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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
LILIAN CRISTINA CORRÊA
RELEITURAS EM TORNO DE TITUBA
FEITICEIRA...NEGRA DE SALÉM
São Paulo
2009
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LILIAN CRISTINA CORR
ÊA
RELEITURAS EM TORNO DE TITUBA FEITICEIRA... NEGRA DE
SALÉM
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Gradua
ção, Doutorado em Letras, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito
à obtenção do título de Doutor em
Letras
Orientadora: Profa. Dra. Helena Bonito Couto
Pereira
São Paulo
2009
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C824r Correa, Lilian Cristina.
Releituras em torno de Tituba
Feiticeira-- Negra de Salém /
Lilian Cristina Correa 2009.
170 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Letras)
Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2009.
Bibliografia: f. 166-169.
1. Intertextualidade. 2. Personagem. 3. Hist
ória. I. Título.
CDD 809
LILIAN CRISTINA CORRÊA
RELEITURAS EM TORNO DE TITUBA
FEITICEIRA... NEGRA DE
SALÉM
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Gradua
ção, Doutorado em Letras, da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, como
requisito
à obtenção do título de Doutor em
Letras
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. Helena Bonito Couto Pereira
Universidade Presbiteriana Mackenzie
UPM
__________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Margarida Nitrini
Universidade de S
ão Paulo USP
__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Aparecida Junqueira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP
__________________________________________________
Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez
Universidade Presbiteriana Mackenzie
UPM
__________________________________________________
Profa. Dra. Elaine Cristina Prado dos Santos
Universidade Presbiteriana Mackenzie
UPM
Aos homens da minha vida:
Meu pai, Avelino, exemplo de vida...
Meu filho, João Pedro, com quem aprendi a voltar a
ser criança.
Meu marido, Alexandre, o amor com que sempre
sonhei e que se tornou realidade.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me dado a honra de ser parte de uma família única, além de me
fortalecer mesmo nos momentos mais difíceis...
À minha mãe, Maria Odila, pelo exemplo de mulher de fibra, coragem e amor eterno.
Ao meu pai, querido, Avelino, que infelizmente não pôde estar aqui para comemorar
comigo mais essa vitória, mas que tenho certeza, estará sempre ao meu lado, onde quer
que ele esteja.
À minha irmã, Leila, a melhor irmã-amiga-cúmplice-companheira que alguém pode ter
na vida, um exemplo de crescimento pessoal para mim e a quem quero sempre ter ao
meu lado.
Ao meu marido, meu amor de sempre, Alexandre, pelos momentos de apoio, por ser
também meu cúmplice-amigo, por torcer pela minha carreira e por estar sempre, sempre
presente. É com você, Alê, que quero tudo!
Ao meu filho, meu amor pequenino, imensamente esperado e ininterruptamente amado,
João Pedro, que hoje é para mim o melhor que a vida poderia ter proporcionado.
À minha orientadora, Profa. Dra. Helena Bonito Couto Pereira, mais que uma
professora, amiga que aprendi a respeitar como mestre ainda na graduação e a quem,
hoje, dedico extrema admiração, carinhoso afeto e uma grande amizade.
Aos amigos de antes, de hoje e, espero, de sempre, Elaine, Antônio, Célia, Vera, Gloria,
Thereza, Mirta, Paula, Cristina, Andréia, Lu, Ronaldinho, Alexandre, Camilla, Hugo,
Eli, Aninha... obrigada sempre!
Aos alunos, razão pela qual tenho o prazer de continuar estudando...
À banca avaliadora, por ter participado desta etapa importante de minha formação.
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, mais uma vez, pela oportunidade da bolsa de
estudos e por confiar em mim como profissional.
Nossas histórias diversas no Caribe
produziram hoje uma outra revelação: aquela
de sua convergência subterrânea. Em
conseqüência, elas trazem à tona uma
inimaginável, por ser tão óbvia, dimensão do
comportamento humano: a transversalidade. A
implosão da história caribenha (das histórias
convergentes de nossos povos) nos liberta da
visão hierárquica e linear de uma História que
poderia arruinar seu curso singular.
Edouard Glissant, in: Caribbean Discourse
RESUMO
Romances escritos sob uma nova perspectiva e narrativas que pretendem
reformular ou desafiar o passado, completando lacunas em textos de períodos
anteriores, constituem as formas mais comuns de intertextualidade na ficção
contemporânea, especialmente nos trabalhos de autores advindos de países colonizados.
É esse diálogo entre diferentes visões em diferentes momentos históricos que se
pretende enfatizar no estudo de Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Saéem (1986), da
escritora antilhana Maryse Condé, que dialoga com duas outras obras de autores norte-
americanos, As Bruxas de Salém (1953), de Arthur Miller e A Letra Escarlate (1850),
de Nathaniel Hawthorne.
Palavras-chave: intertextualidade. personagem. história
ABSTRACT
Novels written under a new perspective and narratives which intend to
reformulate or challenge the past, 'filling blanks' in texts from previous periods
constitute the most common forms of intertextuality in contemporary fiction, especially
in the works of authors originary from colonized countries. It is this dialogue between
different historical moments that is intended to be studied by means of the novel I,
Tituba... Black witch of Salem (1986), by the Antilean writer Maryse Condé, which
dialogues with two other works by American authors, The Crucible (1953), by Arthur
Miller and The Scarlet Letter (1850), by Nathaniel Hawthorne.
Key-words: intertextuality. character. History
SUMÁRIO
Introdução 10
1. Sobre textos teóricos 14
1.1
História e Ficção
1.1.1
Entre história e literatura
1.1.2 Um retorno às origens: o período de colonização norte-americana 22
1.1.3 Colonização e Guerra Fria: distância histórica, coincidências políticas 31
1.1.4 Miller e Hawthorne: releituras da história 34
1.2 Dialogismo e Intertextualidade 37
1.3 Personagem 58
2.
Sobre textos ficcionais
2.1
As Bruxas de Salém
2.2 A Letra Escarlate 95
2.3 Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém 108
2.4 Diferentes discursos em destaque 132
Considerações finais 158
Referências 162
INTRODUÇÃO
A contemporaneidade vê surgir, em suas propostas literárias, obras que dialogam
com outras, de períodos anteriores à sua composição, sendo que tais produções
contemporâneas apresentam, em seu conteúdo, uma nova perspectiva, na tentativa de
que suas narrativas reformulem ou desafiem o passado, como se pudessem preencher
espaços deixados pelos textos anteriores, o que acaba por constituir, principalmente em
obras originárias de países colonizados, as formas intertextuais mais comumente
encontradas na ficção contemporânea. É este diálogo entre diferentes visões em
diferentes momentos históricos que se pretende enfatizar no estudo da obra Eu, Tituba,
Feiticeira... Negra de Salém (1986), da escritora antilhana Maryse Condé, que recria um
espaço colonizado em seu romance, ao dialogar com duas outras obras de autores norte-
americanos, As Bruxas de Salém (1953), de Arthur Miller e A Letra Escarlate (1850),
de Nathaniel Hawthorne, produzidas em momentos histórico-literários diversos, mas
que tratam igualmente do período de colonização da América do Norte, oferecendo,
assim, uma rica possibilidade de estudo intertextual.
Uma vez que se faz necessário um levantamento acerca das teorias que tratam da
questão da intertextualidade, o presente estudo se apresentará dividido da seguinte
maneira: no primeiro capítulo, intitulado fundamentos teóricos, serão apresentadas não
somente as teorias que remontam à intertextualidade, bem como outras teorias que, em
paralelo, auxiliarão no desenvolvimento do estudo, como as que se referem à construção
da personagem e à metaficção historiográfica. Vale ressaltar que as correntes teórico-
críticas passaram por diferentes momentos no século XX, com questões muitas vezes
conflitantes entre si nesse sentido, nas últimas cadas surgiu, entre esses diversos
posicionamentos teóricos, uma corrente não menos controvertida, o pós-modernismo,
no qual se situa Linda Hutcheon, cuja teorização a respeito da metaficção
historiográfica constitui umas das obras base para este estudo.
Cumpre frisar que será bastante enfatizado o ponto de vista do dialogismo, a
partir de Bakhtin e suas teorias, uma vez que a obra de Maryse Condé dialoga com duas
outras obras de autores norte-americanos não contemporâneos a ela nem em momento
histórico, nem em temática social, mas que serviram como pano de fundo para que ela
desenvolvesse em seu romance a narrativa de uma personagem protagonista que é
escrava e narra sua trajetória em um mundo de brancos no período colonial americano.
Temos aqui, então, a junção de diversas propostas teóricas: a proposta dialógica entre as
três obras, de Condé, Miller e Hawthorne, que se estabelece a partir do estudo da
personagem e como essa personagem, por meio de sua visão, seu posicionamento,
permite ao leitor traçar um paralelo entre os diferentes períodos histórico-sociais
presentes nas obras estudadas e como o desenvolvimento da personagem na narrativa
permite aproximá-la de seus pares nos hipotextos também apresentados.
Mais precisamente, a obra de Maryse Condé narra a trajetória de uma escrava,
Tituba, que conta, como protagonista e narradora, a história de sua vida desde o
momento de seu nascimento, sua infância, seu deslocamento do mundo e consequente
isolamento da vida social, sua reintegração à sociedade, motivada pela paixão, sua
opção por efetivamente ser escrava para acompanhar o homem a quem amava e sua vida
ao lado deste homem. Essa trajetória incluiu sua mudança da terra natal, Barbados, para
a América do Norte, ainda no período de colonização pela comunidade que se
estabeleceu na Nova Inglaterra, notadamente em Salém e todos os episódios ali
ocorridos, incluindo a acusação feita à sua pessoa de envolvimento com feitiçaria, sua
consequente condenação e prisão e, posteriormente, sua soltura. A escrava, sempre
vítima da impunidade e do preconceito, passa a ser empregada de um imigrante
naquelas terras, mas agora um judeu-português, a quem deve a sua volta a Barbados
após um funesto acidente com aquela família, igualmente consumida pelo preconceito.
Com seu retorno à terra natal, Tituba, a escrava, se vê como uma lenda viva, como uma
espécie de ícone para o povo ao qual pertencia, mesmo que enquanto ali vivesse, tivesse
sido rechaçada nesse momento, Tituba passa a lutar pela liberdade de seu povo,
pertencendo a uma nova realidade.
Em diálogo com a obra da escritora antilhana, temos a peça As bruxas de Salém,
de Arthur Miller, que, escrita no período da Guerra fria, década de 50 do século XX,
retrata o período colonial americano, com comunidades puritanas estabelecidas na
região da Nova Inglaterra, onde se forma um grupo severamente observador das normas
e condutas religiosas. O texto teatral gira em torno de um episódio em que pessoas
passam a ser acusadas de envolvimentos com bruxaria e têm que se defender provando
o contrário muitos são condenados à forca, mesmo sem ter nenhuma forma de
envolvimento com o sobrenatural, pois na verdade o que havia era uma série de
acusações infundadas, com pessoas querendo tirar proveito pessoal da situação, quer
fosse do ponto de vista financeiro, amoroso ou religioso. A peça de Miller promove, na
verdade, um retorno ao passado histórico para fazer uma crítica ao período em que o
autor a compôs, uma vez que a década de 50 na América viu o desenvolver do
Macartismo, movimento cunhado por conta do senador Joseph McCarthy, que propôs
uma nova caça às bruxas no país, para que fossem perseguidos todos aqueles que
mantivessem algum tipo de ligação, direta ou indireta, verdadeira ou falsa, com o
comunismo. Miller buscou, através de sua peça, representar o comportamento odioso
que foi deflagrado naquele momento e se utilizou do episódio de Salém para que
pudesse deixar pública a sua crítica à hipocrisia de seu tempo.
Por fim, temos A letra escarlate, romance escrito por Nathaniel Hawthorne, no
período romântico norte-americano, que também, de alguma forma, promoveu um
retorno ao passado, não tão distante como na obra anterior, mas também relevante, para
mostrar a força e a coragem de uma mulher que, acusada de adultério, é condenada pela
comunidade, igualmente puritana, a usar um adereço que a descrevesse como pecadora
e mostrasse a razão de seu pecado e de sua consequente dívida com aquela sociedade
para sempre. Nesta obra, o diálogo que se pode estabelecer com o romance de Condé se
dá por meio da personagem protagonista, a supostamente pecadora Hester Prynne que,
enquanto presa, aguardando julgamento, se encontraria com Tituba, a protagonista do
romance de Maryse Condé. A partir desse encontro, as protagonistas travariam diálogos
nada convencionais para mulheres de seu tempo, apresentando um posicionamento
crítico com relação aos fatos e aos comportamentos dos habitantes daquela comunidade,
além de propor um novo destino para Prynne, diferente daquele apresentado pela obra
de Hawthorne.
Eu, Tituba, feiticeira... negra de Salém, o romance de Condé, apresenta, então,
temáticas bastante relevantes não somente ao estudo da literatura, por meio das
propostas de leituras dialógicas e do estudo da personagem, mas também ao estudo da
história do comportamento humano e das conseqüência advindas dos caminhos por eles
ou para eles traçados, por meio de uma visão do eu e do outro, de um duplo olhar para
um mesmo objeto de estudo.
Com base no teor das obras a serem estudadas, também se faz necessária uma
apresentação do contexto histórico dos períodos retomados pelas mesmas, a saber, e
com maior ênfase, o período de colonização americana, desde o início da reforma
protestante até as questões associadas ao puritanismo, com a imigração de ingleses para
a América do Norte em busca de uma nova terra prometida, além da oportunidade de
fugir de uma realidade que já o lhes era satisfatória nem permissível e o período
referente à década de 50 do século XX, resgatando determinado acontecimento histórico
daquele país para recriar uma postura de suposto patriotismo, em que as pessoas
deveriam acusar a todos que acreditassem manter relações com o movimento comunista
ou que apresentassem atitudes subversivas que pudessem vir a prejudicar a nação,
períodos esses, coincidentemente recriados nas três obras estudadas.
No capítulo seguinte, com base nos levantamentos anteriores, as obras serão
apresentadas, uma a uma. A princípio, a peça de Arthur Miller, As Bruxas de Salém,
passando por A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne que, embora menos explorada,
é representada, mesmo que em segundo plano pela obra-chave deste estudo e, por fim, o
romance de Maryse Condé, Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém, em uma tentativa
inicial de, com base nas referidas teorias, estudar as obras, para que fique mais clara a
relação entre elas.
Posteriormente, no capítulo final, apresenta-se um estudo contrastivo entre as
três obras, avistando como possibilidade de conclusão a leitura intertextual do romance
de Condé e como ocorre tal retomada do cânone literário.
Julga-se necessário, por fim, justificar o porquê de um corpus longo, que se deve
ao fato de apresentar a tentativa de melhor explorar as possibilidades de leituras
intertextuais entre as obras estudadas, além de colocar em foco a problematização
presente em todas as temáticas apresentadas pelos autores: a questão da intolerância
quer seja por sexo, raça, religião, por questões políticas ou sociais, todas as personagens
dessas obras revelam posicionamentos diversos com relação ao que significa ou
significava a intolerância em cada um desses períodos e as consequências dessa forma
de comportamento, como uma espécie de crítica o somente ao período retomado
pelos autores, mas também ao momento em que as obras foram publicadas.
1 SOBRE TEXTOS TEÓRICOS
1.1 HISTÓRIA E FICÇÃO
(...) a ficção é quase histórica, tanto quanto a história é quase fictícia, tão
logo a quase-presença dos acontecimentos colocados 'diante dos olhos' do
leitor por uma narrativa animada supre, por sua intuitividade, sua
vivacidade, o caráter esquivo da passadidade do passado (...). Paul Ricoeur,
1997.
1.1.1 Entre História e Literatura
Ao propor, no presente trabalho, a análise de uma obra que propicia uma re-
visão de duas outras, torna-se relevante apontar as formas pelas quais esse novo ponto
de vista adquire relevância.
Em um primeiro momento, esta leitura da obra de Maryse Condé retoma, clara e
obviamente, a peça de Arthur Miller e, em um segundo momento, o romance de
Nathaniel Hawthorne. Há, entremeios, menções a outras obras literárias, contudo,
pretende-se aqui o desenvolvimento do diálogo estabelecido entre Condé e Miller, em
primeira instância, e entre Condé e Hawthorne, como segunda forma de releitura
diálogos esses que sugerem um entendimento mais completo da obra da antilhana, foco
principal deste estudo.
Fato é que antes mesmo de se tratar dos aspectos dialógicos entre as narrativas
mencionadas, deve-se operar um levantamento histórico-social acerca das temáticas
presentes nos hipotextos como uma tentativa de empreender uma sequência lógica para
uma melhor compreensão dos fatos narrados em Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém
(1986), bem como as opções de Condé ao manter, em seu romance, diálogo com duas
obras construídas em períodos distintos, mas que, em contrapartida, partilham da
mesma temática.
Cabe, então, proceder a essa pesquisa em busca das interfaces de
complementaridade entre História e Literatura, de forma que seja possível estabelecer
os paralelos pretendidos para tal fim, constituem alicerces deste estudo as teorias de
Peter Burke, Hayden White, Paul Ricoeur, Edward Hallet Carr, Julia Kristeva, Antoine
Compagnon e Linda Hutcheon, esta última especialmente em se tratando das questões
referentes à metaficção historiográfica.
Em Que é história? (1982), Carr aponta para o questionamento no título de sua
obra, afirmando que antes de qualquer definição acerca da natureza e/ou finalidade da
História, deve-se optar pela busca em saber o que é um fato histórico, ou seja, distinguir
os fatos básicos, a matéria-prima da pesquisa histórica, daqueles que foram, de alguma
forma, refratados por quem os registrou:
(...) nós podemos visualizar o passado somente através dos olhos do presente.
O historiador pertence à sua época e a ela se liga pelas condições de
existência humana. As próprias palavras que usa tais como democracia,
império, guerra, revolução têm conotações presentes das quais ele o se
pode divorciar. (p.60)
O que o pesquisador procura deixar claro é o fato de que o historiador, num
sentido mais restrito, assim como o ser humano, em um plano mais abrangente, é
moldado, até certo ponto, pelo meio em que vive. Fica clara a idéia de que a influência
exercida pelo momento presente pode, até mesmo, significar uma forma de fuga dessa
realidade, buscando na história um refúgio, conforme o próprio Carr menciona, ao citar
Acton: A história escreveu ele deve não apenas nos livrar da influência indevida de
outros tempos, mas também da influência indevida de nosso próprio tempo, da tirania
do meio e da pressão do ar que respiramos. (id., p. 79) Também vale destacar o
posicionamento da crítica Julia Kristeva, em Introdução à Semanálise (1974), quando,
ao tratar do texto e sua ciência, menciona que no ato literário não distância ideal em
relação àquilo que ele significa (cf. p. 9). Ao ver o texto literário com o poder
transformador da linguagem, Kristeva o faz inserindo o contexto literário na História:
Sob o nome de magia, poesia e, enfim, literatura, esta prática sobre o
significante se encontra, ao longo de toda a História, envolvida por um halo
misteriosoque, seja valorizando-a, seja atribuindo-lhe um lugar ornamental,
se não nulo, -lhe o duplo golpe da censura e da recuperação ideológica.
