido, o Direito socorreu-se da Bioética, que representa um novo meio de tomada de decisão
dos riscos éticos vinculados à utilização crescente de tecnologias que atingem diretamente a
vida e a saúde humanas.
147
Introduzindo a incerteza na cabeceira e na foz das decisões e das ões, o
desenvolvimento das tecnologias modernas aniquilou os consensos antigos, os ideais e as
regras que animavam as condutas coletivas e individuais, as práticas profissionais. O ser
humano pessoa ou coletividade se tornou objeto de manipulação e passou a ser projeto e
não mais somente sujeito de direito. O desenvolvimento das novas tecnologias fragilizou e de
certa forma tornou caducas todas as antropologias que sempre serviram de parâmetro às
preliminares necessárias da ética e do Direito.
148
Então, não se pode atribuir à ciência um caráter inquestionável, sob pena de fustigar o
que é ou deveria ser - seu verdadeiro papel na sociedade: “a ciência existe para descobrir a
natureza e promover a vida, a saúde e a liberdade das pessoas e da sociedade; ou melhor, a
do progresso técnico-científico é a defesa e a proteção da vida, não sua manipulação ou eliminação. Não se trata
de desconfiança nem de oposição ao desenvolvimento tecnológico e científico, mas fazer com que este sirva ao
homem. Nem tudo o que é tecnicamente possível é moralmente aceitável. As aplicações modernas científicas e
tecnológicas, sem dúvida, melhoraram a vida do homem, mas ao mesmo tempo, ajudaram a mudar nosso modo
de viver, nosso modo de pensar, e é essa mudança no modo de pensar que ode ser chamada de cientificismo ou
tecnicismo. Esta mentalidade cientificista sustenta que não existe uma outra realidade que a verdade de ordem
técnico-científica. É verdadeiro r real apenas o que pode ser medido e verificada empiricamente. Toda a
realidade do mundo e do homem é explicável através da ciência. [...] Não se trata de negar o valor da ciência. O
problema crucial é afirmar que existe aquilo que é demonstrável pela ciência, tomar um aspecto, verdadeiro e
real, como o todo, pretender que tudo o que é tecnicamente possível p seja também do ponto de vista moral,
esquecendo que a ciência e a técnica são para o homem e estão ao serviço do homem e não vice-versa”
(Tradução nossa).
O autor conclui a obra afirmando que “el actual desarrollo científico y sus aplicaciones tecnológicas han
contribuido a mejorar la calidad de la vida humana y sin duda deben continuar haciéndolo. Todo esto pertenece
al derecho de la ciencia, a condición de que el servicio a la vida humana no se transforme en manipulación o
destruicción de ésta” (p. 163). “O atual desenvolvimento científico e suas implicações tecnológicas contribuíram
para melhorar a qualidade da vida humana e sem dúvida deve continuar fazendo-o. Tudo isso pertence ao direito
à ciência, na condição de que o s e serviço à vida humana não se transforme em sua manipulação ou destruição”
(Tradução nossa).
147
LEITE, Eduardo de Oliveira. Da Bioética ao Biodireito: reflexões sobre a necessidade e emergência de uma
legislação. In: SILVA, Reinaldo Pereira (Org.). Direitos Humanos como educação para a Justiça. São Paulo:
LTr, 1998, p. 108.
148
Idem, p. 110.
63
tecnociência tem sentido quando está a serviço da vida, do ser humano, do meio-ambiente”.
149
É por isso que a ética o Direito, se necessário, precisam impor limites à pesquisa científica na
busca pelo diálogo e da convivência da ciência com a cultura e com os valores dos diferentes
grupos humanos, para que não ocorram os escamoteamentos previstos por Ribeiro.
150
Os progressos nas ciências da vida, assim como todo progresso científico, têm uma
incidência jurídica, e o Direito não os pode ignorar e deve integrá-los. Foi dessa forma que o
surgimento da fotografia favoreceu a emergência e o reconhecimento do direito à imagem; a
evolução do automóvel gerou e impôs o seguro obrigatório e através dele uma nova
concepção de responsabilidade civil, independente da noção de culpa. Igualmente os
progressos da Medicina e da Biologia questionam incessantemente o Direito.
151
Assim, resta evidenciada a estreita relação entre a Bioética e o Direito no
gerenciamento das limitações dos conhecimentos científicos, entre outros temas que lhe são
comuns:
O Direito, até então determinador de regras fundadas no consenso, passa a ser
gerador de propostas úteis aos debates democráticos. E a Bioética, renunciando à
segurança das normas antigas, passa a indicar o caminho da interrogação, da
elucidação das finalidades e do estabelecimento de referências provisórias para a
ação. E é claro que isso gera importantes repercussões no mundo jurídico. O
Direito, até então pautado pelo normativo e pelo legal, passa a exercer uma função
mais indicadora de condutas justas; bem como procedimentos apropriados para que
as decisões e as opções tenham todas as chances de resolver os problemas
suscitados pelas novas tecnologias. A Bioética se torna, assim, uma poderosa aliada
do mundo jurídico, na medida em que problematizando as questões, abre
precisamente pistas para a ação em situações não previstas e, quase sempre,
radicalmente imprevisíveis.
152
149
PEGORARO, Olinto A. Fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa; MARTINS, André;
PEGORARO, Olinto A. (Org.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 60.
Segundo o autor, a Ciência não é um poder único e absoluto nem o pesquisador é um solipcista, distante do que
ocorre no mundo, mas ele é, exatamente por ser cientista, um ser-social apoiado pelas políticas públicas e pelos
recursos financeiros para produzir resultados científicos para o bem-estar da sociedade. A liberdade do
pesquisador não se fecha e não termina no laboratório, mas se articula com a liberdade dos cidadãos.
150
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Ética na Ciência: aspectos sociológicos. In: PALÁCIOS, Marisa; MARTINS,
André; PEGORARO Olinto A. (Orgs.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da bioética. Petrópolis: Vozes, 2001,
p. 72. Segundo a autora, o elogio desmedido à Ciência, estimulado pela mídia, escamoteia: a) o envolvimento da
pesquisa científica na produção do lucro e em estratégias geo-políticas; b) a fácil mutação do saber em poder,
forte estimuladora do iluminismo burocrático; c) o envolvimento da Ciência na dominação de culturas resistentes
ou opostas aos códigos racionalistas; d) os riscos representados pela transformação do racionalismo em
racionalização, quando, ainda segundo Edgar Morin, a razão se perde, tornando-se desrazão.
151
LEITE, Eduardo de Oliveira. Da Bioética ao Biodireito: reflexões sobre a necessidade e emergência de uma
legislação. In: SILVA, Reinaldo Pereira (Org.). Direitos Humanos como educação para a Justiça. São Paulo:
LTr, 1998, p. 113.
152
Id. Ibid, p. 111.
64
Trevijano mencionou que em 1967, o Prêmio Nobel Marshall W. Nuremberg escreveu
estas recomendações:
El hombre puede ser capaz de reprogramar suas própias células con información
sintética mucho antes que sea capaz de estimar adecuadamente las consecuencias
que tales alteraciones producirán a largo plazo, mucho antes de que sea capaz de
formular fines y mucho antes de que pueda resolver los problemas éticos y morales
que surgirán. Cuando el hombre sea capaz de dar instrucciones a sus própias células
deberá contenerse de hacerlo hasta que tenga la suficiente clarividéncia para hacer
uso de este conocimiento para beneficio y provecho de la humanidad.
153
Portanto, é preciso pensar os valores éticos, que a ciência não pode se pensar, com
os métodos de que dispõe hoje em dia, e mesmo levando em consideração uma técnica
utilizada com fins legítimos, toda ação humana, a partir do momento em que é iniciada,
escapa das mãos de seu iniciador e entra em jogo das interações múltiplas próprias da
sociedade, que a desviam de seu objetivo e às vezes lhe são um sentido oposto ao que era
visado, de forma que “a consciência da inconsciência não nos a consciência, mas pode nos
preparar para ela”.
154
É frente àquela realidade e a essa necessidade que o Direito se depara
nos dias de hoje, talvez de forma ímpar na história do ser humano.
1.6 Conclusões parciais
Os diferentes posicionamentos acerca dos temas que cercam a Bioética variam
segundo os tempos e os lugares, as religiões e as sociedades. É inegável que em uma
sociedade multicultural e pluralista, encontram-se muitas ideologias, modos de pensar sobre
diferentes pontos da Bioética, próprios do lugar, do momento e das circunstâncias, pois “não
existe um caminho ético feito, ele precisa ser sempre construído segundo a avaliação das
153
ETCHEVERRIA, Manuel Trevijano. Que es la bioética? Salamanca/España. Ediciones Sígueme, S.A., 1998,
p. 38. “O homem pode ser capaz de reprogramar suas próprias células com informação sintética muito antes que
seja capaz de estimar adequadamente as conseqüências que tais alterações produzirão a largo prazo, muito antes
de que seja capaz de formular fins e muito antes de que possa resolver os problemas éticos e morais que surgirão.
Quando o homem for capaz de dar instruções a suas próprias células deverá se conter de fazê-lo aque tenha a
suficiente clareza para fazer uso desse conhecimento para benefício e proveito da humanidade” (Tradução
nossa).
154
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 128.
65
situações cotidianas, tecnocientíficas e socioculturais”.
155
Afinal, trata-se de uma realidade
que veio para ficar:
O legado do século XX, apesar das guerras e dos crimes, foi o século das
descobertas científicas, e deixou à humanidade um legado repleto de dilemas ético-
jurídicos em razão de fatos como o avanço irreversível da engenharia genética. Tal
legado não mais constitui mera ficção ou exercício de imaginação à moda de
Aldous Huxley, o que faz com que tenha um potencial perigoso para que o mundo
deságüe numa terrível e enorme confusão, e ao mesmo tempo, traga esperanças à
humanidade, sem olvidar que deixa a dignidade da vida humana à mercê do manejo
eticamente correto ou incorreto das práticas biocientíficas.
156
Referiu Sidekum que o tema da ética sempre tem uma fascinação apaixonante, pois é
uma situação de consciência encontrar o meio-termo como coerência para definir as tomadas
de decisões existenciais diante do problema da liberdade individual, do livre-arbítrio, bem
como do envolvimento da postura na moral da ambigüidade, que sempre se deve levar em
consideração:
A ética que se constrói a partir de muitos pontos de vista não deixa de traduzir a
dimensão de seu caráter de relatividade. Por outro lado, a experiência ética é uma
experiência da angústia existencial profunda, quando o ser humano se depara com
suas limitações existenciais. Esta é a tomada da angústia existencial, quando a
tomada da decisão é primordialmente uma experiência difícil e dolorosa e sempre
vulnerável.
157
Neste panorama, a Bioética tem a função de pautar as ações do ser humano frente aos
novos desafios tecnológicos, bem como evitar abusos cometidos em nome do avanço da
ciência, os quais podem ferir a dignidade da pessoa humana. E é principalmente quando tais
avanços fazem parte de um cientificismo exacerbado, de uma ciência descomprometida com
os valores éticos, que surge com maior razão de ser a preocupação do Direito em tratar essa
situação num âmbito de interdisciplinaridade.
Por meio dela, pode-se chegar a consensos mínimos e provisórios, mas suficientes
para resolver problemas atuais que afligem as comunidades humanas, sendo que
155
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 37.
156
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 719.
157
SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2003, p. 12
66
a Bioética, entendida como o lugar comum à Ciência e à simbologia, pode ser um
novo marco para a renovação dos estudos éticos, conferindo-lhes mais concretude,
mais mordência sobre a realidade da vida, sem abstrair das profundas raízes
filosóficas, religiosas, políticas e jurídicas. Numa palavra, a Bioética pode
representar um excelente ponto de encontro entre teorias e práticas cotidianas.
158
inúmeras razões para o apelo ao uso responsável da tecnologia, mas se pode
afirmar que é porque a organização da vida, o sentido da existência e o modo de solucionar os
problemas que surgem na relação com outras pessoas e com a natureza é de responsabilidade
do ser humano, inexoravelmente, que tudo isso diz respeito às conseqüências futuras das
ações individuais e coletivas.
159
E também porque, principalmente na seara da biotecnologia,
nunca é demais lembrar que conhecer algo não significa apenas saber suas características
naturais e técnicas, mas apreender também suas implicações fáticas, morais e éticas.
160
A evolução da Bioética processou-se em função da necessidade de se pensar o avanço
científico, levando-se em conta como a intervenção do homem na natureza exige a construção
de uma ética filosófica que responda às ameaças reais ou imaginadas à humanidade,
conseqüência de novas descobertas e tecnologias, e relações sociais e econômicas, até então
desconhecidas pelo ser humano.
161
Nesse sentido, são pertinentes as preocupações no que
tange, inclusive, ao poder biopolítico:
O controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera apenas pela consciência ou
ideologia, mas começa no corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que,
antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica.
A medicina é uma estratégia biopolítica.
162
158
PEGORARO, Olinto A. Fundamentos filosóficos da Bioética. In: PALÁCIOS, Marisa; MARTINS, André;
PEGORARO, Olinto A. (Orgs.). Ética, Ciência e Saúde: desafios da Bioética. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 48.
159
Nesse sentido, interessante a idéia-chave de que “quando assumimos a nossa condição humana, com
necessidades e liberdade, limites e potencialidades e buscamos realizar o nosso ser, tornamo-nos responsáveis
pelas nossas atitudes. Isto é, somos responsáveis não somente pelas intenções das nossas ações, mas também
pelas suas conseqüências” (SILVA, Josué Cândido da. SUNG, Jung Mo. Conversando sobre Ética e
Sociedade. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 17).
160
CUNHA, Gustavo Henrique de Brito Albuquerque. Manipulação genética e reprodução humana. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 97.
161
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 73.
162
FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 1998, p. 22.
67
Levando em consideração a crítica principialista, é de se dizer que a questão ética,
assim, adquiriu identidade pública, deixando de ser considerada apenas uma questão de
consciência a ser resolvida na esfera privada ou particular, de foro individual ou
exclusivamente íntimo. Hoje, ela cresce de importância no que diz respeito à análise das
responsabilidades. Por isso, esse trabalho vem ao encontro da necessidade da Bioética nessa
sua fase de maturidade - de buscar novos referenciais teóricos, próximos das realidades onde
ela atua, de modo a inscrevê-la no contexto de uma reflexão aberta sobre o mundo político e
social e sobre a preocupação com o bem-estar das gerações futuras.
Por isso, a Bioética enquanto disciplina advoga a superação das barreiras que
demarcam as fronteiras das diversas disciplinas por ela englobadas, bem como a promoção do
intercâmbio que se traduz em distinguir e não separar, associar e interligar e não reduzir ou
isolar, complexificar e não simplificar, por meio da interação entre as partes e suas relações
com o todo; daí a sua indissociável ligação com a questão da complexidade. A complexidade
não pode ser vista como uma resposta acabada, tendo surgido da necessidade de um novo
paradigma capaz de romper os limites do determinismo e da simplificação e sua recusa à
aceitação da obscuridade, incorporando o acaso, a probabilidade e a incerteza como
parâmetros necessários à compreensão da realidade na sua totalidade concreta, de modo a
integrar a natureza singular e evolutiva do mundo à sua natureza acidental e factual.
163
O tema da complexidade é visto por um número crescente de estudiosos como um
caminho possível para que se cumpra a difícil tarefa de religar os saberes fragmentados há três
séculos com a criação da ciência moderna. Para Morin, foi neste período que o positivismo
promoveu uma radical ruptura entre os diferentes saberes, por meio do princípio da disjunção,
condenando as ciências humanas à inconsciência extrafísica e as naturais à inconsciência de
sua realidade social. Como boa parte da obra do autor sugere um corte com este ciclo, ma
busca de informações multidimensionais que possibilitem a construção de uma visão global
do conhecimento, que se perdeu em razão de sua compartimentalização, seu conceito de
complexidade vem ao encontro do que se busca nos debates atuais sobre Bioética.
Uma sociedade com vistas ao aperfeiçoamento humano, que é, de certo modo, aquilo
que toda sociedade juridicamente organizada pretende, deve se fundar no compromisso ético,
pois “é próprio da religião, qualquer delas, da moral e do Direito isso que parece algo tão
difícil: ensejar ao ser humano usufruir da felicidade. É o que está posto, entre nós, de certa
163
GARRAFA, Volnei. Multi-inter-transdisciplinaridade, complexidade e totalidade concreta em Bioética. In:
GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais da Bioética: enfoque
latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006,
p. 78-79.
68
forma, no artigo 1º, III, da Constituição Federal”.
164
Por isso, “los problemas éticos son vitales
para la humanidad. Se trata de decidir qué hacemos con nuestra responsabilidad, qué hacemos
con nuestro saber. Esto es tanto como preguntarnos qué hacemos con nosotros mismos, con
nuestros semejantes y con el mundo que habitamos”.
165
Inegavelmente, a aceleração do
processo científico e técnico nos últimos anos, além do aumento do pluralismo nas sociedades
contemporâneas, tem trazido novas questões e indagações, até mesmo causando a impressão
de que “a sorte da humanidade está na mão de aprendiz de feiticeiro”.
166
Portanto, é possível dizer que os impasses gerados pela tecnociência representam uma
lacuna para o Direito, e como “a lacuna é condição de possibilidade de completude do
sistema”,
167
o Direito é chamado a superar o descompasso entre o avanço da ciência e a
regulamentação jurídica, que cuida do presente sem deixar de lado o futuro, fixando os limites
da licitude. Essa resposta do Direito implica ter condições de reunir essas diferentes
realidades sob diferentes pontos de vista, a partir do reconhecimento de que o sistema
normativo é aberto e incompleto, sujeito à realidade fática com a qual o Direito
inexoravelmente se entrelaça.
Assim, entendidas as relações entre a Bioética e o Direito e diante do desafio ao uso
responsável da tecnologia, a necessidade de compreender o Princípio Responsabilidade de
Hans Jonas, tanto seu conceito quanto a sua retomada pelos estudiosos nos dias de hoje, para
que seja possível entender a importância da sua aplicação frente à realidade contemporânea.
164
SUANNES, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p. 67. Esse compromisso ético pode ser percebido, por exemplo, nos artigos 10 e 11 da Declaração dos
Direitos sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO, que estabeleceram o seguinte:
Artigo 10: nenhuma pesquisa ou suas aplicações relacionadas ao genoma humano, particularmente nos campos
da biologia, da genética e da medicina, deve prevalecer sobre o respeito aos direitos humanos, às liberdades
fundamentais e à dignidade humana dos indivíduos ou, quando for aplicável, de grupos humanos.
Artigo 11: Práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem de seres humanos, não devem ser
permitidas. Estados e organizações internacionais competentes são chamados a cooperar na identificação de tais
práticas e a tomar, em nível nacional ou internacional, as medidas necessárias para assegurar o respeito aos
princípios estabelecidos na presente Declaração.
165
ETCHEVERRIA, Manuel Trevijano. Que es la bioética? Salamanca/Espana. Ediciones Sígueme, S.A., 1998,
p. 108.
166
DURAND, Guy. Natureza, princípios, objetivos. Tradução de Porphírio Figueira de Aguar Netto. São
Paulo: Paulus, 1995, p. 6. “Os problemas éticos são vitais para a humanidade. Trata-se de decidir o que fazemos
com nossa responsabilidade, que fazemos com nosso saber. Isso é como nos interrogarmos sobre o que fazemos
com nós mesmos, com nossos semelhantes e com o mundo que vivemos” (Tradução nossa).
167
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 28.
69
2 O PRINCÍPIO VIDA/RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS
São os tempos de grande perigo em que aparecem os filósofos.
Então, quando a roda rola com sempre mais rapidez, eles e a arte
tomam o lugar dos mitos em extinção. Mas projetam-se muito à
frente, pois só muito devagar a atenção dos contemporâneos para
eles se volta.
F. Nietzsche, A vontade de poder
No presente capítulo, após toda uma contextualização e conceituação que nos permite
entender o Princípio Responsabilidade nos dias de hoje, é preciso que nos detenhamos
pormenorizadamente na obra “O Princípio Responsabilidade”; porém, não sem antes
mencionar alguns importantes aspectos da vida e da obra de Hans Jonas, e também não sem
antes contextualizá-lo no todo da sua obra, principalmente a partir de “O Princípio Vida”.
Com isso, será possível estabelecer as relações existentes entre as idéias-chave do pensamento
jonasiano expressas nestas que são duas das suas principais obras.
De origem judia, Jonas nasceu na cidade de Mönchengladback, na Alemanha, em
1903, e morreu em Nova York, em 1993. Recém-formado, freqüentou as aulas de Martin
Heidegger na Universidade de Freiburg, em 1921, transferindo-se juntamente com seu mestre
para a Universidade de Marburg, em 1924. Jonas viveu um dos mais perturbados momentos
da história mundial, o nazismo, quando então se questionou por que alguns homens
inteligentes se subtraem a sua responsabilidade perante a sociedade. Isso porque, na época, a
maioria das pessoas duvidaram da realidade dos campos de concentração, e mesmo muitos
que sabiam, mantiveram um distanciamento inexplicável da situação. Jonas emigrou para a
Inglaterra e a Palestina, deu aula em Ottawa, Jerusalém, Nova York e Munique, e finalmente
se estabeleceu nos Estados Unidos.
168
168
De início, uma consideração importante a ser feita diz respeito ao passado de Hans Jonas, no sentido de como
influenciou sua vida e obra: “Desde la juventud fue partidario del sionismo y al salir de Alemania va a Israel,
donde se integra a una brigada judaica de autodefensa, permaneciendo como oficial de artillería hasta 1949. En
70
Feitas essas primeiras considerações, parte-se primeiramente da obra “O Princípio
Vida” porque, a partir do seu estudo, é possível perceber que o real entendimento da obra “O
Princípio Responsabilidade”, que lhe sucedeu, passa pelo entendimento da sua antecedente,
uma vez que se trata das idéias embrionárias que levaram à busca de uma ética para a
civilização tecnológica que se adequasse à técnica moderna.
Hans Jonas, considerado um dos maiores pensadores do culo XX, destacou-se
principalmente por seus estudos na área da ética aplicada ao contexto da civilização
tecnológica, o que está mais ligado ao último período da sua obra.
169
Toda sua reflexão e
la Segunda Guerra Mundial se alista en el ejército británico que lucha contra el nazismo. De esa época es la
siguiente declaración: Cinco años como soldado del ejército británico en la guerra contra Hitler (...) Alejado de
los libros y de todo lo que hace parte de la investigación (...) Es que estaba comprometido algo más esencial. El
estado apocalíptico de las cosas, la caída amenazadora del mundo (...) la proximidad de la muerte (...) todo eso
fue terreno suficiente para propiciar una nueva reflexión sobre los fundamentos de nuestro ser y para volver a
ver los principios por los cuales se guían nuestros pensamientos sobre aquéllos. Así volviendo a mis orígenes,
fui lanzado de nuevo a la misión sica del filósofo y de su acción nata, que es pensar. Fue entonces la
proximidad con la realidad de la muerte la que le hizo crecer la preocupación por la vida y ésa fue la meta que
persiguió con gran determinación. Era necesario volver a pensar la ética” (SIQUEIRA, José Eduardo de. El
princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001, vol.7, n.2, p.277-285. Disponível
em:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X2001000200009&lng=es&nrm=iso>.
Acesso em 05/01/2009). “Desde a juventude foi um defensor do sionismo e ao sair da Alemanha vai para Israel,
onde se integra a uma brigada judaica de autodefesa, permanecendo um oficial de artilharia até 1949. Na II
Guerra Mundial, alistou-se no exército britânico na luta contra os nazistas. É dessa época a seguinte declaração:
Cinco anos como soldado do exército britânico na guerra contra Hitler (...) Longe dos livros e tudo o que é parte
da investigação (...) é que estava comprometido algo mais essencial. O estado apocalíptico das coisas, a ameaça
de colapso do mundo (...) proximidade da morte (...) tudo isso foi suficiente para estimular novas reflexões sobre
os fundamentos do nosso ser e voltar a ver os princípios que são guiados pelos nossos pensamentos a respeito
deles. Então, de volta às minhas origens, fui novamente lançado à missão básica do filósofo e de sua ação, que é
pensar. Foi essa proximidade com a realidade da morte que fez com que crescesse a preocupação com a vida e
esse foi o objetivo que perseguiu com grande determinação. Era necessário repensar a ética” (Tradução nossa).
169
O primeiro período da sua obra é o da filosofia da religião, em que pesquisou sobre agnose, o segundo
período é o da filosofia da natureza, marcada pela biologia da vida, quando então estuda o fenômeno, o
metabolismo e as atividades vitais do ser humano, enquanto o terceiro período é o da filosofia da nova ética, em
que faz uma reflexão ética diante do progresso tecnológico. É neste período da obra jonasiana que o presente
trabalho se detém, embora, posteriormente, a fortuna crítica trazida sobre Hans Jonas no subitem 2.4 traga uma
idéia panorâmica da sua obra. Para melhores esclarecimentos, vide SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio
de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001, vol.7, no.2, p.277-285.
Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X2001000200009&lng=es&nr
m=iso>. Acesso em 05/01/2009. Nesse artigo, fala sobre esses três momentos da formação filosófica de Hans
Jonas: “El primero comenzó en 1921 cuando, recién graduado, asiste a las clases de um maestro hasta entonces
poco conocido, Martin Heidegger, en la Universidad de Freiburg. Según Jonas, él fue durante mucho tiempo su
mentor intelectual. Cuando Heidegger se traslada a la Universidad de Marburg, Jonas lo acompaña. Allí conoce a
Rudolf Bultmann, bajo cuya orientación elabora una tesis sobre la gnosis en el cristianismo primitivo, presentada
en 1931. Como resultado de ese trabajo inicial, en 1934, publica el célebre Gnosis und spätantiker Geist,
considerado por él mismo como el primer gran momento de su trayectoria como filósofo. Ese mismo año Jonas
se ve obligado a abandonar Alemania, debido a la ascensión del nazismo al poder. El segundo gran momento en
la vida intelectual de Jonas ocurre en 1966, con la publicación de Phenomenon of Life, Toward a Philosophical
Biology, obra en la que establece los parámetros para una filosofía de la biología. Abre un nuevo camino de
reflexión sobre la precariedad de la vida y muestra el gran alcance filosófico de ese abordaje de la biología, pues
vuelve a colocar la vida en una posición privilegiada y lejos de los extremos del idealismo irreal y del limitado
materialismo. No es difícil reconocer la relación de esa etapa con el tercer y último momento de su vida
intelectual. La búsqueda de una nueva ética desde las bases. Una ética de la responsabilidad, se vuelve la meta de
Jonas. En 1979 publica Das Prinzip Verantwortung- Versuchi einer Ethic für die Tecnologische Zivilisation“.
71
preocupação com a sobrevivência física e espiritual da humanidade expostas em “O Princípio
Vida” estão claramente aplicadas à obra “O Princípio Responsabilidade”, pois as suas idéias
principais estão indissociavelmente atreladas. No momento em que Hans Jonas percebeu que
o novo agir humano possibilitado pela técnica não se enquadrava nos cânones da ética
tradicional, também percebeu a vida como um experimento envolvendo apostas e riscos cada
vez maiores, e que o destino do ser humano para a liberdade pode levar tanto à catástrofe
quanto ao êxito.
Daí o porquê de trazermos à baila as principais idéias de “O Princípio Vida” antes de
verdadeiramente adentrar na obra “O Princípio Responsabilidade”. Afirmou Jonas, no
prefácio do livro, que, originalmente, os capítulos de “O Princípio Vida” apareceram como
pesquisas separadas entre 1950 e 1965. Daí a publicação, em 1966, de The Phenomenon of
Life, Toward a Philosophical Biology, somente depois traduzido para o alemão, na qual abriu
caminho para as futuras reflexões que levaram à obra Das Prinzip Verantwortung Versuch
einer Ethic für die Technologische Zivilización, que tomou um caminho inverso, pois foi
publicada em 1979 na língua materna do autor o alemão - e traduzida para o inglês somente
em 1984.
Como se vê, não é possível realmente entender O Princípio Responsabilidade” sem
estabelecer relações com as idéias embrionárias contidas em “O Princípio Vida”, escritos na
transição do segundo para o terceiro período da obra jonasiana, as quais serviram a Hans
Jonas como substrato para o desenvolvimento do seu pensamento. Uma das mais importantes
vozes filosóficas do final do século XX, sua pesquisa convergiu para a análise de como
proteger a vida humana em seu sentido mais abrangente físico e espiritual - da tecnologia
dentro de uma ética que não a tradicional: a ética da responsabilidade, que veio complementar
e coroar seu estudo.
“O primeiro começou em 1921 quando, recém-graduado, assiste as aulas de um professor então pouco
conhecido, na Martin Heidegger, Universidade de Freiburg. Segundo Jonas, ele foi durante muito tempo o seu
mentor intelectual. Quando Heidegger mudou-se para a Universidade de Marburg, Jonas o acompanhou. ele
conheceu Rudolf Bultmann, sob cuja orientação produziu uma tese sobre o gnosticismo no cristianismo
primitivo, apresentada em 1931. Na sequência deste trabalho inicial, em 1934, publica o famoso Gnosis und
spätantiker Geist, considerado por ele mesmo como o primeiro destaque de sua carreira como filósofo. Esse
mesmo ano, Jonas é forçado a deixar a Alemanha devido à ascensão do nazismo ao poder. O segundo momento
importante na vida intelectual de Jonas ocorre em 1966 com a publicação do fenômeno da vida, para uma
biologia filosófica, uma obra em que estabelece os parâmetros para uma filosofia da biologia. Abre um novo
caminho de reflexão sobre a precariedade da vida e mostra o grande alcance filosófico dessa abordagem da
biologia, pois volta a colocar a vida em uma posição privilegiada e longe dos extremos do idealismo irreal e do
materialismo limitado. Não é difícil reconhecer a relação dessa fase com a terceira e última fase de sua vida
intelectual. A busca de uma nova ética dese suas bases. Uma ética da responsabilidade se torna a meta de Jonas.
Em 1979 publica Das Prinzip Verantwortung- Versuchi einer Ethic für die Tecnologische Zivilisation
(Tradução nossa).
72
Importante salientar que o objetivo não é exaurir a obra “O Princípio Vida”, mas sim
tão-somente destacar alguns pontos, o que, certamente, longe está de uma análise mais
acurada da mencionada obra, porém, o que não retira o seu brilhantismo. A razão de tal
esclarecimento é que, por não ser o foco de estudo, busca-se apenas estabelecer relações que
enriqueçam o entendimento de “O Princípio Responsabilidade” por via oblíqua.
Também se faz necessário trazer alguns posicionamentos acerca do Princípio
Responsabilidade de Hans Jonas, para que se verifique como ele vem sendo abordado e
entendido, bem como para que se possa perceber sua dimensão nos dias de hoje.
Resumidamente, pode-se partir da premissa em que Hans Jonas propõe a substituição do
antigo imperativo kantiano por um novo imperativo, sobre os quais trataremos
oportunamente, diante da insuficiência daquele em atender aos novos anseios da humanidade
nem às novidades trazidas pela ciência, que além das suas possibilidades promissoras, contém
também a possibilidade de mau uso.
2.1 O Princípio Vida
Hans Jonas desejava que o ser humano pudesse chegar a uma nova compreensão de
sua unicidade quando deixasse de considerar a si próprio um ser metafisicamente isolado,
partindo da afirmação de que mesmo em suas estruturas mais primitivas, o orgânico já
prefigura o espiritual, e que mesmo em suas dimensões mais elevadas, o espírito permanece
parte do orgânico, buscando demonstrar a validade e a inseparabilidade uma da outra. O
pensador que estivesse livre de dogmatismos não iria reprimir o testemunho da vida, antes ele
iria se deixar desafiar nos dias de hoje a submeter a uma análise o modelo convencional da
realidade, assumido da ciência, modelo este que talvez já estivesse começando a ser superado
por esta mesma ciência.
170
170
JONAS, Hans. O Princípio Vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Tradução de Carlos Almeida
Pereira. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 11-12. Cabe frisar que todas as referências a esta obra, ao longo deste
capítulo, dizem respeito a essa edição.
Nesse sentido, Hans Jonas trata sobre a compreensão do mundo orgânico, privada das visões que a
autopercepção humana lhe oferece, ao mesmo tempo em que deixa de ver a verdadeira linha divisória entre o
animal e o ser humano. Por sua vez, a biologia científica, cujas regras a mantêm presa aos fatos físicos
exteriores, é forçada a ignorar a dimensão da interioridade, de forma que é necessário derrubar, por um lado, as
barreiras antropocêntricas da filosofia idealista e existencialista, e por outro, as barreiras materialistas da
filosofia materialista das ciências naturais. Efetivamente, no mistério do corpo vivo as duas estão unidas. As
grandes contradições que o ser humano encontra em si mesmo liberdade e necessidade, autonomia e
dependência, o eu e o mundo, relações e isolamento, atividade criadora e condição mortal estão
73
O fato de a vida ser mortal constitui sua contradição básica, mas este fato é parte
inseparável de sua essência, sem que seja possível sequer imaginar-se que seja possível
suprimi-lo. Para Jonas, sua realidade, paradoxal e em constante contradição com a natureza
mecânica, é no fundo uma crise continuada. Entregue a si mesma e dependendo inteiramente
de seu próprio rendimento, mas para se tornar realidade dependendo de condições que não
estão em seu poder e que lhes podem ser negadas. Dependente, por isso, do favor ou desfavor
da realidade externa. Assim, “feita autônoma em relação à sua causalidade, e no entanto, a ela
submetida. Subtraída à identidade com a matéria, mas dela necessitada. Livre, mas
dependente. Isolada, mas necessariamente em contato. Buscando o contato, o qual no entanto
pode destruí-la. E por outro lado não menos ameaçada por sua falta”.
171
Hans Jonas promoveu um encontro entre a vida e o corpo no contexto da doutrina do
ser. Aliás, muito do pensamento jonasiano é devido aos ensinamentos do filósofo alemão
Martin Heidegger, de quem foi discípulo, o qual partiu da reflexão sobre a condição dada da
existência humana, o Dasein. Por isso, sua obra cujo principal livro é “O ser e o tempo”
(1927), costuma ser caracterizada como existencialista, pois Heidegger se ocupou com a
questão do próprio ser, do modo de ser humano. Por isso, antes de prosseguir com a obra “O
Princípio Vida”, num breve parêntesis, é interessante mencionar alguns tópicos principais do
pensamento de Heidegger, na medida em que Jonas o retoma em vários momentos da sua
obra ao tratar da questão do ser.
Embora entendesse que o ser é transcendente, pois está incluído em todas as coisas
sem se definir em nenhuma, para Heidegger, a existência é, em primeiro lugar, um ser-aí e um
ser-no-mundo, pois o ser humano é um problema para si e também uma possibilidade aberta,
de ser ou não-ser, de se alienar ou de se realizar, de criar ou de destruir possibilidades estas
que Jonas retomou para formular o Princípio Responsabilidade. Assim, Heidegger partiu de
uma realidade irrefutável a de que o ser humano existe, e não apenas existe como também
existe no mundo: na realidade, na subsistência, na consciência; com suas possibilidades,
germinalmente prefiguradas nas mais primitivas manifestações de vida, cada uma delas mantendo um precário
equilíbrio entre o ser e o não-ser.
171
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 15-16. Em risco, portanto, de ambos os lados, pelo poder e pela
fragilidade do mundo, e equilibrando-se no fio que separa um do outro. Sujeita a ser perturbada em seu processo,
que não pode falhar. Vulnerável em sua distribuição de funções organizadas, que como um todo possuem
eficiência. Sempre podendo ser atingida mortalmente em seu centro, em sua temporalidade podendo se encerrar
a cada momento: é assim que na matéria a forma viva leva sua subsistência: peculiar, paradoxal, lábil, insegura,
ameaçada, finita, profundamente irmanada com a morte.
74
escolhas, compreensões. Independentemente de sua vontade, está no mundo; precisa fazer e
assumir suas escolhas.
172
Ontologia é justamente essa busca do sentido do ser, essa busca do que caracteriza sua
estrutura, sua constituição, sua existência. Nesse contexto de existência e de possibilidade, é
possível assumir ou negar a existência. A ontologia fundamental de Heidegger consiste
justamente em investigar as estruturas fundamentais do ser-aí humano, como por exemplo,
nossa ligação prática com o mundo: estamos inseridos numa família, numa sociedade, numa
economia, numa língua, e tudo isso precisa ser considerado quando se trata do ser.
Para Heidegger, esse modo de ser, em razão de tantas possibilidades e preocupações -
como por exemplo, a de ser e de não ser, de que falava Shakespeare três séculos antes - é
possível afirmar que o ser humano vive a experiência da angústia, mas precisamente em razão
da sua condição de ser-no-mundo e de ser-para-a-morte, que veio do nada e para o nada
voltará. Entre tantas possibilidades, uma certeza inexorável: a da morte como limite absoluto
do ser humano, que nos conclama para a vida, para assumirmos a existência, bem como a
liberdade e a responsabilidade que dela fazem parte. O ser pode, por exemplo, se revelar ou se
encobrir, de revelar ou não seu próprio sentido, mas o ser nunca se deixa apreender e dizer
conceitualmente. Se buscar o ser-si-mesmo, alcança a autenticidade e um sentido à
existência do ser-aí.
Assim, entendeu Heidegger que a existência nunca é um objeto concluído, mas sim
uma construção baseada em possibilidades (ser-em), as quais são dadas numa determinada
historicidade e temporalidade. Num grande diálogo, o ser humano está ligado ao outro (ser-
com) e ao mundo material (ser-no-mundo), de forma que essas relações são constitutivas das
nossas vidas, pois o mundo e as pessoas têm uma existência concreta e contextualizada
historicamente e temporalmente. O próprio Hans Jonas retomou abertamente esses
ensinamentos de seu mestre:
Em Heidegger, em O ser e o tempo, o “ser-jogado”, como sabemos, é um caráter
fundamental da existência e de sua auto-experiência. [...] Heidegger desenvolve
uma “ontologia fundamental” de acordo com as maneiras como o ser-aí mantém
seu próprio ser, com isto constituindo os diferentes sentidos de ser em si. Estes
172
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São
Francisco, 2008. Difícil resumir em poucas palavras o que tão importante pensador legou à humanidade em
termos de reflexões filosóficas, o que por si daria uma dissertação. Suas idéias, seja para serem reafirmadas,
seja para serem contestadas, continuam vivas e influentes na atualidade, e muito têm a contribuir nessa constante
busca que o ser humano tem empreendido por saber se compreender, saber se conhecer, saber pensar e saber
viver. Mas certo é que, não obstante a brevidade, permitem perceber suas influências ao pensamento jonasiano,
que é a intenção à qual nos propusemos, apesar de todas as suas limitações, das quais temos consciência.
75
modos são explicitados em certas categorias que Heidegger prefere chamar de
existenciais. Diferentemente das categorias kantianas, elas articulam primariamente
não estruturas da objetividade, mas sim estruturas de mobilidade do tempo interior,
em que o eu se “temporaliza” como contínuo acontecer no comportar-se para com
alguma coisa. Por isso nos existenciais não podem deixar de se apresentar os três
horizontes do tempo passado, presente, futuro deixando-se, por assim dizer,
distribuir entre eles.
173
Com relação à essa dinâmica passado, presente e futuro evidenciada por Heidegger e
retomadas por Jonas, é revelador nos determos à forma como este último concebe aqueles
modos da existência:
A coluna sob o título “presente” permanece praticamente vazia pelo menos na
medida em que se consideram os modos da existência propriamente dita. Esta é
uma constatação ao extremo resumida. Na realidade fala-se muito sobre o presente
existencial, mas não como uma dimensão independente com direito próprio. Pois o
presente existencialmente “autêntico” é o presente da “situação”, que é constituída
inteiramente através da relação com o futuro e com o passado Ele refulge à luz da
decisão, quando o projeto do futuro regressa ao passado dado (ao ser-lançado),
neste dando origem ao presente que por sua vez é um produto dos outros dois
êxtases temporais, uma função de seu incessante dinamismo, e não uma dimensão
própria da permanência. [...] A facticidade, o haver-sido, o ser-lançado, a
necessidade, a culpa, são modos existenciais do passado; o estar-aí, o auto-
antecipar-se, a preocupação, o projeto, a resolução, o caminhar para a morte são
modos existenciais do futuro. Não resta nenhum presente onde a existência pudesse
demorar-se. Saltando do seu passado, a existência lança-se no projeto do seu futuro;
vê-se confrontada com seu limite extremo, a morte, e deste olhar para o nada ela
retorna à sua mera facticidade. Não existe nenhum presente onde ela pudesse
demorar-se apenas a crise entre o que foi e o que será, o instante aguçado sobre o
fio da navalha da decisão que se lança para a frente. Este dinamismo ofegante
exerceu enorme força de atração sobre o espírito contemporâneo.
174
Nesse sentido, interessante mencionar a afirmação feita por Stein, de que na medida
em que Heidegger diz que o ser humano é, ao mesmo tempo, os três elementos fundamentais:
é faticidade, já sempre presente junto das coisas, e é possibilidade, é futuro:
O ser humano tem as três dimensões do tempo: é passado, é presente e é futuro.
Mas não é senhor do futuro: ele bate contra a última possibilidade, que é a
impossibilidade de qualquer nova possibilidade. Mas ele já sempre é história,
cultura, é um fato que não domina. [...] A compreensão que o homem tem de si e do
ser é uma compreensão limitada, na medida em que ele não consegue dar conta do
passado e não consegue dar conta do futuro. Mas existe um ponto cego, que aparece
173
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 248.
174
Idem, p. 249-250.
76
quando nos damos conta de que compreender plenamente algo não é pleno, porque
lidamos com uma carga histórica que nos limita.
175
Por tudo o que foi brevemente sintetizado até aqui sobre as idéias de Heidegger
retomadas por Hans Jonas, acompanhado do que Jonas referiu sobre a forma como as utilizou
na construção do seu pensamento, é possível perceber que elas se fazem evidentemente
presentes em vários momentos, tanto em “O Princípio Vida” quanto em “O Princípio
Responsabilidade”. Neste último, é possível afirmar que a forma como Jonas concebe a idéia
de presente e de futuro revelam marcas do pensamento de Heidegger, pois quando trouxe suas
considerações sobre o presente e preocupações com o futuro, Jonas o fez nesse contexto de
possibilidades e das relações dinâmicas entre passado, presente e futuro, como mais adiante
será possível verificar, por exemplo, quando disse que as ações do hoje podem trazer
conseqüências incalculáveis no futuro.
Retomando “O Princípio Vida”, Hans Jonas mencionou o problema do idealismo, ao
considerar o corpo entre os objetos externos, ao compreendê-lo como objeto da experiência
em lugar de fonte de experiência, como um dado para o sujeito em vez de como realidade
ativo-passiva do próprio sujeito. Assim, para Jonas, impossibilitou-se a apreensão de uma real
conexão das coisas segundo sua própria natureza para além de uma regra de ordens externas
de seqüências, seja na imagem de causalidade mecânica, seja na da causalidade teleológica.
176
É nesse sentido que Hans Jonas criticou o idealismo de Kant, sua pretensão de substituir a
dinâmica interior pela exterior, a origem ilegítima pela legítima: “ambas pressupondo que não
existe nenhum conhecimento direto de força, transitividade e ligação dinâmica das coisas”.
177
Uma suposição fundamental da metafísica moderna é que, sob o título de res extensa,
a realidade exterior foi totalmente desvinculada do mundo interior do pensamento, passando
depois a constituir um campo auto-suficiente para a aplicação universal da análise mecânica,
quando então a própria idéia de objeto teve que passar por uma transformação através do
expurgo dualista.
178
Após se referir ao dualismo cartesiano, Jonas se ocupou em explicar as
vantagens e desvantagens desse dualismo anteriormente mencionado para a ciência natural:
175
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 62-63.
176
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 33.
177
Idem, p. 38.
178
Idem, p. 45.
77
A vantagem científica do dualismo consistia em que o novo ideal matemático do
conhecimento natural estaria melhor servido, ou estaria bem servido, com uma
nítida separação entre os dois reinos que encarregasse a ciência natural de ocupar-
se com uma res extensa pura, livre de todos os caracteres ontológicos não
matemáticos. [...] O isolamento da res cogitans constituiu o método mais eficaz
para assegurar a completa separação ontológica entre a realidade exterior e tudo
quanto não possuía extensão nem podia ser medido. Assim, essa divisão ofereceu a
justificação metafísica para o materialismo mecanicista incondicional da ciência
natural moderna.
179
Dessa forma, Hans Jonas concluiu a respeito do cartesianismo que este levou a
especulação sobre a natureza da vida a um beco sem saída: quanto mais compreensível, de
acordo com os princípios da mecânica, tornou-se na res extensa a relação entre estrutura e
funcionamento, “tanto mais perdeu-se na bifurcação a conexão entre estrutura-mais-função e
sentimento ou experiência (modos de ser da res cogitans), e com isso o próprio fato da vida se
torna incompreensível no exato momento em que a explicação de sua realização corporal
aparece como garantia”.
