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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
RENATO MODERNELL
EM TRÂNSITO
UM ESTUDO SOBRE NARRATIVAS DE VIAGEM
São Paulo
2009
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2
RENATO MODERNELL
EM TRÂNSITO
UM ESTUDO SOBRE NARRATIVAS DE VIAGEM
Tese apresentada à
Universidade Presbiteriana
Mackenzie como requisito
parcial para a obtenção do
título de Doutor em Letras.
Orientadora: Profª. Drª. Helena Bonito Couto Pereira
São Paulo
2009
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M689e Modernell, Renato.
Em trânsito: um estudo sobre narrativas de viagem / Renato
Modernell – 2009.
129 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2009.
Bibliografia: f. 125-129.
1. Literatura comparada. 2. Jornalismo literário. 3. Narrativas
de viagem. 4. Gêneros literários. I. Título.
CDD 809
3
RENATO MODERNELL
EM TRÂNSITO
UM ESTUDO SOBRE NARRATIVAS DE VIAGEM
Tese apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie como
requisito parcial para a obtenção
do título de Doutor em Letras.
Aprovado em 1º de junho de 2009.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Profª. Drª. Helena Bonito Couto Pereira
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________
Prof. Dr. Edvaldo Pereira Lima
Universidade de São Paulo
_______________________________________________
Prof. Dr. Celso Luiz Falaschi
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
________________________________________________
Prof. Dr. José Gaston Hilgert
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos Marques
Universidade Presbiteriana Mackenzie
4
Para Gianna Attardo
5
AGRADECIMENTOS
À Profª. Drª. Helena Bonito Couto Pereira, que indicou
caminhos e aparou arestas.
Aos professores doutores Diana Luz Pessoa de Barros, Marlise
Vaz Bridi, José Gaston Hilgert, Maria Lúcia Marcondes Carvalho
Vasconcelos e Ana Lúcia Trevisan Pelegrino, pela cordial
acolhida no Programa de Pós-Graduação em Letras e pelos
subsídios fornecidos ao longo do curso.
Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie e ao Fundo Mackenzie de
Pesquisa (Mackpesquisa), pelo apoio recebido.
6
RESUMO
Este estudo investiga de que modo a Narrativa de Viagem se
articula com a ficção literária. Levando em conta processos de
composição, recursos de estilo e o hibridismo temático, discute
se essa narrativa constitui um gênero representativo da cultura
pós-moderna. Três livros aparecem em primeiro plano: A última
casa de ópio (The last opium den), de Nick Tosches; Mulher de
Porto Pim (Donna di Porto Pim), de Antonio Tabucchi; e Um
adivinho me disse (Un indovino mi disse), de Tiziano Terzani.
Nessas obras, os autores relatam suas impressões de viagem
por países do sudeste asiático e pelo arquipélago dos Açores.
Este trabalho correlaciona os textos entre si e a diversos outros.
Palavras-chave: Literatura comparada. Jornalismo Literário.
Narrativas de Viagem. Gêneros literários.
7
ABSTRACT
The present paper investigates how Travel Narrative is
connected to literary fiction. Taking into consideration
composition processes, tools of style and thematical hybridism,
this study discusses if these narratives can be considered as a
significant genre of post-modern culture. Three books appear at
first: The last opium den, by Nick Tosches; Woman of Porto Pim,
by Antonio Tabucchi; and A fortune-teller told me, by Tiziano
Terzani. In these books the authors narrate their impressions
while travelling through the southeast of Asia and also through
the archipelago of Azores. This paper compares these texts
among themselves and with others.
Keywords: Comparative Literature. Literary Journalism. Travel
Narrative. Literary Genres.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, 10
I. VIAGEM NO TEMPO, 13
Heródoto inaugura o exagero, 16
II. LITERATURA E JORNALISMO LITERÁRIO, 21
Sedentários e itinerantes, 28
Embreagem e debreagem, 34
Colombo e Marco Polo, 39
Passaporte sem carimbo, 43
III. TOSCHES: UMA PICADA DE COBRA, 50
Cem páginas de provocação, 54
Um café para homens ocos, 59
Existencialismo gonzo, 64
Gangorra de linguagens, 69
IV. TABUCCHI: A TRAIÇÃO SUTIL, 76
Uma tragédia nos Açores, 81
A baleia flutua imóvel, 85
O mundo é de fato estranho, sabiam? 89
V. TERZANI: PERIPÉCIAS DO CAMALEÃO, 91
Dez livros, muitas viagens, 97
Nada de ilusões com a China, 104
Uma transformação interior, 110
Fantasmas na Siemens, 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS, 122
FONTES DE REFERÊNCIA, 125
9
Like all great travellers, I have seen more than
I remember, and remember more than I have
seen.
Essper George, personagem de Benjamin Disraeli no romance
Vivian Grey (1826)
10
INTRODUÇÃO
Há infinitas maneiras de viajar. Uma delas é escrever
uma tese. Esta tese é composta de muitas viagens dentro de
uma viagem.
Pretendo transmitir nestas páginas um pouco do que
acumulei como saber de ofício. Viajei bastante, na juventude,
tanto por interesse pessoal quanto por encargo profissional,
como repórter, a serviço de diferentes publicações.
As impressões sobre o que vi em outros lugares ficaram
registradas nas numerosas reportagens que produzi para
revistas e jornais de São Paulo. Essas coisas, para mim, já são
uma lembrança distante.
Já não viajo como antes. Vivo em um andar alto, em um
edifício no bairro de Pinheiros, e posso observar pela manhã, ao
longe, aviões que se aproximam para pousar em Cumbica. Então
tenho a estranha impressão de jamais ter estado em lugar algum,
a não ser aqui. Só que este aqui de hoje não é mais como o aqui
de ontem. Está impregnado de outros lugares.
Agora, na maturidade, chega o momento de refletir sobre
o que significa viajar de uma maneira mais sutil: o processo de
observação e sua influência na construção da escrita. Minha
experiência, só ela, não basta. Tento decifrar experiências
relatadas nos livros de outros autores, em diferentes épocas.
Para o corpus deste trabalho, escolhi três livros de
autores contemporâneos, de modo que melhor possamos
compartir suas formas de sentir o mundo. Embora não muito
divulgadas no Brasil, são obras singulares, sob diversos
aspectos, e constituem bons exemplos da interface entre a
11
literatura ficcional e o Jornalismo Literário. Trata-se de A última
casa de ópio (The last opium den), de Nick Tosches; Um
adivinho me disse (Un indovino mi disse), de Tiziano Terzani; e
Mulher de Porto Pim, de Antonio Tabucchi.
Diversos livros congêneres aparecem num segundo nível
de aproveitamento. Eles também fornecem subsídios
concernentes ao tema. De algum modo, todos conversam entre
si. Formam um ambiente dialógico não menos propício ao olhar
inquisitivo do que ao puro prazer da leitura.
Ao penetrar nesse campo de ressonâncias, nós nos
perguntamos se a Narrativa de Viagem constituiria um gênero
com identidade própria. Desde o famoso livro de Goethe
referente às suas andanças pela Itália no século XVIII, até as
narrativas atuais que aqui nos servem de objeto, detectamos
certos traços, na engenharia da prosa, que se devem à peculiar
mixagem da observação e da imaginação no homem que viaja de
corpo e alma. Examinar esses atributos, discuti-los e compará-
los sob diferentes aspectos constituem o objetivo deste estudo.
Ao final, esperamos ter mais clara em nossa mente a resposta
para a pergunta de fundo, ou seja, se a Narrativa de Viagem é
dotada de uma poética própria e se pode ser considerada um
gênero da escrita.
Para compreender melhor essa categoria textual e como
ela se constitui, lançarei mão de alguns trabalhos teóricos. Essa
base conceitual inclui pesquisadores atuais e pensadores de
outras épocas, não necessariamente especialistas em literatura.
Entre as ferramentas que utilizo para examinar a
mecânica da Narrativa de Viagem, não dispenso uma que
desenvolvi anos atrás, ao elaborar minha dissertação de
mestrado na Universidade de São Paulo (USP). Trata-se do que
denominei fatores de fabulação. Ou seja, os elementos capazes
de transportar um texto do plano da realidade ao plano da
imaginação.
12
A ideia propulsora desta tese é de que esse tipo de
texto, pelos fatores de fabulação que institui, e também pela
maneira de lidar com o imaginário do leitor, constitui o núcleo da
zona de confluência entre os domínios da ficção e da não ficção.
A imagem que às vezes utilizo, para ilustrar essa premissa, é a
do círculo central do gramado onde se pratica o jogo de futebol.
Aquela região do campo sobressai do resto, propõe uma ideia de
integração. Ali, o sonho e a realidade se misturam.
Espero que minha surrada mochila, com tantos
quilômetros rodados, não se desintegre ao longo das páginas
que temos pela frente. Procurarei tornar esta viagem de trem o
mais agradável possível. Aos que aqui embarcam, boas-vindas a
bordo.
13
I. VIAGEM NO TEMPO
Documentos antigos comprovam a importância da
viagem como tema de especulação filosófica. E também a aura
do viajante, como um indivíduo que se encontra numa situação
especial, em contraste com a do homem arraigado. Este último,
ontem como hoje, tende a ficar no local em que está, a menos
que sinta alguma ameaça à sua segurança ou ao seu futuro. Se
isso não ocorre, as pessoas, em geral, não se movem; ao
contrário, aprofundam raízes, permanecem em contato com os
hábitos da sua comunidade, e envelhecem à sombra das árvores
que viram crescer.
Sabemos, no entanto, que a vida é feita de intermitência
e insegurança. Por isto sempre há, em maior ou menor escala,
indivíduos que se sentem atraídos pela poeira das estradas e
pelos ventos marítimos. Remotas civilizações se ocuparam em
refletir sobre a figura do homem que se desloca de um ponto a
outro na superfície da Terra.
O tarô egípcio, cuja origem pode remontar a cerca de 5
mil anos, tem entre seus 78 arcanos um (o de número 56)
dedicado ao tema Peregrinação. Ela é entendida como um ato de
purificação interior. Associa-se à possibilidade de redenção do
indivíduo, que para obtê-la deve submeter-se a aflições e
desafios ao longo do processo. Algo desse gênero se aplica aos
devotos cristãos que acompanhavam os cruzados até a Terra
Santa, na Idade Média, e aos peregrinos islâmicos que se
dirigem à cidade de Meca para um ritual que se mantém até os
dias de hoje. Na viagem, há algo mais a ser deixado para trás
14
além dos cenários externos. O cenário interno também tem que
mudar.
Na civilização chinesa, o tema viagem também se faz
presente desde priscas eras. O I ching (Livro das mutações) é
um compêndio filosófico criado antes do início da dinastia Chou,
em 1150 a.C. De lá para cá tem sido estudado e comentado não
apenas por praticantes do taoísmo, mas também por sucessivas
gerações de sábios do oriente e do ocidente. Carl Gustav Jung
(1875-1961) redigiu um prefácio à obra. Um dos 64 hexagramas
do I ching intitula-se O viajante (Lü). Coincidência ou não, ele
também recebe o número 56 como o arcano Peregrinação do tarô
egípcio.
Esse hexagrama – sinal gráfico de seis linhas contínuas
ou segmentadas, que conforme a combinação gera diferentes
textos interpretativos – recomenda cautela, reserva e
perseverança ao viajante. Diz que ele pode ter “sucesso através
do que é pequeno”, ou seja, não deve alimentar grandes
ambições. Mas o viajante também não deve se ocupar de coisas
banais, caso contrário atrairia a desgraça sobre si. “Quanto mais
humilde e indefesa for a sua situação externa, tanto mais ele
deve preservar a sua dignidade interior”, recomenda o I ching.
Também usa uma curiosa metáfora como advertência: se quiser
evitar reveses, o viajante não deve jamais “perder sua vaca”,
isto é, sua modéstia, sua prudência, sua capacidade de
adaptação.
O I ching chega mesmo a adotar um tom didático em
relação ao viajante. Isso significa reconhecer que para ele não
bastam os ensinamentos comuns da vida em sociedade. Algo
mais precisa ser dito, para que o viajante consiga lidar com sua
situação singular, ao mesmo tempo privilegiada e frágil. O fato
de que ele se move no mundo indica que algo se move dentro
dele.
Aqui cabe recordar o conceito de individuação concebido
por Jung: uma viagem do indivíduo ao centro de si mesmo. Para
15
o psiquiatra e pensador suíço, a individuação é um processo de
evolução psíquica que impele uma pessoa a realizar suas
potencialidades. Tal processo surge ou se acentua a partir de
certa altura da vida, em geral na meia-idade. Nesse momento,
instituímos como meta pessoal algo maior, ou transcendente,
uma espécie de missão que se superpõe aos compromissos
imediatos.
Tal ampliação da consciência faz o indivíduo dar mais
importância a suas vozes interiores – pressentimentos,
convicções, intuições, impulsos, insights etc. – do que às
condutas impostas pelo meio social. A jornada da individuação é
longa, solitária e traiçoeira. Ao cumpri-la, segundo Jung,
enfrentamos psicologicamente os mesmos desafios previstos em
rituais de iniciação de povos antigos.
Em numerosas culturas, a ideia de viagem traz embutida
a premissa do amadurecimento psíquico. Entre os islâmicos, não
é diferente. O filósofo e poeta sufi Ibn al-Arabi (1164-1240), um
dos mais prolíficos escritores místicos do período medieval e
também um calejado viajante, em sua obra Kitâb al-isfâr (O Livro
das revelações sobre os efeitos do viajar) aborda a questão de
um modo tal que mistura os aspectos geográfico e espiritual. “A
origem da existência é movimento”, reflete. “Nela, a imobilidade
não tem lugar, porque se a existência fosse imóvel ela voltaria à
sua fonte, que é o Vazio. Eis porque a viagem nunca para, seja
neste mundo ou no que virá depois.”
Pode-se supor que em outras culturas, urbanas ou
tribais, dos aborígenes australianos aos indígenas brasileiros,
essas considerações de caráter filosófico ou instrutivo, que se
valem de uma linguagem simbólica para expor o significado da
viagem, tenham antecedido em larga margem os relatos de
viajantes tal como os entendemos hoje no ocidente, e que
derivam da tradição europeia. Neste último caso, temos em vista
aqueles textos que se preocupam mais com o que aconteceu
durante a jornada. Narram fatos, apresentam personagens,
16
descrevem cenários, costumes e situações que podem ser épicas
e cotidianas. Porém vale lembrar que, mesmo entre nós,
ocidentais, a viagem nunca deixou de ser algo significativo. Nela
pode-se encontrar a vida ou a morte, mas em qualquer caso isso
se dará longe do lugar onde fincamos raízes. Portanto, há
perigo.
Heródoto inaugura o exagero
Costuma-se atribuir ao historiador grego Heródoto, que
viveu no século V a.C., a posição de decano entre os autores de
Narrativas de Viagem. Em suas andanças, esteve no Egito, na
Babilônia, na Ucrânia, na Itália e na Sicília. Nesses e em outros
lugares, como nos campos de batalha em que os gregos
enfrentaram os persas, ele colheu material para as histórias que
depois contou ao público em festivais que ocorriam em
diferentes cidades da Grécia.
Em épocas posteriores, Heródoto foi acusado de
exagerar na extensão das suas viagens e na variedade de fontes
utilizadas para captar informações. Algo semelhante se passou,
séculos depois, com o mercador Marco Polo, que ditou sua longa
viagem de Veneza ao oriente para um companheiro de prisão, o
escritor toscano Rustichello, de Pisa. Isso resultou, em 1299, na
publicação de Milione, também conhecido como Livro das
maravilhas. O veneziano não apenas levou a pecha de impostor
por parte de estudiosos e historiadores, como também chegou a
ser ridicularizado nas ruas, pelo povo, por meio da figura
carnavalesca de um personagem bufão e meio lunático. Mesmo
assim, o livro ficou célebre. Afinal de contas, naquela época, não
era qualquer um que tinha tanta coisa para contar.
A Idade Média não foi uma época das mais propícias aos
viajantes. Era um tempo de cidades cercadas por altos muros,
planícies insalubres, assaltantes à espreita nas curvas das
estradas. Quase ninguém se animava a se mover de um lugar
17
para outro, se não tivesse uma razão imperiosa para fazê-lo,
como no caso de militares, peregrinos, saltimbancos e
funcionários do correio. Os cruzados não ignoravam a dureza de
sua jornada, mas a encaravam como o preço da salvação.
Encontramos situação diferente no século XVIII. Os
iluministas, ao defenderem a liberdade de pensamento e de ação
como forma de redimir o mundo, só podiam ver com bons olhos o
contato de um indivíduo com um ambiente diferente do seu. Isto
não era difícil de levar à prática num continente apinhado de
nações próximas e não muito extensas. O mapa da Europa
sempre foi tão retalhado quanto os vitrais de suas mais antigas
igrejas.
O filósofo Voltaire (1694-1778) considerava um
privilégio, para um europeu, poder viajar e observar os
contrastes existentes entre os modos de viver dos ingleses, dos
franceses e dos italianos. O linguista alemão Wilhelm Humboldt
(1767-1835), amigo dos poetas Goethe e Schiller, estudou a
relação entre as estruturas dos idiomas e a organização mental
dos povos que os utilizavam. Por conta disso, fez questão de ir a
Paris e ver de perto a Revolução Francesa. A essa altura, tinha-
se a noção de que mover-se por outras terras, experimentar
outros costumes, ouvir novos sons, provar comidas diferentes,
tudo isso constituía etapa essencial no caminho das luzes. Já na
primeira década do século XX, o escritor uruguaio José Enrique
Rodó (1872-1917) refletia sobre os efeitos positivos da viagem
sobre a formação do caráter individual:
O viajar dilata nossa faculdade de empatia, força
que contribui para a imitação transformante,
redimindo-nos da reclusão e da modorra nos
limites da própria personalidade. [...] A primeira
viagem que fazes é uma iniciação liberadora de
tua fantasia, que rompe a falsa uniformidade das
imagens que forjaste só com os elementos da tua
realidade circunstante (RODÓ, 1920, p. 245,
tradução nossa).
18
A palavra alemã Bildung, traduzida grosso modo por
cultura, nas línguas latinas, na verdade tem alcance semântico
mais amplo, referindo-se ao processo de formação de um
indivíduo ou de um povo. Ela ilustra bem o espírito da época do
Iluminismo. As viagens, segundo a concepção dos europeus em
geral ao fim da Idade Moderna, tinham um sentido formativo e
complementar ao conhecimento que era possível obter na
escola.
Na verdade, o Iluminismo consolidou uma tendência
iniciada no século XVI. A mudança de mentalidade ocorrida na
Europa a partir da Reforma já havia estimulado o interesse de
conhecer países estrangeiros. Foi o início do Grand Tour.
Rapazes ingleses com cerca de 25 anos, filhos das classes
abastadas e saídos das universidades de Oxford ou Cambridge,
antes de assumirem responsabilidades no mundo do trabalho,
passavam um período de seis meses a dois anos a viajar pelas
principais cidades da Europa meridional. Roma, por exemplo,
não podia faltar em seus roteiros. Assim, após um contato direto
com os monumentos clássicos, esses jovens supostamente
atingiriam um status intelectual condizente com as exigências da
época.
Com Francis Bacon e os empiristas do século
XVII, os sentidos – na época medieval
considerados como o caminho do pecado e da
corrupção – e, em particular, a visão, passaram
a ser vistos como canais voltados para a alma.
Logo ficaria evidente que essa nova concepção
conferia uma dignidade ‘filosófica’ aos viajantes
e lhes dava um certo prestígio. [...] O Grand
Tour deu origem à profissão do preceptor
viajante, que tinha como função zelar pela moral
do nobre durante a viagem, fazer reservas nas
hospedarias, ocupar-se de sua introdução nas
artes, nos livros e junto aos homens cultos, e
avaliar seu progresso nas qualidades que eram
admiradas nas cortes e nos meios literários. Os
preceptores viajantes criaram os novos ‘métodos
de viagem’, estabeleceram as categorias de
observação e as técnicas para se registrar as
experiências, e escreveram guias da Itália e da
19
França, na época centros da arte e dos modos
refinados da nobreza. Dessa forma, o jovem
senhor nobre deveria manter um diário de
viagem, no qual registrava suas observações.
Alguns preceptores viajantes se dedicaram
particularmente à formulação de esquemas e
questionários, que mais tarde deram origem aos
relatos de viagem. Outros, como o italiano
Giuseppe Baretti (1719-1789), escreveram
relatos em forma epistolar ou de diários. Lettere
familiari a’ suoi tre fratelli, de 1762, descreve,
em cartas, as viagens que o autor empreendeu à
Espanha e a Portugal (MARCOLINI, 2003, p. 40-
41).
No início se fazia o Grand Tour clássico, no qual
predominavam os aspectos culturais, com visitas a museus,
galerias de arte e locais históricos. Em um segundo momento, o
principal interesse dos viajantes voltou-se para os amplos
cenários naturais, roteiro que se denominou Grand Tour
romântico. Porém em ambos os casos entendia-se que a viagem
não era apenas de instrução, mas também de lazer. A vida
mundana, com todos os seus atrativos, constituía uma espécie
de agenda paralela dos jovens endinheirados e também de
espíritos maduros, apolíneos, como Goethe, que só aos 37 anos
iniciou sua viagem pela Itália, realizando-a entre os anos de
1786 e 1788. Cerca de quatro décadas mais tarde, quase
octogenário, o gênio alemão cunharia o termo Weltliteratur para
designar a vertente cosmopolita e transnacional da literatura. Ela
pressupõe, é claro, a disponibilidade do escritor para imersões
em cenários e valores culturais diferentes dos seus.
A popularização do Grand Tour, a partir do século XVIII,
fez proliferar pousadas e hospedarias. Nessa época surgiram
também os primeiros relatos de viagem com ampla distribuição
na Europa. Esses textos distraíam os leitores, por um lado, e por
outro estimulavam ainda mais a mania de viajar.
Essa mania, hoje, chega a provocar situações inauditas.
Há cerca de dez anos, no centro da Austrália, os aborígenes
anangus criaram sua própria operadora turística para atrair
20
visitantes a seus locais sagrados. Se pensarmos nos aspectos
profanantes do turismo massivo, não nos faltariam razões para
desconfiar da modernidade.
No começo do século XXI, Umberto Eco escreveu um
artigo sagaz, mas nada auspicioso, sobre o ato de viajar na
época em que vivemos. Em Andare nello stesso posto (“Ir ao
mesmo lugar”), publicado em fevereiro de 2001 na revista
italiana L’espresso, o autor sustenta que nunca se viajou tanto
quanto agora, mas esse fluxo incessante faz, cada vez mais, os
lugares se parecerem uns aos outros. Em suma, argumenta
ele, já não mais viajamos para o desconhecido, como
faziam nossos ancestrais. Viajamos, isto sim, para confirmar o
que já vimos na tela da televisão.
Mesmo assim, os relatos de viagem que fogem do
padrão continuam a nos encantar. Os homens que contam
histórias ocorridas em lugares distantes parecem sempre ter
provocado no público, ao longo do tempo, um misto de fascínio e
desconfiança. A dúvida por não sabermos até onde vai a
imaginação do autor – Heródoto ou nosso próprio avô – em
relação aos elementos comprováveis constitui, sem dúvida, um
atrativo a mais. Ele talvez nos ajude a entender por que,
enquanto tantas outras modalidades de escrita sucumbem ao
tempo, a Narrativa de Viagem se mantém viva e saudável há 25
séculos.
21
II. LITERATURA E JORNALISMO LITERÁRIO
Nosso trem para na velha estação de Hipona, que é a
atual cidade de Annaba, na Argélia. Aqui embarca o teólogo
Santo Agostinho. Em seu livro autobiográfico Confissões, escrito
entre os anos 397 e 398, expressa sua dificuldade em definir o
tempo. “Se ninguém me perguntar, eu sei”, garante. “Mas, se
quiser explicá-lo a quem me fizer esta pergunta, já não saberei
dizê-lo.”
Uma dificuldade semelhante a essa ocorre em relação à
literatura. Não é fácil defini-la de modo preciso e, ao mesmo
tempo, abrangente. Se miramos num alvo, aparecem outros.
Acertamos na mosca, mas aquilo é um furo. Atônitos como Santo
Agostinho, ficamos tentados a dizer algo mais ou menos assim:
“Literatura é quando se constrói uma frase de dentro para fora”.
Isso, em duplo sentido: de dentro de nós e de dentro da frase.
Essa ideia pode ser sugestiva, mas não
necessariamente a mais adequada aos propósitos deste
trabalho. É demasiado vaga, e também hermética, já que exclui
indivíduos não envolvidos com o ofício da escrita. No entanto,
mesmo estes podem sentir que a penúltima frase do parágrafo
anterior tem, a seu modo, algum grau de veracidade. Por que
então nos causa certo receio? Ora, porque é uma frase literária.
Pode haver certo risco em se tentar definir a literatura a partir
dela própria. Num trabalho acadêmico, não basta o sopro das
musas para se alçar voo. Sabemos, sim, o que é literatura. Mas
– se nos permitirmos tomar emprestada a ideia de Santo
Agostinho – é melhor que não nos perguntem.
22
Muitos autores buscaram e continuam a buscar um
conceito satisfatório para a literatura. O ensaísta búlgaro
Tzvetan Todorov refere-se a um tipo de texto que
[...] produz um tremor de sentidos, abala nosso
aparelho de interpretação simbólica, desperta
nossa capacidade de associação (TODOROV,
2009, p. 78)
Mas parece que isto ainda não nos basta. Vamos ver o
que tem a nos dizer o passageiro que embarca na estação
seguinte: Manchester, noroeste da Inglaterra. O filósofo e crítico
literário Terry Eagleton traz na pasta de couro seu livro mais
conhecido. Nele, afirma ser possível definir a literatura como “a
‘escrita imaginativa’, no sentido da ficção”, mas depois repensa
o assunto e acaba por concluir que “tal definição não procede”. A
seguir, reflete:
Talvez nos seja necessária uma abordagem
totalmente diferente. Talvez a literatura seja
definível não pelo fato de ser ficcional ou
‘imaginativa’, mas porque emprega a linguagem
de forma peculiar. [...]. A literatura transforma e
intensifica a linguagem comum, afastando-se
sistematicamente da fala cotidiana. [...] Trata-se
de um tipo de linguagem que chama a atenção
sobre si mesma e exibe sua existência material,
ao contrário do que ocorre com frases tais como
“Você não sabe que os motoristas de ônibus
estão em greve?” (EAGLETON, 1994, p. 2
)
Eagleton faz bem em duvidar de que o fato de um texto
ser supostamente ficcional ou “imaginativo”, como diz, seja a
pedra angular para considerá-lo “literário”. Se houvesse nascido
duzentos anos antes, e lido o relato atônito de seu conterrâneo
James Cook sobre um animal tão intrigante quanto o canguru,
Eagleton talvez tivesse colocado o descobridor da Austrália na
galeria dos grandes ficcionistas. Marco Polo, bem antes,
registrara que no oriente havia homens com cabeças de
cachorro. E as fantásticas baleias dos Açores, que Antonio
23
Tabucchi descreve? Borges teria incluído esses prodígios em O
livro dos seres imaginários, junto com os dragões, se quando o
escreveu, já no século XX, não dispusesse de meios mais
eficazes para separar o joio do trigo do que os venezianos do
século XIV ou os ingleses do século XVIII. No tempo de Marco
Polo ou de James Cook, valia a palavra do narrador e assunto
encerrado.
O grau de verificabilidade de uma afirmação ou de um
relato condiciona a lógica do pensamento de sua época. O que é
tido como ficção, hoje, pode não sê-lo amanhã, ou vice-versa.
Atrelar a literatura ao prerrequisito da verificabilidade seria uma
forma de menosprezá-la. Não é o que desejamos, claro.