Sagrado, belo, irracional, religião, estética, psiquiatria estas categorias e
estes discursos pretendem, cada um por seu turno, ocupar-se desse objeto
específico, o qual o poderíamos denominar sem classificá-lo em uma das
ideologias recuperadas e que constitui o centro de nosso interesse,
operatoriamente designado como texto. (p. 10, marcas da autora)
Para Kristeva, o texto
é um sistema duplamente orientado, no qual o real é
instalado na língua e na história social. De alguma forma, Peter Burke compartilha da
posição de Carr e Kristeva, em A escrita da história: novas perspectivas (1992),
acrescentando que há a concepção de uma nova história, como expansão do conceito de
História, segundo ele, de definição estreita, para um conceito mais abrangente, mas não
menos intrigante: A nova história é a história escrita como uma reação deliberada
contra o paradigma tradicional (...). (p. 12)
Na mesma obra, Burke aproxima o desenvolvimento dos estudos sobre a
História ao renascimento do aspecto narrativo, mencionando Ricoeur e Lyotard:
Ricoeur [declara] que toda a história escrita, incluindo a chamada história
estrutural (...), necessariamente assume algum tipo de forma narrativa. De
um modo similar, Jean-François Lyotard descreveu algumas interpretações
da história, especialmente aquela dos marxistas, como grandes narrativas.
(id., p. 328, marcas do autor)
O estudioso também faz menção a Hayden White, ao indicar que o historiador
sugere que, ao se tratar de narrativas de cunho histórico, quatro planos básicos nelas
desenvolvidos: comédia, tragédia, sátira e romance. (cf. p. 338) De fato, em Trópicos do
discurso: ensaios sobre a crítica da cultura (1994), White trata da questão da
interpretação na História, afirmando que nela sempre posicionamentos de cunho
irredutível, mas que é parte do trabalho do historiador a construção de um padrão de
pesquisa, de forma que possa, através de seu trabalho, apontar como o processo
histórico se desenvolve. Entretanto, esse mesmo pesquisador se depara com
dificuldades intrínsecas ao seu objeto de pesquisa: deve discernir, dentre os fatos,
aqueles de maior relevância, mas ao mesmo tempo, ao narrá-los, deve interpretá-los,
como forma de relatar o que ocorreu em determinado período de maneira lógica e
convincente, concluindo que:
(...) o historiador precisa interpretar o seu material, preenchendo as lacunas
das informações a partir de inferências ou de especulações. Uma narrativa
histórica é assim, forçosamente uma mistura de eventos explicados adequada
e inadequadamente, uma congérie de fatos estabelecidos e inferidos, e ao
mesmo tempo, uma representação que é uma interpretação e uma
interpretação que é tomada por uma explicação de todo o processo refletido
na narrativa. (id., p. 65, marcas do autor)
White cita Lévi-Strauss ao aproximar fatos históricos e elementos da narrativa,
uma vez que este considera uma postura mais literária quanto à historiografia,
defendendo a tese de que em um dado episódio histórico há tantos outros eventos
interiores, que seria impossível descrevê-los de maneira completa: Assim, conclui
Lévi-Strauss, os fatos históricos não são de forma alguma dados ao historiador, mas,
antes, são construídos pelo próprio historiador por abstração e como sob ameaça de
uma regressão ao infinito. (id., p. 71, marcas do autor) Levando, ainda, em
consideração os elementos da narrativa, cabe mencionar Kristeva (1974) novamente, em
especial quando a autora cita Bakhtin, postulando que para ele o estatuto da palavra
constitui uma unidade mínima estrutural (cf. p. 62) e é através desta noção que o autor
situa seu texto tanto na história como na sociedade, pois estando o autor inserido em
ambos os contextos, é natural que sua produção acabe por transparecê-los. Segundo
Kristeva,
A diacronia se transforma em sincronia e à luz dessa transformação, a
história linear surge como uma abstração: a única maneira que tem o escritor
de participar da história vem a ser, então, a transgressão dessa abstração
através de uma escritura leitura, isto é, através de uma prática de uma
estrutura significante em função de ou em oposição a uma outra estrutura. A
história e a moral se escrevem e se lêem na infra-estrutura dos textos. Desse
modo, plurivalente e plurideterminada, a palavra poética segue uma lógica do
discurso codificado, só realizado plenamente, à margem da cultura oficial. (p.
62, marcas da autora)
De maneira complementar, sob o ponto de vista de Antoine Compagnon, em O
demônio da teoria. Literatura e senso comum (2006), a História está vinculada ao
tempo e designa as relações dos textos entre si no tempo, acrescentando que A
literatura muda porque a história muda em torno dela. Literaturas diferentes
correspondem a momentos históricos diferentes.(p. 196)
A partir desses pressupostos, retomamos White, que diferencia estória de enredo,
sendo estória o conjunto de fatos intrínsecos ao evento histórico e tal distinção, no
tocante à narrativa de cunho histórico, permite detalhar o que se insere na explicação
narrativa. (id., p. 77). O crítico acrescenta:
Podemos dizer, então, que na história como nas ciências humanas em geral
toda representação do passado tem implicações ideológicas especificáveis e
que, portanto, é possível discernir pelo menos quatro tipos de interpretação
histórica que têm as suas origens em tipos diferentes de comprometimento
ideológico. (id, p. 88)
É possível voltar a mencionar Compagnon que apresenta o termo História como
aquele que suscita certa ambiguidade, bem vinda, segundo o autor, uma vez que (...)
designa, ao mesmo tempo, a dinâmica da literatura e o contexto da literatura. Essa
ambiguidade se refere às relações da literatura com a história (história da literatura,
literatura na história). (p. 197, marcas do autor)
O estudioso sugere, ainda, que há, quando da junção história / literatura, uma
retomada de termos associados e representativos de oposições que, em algum momento,
serviram para representar movimentos ou momentos literários, como imitação /
inovação, antigos / modernos, tradição / ruptura, classicismo / romantismo, horizonte de
expectativa / horizonte estético, sendo este último par composto por categorias
derivadas dos estudos da Estética da Recepção.
Tomando as concepções de White e Compagnon, parece clara a distinção entre
os eventos históricos e fictícios a serem abordados neste trabalho, como em uma
moldura, sendo que na parte mais exterior, encontram-se os eventos acontecidos em
Salém no século 17 e, em uma primeira moldura interior, as obras literárias de Miller e
Hawthorne, complementada por uma segunda moldura interior, onde estaria inserido o
romance de Condé.
Nesse contexto, de acordo com o historiador, é possível inserir a noção de
interpretação na historiografia de três formas: estética (quando da escolha da estratégia
narrativa), epistemológica (quando da escolha do paradigma explicativo) e ética
(quando da seleção da estratégia através da qual as implicações ideológicas possam ser
deduzidas para que se compreendam os problemas sociais no presente). Mais do que
questionar as formas de interpretação e suas consequências ideológicas, White trata da
possibilidade de se ver o texto de cunho histórico como artefato literário, contrapondo
EPISÓDIO DE SALÉM
SÉCULO XVII TITUBA HISTÓRICA
NATHANIEL HAWTHORNE (1850) HESTER PRYNNE
M
ARTHUR MILLER (1953) TITUBA
MARYSE CONDÉ (1986)
TITUBA / TITUBA + TITUBA / HESTER
ficção, como representação do imaginável, e história, como a representação do
verdadeiro, pois:
(...) tal como a literatura, a história se desenvolve por meio da produção de
clássicos, cuja natureza é tal que não podemos invalidá-los nem negá-los, a
exemplo dos principais esquemas conceituais das ciências. E é o seu caráter
de não-invalidação que atesta a natureza essencialmente literária dos
clássicos históricos. Há algo na obra-prima da história que não se pode negar,
e esse não-negável é a sua forma, a forma que é a sua ficção. (id., p. 106,
marcas do autor)
Nesses termos, é possível retomar as palavras de Linda Hutcheon, em Poética do
pós-modernismo. História. Teoria. Ficção (1991), quando trata dessa corrente como
fenômeno cultural, dizendo que (...) o que caracteriza o pós-modernismo na ficção
seria aquilo que chamo de metaficção historiográfica (...). (id, p.11) Na verdade,
antes mesmo de definir esse termo, Hutcheon trata da problematização da História, e
situa o pós-modernismo como um movimento que contesta os princípios da ideologia
dominante, propondo uma nova perspectiva da arte. A concepção de perspectivas
variáveis sobre a arte faz surgir o conceito de não-identidade e, atrelado a este, o
conceito de diferenças, que remete a opostos, como a não uniformidade do que é
descentralizado do ponto de vista criado através dessa concepção do marginal, tomando
o cuidado de não torná-lo um novo centro, mas um ex-cêntrico:
No passado (...) a história foi muitas vezes utilizada na crítica de romances,
embora normalmente como um modelo de visão realista da representação. A
ficção pós-moderna problematiza esse modelo com o objetivo de questionar
tanto a relação entre a história e a realidade quanto a relação entre a realidade
e a linguagem (...). (HUTCHEON, 1991, p. 34)
Ora, sob a perspectiva da autora, História é, de fato, contestadora,
principalmente na pós-modernidade, assim como apontaram, de uma forma ou de outra,
todos os outros autores mencionados, fica evidente a mensagem de que a História não
apenas deixa claro o discurso dominante, mas permeia todos os outros discursos
marginais a ele, como que determinando sua existência e estabelecendo paralelos para
sua possível compreensão. Hutcheon acrescenta que as contradições existentes em toda
forma de convenção ficam mais evidentes quando o centro cede espaço às margens. (cf.
p. 86) Além disso, declara que o movimento pós-moderno apresenta caráter
contraditório, uma vez que instala, propõe conceitos, para então subvertê-los, desafiá-
los:
Aquilo que quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente
contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político. Suas
contradições podem muito bem ser as mesmas da sociedade governada pelo
capitalismo recente, mas seja qual for o motivo, sem dúvida essas
contradições se manifestam no conceito pós-moderno de presença do
passado. (...) não é um retorno nostálgico; é uma reavaliação crítica, um
diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade, a ressurreição de um
vocabulário (...) criticamente compartilhado (...). (HUTCHEON,1991, p. 20)
Assim, a concepção do termo metaficção historiográfica, empregado por
Hutcheon, faz uma referência à análise da narrativa em romances de teor auto-reflexivo
e que, ao mesmo tempo, se aproximam de acontecimentos e personagens históricos,
como no caso da obra de Maryse Condé: (...) a metaficção historiográfica incorpora
todos esses três domínios literatura, história, teoria, ou seja, sua autoconsciência
teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (...) passa a ser a base para seu
repensar e sua re-elaboração das formas e dos conteúdos do passado (...). (ibid., p. 22)
Mais especificamente, no capítulo denominado Metaficção Historiográfica: O
passatempo do tempo passado, Hutcheon explicita que a partir do século XX, literatura
e história são consideradas ramos do mesmo saber e que os romances ditos pós-
modernos levantam questões que merecem estudo detalhado acerca da natureza da
identidade, além da subjetividade da referência e da representação, da natureza
intertextual do passado e das implicações ideológicas do ato de escrever sobre ele,
confrontando diversos paradoxos, como os das dicotomias ficção / histórica, particular /
geral, presente / passado:
A metaficção historiográfica sugere que verdade e falsidade podem não ser
mesmo os termos corretos para discutir a ficção (...). A ficção e a história são
narrativas que se distinguem por suas estruturas (...), estruturas que a
metaficção historiográfica começa por estabelecer e depois contraria,
pressupondo os contratos genéricos da ficção e da história. Nesse aspecto, os
paradoxos pós-modernos são complexos (...)
A fic
ção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na
ficção e na história é em ambos os casos revelá-lo ao presente, impedi-lo
de ser conclusivo e teleológico (...). (ibid., pp. 146-147)
A metaficção, portanto, se aproveita de fatos possivelmente ocorridos no registro
histórico e a verdadeira questão esem como se faz uso de tais dados, privilegiando
múltiplos pontos de vista ou narradores declaradamente onipotentes e, quando aponta
como problemática tudo o que os romances históricos postulavam como correto, a
metaficção historiográfica desestabiliza os conceitos formalmente conhecidos de
história e ficção. Assim, é possível afirmar que a obra de Condé atende perfeitamente a
tais pressupostos, uma vez que faz uso do registro histórico: caça às bruxas, período da
colonização e, por isso, subverte os fatos, construindo uma personagem de existência
histórica indiscutível, mas apresentada de forma secundária aos fatos, e, em sua obra,
como protagonista. Ainda com base na teoria da metaficção historiográfica proposta por
Hutcheon, é possível remeter a um paralelo com Julia Kristeva (1974) quando a autora
trata dos diálogos presentes nos textos bakhtinianos. Segundo ela, Bakhtin
(...) é um dos primeiros a substituir a découpage estatística dos textos por um
modelo, no qual a estrutura literária não é, mas onde ela se elabora em
relação a uma outra estrutura. Esta dinamização do estruturalismo é
possível a partir de uma concepção, segundo a qual a palavra literária não é
um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um
diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da
personagem), do contexto cultural atual ou anterior. (p. 62, marcas da autora)
Para concluir este breve preâmbulo acerca da relação história-literatura, o que se
considera real e o que se diz imaginável, retomamos Carr (1982): Pode-se concluir,
então, que não existe verdade histórica? Existe, responde Carr. E mais, existe a filosofia
da história, termo inventado por Voltaire que para Carr significa 'ver o passado através
dos olhos do presente e à luz dos seus problemas. ' (quarta capa). Dialogando com
Carr, Hutcheon diria que (...) a metaficção historiográfica sugere uma distinção entre
'acontecimentos' e 'fatos' que é compartilhada por muitos historiadores (...). (1991, p.
161)
O que vale ressaltar para a continuidade deste estudo é a ideia de que a verdade
pode, sim, ser reinventada ficcionalmente e em infinitos direcionamentos e aqui se
encontra a nossa proposta: a apresentação de algumas das possibilidades de leitura
intertextual entre as três obras apresentadas.
1.1.2 Um retorno às origens: o período de colonização norte-americana
Tomando como pressuposto a ideia de que o passado não pode ser deixado de
lado, mas que deve ser compreendido a partir do momento em que é analisado, e que a
História, de uma forma ou de outra, acaba sempre por apresentar um cunho de ficção,
resta uma apresentação dos fatos que estão devidamente registrados como históricos e
que servem como pano de fundo para As Bruxas de Salém, peça de Arthur Miller,
publicada em 1953, e A Letra Escarlate, romance de Nathaniel Hawthorne, publicado
em 1850, retomados mais tarde em Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém (CONDÉ,
1986), evidenciando os hipotextos compostos por Miller e Hawthorne, em si mesmos, já
apresentam uma releitura ficcional desse momento da História Americana, datado do
século XVII, o período colonial. Entretanto, para que se possa tratar dos episódios que
dizem respeito ao período e às temáticas abordadas pelos escritores, há que se propor
uma volta um pouco maior no tempo, para um melhor entendimento dos fatos e dos
comportamentos daquelas personagens retratadas na História e na ficção.
O modelo original era a Inglaterra, o que realmente significava ser inglês, já
entre os séculos XIV e XV, com a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), contra a França,
e, posteriormente, com a Guerra das Duas Rosas (1455-1485), entre os representantes
das cidades de York e Lancaster, simbolizados, respectivamente, por uma rosa branca e
uma rosa vermelha, que lutavam pelo domínio do poder:
Qual a importância dessas duas guerras para a Inglaterra? A luta contra a
França estimulou certa unidade na ilha, reforçando o chamado esplêndido
isolamento, como os ingleses denominaram o seu relativo afastamento do
continente. A sucessão de guerras colabora também para enfraquecer a
nobreza e suscitar no país o desejo de um poder centralizado e pacificador. A
dinastia Tudor (1485-1603), que surge desse processo, torna-se, de fato, a
primeira dinastia absolutista da Inglaterra. (KARNAL, 2007, p. 31)
Com os Tudors no poder há uma série de transformações operadas na Inglaterra:
a afirmação do poder real inglês e o crescimento da classe burguesa; a abertura à cultura
e às artes de modo geral; o poder reforçado com a Reforma Protestante e, como um de
seus resultados, o rompimento com a Igreja Católica e a consequente fundação da Igreja
Anglicana, pelo Rei Henrique VIII, segundo na dinastia, complementa Karnal (2007):
Os dois maiores limites ao poder real eram os nobres e a Igreja Católica. Graças à
Reforma e à fraqueza da nobreza inglesa, esses limites foram eliminados ou diminuídos
durante a dinastia Tudor. (p. 32)
Durante o século XVI, sob o governo da Rainha Elizabeth I, o possível risco
de uma invasão pela Espanha foi eliminado com a derrota da Invencível Armada
Espanhola, em 1588, o que colaborou para o fortalecimento do nacionalismo inglês:
Os ingleses estavam desenvolvendo a modernidade política. Mas no que ela
consistia? Basicamente, seria uma ação política independente da teologia e da
moral. Em outras palavras, a ação dos príncipes modernos não procura levar
em conta se o que fazem é moralmente correto. Os príncipes modernos agem
porque tal ação é eficaz para atingir seus objetivos, dentre os quais, o maior é
conseguir poder absoluto. (ibid., p. 33
)
O século XVII viu o início da dinastia Stuart, com uma Inglaterra fragmentada
em diversas facções protestantes, diversos focos de resistência católica, além da igreja
oficial, a Anglicana. Política e economicamente, durante esse período, houve aumento
populacional e um crescimento ainda maior da produção de manufaturas (que indicaram
prosperidade durante a dinastia anterior), além de processos de cercamento territorial, os
chamados enclosures, ocasionando a intensificação do êxodo rural, também devido à
expansão da indústria e, evidentemente, o avanço do capitalismo. Toda essa
efervescência da chamada política moderna gerou diversos descontentamentos por
parte da burguesia, liderada por Oliver Cromwell contra o Rei Carlos I, na Guerra Civil
Inglesa (1642-1648):
(...) ao matarem Carlos I, os ingleses estavam declarando: os reis devem
servir à nação e não o contrário. Os juízes, em 1649, declararam que Carlos I
era tirano, traidor, assassino e inimigo público. Como disse o historiador
Christopher Hill, a ilha da Grã-Bretanha tinha virado a Ilha da Grã-
Loucura. (ibid., pp. 35-36)
Com o Parlamento vencendo a Guerra Civil, a Inglaterra passa a sediar a
primeira revolução burguesa européia, a revolução Gloriosa, que depôs dois membros
da dinastia Stuart, em 1649 e, posteriormente, em 1688:
Os choques entre rei e burguesia, entre a religião oficial e os grupos
reformados, bem como choques entre grupos mais democráticos e populares
contra grupos burgueses tudo isso colabora para tornar o século XVII um
momento conturbado na história da Inglaterra e ajuda a explicar o pouco
controle inglês sobre suas colônias. (KARNAL, 2007, p. 36)
Durante os séculos XVI e XVII, com todas essas disputas, houve alta de preços,
o que gerou a inflação, além de problemas como a fome e a peste, que se tornaram
graves perturbações sociais, associados à ausência de um projeto colonial para a
América como a Inglaterra estava envolvida nesta série de problemas, faltava um
referencial que servisse de base para o processo colonizatório, além de outros aspectos
como:
As perseguições religiosas que marcaram o período também estimularam
muitos grupos minoritários, como os quakers, a se refugiarem na América. O
aumento da pobreza nas cidades favorece grupos sem posses a ver na
América a oportunidade de melhorarem sua vida e serem livres.