180
A essa situação Hans Jonas denominou polaridade entre si mesmo e mundo, entre
dentro e fora, que completa o que existe entre forma e matéria seria a situação fundamental
em que se encontra colocada potencialmente liberdade, com toda a sua ousadia e
precariedade. Para Jonas, é esse conceito um conceito-guia capaz de orientar a tarefa de
interpretar a vida, sendo um traço ontológico fundamental da vida em si, pois a vida está
voltada para o mundo numa relação de dependência e poder.
181
A partir dessa idéia de liberdade, Jonas começou a analisar o homem enquanto um ser
que produz imagens, após comentar que o conceito de linguagem é problemático para a
filosofia contemporânea, de sorte que, para a intenção teórica que propôs, o mais apropriado
seria o conceito de imagem, pois “maior esperança de um acordo preliminar existe sobre o
que é uma imagem do que sobre o que é uma palavra”.
182
Isso porque um ser que produz
imagens é um ser que ou se dedica à produção de coisas sem utilidade, ou que tem outros
objetivos além dos biológicos, ou que pode perseguir esses últimos de uma outra maneira, que
é diferente do emprego instrumental das coisas, como expôs Jonas a respeito do dualismo
cartesiano.
179
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 64-65.
180
Idem, p. 69.
181
Idem, p. 106.
182
Idem, p. 182. Referiu o autor que “o reino da palavra não é o lugar exclusivo e necessário do fenômeno da
verdade. A representação imagética, encontrando-se mais próxima do mundo da percepção do que o simbolismo
da linguagem, é um exercício fundamental do empenho humano pela verdade no que se refere ao mundo visível”
(p. 204).
78
Ao analisar o que é uma imagem, Hans Jonas apontou em primeiro lugar a
propriedade da semelhança, pois uma imagem seria uma coisa que mostrasse uma semelhança
direta com outra coisa, uma semelhança que possa ser reconhecida sempre que se deseje. A
semelhança seria produzida intencionalmente: a coisa que a mostra seria, no tocante a esta
propriedade, um artefato. Duas coisas que naturalmente se igualam não fazem com que uma
seja a imagem da outra. O artificial, e com ele o proposital da semelhança em uma das duas
coisas semelhantes deve ser tão facilmente reconhecível como a própria semelhança. A
semelhança não é completa, de forma que o caráter incompleto da semelhança tem que ser
perceptível para que possa ser qualificada como mera semelhança.
183
Com essas observações, passou a observar da dimensão da incompletude para a da
diferença positiva. Para ele, à diferença na semelhança, baseada na omissão e na seleção,
acrescentava-se a alteração dos próprios traços selecionados como um recurso para aumentar
a semelhança simbólica, entendendo que quase não existem limites para o alcance da
imaginação de que dispõe a capacidade de compreensão simbólica. Transferida desta
capacidade para além das condições originais da imagem, a função representativa poderia
cada vez mais basear-se sobre o mero reconhecimento da intenção e dispensar a semelhança
real.
184
Se forem estas as propriedades da imagem, há propriedades requeridas para o fazer e o
apreender das imagens. As duas coisas não diferem na condição básica de sua possibilidade.
Fazer uma imagem pressupõe a capacidade de perceber algo como uma imagem; e perceber
alguma coisa como imagem, e não apenas como objeto, também significa ter condições de
fazê-lo e de perceber a semelhança.
185
Hans Jonas procurou relacionar a apresentação em
imagem com a verdade, sob a forma da fidelidade da representação. Com isto, o fazer
imagens fica incluído na classe mais ampla do empenho humano pela verdade. A experiência
da verdade tem um caráter ao mesmo tempo enfático e antitético, isto é, a experiência da
verdade se destaca contra um fundo de erro e falsidade este próprio fundo sendo uma
experiência que só se realiza no ato de ser deixado de lado pelo seu contrário.
183
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 183-184. Assim, uma duplicação de todas as qualidades do original
resultaria em uma duplicação da própria coisa, isto é, em um novo exemplar da mesma coisa. Esta incompletude
é decidida preliminarmente com a intenção da imagem como tal. A incompletude assume graus de liberdade
diferentes. A incompletude da semelhança da imagem significa a escolha de traços representativos, ou
característicos, ou importantes do objeto, isto é, de sua aparência para o sentido a que a imagem se dirige. O
limitar-se a este único sentido como meio de percepção da representação é ele próprio a primeira escolha que
atua na produção da imagem.
184
Idem, p. 185.
185
Idem, p. 189.
79
Em resumo, a experiência da verdade, como simultâneo desmascaramento da
inverdade, inclui em si mesma um elemento de negação: a capacidade para a verdade
pressupõe a capacidade para a negação, e só um ser que seja capaz de manter a negatividade é
capaz de dizer não. E como a capacidade da negação é uma parte da liberdade, ou mesmo um
elemento que a define, a liberdade é um pré-requisito da verdade, e a própria experiência da
verdade representa o atestado e o exercício de uma certa espécie de liberdade.
186
A negação, que por primeiro torna-se atuante na experiência da verdade, possui mais
caráter defensivo que ofensivo: ela deseja aparar um golpe do mundo, não forçar a reserva do
mundo – responde a uma modificação, não à mera retenção, a uma ocasional mentira e não ao
constante esconder-se das coisas. Nesse sentido, o acontecer da verdade tem primeiramente o
caráter do des-enganar-se (de deixar de enganar a mim mesmo), e só muito mais tarde
também o de des-cobrir ou des-ocultar (das coisas escondidas). Seria a ilusão, e não a
intransparência, que é a primeira pedra de tropeço; quimera, não ignorância, o primeiro objeto
do não na descoberta. Enganar é um ato determinado e positivo.
187
Nessas elucubrações sobre a experiência da verdade, Hans Jonas ressaltou em uma
pequena mas elucidativa nota de rodapé que ele não está tratando da experiência do
conhecimento, que é um fenômeno mais amplo, uma vez que nem todo conhecimento tem a
ver com a verdade, embora toda verdade seja contida no conhecimento. Adquirir o
conhecimento, aprender como se fazem as coisas, não é o mesmo que descobrir o que as
coisas são; por isso trouxe a possibilidade do erro como a percepção mais elevada, quando
então a semelhança/distinção da imagem, como por exemplo na relação entre pretenso e
autêntico, impõe a experiência da falsidade.
188
Nesse sentido, referiu que
Percepção significa admitir o conteúdo dos sentidos em um todo da experiência,
onde ele apresenta propriedades cognitivas, como conhecido, comum,
indeterminado, enigmático, incomum. Mesmo a experiência do simplesmente novo,
sem precedentes, que deixa aquele que percebe inteiramente confuso sobre o que
ele tem à sua frente, é possível sobre o pano de fundo do costumeiro, onde sua
percepção sente-se em casa. Assim, a percepção em si, tal como se constitui em
cada caso isolado sobre o pano de fundo da experiência passada, aponta ao mesmo
tempo para a frente, para o futuro ser-válido ou ou não-ser-válido: a percepção
seguinte para confirmá-la, ampliá-la, corrigi-la ou eliminá-la.
189
186
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 196.
187
Idem, p. 199.
188
Idem, p. 200-201.
189
Idem, p. 202.
80
Assim, pode-se dizer que há uma estreita relação entre essa idéia de percepção e ética,
tanto que considerou Hans que a filosofia do espírito inclui a ética, a qual passa a fazer parte
da filosofia da natureza.
190
Por isso afirmou que
surge o ser humano em seu pleno sentido quando ele, que desenhou o touro e o
próprio caçador, volta-se para ter sob a sua mira a imagem não-representável de sua
própria conduta e estado de alma. O ser humano configura, experimenta e julga seu
próprio ser interior e seu agir exterior segundo uma imagem daquilo que convém ao
ser humano. Querendo ou não, ele “vive” a idéia do ser humano: em concordância
ou em conflito, em submissão ou rebeldia, no reconhecimento ou na negação, com
boa ou com consciência. A imagem do ser humano jamais o abandona. Assim
como aprende dos outros a ver e discutir as coisas, também aprende deles a ver a si
próprio e a expressar o que aí vê. Mas ao aprender a dizer isto ao aprender a dizer
‘eu’ - ele potencialmente descobre também sua própria identidade. [...] O resultado
das reflexões da experiência humana são a matéria-prima para a constante síntese e
integração em uma imagem total. Esse trabalho prossegue enquanto o ser humano
continua vivo como ser humano. “Passei a ser um problema para mim mesmo”:
religião, ética e metafísica são tentativas jamais acabadas de enfrentar este
problema no horizonte de uma interpretação do universo do ser, de conseguir para
ele uma resposta. Mas a busca da essência do ser humano tem que ser encaminhada
através dos encontros do ser humano com o ser. Estes encontros não apenas fazem
aparecer a essência do ser humano, mas na verdade eles a constroem, porque neles
ela se decide em cada momento.
191
Esta análise ontológica feita por Jonas possui em si uma implicação tecnológica, a
qual só é possível graças ao aspecto manipulativo inerente à idéia teórica de modelo da
ciência moderna como tal, pois quando se mostra como as coisas são compostas por seus
elementos, fundamentalmente se está mostrando também que elas podem ser compostas
destes elementos:
Compor, ao contrário de criar, é essencialmente o reunir tais matérias existentes de
antemão, ou o realocar partes preexistentes. De modo semelhante, o conhecimento
científico é essencialmente uma análise da distribuição, isto é, das condições sob as
quais os elementos estão relacionados entre si, não estando, por conseguinte,
onerado com a tarefa de compreender a essência mesma desses elementos. O tema
que a ciência pode e precisa perseguir não é o que eles são em si, mas sim como se
comportam sob estas condições específicas, isto é, nestas relações de combinação.
Esta restrição é básica para o conceito moderno de conhecimento, pois, ao contrário
das naturezas substanciais, as ordenações de condições podem ser reconstruídas, ou
mesmo construídas livremente, em modelos mentais, desta forma permitindo uma
190
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 271. Para Jonas, “também esta afirmação entra em choque com a
moderna. Não está o ser humano sozinho? Não surge de s mesmos todo apelo de nosso ser moral, atingindo-
nos, a partir da pretensa essência das coisas, apenas como um eco de nossa própria voz? Não recebeu ela de nós
todo o sentido que para nós possa ter? Pois apenas o ser humano, assim nos foi dito vários séculos, é a fonte
de toda e qualquer exigência ou dever a que ele possa considerar-se obrigado, e imputá-lo a uma natureza
privada de espírito não passa de uma liberdade antropomórfica”.
191
Idem, p. 208-209.
81
compreensão. E também elas podem de fato ser repetidas ou modificadas em uma
imitação humana da natureza, isto é, na técnica, desta maneira permitindo uma
manipulação. As duas coisas, o compreender quanto o compor, m que ver com
relações e não com essências. De fato, esta espécie de compreensão é ela própria
uma espécie de produção imaginária ou de imitação de seus objetos, e esta é a
verdadeira razão que permite a aplicação tecnológica da ciência natural moderna.
192
É possível perceber com clareza que desde “O Princípio Vida”, Jonas criticava o
ideal utópico de Bacon, explicando qual era o sentido da célebre máxima de Bacon de que a
natureza só pode ser dominada quando se lhe obedece, pelos métodos da técnica moderna:
De entender o substrato o ser humano é tão incapaz quanto de criá-lo. Mas de criá-
lo até mesmo a natureza é incapaz, que, uma vez criada em seus componentes
substanciais, daí por diante ela não pode “criar” senão manipulando estes
componentes, isto é, reagrupando as relações. Condições e relações são o veículo
para as produções não criativas da natureza criada, da mesma forma que para o
conhecimento da natureza pelo ser humano criado, e também para a imitação
técnica da maneira de produção da natureza. As maneiras quase técnicas de
produção da natureza ou a natureza como produtora e produto dela própria são
seu único aspecto que pode ser conhecido e imitado, enquanto as essências em si
não são elas próprias reconhecíveis, porque não podem ser produzidas.
193
Todos esses aspectos da técnica trazidos em “O Princípio Vida” serão retomados e
aprofundados em “O Princípio Responsabilidade”, bem como a crítica a Bacon, pois Hans
Jonas se preocupou mais com a essência do que com a produção, para a qual conhecer uma
coisa significa saber como ela é feita ou como ela pode ser feita, e portanto estar em
condições de repetir, ou e variar ou de antecipar o processo de produção, expresso na
afirmação de Bacon de que saber é poder, quando então o moderno conhecimento da
natureza, diferentemente do antigo, é um “saber como” e não um “saber quê”.
194
Por isso
Jonas, ainda sobre a aplicação da técnica, referiu que
192
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 224.
193
Idem, p. 225.
194
Idem, p. 226. Entretanto, para Jonas, isto não é ainda o todo do aspecto tecnológico próprio da teoria
científica. Teoria é um fato interior e um agir interior. Mas sua relação com o agir exterior, além de meio para o
fim em aplicação extracientífica, pode ser também o contrário: isto é, tanto o agir pode ser usado a serviço da
teoria como a teoria estar a serviço do agir. Alguma relação de complementaridade entre estes dois aspectos é
sugerida desde o início: é perfeitamente possível quepossa vir a ser um meio para a prática a teoria que tenha
a prática entre seus próprios meios. Que este é o caso, fica claro quando consideramos o papel do experimento
no processo científico (p. 226).
82
A aplicação técnica, por sua vez, passa a ser uma fonte de conhecimentos teóricos,
que não poderiam ter sido alcançados em escala laboratorial – abstraindo-se do fato
de que ela fornece os instrumentos para um trabalho laboratorial mais eficiente, que
por sua vez fornece também novos acréscimos à ciência, e assim por diante, em um
ciclo contínuo. Desta forma, a fusão de teoria e prática torna-se inseparável, numa
medida que não é expressa pelas meras expressões “ciência pura” e “ciência
aplicada”. Provocar mudanças na natureza como um meio para conhecê-la melhor e
como resultado deste conhecimento, são duas coisas completamente interligadas. O
próprio processo da aquisição do conhecimento, através da manipulação, leva as
coisas a serem conhecidas, e esta origem, por si mesma, faz com que os resultados
teóricos sejam adequados a uma aplicação.
195
Diante disso, Jonas expressou sua preocupação ontológica com o que denominou ser
uma pergunta em aberto: qual o verdadeiro fim humano, a verdade ou a utilidade? Conclui
que ambas andam juntas, e que a resposta é determinada pela imagem do ser humano, de que
nós não temos certeza, de forma que “é preciso assumir a pergunta pelos fins, que deixa em
aberto a radical indefinição do conceito de felicidade, onde a ciência é entregue à aquisição
dos meios para a felicidade. A advertência a que a ciência seja aproveitada no interesse do ser
humano, no interesse de seu bem maior, permanece vazia enquanto não for conhecido qual é o
maior bem do ser humano”.
196
Tendo diante dos olhos a ameaça de uma catástrofe, como a temos hoje em mais de
um aspecto, nós podemos nos sentir dispensados de investigar os fins, já que o
evitar a catástrofe é sem dúvida nenhuma um primeiro alvo, que provisoriamente
suspende qualquer discussão sobre um fim último. Talvez nós estejamos
condenados a conviver por muito tempo com situações de tão urgente necessidade
por nós mesmos criadas, e tudo o que podemos fazer talvez seja apenas buscar
estacas de apoio e antídotos de curto prazo, e não o planejamento para uma vida
boa. Mas se confiarmos sempre totalmente na mecânica auto-reguladora da
interação ciência-técnica, ou se a ela nos entregarmos, nós teremos perdido a
batalha em torno do ser humano. Pois quando sua aplicação é regida unicamente
por sua lógica própria, na realidade a ciência não deixa em aberto o sentido de
felicidade: ela prejulgou a resposta, apesar de sua própria isenção dos valores. O
automatismo do seu uso na medida em que ele vai além da resposta à situação de
necessidade que criou estabeleceu em princípio qual é o conteúdo da
felicidade: deixar-se levar ao emprego das coisas. No campo de forças destes dois
pólos, o da necessidade e o do deixar-se levar, o da inventividade e o do
hedonismo, que é formado pelo poder sempre crescente sobre as coisas, a direção
de todos os esforços, e com isso a pergunta pelo bem, corre o risco de ser decidida
de antemão. Mas não podemos deixar que esta pergunta seja decidida na estrada da
omissão.
197
195
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 227.
196
Idem, p. 230.
197
Idem, p. 231.
83
Para Jonas, à luz incerta do fim de nossa peregrinação, nós podemos distinguir uma
dupla responsabilidade do ser humano. Uma delas na medida da causalidade cósmica,
segundo a qual o efeito de sua ação se estende a um futuro mais próximo ou mais remoto,
onde termina por extinguir-se. E ao mesmo tempo uma outra, na medida de sua incidência na
esfera eterna, onde ela jamais se perde. Uma, na nossa condição limitada de nossa previsão e
na complexidade das coisas do mundo, é em larga medida um joguete do acaso e da sorte; a
outra tem a segurança de normas que se podem conhecer. Mas é um aspecto peculiar e único
da atual situação do ser humano, por ela mesmo provocada, que os dois aspectos da
responsabilidade moral, o aspecto metafísico do momento e o aspecto causal do efeito futuro,
confluem um com o outro, já que “de repente a ameaça do futuro total ergue a um plano mais
elevado o aspecto da proteção meramente física, com isto transformando a prudência
preventiva a seu serviço no dever fundamental mais urgente”.
198
Como se pôde perceber, Jonas novamente fez uma significativa afirmação, cujos
meandros teve a oportunidade de desenvolver com mais profundidade em “O Princípio
Responsabilidade”. Aliás, na seguinte passagem restou clarividente sua intenção de, em razão
dos contornos tomados pelo conhecimento científico associado à técnica, propor uma nova
ética para os novos tempos:
O “momento” da decisão não é mais apenas o da própria ação isolada e de curto
prazo, mas acima de tudo o “momento” do gênero humano em seu agir social
global. Para a novidade desta situação, que atribui ao conhecimento das
conseqüências, e com ele ao conhecimento científico, um papel nunca antes
conhecido, nós não fomos preparados por nenhuma doutrina dos deveres, e aqui se
encontra uma tarefa ainda a ser atacada da teoria ética (grifo nosso).
199
Também o epílogo traz considerações importantes, tanto para serem consideradas
isoladamente quanto no contexto de “O Princípio Responsabilidade”: a filosofia da vida
abrange a filosofia do organismo e a filosofia do espírito, sendo que esta última inclui a ética,
a qual, pela continuidade do espírito com o organismo e do organismo com a natureza, passa a
ser uma parte da filosofia da natureza.
200
A afirmação de que qualquer coisa como um dever
pode partir do próprio ser humano, é mais do que uma constatação descritiva; é parte de
198
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 269-270.
199
Idem, p. 270.
200
Id. Ibid, p. 271.
84
um ponto de vista metafísico, que nunca prestou completas contas de si mesmo. Exigir esta
prestação de contas significa reapresentar a questão ontológica do ser global no mundo:
A resposta final na ontologia sempre poderia ser a base para um dever a partir do eu
do ser humano, ao qual ela foi relegada, e para transferi-la de volta à natureza do
conjunto do ser. A ontologia como fundamento da ética foi o ponto de vista original
da filosofia. A separação das duas, que é a separação entre o reino objetivo e o
subjetivo, é o destino moderno. Sua re-união, caso seja possível, poderá ser
alcançada a partir do lado objetivo; quer dizer: por uma revisão da idéia da
natureza. E é a natureza no vir-a-ser, mais do que a natureza no permanecer, que
oferece tal perspectiva.
201
Para Jonas, uma ética fundamentada na amplitude do ser, ou seja, que considere as
categorias de que estudou Heidegger anteriormente mencionadas - e não apenas na
singularidade ou na peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no universo
das coisas. Ela terá essa importância no universo das coisas. Ela terá essa importância se o ser
humano a tiver; e se ele a tem, nós teremos que aprendê-lo a partir de uma interpretação da
realidade como um todo, ou pelo menos a partir de uma interpretação da vida como um todo.
Uma ética que não mais se baseie sobre a autoridade divina tem que fundamentar-se em um
princípio que possa ser descoberto na natureza das coisas, para que não seja vítima do
subjetivismo ou de outras formas de relativismo. Portanto, entendeu que enquanto a
investigação ontológica extra-humana possa nos levar para a teoria universal do ser e da vida,
ela não terá se afastado da ética, mas terá ido atrás de sua fundamentação possível.
202
Por isso
mesmo sob a pressão das necessidades que nos ameaçam, nós precisamos ter uma
visão que as ultrapasse, para que possamos enfrentá-las com algo mais do que
apenas seus próprios pontos de vista. seu próprio diagnóstico (quando não se
trata de um extremo perigo) pressupõe pelo menos uma idéia daquilo que não seria
uma situação de necessidade, assim como a doença pressupõe uma idéia de saúde.
E a antevisão do êxito, inerente a toda luta contra o perigo, a miséria e a injustiça,
tem que olhar de frente a pergunta sobre a vida que convém ao ser humano, depois
de as virtudes da necessidade coragem, compaixão e justiça haverem realizado
sua obra.
203
201
JONAS, Hans. O Princípio Vida, p. 272.
202
Idem, p. 272.
203
Idem, p. 231.
85
Aqui, ao que tudo indica, Hans Jonas sinalou que, embora nessa obra tenha se
dedicado a traçar os parâmetros de uma filosofia da biologia, sua nova tarefa é justamente ir
atrás da fundamentação possível dessa ética, que não pode ser separada da vida humana.
Dedicou-se a esse estudo por longos anos, chegando, então, ao Princípio Responsabilidade:
uma ética para a civilização tecnológica.
É possível perceber, portanto, a partir dos aspectos pinçados de “O Princípio Vida”,
que tudo o que foi esposado é perfeitamente miscível com a teoria da responsabilidade, que se
passará a abordar a partir de agora com maior ênfase, porém, não sem antes tecer alguns
esclarecimentos pertinentes. Primeiramente, não se desconhece os perigos de transpor uma
teoria para um contexto diferente daquele em que ela foi originada; a segunda consideração é
que não se desconhece a responsabilidade da proposta a ser trabalhada, e tal consciência
permeou todo o desenvolvimento do trabalho.
Daí o cuidado que tivemos em demonstrar a atualidade da teoria jonasiana
hodiernamente, mesmo diante das diferenças histórico-culturais entre os diferentes momentos
de sua origem e recepção do modo como foi percebida no presente trabalho. Trata-se de um
grande desafio,
204
mas certamente a apreensão desses diferentes contextos encaminham a uma
possível interpretação: a de que a cnica e o progresso científico-tecnológico não são
imanentes, e ensejam o dever de uma responsabilidade nos termos propostos por Hans Jonas.
Necessidade esta, aliás, ainda maior do que no contexto da época em que foi escrita,
na medida em que a ciência evoluiu ainda mais, e nunca foi tão pertinente a necessidade de
uma ética que abarque a civilização tecnológica, para cujo ponto de partida não se pode
regressar, pois se trata de um caminho sem volta, daí a preocupação com o que se pode evitar.
Tomadas tais precauções e entendidas as transformações que ocorrem nesse processo,
percebe-se que cada texto traz marcas do seu locus originário, do qual não pode ser
desvinculado, pois toda teoria, como toda produção intelectual ou cultural, é um fenômeno
histórico, e como tal deve ser contextualizada e filtrada criticamente.
Porém, nada disso impede que, analisada em um novo contexto, a teoria ganhe um
novo alcance, sem reduzir a dimensão de suas formulações, mesmo porque uma teoria nunca
está terminada, não se restringe às suas próprias fronteiras. As circunstâncias atuais permitem
204
Tomamos emprestadas as palavras de Sidekum na compreensão do tamanho deste desafio: “a dificuldade para
a realização de um trabalho sobre o ético é sempre bem grande, não por falta de bibliografia, mas, por um lado,
por tratar-se do aspecto da ausência da honestidade em poder descobrir qual é, de fato, o sentido do poder, da
autoridade econômica, da autoridade política e social; por outro lado, por tratar-se da experiência do que vai
além do absurdo, da própria dimensão da consciência histórica de nada mais podermos delinear em relação ao
projeto histórico da humanidade” (SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Porto
Alegre: Editora Unisinos, 2002, p. 19).
86
a consideração das especificidades e diferenças da teoria jonasiana, portanto, de modo
contextualizado, com um itinerário sem qualquer pretensão de cunho universalizante. A
atualidade do pensamento jonasiano pode ser percebida, por exemplo, na “Carta da Terra”,
aprovada no dia 14 de março de 2000 na UNESCO.
205
É nesta proposta que continuará a ser
desenvolvido o presente capítulo.
Assim, passamos à análise mais pormenorizada do Princípio Responsabilidade
jonasiano, para estudar em que termos é concebida a responsabilidade de que vai tratar, e
também os termos em que criticou o ideal utópico contido na obra de Bacon e atualizado na
obra de Marx e de Bloch, críticas feitas por Jonas e trazidas para uma melhor compreensão de
como chegou ao Princípio Responsabilidade. Porém, não sem antes tratar de importantes
questões relacionadas à descentração do sujeito e de relacioná-las com a Bioética, para que
possamos entender o contexto e a pertinência da proposta jonasiana, para então,
posteriormente, analisarmos o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510,
a qual liberou as pesquisas com células-tronco embrionárias no Brasil.
2.2 Bioética, descentração e responsabilidade
Retomando algumas importantes considerações feitas anteriormente, o desafio à
Bioética se tornou emergente e crescente, na medida em que ela assume o compromisso de
propor princípios e limites orientadores para o esperado comportamento responsável de todos
aqueles que, de algum modo, são capazes dessa intervenção e modificação nos mais amplos
domínios da vida.
206
é cediço a importância que a Bioética ocupa nos dias de hoje, espaço que se torna
cada vez maior, bem como a Bioética teve que o seu verdadeiro atestado de reconhecimento e
205
BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p.112. A Carta das
Nações foi elaborada para declarar a responsabilidade de uns para com os outros, com a grande comunidade da
vida e com as futuras gerações: “Para realizar estas aspirações devemos decidir viver com um sentido de
responsabilidade universal. Cada um comparte responsabilidade pelo presente e pelo futuro, pelo bem-estar da
família humana e do grande mundo dos seres vivos. O espírito de solidariedade humana e de parentesco com
toda a vida é fortalecido quando vivemos com reverência o mistério da existência, com gratidão pelo presente da
vida e com humildade considerando o lugar que ocupa o ser humano na natureza” (p. 112).
206
Isso porque, nas palavras de Antônio Moser, “A Bioética não apenas se tornou uma referência obrigatória
quando se trata de pesquisas de laboratório, mas se tornou uma referência obrigatória para se entender o que
pode ser considerada uma das maiores revoluções de todos os tempos. De fato, ao longo da história houve muitas
revoluções, mais ou menos profundas. No entanto, todas elas agiam de dentro para fora, enquanto a revolução
biotecnológica passa a agir de fora para dentro. Daí a estranha e paradoxal sensação que se apodera dos seres
humanos: ao mesmo tempo de fascínio e temor” (PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por
um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 7).
87
maioridade a partir da Declaração de Bioética e Direitos Humanos, durante a 33ª Conferência
Geral das Nações Unidas, celebrada em 19 de outubro de 2005, em Paris, englobando, além
de temas biomédicos e biotecnológicos, questões sanitárias, sociais e ambientais. A Unesco
dispensou mais de dois anos de discussões até alcançar um documento final satisfatório. A
homologação da Declaração se deu por aclamação, o que significa ter sido referendada
unanimemente pelos 191 países integrantes das Nações Unidas.
207
Tudo isso não é gratuito, pois tais preocupações levam em consideração aquele poder
de intervenção do qual tratávamos, o qual pode ser percebido especialmente na atividade dos
cientistas. Nesse sentido, Edgar Morin ressaltou que todo cientista pensa servir a dois deuses
que lhe parecem absolutamente complementares, mas que, hoje, devemos saber que eles não
são apenas complementares, mas também antagônicos: o primeiro é o da ética do
conhecimento, que exige que tudo seja sacrificado à sede de conhecer, enquanto o segundo é
o da ética cívica e humana. Por isso, aponta a ética do conhecimento e a ética da
responsabilidade não como soluções, mas sim caminhos, afirmando que
a noção de responsabilidade nos obriga a ser responsáveis pelo uso da palavra
responsabilidade, isto é, nos obriga a revelar suas dificuldades e complexidade. [...]
Servimos pelo menos a dois deuses, complementares e antagônicos: o deus da ética
do conhecimento, que nos manda sacrificar tudo à libido scienti, e o deus da ética
cívica e humana. nos resta atualmente uma coisa: resistir aos poderes que não
conhecem limites e que já, em grande parte da terra, amordaçam e controlam todos
os conhecimentos, salvo o conhecimento científico tecnicamente utilizável por eles,
porque esse, precisamente, está cego para suas responsabilidades humanas.
208
Morin também referiu que estamos num período em que a disjunção entre os
problemas éticos e os problemas científicos pode se tornar mortal se perdermos nossas vidas
humanistas de cidadão e de ser humano.
209
Por isso, é preciso agir com espírito coletivo e
social: promover valores comuns à comunidade onde estamos inseridos. Isso significa não se
deixar guiar por interesses individuais, mas sim por um comportamento cujo sentido venha ao
207
GARRAFA, Volnei. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel; SAADA, Alya (Orgs.). Bases conceituais
da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário.
São Paulo: Gaia, 2006, p. 9.
208
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 123.
209
Idem, p. 129. Por isso, Pelizzoli diz no prefácio da obra que “crescentemente, põe-se a questão da crítica, das
alternativas éticas, filosóficas e institucionais diante da racionalidade tecnocientífica consentânea da
desumanização e objetificação das relações pessoais e com a natureza viva” (Vide PELIZZOLI, Marcelo (Org.).
Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 9-
11.
88
encontro de valores abertos, pois “é a ação humana que faz e sentido à vida, ao mundo, à
sociedade e à história. O sentido não está embutido nas coisas, ele é criado e construído pelo
comportamento humano. Nisto consiste a ética: criar e inventar um sentido, um rumo justo,
solidário e pacífico para si e para a história humana”.
210
Porém, quando são trazidas questões que envolvem a ação humana e o agir social,
também é preciso lembrar a crise de identidade do sujeito sofrida em razão das inúmeras
mudanças estruturais vividas pelas sociedades modernas, fazendo com que o indivíduo
moderno perca o cerne da sua identidade, nas palavras de Stuart Hall.
211
Boff afirmou que
o pecado de origem que jaz à crise ética da nossa civilização é a autocentração do ser humano,
lembrando que para os gregos, essa atitude arrogante provocava a fulminação dos deuses, pois
viam nela a perversão maior da natureza.
212
Isso tudo porque as mudanças estruturais que estão transformando as sociedades
modernas, cada vez mais complexas, estão fragmentando questões de cultura, classe, gênero,
sexualidade, raça, ética, genética, que até pouco tempo representavam um porto seguro em
termos de identidade do indivíduo, transformando também as identidades pessoais, e, com
isso, abalando a idéia de sujeito integrado. Por isso, segundo Hall, “esse duplo deslocamento
descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si
mesmos constitui uma crise de identidade para o indivíduo”.
213
Esta perda de um sentido de
si estável é o que esse autor denomina descentração ou deslocamento do sujeito.
Nesse contexto, a cultura pode ser encarada como uma valoração intrínseca ao ser
humano, na medida em que somos seres culturados a partir de referências de reconhecimento
nos mais variados tipos de cenários pelos quais deslizamos como agentes sociais,
estabelecendo relações de semelhança e de diferença.
214
E como toda cultura tem um processo
histórico de construção de significado, quanto mais conhecido e reconhecido for, maior será a
chance de sua elasticidade, no sentido de alterar a forma de pensar ou qualquer outro
imperativo das necessidades humanas no mundo atual. Assim, é importante a compreensão de
que “não temos simplesmente o acesso aos objetos via significado, mas via significado num
210
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 34.
211
Para maiores aprofundamentos, Vide HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução
de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
212
BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 9. Essa atitude
arrogante é a hybris, a chamada falha trágica na tragédia, segundo Aristóteles, o maior de todos os gêneros. Para
Aristóteles, um homem cai no infortúnio por força de algum erro. Esse erro é conseqüência da hamartía.
213
HALL, Stuart. A identidade cultural na s-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira
Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 9.
214
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: UNESP, 2005, p.
183-184.
89
mundo histórico determinado, numa cultura determinada, o que faz com que a estrutura lógica
nunca dê conta inteira do conhecimento”.
215
É nesse ínterim que é possível verificar que diversos posicionamentos sobre
Bioética, mas como todas as culturas são híbridas e estabelecem mudança de significado por
meio de contatos políticos e sociais, também os contatos culturais não são contatos de uma
única via, mas sim de via dupla, pois sempre uma troca de culturas que se diferenciam
contextualmente. Então, muitos diálogos que podem ser estabelecidos sobre a Bioética, no
que toca especialmente ao Princípio Responsabilidade.
A tomada de consciência da responsabilidade diante do turbilhão de possibilidades e
conflitos gerados pela biotecnologia demonstram que a ética é uma caminhada existencial,
cujo caminho não foi previamente traçado, na medida em que “ela acontece com o acontecer
da vida, com o desenvolvimento da consciência e da percepção histórica dos valores ou
contra-valores presentes nos comportamentos humanos, embutidos na tecnologia e na
biogenética. A ética inventa-se em cada acontecimento humano e tecnocientífico”.
216
Assim, é possível perceber que a Bioética assumiu uma nova importância política no
cenário mundial, eis que diz respeito a uma série de questões atuais e de suma importância
para a real compreensão desse novo momento que está sendo vivenciado pela sociedade
global quanto às múltiplas possibilidades da manipulação genética. Tudo que pertine às
relações sociais implica questões de cultura, e isso tudo se converte em desafios que precisam
ser superados na construção de uma Bioética para os dias de hoje, pois “embora
geneticamente sejamos todos iguais, historicamente somos diferentes porque cada um constrói
um caminho próprio, um modo de existência irredutível aos dos outros. A pessoa sou eu
(estrutura biológica) e minhas circunstâncias (históricas), diz Ortega y Gasset”.
217
Nesse sentido, “o ser humano está no ser vivo e o ser vivo está no ser humano.
Precisamos tentar pensar o complexo bio-antropológico. A organização do nosso corpo é
hipercomplexa, mas, além disso, somos indivíduos integrados na complexidade cultural e
social. A complexidade não explica; é o que deve ser explicado”.
218
215
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 17-18. Segundo o
autor, “não existe ser humano em estado neutro que de repente faz uma proposição assertórica predicativa. Não
existiu um dia esse ser humano que pela primeira vez pronunciou uma frase correta do ponto de vista lingüístico,
gramatical. O ser humano desde sempre falou dentro de uma história determinada. [...] O ser humano sempre
aparece dentro de uma determinada cultura, dentro de uma determinada história, aparece dentro de um
determinado contexto”.
216
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 116.
217
Idem, p. 110.
218
MORIN, Edgar (Org.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Tradução de Flávia Nascimento.
Rio de Janeiro: Bertrand, 2007, p. 195.
90
Além da complexidade, outra razão pela qual se deve pensar sobre a validade e os
limites da ciência e do conhecimento científico é a questão da delimitação do seu objeto,
passível de ser esgotado, enquanto que uma ética reflexiva, e nesse sentido tomada como
filosófica, parte de um pressuposto de inesgotabilidade de seu objeto, pois
a filosofia quando fala sobre o mundo, trata de algo que não se limita e sempre que
alguém fala de algo dentro do mundo fala de algo que se limita. O objeto das
ciências pode ser delimitado, o objeto da filosofia não pode ser delimitado. A
filosofia faz uma coisa que a ciência não consegue fazer: tratar de si mesma.
Enquanto as ciências tratam de um objeto, a filosofia trata de um universo que o
discurso das ciências humanas pressupõe.
219
Nesse sentido, Morin afirmou que “os problemas científicos também são os grandes
problemas filosóficos: os da natureza, da mente, do determinismo, do acaso, da realidade, do
desconhecido. Esses problemas de idéias são problemas clássicos da filosofia que são
renovados e colocados em termos completamente novos”.
220
Para Pegoraro, a Bioética comporta uma circularidade entre as experiências da vida e
os postulados éticos, os quais se adaptam às circunstâncias presentes das situações concretas,
de forma que “a circularidade e complementaridade dos paradigmas éticos apóia-se na
historicidade e temporalidade da existência humana. A este respeito, Jean Ladrière tem uma
definição lapidar: é naquilo que a história produz que descobrimos os valores éticos”.
221
Nesse sentido, é preciso pensar como a ciência pode utilizar a hermenêutica para dar conta de
sua racionalidade, pois
as ciências não tratam de si mesmas, mas de um objeto de alguma maneira exterior
a seu próprio discurso. As ciências, portanto, falam de dentro do próprio mundo,
enquanto a filosofia fala desde uma perspectiva sobre o mundo, a filosofia fala do
mundo. [...] A filosofia tem como tarefa fundamental desenvolver um discurso
sobre a totalidade e essa totalidade é o mundo que envolve, como condição de
219
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 15.
220
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 94. Para o autor, “O desenvolvimento do conhecimento científico
lembra os antigos problemas de fundamento e os renova. Esses problemas dizem respeito a todos e a cada um.
Eles precisam da comunicação entre cultura científica e cultura humanista (filosofia). [...] A noção de progresso
que utilizamos é verdadeiramente progressista? O conhecimento de que falamos é verdadeiramente
conhecimento? É verdadeiramente conhecido? Sabemos sobre o que falamos quando falamos sobre
conhecimento?” (p. 94-95).
221
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 115.
91
possibilidade, todos os discursos científicos. A filosofia, portanto, fala sobre o
mundo, e as ciências falam dentro do mundo.
222
É nesse contexto no qual se constata esse descentramento do sujeito e também que a
ciência não pode tratar de si mesma que ganha importância o Princípio Responsabilidade, o
qual representa a busca de uma ética para a civilização tecnológica. O Princípio
Responsabilidade foi formulado na década de setenta do século XX e publicado em 1979 por
Hans Jonas, que se dedicou à tarefa de relacioná-lo com as questões contemporâneas, que
emergem no mundo moderno, principalmente à ética diacrônica, que precisa contemplar o
presente e o futuro, como veremos a seguir.
2.3 O Princípio Responsabilidade
Hans Jonas, assim como vinha fazendo em “O Princípio Vida”, conforme
demonstrado anteriormente, criticou na obra “O Princípio Responsabilidade”
223
a falta de
limites com que o homem tem perseguido o seu sonho, sonho este que se revelou uma utopia,
criticando pormenorizadamente o ideal utópico de Bacon, Marx e Bloch. Criticou o sonho da
prosperidade material conseguida pelo poder-dominação sobre a natureza, prosperidade esta
que inegavelmente aconteceu, porém, desacompanhada de um desenvolvimento ético e
espiritual, consubstanciado na ligação do ser humano consigo mesmo, com os outros, com a
natureza e com o sentido transcendente da vida.
224
Sua proposta se contrapunha ao imperativo kantiano, proposto nos moldes do
positivismo jurídico que vigorava no século XIX, sob a influência da Escola Positivista de
Augusto Comte. Kant propunha a construção de uma teoria pura do Direito, garantindo a
segurança da sociedade ao sustentar, em suma, que é direito aquilo que o poder dominante
222
STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. Porto Alegre: Edipucrs, 1996, p. 11.
223
Esta que é considerada sua obra principal constitui a razão principal para a outorga do título doutor honoris
causa em Filosofia, concedido em julho de 1992 pela Freie Universität Berlin. Em fevereiro de 1993, depois de
receber em Udine, Itália, uma homenagem e um prêmio pela tradução italiana de sua obra principal, Hans Jonas
faleceu em New Rochelle, estado de Nova Iorque (JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio
Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.).
Correntes fundamentais da Ética contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 193-206).
224
BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 9. Segundo o autor,
esse sonho de prosperidade ilimitada ocupa o imaginário coletivo da humanidade e formata a agenda central de
qualquer governo. Ai da política econômica e tecnocientífica que não apresentar anualmente índices positivos de
crescimento. Mas esse sonho está se transformando num pesadelo, pois está levando os países, a humanidade e a
Terra a um impasse fatal: os recursos são limitados, e os ganhos não podem ser generalizados para todos (p. 15).
92
determina e o que ele determina é direito em virtude dessa circunstância.
225
Assim, a ética
acabava sendo um elemento estranho ao Direito, quase que extrajurídico, pois haveria uma lei
ética autônoma e independente, imune às críticas produzidas no campo da ciência.
A ciência racional devia possuir princípios gerais a priori, isto é, independentemente
das contingências e circunstâncias externas. Sua teoria do conhecimento
226
visava determinar
os princípios que governam o entendimento humano e os limites de sua aplicação. Assim,
queria estabelecer bases seguras para o desenvolvimento científico, por meio da síntese das
duas grandes correntes da filosofia da época: o racionalismo, que enfatizava a preponderância
da razão como forma de conhecer a realidade, e o empirismo, que dava primazia à
experiência.
Assim, diante do problema de como constituir uma sociedade a partir das concepções
e aspirações dessemelhantes e conflitantes, Kant tentou combinar o pluralismo com uma ética
da liberdade, afirmando que existe em cada ser humano racional, um imperativo categórico
que o convoca a respeitar a sua própria liberdade e a dos outros. Mas a ética de Kant “não
prescreve um conjunto de normas concretas e detalhadas; apenas impõe uma norma formal no
quadro, a partir da qual o pluralismo de projetos de vida pode realizar-se”.
227
Kant apresenta o problema da ética como problema do bem supremo, em que os bens
podem ser bons por outra causa ou em si mesmos, sendo que a única coisa boa em si mesma,
sem restrições, seria a boa vontade, de forma que o problema moral se transfere das ações
para a vontade que as produz. O imperativo categórico kantiano age de tal forma que a
máxima e tua vontade possa sempre valer como princípio de legislação universal - implica em
si mesmo uma obrigatoriedade absoluta relacionada ao dever. Assim, qualquer ação levada
por sentimentos, emoções ou temores não teria valor moral nenhum, pois somente o dever que
a razão prática propõe é que tornaria uma ação moral.
228
225
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Editora Martim Claret, 2005.
226
Kant elaborou Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) em 1781, e posteriormente, em 1788,
escreveu Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen Vernunft). Ainda, escreveu Crítica do Juízo (Kritik der
Urteilsktaft Vernunft) em 1790. Em todas as suas obras Kant procurou dar um fundamento sólido à convicção de
que existe uma ordem superior, capaz de satisfazer as exigências morais e ideais do ser humano.
227
SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2002, p.
52. Nesse sentido, lembra o autor que a norma de Kant deu origem à ética contratual, afirmando também que
“não podemos saber se a liberdade é uma realidade em si ou apenas a realidade fenomenal, isto é, a realidade
humana como ela nos aparece. Portanto, se a razão não pode conhecer a liberdade humana, então a encontramos
unicamente no fato da moralidade. É nessa altura que Kant começa a falar de uma razão prática que não se refere
ao ser, mas ao dever-ser; o se trata aqui do conhecimento especulativo, mas do conhecimento moral ou
prático”.
228
Idem, p. 54. Nesse sentido, quando comenta a ética kantiana, o autor afirmou que para Kant “a pessoa é um
fim em si. Seu valor consiste em ela ser um ente moral, isto é, aquele que age por sua própria vontade, buscando
e querendo a si mesmo enquanto razão e agindo como ser livre e autônomo, e por isso com dignidade. É na ação
93
Hans Jonas, ao afirmar que nenhuma ética tradicional nos instrui sobre as normas
do bem e do mal às quais se devem submeter as modalidades inteiramente novas do poder e
de suas criações possíveis, alertou para a insuficiência desse modelo kantiando ou ainda do
modelo tradicional, em que a ética está relacionada com o bem e com o mal, como em Ética a
Nicômaco.
229
Por ter consciência de suas possibilidades e ter suficiente liberdade em sua escolha, o
homem é responsável por seus atos, pois é criador deles. Essa criação do ser humano
descobre-se cada vez melhor, e a cada passo, sua história toma novos rumos. O homem está a
cada momento a se descobrir. Vem desenvolvendo o não de si mesmo. Segundo a descoberta
que faz de si, procura conduzir sua vida, criar seu modo pessoal de ser, de viver seu ethos.
Mas nossa era não se debruça apenas sobre o passado para compreendê-lo. Existe,
principalmente, a preocupação de antever as linhas de evolução do futuro, pois a realização do
ethos é feita pelo homem em relação ao seu sentido e à consciência da sua própria história.
Preocupado com esse “devir” e em substituição aos antigos imperativos éticos,
principalmente o imperativo kantiano, mencionado anteriormente, que se constitui no
parâmetro exemplar Age de tal maneira que o princípio de tua ação se transforme numa lei
universal -, Jonas propôs um novo imperativo: aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam
compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica sobre a Terra; ou, expresso
negativamente: aja de modo que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a
possibilidade futura de uma tal vida; ou, simplesmente, não ponhas em perigo a continuidade
indefinida da humanidade na Terra.
230
Segundo Boff, este imperativo vale especialmente para a biotecnologia e aquelas
operações que intervêm diretamente no código genético dos seres humanos, de outros seres
que se revela o valor moral. É preciso que a vontade humana aja por dever. Nãomérito algum em agir bem se
não for por respeito ao dever, por respeito à lei moral”.