Já a ideia de que “a literatura transforma e intensifica a
linguagem comum”, ainda que nos pareça imprecisa, é adequada
para designar uma forma de escrita cuja fonte primordial é o
fundo do coração. Podemos adotá-la, como apoio teórico, para
os propósitos deste estudo.
Porém, quando Eagleton diz, mais adiante, ou dá a
entender, que a suposta banalidade da frase Você não sabe que
os motoristas de ônibus estão em greve? a situa fora dos
domínios da literatura, então precisamos refletir melhor sobre o
assunto. A coisa não é tão simples.
A frase sobre a greve dos motoristas só nos soará banal,
de fato, se vivemos em uma cidade grande, atulhada de ônibus e
saturada de notícias sobre a realidade imediata, que
consumimos com o olho grudado na televisão. Porém essa
mesma situação corriqueira começa a ganhar contornos
singulares, ou quem sabe “literários”, quando a deslocamos de
seu contexto temporal ou espacial.
Imaginemos que a pergunta proposta por Eagleton se
referisse não a motoristas de ônibus, mas a condutores de bigas,
jangadas ou discos voadores. Eles estão em greve, nos dizem.
Ora, esse fato, na essência semelhante ao primeiro, nos
desperta a atenção por causa do deslocamento de contexto. Um
24
fenômeno conhecido, a greve nos transportes, ocorre numa
época ou num ambiente distante, estranho, talvez encantador,
nas praias do nordeste, na Roma antiga ou num planeta fora do
sistema solar.
Verifica-se aí, portanto, um lapso, um salto, uma
mudança de cenário – ou seja, uma viagem, entendida esta
palavra no sentido mais amplo, é claro. Houve um transporte da
imaginação, com base em um estímulo externo (uma notícia, um
relato), a um contexto já não tão conhecido como a cidade onde
vivemos.
Disso se depreende que, em si, o fato referido (a greve)
não basta para aquilatar o “teor literário” de uma frase. Ele
também sofre influência direta do grau de intimidade ou
interesse do leitor em relação ao contexto em que ocorre aquilo
que lhe é contado. A inserção desse algo que ele conhece num
ambiente que ele desconhece produz, como num passe de
mágica, uma espécie de fascínio no receptor. Queremos
conhecer a maneira como as coisas se passam num âmbito que
nos é pouco familiar.
Esse fascínio é o princípio ativo da Narrativa de Viagem,
cuja origem imemorial quase se confunde com a da própria
literatura. Vamos em frente, portanto, deixando para trás a
neblinosa Manchester onde Eagleton embarcou.
Surgem as luzes de Berlim. Na terceira estação, vemos
entrar no trem outro pensador que pode ser útil para o panorama
teórico que procuramos compor. Trata-se do filósofo Walter
Benjamin (1892-1940), com seus óculos de aros redondos e seu
espesso bigode. Ao refletir sobre o trabalho do narrador, ele nos
fornece mais subsídios para a abordagem do nosso tema.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a
fonte a que recorreram todos os narradores. E,
entre as narrativas escritas, as melhores são as
que menos se distinguem das histórias orais
contadas pelos inúmeros narradores anônimos.
Entre estes, existem dois grupos, que se
25
interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do
narrador só se torna plenamente tangível se temos
presente esses dois grupos. ‘Quem viaja tem
muito o que contar’, diz o povo, e com isso
imagina o narrador como alguém que vem de
longe. Mas também escutamos com prazer o
homem que ganhou honestamente sua vida sem
sair de seu país e que conhece suas histórias e
tradições. Se quisermos concretizar esses dois
grupos através dos seus representantes arcaicos,
podemos dizer que um é exemplificado pelo
camponês sedentário, e outro pelo marinheiro
comerciante. Na realidade, esses dois estilos de
vida produziram de certo modo suas respectivas
famílias de narradores. Cada uma delas
conservou, no decorrer dos séculos, suas
características próprias. [...] A extensão real do
reino narrativo, em todo o seu alcance histórico,
só pode ser compreendida se levarmos em conta a
interpenetração desses dois tipos arcaicos. O
sistema corporativo medieval contribuiu
especialmente para essa interpenetração. O
mestre sedentário e os aprendizes migrantes
trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre
tinha sido um aprendiz ambulante antes de se
fixar em sua pátria ou no estrangeiro. Se os
camponeses e os marujos foram os primeiros
mestres na arte de narrar, foram os artífices que a
aperfeiçoaram. No sistema corporativo associa-se
o saber das terras distantes, trazidos para casa
pelos migrantes, com o sabor do passado,
recolhido pelo trabalhador sedentário (BENJAMIN,
1994, p. 198-199).
Esse fragmento de Benjamin é valioso por dois
aspectos. Primeiro, por ressaltar a importância histórica do
narrador como alguém que vem de longe. O texto quase chega a
dizer, mas deixa nas entrelinhas, que essa situação especial do
homem que viaja, e vê coisas que poucos veem, lhe dá uma
credibilidade especial junto a seus pares. Quem se atreveria a
duvidar da palavra de alguém tão distinto como o comandante
Cook?
Em segundo lugar, Benjamin ressalta o contraponto
entre esses dois grupos que chama de “famílias de narradores”:
o sedentário e o itinerante, respectivamente representados pelo
camponês e pelo marujo. E, mais do que isso, ele propõe a ideia
26
de que a força da arte narrativa, na formação cultural dos povos,
resulta da integração de relatos de naturezas diferentes.
Deve-se observar, porém, que o narrador sedentário –
que não se move e, por isso, tem a chance de conhecer a fundo
as histórias produzidas no lugar em que vive, em diferentes
épocas – não está propriamente “imóvel”, ou seja, algemado às
circunstâncias do momento. Ele também faz suas viagens, só
que no tempo, não no espaço, ou quem sabe nas frestas do
espaço pelas quais o tempo flui. Um ancião, um artista ou um
sábio também podem ser percebidos como alguém que vem de
longe.
Machado de Assis, que quase nunca saía do Rio de
Janeiro, era capaz de ver tudo o que quisesse ver na Rua do
Ouvidor e em um punhado de outras ali por perto. No final do
século XIX, em 11 de novembro de 1897, ele afirmava em sua
crônica semanal na Gazeta de Notícias:
Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde
ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a
curiosidade estreita e aguda que descobre o
encoberto. Daí vem que, enquanto o telégrafo nos
dava notícias tão graves como a taxa francesa
sobre a falta de filhos e o suicídio do chefe de
polícia paraguaio, cousas que entram pelos olhos,
eu apertei os meus para ver cousas miúdas,
cousas que escapam ao maior número, cousas de
míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde
as grandes vistas não pegam (ASSIS, 1985, p.
772).
Há nessa machadiana “miopia criativa” um modo de ver
as cousas que é capaz de traduzi-las e de renová-las. Todos nós
já deparamos alguma vez, na vida real ou nas páginas
impressas, com esse homem que viajou no tempo. Ele pode ser,
por exemplo, o pescador Santiago, de Hemingway, em O velho e
o mar, ou o fanfarrão Alexis Zorba, de Nikos Kazantzakis, em
Zorba, o grego, para recordar dois livros de ampla difusão em
meados do século passado. Mas pode ser também o último
sapateiro do bairro, com quem costumamos prosear. Que essa
27
figura meio medieval, meio atemporal, seja mais ou menos
valorizada, conforme o meio em que se vive, já é outra questão e
não cabe discuti-la aqui.
O homem que vem de longe, mas nunca se moveu,
remete-nos à hitese de Fernand Braudel (1902-1985),
historiador frans que ensinou na USP em meados da década
de 1930, sobre a pluralidade das durações. Segundo Braudel,
o tempo da história se desdobra em três planos: o tempo
geográfico, o tempo social e o tempo individual. Essas
dimensões não aparecem nos guias turísticos nem nos
almanaques. Mas se entrelaçam, em total harmonia, nos
relatos desses homens de cabedal que podemos considerar
narradores sedentários à espera de um narrador itinerante. No
Jornalismo Literário, o repórter tem de estar atento para
encontrar, em cada lugar que visita, os porta-vozes dessas
diferentes dimensões do tempo.
“Viajar é como conversar com homens de outros
séculos”, observou René Descartes. Mas a frase do filósofo
francês pode ser expandida para além da dimensão temporal.
Durante a viagem, ao passar pelas sucessivas filtragens que
compõem “mundo especial”, por vezes temos chance de
conhecer pessoas (até de nossa própria terra) que pertencem a
outra esfera social. Realiza-se assim um encontro improvável em
condições normais.
Vejamos um caso. No final do século XIX, em um trem
na Europa, o imperador Pedro II teve Friedrich Nietzsche como
companheiro de viagem. Consta que o filósofo alemão gostou da
prosa mantida com o monarca brasileiro, e até o elogiou. Parece
ficção. Um encontro entre esses dois homens seria pouco
provável caso fossem conterrâneos e estivessem em seu próprio
país. Mesmo se porventura embarcassem no mesmo trem, não
partilhariam o mesmo vagão. É difícil imaginá-los ali, frente a
frente, a trocar ideias descompromissadas, tendo como pano de
fundo o cenário externo que desliza pela janela do trem.
28
Nesse caso, verificou-se uma mistura de esferas sociais,
uma quebra de barreiras propiciada pela situação de viagem. O
filósofo e o monarca, ambos em trânsito, tornaram-se iguais
perante o fato supremo de estarem sendo arrastados à frente
pela mesma locomotiva, e sobre os mesmos trilhos. A frase de
Descartes, portanto, se aplicaria não apenas (em seu sentido
figurado) a homens pertencentes a séculos diferentes, mas
também àqueles que, mesmo contemporâneos entre si, transitam
em ambientes que não se comunicam dentro dos limites do
“mundo comum”. É preciso que pelo menos um deles esteja em
terra estranha.
Vale a pena chamar a atenção para o fato de que,
quando o narrador itinerante conta histórias de outras plagas,
vale-se também de conteúdos que pertencem ao acervo dos
narradores sedentários radicados naqueles tais lugares que
visitou. Marco Polo, quando voltou a Veneza para comunicar aos
conterrâneos o que vira em seu périplo pelo oriente, não narrou
apenas suas andanças e observações. Registrou também o que
ouviu de pessoas sedentárias, entendidas aqui como repositórios
da tradição.
Sedentários e itinerantes
Com as considerações feitas até aqui, percebemos a
importância dos viajantes por sua função polinizadora no reino
da narrativa. Mas também nos damos conta do quanto é
fundamental o homem sedentário que o municia e também o
escuta. São mundos complementares. Um alimenta o outro.
Tratamos aqui do narrador itinerante, daquele que viaja,
mas não perdemos de vista sua necessária contraparte, o
sedentário. As obras selecionadas para o corpus deste trabalho
foram produzidas por homens que também atuaram, nos lugares
onde estiveram, como arqueólogos do que ocorrera ali em outros
tempos.
29
A interação entre os narradores itinerante e sedentário
não é o único fenômeno responsável por instalar a Narrativa de
Viagem numa zona de confluência com a dita literatura ficcional.
Outros mecanismos, mais ou menos evidentes, também
interferem no processo. Investigá-los é um dos nossos
propósitos.
Em um trabalho anterior, como já disse, procurei compor
um painel dos fatores de fabulação. O excerto abaixo dá uma
ideia mais clara sobre o assunto:
Quando falamos em fabulação, aplicada ao
universo do jornalismo, queremos nos referir a
textos embasados em fatos públicos ou plausíveis,
mas cujos atributos internos (de enfoque ou
linguagem) levam o leitor pelos caminhos da
fantasia, sem que ele necessariamente o saiba.
Ele pode chegar mesmo a comprar gato por lebre,
em certos casos, quando ocorre falseamento dos
fatos, mesmo num texto dito objetivo; mas em
outros pode simplesmente deixar-se envolver por
artifícios estéticos, quando o autor lança mão de
recursos literários. Por conseguinte, os fatores de
fabulação são entidades amplas e multiformes.
Atuam de maneira direta (quando eles próprios
são os agentes ficcionais) ou indireta (quando são
apenas condições facilitadoras). De modo geral,
podemos defini-los como as características
intrínsecas ou extrínsecas de um determinado
texto que nos permitem enquadrá-lo como ficção
(MODERNELL, 2004, p. 29).
A adjetivação tendenciosa, por exemplo, é um dos mais
recorrentes entre os dispositivos textuais que podem atuar como
fatores de fabulação. E funciona. O próprio adjetivo tendenciosa
seria desnecessário para expor a ideia contida na primeira frase
deste parágrafo. O seu uso apenas reforça o poder de persuasão
que este autor, como qualquer outro, almeja ter sobre seus
leitores. Neste caso, a palavra tendenciosa é, ela mesmo,
tendenciosa. Para muitos leitores, esse detalhe teria passado
batido, sem esta breve pausa para detecção.
Outros fatores de fabulação, mais sofisticados, não
dizem respeito ao plano da escrita, mas sim ao sistema de
30
crenças no qual o redator está imerso, e cujos valores reproduz
com maior ou menor grau de consciência. São fenômenos que
ocorrem nos planos sociológico, político ou até mesmo, se
preferirmos, no que Jung chamou de inconsciente coletivo. Dois
exemplos são os equívocos cristalizados e a confirmação do
pacto social, que discuti em meu anterior trabalho de mestrado.
Para seguirmos em frente neste estudo, precisamos ter
em mente uma definição sucinta dos fatores de fabulação. São
dispositivos de linguagem ou formas de captação da realidade
que fazem o mundo da fantasia se infiltrar naquilo que, em
princípio, se propõe ao leitor como uma narrativa de fatos reais.
Os fatores de fabulação têm parentesco com os princípios
mediadores referidos por um senhor de bigode branco que entra
no trem, em uma rápida parada na USP. Não, não se trata de
Fernand Braudel. Estamos em outra dimensão do tempo.
Quem embarca nessa estação é o crítico literário Antonio
Candido. Ele toma assento e declara:
[...] O sentimento da realidade na ficção pressupõe
o dado real mas não depende dele. Depende de
princípios mediadores, geralmente ocultos, que
estruturam a obra e graças aos quais se tornam
coerentes as duas séries, a real e a fictícia
(CANDIDO, 1970, p. 67).
Examinemos que modo os fatores de fabulação atuam na
Narrativa de Viagem, tornando-a uma área mais próxima da
literatura de ficção do que ocorre no caso da reportagem
convencional, quando esta última não implica deslocamento
geográfico. Ou seja, quando seu autor é aquele que, segundo
Benjamin, poderíamos qualificar como narrador sedentário.
Dito de outro modo, nosso propósito é compreender por
que o fato de o observador estar em trânsito por determinado
lugar o faz conectar-se de modo especial ao mundo externo; sua
condição de mobilidade constituiria, em si mesma, um fator de
fabulação. Esta hipótese não é estranha ao senso comum. Todos
sabemos, por experiência, que ao viajar percebemos as coisas e
31
as pessoas de um modo diferente do habitual, no lugar onde
vivemos ou fomos criados. Contrastes tênues se acentuam. É o
que nos mostra o jornalista e escritor italiano Alberto Arbasino,
autor de ficções, ensaios e livros de viagem. O trem faz sua
quinta parada: Milão. Arbasino entra trazendo um texto seu, que
contém um detalhe captado na Austrália:
A distância que os australianos guardam um do
outro, em qualquer paisagem, dá uma
agradabilíssima sensação de agorafobia – o
contrário da claustrofobia – confortante e
reparadora. Eles se detêm e conversam entre si a
não menos de dois metros de distância, em
grupinhos esparsos e distantes [...] (ARBASINO,
1981, p. 75-76, tradução nossa)
O autor do presente estudo não teria por que desconfiar
de Arbasino. Uma amiga australiana, radicada no Brasil há quase
três décadas, conta que em suas esporádicas visitas à terra
natal costuma ouvir queixas de amigos e familiares porque ela
lhes fala muito de perto e, pior ainda, toca neles, ou abraça-os
em situações fortuitas. Enfim, está “muito pegajosa”, à maneira
brasileira, e isto deixa os australianos um pouco incomodados.
Vale também citar o caso semelhante de uma jovem
universitária residente em São Paulo. Em visita à cidade natal no
interior do Estado, com pouco mais de 30 mil habitantes, ela se
impacientava ao sair para caminhar com as pessoas dali. Antes
de atravessar a rua, elas paravam na calçada para esperar a
passagem de um carro que vinha ainda a uma quadra de
distância. Provavelmente a moça fazia o mesmo quando vivia em
Agudos. Mas agora, ali, já era uma pessoa em trânsito, que tinha
sua base assentada em um local com outros códigos, outros
ritmos, outros protocolos. Podia, portanto, observar de fora.
A distância não importa. Pode ser tanto os 16 mil
quilômetros aéreos entre a Itália e a Austrália quanto os 330
quilômetros rodoviários entre São Paulo e Agudos. O fato é que
o ritual do estranhamento se realiza. Basta o observador ser um
viajante. Esse estado psicológico diferenciado (mais “poroso”,
32
diríamos) produz efeitos sobre o processo, em si, da captação da
realidade. A alquimia se estabelece na medida em que a viagem
se encaixa, de algum modo, no processo de individuação do
viajante.
Se alguma dúvida nos resta sobre isso, dissipa-se à
última baforada da locomotiva. Ela faz sua sexta parada:
Amsterdã. Aqui embarca um escritor holandês volta e meia
cogitado para o Prêmio Nobel. Cees Nooteboom é um globe-
trotter. “Viajar é a minha maneira de estar quieto”, declarou certa
vez. Desde os 17 anos ele se movimenta pelos quatro cantos do
mundo de forma quase compulsiva.
Viajar é algo que você tem de aprender. Trata-se
de uma constante negociação com as outras
pessoas, durante a qual você se encontra só. E
aqui reside o paradoxo: você se move sozinho em
um mundo que é controlado pelos outros. São eles
os donos daquela pousada familiar onde você
precisa alugar um quarto, eles que decidem se há
lugar para você em um voo que só parte uma vez
por semana, eles é que, sendo mais pobres,
almejam tirar alguma vantagem de você, eles é
que são mais poderosos porque podem recusar um
carimbo ou um documento. Eles falam línguas que
você não pode entender, lhe barram a entrada em
uma balsa ou sentam-se ao seu lado em um
ônibus, vendem-lhe comida no mercado e indicam-
lhe um caminho que pode ser certo ou errado, às
vezes eles são perigosos, mas em geral não são,
e tudo isso está lá para ser aprendido: o que você
deve fazer, o que você não deve fazer e o que não
deve jamais fazer. Você tem de aprender a lidar
com a bebedeira dos outros e com a sua própria;
você tem de saber reconhecer um gesto e um
disfarce, pois não importa o quão solitário você
esteja, sempre estará cercado de gente; por suas
expressões, suas ofertas, seu descaso, suas
expectativas. E cada lugar é diferente, nenhum
deles vai se parecer com aquilo que você está
acostumado no país de onde veio (NOOTEBOOM,
2006, p. 3-4, tradução nossa).
Um viajante calejado como Nooteboom acaba por
treinar-se em captar detalhes que o turista despreza, em seu afã
por aproveitar o tempo e cumprir o roteiro preestabelecido.
33
Vejamos, nesta reflexão, como o próprio local de hospedagem,
por exemplo, pode ser um subtema da viagem:
[…] Um hotel é um mundo fechado, um território
demarcado, um claustro, um lugar onde se entra
por vontade própria. Os hóspedes não estão ali
por acaso, são membros de uma ordem. Seus
quartos, sejam simples ou luxuosos, são suas
celas. Quando fecham a porta atrás de si, e
ficam do lado de dentro, eles cortam seu
contato com o mundo (Ibidem, p. 81, tradução
nossa).
E logo adiante:
[…] Quem ocupa esses hotéis, além das
pessoas em viagem de lazer? Políticos,
funcionários públicos, enxadristas, vendedores,
representantes, músicos, banqueiros,
jornalistas. São essas as principais categorias,
embora existam outras. O que essas pessoas
têm em comum, falando de modo geral, é que se
sentem mais em casa nos hotéis do que em
suas próprias casas [...] (Ibidem, p. 86,
tradução nossa).
De Amsterdã, o trem parte logo para Buenos Aires. Mas
continuamos pensando no hotel. Na sétima estação do percurso,
recebemos a bordo um homem cego que se move devagar, com a
ajuda de uma bengala. Jorge Luis Borges (1899-1986) senta na
poltrona e nos relata uma espécie de epifania que lhe aconteceu
no Hotel Esja, em Reikjavik.
Eu acabava de chegar ao hotel. Sempre ao centro
dessa clara neblina que os olhos dos cegos veem,
explorei o quarto indefinido que haviam reservado
a mim. Tateando as paredes, que eram
ligeiramente rugosas, e contornando os móveis,
descobri uma grande coluna redonda. Era tão
grossa que quase não pude cingi-la com meus
braços estirados. Foi difícil encostar uma mão na
outra. Soube então que era branca. Maciça e
firme, elevava-se em direção ao teto baixo.
Durante uns segundos conheci essa curiosa
felicidade que reservam aos homens essas coisas
que são quase um arquétipo. Naquele momento,
eu sei, resgatei o gozo elementar que senti
34
quando me foram reveladas as formas puras da
geometria euclidiana: o cilindro, o cubo, a esfera,
a pirâmide (BORGES,1984, p. 59, tradução
nossa).
É mais difícil imaginar que uma cena como essa
houvesse ocorrido a Borges na cidade de Buenos Aires, onde
nasceu e viveu. Podemos supor que essa condição especial, a
de um cego que visita um país remoto, a Islândia, tenha de
algum modo lhe aguçado os sentidos, abrindo espaço para o
insight, ou seja, a captação do mundo de forma instantânea,
transfigurada, como quem olha de soslaio por uma fresta que
logo se fecha.
Coisas desse tipo nos ocorrem com maior frequência
quando estamos em viagem. Sabemos disso, mas não temos
essa noção presente conosco, o tempo inteiro, quando lemos ou
ouvimos relatos de viagem feitos por outras pessoas. Aqui, o que
nos interessa é compreender esse fenômeno de maneira mais
aprofundada. Não, por certo, com o intuito de “quebrar o
encanto” do narrador itinerante, como se quiséssemos
desmascarar o truque de um mágico, mas sim para podermos
apreciar ainda mais essa arte milenar de viajar e contar
histórias. Os fatores de fabulação constituem, portanto, outro
conjunto de ferramentas para compreender o que existe de
específico nos textos de viagem, dentro do campo geral da
narrativa.
Embreagem e debreagem
O trem para pela oitava vez. Novos passageiros
embarcam na Estação da Luz, em São Paulo. José Luiz Fiorin,
linguista e professor da USP, é o primeiro a falar. Discorre sobre
as categorias de pessoa, espaço e tempo na produção do
discurso. Para isso, vale-se dos conceitos de debreagem e
35
embreagem desenvolvidos pelo linguista lituano Algirdas Julius
Greimas em suas pesquisas semióticas.
Embreagem e debreagem são termos derivados do
francês embrayage, surgido em meados do século XIX, e cujo
sentido original é de transmissão por aderência, engate,
acoplamento. Logo nos fazem pensar nos dispositivos pelos
quais a energia da combustão é repassada às rodas dos veículos
automotores. No âmbito da análise do discurso esses termos
identificam a relação entre o ato da enunciação e o enunciado
que dela resulta.
Pedimos licença a Fiorin e também a Greimas para
flexibilizar o uso do termo debreagem no âmbito da Narrativa de
Viagem, tomando-o em um sentido mais imagético do que
conceitual. Interessa-nos saber até onde o relato adquire
autonomia em relação à viagem e ao viajante. Três aspectos
podem ser questionados.
No que diz respeito à categoria de pessoa, vale lembrar
que, em geral, um texto de viagem é produzido a posteriori. Isso
significa que o narrador, ao escrever, está num estado
psicológico diferente do que estava no momento em que viveu a
experiência. Já vimos que um homem em trânsito, que se move
pelo mundo, observa as coisas por um prisma especial que lhe é
dado por sua própria condição de observador itinerante ou até
errante, em alguns casos. Isso nada tem a ver com a situação do
redator que escreve sobre aquilo que, para ele, está situado no
“mundo comum”, no cotidiano. E isso vale não tanto para o
conteúdo quanto para a forma de captá-lo. No limite, quase
podemos pensar que se trata de duas pessoas diferentes. A que
lembra a viagem já não é mais aquela que viajou e a registra em
palavras.
Um exemplo significativo disto é Marinheiro de primeira
viagem, de Osman Lins, analisado por Sandra Nitrini – também
professora da USP, como Fiorin – no artigo Viagem e projeto
literário (Osman Lins na França). Em suas páginas, o autor fala
36
de si próprio, na época da viagem, usando a terceira pessoa do
singular. Dessa forma evidencia um distanciamento em relação
aos fatos que na maioria dos casos está implícito ou disfarçado.
É como se o escritor pernambucano quisesse chamar a atenção
para o ato da debreagem, da desconexão de si próprio quando
se coloca na condição de personagem. Recurso idêntico é usado
por Cees Nooteboom no ensaio Musings in Munich (Meditações
em Munique), publicado em março de 1989, como segunda
versão do texto original de 1978. Os dois autores se veem de
fora. A debreagem é quase total.
Ressaltamos também que, nesse mesmo livro, ao falar
sobre experiências vividas no período em que morou na França e
percorreu outros países da Europa, Lins não se importa com a
sequência cronológica nem dos acontecimentos externos nem de
suas reflexões. A obra é um mosaico de pequenos textos,
organizados por uma lógica (um fluxo) subjacente ao que nos é
mostrado em primeiro plano. O texto se apresenta aos nossos
olhos como um móbile de Alexander Calder, tão em voga naquela
época, o início da década de 1960. Nele, os elementos como que
flutuam ao sabor do momento, numa forma de harmonia que
somos capazes de reconhecer mas não de explicar com
palavras. Assim é o livro de Osman Lins. E assim são as ideias e
evocações de um viajante quando vê os cenários passarem
diante de seus olhos. Esse “efeito calidoscópico” se atrofia aos
poucos quando permanecemos atrelados a “mundo comum”.
Portanto, detectamos aí uma espécie de debreagem
temporal. Alguma coisa faz o viajante, na medida em que viaja,
desvencilhar-se de sua agenda, dos seus trajetos cotidianos,
ditados pela tela do seu computador e pela sola dos seus
sapatos, para tomar parte em algo que, na literatura, denominou-
se de fluxo de consciência.
Segundo a versão popularizada da Teoria da
Relatividade, de Albert Einstein, o tempo passaria de modo
diferente ao observador que se desloca à velocidade da luz, em
37
relação a outro que fica aquém dessa marca, ou seja, ancorado
no “mundo comum”. Claro está que, neste caso, temos em mira o
tempo cronológico (chronos), ou seja, aquele que nos é proposto
pelos relógios e calendários. Já no sentido que aqui nos
interessa, tomamos o tempo no sentido de um fluxo psicológico
(kairós, para os gregos), que é algo pessoal e intransferível,
uma experiência que faz o indivíduo, mesmo em vigília, viver as
emoções da vida com nuances que se assemelham aos sonhos.
Um bom exemplo disso é Borges naquele seu hotel, em
Reikjavik, a abraçar um arquétipo.
Nosso pressuposto, como já vimos, é de que o viajante
está mais exposto a situações desse tipo do que o indivíduo
sedentário. Ou seja, a viagem, ou a verdadeira viagem, ocorre
quando o tempo reverbera em diferentes planos, como Braudel
pensou. Nessa nova amálgama, kairós se sobrepõe a chronos,
dando uma feição onírica ao modo pelo qual interagimos com a
realidade. Ainda aí se aplica o conceito de debreagem, tomado
em sentido amplo. Com isso queremos dizer que a viagem é uma
desconexão entre o nosso íntimo e a nossa agenda, a menos que
se trate, é óbvio, de uma viagem protocolar ou de negócios –
mas não é esse o caso de que nos ocupamos aqui.
O caráter da viagem e o estado de ânimo do viajante, no
momento em que a realiza, influem sobre sua capacidade de
captar material e de produzir o texto. Mesmo os mais talentosos
não podem dispor do próprio talento o tempo inteiro.