Os ingleses que vêm para a América trazem uma tradição cultural diversa da
espanhola ou da portuguesa. Os colonos ingleses, por exemplo, convivem
com mais religiões. O senso do relativo que a história inglesa ajudara a
formar estabeleceria uma possibilidade de opção bem maior, uma visão de
mundo mais diversificada para nortear as escolhas de vida feitas na nova
terra.
O estado e a Igreja Oficial, na verdade, n
ão acompanharam os colonos
ingleses. Aqui eles teriam que construir muita coisa nova, inclusive a
memória. No entanto, uma nova memória foi possível graças às
transformações que a própria história inglesa havia sofrido desde o final da
Idade Média e a conseqüente criação de novos referenciais culturais. (ibid.,
2007, p.37)
Ao se falar em América, os ingleses não foram os primeiros em sua colonização,
entretanto, independentemente dos avanços conquistados por outros impérios, a Rainha
Elizabeth I concede a Sir Walter Raleigh permissão para iniciar a colonização
americana sob a bandeira inglesa. Entre 1584 e 1587, Raleigh fez diversas expedições à
região por ele batizada como Virgínia, em homenagem à rainha. Contudo, seu processo
de iniciar a colonização foi frustrado por diversos ataques indígenas, pela fome e outros
problemas que não permitiram que a experiência fosse bem sucedida.
No início do século XVII, no entanto, a Inglaterra revive seu impulso
colonizador com as companhias mercantis e a fundação das treze colônias na América,
mas quem foram os colonizadores e o que os levou a deixar a Inglaterra? A resposta
pode ser encontrada no acentuado êxodo rural, por conta da expansão das manufaturas e
também pela ausência de empregos nas grandes cidades. Assim, a ideia de migrar para
um lugar que oferecia terras férteis e a possibilidade de enriquecimento não parecia
para essas pessoas:
Naturalmente, as autoridades inglesas também viam com simpatia a ida
desses elementos para lugares distantes. A colônia serviria, assim, como
receptáculo de tudo o que a metrópole não desejasse (...).
A pr
ópria Companhia de Londres declarara, em 1624, que seu objetivo era: a
remoção da sobrecarga de pessoas necessitadas, material ou combustível para
perigosas insurreições e assim deixar ficar maior fartura para sustentar os que
ficam no país.
(...) Em 1620, a Companhia de Londres trazia cem
órfãos para a Virgínia. Da
mesma maneira, mulheres eram transportadas para serem leiloadas no Mundo
Novo. É natural concluir que essas mulheres, dispostas a atravessar o oceano
e serem vendidas na América como esposas, não eram integrantes da
aristocracia intelectual ou financeira da Inglaterra. (KARNAL, 2007, pp. 44-
45)
De fato, as pessoas que optavam por ir para a América enfrentavam diversos
problemas: os custos da viagem eram altos demais, o que ocasiona o surgimento de uma
nova forma de escravidão, a chamada servidão temporária (indenturent servant), na qual
anos de trabalho gratuito eram cedidos a quem quer que financiasse uma viagem para a
América, nesse caso, as grandes Companhias. Nem todos imigraram por vontade
própria, muitos foram, de alguma forma, deportadas, por serem devedores e não terem
como saldar suas dívidas. Dados indicam que somente metade dos imigrantes era
considerada como pilgrim saints, santos peregrinos, em sua maioria, colonos comuns,
mão de obra empregada, além dos que imigravam em regime de servidão temporária,
como anteriormente mencionado. Havia também outras formas de servidão, como, por
exemplo, as inúmeras crianças inglesas que eram raptadas, e vendidas como servas na
América: Mesmo entre os servos que aceitavam o contrato de servidão para o
pagamento da passagem, a situação não era tranqüila. Ao longo do século XVII,
ocorrem várias rebeliões de servos na América do Norte, reivindicando melhores
condições de vida. (ibid., p. 46)
De forma geral, entretanto, a ideia sobre aqueles que inicialmente povoaram a
Inglaterra, nos séculos XVI e XVII, sempre recai sobre os peregrinos, vítimas de
perseguições religiosas no antigo continente, que viam na América uma espécie de
refúgio e a imagem de uma nova Canaã, como na Bíblia:
Um dos grupos que chegou a Massachusetts em 1620 tinha como líderes John
Robinson, William Brewster e William Bradfort, indivíduos religiosos e com
formação escolar desenvolvida.
Ainda a bordo do navio que os trazia, o
Mayflower, esses peregrinos
firmaram um pacto estabelecendo que seguiriam leis justas e iguais. Esse
documento é chamado Mayflower Compact e sempre é lembrado pela
historiografia norte-americana como um marco fundador da idéia de
liberdade, ainda que o documento dedique longos trechos à glória do Rei
James da Inglaterra. (KARNAL, 2007, p. 46)
Esse grupo, o primeiro a embarcar rumo à América, é comumente chamado de
pilgrim fathers, pais peregrinos, sendo considerado como o grupo fundador dos Estados
Unidos, os WASP, white anglo-saxon protestant (protestantes brancos e anglo-saxões),
vistos como os colonos-modelo, sendo que o Mayflower Compact, por eles assinado em
21 de novembro de 1620, também serviu de modelo para outras colônias:
Os puritanos (protestantes calvinistas) tinham em altíssima conta a idéia de
que constituíam uma nova Can, um novo povo de Israel: um grupo
escolhido por Deus para criar uma sociedade de eleitos. Em toda a Bíblia
procuravam as afirmativas de Deus sobre a maneira como Ele escolhia os
seus e as repetiam com freqüência. Tal como os hebreus no Egito, os
puritanos receberam as indicações divinas de uma nova terra e, (...), são
freqüentes as referências ao pacto entre Deus e os colonos puritanos. A
idéia de povo eleito e especial do mundo é uma das marcas mais fortes na
constituição dos Estados Unidos. (ibid., p. 47)
Para que conseguissem manter sua identidade e coesão no Novo Mundo, os
puritanos exerceram imenso controle sobre todas as atividades praticadas e sobre os
indivíduos que habitavam aquelas terras, pois A ideia de uma moral coletiva onde o
erro de um indivíduo pode comprometer o grupo é também um diálogo com a
concepção da moral hebraica no deserto. O pacto Deus-povo é com todos os eleitos.
(ibid., p. 47) E, inserido nesse controle, deve ser ressaltado o caráter especial no tocante
à educação formal nas colônias, enfatizado pela presença dos protestantes naquelas
comunidades, de forma a garantir que todos fossem letrados para que pudessem ter
acesso à Escritura, certificando as bases para a livre interpretação da mesma. Prova
disso é a publicação, em 1647, na colônia de Massachusetts, de uma lei que obrigava
cada povoado com mais de cinquenta famílias a manter um professor, justificando que:
Sendo um projeto do Velho Satanás manter os homens distantes do
conhecimento das Escrituras, como em tempos antigos quando as tinham
numa língua desconhecida [...] se decreta para tanto que toda municipalidade
nesta jurisdição, depois que o senhor tenha aumentado sua cifra para
cinquenta famílias, dali em diante designará a um dentre seu povo para que
ensine a todas as crianças que recorram a ele para ler e escrever, cujo salário
será pago pelos pais, seja pelos amos dos meninos seja pelos habitantes em
geral. (in: KARNAL, 2007, p. 48)
Tal é a relevância dessa preocupação com o aspecto educacional que, em 1764,
as colônias contavam com sete universidades estabelecidas, formando também os
pastores para toda e qualquer igreja que fosse ali construída, de modo que os preceitos
da fé protestantes estariam sempre mantidos.
Inserida em todo esse contexto, e com maior importância para o
desenvolvimento da presente pesquisa, está a já mencionada colônia de Massachusetts,
a qual recebeu o grupo de puritanos ditos mais descontentes com as práticas da Igreja da
Inglaterra, pretendendo formar uma versão purificada dessa mesma Igreja o que não
lhes satisfazia dizia respeito às práticas sacerdotais e não a religião. De maneira geral,
eram contrários à tolerância religiosa que apresentavam outros grupos de protestantes e,
devido à sua forte influência calvinista, acreditavam que uma Igreja de grande força
deveria ter poderes civis. Seu fundador, John Winthrop, alegava que aquela seria uma
comunidade sagrada composta por religiosos unidos pelo louvor a Deus, buscando seu
'chamado' (TINDALL & SHI, 1989, p. 22). Karnal complementa que (...) essa colônia
aproximava-se, dessa forma, dos ideais católicos da teocracia. (2007, p. 51), mesmo
permanecendo protestante em sua essência. Ainda em março de 1630, a bordo do
Arbella, navio utilizado, dentre outros seis, para desbravar as novas terras americanas,
Winthrop fez um sermão chamado A model of Christian Charity (Um modelo de
caridade cristã), no qual afirmou: We must consider we shall be a city upon a hill an
exemplary beacon to all people of what a truly godly community could be.
1
(TINDALL & SHI, 1989, p. 23)
Inicialmente, o que mais chama a atenção para essa região, além do episódio da
perseguição às bruxas, considerado um dos mais significativos eventos derivados do
ideal dessa Igreja-estado, é o autoritarismo praticado por esse grupo puritano que
desencadeou, como outras formas de autoritarismo, a perseguição de todas as espécies
de contestações, quer fossem reais ou imaginárias, revelando, acima de tudo, extrema
intolerância em suas decisões e posicionamentos, pois de acordo com os preceitos por
eles estabelecidos, a depravação inata à humanidade fazia dos governos uma
necessidade. Como é possível verificar em:
1Devemos considerar a ideia de que seremos uma cidade sobre uma colina um farol exemplar para
todas as pessoas do que uma comunidade verdadeiramente divina deveria ser. (tradução nossa)
If people be governors, asked the Rev. John Cotton, who shall be
governed?
The Puritan was dedicated to seeking not the will of the people but the will of
God. The ultimate source of authority was the Bible. But the Bible had to be
known by right reason, which was best applied by those trained to the
purpose. Hence, most Puritans deferred to an intellectual elite for a true
knowledge of God's will. Church and state were but two aspects of the same
unity, the purpose of which was to carry out God's will on earth. The New
England way might thus be summarized in one historian's phrase as a kind of
dictatorship of the regenerate, or of those who had undergone the
conversion experience required for church membership. (TINDALL & SHI,
1989, pp. 54-55)
2
Quando se fala na perseguição às bruxas, de fato Massachusetts presenciou, em
Salém, 1692, um suposto e incomprovável surto de feitiçaria com proporções nunca
antes vistas, envolvendo diversos membros de sua população: A cidade de Salém viveu
uma histeria coletiva. Havia surtos freqüentes (...). As razões, no entender dos
habitantes de Salém, poderiam ter ligação com uma ação demoníaca. (KARNAL,
2007, p. 51)
Nesse episódio, historicamente conhecido como caça às bruxas, pessoas eram
acusadas de conluios com o Demônio e, na impossibilidade de provarem o contrário,
eram presas e condenadas à forca, caso não admitissem o pecado e tivessem sua
imagem denegrida perante toda a comunidade, além de suas propriedades usurpadas,
como forma de amenizar o mal que haviam trazido para aquela comunidade.
Obviamente, nunca se pôde provar a real existência de 'pessoas possuídas' pelo
Maligno, como diziam estar as garotas que se sentiam 'atormentadas' e iniciaram a série
de acusações. Elas afirmavam ter o poder de visões que as levavam a descobrir os
verdadeiros culpados pelo pandemônio causado na comunidade e passaram a servir
como testemunhas de acusação para os julgamentos instaurados pela Igreja em busca
dos culpados. Segundo Karnal (2007, p. 52), a histeria das feiticeiras não seria possível
sem as pregações de pastores como Cotton Mather, autor do livro As maravilhas do
2 Se as pessoas governarem, perguntou o Rev. John Cotton, quem será governado?
O Puritano estava dedicado a buscar não a vontade das pessoas, mas a de Deus. A única fonte de
autoridade era a Bíblia. Mas a Bíblia tinha que ser conhecida pela razão correta, o que era mais adequado
àqueles treinados para este propósito. Assim, a maioria dos Puritanos dependia de uma elite intelectual
para o verdadeiro conhecimento da vontade de Deus. A Igreja e o estado nada mais eram do que dois
aspectos de uma mesma unidade, cujo propósito era espalhar a palavra de deus pelo mundo. O modo
como isso ocorreu na Nova Inglaterra poderia, então, ser resumido, nas palavras de um historiador, como
um tipo de ditadura dos regenerados, ou daqueles que haviam se submetido à conversão exigida para
que pudessem se unir à Igreja. (TINDALL & SHI, 1989, pp. 54-55, tradução nossa)
mundo invisível (1693), que levavam que o leitor ao conhecimento das grandes forças
maléficas que dominam o mundo.
Na obra America: a narrative story (1989), George B. Tindall e David E. Shi
tratam do episódio, mencionando que os violentos esforços que acompanharam a
transição da utopia puritana para a colônia atingiram um clímax bastante infeliz com a
histeria instaurada pela caça às bruxas na vila de Salém, em 1692:
(...) the Salem outbreak was distinctive in its scope and intensity. The general
upheaval in the colony's political, economic, social and religious life was
compounded in that local by a conflict of values between a community rooted
in the subsistence farm economy and the thriving port of Salem proper.
Seething insecurities and family conflicts with the community apparently
made many
residents receptive to accusations by adolescent girls that they
had been bewitched. The episode began when a few teenage girls became
entranced listeners to voodoo
stories told by Tituba, a West
Indian slave, and
began acting strangely shouting, barking, groveling and twitching for no
apparent reason. The town doctor concluded that they had been bewitched,
and the girls pointed to Tituba and two white women as the culprits. Soon
town dwellers were seized with panic as word spread that the evil was in their
midst and wreaking havoc. At a hearing before the magistrates, the afflicted
girls rolled on the floor in convulsive fits as the three women were
questioned by the magistrates. In the midst of this hysterical carnival, Tituba
shocked her listeners by not only confessing to the charge but also divulging
that many others in the community were performing the devil's work as well.
(pp. 56-57, marcas do autor)
3
Possíveis explicações para os processos ocorridos em Salém como decorrência
da histeria seriam questões de caráter psicológico, contrariedades morais, tensões
políticas internas às colônias, alguns conflitos entre indígenas e puritanos colonizadores
e, sem dúvida, as frustrações dos protestantes quanto às dificuldades encontradas no
Novo Mundo, bem diferente da Canaã, sua terra prometida pela Bíblia. Contabilizando,
posteriormente, os danos causados pela histeria coletiva, cerca de 200 pessoas tinham
sido presas, dentre as quais, 14 mulheres e 6 homens executados. O saldo legado por
3 (...) o deflagrar do problema em Salém foi distinto em seu alcance e intensidade. A convulsão geral da
vida política, econômica, social e religiosa da colônia era composta naquele local por um conflito de
valores entre uma comunidade enraizada em sua economia de fazendas de subsistência e o próspero porto
de Salém. Inseguranças e conflitos familiares que efervesciam dentro da comunidade tornaram alguns
cidadãos receptivos a acusações feitas por jovens garotas de que elas haviam sido enfeitiçadas. O episódio
começou quando algumas adolescentes se tornaram fascinadas ouvintes de histórias de vodu contadas por
Tituba, uma escrava, e começaram a agir de forma estranha gritando, latindo, rastejando e se
contorcendo sem razão aparente. O médico da vila concluiu que elas tinham sido enfeitiçadas, e as
garotas indicaram Tituba e duas mulheres brancas como as culpadas. Logo os habitantes foram tomados
pelo pânico conforme se espalhava a notícia de que o demônio estava entre eles, causando sua ruína. Em
uma audiência perante os magistrados, as meninas possuídas rolaram pelo chão em ataques convulsivos
enquanto as três mulheres eram interrogadas. Em meio a este carnaval histérico, Tituba chocou seus
ouvintes confessando não somente às acusações, mas também revelando que muitos outros na
comunidade também conjuravam com o demônio. (pp. 56-57, tradução nossa, marcas do autor)
essa teocracia constituiu uma trágica passagem não somente na memória dos colonos
que ali viveram, mas para toda a história norte-americana Quase 100 anos depois, a
primeira emenda à Constituição dos EUA estabelecia que o Congresso não faria leis
sobre o livre exercício da religião. (KARNAL, 2007, p. 53)
Ainda que não se fizessem mais leis sobre o exercício religioso, o que sempre foi
possível notar ao longo da história americana foi esse clima de autoritarismo e
intolerância, obviamente sobressaltado no episódio de Salém, mas que teve, igualmente,
ocasião em outros episódios históricos dessa mesma nação, posteriores ao período
colonial, mas igualmente nocivos para a sociedade, como o comportamento de algumas
colônias durante a luta pela independência daquele país, por exemplo, no passado e,
mais contemporaneamente, a luta para que as pessoas pudessem provar que não tinham
ligações com o partido comunista, durante a década de 50, ou ainda as lutas inter-raciais
da década de 60.
1.1.3 Colonização e Guerra Fria: distância histórica, coincidências
políticas
Os episódios de Salém adquiriram tal relevância que, pouco mais de dois séculos
depois, o termo tornou-se recorrente na história dos Estados Unidos, mais precisamente
na década de cinqüenta, quando se planejava a ordem do pós-guerra e se vivia sob a
ameaça de um confronto com a União Soviética, a Guerra Fria:
(...) crescentes tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética,
sobre a divisão de poderes políticos e econômicos na Alemanha até o
final dos anos 40, culminaram na Guerra Fria. Os dois superpoderes e
suas alianças rivais disputaram a dominância econômica, política e
militar mundial no período pós-guerra. Motivados pela segurança
nacional, expansão econômica e vantagem militar internacional, ambos
mantiveram controle dos seus aliados e de outras esferas de interesse
por meio da força bruta ou da influência econômica. (KARNAL, 2007,
p. 228)
O que os americanos mais temiam com relação aos soviéticos era o comunismo
e, com ele, a bomba atômica. A retórica anticomunista foi introduzida nos Estados
Unidos no final da década de 40, provocando uma nova histeria, conhecida como a
'Caça aos Vermelhos'. Em março de 1946, o então presidente, Truman, buscava apoio
para sua política externa, como menciona Argemiro Ferreira em Caça às bruxas.
Macartismo: uma tragédia (1989):
Na busca de apoio para sua política exterior agressiva (...) - o presidente
Truman, enfraquecido pelo triunfo parlamentar republicano na eleição
intermediária de 1946, precisou amedrontar como o diabo o país inteiro
(scare the hell out of the American people, para usar a frase original do
senador republicano Arthur Vandenberg, cujo respaldo foi decisivo para um
consenso bipartidário).