229
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Editora Martim Claret, 2007. Aqui Aristóteles elaborou uma
ética finalista, segundo a qual ele define o bem como aquilo que todos desejam e não como o que deveriam
desejar, ou seja, o bem é a concretização de uma natureza. O que os seres humanos desejam é a felicidade, então
o ser humano tem que se realizar virtuosamente naquilo que lhe é natural, a sua razão. Viver bem é viver de
acordo com o bom desenvolvimento do espírito racional. Por isso, a questão fundamental de sua ética é a de
como se deve agir para que isso se realize. Segundo Paz, “Aristóteles foi o primeiro que distinguiu
sistematicamente as racionalidades teórica, prática e poética, que correspondem às categorias antropológicas, de
sentido, valor e necessidade, ou ainda, para usar a terminologia corrente, cultura, ética e desenvolvimento. Para
Aristóteles é a racionalidade teórica, lugar próprio da verdade, que oferece afinal o fundamento racional último
para a ética e para a técnica” (Vide PAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e a razão moderna. In: MARCILIO,
Maria Luíza; RAMOS, Ernesto Lopes (Coordenadores). Ética na virada do século: busca do sentido da vida.
São Paulo: LT&r, 1997, p. 85).
230
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: ensaio para uma ética para a civilização tecnológica.
Tradução de Marijane Lisboa e Luiz Barros Mantez. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora PUC-Rio, 2006, p. 47-
48. Cabe frisar que todas as referências a esta obra, ao longo não somente do texto como também deste capítulo,
dizem respeito a esta edição.
94
vivos e de sementes transgênicas. O universo trabalhou 15 bilhões de anos e a biogênese 3,8
bilhões para ordenar as informações que garantem a vida e seu equilíbrio. Nós, numa geração
queremos controlar esses processos complexos, sem medirmos as conseqüências de nossa
ação. Por isso, o ethos que se responsabiliza impõe a precaução e a cautela como
comportamentos éticos básicos.
231
Nesse sentido, para garantir um futuro comum da Terra e da humanidade, impõe-se a
busca do bem comum, a auto-limitação e a justa medida, todas elas expressão do cuidado e da
responsabilidade. Segundo Boff, o ser humano não tem escolha: ou é isso ou enfrentaremos
uma tragédia sem precedentes. A justa medida é o equilíbrio entre o mais e o menos. Por um
lado, a medida é sentida negativamente como limite às nossas pretensões. Daí nasce a vontade
e até o prazer de violar o limite. Por outro, é sentida positivamente como a capacidade de
usar, de forma moderada, as potencialidades para durarem mais. Isso é possível quando se
encontra a justa medida. Se repararmos bem, a justa medida é a fórmula secreta pela qual o
universo se organizou e garantiu seu equilíbrio até os dias de hoje.
232
Continuou Boff:
A justa medida é exigida em dois campos importantes da atividade humana atual:
na ecologia e na biotecnologia. [...] No campo da biotecnologia precisamos nos
perguntar: qual a justa medida na manipulação do código genético humano? Ela
surge quando o ser humano entra numa profunda comunhão com a própria vida.
Então captará a vida como a irrupção mais complexa e misteriosa do processo da
evolução. Ela demanda respeito e reverência. Precisa continuamente de cuidado
para se manter e co-existir. O corpo de geneticistas deve entrar no laboratório de
experimentação como quem entra num templo. Caso contrário poderão pôr em
risco o futuro da vida. A vida não é uma mercadoria. Por isso a pesquisa não se
ordena ao lucro mas ao melhoramento da própria vida.
233
Hans Jonas iniciou o prefácio de O Princípio Responsabilidade trazendo um
esclarecimento metafórico de que “o Prometeu, definitivamente desacorrentado, ao qual a
ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o impulso infatigável, clama por uma
ética que, por meio de freios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformar em
uma desgraça para eles mesmos”.
234
Utilizou essa metáfora porque Prometeu tornou-se, para a
231
BOFF, Leonardo. Ética e Moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 52. Segundo Boff,
tal responsabilidade é a capacidade de dar respostas eficazes aos problemas que chegam da realidade complexa
atual, e isso pode ser conseguido com um ethos que ama, cuida e se responsabiliza. A responsabilidade surge
justamente quando nos damos conta das conseqüências de nossos atos sobre os outros e a natureza (p. 51).
232
Idem, p. 70. O autor cita a deusa Nêmese, que representava a justa medida na ordem divina e humana. Todos
os que ousassem ultrapassar a justa medida (hybris) eram imediatamente fulminados por Nêmese (p. 71).
233
Idem, p. 73.
234
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 21.
95
cultura ocidental, o símbolo por excelência da revolta na ordem metafísica e religiosa, como
se encarnasse a recusa do absurdo da condição humana. Por volta da metade do século XX, as
expressões “homem prometéico” e “humanismo prometéico” entraram em moda para sugerir
qualquer atitude desafiadora ou contestadora dos valores tradicionais.
235
O ponto de partida do livro é justamente a figura de Prometeu desacorrentado, símbolo
das novas e imensas possibilidades com que a técnica moderna equipa o agir humano,
alterando essencialmente o horizonte e as coordenadas espaço-temporais em que se inscreve e
onde desdobra seus efeitos o agir humano. Esse agir, compreendido como intervenção
tecnologicamente mediada sobre a natureza exterior, assim como sobre a própria natureza
humana, está a exigir uma normatização ética que seja adequada e proporcional a sua natureza
e à nova ordem de grandeza e de poder no espaço onde se desenrola esse agir e as novas
dimensões de responsabilidade que esse mesmo agir suscita.
236
Assim, a tese de partida da obra jonasiana é que a promessa de tecnologia moderna se
converteu em ameaça, ou esta se associou àquela de forma indissolúvel. Ela vai além da
constatação da ameaça física. Assim, Hans denominou de “heurística do medo” a essa
previsão de perigo que pode servir de bússola para o relativismo de valores, pois
antes de tudo nos seus relâmpagos surdos e distantes, vindos do futuro, na
manifestação de sua abrangência planetária e na profundidade de seu
comportamento humano podem revelar-se os princípios éticos dos quais se
235
BRUNEL, Pierre. Dicionário de Mitos Literários. Tradução de Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005, p. 784-786. A tulo de esclarecimento, Hesíodo oferece do mito duas versões complementares.
Na Teogonia, ele relata que para acabar com uma querela entre os deuses e os homens, era necessário que se
fizesse a oferenda de um sacrifício a Zeus. Prometeu, filho do titã Jápeto e da oceânida Clímene, decide enganar
o pensamento de Zeus. Divide um boi em duas partes, cobrindo com a pele do animal os bons pedaços do ventre
e da carcaça e colocando os ossos sob uma camada de gordura apetitosa. Em represália, Zeus se nega a entregar
o fogo aos homens, os protegidos de Prometeu. Este contra-ataca roubando a chama, falta que lhe renderá dupla
punição: Hefesto esculpe uma estátua de mulher e envia aos homens esse belo flagelo, enquanto Prometeu é
acorrentado a uma coluna e vê seu fígado num perpétuo renascer sendo devorado por uma águia. Em Os
trabalhadores e os dias, Hesíodo fornece alguns dados suplementares. A criatura esculpida por Hefesto tem o
nome de Pandora, que significa dotada por todos. Dona de um caráter intratável e agraciada com a arte de
seduzir e um exímio espírito de dissimular, ela traz consigo uma caixa que contém todos os males do mundo e
que vai parar nas mãos de Epimeteu: todas as desgraças escapolem e se abatem sobre a humanidade, salvo a
esperança, que ficara imobilizada sob a tampa. Três séculos mais tarde, entre 467 e 459, o Prometeu Acorrentado
de Ésquilo confere ao mito um capital alcance, religioso e metafísico. Em sua tragédia, primeira obra-prima
inspirada no tema, Prometeu culpado por ter dado o fogo aos homens quando Zeus pretendeu, por capricho,
exterminá-los foi acorrentado e pregado num dos picos mais elevados do Cáucaso. Logo de início este traço
não está em Hesíodo o titã aparece na figura de mártir, abatido por uma injusta divindade. O Prometeu de
Ésquilo não é mais aquele benfeitor primordial da Teogonia e, numa grande tirada, o dramaturgo enumera-lhe as
dádivas: foi ele quem libertou os homens da obsessão da morte e os fez saber o que é a esperança, além de dar-
lhes o fogo que os levará a aprender um sem-número de artes.
236
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da Ética contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 194.
96
permitem deduzir as novas obrigações do novo poder. Somente, então, com a
antevisão da desfiguração do homem, chegamos ao conceito de homem a ser
preservado. sabemos o que está em jogo quando sabemos que está em jogo.
Como se trata aqui não apenas do destino do homem, mas também da integridade
de sua essência, a ética que deve preservar ambas precisa ir além da sagacidade e
tornar-se uma ética do respeito.
237
Ao afirmar que os riscos extremos da aventura tecnológica ensejam uma reflexão
extrema, Hans alertou para as causas do porquê de a responsabilidade dever ser deslocada
para o centro da ética:
Tanto o conhecimento quanto o poder eram por demais limitados para incluir o
futuro mais distante em suas previsões e o globo terrestre na consciência da própria
causalidade. Em vez de ociosamente desvendar as conseqüências tardias no destino
ignoto, a ética concentrou-se na qualidade moral do ato momentâneo em si, no qual
o direito do contemporâneo mais próximo tinha de ser observado. Sob o signo da
tecnologia, no entanto, a ética tem a ver com as ações (não mais de sujeitos
isolados) que têm uma projeção causal sem precedentes na direção do futuro,
acompanhadas por uma consciência prévia que, mesmo incompleta, vai muito além
daquela outrora existente. Ajunte-se a isso a magnitude bruta dos impactos de longo
prazo e também, com freqüência, a sua irreversibilidade.
238
Assim, como se pode perceber, desde o prefácio Hans Jonas introduz a idéia a ser
desenvolvida, de que “o Princípio Responsabilidade contrapõe a tarefa mais modesta que
obriga ao temor e ao respeito: conservar incólume para o homem, na persistente dubiedade de
sua liberdade que nenhuma mudança das circunstâncias poderá suprimir, seu mundo e sua
essência contra os abusos de seu poder”.
239
Daí ter sido categórico quando afirmou que
nenhuma motivação, por mais louvável que seja, poderá servir de desculpa para as
insuficiências filosóficas da argumentação.
No capítulo I da obra, Hans Jonas se dedicou a explicar como a natureza modificada
do agir humano também impõe uma modificação na ética, explicando o modo como a técnica
moderna afeta essa natureza do agir humano,
240
e até que ponto ela torna sob seu domínio
237
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 21.
238
Idem, p. 22.
239
Idem, p. 23.
240
Nesse sentido, interessante a seguinte colocação: “a restrição à liberdade humana por meio da reificação de
seus próprios feitos sempre existiu, tanto nos cursos de vida individual como sobretudo na história coletiva.
Desde sempre, a humanidade foi em parte determinada por seu próprio passado, porém isso atuou, em geral,
mais no sentido de uma força inibidora que propulsora: o poder do passado era antes aquele da inércia
("tradição") do que o da propulsão. As criações da técnica, todavia, atuam precisamente no último sentido e, com
isso, dão à muito devorada história da liberdade e dependência humana uma nova e grave inflexão. Colocamo-
97
algo diferente do que existiu ao longo dos tempos. Estamos em face do aspecto paradoxal da
técnica moderna, que, segundo Jonas, pode levar à ameaça de uma catástrofe pelo excesso de
sucesso, onerando de modo irreversível o ideário programático da ciência moderna,
formulado por Bacon, segundo o qual esta comportaria a apropriação tecnológica da natureza
como meio para realização do universal domínio humano. De acordo com esse ideal, ciência
seria um saber sobre a natureza, cuja essência seria domínio e apropriação, com a finalidade
de utilizar seus recursos e potencialidades para a melhoria do destino humano na terra.
Por tudo isso, começou o capítulo com uma citação de Antígona, de Sófocles, em que
está bem presente a questão aristotélica do bem e do mal por meio da voz do coral.
241
Nessa
voz, é possível identificar “a consciência de que, a despeito de toda grandeza ilimitada de sua
engenhosidade, o homem, confrontado com os elementos, continua pequeno”.
242
O bem e o mal, com o qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação, seja
na própria práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo
prazo. Essa proximidade de objetivos era válida tanto para o tempo quanto para o espaço. O
alcance efetivo da ação era pequeno, o intervalo de tempo para previsão, definição de objetivo
e imputabilidade era curto, e limitado o controle sobre as circunstâncias. O comportamento
correto possuía seus critérios imediatos e sua consecução quase imediata. O longo trajeto das
conseqüências ficava ao critério do acaso, do destino ou da providência. Por conseguinte, a
ética tinha a ver com o aqui e agora, como as ocasiões se apresentavam aos homens, com as
situações recorrentes e típicas da vida privada e pública: “o homem bom era o que se
defrontava virtuosa e sabiamente com essas ocasiões, que cultivava em si a capacidade para
tal, e que no mais conformava-se com o desconhecido”.
243
nos já, a cada novo passo (o mesmo que "progresso") da grande técnica, sob a compulsão do próximo passo e
legamos a mesma compulsão à posteridade, que finalmente tem que pagar a conta. Porém, mesmo sem essa
visão de longo alcance, o elemento tirânico enquanto tal na técnica atual, que transforma nossas obras em nossos
senhores e nos coage a seguir multiplicando-as, apresenta em si um desafio ético - para além da pergunta
sobre o bom ou ruim de cada uma daquelas obras singularmente. Em razão da autonomia humana, da dignidade
que exige que nós tenhamos a posse de nós próprios e não nos deixemos possuir por nossas máquinas, temos que
trazer sob controle extratecnológico o galope tecnológico” (GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Hans Jonas:
por
que a técnica moderna é um objeto para a ética. Nat. hum. [online]. dez. 1999, vol.1, no.2, p.407-420.
Disponívelem:<http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151724301999000200007&lng=
pt&nrm=iso>. ISSN 1517-2430. Acesso em 05/01/2009).
241
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade. A citação assim termina: “Dotado de inteligência e de
talentos extraordinários, ora caminha em direção ao bem, ora ao mal... Quando honra as leis da terra e a justiça
divina o qual jurou respeitar, ele alça-se bem alto em sua cidade, mas excluído de sua cidade será ele, caso se
deixe desencaminhar pelo mal” (p. 31).
242
Idem, p. 32.
243
Idem, p. 35-36. Adverte Jonas que toda ética tradicional é antropocêntrica, pois a significação ética dizia
respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo, de modo
que a “entidade” homem e sua condição fundamental era considerada como constante quanto à sua essência, não
sendo ela própria objeto da techne. Nesse contexto, “ninguém é julgado responsável pelos efeitos involuntários
posteriores de um ato bem-intencionado, bem refletido e bem-executado. O braço curto do poder humano não
98
A conquista de um domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homem surgiria
como a realização do seu destino. Para Hans Jonas, somos tentados a crer que a vocação dos
homens se encontra no contínuo progresso desse empreendimento, superando-se sempre a si
mesmo, rumo a feitos cada vez maiores. Assim, o triunfo do homo faber sobre o seu objeto
externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição interna do homo sapiens, do
qual ele outrora costumava ser uma parte servil. Em outras palavras, mesmo desconsiderando
suas obras objetivas, a tecnologia assume um significado ético por causa do lugar central que
ela agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana.
244
Esse novo problema ético é produzido pelo hiato entre a força da previsão e o poder do
agir. É aqui que o reconhecimento da ignorância torna-se o outro lado da obrigação do saber,
como um necessário autocontrole sobre o excesso de poder. Até então, nenhuma ética anterior
havia considerado a condição global da vida humana e o futuro distante, de modo que “o fato
de que hoje eles estejam em jogo exige, numa palavra, uma nova concepção de direitos e
deveres, para a qual nenhuma ética antiga pode sequer oferecer os princípios, quanto mais
uma doutrina acabada”.
245
Mas é quando tratou de velhos e novos imperativos que melhor se pode compreender a
que uma ética da responsabilidade vem a se contrapor. Como mencionado, Jonas trouxe o
imperativo kantiano, que dizia: “Aja de tal modo que tu também possas querer que a tua
máxima se torne lei geral”, contrapondo-o a um novo imperativo, adequado ao novo tipo de
agir humano: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a
permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou, expresso negativamente: “Aja
de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma
tal vida”; ou, simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a
conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou, em um uso novamente positivo:
Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu
querer”.
246
Para Jonas, o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não
a da humanidade; que Aquiles tinha sim o direito de escolher para si uma vida breve, cheia de
atos gloriosos, em vez de uma vida longa em uma segurança sem glórias, mas que nós não
temos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência atual,
exigiu qualquer braço comprido do saber, passível de predição; a pequenez de um foi tão pouco culpada quanto a
do outro. Precisamente porque o bem humano, concebido em sua generalidade, é o mesmo para todas as épocas,
sua realização ou violação ocorre a qualquer momento, e seu lugar completo é sempre o presente” (p. 37).
244
Idem, p. 43.
245
Idem, p. 41.
246
Id. Ibid, p. 47.
99
ou mesmo de colocá-las em risco. Segundo ele, temos um dever diante daquele que ainda não
é nada e que não precisa existir como tal e que, seja como for, na condição de não-existente,
não reivindica existência.
247
Dessa forma, os novos tipos e limites do agir exigem uma ética de previsão e
responsabilidade compatível com esses limites, que seja tão nova quanto as situações que
emergem das obras do homo faber na era da técnica. Situamos a techne apenas em sua
aplicação do domínio não-humano, mas o próprio homem passou a figurar entre os objetos da
técnica. O homo faber aplica sua arte sobre si mesmo e se habilita a re-fabricar
inventivamente o inventor e confeccionador de todo o resto. Essa culminação dos seus
poderes, que muito pode bem significar a subjugação do homem, esse mais recente emprego
da arte sobre a natureza desafia o último esforço do pensamento ético, que antes nunca
precisou visualizar alternativas de escolha para o que se considera serem as características
definitivas da constituição humana.
248
Para Jonas, ao longo do caminho da crescente capacidade de manipulação social em
detrimento da autonomia individual, em algum lugar se deverá colocar a questão do valor, do
valer-a-pena de todo empreendimento humano, de forma que sua resposta deve buscar a
imagem do homem. Esta deve ser repensada à luz do que hoje é possível de se fazer com ela;
nunca feito anteriormente. Hans Jonas alertou que a mesma exigência se impõe em grau ainda
mais alto com respeito ao último objeto de uma tecnologia aplicada ao homem o controle
genético dos homens futuros. O homem quer tomar em suas mãos a sua própria evolução, a
fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de melhorá-la e modificá-
la segundo seu próprio projeto. Por isso, “saber se temos o direito de fazê-lo, se somos
qualificados para esse papel criador, tal é a pergunta mais séria que se pode fazer ao homem
que se encontra subitamente de posse de um poder tão grande diante do destino”.
249
247
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 48. Hans Jonas refere que o seu imperativo “volta-se muito
mais à política pública do que à conduta privada. [...] O princípio é o da constituição subjetiva de minha
autodeterminação. [...] As ações subordinadas ao novo imperativo, ou seja, as ações do todo coletivo assumem a
característica de universalidade na medida real de sua eficácia. Elas ‘totalizam’ a si próprias na progressão de
seu impulso, desembocando forçosamente na configuração universal do estado das coisas. Isso acresce ao
cálculo moral o horizonte temporal que falta na operação lógica e instantânea do imperativo kantiano: se este
último se estende sobre uma ordem sempre atual de compatibilidade abstrata, nosso imperativo se estende em
direção a um previsível futuro concreto, que constitui a dimensão de nossa responsabilidade” (p. 48-49).
248
Idem, p. 57. Isso porque, para Jonas, somente com o progresso moderno, como fato e idéia, surge a
possibilidade de se considerar que todo o passado é uma etapa preparatória para o presente e que todo o presente
é uma etapa preparatória para o futuro, e por ser ilimitada essa representação, não privilegia nenhum estado
como definitivo, deixando a cada um a imediaticidade do presente (p. 55).
249
Id. Ibid, p. 60-61. Hans Jonas questiona: “Quem serão os criadores de ‘imagens’, conforme quais modelos,
com base em que saber? Também cabe a pergunta sobre o direito moral de fazer experimentos com seres
humanos. Essas perguntas e outras semelhantes, que exigem uma resposta antes que nos deixemos levar em uma
100
Aqui vem uma das afirmações jonasianas mais pertinentes no que tange ao Princípio
Responsabilidade: somos permanentemente confrontados com perspectivas finais cuja escolha
positiva exige a mais alta sabedoria – uma situação definitivamente impossível para o homem
em geral, pois ele não possui essa sabedoria:
quando a natureza nova do nosso agir exige uma nova ética de responsabilidade de
longo alcance, proporcional à amplitude do nosso poder, ela também exige, em
nome daquela responsabilidade, uma nova espécie de humildade uma humildade
não como a do passado, em decorrência da pequenez, mas em decorrência da
excessiva grandeza do poder, pois um excesso do poder de fazer sobre poder de
prever e sobre o poder de conceder valor e julgar.
250
Graças ao tipo e à magnitude dos seus efeitos de bola-de-neve, o poder tecnológico
nos impele adiante para objetivos de um tipo que no passado pertenciam ao domínio das
utopias, transformando sonhos em realidade. Dito de outra maneira, nas palavras de Jonas, o
poder tecnológico transformou aquilo que costumava ser exercícios hipotéticos da razão
especulativa em esboços correntes para projetos executáveis. Por isso, disse que na escolha
entre eles deveríamos escolher entre extremos de efeitos distantes, em sua maioria
desconhecidos.
251
no capítulo II da obra, Hans Jonas tratou de questões de princípio e de método,
começando com a afirmativa de que um outro tipo de verdade que é objeto do saber
científico, ou seja, a verdade relacionada a situações futuras extrapoláveis do homem e do
mundo, que devem ser submetidas ao julgamento daquelas primeiras verdades filosóficas, a
partir das quais retornamos às ações atuais, para então avaliá-las, como causas das suas
conseqüências certas, prováveis ou possíveis no futuro.
Assim como não saberíamos sobre a sacralidade da vida caso não houvesse
assassinatos e o mandamento ‘não matarás’ não revelasse essa sacralidade, e não saberíamos
o valor da verdade se não houvesse a mentira, nem o da liberdade sem a sua ausência, e assim
por diante, também na busca de uma ética da responsabilidade a longo prazo, cuja presença
viagem ao desconhecido, mostram de forma contundente até que ponto nosso poder de agir nos remete para além
dos conceitos de toda ética anterior” (p. 61).
250
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 63. O autor entende que somos permanentemente
confrontados com perspectivas finais cuja escolha positiva exige a mais alta sabedoria uma situação
definitivamente impossível para o homem em geral, pois ele não possui essa sabedoria, e para o homem
contemporâneo em particular, que até mesmo nega a existência de seu objeto, ou seja, a existência de valor
absoluto e de verdade objetiva. Daí afirmar que quando mais necessitamos de sabedoria é quando menos
acreditamos nela.
251
Idem, p. 63.
101
ainda não se detecta no plano real, nos auxilia antes de tudo a previsão de uma deformação do
homem, que nos revela aquilo que queremos preservar no conceito de homem. Consoante
exposto nesse capítulo, precisamos da ameaça à imagem humana e de tipos de ameaça bem
determinados – para que, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana autêntica:
Enquanto o perigo for desconhecido não se saberá o que para se proteger e por
que devemos fazê-lo: por isso, contrariando toda lógica e método, o saber se origina
contra o que devemos nos proteger. Este aparece primeiro e, por meio da
sublevação dos sentimentos, que se antecipa ao conhecimento, nos ensina a
enxergar o valor cujo contrário nos afeta tanto. sabemos o que está em jogo
quando sabemos que isto ou aquilo está em jogo. O reconhecimento do malum é
infinitamente mais fácil do que o do bonum; é mais imediato, mais urgente, bem
menos exposto a diferenças de opinião; acima de tudo, ele não é procurado: o mal
nos impõe a sua própria presença, enquanto o bem pode ficar discretamente ali e
continuar desconhecido, destituído de reflexão. Não duvidamos do mal quando com
ele nos deparamos; mas temos certeza do bem, no mais das vezes, quando dele
nos desviamos. E de se desviar que alguém, alguma vez, tenha feito o elogio da
saúde sem pelo menos ter visto o espetáculo da doença, o elogio da decência sem
ter encontrado a patifaria, e o da paz sem conhecer a miséria da guerra. O que nós
não queremos, sabemos muito antes do que aquilo que queremos. Por isso, para
investigar o que realmente valorizamos, a filosofia da moral tem de consultar o
nosso medo antes do nosso desejo. [...] Embora a heurística do medo não seja a
última palavra na procura do bem, ela é uma palavra muito útil. Sua potencialidade
deveria ser plenamente utilizada, em uma área em que tão poucas palavras nos são
dadas graciosamente.
252
Jonas esclareceu no que se refere à heurística do medo - que não se trata de um
temor do tipo “patológico”, que nos acomete de forma súbita diante do seu objeto, e sim de
um temor do tipo espiritual, como resultado de uma atitude deliberada. Assim, o primeiro
dever da ética do futuro é visualizar os efeitos de longo prazo, sendo que essa ética do futuro
deve ser buscada porque o que deve ser temido ainda não foi experimentado e talvez não
possua analogias na experiência do passado e do presente, de sorte que o malum imaginado
deve aqui assumir o papel do malum experimentado. E como essa representação não é
automática, deve ser produzida intencionalmente, pela obtenção de uma projeção desse
futuro: esse é o primeiro dever da ética buscada. o segundo dever é justamente mobilizar o
sentimento adequado à representação. Trata-se de adotar uma atitude, ou seja, a disposição
para se deixar afetar pela salvação ou pela desgraça, ainda que imaginada, das gerações
vindouras, que é o segundo dever introdutório da ética almejada por Jonas.
253
252
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 70-71.
253
Idem, p. 72.
102
O que basta para um prognóstico de curto prazo, intrínseco a todas as obras da
civilização técnica, não pode bastar para o prognóstico de longo prazo almejado na
extrapolação requerida pela ética. A certeza de que desfruta a primeira, sem a qual a empresa
tecnológica inteira não poderia funcionar, encontra-se para sempre recusada à outra. Entre os
motivos elencados para tanto, Jonas mencionou a complexidade das relações causais na
ordem social e na biosfera, que desafia qualquer cálculo, inclusive o eletrônico; o caráter
essencialmente insondável do homem, que sempre nos reserva surpresas; e a
imprevisibilidade, ou seja, a incapacidade de prever as futuras invenções.
254
Porém, para Jonas, isso não impede a projeção de efeitos finais prováveis ou apenas
possíveis. E o mero saber sobre possibilidades, certamente insuficiente para previsões, é
suficiente para os fins da casuística heurística posta a serviço da doutrina ética dos princípios.
Os seus recursos são experimentos de pensamento não somente hipotéticos na aceitação das
premissas (“se tal coisa é feita, tal coisa sucede”), mas também conjecturais na dedução de um
e para um então (“então tal coisa pode suceder”). É à luz do “então” que se apresenta à
imaginação como possibilidade, como conteúdo e não como certeza.
255
A ordem de grandeza dos efeitos distantes indesejados é de tal maneira superior à dos
efeitos próximos desejados, que tal fato deve compensar muitas diferenças nos graus de
certeza.
256
Para Jonas, essa incerteza que ameaça tornar inoperante a perspectiva ética de uma
responsabilidade em relação ao futuro, a qual evidentemente não se limita à profecia do mal,
tem de ser ela própria incluída na teoria ética e servir de motivo para um novo princípio, que,
por seu turno, possa funcionar como uma prescrição prática. Essa prescrição afirmaria, para
Jonas, que é necessário dar mais ouvidos à profecia da desgraça do que à profecia da
salvação. Por isso, disse que a probabilidade de que experimentemos desconhecidos tenham
um resultado feliz ou infeliz é, em geral, semelhante àquela em que se pode atingir ou errar o
alvo:
o acerto é apenas uma entre inúmeras alternativas, que na maior parte dos casos não
passam, aliás, de tentativas fracassadas; embora, em questões menores, possamos
nos permitir apostar muito, tendo em vista uma chance extremamente pequena de
sucesso, em questões maiores arriscamos bem menos. Em grandes causas, que
atingem os fundamentos de todo empreendimento humano e são irreversíveis, na
254
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 73. Nesse sentido, afirmou que a extrapolação requerida
exigia um grau de ciência maior do que o que existe no extrapolandum tecnológico, e considerando que o
extrapolandum tecnológico representa a cada vez o optimum da ciência existente, o saber exigido sempre é,
necessariamente, um saber ainda não disponível no momento e jamais disponível como conhecimento prévio; no
máximo, somente como saber retrospectivo.
255
Idem, p. 73-74.
256
Idem, p. 75.
103
verdade não deveríamos arriscar nada. A evolução trabalha com os pequenos
detalhes. Nunca arrisca em tudo-ou-nada. [...] O fato de tomar o seu
desenvolvimento em suas próprias mãos, isto é, de substituir o acaso cego, que
opera lentamente, por um planejamento consciente e de rápida eficácia, fiando-se
na razão, longe de oferecer ao homem uma perspectiva mais segura de uma
evolução bem-sucedida, produz uma incerteza e um perigo totalmente novos.
257
A experiência tem ensinado que os desenvolvimentos tecnológicos postos em marcha
pela ação tecnológica com objetivos de curto prazo tendem a se autonomizar, isto é, a adquirir
sua própria dinâmica compulsiva, com um crescimento espontâneo graças ao qual eles se
tornam não irreversíveis como também autopropulsionados, ultrapassando de muito aquilo
que os agentes quiseram e planejaram. Por isso, entendia que “aquilo que já foi iniciado rouba
de nossas mãos as rédeas da ação, e os fatos consumados, criados por aquele início, se
acumulam, tornando-se a lei de sua continuação”,
258
de modo que “a acusação de pessimismo
contra os partidários da profecia da desgraça pode ser refutada com o argumento de que maior
é o ponto de assumir todo risco possível para tentar obter qualquer melhora potencial.”
259
Hans, partindo da premissa de que a incerteza dos prognósticos de longo prazo deva
ser considerada um fato, entendia ser preciso que a ética dispusesse de um princípio que não
fosse ele próprio também incerto, para que pudesse lidar corretamente com esse fato. Na nova
dimensão da ação, porém, não se tratava mais de fantasias ociosas, e por isso uma outra
prescrição deveria ir ao encontro de sua incerteza. Ao tratar do elemento da aposta no agir, o
autor referiu que “devemos refletir sobre o aspecto de jogo de azar ou de aposta contido em
todo agir humano, concernente ao seu resultado e aos efeitos colaterais, e quando nos
interrogamos sobre que lances poderíamos fazer, falando em termos éticos”.
260
Assim, no entrelaçamento indissolúvel dos assuntos humanos, bem como de todas as
coisas, não se pode evitar que o meu agir afete o destino de outros; logo, arriscar aquilo que é
meu significa sempre arriscar também algo que pertence a outro e sobre o qual, a rigor, não
tenho nenhum direito. Determinar o quanto uma consciência ética superior pode tolerar de
inconsciência, ou seja, até onde podemos ferir conscientemente ou mesmo por em risco (nas
apostas) interesses alheios aos nossos projetos, é, em cada circunstância, uma tarefa para a
casuística da responsabilidade, não podendo ser definido, de modo geral, pela doutrina dos
princípios.
261
257
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 77.
258
Idem, p. 78.
259
Idem, p. 81.
260
Idem, p. 83.
261
Idem, p. 84.
104
Como se depreende do pensamento jonasiano, é possível viver sem o bem supremo,
mas não com o mal extremo. Nunca existe uma razão para apostar entre ganhar ou perder
tudo; mas pode ser moralmente justificado, ou até mesmo imperativo, tentar salvar o
inalienável, correndo o perigo de perder tudo na tentativa. Por causa dessa situação, a máxima
de que a aposta jamais deveria incluir a totalidade dos interesses alheios dos interessados
deixa de ser incondicionalmente válida. Consoante Jonas, o princípio ético fundamental, do
qual o preceito extrai sua validade, é o seguinte: a existência ou a essência do homem, em sua
totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir.
262
Assim Jonas se manifestou
em relação a esse preceito:
Aquilo que temos de exigir do nosso princípio não pode ser obtido pela idéia
tradicional de direitos e deveres pela idéia baseada na reciprocidade -, segundo a
qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio, que por seu turno é visto
como imagem e semelhança de meu próprio dever, de modo que, estabelecidos
certos direitos do outro, também se estabelece o meu dever de respeitá-los e, se
possível (acrescentando-se uma idéia de responsabilidade positiva), promovê-los.
Esse esquema não serve para o nosso objetivo.
263
Quando Hans afirmou com relação ao primeiro imperativo, de que exista uma
humanidade, que “em virtude do imperativo de que deva existir uma humanidade, a rigor não
somos responsáveis pelos homens futuros, mas sim pela idéia do homem, cujo modo de ser
exige a presença da sua corporificação no mundo”, refere-se ao dever de existir mas também
do modo de existir da posteridade. Assim, tratava-se de uma responsabilidade ontológica da
idéia de homem, a qual engendra um imperativo categórico, não hipotético.
264
Para Jonas, esse imperativo é o único ao qual realmente cabe a determinação kantiana
de categórico, isto é, de incondicionalidade. Mas, visto que o seu princípio, como no caso
kantiano, não é a concordância consigo mesma de uma razão que se impõe leis do agir, ou
seja, uma idéia do fazer, mas sim a idéia da existência substantiva de possíveis autores em
geral, nesse caso a idéia é ontológica, isto é, é uma idéia do Ser. Daí resulta que o primeiro
262
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 85-86. Nesse ínterim, afirmou que “as certezas relativas
do presente não podem compensar a incerteza absoluta. O nosso princípio ético da aposta não admite essa
possibilidade. Pois ele proíbe que nos arrisquemos por nada, impede que este risco seja admitido em nossa
escolha – em suma, proíbe a aposta do tudo ou nada nos assuntos da humanidade” (p. 87).
263
Idem, p. 89.
264
Idem, p. 94. O autor sustentou que “a distinção kantiana entre um imperativo hipotético e um imperativo
categórico, própria daquela ética da simultaneidade, também se aplica aqui a essa ética da responsabilidade em
relação ao futuro. O imperativo hipotético diz: se houver homens no futuro, então valem para eles tais ou tais
deveres que devemos respeitar antecipadamente... O categórico impõe simplesmente que haja homens, com uma
ênfase que recai igualmente sobre este que e sobre o que deve existir”.
105
princípio de uma ética para o futuro não se encontra nela própria, como doutrina do fazer (a
qual pertencem todos os deveres para com as gerações futuras), mas na metafísica, como
doutrina do Ser, da qual faz parte a idéia do homem.
265
No capítulo III da obra, Jonas tratou sobre os fins e sua posição no ser, esclarecendo a
relação entre valores e fins (ou objetivos). Um fim é aquilo graças ao qual uma coisa existe e
cuja produção ou conservação exigiu que algum processo ocorresse ou que alguma ação fosse
empreendida:
O fim responde à pergunta “para quê?”. Um tribunal se instala para lavrar
sentenças. Nesses casos, os fins definem as respectivas coisas ou ações, fazem-no
independentemente de seu status como valor. Reconhecê-los como tal não significa
aprová-los. A constatação de que isso é a finalidade de x não envolve nenhum
julgamento de valor. Posso ter uma opinião pouco lisonjeira sobre o tipo de justiça
promulgada por tribunais. Na medida em que assumo o “ponto de vista” das coisas,
posso evoluir do reconhecimento de seus fins imanentes para julgamentos sobre sua
maior ou menor adequação a eles, isto é, sobre sua utilidade para a obtenção desses
fins. Agora passo a falar de sistema jurídico. Estes são então julgamentos de valor
que repousam no entendimento que tenho delas, e não nos sentimentos que
experimento por elas.
266
Conclui afirmando que o “fim”, como tal, é um conceito inteiramente humano; o fim é
estabelecido e mantido por sujeitos humanos,
267
e não é a doutrina dos fins que vai responder
às questões éticas, mas sim à doutrina do valor, à qual se volta no capítulo seguinte, que é a
Teoria da Responsabilidade.
No capítulo IV Hans se ocupou da finalidade como bem em si: a superioridade da
finalidade sobre a falta de finalidade e de como o Ser se coloca em termos absolutos diante do
não-ser. Surge então o caráter problemático de um dever distinto do querer. É justamente aqui
que Jonas vai tecer considerações acerca da posição de Kant, afirmando que, embora Kant
não negue que os objetos possam nos influenciar por causa de seu valor ele rejeita (em nome
da “autonomia” da razão moral), tal influência patológica do sentimento possa constituir o
verdadeiro motivo da ação moral e concede ao pensamento um papel necessário na
conformação da vontade individual à lei. Para ele, tratava-se de um sentimento suscitado em
nós não por um objeto, mas por uma idéia de dever ou de lei moral: o sentimento de respeito.
265
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 94-95. Ao falar sobre a necessidade da metafísica, Hans
entendeu que se deve admitir a possibilidade de uma metafísica racional, “desde que o elemento racional não
seja determinado exclusivamente segundo os critérios da ciência positiva, segundo os moldes kantianos” (p. 97).
266
Idem, p. 107.
267
Idem, p. 115.
106
Kant pensava no respeito à lei, à grandeza incondicional do “tu deves” que emana da razão,
não como faculdade cognitiva, mas como princípio da universalidade, à qual a vontade deve
se conformar.
268
O poder causal é condição da responsabilidade, concepção esta recorrente na seara
jurídica, em que os pressupostos são o dano, o ato ilícito e o nexo de causalidade. O agente
deve responder por seus atos: ele é responsável por suas conseqüências e responderá por elas,
se for o caso. Em primeira instância, isso deve ser compreendido do ponto de vista legal, não
moral. Os danos causados devem ser reparados, ainda que a causa não tenha sido um ato mau
e suas conseqüências não tenham sido nem previstas, nem desejadas. Mas isso somente se
houver um nexo causal estreito com a ação, de modo que a imputação seja evidente e suas
conseqüências não se percam no imprevisível,
269
de forma que quanto menos se age, menor é
a nossa responsabilidade, e, na ausência de um dever positivo, evitar a ação pode constituir
uma recomendação de prudência:
Em suma, entendida assim, a responsabilidade não fixa fins, mas é a imposição
inteiramente formal de todo agir causal entre seres humanos, dos quais se pode
exigir uma prestação de contas. [...] Entretanto, há outra noção de responsabilidade
que não concerne ao cálculo do que foi feito ex post facto, mas à determinação do
que se tem a fazer; uma noção em virtude da qual eu me sinto responsável, em
primeiro lugar, não por minha conduta e suas conseqüências, mas pelo objeto que
reivindica meu agir. [...] É esse tipo de responsabilidade e de sentimento de
responsabilidade e não àquela responsabilidade formal e vazia de cada ator por
seu ato que temos em vista quando falamos na necessidade de ter hoje uma ética
da responsabilidade futura.
270
Nesse contexto, ao tratar do que significa agir de forma irresponsável, referiu que “só
pode agir irresponsavelmente quem assume responsabilidades [...]; o exercício do poder sem a
observação do dever é, então, irresponsável, ou seja, representa uma quebra da relação de
confiança presente na responsabilidade”.
271
Para Jonas, o primeiro objeto de responsabilidade são outros homens. Ao analisar o
pólo fundamental do “ser humano”, disse que ele tem o caráter precário, vulnerável,
revogável – o modo peculiar da transitoriedade de todos os seres viventes, o que por si o
torna objeto de proteção. Todo o ser vivente é seu próprio fim, e não tem necessidade de outra
268
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 161-162.
269
Idem, p. 165.
270
Idem, p. 166-167.
271
Idem, p. 168.
107
justificativa qualquer. Desse ponto de vista, o homem não teria nenhuma outra vantagem em
relação aos outros seres viventes, exceto a de que ele pode assumir a responsabilidade de
garantir os fins próprios aos demais seres.
272
Partindo da premissa de que a existência da humanidade é o primeiro imperativo,
normalmente anônimo e contido, implicitamente, em todos os outros, sustentou que a
possibilidade sempre transcendente, obrigatória por si mesma, precisa ser mantida graças à
continuação da existência. Preservar essa possibilidade como responsabilidade cósmica
significa precisamente o dever de existir, de maneira que a primeira de todas as
responsabilidades é garantir a possibilidade de que haja responsabilidade. Assim, a existência
da humanidade significa simplesmente que vivam os homens; que vivam bem é um
imperativo que se seguiria ao anterior.
273
Seguindo nas suas elucubrações, Hans afirmou que a responsabilidade por uma vida,
individual ou coletiva, se ocupa antes de tudo com o futuro, bem mais do que com o presente
imediato. Isso é verdadeiro em um sentido trivial para toda a responsabilidade, mesmo a mais
particular, acompanhando-se a evolução de uma tarefa até o fim. Mas essa inclusão do
amanhã hoje ganha uma dimensão e uma qualidade totalmente diferentes. Aí, o futuro da
existência inteira, mais além da influência direta do responsável, e conseqüentemente além de
todo cálculo concreto, se tornaria objeto complementar dos atos singulares de
responsabilidade, voltados para as necessidades mais próximas.
Enquanto tais responsabilidades estão no domínio da previsão possível, a outra escapa
à previsão não somente por causa das inúmeras incógnitas do desconhecido que constituem as
circunstâncias objetivas, mas também pela espontaneidade e liberdade da vida em questão a
maior das incógnitas.
274
Assim, o caráter vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado
constitui o aspecto de futuro mais próximo da responsabilidade. Sua realização suprema, que
ela deve ousar, seria a sua renúncia diante do direito que ela ainda não existe e cujo futuro ele
trata de garantir,
275
e a única certeza, paradoxalmente, seria a da incerteza. Ela significa que o
inesperado e o imprevisível são indissociáveis dos assuntos humanos.
276
O dinamismo é a marca da modernidade; ele o é um acidente, mas a propriedade
imanente desta época e, até nova ordem, o nosso destino. Isso quer dizer que temos que contar
com o novo, embora não possamos calculá-lo. É certo que haverá mudança, mas não como
272
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 175.
273
Idem, p. 177.
274
Idem, p. 186.
275
Idem, p. 187.
276
Idem, p. 199.
108
será essa mudança. Invenções e descobertas futuras não podem ser antecipadas e incluídas em
cálculos futuros. O único certo é que elas acontecerão e algumas delas terão um significado
prático enorme e mesmo revolucionário.
277
Daí sua preocupação com a prevenção:
A prevenção é, em geral, a prima causa, pois a predição como advertência é
certamente um motivo mais forte para políticas governamentais, uma exigência
mais coercitiva para a responsabilidade, do que a sedução de uma promessa. A
profecia do mal é feita para evitar que ele se realize; e seria o máximo da injustiça
zombar de eventuais alarmistas, pois o pior não aconteceu: ter se enganado deveria
ser considerado como um mérito. Ao retornarmos à questão do cálculo prévio sobre
progressos futuros, ingressamos forçosamente em uma zona de penumbra, na qual
não se podem traçar claramente as fronteiras do que é lícito fazer, ou seja, sobre o
que se assume responsabilidade, principalmente diante de expectativas de milagres
instigadas pelo desejo ou pela necessidade, freqüentemente alimentadas por uma
crença supersticiosa na onipotência da ciência.
278
Para Jonas, a questão crucial era o fato de que a natureza do agir humano transformou-
se de tal maneira que surgiu uma responsabilidade cujo significado era inaplicável até hoje,
279
o que fez com que também se ocupasse em responder por que a responsabilidade não esteve
até então no centro da ética, dizendo que a responsabilidade é uma função do saber e do
poder, e a relação entre ambas as faculdades não é simples. No passado, contudo, ambas eram
tão restritas que o futuro podia ser abandonado ao destino e à estabilidade da ordem natural,
concentrando-se toda a atenção em como agir corretamente em relação ao aqui e agora.
280
No capítulo V, Hans Jonas falou sobre o futuro ameaçado e a idéia de progresso,
sendo que para ele, o futuro da humanidade é o primeiro dever do comportamento coletivo
humano na idade da civilização técnica, que se tornou tão poderosa no que tange ao seu
potencial de destruição, pois o homem se tornou perigoso não para si, mas para toda a
biosfera. Quando a luta pela existência freqüentemente impõe a escolha entre o homem e a
natureza, o homem vem em primeiro lugar, e mesmo que se reconhecesse à natureza a sua
dignidade, ela deveria se curvar à nossa dignidade superior.
281
Apenas com a superioridade do pensamento e com o poder da civilização técnica, que
ele traz consigo, foi possível que uma forma de vida, o homem, fosse capaz de ameaçar todas
as demais formas (e com isso a si mesma também). A natureza não poderia ter corrido um
277
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 203.
278
Idem, p. 204-205.
279
Idem, p. 207.
280
Idem, p. 209.
281
Idem, p. 229.
109
risco maior do que este de haver produzido o homem, e a teoria aristotélica de uma teleologia
da totalidade da natureza, que estaria a serviço dela mesma, garantindo automaticamente a
integração das partes no todo, vem a ser cabalmente contestada por esse último
acontecimento, coisa que Aristóteles jamais poderia supor. Para Aristóteles, a razão humana,
graças à qual o homem se destacava da natureza, seria incapaz de lesar essa mesma natureza
pela sua contemplação.