O que nos faz pensar assim é o texto não muito
inspirado que o escritor francês Albert Camus (1913-1960)
produziu com base em sua vinda ao Brasil, em 1949, e que faz
parte do volume Diário de Viagem. Naquela ocasião ele estava
deprimido, deu conferências que não estava disposto a dar,
queixou-se o tempo todo da maratona de compromissos sociais
que lhe arranjaram por aqui. Resultado: uma obra muito abaixo
de suas possibilidades.
38
A mesma coisa acontece no último livro de Graciliano
Ramos, Viagem. Trata-se de um relato em forma de diário de seu
giro pela Tchecoslováquia e pela União Soviética em 1952, em
meio a uma comitiva de escritores brasileiros. Ele não queria ir,
mas acabou indo. Foi uma viagem tão rígida e protocolar, tão
cheia de coquetéis e discursos, tão laudatória ao regime
soviético, que o livro de Graciliano bem que poderia intitular-se
Memórias do cárcere nº 2.
Memórias do cárcere nº 3 é o livro que Clarice
Lispector poderia ter escrito, ou quem sabe o tenha feito sob
diferentes títulos, a julgar pelas cartas e crônicas produzidas
durante o período em que viveu fora do Brasil, entre 1943 e
1959. Ela foi contrafeita, subordinada à carreira do marido
diplomata. Clarice aborrecia-se naquela vida cravejada de
recepções oficiais, sempre a pular de galho em galho, em
diferentes cidades da Europa e dos Estados Unidos. Vejamos um
trecho de uma carta enviada da Inglaterra em novembro de 1950:
Vocês não podem imaginar como estamos
cansados de viagens e mudanças. Estamos
espiritualmente cansados, fisicamente cansados.
Para decidirmos ir a Londres, foi um problema.
Imagina que daqui a uns anos estaremos
exaustos. O corpo e a cabeça ficam
constantemente procurando uma adaptação, a
gente fica fora de foco, sem saber mais o que é e
o que não é. Nem meu anjo da guarda sabe mais
onde moro (LISPECTOR in MONTEIRO, 2007, p.
234).
Esse tipo de vida cigana, a reboque do marido do qual
mais tarde iria se separar, por vezes chegou a empanar o brilho
de Clarice. “A vida é igual em toda parte”, queixou-se numa frase
que revela um estado de ânimo que não deve ter sido muito
diferente daquele com que Camus desceu aos trópicos.
Mas deixemos os cárceres invisíveis dos protocolos,
onde o viajante se extravia de si mesmo, e voltemos ao nosso
roteiro teórico. Ainda cabe mencionar a última das três
39
categorias da enunciação, a espacial. Sendo ela mais óbvia, já
que a viagem é por definição o ato de percorrer cenários
externos, alheios ao “mundo comum”, não vale a pena nos
estendermos demais no assunto. O viajante está num hotel,
numa barraca, num trem, hoje aqui e amanhã acolá, mas sempre
fora da sua casa e dos seus hábitos, com todas as inseguranças
enumeradas por Nooteboom e outras tantas que só descobrimos
na hora.
O único aspecto que talvez valha a pena ressaltar, no
que diz respeito à debreagem espacial, é que ela – sendo neste
caso essencial e definidora – condiciona as outras duas, a
temporal e a pessoal, de uma maneira mais efetiva do que
acontece quando o narrador conta fatos que se passam dentro
das fronteiras do “mundo comum”. A pergunta a ser feita é o
quanto a debreagem espacial, e sua preponderância sobre as
suas duas irmãs na Narrativa de Viagem, institui uma poética
específica para esse gênero de escrita.
Colombo e Marco Polo
De São Paulo partimos para Bolonha. Na nona estação
do percurso recebemos a bordo um professor da universidade
local. Geógrafo especializado em cartografia, Franco Farinelli
aborda a figura de Cristóvão Colombo por uma de suas
atividades não muito lembrada – o homem dos mapas. De fato,
durante o obscuro período de cerca de oito anos em que viveu
em Portugal, Colombo trabalhou como cartógrafo e empenhou-se
em tomar contato com o que havia de mais avançado nessa área.
De tudo o que Farinelli nos diz sobre Colombo, um dos
aspectos mais interessantes é o contraponto que estabelece, a
certa altura, entre ele e seu antecessor Marco Polo. O genovês
tem grande admiração pelo veneziano, pois quer chegar ao
mesmo destino a que o outro chegara, o oriente, só que
40
navegando em direção ao poente. Mas a grande diferença não
está aí, e sim na forma de se locomover.
A Marco Polo, cada coisa do mundo impõe a sua
própria duração, e lhe dá a duração da vida. [...]
Ele aprende vários idiomas pelo caminho. E as
direções não são fixadas pela rigidez dos pontos
cardeais. Segue-se a direção dos ventos. Não
existe o tempo, a não ser como alternância do dia,
da noite e das estações (FARINELLI, 2006).
Caso bem diferente é o de Colombo, que tem pressa –
coisa que Marco Polo não tinha nem podia ter. O genovês quer
chegar às Índias o mais rápido possível, para trazer de lá as
riquezas que prometera aos reis espanhóis; com isso, imagina,
sua vida será elevada a um novo status. Colombo não está muito
preocupado com as coisas que encontra no caminho, a não ser
quando lhe servem como pontos de referência. O almirante tem o
olhar fixo em um plano predeterminado, só o que se encaixa ali
lhe diz respeito. Busca enxergar, à sua volta, aquelas coisas que
constam no mapa do célebre cartógrafo e astrônomo florentino
Paolo dal Pozzo Toscanelli (1397-1482).
Farinelli classifica Colombo como o primeiro viajante
moderno. E o faz por dois fatores. Primeiro, por causa da pressa
do navegador genovês em chegar ao seu destino; segundo, por
sua atenção concentrada no que o ensaísta italiano chama de
“reversibilidade do movimento”, isto é, a possibilidade de voltar
ao ponto de partida.
Ele está ansioso por fazer coincidir o que vê com
o que lhe indica a cartografia. Para Colombo,
trata-se de uma relação entre o tempo e a imagem
da coisa, não a coisa em si. [...] Ele se move ao
sabor de uma abstração (FARINELLI, 2006).
Marco Polo, dois séculos antes, experimentara a viagem
de um modo diverso. A velocidade é irrelevante quando algo
mais concreto se impõe ao viajante:
41
[...] a relação entre o tempo e a qualidade da
superfície terrestre. [...] Lugares e jornadas de
viagem são a mesma coisa. Coincidem na
experiência do caminho (FARINELLI, 2006).
Por mais estranho que pareça, a viagem de Marco Polo,
um homem da Idade Média, está mais próxima da concepção
romântica que inebriou os grandes viajantes do século XIX do
que aquela de Colombo. “Não viajo para ir a algum lugar, mas
para ir”, confessou o escritor escocês Robert Louis Stevenson
(1850-1894). “Viajo por viajar. A emoção é me mover.” E nos
século XX o russo Alexander Soljenítsin (1918-2008)
recomendava: “Deixe sua memória ser sua mala de viagem”.
Despojamento total, portanto.
Claro que não se trata exatamente do caso de Marco
Polo – afinal de contas, tem negócios em vista na China. Mas ele
não é, de forma alguma, um homem com um mapa debaixo do
braço, como Colombo. O genovês já se parece com o turista dos
dias de hoje. O turista-padrão, bem entendido, esse cidadão
ansioso por confirmar o que lhe foi mostrado antes.
O contraponto proposto por Farinelli nos será útil para
aquilatar que tipo de experiências interessa (ou não) aos
narradores a serem examinados neste trabalho. Para melhor nos
situarmos, adotamos os conceitos opostos que o italiano atribui
a esses seus dois remotos conterrâneos que figuram entre os
mais célebres viajantes do ocidente. Falamos de um viajante
poliano (ao estilo de Marco Polo) e de um viajante colombino
(como Colombo). Com isso, vamos nos referir a homens que,
respectivamente, têm o seu maior interesse no percurso, no fluxo
do movimento, e a outros que têm em mira, sobretudo, a meta e
as vantagens que podem obter ao alcançá-la.
Trata-se da diferença básica entre o viajante e o turista,
se a transpomos ao que acontece nos dias de hoje. E para que
tal diferença fique bem marcada, o trem para no bairro da Tijuca,
42
no Rio de Janeiro. Décima estação do nosso trajeto. Recebemos
a sorridente Cecília Meireles, que assim se pronuncia:
Grande é a diferença entre o turista e o viajante.
O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este
mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o
guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os
dentes: seu destino é caminhar pela superfície
das coisas, como do mundo, com a curiosidade
suficiente para passar de um ponto a outro,
olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe
agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma
agradável fluidez, sem apego nem compromisso,
uma vez que já sabe, por experiência, que há
sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia
seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a
véspera.
O viajante é criatura menos feliz, de movimentos
mais vagarosos, todo enredado em afetos,
querendo morar em cada coisa, descer à origem
de tudo, amar loucamente cada aspecto do
caminho, desde as pedras mais toscas às mais
sublimadas almas do passado, do presente e até
do futuro – um futuro que ele nem conhecerá.
O turista murmura como pode o idioma do lugar
que atravessa, e considera-se inteligente e
venturoso se consegue ser entendido numa loja,
numa rua, num hotel.
O viajante dá para descobrir semelhanças e
diferenças de linguagem, perfura dicionários,
procura raízes, descobre um mundo histórico,
filosófico, religioso e poético em palavras
aparentemente banais; entra em livrarias, em
bibliotecas, compra alfarrábios, deslumbra-se a
mirar aqueles foscos papéis e leve, para tomar um
apontamento, mais tempo que o turista em
percorrer uma cidade inteira.
Quando lhe dizem que há sol, que o dia é belo,
que é preciso sair do hotel, caminha como
empurrado, cheio de saudade daqueles alfabetos,
daqueles misteriosos jogos de consoantes,
daquelas fantasmagorias das declinações. Porta-
se diante de um monumento, e começa outra vez a
descobrir coisas: é um pedaço de coluna, é uma
porta que esteve noutro lugar, é uma estátua cuja
família anda dispersa pelo mundo, é o desenho de
uma janela, é a cabeça de um anjo que lhe conta
sua existência, são as figuras que saem dos
quadros e vêm conversar sobre as relações entre
a vida e a pintura, é uma pedra que o arrebata
para o seu abismo interior e o cativa entre suas
coloridas paredes transparentes.
43
O turista já andou léguas, já gastou a sola dos
sapatos e todos os rolos da máquina – e o
viajante continua ali, aprisionado, inerme, sem
máquina, sem prospectos, sem lápis, só com os
seus olhos, a sua memória, o seu amor
(MEIRELES, 2000).
Acomodamos Cecília e Farinelli lado a lado, em duas
poltronas no centro do vagão. Desde já lhes somos gratos por
seus achados complementares, um imagético e outro conceitual.
Este último nos será de grande valia ainda neste parágrafo. O
contraponto entre as maneiras colombina e poliana de viajar nos
serve para configurar formas narrativas que correspondem,
respectivamente, às reportagens de turismo publicadas na
imprensa e aos textos de Jornalismo Literário. As primeiras
partem de elementos externos como a pauta, estabelecida na
redação, e o chamado “gancho”, isto é, às circunstâncias que
ensejam ou justificam a publicação de tal matéria em dado
momento; as outras se apoiam, acima de tudo, no mundo interno
do autor, em suas inquietudes e obsessões, ainda que se trate
de um jornalista, e não de um literato.
E aqui chegamos ao momento de nos determos um
pouco no Jornalismo Literário, como fizemos com a literatura,
páginas atrás. A reflexão nos ajudará a ter em mente, de forma
clara, os cenários que o trem vai percorrer daqui em diante,
agora que temos a bordo tão ilustres passageiros.
Passaporte sem carimbo
Se considerarmos o arco de tempo decorrido desde que
Heródoto contou a seus conterrâneos gregos o que vira em
terras distantes, as obras escolhidas para o corpus deste
trabalho podem ser consideradas ultrarrecentes. O livro de
Tabucchi saiu em 1983; o de Terzani, em 1995; o de Tosches,
em 2000. O primeiro é multiforme; se nas livrarias o encontramos
na prateleira das obras de ficção, será mais porque o autor é
44
visto como ficcionista e menos por causa das características da
obra. Já os dois últimos se situam se situam no campo a que
hoje denominamos Jornalismo Literário.
Não haveria problema se Tabucchi lhes fizesse
companhia na prateleira. O Jornalismo Literário abarca obras de
autores que podem ser tanto escritores ou jornalistas, ou ter
ambas as atividades. Atravessam a fronteira, daqui para lá e de
lá para cá, sem a necessidade de carimbar o passaporte, ao
contrário do que ocorre nas viagens reais, geográficas.
A denominação Jornalismo Literário, predominante no
Brasil, deriva daquela adotada pelos americanos (Literary
Journalism), em virtude da excelência que essa modalidade
jornalística atingiu nos Estados Unidos, na década de 1960, com
textos de autores como Gay Talese, Tom Wolfe, Truman Capote
e Hunter S. Thompson. Mas não é a única. O Jornalismo
Literário é também conhecido como novo jornalismo, literatura
não-ficcional, literatura da realidade, jornalismo em
profundidade, jornalismo diversional, reportagem-ensaio e
jornalismo de autor. Os espanhóis o chamam de periodismo
informativo de creación, denominação mais ajustada aos
conceitos esboçados sobre o gênero, como veremos a seguir.
Décima primeira estação: Amherst, 120 quilômetros a
oeste de Boston. Recebemos a bordo Norman H. Sims, professor
de jornalismo da Universidade de Massachusetts. Para ele, o
Jornalismo Literário tem sete características: imersão, autoria,
estilo, precisão, simbologia, digressão e humanização.
Porém, se o assunto é Jornalismo Literário, não
podemos deixar de mencionar um dos passageiros que
embarcaram na Estação da Luz. Trata-se de Edvaldo Pereira
Lima, jornalista e professor da ECA-USP, um dos pioneiros no
estudo desse tipo de jornalismo no Brasil. Ele toma a palavra:
A chance que o jornalismo poderia ter para se
igualar, em qualidade narrativa, à literatura, seria
45
aperfeiçoando meios sem porém jamais perder a
sua especificidade. Isto é, teria de sofisticar seu
instrumental de expressão, de um lado, e elevar
seu potencial de captação do real, de outro (LIMA,
1993, p. 146).
Apesar dessa interseção, vale frisar, literatura e
jornalismo continuam a ser campos diferentes no universo
textual. Para diferenciá-los, o vínculo com o real é a pedra de
toque. No segundo caso, o do jornalismo, esse vínculo é
obrigatório, mesmo quando se apresenta de uma forma menos
ostensiva ou até ofuscada pela função estética do texto.
Há um outro aspecto desse contraponto a ressaltar. A
literatura (sobretudo no caso da ficção histórica) utiliza com mais
autonomia o chamado jogo contrafactual da história. Ou seja,
contrapõe ao fato conhecido um outro, inventado pelo autor, que
só precisa fazer sentido no interior da obra. Imaginemos, por
exemplo, que um romancista escreve uma cena na qual Getúlio
Vargas se suicida não com um tiro no coração, mas com um
cálice de cicuta, como Sócrates. Sabemos que não foi assim,
mas não importa, trata-se de um romance.
Já o Jornalismo Literário não chegaria ao ponto de
transformar um fato tido como líquido e certo. Mas poderia, a
partir dele, agregar elementos não documentados, mas que
ninguém prova que não tenham estado presentes no episódio.
Digamos que, entre o momento em que Vargas redige a carta-
testamento e aquele em que afinal dispara contra o próprio peito,
o autor insira cenas em que o amargurado presidente olha a rua
pela janela do palácio, ou passa uma flanela na pistola, ou
aspira o perfume de um último charuto, ou hesita em escolher o
pijama com o qual depois será encontrado, morto. São detalhes
plausíveis. Não mudam o que se sabe sobre o episódio, mas
agregam elementos em seus “pontos cegos”. Podemos chamar
isso de jogo interfactual da história. Ou seja, enfia-se um
curinga na brecha entre duas cartas abertas, que são os fatos
comprovados. Tal procedimento é bastante usado no Jornalismo
46
Literário. Às vezes, realça tanto o brilho da reportagem, que ela
própria acaba por dar novas tintas à história oficial.
Nas livrarias não faltam textos, bons textos, que são
reportagens romanceadas por meio de um hábil jogo interfactual.
O público as aprecia. Com base em suas pesquisas sobre o que
vem sendo publicado nessa área ao longo das últimas décadas,
Edvaldo Lima estabelece as seguintes categorias para os livros-
reportagem: perfil, depoimento, retrato, ciência, ambiente,
história, nova consciência, instantâneo, atualidade, antologia,
denúncia, ensaio e viagem.
Outro componente do grupo da Estação da Luz que
merece ser citado é a jornalista e professora Denise Casatti. Ela
observa que o Jornalismo Literário tem certos pressupostos:
[...] a imersão do repórter na realidade; a precisão
de dados e observações; a busca do ser humano
por trás do que se deseja relatar; e a elaboração
de um texto que permita que a história venha à
tona por meio de uma voz autoral e de um estilo
(CASATTI, 2004).
E Fiorin, a seu lado, complementa:
O texto de reportagem narrativa tem como
característica fundamental conter os fatos
organizados dentro de uma relação de
anterioridade ou de posterioridade, mostrando
mudanças progressivas de estado nas pessoas ou
nas coisas (FIORIN, 2002, p. 44).
A décima segunda estação do nosso percurso é a
Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Aqui quem espera a vez de
entrar no trem é Felipe Pena, professor do curso de pós-
graduação em comunicação da Universidade Federal
Fluminense. Para ele, o Jornalismo Literário tem algumas
características fundamentais:
[...] potencializa os recursos do jornalismo;
ultrapassa os limites dos acontecimentos;
proporciona uma visão mais ampla da realidade;
47
exerce a cidadania; rompe correntes burocráticas;
evita os 'donos da verdade'; e garante perenidade
e profundidade aos relatos (PENA, 2005, p. 3).
Como podemos observar, todas essas definições
colhidas dos passageiros embarcados nas últimas estações têm
certa semelhança, na essência, mas não chegam a delinear com
precisão as fronteiras do Jornalismo Literário. Talvez porque, na
prática, elas sejam por demais permeáveis para serem
engolfadas nos parâmetros que estamos acostumados a ver, por
exemplo, no campo das ciências exatas. O Jornalismo Literário,
como o jazz, baseia-se mais no improviso do que num padrão
estrutural. Vale-se de modulações similares às que ocorrem na
música, embora obtidas com outros recursos.
Por isso, neste estudo, vamos buscar outra maneira de
definir o Jornalismo Literário. Tal definição será mais fluida, e
assim compatível com aquilo que essa forma de escrita de fato
é, na prática, e sobretudo com os três textos que analisamos nos
próximos capítulos. Para chegar a essa definição, lançamos aqui
a seguinte ideia: a arte é uma resposta a uma pergunta que
ainda não foi feita. E a ela agregamos outras duas. A primeira é
do escritor italiano Italo Calvino (1923-1985): “Um clássico é um
livro que nunca acaba de dizer aquilo que tem para dizer”. A
outra, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860): "Ter
talento é acertar no alvo em que ninguém acertou, e ser gênio é
acertar no alvo que ninguém viu”.
Não é difícil perceber que as três ideias acima expostas
têm relação com o que antes havia sido dito, em moldes mais
acadêmicos, a respeito do Jornalismo Literário. Delas partimos
para gerar uma outra, que vem a ser a definição que nos serve:
um texto de Jornalismo Literário é uma flecha que atinge um alvo
que ninguém viu, responde a uma pergunta que ninguém fez, e
nunca acaba de dizer o que tem para dizer.
Poderíamos até nos arriscar a dizer que o Jornalismo
Literário, a rigor, não existe, mas acontece. Exige uma recepção
48
mais qualificada. Só ganha substância quando encontra um leitor
que sabe saborear um texto. O Jornalismo Literário não existe
nem pode existir numa forma cristalizada como os mapas que
Colombo levava consigo na caravela, mas sim na flexibilidade de
Marco Polo em termos de tempo e espaço.
Agora que exploramos o cenário em que o Jornalismo
Literário se insere, voltamos a atenção a uma zona específica: a
Narrativa de Viagem. Como vimos, ela é uma das 13 categorias
de livros-reportagem propostas por Edvaldo Lima. Com base no
que expusemos até aqui, em termos conceituais, e no contato
com um conjunto diversificado de obras classificáveis na área de
Narrativa de Viagem (as que formam o corpus deste estudo e
outras com as quais interagem), podemos esboçar um elenco de
características para essa modalidade de escrita:
o ponto de partida da narrativa é um desequilíbrio no
“mundo comum”: o protagonista sente-se desconfortável no
ambiente onde vive, como um exilado em sua própria terra;
a obra inclui conteúdos autobiográficos;
a obra retrata uma experiência vivida em profundidade
(imersão), na qual o viajante se lança com a sensação de
queimar as pontes, ou seja, encerrar uma fase de sua vida;
o protagonista passa por uma transformação interior
ao longo do caminho (individuação);
o texto tem características de uma grande reportagem,
apesar de certo descompromisso geral com a função informativa;
o texto transmite conhecimento especializado em
determinada área, na voz do autor ou de um personagem;
a estratégia narrativa inclui o jogo interfactual, mas
não o contrafactual, que é mais próprio da ficção literária;
o texto tem elementos de romance de aventura;
o viajante se diferencia do turista por sustentar um
olhar despojado e inquisitivo sobre o que o cerca; convive de
forma criativa com a insegurança e a surpresa; deixa-se levar
49
pelo fluxo dos acontecimentos; e delicia-se com os pequenos
flagrantes da vida;
o texto dá menos relevância aos fatos em si do que a
seus efeitos sobre o observador; há uma prevalência da
subjetividade;
o autor propõe ao leitor uma nova maneira de digerir
ou interpretar as coisas que lhe expõe;
na sua jornada, o viajante tem como aliados a
disponibilidade e o acaso; consegue detectar lampejos da
eternidade naquilo que é transitório;
o autor reflete sobre a natureza e a velocidade do
deslocamento;
o autor tem acesso a esferas sociais com as quais não
está habituado a conviver no “mundo comum”;
o autor tem insights ao observar o ritmo em que as
coisas acontecem em cada lugar ou situação, e na sua narrativa
consegue transmitir ao leitor as diferentes dimensões do tempo
(geográfica, social e individual);
o autor parece se mover “nas entrelinhas” dos guias
turísticos, sem dar relevância a elementos conhecidos por
todos, os chamados “cartões postais”;
ao descortinar novos cenários, o texto evoca o ponto
de partida do protagonista, propiciando-lhe um olhar
retrospectivo e renovado sobre o “mundo comum”.
Com as ponderações feitas, bem como as ferramentas
de trabalho presenteadas por todos aqueles que embarcaram nas
doze estações do percurso, temos condições de olhar pelas
janelas do trem e examinar melhor o cenário externo. Lá estão
Tosches, Tabucchi e Terzani, à nossa espera. Em seus livros,
buscamos as respostas para a pergunta que constitui o cerne
deste trabalho de investigação. Apenas para recordar:
A Narrativa de Viagem constitui um gênero com
identidade própria ou é um simples derivado do relato factual?
50
III. TOSCHES: UMA PICADA DE COBRA
Antes de nos dedicarmos à análise do primeiro dos três
livros que formam o corpus deste trabalho, A última casa de
ópio, um pouco sobre o autor. O americano Nick Tosches nasceu
em 1949 em Newark, a maior cidade do Estado de Nova Jérsei.
Hoje com cerca de 300 mil habitantes, é conhecida por abrigar o
segundo maior aeroporto da região metropolitana de Nova York e
um distrito operário, Ironbund, que concentra portugueses,
brasileiros e latino-americanos em geral.
Aos 14 anos, Tosches trabalhou como porteiro no bar de
seu pai. Não foi uma experiência duradoura. Pouco depois
arrumou emprego no setor de criação de uma fábrica de
vestuário íntimo em Nova York. Mas aquilo também não era o
que ele sonhava fazer na vida. Assim, em janeiro de 1972, aos
23 anos, abandonou o duro inverno nova-iorquino e partiu rumo
ao sul, atraído pelo calor da Flórida. Ali experimentou diferentes
trabalhos, entre os quais o de caçador de cobras para o Miami
Serpentarium. Certa manhã, foi picado na canela. Era o
prenúncio de algo novo. Tosches pulou fora desse emprego e
resolveu atender à vocação de escritor.
Começou a escrever poesia e matérias para revistas
especializadas em rock como a Creem, que durante duas
décadas (1969-1989) marcou presença nesse segmento editorial.
O primeiro livro de Tosches, sobre música country, foi publicado
em 1977 e não teve grande repercussão. Já o segundo livro --
Hellfire (1982), sobre Jerry Lee Lewis – foi bem recebido pela
imprensa. A revista Rolling Stone chegou a considerá-lo a
melhor biografia de um músico de rock jamais escrita até então.
51
Com isso, Tosches descobriu um filão. Nos anos
seguintes dedicou-se a uma série de biografias de personagens
famosos como o cantor e comediante Dean Martin, o banqueiro
mafioso Michele Sindona, o boxeador Sonny Liston, o cantor
Emmet Miller e o homem de negócios Arnold Rothstein, que tinha
ligações com o crime organizado. Em 2006, a Conrad Editora
publicou no Brasil Criaturas flamejantes, um pequeno livro em
que Tosches relata o surgimento de um novo gênero musical nos
Estados Unidos, o rock-‘n’-roll, e apresenta suas primeiras
estrelas.
Grande parte das figuras biografadas por Tosches,
embora díspares, tem como traço comum uma vida pessoal
turbulenta ou alguma forma de inserção no submundo. Não são,
de modo algum, pessoas que a sociedade em geral consideraria
exemplares. O veneno da cobra parecia continuar a circular não
apenas nas veias do biógrafo, mas também nas dos seus
biografados.
O primeiro trabalho ficcional de Tosches, Cut numbers,
publicado em 1988, reafirmou seu interesse em trafegar pelas
zonas sombrias da sociedade. Depois vieram Trinities (1994) e
The hand of Dante (2002), este último considerado pelo autor
sua obra mais bem realizada. Em paralelo à produção ficcional,
Tosches mantinha sua atividade no campo da poesia, seja na
forma de livro (Chaldea, 1999), seja em colaborações ocasionais
para revistas como Open City, Esquire, Contents, GQ, Smokes
Like a Fish, Long Shot, entre outras. Ele também tem CDs
gravados em parceria com outros escritores e artistas.
A carreira jornalística de Tosches ganhava visibilidade
na medida em que seu nome adquiria relevância como biógrafo e
ficcionista. Isso acontecia não apenas nos meios literários
americanos, mas também fora do país. Primeiro, na Europa. Sua
obra começou por ser lançada na Itália e na Alemanha. Depois
Trinities foi traduzido para nove línguas, entre as quais o chinês,
52
e recebeu uma marcante versão em audiolivro na voz do ator
Jerry Orbach.
Em meados da década de 1990, Tosches deixou de ser
um jornalista circunscrito a publicações especializadas em
música, adquirindo prestígio na imprensa em geral. Assinava
matérias autorais em páginas de revistas prestigiosas como
Vanity Fair e Esquire. Seu livro Dino: living high in the dirty
business of dreams, publicado em 1992, rendeu-lhe no ano
seguinte o Italian-American Literary Achievement Award for
Distinction in Literature, prêmio que dividiu com Gay Talese, um
dos grandes nomes do Jornalismo Literário. Críticos mais
empolgados chegaram a prever que Hellfire, lançado uma década
antes, mais cedo ou mais tarde haveria de ser reconhecido como
um clássico da literatura não-ficcional americana.