(...), Truman acabou por ganhar seu lugar de honra na galeria dos que
contribuíram para desencadear a histeria macartista antes mesmo do senador
McCarthy. O desdobramento sugere um retorno às circunstâncias da situação
internacional e às dificuldades do quadro político interno. (p. 47, marcas do
autor)
Tratou-se, portanto, de uma retomada da História com fins político-ideológicos,
que resultaram no fortalecimento do conservadorismo já na década de 50, período em
que o senador Joseph McCarthy fazia ardente campanha contra a subversão de diversos
aspectos da vida americana, segundo ele, iniciada por comunistas infiltrados não
somente entre pessoas comuns, mas entre os altos escalões do governo nacional:
Conhecida popularmente como Macartismo, a campanha contra a subversão
(...) foi muito mais abrangente do que a carreira bizarra do senador
anticomunista Joseph McCarthy. As investigações publicadas contra a
suposta subversão de intelectuais, artistas e funcionários do governo federal,
que resultaram em inúmeras demissões, centenas de sentenças de prisão e
algumas execuções (como a do casal comunista Julius e Ethel Rosenberg)
tornaram McCarthy o rosto público do anticomunismo (...).
(...) Esse per
íodo sombrio da história americana dificultou extremamente a
possibilidade de crítica ao governo americano, enfraquecendo, por uma
década, todos os impulsos reformistas e consolidando uma cultura oficial de
conformidade social. (KARNAL, 2007, p. 230)
Essa obsessão com a famosa ameaça vermelha foi alimentada por diversos
escândalos (muitos deles fabricados) que levavam a notícias sobre espionagem. Foram
lançadas listas, as famosas listas negras, com nomes de subversivos que, segundo
Ferreira (1989), envenenaram o organismo da sociedade norte-americana, atentando
contra os próprios direitos assegurados pela Constituição de 200 anos de existência.
(p.9)
De fato, na década de 50, os americanos vivenciaram ampla prosperidade
econômica e estabilidade institucional, mas no interior dessa conformidade, viu-se uma
época reacionária, especialmente para as mulheres que, ideologicamente, restringiriam
suas aspirações aos papéis de mãe e esposa, com limitada atuação nos campos da
cultura e da sociedade. Além disso, esse mesmo período foi marcado pelos movimentos
sociais em prol dos direitos civis essa seria a década do 'fim da ideologia' e do triunfo
dos valores capitalistas.
Ferreira aponta, em sua obra, uma cronologia, aqui simplificada, acerca dos
episódios relacionados à nova caça às bruxas proposta por McCarthy: em julho de 1952,
contra todas as expectativas, o inexpressivo candidato ao Senado, Joseph Raymond
McCarthy, é eleito; em novembro do mesmo ano, McCarthy atua ativamente na
campanha para a eleição do presidente Eisenhower. Em março de 1954, o senador
início à comissão que examinaria os casos de comunistas há diversos depoimentos e
audiências. Mais uma vez mencionando Tindall & Shi (1989):
The Korean armistice helped to end another dismal episode: the meteoric
career of Sen. Joseph McCarthy, which had flourished amid the anxieties of
wartime. Convinced that the government was thoroughly infested with
communists and spies, the Wisconsin senator launched a splenetic crusade to
root them out. In the process he and his aides lied, falsified evidence, and
bullied or blackmailed witnesses. Eventually, the logic of McCarthy's
unscrupulous tactics led to his self-destruction, but not before he had left still
more careers and reputations in ruins. (pp. 840-841)
4
Em novembro de 1954, o poder do Senador McCarthy encontra-se enfraquecido
e nunca volta a ter a mesma força até o seu falecimento, em 1957, poucos meses após a
reeleição de Eisenhower:
O uso da expressão caça às bruxas (witch-hunt, nos Estados Unidos) para
designar a repressão política nos anos 40 e 50 é uma alusão óbvia, de cunho
claramente pejorativo, à perseguição e eventual queima de feiticeiras nas
fogueiras da Inquisição. A primeira experiência, no passado mais remoto,
chegara a alcançar os colonos da Nova Inglaterra no século XVII, como
revela o episódio histórico das feiticeiras de Salém, estado de Massachusetts,
revivido com objetivo explícito na peça de teatro de um dos escritores
investigados nos anos 50, Arthur Miller. (FERREIRA, 1989, p. 25, marcas do
autor)
Embora o poder de McCarthy tenha sido diminuído, sua contribuição negativa
permaneceu para sempre na história dos Estados Unidos, podendo o senador ser
considerado o propulsor de um atraso ideológico por muitos considerado inadmissível,
até mesmo irreparável como resultado, tudo o que se pode ser considerado como
decorrente do conservadorismo acabou por tomar um patamar ainda maior naquela
sociedade, tendo reflexos até a contemporaneidade.
4 O armistício coreano ajudou a por fim a outro terrível episódio: a carreira meteórica do Senador Joseph
McCarthy, que tinha se tornado bem-sucedida entre as ansiedades do período de guerra. Convencido de
que o governo estava tomado por comunistas e espiões, o senador do Wisconsin lançou uma cruzada para
extirpá-los da nação. Durante o processo, ele e seus aliados mentiram, falsificaram evidências e
intimidaram ou subornaram testemunhas. Por fim, a lógica das táticas inescrupulosas de McCarthy levou
à sua própria destruição, mas não antes de ter deixado mais carreiras e reputações estraçalhadas. (pp. 840-
841, tradução nossa)
1.1.4 Miller e Hawthorne: releituras da história
Ferreira (1989) explicita a ligação de Arthur Miller tanto com o movimento
político relacionado à década de 50, quanto com a adoção dessa temática em sua peça
The Crucible (As Bruxas de Salém) segundo ele, Miller escapou da prisão naquele
período por mera tecnicalidade (p. 240), uma vez que sua peça trata, claramente, das
inconsistências nos julgamentos ocorridos em Salém no século XVII, como menção
explícita às incomprováveis acusações realizadas por McCarthy e seus aliados no
governo, o que pode ser comprovado por este trecho retirado de The CliffsNotes on The
Crucible, de Jennifer L. Scheidt (1971):
Although no one can know for certain what the actual individuals thought,
felt, or believed, Miller's incorporation of motive into the play's characters
provides his audience with a realistic scenario that is both believable and
applicable to society. For example, when the play was first produced during
the 1950's, as McCarthyism submerged America in paranoia and fear,
audiences could relate to the plot because Americans were turning in their
friends so they would not be labeled as Communists. Although today's
society may not be engaged in so-called witch hunts, stories of an
individual attempting to reestablish a relationship with a former lover by
eliminating what he or she perceives to be the only obstacle the person
currently involved in a relationship with the former lover are not
uncommon. This classic love triangle appears repeatedly in literature (...).
Miller's exploration of the human psyche and behavior makes the play an
enduring masterpiece, even though McCarthyism has faded into history (...).
Miller moves beyond a discussion of witchcraft and what really happened in
Salem to explore human motivation and subsequent behavior. (p. 6)
5
Em mais uma menção a Salém, Paul Boyer e Stephen Nissenbaum, em Salem
Possessed (1974), reforçam o incansável interesse nos episódios ali ocorridos,
5 Embora ninguém saiba ao certo o que os indivíduos reais pensaram, sentiram ou em que acreditaram, ao
incorporar a motivação nas personagens da peça, Miller a seu público um cenário realista do que é
tanto passível de ser acreditado quando aplicável na sociedade. Por exemplo, quando a peça foi produzida
pela primeira vez nos anos 50, enquanto o macartismo deixava a América submersa em paranóia e medo,
os espectadores podiam fazer relações com o enredo, pois os americanos delatavam amigos para que não
fossem taxados como comunistas. Embora a sociedade de hoje possa não estar engajada na chamada
caça às bruxas, histórias de uma pessoa que tenta restabelecer uma relação com um antigo amante
eliminando o que ele ou ela acreditam ser o único obstáculo a pessoa envolvida com aquele que amam
no momento não são incomuns. Este triângulo amoroso clássico aparece repetidamente na literatura
(...). Ao explorar a psique e o comportamento humanos, Miller faz de sua peça uma obra-prima
duradoura, ainda que o macartismo tenha desaparecido na história (...). Miller transita entre a discussão
acerca da feitiçaria e sobre o que realmente aconteceu em Salém para explorar a motivação humana e seu
consequente comportamento. (p. 6, tradução nossa)
questionando esse interesse em relação aos eventos e citando, inclusive, Miller e o
macartismo:
Why is it that twentieth century historians of Salem witchcraft have not
bothered to explore the history of Salem Village, or the lives of the men,
women ,and children who peopled it, apart from that fleeting moment when
the community achieved lasting notoriety? In the first place, there have
always been other contexts, seemingly more significant, into which the
witchcraft outbreak could easily be placed without going beyond the events
and documents of 1692: the history of the occult,
the psychopathology of
adolescence, the excesses of repressive
Puritanism, the
periodic
recrudescence of mass hysteria and collective persecution in Western society.
(The devil in Massachusetts, for instance, was consciously written in the
shadow of Nazi holocaust, while Arthur Miller's 1953 play about Salem
witchcraft, The Crucible, was of course a parable about McCarthyism.)
(preface, xi)
6
Resta, ainda, mencionar como Nathaniel Hawthorne fez uso dessa mesma
temática em The Scarlet Letter (A Letra Escarlate) 2006), (romance publicado em 1850,
composto em pleno movimento romântico na literatura norte-americana, que relata a
trajetória de Hester Prynne, a protagonista que, acusada de cometer o adultério (e dado à
luz a uma menina como fruto dessa traição), é condenada a usar uma letra A,
escarlate, em seu peito como símbolo de seu pecado. Em The CliffsNotes on The Scarlet
Letter (1946), Susan Van Kirk retoma a temática acerca de Salém e acrescenta:
The mist of imagination that falls over Salem, Massachusetts, in his
[Hawthorne's] description is the same aura that permeates the setting of his
novel. Look for the Boston of 1640 in history books, and you will not find
the magical and gothic elements that abound in Hawthorne's story. For the
mind of genius has created a Boston that is shrouded in darkness and mystery
and surrounded by a forest of sunshine and shadow. In writing The Scarlet
Letter, Hawthorne was creating a form of fiction he called the psychological
romance, and woven throughout his novel are elements of Gothic literature.
What he created would later be followed by other romances, but never would
6 Por que é significativo que historiadores do século XX sobre a feitiçaria em Salém não tenham se
preocupado em explorar a história da vila de Salém, ou as vidas dos homens, mulheres, e crianças que a
povoaram, além do momento crucial quando a comunidade atingiu sua duradoura notoriedade? Em
primeiro lugar, sempre houve outros contextos, aparentemente mais significativos, pelos quais o surto de
feitiçaria poderia facilmente ser colocado sem que houvesse acesso aos documentos de 1692: a história do
oculto,
a psicopatologia da adolescência, os excessos do Puritanismo repressor, a recrudescência
periódica da massa histérica e a perseguição coletiva na sociedade ocidental. (O demônio em
Massachusetts, por exemplo, foi conscientemente escrito sob a sombra do holocausto nazista, enquanto a
peça de Arthur Miller de 1953 sobre a feitiçaria em Salém, As bruxas de Salém, foi, é claro, uma parábola
sobre o macartismo.) (prefácio, xi, tradução nossa)
they attain the number of readers or the critical acclaim of The Scarlet Letter.
(id., p. 7)
7
Segundo Margaret Drabble em The Oxford Companion to English Literature
(1998), Hawthorne has long been recognized as one of the greatest American writers, a
moralist and allegorist much preoccupied with the mystery of sin, the paradox of its
occasionally regenerative power, and the compensation for unmerited suffering and
crime (...).(id., p. 442)
8
O que demonstra a idéia de que o autor não fez uso do cenário
contextualizado de Salém por mero acaso, pelo contrário, ele lança mão dos
acontecimentos anteriores à publicação de sua obra para ali localizar sua Hester Prynne,
mulher fora de seu tempo, talvez moderna demais para aquela comunidade, puritana
como ela, mas sem nenhuma capacidade crítica. Ali sua história é narrada como a de
uma mulher adúltera que, punida por aquela sociedade, é obrigada a usar uma letra A,
de adultério, bordada em vermelho, em seu peito. De acordo com Oscar Pilagallo
9
, no
artigo Nathaniel Hawthorne, o criador de um passado (2007), Trata-se, na realidade,
de uma crítica aos valores da época: Hester é uma mulher forte que se recusa a revelar o
nome do amante, um religioso de prestígio na comunidade.
Vê-se, aqui, a perspectiva ficcional comum entre Miller e Hawthorne, uma vez
que ambos fizeram uso do fato histórico, o passado puritano e suas conseqüências, para
suscitar reflexões críticas quanto ao seu momento presente, como que de maneira
cifrada, a princípio, para os menos atentos e, mais abertamente, tratando da liberdade de
expressão e posicionamento pessoal em uma sociedade fanática, tornando suas obras
universais para a literatura e pontos de partida para outras releituras, como a realizada
por Maryse Condé em Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém (1986).
7 A névoa de imaginação que cai sobre Salém, Massachusetts, em sua [a de Hawthorne] descrição é a
mesma aura que permeia o cenário de seu romance. Procure pela Boston de 1640 em livros de história e
não conseguirá encontrar os elementos mágicos e góticos que transbordam da história der Hawthorne.
Pois a mente de um gênio criou uma Boston que está envolta por escuridão e mistério e cercada por uma
floresta de sol e sombra. Ao escrever A Letra Escarlate, Hawthorne estava criando uma forma de ficção
que chamou de romance psicológico, e entrelaçados por todo o romance, estão elementos da Literatura
Gótica. O que ele criou seria mais tarde seguido por outros romances, mas eles nunca conseguiriam o
número de leitores ou as mesmas aclamações da crítica que A Letra Escarlate. (p. 7, tradução nossa)
8 Hawthorne é, há muito, reconhecido como um dos maiores escritores americanos, um moralista e
alegorista muito preocupado com o mistério o pecado, o paradoxo de seu poder regenerativo e a
compensação pelo sofrimento e crime não merecidos (...). (p. 442, tradução nossa)
9 In: Caderno Entrelivros 3: Panorama da Literatura Americana (2007, p. 21)
1.2 Dialogismo e Intertextualidade
Nenhuma história é contada apenas uma vez.... (Michael OndaatjeI)
10
(...) o que vemos é governado pelo modo como vemos e este é determinado
pelo lugar de onde vemos.11
O percurso escolhido para o estudo do romance de Maryse Condé, Eu, Tituba,
Feiticeira... Negra de Salém (1986) e suas relações com a peça de Arthur Miller, As
Bruxas de Salém (1953) e com o romance de Nathaniel Hawthorne, A Letra Escarlate
(1850), envolveu um levantamento teórico, analítico e crítico acerca de conceitos como
o dialogismo, a polifonia e a intertextualidade. Tais conceitos fundamentam a discussão
sobre a presença dos textos de Miller e Hawthorne na narrativa de Condé.
Como uma tentativa de traçar um breve panorama cronológico acerca dos
estudos que dizem respeito à composição da idéia da intertextualidade, a contribuição
mais relevante vem do teórico russo Mikhail Bakhtin, cuja obra Problemas da Poética
de Dostoiévski (1981) insere no contexto da teoria crítica o conceito de polifonia:
Dostoiévski criou uma espécie de novo modelo artístico do mundo, no qual
muitos momentos basilares da velha forma artística sofreram transformação
radical. Descobrir essa inovação fundamental de Dostoiévski por meio da
análise teórico-literária é o que constitui a tarefa do trabalho que levamos ao
leitor. (introdução, grifos do autor).
A análise das obras de Dostoiévski levou Bakhtin a chamar a atenção para o fato
de que houve, a partir desse autor, o surgimento de uma nova possibilidade de
elaboração textual: o romance polifônico. Assim, em Problemas da poética de
Dostoiévski (1981), Bakhtin menciona que diversas teorias críticas surgiram a partir de
sua leitura da obra do escritor russo, mas tais teorias surtiram, de alguma forma, um
efeito contraditório, principalmente quanto ao posicionamento de Dostoiévski em seus
escritos: (...) Para alguns pesquisadores, a voz de Dostoiévski se confunde com a voz
desses e daqueles heróis, para outros, é uma síntese peculiar de todas essas vozes
ideológicas, para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas (...). (p.1)
10 In: BERND, Zilá. Escrituras Híbridas: Estudos em literatura comparada interamericana. Porto
Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1998.
11 In: MACHADO, Irene.
O romance e a voz: a prosaica de M. Bakhtin. São Paulo: Imago / FAPESP,
1995, p. 37.
De fato, o que incomodava os críticos era a forma pela qual Dostoiévski
propunha a questão do posicionamento do herói, como responsável por sua própria
concepção filosófica e não apenas mero artefato do autor, como aponta Bakhtin:
(...) À semelhança do Prometeu de Goethe, Dostoiévski não cria escravos
mudos (como Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado
com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele.
A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a
autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a
peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a
multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz
da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é
precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos
que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua
imiscibilidade. (1981, p.2, grifos do autor)
É possível perceber, então, que o herói apresentado por Dostoiévski nunca
encerra uma personagem de cunho objetivo; na verdade, no romance polifônico por ele
composto, Bakhtin nota que a voz do herói é estruturada da mesma forma que a voz do
autor, mas sem que se confundam uma com a outra. Assim, o que realmente se destaca
com relação à ideia da polifonia é a originalidade do autor, que confere veracidade à voz
do outro, sem subordiná-la. Complementando,
Cabe observar que também a comparação que fazemos do romance de
Dostoiévski com a polifonia vale como uma analogia figurada. A imagem da
polifonia e do contraponto indica apenas os novos problemas que se
apresentam quando a construção do romance ultrapassa os limites da unidade
monológica habitual (...). Mas é essa metáfora que transformamos no termo
romance polifônico, pois não encontramos designação mais adequada (...)
(1981, pp. 16-17, grifos do autor)
Pode-se afirmar, historicamente, que o surgimento do romance polifônico
ocorreu em um momento de múltiplas mudanças sociais, políticas e econômicas, que
acabaram por favorecer esse tipo de construção literária que capta simultaneidades,
confrontando-as, como forma de interpretar o mundo, considerando os acontecimentos e
seus conteúdos concomitantes, provocando inter-relações em determinados recortes
temporais, uma vez que (...) O principal na polifonia de Dostoievski é justamente o
fato de ela realizar-se entre diferentes consciências, ou seja, são a interação e a
interdependência entre estas. (id., p. 29, marcas do autor)
Segundo Bakhtin, o romance polifônico assemelha-se a um labirinto, cujas
infinitas vozes constituem obstáculos para que se perceba o todo delineado nesse
contexto, a personagem reflete pontos de vista específicos sobre o mundo que habita e
sobre a sua própria realidade, pois para Dostoiévski, mais importante do que a posição
que a personagem ocupa no mundo é a idéia do que o mundo representa para ela e qual
a visão de si mesma que carrega.