282
Para Jonas, no século XX, o perigo se evidencia e se torna crítico:
A união do poder com a razão traz consigo a responsabilidade, fato que sempre se
compreendeu, quando se tratava da esfera das relações intersubjetivas. O que não se
compreendera é a nova expansão da responsabilidade sobre a biosfera e a
sobrevivência da humanidade, que decorre simplesmente da extensão do poder
sobre as coisas e do fato de que este seja, sobretudo, um poder destrutivo. Nascido
do perigo, o novo dever clama, sobretudo, por uma ética da preservação, da
preservação e da proteção, e não por uma ética do progresso ou do
aperfeiçoamento. Apesar da modéstia do seu objetivo, seu imperativo pode ser
muito difícil de ser obedecido, e talvez exija mais sacrifícios do que todos aqueles
que visavam a melhorar a sorte da espécie humana. Considerando a severidade dos
sacrifícios que possam ser necessários, essa questão pode se tornar o aspecto mais
precário da ética da sobrevivência que nos está sendo imposta: um desfiladeiro
entre dois abismos, no qual os meios podem destruir os fins. Esse caminho tem de
ser trilhado à luz incerta do nosso conhecimento e em respeito daquilo que o
homem fez de si mesmo, ao longo dos milênios de produção cultural.
283
Entendia que o perigo decorre da dimensão excessiva da civilização técnico-industrial,
baseada nas ciências naturais. O que chamou de programa baconiano ou seja, colocar o
saber a serviço da dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade
não contou desde as origens, na sua execução capitalista, com a racionalidade e a exatidão que
lhe seriam adequadas, porém, sua dinâmica de êxito, que conduz obrigatoriamente aos
excessos de produção e consumo, teria subjugado qualquer sociedade, considerando-se a
breve escala de tempo dos objetivos humanos e a imprevisibilidade real das dimensões do
êxito. A ameaça da catástrofe do ideal baconiano de dominação da natureza por meio da
técnica reside, portanto, na magnitude do seu êxito, que teria duplo aspecto: econômico e
biológico, inter-relacionados entre si.
284
Como havia criticado em “O Princípio Vida”, a fórmula baconiana afirmava que
saber é poder. Mas Jonas trouxe o alerta de que o programa baconiano, no ápice do seu
282
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 231.
283
Idem, p. 231-232.
284
Idem, p. 235.
110
triunfo, se revelava insuficiente, com a sua contradição intrínseca, ou seja, o descontrole
sobre si mesmo, mostrando-se incapaz de proteger o homem de si mesmo, e a natureza, do
homem:
Ambos necessitam de proteção por causa da magnitude do poder que se atingiu ao
se buscar o progresso técnico, cujo crescente poder engendra a crescente
necessidade de seu uso e, portanto, conduz à surpreendente impotência na
capacidade de pôr um freio ao progresso contínuo, cujo caráter destrutivo, cada vez
mais evidente, ameaça o homem e sua obra. Bacon não poderia imaginar um
paradoxo desse tipo: o poder engendrado pelo saber conduziria efetivamente a algo
como um domínio sobre a natureza, mas ao mesmo tempo a uma completa
subjugação a ele mesmo. O poder tornou-se autônomo, enquanto sua promessa
transformou-se em ameaça.
285
Assim, é possível perceber que Jonas foi bem claro no sentido de que sua análise é sob
o ponto de vista da salvação do ser humano diante da desgraça, e não daquele referente à
realização de um sonho da humanidade, e por isso se volta à ética marxista, porque lhe é
peculiar a orientação em direção ao futuro do empreendimento humano como um todo.
Entendeu que ela seria capaz de orientar a ação predominantemente para o futuro, daí
extraindo as normas para o presente, pois “o marxismo pretende colocar os frutos da herança
baconiana à disposição da humanidade”.
286
Então Jonas passou à análise de quem está mais preparado para enfrentar o perigo, se
o Capitalismo ou o Marxismo. O Marxismo, “progressista” na origem, nascido sob o signo do
“princípio da esperança” e não sob o signo do “princípio do medo”, seria tão tributário do
ideal baconiano quanto a sua contra-parte capitalista, com a qual ele compete: a lógica que
comanda o projeto socialista é igualar e depois ultrapassar o capitalismo na coleta dos frutos
obtidos graças á cnica. Em suma, o marxismo seria, quanto à sua origem, um herdeiro da
revolução baconiana, compreendendo-se como seu testamenteiro.
287
Em seguida, analisou quais seriam as possibilidades de que esse marxismo soubesse
aproveitar as oportunidades no que se referia a dar conta das duras tarefas do futuro. Entre as
possibilidades mais significativas, mencionou a superioridade racional da gica das
necessidades em relação à lógica do lucro,
288
pois desde o início, o Marxismo celebrou o
poder da técnica, acreditando que a salvação dependesse da união desta com a socialização.
285
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 236-237.
286
Idem, p. 237-239.
287
Idem, p. 239-241.
288
Idem, p. 251.
111
Para ele, não se trata de controlar a técnica, mas de liberá-la dos grilhões da propriedade
capitalista, pondo-a a serviço da felicidade humana.
289
A maior das tentações residiria na alma do marxismo a utopia. Essa seria a sua
tentação mais nobre e por isso a mais perigosa; o marxista não poderia ter uma idéia do que
esse homem será, tendo diante dos olhos apenas a história passada, inautêntica, “mas nós,
confrontados com o apelo encantador e vazio da utopia, interpelados pela sua promessa,
deveríamos perguntar o que aquela condição mais justa seria capaz de revelar além dela
própria, e que até agora não pode vir à luz”.
290
Nesse sentido, traz o “super-homem” de
Nietzsche como o futuro homem verdadeiro, mas conclui dizendo que ele não indica como
promover ou tornar possível o aparecimento do homem superior.
291
Quando falou sobre o valor real da utopia, questionou o que se perderia e o que se
ganharia com o seu abandono. Caso o sonho fosse falso, diz que teríamos ganho a verdade ou
a sua maior proximidade, o que nem sempre é saudável. Jonas reconheceu o valor psicológico
da utopia, ao inspirar enormes massas e ações e sacrifícios, dos quais elas seriam incapazes
em outras circunstâncias. A força histórica do mito, verdadeiro ou falso, foi o mais das vezes
insubstituível, para o bem e para o mal. Neste momento, porém, diz que seria concebível uma
maturidade capaz de renunciar à ilusão, e que pela mera preservação da humanidade
assumisse aquilo que antes necessitou do fascínio da promessa: o medo altruísta, em vez da
esperança altruísta.
292
Para Jonas, o progresso moral não acompanhou o progresso intelectual; por isso
afirmou que mesmo no que tange ao progresso intelectual, o conhecimento sobre o homem, a
sociedade e a história teria ficado atrás daquele sobre a natureza. Seria necessário preencher
tais lacunas com um resgate dessas áreas de conhecimento mais atrasadas, de modo que o
homem pudesse resgatar-se a si mesmo, por assim dizer, tornando integral um progresso até
agora unilateral, por causa do abandono de um dos seus aspectos. Para Jonas, essa opinião
exprime um desconhecimento absoluto do que seja o fenômeno humano, e o fenômeno ético
em particular.
293
289
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 254. Assim, entendia que “o progresso técnico
transformou-se no “ópio das massas”, papel antes atribuído à religião. É de temer-se que, mais ainda do que no
capitalismo, ele não o seja apenas para as massas. O impulso tecnológico é um elemento constitutivo da essência
do marxismo. Resistir a ele é tanto mais difícil na medida em que ele se vincula a uma perspectiva de
antropocentrismo extremo, para o qual a natureza como um todo, incluindo a humana, não passa de um meio
para a auto-realização de um homem ainda inacabado” (p. 256).
290
Idem, p. 256-257.
291
Idem, p. 259-260.
292
Idem, p. 266.
293
Idem, p. 267.
112
Quando abordou a questão do progresso da civilização, Jonas alertou que existe um
progresso em direção ao melhor, ou pelo menos em relação ao mais desejado, mas também
existem regressões. Porém, considerando o conjunto, falou de uma “ascensão” da
humanidade, e de um preço intrínseco a esse progresso, pois com cada ganho também se
perde algo valioso. Considerou que o mais claro de todos os progressos é o da ciência e da
técnica: a situação de ambas indissoluvelmente unidas indica uma continuação indefinida
do seu movimento no futuro. Por sua natureza e a dos objetos que tratam, a ciência e a técnica
são capazes de continuar se acumulando sem encontrar nenhum obstáculo.
294
Jonas reconheceu que a busca da ciência e da técnica não é somente um direito, mas
também um importante dever do sujeito do conhecimento, dotado das faculdades para tal.
Mas esse sujeito não é mais o espírito individual, mas, cada vez mais, o espírito coletivo da
sociedade que armazena o conhecimento. Segundo Jonas, aqui se encontra o preço interno do
progresso científico, aquele pago pela qualidade do próprio conhecimento: “o preço que o
indivíduo paga para poder contribuir criativamente no processo é a renúncia a partilhar de
tudo o mais que se encontre fora de sua estreita competência. Assim, na medida em que
cresce o patrimônio cognitivo coletivo, o conhecimento individual se torna cada vez mais
fragmentário”.
295
Assim, a utopia poderia servir para fomentar ou entravar o avanço tecnológico, ou
seja, poderíamos desejá-lo ou temê-lo. Diferentemente da ciência, o progresso pode não ser
desejável, pois a técnica não se justifica como tal, mas apenas pelos seus efeitos. Mas ela
partilha com o seu criador, a ciência, que se tornou seu gêmeo, a idéia de que o seu
movimento autônomo é um fato unívoco, no sentido de que cada novo passo seja a superação
do anterior. Segundo Jonas, esse não seria um julgamento de valor, mas uma constatação
objetiva: “podemos deplorar a invenção de uma bomba atômica dotada de poder destrutivo
ainda maior e considerá-la como um valor negativo. Porém, o que lamentamos é exatamente o
fato de que ela seja tecnicamente melhor; nesse sentido, sua invenção é um progresso”.
296
Na técnica, esse êxito, com sua visibilidade pública estonteante, abarcando todos os
domínios da vida, faz com que a aventura prometéica se desloque, diante da consciência
comum, do papel de um simples meio (o que toda a técnica é em si mesma) para o de
finalidade, mostrando-se a “conquista da natureza” como a vocação da humanidade: o Homo
294
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 269.
295
Idem, p. 270.
296
Idem, p. 271.
113
Faber ergue-se diante do Homo Sapiens, que se torna, por sua vez, instrumento daquele, e o
poder externo aparece como o supremo bem.
297
Já no capítulo VI, em que tratou a crítica da utopia e a ética da responsabilidade, Jonas
falou sobre a dialética de um progresso que gerou novos problemas para resolver os
problemas que ele mesmo criou, tornando-se sua própria compulsão; problema central da
ética que postulou, a ética de responsabilidade para com o futuro: “na zona onde penetramos
com nossa técnica, e onde de agora em diante devemos nos movimentar, a senha é a
prudência, e não o exagero. O encanto da utopia é a última coisa que deveria turvar a lucidez
de que necessitamos”.
298
O sonho utópico sustenta que os atuais perigos e limites da tecnologia não existirão
mais, pois a técnica seempregada de forma mais sábia, mas também porque o seu potencial
de progresso inevitável, livre das coerções sociais, como verdadeiro Prometeu libertado, pela
primeira vez poderá ser plenamente explorado. As possibilidades da técnica não encontram
limites, salvo aqueles impostos pela sociedade, nem limites próprios às suas faculdades, nem
limites da natureza para o seu emprego frutífero.
299
Quando tratou do progresso com precaução, Jonas esclareceu que nada do que havia
dito até então deveria ser compreendido como um desestímulo a esse ou a aquele outro
progresso técnico, apesar de constituir um tema recorrente, para nós, o perigo de que esses
poderes caiam nas mãos da avidez e da mesquinharia humanas. Por isso, diz que é preciso
utilizar o presente de forma sábia e moderada, assumindo o ponto de vista de responsabilidade
global e não o da grandiosa esperança planetária. Isso porque, enquanto não existirem
projeções seguras levando-se em conta, particularmente, a irreversibilidade de muitos
processos em curso -, a prudência será a melhor parte da coragem e certamente um imperativo
da responsabilidade, talvez para sempre, se, por exemplo, para avaliar o conjunto das nossas
possibilidades técnicas, aquela ciência tiver de captar a totalidade dos dados para então
processá-los em suas inter-relações. A incerteza poderá ser o nosso destino permanente.
300
Aqui é necessário fazer um breve mas elucidativo parêntesis relacionado ao princípio
da precaução, tão caro no Direito brasileiro. Nos dias de hoje, por exemplo, quando o
profissional das ciências naturais não é capaz de dar um parecer conclusivo, ou seja, não
certeza científica a respeito da danosidade, surge a importante figura do princípio da
precaução. Nesse caso, um risco abstrato, uma gestão de riscos, em que não como
297
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 272.
298
Idem, p. 295.
299
Idem, p. 296.
300
Idem, p. 306-307.
114
determinar o nexo de causalidade. Porém, embora haja ignorância sobre o resultado em razão
da falta de pesquisas conclusivas e possíveis riscos potenciais, nada impede que se tome
medidas preventivas frente à ameaça de danos irreversíveis de uma atividade:
La elaboración de los productos y las investigaciones que sustentan la biotecnología
deben ser compatibles con la adopción de precauciones y medidas de seguridad en
el manejo de la materia viva, más todavía cuando ésta ha sido objeto de
modificaciones genéticas, cuyas interferencias en otros seres vivos, incluido el ser
humano, son imprecindibles. Por su parte, el Derecho se ve comprometido en la
protección jurídica de los logros de las investigaciones y en especial de los nuevos
productos que, alversar sobre la meteria viva, ofrece perfiles nuevos que no siempre
son fácilmente asimilables por los isntrumentos jurídicos tardicionales, en
particular cuando se entrecruzan interrogantes de naturaleza ética con intereses
económicos que, en principio, han de ser tenidos como legítimos.
301
Nesse sentido, o objetivo do princípio da precaução não é frear ou impedir o
desenvolvimento da promissora área biotecnológica, mas sim que isso seja feito de forma
precavida. Portanto, é uma garantia contra riscos potenciais que, de acordo com o estado atual
do conhecimento, ainda não podem ser identificados. Realmente, trata-se da aplicação de um
ditado popular muito conhecido, de que é melhor prevenir do que remediar. Na falta de
experimentos que possibilitem haver plena certeza científica, não se pode descartar a hipótese
de que haja riscos, riscos estes que não podemos avaliar o alcance, se as relações de causa e
efeito não forem plenamente estabelecidas cientificamente, não sendo exagero dizer que eles
poderiam ser sérios ou até mesmo irreversíveis, de forma que
el principio de la precaución impone avanzar en una medida semejante al avance
científico, como forma de prevenirlos o controlarlos, y tiene su fundamento en la
incertitumbre científica, siendo una manifestación reciente del Derecho de la
responsabilidad, comporta la adopción de medidas de protección más allá de lo que
sería estrictamente necesario desde un cálculo de probabilidades en relación con
riesgos no probables.
302
Retomando o exame do ideal utópico como tal, afirmou Jonas que ele tem a ver com
dois aspectos: seu conteúdo positivo, pelo menos na medida em que ele foi formalmente
configurado, e seu contraste negativo, ou seja, a doutrina de que a história até agora ainda não
301
CASABONA, Carlis Romeo. La biotecnología y los principios de eficacia, seguridad y precaución. In:
PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética 2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 130.
302
Idem, p. 133.
115
nos teria apresentado o verdadeiro homem. O contraste faz parte do ideal, pois prescreve que
o humano não deveria ser concebido de acordo com a imagem daquilo que a humanidade
existente apresentaria como o melhor (pré-humano), mas deveria ser algo novo.
303
Hans Jonas criticou a tese marxista de que a natureza seria humanizada pelo trabalho
do homem. A humanização definitiva, então, que só seria atingida a partir da concretização do
marxismo, finalmente libertaria o homem desse trabalho que modificou a natureza,
permitindo pela primeira vez a plena humanização do homem. Para ele, humanizar significava
o contrário para o seu objeto respectivo: para o homem, uma vez que ele não mais está
submetido à natureza, significaria que pela primeira vez poderia ser ele próprio; para a
natureza, que ela não seria mais ela própria. Assim, a natureza seria “humanizada” no mesmo
sentido em que a nobreza feudal “nobilitava” os seus servos, ou que as raças inferiores teriam
sido “arianizadas” pelas raças superiores, caso tal empreitada tivesse sido levada até o fim.
Com esse sentido objetivo e brutal, a “humanização da natureza” não passaria de uma
bajulação hipócrita que encobre a subjugação completa da natureza pelo homem, com vistas à
sua total exploração para as necessidades deste último.
304
Segundo Jonas, o paradoxo que Bloch não percebeu é que é justamente a natureza
não-alterada e não utilizada pelo homem, a natureza selvagem, a que consiste na natureza
humana, ou seja, aquela correspondente ao homem, aquela que foi posta ao seu serviço é,
simplesmente, natureza inumana:
a natureza que é poupada pode se revelar. Assim, o interesse humanístico que
professam os utopistas encontrará um refúgio precisamente onde se detenha a
utópica “reconstrução do planeta Terra”. [...] O exemplo da natureza ensina o
mesmo que aprendemos com os outros exemplos: o caráter intrinsecamente
desejável da utopia, quando julgado de acordo com a qualidade de vida, se anula na
medida em que é capaz de realizar suas premissas no caso, a reconstrução radical
da natureza. E a possibilidade de felicidade na utopia depende do caráter
incompleto da realização do seu programa. A sua concepção fracassa em virtude
dessa contradição interna, mesmo que suas premissas reais fossem realizáveis.
305
Conforme Jonas, que todos devemos caminhar para o futuro com uma determinada
visão do passado - naqueles termos anteriormente mencionados, em que tratou as relações
passado, presente e futuro à sombra do ensinamento de Heidegger - é importante saber se,
303
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 310.
304
Idem, p. 333-334.
305
Idem, p. 336.
116
independentemente da nitidez das representações sobre o futuro, encontramos ou não no
passado esse homem do qual se deverá tratar no futuro:
A ética da responsabilidade tem ela própria, pois, necessidade de examinar a tese
do “ainda não” para toda a história precedente. O que significa e como se pode
conceber a idéia de que tudo o que o homem pode e “deve” ser não aconteceu até
agora, podendo apenas acontecer no futuro? Não podemos supor que tal enunciado
se refira ao progresso da civilização, graças ao qual muitas coisas ainda estão por
vir, pois ocorreria não na essência dos indivíduos, na natureza dos homens, mas na
instrumentalidade e na organização coletiva da sua existência.
306
Hans Jonas apontou o erro fundamental do primado da esperança de Bloch: a simples
verdade que segundo ele deve ser respeitada em toda a sua inteireza de que o “homem
verdadeiro” existiu desde sempre, com seus altos e baixos, em sua grandeza e em sua
mesquinhez, em seu gozo e em seu tormento, em sua justificativa e em sua culpa, ou seja, em
tudo o que não é separável da sua ambivalência. Tentar eliminá-la significaria querer suprimir
o homem e o caráter insondável da sua liberdade. Por causa desse caráter e da singularidade
de cada situação, esse homem será sempre novo e diferente dos demais, porém jamais “mais
verdadeiro”; também poderá ser protegido dos perigos intrínsecos que precisamente fazem
parte da sua “verdade”.
307
O erro básico da utopia estaria, portanto, no seu pressuposto antropológico, na sua
concepção do Ser do homem. Numa comparação metafórica, afirmou Jonas que o presente do
homem, diferentemente daquele da larva que deve se tornar borboleta, seria sempre
inteiramente pleno nessa presença problemática que ele é. Justamente esse caráter
problemático, que havia sido trazido pelo seu mestre Heidegger e que não está presente em
nenhum outro Ser, essa condição permanentemente habitada pela transcendência, essa
abertura “para isso ou aquilo”, que jamais se livra, portanto, do “tanto...como” e das
306
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 337.
307
Idem, p. 343. Uma “teoria da esperança” foi proposta pelo alemão-judeu Ernst Bloch (1885-1977) na obra
“Princípio Esperança” (Prinzip Hoffnung), de 1959 e também na obra anterior, “Espírito da Utopia”, de 1918,
quando então imaginou um homem novo em terra nova. Nesse sentido, afirmou Marchionni que “a utopia
genérica de Bloch não resolve o problema, pois a utopia o é um fato novo, ela sempre existiu, e toda geração
criou suas utopias nos milênios: ontem, como hoje e no futuro, cada satisfação engendrará a sua insatisfação,
cada ter o seu desejo, cada paciência a sua impaciência. Falta no irracionalismo sentimental-utópico de Bloch a
clareza sobre as ações a serem cumpridas” (MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes,
2008, p. 206).
117
impossíveis respostas para os seus “por quê?” e “para quê?” eis um fenômeno-limite da
natureza e, como tal, sobre o qual ela tem de se sustentar.
308
Então, seria necessário se resignar com o fato de que devemos aprender do passado o
que “é” o homem, ou seja, o que ele pode ser, positiva ou negativamente. Para Jonas, tal
ensinamento nos fornece toda a matéria desejável para a exaltação ou o horror, para a
esperança ou o temor, e também parâmetros de avaliação, bem como das exigências que
fazemos. Ainda, disse que também seria necessário renunciar à idéia de que houvesse uma
“natureza” definida para o homem; por exemplo, de que, de acordo com sua natureza (em si),
o homem seria bom ou mau, pois ele tem a aptidão de ser bom ou de ser mau, e mesmo as
duas ao mesmo tempo, porque tudo isso faz parte da sua essência.
309
A crítica da utopia teria sido demasiada extensa caso a utopia marxista, em sua estreita
aliança com a técnica, não representasse uma versão escatologicamente radicalizada daquilo
para onde o ímpeto tecnológico mundial nos está empurrando, sob o signo do progresso.
Assim, a crítica da utopia implicava uma crítica da tecnologia, na antecipação de suas
possibilidades extremas. Para Jonas, a crítica da utopia serviu de fundamentação para a
alternativa que propôs: a da ética da responsabilidade, que “após vários séculos de euforia
baconiana e prometéica, deve segurar as rédeas desse progresso galopante. Conter tal
progresso deveria ser visto como nada mais do que uma precaução inteligente”.
310
Assim, na
medida em que a crítica da utopia possa exercer alguma influência como tentativa de retificar
a maneira de pensar e a vontade, ela própria se tornaria uma ação inserida na ética da
responsabilidade.
Ao princípio da esperança, Hans Jonas contrapôs o Princípio Responsabilidade, e não
o princípio medo confusão esta que não pode ser feita em razão da sua heurística do medo,
já mencionada anteriormente, cujos termos são completamente distintos de um princípio
medo. Mas certamente, assiste razão a Jonas quando afirmou que o medo pertence à
responsabilidade, tanto quanto a esperança. Já que ele tem uma imagem menos cativante, e
mesmo uma certa má-reputação psicológica e moral em círculos bem pensantes, novamente
assumiu sua defesa, pois “o medo é hoje mais necessário do que o foi em outros tempos,
quando, confiando-se no rumo correto das ações humanas, se podia desprezá-lo como uma
fraqueza dos pusilânimes e dos medrosos”.
311
308
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 344.
309
Idem, p. 345.
310
Idem, p. 349-350.
311
Idem, p. 351.
118
Sobre a esperança, disse que é uma condição de toda ação, na medida em que ela
supõe ser possível fazer algo e diz que vale a pena fazê-lo em uma determinada situação, pois
é uma das condições da ação responsável não se deixar deter por esse tipo de
incerteza os homens experientes sabem que um dia podem ter desejado não ter
agido desta ou daquela forma assumindo-se, ao contrário, a responsabilidade pelo
desconhecido, dado o caráter incerto da esperança; isso é o que chamamos de
“coragem para assumir a responsabilidade”. O medo que faz parte da
responsabilidade não é aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele que nos
convida a agir. Trata-se de um medo que tem a ver com o objeto da
responsabilidade; fundamentalmente vulnerável.
312
a responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação em relação a um outro
ser, que se torna preocupação quando uma ameaça à sua vulnerabilidade, e que como
dito, pressupõe o medo, o qual está presente na questão original, e com a qual podemos
imaginar que se inicie qualquer responsabilidade ativa. Afinal, quanto mais no futuro
longínquo situa-se aquilo que se teme, quanto menos familiar for o seu gênero, mais
necessitam ser diligentemente mobilizadas a lucidez da imaginação e a sensibilidade dos
sentidos, tornando-se necessária, então, uma heurística do medo, conforme terminologia
empregada por Jonas, capaz de investigar, e que não descubra e represente o novo objeto
como tal, mas que tome conhecimento do interesse moral particular, ao ser interpelado pelo
objeto, algo que jamais teria ocorrido antes.
313
Jonas pregou, então, a recuperação de um respeito e de um medo que nos protejam dos
caminhos do nosso poder, por exemplo, de experimentos com a constituição humana. Para
ele, o paradoxo atual es em que precisamos recuperar esse respeito a partir do medo, e
recuperar a visão positiva do que foi e do que é o homem a partir da representação negativa,
recuando diante do que ele poderia tornar-se, ao encararmos fixamente essa possibilidade no
futuro imaginado. Somente o respeito, na medida em que ele nos revela algo “sagrado”, que
não deveria ser afetado em nenhuma hipótese, nos protegeria de desonrar o presente em nome
do futuro, de querer comprar este último ao preço do primeiro. Da mesma maneira que a
esperança, o medo tampouco deve nos levar a adiar o objetivo verdadeiro a prosperidade do
312
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 351.
313
Segundo Jonas, Bloch entendia o medo como conseqüência da carência de sonhos em relação ao futuro,
quando não se está preparado para as coisas que virão, anulando o homem, enquanto a esperança faria o
contrário, reanimando o homem.
119
homem na sua humanidade íntegra. Assim, conclui afirmando que os meios que não respeitam
os homens do seu próprio tempo fariam isso.
314
Portanto, após nos concentrarmos mais especificamente na obra “O Princípio
Responsabilidade” em si, também é necessário tecer algumas comparações e trazer pontos de
vista elucidativos, enriquecedores do presente trabalho, a partir de estudos contemporâneos
que retomaram a obra jonasiana. Com isso, será possível perceber não somente sua
atualidade, mas principalmente a valoração da sua aplicação nos dias de hoje, em especial no
que toca ao Princípio Responsabilidade.
2.4 Estudos e considerações da obra O Princípio Responsabilidade
Retomando o que foi dito anteriormente, Potter trouxe a questão da consciência do
dilema levantado pelo exponencial aumento do conhecimento, alertando para o fato de que
isso é desacompanhado de um crescimento da sabedoria necessária para administrá-lo. É
nesse contexto que se insere o Princípio Responsabilidade de Hans Jonas na construção de
uma ética da responsabilidade no que tange à manipulação genética. Assim como as éticas
especializadas citadas por Potter, também esta é de suma importância para que haja uma
sobrevivência humana sustentável.
315
Assim, após nos determos na obra jonasiana propriamente dita, também se faz
necessário tecer alguns comentários sobre ela, amparados em alguns estudos empreendidos,
que muito contribuem para a compreensão da importância e dos meandros do Princípio
Responsabilidade. Inicialmente, em suma, ao analisar criticamente a ciência moderna e seu
braço armado, a tecnologia, Jonas buscou demonstrar a necessidade do ser humano de agir
314
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 353.
315
POTTER, Van Rensselaer. Bioética global e sobrevivência humana. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul de; PESSINI, Leo. Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 342. A Ética médica é a
ética clínica que lida com os dilemas enfrentados pelos médicos, pacientes e cuidadores dos pacientes. Os
eticistas médicos são obrigados a levar em conta não somente as decisões clínicas do dia-a-dia, mas também as
conseqüências a longo prazo das ações que eles recomendam ou falham em considerar. A Ética ambiental é uma
ética que lida com a relação da humanidade com a terra, as plantas e os animais que crescem nela, assim
denominada por Aldo Leopold na obra Ética na Terra. A Ética agricultural uma obrigação ética para prover
reservas sustentáveis de alimento para uma população mundial em expansão, de forma a prover a necessidade de
alimentos sem aumentar as dificuldades futuras. A Ética social procura soluções para o conflito entre os
superprivilegiados e os pobres, principalmente quanto à tendência para os mais privilegiados versus a luta pela
sobrevivência, para que os superprivilegiados adotem uma ética de preocupação para com os pobres.
A Ética religiosa busca uma moralidade básica que transcenda os conflitos sectários, de forma que a educação
secular desenvolva um senso de responsabilidade individual e integridade moral nos jovens.
A Ética capitalista é uma categoria usualmente não considerada, mas a filosofia do livre mercado é proclamada
como um instrumento para o agir do bem social por meio da chamada mão invisível do próprio interesse que o
economista Adam Smith desenhou em 1776.
120
com parcimônia, sabedoria e humildade diante do extremo poder transformador da
tecnociência. Para isso, elaborou as bases de uma nova ética, lembrando o impacto das
bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, cuja destruição, até então, era tida como
improvável, senão impossível.
316
A partir de tudo o que foi dito, é possível afirmar que Hans Jonas, quando tratou da
heurística do medo, referia-se a um temor que tem por objeto eventuais perigos que ameaçam
a humanidade no plano de sua permanência, de sua sobrevivência:
Emblemáticos são os perigos que afetam o ecossistema dentro do qual se
desenvolvem as atividades humanas ou os que resultam das manipulações
biológicas aplicadas à reprodução humana ou à identidade genética da espécie
humana ou, ainda, a intervenção química ou cirúrgica sobre o comportamento do
homem. Em suma, o homem, pela técnica, tornou-se perigoso para o homem, e isso
ocorre na medida em que ele põe em perigo os grandes equilíbrios cósmicos e
biológicos que constituem os alicerces vitais da humanidade.
317
316
Nesse sentido: “Hans Jonas señala como marco inicial del abuso del dominio del hombre sobre la naturaleza –
causando su destrucción el choque provocado por las bombas de Hiroshima y Nagasaki. En una entrevista
publicada en el número 171 de la revista Esprit, del mes de mayo de 1991, dice textualmente: Ello puso en
marcha el pensamiento hacia un nuevo tipo de cuestionamiento, que maduró debido al peligro que representa
para nosotros mismos nuestro poder, el poder del hombre sobre la naturaleza. Sin embargo, más que la
conciencia de un brusco apocalipsis, él tuvo el sentimiento de un posible apocalipsis gradual, resultante del
creciente peligro presentado por los riesgos del progreso técnico global y su utilización inadecuada. Hasta ese
entonces, el alcance de las prescripciones éticas estaba restringido al ámbito de la relación con el prójimo en el
momento presente. Era una ética antropocéntrica y dirigida a la contemporaneidad. La moderna intervención
tecnológica cambió drásticamente esa plácida realidad al poner la naturaleza al servicio del hombre y susceptible
de ser alterada radicalmente. De ese modo, el hombre pasó a tener una relación de responsabilidad con la
naturaleza, puesto que la misma se encuentra bajo su poder. Además de la intervención en la naturaleza
extrahumana, es grave la manipulación del patrimonio genético del ser humano, que podrá introducir
alteraciones duraderas de consecuencias futuras imprevisibles” (SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de
responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001, vol.7, n.2, p.277-285. Disponível em:
<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X2001000200009&lng=es&nrm=iso>. ISSN
1726-569X. Acesso em 05/01/2009). Afirma Hans Jonas como um quadro inicial de abuso de domínio do
homem sobre a natureza – causando sua destruição - o choque provocado pelas bombas de Hiroshima e
Nagasaki. Em uma entrevista publicada na edição 171 da revista Esprit do mês de maio de 1991, diz
textualmente: Isso fez com que o pensamento se voltasse a um novo tipo de questionamento, que amadureceu
por causa do perigo que representa para nós mesmos nosso próprio poder, o poder do homem sobre a natureza.
No entanto, ao invés de uma forte consciência do apocalipse, ele sentiu como um possível apocalipse gradual,
resultante do crescente perigo representado pelos riscos do progresso técnico global e o seu uso inadequado. Até
então, o alcance das prescrições éticas era restrito ao âmbito da relação com o próximo no momento presente.
Era uma ética antropocêntrica e dirigida ao contemporâneo. A intervenção tecnológica moderna mudou
radicalmente a realidade para ao colocar a natureza ao serviço do homem e suscetível de ser radicalmente
alterada. Assim, o homem começou a ter uma relação de responsabilidade com a natureza, uma vez que se
encontra sob seu poder. Além da intervenção na natureza extra-humana, é grave a manipulação do patrimônio
genético humano, que pode introduzir alterações duradouras em termos de conseqüências futuras imprevisíveis”
(Tradução nossa).
317
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 132-133.
121
O poder do ser humano de manipular a técnica, principalmente por meio da
Engenharia Genética, não foge dessa constatação; muitos hoje pensam se tratar de um
exagero, mas o preço de ‘pagar para ver’ seria abrir mão do Princípio Responsabilidade
aplicado às manipulações genéticas, deixar de dosar, deixar de controlar, deixar de estabelecer
limites, necessidade esta que decorre do fato de que
o agir humano, deixando de ser regulado por fins naturais, se transforma no centro
de um desequilíbrio específico. Hoje percebemos a força desse agente
transformador. Por sua dimensão cósmica, por seus efeitos cumulativos e
irreversíveis, as técnicas introduzem distorções tão definitivas que criam uma
periculosidade sem precedentes na história da vida. A preservação da vida sempre
teve um custo; todavia, com o homem moderno esse custo, esse preço a ser pago
pode ser a destruição total. De maneira proporcional ao incremento da
periculosidade do homem, cresce em importância sua responsabilidade como tutor
de todas as formas de vida.
318
Daí a reflexão de Trevijano:
Cambiarnos a nosotros, y mucho más directamente y no como consecuencia lenta y
no controlada de una variación provocada por nosotros mismos en el médio
ambiente, tiene tremendas repercusiones éticas tanto en el campo individual como
en el de la espécie. Si las bombas atómicas de Hirósima y Nagasaki produjeron
tremendas lesiones físicas y morales en los que recibieron la radiación y en sus
descendientes en muchos casos, muchos peores consecuencias podría traer la
intervención ingenieril en nuestro genoma. Por eso la ingeniería genética se ha
convertido en uno de los principales, por no decir el más importante punto de
reflexión para la Bioética.
319
O uso inadequado do progresso técnico pode ter suas conseqüências descobertas
tardiamente, se hoje não se efetivar a aplicação do princípio responsabilidade na Bioética, em
especial no que tange às manipulações genéticas, pois “o saber moderno, de forte acento
técnico, se faz acompanhar de um extraordinário poder de transformação, destituído porém de
318
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 133.
319
ETCHEVERRIA, Manuel Trevijano. Que es la bioética? Salamanca/España. Ediciones Sígueme, S.A., 1998,
p. 14. “Mudamos a nós mesmos, e muito mais diretamente e não como conseqüência lenta e não controlada de
uma variação causada por nós mesmos no meio ambiente, tem enormes implicações éticas tanto no campo
individual quanto no da espécie. Se as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki produziram terríveis danos
físicos e morais nos que receberam radiação e seus descendentes, em muitos casos, conseqüências muito piores
poderiam trazer a intervenção da engenharia no nosso genoma. Por isso a engenharia genética tornou-se um dos
principais, para não dizer o mais importante ponto de discussão para a bioética” (Tradução nossa).
122
uma reflexão ética que exerça moderação sobre o imperial poder da tecnociência”.
320
Por isso,
Jonas parte de um novo imperativo ético de que o ser humano deve agir de tal maneira que os
efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica, de
modo a não colocar em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra:
Os danos observáveis que se apresentam à reflexão do agente intelectual da
transformação mobilizam nele sentimentos de angústia e sofrimento. A prescrição
ética não se impõe como coerção, mas sim como um forte apelo dirigido à
liberdade do agente da transformação. E é justamente enquanto apelo singular que a
responsabilidade ética se converte em sentimentos. É nesse campo do
comportamento que Hans pretende legislar.
321
Assim, é possível afirmar que os avanços científicos cursam em geral adiante do Direito,
que retarda a sua acomodação a conseqüências daqueles, sendo que esse assincronismo entre
ciência e Direito origina um vazio jurídico que permite ao filósofo, ao médico e ao jurista
refletirem e proporem ajustes ao sistema, de modo que a tarefa interdisciplinar propõe não
apenas racionalizar o presente, mas também programar o futuro. Isso tudo porque
ao longo deste século, o Direito tem se deparado com situações sociais novas,
derivadas das mudanças nos sistemas de controle e produção de bens e serviços,
bem como das relações econômicas. Modificaram-se as relações interindividuais
cujo conjunto as ciências biomédicas constituem um dos exemplos mais
representativos. [...] O Direito, sem embargo, nem sempre está em condições de
oferecer respostas adequadas válidas e unívocas para realidades ou fenômenos
novos, como está ocorrendo, em certa medida, com as ciências biomédicas. É então
quando a relação entre Ética, Direito e Medicina se fazem mais presentes.
322
É justamente a teoria da responsabilidade o ponto central de toda a reflexão jonasiana,
que visava o entendimento da ética da responsabilidade
323
em relação ao futuro, solucionando
320
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 131.
321
Idem, p. 134.
322
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 23.
323
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 24. Para Morin, “responsabilidade é noção humanista ética que tem
sentido para o sujeito consciente. [...] A questão da responsabilidade escapa aos critérios científicos mínimos que
pretendem guiar a distinção do verdadeiro e do falso. Está entregue às opiniões e convicções, e, se cada um
pretende e julga ter conduta ‘responsável’, não existe fora da ciência nem dentro dela um critério verdadeiro da
123
as questões relacionadas à sustentação metafísica, considerada retrógrada pela filosofia
moderna, por retornar aos pré-modernos, especialmente Aristóteles. No entanto, segundo
Zancanaro, esse retorno é estratégico, à medida que objetiva chamar a atenção para a hybris
da moderna subjetividade e de seu intento de poder tudo. Aqui reside um dos pontos mais
críticos que geram posições de aceitação e rejeição. Em outras palavras: superar o dualismo
entre conhecimento científico e metafísico, pois “Jonas entendeu que o instrumento de
combate ao niilismo moderno é a doutrina do ser, isto é, combatê-lo pelo que tem de mais
frágil que é o desconhecimento da dignidade da vida”.
324
Hans Jonas atentou para o fato de que a pesquisa é gerenciada por instituições
tecnoburocráticas e também de que a tecnociência vai produzindo conhecimentos que, sem
sofrer qualquer reflexão crítica, transformam-se em regras impostas à sociedade que, em
geral, é obediente a essa máquina cega de saber, de forma que, “para que haja
responsabilidade, é preciso que haja um sujeito consciente. Ocorre que o imperativo
tecnológico elimina a consciência, elimina o sujeito, elimina a liberdade em proveito de um
determinismo. A hiperespecialização das ciências mutila e desloca a noção de homem”.
325
A partir do momento em que, de um lado, ocorreu o divórcio da subjetividade humana,
reservada à filosofia, e a objetividade do saber, que é próprio da ciência, o conhecimento
científico desenvolveu as tecnologias mais refinadas para conhecer todos os objetivos
possíveis, mas se tornou completamente alheio à subjetividade humana. Ficou cego para a
marcha da própria ciência, pois a ciência não pode se conhecer, não pode auto-analisar-se
com os métodos de que dispõe hoje em dia:
o potencial apocalíptico da técnica - sua capacidade para pôr em perigo a
sobrevivência do gênero humano ou corromper sua integridade genética, ou alterá-
la arbitrariamente, ou até mesmo destruir as condições de uma vida mais elevada
sobre a terra - coloca a questão metafísica, com a qual a ética nunca fora
anteriormente confrontada, qual seja: se e por que deve haver uma humanidade; por
que, portanto, o homem deve ser mantido tal como a evolução o produziu; por que
deve ser respeitada sua herança genética; sim, por que, em geral, deve haver vida. A
pergunta não é ociosa como parece (na ausência de alguém que seriamente negue
todos esses imperativos), pois a resposta a ela é significativa acerca do quanto,
permitidamente, nos é lícito arriscar em nossas grandes apostas tecnológicas e quais
riscos são inteiramente inadmissíveis. Se existir é um imperativo categórico para a
‘verdadeira’ responsabilidade. [...] Não basta ter boas intenções para ser verdadeiramente responsável. A
responsabilidade deve enfrentar uma terrível incerteza” (p. 117-118).
324
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 144. “Cabe
perguntar se as coisas têm fins, ou se é o homem que dá fins a elas” (p. 145).
325
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 128.
124
humanidade, então todo jogo suicida com essa existência está categoricamente
proibido, e ousadias técnicas, nas quais esta é a aposta, ainda que apenas
remotíssima, devem ser desde o início excluídas.
326
Marchionni referiu que Hans Jonas fundamentou sua ética da seguinte forma: todo ser
quer viver e não quer ser aniquilado. Isso está escrito na profundeza metafísica do ser; “já
Aristóteles e São Tomás de Aquino tinham dito: o ser é melhor que o não ser; o Bom, como
vontade de existir, está estampado na intimidade do ser, e não depende da escolha livre do
homem; o homem é o único ser que pode ter responsabilidade entre os seres viventes”.
327
Concordou com Jonas no sentido de que a técnica não se disciplina sozinha, necessitando de
uma nova ética, na medida em que as éticas até hoje existentes consideram que o alcance do
agir humano é circunscrito no lugar e no tempo,
328
surgindo a necessidade de uma ética da
responsabilidade, centrada sobre as conseqüências das suas escolhas em razão do que Hans
denominou potencial escatológico da tecnologia.
Também Volnei Garrafa concordou com Jonas sobre a necessidade de uma nova ética
da responsabilidade, afirmando que Jonas foi provavelmente quem falou com mais
propriedade sobre a impotência da ética e da filosofia tradicionais frente ao homem
tecnológico,
329
que possui tantos poderes não para desorganizar, como também para mudar
radicalmente os fundamentos da vida, de criar e destruir a si mesmo:
326
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Hans Jonas: por que a técnica moderna é um objeto para a ética. Nat.
hum.[online].dez.1999,vol.1,no.2,p.407a420.Disponívelem:<http://pepsic.bvspsi.org.br/scielo.php?script=sci_art
text&pid=S151724301999000200007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1517-2430. Acesso em 05/01/2009.
327
MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 203.
328
Idem, p. 204. Exemplificativamente, diz que Kant dialoga com a pessoa e nada diz sobre a natureza; Marx
preocupa-se com o poder das massas, e não sobre o que é a ecologia, por exemplo; Adam Smith se dedica ao
mercado, e nem suspeita as conseqüências; Habermas e Aple estão interessados no consenso entre os presentes,
desconhecendo os pósteros, de forma que nenhuma dessas éticas interroga sobre os nossos descendentes
longínquos, preocupando-se apenas com o aqui e o agora.
329
Segundo Oswaldo Giacoia Júnior, a ética tradicional tem três características principais, assim por ele
enumeradas: 1. Todo domínio das relações com o mundo extra-humano, toda esfera cultura da techne
(Kunstfertigkeit) era considerado, com exceção da medicina, eticamente neutro. A verdadeira vocação do homem
estava em outra parte, na esfera da polis. Esse constituía o locus próprio da ética; 2. Isso qualifica toda ética
tradicional como fundamentalmente antropocêntrica. Dotado de significação e relevância, ética é apenas o plano
das relações intra-humanas, considerado o plano das relações consigo mesmo. A relação com as coisas e com
os seres naturais em geral é, no fundo, uma relação mediata entre pessoas; 3. Os efeitos positivos ou negativos
que poderiam resultar do agir humano eram considerados em limites espaços-temporais próximos a esse agir.
Efeitos remotos ou conseqüências distantes da ação eram relegados ao acaso. Preceitos éticos tradicionais se
referiam a uma comunidade de agentes mais ou menos presentes, atual ou virtualmente, não diziam respeito ao
futuro remoto ou às futuras gerações. O imperativo categórico de Kant é, para Jonas, um exemplo perfeito do
caráter de presença que domina as éticas tradicionais. “age de tal maneira que possas querer que a máxima de tua
ação valha como lei universal da naturezaesse preceito ético se dirige a uma hipotética comunidade de agentes
racionais pressuposta como direita e presentemente implicada e cada situação concreta da ação (JÚNIOR,
Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: O Princípio Responsabilidade. Ensaio para uma ética da civilização tecnológica.
In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis:
125
Ao mesmo tempo em que gera novos seres humanos através do domínio de
complexas técnicas de fecundação assistida, agride diariamente o meio ambiente do
qual depende a manutenção futura da própria espécie: o surgimento da AIDS e a
destruição da camada de ozônio são invenções deste mesmo homem tecnológico,
que oscila suas ações entre a criação de novos benefícios extraordinários e a insólita
destruição de si mesmo. Nesse sentido, é necessário que ocorram mudanças nos
antigos paradigmas técnico-científicos, o que não significa obrigatoriamente a
dissolução dos valores existentes, mas sua transformação: deve-se avançar de uma
ciência eticamente livre para outra eticamente responsável.
330
O ser humano tem o desafio de assumir a responsabilidade dos efeitos de suas ações na
questão da manipulação genética, pois “o desenvolvimento da biotecnologia não pode
determinar a apropriação da vida como uma inexorável conseqüência da ciência, da economia
e da técnica moderna”.