Alguns situam o estilo de Tosches dentro de uma
vertente denominada jornalismo gonzo. A expressão identifica
uma forma narrativa na qual o autor abre mão da objetividade
para mergulhar intensamente na ação. Em geral, trata de
vivências pessoais em situações extremas ou transgressivas. A
palavra gonzo, originária de uma gíria irlandesa falada ao sul de
Boston, refere-se ao último homem a se manter de pé em uma
bebedeira generalizada.
O nome do americano Hunter S. Thompson é bastante
associado ao jornalismo gonzo. Um de seus textos mais citados
é Medo e delírio em Las Vegas (Fear and loathing in Las
Vegas), lançado no Brasil com o título alterado para Las Vegas
na cabeça. O ponto de partida de Thompson foi a encomenda
pela revista Rolling Stone de uma reportagem sobre uma corrida
no deserto. Porém, em vez de cobrir o evento, conforme o
combinado, ele ficou no hotel, promoveu badernas, arrumou
encrencas, gastou sua verba com álcool e drogas, contraiu
dívidas e escafedeu-se sem pagar a conta. No fim, apresentou
um relato alucinado da situação que, apesar de estar longe de
53
ser uma reportagem convencional, inaugurou um novo estilo
narrativo.
Na área acadêmica, há controvérsias sobre se essa
forma de escrita um pouco desvairada, da qual Thompson é tido
como o precursor, pode ser classificada como um modelo
jornalístico. Alguns a consideram por demais subjetiva, parcial,
descomprometida com os fatos reais, em suma, pouco digna de
crédito, o que iria de encontro aos preceitos fundamentais do
jornalismo. Por outro lado, não se pode negar que nela há
também elementos de composição ancorados na realidade
(inserção de tempos, lugares, personagens, eventos
reconhecíveis) que no fim das contas a respaldam como método
de reprodução do real, mesmo que não seja dos mais ortodoxos.
No que se refere à classificação de uma obra escrita,
não é boa ideia soltar as rédeas do nosso natural impulso
catalogador. Nesta época de expansão das mídias, todos os
formatos conversam entre si o tempo todo. O Jornalismo
Literário é, por princípio, um dos terrenos propícios à
experimentação.
Com seu pendor intertextual, o Jornalismo Literário não
tem pruridos em transcrever uma citação clássica ou um tratado
científico ao lado de um grafite ou uma pérola estilística de um
restaurante de beira de estrada. Desse modo, confere dignidade
a uma “linguagem de prontidão” e ao gesto de “cultivar formas
modestas”, ambos preconizados por Benjamin na década de
1930 no texto Posto de gasolina. Assim, pode-se cogitar que o
Jornalismo Literário realiza, em forma jazzística, não sinfônica, a
Weltliteratur idealizada por Goethe um século antes.
Um exemplo atual desse espírito cosmopolita, projetado
sobre um formato de texto tão flexível que chega a ser
inclassificável, é Os anéis de Saturno, livro de um outro alemão,
Winfred Georg Sebald (1944-2001). Ele não foi jornalista como
Tosches e Terzani, e tampouco ficcionista de ofício como
Tabucchi. Porém, com seu rigor de acadêmico, Sebald compôs
54
uma obra que em muitos pontos assume feições de reportagem
filosófica, indo muito além de um diário íntimo de suas insólitas
caminhadas pela costa leste da Inglaterra. Todos os livros de
Sebald têm como narrador um homem que se desloca sem parar
pelos mais imprevistos recantos da Europa, produzindo
formidáveis descrições de cenários e ambientes.
Multifacetado, cambiante, o Jornalismo Literário não é
uma empreitada reservada apenas a jornalistas. Talvez por isso
possa exibir tamanha capacidade de transcender as etiquetas. A
própria literatura, que opera em ciclos mais amplos, sempre foi
assim. Vítor Manuel de Aguiar e Silva refere-se à “canonização
dos chamados gêneros inferiores, que afluem da periferia ao
núcleo do sistema” (SILVA, 1988, p. 372). Esse processo é tão
perene quanto saudável, uma vez que dá visibilidade à ação de
autores talentosos que se dispõem a correr riscos, enquanto “os
medíocres se esforçam penosamente por obedecer aos preceitos
de cada um dos gêneros que cultivam” (Ibidem, p. 368).
Se temos em mente essas observações, pensamos duas
vezes antes de torcer o nariz para as extravagâncias do
jornalismo gonzo. Não é impossível que certos procedimentos
narrativos hoje vistos quase como simples molecagens, por sua
irreverência e falta de método, sejam na verdade as linhas de
força de um gênero destinado a revitalizar a musculatura
endurecida do jornalismo convencional.
Cem páginas de provocação
É nesse ambiente de incerteza conceitual, mas também
de renovado fascínio – os jovens têm uma queda especial pelo
jornalismo gonzo –, que surge A última casa de ópio. Tosches
escreveu esse texto provocativo para a Vanity Fair, publicação
da qual se tornou editor contribuinte. A versão original totalizava
cerca de 100 páginas, com 25 mil palavras. Muito extensa,
portanto, para uma revista. Ele precisou reduzi-la de modo
55
substancial para que pudesse ser publicada na edição de
setembro do ano 2000. Anos depois, numa entrevista, Tosches
admitiria que a redução do texto fora providencial, já que a
versão preliminar poderia lhe ter causado problemas. No formato
livro, A última casa de ópio foi publicado primeiro na França e
em seguida nos Estados Unidos, em 2002. A tradução brasileira
foi lançada em 2006.
O livro conta a jornada de um homem aparentemente
solitário, sem compromisso, que se sente entediado com a vida
que leva em Nova York. Então ele resolve partir para o extremo
oriente com um objetivo claro, mas difícil: descobrir se ainda
resta por lá alguma casa de ópio. Ele sabe, de antemão, devido
às suas pesquisas e ao que ouve de outras pessoas, que se trata
de algo que não existe mais no ocidente e, com grande
probabilidade, tampouco no oriente. Pertence a uma época que
acabou quando a vida cotidiana se tornou rápida demais. A partir
das primeiras décadas do século XX as pessoas já não tinham
mais tempo nem disposição para se dedicarem a um hábito feito
de devaneios introspectivos e silenciosa lassidão, sob o efeito
dessa droga.
Mas o protagonista não se conforma com essa
impossibilidade. Teima em achar que ainda deve haver uma casa
de ópio à moda antiga. Mais do que a droga em si, ele quer
experimentar a atmosfera rétro desse lugar. Pressente que o
clima decadente de uma casa de ópio guarda um resíduo de
elegância; é um relicário que tem algo a ver com ele próprio. O
nosso herói-anti-herói é um saudosista dos bons tempos em que
tudo tinha o seu ritual, os seus procedimentos, quando mesmo o
ato mundano de drogar-se envolvia certo savoir-faire que era
como uma moldura de respeitabilidade.
Após deixar Nova York, o protagonista reaparece -- o
texto não faz referência à sua forma de locomoção -- em três
outros lugares: Hong Kong, Camboja e Tailândia. Nessas
andanças, mantém contato com pessoas que têm fácil acesso a
56
uma zona de ilegalidade consentida onde drogas, armas e
prostituição se entrelaçam em lugares sombrios ou esfuziantes.
Nada disso, na verdade, parece interessá-lo. Ele se mantém
firme e concentrado em seu objetivo inicial de descobrir uma
casa de ópio, como quem se empenha numa caça ao tesouro ou
quer embarcar numa máquina do tempo. A figura do protagonista
é bizarra mesmo no submundo. Ninguém entende muito bem por
que esse americano que poderia ter tudo tão fácil, tão barato,
nessas cidades orientais, abre mão das facilidades pelo capricho
de buscar uma coisa que pertence a um outro tempo.
O texto, escrito em primeira pessoa, tem um foco narrativo
estável. O narrador é sempre o próprio autor. Este dado é
indiscutível, embora implícito, já que em nenhum momento a voz
que fala se declara como sendo a do Nick Tosches que assina a
obra. Por outro lado, nada consta em contrário. E a forma de
observar as coisas e os fatos é consonante com a de um
jornalista americano da atualidade, cosmopolita, libertário e
amoral, tal como nos é apresentada a figura pública do autor. O
tom do discurso contrasta com aquele que predomina no
jornalismo convencional, o qual reivindica uma suposta
neutralidade com base no artifício de omitir a fonte enunciativa.
Ao lermos o texto de Tosches, temos a certeza de que apenas
ele, e não outro, poderia ter visto as coisas daquele modo.
Em certos momentos, o narrador se permite fazer
revelações pessoais. Admite, por exemplo, que no passado já foi
um consumidor de drogas. Passou por todas, até chegar à
conclusão de que elas não valem a pena. E adverte: são
perigosas. No entanto, abre exceção para o ópio na sua forma
pura – pureza esta que diz respeito não apenas à substância
como também à circunstância. Ou seja, o ópio numa casa de
ópio.
Em outra passagem, o narrador nos revela que sofre de
diabetes. E justifica-se com o argumento de que a sua busca
pelo ópio deve-se ao fato de que a droga pode ser útil no
57
tratamento dessa doença, conforme havia apurado em suas
pesquisas sobre o assunto. Ou seja, sua empreitada não teria
apenas um caráter hedonista, mas também terapêutico.
Ao dizer isso, ele parece piscar o olho para o leitor. Não
sabemos até que ponto Tosches usa o respaldo científico como
álibi para sua procura por uma substância ilícita. Não é difícil
supor que, de outro modo, isso lhe poderia causar embaraços
junto às autoridades de seu país, quem sabe até inviabilizar a
publicação do livro. Com habilidade, ele sai pela tangente. Deixa
o leitor pensar aquilo que quiser: que o protagonista é um
homem empenhado numa empreitada corajosa (por causa dos
riscos externos) para obter a cura para uma disfunção
metabólica em seu organismo; ou que é um junkie que se vale do
pretexto terapêutico para legitimar a busca do prazer ou do
bálsamo para as dores da alma.
A narrativa de Tosches é marcada por um tom de
desencanto que às vezes se torna sarcástico. Ele não perde a
chance de investir contra os costumes e valores deste estado de
coisas atual a que chamamos globalização. Também os denuncia
como artifícios falsos e tolos.
A cena inicial da história, por exemplo, é ambientada
num restaurante de Manhattan pertencente a um amigo do
protagonista, e no qual ele próprio costuma almoçar e observar
os outros clientes. Nesse caso, trata-se de um grupo de yuppies
que se jactam de entender de vinhos. O narrador ridiculariza o
que eles dizem com toda a seriedade sobre o assunto, e ainda
os tacha de idiotas por pagarem caro por pratos banais, porém
envolvidos em uma aura de sofisticação que o dono do
restaurante, comerciante esperto, sabe bem como promover.
As primeiras frases de A última casa de ópio são
instigantes em sua aparente simplicidade:
You see, I needed to go to hell. I was, you might
say, homesick. But first, by way of explanation,
the onion (TOSCHES, 2002, p. 1).
58
Na tradução para o português:
Veja bem, eu precisava ir pro inferno. Eu estava,
pode-se dizer, com saudade de casa. Mas antes, à
guisa de explicação, a cebola (TOSCHES, 2006, p.
9)
Em termos de engenharia narrativa, essas frases nada
ficam a dever a aberturas marcantes da literatura ficcional como
a de A metamorfose de Franz Kafka ou a de Cem anos de
solidão de Gabriel García Márquez. Em todas elas, uma
enganosa simplicidade na escrita captura o leitor ao prometer-
lhe uma explicação futura para algo apenas esboçado. Isso
revela intimidade com a arte romanesca. No caso de Tosches, a
abertura funciona bem como isca para não poucos leitores
embevecidos, como se pode verificar em muitos comentários
postados em sites sobre livros.
É importante ressaltar que o impacto causado pela
narrativa de Tosches é intensificado pelo momento em que ela
se coloca diante dos olhos dos leitores. Em setembro do ano
2000, o mundo ainda vivia a ressaca do “bug do milênio”, que
acabou por não acontecer. Especulações esdrúxulas toldavam a
mídia mundial. Isso tinha implicações no comportamento das
pessoas. Muitas delas, aliás, achavam que a verdadeira
transição ainda estava por vir e teria lugar na passagem para
2001.
Em 2000, os Estados Unidos – e Nova York em
particular, como epicentro cultural do império – atravessavam um
momento de exaustão de valores tão bem sintetizada na palavra
inglesa nothinglessness, ou seja, uma profusão do vazio, uma
sensação de esgotamento. Quando a Vanity Fair publicou o texto
de Tosches em forma de reportagem, as torres gêmeas do World
Trade Center ainda não tinham sido reduzidas a pó pelos
terroristas. Não havia, portanto, um grande fato social para
59
funcionar como agente aglutinador das pessoas. O que havia
eram anseios dispersos.
O pano de fundo psicossocial é importante para se
compreender a gênese de A última casa de ópio. Esta
empreitada niilista e devocional, a um só tempo, apenas poderia
se consumar o mais longe possível dessa Nova York fim-de-
século. O ponto de partida de Tosches, como já foi dito, é
justamente a Manhattan pseudointelectual onde alguns
endinheirados, diante da falta de assuntos relevantes, dedicam-
se a elucubrar sobre vinhos e pagam fortunas por uma meia
cebola. A segurança dessa gente jamais havia sido testada como
o seria em 11 de setembro de 2001, com o ataque islâmico à
meca do capitalismo.
Tosches dá a entender que uma casa de ópio é algo, por
assim dizer, anticapitalista. Primeiro, explica ele, a droga
consumida in natura não propicia aos traficantes os mesmos
lucros dos seus derivados, como a heroína e a morfina,
substâncias que o autor condena. Depois, porque o efeito
narcótico do ópio projeta o usuário para fora do sistema de
consumo ou, digamos, para fora do planeta Manhattan, onde
tudo, a começar pela cebola, no entender de Tosches, não passa
de uma grande impostura. Por isso, por funcionar como um freio
no carrossel, o ópio não tem vez no mundo contemporâneo, onde
impera a alucinação massiva.
Um café para homens ocos
A sociedade consumista ocidental, para Tosches, é
responsável pela sensação de nothinglessness. Numa entrevista,
ele declara: “Perdemos o maior prazer de todos, que é o prazer
de sermos nós mesmos. O amor pelo dinheiro, tornar-se um rato
numa cultura guiada pelo consumo destes tempos, tudo isso faz
de nós fraudes. Quando passamos a maior parte de nossas
horas acordadas no trabalho, fingindo que gostamos dele,
60
fingindo que gostamos de nosso chefe, fingindo que estamos
interessados no nosso trabalho, o fingimento torna-se um estilo
de vida. Aí nos tornamos aquilo que T.S. Eliot chamava de
homens ocos”. E era assim que ele próprio se sentia, em Nova
York, na época em que se lançou ao projeto de A última casa de
ópio: “Eu estava enojado dos rumos deste mundo quando
escrevi esse livro. Foi como um ingresso para a liberdade. Eu o
escrevi para mim. Foi uma chave que forjei para sair daqui e
respirar livre mais uma vez”.
Duas décadas antes, num Brasil que ainda patinava para
sair da ditadura, Marisa Lajolo reportava algo semelhante:
A violência do hoje roubou o direito ao sonho que,
aliás, acabou. A posteridade tornou-se o amanhã
de manhã, e o pedir um café pra nós dois o único
projeto talvez possível (LAJOLO, 1982, p. 94).
Mas Tosches não se conforma com esse esgotamento
existencial. Por isso, ele deixa Nova York. O leitmotiv de sua
aventura, como de seu texto, é a tese de que o ópio constitui
uma substância sagrada. Na prática, ela só existe como
lembrança, como referência. Quando sai à caça do impossível, o
herói se transfigura num Quixote solitário. Nem mesmo pode
contar com os préstimos de um Sancho Pança. Não haverá
testemunha para o seu delírio quando ele, se porventura
conseguir chegar a essa última casa de ópio, inalar a fumaça
que fará os ameaçadores gigantes do capitalismo se
transformarem em pacatos moinhos. E Tosches é também um
Sherlock alternativo. Vive da ausência de um Watson para
compartilhar suas investigações e da nostalgia de um cachimbo
para estimular suas ideias.
O livro joga com uma ideia consolidada em nossas
expectativas românticas: a busca por algo impossível ou quase
impossível. A casa de ópio representa, ao mesmo tempo, o vício
e a pureza. Esta ambiguidade a coloca em sintonia com o
61
relativismo triunfante nos alvores do século XXI. A
nothinglessness não se resume a Manhattan. É coisa
globalizada.
Para chegar à sua meta, o herói precisa medir forças
com um inimigo poderoso, o capitalismo. Mas logo constata que
para salvar-se não basta abandonar os Estados Unidos. Quando
se põe em marcha, ele verifica que o american way of life
encontra-se disseminado nas ruas e ruelas das mais obscuras
cidades do oriente. Mesmo assim, não se entrega. Persiste,
sozinho, contra tudo e contra todos. E eis aí outro ingrediente
literário de grande eficácia. Mesmo que o leitor tenha suas
restrições à figura marginal, iconoclasta e individualista de
Tosches, acaba por se identificar, de alguma maneira, com a
sina do herói-anti-herói em sua missão de resgatar – por linhas
tortas – a pureza perdida.
A última casa de ópio é uma Narrativa de Viagem
romanceada, um roteiro existencial que combina jornalismo
investigativo, crítica social e pesquisa histórica. No primeiro
desses componentes, Tosches faz jus à etiqueta gonzo que
alguns lhe atribuem. Apresenta uma visão dos fatos que pode ser
tudo, menos objetiva e imparcial. Ao contrário, é digressivo e
adota um ponto de vista que nada tem a ver com o senso
comum. Mais que isso, chega a desdenhá-lo, por vezes.
Na crítica social, Tosches é implacável:
Ours, increasingly, is the age of pseudo-
connoisseurship, the means by which we seek
fatuously to distinguish ourselves from the main of
mediocrity. […] For if there is the delicate hint of
anything to be sensed in any wine, it is likely that
of pesticide and manure (TOSCHES, 2002, p. 4).
Na tradução para o português:
A nossa era é, cada vez mais, a era do
pseudoconhecimento, o modo pelo qual tentamos
tolamente nos diferenciar da maioria medíocre.
[...] Porque, se há algum toque delicado a ser
62
percebido em qualquer vinho, é provável que seja
o de pesticida e esterco (TOSCHES, 2006, p. 13).
Eis aí a face dionisíaca de Tosches, poderíamos dizer,
não fosse o desprezo que demonstra pelo vinho, chegando a
qualificá-lo como “ranced grape juice” (“suco de uva azedo”).
Porém, no que diz respeito à pesquisa histórica, Tosches se
revela minucioso e disciplinado. Vale-se de toda a sua
experiência de biógrafo para dar um trato de precisão e
verossimilhança ao processar a informação.
Both as medicine and as holy panacea, opium is
older than any known god. Its origins lie in the
prehistoric mists of the early Neolithic period. It
was glorified in Mesopotamia and in Egypt,
emerged in the Mediterranean region with the
primal Great Mother, and remained tied to her, in
her evolving guises, through the archaic and
classical periods. As attested by Homer, it was a
Theophanous substance to the Greeks, who gave
the wondrous poppy-sap its name όπιον, Latinized
as opium. The Doric word for the opium poppy,
μάκων, which to the classical Greeks became
μήκωνmekón – gave the opium-rich town of
Kyllene its olden name of Mekone, or Poppytown.
There, in a sanctuary of Aphrodite, a gold-and-
ivory image of the goddess later stood, an apple in
one hand, a poppy in the other (TOSCHES, 2002,
p. 9).
Na tradução para o português:
Seja como remédio ou como panacéia sagrada, o
ópio é mais antigo do que qualquer deus
conhecido. Suas origens remontam às brumas pré-
históricas do início do Período Neolítico. Ele era
glorificado na Mesopotâmia e no Egito, emergiu na
região mediterrânea com a Grande Mãe primal e
permaneceu ligado a ela, em seus aspectos
evolutivos, através dos períodos arcaico e
clássico. Como Homero atesta, era uma
substância teofânica para os gregos, que deram à
maravilhosa seiva da papoula seu nome, όπιον,
latinizado como opium. O termo dórico para a
papoula do ópio, μάκων, que para os gregos
clássicos tornou-se μήκων – mekón – deu à cidade
de Kyllene, rica em ópio, seu nome arcaico:
Mekone, ou Cidade das Papoulas. Ali, em um
63
santuário de Afrodite, uma imagem da deusa em
ouro e marfim foi colocada mais tarde, com uma
maçã em uma mão e uma papoula na outra
(TOSCHES, 2006, p. 19).
Essas duas faces de Tosches, dionisíaca e apolínea,
conferem uma marca pessoal ao texto. E, se precisamos mesmo
de alguma etiqueta, será necessário reconhecer que estamos
diante de uma forma mais elaborada de jornalismo gonzo. Na
hora de compor o texto, Tosches usa e abusa de formas
coloquiais, mas não se deixa enquadrar num estilo apressado,
como poderia sugerir sua temática on the road.
Ele segue um movimento pendular. Em um dos polos,
está sua imersão em ambientes suspeitos, às vezes sórdidos, e
quase sempre frenéticos, dessas cidades orientais que querem a
todo custo se parecer com as ocidentais. Ali, Tosches continua
sendo um peixe fora d’água. No outro polo, ele reverencia uma
forma de conhecimento erudito ou sagrado. Essa oscilação
constante lhe dá certo respaldo quando investe não apenas
contra os artigos de consumo imediato (o “suco de uva azedo”),
mas de maneira geral contra os valores e recursos da sociedade
moderna, inclusive no campo da saúde. Este comentário é
ilustrativo:
[…] All the pills and all the whoredom of
psychotherapy in the world are nothing compared
with the ancient Coptic words of the Gospel of
Thomas: ‘If you bring forth what is within you,
what you bring forth will save you. If you do not
bring forth what is within you, what you do not
bring forth will destroy you’. It is simple and
unsolvable as that. Forget about the interplay of
opium and serotonin. Its interplay with the wisdom
of the Gospel of Thomas is the thing. Its vapors
are of that thing within (TOSCHES, 2002, p. 52).
Na tradução para o português:
[...] Todos os comprimidos e toda a prostituição da
psicoterapia do mundo não são nada comparados
com as ancestrais palavras coptas do Evangelho
de Tomé: “Se trazes à tona o que está dentro de
64
ti, o que trazes à tona te salva. Se não trazes à
tona o que está dentro de ti, o que não trazes à
tona te destrói”. É simples e indecifrável assim.
Esqueça a interação do ópio com a serotonina. O
que vale é a interação dele com a sabedoria do
Evangelho de Tomé. Seus vapores pertencem ao
que você tem dentro (TOSCHES, 2006, p. 67).
Vale ressaltar que a lição existencial atribuída a Jesus
Cristo consta de um evangelho apócrifo, ou seja, não
reconhecido pelas autoridades religiosas. Eis aí o Tosches
profano. Mesmo quando se ampara na palavra divina, ele se
mantém em sua posição de outsider, como alguém dá valor à
sabedoria mas não às instituições; ao profeta mas não aos seus
discípulos; ao ópio mas não aos seus derivados; e assim por
diante.
Existencialismo gonzo
Com cenho franzido, cigarro aceso e volumosos lábios
emoldurados por sulcos verticais no rosto, como entre
parênteses, a fisionomia de Tosches evoca o ar blasé de alguns
escritores existencialistas de meados do século passado. É
difícil saber até onde aquela picada de cobra que levou na
Flórida, quando jovem, terá colaborado na atitude viperina que
ele cultiva, em seus textos, em relação ao establishment e aos
valores burgueses de maneira geral.
Mas dá para se desconfiar de que aí há algo mais que a
mera coincidência. A frequência com que ele se refere a cobras,
no texto de A última casa de ópio, é um detalhe que não deixa
de chamar a atenção do leitor atento. Isso acontece em
diferentes situações, de forma direta ou metafórica. Ao
descrever certa região próxima ao Rio Mekong, encravada entre
a Tailândia, o Laos e Mianmar, Tosches escreve:
The Golden Triangle, in its extended sense,
encompasses more than 86,000 square miles of
territory, the poppy-growing heart of Asia, and the
65
heart, too, of the entwined violent serpents of
tribal insurrections and the drug trade (TOSCHES,
2002, p. 57).
Na tradução para o português:
O Triângulo Dourado, em sua versão estendida,
abrange mais de 223 mil km
2
de território, o
coração do cultivo da papoula na Ásia, e o
coração, também, das violentas serpentes
entrelaçadas das insurreições tribais e do tráfico
de drogas (TOSCHES, 2006, p. 73).
De certa localidade específica, cujo nome é omitido no
texto, Tosches faz a seguinte descrição:
It is a city of many snakes. The night is diffused
only by the dim soft glowings of the colored
lantern lights. From the corner of my eye, I see a
huge slithering creature moving nearby: a python
of great and frightening girth. But its upraised
eyes behold my own, and its eyes are human: a
beggar with no limbs writhing sinuously among the
tables on the dark cool earth. His human eyes turn
cold, like those of a naga (TOSCHES, 2002, p.
70).
Na tradução para o português:
É uma cidade de muitas cobras. A noite é
abrandada apenas pelo brilho suave das lanternas
coloridas. Com o canto do olho, vejo uma enorme
criatura rastejando perto de mim: uma píton de
espessura assustadora. Mas seus olhos se erguem
e fitam os meus, e são olhos humanos: é um
mendigo sem membros retorcendo-se
sinuosamente por entre as mesas, sobre a terra
escura e fria. Seu olhar humano fica gélido como
o de uma naja (TOSCHES, 2006, p. 87).
E em suas andanças pela noite de Hong Kong, Tosches
depara com um sujeito que busca um remédio insólito para sua
artrite. É a oportunidade para o narrador brindar o leitor com
uma das mais expressivas passagens do texto. O poeta e o
repórter fazem dueto nas frases que seguem:
66
Succulence and death. Cabbage, pig tripe, and
white radish. Cobra soup – the more venomous the
serpent, the more potent the tonic; gelatinous and
steaming and delicious beyond description –
garnished with petals of snow-white
chrysanthemum. Later, amid the crowded stalls of
the night market, we watch as an elderly Chinese
man hands over a small fortune in cash to another
elderly man, a snake seller much esteemed for the
rarity and richness of poison of his stock. The
snake man pockets the money, narrows his eyes,
and with studied suddenness withdraws a long,
writhing serpent from a cage of bamboo. Holding it
high, his grasp directly below its inflated venom
glands, its mouth open, its fangs extended, he
slashes it with a razor-sharp knife from gullet to
midsection, the movement of the blade in his hand
following with precise rapidity the velocity of the
creature’s powerful whiplashings, which send its
gushing blood splattering wildly. Laying down the
blade, the snake man reaches his blood-drenched
hand with medical exactitude into the open
serpent, withdraws its still-living bladder, drops it
into the eager hands of his customer, who, with
gore dripping from between his fingers onto his
shirt, raises the pulsing bloody organ to his open
mouth, gulps it down, and wipes and licks away
the blood that runs down his chin (TOSCHES,
2002, p. 26-27).
Na tradução para o português:
Suculência e morte. Repolho, tripa de porco e
rabanete. Sopa de cobra – quanto mais venenosa
a serpente, mais potente o tônico; gelatinosa e
fumegante e indescritivelmente deliciosa –
guarnecida com pétalas de crisântemos brancos
como a neve. Mais tarde, em meio às barracas
lotadas do mercado noturno, assistimos a um
velho chinês entregando uma pequena fortuna em
dinheiro vivo a outro senhor, um vendedor de
serpentes muito estimado pela raridade e riqueza
das peçonhas em seu estoque. O vendedor guarda
o dinheiro, semicerra os olhos e, com um
movimento abrupto e estudado, retira de uma
gaiola de bambu uma serpente comprida, que se
contorce por inteiro. Ele a segura no alto, fazendo
pressão diretamente abaixo de suas inchadas
glândulas de veneno, sua boca aberta, suas
presas estendidas. Então, a abre, com uma faca
afiadíssima, da garganta até o meio do corpo,
acompanhando, com movimentos precisos e
velozes da lâmina em sua mão, o potente
chicotear da criatura, que faz seu sangue jorrar
67
em todas as direções. Deixando a lâmina de lado,
o vendedor enfia com precisão cirúrgica sua mão
ensangüentada na serpente aberta, retira sua
bexiga ainda viva e a passa às mãos ansiosas do
seu cliente, o qual, com entranhas pingando por
entre os dedos até sua camisa, leva o órgão
sangrento e pulsante até sua boca aberta e o
engole, limpando e lambendo o sangue que
escorre por seu queixo (TOSCHES, 2006, p. 39-
40).