No ensaio intitulado Gêneros Discursivos (in: BRAIT, 2005), Irene Machado,
em uma sistematização das teorias bakhtinianas, traça uma espécie de histórico da teoria
clássica dos gêneros, remetendo a Aristóteles que, na Arte Poética, trata dos gêneros
como obras da voz, apresentando como critérios de diferenciação de tais vozes a
representação mimética, subdividida entre três categorias poéticas, sendo a poesia de
primeira voz entendida como a representação lírica; a poesia de segunda voz
representante da épica e a poesia de terceira voz, do drama.
Em seguida, Machado menciona Platão quando este propõe uma classificação
binária, anterior ainda à de Aristóteles, representada por esferas relacionadas a domínios
precisos de obras representativas de juízo de valor. Dessa forma, existiriam dois
gêneros: o nero sério, representante da epopéia e da tragédia e o gênero burlesco,
próprio para a comédia e a sátira.
Ainda segundo Machado, em se tratando de Platão, há, em A República, a
proposta de uma tríade resultante das relações entre realidade e interpretação: o gênero
mimético ou dramático, correspondente à tragédia e à comédia, o gênero expositivo ou
narrativo, correspondente ao ditirambo, ao nomo e à poesia lírica e, por fim, o gênero
misto, representante da epopéia. Tal tríade teria servido de base para a Poética
aristotélica, na qual a tragédia constitui um paradigma para o que passa a ser
denominado de poesia.
Entretanto, com o surgimento da prosa, novos parâmetros de análise passaram a
ser necessários e, dentre outros teóricos que contribuíram com teorias de fôlego para tal
estudo, encontra-se Mikhail Bakhtin: Os estudos que Mikhail Bakhtin desenvolveu
sobre os gêneros discursivos considerando não a classificação das espécies, mas o
dialogismo do processo comunicativo, estão inseridos no campo dessa emergência (...).
(MACHADO, in: BRAIT, 2005, p. 152) O dialogismo seria, assim, uma categoria
teórica criada por Bakhtin, que passou a utilizá-la como eixo de sua investigação
servindo como uma alternativa para se entender o discurso literário como representativo
de um discurso dentro de outro discurso, pois segundo Machado (1995),
Se, num primeiro momento, estudar o dialogismo no romance significa
estabelecer o contexto do diálogo enquanto gênero literário, numa
perspectiva mais ampla se percebe que o dialogismo é um fenômeno o
restrito à literatura, mas presente em todas as manifestações de linguagem
criadas pelo homem. Nesse sentido, o dialogismo é fenômeno tangível a
diversos produtos culturais. (p. 20)
Esta emergência com relação aos estudos dos gêneros e dos discursos é de cunho
altamente relevante, uma vez que tanto a questão do gênero quanto a do discurso
passaram a ser vistas como esferas da linguagem verbal ou da comunicação fundada na
palavra:
A partir dos estudos de Bakhtin foi possível mudar a rota dos estudos sobre
os gêneros: além das formas poéticas, Bakhtin afirma a necessidade de um
exame circunstanciado não apenas da retórica, mas, sobretudo, das práticas
prosaicas que diferentes usos da linguagem fazem do discurso, oferecendo-o
como manifestação da pluralidade (...). (ibid., p. 152)
De acordo com o teórico russo, a prosa romanesca deveria ser estudada a partir
da desintegração dos gêneros elevados no universo grego de Platão e Aristóteles, de
forma a oferecer duas possibilidades de romance: a noção de romance monológico, que
traz em si conceitos de monologismo, autoritarismo, acabamento e a noção de romance
polifônico, aquele representado pela multiplicidade de vozes, sendo que tal
multiplicidade remonta às idéias de que a história, a sociedade e a cultura podem passar
a ser questionadas através dessas várias vozes, através da transformação da realidade, da
inconclusibilidade, do não-acabamento, do dialogismo, da idéia da polifonia.
Embora tenha desenvolvido sua teoria do romance polifônico como ponto de
partida, Bakhtin deixou claro o fato de que a polifonia não se faz presente em todos os
romances. Ainda assim, vale mencionar a relevância atribuída por Paulo Bezerra à
polifonia, em seu ensaio Polifonia (in: BRAIT, 2005) como relevante, uma vez que
ela representa a expressão suprema do dialogismo. Sob a perspectiva polifônica, as
personagens participam da história, interagem com o autor, sendo produto do contraste
entre a criação e a realidade:
Para a representação literária, a passagem do monologismo para o
dialogismo, que tem na polifonia sua forma suprema, equivale à libertação do
indivíduo, que de escravo mudo da consciência do autor se torna sujeito de
sua própria consciência. No enfoque polifônico, a autoconsciência da
personagem é o traço dominante na constituição de sua imagem, e isso
pressupõe uma posição radicalmente nova do autor na representação da
personagem. Trata-se precisamente da descoberta de um aspecto novo e
integral do homem (do indivíduo ou do homem no homem), que requer um
enfoque radicalmente novo do homem, uma nova posição do autor (...).
O que caracteriza a polifonia é a posição do autor como reagente do grande
coro de vozes que participam do processo dialógico (...). A polifonia se
define pela convivência e interação, em um mesmo espaço, de uma
multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis, vozes
plenivalentes e consciências eqüipolentes, todas representantes de um
determinado universo e marcadas pelas peculiaridades desse universo. Essas
vozes e consciências não são objeto do discurso do autor, são sujeitos de seus
próprios discursos. A consciência da personagem é a consciência do
outro,
não se objetifica (...) (BEZERRA, in: BRAIT, 2005, pp. 193-5)
Tomando as personagens Tituba, Hester e Sra Parris, traçadas por Condé,
objetos deste estudo, é possível compreender tal proposta, pois para cada uma delas se
apresenta uma visão de mundo totalmente distinta, de certa forma, relacionada à sua
posição social e à bagagem cultural inerente a cada uma delas, mesmo que sejam todas
mulheres em um mesmo contexto histórico-social essas diferentes visões estão,
portanto, relacionadas ao tempo em que as personagens foram criadas.
No caso de Tituba, há a consciência de seus poderes mágicos, mas acima de
tudo, está a consciência de que tudo o que lhe aconteceu a partir de ter tomado contato
com a família Parris não teria sido mera obra do acaso, ou mesmo um destino fortuito
vale ressaltar, mais uma vez que toda a narração de sua trajetória em primeira pessoa
permite que a personagem esteja muito mais próxima do leitor. Como personagem,
Tituba tem consciência de que optou por aquele destino ao escolher deixar a liberdade
da qual desfrutava em Barbados para poder viver sob o mesmo teto e,
consequentemente, sob as mesmas condições de escravidão, do homem que amava,
John Índio:
C'était bien là le malheur. Je voulais cet homme comme je n'avais jamais rien
voulou avant liu. Je désirais son amour comme je n'avais jamais désiré aucun
amour. Même pas celui de ma mère. Je voulais qu'il me touche. Je voulais
qu'il caresse. Je n'attendais que le moment où il me prendrait et où les vannes
de mon corps s'ouvriraient, libérant les eaux du plaisir. (CONDÉ, 2007, p.
35)
12
Mesmo ciente disso, Tituba opta pelo amor, correndo o risco de passar pelas
desventuras que sofreu, inclusive o abandono por esse mesmo homem. De qualquer
forma, mesmo tendo passado por tantos infortúnios, Tituba, consciente ou
inconscientemente, sabia que sua missão era retornar a Barbados, como que para
resgatar a vida da qual abdicara, em uma tentativa de restabelecer os laços com os
12 Essa era a desgraça. Eu queria aquele homem como jamais tinha querido nada antes dele. Desejava seu
amor como
jamais desejei amor algum. Nem o de minha mãe. Queria que ele me tocasse. Queria que ele
me acariciasse. Só ansiava pelo momento em que ele me tomasse e as comportas do meu corpo se
abrissem, liberando as águas do prazer. (CONDÉ, 1997, p. 30)
espíritos daqueles que nunca a abandonaram: Abena e Man-Yaya que, de determinado
ponto de vista, atuam como que a voz da consciência da personagem.
Hester, por sua vez, é apresentada, na obra de Condé, por meio de um
comportamento altamente revolucionário, se comparado à Hester protagonista do
romance de Hawthorne. A primeira menção à sua existência surge quando Tituba é
presa e ela, Hester, oferece-lhe abrigo em sua cela ali, quando as duas mulheres
travam conhecimento, o leitor percebe, claramente, a diferença de posicionamento entre
ambas: Tituba, presa acusada de bruxaria, não sabia exatamente como lidar com as
acusações feitas a ela, busca vingança, acusando outras pessoas: Qui voulaient-ils que
je nomme? Attention! Je ne me contenterais pas de nommer les malheureuses qui
cheminaient avec moi dans la gadoue. Je frapperais fort.(id., p. 148)
13
. Já Hester ali se
encontrava grávida, acusada de adultério, recusando-se a revelar o nome do homem
com quem havia cometido tal crime.
Entre conversas e confissões, as duas se tornam amigas e Hester ajuda Tituba na
preparação de seu depoimento, enquanto a escrava tenta mostrar a Hester que o amor
nem sempre traz sofrimento. O que fica claro na narrativa de Hester é o seu
posicionamento crítico, a mesmo feminista, obviamente se tomado sob a ótica
contemporânea, no tocante ao comportamento e aos ditames da sociedade puritana,
revelando amplo conhecimento literário e político, plausível e verossímil naquele
contexto e, nele, demonstrando críticas àquele povo e sua hipocrisia e, com isso,
influenciando Tituba:
Malgré l'amitié d'Hester, la prison me laissa une impression ineffaçable.
Cette sombre fleur du monde civilisé m'impoisonna de son parfum et jamais
plus par la suite, je ne respirai de même façon. Incrustée dans mês narines,
l'odeur de tant crimes: matricides, parricides, viols et vols, homicides et
meurtres et surtout, l'odeur de tant souffrances. (CONDÉ, 2007, p. 162)
14
Se Hester e Tituba ocupam pólos opostos, entre eles encontra-se a Sra Parris,
esposa submissa, mulher sem voz alguma dentro de sua própria família. De saúde frágil,
se oculta atrás da aparência de doente dócil e deixa a família ao encargo da escrava,
Tituba, como é possível observar no seguinte trecho:
13 Quem eles queriam que eu denunciasse? Atenção! Eu não ia me contentar com denunciar as infelizes
que caminhavam comigo na lama. Eu ia bater forte (...). (ibid., p. 125)
14 Apesar da amizade de Hester, a prisão deixou em mim uma impressão inapagável. Aquela flor sombria
do mundo civilizado me envenenou com seu perfume e nunca mais, depois disso, respirei da mesma
maneira. Incrustado em minas narinas ficou o odor de tantos crimes: matricídios, parricídios, estupros e
roubos, homicídios e assassinatos e, acima de tudo, o odor de tantos sofrimentos. (CONDÉ, 1997, p.137)
Il [Révérend Parris] la frappa à son tour. Elle saigna, elle aussi. Ce sang
scella notre alliance. Quelquefois une terre aride et désolée donne une fleur
au suave coloris qui embaume et illumine le paysage autour d'elle. Je ne peux
comparer qu'à cela l'amitqui ne tarda pas à m'unir à maîtresse Parris et à la
petite Betsey. Emsemble, nous inventâmes mille ruses pour nous retrouver
em l'absence de ce démon qu'était le révérend Parris. (ibid., p. 69)
15
De certo modo, Tituba lhe era simpática porque cuidava dela como de uma
criança e era a única com quem podia conversar sem medo de ser punida, como
aconteceria se o fizesse com seu marido, o Reverendo Parris. Entretanto, vê-se tomada
de voz subitamente, ao responsabilizar Tituba pelo estado doentio de sua filha e de sua
sobrinha, voltando-se contra a escrava e ignorando tudo o que esta lhe havia feito de
bom isso indica o comportamento que aquela sociedade e, talvez ela mesma
esperassem de uma mulher em sua posição diante de tais fatos, tomando a vez como
uma espécie de anti-heroína, neste caso, uma antagonista:
Tu vois l'effet de tes sortil
èges!
Alors l
à, je bondis:
- Ma
îtresse Parris, quand vous étiez malade, qui vous a soignée? Dans le
taudis de Boston où vous avez failli passer, qui a fait briller sur votre tête le
avez de la guérison? N'est-ce pas moi, et alors parliez-vous de sortilèges?
Samuel Parris pivota sur lui-même comme un fauve qui découvre une autre
proie et tonna:
-
Élizabeth Parris, parlez em clair! Vous aussi, vous etes-vous prêtée à ces
jeux avec satan?
La pauvre cr
éature chancela avant de glisser à genoux aux oieds de son mari:
- Pardonnez-moi, Samuel Parris, je ne savaus pas ce que je faisais! (CONDÉ,
2007, p. 115)
16
Das três personagens, pode-se dizer que a única que efetivamente lutou em
busca do (re)conhecimento de sua posição foi Tituba que, resistindo à prisão, ao
incêndio na casa de Cohen DAzevedo, retorna a Barbados, onde descobre não o
15 Ele [Reverendo Parris] bateu nela [Sra Parris]. Ela também sangrou. Esse sangue selou nossa aliança.
Às vezes, uma terra árida e desolada dá uma flor com colorido suave, que embalsama e ilumina a
paisagem em sua volta. Não posso usar outra comparação para a amizade que não demorou a me unir à
dona Parris e à pequena Betsey. Juntas, inventamos mil artifícios para nos mantermos à distância daquele
demônio, o reverendo Parris. (ibid., p. 60)
16
-
Está vendo o efeito de seus sortilégios?
A
í, então, eu pulei:
- Senhora Parris, quando a senhora esteve doente, quem cuidou da senhora? No pardieiro de Boston,
quando a senhora quase morreu, quem lhe fez brilhar sobre sua cabeça o sol da cura? Não fui eu? E agora
a senhora vem me falar em sortilégios?
Samuel Parris deu uma volta sobre si mesmo como uma fera que descobre uma outra presa e trovejou:
- Elizabeth Parris, diga a verdade! A senhora também se prestou a esses jogos com Satanás?A pobre
criatura cambaleou antes de cair de joelhos aos pés do marido:
- Perdoe-me, Samuel Parris, eu n
ão sabia o que estava fazendo! (CONDÉ, 1997, p. 98)
término de uma jornada, mas o início de outra.
Também não se pode esquecer o conceito de polifonia, no qual as vozes
caminham juntas e lutam no território do discurso, revelando a presença do uso
sistemático da ironia e da paródia como formas críticas de re-introdução do conceito
histórico na ficção, o que Linda Hutcheon denomina metaficcção historiográfica em
Poética do Pós-Modernismo (1991). Segundo a teoria proposta por Hutcheon, a ser
retomada em um outro momento neste trabalho, a re-invenção e a re-leitura do passado
evitam versões conclusivas e/ou hegemônicas da história, ao mesmo tempo em que
propõem uma transgressão da mesma.
Em Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakthin (BARROS e
FIORIN, 2003) é possível o contato com diversos ensaios que apresentam teorias acerca
dos estudos empreendidos por Bakhtin. Barros, no ensaio Dialogismo, Polifonia e
Enunciação, menciona que o exame da enunciação ocupa papel de destaque nas
reflexões bakhtinianas, sendo que o enunciado apresenta-se constituído de matéria
lingüística, contexto enunciativo e como objeto de estudos da linguagem. (...) [A obra
de Bakhtin] caracteriza-se fundamentalmente pela visão de conjunto do texto. (p. 1,
grifo da autora). Nesse contexto, o texto apresenta-se como um ponto de encontro de
múltiplos diálogos entre autor, narrador, leitor e a cultura e sociedade que por eles são
representadas.
No ensaio As Vozes Bakhtinianas e o Diálogo Inconcluso (in: BARROS e
FIORIN, 2003), Beth Brait chama atenção para o fato de que foi em Problemas da
Poética de Dostoiévski, publicada em 1929, que Bakhtin apresentou, inicialmente o
conceito de polifonia que, segundo a autora apenas constitui um outro termo para o
dialogismo e a presença de diferentes vozes no discurso, acrescentando que a natureza
dialógica da linguagem é fundamental nas obras do russo:
A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel
fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como
célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm vivo o
pensamento desse produtivo teórico. (BRAIT in: BARROS & FIORIN, 2003,
p. 11)
Bakhtin considera o romance um gênero em devir por esse motivo, quando
elaborou sua teoria sobre o romance, o filósofo da linguagem teve por opção a idéia
desse inacabamento como algo construtivo, que evoca pluralidades. Conforme
Machado (1995), Para Bakhtin, o devir se revela como uma nova sensibilidade com
relação ao tempo.(p. 140)
Em outro ensaio da mesma obra, Polifonia Textual e Discursiva (in: BARROS
E FIORIN, 2003), José Luiz Fiorin retoma a questão dessa mistura de vozes no texto
literário, ressaltando a presença da teórica Julia Kristeva, com a noção de
intertextualidade, vista como desdobramento das contribuições de Bakhtin, como uma
forma de absorção e transformação de outros textos. Fiorin considera que o termo
sugerido por Kristeva, intertextualidade, mais redutor do que o utilizado por Bakhtin,
dialogismo, enfatizando que a intertextualidade (...) concerne ao processo de
construção, reprodução ou transformação do sentido. (in: BARROS & FIORIN, 2003,
p. 29)
Há, no mesmo ensaio, uma distinção entre as noções de discurso e texto, sendo
que o primeiro é visto como base para que o percurso gerativo do sentido assuma as
estruturas narrativas (cf. p. 30), com base em Greimas e Cortès; enquanto que por texto
deve-se entender o local em que os diferentes níveis do sentido são manifestados. È
justamente em decorrência da distinção entre discurso e texto que se encontra, segundo
Fiorin, a distinção entre interdiscursividade e intertextualidade.
Segundo Tiphayne Samoyault (2008), a noção de intertextualidade engloba
reflexões sobre a memória da literatura e sua natureza, dimensões e mobilidade dentro
do espaço, criando certo jogo de referência, quando a literatura remete a si mesma e
quando da referencialidade, na qual a literatura tece paralelos com o real. (cf. pp. 10-1)
A intertextualidade ocorre, então, quando um texto é incorporado em um outro texto,
sendo estabelecida através de três processos: a citação, que confirma e/ou altera o
sentido do texto citado; a alusão, na qual as palavras não são citadas, mas reproduzidas
sintaticamente e a estilização, que reproduz os procedimentos do discurso do outro, ou
seja, seu estilo.
No romance de Maryse Condé é possível perceber relações intertextuais através
dos processos de citação e de alusão. Ocorreria a citação quando a personagem Hester,
em conversa com Tituba, enquanto presas, cita Cotton Mather:
- Alors, tu n'as pas lu Cotton Mather!
Et elle se gonfla la poitrine em prenant un air solennel:
-
Les sorcières font des choses étranges et maléfiques. Elles ne peuvent pas
fiare de vrais miracles qui ne peuvent être accomplis que par les Élus et les
Ambassadeurs du Seigneur.
Je ris à mon tour et demandai:
- Qui est ce Cotton Mather? (COND
É, 2007, p. 152)
17
A alusão pode ser percebida em muitos trechos, como no que se segue, em uma
conversa entre John Índio e Tituba, que faz referência à Bíblia:
- Connais-tu les prières?