331
Nesse sentido, Zancanaro afirmou que
Jonas tem consciência dos perigos intrínsecos à tecnologia, talvez não os imediatos
da ameaça iminente, mas das possíveis conseqüências a longo prazo. Considera que
a verdadeira essência do seu domínio é a utilização para o bem e o legítimo. A
filosofia assume essa tarefa, tendo em vista que nenhuma ética anterior se ocupou
desse objeto. [...] Jonas refere-se à necessidade de sabedoria, de um novo gênero de
humildade, enfim, de razões éticas que imponham limites a certas pretensões da
ciência e da tecnologia. A situação presente mostra que estamos inseridos na
ditadura tecnológica, tanto na esfera do conhecimento quanto na esfera do
consumo.
332
Vozes, 2000, p. 196).
330
GARRAFA, Volnei. Bioética: os Limites da Manipulação. In: SILVA, Reinaldo Pereira (Org.). Direitos
Humanos como educação para a Justiça. São Paulo: LTr, 1998, p. 257-258.
331
BOFF, Salete Oro. Bioética e sociedade multicultural. In: Direitos Culturais. Revista do Mestrado da URI
Santo Ângelo/Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, v. 1, n. 1. Santo Ângelo:
EDIURI, 2006, p. 280. Nesse sentido, falando da nova dimensão de responsabilidade trazida por Jonas, Siqueira
traz uma pertinente reflexão: “La superespecialización de las ciencias mutila y distorsiona la noción del hombre.
La idea de hombre fue desintegrada. Las subespecialidades de la biología descartan la idea de vida humana
integral, dejando en su lugar la concepción de moléculas, de genes, del A.D.N. Ese divorcio entre los avances
científicos y la reflexión ética hicieron que Jonas propusiera nuevas dimensiones para la responsabilidad”
(SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001,
vol.7,no.2,p.277285.Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X200100
0200009&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1726-569X. Acesso em 05/01/2009). “A superespecialização da ciência
mutila e distorce a noção de homem. A idéia do homem foi desintegrada. As especialidades da biologia
descartam a idéia de vida humana integral, deixando em seu lugar a concepção de moléculas, genes, DNA. Este
divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética fizeram com que Jonas propusesse novas dimensões para
a responsabilidade” (Tradução nossa).
332
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 140-141.
126
Por isso, a extensão, tanto espacial como temporal, da série causal da práxis
tecnológica, aliada à nove ordem de grandeza, é irreversibilidade dos efeitos e ao caráter
cumulativo dos mesmos, produz uma completa e radical transformação até mesmo do ponto
de partida das éticas tradicionais. Para esses, a situação fundamental, na qual vício e virtude
têm que se comprovar na práxis, permanecia sempre a mesma, de modo que as condições
originais se reproduzem, essencialmente inalteradas, a cada nova situação de ação: “com a
auto-reprodução cumulativa implicada na transformação tecnológica do mundo, as condições
iniciais de cada um dos atos da série causal são completamente suplantadas a cada nova
intervenção, o que cria, a cada nova ação, autenticas situações sem precedentes, para a quais
são impotentes as lições da experiência anterior: trata-se do efeito cumulativo da auto-
reprodução das transformações tecnológicas.
333
Para Hans Jonas, a era tecnológica contemporânea fez com que o homem de hoje
não pudesse mais desconsiderar a necessidade de ser responsável, sobretudo nessa dimensão
temporal de grande profundidade, tanto pelo presente, como também pelo futuro que foge aos
seus olhos, ou seja, o mais distante que consiga projetar naqueles termos que Jonas
recuperou de Heidegger sobre passado, presente e futuro, anteriormente referidos. Segundo
Barchifontaine, o fundamento ético da responsabilidade reside em ser responsável pela
existência de tudo e de todos. Preservar a natureza e a humanidade da possibilidade de uma
catástrofe é ampliar a responsabilidade, levando em conta o alargamento espacial e temporal
das relações de causa e efeito que a prática tecnológica suscita.
334
Por isso, Siqueira diz que
La prescripción ética no se impone como coerción, sino como una fuerte exhortación
dirigida a la libertad del agente de transformación. Y es justamente como una
exhortación singular que la responsabilidad ética se convierte en sentimiento. Es en
ese campo del comportamiento que Jonas pretende legislar. Es en ese momento que la
existencia se vuelve vulnerable y su esencia puesta en juego. Reflexionemos, por
ejemplo, sobre la responsabilidad ética relativa al otro, al ser humano presente, real y
objeto de acciones transformadoras de la ciencia. El otro, en la calidad de ser humano,
guarda en su existencia una exigencia radical de respeto pues detenta un mandato de
vida que, por solo, habla elocuentemente de la necesidad de manutención de su
integridad. Es inimaginable, por ejemplo, el Proyecto Genoma Humano sin la
presencia de la reflexión ética como principio, medio y fin de todas sus posibles
intervenciones. La responsabilidad en la ética es la articulación entre dos realidades,
una subjetiva y otra objetiva. Es forjada por esa fusión entre el sujeto y la acción. Al
mismo tiempo, hay también un aspecto de descubrimiento que se revela en la acción
propiamente dicha y sus consecuencias. El orden ético está presente, no como
333
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: O Princípio Responsabilidade. Ensaio para uma ética da civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 198.
334
BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo:
Edições Loyola, 2002, p. 11.
127
realidad visible, sino como un llamado sensato que pide calma, prudencia y
equilibrio. A este nuevo orden Jonas le da el nombre de Principio Responsabilidad.
335
uma ética que deve regular a investigação, mas também uma ética que poderá
dizer: ‘até aqui chegamos, agora é necessário frear’. Os freios na esfera do nosso poder
adquirem importância porque nascem da antecipação da ameaça, do perigo, do temor. O
temor pode ser um limite à compulsão baconiana, à utopia da ciência moderna e da moderna
subjetividade, fundadas na idéia: ‘tudo o que é possível deve ser feito’. O sentimento de
responsabilidade como antecipação da ameaça, da destruição e da catástrofe pode contribuir
para tornar nossa ação moral, já que nela está implicada a vida, e sua continuidade exige
renúncia à onipotência do poder.
336
Nesse sentido se pronunciou Siqueira acerca do tema:
335
SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001,
vol.7,n.2,p.277a285.Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X200100
0200009&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1726-569X. Acesso em 05/01/2009. “A exigência ética não é imposta como
coerção, mas como uma forte exortação para a liberdade do agente de transformação. E é justamente como uma
exortação singular que a responsabilidade ética se converte em sentimento. É neste campo do comportamento
que Jonas pretende legislar. É neste ponto que a existência torna-se vulnerável e sua essência é colocada em
jogo. Reflitamos, por exemplo, sobre a responsabilidade ética relativa ao outro, ao ser humano presente, real e
objeto de ações transformadoras da ciência. O outro, na qualidade de ser humano, guarda em sua existência uma
exigência radical de respeito,pois detém um mandato de vida, que, por si só, fala eloqüentemente da necessidade
de manutenção de sua integridade. É inimaginável, por exemplo, o Projeto Genoma Humano, sem a presença da
reflexão ética como princípio, meio e fim de todas as possíveis intervenções. A responsabilidade na ética é a
relação entre duas realidades, uma subjetiva e uma objetiva. É forjada pela fusão entre sujeito e ação. Ao mesmo
tempo, também um aspecto da descoberta que se revela na ação e suas conseqüências. A ordem ética está
presente, não é realmente visível, mas como uma chama chamada sensível à calma, cautela e equilíbrio. A essa
nova ordem Jonas dá o nome de princípio da responsabilidade” (Tradução nossa).
Também referiu que “el principio de responsabilidad pide que se preserve la condición de existencia de la
humanidad, muestra la vulnerabilidad que la acción humana suscita a partir del momento en que él se presenta
ante la fragilidad natural de la vida. Nuestra obligación se hace incomparablemente mayor en función de nuestro
poder de transformación y la conciencia que tenemos de todos los eventuales daños causados por nuestras
acciones. Lo que el imperativo de Jonas establece, en efecto, no es sólo que existan hombres después de
nosotros, sino precisamente que sean hombres de acuerdo con la idea vigente de humanidad y que habiten este
planeta con todo el medio ambiente preservado”. “O princípio da responsabilidade clama que se preserve a
condição de existência da humanidade, mostra a vulnerabilidade que a ação humana suscita a partir do momento
em que se depara com a fragilidade natural da vida. Nossa obrigação é incomparavelmente maior em função do
nosso poder de transformação e a consciência que temos de todos os eventuais danos causados por nossas ações.
O que o imperativo de Jonas, prevê, com efeito, não é apenas que existam homens depois de nós, mas
precisamente que sejam homens de acordo com a idéia vigente da humanidade e que habitem este planeta com
todo o meio ambiente protegido” (Tradução nossa).
336
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 141. A fórmula
baconiana diz que saber é poder. No entanto, a realização dessa fórmula, no ápice de seu triunfo, tornou
manifesta a dialética em que se envolve esse poder: o grau mais avançado de exploração técnica da natureza para
sujeição desta à vontade de poder humana revela, sob o signo da iminente catástrofe ecológica, sua insuficiência
e sua autocontradição. Esta se apresenta sob a figura da perda de controle sobre si mesmo em que mergulha o
programa baconiano, por sua incapacidade de proteger não somente o homem de si mesmo, mas também de
proteger do homem a natureza e a própria natureza humana, tal como esta se revelou em sua essência até aqui.
Essa dupla necessidade de proteção surge justamente por meio da extensão desmedida do poder alcançado no
128
Concluimos con Jonas que el ser humano requiere contestar con su propio ser a una
noción más amplia y radical de la responsabilidad, la referente a la naturaleza humana
y extrahumana, ya que la tecnología moderna permite acciones transformadoras en un
espectro que va desde el genoma humano hasta el plan cósmico. Lo que caracteriza el
imperativo de Jonas es su orientación hacia el futuro, más exactamente hacia un
futuro que ultrapase el horizonte cerrado, en el interior del cual el agente
transformador pueda reparar daños causados por él, o sufrir la condena de los
eventuales delitos que él haya perpetrado. Según Paul Ricoeur, el vínculo entre la
responsabilidad y el peligro para la humanidad, impone que al concepto de
responsabilidad se adicione un aspecto que lo distinga definitivamente de la
imputabilidad. Se considera responsable, se siente afectivamente responsable aquél a
quien le es confiada la guarda de algo perecedero. ¿Y qué hay más perecedero que
observar a la vida marcharse hacia la muerte por la inconsecuente intervención del
hombre? El lejano futuro es el lugar de un temor específico, para el cual Jonas
introduce la figura de la “heurística del temor”. Un temor cuyos objetivos son los
posibles peligros que amenazan a la humanidad en el plano de su permanencia. Son
emblemáticos los peligros que resultan de la manipulación biológica aplicada a la
reproducción humana, o a la identidad genética de la especie humana, o todavía a la
intervención química o quirúrgica sobre el comportamiento del hombre.
337
Assim, o objeto de responsabilidade é o futuro enquanto realidade ameaçada, que pode
ser destruída pelo poder tecnológico, cuja origem está no saber científico. Fazer renascer o
sentimento de responsabilidade significa impor ao querer a força e o apreço pela dignidade da
vida, transformando-a em valor. O poder e o querer necessitam de um significado moral cuja
função é combater o niilismo oriundo da crença obcecada na ciência de um lado, e do outro,
no esquecimento do homem. Para atacá-lo em seu ponto mais sensível, foi necessário entrar
percurso do progresso técnico e da compulsão paralelamente crescente a seu emprego, que conduziu à espantosa
impotência de pôr termo ao extensivo e previsível progresso destrutivo de si mesmo e de suas obras.
337
SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth. [online]. 2001,
vol.7,n.2,p.277a285.Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1726569X200100
0200009&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1726-569X. Acesso em 05/01/2009. “Concluímos com Jonas que o ser
humano precisa responder com seu próprio ser a uma noção mais ampla e radical da responsabilidade, referente
à natureza humana e extra-humana, já que a tecnologia moderna permite a transformação de ações que vão desde
um espectro do genoma humano até o plano cósmico. O que caracteriza o imperativo de Jonas é a sua orientação
para o futuro, para um futuro que ultrapasse o horizonte fechado, dentro do qual o agente transformador pode
reparar os danos causados por ele, ou sofrer a condenação por eventuais crimes que ele haja perpetrado. Segundo
Paul Ricoeur, a relação entre a responsabilidade e o perigo para a humanidade, exige que ao conceito de
responsabilidade se acrescente um aspecto que o distingue definitivamente da imputabilidade. É responsável, se
sente emocionalmente responsável aquele a quem é dada a guarda de coisa perecível. O que é mais perecível do
que observar a vida marchar em direção à morte pela intervenção inconseqüente do homem? O futuro distante é
o local de um medo específico, para o qual Jonas introduz a noção de "heurística do medo". Um medo cujos
objetivos são os possíveis perigos que ameaçam a humanidade em termos de sua permanência. São
emblemáticos os perigos que resultam da manipulação biológica aplicada à reprodução humana ou à identidade
genética da espécie humana, ou mesmo a intervenção química cirúrgica sobre o comportamento do homem”
(Tradução nossa).
129
no que ele mais desconhecia: o fenômeno da vida. A resposta adequada a tudo isso consistiu
na elaboração de uma filosofia ao mesmo tempo ontológica e ética da vida,
338
pois
o que caracteriza o imperativo de Jonas é sua orientação para o futuro, mais
precisamente para um futuro que ultrapassa o horizonte fechado no interior do qual
o agente transformador pode reparar danos causados por ele ou sofrer a pena por
eventuais delitos que tenha perpetrado. O vínculo entre responsabilidade e perigo
para a humanidade impõe que se acrescente ao conceito de responsabilidade um
traço que o distinga definitivamente da imputabilidade. Considera-se responsável,
sente-se afetivamente responsável aquele a quem é confiada a guarda de algo
perecível. E o que de mais perecível que a vida humana desviada para a morte
pela conseqüente intervenção do homem? Assim compreende-se melhor a idéia de
vida que se apresenta na formulação do imperativo de Jonas.
339
Nesse sentido, Hans Jonas despertou para a existência da grande diferença entre a
experiência física (artificialmente concebida) e da experimentação humana, onde se opera
com o próprio original, a verdadeira coisa em todo o seu sentido, a partir da idéia de que “a
agressão que consiste em fazer de uma pessoa um corpo ou mente experimental não é tanto o
fato de a transformarmos num meio, mas o fato de a transformarmos numa coisa – uma coisa
passível de total submissão”.
340
Referiu Marchionni que Hans Jonas representou um alerta
poderoso, pois “uma ética da responsabilidade pode salvaguardar a vida, ainda que se trate de
uma ética fundada sobre o medo da catástrofe total. É substancial a reação de Jonas à mania
moderna de fundar a ética sobre as areias movediças das filosofias consensuais. Hans fixa a
âncora da sua ética bem no fundo, no coração do ser”.
341
Nesse sentido, a responsabilidade é, na ética, a articulação entre duas realidades, uma
subjetiva e outra objetiva, sendo forjada por essa fusão entre o sujeito e a ação, na medida em
que um aspecto de descoberta que se revela na ação propriamente dita e em suas
conseqüências: “a ordem ética está presente não como realidade visível, mas como um apelo
338
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 142.
339
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 132.
340
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 84. Nesse sentido, “ao considerar a ão direta do homem sobre si mesmo, Jonas
levantou a experimentação com seres humanos como destinada a ocupar o lugar da experiência natural. Da nova
experimentação com o homem, a médica é seguramente a mais legítima; a psicológica, a mais dúbia; a biológica,
ainda por vir, a mais perigosa. [...] a partir do momento em que seres sujeitos e dotados de sensibilidade se
tornam passíveis de experimentação, como acontece nas ciências da vida, na investigação biomédica, a inocência
da procura do conhecimento é perdida e levantam-se questões sérias de consciência” (p. 84).
341
MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 203.
130
previdente que pede calma, prudência e equilíbrio. A essa nova ordem Jonas o nome de
Princípio Responsabilidade”.
342
Esse novo Imperativo ético jonasiano não se dirige (como o imperativo categórico de
Kant) ao comportamento do indivíduo privado, mas ao agir coletivo, sua destinação não é,
portanto, a esfera próxima das relações entre singulares, mas a do domínio da política pública:
Jonas reivindica uma nova espécie de concordância: não a compatibilidade gica
interna da vontade, nem aquela do ato consigo mesmo, mas a concordância entre os
efeitos últimos do ato com a permanência de atividade humana autêntica no futuro.
Tal imperativo não universaliza ou “totaliza” do mesmo modo que o de Kant: não
se trata mais da transferência da máxima subjetiva a uma hipotética comunidade de
todos os seres racionais, em cuja situação a máxima da vontade não engendraria
autocontradição. A “totalização” se faz, para lonas, a partir da objetividade dos
efeitos do agir coletivo, que, em sua realidade, afeta a humanidade como um
todo.
343
Jonas tinha em mente menos o perigo da pura e simples destruição física da
humanidade, mas sim na sua morte essencial, aquela que advém da des-construção e aleatória
reconstrução tecnológica do homem e do ambiente. Ele aponta para a existência de uma
interação entre a pesquisa e o poder. Essa nova configuração da ciência leva a um
conhecimento anônimo que não é mais produzido para obedecer à verdadeira função do saber
durante toda a história da humanidade: a de ser incorporada nas consciências, na busca
meditada e ponderada da qualidade da vida humana. Daí se poder afirmar que
esse novo saber é depositado nos bancos de dados e usado de acordo com os meios
e as decisões dos que detêm o poder. [...] Para que haja responsabilidade, é preciso
existir um sujeito consciente. Contudo, o imperativo tecno-lógico elimina a
consciência, elimina o sujeito, elimina a liberdade em proveito de um
determinismo. A hiperespecialização das ciências mutila e desloca a noção mesma
de ser humano. Esse divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética fez com
que Jonas propusesse novas dimensões para a responsabilidade, pois a “técnica
moderna introduziu ações de magnitudes tão diferentes, com objetivos e
conseqüências tão imprevisíveis, que os marcos da ética anterior já não mais podem
contê-los”.
344
342
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 135.
343
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: O Princípio Responsabilidade. Ensaio para uma ética da civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 200.
344
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Prefácio. In: JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 18.
131
A ética da responsabilidade de Jonas tem como característica combater o defeito mais
forte e favorecer o lado menos beneficiado pelas circunstâncias. Nesse sentido, tal ética estará
sempre ao lado dos fracos contra os fortes e dos que aspiram contra os que já possuem.
uma ética que nos responsabilize a todos pode cumprir o papel de apontar os valores e os fins
a serem perseguidos e utilizar os meios como aquilo que realmente são, sem transformá-los
em fins em si mesmos. Para ele, responsabilidade é princípio primordial e norteador deste
momento da história de utopias caídas e novos paradigmas levantados, no qual o ser humano
busca desesperadamente categorias que o ajudem a continuar vivendo uma vida digna e que
continue merecendo o nome de humana,
345
de forma que “o princípio da responsabilidade
pede que se preserve a condição de existência da humanidade. [...] Nossa obrigação torna-se
incomparavelmente maior em função de nosso poder de transformação e da consciência que
temos de todos os eventuais danos oriundos de nossas ações”.
346
Dessa forma, essa responsabilidade, assim como o novo poder liberado pela
tecnologia, não se restringe à esfera do sujeito individual, pois seu verdadeiro destinatário é a
práxis coletiva, de modo que sua preocupação diz respeito aos efeitos remotos, cumulativos e
irreversíveis da intervenção tecnológica sobre a natureza e sobre o próprio homem:
345
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 19. Nesse sentido, “es menester reconocer que los
paradigmas raramente poseen todos los elementos convincentes de los antecesores, los cuales con no muy poca
frecuencia prevalecen durante siglos, aunque contengan el germen de respuestas más adecuadas para los
problemas que apuntan hacia el futuro. Así es el imperativo de Jonas, que aún no cumplió treinta años y se
ofrece para sustituir el imperativo kantiano que ya conmemoró los doscientos. Conservando todavía la
perspectiva de considerar la responsabilidad de las acciones humanas, resulta innecesaria la afirmación de que el
hombre, y solamente él en el reino animal, es capaz de cambiar el curso de la historia de la vida con sus
intervenciones. En una ruta que se bifurca es el caminante quien tiene la opción de elegir. Delante de las
bifurcaciones que se presentan, cualquier cosa que hagamos, cualquiera que sean los criterios utilizados para
nuestra opción, tenemos la percepción de que el producto final obtenido depende exclusivamente de nuestra
decisión” (SIQUEIRA, José Eduardo de. El princípio de responsabilidad de Hans Jonas. Acta bioeth.
[online].2001,vol.7,no.2,p.277a285.Disponívelem:<http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S17
26569X2001000200009&lng=es&nrm=iso>. ISSN 1726-569X. Acesso em 05/01/2009). “É necessário
reconhecer que os paradigmas raramente m todos os elementos convincentes dos antepassados, os quais com
não pouca freqüência prevalecem durante séculos, apesar de conter as sementes de respostas mais adequadas aos
problemas que apontam para o futuro. Assim é o imperativo de Jonas, que ainda não completou trinta anos e se
oferece para substituir o imperativo kantiano que comemorou os duzentos. Retendo ainda a perspectiva de se
considerar a responsabilidade das ações humanas, é desnecessária a declaração de que o homem, e ele sozinho
no reino animal, é capaz de mudar o curso da história de vida com suas intervenções. Em uma estrada que se
bifurca é o caminhante que tem uma escolha. À frente das bifurcações que ocorrem, independentemente do que
fazemos, seja qual for o critério para a nossa escolha, temos a percepção de que o produto final obtido depende
exclusivamente de nossa decisão” (Tradução nossa).
346
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 133.
132
Para Jonas, o poder tecnológico abriga uma dimensão ameaçadora e perigosa; o
risco que se encontra encerrado no sucesso extraordinário do poder tecnológico é
aquele que envolve a possibilidade de desfiguração da essência ou natureza daquilo
que tradicionalmente é pensado sob o conceito homem, risco face ao qual Jonas
propõe uma postura fundamental de temor e reverência. Não se trata de mera
existência, mas de preservar as condições sob as quais se compreendeu e se
compreende o essencialmente humano, coma s ambivalências e oposições
características do mistério de sua liberdade, a que pertencem as experiências de
fortúnio e infortúnio, prazer e dor, bem e mal, nas quais se desdobra a epopéia
humana em sua história.
347
Como é possível perceber, ao falar em responsabilidade, Hans Jonas insistiu no
cuidado com o uso da tecnologia, na medida em que esta se torna cada vez mais global e não
conhece limites. A ciência não surge de um pensamento compreensivo da realidade, mas
como compulsão de conquista ilimitada, representada pela sede utópica da afirmação
baconiana: ‘saber é poder’, ideal que, como dito, expõe a crença na ciência como solução
dos problemas da humanidade.
348
A fórmula baconiana diz que saber é poder. No entanto, segundo Giacoia Júnior, a
realização dessa fórmula, no ápice de seu triunfo, tornou manifesta a dialética em que se
envolve esse poder: o ápice do poder de exploração técnica da natureza para sujeição desta
aos fins humanos revela, sob o signo da catástrofe ecológica, sua insuficiência e sua
autocontradição; esta se apresenta sob a figura da perda de controle sobre si mesmo em que
mergulha o programa baconiano em sua incapacidade de proteger não somente o homem de si
mesmo, mas também de proteger do homem a natureza e a própria natureza humana, tal como
esta se revelou em sua essência até aqui:
Essa dupla necessidade de proteção surge justamente por meio da extensão do
poder alcançado no percurso do progresso técnico e da necessidade paralelamente
crescente de seu emprego, que conduziu à espantosa impotência de pôr termo ao
extensivo e previsível progresso destrutivo de si mesmo e de suas obras. [...] O que
seria necessário fazer, para que o limite derradeiro não fosse imposto pela própria
347
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da Ética contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 195.
348
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 143. Conforme
Zancanaro, “Jonas insiste na defesa da responsabilidade pelo que vamos fazer, numa tentativa de superar a visão
positiva de responsabilidade como imputação causal. Somos responsáveis pelas coisas, por aquilo que vamos
fazer e pelo poder que temos em relação a elas. Em outras palavras: se existe um ‘fim em si’, um ‘bem
intrínseco’, então dele emana o dever e a obrigação. Isso define ‘por que’ somos responsáveis: a natureza es
fora de nós, mas na esfera do nosso poder” (p. 152).
133
catástrofe, é alcançar uma potência de terceiro grau, isto é, uma nova posição de
poder sobre o poder, tornado autônomo, do progresso técnico, que seria a superação
da impotência em relação à compulsão auto-imposta ao exercício do poder
tecnológico. Esse novo poder (que se manifestaria, no limite, como renúncia
à
compulsão ao poder tecnológico) não emergiria da esfera do saber e da conduta
privada, mas da sociedade como um todo, de um novo sentimento coletivo de
responsabilidade e temor.
349
Por isso, Marchionni, em capítulo que tratou da ética da responsabilidade, mencionou
uma palestra de Hans Jonas em Tübingen sobre “O Conceito de Deus após Auschwitz”, lugar
onde perdeu sua mãe, quando então se perguntou: onde estava Deus em Auschwitz? E onde
estava o Homem em Auschwitz? Segundo ele, “para Jonas, Deus se despojou de sua
onipotência para deixar o homem livre. Mas o homem, em sua liberdade, produz o mal, e o
mal da era moderna é a ameaça tecnológica: pela primeira vez na história, as ações do homem
podem revelar-se irreversíveis”.
350
Assim, é possível perceber que a ética de Jonas está em
conformidade com o seu sentido originário, como modo de ser ou caráter em que no respeito à
vida está sua significação plena.
351
Assim, segundo Giacoia Júnior, o dilema crucial de Jonas consiste no seguinte: o
progresso tecnológico dotou o homo faber de um poder de ação cujas forças prometéicas
alteram em extensão e natureza todos os limites anteriores do agir humano, de modo a gerar
também a necessidade de regulamentar, por meio de normas, o emprego efetivo desse
potencia, de modo que o problema principal é que.
o mesmo movimento histórico que gerou o progresso tecnológico - isto é, o
movimento histórico que conduziu o saber modelo, sob a forma das ciências
naturais - acabou também por destruir, paralelamente, as bases das quais se poderia
derivar a legitimidade de uma norma objetiva, até mesmo a idéia de uma tal norma
universalmente válida. No extremo limite de seu desenvolvimento, o saber
moderno conduziu
à
negação da possibilidade de uma verdade objetiva; desse
modo, vivemos hoje a experiência da insubsistência da própria idéia de norma,
mediante a permanência do simples sentimento de norma e de valor que, no
entanto, se desestabiliza e se torna inseguro de si quando confrontado com a critica
corrosiva desse saber. Nossa tragédia contemporânea é a de não poder ressuscitar
nenhuma categoria do sagrado, que pudesse ancorar e tornar subsistente nossas
representações normativas e nossas estimativas éticas. Sabemos apenas da inco-
349
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da Ética contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 203-204.
350
MARCHIONNI, Antônio. Ética: a arte do bom. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 203.
351
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 156. “Jonas não
nega o antropocentrismo. As críticas á ética tradicional m por objetivo mostrar as limitações do seu agir
individual e do seu pouco poder de transformação, num mundo em que as decisões são coletivas” (p. 157).
134
mensurabilidade entre o nosso poder de agir e nosso saber prévio a respeito da ex-
tensão possível das conseqüências do mesmo. Nosso poder de agir transforma em
alternativas viáveis, em projetos indubitavelmente exeqüíveis por meios tecnológi-
cos, aquilo que outrora constituíra um etéreo ideal da razão especulativa, ou até
mesmo uma fantasia extravagante da imaginação. A nós nos resta a escolha, sendo
que nenhum saber prévio pode fornecer um apoio seguro para nossa capacidade de
valorar, julgar e escolher.
352
Portanto, é possível perceber que as questões bioéticas decorrentes da intervenção da
engenharia genética na vida humana trazem questionamentos que transcendem o ordenamento
jurídico; como exemplo contundente está a decodificação do genoma humano e também a
questão das pesquisas com células-tronco embrionárias, que trouxeram novas indagações no
âmbito do Direito. Tudo o que foi dito corrobora a importância da reflexão acerca da teoria da
responsabilidade nos termos propostos por Jonas, considerado um dos maiores pensadores do
século XX, justificando a preocupação em que as manipulações genéticas não sejam
desvinculadas das preocupações éticas.
2.4 Conclusões parciais
O debate proposto nesta pesquisa é relativamente recente na seara jurídica; pode-se
afirmar que faz parte de uma moderna cultura jurídica, surgida a partir das novas exigências
da sociedade em termos de novas interpretações e novas práticas processuais, na busca por
uma prática jurídica voltada às necessidades, conflitos e problemas da vida humana em todos
os seus aspectos: social, cultural, política, filosoficamente. Esse é o desafio do debate sobre o
princípio responsabilidade: a complexidade da vida humana e da tecnociência traz novos
desafios ao Direito, pois exige novas reflexões, posturas e cuidados, principalmente no
sentido de (re)definição de regras, limites, procedimentos, regulamentação esta à qual o
Direito não pode se furtar.
No próximo capítulo, será analisada a questão da liberação das pesquisas com células-
tronco no Brasil à luz do princípio responsabilidade, mas não sem antes tecer um esboço das
conclusões que a aqui podem ser tiradas a partir do que foi exposto no primeiro e no
segundo capítulos. Tal demanda, entre tantas outras, não pode ser satisfatoriamente atendida
352
JÚNIOR, Oswaldo Giacoia. Hans Jonas: o Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização
tecnológica. In: OLIVEIRA, Manfredo A. de (Org.). Correntes fundamentais da Ética contemporânea.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 205-206.
135
pelo arcabouço normativista da teoria jurídica convencional, insuficientemente potencializada
para dar conta dessa nova realidade, à qual o Direito tem dedicado de forma incipiente mas
promissora a disciplina de Biodireito. Essa teoria jurídica tradicional vem sendo questionada –
e aqui são válidas todas as considerações feitas a respeito da concepção tradicional da
responsabilidade jurídica e da responsabilidade proposta por Jonas -, de forma que “os
impasses e as insuficiências do atual paradigma da ciência jurídica tradicional entreabrem,
lenta e constantemente, o horizonte para as mudanças e a construção de novos paradigmas,
direcionados para uma perspectiva pluralista, flexível e interdisciplinar”.
353
Essa preocupação foi possível de aflorar em razão, digamos assim, de uma dupla
imbatível: juristas com interesses filosóficos e filósofos com interesses jurídicos, sendo que
essa junção de saberes muito tem agregado ao Direito, na medida em que
o paradigma tradicional da ciência jurídica, da teoria do Direito (na esfera pública e
privada) e do Direito Processual convencional vem sendo desafiado a cada dia em
seus conceitos, institutos e procedimentos. Diante das profundas e aceleradas
transformações por que passam as formas de vida e suas modalidades complexas de
saber (genética, biotecnologia, biodiversidade, realidade virtual, etc), o Direito não
consegue oferecer soluções corretas e compatíveis com os novos fenômenos, o
Direito tem-se mostrado inerte, com seu equipamento conceitual defasado em
relação aos avanços sociais impostos pelas ciências relacionadas com a Bioética, e
com sua visão centrada preponderantemente na norma.
354
Diante disso, é possível afirmar que, no contexto da complexidade, o princípio
responsabilidade busca unir à cultura jurídica a cultura humanista e a cultura científica num
elo de consciência e responsabilidade:
A cultura humanista é uma cultura genérica que, via filosofia, afronta as grandes
interrogações humanas, estimula a reflexão sobre o saber e favorece a integração
pessoal dos conhecimentos. A cultura científica, de outra natureza, separa os
campos do conhecimento; ela suscita admiráveis descobertas, teorias geniais, mas
não a reflexão sobre o destino humano e sobre o vir-a-ser dela própria enquanto
ciência. [...] A cultura científica, privada da reflexividade sobre os problemas gerais
353
WOLKER, Antônio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ‘novos’ direitos. In:
WOLKER, Antônio Carlos e LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Os Novos Direitos no Brasil: natureza e
perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 3. Entende o autor que essa nova realidade está indissociavelmente
atrelada às transformações tecno-científicas, às práticas de vida diferenciadas, à complexidade crescente de bens
valorados e de necessidades básicas, à emergência de atores sociais, portadoras de novas subjetividades,
individuais e coletivas.
354
Idem, p. 21.
136
e globais, se torna incapaz de pensar a si própria e de pensar os problemas sociais e
humanos que ela coloca.
355
De certa forma, portanto, pode-se dizer que o pensamento de Edgar Morin é
complementário ao de Hans Jonas, inclusive retomando algumas de suas idéias-chave. Morin,
partindo da problemática da inadequação entre os conhecimentos disjuntos, partidos,
compartimentados, bem como das realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares e
multidimensionais, propõe uma reforma paradigmática do pensamento, consistente na aptidão
de organizar o conhecimento; um conhecimento voltado para a reintrodução da consciência na
ciência: “penso ser uma aposta não somente científica. Mais do que isso: é profundamente
política e humana, humana no sentido que concerne, talvez, ao futuro da humanidade”.
356
Morin apontou a ética da responsabilidade não como solução, mas sim como um
caminho. A responsabilidade, assim, é justamente uma forma de reintroduzir a consciência na
ciência, religando os saberes da cultura jurídica, da cultura humanista e da cultura científica, o
que se enquadra no pensamento jonasiano:
Somos responsáveis? Do que somos responsáveis? Responsabilidade! Cada um de
nós pode, mais ou menos, sentir-se responsável ou culpado. Mas a responsabilidade
não é um conceito científico. Porque a responsabilidade não tem sentido senão com
relação a um sujeito que se percebe, reflete sobre si mesmo, discute sobre ele
mesmo, contesta sua própria ação. O cientista se sente responsável. Mas ele deve
tratar esse problema da responsabilidade como qualquer cidadão, com aquela
diferença que o faz justamente em alguma coisa que pode produzir vida e morte,
sujeição ou libertação. [...] A ciência tornou-se um fenômeno central; o
conhecimento científico estimulou o desenvolvimento técnico, o qual
evidentemente reestimulou o conhecimento científico, mas esse desenvolvimento
científico também permitiu a criação da bomba atômica, etc. Estamos num círculo
vicioso em que é justo distinguir aquilo que é científico, técnico, sociológico,
político... Mas é preciso distingui-los, não dissociá-los. E sempre a cegueira, a
incapacidade de olhar-se a si próprio.
357
Nesse sentido, é possível afirmar que o Princípio Responsabilidade pode ser bem
compreendido se entendido no contexto da complexidade e da necessidade de diversos e
355
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 9. O autor enfatiza que a cultura científica é de outra natureza (em relação
à cultura humanística) “porque se fundamenta cada vez mais sobre uma enorme quantidade de informações e de
conhecimentos que nenhum espírito humano saberia nem poderia armazenar” (p. 30).
356
Idem, p. 41.
357
Idem, p. 34. Assim, o problema da ciência e da consciência se encontra hoje colocado como problema ético
e como problema de consciência reflexiva, postulando ambos a reintrodução do sujeito” (p. 35).
137
conscientes olhares e por via oblíqua, no contexto do multiculturalismo -, pois não pode ser
cotejado apenas à luz do Direito, cuja tendência moderna é justamente se voltar para as novas
questões com as quais a sociedade se depara nos dias de hoje, prestando uma contribuição que
passa pela reflexão e normatização, como é o caso das células-tronco embrionárias, entre
tantos outros que da mesma forma percorrem diversas áreas do conhecimento humano.
Morin trouxe um exemplo muito interessante e sugestivo, no sentido de que o
ecologista tem necessidade de conhecer um pouco de biologia, de botânica, de sociologia,
pois “sua cultura para desenvolver seu conhecimento ecológico precisa ser multidimensional;
ele deve desenvolver uma policompetência”.
358
Esclarece que “a questão não é que cada um
perca a sua competência, mas que cada um a desenvolva o suficiente para articulá-la a outras
competências, que, ligadas em cadeia, formariam um círculo completo e dinâmico, o anel do
conhecimento do conhecimento”.
359
Da mesma forma, o Direito precisa servir-se dos conhecimentos da Filosofia, da
Antropologia, da Medicina, da Biologia, da Sociologia, enfim, das mais variadas áreas do
conhecimento, pois todas elas lhe dizem respeito e se interligam, de uma ou outra forma.
Afinal, parafraseando Morin, também a cultura do jurista para desenvolver seu conhecimento
jurídico precisa ser multidimensional, para que possa desenvolver uma policompetência.
Pode-se dizer que essa é uma forma de ser responsável, de rechaçar a cegueira e de olhar para
si próprio, novamente parafraseando Morin. Nesse sentido, conclui Casabona que
cada ves con s frecuencia la hipotética intervención del Derecho se ve precedida
de una adecuada reflexión ética dirigida a encontrar respuestas y soluciones,
asumibles en su momento de forma más o menos general. Esa reflexión ética se ha
percibido cada vez como más irrenunciable y comprometida en relación con las
ciencias de la vida en general.
360
Dessa forma, quem sabe, por tudo o que foi dito, estudos modernos da obra jonasiana
entendem que “talvez, pela premissa contemporânea, subjacente à velocidade imposta pela
358
MORIN, Edgar; LE MOIGNE, Jean Louis. A inteligência da complexidade. Tradução de Nurimar Maria
Falci. São Paulo: Peirópolis, 2000, p. 35.
359
Idem, p. 69.
360
CASABONA, Carlis Romeo. La biotecnología y los principios de eficacia, seguridad y precaución. In:
PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética 2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 130. “Cada
vez cpm mais freqüência a hipotética intervenção do Direito se precedida de uma adequada reflexão ética
dirigida a encontrar respostas e soluções, assumíveis em seu momento de forma mais ou menos geral. Essa
reflexão ética foi percebida cada vez mais como irrenunciável e comprometida em relação com as ciências da
vida em geral” (Tradução nossa).
138
modernidade, de que o realizado é passado, a contribuição de Hans Jonas pareça sempre
mais atual no futuro do que no presente”.
361
Entre os motivos para sua importância na
contemporaneidade, é porque, com o exercício de suas reflexões, Jonas percebeu que as
premissas éticas, até então conhecidas, já não eram válidas, e certamente o percebeu porque
compreendeu a complexidade da tecnociência e da sociedade moderna que despontava na
época em que viveu, ainda que não tenha utilizado essa denominação:
A responsabilidade de cada ser humano para consigo mesmo é indissociável
daquela que se deve ter em relação a todos os demais. Trata-se de uma
solidariedade que o liga a todos os homens e à natureza que o cerca. Parece,
portanto, evidente que a resultante final dessa reflexão busca atender também o
universal. Concluímos, com Jonas, que o ser humano precisa responder, com seu
próprio ser, a uma noção mais ampla e radical da responsabilidade que é a referente
à natureza humana e extra-humana, que a tecnologia hodierna permite ações
transformadoras num espectro que vai do genoma humano ao plano cósmico.
362
Como propósito, Jonas tinha a reflexão de todas as ciências em prol de uma ética
orientada para o futuro: pensar que o homem é agora mais do que nunca o criador partir de
seus atos, mas também que as coisas fogem ao seu controle, é uma das preocupações de
Jonas. Agora, efetivamente, “há questões que nunca antes foram objeto de legislação, caindo
sob a alçada das leis com que a cidade global tem de se dotar para que possa haver um mundo
sustentável para as gerações humanas que ainda virão”.
363
Assim o é com a questão da
liberação das pesquisas com lulas-tronco embrionárias no Brasil, e Jonas, como também
Morin, atentou para a necessidade de reflexão frente à mudança da ação humana, sobretudo,
no que se relaciona com a cnica moderna e as formas pelas quais ela pode afetar o agir
humano. Dito isso, dispomos de todo um arsenal teórico capaz de iluminar o estudo que
faremos no próximo capítulo, a respeito da liberação das pesquisas com células-tronco no
Brasil.
361
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 85. Para os autores, “as questões levantadas por Hans Jonas dizem respeito às
necessidades, os interesses e os direitos da sociedade, em relação ao agir humano – como uma de suas principais
preocupações, a sociedade representa uma abstração, enquanto o indivíduo representa uma concreção. E é sobre
essa perspectiva que o pensamento de Jonas corrobora com a proposta da Bioética como paradigma: perceber na
concreção do indivíduo a chave para orientar a abstração humana sobre sua própria sociedade, ou seu habitat
incluindo-se neste”.
362
PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de Bioética. São Paulo:
Edições Loyola, 2000, p. 132.
363
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 83.
139
3 A LIBERAÇÃO DAS PESQUISAS COM CÉLULAS-TRONCO NO BRASIL À LUZ
DO PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE E DA BIOÉTICA
O princípio é um, mas a multiplicidade das ações que podem decorrer dele é uma
realidade da qual não se pode fugir. A análise também é uma, entre outras que poderão ser
feitas à luz de outras matrizes teóricas, igualmente válidas. Mas o contexto da Bioética e da
responsabilidade poderão iluminar a presente análise a contento, a partir dos conceitos e
também a partir de uma visão crítica da ciência moderna. Nesse sentido, a Bioética pode ser
compreendida como a arte de pensar os princípios que devem governar as ações humanas, e
isso é primordial quando da análise da problemática levantada. Assim, buscou-se pensar um
princípio no que toca a uma ação humana. A impossibilidade de um consenso teórico e
prático, longe de desmerecer esta ou qualquer outra análise, revela a sua importância enquanto
constante busca e reflexão.
A situação jurídica do embrião tem suscitado muitas controvérsias nos meios jurídico
e científico, o que tem sido retratado pela mídia de forma mais intensa nos últimos tempos,
provavelmente em razão justamente do pronunciamento do STF a respeito desse imbróglio.
Tal afirmação torna-se facilmente perceptível diante das inúmeras informações e
posicionamentos que existem a respeito do tema, a demonstrar a falta de consenso no que
tange ao tema.
É nesse contexto que o ordenamento jurídico é chamado para tentar dirimir tais
conflitos, por meio de respostas coerentes à sociedade. No entanto, para isso, é necessário que
o Direito esteja suficientemente instrumentalizado, de modo que possa legitimar os benefícios
que a ciência pode trazer à sociedade, para que seu conhecimento se coadune com o estágio
altamente avançado e especializado da ciência.
Porém, sem privilegiar qualquer tipo de visão simplista e maniqueísta, pretendemos
valorizar uma abordagem jurídico-filosófica que combine conhecimento e reflexão, e que
140
potencialize a responsabilidade como caminho necessário a ser trilhado quando se trata de
tema de tamanha relevância - talvez hoje ainda incalculável - independentemente do teor dos
argumentos favoráveis e contrários. Esse esclarecimento é necessário na medida em que
vários olhares podem ser lançados para servir de direção à análise, mas todos eles, de uma
maneira ou outra, convergem para a matriz teórica proposta: o Princípio Responsabilidade.
Assim, é quando se trata de células-tronco embrionárias como objeto da pesquisa científica
que se torna mais premente a análise da questão sob a ótica da responsabilidade.
3.1 O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.° 3.510 pelo Supremo
Tribunal Federal
Recentemente, o STF esteve diante da difícil tarefa de decidir se deveria manter, à luz
da Constituição da República Federativa do Brasil, a autorização dada pela Lei 11.105, de
24 de março de 2005, no art. e §§, para fins de pesquisa e terapia, sob determinadas
condições, ao uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos
por fertilização in vitro. Alegou a Procuradoria-Geral da República, por meio do então
Procurador da República, Cláudio Fonteles,que tal autorização violaria o direito à vida e à
dignidade da pessoa humana, objetos respectivos do art. 5º, caput, e do art. 1º, inc. III, da
Constituição Federal.
364
Abaixo, transcreve-se o artigo da Lei n.° 11.105/2005, chamada Lei de
Biossegurança:
Art. 5.° É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco
embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não
utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:
I – sejam embriões inviáveis; ou
II sejam embriões congelados 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta
Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3
(três) anos, contados a partir da data de congelamento.
§ 1o Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.
§ 2o Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou
terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à
apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisa.
§ 3o É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e
sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de
1997.
364
O parecer do Procurador da República na época pode ser conferido na íntegra em
http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/pdfs/ADI_3510%20parecer.pdf. Acesso em 15/06/2008.
141
Em votação da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.510-0, acompanhada com
grande interesse pela sociedade em geral e em especial pelos juristas, o Supremo Tribunal
Federal, no dia 29 de maio de 2008, liberou o uso de células-tronco embrionárias em
pesquisas científicas no Brasil. Com a decisão, o Brasil foi o primeiro país da América Latina
a permitir as pesquisas com células-tronco embrionárias e, no mundo, o 26º, entrando no rol
de países como Finlândia, Grécia, Suíça, Holanda, Japão, Austrália, Canadá, Coréia do Sul,
Estados Unidos, Reino Unido e Israel.
O julgamento da ação teve início em março, quando o relator Carlos Ayres Britto e a
então presidente do STF, ministra Ellen Gracie, votaram pela total improcedência da ação,
considerando constitucionais as pesquisas. Seis dos onze ministros do Supremo votaram pela
manutenção do mencionado artigo da Lei de Biossegurança, que permite a utilização, em
pesquisas, dessas células fertilizadas in vitro e não utilizadas.