Quando ressalta o fato de que o milenar hábito de fumar
ópio declinou no momento em que a produção da droga
aumentava de forma vertiginosa, com vistas à fabricação de
heroína, Tosches evoca um elemento mitológico. “Its end was an
ouroboros” (2002, p. 20), isto é, “Seu fim foi um uróboro” (2006,
p. 31), é uma comparação em que se refere à serpente que
devora a própria cauda.
Do ponto de vista simbólico, a configuração circular do
uróboro sugere as ideias de movimento, continuidade e
autofecundação. Indica um ciclo evolutivo, a possibilidade de
superar o plano da animalidade para atingir uma existência mais
elevada, talvez um estágio espiritual. Ou seja, por trás do
aspecto perigoso ou repulsivo da serpente, haveria coisas
misteriosas, talvez benéficas, porém disponíveis apenas para
aqueles que não se deixam levar pelas aparências ou pelo lugar-
comum. A bexiga recôndita e pulsante da serpente que precisa
ser extraída com perícia para servir de remédio ao senhor
artrítico, de algum modo, antecipa a casa de ópio que o narrador
quer encontrar a qualquer custo. Ele almeja curar a sua doença,
talvez, mas sobretudo dar vazão ao seu desconsolo pela
banalidade do mundo.
Na função simbólica subjacente à prosa reside um dos
atrativos do livro. O outro é o efeito poético do claro-escuro. O
protagonista ostenta uma ambiguidade tão bem dosada, que um
leitor maniqueísta nunca saberia dizer se está diante do bandido
ou do herói. Do mesmo modo como, no início do livro, o herói se
apresenta como um enfant terrible num restaurante chique de
68
Nova York, mais tarde, nos becos infectos da Indochina, ele se
move como um aristocrata do submundo.
Também lá se sente tão deslocado quanto estava antes.
O tédio de Manhattan, a nothinglessness, não podem ser
compensados pela voracidade dos produtores de droga do
Triângulo Dourado. O que Tosches busca é a timelessness
(atemporalidade) propiciada pelo efeito do ópio, algo que já não
tem cabimento no mundo moderno. Mas o protagonista da
história, em seu sonho solitário, desconfia que o uróboro nunca
conseguirá devorar a si próprio. Põe em xeque, portanto, uma
verdade estabelecida. Nessa ousadia residem sua força e sua
fraqueza.
Para melhor situarmos o solitário e obstinado
protagonista de A última casa de ópio, vale a pena levarmos em
consideração a singular teoria dos modos ficcionais elaborada
pelo crítico literário canadense Herman Northrop Frye em
meados do século passado. Baseando-se nos estudos
aristotélicos, ele estabelece cinco categorias que correspondem,
em uma narrativa, à maior ou menor capacidade do herói de
interagir com os outros personagens e as circunstâncias que o
cercam. No caso da obra de Tosches aqui analisada, temos o
quarto tópico da escala, o modo mimético inferior, próprio das
histórias realistas. Ou seja, o herói está no mesmo plano dos
outros homens; nada tem de fantástico nem de trapalhão; dá ao
leitor aquela cativante impressão de que “eu bem que poderia
estar no lugar dele”.
O fato de Tosches andar em busca de ópio é, no fim das
contas, de importância secundária, para não dizer irrelevante.
Podia ser um café especial, um perfume raro.
69
Gangorra de linguagens
Agora que já adquirimos alguma familiaridade com a
figura de Tosches, e com certos elementos de composição do
texto de A última casa de ópio, temos condições propícias para
buscar dentro dele os já mencionados fatores de fabulação. Esta
etapa é essencial para o propósito deste estudo. Ela nos
permitirá avaliar de que modo, neste caso, o Jornalismo Literário
penetra nos domínios da ficção.
Um dos recursos de Tosches neste livro é a alternância
de trechos em que predominam ora uma linguagem subjetiva e
poética, ora o usual estilo jornalístico crivado de dados precisos
e verificáveis. Nessa gangorra, o leitor é como que levado de
roldão. Um polo dá respaldo ao outro. Isso confere ao texto um
forte poder de persuasão e por vezes até de encantamento.
Vejamos o efeito que nos causam os dois parágrafos seguintes.
I stand while toward midnight under the big
whorish neon lips outside the Red Lips Bar on
Peking Road. It is like standing in church light,
filtered softly through dark stained glass: a
comforting, a respite, a connection with old ways,
old values, and sleaze gone by.
In a music shop, I buy a couple of CDs by one of
the most revered of Hong Kong’s elder
entertainers, the singer of Cantonese opera who
was known as Sun Ma Sze Tsang, among other
stage names, and whose real name was Tang
Wing Cheung. He was born in Guangdong Province
in 1916, and he died in Hong Kong in 1997, a few
months before the return to Chinese rule. Half a
century ago and more, licenses to smoke opium
were issued to certain inveterate smokers of
means and standing. I do not by CDs because I
like Cantonese opera or the singer known as Sun
Ma Sze Tsang. I buy them because he is said to
have been the last of the licensed opium smokers.
With his death, at age of eight-one, on April 21,
1997, the legal smoking of opium, long unique
unto him, came to its end (TOSCHES, 2002, p. 29-
30).
Na tradução para o português:
70
Estou em pé, perto da meia-noite, sob os grandes
lábios de prostituta de néon na entrada do Red
Lips Bar, na Peking Road. É como estar sob a luz
de um templo, filtrada suavemente por vitrais
escurecidos: um conforto, um alívio, uma ligação
com hábitos antigos, valores antigos, e
devassidão extinta.
Numa loja de discos, compro alguns CDs de um
dos mais respeitados artistas veteranos de Hong
Kong, o cantor de ópera cantonesa conhecido
como Sun Ma Sze Tsang, entre outros nomes
artísticos, e cujo verdadeiro nome era Tang Wing
Cheung. Ele nasceu na província de Guangdong
em 1916, e morreu em Hong Kong em 1997,
alguns meses antes da volta ao domínio chinês.
Há mais de meio século, permissões para fumar
ópio foram concedidas a certos usuários
inveterados de posses e renome. Não comprei os
CDs porque gosto de ópera cantonesa ou do
cantor conhecido como Sun Ma Sze Tsang.
Comprei porque dizem que ele era o último dos
fumantes de ópio autorizados. Com sua morte, aos
81 anos, em 21 de abril de 1997, o consumo legal
de ópio, há muito tempo prerrogativa única de
Tsang, chegou ao fim (TOSCHES, 2006, p. 43-44).
Como podemos observar, os dois parágrafos transcritos
contêm teores diversos. O primeiro, em que o autor equipara a
luminosidade do bas-fond a um ambiente sacro, talvez não
agrade a certos leitores por seu tom provocativo. No segundo,
predomina aquela linguagem assertiva, supostamente neutra, em
que as pessoas costumam depositar sua confiança. Essa
“gangorra semântica”, nas mãos de Tosches, constitui um fator
de fabulação eficaz.
Também nos chamam a atenção os detalhes biográficos
de Sun Ma Sze Tsang, uma figura sem grande importância na
narrativa e mencionada por tratar-se do mais notório entre os
fumadores de ópio autorizados. Em contrapartida, Tosches nos
fala muito pouco sobre os personagens com os quais convive em
seu périplo oriental. Às vezes sequer cita seus nomes. Fala em
“meu amigo”, “meu companheiro”, “um conhecido nativo”, “um
senhor mais avançado em anos e em dignidade que eu” (“a
gentleman more advanced in years and in dignity than myself”), e
71
assim por diante, deixando sempre seus vultos à contraluz nos
cenários penumbrosos por onde se move. Isso em parte se
explica pela necessidade de resguardar a identidade das fontes,
como é comum no jornalismo investigativo. Mas há também um
efeito estético nesse procedimento.
A certa altura, Tosches faz uma referência bem-
humorada a Graham Greene. Como que toma emprestado do
autor inglês, em determinada passagem de A última casa de
ópio, o estilo enigmático de introduzir um personagem na
história.
[…] I have never read a Graham Greene tale in my
life, but suddenly I find I have entered a passage
from one. ‘Did they tell you in Bangkok that I was
looking forward to meeting you?’ They? Who were
they? I look up at a well-dressed, pleasant-
seeming man whose English is so blithely
enunciated that one never would think that it is to
him the second of several languages (TOSCHES,
2002, p. 58-59).
Na tradução para o português:
[...] Nunca li um conto de Graham Greene na vida,
mas de repente descubro que entrei num trecho de
um deles. ‘Eles avisaram, em Bangcoc, que eu
queria conhecer o senhor?’ Eles? Eles quem?
Levanto a cabeça e vejo um homem bem-vestido e
agradável, cujo inglês é falado com tanta
naturalidade que jamais alguém desconfiaria que
é, para ele, a segunda de várias línguas
(TOSCHES, 2006, pp. 74-75).
O mesmo tom vago na apresentação dos personagens se
verifica na forma como o autor se refere aos seus deslocamentos
pelos países visitados.
By land, by water, by plane. Across this river,
through that jungle, each town dustier than the
last (TOSCHES, 2002, p. 41).
Na tradução para o português:
72
Por terra, pela água, de avião. Além daquele rio,
através daquela selva, cada cidade mais poeirenta
que a anterior (TOSCHES, 2006, p. 56).
Ele surge aqui e acolá, tal como o protagonista em
terceira pessoa do fragmentário Marinheiro de primeira viagem
de Osman Lins. Um personagem que não se preocupa nem um
pouco em deixar rastro de seus passos para que o leitor possa
segui-lo.
Somewhere in Indochina, in a crumbling city
whose streets have no names, I walk out into the
noonday heat and dust, unfold the hand-drawn
street map, and gather my bearings (TOSCHES,
2002, p. 68).
Na tradução para o português:
Em algum lugar da Indochina, numa cidade em
ruínas cujas ruas não têm nome, saio, sob o calor
e a poeira do meio-dia, e desdobro o mapa
desenhado a mão (TOSCHES, 2006, p. 86).
Como se pode ver nessas e em outras passagens, o
descompromisso com a função informativa, em favor da função
estética, muitas vezes faz A última casa de ópio avançar nos
domínios da literatura ficcional.
Outro fator de fabulação importante, nessa obra, é sua
similitude estrutural com a narrativa de aventura, cujo padrão é
introjetado e reforçado no horizonte de expectativas do leitor
pelos mais diversos gêneros, das lendas infantis às histórias em
quadrinhos. A saber: o herói sai de sua zona de conforto (o
“mundo comum”) para buscar algo importante em caminhos
perigosos (o “mundo especial”). Ele precisa confiar em
desconhecidos que podem estar dispostos a ajudá-lo ou a levá-lo
em direção ao abismo. É o que acontece com o protagonista de
Tosches, nesse livro. O autor controla bem a gradação dramática
da história. Semeia obstáculos progressivos, como convém, mas
toma o cuidado de deixar sempre uma fresta de esperança. O
73
leitor não tem dúvidas de que o objetivo final será alcançado, o
que de fato acontece.
Entretanto, a casa de ópio a que o protagonista chega,
ao final de sua aventura, nada tem do ambiente glamoroso que
imagina ao início da jornada, nem em sua forma decadente, já no
fim da linha, e muito menos na forma sofisticada de outrora. É,
quando muito, um simulacro daquilo que ele lera nos livros.
As I lie there, looking about, I recall my old
romantic visions of the opium den where I was
born to lie: the dark brocade curtains and velvet
cushions of luxurious decadence, the lovely
loosened limbs of recumbent exotic concubines.
Well, Chiang’s old lady may have loose limbs, but
those are the only adjective and the only noun of
my visions that here pertain. The place really is a
dive (TOSCHES, 2002, p. 73).
Na tradução para o português:
Deitado ali, olhando ao meu redor, me lembro das
antigas visões românticas da casa de ópio onde
nasci para me deitar: as cortinas de brocado e
almofadas de veludo da luxuosa decadência, os
membros adoráveis de relaxadas concubinas
exóticas à mostra. Bem, a esposa velha de Chiang
pode ter membros à mostra, mas esses são os
únicos termos das minhas visões que se aplicam
aqui. O lugar é realmente uma pocilga
(TOSCHES,
2006, p. 91).
No entanto, esse Quixote do início do século XXI,
consciente de que nunca verá um gigante no lugar de um
moinho, está feliz mesmo assim. Não é, em absoluto, uma vitória
de Pirro. Aquela tosca casa de ópio sugere que, para o
verdadeiro viajante, o ponto de chegada importa menos que o
caminho percorrido. É a confirmação do velho lema dos sábios
taoistas, dos americanos da geração on the road, e dos não
poucos escritores itinerantes que assinariam embaixo da já
referida frase de Stevenson, quando declarou que não viajava
para ir a algum lugar, mas simplesmente para ir. Se bem que, no
caso de Tosches, encasquetado com o ópio, vale lembrar
74
também as palavras de Goethe: “Nem todos os caminhos são
para todos os caminhantes”.
O caminho escolhido por Tosches para buscar o seu
profano graal é determinado, como já vimos, por uma aversão ao
establishment e ao modo de vida americano. Sua prosa está de
tal modo impregnada por esse sentimento que chega a constituir,
por si só, um fator de fabulação. Em certos momentos do livro,
esses países orientais parecem mais americanizados do que
Manhattan. Não temos dúvidas de que aí deve haver um exagero
por conta do olhar seletivo do autor.
After days and nights in Chinatown, days and
nights of wandering and searching pleasure
palaces and hellholes of Bangkok, I begin to see
that the true presiding god of this place is Colonel
Sanders. Images of the Colonel are everywhere;
franchises abound, many of their entrances graced
with life-size white plaster statues of the Giver of
Fowl. More than two hundred Kentucky Fried
Chiken franchises in Thailand, not a single opium
den. Somebody tells me that I should not leave
Bangkok without trying the really special coffee at
this really cool new place called Starbucks
(TOSCHES, 2002, p. 40-41).
Na tradução para o português:
Depois de dias e noites no bairro chinês, dias e
noites vagando e procurando em palácios do
prazer e pocilgas infernais de Bangcoc, começo a
ver que o verdadeiro deus em exercício nesta
região é o Coronel Sanders. Imagens do Coronel
estão em toda parte; as franquias abundam,
muitas delas com entradas adornadas por estátuas
brancas, em tamanho natural, do Senhor dos
Frangos. Mais de 200 franquias do Kentucky Fried
Chicken na Tailândia, e nem uma só casa de ópio.
Alguém diz que não devo ir embora de Bangcoc
sem experimentar o café tão especial que é
servido num lugar novo e muito bonito chamado
Starbucks (TOSCHES, 2006, p. 55).
Em todo o texto, Tosches destila o seu desprezo por
quaisquer indícios de globalização, como se fossem
reverberações da meia cebola com caviar vendida a 25 dólares
75
no restaurante de Nova York. Aquele episódio representou para
ele não apenas a prova cabal do declínio do capitalismo, mas
sobretudo a gota d’água que o faria pôr o pé na estrada. Além, é
claro, da picada de cobra na Flórida.
76
IV. TABUCCHI: A TRAIÇÃO SUTIL
Traduzido para três dezenas de idiomas, Antonio
Tabucchi ainda é considerado um autor cult em diversos países,
entre eles o Brasil. Vários de seus livros foram lançados aqui,
como Anjo negro, Noturno indiano, Sonho de sonhos, Os três
últimos dias de Fernando Pessoa, A cabeça perdida de
Damasceno Monteiro e Afirma Pereira. Este último, de 1994, é o
mais conhecido. Ganhou prêmios literários e, em 1996, deu
origem a uma versão cinematográfica dirigida por Roberto
Faenza e estrelada por Marcello Mastroianni. Apesar de boa
parte da obra de Tabucchi estar disponível ao leitor brasileiro, o
autor italiano ainda não desfruta de um reconhecimento amplo
nas imediações do Trópico de Capricórnio.
Portugal não corrobora esse descuido. Explica-se.
Tabucchi mantém fortes vínculos com esse país que considera
sua segunda pátria. Há mais de três décadas tornou-se professor
de língua e literatura portuguesas na Itália, além de tradutor,
divulgador e curador da obra do poeta Fernando Pessoa.
Nascido em 23 de setembro de 1943 na localidade
toscana de Vecchiano, com pouco mais de 11 mil habitantes,
Tabucchi estudou na vizinha cidade de Pisa e depois passou a
ensinar nas universidades de Siena e Gênova. Começou a
publicar textos ficcionais a partir de meados da década de 1970.
Os primeiros foram dois romances e um volume de contos. Tinha
quarenta anos, em 1983, quando lançou na Itália seu quarto
livro, Donna di Porto Pim e altre storie (Mulher de Porto Pim e
outras histórias), do qual nos ocupamos aqui. O livro saiu em
77
Portugal quinze anos mais tarde, em 1998, e no ano seguinte
também no Brasil.
Tabucchi caracteriza-se por entrelaçar histórias curtas.
Uma prosa cinzelada, mas acessível, é a marca de seus textos
divertidos e elegantes. Neles, a voz do narrador aparece de
mansinho, não para causar comoção, mas para seduzir o leitor
sem insistência. Tabucchi expõe ideias complexas de maneira
instigante, da mesma forma que o faz com as descrições físicas
de lugares, pessoas ou comidas. Ele explica assim o surgimento
de um dos textos de Mulher de Porto Pim: "Metade se deve a
uma leitura de Platão e a outra metade ao balanço de um ônibus
lento que ia de Horta a Almoxarife".
Por utilizar um processo de composição multifacetado, e
também por fazer valer o pacto implícito entre autor e leitor,
Tabucchi é tido como um autor pós-moderno. Tem algo de Julio
Cortázar. Por exemplo, o gosto pelas formas breves que
permitem ao autor lançar-se em ciclos de experimentação mais
constantes do que ocorre no caso do romance, que por um longo
tempo mantém o autor atrelado a determinado projeto. Porém o
que talvez faça lembrar mais, em Tabucchi, o autor de O jogo da
amarelinha é o uso de uma ironia bem calibrada, que nunca
chega aos píncaros do escárnio, como acontece com Tosches em
A última casa de ópio. Nem por isso o italiano deixa de fazer de
seus textos, mesmo quando estritamente narrativos, comentários
suaves sobre o absurdo da vida.
Para leitores que apreciam enredos explícitos,
acelerados, com muita ação, as narrativas de Tabucchi podem
parecer lacônicas. Ele nem sempre fornece indicações claras
daquilo que está em jogo. Os desfechos podem ser vagos,
deixando por conta do leitor os desdobramentos possíveis para a
trama. Além disso, as variações de foco narrativo, acentuadas
pela ausência da notação convencional nos diálogos, que
provoca a fusão dos discursos direto e indireto, exigem do leitor
uma atenção constante e talvez alguma familiaridade com a
78
literatura contemporânea. Tabucchi utiliza uma sintaxe fluida, de
pontuação sincopada, num efeito de sanfona, porém sem causar
uma estranheza inicial como aquela experimentada, por exemplo,
por alguém que lê Saramago pela primeira vez.
Mesmo sem atingir o grande público, Tabucchi é hoje
figura de destaque no panorama cultural italiano. Não raro
comparece à mídia para falar de assuntos fora do âmbito da
literatura. Embora crítico do governo, suas opiniões políticas não
são consideradas tão incômodas como eram, até poucos anos
atrás, as do contundente Tiziano Terzani, cinco anos mais velho
que Tabucchi, também toscano, e do qual nos ocupamos no
próximo capítulo.
A exemplo de Terzani, Tabucchi começou a chamar a
atenção da crítica literária internacional na última década do
século XX. Isso aconteceu não apenas na Europa, mas também
nos Estados Unidos, como demonstra este comentário de
Anthony Constantini publicado em uma tradicional revista
literária da Universidade de Oklahoma:
Tabucchi's writing is, above all, an artifice, a self-
referring stem whose decodification demands a
previous knowledge of the intellectual and artistic
coordinates of the writer. Tabucchi is one of the
most careful observers and original interpreters of
the narrative and esthetic tendencies which
emerged in Europe during the last two decades
(CONSTANTINI, 1995).
Na tradução para o português:
A escrita de Tabucchi é, acima de tudo, um
artifício, um segmento autorreferencial cuja
decodificação exige um conhecimento prévio das
posições intelectuais e artísticas do escritor.
Tabucchi é um dos mais argutos observadores e
um dos mais originais intérpretes das tendências
narrativas e estéticas surgidas na Europa durante
as últimas duas décadas (COSTANTINI, 1995,
tradução nossa).
79
Em outra publicação americana, The Nation, o crítico
literário Ronald De Feo busca estabelecer um paralelo entre
Tabucchi e Italo Calvino, falecido em 1985, quando o primeiro
ainda lançava seus primeiros livros:
Whereas Calvino produced fiction that read like
tightly controlled prose poems Tabucchi creates
stories that are elliptical puzzles, not so much
concluding as trailing off -- they appear to end just
when we hope they will continue (DE FEO, 1994).
Na tradução para o português:
Enquanto Calvino produziu uma ficção que se
apresenta ao leitor como poemas em prosa, sob
estrito controle do autor, Tabucchi cria histórias
que são enigmáticas e evanescentes elipses,
cujos traços perdemos de vista justamente no
momento em que gostaríamos que eles
continuassem (DE FEO, 1994, tradução nossa).
Apesar da diferença de estilos, o alinhamento entre
Calvino e Tabucchi é plausível. Os dois escritores têm
semelhanças na vida e na postura artística. Ambos foram
simpatizantes de ideias de esquerda, mas em momento algum
praticaram aquilo que se chamava de literatura engajada. Ambos
viveram na França, numa época efervescente em que era
importante viver na França. Foi na Sorbonne, nos anos 1960,
que Tabucchi descobriu a poesia de Fernando Pessoa e
encantou-se com ela. Por conta do contato direto com as
vanguardas culturais que pululavam nas margens do Sena,
Calvino e Tabucchi praticaram uma literatura que destoava das
correntes predominantes na Itália, onde não tiveram acolhida
imediata nem unânime.
Se o paralelo com Calvino é natural, para alguém que
observa de fora o painel da literatura italiana ou europeia nas
últimas décadas, o mesmo já não se pode dizer da comparação
de Tabucchi com um outro escritor, publicada na revista The
Economist em 17 de maio de 1997:
80
Antonio Tabucchi continues his progress towards
becoming an Italian Graham Greene.
Na tradução para o português:
Antonio Tabucchi avança no sentido de se tornar
um Graham Greene italiano (Tradução nossa).
Visto de modo retrospectivo, um comentário como esse
parece hoje um tanto anglófilo e despropositado. As histórias
contadas por Tabucchi pouco têm a ver com o modelo de thriller
que deu fama internacional ao autor inglês a partir de 1932, com
o lançamento da versão cinematográfica de seu romance O
expresso do oriente (Stamboul train). O que temos em vários dos
mais conhecidos livros de Greene é o clássico triângulo amoroso
em primeiro plano e o suspense como fio condutor. E também,
como já foi mencionado no capítulo anterior, aquela maneira
incitante de introduzir um personagem na história, sem deixar
muito claro como e por que ele está ali. O mesmo procedimento
que, a certa altura, Tosches utiliza no livro que analisamos,
porém meio em tom de paródia, para deixar claro que A última
casa de ópio não pretende correr nos mesmos trilhos de O
expresso do oriente.
As semelhanças entre Greene e Tabucchi são mais
pronunciadas fora das páginas dos livros. Embora católico,
Greene também foi um homem de esquerda e pertenceu ao
Partido Comunista. Como Tabucchi, mais tarde, o inglês teve
várias de suas histórias transformadas em filmes, viajou
bastante pela Espanha e frequentou países menos conhecidos
que lhe serviram de inspiração, como Cuba e Haiti.
Tabucchi também viajou pela América Latina, embora
sejam mais frequentes em sua literatura as referências à Índia e
a Portugal. No início da década de 1980, em Lisboa, ocupou o
cargo de diretor do Istituto Italiano de Cultura. Nessa época, em
uma estada nos Açores, captou material para os textos que
81
compõem o volume Mulher de Porto Pim. A partir do lançamento
desse livro, sua carreira de escritor começou a ser notada.
Uma tragédia nos Açores
A palavra pim significa abrigo na língua falada pelos
imigrantes flamengos que, no século XV, colonizaram a Ilha do
Faial. Ela figura no grupo ocidental entre as nove componentes
do arquipélago dos Açores, pertencente a Portugal, mas
escondido entre as ondas do Atlântico, a 1.400 quilômetros de
Lisboa. Porto Pim é uma localidade próxima à cidade de Horta,
capital da Ilha do Faial. Fica à beira de uma pequena baía
cercada de montanhas, e nela há vários bares frequentados por
turistas.
O título geral do livro de Tabucchi, Mulher de Porto Pim,
é devido a um conto de poucas páginas. Esse texto também
serviu de base para o roteiro do filme Dama de Porto Pim (2001),
rodado nas Astúrias sob a direção de Toni Salgot, um amigo
espanhol do escritor.
O livro reúne nove textos, sete dos quais alocados sob
dois subtítulos, “Naufrágios, destroços, passagens, distâncias” e
“De baleias e baleeiros”, que por sua vez também comportam
divisões internas. Temos, portanto, uma obra fragmentária do
ponto de vista da edição, porém coesa como painel
representativo de um lugar. O ambiente insular é seu elemento
unificador. A alguns parecerá dispensável ressaltar o fato de
que, assim como os Açores englobam nove ilhas, este livro de
temática açoriana congrega nove textos. Não sabemos se isso
foi intencional ou sequer se o autor terá se dado conta dessa
equivalência numérica. Numerológica, diriam alguns.
O fato concreto, no entanto, é que o livro de Tabucchi
nos transporta aos Açores, esse lugar específico do globo
terrestre onde tudo diz respeito ao mar, e o faz de modo tão
intenso que Porto Pim jamais se apagará da nossa memória. O
82
efeito final é similar à saciedade do espírito que nos propicia um
romance clássico, daqueles capazes de nos transmitir não
apenas o conteúdo de um lugar, mas também a moldura dentro
da qual dali em diante haveremos de pensar nele.
Há algo de definitivo nesse livro de Tabucchi.
Curiosamente, tal sensação não é prejudicada, mas fortalecida
por essa estrutura fragmentária e, poderíamos até dizer,
heterogênea. Cada texto incluído em Mulher de Porto Pim
pertence a uma diferente estirpe do reino da escrita.
“Hespérides. Sonho em forma de carta” apresenta-se como uma
descrição dos Açores na voz de um grego da antiguidade;
“Antero de Quental. Uma vida” traça um microperfil romanceado
do desventuroso poeta nascido em Ponta Delgada, capital de
outra ilha do arquipélago, São Miguel; “De um regulamento” é um
texto em fria linguagem oficial que expõe, em detalhes, as
normas a serem seguidas na pesca de cetáceos; “Uma caça” tem
a forma de reportagem sobre uma expedição baleeira na qual
Tabucchi tomou parte, e possui força descritiva que o torna um
dos pontos altos do livro; “Post Scriptum, uma baleia vê os
homens” inspira-se em um poema de Carlos Drummond de
Andrade e é “humildemente dedicado” ao poeta brasileiro que
Tabucchi certa vez conheceu no bairro carioca de Ipanema.