Je secouai la t
ête:
- Comment le monde a
été créé au septième jour? Comment notre père Adam
a été précipité du paradis terrestre par la faute de notre mère Ève...
Quelle étrange histoire me chantait-il là? Néanmoins, je n'étais pas capable de
protester. (ibid., p. 35)
18
No que tange à interdiscursividade, Fiorin afirma que ela constitui o (...)
processo em que se incorporam percursos temáticos e/ou percursos figurativos, temas
e/ou figuras de um discurso em outro. Há dois processos interdiscursivos: a citação e a
alusão. (BARROS & FIORIN, 2003, p. 32) Na citação, um discurso repete idéias de
outros e, na alusão, temas de um determinado discurso servem de contexto para que se
compreenda o que foi incorporado.
Novamente, em Eu, Tituba, Feiticeira... Negra de Salém, percebem-se, como
elementos interdiscursivos, citação e alusão. Na primeira, a repetição da personagem
Tituba, do episódio de Salem (lido histórica e/ou literariamente, através do evento
histórico denominado caça às bruxas ou da obra de Arthur Miller, As Bruxas de
Salém), por meio de muitas das personagens da peça de Miller, reapresentadas por
Condé e com a inserção de Hester Prynne, personagem de A Letra Escarlate, de
Nathaniel Hawthorne. Seguem exemplos:
Un horrible pressentiment m'envaihit, que ses paroles, prononcées d'une voix
égale et cependant chargée d'une violence meurtrière vinrent confirmer:
- A genoux, râclures d'enfer! Je suis votre nouveau maître!Je m'appelle
Samuel Parris. Demain, dès que le soleil aura ouvert les yeux, nous partirons
à bord du brigantin Blessing. Ma femme, ma fille Betsey et Abigail, la pauvre
17 - Então você não leu Cotton Mather!
E encheu o peito, fazendo ar solene: -
As feiticeiras fazem coisas estranhas e maléficas. Elas não são
capazes de fazer verdadeiros milagres, que só os Eleitos e os Embaixadores do Senhor podem fazer.
Ri, por minha vez, e perguntei:
- Quem
é esse Cotton Mather? (CONDÉ, 1997, p. 129)
18 - Voc
ê conhece as rezas?
- Como o mundo foi criado no s
étimo dia? Como nosso pai, Adão, foi expulso do paraíso terrestre por
culpa de nossa mãe, Eva...
Que estranha hist
ória ele me contava? Entretanto, não fui capaz de protestar. (ibid., p.30)
nièce de ma femme que nous avons recueillie à la mort de ses parents, sont
déjà à bord. (CONDÉ, 2007, p. 62)
(...)
Ma
îtresse...
Ne m'appelle pas
maîtresse.
Comment vous nommerai-je alors?
Mais par mkon nom: Hester! Et toi quel est le tien?
Tituba. (ibid., p. 151)
19
Já a alusão é feita aos eventos que desencadearam mudanças religiosas e/ou
político-sociais, como o puritanismo, a imigração de Barbados para a América do Norte,
o preconceito racial e o comportamento considerado em nossos dias como feminismo,
através do discurso de Tituba, anteriormente personagem marginalizada (no episódio
real, histórico e em Miller), agora protagonista e através das falas de Hester, como em:
- Il faut peut-être que je commence par le commencement si je veux que tu
comprennes quelque chose à mon histoire.
Elle prit une profonde inspiration et moi, j'
étais suspendue à ses lèvres:
- Dans les falncs du Mayflower, le premier navire qui ait abordé sur cette
côte, il y avait s deux ancêtres, le père de mon père et celui de ma mère,
deux farouches Séparatistes qui venaient faire éclore le royaume du Vrai
Dieu. Tu sais combien pareils projets sont dangereux et je passerai sur la
férocité avec laquelle leurs descendants ont été élevés. Grâce à cela, ils ont
produit une flopée de vérends qui lisaient dans le texte Cicéron, Caton,
Ovide. Virgile...
Je l'interrompis:
- Je n'ai jamais entendu parler de ces gens-l
à! (CONDÉ, 2007, pp. 153-154)
20
19 Invadiu-me um pressentimento horrível, que suas palavras, pronunciadas numa voz igual e, no entanto,
cortante como um machado, sem inflexão, carregada de uma violência mortal, vieram confirmar:
- De joelhos, raspas do inferno! Sou o novo senhor de vocês. Chamo-me Samuel Parris. Amanhã, assim
que o sol abrir os olhos, partiremos a bordo do brigue Blessing. Minha mulher, minha filha Betsey e
Abigail, a pobre sobrinha da minha mulher, que recolhemos com a morte de seus pais, já estão a bordo.
(CONDÉ, 1997, p. 52)
(...)
- Senhora...
- N
ão me chame de senhora.
- Como vou cham
á-la, então?
- Pelo meu nome, ora: Hester! E o seu, qual
é?
- Tituba. (ibid., p. 128)
20 -Talvez seja preciso eu come
çar pelo começo, se quiser que você entenda alguma coisa da minha
história.
Ela inspirou profundamente e fiquei em suspense,
à mercê de seus lábios:
- A bordo do Mayflower, o primeiro navio que se aproximou desta costa, encontravam-se meus dois
ancestrais, o pai do meu pai e o pai da minha mãe, dois ferozes separatistas que vinham para fazer
desapontar o reino do Verdadeiro Deus. Você sabe o quanto são perigosos projetos desse tipo e vou pular
a ferocidade com que seus descendentes foram criados. Graças a isso, produziram uma penca de
reverendos, que liam no original Cícero, Catão, Ovídio, Virgílio...
Eu a interrompi:
- Nunca ouvi falar dessa gente! (COND
É, 1997, p. 130)
Fiorin ainda acrescenta que tanto a intertextualidade quanto a interdiscursividade
se referem ao discurso bivocal mencionado por Bakhtin, mas atenta para a questão de
que nem todo texto é intertextual, mas todo discurso é interdiscursivo; toda
intertextualidade é interdiscursiva, mas nem todo discurso é intertextual:
A interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja
verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao
discurso que ele manifesta.
A intertextualidade n
ão é um fenômeno necessário para a constituição de um
texto. A interdiscursividade, ao contrário, é inerente à constituição do
discurso (...). (BARROS & FIORIN, 2003, p. 35)
O ensaio de Edward Lopes, Discurso Literário e Dialogismo em Bakhtin,
encerra a obra de Barros & Fiorin reafirmando a concepção de romance dialógico,
retomando as palavras do próprio Mikhail Bakhtin em Le principe dialogique:
O próprio ser do homem (exterior como interior) é uma comunicação
profunda. Ser significa comunicar [...]. O homem não possui um território
interior soberano, ele se situa todo e sempre em uma fronteira: olhando para
o seu interior, ele olha nos olhos do outro ou através dos olhos do outro.
(LOPES in: BARROS & FIORIN, 2003, p. 79, marcas do autor)
Retomando a questão da intertextualidade sob a perspectiva de Julia Kristeva,
qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é a absorção e
transformação de um outro texto (KRISTEVA, 1974 in: KOCH, 2007). Segundo a
estudiosa, o dialogismo bakhtiniano designa a estrutura tanto como subjetividade quanto
como comunicatividade, enfim, como intertextualidade (cf. KRISTEVA, 1974, p. 67). É
possível dizer que Kristeva tomou por base as teorias de Gérard Genette em
Palimpsestes (1982), que propôs os termos transtextualidade e hipertextualidade, sendo
o primeiro uma referência a tudo o que põe o texto em relação implícita ou explícita
com outro(s) texto(s) e o segundo, estabelecendo toda relação que une um texto B
(hipertexto) a um texto A (hipotexto), enfatizando o princípio da derivação o
conceito de hipertexto sempre acaba por criar uma metáfora. Genette ainda menciona,
segundo Carlos Reis, em O Conhecimento da Literatura: Introdução aos Estudos
Literários (2003), a paratextualidade, quando ocorre uma relação do texto com outros
textos que o enquadram; a metatextualidade, que seria a produção de um texto sobre
outro e a arquitextualidade, que estabelece as relações do texto com as normas, assim
como menciona e exemplifica no seguinte trecho:
De acordo com a postulação genettiana (...) a arquitextualidade é entendida,
então, como um tipo particular de relação transtextual, a par da
intertextualidade, da paratextualidade, da metatextualidade e da
hipertextualidade. Assim, a arquitextualidade define-se como o conjunto
das categorias gerais ou transcendentes tipos de discurso, modos de
enunciação, gêneros literários etc de onde decorre cada texto
singular. (Palimpsestes, pp.7-11)
Como é óbvio, o domínio em que com mais evidência se observa o exercício
da arquitextualidade é o dos modos e gêneros literários. De facto, quando
dizemos do Memorial do Convento de José Saramago que é um texto
narrativo e, mais propriamente, um romance, mas não exactamente um
romance histórico, estamos a operar uma reflexão dimensionada, neste caso a
três veis distintos: ao nível dos modos do discurso, ao nível dos gêneros
literários e ao nível dos subgêneros do romance, entendidos como
arquitextos daquele texto. A narrativa, o romance e o romance histórico
constituem, então, referências arquitextuais, investidas de capacidade
classificativa e configurando, simultaneamente, um horizonte de expectativas
que enquadra e rege a leitura. (REIS, 2003, pp. 230-1, marcas do autor.)
Com base na apresentação de tais pressupostos acerca das teorias da
intertextualidade e da interdiscursividade, é possível dizer, segundo Debra Anderson,
em Teaching Francophone Literature in Translation: Maryse Condés I, Tituba, Black
Witch of Salem (s/d), que o romance da escritora antilhana apresenta quatro
possibilidades intertextuais de leitura: uma primeira possibilidade a partir do texto
histórico, como se a obra constituísse uma resposta ao vazio encontrado pela autora
em documentos históricos com relação à personagem Tituba, como se observa na
afirmação encontrada na contracapa da edição em Língua Portuguesa do romance de
Condé:
Maryse Condé escolheu nos falar de uma mulher esquecida pela História, que
destacou as feiticeiras brancas que foram enforcadas, dedicando a Tituba uma
única frase: Tituba, escrava de Barbados, aparentemente praticante de
vodu. Condé, com isso, repara, pelo menos o erro do esquecimento, o último
do qual Tituba foi vítima. (CONDÉ, 1986, contra-capa da edição em Língua
Portuguesa)
Tal visão apareceria como revisionista, pois incluiria um posicionamento crítico,
tomando como base nas noções de racismo e opressão compartilhados pelos negros,
como Tituba, e pelos judeus, como a personagem de Benjamin Cohen DAzevedo,
como é possível notar através da seguinte citação:
The very pretext for writing I, Tituba... is a response to what Condé saw as a
void in written historical documentation. (...) Because Condé tells this story
from the perspective of the oppressed other, her view is essentially
revisionist: Condé revises and rewrites history by writing her story. This
desire to revise what is perceived as an incomplete history continues with
Condés inclusion of the Jewish character of Banjamin Cohen DAzevedo,
who becomes Titubas owner, friend and lover and ultimately, the one who
grants her her freedom so that she can return to her homeland. Thus, Condé
underscores the historyof racism and oppression shared by the Black and
Jewish communities. The historical aspect of Condés work further
emphasizes and illustrates the importance of history in Francophone
Caribbean Literature (...). (ANDERSON, s/d, pp. 62-63)
21
A segunda possibilidade intertextual de leitura seria através da idéia de
manifestações culturais como formas de rituais, sendo explícita a ênfase ao
sobrenatural, à espiritualidade, à mágica e à tradição oral, representadas pelas cantigas,
ervas e curas que faziam parte do cotidiano da escrava Tituba, bem como a sua noção de
proteção, através de seu contato com o mundo dos mortos. Nesse caso, o intertexto
acaba por resultar em um novo intratexto, pois quando a protagonista retorna a
Barbados, ela descobre que sua história agora fazia parte daquela comunidade, sendo
inscrita na memória coletiva.
Como terceira possibilidade, considera-se a apresentação dos hipotextos As
Bruxas de Salém (1953), de Arthur Miller e A Letra Escarlate (1850), de Nathaniel
Hawthorne. Nesse caso, a re-leitura de Parris como mercador mal-sucedido, justificaria
seu desejo de enriquecimento junto à religião e a inclusão de Hester Prynne, como uma
feminista utópica, justificaria a inclusão de uma voz feminina crítica à obra.
Por fim, a quarta possibilidade de releitura encontra-se inserida no (con)texto
social, pensando a América como retrato de uma terra de promessas quebradas e sonhos
destruídos, em contraposição à América vista como Terra Prometida, a nova Canaã
bíblica. Para Tituba, a América é negra, pois lhe inspira temor e não esperança é o
retrato do exílio: (...) For Tituba, America is a dark land that inspires not hope but
fear: she was banished to America, separated from her loved ones.
22
(ANDERSON,
21 O grande pretexto para escrever Eu, Tituba... é uma resposta àquilo que Condé viu como um vazio na
documentação histórica escrita (...). Uma vez que Condé escreve sua narrativa sob a perspectiva do outro
oprimido, sua visão é essencialmente revisionista: Condé revisa e reescreve a história ao escrever sua
história. Este desejo de revisar o que é percebido como uma história incompleta continua com a inclusão
do personagem judeu Benjamin Cohen DAzevedo, que se torna dono de Tituba, além de amigo e amante
e, por fim, aquele que lhe concede a liberdade para que possa voltar à sua terra natal. Assim, Condé
enfatiza a história do racismo e da opressão compartilhados pelas comunidades negra e judaica. O aspecto
histórico do trabalho de Condé ainda enfatiza e ilustra a importância da história na literatura francófona
caribenha (...). (tradução nossa)
22 (...) Para Tituba, a Am
érica é um lugar negro que o inspira esperança, mas medo: ela foi banida
para a América, separada daqueles a quem amava. (tradução nossa)
s/d, p.65). Tituba passa a ter voz, a voz dada à personagem marginalizada constitui
crítica social à América contemporânea:
(...) Setting the novel during this early period of American history allows
Condé to express her ideas about contemporary American society. She
adeptely transposes Titubas fear of the dark continent of America to a
twentieth century context (...). (...) Condés novel exemplifies Edouard
Glissants concept of questionnement a profound questioning of history and
society. In this social interpretation of I, Tituba... [its possible] to confront a
scathing critique of American society (...). (id., pp. 65-66)
23
Retomando a noção de que a história está inevitavelmente envolvida no contexto
da obra, é possível mencionar Kristeva (1974) usa o termo ambivalência que implica a
inserção da história (da sociedade) no texto, e do texto na história, para o escritor, são
uma única e mesma coisa. (p. 67), o que, de uma forma ou de outra, corrobora com
todo o exposto, além de indicar, mais uma vez, a noção de dialogismo, ou como a
própria estudiosa menciona: (...) o espaço ambivalente do romance se apresenta como
ordenado por dois princípios de formação: o monológico (...) e o dialógico (...). (pp.
70-71), o que deixa claro o fato de que a estrutura romanesca dá margem a tal
ambivalência, que se revela rica, pois implica diversas outras noções, como a da
linguagem, da lógica e da duplicidade.
Vale lembrar que no tocante ao estudo da personagem, Bakhtin (1981) indica
que é o valor dos traços característicos que serve como elemento constitutivo de sua
formação, com a função de representar o objeto da visão do autor, como segue:
Nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela toma consciência
de si mesma, a nossa visão não se acha diante da realidade da personagem,
mas diante da função pura de tomada de consciência dessa realidade por ela.
(pp. 40-41, marcas do autor)
Há, na verdade, a proposta de uma soma entre a autoconsciência e outra(s)
consciência(s), pois essa possibilidade amplia o campo de visão tanto do autor, quanto
da personagem, colocando-a em um plano dialógico, no qual se fala com essa
personagem e não sobre ela, conforme menciona Bakhtin, com relação a Dostoiévski:
23 A escolha deste período inicial da história americana como cenário permite a Condé expressar suas
idéias sobre a sociedade americana contemporânea. Ela competentemente transpõe o medo de Tituba do
continente negro da América para o contexto do século vinte (...). (...) O romance de Condé exemplifica
o conceito de Edouard Glissant de questionamento um profundo questionamento da história e da
sociedade. Nesta interpretação social de Eu, Tituba..., [é possível] confrontar uma crítica mordaz à
sociedade americana (...). (tradução nossa)
(...) no início do romance já começam a soar vozes principais do grande diálogo. Essas
vozes não se fecham nem são surdas umas às outras (...). (ibid., p. 64)
Fica clara, assim, a importância do discurso no romance dito polifônico, por
conta das relações dialógicas por ele estabelecidas tal discurso apresenta-se
duplamente orientado, baseado no discurso do outro:
(...) Existe um conjunto de fenômenos do discurso-arte que há muito tempo
vem chamando a atenção de críticos literários e lingüistas. Por sua natureza,
esses fenômenos ultrapassam os limites da lingüística, isto é, o fenômenos
metalingüísticos. Trata-se da estilização, paródia, do skatz e do diálogo
(composicionalmente expresso, que se desagrega em réplicas). Apesar das
diferenças substanciais, todos esses fenômenos têm um traço comum: aqui a
palavra tem duplo sentido, voltando-se para o objeto do discurso enquanto
palavra comum e para um outro discurso, para o discurso de um outro (...).
(ibid., pp. 160-161, marcas do autor)
A relação estabelecida entre esses discursos é mencionada por Bakhtin, no
prefácio à edição francesa de Estética da criação verbal (2003), publicado também na
edição em Língua Portuguesa, quando indica que na estética formalista, arte e literatura
encontram justificativa em si mesmas e que (...) o essencial não está na relação da obra
com as outras entidades o mundo, ou o autor, ou os leitores , mas na relação de seus
próprios elementos constitutivos entre si. (p. XVI)
Bakhtin critica o materialismo verificado no posicionamento da estética
formalista quando cita um artigo de Sartre, de 1939, M. François Mauric et la liberté,
no qual o crítico recusa as práticas romanescas em que se verifique um posicionamento
privilegiado do ponto de vista do observador, pois Num verdadeiro romance, assim
como no mundo de Einstein, não há lugar para um observador privilegiado. (p. 56-57)
(p. XXI - introdução) o que Bakhtin privilegia, de fato, é a relação entre o eu e o
outro, ao invés de privilegiar apenas um destes pontos de vista.
Nessa mesma obra, Bakhtin acentua as peculiaridades da personagem e sua
relação com o autor, apontando três casos típicos: no primeiro, a personagem assume
domínio sobre o autor tudo ocorre no universo dessa personagem e o autor não
reconhece apoio sólido fora dela; no segundo caso, o autor se apossa da personagem,
que se auto-define, representando-o e, no terceiro e último caso, a personagem aparece
como autora de si mesma, representando um papel auto-suficiente, como forma de
inserir no contexto narrativo posicionamentos satíricos, irônicos e/ou transgressores.
Seria este último o caso da Tituba de Condé, uma vez que a autora
explicitamente dialoga em sua obra, com a peça de Arthur Miller e, ao fazê-lo,
apresenta Tituba de maneira diversa daquela introduzida pelo dramaturgo americano.