Foram apontados na ação, como parâmetros constitucionais de verificação mais
evidentes, o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a garantia da
inviolabilidade do direito à vida (art. 5º, caput), o direito à livre expressão da atividade
científica (art. 5º, IX), o direito à saúde (art. 6º), o dever do Estado de propiciar, de maneira
igualitária, ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde (art. 196) e de
promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica
(art. 218, caput).
De todos eles, é possível afirmar que o princípio da dignidade humana mereceu
especial realce, de forma que a argumentação, de uma ou outra forma, esteve a ele vinculada.
E nem poderia ser diferente, já que os princípios são, dentre as formulações do sistema ético-
jurídico, os mais importantes a serem considerados, e nenhuma interpretação será bem feita se
for desprezado um princípio, pois ele vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as
normas, de forma efetiva e concreta.
365
A indagação posta ao exame do STF foi marcada por densa manifestação da
comunidade científica, bem como de comunidades acadêmicas e religiosas, e por fim, da
opinião pública, nesta preponderando a legítima presença daqueles que se vêem como
potencialmente beneficiários de resultados das pesquisas, a partir das promessas de cura para
uma infinidade de moléstias e doenças graves. Dessa forma, digamos que isso é representativo
das diferentes visões de mundo que correspondem às três correntes éticas trazidas
365
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 19.
142
anteriormente por Marchionni, as quais, em linhas gerais, representam as posições
antagônicas nas quais os homens se colocam quando deparados com temas momentosos.
Assim, são uma prova do multiculturalismo por excelência, e também um dos seus maiores
desafios.
Os ministros Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie, Carmen Lúcia Antunes Rocha,
Joaquim Barbosa, Marco Aurélio Mello e Celso de Mello votaram a favor desses estudos,
mediante o que determina a lei. Já os ministros Ricardo Lewandowski, Carlos Alberto
Menezes Direito, Cezar Peluso, Eros Grau e Gilmar Mendes advogaram por modificações na
norma. E para que se possa ter, desde já, um quadro geral do teor do julgamento, faz-se mister
um breve compacto das decisões dos ministros do STF e as principais idéias de cada um
deles.
Carlos Ayres Britto, relator do processo, rebateu o argumento de que o artigo seria
inconstitucional porque a Constituição garante o direito à vida e o embrião já teria vida, pois,
para ele, a vida humana é o fenômeno que transcorre entre o nascimento e a morte cerebral, e
no embrião o que se tem é uma vida vegetativa que se antecipa ao cérebro. O ministro
procurou diferenciar o embrião congelado do formado no útero e da pessoa humana. Para o
relator, o embrião congelado não tem condições de se tornar um feto ou um ser humano já que
teria que ser implantado em um corpo feminino para se desenvolver.
A ministra Ellen Gracie acompanhou integralmente o voto do relator. "Não constato
vício de inconstitucionalidade. Segundo acredito, o pré-embrião não acolhido no útero não se
classifica como pessoa", afirmou Gracie.
o ministro Carlos Alberto Menezes Direito julgou a ação parcialmente procedente,
votando pela inconstitucionalidade parcial do artigo 5º da Lei de Biossegurança, no sentido de
dar interpretação conforme o texto constitucional, propondo modificações no artigo, de forma
a permitir que sejam feitas pesquisas com células-tronco embrionárias retiradas do embrião
sem destruí-lo. Para ele, o embrião é, desde a fecundação, mais presentemente, desde a união
dos núcleos do óvulo e do espermatozóide, um indivíduo, um representante da espécie
humana, que terá a mesma carga genética de um feto, de uma criança, de um adulto, de um
velho. Segundo ele, deve-se manter as pesquisas com células-tronco, porém sem prejuízo para
os embriões.
Em seis pontos salientados, o ministro propõe ainda mais restrições ao uso das células
embrionárias, embora não o proíba. Contudo, prevê maior rigor na fiscalização dos
procedimentos de fertilização in vitro congelados três anos ou mais, no trato dos embriões
143
considerados inviáveis, na autorização expressa dos genitores dos embriões e na proibição de
destruição dos embriões utilizados.
A ministra Carmen Lúcia Antunes Nogueira votou a favor das pesquisas com lulas-
tronco embrionárias. Afirmou que sua utilização é uma forma de saber para a vida, sendo essa
a natureza dessa pesquisa científica, que não afronta, mas busca ampliar a vida. Para a
ministra, a pesquisa não apenas não viola o direito à vida, como se torna parte da existência
humana, contribuindo, assim, para dignificar a vida humana. Citou estudos científicos
indicando que as pesquisas com células-tronco embrionárias, que podem gerar qualquer
tecido humano, não podem ser substituídas por outras linhas de pesquisas, como as realizadas
com células-tronco adultas, e que o descarte dessas células não implantadas no útero as
tornaria lixo genético.
O ministro Ricardo Lewandowski pediu restrições às pesquisas com células-tronco.
Ele acolheu parcialmente a ação e pediu que a lei fosse modificada de forma que as pesquisas
só sejam feitas com embriões inviáveis que não se dividiram espontaneamente. Assim, opinou
pela restrição da realização das pesquisas aos dispositivos questionados na lei, dando-lhes
interpretação conforme a Constituição.
O ministro Eros Grau, embora favorável, fez várias ressalvas, sugerindo que fossem
feitas modificações na Lei de Biossegurança, o que imporia restrições à pesquisa. Grau se
manifestou no sentido de que as células-tronco usadas nas pesquisas fossem apenas aquelas
obtidas a partir de óvulos que não se dividiram espontaneamente, que a pesquisa fosse
previamente autorizada pelo Ministério da Saúde e que os óvulos fossem apenas aqueles
provenientes de fertilização in vitro exclusivamente para a reprodução humana.
O ministro Joaquim Barbosa acompanhou integralmente o voto do relator, pela total
improcedência da ação. Para Joaquim Barbosa, a proibição das pesquisas com células
embrionárias, nos termos da lei, significaria fechar os olhos para o desenvolvimento científico
e os benefícios que dele podem advir. Trouxe exemplos de países como Espanha, Bélgica e
Suíça, em que esse tipo de pesquisas é permitida com restrições semelhantes às já previstas na
lei brasileira, como a obrigatoriedade de que os estudos atendam ao bem comum, que os
embriões utilizados sejam inviáveis à vida e provenientes de fertilização in vitro, e por fim,
que haja consentimento expresso dos genitores para o uso dos embriões nas pesquisas.
Para o ministro Cezar Peluso, as pesquisas não ofendem o direito à vida, porque os
embriões congelados não equivalem a pessoas. Entretanto, chamou atenção para a
importância de que essas pesquisas sejam rigorosamente fiscalizadas - ressaltou a necessidade
de o Congresso aprovar instrumentos legais para tanto.
144
O ministro Marco Aurélio Mello votou a favor das pesquisas científicas com células-
tronco embrionárias, sob o principal argumento de que se tratava de definir o destino dos
óvulos fecundados que fatalmente seriam destruídos e que podem e devem ser aproveitados
na tentativa de progresso da humanidade.
A favor das pesquisas, o ministro Celso de Mello disse que a lei 11.105 aos
embriões que seriam descartados por serem inviáveis uma destinação mais nobre, em relação
a uma outra destinação que seria o lixo sanitário. Em relação às afirmações de que a lei
contraria o direito à vida, afirmou: "Um ovo ou embrião que não pode ser implantado em
útero não tem potencial de ser um ser humano".
Por fim, o ministro Gilmar Mendes fez ressalvas à legislação, por considerar que a
norma brasileira possui deficiências. Mendes afirmou que causa perplexidade perceber que no
Brasil esse tema seja regulamentado por apenas um artigo, enquanto que em outros países, a
regulamentação legal é bem mais rica. Afirmou também que a lei deixa de destinar um órgão
central para a fiscalização das pesquisas, vinculado ao Ministério da Saúde.
Esse é um breve panorama das idéias gerais contidas nos votos, as quais têm o condão
de oferecer uma visão geral sobre o teor dos argumentos. Porém, em que pese a
impossibilidade metodológica de análise de um a um dos votos e argumentos em sede de uma
pesquisa de Mestrado, é necessário trazer à baila alguns dos principais argumentos que
embasaram a decisão do Supremo Tribunal Federal,
366
de forma a analisar de que forma as
questões trazidas pela Bioética e pelo Princípio Responsabilidade foram encaradas na referida
decisão, tarefa à qual passamos a nos lançar a partir de agora. Depois de estudado na presente
pesquisa todo um arcabouço teórico que teve o condão de proporcionar a instrumentalização
366
A base para esse breve comentário sobre a decisão do STF como um todo se encontra no próprio site do STF,
disponível em http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510CP.pdf. Acesso em
15/06/2008. A título de informação, também trazemos alguns dados mais completos sobre a Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.° 3.510-0 (Distrito Federal):
Relator : min. Carlos Britto
Requerente(s) : Procurador-Geral da República
Requerido(a/s) : Presidente da República
Advogado(a/s) : Advogado-Geral da União
Requerido(a/s) : Congresso Nacional
Interessado(a/s) : Conectas Direitos Humanos
Interessado(a/s) : Centro de Direito Humanos – CDH
Advogado(a/s) : Eloisa Machado de Almeida e outros
Interessado(a/s) : Movimento em prol da vida - movitae
Advogado(a/s) : Luís Roberto Barroso e outro
Interessado(a/s) : Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero
Advogado(a/s) : Donne Pisco e outros
Advogado(a/s) : Joelson Dias
Interessado(a/s) : Confederação Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB
Advogado(a/s) : Ives Grandra da Silva Martins e outros
145
necessária para a compreensão da problemática em comento, é necessário verificar sua
compatibilização com o referencial teórico em que se pautou a decisão do STF, baseado na
Constituição Federal.
3.2 Principais fundamentações dos votos da ADIN n 3.510 à luz do Princípio
Responsabilidade e da Bioética
Para iniciar, trazemos as principais considerações do ministro Cezar Peluso,
367
que,
trazendo Hans Jonas nas primeiras considerações do seu voto, assim se manifesta:
A gravidade e a delicadeza da tarefa vêm, não apenas da em si algo complexa
questão jurídico-constitucional da causa, mas também do conflito, que lhe subjaz,
de opiniões sobre os progressos e expectativas da engenharia genética e das
técnicas de fertilização artificial, de um lado, e, de outro, das justas inquietações
que, despertando a temática em relação à dignidade da pessoa humana e ao futuro
da humanidade, evocam, como paradigma perturbador do potencial escatológico da
tecnologia, os rumos dramáticos em que se transviaram os estudos sobre a fissão
nuclear.
O ministro tomou emprestado de Hans Jonas a expressão “potencial escatológico da
tecnologia”, quando Hans referiu que a ignorância das conseqüências últimas é em si mesma
razão suficiente para uma moderação responsável. Porém, não aprofundou questões básicas
do que consiste o Princípio Responsabilidade e de como ele aparece nesse “paradigma do
perturbador potencial escatológico da tecnologia”. Considerou que, em se tratando de
experimentos científicos de finalidades terapêuticas, as pesquisas com células-tronco adultas
(CTA) não se prefiguram mais ou menos promissoras ou frutíferas do que aquelas voltadas
para as células-tronco embrionárias (CTE), na medida em que os objetos teóricos de pesquisas
não traçam caminhos mutuamente excludentes. Para o ministro, o estudo com as CTE é
adequado e recomendável, pois
pode contribuir para promoção de objetivos e valores constitucionais legítimos, que
são o direito à vida, à dignidade, à saúde e à liberdade de investigação científica. E,
porque é decisiva para a ciência, a consideração de sua velocidade ou aspecto
temporal aparece ainda como manifestamente importante, até porque, como de
367
O voto do ministro Cezar Peluso pode ser conferido na íntegra no site do STF, disponível em
http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510CP.pdf. Acesso em 15/06/2008.
146
ver-se, não sacrifica nenhum princípio jurídico nem direito algum, sobretudo os que
protegem a vida e a dignidade humanas, para realização daqueloutras altas
finalidades, com a intensidade e amplitude desejáveis.
Depois de analisar se há diferença de graus de proteção constitucional a que façam jus,
de um lado, as pessoas dotadas de vida atual e em plenitude, e, de outro, os embriões,
concluiu pela ausência de vida nos embriões humanos congelados, identificando em ambos o
predicado da humanidade, mas somente nas pessoas, a presença de vida. Para ele, “o único
ponto de semelhança, no plano da ordem jurídica, entre um embrião congelado e um adulto, é
que esse participa, em grau primitivo, dos requisitos da proteção à dignidade humana deste, e
apenas isso”.
Após declinar o extenso rol de direitos fundamentais do art. 5º, cujo caput, tratou da
indiscutível premissa, segundo a qual a vida objeto da larga e genérica tutela constitucional é
apenas a vida da pessoa humana, derivando duas linhas de raciocínio, conducentes ambas ao
reconhecimento de permissão constitucional para pesquisas com células-tronco embrionárias:
a primeira baseou-se em que o embrião não é, ou não é ainda, pessoa; a outra concebeu que
no embrião, congelado ou inservível, não há vida atual.
Para ele, tais posições não são contraditórias, pois bastaria admitir a consistência
lógico-jurídica de uma delas para se ter por legítima a conclusão de constitucionalidade da
norma ora impugnada. Como, para efeito da ampla e integral tutela outorgada da Constituição
da República, deve haver vida, e vida de pessoa humana, a falta de qualquer um dos
componentes desta conjunção, para ele, invalida o fundamento básico da demanda.
O entendimento foi de que, a despeito de o código genético completo, enquanto
conjunto das disposições suficientes para, sob certa condição externa, se desenvolver e
transformar em ser humano autônomo, estar inscrito no embrião, não se pode reduzir a
complexidade da pessoa humana como organismo vivo e, sobretudo, como sujeito de direito,
ao aspecto puramente biológico de sua mera completude ou perfeição genética.
Para o ministro, não vida no ser que não tenha ou ainda não tenha capacidade de
mover-se por si mesmo, isto é, sem necessidade de intervenção, a qualquer título, de força,
condição ou estímulo externo; ao que denominou capacidade de movimento autógeno.
Referiu que isso não o têm os embriões congelados, cuja situação é equiparável à de etapa
inicial de processo que se suspendeu ou interrompeu, antes de adquirir certa condição objetiva
necessária, capaz de lhe ativar a potência de promover, com autonomia, uma seqüência de
eventos, que, biológicos, significam, no caso, a unidade permanente do ciclo vital que
147
individualiza cada subjetividade humana. Logo, entendeu o ministro Peluso que a fixação do
óvulo fecundado na parede uterina é condição sine qua non de seu desenvolvimento ulterior e,
como tal, constitui critério de definição do início da vida, concebida como processo ou
projeto.
O ministro traçou um paralelo com uma situação hipotética, qual seja, conceber-se a
vida em úteros artificiais criados pelo inventivo engenho humano, o que qualifica como um
“tenebroso cenário que merece da consciência universal e de todas as ordens jurídicas a mais
veemente repulsa, porque supõe admitir a reificação dos embriões e do processo mesmo de
reprodução, em lucubração de todo em todo incompatível com a intangibilidade ética e
constitucional da dignidade humana”.
Em suma, estas foram as considerações do ministro Peluso. Porém, como já referido, o
ministro não aprofundou o tema da responsabilidade jonasiana, pois em que pese tecer uma
série de considerações, principalmente em sede técnico-científica e no nível da Biologia, não
se detém em analisar o porquê da decisão ser responsável perante a sociedade e o Direito. Não
se desconhece a envergadura do ato de julgar e decidir a questão posta de constitucionalidade,
nem a necessidade de coadunar na ordem jurídica as visões e juízos científicos. Aliás, esse
coadunar é em si uma consideração do Princípio Responsabilidade, na medida em que
representa a busca por bases sólidas que sustentem o posicionamento jurídico frente ao tema.
E isso passa por uma série de contribuições das mais diversas áreas do conhecimento, pois
nem a ciência, nem o Direito, nem a Biologia estão suficientemente habilitados para, por si só,
responderem questões tão importantes. Salvo melhor juízo, o ministro se deteve em questões
tecno-científicas, quando poderia ter trazido uma visão mais sistemática da questão posta a
seu exame.
A idéia de sistema está presente em todo o pensamento jurídico dogmático, nos
princípios dos quais ele parte e na gênese do processo interpretativo, quer o argumento da
utilização do sistema seja apresentado, ou não. Sua influência é tão profunda e constante que
muitas vezes não aparece explicitamente no trabalho do operador do Direito, mas está, pelo
menos, sempre subentendido. A noção de sistema é uma condição a priori do trabalho
intelectual do operador do Direito, sendo no arcabouço principiológico da Constituição
Federal brasileira que a idéia de sistema se faz mais presente, principalmente na forma como
os princípios são aplicados.
368
Verdadeiras vigas mestras, alicerces sobre os quais se constrói o
sistema jurídico, os princípios constitucionais dão estrutura e coesão ao edifício jurídico.
369
368
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 30. Lembrou o autor que “um sistema é uma construção científica composta por um conjunto
148
O ministro Marco Aurélio
370
iniciou seu voto destacando do dispositivo impugnado
certos requisitos para a realização da pesquisa e da terapia mediante o uso de células-tronco
embrionárias.
371
Destacou que as paixões de toda ordem devem ser colocadas em segundo
plano, de maneira a buscar a prevalência dos princípios constitucionais. Para ele, opiniões
estranhas ao Direito por si não podem prevalecer, pouco importando o apego a elas por
aqueles que as veiculam. O contexto alvo de exame de ser técnico-jurídico, valendo notar
que declaração de inconstitucionalidade pressupõe sempre conflito flagrante da norma com o
Diploma Maior, sob pena de relativizar-se o campo de disponibilidade, sob o ângulo da
conveniência, do legislador eleito pelo povo e que em nome deste exerce o poder legiferante.
Seguiu o ministro afirmando que os fatores conveniência e oportunidade mostram-se,
em regra, neutros quando se cuida de crivo quanto à constitucionalidade de certa lei e não de
medida provisória. Somente em situações extremas, nas quais surge, ao primeiro exame, a
falta de proporcionalidade, pode-se adentrar o âmbito do subjetivismo e exercer a glosa. No
caso, a lei foi aprovada mediante placar acachapante – 96% dos Senadores e 85% dos
Deputados votaram a favor, o que sinaliza a razoabilidade.
No entanto, parece não ser admissível nem responsável invocar como argumento que a
lei foi aprovada com o voto de 96% dos Senadores e 85% dos Deputados a favor, quando se
trata de um tema que não permite a desconsideração de uma análise sob a ótica da
responsabilidade. Tais argumentos são incompatíveis com o modelo de responsabilidade
proposto por Jonas, por apresentarem uma visão simplista e desprovida de argumentos
válidos. O ministro deixou de analisar a faceta ambivalente da ciência e a preocupação com as
futuras gerações. Tratou o tema sob a ótica da questão do início da vida e seus enfoques,
372
de elementos que se inter-relacionam mediante regras. Essas regras, que determinam as relações entre os
elementos do sistema, formam sua estrutura” (p. 31).
369
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 37.
370
O voto do ministro Marco Aurélio pode ser conferido na íntegra no site do STF, disponível em
http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510MA.pdf. Acesso em 15/06/2008.
371
São elas:
1. Haver embriões humanos produzidos por fertilização in vitro não utilizados.
2. Tratar-se de embriões inviáveis ou estarem os embriões congelados há três anos ou mais na data da publicação
da lei ou, se já congelados em tal data, após completarem três anos de congelamento.
3. Existir o consentimento daqueles que forneceram o material.
4. Submeterem as instituições de pesquisa e serviços de saúde os respectivos projetos, com vistas à aprovação, a
comitês de ética em pesquisa.
5. Não ocorrer a comercialização do material biológico, configurado, no caso de inobservância da lei, tipo penal.
Ante tais requisitos, cabe indagar, simplesmente, onde reside a ofensa do citado artigo 5º à Carta Federal a ponto
de levar à declaração de inconstitucionalidade.
372
Trouxe os seguintes enfoques:
a) o da concepção;
b) o da ligação do feto à parede do útero;
c) o da formação das características individuais do feto;
149
sem enfatizar os princípios constitucionais, pois o princípio funciona como vetor para o
intérprete, e o jurista, na análise não somente deste mas de qualquer problema jurídico, deve,
preliminarmente, alçar-se no nível dos grandes princípios constitucionais, a fim de verificar
em que direção eles apontam.
373
Afinal, é a partir do entendimento de que os princípios são regras mestras dentro do
sistema positivo, que se torna possível ao intérprete buscar identificar as estruturas básicas, os
fundamentos, os alicerces do sistema em análise.
374
Parece, também, desvalorizar “opiniões
estranhas ao Direito”, no que desmerece preciosas e necessárias contribuições no âmbito, por
exemplo, da Filosofia, cujo papel de “pensar” a ciência, diante do fato que ela não pode
pensar a si mesma. Nesse sentido, a consciência da ciência lhe é proporcionada pela Filosofia,
de forma que se pode afirmar que é responsável agregar às reflexões jurídicas todas as demais
reflexões que enriqueçam o debate e o conhecimento jurídico sobre o tema.
Ressaltou também o objetivo da lei de avançar no campo científico visando a
preservar esse fundamento, a devolver às pessoas acometidas de enfermidade ou às vítimas de
acidentes uma vida útil razoavelmente satisfatória. Referiu que no mundo científico, é voz
corrente que as células embrionárias não são substituíveis, para efeito de pesquisa, por células
adultas, uma vez que estas últimas não se prestam a gerar tecidos nervosos, a formar
neurônios. Então doenças neuromusculares e o tratamento da medula de alguém que ficou
paraplégico ou tetraplégico bem como de acometidos por Parkinson não terão possibilidade
de serem alcançados pela pesquisa a partir de células adultas. Para ilustrar, trouxe
informações sobre o assunto, relativamente a diversos países.
375
d) o da percepção pela mãe dos primeiros movimentos;
e) o da viabilidade em termos de persistência da gravidez;
f) o do nascimento.
373
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 37.
374
Idem, p. 39.
375
África do Sul - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica. É o único país
africano com legislação a respeito.
Alemanha - Permite a pesquisa com linhagens de células-tronco existentes e sua importação, mas proíbe a
destruição de embriões.
Austrália – Lei aprovada em Dezembro de 2006 permite o clone terapêutico, a união do DNA de células da pele
em ovos para produzir células-tronco, também conhecidas como células-mestre, capazes de produzir todos os
tecidos do corpo humano. Os embriões clonados não podem ser implantados no útero e precisam ser destruídos
em 14 dias. Em 2002, o Parlamento autorizou os cientistas a extraírem células-tronco de embriões divididos para
fertilização in vitro, mas baniu a clonagem de células.
China - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.
Cingapura O país se proclamou como um centro internacional para a pesquisa em células-tronco, atraindo
cientistas de diversas partes do mundo, incluindo os cientistas britânicos que clonaram a ovelha Dolly. São
fornecidos incentivos robustos para a pesquisa em células-tronco, incluindo a clonagem de embriões humanos.
Coréia do Sul - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.
150
Nesse sentido, também é imperioso referir que não se ignora as promessas de
tratamento e cura que fazem com que a terapia com células-tronco seja considerada o futuro
da medicina regenerativa, mas que isso não neutraliza o perigo ilusionário desse sonho, crítica
esta feita por Hans Jonas, como demonstrado. Porém, uma análise sob a ótica da
responsabilidade faz com que se atente para o perigo de se agarrar a essa tábua de salvação
repleta de boas intenções, principalmente nos dias de hoje, em que muitas tábuas se
encontram nas mãos de grandes empresas farmacêuticas, por exemplo - diretamente
interessadas em fatores mercadológicos.
A ministra Ellen Gracie,
376
ao afirmar que “equivocam-se aqueles que enxergaram
nesta Corte a figura de um árbitro responsável por proclamar a vitória incontestável dessa ou
daquela corrente científica, filosófica, religiosa, moral ou ética sobre todas as demais”, acerta
em sua afirmação, pois também o Princípio Responsabilidade não se coaduna com a eleição
de uma ou outra doutrina, mas sim com a reflexão crítica de cada uma delas. Deixou de trazer
um maior embasamento na principiologia constitucional, pois ao destacar “a plena
aplicabilidade, no presente caso, do princípio utilitarista, segundo o qual deve ser buscado o
resultado de maior alcance com o mínimo de sacrifício possível”, parece não buscar a
contento as fontes constitucionais, na esteira do entendimento de que os princípios são
enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que ocupam posição de proeminência nos
Espanha Em maio de 2006, o Parlamento votou para expandir o número de embriões disponíveis para a
pesquisa em lulas-tronco, de forma a incluir qualquer congelado até dias da concepção. Antes, os
pesquisadores apenas poderiam usar os embriões congelados anteriormente a Julho de 2003. A lei também
permite aos pais de crianças com doenças incuráveis a conceberem novos embriões e escolherem um saudável
para servir como doador de tecidos, em casos em que todos os demais tratamentos falharam.
Estados Unidos - Proíbe a aplicação de verbas do governo federal a qualquer pesquisa envolvendo embriões
humanos a exceção é feita para 19 linhagens de células-tronco derivadas antes da aprovação da lei norte-
americana. Mas Estados como a Califórnia permitem e patrocinam esse tipo de pesquisa - inclusive a clonagem
terapêutica.
França - Não tem legislação específica, mas permite a pesquisa com linhagens existentes de células-tronco
embrionárias e com embriões de descarte.
Índia - Proíbe a clonagem terapêutica, mas permite as outras pesquisas.
Israel - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.
Itália - Proíbe totalmente qualquer tipo de pesquisa com células-tronco embrionárias humanas e sua importação.
Japão - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica. Mas a burocracia para
obtenção de licença de pesquisa é tão grande que limita o número de pesquisas.
México - Único país latino-americano além do Brasil que possui lei permitindo o uso de embriões. A lei
mexicana é mais liberal do que a brasileira, já que permite a criação de embriões para pesquisa.
Reino Unido - Tem uma das legislações mais liberais do mundo e permite a clonagem terapêutica.
Rússia - Permite todas as pesquisas com embriões, inclusive a clonagem terapêutica.
Suíça Os eleitores aprovaram a pesquisa em célulatronco embrionária mediante um referendo nacional
ocorrido em Novembro de 2004, autorizando apenas o uso de células-tronco embrionárias não utilizadas em
processo de fertilização in vitro. A lei proíbe a clonagem humana e a criação de embriões para a pesquisa em
células-tronco.
Turquia - Permite pesquisas e uso de embriões de descarte, mas proíbe a clonagem terapêutica (como o Brasil).
376
O voto da ministra Ellen Gracie, na íntegra, está disponível em
http://www.expressodanoticia.com.br/docs/ADINCelulaVotoGracie.doc. Acesso em 15/06/2008.
151
horizontes do sistema jurídico e, por isso, veiculam, de modo inexorável, o entendimento e a
aplicação das normas que com ele se conectam.
377
A ministra fez uma formulação científica, que diferencia o pré-embrião do embrião,
trazendo o exemplo do Reino Unido, onde o Human Fertilisation and Embrilogy Act,
legislação reguladora dos procedimentos de reprodução assistida e das pesquisas embriológica
e genética naquele país, foi aprovada pelo Parlamento britânico em 1990, após amplo debate
social, político e científico iniciado em 1982. O referido Diploma permitiu a manipulação
científica dos embriões oriundos da fertilização in vitro, desde que não transcorridos 14 dias
contados do momento da fecundação. Esse limite temporal presente na lei britânica teve como
razão a prevalência do entendimento de que antes do décimo quarto dia haveria uma
inadequação no uso da terminologia embrião”, por existir, até o final dessa etapa inicial,
apenas uma massa de células indiferenciadas geradas pela fertilização do óvulo.
378
do voto da ministra Carmen Lúcia,
379
é possível observar o Princípio
Responsabilidade ao afirmar que “a pesquisa científica diz com a vida, com a dignidade da
vida, com a saúde, com a liberdade de pesquisar, de se informar, de ser informado, de
consentir, ou não, com os procedimentos a partir dos resultados. Logo, diz respeito a todos e
todos têm o legítimo e democrático interesse e direito de se manifestar”.
Afirmou também: “a Constituição é a minha bíblia, o Brasil, minha única religião.
Juiz, no foro, cultua o Direito. Como diria Pontes de Miranda, assim é porque o Direito assim
quer e determina. O Estado é laico, a sociedade é plural, a ciência é neutra e o direito
imparcial”. Não é preciso tecer maiores considerações sobre o equívoco dessa afirmação à luz
do que foi exposado, a começar pelo fato de que a ciência não é neutra não é possível
encará-la com tal ingenuidade, como Hans Jonas demonstrou brilhantemente ao expor o
Princípio Responsabilidade, e também Edgar Morin, ao combater duramente a pretensa
neutralidade científica, como já mencionado nos capítulos anteriores.
Assim, não basta se ater ao que a ministra denomina “núcleo da indagação
constitucional”, que seria a liberdade de pesquisa e terapia com células-tronco embrionárias,
377
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 37.
378
Segundo essa conceituação, somente após esse estágio pré-embrionário, com duração de 14 dias, é que surge
o embrião como uma estrutura propriamente individual, com (1) o aparecimento da linha primitiva, que é a
estrutura da qual se originará a coluna vertebral, (2) a perda da capacidade de divisão e de fusão do embrião e (3)
a separação do conjunto celular que formará o feto daquele outro que gerará os anexos embrionários, como a
placenta e o cordão umbilical. Tais ocorrências coincidem com a nidação, ou seja, o momento no qual o embrião
se fixaria na parede do útero.
379
O voto da ministra Carmen Lúcia, na íntegra, está disponível em
http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi3510CL.pdf. Acesso em 15/06/2008.
152
nos termos do art. 5º, da Lei 11.050/2005. O Direito por si não se basta, é justamente essa
errônea crença uma das responsáveis pelo que Lênio Streck denomina “fetichização do
discurso jurídico”.
380
Não há como se ater a um núcleo quando o sistema normado pela
Constituição é um tecido costurado com vistas a certos objetivos, a partir de princípios
maiores. Esses princípios superiores estão fincados na experiência histórica da humanidade e
na sua evolução científico-filosófica. Por isso, é necessário extrair esses elementos daquilo
que autenticamente a evolução humana propiciou.
381
Assim, um julgamento sobre questão tão
controversa nos meios jurídico, social e científico, para não falar da Filosofia e da
Antropologia, precisa trazer uma série de elementos, ainda que priorizando alguns sobre os
demais.
A ministra traz uma reflexão consoante a responsabilidade que se exige no tratamento
da questão:
não se de confundir a esperança de cura com a ilusão de uma imediata cura.
Nem está no Direito, nem neste Tribunal, nem no resultado desta ação o lsamo
curador de quem mais precisa dos efeitos de novas terapias, que têm grande chance
de poderem surgir em algum tempo (ainda não precisado pela ciência) se as
pesquisas, liberadas, chegarem aos resultados hoje esperados pela comunidade
científica dedicada ao tema. Mas que nem se use desta ação para impedir as
pesquisas, nem para falsear ilusões que não podem ser garantidas agora a quem
quer que seja, conforme a unânime opinião das pessoas sérias e responsáveis que
trabalham com a matéria versada neste processo.
De fato, a solução do deslinde não é, na expressão utilizada pela ministra, “passaporte
faltante” para a salvação imediata daqueles que padecem de males que poderão vir a ser
sanados ou diminuídos em seus efeitos pelo êxito de pesquisas científicas da medicina
regenerativa, o que é desejo de todos. Mas esse desejo se move no campo das conjecturas e
probabilidades, e quando transferida para as pesquisas científicas, não pode ser convertido em
certeza absoluta de resultados, sob pena até mesmo de grandes frustrações e abalos
psicológicos desses mesmos pacientes que advogam pela liberação das pesquisas visando um
tratamento que possa resolver moléstias que os acometem.
Também afirmou que é fato que a ética constitucional vigente afirma o respeito ao
princípio da dignidade da pessoa humana, do que decorre a impossibilidade de utilização da
espécie humana em qualquer caso e meio para fins comerciais, eugênicos ou
380
STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
381
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 24.
153
experimentais. Assim, atentou para o fato de que o estudo das normas questionadas na
presente ação patenteia, entretanto, a preocupação do legislador
382
em atender, quanto à
pesquisa, de um lado, a liberdade que de permiti-la e, de outro, os limites que a
compatibilizam com os princípios constitucionais:
Palavras geralmente tomadas como sinônimas, a terapia pode ser tida como a
adoção de práticas e procedimentos que conduzam a formas de tratamento.
Entretanto, há terapias experimentais, o que poderia indicar, se adotado aquele
conteúdo normativo sem o conformar aos princípios constitucionais, que também
nestes e para estes casos estaria a lei validando a imediata utilização de embriões e
o que é mais e pior, a utilização das pessoas submetidas a tais procedimentos.
Terapias feitas a título de experimentação com o uso do ser humano não se
compatibilizam com os princípios da ética constitucional, em especial, com o
princípio da dignidade da pessoa humana. E neste caso, nem tanto pela utilização
dos embriões, mas porque se utilizariam pessoas como verdadeiras cobaias,
serventes que seriam à experimentação de técnicas ainda sem qualquer amparo em
bases científicas e resultados concretos obtidos nas pesquisas.
De fato, ao enfatizar o princípio da dignidade da pessoa humana e dotá-lo de qualidade
primária e matricial no sistema, fazendo-o núcleo do sistema constitucional do Direito
brasileiro, o constituinte fincou uma trilha, certamente reconhecida na decisão do STF. Claro
que não é função das Constituições pormenorizar os temas que são tratados em suas normas,
mesmo quando se tem uma ordem constitucional que chega a minudenciar muitos temas por
ela cuidados, como é o caso da Constituição brasileira de 1988. Todavia, ao estampar no seu
primeiro artigo a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de
Direito constitucionalizado pela ordem promulgada, teve presente o constituinte e põe-se,
indefectivelmente, no sistema a condição humana como a centralidade da organização política
nacional e o fator legitimador de todas as relações públicas havidas em seu âmbito.
383
A ministra enfatizou, ainda, que por estar em curso apenas uma década, as
pesquisas sobre células-tronco embrionárias não podem ainda ser consideradas validadas para
fins de utilização como terapia, porque então não se teria tratamento, mas mera
experimentação com seres humanos. Tanto não se compatibiliza com o princípio da dignidade
382
Art. 5º - ...
IX. é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença;...
Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação
tecnológicas.
§ - A pesquisa científica básica receberá tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o
progresso das ciências.
383
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 88.
154
da pessoa humana; não por causa da utilização das células-tronco embrionárias, mas por que a
sua utilização seria no corpo daquele que precisa de qualquer alternativa para buscar viver ou
para não se deixar morrer, entregando-se a experimentos ainda não completados em suas fases
de viabilização e utilização com humanos.
Assim, destacou que as células-tronco embrionárias, imaturas, primitivas e pluri ou
totipotentes, produzidas em laboratórios, é que são, portanto, objeto do dispositivo legal posto
em questão. Essas células são consideradas no atual estágio da pesquisa científica
potencialmente aptas a gerar quaisquer tecidos do organismo humano, permitindo a renovação
das células linfóides e mielóides e, assim, a produção de células diferenciadas no tecido
sanguíneo.
384
A liberdade de expressão da atividade intelectual e científica é considerada um dos
fundamentos constitucionais do art. 5º, da Lei n. 11.105/05. Bem assim o desenvolvimento
científico e a pesquisa que podem servir à melhoria das condições de vida para todos. No
entendimento da ministra, a compatibilização de tais regras com os princípios magnos do
sistema, assegurada, sempre e em todo e qualquer caso a dignidade humana, dota-as do
necessário fundamento constitucional, o qual tem o condão de dirimir esse conflito.
Registrou também que o período de três anos de congelamento é aquele que determina
um marco após o qual a viabilidade do procedimento implantatório da célula-tronco
embrionária torna-se pequena. As clínicas de reprodução assistida dispõem de estatísticas,
apresentadas em trabalhos divulgados cientificamente, a comprovar que após aquele período
de três anos a chance de o embrião se viabilizar é baixa. Apesar de congelado, as membranas
tendem a oxidar-se, não garantindo elas o resultado desejado.
Também destacou o art. 225, § 1º, inc. II, da Constituição brasileira,
385
que estabelece
o princípio da solidariedade entre as gerações, como forma de garantir a dignidade da
existência humana, quer dizer, não apenas a dignidade do vivente (agora), mas a dignidade do
viver e a possibilidade de tal condição perseverar para quem vier depois. Assim, concebido
384
É essa aptidão potencial das células-tronco embrionárias, não repetida nas células-tronco adultas, havidas no
organismo desenvolvido, que distingue e valoriza as primeiras e torna-as especialmente atrativas para a pesquisa
e para novos tratamentos que se disponibilizem para o bem e a dignidade do ser humano. Podendo tornar-se
diferentes tecidos do organismo são elas que podem conduzir a novos patamares de pesquisa em benefício de
todas as pessoas, em especial das que padeçam de doenças degenerativas, como o mal de Alzheimer.
385
Art. 225. Todos m direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à
pesquisa e manipulação de material genético;
155
como direito social fundamental do homem, o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado está inserido em um contexto constitucional segundo o qual ao Estado brasileiro
compete atuar de modo a assegurar a sua efetividade, o que se pode afirmar estar no âmbito
do princípio responsabilidade.
A ministra afirmou que as pesquisas e o tratamento também devem pautar-se pelos
princípios da necessidade, segundo o qual deve haver comprovação real de que o experimento
científico a ser realizado no material genético humano é necessário para o conhecimento, a
saúde e a qualidade de vidas humanas; da integridade do patrimônio genético, proibindo-se a
manipulação em genes humanos voltada para mudanças na composição do material genético
com o fim de melhorar determinadas características fenotípicas; da avaliação prévia dos
potenciais e benefícios a serem alcançados; e, ainda, o princípio do conhecimento informado,
que impõe a garantia de manifestação da vontade, livre e espontânea, das pessoas envolvidas,
com a divulgação de informações precisas sobre as causas, efeitos e possíveis conseqüências
da intervenção científica.
Tudo isso, aliado aos cuidados que sempre se deve ter em respeitar e resguardar o
princípio da dignidade da pessoa humana,
386
também se coaduna com o Princípio
Responsabilidade, pois para garantir a existência digna, o direito constitucional assegura os
direitos que a liberdade humana constrói para a dignificação permanente das condições do
viver. E é aí que as pesquisas científicas possibilitam não apenas o exercício da liberdade, mas
o sentido da libertação, que as descobertas e criações podem trazer para todos os homens se
utilizadas com responsabilidade.
Entendeu a ministra que a utilização de células-tronco embrionárias para pesquisa e,
após o seu resultado consolidado, o seu aproveitamento em tratamentos voltados à
recuperação da saúde, não agridem a dignidade humana, mas sim a valoriza, pois ao invés de
virarem lixo genético, está-se dando aos embriões a possibilidade de serem aproveitados pela
pesquisa para a dignidade da vida:
386
No Brasil, a titularidade do direito – que é de todos – havido em sua positivação no art. 5o da Constituição da
República expressa a) que todos os homens, tal como se tem também na fórmula da Declaração Universal dos
Direitos Humanos da ONU, são sujeitos dos direitos fundamentais; b) que não apenas aos seres humanos se
estende o princípio da igualdade jurídica, mas até mesmo aos seres criados no direito (pessoas jurídicas); c) que
não apenas os brasileiros e estrangeiros, previstos, expressamente, no dispositivo, são titulares dos direitos
fundamentais assegurados pelo Estado nacional, mas que todos os seres humanos titularizam tais direitos, porque
o artigo tem de ser considerado em sua sistematização e, no § 2o, do mesmo art. 5°, se contém que “os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
156
A sua utilização é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se o saber da
vida, que com outros objetos se alcança. Conhecer para ser. Essa a natureza da
pesquisa científica com células-tronco embrionárias, que não afronta, mas busca,
diversamente, ampliar as possibilidades de dignificação de todas as vidas. [...] Na
espécie em apreço, a célula-tronco embrionária põe-se, na legislação examinada,
como uma dignidade, não havendo como lhe atribuir um preço. Ao contrário. A
busca tão apaixonada dos pesquisadores pela manutenção de liberdade de pesquisa
com ela é exatamente por ser cada uma delas insubstituível e, por isso, na
compreensão da dignidade que lhe é dado conferir e realizar, põe-se ao cuidado do
cientista para realizar o único fim agora para ela vislumbrada, não implantável no
útero como se terá tornado.
Assim, a ministra se valeu do princípio da dignidade da vida humana para considerar
que tudo aquilo que limita a liberdade do ser humano atenta contra a sua dignidade, de forma
que a utilização dos embriões inviáveis “é uma forma de saber para a vida, transcendendo-se
o saber da vida, que com outros objetos se alcança”. Lembrou, ainda, que a própria
Constituição estabelece o princípio da solidariedade entre as gerações, como forma de garantir
a dignidade da existência humana. Falou também que a carta política do Brasil incentiva e
protege a atividade de pesquisa científica.
Também trouxe um ponto de grande importância ao chamar a atenção para a carência
legal de detalhamento de como se dará o controle e a fiscalização das pesquisas e
procedimentos efetivados com células-tronco, que é o mínimo que se pode esperar de um
regulamento jurídico que prime pela responsabilidade enquanto tal:
A legislação brasileira em especial a de que agora se cuida estabelece a
necessidade de controle e fiscalização das pesquisas por órgãos e instituições
responsáveis pela avaliação do cumprimento dos princípios éticos (art. 5º, § 3º, da
Lei n. 11.105). É bem certo que esse dispositivo não deixa suficientemente claro e
afirmado o rigor do controle determinado naquelas normas para a constituição e o
desempenho das atividades destes comitês de ética e pesquisa. Porém, não parece
caber aqui uma declaração de inconstitucionalidade. Talvez se pudesse afirmar
declaração de déficit de constitucionalidade, pois o atendimento do disposto no art.
225, § , inc. II, que outorga ao poder público o dever de “fiscalizar as entidades
dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético reclama maior
severidade no regramento das formas de controle das instituições de pesquisa e dos
serviços de saúde que as realizem. Mas esta competência é conferida ao Congresso
Nacional, no qual já tramita o Projeto de Lei n. ..., de 2008, apresentado pelo
Deputado José Aristodemo Pinotti, que busca estabelecer maior rigor legislativo na
matéria. Naquele projeto se definem condições para a habilitação das instituições
especificamente voltadas às pesquisas mencionadas no caput do art. , da Lei n.
11.105/2005, e da autorização especial a ser concedida pela Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa (CONEP). A aprovação daquele ou de outro projeto que restrinja
e torne mais seguros os mecanismos de controle de ética nas pesquisas e nos
tratamentos com células-tronco obviamente suprirão aquele déficit de
constitucionalidade e tornarão mais seguros os direitos constitucionalmente
157
afirmados. Estes dados encarecem o resguardo pretendido quanto à observância dos
princípios da responsabilidade ética que de marcar tais pesquisas e, futuramente,
as terapias que vierem a poder ser adotadas em benefício de doentes. Atende-se,
aqui, não apenas o que se contém na Constituição brasileira, mas também ao quanto
determinado em normas internacionalmente fixadas.
Para a ministra, relativamente às pesquisas e aos procedimentos médicos da
embriologia ou dos tratamentos de doentes deles dependentes, a Ética e o Direito passaram a
considerar o princípio da dignidade humana, de cada um dos diretamente interessados e do
seu enlaçamento a todos os outros que convivem na mesma aventura humana. E até mesmo
para os da espécie que vierem depois, pois a espécie humana que ser respeitada em sua
dignidade, manifestada em cada um e em todos os homens, pois a condição digna de ser
membro desta espécie toca todos e cada qual dos que a compõem.
Entendeu que o saber científico somente pode atingir resultados concretos em
benefício da espécie humana se persistir em sua labuta, de maneira livre e responsável,
compõe o complexo de dados que tornam efetiva a dignificação do viver e, portanto, a sua
garantia de continuidade não agride, tal como posto nas normas em foco, antes permite que se
venha a realizar o princípio constitucional. E como o Direito não pode deixar de considerar o
direito à vida digna como o direito fundamental excelente, aquele que se sobrepõe
axiologicamente a qualquer outro e que informa o sistema constitucional e infraconstitucional
de modo determinante em toda a sua extensão, não se de desconsiderar a Bioética para o
cuidado normativo dos novos realces a serem dados aos princípios que estão na base da
concretização daquele direito, a saber, o da liberdade, o da igualdade e o da responsabilidade.
Nesse sentido, fez duas importantes observações: a primeira é a de que atalhar,
embaraçar ou impedir qualquer linha de pesquisa, se jurídica e eticamente válida for,
significaria um constrangimento constitucionalmente inadmissível ao direito à vida digna, à
saúde, e à liberdade de pesquisar, de informar e de ser informado sobre as possibilidades que
a vida pode vir a oferecer, a depender dos resultados científicos. A segunda é a de que
conforme os numerosos estudos expostos na audiência pública ocorrida no curso da ação,
apresentados pelos interessados das duas correntes contrárias de pensamento sobre o tema - a
pesquisa com células-tronco embrionárias abre possibilidades não obtidas com qualquer outra,
sequer com as células-tronco adultas, de sorte que a potencialidade terapêutica das células-
tronco embrionárias decorrente da plasticidade que as caracteriza não de ser impedida,
porque se estaria a estancar o que sequer é plenamente conhecido nos resultados possíveis
para a dignidade da espécie humana. Assim, pesquisa com células-tronco embrionárias não é
158
certeza de resultados terapêuticos promissores. Mas a não pesquisa é a certeza da ausência de
resultados, pois sem a tentativa não há a conquista no campo científico.