O texto mais “literário” do livro, no sentido geral que em
usamos a palavra, é “Mulher de Porto Pim”. Supostamente
construído com base em um relato feito ao autor por um açoriano
não muito jovem, resultou em um conto conciso, denso, trágico,
sobre uma história de amor que termina em assassinato.
Por trás da tragédia, está o atrito entre os Açores e o
mundo externo, longínquo, um horizonte de água salgada a
perder de vista. O jovem pescador Lucas Eduíno apaixona-se por
uma mulher que um dia chega a Porto Pim “vestida de branco,
com os ombros nus e um chapéu de renda” (TABUCCHI, 1998:
p.88), ou conforme o original em italiano: “Vestiva di bianco,
aveva le spalle nude e portava un cappello di trina” (Ibidem,
83
1983: p.81). Embora desde o início a misteriosa Yeborath se
mostre firme, impositiva, deixando claro que está ali com um
objetivo, ele parece não enxergar esses sinais premonitórios que
poderiam tê-lo livrado da encrenca.
Chegada da Europa, a mulher assume sozinha a
administração de um bar chamado O Bote. Na verdade, espera a
vinda de seu marido ou algo que o valha, mas sobre isso nada
conta ao rapaz. Nesse período, Yeborath contrata Lucas para
cantar para os fregueses do bar as canções que ele, quando
menino, aprendera a entoar para atrair as moreias. Os dois
iniciam um caso. A forasteira, portanto, torna-se sua patroa e
também sua amante. Transformado em cantor, ele abandona a
pesca, renegando a tradição da família.
Quando o homem pelo qual Yeborath espera afinal
chega a Porto Pim, ela não hesita em descartar Lucas, a quem
considera não mais que um amante ocasional. Ela lhe explica
que em breve irá embora dali. Sentindo-se traído, o rapaz arde
em ciúme. A pressão interna sobe e, no fim, ele acaba por matá-
la a golpes de arpão. Por conta desse crime, passa trinta anos
na prisão. Quando sai, retoma a vida de cantor de bar, à qual
sua antiga amante o havia induzido. Lucas tem plena consciência
de que, agora, é uma figura caricatural, mas sabe também que
isso agrada aos turistas. Bebe para não se sentir tão ridículo.
A história se passa em dois tempos separados entre si
pelo longo intervalo em que Lucas cumpre sua extensa pena.
Quem a narra, em primeira pessoa, é o próprio protagonista já
em idade provecta e conformado com seu destino. Um dos
elementos singulares no foco narrativo instaurado por Tabucchi é
que ele próprio, na condição de autor, coloca-se na história no
momento em que a capta do protagonista, ou seja, no tempo
mais recente da narrativa, quando o episódio principal -- a
tragédia de Yeborath -- já são águas passadas. O velho Lucas
interpela seu jovem interlocutor:
84
[...] Ma tu, invece, cosa cerchi, che tutte le sere
sei qui? Tu sei curioso e cerchi qualcos’altro,
perché è la seconda volta che m’inviti a bere,
ordini vino di cheiro come se tu fossi dei nostri,
sei straniero e fai finta di parlare come noi, ma
bevi poco e poi stai zitto e aspetti che parli io. Hai
detto che sei scrittore, e forse il tuo mestiere ha
qualcosa a che vedere col mio. Tutti i libri sono
stupidi, c’è sempre poco di vero, eppure ne ho
letti tanti negli ultimi trent’anni, non avevo altro da
fare [...] (TABUCCHI, 1983, p. 78-79).
Na tradução para o português:
[...] Mas e tu, o que é que procuras, que todas as
noites vens aqui? Tu és curioso e procuras outra
coisa, porque é a segunda vez que me convidas a
beber, mandas vir vinho “de cheiro” como se
fosses dos nossos, és estrangeiro e finges falar
como nós, mas bebes pouco e depois ficas calado
e esperas que fale eu. Disseste que és escritor e,
no fundo, talvez a tua profissão tenha alguma
coisa a ver com a minha. Todos os livros são
estúpidos, há sempre pouco de verdadeiro neles,
e contudo li muitos nos últimos trinta anos [...]
(TABUCCHI, 1998, p. 84-85).
Com essas flechadas certeiras, Tabucchi envolve em
brumas o conteúdo do relato, colocando sub judice o caráter
ficcional do texto. Porém, ao mesmo tempo, reforça-lhe a
credibilidade ao, digamos assim, “citar a fonte”, como se faz em
um trabalho acadêmico ou jornalístico, e ao reproduzir a
situação em que teria ocorrido a transferência de informação.
Essa ambiguidade controlada constitui um fator de fabulação
eficiente. O leitor, intrigado, envolve-se mais ainda na trama. E
o inusual foco narrativo utilizado por Tabucchi, subordinado à
segunda pessoa do singular, potencializa o efeito do texto.
Recordemos que lá atrás, no início do capítulo II, Eagleton
argumenta que a literatura “transforma e intensifica a linguagem
comum”. É assim que Tabucchi, nesse conto, realiza a sua
alquimia.
85
A baleia flutua imóvel
Outro ponto alto do livro, como experiência narrativa,
encontra-se no texto “Uma caça”. Ali Tabucchi mostra de forma
plangente o sofrimento de uma baleia fisgada e capturada. Ela
luta até a exaustão para se libertar dos pescadores. No fim, se
entrega. Já não tem chance alguma de escapar da morte.
O martírio dos animais parece tocar de forma especial
os narradores que transitam pelo “mundo especial”. Na cena da
caça à baleia nos Açores, Tabucchi atinge o mesmo grau de
precisão e dramaticidade dos outros dois autores analisados
neste estudo. Como vimos no capítulo precedente, que trata de A
última casa de ópio, Tosches nos mostra como um homem
desventra uma cobra viva, numa rua de Hong Kong, para lhe
extrair a bexiga pulsante que servirá de remédio para a artrite de
um freguês. No livro enfocado no próximo capítulo, Um adivinho
me disse, Terzani fala de um restaurante tailandês que parece
uma câmara de torturas. Ali há uma jaula com diversos animais -
- cachorros, ursos, cobras etc. -- à disposição da faca dos
cozinheiros, e à espera da chegada de um cliente que peça uma
das sinistras especialidades da casa. Por exemplo, uma bisteca
feita da palma da mão do macaco, que depois de mutilado
permanecerá ali, aguardando o próximo passo de sua
desmontagem a sangue frio. Tabucchi, por sua vez, nos mostra a
luta titânica do cetáceo contra os baleeiros e o cenário tétrico
que se vê depois de horas e horas de escaramuças no mar:
La balena è morta, galleggia immobile. Il sangue
coagulato forma un banco che pare corallo [...]
(TABUCCHI, 1983, p. 75).
Na tradução para o português:
A baleia está morta, flutua imóvel. O sangue
coagulado forma um banco que parece coral [...]
(TABUCCHI, 1998, p. 81-82).
86
Apesar de toda essa carga dramática, o assunto das
baleias também serve, nesse livro, para que Tabucchi transmita
ao leitor uma dose de conhecimento especializado. Isso, como
vimos no final do capítulo II, é uma das características da
Narrativa de Viagem. No livro de Tosches, esse aprofundamento
se verifica com relação ao ópio. A obra de Terzani esmiuça a
situação política no sudeste asiático.
No final do século XVIII, em Viagem à Itália, Goethe
desfiava seus acurados conhecimentos nas áreas da botânica,
da mineralogia e da anatomia. Não temos como esperar, nos
dias de hoje, autores de formação enciclopédica como a do
pensador alemão, mas a universalidade pode ser obtida de outro
modo, como quem fura um poço, bastando para isso que o
escritor saiba canalizar (e ampliar) algumas de suas obsessões.
O texto pode ficar melhor ainda quando o autor não conhece ou
finge não conhecer o valor metafórico dos assuntos em que se
dispõe a ir fundo.
Outro aspecto a ressaltar, no livro de Tabucchi, é o
tratamento refinado e sutil que ele dedica ao tema principal do
conto Mulher de Porto Pim – a traição. Na verdade, dupla
traição. Yeborath não apenas abandona Lucas pelo homem
recém-chegado aos Açores (esta é a leitura imediata) mas, como
uma sereia, induz seu ingênuo amante a também abandonar a
atividade atávica de pescador. Ele se transforma num fantoche,
num cantor de taverna. Trai seu destino. Mas só se dá conta
disso quando vê que ela traíra sua expectativa amorosa.
Em um texto escrito duas décadas mais tarde, “Balene
d’altri tempi. Tango di ritorno” (“Baleias de outros tempos. Tango
de retorno”), Tabucchi faz uma releitura desse seu conto
produzido na década de 1980. Ao refletir sobre a traição, cita o
filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985):
[...] come ha osservato Jankélévitch, il tradimento
è l’única azione umana che può modificare il
87
passato, chi si scopre tradito rimette in causa il
proprio passato, si chiede: ma chi era la persona
che io credevo fosse, e chi ero io che credevo?
[...] (TABUCCHI, 2003, p. 79).
Na tradução para o português:
[...] como observou Jankélévitch, a traição é a
única ação humana que pode modificar o passado,
quem se descobre traído questiona seu próprio
passado, pergunta-se: quem era aquela pessoa
que eu acreditava que fosse, e quem era eu que
acreditava? [...] (Tradução nossa)
Com o conto Mulher de Porto Pim, Tabucchi repropõe ao
leitor um tema crucial nas páginas da literatura de todos os
tempos, a traição. E o faz de forma diferente dos outros
escritores. Borges, por exemplo, em Três versões de Judas,
reinterpreta de forma inusitada, mas pouco imagética, o papel
desempenhado pelo suposto apóstolo traidor no último período
da vida de Jesus Cristo.
Também Tabucchi, de certa forma, trai a si próprio. Mas
o faz no sentido mais saudável pelo qual um escritor pode
contribuir para a revitalização da literatura. Ele desafia o
cânone, levando-nos a rever os conceitos cristalizados.
No prólogo de Mulher de Porto Pim, Tabucchi adverte
que o leitor não terá diante de si uma Narrativa de Viagem. Essa
é, quem sabe, uma forma de se precaver contra o efeito
sugestivo que o título do livro possa ter sobre o público em
geral, ao evocar um lugar que muita gente nem sabe onde fica.
Ou também a exigência prévia da sua liberdade, como autor, de
propor um conjunto de textos que não reivindica um gênero.
Não podemos saber ao certo por que Tabucchi diz que
seu livro não é uma Narrativa de Viagem. Mas podemos pedir
licença para discordar dele. Mulher de Porto Pim é, antes de
tudo, uma rematada e pulsante Narrativa de Viagem. Não do tipo
mais tradicional, como nos livros de Tosches e Terzani.
Curiosamente, no caso de Tabucchi, o viajante não é o
88
protagonista da história, mas seu interlocutor. Ele também
destoa dos outros dois pelo fato de encadear os nove textos do
livro em um modo não linear. Em Tosches e Terzani, como na
maioria das Narrativas de Viagem, a organização dos capítulos,
em ordem cronológica, acompanha pari passu o deslocamento do
protagonista no ambiente. Neste caso, o movimento externo
funciona como fio condutor do texto. Este nos parece ainda mais
coeso pelo fato de o foco narrativo se apresentar como um
elemento estável e reconhecível.
Porém, como sabemos, isso não é um pressuposto de
obras marcantes surgidas a partir de meados do século passado.
O jogo da amarelinha, de Cortázar, lançado em 1968, em vez de
capítulos sequenciais apresenta uma estrutura baseada em
peças fragmentárias e intercambiáveis. Antes disso, em 1963, o
brasileiro Osman Lins já havia publicado um livro de ampla
flexibilidade formal, Marinheiro de primeira viagem. Em 1992, Os
anéis de Saturno (Die ringe des Saturn), do alemão Winfried
Georg Sebald, trouxe a carta de alforria da Narrativa de Viagem.
Libertar-se é trair, parecem nos dizer as obras citadas.
Mulher de Porto Pim começa por negar, nas primeiras linhas,
aquilo que veremos nas que virão depois. O fato principal é que
o livro nos leva aos Açores. Portanto, é uma Narrativa de
Viagem, se aceitamos as premissas da estética da recepção, que
enfatiza a posição do leitor. Após a leitura, a sensação de se ter
estado num lugar em que nunca se esteve, de fato, supera as
questões técnicas quando se discute a questão dos gêneros
literários.
As conexões e correspondências que se estabelecem
entre os nove textos reunidos em Mulher de Porto Pim, o seu
potencial dialógico, por assim dizer, garantem a estruturação da
obra. As linhas de força convergem para um centro que está em
todos os lugares, e em lugar nenhum. Como as baleias e, talvez,
as sereias.
89
Mais surpreendente que isso, no entanto, é constatar
que a obra inverte as posições dos leitores e do próprio autor,
isto é, altera o modo peculiar pelo qual cada uma das partes
encara o material exposto em suas páginas. O livro traz aos
Açores até nós e afasta Tabucchi de lá, como se ele já não
tivesse mais nada a ver com aquilo.
O mundo é de fato estranho, sabiam?
Dissemos que o livro de Tabucchi inocula em nós a
sensação de ter estado nos Açores, ainda que isso nunca tenha
ocorrido na vida real. No entanto, esse mesmo texto, do ponto de
vista do autor (quando o relê), torna-se o pivô de uma dúvida.
Como traído por si próprio, Tabucchi se vê envolvido nas brumas
que ele mesmo criou ao escrever Mulher de Porto Pim. Para
ilustrar esse fenômeno, vale transcrever o trecho inicial de seu
posterior ensaio “Labirintite”:
Il mondo è proprio strano, sapete? Circa vent’anni
fa feci um viaggio alle Isole Azzorre, arcipelago
che mi sembrò più immaginario che reale. Anzi,
così “fuori luogo” rispetto a tutto che quando
tornai mi parve che anche il mio viaggio fosse
stato immaginario. Avevo visto delle balene che
fin ad allora avevo considerato animali
immaginari; avevo ascoltato storie di vite tragiche
che pensavo esistissero solo in letteratura; avevo
visto paesaggi strani, dove gli alberi di ananasso
si mescolano alle ortensie, che credevo si
trovassero solo nei manuali di geografia
fantastica. Affinchè tutto quello che avevo visto e
vissuto non svanisse nell’aria come un miraggio,
pensai di raccontarlo. Ne nacque um piccolo libro
che si chiamava (si chiama ancora) Donna di Porto
Pim, e mi sentii molto orgoglioso perché pensai
che finalmente il mio viaggio acquistava um senso
di realtà, cominciava a esistere davvero. Con
quale meraviglia invece, quando il libro fu
pubblicato, mi accorsi rileggendolo che tutto
sembrava ancora più fantastico. La letteratura,
con il suo potere di trasformare il reale in iper-
reale, rendeva tutto quanto ancora più irreale di
quanto non fosse sembrato a me.
90
Mi rassegnai: forse la realtà è fantastica di per sé.
Da quel viaggio sono passati molti anni e alle
Azzorre non sono più tornato. Non so se quelle
isole esistono ancora. Probabilmente sì, perchè le
trovo spesso guardando la carta geografica
(TABUCCHI, 2003, p. 71-72).
Na tradução para o português:
O mundo é de fato estranho, sabiam? Há cerca de
vinte anos, fiz uma viagem aos Açores, um
arquipélago que a mim pareceu mais imaginário do
que real. Ou melhor, tão “deslocado” em relação a
tudo, que quando voltei tive a impressão de que
até mesmo a minha viagem houvesse sido
imaginária. Eu tinha visto baleias, que até então
considerava animais imaginários; tinha escutado
histórias de vidas trágicas que supunha existirem
apenas na literatura; tinha visto paisagens
estranhas, com abacaxis a se misturar com
hortênsias, e para mim isso essas coisas só
existiam em manuais de geografia fantástica. Para
que tudo aquilo que eu havia visto não se
dissipasse no ar como uma miragem, resolvi
contá-lo. Nasceu assim um pequeno livro que se
chamava (se chama ainda) Mulher de Porto Pim, e
me senti muito orgulhoso ao pensar que
finalmente a minha viagem ganhava um senso de
realidade, começava de fato a existir. Para meu
espanto, porém, quando o livro foi publicado, ao
relê-lo me dei conta que aquilo tudo parecia ainda
mais fantástico. A literatura, com o seu poder de
transformar o real em hiper-real, tornava tudo
ainda mais irreal do que me parecera antes.
Dei-me por vencido: talvez a realidade seja
fantástica por si só. Passaram-se muitos anos
desde aquela viagem e nunca mais voltei aos
Açores. Não sei se aquelas ilhas ainda existem.
Provavelmente, sim, porque quase sempre as vejo
nos mapas (Tradução nossa).
Essa sensação posterior de estranhamento em relação
ao texto, por parte do autor, é indício de que ele de fato viajou.
Só que a intimidade com lugares e rotas percorridas já não
pertence a ele, mas sim aos leitores. Quando se cumpre esse
ritual da transferência de polaridade, é porque estamos diante de
um texto que atinge o alvo.
91
V. TERZANI: PERIPÉCIAS DO CAMALEÃO
Agora que já sabemos um pouco sobre Tosches e
Tabucchi, dirigimos o olhar para mais uma das janelas do trem.
Nessa outra divisamos Tiziano Terzani, autor de Um adivinho me
disse (Un indovino mi disse), terceiro componente do corpus
deste estudo. Vamos a ele.
Terzani nasceu em 14 de setembro de 1938 em um
bairro popular de Florença chamado Monticelli. Seu pai era
mecânico e ex-partiggiano, tendo participado da luta contra o
fascismo. Embora comunista, não tinha problemas de
convivência com a esposa de origem camponesa e muito
católica, que costumava votar nos candidatos conservadores da
Democracia Cristã. Portanto, para o menino Tiziano, a primeira
lição sobre opostos complementares aconteceu em casa, na
prática, e seria aprimorada mais tarde quando aderiu à filosofia
oriental.
A família, pobre, teve que se desdobrar para que
Tiziano, em vez de se tornar mecânico como o pai, pudesse
continuar seus estudos. Aos 16 anos, ele começou a se
interessar por viagens. Passou uma temporada de férias lavando
louça em um hotel suíço para aprender francês. Com o dinheiro
recebido, fez um giro de carona pela Europa, visitando a França,
a Bélgica e a Alemanha. Logo a seguir, aos 17 anos, Tiziano
conheceu aquela que viria a ser sua companheira pela vida
inteira, Angela, filha do pintor alemão Hans Joachim Staude, na
época estabelecido em Florença.
Aluno brilhante, Terzani conseguiu uma bolsa em um
concurso público para estudar na prestigiosa Scuola Normale
92
Superiore de Pisa, por onde passaram muitos expoentes da elite
intelectual italiana. Formou-se em Direito em 1961 e, no ano
seguinte, foi contratado pela Olivetti, nessa época uma empresa
pioneira na área da informática. De início trabalhou como
vendedor e depois como encarregado do setor de funcionários
estrangeiros. Casou com Angela Staude e, na companhia dela,
viajou para um curso no Japão por conta da Olivetti. Era seu
primeiro contato com a Ásia. A partir daí, o casal passou longas
temporadas em diferentes países como Dinamarca, Portugal,
Alemanha, Holanda e África do Sul. Enquanto giravam pelo
mundo, Terzani e Angela construíam uma casa de campo rústica
em um vale nos Apeninos, na localidade de Orsigna, lugar ao
qual ele se afeiçoara ainda jovem, quando ali estivera por motivo
de saúde.
Mesmo sendo a Olivetti uma empresa progressista nas
áreas social e cultural, estava longe de ser o melhor lugar para
um jovem simpatizante das ideias de Mao Tse-Tung e Mahatma
Gandhi. Além disso, Terzani colaborava no jornal esquerdista
Astrolabio. Um artigo seu contra o apartheid provocou protestos
da embaixada sul-africana em Roma. Em 1967, ele deixou a
empresa e partiu para Nova York, com uma bolsa de estudos de
dois anos na Universidade de Columbia.
Nesse período em Nova York, Terzani estudou relações
internacionais e especializou-se em língua e cultura chinesas.
Fez também um estágio no jornal New York Times. Era um
momento crucial da década de 1960. Ele acompanhava de perto
a efervescência da contracultura e produzia artigos semanais
para o Astrolabio.
De volta à Itália, Terzani fez um estágio de um ano e
meio no jornal milanês Il Giorno. Isso tampouco o satisfez. Ele
desejava tornar-se correspondente na Ásia, algo não muito
factível para a época. Nenhum jornal italiano se interessou por
sua proposta. Num giro pela Europa, contatou os principais
periódicos de diferentes países, dos quais também recebeu
93
respostas negativas. Por fim, em Hamburgo, a revista semanal
alemã Der Spiegel se mostrou disposta a dar uma chance a
Terzani. Contratou-o para trabalhar no sudeste asiático. Na
época, essa era uma região visada pela mídia mundial por conta
da guerra do Vietnã e dos protestos que a intervenção americana
suscitava entre estudantes, artistas e intelectuais.
Em dezembro de 1971, Terzani e Angela partiram para
Cingapura. Levavam com eles o filho Folco e a filha Saskia,
nascidos na Itália havia pouco tempo. Para a família, era o
começo de uma longa permanência na Ásia que se estenderia
por mais de três décadas. Além de Cingapura, eles viriam a
morar também, em fases sucessivas, em Hong Kong, Pequim,
Tóquio, Bangcoc e Nova Délhi.
Terzani viajava muito pelo oriente. Além do emprego fixo
como correspondente da Der Spiegel, mais tarde passou a
colaborar na imprensa de seu país para os jornais La
Repubblica, Il Corriere della Sera e a revista semanal
L’Espresso, e também no rádio e na televisão da Suíça italiana.
Ambos, marido e mulher, tornaram-se escritores. Os temas de
seus livros referiam-se às suas experiências orientais, mudando
daqui para lá e de lá para cá (aquilo que Clarice Lispector
odiava, como sabemos), criando os filhos, observando de perto
uma Ásia que parecia querer abrir asas e alçar voo.
Não muitos jornalistas terão sido tão afortunados como
Terzani na arte alquímica de estar no lugar certo no momento
certo. Em sua longa fase asiática, ele testemunhou momentos
referenciais da segunda metade do século XX. Em 1975, estava
entre os poucos jornalistas que permaneceram em Saigon (a
atual Ho Chi Minh) quando a cidade foi tomada pelos
comunistas, episódio que marcou o fim da guerra do Vietnã.
Quatro anos mais tarde, em 1979, ele figurava no primeiro grupo
de profissionais da imprensa autorizados pelo governo chinês a
se instalar no país. Mas foi expulso de lá em 1984 após
94
denunciar as contradições do socialismo maoista e ser preso por
supostas “atividades contrarrevolucionárias”.
Em agosto de 1991, Terzani cobria uma expedição pelo
rio Amur, na fronteira entre a Rússia e a China, quando lhe
chegou a notícia do golpe contra o presidente soviético Mikhail
Gorbachev. Em vez de se açodar em chegar o mais rápido
possível a Moscou, como faria um jornalista focado na realidade
imediata, Terzani preferiu viajar lentamente em direção à capital.
Levou dois meses para atravessar a Sibéria e as repúblicas
soviéticas da Ásia central e do Cáucaso. Seu objetivo era captar
o modo pelo qual as pessoas, nesses lugares remotos,
vivenciavam a derrocada do império soviético. Registrou essa
experiência nas páginas de Buonanotte, signor Lenin (Boa-noite,
senhor Lênin), publicado em 1992, que recebeu um prêmio inglês
para literatura de viagem, o Thomas Cook Award.
Os cinco anos passados em Tóquio, naquele final da
década de 1980, foram deprimentes para Terzani. Ele não se
sentiu à vontade naquela sociedade regrada mas eufórica pelo
sucesso econômico que parecia vir para achatar suas tradições.
Em compensação, a partir de 1994, no início da última fase de
sua vivência asiática, quando preferiu Nova Délhi ao cargo de
correspondente em Washington, que a revista lhe oferecia como
bônus por uma brilhante carreira jornalística, ele descobriu um
país que parecia estar desde sempre à sua espera. “Eu quis a
Índia porque ela é o ponto de partida de tudo”, disse Terzani em
uma entrevista. “Trata-se de um país onde o divino está no
cotidiano das pessoas.”
Nos países por onde passou, Terzani buscou aprofundar
o contato com os hábitos autóctones de um modo não muito
comum aos ocidentais radicados em terras asiáticas. Por isso ele
chegou a se definir como “um camaleão”: seu interesse pela
realidade do outro era tão intensa que não bastava estar lá, ele
queria também impregnar-se o quanto possível da cultura local.
95
Na China, por exemplo, Terzani tinha o hábito de andar
de bicicleta. Fez questão de que seus filhos estudassem em
escolas chinesas. Ao chegar à Índia, internou-se e fez os votos
em um ashram, nome de origem sânscrita que se dá a um reduto
religioso hindu. Como um indiano, durante três meses dedicou-se
às práticas reservadas aos membros da comunidade, que iam da
meditação à limpeza de estátuas.
Mais tarde, Terzani providenciou para si uma cabana
isolada nas fraldas do Himalaia, de frente para a mais alta
montanha da Índia. Nesse refúgio sem telefone, água encanada
ou luz elétrica, ele acordava ao nascer do sol e ia dormir ao
anoitecer durante suas temporadas de retiro e meditação.
“Depois de trinta anos de viagens do lado de fora, eu queria
fazer uma viagem para dentro de mim”, explicou. “Em busca de
uma outra realidade que não fosse aquela dos fatos. Presenciei
desastres, guerras. Conheci assassinos que se tornarem grandes
personagens, aos quais é preciso chamar de excelência. Toda a
minha vida vi revoluções falidas, até chegar à conclusão de que
a revolução que é possível fazer é dentro de nós.” Eram valores
difundidos em livros e canções dos anos 1960, o caldo cultural
em que Terzani se formou.
Em 1997, já mais conhecido em seu país, Terzani
recebeu o prêmio Luigi Barzini para correspondentes
estrangeiros. Nesse mesmo ano, durante uma viagem de Calcutá
para a Itália, ele sentiu os primeiros sintomas de uma doença
logo diagnosticada como câncer de intestino. Primeiro recorreu
aos médicos de Nova York e depois fez uma longa viagem pela
Ásia em busca de tratamentos alternativos. A certa altura, a
doença se impôs. Ele parou de procurar remédios. “Não
aceitamos que a nossa vida contenha o sofrimento. Sempre
andamos à procura de um comprimido contra isto, uma injeção
contra aquilo”, refletiu. “Depois de viajar um pouco, pensei bem
e percebi que não estava em busca da cura para o meu câncer,
mas para aquela doença que é de todos nós: a mortalidade.”
96
Enquanto os médicos se esforçavam para debelar a doença, ele
perguntava: “Não seria melhor considerá-la uma parte de mim?”
No último período da vida, Terzani já não era o repórter
intrépido, de bigode reto e viçoso, colete cheio de bolsos, dos
seus primeiros tempos na Ásia. Naquelas antigas fotos em
preto-e-branco, ele lembra um pouco o jovem aventureiro Ernest
Hemingway, modelo para mais de uma geração de jornalistas e
escritores que queriam correr perigo. O Terzani maduro estava
mais para um monge, um guru. Longa túnica de algodão branco,
cabelo branco, barba branca e patriarcal em estilo muçulmano.
Foi isso, aliás, que uma vez o salvou na última hora de ser
fuzilado durante um entrevero num país islâmico.
Em plena luta contra o câncer, Terzani empenhou-se na
militância pacifista. Tomou posição contra a chamada guerra
preventiva e o conflito de civilizações, temas que estavam em
voga na mídia. Percorreu a Itália engajado em coloridas
manifestações contrárias à invasão americana do Iraque e
também participou de atos públicos no exterior.
Apesar da doença, o destino concedeu a Terzani o
privilégio de passar seus últimos meses em sua casa rural em
Orsigna. Ao fundo do jardim, ele mandara construir uma pequena
gompa, santuário em estilo tibetano. Tornara-se vegetariano.
“Fui um homem de sorte”, repetiu muitas vezes ao se aproximar
da morte, aos 65 anos, em 28 de julho de 2004.