Na peça, Tituba não é protagonista, mas tem breves momentos como tal quando é
forçada a confessar ter conjurado espíritos e ser uma feiticeira, em troca de não morrer
enforcada. Quando assume tal verdade, a personagem faz valer sua momentânea
posição de destaque e acusa outras pessoas de também se comunicarem com o demônio,
inclusive afirmando ter sido compelida por ele a matar seu senhor, o Reverendo Parris,
mas a escrava justifica não tê-lo feito porque sabia que seria punida por isso.
Condé subverte essa ordem, tornando Tituba sua protagonista e também
narradora do romance, ironicamente promovendo uma primeira transgressão, que seria
alterar o status dessa personagem de uma obra para outra. Além dessa primeira
transgressão, Condé voz a uma personagem que, em Miller, assim como a Tituba do
evento histórico, não teria direito a ser ouvida por razões óbvias para aquela sociedade e
contextos político e econômico por ela expostos: Tituba era mulher, negra, escrava,
estrangeira e, supostamente, uma bruxa ao promover Tituba à posição de autora de si
mesma, Condé não somente abre espaço à voz do sujeito marginalizado, bem como
indica sátira e ironia àquela sociedade.
Cabe lembrar que Bakhtin (2003), ainda tratando da personagem, retoma sua
forma espacial, mencionando o excedente da visão estética, no qual autor, personagem e
leitor interagem de tal forma que sempre haja uma visão presente em face do outro,
levando em conta o eu e o outro, o eu e todos os outros e o outro para mim:
Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos
horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em
qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar
em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e
diante de mim, não pode ver (...). Quando nos olhamos, dois diferentes
mundos se refletem na pupila dos nossos olhos. Assumindo a devida posição,
é possível reduzir ao mínimo essa diferença de horizontes, mas para eliminá-
la
inteiramente urge fundir-se em um todo único e tornar-se uma só pessoa.
(p. 21)
A personagem apresenta, ainda, as possibilidades da interpretação estética e da
estruturação de seu corpo exterior, ambas vistas por Bakhtin como dádivas da
consciência do outro, daquele que a contempla. Ao tratar desse assunto, o autor refere-
se ao todo temporal da personagem, dotando-a de alma, seu todo interior:
Constataremos que a alma como um todo interior em processo de formação no tempo,
como um dado, um todo presente, constrói-se à base de categorias estéticas; é o espírito
em sua aparência por fora, no outro. (ibid., p. 91, marcas do autor)
Assim colocado, a alma representaria um eu para si e, através dela, surge a
problemática da imortalidade, desenvolvida ao perpassar as fronteiras entre a vida
interior, a alma e a vida exterior, de forma a confrontar o eu e o outro em suas
existências, alcançando o que Bakhtin chama de compreensão simpática, termo que se
refere ao ativismo que vem de fora com vistas ao mundo interior do outro, como é
possível observar no seguinte trecho:
Na vida que vivencio por dentro não podem ser vivenciados os
acontecimentos do meu nascimento e da minha morte; enquanto meus, o
nascimento e a morte não podem tornar-se acontecimentos da minha própria
vida. (...) O medo da minha morte e a atração pela continuidade da vida é de
índole essencialmente diversa que o medo da morte de outra pessoa íntima e
do empenho em proteger-lhe a vida. Falta ao primeiro caso o elemento que
no segundo é essencial: a perda da pessoa única qualitativamente definida do
outro, o empobrecimento do mundo da minha vida onde esse outro estava e
agora não está (...). (BAKHTIN, 2003, p. 95, marcas do autor)
Novamente, é possível inserir a personagem Tituba nesse contexto, uma vez que
sua vida é descrita como uma longa jornada, pautada por distanciamentos e perdas, do
início ao final do romance de Condé. No início da narrativa sabe-se que Abena, sua
mãe, foi violentada e que a protagonista é o fruto desse ato de agressão: C'est de cette
agression que je suis née. (CONDÉ, 2007, p. 13)
24
Abena sofrera outras tantas
agressões,como o assassinato de seus pais e a separação de Jennifer Davis, esposa do
homem que a havia comprado sem saber de sua gravidez ao notá-la, expulsou Abena
da casa-sede, dando-a a um dos outros escravos que havia comprado com ela, Yao, que
se compadeceu da mulher, assumindo-a, conforme relato de Tituba:
- Ne pleure pas. Je ne te toucherai pas. Je ne te ferai aucun mal. Est-ce que
nous ne parlons pas la même langue? Est-ce que nous n'adorons pas le même
dieu?
Puis il abaissa les yeux vers le ventre de ma m
ère:
- C'est l'enfant du ma
ître, n'est-ce pas?
Des larmes, encore plus br
ûlantes, de honre et de douleur, jaillirent des yeux
d'Abena:
- Non, non! Mais c'est quand m
ême l'enfant d'un Blanc.
Comme elle se tenait l
à, devant lui, tête basse, une immense et très douce
pitié emplit le coeur de yao. Il lui sembla que l'humiliation de cette enfant
symbolisait celle de tout son peuple, défait, dispersé, vendu à l'encan. Il
24 Foi dessa agressão que nasci. Desse ato de desprezo. (CONDÉ, 1997, p. 11)
essuya l'eau qui coulait de ses yeux:
- Ne pleure pas. A partir d'aujourd'hui, ton enfant c'est le mien. (id., pp. 15-
16)
25
Yao adota Abena e Tituba, sendo uma espécie de pai e protetor das duas.
Ensinava Abena a cuidar da criança e amava Tituba como sua, mas a sina de Abena se
repete como tentativa de defesa ante um novo estupro, ela esfaqueia Darnell Davis,
seu patrão, e é enforcada. Tituba perde a mãe e, logo em seguida, Yao que,
enlouquecido pela perda de sua amada, comete o suicídio engolindo a própria língua.
Expulsa daquelas terras e, apenas com sete anos, a menina é acolhida por Man-Yaya,
uma velha senhora que (...) elle avait à peine les peids sur notre terre et vivait
constamment dans leur compagnie, ayant cultivé à l'extrême le don de communiquer
avec les invisibles. (CONDÉ, 2007, p. 21)
26
Man Yaya ensinou sua arte a Tituba e foi através dela que a personagem pôde
reencontrar Abena e Yao, sendo então iniciada em outros conhecimentos e, logo em
seguida, abandonada por Man Yaya, que também faleceu. Tituba, tardiamente,
reconhece: Je m'en aperçois aujourd'hui, ce futent les moments les plus heureux de ma
vie. Je n'étais jamais seule puisque mês invisibles étaient autour de moi, sans jamais
cependant m'oppresser de leur présence.(ibid., pp. 24-25)
27
Tituba conhece, então, John Índio e, enlouquecida de amor, opta por abandonar
sua liberdade para poder viver com ele, escravo, mas sabe de seu destino, mesmo
lutando contra ele, conforme sua visão de Man Yaya lhe diz:
A peine arriv
ée chez moi, j'appelai Man Yaya qui ne se hâta pas de
m'écouter et apparut, le visage renfrogné:
25 - Não chore. o vou tocar em você. Não vou lhe causar mal algum. Não falamos a mesma ngua?
Não adoramos o mesmo deus?
Depois, baixou os olhos em dire
ção à barriga de minha mãe:
-
É filho do senhor, não é?
L
ágrimas ainda mais brilhantes, de vergonha e de dor, brotaram nos olhos de Abena:
- Não, não! Mas, de todo modo, é filho de um branco.
Enquanto ela permanecia ali de p
é, diante dele, a cabeça baixa, uma piedade imensa e muito doce encheu
o coração
de Yao. Parecia que a humilha
ção de todo seu povo, derrotado, disperso, vendido em leilão. Ele enxugou
a água
que corria dos olhos dela:
- N
ão chore. A partir de hoje, o seu filho é meu (...). (ibid., p. 13)
26 (...) vivia constantemente em companhia deles [filhos e marido, mortos sob tortura], tendo cultivado
ao extremo o dom de se comunicar com os invisíveis. (CONDÉ, 1997, p. 18)
27 Hoje percebo que foram esses os momentos mais felizes da minha vida. Nunca estava sozinha, pois
meus invisíveis estavam à minha volta, sem jamais, no entanto, me oprimir com sua presença. (ibid., p.
20)
- Qu'est-ce que tu veux encore? Est-ce que tu n'es pas comblée? Voilà qu'il te
propose de te mettre avec lui...
Je fis tr
ès bas:
- Tu sais bien que je ne veux pax retourner dans le monde des Blancs.
- Il faudra bien que tu passes par lá.
(...)
- Pourquoi? Ne peux-tu me l'amener ici? Est-ce que cela veut dire que tes
pouvoirs sont limités?
Elle ne se f
âcha pas et me regarda avec une commisération très tendre:
- Je te l'ai toujours dit. L'univers a ses règles que je ne peux bouleverser
entirèment. Sinon, je détruirais ce monde et em rebâtirais un autre les
nôtres seraient libres. Libres d'assujettir à leur tour les Blancs. Hélas! Je ne le
peux pas! (ibid., pp. 36-37)
28
Indo para a América, acusada de bruxaria, Tituba perde a Sra Parris e Betty e
também John Índio. Na prisão, consolida a amizade com Hester, para depois perdê-la,
pois esta comete o suicídio. É comprada por Benjamin Cohen DAzevedo, judeu,
oprimido como ela juntos conhecem o sofrimento da perda da família dele que,
solitário, a Tituba a oportunidade de voltar a Barbados de volta às origens, Tituba
se relaciona com Christopher que, na verdade, está interessado na lenda e não na mulher
e, grávida, também sofre a perda de mais este homem e também da criança que
esperava.
Assim, se contrastados alma e espírito, conclui-se que a alma é a imagem de
tudo o que é vivenciado e, ela mesma, é vivenciada dentro do espírito; o espírito, por
sua vez, é o conjunto de significações de sentido, de propósito da vida, sendo sempre
extra-estético, o que marca a impossibilidade de ser agente do enredo, uma vez que não
existe. Bakhtin (2003) menciona que
(...) A alma é o espírito que não se realizou, refletido na consciência amorosa
do outro (...); é aquilo com que eu mesmo nada tenho a fazer, em que sou
passivo, receptivo (dentro de si mesma, a alma pode apenas envergonhar-se
de si mesma, de fora pode ser bela e ingênua). (p. 104)
28 Mal cheguei em casa, chamei Man Yaya, que demorou para me escutar, aparecendo de cara amarrada:
- O que é que você quer mais? Não está satisfeita? Ele propõe que você fique com ele...
Eu disse bem baixo:
- Voc
ê sabe que não quero voltar para o mundo dos brancos.
- Vai ser necess
ário passar por lá.
(...)
- Por qu
ê? Você não pode trazê-lo aqui para mim? Isso quer dizer que os seus poderes são limitados?
Ela não se zangou. Olhou-me com terna comiseração:
- Sempre lhe disse que o universo tem suas regras, que n
ão posso mudar inteiramente. Se pudesse,
destruiria este mundo e construiria outro, onde os nossos seriam livres. Livres para, por sua vez,
escravizar os brancos. Ai de mim, não posso! (ibid., p. 31)
Há de se destacar, ainda, que o romance de Maryse Condé opera, de acordo com
todas as teorias por ora expostas, uma série de menções não somente intertextuais, como
também interdiscursivas, o que deixa clara ao leitor a sua riqueza de detalhes,
informações e posicionamentos.
1.3 PERSONAGEM
The author makes his readers, just as he makes his characters. (Henry
James)29
A obra literária, composta por uma série de planos, reproduz um mundo fictício-
mimético relacionado a toda uma realidade empírica, estando sua estrutura textual
constituída por enunciados que representam uma intenção de verdade. Segundo
Rosenfeld, em A personagem de ficção (2002),
O termo verdade, quando usado com referência a obras de arte ou de
ficção, tem significado diverso. Designa com frequência qualquer coisa como
a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (...) ou a verossimilhança, isto é,
na expressão de Aristóteles, não a adequação àquilo que aconteceu, mas
àquilo que poderia ter acontecido, ou a coerência interna no que tange ao
mundo imaginário das personagens e situações miméticas; ou mesmo a visão
profunda de ordem filosófica, psicológica ou sociológica da realidade.
(p.18)
Nessa intenção de verdade, que obedece a uma ordem estética, forma-se, então,
uma aparência de realidade, o que revela uma proposta ficcional ou mimética, com a
veracidade dos detalhes colaborando para toda uma rede textual coerente. Tal
verossimilhança, construída no mundo do imaginário, empresta ao texto força de
convicção, com base em uma parceria formada entre o autor e o leitor: (...) Trata-se de
um verdadeiro ser aparencial (Julian Mariás), baseado na convivência entre autor e
leitor. O leitor, parceiro 'da empresa lúdica, entra no jogo e participa da não-seriedade
dos quase-juízos e do fazer de conta. (ROSENFELD, 2002, p.21)
Com base nesses preceitos, é possível verificar o caráter ficcional da obra,
constituído por critérios cujos contextos extrapolam o conteúdo meramente significativo
no texto ficcional, as ideias apresentam uma intencionalidade marcante e é através
dessa característica que se justifica o surgimento das personagens, através das quais se
viabiliza analisar quaisquer outras ideias. Vale ressaltar, também, que o estudo da
personagem foi desenvolvido em diferentes momentos da crítica literária, julgando-se
necessária sua exposição e que a opção, no presente estudo, foi por um levantamento de
29 O autor forma seus leitores, assim como forma suas personagens." (tradução nossa) (JAMES, Henry
in: BOOTH, Wayne C. The Rethoric of Fiction. (1983)
tais teorias, o que levou-nos à conclusão de que a teoria bakhtiniana é a que fundamenta
com maior propriedade este trabalho.
Segundo Aristóteles, é possível analisar a personagem como reflexo humano e
como forma de construção textual. Quando de sua construção, implica-se uma
determinada estrutura na qual a personagem torna-se sinônimo de ser um agente de
fazer (BRAIT, 2002) e tem sua existência condicionada a outras.
Nessa mesma estrutura, a personagem deve apresentar a função de construir uma
imagem, representada através de um nome e de laços genealógicos, revelando um ser
que faz uso de um determinado tipo de linguagem e é representado por um rol de
atribuições físicas e psicológicas, sendo parte de um universo caracterizado social e
culturalmente. Yves Reuter, em Introdução à análise do romance (1996), observa que:
As personagens têm um papel essencial na organização das histórias. Elas determinam
as ações, vivenciam-nas e dão sentido a elas. De certa maneira, toda história é história
das personagens (...). (p.54, marcas do autor).
Com base nesse contexto, é possível conceber a idéia de que para que os textos
não se tornem meramente descritivos, urge a presença da figura humana, o que torna a
ficção patente. Em Aspectos do romance (1998), E.M. Forster parte do pressuposto de
que o romancista constitui diversas massas verbais e, ao descrevê-las, descreve a si
mesmo, dotando-as de falas e comportamentos consistentes tais massas verbais,
segundo o estudioso, constituem as personagens.
Forster propõe a classificação das personagens em planas e redondas, sendo as
primeiras mais facilmente reconhecíveis pelo leitor, por o apresentarem alterações de
comportamento e as últimas, as que promovem novas emoções, por surpreenderem o
leitor de modo convincente. Se houver dúvida, ou mesmo momentos de comportamento
duvidoso por parte das personagens, o autor sugere, O teste para uma personagem
redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca
surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda (...).
(FORSTER, 1998, p. 75)
A partir das proposições de Forster, Antônio Cândido, em A Personagem de
Ficção (2002), sugere o seguinte questionamento: a personagem constitui um ente
reproduzido ou um ser inventado? Mesmo sendo este questionamento de difícil
aplicação e de contribuição diminuta no entendimento do todo da teoria da personagem
sob o ponto de vista da pós-modernidade, sugere-se, ainda, como resposta ao
questionamento, o fato de que a personagem não é mera reprodução dos seres vivos,
mas nasce a partir de sua existência. O autor também retoma Mauriac, que propôs a
classificação de personagens de acordo com seu grau de afastamento da realidade,
podendo assim constituir um leve disfarce do romancista, como no caso dos romances
memorialistas, pretendendo representar uma cópia fiel de pessoas reais, nos romances
retratistas ou sendo inventadas, inseridas em uma realidade que apenas constitui um
dado inicial ao seu desenvolvimento.
Complementando as propostas de Forster, Cândido elenca uma série de
mecanismos de criação da personagem: 1. personagens transpostas com fidelidade a
partir de modelos (personagem projetada); 2. personagens reconstituídas indiretamente
a partir de modelos anteriores; 3. personagens construídas a partir do modelo real; 4.
personagens construídas a partir de um modelo conhecido de forma direta ou indireta,
constituindo um pretexto básico; 5. personagens construídas em torno de um modelo
real dominante, representando um eixo para junção com modelos secundários; 6.
personagens elaboradas com fragmentos de modelos vivos e, por fim, 7. personagens
cujas raízes desaparecem na personalidade fictícia devido à ausência de modelo
consciente ou elementos tomados da realidade. O autor conclui que (...) a natureza da
personagem depende da concepção que preside o romance e das intenções do
romancista. (p. 74)
Reuter (1996) recorre a A. J. Greimas e seu esquema actancial, a partir do qual é
lançada uma hipótese inicial: se todas as narrativas apresentam uma estrutura
semelhante, isto se deve ao fato de as personagens poderem ser reagrupadas em
categorias comuns de forças agentes (actantes), propostas em seis grupos:
Ele isola, então, seis grupos de actantes, que participam de qualquer narrativa
definida como busca. O Sujeito procura o Objeto; o eixo do desejo, do querer
une estes dois papéis. O Adjuvante e o Oponente, no eixo do poder, ajudam o
Sujeito ou se opõem à realização de seu desejo. O Destinador e o
Destinatário, no eixo do saber ou da comunicação, fazem o sujeito agir,
encarregando-o da busca e sancionando o seu resultado: eles designam e
reconhecem os Objetos e os Sujeitos de Valor. (REUTER,1996, pp.54-55,
marcas do autor)
Inserida nessa proposta está a concepção de que a personagem é caracterizada
por limites e convenções e que as teorias que surgiram em torno dela sugerem um
quadro evolutivo que, segundo Reuter, data de entre o final da Idade Média e o início do
século XX, evolução marcada pela possibilidade de transformação entre o início e o
término do romance. Entre os séculos XIX e XX o desenvolvimento de duas
tendências:
Por um lado, o refinamento do tratamento psicológico da personagem sob a
notável influência da psicanálise. Isto se através de um trabalho cada vez
mais aprofundado do monólogo interior em busca dos mais ínfimos
pensamentos ou das mudanças de pontos de vista que relativizam qualquer
pretensão a uma visão objetiva. Por outro lado, manifesta-se sob a
influência do estruturalismo, um questionamento do personagem como
reflexo da pessoa. (id., pp. 24-5)
O autor cita, ainda, Claude Brémond, quando trata dos papéis principais, nos
quais as personagens apresentam três posições fundamentais, estando a personagem
paciente afetada pelo processo, a agente sendo a que inicia o processo e a personagem
influenciadora, aquela que intervém em um momento anterior, para criar um estado de
espírito, esperança, ou suscitar temores da personagem agente ou paciente. (id., p. 56)
O teórico Philippe Hamon, autor de Pour um statut sémiologique du personnage,
também é citado por Yves Reuter, por ter estabelecido diferentes critérios no que tange
à distinção e hierarquização das personagens, propondo seis parâmetros analíticos: 1. a
qualificação diferencial, que se refere à quantidade de qualificações atribuídas à
personagem (enunciados de ser); 2. a distribuição diferencial, que trata dos aspectos
quantitativos da aparição da personagem na narrativa; 3. autonomia diferencial, que
considera os modos de combinação das personagens; 4. a funcionalidade diferencial, a
qual se refere aos papéis na ação; 5. a pré-designação, referente à importância definida
pela posição da personagem na narrativa; 6. o comentário explícito, que trata das
avaliações internas que indicam a posição da personagem.