A ministra acentuou o cuidado que de se ter com as pesquisas científicas, a fim de
que a ética não seja desrespeitada e, assim, a dignidade da espécie humana não seja ferida.
Afirmou ser certo que a liberdade humana compreende liberdade de pesquisas e de avanços
tecnocientíficos, tais como os que estão se dando, com rapidez inédita, no campo da medicina,
mas que reprimir a pesquisa científica, que pode ser conduzida no sentido do benefício da
humanidade, da descoberta de formas consagradoras de melhoria das condições de vida das
pessoas, é tarefa não apenas inglória, mas também nefasta no que concerne à vedação dos
caminhos que podem conduzir ao aperfeiçoamento e à melhoria das condições de saúde do
homem:
O medo que persiste é a desumanização das técnicas e das conseqüências de sua
utilização para a humanidade. Ao lado da dignidade humana, que se enfatizar a
responsabilidade de todos, uns em relação aos outros e em relação às gerações
presentes e futuras, o que determina a busca de equilíbrio na equação liberdade de
pesquisa/liberdade individual. A experimentação feita com o corpo da pessoa pode
atingir a integridade humana que o faz um ser muito além do meramente físico. Os
direitos humanos fortalecem-se, pois, como fator garantidor da humanidade contra
a manipulação genética que pode eliminar a individualidade, a singularidade, a
diversidade que se consagra na espécie humana e a torna viva, contínua e plural em
sua dinâmica. Daí a ênfase a ser posta no direito de obter informações, que podem
ser conduzidas para o benefício das pessoas por meio das pesquisas levadas a efeito
na forma legalmente prevista, a fim de que o saber para a vida não esgote o saber
da vida.
Assim, concluiu que as possibilidades vislumbradas nos resultados das pesquisas
com boas perspectivas de chegarem a bom termo – somente puderam chegar a esse estágio de
momentos promissores porque até aqui houve a permissão de se prosseguir com liberdade e
responsabilidade na busca de melhorias benéficas ao ser humano. Concluiu profeticamente
que a discussão posta poderia inclusive ser superada por outras possibilidades até então não
vislumbradas, o que somente a continuidade das pesquisas livremente levadas a efeito
poderiam demonstrar, donde a imperiosidade de seu prosseguimento livre e responsável:
A importância deste debate está em que nele se enfatiza e se decide sobre a
liberdade com responsabilidade ética da pesquisa científica, pois sem ela o ser
159
humano poderia ter impedido o seu desenvolvimento e a melhoria de suas
condições de vida. E é em nome dele que se de assegurar a pesquisa científica
livre, ética e responsável para a garantia da dignidade da vida.
Portanto, entendeu que a utilização da célula-tronco embrionária para a pesquisa e,
conforme o seu resultado, para o tratamento indicado a partir de terapias consolidadas nos
termos da ética constitucional e da razão médica honesta - não viola o direito à vida, mas sim
torna parte da existência humana o que vida não seria, dispondo para os que esperam pelo
tratamento a possibilidade real de uma nova realidade de vida. Assim, relacionando a
responsabilidade com os princípios constitucionais, votou no sentido de julgar improcedente a
presente ação, para considerar válidos os dispositivos questionados, a saber, o art. 5º e
parágrafos da Lei n. 11.105/2005.
A seguir, passaremos a tratar do voto do ministro Ricardo Lewandowski,
387
um dos
mais ricos em termos de argumentações pertinentes, principalmente no que se refere à ciência
e sua não-neutralidade:
Uma das reflexões pontuadas sob o título de reflexões epistemológicas acerca da
ciência traz a afirmação de que convém assentar que a ciência e a tecnologia,
embora tenham, de um modo geral, ao longo de sua história, trazido progresso e
bem-estar às pessoas, não constituem atividades neutras, nem inócuas quanto aos
seus motivos e resultados. Elas tampouco detêm o monopólio da verdade, da razão
ou da objetividade, valores, de resto, também cultivados por outras áreas do
conhecimento humano. Diga-se, aliás, que a no progresso ilimitado da ciência e
da técnica, bem como a crença em sua benignidade intrínseca, representam uma
herança do Iluminismo.
Como se vê, seus argumentos são congruentes com relação à idéia que hoje se faz do
“progresso” da ciência e da tecnologia. Ao reconhecer que a ciência não é uma atividade
neutra, vem ao encontro da tese levantada por Jonas. O ministro Lewandowski fez um
apanhado histórico do século XIX, das principais idéias e concepções da época, chegando ao
século XX, em cujo início começou a aparecer um sentimento generalizado de insegurança,
uma sensação de mal-estar vago e indefinido. Segundo o ministro, “isso reflete, em grande
medida, o desencanto das pessoas com a civilização centrada na tecnologia e um certo
ceticismo quanto à visão segundo a qual scientia omnia vincit”. Também elenca alguns fatos
387
O voto do ministro Ricardo Lewandowski, na íntegra, está disponível em
http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adi3510RL.pdf. Acesso em 15/06/2008.
160
históricos que lembram ao homem o lado destrutivo da tecnociência, se não for empregada
corretamente:
Não é preciso fazer um grande esforço intelectual, nem mergulhar profundamente
no passado, para listar os malefícios que decorreram do uso indevido ou
equivocado da ciência e do instrumental técnico por ela desenvolvido. Basta
lembrar as atrocidades cometidas nas duas Guerras Mundiais, o efeito estufa
motivado pela queima de combustíveis fósseis, o acidente ocorrido na usina nuclear
de Chernobyl, no norte da Ucrânia, resultante do emprego descuidado da energia
atômica, as deformidades causadas em crianças cujas mães tomaram o analgésico e
antinflamatório Talidomida etc. A ciência e a tecnologia, é escusado dizer, nascem
e prosperam em um dado contexto social, refletindo, portanto, uma determinada
visão de mundo, historicamente situada, como revelou, de forma pioneira, a crítica
marxiana. Para esta, o conhecimento científico equipara-se a uma ideologia, pois
abriga valores e interesses, nem sempre percebidos ou tornados explícitos por seus
protagonistas. Ideologia compreendida como o fenômeno em que as idéias e
representações elaboradas pelos homens, a partir de suas circunstâncias, são tidas
como o próprio real.
Lewandowski foi o único dos ministros a trazer a preocupação com os interesses
mercadológicos, principalmente das indústrias farmacêuticas, que muitos parecem fazer
questão de fechar os olhos:
As pesquisas com células-tronco embrionárias têm atraído enorme interesse nos
Estados Unidos e internacionalmente, não apenas em razão de seu potencial científico
e médico, mas também por suas promessas comerciais. Previsões de mercado para
tecnologias desenvolvidas a partir de células-tronco variam dos relativamente
modestos US$ 100 milhões aos mais otimistas US$ 10 bilhões em 2010. [...] Não
obstante todos os esforços dos cientistas, a ciência jamais se apresenta como uma
noção objetiva; ela aparece sempre revestida por uma ideologia e, concretamente, a
ciência é a união do fato objetivo com uma hipótese, ou um sistema de hipóteses, que
supera o mero fato objetivo.
Assim, revelou uma forte preocupação com a chamada visão cientificista e
tecnocrática do mundo, que não apenas abriga interesses, não raro bastante concretos, e nem
sempre aparentes, mas logrou penetrar como ideologia de fundo também na consciência da
massa despolitizada da população e desenvolver uma força legitimadora. Mencionou
Habermas, para quem essa ideologia, um tanto vítrea, hoje dominante, que faz da ciência um
feitiço, é mais irresistível e de maior alcance do que as ideologias de tipo antigo. E, embora
não leve a uma completa anulação de conexão ética, ela promove a repressão da ‘eticidade’
como categoria das relações vitais em geral.
161
Também manifestou preocupação com a chamada reificação das pessoas:
O fenômeno da “coisificação” das pessoas mencionado por Habermas, havia sido
descrito antes por Georg Lukács, pensador e militante político húngaro, que
aprofundou o conceito de “reificação”, segundo o qual as relações sociais e a
própria subjetividade humana vão se identificando, paulatinamente, com o caráter
inanimado das mercadorias, num processo denominado de “alienação”, em que a
pessoa se afasta de sua real natureza. É por isso que incumbe aos homens, enquanto
seres racionais e morais, sobretudo nesse estágio de evolução da humanidade, em
que a própria vida no planeta se encontra ameaçada, estabelecer os limites éticos e
jurídicos à atuação da ciência e da tecnologia, explicitando e valorando os
interesses que existem por detrás delas, para, assim, escapar à “coisificação” ou
“reificação” de que falam Habermas e Lukács, na qual as pessoas, de sujeitos
dessas atividades, passam a constituir meros objetos das mesmas.
Aqui o ministro demonstrou sua preocupação em fazer uma ampla abordagem do
assunto. Com isso, destaca-se sua importância, ficando clarividente que o ministro de fato
buscou bases consistentes para chegar a uma conclusão final. Demonstrando grande
conhecimento filosófico e literário, trouxe diversas ponderações a partir de várias e
necessárias - luzes do conhecimento humano.
No entendimento do ministro, sem prejuízo da liberdade de pesquisa, é necessário
estabelecer balizas éticas e jurídicas, de âmbito universal, quanto aos seus fins, resultados e
procedimentos. Nesse sentido, mencionou a 33ª Conferência Geral da Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, que aprovou em 2005, por
unanimidade, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, marco inspirador de
políticas, leis e padrões éticos no setor para os 191 países-membros da ONU :
A minuta do documento foi redigida pelo Comitê Internacional de Bioética da
UNESCO, estabelecido em 1993, o qual é integrado por 36 especialistas
independentes que examinam as conseqüências éticas das atividades científicas, em
especial no âmbito da proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana. Esses
valores e princípios foram incorporadas pela Declaração Ibero-americana sobre
Ética e Genética, de 1996, cujo texto enfatiza que o “desenvolvimento científico e
tecnológico no campo da genética humana deve ser feito levando em consideração
o respeito à dignidade, à identidade e à integridade humanas e aos direitos humanos
reafirmados nos documentos jurídicos internacionais”.
Do Preâmbulo da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da
UNESCO, enfatizou a parte que trata da “capacidade única dos seres humanos de refletir
162
sobre sua própria existência e sobre o seu meio ambiente”, bem como de especular “sobre os
rápidos avanços na ciência e na tecnologia, que progressivamente afetam nossa compreensão
da vida e a vida em si, resultando em uma forte exigência de uma resposta global para as
implicações éticas de tais desenvolvimentos”, e que “questões éticas suscitadas pelos rápidos
avanços na ciência e suas aplicações devem ser examinadas com o devido respeito à
dignidade da pessoa humana e no cumprimento e respeito universais pelos direitos humanos e
liberdades fundamentais”.
Dentre os objetivos listados no art. 2 desse diploma internacional, ressaltou aquele
estabelecido em seu item IV”, qual seja: “reconhecer a importância da liberdade de pesquisa
científica e os benefícios resultantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos,
evidenciando, ao mesmo tempo, a necessidade de que tais pesquisas ocorram conforme os
princípios éticos dispostos nesta Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos
humanos e as liberdades fundamentais”.
Por outro lado, dos vários princípios arrolados na Declaração, conferiu especial
destaque aos mencionados nos artigos 3 e 4. O primeiro assenta que a “dignidade humana, os
direitos humanos e as liberdades fundamentais devem ser respeitados em sua totalidade”,
afirmando, ainda, que os “interesses e o bem-estar do indivíduo devem ter prioridade sobre o
interesse exclusivo da ciência ou da sociedade”. Já o segundo consigna que os “benefícios
diretos e indiretos a pacientes, sujeitos de pesquisas e outros indivíduos afetados devem ser
maximizados e qualquer dano possível a tais indivíduos deve ser minimizado, quando se trate
de aplicação e avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e tecnologias
associadas”.
No entendimento do ministro, o Brasil, como membro da Organização das Nações
Unidas para a Educação, Ciência e Cultura e signatário da Declaração elaborada sob seus
auspícios, está obrigado a dar concreção a seus preceitos no âmbito dos três poderes que
integram sua estrutura estatal, sob pena de negar conseqüência jurídica à manifestação de
vontade, formal e solene, que exteriorizou no âmbito internacional:
A produção legislativa, a atividade administrativa e a prestação jurisdicional no
campo da genética e da biotecnologia em nosso País devem amoldar-se aos
princípios e regras estabelecidas naquele texto jurídico internacional, sobretudo
quanto ao respeito à dignidade da pessoa humana e aos direitos e garantias
fundamentais, valores, de resto, acolhidos com prodigalidade pela Constituição de
1988. [...] A idéia de que os embriões, qualquer que seja o seu estágio de
desenvolvimento, e não importando onde tenham sido gerados, merecem ser
tratados de forma digna. Não obstante esse entendimento, penso que a discussão
163
travada nestes autos não deve limitar-se a saber se os embriões merecem ou não ser
tratados de forma condigna. Creio que o debate deve centrar—se no direito à vida
entrevisto como um bem coletivo, pertencente à sociedade ou mesmo à humanidade
como um todo, sobretudo tendo em conta os riscos potenciais que decorrem da
manipulação do código genético humano. Sim, porque, em se tratando do direito à
vida, que compreende, por excelência, o direito à saúde, aqui também considerado
um valor transindividual, a convicção de que todos os homens têm um destino
comum, pois todos ‘estão no mesmo barco’, tornou impossível a existência de
riscos estritamente individuais.
Trouxe também a preocupação com a sociedade de risco, segundo terminologia de
Ulrich Beck:
o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças provocadas pelo
desenvolvimento técnico-industrial exige a autoreflexão em relação às bases da
coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da
racionalidade”. De fato, analisar essa magna questão tão-somente sob a perspectiva
de um eventual direito à vida dos zigotos produzidos in vitro, considerados de per
si, pode levar, data venia, a posições maniqueístas, contra ou a favor da vida, contra
ou a favor das pesquisas científicas, desviando a discussão de seu foco principal,
que, segundo penso, deve centrar-se na extensão em que se permitirá a manipulação
- ainda que revestida das melhores intenções - do patrimônio genético dos seres
humanos, tema, a meu ver, de transcendental importância.
Denota-se que, embora sem fazer menção à Jonas, suas reflexões trazem em seu bojo
um Princípio Responsabilidade implícito, se é que assim poderíamos dizer, na medida em que
traz uma série de elementos que demonstram sua preocupação com o rumo da ciência e da
tecnologia no que tange às manipulações genéticas que englobem material genético humano.
Isso porque na análise da aplicação ou não do princípio da responsabilidade, o que é
levado em conta não é se o voto foi a favor ou contra, mas sim a índole das reflexões que
levaram ao voto, embora entendamos que a explicitação dos moldes em que a
responsabilidade foi considerada no deslinde da questão também devesse estar presente. Ou
seja, trata-se de analisar os argumentos e averiguar se foram eles da envergadura exigida pelo
tema, demonstrando que necessariamente, qualquer que fosse a análise feita, deveria
necessariamente passar pelo crivo do Princípio da Responsabilidade.
Não como abordar um tema que pode alterar a história da humanidade sem refletir
a atitude responsável que nos é exigida frente à realidade tecnocientífica. E o Direito, que
detém o poder jurisdicional, assume, portanto, um papel primordial na definição dos rumos
dessa história, não podendo se imiscuir de uma análise que trate do Princípio
Responsabilidade, nos termos propostos por Jonas. Ao deixar de fazê-lo explicitamente neste
164
voto, demonstra sua dificuldade de processar um outro conceito de responsabilidade que não
aquele calcado nos moldes jurídicos.
Também trouxe à baila o princípio da precaução, que para o ministro, impõe uma
obrigação de vigilância, tanto para preparar a decisão, quanto para acompanhar suas
conseqüências
Consta na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, da qual resultou a Agenda
21, que, em seu item 15, estabeleceu que, diante de uma ameaça de danos graves ou
irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão
para o adiamento de medidas viáveis para prevenir a degradação ambiental. O
referido princípio foi mais tarde ampliado na reunião levada a efeito em
Wingspread, sede da Johnson Foundation, em Racine, Estado de Wisconsin, nos
EUA, no mês de janeiro de 1998, com a participação de cientistas, juristas,
legisladores e ambientalistas, cuja Declaração final consigna: “Quando uma
atividade enseja ameaças de danos ao meio-ambiente ou à saúde humana, medidas
de precaução devem ser tomadas, mesmo que algumas relações de causa e efeito
não forem estabelecidas cientificamente”. Dentre os principais elementos que
integram tal princípio figuram: i) a precaução diante de incertezas científicas; ii) a
exploração de alternativas a ações potencialmente prejudiciais, inclusive a da não-
ação; iii) a transferência do ônus da prova aos seus proponentes e não às vítimas ou
possíveis vítimas; e iv) o emprego de processos democráticos de decisão e
acompanhamento dessas ações, com destaque para o direito subjetivo ao
consentimento informado.
Após cuidar de aspectos que julgou interessante da Bioética e do princípio da
precaução, o ministro dedicou um tópico ao postulado da dignidade humana, que constitui o
núcleo axiológico de todas as declarações e tratados de proteção dos direitos fundamentais
vigentes no plano internacional, assim como da grande maioria dos textos legais que tratam
do tema no âmbito interno dos Estados. Assim, com base na doutrina de Ingo Sarlet, enfatizou
a dignidade humana enquanto cerne dos direitos fundamentais, sendo também um dos pilares
da República Federativa do Brasil, nos termos do art. 1º, III. Daí ser um verdadeiro parâmetro
ético de observância obrigatória em todas as interações sociais.
Ressaltou também a necessidade de independência e pluralismo dos Comitês de Ética,
pois para ele, não se mostra conveniente e nem jurídico permitir que projetos de pesquisa e de
terapia com células-tronco embrionárias humanas sejam exclusivamente aprovadas pelos
comitês de ética das próprias instituições e serviços de saúde responsáveis pelas pesquisas.
Assim, retoma novamente os preceitos da Declaração Universal de Bioética e Direitos
Humanos, que no tocante à tomada de decisões nesse campo, estabelece, no art. 18, “c” que é
preciso “promover oportunidades para o debate público pluralista, buscando-se a
165
manifestação de todas as opiniões relevantes”. E, especificamente, quanto aos comitês de
ética, consigna, no art. 19, que estes precisam ser “independentes, multidisciplinares e
pluralistas”.
388
Mais uma vez, neste voto, o princípio da dignidade humana foi o fio condutor da
decisão, porque também o é dos demais princípios constitucionais, assim como da defesa dos
direitos fundamentais, pois “nestes tempos de tantos avanços das coisas e das técnicas e de
tantos riscos das investidas e investimentos feitos em detrimento do viver justo, que é pelo
que lutam os homens de todos os tempos: é tempo de responsabilidade, mas, principalmente,
é tempo de que o Direito não positive ilusões, antes, concretize humanidades”.
389
Por fim, o voto do ministro Gilmar Mendes
390
é um dos mais reveladores em termos
de explicitar como a decisão do STF como um todo contemplou o Princípio
Responsabilidade. Na qualidade de Presidente da Corte, votou por último, ressaltando desde
as primeiras palavras do seu voto que a questão, na verdade, não está em saber quando, como
e de que forma a vida humana tem início ou fim, mas sim em como o Estado deve atuar na
proteção desse organismo pré-natal diante das novas tecnologias, cujos resultados o próprio
homem não pode prever, valendo-se, então, do Princípio Responsabilidade:
Trago à tona as lições de Hans Jonas para afirmar que o Estado deve atuar segundo
o princípio da responsabilidade. As novas tecnologias ensejaram uma mudança
radical na capacidade do homem de transformar seu próprio mundo e, nessa
perspectiva, por em risco sua própria existência. E o homem tornou-se objeto da
própria técnica. Como assevera Hans Jonas, o homo faber aplica sua arte sobre si
mesmo e se habilita a refabricar inventivamente o inventor e confeccionador de
todo o resto. O homo faber ergue-se diante do homo sapiens. A manipulação
genética, um sonho ambicioso do homo faber de controlar sua própria evolução,
demonstra a necessidade de uma nova ética do agir humano, uma ética de
responsabilidade. O princípio responsabilidade ensina Hans Jonas contrapõe a
tarefa mais modesta que obriga ao temor e ao respeito: conservar incólume para o
homem, na persistente dubiedade de sua liberdade que nenhuma mudança das
circunstâncias poderá suprimir, seu mundo e sua essência contra os abusos de seu
poder.
388
Ademais, devem ser instituídos, mantidos e apoiados em nível adequado, com o fim de: I) avaliar questões
éticas, legais, científicas e sociais relacionadas a projetos de pesquisa envolvendo seres humanos; II) prestar
aconselhamento sobre problemas éticos em situações clínicas; III) avaliar os desenvolvimentos científicos e
tecnológicos, formular recomendações e contribuir para a elaboração de diretrizes (...); IV) promover o debate, a
educação, a conscientização do público e o engajamento com a Bioética.
389
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 10.
390
O voto do ministro Gilmar Mendes, na íntegra, está disponível em
http://www.stf.gov.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI3510GM.pdf. Acesso em 15/06/2008.
166
Para o ministro, independentemente dos conceitos e concepções religiosas e científicas
a respeito do início da vida, é indubitável que existe consenso a respeito da necessidade de
que os avanços tecnológicos e científicos, que tenham o próprio homem como objeto, sejam
regulados pelo Estado com base no princípio responsabilidade. Segundo seu entendimento,
não se trata de criar obstáculos aos avanços da medicina e da biotecnologia, cujos benefícios
para a humanidade são patentes:
A história nos ensinou que é toda a humanidade que sai perdendo diante de tentativas,
sempre frustradas, de barrar o progresso científico e tecnológico. Nas felizes palavras
de Hans Jonas, o que vale a pena reter no caso da ciência e da técnica, em especial
depois da sua simbiose, é que se uma história de êxito, essa é a história de ambas;
um êxito contínuo, condicionado por uma lógica interna, e portanto prometendo
seguir assim no futuro. Não creio que se possa dizer o mesmo de nenhum outro
esforço humano que se alongue pelo tempo. À utopia do progresso científico, não
obstante, deve-se contrapor o princípio responsabilidade, não como obstáculo ou
retrocesso, mas como exigência de uma nova ética para o agir humano, uma ética de
responsabilidade proporcional à amplitude do poder do homem e de sua técnica. Essa
ética de responsabilidade implica, assim, uma espécie de humildade, não no sentido
de pequenez, mas em decorrência da excessiva grandeza do poder do homem. Como
bem assevera Hans Jonas, em vista do potencial quase escatológico dos nossos
processos técnicos, o próprio desconhecimento das conseqüências últimas é motivo
para uma contenção responsável.
Como se pode perceber, acertadamente, o ministro enfatizou que ao princípio
esperança (Prinzip Hoffnung, de Ernst Bloch), contrapõe-se o princípio responsabilidade
(Prinzip Verantwortung, de Hans Jonas): “a Constituição de 1988, ao incorporar tanto o
“princípio-responsabilidade” como o “princípio-esperança”, permite que nossa evolução
constitucional ocorra entre a ratio e a emotio. O certo é que o ser humano, diante das novas
tecnologias, deve atuar de acordo com uma ética de responsabilidade”.
Portanto, segundo o ministro, a questão está em saber se a Lei 11.105, de 24 de
março de 2005, regula as pesquisas científicas com células tronco embrionárias com a
prudência exigida por um tema ética e juridicamente complexo, que envolve diretamente a
própria identidade humana:
No artigo preambular da lei 11.105, a própria lei estabelece as diretrizes que
constituem o lastro de suas normas: o estímulo e o avanço científico na área de
biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e
vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio
167
ambiente. Em todo o corpo da lei, o art. 5º é destinado à regulamentação da
utilização, para fins de pesquisa, de células-tronco embrionárias obtidas de
embriões humanos produzidos por fertilização in vitro. É possível perceber que a
lei, inegavelmente, foi cuidadosa na regulamentação de alguns pontos, ao exigir
que as pesquisas sejam realizadas apenas com embriões humanos ditos “inviáveis”,
sempre mediante o consentimento dos genitores e com aprovação prévia dos
projetos por comitês de ética, ficando proibida a comercialização do material
biológico utilizado. O que causa perplexidade, por outro lado, é perceber que, no
Brasil, a regulamentação de um tema tão sério, que envolve profundas e infindáveis
discussões sobre aspectos éticos nas pesquisas científicas, seja realizada por um, e
apenas um artigo. A vaguidade da lei deixou a cargo do Poder Executivo a
regulamentação do tema, que o fez por meio dos arts. 63 a 67 do Decreto 5.591,
de 22 de novembro de 2005. O referido decreto ainda contém remissões normativas
a atos administrativos específicos de órgãos como o Ministério da Saúde e a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Dessa forma, o ministro vai além do princípio responsabilidade, ao entender que a
questão envolve uma análise segundo parâmetros de proporcionalidade, pois a lei é deficiente
na regulamentação do tema e, por isso, pode violar o princípio da proporcionalidade não
como proibição de excesso (Übermassverbot), mas como proibição de proteção deficiente
(Untermassverbot):
391
Do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do Estado não
apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também
de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros. Isso
empresta uma nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado
evolua para uma função de guardião desses direitos. Os direitos fundamentais não
podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote),
expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Os direitos
fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote),
mas também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou
imperativos de tutela (Untermassverbote).
Como se pode perceber, o ministro trouxe, por assim dizer, ‘desdobramentos’ do
princípio responsabilidade, a partir da dogmática alemã, em que é conhecida a diferenciação
entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Ubermassverbot) e como
391
O ministro baseou-se na doutrina e na jurisprudência da Corte Constitucional alemã para estabelecer a
seguinte classificação do dever de proteção: a) dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de se
proibir uma determinada conduta; b) dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de
proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante a adoção de medidas diversas; c) dever de evitar riscos
(Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante a
adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou
tecnológico. Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em
outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse
direito, enfatizando que a não-observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito
fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental.
168
proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da
proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das
intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a
consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela imprime ao princípio da
proporcionalidade uma estrutura diferenciada. O ato não será adequado quando não proteja o
direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas
alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o
subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo
é inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção.
Seguindo essa linha de raciocínio, o ministro deu ao art. uma interpretação em
conformidade com o princípio responsabilidade, tendo como parâmetro de aferição o
princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot):
Conforme analisado, a lei viola o princípio da proporcionalidade como proibição de
proteção insuficiente (Untermassverbot) ao deixar de instituir um órgão central
para análise, aprovação e autorização das pesquisas e terapia com células-tronco
originadas do embrião humano. O art. da Lei 11.105/2005 deve ser
interpretado no sentido de que a permissão da pesquisa e terapia com células-tronco
embrionárias, obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro,
deve ser condicionada à prévia aprovação e autorização por Comitê (Órgão) Central
de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério da Saúde. Entendo, portanto, que essa
interpretação com conteúdo aditivo pode atender ao princípio da proporcionalidade
e, dessa forma, ao princípio responsabilidade. Assim, julgo improcedente a ação,
para declarar a constitucionalidade do art. 5º, seus incisos e parágrafos, da Lei n°
11.105/2005, desde que seja interpretado no sentido de que a permissão da pesquisa
e terapia com células-tronco embrionárias, obtidas de embriões humanos
produzidos por fertilização in vitro, deve ser condicionada à prévia autorização e
aprovação por Comitê (Órgão) Central de Ética e Pesquisa, vinculado ao Ministério
da Saúde.
No voto do ministro, houve um destaque especial ao contingente de em torno de 5
milhões de brasileiros que sofrem de alguma doença genética grave, além dos portadores de
diabetes, que são em torno de 10 a 15 milhões, para então concluir que
a presente ADIN consubstancia expressa reação até mesmo à abertura da Lei de
Biossegurança para a idéia de que células-tronco embrionárias constituem tipologia
celular que acena com melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas
físicas ou naturais, em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos,
adquiridos, ou em conseqüência de acidentes. Numa frase, concepção artificial ou
em laboratório, ainda numa quadra em que deixam de coincidir os fenômenos da
fecundação de um determinado óvulo e a respectiva gravidez humana.
169
Com base nessa fundamentação em desfavor da procedência da ADIN sob judice,
trouxe uma invocação de ordem constitucional: o § do art. 199 da Constituição, que faz
parte da seção normativa dedicada à saúde, que é “direito de todos e dever do Estado” (caput
do art. 196 da Constituição), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como
“de relevância pública” (parte inicial do art. 197). Com o que se tem o mais venturoso dos
encontros entre esse direito à saúde e a própria Ciência. No caso, ciências médicas, biológicas
e correlatas, diretamente postas pela Constituição a serviço desse bem inestimável do
indivíduo que é a sua própria higidez físico-mental. Assim, entendeu o ministro que, sendo de
todo importante pontuar que o termo “ciência”, agora por qualquer de suas modalidades e
enquanto atividade individual, também faz parte do catálogo dos direitos fundamentais da
pessoa humana.
Além desse argumento, trouxe também outros dispositivos constitucionais:
Tão qualificadora do indivíduo e da sociedade é essa vocação para os misteres da
Ciência que a Constituição mesma abre todo um destacado capítulo para dela,
Ciência, cuidar por modo superlativamente prezável. É o capítulo de IV do título
VIII, que principia com a peregrina regra de que “O Estado promoverá e
incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas”
(art. 218, caput). Regra de logo complementada com um preceito do mesmo
art. 218) que tem tudo a ver com a autorização de que trata a cabeça do art. da
Lei de Biossegurança, pois assim redigido: “A pesquisa científica básica receberá
tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das
ciências”. Sem maior esforço mental, percebe-se, nessas duas novas passagens
normativas, o mais forte compromisso da Constituição-cidadã para com a Ciência.
Porém, o compromisso maior da nossa vintenária Constituição cidadã é, acima de
tudo, com a responsabilidade.
Dessa forma, com base nos fundamentos constitucionais do direito à saúde e à livre
expressão da atividade científica, julgou totalmente improcedente a ADIN 3.510. Portanto, o
principal foco do entendimento do ministro foi no sentido de que o exercício concreto de um
direito básico e inalienável que é o direito à busca da felicidade e também o direito de viver
com dignidade, direito de que ninguém pode ser privado, mas que deve ser exercido com
responsabilidade. Assim, é possível depreender do voto do ministro sua crença de que ao
votar pela improcedência da ação, estaria contribuindo para o ideal baconiano de felicidade
170
por meio do progresso tecnocientífico, mas também a sua preocupação com a dignidade da
pessoa humana e com o Princípio Responsabilidade.
Portanto, até aqui trouxemos os principais argumentos utilizados no que consideramos
serem os votos da ADIN 3.510, bem como alguns breves comentários, que serão
apropriadamente retomados no item posterior, em que nos dedicaremos a realmente entender
como a fundamentação trazida foi articulada à luz do Princípio Responsabilidade e da
Bioética, levando em consideração que o parâmetro de julgamento feito pelo STF deve ser,
necessariamente, a Constituição Federal.
3.3 A fundamentação constitucional da ADIN 3.510: vinculações ao Princípio
Responsabilidade e à Bioética
Desses que são alguns dos votos que compuseram a decisão do STF, trazidos no item
anterior, é possível extrair, mais uma vez, que o sistema jurídico brasileiro é interpretável a
partir da idéia de sistema hierarquicamente organizado, estando a Constituição Federal no
topo dessa hierarquia. A decisão do STF não fugiu dessa máxima: “verdadeiras vigas mestras,
alicerces sobre os quais se constrói o sistema jurídico, os princípios constitucionais dão
estrutura e coesão ao edifício jurídico”.
392
Na esteira de Alexy, os princípios não precisam ser estabelecidos explicitamente,
podendo ser derivados de uma tradição de normas e decisões que são a expressão de
concepções difundidas acerca de como deve ser o Direito.
393
Nesse sentido, o Princípio
Responsabilidade não apresenta previsão expressa a seu respeito no texto constitucional
brasileiro, mas isso não impede seu reconhecimento, uma vez que ele é imposição natural de
qualquer sistema constitucional de garantias fundamentais. Isso porque se trata de um
elemento intrínseco essencial de qualquer documento jurídico que vise instituir um Estado
Democrático de Direito, como a Constituição Federal brasileira.
Por isso, é possível afirmar que o princípio da dignidade da pessoa humana, que de
forma predominante embasou a decisão, está ligado ao Princípio Responsabilidade, pois sem
responsabilidade não dignidade, da mesma forma que não dignidade sem
responsabilidade. As conexões que os tornam indissociavelmente atrelados derivam das
392
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 37.
393
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales,
1993, p. 104.
171
articulações que os harmonizam e equalizam. Nesse norte, ainda que implícito, o Princípio
Responsabilidade de forma expressa é algo novo e importante para a interpretação
constitucional.
Os princípios podem se apresentar explícitos, com maior nitidez e segurança, embora
limitados pelas possibilidades da linguagem, ou implícitos, mas, numa formulação como na
outra, exercendo idêntica importância sistemática e axiológica, pois “o Direito não é o
conteúdo imediato das disposições expressas, mas também o conteúdo virtual de normas não
expressas, porém ínsitas no sistema”.
394
Mas certamente que todos os princípios, inclusive os
implícitos, têm sede direta no ordenamento jurídico, de forma que os princípios implícitos
podem ser reconhecidos no ordenamento, como o fez o ministro Gilmar Mendes em seu voto.
Claro que a Constituição da República brasileira não detalha as respostas que os
grandes temas postos em face da biotecnologia ou da biomedicina oferecem e que ao Direito
não compete deixar tais temas sem cuidados normativos. Também não se pode alegar que na
Constituição Federal não se encontram todas as respostas necessárias às indagações bioéticas
postas a exame contemporaneamente. Mas elas estão lá, para tanto sendo necessário procurar
para encontrá-las.
395
E sob o manto da dignidade parece ser o lugar mais indicado para
procurá-los: “cada ser humano tem direito à vida digna em sua condição individual e em sua
dimensão sociopolítica, plural, integralizada na espécie”.
396
Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no decorrer da história e chega ao
início do século XXI repleta de si mesma como um valor supremo, construído pela razão
jurídica. Embora haja diferentes entendimentos, acreditamos, na esteira de Nunes Rizzato, que
de fato o princípio da dignidade humana é o principal direito fundamental
constitucionalmente garantido.
397
A Bioética como um todo não desconhece as múltiplas manifestações do princípio da
dignidade humana, pois a vida digna é a base sobre a qual repousa a construção jurídica.
Certamente que é difícil definir o que seja a dignidade humana, pois inexiste uma delimitação
394
ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1999, p. 54.
395
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 88.
396
Idem, p. 17.
397
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 45-46. Para o autor, “a dignidade nasce com o indivíduo. O ser humano é digno porque é. É-lhe
inata. Inerente à essência. Porém, no decorrer da vida, ao viver em família e em sociedade, ganha acréscimos de
dignidade” (p. 49).
172
precisa do que seja a dignidade da pessoa humana, sendo de fácil percepção o seu não
atendimento, mas de difícil conceituação.
398
Segundo Ingo Sarlet, “o princípio da dignidade humana constitui uma categoria
axiológica aberta, sendo inadequado conceituá-la de maneira fixista, ainda mais quando se
verifica que uma definição desta natureza não harmoniza com o pluralismo e a diversidade de
valores que se manifestam nas sociedades modernas contemporâneas”.
399
Nesse sentido, uma
definição clara do que seja efetivamente esta dignidade parece não ser possível: ela
simplesmente existe, algo que se reconhece, se respeita e protege, por ser uma qualidade
intrínseca da pessoa humana, “um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta
singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva
consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais”.
400
Desse modo, a Bioética se coaduna tanto com a dimensão natural quanto com a
dimensão cultural da dignidade, na medida em que a dignidade também possui um sentido
cultural, por ser fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo. É,
assim, uma construção que se apresenta como limite e como tarefa dos poderes públicos, entre
os quais o Judiciário: na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é
algo que necessariamente pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado; como
tarefa imposta ao Estado, reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a
dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da
dignidade.
401
Ainda na esteira de Sarlet, a qualificação da dignidade da pessoa humana como
princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1°, inciso III, de nossa Lei
Fundamental não contém apenas uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui
norma jurídico-positiva com status constitucional e, como, tal, dotada de eficácia,
transformando-se, para além da dimensão ética, em valor jurídico fundamental da
comunidade. Assim, “na condição de princípio fundamental, a dignidade da pessoa humana
constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem
398
PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho. Sobre o direito à vida e ao meio ambiente frente aos princípios
da dignidade humana e da razoabilidade. In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida
digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 278.
399
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 117.
400
Idem, p. 118.
401
Idem, p. 121.
173
constitucional, razão pela qual se justifica plenamente sua caracterização como princípio
constitucional de maior hierarquia axiológica-valorativa”.
402
Dentre as funções exercidas pelo princípio da dignidade da pessoa humana, destaca-se
o fato de, na sua condição de referencial hermenêutico, ser elemento que confere unidade de
sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional.
403
Isso porque, de acordo
com a função integradora e hermenêutica do princípio da dignidade, este serve como
parâmetro de aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico,
imprimindo-lhe sua coerência interna.
404
Assim, estamos diante de uma posição jurídica diretamente embasada e relacionada à
dignidade da pessoa, sendo que do princípio da dignidade da pessoa humana é possível
deduzir autonomamente, posições jurídico-subjetivas fundamentais. Salvo melhor
entendimento, é isso que parece representar o fato dos ministros terem se servido do
entendimento de Sarlet, que, aliás, coaduna-se com o que pretendemos afirmar: “Nada impede
que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoa humana, a proteção – mediante
o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas fundamentais da dignidade contra novas
ofensas e ameaças, em princípio não alcançadas, ao menos não expressamente, pelo âmbito
dos direitos já consagrados no texto constitucional”.
405
O Princípio Responsabilidade não aparece de forma expressa, mas por seu status
constitucional, permeia toda a ordem constitucional, estando indissociavelmente atrelado ao
princípio da dignidade humana. O Princípio Responsabilidade é uma exigência elementar da
dignidade da pessoa humana, consagrando o Estado de Direito enquanto tal; um princípio que
mesmo não sendo objeto de uma legislação específica, se impõem a todos porque expressa os
valores a que ao Direito cabe tutelar.
Com a promulgação da Constituição da República de 1988, uma nova ordem jurídica
foi instaurada no Brasil, trazendo os princípios estruturais, os chamados princípios
constitucionais. Nestes incluem-se uma série de valores fundamentais, como a vida, a
dignidade humana, a liberdade e a solidariedade. É sabido que não existe um capítulo próprio
em nossa Constituição a tratar de questões relacionadas à Bioética, e isso ocorre justamente
em virtude de que todos os princípios constitucionais atinentes à vida humana, sua
402
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 123-124.
403
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81.
404
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 125.
405
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81.
174
preservação e qualidade, estão a ela entrelaçados, como o princípio do respeito à dignidade
humana.
É preciso insistir também no fato de que mesmo admitindo que o sistema jurídico seja
incompleto, provisório, e não definitivo, pois a vida é um processo constante de mudanças,
mister se faz encontrar um ponto de convergência, a partir de princípios e valores comuns.
Neles, podemos reconhecer a essência do Princípio Responsabilidade, que está presente na
dignidade humana e na liberdade de pesquisa científica, entre outros, sendo que também nesse
sentido é possível afirmar que ele foi erigido como fundamental, seguindo o exemplo do
artigo 13 da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos.
406
Como referido no primeiro capítulo, foram as novas condições da vida, de se cuidar
da vida, se pensar e se conceber a vida que levaram a novas incursões na ética, trazendo a
necessidade de se pensar a humanidade a partir de um sentido mais pleno, respeitoso e
responsável com o outro. Dessa precisão de se tratar a formação da vida e os cuidados com
ela segundo os valores da ética e os princípios do conhecimento e da prática humana por ela
tocados é que surgiu o termo Bioética.
407
A Bioética tem o seu fundamento na Constituição, principalmente na dignidade
humana. É a constitucionalização do direito à vida e a ênfase no princípio matriarcal e
substantivo da dignidade humana que assegurem o fundamento da intangibilidade e da
responsabilidade da vida do ser humano. É esse fundamento que haverá de ser considerado
pelas normas, doutrinas, decisões, jurisprudências e práticas de qualquer natureza que atinem
à vida humana.
408
Um primeiro item a ser salientado quando se volta os olhos ao princípio da dignidade
da pessoa humana é a liberdade que lhe haverá de ser garantida, pois a liberdade é um atributo
que se ostenta no humano do ser. Na Boética, a importância da liberdade é fundamental, pois
ela avança tanto quanto for assegurada não somente às pessoas para que elas possam se valer
dos procedimentos biomédicos, resultantes das pesquisas e dos avanços conquistados em
termos de conhecimento utilizável para o homem, como o próprio pesquisador somente pode
406
Tal dispositivo estatuiu “atenção especial às responsabilidades inerentes às atividades dos pesquisadores,
incluindo meticulosidade, cautela, honestidade intelectual e integridade na realização de pesquisa, bem como na
apresentação e utilização de achados de pesquisa, no âmbito da pesquisa do genoma humano, devido a suas
implicações éticas e sociais. As pessoas competentes pela elaboração de políticas públicas e privadas no campo
das ciências também têm responsabilidade especial nesta matéria”.
407
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 79.
408
Idem, p. 84.
175
chegar a novos conhecimentos se lhe for garantida a liberdade de promover os seus estudos e
demonstrar as suas descobertas e criações.
409
Nesse sentido, a decisão primou por uma série de valores e princípios estabelecidos na
Constituição brasileira, a qual de fato não apenas cuidou de garantir a liberdade de aprender e
pesquisar, divulgar o pensamento e o saber (artigo 206, inciso II), como outorgou ao Estado
competência para promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a
capacitação tecnológicas. Mais que assegurar, portanto, aquela pesquisa, o Estado nacional
tem a obrigação constitucional de desenvolver, incrementar, fomentar a pesquisa, nos termos
da competência que lhe é conferida. Aliás, a Constituição, em seu artigo 218, estabelece o
dever estatal de priorizar a pesquisa científica básica, que deve receber tratamento prioritário
do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso das ciências.
A liberdade de pesquisa é manifestação da liberdade humana e compreende não
apenas a liberdade de descobrir, de procurar respostas às questões que o pesquisador se põe
nos laboratórios e nos espaços de investigação, mas também à liberdade de experimentar e de
buscar aplicar o quanto investigado e descoberto naquela primeira fase.
410
A ênfase de que o
direito à liberdade de pesquisa deve se mover no sentido do benefício das pessoas
consideradas em sua dimensão individual e em sua contingência política. A necessidade de
resguardar a dignidade da pessoa humana não é avaliável em termos econômicos, enquanto
que o utilitalismo mercantilista que domina as atuações empresariais, voltadas ao que é
lucrativo, é traduzível em valores materiais.
A engenharia genética, os recursos que ela propicia ao homem para que ele possa lidar
com o ser humano e sobre o ser humano suscita os mais acirrados, densos e fecundos debates
havidos na Bioética e no Direito. A Bioética caracteriza-se justamente por provocar
sentimentos contraditórios nas pessoas que dela se aproximam. Isto acontece precisamente
porque a análise detalhada de temas tão provocativos, como ocorre com os casos práticos de
aplicação da biotecnologia, torna impossível manter-nos imunes à controvérsia moral e ética
que os acompanha.
411
Por isso, embora a reconhecida dificuldade de se alcançar um ponto de
409
ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. Vida digna: Direito, Ética e Ciência (os novos domínios científicos e seus
reflexos jurídicos). In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coordenadora). O direito à vida digna. Belo
Horizonte: Fórum, 2004, p. 89.
410
Idem, p. 93.
411
GUILHEM, Dirce. Decisões reprodutivas, genética clínica e o agir bioético: o encontro da biologia com a
cultura. In: BARCHIFONTAINE, Christian de Paul; PESSINI, Leo (Orgs.). Bioética: alguns desafios. São
Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 229. O autor questiona: como explicar os sentimentos de fascínio e repulsa
ocasionados pelo agir bioético? Sugere que é possível que isso aconteça por dois motivos: primeiro, a disciplina
seria capaz de responder à aspiração de pesquisadores e da sociedade de transformar-se em mecanismo legítimo
de mediação para os dilemas e conflitos morais no campo da saúde e da doença, daí o fascínio social e
acadêmico que ela exerce. O segundo, que em alguma medida é a própria negação do primeiro, explicaria a
176
equilíbrio entre ceticismo, o mais prudente é que “tudo deve ser considerado sujeito a
questionamento e, a cada momento, um quebra-cabeça de solicitações rivais, teóricas e
práticas pode ser encontrado nas áreas ‘movediças’ do conhecimento”.
412
Nesse contexto, a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 225, § 1º, II,
estabelece que o Poder Público tem o dever de preservar a diversidade e a integridade do
patrimônio genético do país, fiscalizando as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação do
material genético. Assim, tal regra constitucional admitiu que é possível a atividade
biotecnológica e, portanto, a engenharia genética,
413
sempre que tal manipulação for usada
para os fins de efetivar o direito estabelecido no artigo 225, visando alcançar um meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse sentido, segundo Fiorillo, “os experimentos de engenharia genética são válidos
quando não infringir os princípios da dignidade humana e da isonomia, contribuindo para a
concretização do direito à vida, tanto no campo da ciência quanto da moral e do Direito”.