O fato teve repercussão na Itália. A essa altura, Terzani
já era um dos mais notáveis jornalistas do país, apesar de ser
também um homem incômodo para os representantes do sistema.
Em Florença, porém, centenas de leitores e admiradores de
Terzani compareceram ao funeral público realizado na Sala delle
Armi do Palazzo Vecchio, um prédio de 1332 que funciona como
sede da prefeitura.
O último livro de Terzani, publicado postumamente em
2006, contém reflexões transmitidas ao filho Folco sobre uma
vida inteira de incessantes viagens. O título evoca um conhecido
97
verso do poeta americano T. S. Eliot: La fine è il mio inizio (O
fim é o meu início). A referência faz sentido não apenas por ele
próprio, Terzani, ter escolhido passar seus últimos dias em
Orsigna, onde um dia estivera para recobrar a saúde. De certo
modo, sinaliza a visibilidade post-mortem que sua figura e sua
obra vêm adquirindo nos últimos anos.
Terzani foi um autor de livros que fizeram sucesso da
Turquia ao Japão, mas sobretudo na Europa. Em Lettere contro
la guerra (Cartas contra a guerra), publicado em 2002, ele
criticou duramente a invasão do Afeganistão pelos Estados
Unidos. Com isso, provocou o boicote ao livro por parte dos
editores anglo-saxões e ensejou o protesto da embaixada
americana em Roma, como anos antes havia ocorrido com a da
África do Sul por conta dos ataques de Terzani ao regime de
apartheid.
Por suas críticas à política americana e também por ter-
se insurgido contra a paranoia anti-islâmica que tomava conta da
Europa, ele receberia mais tarde uma homenagem distante. Em
pleno deserto do Afeganistão, o pequeno hospital da localidade
de Lashkargah, 100 quilômetros a oeste de Kandahar, ostenta o
italianíssimo nome de Tiziano Terzani. Apesar da notoriedade
internacional adquirida ainda em vida, como escritor, Terzani era
tido sobretudo como um polemista vinculado ao mundo da
imprensa. Nos últimos anos sua figura vem ganhando amplitude.
Nos colóquios e análises dedicados à sua obra, ele passou a ser
encarado como um misto de repórter, escritor, viajante,
humanista e filósofo. A dosagem certa, se é que isto tem
importância, cabe a cada leitor estabelecer.
Dez livros, muitas viagens
Terzani começou a publicar aos 35 anos, em 1973, pela
editora milanesa Feltrinelli. Pelle di leopardo -- Diario vietnamita
di un corrispondente di guerra (1972-1973) conta suas peripécias
98
como jornalista no sudeste asiático. Sua obra completa é
composta de dez livros, sendo os dois últimos edições póstumas
que contaram com o apoio do filho Folco e da viúva Angela.
O livro que analisamos aqui ocupa um ponto médio na
cronologia da produção literária de Terzani. Um adivinho me
disse foi o quinto de sua autoria a ser lançado, em 1995, já
então pelo selo de outra editora de Milão, a Longanesi, que a
partir da década de 1980 assumiu a responsabilidade pela
publicação de sua obra na Itália.
Embora o conteúdo do livro seja apresentado como
realista, autobiográfico, é marcado por um pendor romanesco. Já
de início o texto nos remete à atmosfera de obras consideradas
literárias. Recordemos uma vez mais Eagleton, para quem a
literatura “transforma e intensifica a linguagem comum”,
atingindo uma forma de expressão “que chama a atenção sobre
si mesma”. Isso se verifica no livro de Terzani.
Como um romancista tarimbado, Terzani consegue
adequar a gradação dramática do texto às diferentes situações
da história, dando um andamento de aventura àquilo que, em
mãos menos hábeis, não seria mais do que uma empreitada
narcisística. Por essa razão, a nossa expectativa logo deriva
para os domínios da literatura, embora a marcação factual siga
um padrão jornalístico que nos é familiar. A combinação de
técnicas é um dos atrativos da obra.
Um adivinho me disse já traz no título um esboço do
argumento. Vamos sintetizá-lo. Na primavera de 1976, Terzani
está em Hong Kong. De modo fortuito, pois não tem inclinações
ocultistas, consulta um velho adivinho chinês. Recebe dele uma
advertência incisiva, embora distante: em 1993 não deverá
realizar viagens aéreas pois correria sério risco de morte. De
início, Terzani não dá importância à profecia, já que faltam 17
anos para o período fatídico. Sua movimentada vida de
jornalista, sempre a saltar de um país a outro numa Ásia
turbulenta, haveria de fazê-lo esquecer a profecia. Mas ele não
99
esqueceu. No começo da década de 1990, Terzani passou a
sentir dentro de si uma inquietante contagem regressiva. Por fim
decidiu respeitar o vaticínio e passar um ano sem pegar aviões.
Isso não é coisa simples. Mesmo na Europa, com
cidades próximas e interligadas por estradas e ferrovias, um
jornalista teria dificuldade em cobrir assuntos da atualidade sem
se valer de viagens aéreas. Na Ásia, nem se fala. Mas Terzani
resolveu ir em frente. Voltou a se locomover como um repórter
do século XIX, num momento em que seus colegas jornalistas já
se habituavam a transmitir matérias por computador.
Ao renunciar ao avião durante todo o ano de 1993,
Terzani prosseguiu em seu trabalho deslocando-se por meio de
trens, navios, automóveis e até mesmo a pé. Isso lhe deu a
chance de passar por lugares onde em condições normais jamais
teria estado. Em vez dos aeroportos, que sempre se parecem,
ele tomou contato com as fronteiras territoriais, cada uma com
seu repertório de complicações. Em certos países, um visto de
entrada pode valer apenas para quem chega por via aérea num
local determinado; tentar outro caminho é pedir para ser tratado
como suspeito. Para poder se safar, mais do que nunca, ele teve
que recorrer à arte do camaleão.
“A melhor maneira de conhecer um país é a pé. Quanto
mais devagar você viaja, mais tempo terá para degustar a
jornada.” Pelo teor da afirmação, está claro que ela não pode ter
sido feita pelo editor da Der Spiegel que dependia das matérias
enviadas por Terzani para fechar as edições da revista. Se bem
que, como sabemos, os alemães são imprevisíveis. O cineasta
Werner Herzog, por exemplo, fez uma caminhada de três
semanas entre Munique e Paris no inverno europeu de 1974, e
disso resultou um dos livros mais singulares -- para não dizer
delirantes -- no campo da Narrativa de Viagem. Em Caminhando
no gelo, encontramos isto:
100
Os maços de cigarro à beira do caminho me
fascinam, principalmente quando não estão
amarrotados: ficam inchados de água, parecendo
cadáveres. As dobras se arredondam e o celofane
se embaça com o vapor, que o frio condensa em
gotículas de água (HERZOG, 2005, p. 26).
E também isto:
É o núcleo incandescente da Terra que cozinha a
sola dos meus pés. Hoje o isolamento é ainda mais
intenso que de costume. Desenvolvo um diálogo
comigo mesmo. A chuva pode cegar a gente
(Ibidem, p. 75).
Ao contrário de Herzog, Terzani não pode se dar o luxo
do desvario. Tem que continuar produzindo matérias, não está
em férias. Aquela declaração sobre andar a pé não era de seu
editor na Alemanha, nem de qualquer outro jornalista, e sim do
inglês Christopher Whinney. Contumaz caminhante das trilhas da
Europa, ele foi o criador, no final da década de 1970, de uma
agência que organiza caminhadas grupais com duração de uma
semana, ou mais, no interior da Itália, e por seus roteiros na
Toscana recebeu um prêmio da revista National Geographic
Traveler.
Mas o caso de Terzani também não é turismo ecológico.
Agora ele é apenas isto: um homem solitário, longe de tudo, que
precisa ganhar a vida sem infringir a profecia. Detalhe:
atravessar o rio Mekong por balsa é um pouco mais complicado
do que atravessar o rio Arno pelo Ponte Vecchio.
Nessa nova situação, Terzani descobre uma nova Ásia,
habitada por outros personagens, com outros cenários, tudo em
tons bem diferentes daquilo que ele já conhece tão bem em mais
de duas décadas de andanças profissionais. Em vez do contato
intenso com presidentes, ministros, palácios, centros de decisão
e frentes de combate, ele penetra nas vias capilares dos países,
encontra vilarejos perdidos onde a realidade tem o rangido dos
carros de boi. Ou do gatilho das armas.
101
Para retomar o fio da meada da profecia de 1976,
Terzani adquire o hábito de consultar videntes nos lugares por
onde passa. Não apenas para confrontar as diferentes versões
sobre os riscos do acidente aéreo, ou para aprofundar aspectos
da sua vida presente, mas também como uma forma de passar
em revista o seu passado. Aos poucos, ele pega gosto por essa
peregrinação. Não ignora que alguns desses adivinhos com os
quais conversa são charlatães, mas outros o impressionam com
a precisão de suas revelações.
Do ponto de vista da estrutura narrativa, o livro de
Terzani tem dois eixos que funcionam de maneira sincrônica. Um
deles se caracteriza, de fato, como reportagem. O jornalista
mescla dados objetivos, observações diretas e referências
históricas para nos falar dos lugares por onde passa. O outro
eixo é autobiográfico e resulta da contínua prospecção de si
próprio com os recursos disponíveis no mundo do ocultismo.
Terzani trafega pelos mesmos canais incertos percorridos por
Tosches na busca de sua improvável casa de ópio, como vimos
no capítulo III.
Aqui se destaca um ponto comum nos dois autores: o
elogio da lentidão. Tosches, em relação ao objetivo final, que no
seu caso é o torpor propiciado pelo efeito do alcaloide e das
ondulações dos tecidos de veludo, dos brocados, dos cetins, dos
decotes de mulheres que não foram embrutecidas pela aspereza
do jeans. Terzani, por sua vez, no modo primitivo de se
locomover: em vez de deslizar pelo céu, confinado em aviões,
ele optou por ser uma formiga no coração da Ásia. Ambos são
ocidentais fartos da eficiência do ocidente. Nem por isso,
entretanto, deixam-se iludir pela ideia ingênua de que o oriente
seja a última reserva de pureza da humanidade. Vejamos, nas
palavras de Terzani, uma situação à qual já nos referimos antes.
Ele escreve sobre um restaurante tailandês nas imediações de
Pongyang:
102
I tavoli erano sistemati su tre piani, attorno a
un’enorme gabbia di ferro dentro la quale, in
diversi scomparti, erano in mostra i vari animali da
mangiare: cani, serpenti, scimmie, orsi e altre
‘specialità’. C’erano scimmie cui mancavano lê
mani perchè um cliente aveva voluto mangiare
solo i palmi. La ferita era stata cauterizzata con
ferri roventi e la scimmia rimessa in gabbia ad
aspettare, urlando, che un cliente le volesse
mangiare, da viva, il cervello. I cuochi, nelle loro
uniformi bianchi, entravano e uscivano dalle
gabbie con i pezzi che la gente aveva ordinato e
quelle povere bestie, avendo ormai capito quale
fosse la loro sorte, ogni volta che qualcuno vestito
di bianco si avvicinava, magari solo per andare ai
gabinetti, si mettevano a strillare come ossesse
(TERZANI, 1995, p. 427).
Na tradução para o português:
As mesas eram distribuídas em três andares em
torno de uma jaula de ferro dentro da qual, em
várias divisórias, estavam à mostra os diversos
animais incluídos no cardápio: cães, serpentes,
macacos, ursos e outras ‘especialidades’. Havia
macacos aos quais faltavam as mãos porque um
cliente quisera comer apenas as palmas. A ferida
tinha sido cauterizada com ferro em brasa e o
macaco foi devolvido à jaula para esperar,
berrando, que outro cliente quisesse comer, ainda
em vida, o seu cérebro. Os cozinheiros, vestindo
uniformes brancos, entravam e saíam das jaulas
com os espécimes que as pessoas pediam, e
aquelas pobres criaturas, tendo entendido qual
seria a própria sorte, toda vez que alguém vestido
de branco se aproximava, talvez apenas para ir ao
banheiro, punham-se a gritar como possessas
(TERZANI, 2005, p. 445).
Sempre os animais. No Vietnã, Terzani fica perplexo ao
presenciar o sacrifício de um cão:
Prima gli tagliò un pò di pelle, giusto dietro
l’orecchio, poi affondò il coltello e lentamente si
mise a cercar la vena da recidere. Quando
cominciò a colare il sangue, l’uomo prese una
pentola per raccoglierlo. Il cane era a testa in giù,
imbavagliato, appeso per i piedi alla cornice della
porta, e non riuscì neppure a gemere. Uma frotta
di bambini guardava e saltellava attorno, perlopiù
indifferente. L’uomo scuoiò il cane e lo fece a
103
pezzi: il petto per lo stufato; le cosce, forse, per
l’arrosto (TERZANI, 1995, p. 321).
Na tradução para o português:
Antes lhe cortou um pouco de pele, bem atrás da
orelha, depois afundou a faca e lentamente se pôs
a procurar a veia a ser cortada. Quando começou
a escorrer o sangue, o homem pegou uma panela
para recolher o líquido. O cão estava de cabeça
para baixo, amordaçado, pendurado pelas patas
no umbral da porta e não conseguiu sequer gemer.
Um bando de meninos olhava e saltitava em torno,
quase todos indiferentes. O homem esfolou o cão
e o reduziu a pedaços: o peito para ser recheado,
as coxas, talvez, para um assado
(TERZANI,
2005, p. 332).
Terzani e Tosches, assim como Tabucchi ao consternar-
se diante da agonia da baleia, encontram em lugares distantes,
considerados primitivos, um mundo mais cru do que aquele ao
qual estão habituados em seus países de origem. Mais cru, mas
não necessariamente mais cruel. Embora chocados, eles
parecem aceitar essas práticas estranhas, ou pelo menos não as
censuram da forma incisiva como costumam fazer em relação
aos valores ocidentais. Podemos então supor que, nessa
passagem do “mundo comum” para o “mundo especial”, o senso
crítico do protagonista se atenua ou se transforma. Ao mesmo
tempo, seus sentidos se aguçam sob o influxo das coisas
“exóticas”, se nos permitirmos usar um termo tão desgastado nas
reportagens de turismo.
Por outro lado, o viajante parece se tornar mais severo
ao deparar com traços do “mundo comum” projetados no “mundo
especial”. As lanchonetes fast-food, por exemplo. Nossos
paladinos da lentidão, Tosches e Terzani, citam-nas como
símbolo da degradação ocidental a conspurcar a cultura asiática,
mesmo sabendo que ali se comem bichos vivos. Lembremos que
Tosches ridiculariza o coronel Sanders e as duzentas franquias
do Kentucky Fried Chicken na Tailândia. Terzani deplora as filas
de jovens diante das lanchonetes McDonald’s em Cingapura, um
104
país que qualifica ironicamente como “isolotto ad aria
condizionata” (“ilha de ar-condicionado”). E Tabucchi, por meio
do narrador grego de seu texto “Hespérides. Sonho em forma de
carta”, reflete:
Doppo avere veleggiato per molti giorni e per
molte notti, ho capito che l’Occidente non ha
termine ma continua a spostarsi con noi [...]
(TABUCCHI, 1983, p. 13).
Na tradução para o português:
Depois de ter velejado durante muitos dias e
muitas noites, compreendi que o ocidente não tem
fim, antes continua a deslocar-se conosco [...]
(TABUCCHI, 1998, p. 11).
Nada de ilusões com a China
Se o american way of life serve de bode expiatório tanto
a Tosches quanto a Terzani nos exemplos recém-citados, isso
não quer dizer que uma concepção social teoricamente
antagônica, o socialismo, feito de contenção ao consumo,
mereça elogios de parte dos autores que estudamos aqui. Afinal
de contas, também as ideias esquerdistas foram ventos do
ocidente que sopraram sobre o continente asiático.
Sabemos que Terzani, em seus verdes anos, quando
trabalhava na Olivetti e observava a China de longe, simpatizava
com a revolução cultural maoista. Porém vejamos o que ele nos
diz, aos 55 anos de idade, dos quais mais de vinte vividos no
Oriente, sobre o líder revolucionário chinês:
Strano destino, quello di Mao! Aveva voluto dare
vita a una nuova Cina, rifondando la sua civiltà,
imponendole nuovi valori e aveva finito per
distruggere quel poco che ancora restava della
vecchia. É stato Mao a voler togliere ai cinesi
quell´ultima coscienza di esseri diversi grazie alla
loro civiltà per mettere loro in testa che erano
diversi perchè erano rivoluzionari. É bastato
105
dimostrare che quella rivoluzione era un fallimento
perchè la tragédia arrivasse al suo epílogo, perchè
i cinesi andassero alla deriva e fossero presi dalla
corrente dei tempi: quella di diventare come tutti.
Poveri cinesi! (TERZANI, 1995, p. 391).
Na tradução para o português:
Estranho destino, o de Mao! Quis dar vida a uma
nova China, refundando sua civilização, impondo
novos valores, e acabou por destruir o pouco que
ainda restava da velha. Foi Mao quem quis tirar
dos chineses aquela última consciência de serem
diferentes graças à sua civilização, para colocar
na cabeça deles que eram diferentes por serem
revolucionários. Bastou demonstrar que aquela
revolução era uma falência para que a tragédia
chegasse ao seu epílogo, para que os chineses
ficassem à deriva e fossem tomados pela corrente
dos tempos: a de se tornar como todos. Pobres
chineses!
(TERZANI, 2005, p. 407).
E Tosches, por meio de uma metáfora de cunho
ideológico, detona o cenário urbano de Hong Kong:
[…] Communism is a cement mixer that spews
forth drab and indistinguishable gray concrete.
Wherever Communism comes, everything – the
physical architecture of the place, then its soul –
turns drab and gray, and in its weakness crumbles
to a drabness and a grayness uglier and grimmer
by far (TOSCHES, 2002, p. 23).
Na tradução para o português:
[...] O comunismo é uma betoneira que cospe um
concreto cinza, baço e indistinguível. Aonde o
comunismo chega, tudo – a arquitetura física do
lugar, e depois sua alma – se torna baço e cinza
e, em sua fraqueza, desmorona nesse
embaçamento cinzento, muito mais feio e
deprimente (TOSCHES, 2006, p. 36).
Se Tosches se mostra conciso e imagético nas
descrições e nas reflexões, Terzani se porta como um narrador
diligente e detalhista. O florentino não economiza palavras para
explicitar ao leitor o encadeamento dos fatos que observa e
apoiar suas observações. Aí comparece, podemos supor, a força
106
do hábito de um jornalista vinculado a uma revista semanal de
informação como Der Spiegel, cujo modelo editorial analítico e
contido nada tem a ver com o estilo solto e ousado da revista
mensal Vanity Fair, para a qual Tosches trabalha.
Terzani pode ser tudo, inclusive audacioso, mas jamais
descompromissado. Nada tem do “espírito gonzo” que rege os
movimentos de Tosches. Um adivinho me disse corresponde ao
padrão narrativo conhecido como Jornada do Herói, formulado
pelo mitologista americano Joseph Campbell (1904-1987), com
base em seus estudos sobre lendas do mundo inteiro, e que
depois foi difundido pelo analista de roteiros cinematográficos
Christopher Vogler. Todos os estágios narrativos campbellianos
estão ali expostos ao leitor, inclusive o último, denominado
“Retorno com o elixir”, isto é, o momento em que o herói
compartilha com seus semelhantes os resultados de sua
aventura e seu aprendizado. No caso do livro de Terzani trata-se
da constatação de que uma vida mais lenta (sem aviões nem
fast-food, por exemplo) pode ser uma vida mais interessante de
ser vivida.
Apesar dos obstáculos, da tensão onipresente, Terzani
conserva intacto o seu fascínio pelas coisas que encontra no
sudeste asiático, região traiçoeira para quem se desloca por
terra ou por mar. Consta que, em um naufrágio no delta do
Mekong, em meados do século XVI, Luís de Camões teria
perdido sua companheira chinesa Dinamene, e também quase
ficou sem o manuscrito de Os lusíadas – especulam que precisou
escolher entre salvar a obra ou a amada. Foi nessa região
imprevisível, ontem como hoje, que Terzani optou por fazer um
jornalismo solitário como o fizeram os primeiros jornalistas.
Mesmo nas férias, para se mover entre Bangcoc e a
Itália, Terzani respeitou o compromisso assumido consigo
próprio. Na ida, cumpriu um enorme trajeto em trens precários
através da China, da Mongólia e da Rússia. Esse traçado em
grande parte coincide -- no longo trecho pela Transiberiana até
107
Moscou, e dali a Berlim – com aquele que o escritor americano
Paul Theroux descreve em O grande bazar ferroviário (The great
railway bazaar).
É difícil saber se Terzani teve contato com esse texto
publicado em 1975. É possível. Theroux é um dos autores mais
conhecidos no campo da Narrativa de Viagem. Seja como for, as
“observações ferroviárias” de Terzani honram o fascínio que os
escritores sempre demonstraram pela possibilidade de mirar o
mundo através da janela de um vagão a rolar sobre trilhos. Eis
um trecho:
Entrando in Mongolia, il treno aveva perso la sua
aria professionale di macchina moderna ed era
diventato come uma carovana, senza orari e
bisogni di puntualità. Ogni tanto si fermava senza
altra apparente ragione tranne quella di
permettere a un passeggero di salutare un parente
in uma yurta poco lontana. Al tramonto del
secondo giorno, il treno si fermò per due ore ad
aspettare quello que veniva nella direzione
opposta. Tutti i passeggeri scesero a godersi la
palla avvampata del sole che scompariva dietro
l’orizzonte e dalle quattro case della vicina
‘stazione’ vennero fuori gli abitanti e i cani a
vedere che cosa succedeva (TERZANI, 1995, p.
334).
Na tradução para o português:
Entrando na Mongólia o trem perdeu o seu ar
profissional de máquina moderna e tornou-se
como uma caravana, sem horários nem dever de
pontualidade. Às vezes parava sem nenhuma
razão aparente, exceto a de permitir a um
passageiro cumprimentar o parente numa yurta
próxima. Ao pôr-do-sol do segundo dia o trem
parou durante duas horas para esperar o outro
que vinha na direção oposta. Todos os
passageiros desceram para desfrutar da bola
ardente do Sol que desaparecia por trás do
horizonte e das quatro casas da ‘estação’ do lugar
apareceram os habitantes e os cães para ver o
que acontecia (TERZANI, 2005, p. 346).
No fim das férias na Itália, Terzani tomou o rumo de
Cingapura por via marítima. Em vez de cachorros curiosos,
108
pássaros com mensagens mais difíceis de serem captadas.
Vamos ver um pouco do que ele diz sobre esse trajeto:
Quello era dunque l’ultimo viaggio di una delle
poche navi che battevano ancora bandiera
italiana. Seduto a poppa, mi chiedevo quanto
ancora potrà durare un mondo cosi, retto
esclusivamente dai criteri incolti, disumani e
immorali dell’economia. Scorgendo l’ombra di isole
lontane me ne immaginavo una ancora abitata da
una tribù di poeti tenuti in serbo per quando, dopo
il Medioevo del materialismo, l’umanità dovrà
ricominciare a mettere altri valori nella propria
esistenza.
Uno dei grandi piaceri della nave era questo aver
tempo per lasciar la mente arzigogolare con i
pensieri, giocare com le sue fantasie, rimestare
fra le cose più assurde. A volte mi pareva di
passare attraverso un filtro tutta la zavorra di
ricordi accumulati nella vita. A volte era come
riscoprire in una soffitta scatole di vecchie foto
dimenticate. Sentivo che questo abbandono era
risanatore.
Quella di prendersi del tempo è uma cura semplice
per i mali dell’anima, ma che nessuno sembra
permettersi facilmente. Per anni avevo sognato,
nei momenti di depressione, di mettere idealmente
sulla porta della mia stanza um cartello che
dicesse: ‘Sono fuori a pranzo’ e poi di far durare
quell’assenza giorni o settimane. Finalmente c’ero
riuscito. Sulla nave ero costantemente ‘fuori a
pranzo’ e avevo tutto il tempo di osservare uno
stormo di rondini che dal Mediterraneo era venuto
a bordo e che ogni tanto usciva per volteggiare sul
mare e tornare a nascondersi fra i container.
Avevo il tempo di pensare al tempo, a come per
istinto trovo sempre il passato più affascinante del
futuro, a come il presente spesso mi annoia e
debbo immaginarmelo nel modo in cui lo ricorderò
per poterne godere sul momento. Avevo il tempo
di farmi commuovere dall’improvisa comparsa –
chi sà da dove! – di un solitario uccellino grigio
con il petto giallo e le ali a strisce nere che s’era
posato su una gru vicinissima a me e non
smetteva di guardarmi (TERZANI, 1995, p. 390-
391).
Na tradução para o português:
Aquela era assim a última viagem de um dos
poucos navios que ainda hasteavam a bandeira
italiana. Sentado na popa, perguntava-me quanto
109
ainda poderia durar um mundo assim, conduzido
exclusivamente pelos critérios incultos,
desumanos e imorais da economia. Vislumbrando
a sombra de ilhas distantes, imaginava alguma
ainda habitada por uma tribo de poetas
preservados para quando, depois da Idade Média
do materialismo, a humanidade recomeçaria a
inserir outros valores na própria existência.
Um dos grandes prazeres do navio era ter tempo
para deixar a mente elucubrar com os
pensamentos, jogar com a fantasia, vasculhar
entre as coisas mais absurdas. Às vezes me
parecia passar através de um filtro todo o peso
das lembranças acumuladas na vida. Às vezes era
como redescobrir num sótão caixas de velhas
fotografias esquecidas. Sentia que este abandono
era reparador.
Dispor de tempo é uma cura simples para os
males da alma, mas que ninguém parece se
permitir facilmente. Durante anos sonhei, nos
momentos de depressão, colocar idealmente sobre
a porta do meu quarto um aviso dizendo ‘Saí para
almoçar’ e depois fazer com que tal ausência
durasse dias ou semanas. Finalmente consegui.
No navio eu estava sempre ‘fora para o almoço’ e
tinha todo o tempo para observar um bando de
andorinhas que, do Mediterrâneo, viera instalar-se
a bordo e de vez em quando saía para dar voltas
sobre o mar e depois se esconder entre os
contêineres. Tinha tempo para pensar no tempo,
em como por instinto acho sempre o passado mais
fascinante que o futuro, em como o presente
quase sempre me entedia e preciso imaginá-lo no
modo como o recordarei um dia para poder
desfrutá-lo agora. Tinha tempo para me comover
com o súbito aparecimento – sabe-se lá de onde
de um solitário passarinho cinzento com o peito
amarelo e asas com faixas negras que pousou
sobre uma polia bem próxima de mim e não parava
de me olhar (TERZANI, 2005, p. 346).
Nesse trajeto de navio entre a Itália e Cingapura,
Terzani repete, em sentido inverso, o roteiro percorrido por
Marco Polo ao retornar da China para Veneza, no fim do século
XIII. Como se vê na transcrição acima, há momentos de epifania.
O herói não apenas vislumbra seu graal, a lentidão, mas o
experimenta em si próprio. É uma confirmação. Ele sabe agora
que sua meta é viável, embora fugidia: uma viagem de navio,
110
seja no século XIII, seja no XX ou no XXI, será sempre um breve
lapso na existência de uma pessoa.
Essa longa jornada transcontinental de ida e volta da
Itália constitui um ponto alto de Um adivinho me disse. Ela
propicia reflexões que enriquecem a narrativa. Além disso,
estando agora confinado ao espaço interno de um trem ou navio,
sem nada para fazer, o protagonista tem chance de observar de
maneira acurada o entra e sai nas estações e o cotidiano das
lides no convés. A qualidade dos seus insights e a variedade dos
personagens com os quais toma contato compensam, nesse
trecho do livro, a temporária suspensão da sequência de
profecias que constitui, como vimos, o outro eixo narrativo da
obra.
