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Diante de tamanho potencial transformador da ciência, a sociedade não pode ser
excluída das considerações bioéticas, pois se tratam de questões que ultrapassam o individual,
entrando na dimensão social, envolvendo decisões de caráter ético que afetam toda a
sociedade atual e futura, pois “lo nuevo no es sólo por eso mejor, siendo el denominado
progreso sobre todo un valor semántico, con la creciente duda de si éste sirve para salvarnos o
para destruirnos: si es la cima más avanzada del bienestar o de la decadencia humana”.
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As considerações anteriores não significam qualquer atitude negativa para com a
ciência, e sim uma atitude positiva com vistas a algo mais importante: o ser humano e seu
em razão da reflexão sobre os fundamentos dos modelos científicos vigentes, seus métodos, hipóteses, teorias.
Toda área tem fundamentos epistemológicos, de onde partem as orientações de pesquisa, do objeto de estudo,
dos modelos de validação do conhecimento considerado verdadeiro e científico. Primeiramente, a instituição do
método como fundamental: apenas o que passa pela determinação formal e material de determinado método
(chamado científico) poderá ser validado. O reducionismo, a partir do método, é a ênfase na abordagem de
elementos isolados, fragmentados, analíticos, compartimentados. Então, temos a fragmentação do saber e das
disciplinas até hoje presenciada. Tal fragmentação e o papel diretivo do método geram a perda da dimensão da
complexidade e da interdependência de fatores, ou seja, a visão sistêmica e sintética, já que a visão imperante é
analítica. A complexidade exigiria cuidados procedimentais redobrados e um princípio de precaução que
“atrasariam” o chamado progresso. Abre-se caminho para um materialismo científico, na consideração de
elementos de ordem físico-química. A ênfase foi quantificadora muito mais do que qualificadora ou
humanizadora na pesquisa. O papel enfático da matemática gera o apelo exaustivo ao calculismo. Ela será a
grande linguagem explicativa (mas não compreensiva) de mundo, já que este seria ordenado por leis mecânicas,
físico-materiais, químicas. Predomínio absolutista das ciências naturais e seu estatuto epistemológico-
metodológico sobre todo o saber. Ocorre a exigência de um pretenso rigor às ciências humanas, devendo estas
serem rebocadas cientificamente pelas ciências naturais. Passou-se então ao reforço do processo de secularização
(exclusão gradual do poder religioso e do papel da espiritualidade) e a conseqüente expulsão do elemento
sagrado da vida. Junto disso, o desencantamento do mundo, pela perda da dimensão simbólica, mítica, tradições
culturais. Iniciou-se a clara concepção do saber como poder (Bacon). Um poder científico que separa saber e
ética, e poder se liga ao empobrecimento de um ego cogito ligado a um ego conquiro (eu conquisto, venço).
Surge o mecanicismo como grande explicadora do real (metáfora do homem e do corpo como uma máquina). O
universo compõe-se de compostos particulares engenhados, tal como engrenagens. O futurismo tecnológico
deixa para trás, como sem valor para o saber, a tradição, tudo o que foi conquistado como saber não metódico e
não considerado científico. Isto gera a perda da dimensão orgânica e viva da natureza, incluindo o homem e seu
corpo. É como se a natureza e o corpo não operassem com vitalidade ecossistêmica, processual, interdependente,
não tendo uma sabedoria própria, mas precisasse o tempo inteiro ser corrigida, sanada, limpa, assistida,
combatida no mais das vezes. Isso gera a perda da dimensão psicossomática, especialmente na medicina e nas
ciências em geral. O cartesianismo não sabe lidar com dimensões psicológicas e existenciais. Por fim, em suma,
a objetificação das relações homem-natureza e então homem-homem, pautadas na relação de dominação Sujeito-
Objeto. Por conseguinte, a dicotomização (pensamento-matéria, corpo-alma, razão-emoção, eu-outro) é
acentuada. Não se trata somente de produzir objetos, ou no sentido de separação da natureza, mas o
estabelecimento de padrões e paradigmas que moldam as relações instrumentais, a ponto de que homem e
natureza devam ser constantemente modificados e “melhorados”. Nessa base se assentou o determinismo
científico, como explicação totalitária de tudo o que é investigado; sinônimo de cientificismo: aqui estão as bases
para a Revolução Industrial. Cai-se, pois, numa abordagem mecanicista que retira a ambigüidade, o mistério e a
complexidade das realidades ou dos seres vivos. O que significa também dizer da perda da visão holística do
todo, da unidade e da participação da consciência no mundo, o que serviu de respaldo ao positivismo, não apenas
no sentido de Augusto Comte, mas como visão geral de dominação do mundo como fatos objetivos em evolução,
a serem inventariados e à disposição da manipulação objetificadora. Para melhor entender esse esboço das
características da abordagem do saber no espírito da revolução científica, vide PELIZZOLI, Marcelo (Org.).
Bioética como paradigma: por um novo modelo biomédico e biotecnológico. Petrópolis: Vozes, 2007.
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HERNÁNDEZ, Miquel Osset. Ingeniería Genética y Derechos Humanos: legislación y ética ante el reto
de los avancesbiotecnológicos. Barcelona: Icaria Antrazyt, 2000, p. 128. “O novo não é apenas por isso melhor,
sendo o denominado progresso sobretudo um valor semântico, com a crescente dúvida se ele serve para nos
salvar ou nos destruir: se é o bem-estar superior mais avançado ou a decadência humana” (Tradução nossa).