414
Isso porque o princípio da dignidade humana não legitima qualquer comportamento científico
apenas porque ele é possível, e isso ocorre justamente porque envolve uma série de outras
reflexões, das quais a presente pesquisa é apenas um exemplo.
Portanto, estamos diante de toda uma gama de valores e princípios
constitucionalmente consagrados que se fazem presentes na Constituição Federal brasileira,
de maneira expressa ou não, entre os quais os princípios da Bioética e o próprio Princípio
Responsabilidade, os quais, de modo bastante dinâmico, se entrelaçam para conferir
legitimidade à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 3.510, e que salvo
melhor juízo, poderíamos dizer que foram abarcados sob o manto da dignidade humana
enquanto critério hermenêutico utilizado para englobar todas essas facetas.
3.4 Conclusões parciais
repulsa resultante da constatação de sua impossibilidade em tornar-se a resposta definitiva para os conflitos
morais, o que reforçaria, assim, os eu caráter contingencial ou até mesmo arbitrário.
412
BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética
na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997, p. 110.
413
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. Bioética e a lei implicações médico-
legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 161. Denomina-se engenharia genética a área de estudos surgida com
os avanços ocorridos nos últimos anos, relacionados com a síntese, análise, transposição e manipulação em geral
do DNA.
414
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
176.
177
Partindo-se do que foi estudado nos três capítulos do presente trabalho, é possível
afirmar que, em termos de Bioética, muitos dos seus principais debatedores afirmam que tudo
é mutável e progressivo, principalmente em se tratando de valores bioéticos. Mas
independentemente de se filiar ou não a essa afirmação, é de se concordar que o Princípio
Responsabilidade deve ser balizador de toda e qualquer ação que gire em torno da Bioética,
pois ainda que possa adquirir novos contornos, seu cerne é a essência de tudo que é e possa
vir a ser debatido no âmbito da Bioética. As grandes conquistas históricas da humanidade são
frutos de muitas lutas das gerações passadas, e muito ainda a ser conquistado para que haja
a transposição do discurso na dimensão ética para a prática do efetivo processo de aplicação
da ética, e isso só pode ser feito se balizado pelo Princípio Responsabilidade.
Como as ações e omissões humanas causam reflexos sobre outros bens juridicamente
tutelados, inclusive sobre a própria pessoa, possuem uma valoração jurídica. Dentre essas
ações, existem aquelas que afetam a vida, à qual a legislação dispensa maior atenção. Por ser
a vida reconhecida por todos os povos, independentemente da religião, da política, da cultura,
da condição econômica, ganha status de valor ético, que perpassa a condição física, biológica,
alcançando sua dignidade.
Assim, em razão do importante papel da ciência na era da civilização tecnológica, é
preciso que haja uma conscientização da sociedade de que hoje a ciência se envolve não com
um saber, mas com graus de não-saber, sendo de todo oportuno que os especialistas sejam
como que coagidos a afirmar a insegurança de suas atividades e se vejam motivados a decidir
em conjunto, com os diversos segmentos da sociedade, o que fazer e o que não fazer, em
razão da denominada incompletude do conhecimento.
415
Nesse contexto, muito se tem falado que vivemos em uma sociedade de risco. E
quando se fala nisso, nada mais é do que a falta de compreensão e certeza com relação ao
futuro da humanidade e às conseqüências do desenvolvimento científico e tecnológico. Em
razão disso, a vida torna-se cada vez mais frágil diante do poder de interferência do
homem
416
, o que traz a necessidade de que ciência e ética se reconciliem, superando as
mútuas desconfianças e rejeições.
417
415
PEREIRA E SILVA In: WOLKER, Antônio Carlos; MORATO LEITE, José Rubens (Orgs.). Os Novos
Direitos no Brasil: natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 304.
416
BECK, Ulrich, GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva. Política, tradição e estética
na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1997, p. 156.
417
PEGORARO, Olinto A. Ética e Bioética: da subsistência à existência. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 13.
Segundo o autor, “se procedêssemos de forma a justificar a pesquisa científica exclusivamente pelo que ela pode
representar de avanço do conhecimento, não estaríamos justificando as experiências realizadas nos campos de
concentração? Os argumentos que levam à condenação de experiências como as realizadas pelos médicos
nazistas não estão na esfera da Ciência. São de ordem moral e dizem respeito aos comportamentos que a
178
Como se vê, os desafios da Bioética na atualidade não são poucos, e aparecem de
forma acentuada na discussão acerca da liberação das pesquisas com células-tronco
embrionárias no Brasil. Tais desafios éticos dizem respeito às inúmeras novas circunstâncias
que se criaram em nossa sociedade, caracterizada, por um lado, pela crise de valores
fundamentais da vida humana e, por outro lado, pelos desafios impostos pelas constantes
revoluções e inovações da tecnologia.
418
Em poucas palavras, a Bioética não é um “modismo”
nem uma terminologia inócua, mas sim uma necessidade imposta pela realidade tecno-
científica.
Também foi mencionado que a liberdade responsável das pesquisas poderia conduzir a
resultados satisfatórios para a sociedade. Porém, poderiam ter sido trabalhadas, por exemplo,
questões relacionadas à responsabilidade do fazer e do não-fazer da técnica. Afinal, a
responsabilidade pelo fazer é também a responsabilidade pelo não-fazer, pois é necessário
pensar nas conseqüências do fazer na mesma medida em que devem ser pensadas as
conseqüências do não-fazer.
Isso porque um dos maiores desafios para o pensamento ético diz respeito à condição
humana propriamente dita. Com relação à manipulação genética, onde o homem toma em
suas mãos sua própria evolução, Hans Jonas questionou se o ser humano está qualificado para
o papel de criador, e quem serão os escultores da nova imagem do homem. Da mesma forma,
questionou quais serão os critérios e modelos, e se tem o homem o direito de mudar o seu
próprio patrimônio genético. Segundo ele, a ignorância sobre as conseqüências uma das
facetas da complexidade - é em si mesma razão suficiente para uma moderação responsável.
Aqui entra o papel da ética consubstanciada no princípio responsabilidade na busca de regras
moderadoras das ações humanas: o fazer e o não-fazer.
Como esclarecido no decorrer do trabalho, as potencialidades científicas manifestas na
técnica exigem preocupações de ordem ética e jurídica, pois a técnica em si não conhece
limitações de ordem ética. Tal legitimação não abole sua profunda ambivalência, nos termos
trazidos por Morin, nem os perigos de um mau-uso, mas tem o condão de conferir uma certa
credibilidade, que o horizonte ético, sob o manto da responsabilidade, não mais se resume
ao ser humano nem a Deus.
Assim, Jonas diagnosticou criticamente o século da biotecnologia,
sociedade julga admissíveis ou não. Trata-se, portanto, de uma mudança de entendimento e comportamento, que
o próprio progresso da ciência traz à cena com todo o vigor: a reflexão ética extrapola os limites da ciência e os
cidadãos são chamados a se pronunciar; na pesquisa científica são diversos os atores, assim como diversos
também são seus interesses e valores morais” (p. 172).
418
SIDEKUM, Antônio. Ética e alteridade: a subjetividade ferida. Porto Alegre: Editora Unisinos, 2002, p.
161.
179
em que “a técnica impera cada vez com mais força, antes mesmo de esperar o resultado real
de suas intervenções”.
419
Hans Jonas antecipou uma das grandes preocupações das modernas sociedades
democráticas: no seio de uma sociedade multicultural, para todo tipo de risco que afete os
interesses de um setor da sociedade, ou que afete a natureza, como é o caso de muitas
tecnologias que estabelecem alguns dos principais desafios da Bioética, é indispensável,
conforme preconizou Olivé, a participação pública responsável no processo que vai da
identificação até a gestão do risco.
420
Também nesse sentido, o Princípio Responsabilidade
jonasiano vem ao encontro dessa exigência de que tratava o autor supramencionado, pois se
trata de uma responsabilidade que implica uma consciência social de responsabilidade muito
forte, e que não despreza os mais diferentes e legítimos pontos de vista possíveis, sendo,
portanto, uma concepção pluralista que condiz com o multiculturalismo vivenciado nos dias
de hoje.
É nesse contexto plural das sociedades modernas que ganha importância a proposta
jonasiana, a qual, ao ter sido levada em consideração no julgamento do STF, permitiu que a
tomada da decisão final tenha sido o resultado de um amplo processo dialógico, no qual foram
trocadas informações e expostos os interesses, fins e valores envolvidos na questão. Seu
sentido de responsabilidade é também um sentido de dignidade e tolerância, de convivência e
de respeito, que não desmerece as diversas tradições culturais e religiosas da humanidade e
que torna possível entrar em acordo sobre mínimos éticos de comportamento e de ação, com
conseqüências jurídicas e políticas, como é o caso da liberação das pesquisas com células-
tronco.
Por isso, não é descabido afirmar que o discurso jonasiano pretende ser o mais
legítimo e plural possível, levando-se em consideração que, de um ponto de vista
epistemológico, isto é, no que concerne à produção e à justificação de um certo tipo de
conhecimento, não apenas uma maneira correta de identificar os riscos. Por razões
epistemológicas, tampouco apenas uma gestão possível do risco que seja a única e correta
e eticamente aceitável. Sobre tudo isso podem existir diferentes pontos de vista, uns tão
legítimos quanto os outros.
421
419
MIRANDA, Erliane; TENÓRIO FILHO, Raphael Douglas. Da eugenia à algenia e o paradigma bioético. In:
PELIZZOLI, Marcelo (Org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 82.
420
OLIVÉ, Leon. Epistemologia na ética e nas éticas aplicadas. In: GARRAFA, Volnei; KOTTOW, Miguel;
SAADA, Alya (Org.). Bases conceituais da Bioética: enfoque latino-americano. Tradução de Luciana
Moreira Pudenzi e Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Gaia, 2006, p. 129.
421
Idem, p. 130.
180
O divórcio entre os avanços científicos e a reflexão ética fizeram com que Jonas
propusesse novas dimensões para a responsabilidade frente aos novos tipos de risco a que está
sujeita a civilização tecnológica. Sugeriu, assim, uma ética para os novos tempos, pois a
técnica moderna introduziu ações de magnitudes tão diferentes, com objetivos e
conseqüências tão imprevisíveis que os marcos da ética anterior não mais poderiam contê-
los, como expõs Jonas ao se contrapor ao imperativo kantiano. A ética jonasiana assume uma
tarefa reflexiva em relação à tecnologia, na forma de um apelo responsável do poder
onipotente da tecnologia, em alerta aos que detêm o poder científico, razão pela qual “não
refletimos sobre ética por idealismo, mas por uma questão de sobrevivência”.
422
Hans Jonas assumiu sua postura do ponto de vista ontológico. Como já referido,
discípulo que era de Martin Heidegger, fundamentou no Ser o dever ético do ser humano
moderno. Para ele, somente uma ética fundada na amplitude do Ser poderia ter significado.
Assim, Hans Jonas demonstrou que a tecnologia tem leis de movimento próprias e
continuadas, ou seja, que o homem não determina a velocidade dos avanços tecnológicos,
principalmente pela impossibilidade de uma previsão com um nível aceitável de
credibilidade.
423
Acreditamos que a decisão, enquanto parâmetro comportamental, coaduna-se com
diferentes realidades e pontos de vista existentes na sociedade multicultural, pois os princípios
constitucionais estão em conformidade com o princípio responsabilidade jonasiano, e ambos
estão contemplados na decisão Federal e na decisão do STF.
Em razão de tudo o que foi esposado nesse trabalho, brevemente sintetizado até aqui, é
possível dizer que a decisão do Supremo Tribunal Federal no que tange à polêmica já
mencionada foi tomada com base em princípios constitucionais. Não como fugir dessa
conclusão: o intérprete tem sempre de constatar que o sistema jurídico-legal escrito e não
escrito está assentado em princípios,
424
tendo na referida decisão prevalecido o da dignidade
humana, com o qual, de diversas maneiras, vinculamos anteriormente o Princípio
Responsabilidade.
422
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Organizadores). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 139.
423
CUNHA, Gustavo Henrique de Brito Albuquerque. Manipulação genética e reprodução humana. In:
PELIZZOLI, Marcelo (org.). Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 99.
424
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 23.
181
CONCLUSÃO
Retomando o que foi dito na introdução, a necessidade de segurança jurídica para o
Direito é fator primordial. O jurídico tem como objetivo limitar a responsabilidade, cortar a
cadeia de atos que possam colocar algo em jogo, causar danos, atribuir sanções, como é o
caso do Direito Penal, ou reparações no Direito Civil. a responsabilidade ética voltada ao
futuro, como podemos nos referir ao Princípio Responsabilidade jonasiano, faz parte da esfera
do nosso ‘poder’ e do ‘fazer’, porquanto a decisão passa a definir o espaço de ação em relação
ao outro e ao frágil como precaução.
A responsabilidade, na verdade, não é um dever imposto de fora, mas uma resposta a
algo que diz respeito à natureza de cada homem e de todos os homens. Aliás, responsabilidade
e resposta têm a mesma raiz etimológica, respondere. Ser responsável significa estar disposto
a responder.
425
Isso é muito sugestivo, pois revela que o homem, se isolado do outro, pode até
ser responsável por si próprio, mas não pelo outro, pois não tem a quem responder: pela
própria transitividade verbal, quem responde responde alguma coisa a alguém. São os
vínculos humanos estabelecidos que fazem com que tenhamos que ser responsáveis por
alguma coisa perante alguém, e não somente por nós mesmos. Dessa forma, como o homem
não é uma ilha, o seu próprio sentido ético, que pode ser percebido até mesmo por uma regra
de regência, já inclui uma idéia de responsabilidade.
É um grande desafio para o Direito enfrentar as questões trazidas pelo Princípio
Responsabilidade no âmbito jurídico. Por mais que a idéia de responsabilidade seja um
fenômeno básico da existência humana, essa tarefa só pode ser assumida se assumido o
compromisso de evitar certas deformações derivadas da formação jurídica tradicional, como
por exemplo, a visão limitada do conceito de responsabilidade. Não se trata de afastar os
425
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 176.
182
ensinamentos recebidos, mas de colocá-los numa espécie de suspensão, para que sejam
cotejados por outros conhecimentos.
Hans Jonas, quando elaborou o Princípio Responsabilidade, adentrou em questões
ontológicas, quando então é possível afirmar que a responsabilidade de que trata é
principalmente um sentir-se responsável, e isso é possível quando uma conscientização
do que é a essência da responsabilidade jonasiana e também da compreensão do que consiste
a complexidade que leva à responsabilidade. Como se vê, trata-se de um tripé, que bem se
poderia chamar de um cordão de três dobras: complexidade, consciência e responsabilidade.
Um tripé a sustentar a ética do devir.
Hoje, vivemos numa época distinta da vivida por Jonas, e por se tratar de diferentes
realidades, remetemos ao que foi dito no começo do segundo capítulo, para concluir que tais
diferenças têm o condão de enriquecer o ensinamento de Hans Jonas, longe de desmerecê-lo.
Porém, isso não impede que somente o Princípio Responsabilidade fosse uma peça solta na
engrenagem, se analisado isoladamente, num compartimento estanque e isolado, de sorte que
o ajuste se dá quando o estudamos amparado em novos conhecimentos. Aliás, é possível dizer
que Jonas enfrentou questões sobre consciência e complexidade, ainda que não tenha se
utilizado dessa terminologia.
Quando pensamos essas questões no seio da decisão proferida pelo STF na ADIN
3.510, percebemos que tudo isso foi cotejado sob as considerações feitas acerca do princípio
da dignidade humana, considerando aqui seus desdobramentos, como o direito à saúde e à
livre expressão da atividade científica. Como referido pelo ministro Gilmar Mendes, a
Constituição de 1988, ao incorporar tanto o princípio-responsabilidade de Hans Jonas quanto
o princípio-esperança de Ernst Bloch, permite que nossa evolução constitucional ocorra entre
a ratio e a emotio. Aqui ficou bem evidenciado que de fato “o intérprete tem sempre de
constatar que o sistema jurídico-legal escrito e não escrito está assentado em
princípios”.
426
Assim, é possível afirmar que o Princípio Responsabilidade não aparece de forma
expressa, mas por seu status constitucional, permeia toda a ordem constitucional, estando
indissociavelmente atrelado ao princípio da dignidade humana. O Princípio Responsabilidade
é uma exigência elementar da dignidade da pessoa humana, consagrando o Estado de Direito
enquanto tal. É com base nessa constatação que se torna possível analisar como o Princípio
Responsabilidade incidiu na decisão do STF.
426
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 23.
183
Hans Jonas demonstrou que é imperioso uma nova filosofia da ciência, o que significa
uma mudança paradigmática, pois o saber moderno, de forte assento técnico, se faz
acompanhar de um extraordinário poder de transformação, destituído, porém, de uma reflexão
ética que exerça moderação sobre o poder da tecnociência. A responsabilidade é, portanto, na
ética, a articulação entre duas realidades, uma subjetiva e outra objetiva. É forjada por essa
fusão entre o sujeito e a ação, entre prudência e equilíbrio.
Inquestionável o fato de que a ciência sempre está um passo para não dizer vários
passos à frente do Direito, sempre surpreendente com suas descobertas e feitos científicos.
Um último exemplo disso, que muito interessa à presente pesquisa, é a notícia veiculada nos
meios de comunicação dia 24 de janeiro de 2009:
427
cientistas brasileiros da UFRJ
transformaram células adultas em células-tronco, ou seja, que podem se transformar em
qualquer tecido do organismo, propriedade esta que as células adultas não têm por si a
chamada plutipotência induzida. A pluripotência é induzida, como o próprio nome conota,
de forma artificial em uma célula adulta, por meio da reprogramação de seu DNA. Desse
modo, o resultado são células idênticas às cobiçadas células-tronco embrionárias, com a
vantagem de que não necessitam de embriões para sua obtenção.
A técnica não reduziria a importância do estudo das células embrionárias “autênticas”,
mas diminuiria a necessidade de destruir embriões para a produção de novas linhagens
pluripotentes, o que indica que tais pesquisas continuarão, apesar dessa novidade. Além de
facilitar imensamente a produção de células-tronco oriundas dos próprios pacientes, que
não limite no número de células adultas que podem ser reprogramadas nem é preciso
passar pelas complicações técnicas (e éticas) de fabricar ou clonar um embrião para pesquisa.
Assim, segundo a pesquisa, as células adultas se renovaram e passaram a agir com as mesmas
possibilidades das células-tronco embrionárias, de forma que o sucesso dessa pesquisa coloca
427
Coincidentemente, nos meios impressos desse mesmo dia, foi noticiado que, em uma decisão inédita, a Geron
Corporation, uma empresa americana da Califórnia, foi autorizada para realizar testes com células-tronco
embrionárias em seres humanos. Os experimentos deverão ser feitos até a metade do ano, em pessoas com danos
graves na medula espinhal. Mais precisamente, serão entre oito e dez pacientes que estejam completamente
paralisados abaixo das vértebras terceira a décima e que tenham sofrido a lesão espinhal de sete a catorze dias
antes do tratamento. O objetivo inicial da pesquisa será o de avaliar se os pacientes não sofrerão danos. As
células nervosas serão injetadas diretamente na parte da medula espinhal onde ocorreu a lesão. Além disso, os
pesquisadores também observarão os pacientes durante um ano para ver se eles recuperam alguma função abaixo
do ponto da lesão. Serão utilizados exemplares de lulas-tronco de embriões humanos autorizados para uso em
pesquisas, em agosto de 2001, pelo então presidente Bush, que haviam sido tiradas de embriões descartados por
clínicas de fertilização (Vide “Sinal verde à pesquisa com células-tronco”, do Jornal Zero Hora de 24/01/2009, p.
26).
184
o Brasil no seleto rol dos países mais avançados do mundo em pesquisas com células-
tronco.
428
Numa análise apressada, até se poderia dizer que se tal notícia for fato o que tudo
indica -, então se esvaneceriam os debates morais e éticos que cercam a discussão acerca da
liberação das pesquisas com lulas-tronco no Brasil, e assim, a análise em comento perderia
sua razão de ser. Não fosse o fato de que, muito pelo contrário, essa notícia vem a corroborar,
uma vez mais, que o pensamento jonasiano nunca foi tão atual, e que nunca o Princípio
Responsabilidade foi tão fundamentalmente importante em sua contribuição à sociedade e
especialmente ao Direito, insuficientemente instrumentalizado para debater e regular na seara
jurídica os temas bioéticos. Quando o Direito começa a se inserir com um certo conhecimento
de causa na discussão, a ciência causa uma reviravolta que altera completamente o rumo da
questão, demonstrando mais uma vez sua complexidade e a necessidade de ter consciência de
si mesma.
Certamente haverão muitas outras pesquisas e novidades científicas, com a tendência
de sempre estarem a gerar acirradas polêmicas, que ensejarão outros tipos de debates éticos.
Num contexto em que impera a complexidade, a ciência está sempre gerando novas questões,
cada vez mais polêmicas, e que precisam encontrar o Direito preparado para enfrentá-las;
mais do que isso, profissionais habilitados ao debate ético sobre esses temas, que saibam lidar
com tantos atordoamentos, como mencionado na introdução desse trabalho. Como visto, o
428
Segundo o jornal O Povo on line, as células iPS (pluripotent stem cells, em inglês), criadas por cientistas
brasileiros, são idênticas às embrionárias. Apenas quatro outros países já possuem linhagens de células iPS
registradas na literatura científica: Japão, Estados Unidos, China e Alemanha. Os pioneiros são os japoneses, da
Universidade de Kyoto, que desenvolveram a técnica em células de camundongo, em agosto de 2006, e depois
reproduziram o feito em células humanas, em novembro de 2007. Os resultados mudaram completamente o
cenário mundial das pesquisas com células-tronco embrionárias, engessadas pelo debate ético em torno da
destruição de embriões humanos. A pesquisa brasileira produziu, simultaneamente, em menos de um ano, uma
linhagem iPS de células humanas e outra de camundongo. Ambas serão disponibilizadas gratuitamente para a
comunidade científica. O projeto foi realizado nos laboratórios do neurocientista Stevens Rehen, do Instituto de
Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e do biomédico Martin Bonamino, da
Divisão de Medicina Experimental do Instituto Nacional de Câncer (Inca), com apoio dos alunos de pós-
graduação Bruna Paulsen e Leonardo Chicaybam. A parceria começou em 2008, depois que Rehen deu uma
palestra no Inca. Foi o casamento perfeito: “O Stevens sabia cultivar as células-tronco e a gente sabia produzir os
vetores virais para infectar as células”, conta Bonamino. Esse é o elemento fundamental - e também o calcanhar
de Aquiles - da técnica inventada pelos japoneses: para transformar as células adultas em células pluripotentes
(iguais às embrionárias), é preciso introduzir quatro genes em seu DNA, chamados Oct-4, Sox-2, Klf-4 e c-Myc.
A única maneira de fazer isso, por enquanto, é infectar as células com vírus atenuados, construídos em
laboratório, que carregam os genes para dentro das células e os inserem no seu genoma nuclear. Esses genes
funcionam como um software genético, que reformata a célula de volta ao seu estado “original de fábrica”. Os
vírus usados como vetores para transformar as células morrem depois de cumprir sua missão, sem se reproduzir.
O problema é que o local de inserção dos genes no genoma é puramente aleatório, o que pode interferir em
funções vitais da célula. Se um dos genes entrar em um ponto que interfira com o sistema de controle da divisão
celular, por exemplo, o risco de a lula se tornar cancerígena (Vide notícia do O Povo on line: “Cientistas
criam células-tronco sem embriões”. Disponível em
http://www.opovo.com.br/opovo/brasil/851614.html.
Acesso em 24/01/2009).
185
desafio é grande, pois envolve saberes de outras áreas do conhecimento, o que, ao invés de
causar espanto e receio, deve servir de incentivo a esse constante estudo, sistematização e
atualização dos conhecimentos ligados aos temas da Bioética – a responsabilidade se faz cada
vez mais necessária.
A multidisciplinaridade a que se aludiu no decorrer da pesquisa diz respeito às práticas
tecnocientíficas diversas e com as áreas das Ciências Humanas que são chamadas a confrontar
seus pontos de vista, a começar pelo Direito, a Filosofia, a Teologia, a Sociologia, a
Antropologia, a Psicologia, a Psicanálise, as Ciências Políticas. Sua necessidade advém da
complexidade com a qual nos deparamos em todas as facetas do agir humano, em particular
no que se refere à tecnociência. Porém, é preciso que o Direito se dispa de sentimentos de
onipotência, mais exatamente no sentido de auto-suficiência, de modo a reconhecer que a
Bioética como um todo e o Princípio Responsabilidade em especial são, na verdade,
desaguadouros de diversas fontes, e é nisso que consiste sua grandeza e importância.
O Princípio Responsabilidade, diferentemente da responsabilidade tal como é
concebida no âmbito jurídico, é o mote de qualquer tipo de debate e teorização que se possa
fazer em sede de questões bioéticas como o é da liberação das pesquisas com células-tronco
embrionárias. Sua importância tende a crescer na proporção em que o tempo passar, pois as
promessas da ciência na atualidade são incalculáveis, e não se pode fugir à sua reflexão ética.
Não uma ética nos moldes tradicionais, como alertou Jonas, mas uma nova ética, capaz de
responder aos anseios presentes e futuros, ou seja, uma ética que somente o Princípio
Responsabilidade pode servir de norte. O seu principal local de encontro e discussão, na
esteira da decisão do STF, é o princípio dignidade da pessoa humana, sem excluir, de forma
alguma, qualquer tipo de reflexão ética e principiológica de outra ordem.
Com essa pretensão de Jonas, também albergada pela Constituição Federal brasileira, é
superado o emprego corrente de responsabilidade na seara jurídica, como imputação tal como
o Direito Civil e Penal a concebem. A ética da responsabilidade consiste num agir que se
antecipa à ação e não como cobrança ou imputação de um ato acontecido. Portanto, a
prudência e o cuidado como esferas do nosso poder implicam a sabedoria de antecipar
possíveis danos ou de não correr riscos.
429
Enquanto o Direito trabalha com certezas, o
conhecimento científico, cada vez mais, paradoxalmente, caminha em direção a incertezas -
ganhando espaço o princípio da precaução. Morin afirma que “o progresso das certezas
científicas produz o progresso da incerteza, uma incerteza ‘boa’, que nos liberta de uma visão
429
ZANCANARO, Lourenço. A ética da responsabilidade de Hans Jonas. In: BARCHIFONTAINE, Christian de
Paul; PESSINI, Leo (Orgs). Bioética: alguns desafios. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 155.
186
ingênua: tanto as ignorâncias como os conhecimentos provenientes do progresso científico
trazem um esclarecimento insubstituível aos problemas fundamentais filosóficos”.
430
Portanto, a dignidade humana foi o critério hermenêutico utilizado pelo STF no
julgamento da ADIN 3.510, tendo sido utilizada como principal argumento para a solução da
controvérsia jurídica. Esse princípio assumiu posição de destaque na decisão, pois serviu de
diretriz material para a identificação do Princípio Responsabilidade que lhe subjaz.
Impossível não salientar, nesse ínterim, que foi um critério basilar, mas não exclusivo, que
outros referenciais também podem ser identificados.
Assim, uma concepção que toma a dignidade humana como valor primordial e dever
maior, como o fez o STF, tem muito mais coerência que a teoria da justificação baseada em
princípios clássicos da Bioética, cuja crítica, mencionada, é feita ao seu teor
universalizante. Portanto, é possível afirmar que a dignidade humana foi o conceito ético-
jurídico universalizador utilizado para superar a multiplicidade de opiniões, reduzindo-as a
um ponto de vista que engloba diversos outros aspectos, entre os quais o Princípio
Responsabilidade jonasiano.
Dessa forma, estamos diante de uma posição jurídica diretamente embasada e
relacionada à dignidade da pessoa, sendo que do princípio da dignidade da pessoa humana é
possível deduzir autonomamente, posições jurídico-subjetivas fundamentais. Salvo melhor
entendimento, é isso que parece representar o fato dos ministros terem se servido do
entendimento de Sarlet, que, aliás, coaduna-se com o que pretendemos afirmar: “Nada impede
que se busque, com fundamento direto na dignidade da pessoa humana, a proteção – mediante
o reconhecimento de posições jurídico-subjetivas fundamentais da dignidade contra novas
ofensas e ameaças, em princípio não alcançadas, ao menos não expressamente, pelo âmbito
dos direitos já consagrados no texto constitucional”.
431
Nesse contexto, também a Bioética se coaduna tanto com a dimensão natural quanto
com a dimensão cultural da dignidade, na medida em que a dignidade também possui um
sentido cultural, por ser fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo.
É, assim, uma construção que se apresenta como limite e como tarefa dos poderes públicos,
430
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 24. Para o autor, “a ciência deve introduzir nela mesma não a reflexão
dos filósofos, mas a reflexividade. É curioso, pois muitas vezes achamos que é próprio da ciência se auto-afirmar
rejeitando a filosofia. Mas repare como os grandes cientistas são filósofos selvagens, desde o início do século.
Quando digo selvagens, é porque partiu deles próprios abordar os problemas filosóficos fundamentais. Isso
aconteceu com Poincaré, com Einstein, com Niels Bohr, com Bor, com Heinsenberg... É incrível: existe uma
atividade especulativa e filosófica que nasce da ciência” (p. 60).
431
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81.
187
entre os quais o Judiciário: na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a
dignidade é algo que necessariamente pertence a cada um e que não pode ser perdido ou
alienado; como tarefa imposta ao Estado, reclama que este guie as suas ações tanto no sentido
de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno
exercício da dignidade.
432
As preocupações de Hans Jonas possuem um alto teor de compromisso com a
dignidade humana, pois trouxe uma preocupação fundamental quando se trata da técnica: o
problema a ser enfrentado não é somente quando a técnica é mal empregada, isto é, para maus
fins; é também quando ela é beneficamente empregada, ou seja, para fins legítimos. Isso
porque a técnica tem em si um lado ameaçador, que pode se revelar a longo prazo, e talvez
numa situação irreversível. Não se trata de um vaticínio, mas de um alerta feito por Jonas em
razão desse caráter a longo prazo característico da técnica, mais do que adequado nos dias de
hoje, quando o poder da ciência tem crescido vertiginosamente, sem que a reflexão ética
pudesse acompanhá-lo a contento.
Assim, Jonas chegou à conclusão de que diante de um tão extraordinário poder de
transformação, o agir humano necessita de um novo imperativo, que dê conta de tantos
desajustes provocados pelo poder da tecnociência, pois todo o saber que ela produz não basta
para sua legitimação; não pode se legitimar a si mesma, sequer tem consciência de si mesma,
de forma que esse avanço do conhecimento precisa ser pensado com base em novas
formulações. Entre saber e poder uma linha divisória muito tênue, e é uma das razões para
a preocupação ética.
Em razão disso, quanto maior é o poder que o ser humano tem de intervir na genética
humana, maior deve ser a sua responsabilidade, uma responsabilidade que produza
discernimento e sabedoria atributos estes que a ciência não tem por si, mas que lhe podem
ser conferidos pela Filosofia e pela Antropologia, por exemplo. É essa tomada de consciência
proposta por Jonas que interessa sobremaneira à sociedade e ao Direito: trata-se de um
compromisso responsável e efetivo que deve ser assumido pela ciência e pelo Direito em
comunhão com outros saberes, de outras áreas do conhecimento, não sendo exagero afirmar
que esse tipo de compromisso ético se configura como uma das dimensões da dignidade.
A consideração dos aspectos bioéticos na produção e aplicação do conhecimento
científico é uma preocupação que perpassa todo o pensamento jonasiano. A riqueza dessa que
é mais que uma preocupação é uma proposta diz de uma ética que não sirva apenas ao
432
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 121.
188
aqui e ao agora, como a ética dos modelos tradicionais, mas sim que conta dos novos
anseios trazidos pela era tecnológica também em atenção ao devir. Um devir que antes de
existir precisa enfrentar um turbilhão de possibilidades e conflitos gerados pela biotecnologia
no âmbito da ciência e num contexto inexorável de ambivalência e complexidade.
Atualmente, o poder de interferência e manipulação do seres vivos tem se tornado,
cada vez mais intenso e real em razão dos avanços científico-tecnológicos, e diga-se de
passagem, em proporções infinitamente maiores do que na época em que “O Princípio
Responsabilidade” foi escrito. O tema da responsabilidade para com a vida, pois, é uma
questão emergente, que antes de saber como preservar, precisa saber o que preservar e por
quê. Por isso, imperioso repensar o Princípio Responsabilidade em relação à vida, na medida
em que o poder do ser humano de intervir e modificá-la faz com que seja necessário pensar a
construção de uma responsabilidade compatível com os novos tempos, e que implica, como já
mencionado, uma forte presença da precaução:
La responsabilidad, sustentada por los actores activos en la formación científica
actualizada, en la previsión de las ventajas y riesgos de sus intervenciones o
productos, en la precaución sobre las ofertas técnicas, en el respeto a los sujetos de
sus actuaciones, y en la seguridad con que estas llevan a cabo, como garantías
contra los daños a la salud y al medio ambiente, las tortuas y los tratos inhumanos y
degradantes, etc, y por el lado receptor, en la actitud alerta y efectiva.
433
Encaminhando-nos para as últimas considerações, é possível afirmar que a certeza de
que os homens se encontram diante do desafio de assumir a responsabilidade dos efeitos de
suas ações parece bem presente no julgamento do STF, cuja maior preocupação – a dignidade
humana implica justamente o cuidado em não permitir a apropriação da vida como
conseqüência da tecnociência. A responsabilidade requer que o agir humano no que se refere
às manipulações genéticas venha acompanhado das perguntas: Como? E por quê? A decisão
do STF respondeu de diversas maneiras a essas perguntas, que refletem a preocupação
ontológica de Jonas: o agir humano não é um simples agir; há um modo de ser que se traduz
em um agir.
433
PALACIOS, Marcelo (Coordinación). Bioética 2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 21. “A
responsabilidade, sustentada pelos atores ativos na formação científica atualizada,na previsão das vantagens e
riscos de suas intervenções e produtos, na precaução sobre as ofertas técnicas, no respeito aos sujeitos de suas
atuações e na segurança com que levam a cabo, como garantias contra os danos à saúde e ao meio-ambiente, os
tratamentos desumanos e degradantes, etc, e pelo lado receptor, na atitude alerta e efetiva ” (Tradução nossa).
189
A decisão do SFT, de certo modo, trouxe algo que incumbe também à Bioética: um
padrão de julgamento, um critério principiológico, que não se prende a simples reivindicações
ou simpatias, mas que tem o condão de estabelecer um mínimo de consenso, na medida em
que tais princípios embasam o Estado Democrático de Direito em que se constitui a República
Federativa do Brasil. A ponderação sobre os valores constitucionais foi a saída encontrada
para orientar a superação do impasse eminentemente jurídico e humano que representou a
decisão sobre a liberação das pesquisas com células-tronco no Brasil.
Isso é bastante congruente quando lembramos que dentre as funções exercidas pelo
princípio da dignidade da pessoa humana, destaca-se o fato de, na sua condição de referencial
hermenêutico, ser elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada
ordem constitucional.
434
Isso porque, de acordo com a função integradora e hermenêutica do
princípio da dignidade, este serve como parâmetro de aplicação, interpretação e integração de
todo o ordenamento jurídico, imprimindo-lhe sua coerência interna.
435
A decisão como um todo enfatizou a promoção do bem-estar e da dignidade humana,
respondendo às indagações feitas sobre os propósitos, os meios e os fins das atividades
científicas referente às células-tronco embrionárias. Isso tudo num espaço pluralista e
democrático o STF, em que se discutiu e se discutiu a questão por longo tempo. Justamente
essa discussão e essa reflexão são desdobramentos da responsabilidade, e aquele espaço de
síntese de convergências e divergências, da mesma forma.
Quando escreveu “O Princípio Responsabilidade”, a era tecnológica estava apenas
começando; atualmente, é uma das características do multiculturalismo, e ao que tudo indica,
ainda não alcançou o apogeu. Assim, hoje é clarividente a percepção do acerto de Jonas
quando afirmou que a responsabilidade é a chave para a ética na era tecnológica, uma ética
que não seja apenas imediatista, mas que também tenha os olhos voltados para o futuro. Um
futuro que para acontecer precisará antes adotar uma responsabilidade ímpar na história
humana. É a responsabilidade como máxima necessária que está implícita no julgamento do
STF, dessa forma, pautando a decisão da mais alta Corte brasileira, como demonstrado no
terceiro capítulo, consubstanciada no princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, buscamos explicitar em que termos uma decisão de tamanha importância está
sendo responsável e quais os cuidados e as ressalvas que implicam a liberação das pesquisas e
que implicariam a sua não-liberação. Ou seja, refletir as conseqüências do fazer e também do
434
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 81.
435
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2007, p. 125.
190
não-fazer, do agir e também do não-agir. A partir do reconhecimento das relações e
significações que se estabelecem mutuamente, as duas faces da mesma moeda precisam ser
conhecidas, pois não se trata de jogá-la para cima e simplesmente esperar para saber qual o
lado prevalente. A escolha deve ser consciente do porquê dessa opção e do modo de ser que
resultou nessa escolha, sob pena de a escolha feita acabar por determinar o modo de ser.
Como se pôde perceber, um dos papéis do Direito é justamente encontrar sua
significação social em meio a esse emaranhado de acontecimentos e transformações que têm
abalado as sociedades modernas, e de forma consciente e refletida, conhecer os dois lados da
moeda. Os fenômenos no mundo social ocorrem muito rapidamente e exigem que se repense
o papel do Direito na sociedade: a complexidade surge quando se cria um problema, o qual
surge quando várias possibilidades de ação/solução. Na sociedade complexa, da qual a
ciência complexa é uma expressão, um excesso de possibilidades para se resolver os
problemas, e um nítido exemplo disso é o tema pesquisado nesta dissertação. Esse caráter
complexo e ambivalente da ciência fica cada vez mais evidente, assim como o descompasso
entre a ciência e o Direito:
Ontem, o divórcio da filosofia que não acompanhava a ciência ou por esta se
deixava ultrapassar; hoje a lentidão do Direito que se atrasa e, posto à distância,
pela vertiginosidade e ineditismo de algumas conquistas científicas, sujeitas a afetar
a segurança social ou o destino a espécie, busca alargar seus passos, reaver o
terreno perdido e, por fim, ditar a disciplina normativa aplicável aos fins e
resultados da pesquisa biomédica, quando estes se partam da ética ofendem o
princípio cardial da dignidade da pessoa humana.
436
Assim, o Direito é chamado a fazer frente às novas necessidades e expectativas
sociais, ou melhor, o sistema jurídico enquanto instituição que detém poder para trazer
mudanças que venham a atender os novos anseios e interesses das sociedades. Porém, seus
instrumentos, por si só, são incapazes de dar respostas e soluções para os novos
questionamentos da sociedade. Isso é facilmente perceptível em se tratando dos avanços da
biotecnologia, em que um misto de fascinação e perplexidade em relação ao desconhecido.
Na esteira do ensinamento de Luhmann, o Direito é um reforço para se enfrentar as incertezas
trazidas pelas complexidades modernas, na medida em que as sociedades passam por intensas
436
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 13. Vide prefácio da obra, de Paulo Bonavides.
191
mudanças de padrão e paradigmas.
437
Em última análise, ser responsável é não recorrer ao arcabouço jurídico como única
fonte de respostas jurídicas para temas como o em questão, enfrentando a complexidade da
única maneira possível: com o supedâneo da consciência e da multidisciplinaridade, as quais
alicerçam esse modo de ser responsável que leva às escolhas que precisam ser feitas diante de
questões tão complexas postas pela tecnociência. Também esse processo é complexo, pois
exige ações políticas que democratizem esses conhecimentos, no sentido de socializá-los para
que esse modo de ser responsável seja uma escolha consciente de todos, e não apenas de
alguns que detém os meios e conhecimentos necessários para religar os saberes, na expressão
de Morin, chegando aos entendimentos ontológicos que se requer para atingir essa outra
dimensão da responsabilidade.
O alcance do tema proposto de sobremaneira ético e jurídico - é incomensurável,
pois “o homem é, na medula, na essência, na racionalidade, um fenômeno ético, e a
investigação científica não pode desconsiderar a dignidade da pessoa humana nem pode
atravessar as fronteiras que separam a sociedade do laboratório, os bens espirituais dos
interesses concretos e materiais da empresa, do capital e do lucro”.
438
Parafraseando Paulo
Bonavides quando afirmou que quem diz dignidade humana diz justiça,
439
também é possível
dizer que quem diz dignidade humana diz responsabilidade, pois proteger a dignidade é
proteger a vida e o Direito.
É nesse sentido a contribuição do presente trabalho: proporcionar um instrumental
teórico-reflexivo para o Direito a partir do princípio responsabilidade de Hans Jonas, que
sirva não apenas para a análise da decisão do STF sobre a liberação das pesquisas com
células-tronco, mas que se estenda a outras discussões igualmente novas e importantes que
grassam na seara jurídica. O Direito não fornece obrigatoriamente as melhores soluções, nem
soluções definitivas; oferece uma solução jurídica, sujeita à provisoriedade. Mas nada o exime
de buscar ao máximo desenvolver sua policompetência, na expressão utilizada por Morin,
bebendo em outras fontes, enriquecendo-se de uma forma que o próprio Direito, unicamente
437
LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Tradução de Maria da Conceição Corte-Real.
Brasília: Universidade de Brasília, 1980.
438
SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 10. Vide prefácio da obra, de Paulo Bonavides.
439
A justiça é um valor fundamental do Direito, bifurcado em justiça moral (individual) e justiça jurídica
(social), e a partir disso há uma série de desdobramentos e conceitualizações às quais não pretendemos adentrar.
Porém, por compartilharmos dessa idéia, é importante mencionar que “a justiça não é um a priori a parir do qual
os homens moldam suas existências. A justiça é um saber que vai se constituindo na medida em que a
consciência humana acerca da história se aguça. Mas não basta a consciência da história, pois procurar a justiça é
uma atitude ética – é uma escolha”. (SILVA, Reinaldo Pereira. Introdução ao Biodireito: investigações
político-jurídicas sobre o estatuto da concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 181).
192
por si mesmo, jamais conseguiria. Nesse sentido, é muito relevante a conclusão a que chegou
Hottois:
La explicitación pluralista favorece evidentemente la practica laica de la Bioética
que induce la pluralidad de culturas de nuestras sociedades. Favorece también las
libertades individuales y las sociedades abiertas, capaces de evolucionar. Favorece
una sociedad procesal que, en la diversidad, acompaña simbólicamente los procesos
de investigación y desarrollo tecnocientíficos. Cuando tal sociedad produce unas
leyes para responder a unos problemas llamados éticos suscitados por las
tecnociencias, sabe que estas leyes deberán ser regularmente reavaluadas o
rejustadas y que será difícil aplicarlas a un mundo complejo y en perpetua
metamorfosis tecnocientífica y simbólica.
440
Nesta linha de investigação, a responsabilidade, de forma abrangente, implica a defesa
de direitos humanos fundamentais, tendo a vida e a dignidade humana como seus principais
expoentes, reconhecendo a democracia e o pluralismo como eixos indispensáveis ao seu
desenvolvimento. Nesse sentido, o destaque para a dignidade da pessoa humana entre a
principiologia constitucional que embasou a decisão do STF, entre outros argumentos, é por si
mesma meio e expressão da responsabilidade nos termos jonasianos, pois revelam um modo
de ser de cuidado e sabedoria.
Portanto, com a presente dissertação intencionamos contribuir para aproximar o
compasso entre a ciência e o Direito e também outras áreas do conhecimento, com vistas à
constante construção de uma sociedade cujas leis estejam à altura das intensas transformações
ocorridas no seio do multiculturalismo que permeia a era biotecnológica vivenciada pela
sociedade brasileira. A questão jurídica envolvendo as pesquisas com células-tronco foi
somente uma das problemáticas que têm se levando a desafiar o Direito, mas muitas outras
podem se servir dessas reflexões complexas e responsáveis, que, à guisa de conclusão,
podem e devem continuar cada vez mais intensamente.
440
HOTTOIS, Gilbert. Bioética europea: un acercamiento laico pragmático. In: PALACIOS, Marcelo
(Coordinación). Bioética 2000. Oviedo, España: Ediciones Nobel, 2000, p. 91. “A explicitação pluralista
favorece evidentemente a prática laica da Bioética que induz a pluralidade de culturas de nossas sociedades.
Favorece também as liberdades individuais e as sociedades abertas, capazes de evoluir. Favorece uma sociedade
processual que, na diversidade, acompanha simbolicamente os processos de investigação e desenvolvimento
científicos. Quando tal sociedade produz umas leis para responder a uns problemas chamados éticos suscitados
pelas tecnociências, sabem que essas leis deverão ser regularmente reavaliadas ou reajustadas e que será difícil
aplicá-las num mundo complexo e em contínua metamorfose tecnocientífica e simbólica” (Tradução nossa).
193
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