Uma transformação interior
Além do caráter panorâmico e do hábil manejo do
conflito central, outro atributo do livro de Terzani evoca a
estrutura clássica dos romances. Ele expõe de maneira clara a
transformação interior vivida pelo protagonista. Terzani nos
aparece primeiro como um jornalista que programa seus passos
de olho nos acontecimentos externos, e no final da história
temos um asceta que não vê sentido em viver sob pressão.
Sendo um livro autobiográfico, esta última forma se confirma
inclusive pela figura pública de Terzani. A história continua – e
isso a intensifica.
Ao contrário de Tosches, que com seu sarcasmo
anárquico dá a impressão de ser uma espécie de rebelde sem
causa, Terzani parece buscar uma nova bandeira para colocar no
mastro vazio das utopias que drapejavam nos céus dos anos
1960. O florentino não é um ser errático, mas um militante do
humanismo. Não pratica o jornalismo gonzo, longe disso. É até
curioso que tenha sido ele, e não o obstinado Tosches, a
encontrar com tanta facilidade aquilo que o americano colocara
111
como meta suprema de sua viagem: a casa de ópio. Eis o relato
de Terzani sobre uma noite em que estava no Vietnã, país que
conhecera em seus primeiros tempos na Ásia:
L’eroica, austera, silenziosa Hanoi della guerra
era ormai una città di miseria, dove tutto era in
vendita. A voler fare un simbolico viaggio nelle
illusioni politiche della mia generazione non c’era
che da partire da lì, dove la notte era tornata ad
avere mille segreti.
L’uomo del trisciò mi depositò davanti a un vicolo
buio fra due grandi edifici del centro. Un giovane
mi fece cenno e cosi ritrovai la via nel vecchio
ventre dell’Asia che il fuoco della rivoluzione
aveva voluto spazzar via per sempre e che invece
era tornato a vivere. Si attraversò un cortile, si
salì su per l’elegante scala di legno di un vecchio
palazzo coloniale, si passò lungo una fila di
capanne costruite su quelli che erano stati i suoi
balconi, si camminò sul bordo di uma terrazza, su
un ballatoio, ancora per uma scaletta di legno e
finalmente una porticina si aprì sulla penombra di
uma bella stanza, tutta foderata di bambù e densa
di un odore dolce e familiare. Su un piccolo
fornello, in uma ciotola di ferro, l’oppio bolliva per
raffinarsi. Sul pavimento, coperto di stuoie di
paglia, erano sdraiati dei giovani, ciascuno con la
testa appoggiata su un panchetto di legno. Una
bella donna magra, dalla pelle bianchissima,
passava dall’uno all’altro con la piccola lampada a
olio su cui si poggiava la pipa.
Alla luce di quella fiammella vidi le ombre di altri
corpi sdraiati lungo il muro, il profilo di una
piccola rana intarsiata sulla pipa che passava di
mano in mano e il tatuaggio di una farfalla sulla
spalla nuda di una ragazza distesa accanto a me.
Rimasi un’oretta a godere di quell’ovattato
torpore, senza memoria, senza peso, senza
delusioni. Uscendo, ero come riconciliato con il
mondo e mi venne solo da sorridere a vedere che
la fumeria era a soli due passi dalla sede del
Quotidiano del Partito (TERZANI, 1995, p. 319-
320).
Na tradução para o português:
A “heróica”, austera e silenciosa Hanói da guerra
se tornou apenas uma cidade de miséria, onde
tudo estava à venda. Se alguém quisesse fazer
uma viagem simbólica nas ilusões políticas da
112
minha geração, bastava partir dali, onde a noite
voltou a ter mil segredos.
O homem do triquixá deixou-me diante de um beco
escuro entre dois grandes edifícios do centro. Um
jovem me acenou e assim encontrei a rua no velho
ventre da Ásia que o fogo da revolução quis varrer
para sempre mas que retornou à vida.
Atravessamos um pátio, subimos pela elegante
escada de madeira de um velho palácio colonial,
passamos junto a uma fila de cabanas construídas
sobre aquela que tinha sido a varanda,
caminhamos sobre a borda de um terraço, sobre
um balcão e, depois de superar uma escada de
madeira e uma portinhola, encontramos a
penumbra de uma bela sala, toda forrada de
bambu e densa de um odor doce e familiar. Sobre
um fogareiro, numa caneca de ferro, o ópio estava
sendo refinado. Sobre o pavimento coberto de
esteiras de palha estavam deitados alguns jovens,
cada qual com a cabeça encostada sobre um
apoio de madeira. Uma bela mulher magra, com a
pele branquíssima, passava de um ao outro a
pequena lâmpada a óleo sobre a qual se apoiava a
pipa.
Com a luz daquela chama vi as sombras de outros
corpos deitados ao longo da parede, o perfil de
uma pequena rã entalhada sobre a pipa que
passava de mão em mão, e a tatuagem de uma
borboleta sobre o ombro nu de uma jovem deitada
ao meu lado.
Fiquei ali cerca de uma hora, gozando daquele
tênue torpor, sem memória, sem peso, sem
desilusões. Ao sair, estava como que reconciliado
com o mundo e tive vontade de sorrir ao ver que o
opiário estava a poucos metros do Jornal do
Partido (TERZANI, 2005, p. 331).
Para Terzani, essa breve visita à casa de ópio é algo
ocasional e sem grande importância. Ele vai até lá como quem
vai à sauna para relaxar antes de voltar ao hotel e cair na cama.
Sua viagem não tem um objetivo concreto, é um treinamento
interno, ele quer aprender a viajar de outro modo, sem avião.
Tendo em vista as considerações de Farinelli expostas
no capítulo II, podemos considerar Terzani um viajante poliano.
Como Marco Polo, ele se move ao sabor dos dias e das coisas,
não de uma meta. Ou por outra: a meta seria um atributo da
própria viagem.
113
Tosches, por sua vez, é um viajante do tipo a que
anteriormente denominamos de colombino. Assim como Colombo
precisava chegar às Índias, a qualquer preço, e viajava sob
pressão dos compromissos assumidos com seus régios
patrocinadores, o americano parte em busca de sua casa de
ópio, esteja ela onde estiver. Seria fácil, talvez, se por acaso
houvesse conhecido Terzani naquele hotel de Hanói. Mas
também podemos pensar, se nos permitirmos aqui um pequeno
jogo contrafactual, que ao florentino jamais teria ocorrido ir a
uma casa de ópio se tivesse tido com quem conversar naquela
noite.
Outro aspecto que vale abordar nos livros analisados
aqui é o contraponto entre o “mundo comum” e o “mundo
especial”. Ele fornece a energia necessária para o movimento do
herói na estrutura narrativa clássica. Ficamos tentados a dizer
que, ao menos nos casos de Tosches e Terzani, o contraponto
se dá entre o oriente e o ocidente. A todo momento os autores
comparam e discutem as facetas desses dois modelos culturais,
e com base neles revelam-se aos olhos do leitor.
Mas não somos obrigados a colocar a questão apenas
sob o ponto de vista geográfico por ser este o mais óbvio.
Pensemos no universo interno dos dois protagonistas, que são
também os autores dos livros. Para Tosches, o contraponto se
estabelece entre o plano da banalidade (“mundo comum”),
representado pelos falsos enólogos de Manhattan, e o plano
ritualístico (“mundo especial”), representado pela casa de ópio.
Para Terzani, a viagem mais profunda se dá entre o olhar ávido
do jornalista à caça dos fatos (“mundo comum”) e o olhar
contemplativo do poeta (“mundo especial”), representado pela
lentidão.
Já discutimos neste capítulo diversos elementos de
composição do livro de Terzani. Vamos agora nos debruçar sobre
alguns fatores de fabulação presentes em Um adivinho me disse.
No capítulo 26, “Capodanno con il Diavolo” [“Ano-novo com o
114
Diabo”], à página 405, aparecem dados numéricos sobre a
produção de ópio no Triângulo de Ouro, região de Mianmar
(Birmânia até 1989) que faz fronteira com a Tailândia, o Laos e a
China. Segundo Terzani, ali foram produzidas 30 toneladas em
1948, 3 000 toneladas em 1988 e 4 000 toneladas em 1993,
apesar dos esforços internacionais para combater o tráfico da
droga direto na fonte, incluindo até chuvas desfolhantes sobre as
plantações de papoula. O autor dá a entender que o processo é
irreversível, tomando por base a escalada dos números. E
confirma essa ideia quando conhece de perto o eficiente
esquema militar montado por Khun Sa, o magnata da droga, a
quem entrevista longamente. Do modo como Terzani apresenta
a questão, temos a ideia clara de que não haveria como acabar
com o ópio no sudeste asiático.
No entanto, aconteceu o contrário. Em 1998, três anos
após o lançamento do livro, a produção de ópio no Triângulo de
Ouro entrou em acentuado declínio. Uma década depois estava
erradicada, segundo o relatório divulgado em 16 de outubro de
2008 pelo Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o
Crime (UNODC). O documento cita a erradicação como um
exemplar caso de sucesso, ainda que seu brilho seja empanado
pelo aumento da produção de ópio no Afeganistão.
Alguém objetará: mas nem mesmo o autor de um livro
intitulado Um adivinho me disse tem obrigação de adivinhar o
futuro. É verdade, porém um jornalista experiente como Terzani,
que testemunhou tantas reviravoltas no mundo, poderia ter
relativizado a maneira de expor o assunto. Afinal, trata-se aqui
de um texto que não tem o curto prazo de validade de uma
matéria de revista. O leitor de um livro sério busca nele algum
lastro de perenidade. Alguém que leia hoje o texto de Terzani --
tão arguto ao tratar de temas contemporâneos ou atemporais --
ficará com a impressão, se não tiver acesso a dados recentes,
de que o problema da produção de ópio no Triângulo de Ouro é
mesmo um beco sem saída. No livro, há uma implícita projeção
115
do futuro a partir do passado. Esse mecanismo, por sua lógica
interna, funciona como um fator de fabulação.
Assim como a projeção do futuro, o resgate do passado
– e o risco implícito de idealizar o que ficou para trás, visto que
eventos pretéritos não podem ser checados por experiência
direta – também confere ao texto elementos ficcionais. Esse
risco cresce quando se busca respaldo no senso comum, que
resulta de sucessivas idealizações ao longo do tempo. No
capítulo 15, “Il missionario e lo stregone” (“O missionário e o
feiticeiro”), Terzani faz uma pequena apologia da qualidade dos
personagens que viveram em determinada época:
[...] Che fantastica combinazione di stelle deve
essere stata quella del quinto secolo avanti Cristo!
Tanti grandi, tutti nati allora: Sofocle, Pericle,
Platone e Socrate in Grecia, Zoroastro in Persia,
Buddha in India, Lao Tse e Confucio in Cina. Tutti
più o meno nel giro di cent’anni! Oggi nasce tanta,
tanta più gente! Ma non ne nasce uno così.
Perchè? La ragione è nelle stelle? (TERZANI,
1995, p. 250)
Na tradução para o português:
[...] Que fantástica combinação de estrelas deve
ter sido aquela do quinto século antes de Cristo!
Tantos grandes homens, todos nascidos naquela
época: Sófocles, Péricles, Platão e Sócrates na
Grécia, Zoroastro na Pérsia, Buda na Índia, Lao
Tsé e Confúcio na China. Todos mais ou menos no
arco de cem anos! Hoje nasce muito mais gente!
Mas não aparece nem sequer um assim. Por quê?
A razão estaria nas estrelas? (TERZANI, 2005, p.
258)
Pelo modo organizado como essa galeria de eminências
aparece no texto, tem-se a impressão de que suas influências
benéficas atuavam em conjunto sobre o espírito da época.
Parece que suas respectivas sabedorias estavam disponíveis, ao
mesmo tempo, para todos os comuns mortais do século V a.C.,
assim como para o leitor que hoje busca seus legados nas
prateleiras de uma livraria. No entanto, é tão-somente a visão
116
retrospectiva, achatada por um zum de 25 séculos, que permite a
elaboração desse painel que parece irrepetível, embora jamais
tenha de fato existido.
Nada nos garante que mesmo um homem dotado da
sensibilidade do autor do livro, vivendo naquela época, tivesse
essa visão de conjunto sobre a excelência dos antigos mestres,
uma visão ainda não filtrada e interpretada por gerações de
sábios que viriam depois. Não sabemos sequer se esse Terzani
ancestral que pode ter visto Buda passar numa rua da Índia, num
dia qualquer daquele século, teria tido condições de reconhecer
nele o expoente espiritual que hoje sabemos que foi. Como saber
se um contemporâneo nosso é valoroso ou charlatão se sobre
nosso julgamento pesam os ardis da proximidade?
No próprio livro de Terzani encontramos um elemento
ilustrativo. Ele abre o capítulo 7, “I sogni di un bonzo” (Os
sonhos de um bonzo”) com uma breve visita do dalai-lama a
Bangcoc para um encontro internacional de pessoas que, como
ele, haviam recebido o Prêmio Nobel da Paz. Quando o líder
budista visita o clube dos correspondentes estrangeiros, no
vigésimo andar do Hotel Dusit Thani, Terzani está entre a
alvoroçada multidão de jornalistas. Todos querem ouvir o apelo
do dalai-lama em favor da libertação da também premiada Aung
San Suu Kyi, heroína do movimento pela democratização da
Birmânia, presa em seu país pelos militares. Terzani relata
assim o encontro em Bangcoc:
Io, di quel discorso, ero rimasto molto deluso e
non mi consolò il fatto che alla fine, com quel suo
fare bonario e sorridente, il Dalai Lama, sceso dal
podio, mi si fermò davanti, come mi riconoscesse,
giunse le mani davanti al petto e, quando allo
stesso modo contraccambiai il saluto, mi prese
forte i polsi, me li scosse, mi fece dei
calorosissimi auguri e mi dette una qualche
benedizione. ‘Ma è sempre cosi terra terra, così
semplice semplice, il Dalai Lama?’ Ha parlato
come um parroco di campagna!’, dissi per
provocazione a uno dei monaci che gli se
117
affrettavano dietro [...] (TERZANI, 1995, p. 99-
100).
Na tradução para o português:
Fiquei muito desiludido com aquele discurso e não
me consolou o fato de que no final, com aquele
seu modo de ser benévolo e sorridente, o dalai-
lama desceu da tribuna, parou à minha frente e,
como se me reconhecesse, juntou as mãos diante
do peito. Quando devolvi do mesmo modo a
saudação, ele me pegou com força pelos pulsos,
me fez augúrios bem calorosos e me deu algumas
bênçãos. “Mas ele é sempre assim, terra a terra,
assim tão simples, o dalai-lama? Falou como um
pároco do interior!”, disse como provocação a um
dos monges que se apressava atrás dele [...]
(TERZANI, 2005, p. 104).
O fato de Terzani encontrar-se tão próximo ao dalai-
lama, e vê-lo falar “como um pároco do interior”, tende a fazê-lo
desconstruir a imagem anterior que tinha do líder budista,
envolto no carisma da distância e detentor de um magnetismo
midiático que o autor do livro não vê confirmar-se no contato
direto. Ora, assim é feita a história, com lentes mais abertas ou
mais fechadas, mas continuamente sobrepostas como pratos que
vão sendo empilhados. Nada prova que a nossa época não tenha
figuras da mesma consistência daquelas que o autor do livro
elenca no século V a.C. Nada nos assegura que o dalai-lama não
possa ser uma delas apesar do desapontamento que causou a
Terzani em Bangcoc.
No quinto capítulo, intitulado “Birmania, addio!”
(Birmânia, adeus!), Terzani nos fala desse país do sudeste
asiático que hoje se chama Mianmar. E relata que, certa vez, o
general U Ne Win, que tomara o poder em 1962 e o manteve ao
longo de mais de um quarto de século, fora advertido por um de
seus astrólogos de confiança para o perigo de vir a ser
derrubado por uma sublevação da direita. Para evitar o
movimento, ele determinou que os veículos passassem a circular
pelo lado direito da pista, e não mais pelo esquerdo, como
118
sempre havia sido desde que o país caíra sob domínio inglês, no
século XIX. Com isto, salvou-se.
Se tal episódio nos fosse apresentado em um romance
de García Márquez, nós o receberíamos com o mesmo sorriso de
cumplicidade que dedicamos às inusitadas ocorrências em
Macondo. Na Birmânia do século XX, já é difícil acreditar na
mesma história, por mais supersticioso que fosse o general U Ne
Win, ou por mais convincentes que fossem seus astrólogos. Não
há indicações de que Terzani tivesse estado lá, acompanhando
de perto a política interna do país no momento em que tal fato
ocorreu. É possível que tenha ficado sabendo disso por leitura
ou por relatos de outras pessoas. Ele não aponta as fontes,
como o teria feito numa matéria para a Der Spiegel.
Talvez fosse outro o procedimento de Terzani se
reportasse um fato pouco crível que houvesse ocorrido em um
país ocidental, situação em que seria bem maior o seu grau de
verificabilidade. Privados desse recurso, ficamos por conta da
verossimilhança que já na Poética de Aristóteles aparece como
um fator que se sobrepõe à verdade. Afinal de contas, o que
sabemos sobre os assuntos internos da Birmânia? Como era o
rosto daquele ditador? Quem era ele para além da sua figura
pública? Qual era o seu signo astrológico, já que isso parece
importar tanto?
Sabemos menos sobre o general U Ne Win do que sobre
o coronel Aureliano Buendía de Cem anos de solidão ou algum
outro personagem da literatura ocidental. Qualquer coisa que se
diga sobre ele será verossímil. Terzani podia pressupor que seu
livro não haveria de ser traduzido para o birmanês. Não seria
algum leitor em Yangun a lhe contestar a divertida história sobre
a troca da mão de trânsito. Mas isso poderia ocorrer em Caracas
se ele afirmasse, antes da mudança de horário de 2007, que o
presidente Hugo Chávez pretendia atrasar em meia hora os
relógios do país e adotar um fuso fracionário, entre outras
razões, para afrontar o imperialismo americano.
119
O fator de fabulação que ocorre nesse caso é uma
espécie de folclorização do fato. Isso é possível por diferentes
razões. Primeiro, como já foi dito, por causa do contexto. A
informação é inserida junto a outras tantas, plausíveis, que por
osmose lhe transferem um toque de credibilidade. O sabor do
acepipe distrai o leitor desse fenômeno subjacente à arte
narrativa, que aliás é um de seus maiores atrativos.
Outra razão da folclorização é que o narrador tem a seu
favor, ou da credibilidade de seu texto, uma dupla debreagem,
de espaço e tempo. A coisa se passa lá do outro lado do mundo,
numa época em que esse lugar nem tinha o nome que tem hoje.
Fantasmas na Siemens
Um caso semelhante de folclorização aparece no décimo
primeiro capítulo, “I bisbigli di Malacca” (“Os sussurros de
Malaca”), onde Terzani conta, na página 175, o que teria
ocorrido quando a empresa alemã Siemens instalou sua fábrica
de componentes eletrônicos com 2.500 operários na costa
ocidental da Malásia. De vez em quando, os guardas dos portões
viam pessoas entrar e sair da empresa sem se identificar e,
quando abordadas, como que sumiam no ar para reaparecer
depois. Seriam fantasmas. Eles estariam por ali, a rondar a
fábrica, porque ao construí-la a Siemens havia destruído um
pequeno templo indiano ali existente. Com isso, acabou por
desorientar aqueles pobres espíritos que, privados de seu ponto
de referência, ficaram a ver navios.
O problema só se resolveu quando a empresa se dispôs
a construir outro templo, fora dali. Neste caso, ao contrário do
anterior, o autor não se responsabiliza pela informação,
creditando-a “um dos técnicos alemães que trabalhavam na
empresa”. Não nos informa, porém, se no clima equatorial da
Malásia o rigor germânico não teria por acaso sucumbido a
doses imoderadas de cerveja.
120
O caso dos fantasmas da Siemens em Malaca nos faz
lembrar certas passagens em que Marco Polo se refere a objetos
voadores. Mas Terzani, nesse mesmo capítulo, um pouco antes,
à página 172, chega ainda mais perto do tom superlativo que
impera no relato medieval do veneziano. Ali o jornalista toscano
afirma, de novo sem citar a fonte, que no início do século XV os
chineses construíam navios capazes de transportar até 700
tripulantes.
É um número espantoso, mesmo levando em conta o
poderio naval chinês, que nessa época estava no apogeu. Entre
os especialistas em história da navegação, há certo consenso
em torno do fato de que embarcações asiáticas, como os juncos
ou os chamados navios-tesouro, eram bem maiores do que as
galeras e as caravelas ibéricas. Mas não há comprovação a
respeito da sua real magnitude.
Mesmo um autor controvertido como o britânico Gavin
Menzies, ex-comandante de submarino que viveu dois anos na
China e foi sempre generoso ao falar do engenho e arte
chineses, não chega ao número apontado por Terzani. Em seu
polêmico livro 1421 – The year China discovered America, ele se
refere (2003, p. 105) à frota do almirante Zheng He como sendo
composta de 62 navios tripulados por 27.800 homens no total.
Isto dá uma média de 448 tripulantes por embarcação. Já seria
um portento, considerando os navios portugueses que
exploravam a costa da África nesse mesmo período. Estes
últimos, já no final do século XV, só em casos excepcionais
chegavam a ter uma centena de tripulantes. É o que atesta o
capitão-de-mar-e-guerra e estudioso de navegação Quirino da
Fonseca (1868-1939) em seu livro A caravela portuguesa (1934,
p. 395-396), citando dados coletados pelo pesquisador Anselmo
Braamcamp Freire no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em
Lisboa.
O número apontado por Terzani, portanto, extrapola não
apenas as referências de que dispomos, mas até o bom senso.
121
Ele outra vez nos remete a Marco Polo. O veneziano queria que
seus conterrâneos acreditassem que havia conhecido uma
cidade chinesa dotada de 10 mil pontes, enquanto Veneza, com
todos os seus canais, tinha cerca de 400.
As passagens inverossímeis, de qualquer forma, não
comprometem a força narrativa de Un indovino mi disse. Uma
obra dessa qualidade deve servir, inclusive, para exercitar a
tolerância do leitor crítico.
Pensemos, por exemplo, naquela obra-prima da
literatura que escapou do naufrágio no Mekong, talvez à custa da
vida da mulher do autor. Se fôssemos examinar Os lusíadas ao
microscópio, perderíamos o que ele tem de melhor. Até mesmo
um censor do Santo Ofício, Frey Bertholameu Ferreira, que em
1572 detectou supostos deslizes do poeta, acabou por dar o
braço a torcer em favor dele:
[...] Toda via como isto he Poesia & fingimento, &
o Autor como poeta, não pretende mais do que
ornar o estilo Poetico não tiuemos por
inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra,
conhecendoa por tal, & ficando sempre salua a
verdade de nossa sancta fe, que todos os Deoses
dos Gentios sam Demonios (CAMÕES, 1979, p.
25).
Por sorte o poeta logrou obter o beneplácito do censor e
o aplauso da posteridade. Assim sendo, não nos custa aceitar de
Tiziano Terzani a excentricidade do general U Ne Win, os
fantasmas da Siemens e os navios chineses com 700 homens.
Como fatores de fabulação, esses dados intensificam a poética
do texto. Isso, para nós, deve ser um bem tão supremo quanto
eram, para Frey Bertholameu, os ditames de sua sancta fe.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos no capítulo I, Umberto Eco lamenta o fato
de viajarmos cada vez mais para o mesmo lugar, mesmo quando
nunca estivemos lá. Mas Cees Nooteboom, que ao contrário do
italiano movimenta-se sem parar por todos os continentes,
escrevendo em restaurantes, aviões e hotéis, rejubila-se por
ainda restarem grandes espaços vazios no planeta. Se o
holandês estiver com a razão, ainda temos chance de escapar da
avalanche da banalidade.
Na contramão do turismo massivo, retórico, desponta
uma tendência de se viajar de maneira mais íntima, criativa e,
por assim dizer, autoral. Aos olhos de cada viajante, detalhes
fortuitos como uma erva curativa ou uma pegada de animal
podem ganhar a mesma ressonância de um monumento clássico.
Dentro desse novo modo de se ver as coisas, fala-se hoje em
transportes de baixo impacto, como o barco e o trem,
eventualmente até a bicicleta, o balão, o trenó e o camelo, para
os mais dispostos, como alternativas preferenciais em relação ao
carro e o avião, que emitem mais gases de carbono.
Isso que poderíamos chamar de uma retomada da
pureza e da lentidão corresponde ao modo de viajar dos autores
que analisamos neste trabalho. Ou seja, o tipo de observação da
realidade que gerou seus textos já não é algo circunscrito a
escritores e cientistas, como no passado, ou a indivíduos que
têm um projeto determinado. Cada vez mais pessoas se inclinam
a desafiar a sina de andare nello stesso posto apontada por
Umberto Eco.
123
Depois que o livro de Bruce Chatwin, lançado em 1977,
tornou-se um clássico do Jornalismo Literário, não poucos
europeus tiveram seus olhos atraídos para a desolada Patagônia
argentina. O fenômeno não se compara, é claro, à onda de
suicídios desencadeada por Goethe com o seu Werther, em
1774. Algo assim seria impensável nesta época em que o livro
concorre com tantas mídias que também comportam processos
narrativos.
No âmbito da literatura do século XXI, porém, é lícito
cogitar que a Narrativa de Viagem venha ocupar uma posição de
tanta proeminência quanto aquela de que o romance desfrutou
até o século XIX. Ou, mais modestamente, ela poderá se
consolidar como um segmento da escrita com alto poder de
renovação e visibilidade. Em outras épocas, a exuberância do
romance baseou-se em grande parte em sua capacidade de
interagir com outros gêneros como a poesia e o ensaio. Hoje, a
Narrativa de Viagem, cada vez mais abrangente e inventiva,
exibe um não menos profícuo potencial dialógico.
Essas tendências são nítidas não apenas nos autores
que analisamos. Outros apenas mencionados também exibem
pinceladas daquela Weltliteratur postulada por Goethe. Se
cotejamos Viagem à Itália (1788), do poeta alemão, e Los
autonautas de la cosmopista (1983), de Julio Cortázar e Carol
Dunlop, temos diante de nós livros tão dessemelhantes que um
acadêmico rigoroso relutaria em considerar congêneres. No
entanto, em ambas as obras se destaca a marca do narrador em
trânsito. Isso faz a diferença. A mobilidade do observador institui
um foco narrativo específico. Esse modus operandi é mais
determinante do que detalhes técnicos como, por exemplo, o uso
da primeira ou da terceira pessoa na elaboração da narrativa.
A literatura contemporânea é sobretudo um investimento
no foco narrativo. Investimento de alto risco. Quase uma aposta.
Essa constatação já nos deixa à vontade para afirmar que a
Narrativa de Viagem tem, sim, uma poética própria. Ela assume
124
o risco, e se sai bem. Talvez possamos qualificá-la como um
gênero de transição, tal como o entendia o linguista russo
Roman Jakobson. Ou, se preferimos, podemos dizer que se trata
de uma modalidade de escrita que, como a baleia, submerge e
aflora em diferentes momentos, mas não desaparece.
Na constituição da Narrativa de Viagem como gênero,
devemos ter em mente o elenco de características expostas no
final do capítulo II. No seu formato contemporâneo, há que
ressaltar alguns aspectos relevantes.
Já nos referimos à flexibilidade do foco narrativo.
Também cabe ressaltar a incidência de fatores de fabulação,
que conferem viés ficcional a algo que parece ser só um retrato
da realidade. Não menos importante é a experiência imersiva do
protagonista, que associa uma viagem existencial ao trajeto
geográfico, e a qualidade não apenas informativa do texto, mas
também estética. É isso, aliás, o que o verdadeiro viajante busca
ao longo do caminho. Só assim a viagem poderá perdurar na
forma de palavra impressa.
O trem para aqui. Foi um prazer tê-los a bordo.
125
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