Hamon também é mencionado por Brait em A Personagem (2002), como aquele
que estudou a personagem sob uma perspectiva semiológica, entre herói e anti-herói,
definindo três tipos de personagens: as personagens referenciais (protagonistas), com
sentido pleno e fixo, o herói; personagens embrayeurs (secundárias), que atuam como
elos de ligação, ganhando sentido quando em conjunto com outros elementos da
narrativa e personagens anáforas, como as que são completamente apreendidas segundo
a rede de relações formadas pela tessitura da obra.
Ainda seguindo o percurso teórico acerca da constituição da personagem, pode-
se fazer, de maneira resumida, porém extremamente eficaz, faz uma apresentação dos
aspectos constitutivos do romance, dentre os quais, as personagens, que variam em
número, de obra para obra, cabendo ao autor reduzi-las ou multiplicá-las, de acordo
com os conflitos inseridos em sua narrativa. Assim, seriam três os tipos de personagem
na hierarquia dramática: a personagem principal, também chamada protagonista, a
personagem secundária ou deuteragonista e a personagem antagônica, variante do
segundo tipo, complementando:
Na verdade, porém, essas personagens não se colocam no mesmo plano, ou
quando isso acontece, não são realmente iguais: dois protagonistas podem ser
contrários como personagens, pouco importando que se pareçam pelo fato de
agirem com igual relevo no corpo da narrativa; assemelham-se pela ação mas
diferem na personalidade. Este fato sugere que classifiquemos as personagens
independentemente da importância que assumem no conjunto da história.
Podem ser planas ou bidimensionais, e redondas ou tridimensionais.
(MOISÉS, 1997, p. 229 cf. FORSTER, pp. 67-78, marcas do autor)
Ao promover essa espécie de somatória de teorias acerca da personagem,
coletando aspectos estudados por diversos autores, é possível propor um quadro
contrastivo entre personagens planas e redondas, segundo o qual as personagens planas
são aquelas destituídas de profundidade, sendo caracterizadas por um traço marcante,
que pode ser uma qualidade ou defeito, uma faculdade ou característica e podendo ser
chamadas de tipos ou caricaturas. Já as personagens redondas se apresentam com
profundidade revelada por um elenco de características, sendo dinâmicas e, portanto,
surpreendendo o leitor com sua presença globalizante no texto e, eventualmente, podem
se transformar em símbolos. Ainda que as contraste, há que se apontar para o fato de
que as personagens plana e redonda podem sofrer intercâmbio no decorrer das
narrativas, como cita em dois diferentes momentos de seu texto.
Assim, pode-se concluir que a construção da personagem, pelo menos no que diz
respeito ao romance, implica em uma determinada estrutura, colocando-a como agente
de um fazer, o que significa dizer que sua existência é condicionada a outra,
apresentando assim, uma função e divulgando uma imagem, individualizando-se por
meio de um nome e apresentando referências genealógicas, fazendo uso de um
determinado tipo de linguagem, que a conecta a um período ou época característicos,
assim como também são característicos seu comportamento e seus atributos físicos que
auxiliam ao leitor localizar esse ser em um espaço social e cultural, retomando
Aristóteles, que julgava a personagem como reflexo humano e como construção textual,
sendo possível, ainda comentar que as teorias até aqui apresentadas, mesmo que tenham
sido as primeiras a propor um estudo acerca da personagem, nos dias atuais parecem um
tanto engessadas, como se empobrecessem as personagens criadas pelos romancistas
ao qualificá-las meramente como planas e redondas... surge a pergunta: e o que mais? A
resposta para tal pergunta é o que buscamos responder ao final deste capítulo.
Cabe, ainda, tratar da questão da personagem também no que tange ao contexto
dramático, uma vez que o presente trabalho propõe o estudo de um romance, Eu,
Tituba, feiticeira... Negra de Salém (1986), de Maryse Condé, que apresenta relações
dialógicas com outro romance, A letra escarlate (1850) de Nathaniel Hawthorne, e com
uma peça teatral, As Bruxas de Salém (1953), de Arthur Miller, todos provenientes de
momentos históricos distintos, mas que, de alguma forma, se complementam e
dialogam entre si.
No âmbito teatral, a tradição da prática dessa arte, segundo Jean-Pierre
Ryngaert, em Introdução à análise do teatro (1996), considera a personagem como
consciência autônoma, mencionando que
Nem todas as representações se apóiam no mesmo princípio de identificação
pessoa-personagem. Mas essa assimilação é muito cômoda e explica-se
facilmente. Quando não se sabe como entrar no texto de teatro, passar pela
personagem é uma tentação que nos autoriza discursos conhecidos. (p. 125)
Ryngaert retoma o teatro grego, resgatando a utilização da persona, papel
desempenhado pelo ator, mas uma representação diferente daquela encenada pelo ator
dramático, para reforçar a idéia de que a ficção teatral precisa da personagem escrita,
pois esta representa marca unificadora do processo enunciativo, como se só fosse
completa no ato da representação: A personagem não existe verdadeiramente no texto,
ela só se realiza no palco, mas ainda assim é preciso partir do potencial textual e ativá-lo
para chegar ao palco. (id., p. 129) O autor deixa claro o fato de que o discurso
representado pela personagem veicula aquele de seu autor, o que torna explícita a
questão da crítica social:
(...) o discurso da personagem não é verdadeiramente dela, mas do autor que
a faz falar. Entretanto, o autor não se identifica necessariamente com a
personagem, como sugerem às vezes certos trabalhos em que a crítica busca
encontrar a biografia do autor por trás dos diferentes discursos. (ibid., p.
140)
No Dicionário de Teatro (1996), Patrice Pavis argumenta que a evolução do
teatro ocidental foi marcada por uma maior identificação entre personagem e ator: (...)
a personagem vai identificar-se cada vez mais com o ator que a encarna e transmudar-se
em entidade psicológica e moral semelhante aos outros homens, entidade essa
encarregada de produzir no espectador um efeito de identificação. (p. 285)
Também fica claro, segundo Pavis, que ao encenar uma ação, toda personagem
de teatro revela seu caráter e a relação entre a ação e o caráter expressos por ela é
proposta em um quadro que revela, através de exemplos, os graus de realidade dessa
personagem (ibid., p. 287):
PARTICULAR
INDIVÍDUO
Hamlet

CARÁTER
O Misantropo
HUMOR
Sir Toby (Noite de Reis)
ATOR
O Enamorado
PAPEL
O Ciumento
TIPO
O Soldado
CONDIÇÃO
O Comerciante
ESTEREÓTIPO
O Criado Velhaco
ALEGORIA
A morte
ARQUÉTIPO
O Princípio do Prazer
GERAL ACTANTE
Busca de Lucro
O autor também trata da personagem sob os aspectos semântico e semiótico: no
primeiro, a personagem é 'colocada' perante o espectador, tornando-se um ícone e
produzindo efeito de realidade e identificação entre ator e espectador; no segundo, a
personagem se integra ao sistema de outras personagens, fazendo parte do conjunto e
apresentando traços similares aos das outras personagens, complementando:
Esta dupla pertinência da personagem ao semântico e ao semiótico faz dela
um ponto de passagem entre o acontecimento e seu valor diferencial no
interior da estrutura ficcional. Enquanto rotatória entre acontecimento e
estrutura, a personagem coloca em relação elementos que, de outra forma,
seriam inconciliáveis: em primeiro lugar, o efeito de realidade, a
identificação e todas as projeções que o espectador é capaz de experimentar;
segundo, a integração semiótica a um sistema de ações e de personagens no
interior do universo dramático e cênico. (ibid., p. 288, marcas do autor)
Por fim, Pavis marca que o estatuto da personagem é ser encarnada pelo ator e
não se limitar ao papel:
(...) Os pontos de vista do leitor e do espectador 'ideal' (...) são inconciliáveis:
o primeiro exige que a interpretação dos atores corresponda a uma certa visão
que ela tinha da personagem e de suas aventuras, o segundo contenta-se em
descobrir o sentido do texto através das informações da encenação e em
observar se a encenação faz o texto falar de maneira clara, inteligente,
redundante ou contraditória (visual e textual). Entretanto, produz-se um certo
ajustamento na visão da personagem lida (pelo leitor) e na da personagem
vista (pelo espectador): a personagem do livro só é visualizável se
adicionarmos informações às suas características físicas e morais
explicitamente enunciadas: reconstituímos seu retrato a partir de elementos
esparsos (processo de inferência e generalização). Para a personagem em
cena, ao contrário, detalhes visuais em demasia para que estejamos em
condições de perce-los todos em nosso julgamento: é preciso que
abstraiamos os traços pertinentes e coloquemos em correspondência com o
texto, de modo a escolher a interpretação que nos pareça mais adequada e a
simplificar a imagem cênica rica demais que recebemos (...). (PAVIS, 2006,
p. 288, marcas do autor)
No artigo A personagem no teatro, publicado em A personagem de ficção
(2002), Décio de Almeida Prado contrapõe as personagens no romance e no teatro,
dizendo que no primeiro, a personagem é apenas um entre outros elementos e, no
segundo, a personagem constitui a totalidade da obra, dispensando o narrador quando se
dirige ao público: (...) o teatro propriamente dito nasce ao se estabelecer o diálogo,
quando o primeiro embrião da personagem o corifeu se destacou do quadro
narrativo e passou a ter vida própria. (PRADO, 2002, p. 86)
O autor menciona que os manuais de escrita teatral revelam três modos
principais de caracterização da personagem teatral: aquilo que a personagem revela
sobre si, aquilo que faz e aquilo que os outros dizem a respeito dela. (ibid., p. 88)
Enquanto que no romance, em momentos de prospecção interior, verifica-se o fluxo de
consciência, no teatro, verifica-se o confidente, o aparte e o monólogo. O confidente
revela o desdobramento do herói, seu alter ego: (...) empregado ou amigo perfeito
perante o qual deixamos cair nossas defesas, confessando inclusive o inconfessável.
(ibid., p. 89); no aparte, o confidente é o público e, no monólogo (solilóquio), a
personagem fala consigo mesma, como que se estivesse em devaneios, sempre deixando
clara a relação que o comportamento das personagens e o andamento da ação dramática
estão relacionados à questão do tempo, retomando, inclusive uma das obras a serem
analisadas neste trabalho:
Ainda recentemente, Arthur Miller, reexaminando The Crucible (As
Feiticeiras de Salém), queixava-se de que o público anglo-saxão o acredita
na realidade de personagens que vivam de acordo com princípios
conhecendo-se a si mesmas e as situações que enfrentam. (...) Olhando em
retrospecto, creio que deveria ter dado às personagens de As Feiticeiras de
Salem maior autoconsciência e o, como insinuaram os críticos, mergulhá-
las ainda mais no subjetivismo. Mas nesse caso a forma e o estilo realistas da
peça estariam condenados. (PRADO, 1996, p. 96)
É viável, ainda, retomar Aristóteles, citado por Ryngaert, quando diz que:
Definir o que a personagem faz nem sempre é simples, pois também é
preciso levar em conta idéias feitas, avaliar as relações entre a fala e a ação,
as diferenças entre a vontade ou o desejo de ação e o que realmente é
efetuado (...). (...) As grandes ações ou o motor principal de uma personagem
podem ser determinados a partir do estudo minucioso de suas ações
sucessivas. (RYNGAERT, 1996, p. 137)
Concluindo, a opção pelo estudo da personagem suscitava o levantamento das
teorias apresentadas para que se pudesse compreender melhor o processo de construção
das mesmas, mesmo que não se julgue conveniente, nas linhas de estudo
contemporâneas, apenas tarjar as personagens como planas ou redondas, protagonistas
ou secundárias, simplesmente, ainda que seja importante saber fazê-lo, mas ao adotar tal
procedimento, é importante somá-lo à ideia de que há mais a ser dito, tomando por base
as noções bakhtinianas que implicam na teoria de que a pluralidade de vozes nos
textos literários e que o romance representa uma diversidade social de linguagens (cf.
BAKHTIN, 1988, p. 74), é relevante, acima de tudo, entender de que forma a
personagem se apresenta ao leitor e como, por intermédio dela, é possível observar os
diálogos intertextuais estabelecidos com outras obras.
2 SOBRE TEXTOS FICCIONAIS
2.1
AS BRUXAS DE SALÉM, ARTHUR MILLER
uma certeza que o demônio apresenta-se por vezes na forma de pessoas
não apenas inocentes, mas também muito virtuosas". Rev. John Richards,
século XVII
Em As Bruxas de Salém, peça publicada por Arthur Miller em 1953, observa-se
a reconstituição de uma sociedade estritamente puritana que habitava a cidade de Salém,
Massachusetts, no século 17, momento em que ocorreu o famoso episódio, com graves
influências sociais, então denominado caça às bruxas, como visto anteriormente,
uma releitura da ainda mais trágica perseguição que teve data na Idade Média.
Assume-se como certo que o dramaturgo teve como inspiração para escrever a
sua peça não somente o episódio histórico da caça às bruxas, como também o
momento político que vivia na década de 50 nos Estados Unidos, retomando as graves e
inconsistentes acusações proferidas pelo então Senador Joseph McCarthy acerca da
presença de comunistas infiltrados no seio do governo americano, bem como os também
inconsistentes julgamentos realizados quando do episódio histórico de Salém,
enfatizando, assim, a existência de comportamentos considerados extremos, resultantes
de vontades obscuras e motivações de cunho pessoal, que são perceptíveis tanto no
momento político em que a peça foi escrita, quanto no momento do qual foi extraída sua
inspiração, denotando pesada e explícita crítica social. O próprio autor deixa claro em
seu preâmbulo:
This play is not history in the sense in which the word is used by the
academic historian. Dramatic purposes have sometimes required many
characters to be fused into one; the number of girls involved in the crying-
out has been reduced; Abigail's age has been raised; while there were
several judges of almost equal authority, I have symbolized them all in
Hathorne and Danforth. However, I believe that the reader will discover here
the essential nature of one of the strangest and most awful chapters in human
history. The fate of each character is exactly that of his historical model, and
there is no one in the drama who did not play a similar and in some cases
exactly the same role in history. (MILLER, 2000, p.11)
30
30 Esta peça não é história no sentido em que a palavra é usada por historiadores acadêmicos. Exigências
dramáticas muitas vezes me obrigaram a fundir numa só várias personagens; a reduzir o mero das
raparigas da gritaria, a dar mais idade a Abigail, a simbolizar em Hathorne e Danforth uma mão cheia
de juízes tão respeitáveis como eles. Apesar de tantos tratos estou convencido que o leitor vai encontrar
aqui a essencial natureza dum dos mais estranhos e terríveis capítulos da história da humanidade. O
destino individual de cada personagem é exatamente o mesmo de seu modelo histórico e neste drama o
há nenhuma que não tivesse tido semelhante e em alguns casos precisamente o mesmo papel na
história. (MILLER, 1961, p. 9)
A peça relata os julgamentos em Salém, sociedade extremamente severa e
reservada, no tocante aos preceitos religiosos, como é possível observar no seguinte
trecho: No one can really know what their lives were like. They had no novelists and
would not have permitted anyone to read a novel if one were handy. Their creed forbade
anything resembling a theatre or 'vain enjoyment'. (MILLER, 2000, pp.13-14)
31
Os julgamentos foram motivados pela descoberta de um grupo de garotas e uma
escrava, Tituba, encontradas nos arredores da comunidade dançando em torno de uma
fogueira, na tentativa de invocar espíritos e operar magia. Naquela sociedade puritana,
tais práticas eram, obviamente, consideradas proibidas e passíveis de severas punições,
pois os preceitos do puritanismo julgavam intoleráveis quaisquer atitudes inapropriadas
ou comportamentos social e religiosamente inaceitáveis, sendo os culpados punidos
publicamente por terem pecado. Dentre tais regras, merecem destaque o princípio
regulador do culto (ou o princípio regulador da adoração), que designava a forma
correta de interpretar o culto a Deus de acordo com este princípio, Deus só deveria ser
adorado da forma como Ele mesmo desejava, somente por meio das Escrituras
Sagradas. Também constavam das regras puritanas os cinco solas, princípios
fundadores da Reforma Protestante: Sola Fide (somente a Fé), Sola Scriptura (somente
a Escritura), Sola Christus (somente a Cristo), Sola Gratia (somente a Graça) e Sola
Deo Gloria (somente a Glória de Deus).
32
A descoberta do episódio da dança na floresta foi feita pelo Reverendo Parris,
então responsável religioso pela comunidade. Ele tenta encobrir o fato de todas as
formas, pois estavam entre as garotas sua filha e sobrinha, bem como Tituba, que o
servia como escrava. No entanto, Betty, a filha, ao notar a presença do pai no momento
em que este chega à clareira, toma-se de um medo descomunal e, temendo não somente
a reação de seu pai, bem como a punição que receberia, finge estar doente. As causas de
sua suposta doença são atribuídas, pelas outras garotas, como forma de fuga, ao
demônio. Abigail, a sobrinha, culpa Tituba pelo estado de Betty e a escrava passa a ser
ameaçada não somente por Parris, mas por todos na comunidade, como uma forma de
expiar seus pecados e, ao mesmo tempo, encobrir a verdade dos fatos.
31 Ninguém hoje sabe exatamente o que era a vida daquela gente. Não tinham romancistas nem
permitiam a ninguém a leitura de romances, a não ser que se tratasse de obra muito sisuda. As suas
crenças proibiam tudo o que, de perto ou de longe, cheirasse a teatro ou a outros divertimentos gratuitos.
(id., p.12)
32 http://pt.wikipedia.org/wiki/Puritanismo (acesso em 24/02/2008 às 12:08)
Houve várias tentativas no intuito de descobrir o que se passava com a garota,
até mesmo por intermédio do médico local, que não se considera apto a desvendar o
problema que, a este ponto, atingia não somente a Betty, mas a outras garotas da
comunidade (que igualmente fingiam), como segue:
PARRIS, eagerly: What does the doctor say, child?
SUSANNA,
craning around PARRIS to get a look at BETTY: He bid me
come and tell you, reverend sir, that he cannot discover no medicine for it in
his books.
PARRIS: Then he must search on.
SUSANNA: Aye, sir, he have been searchin' his books since he left you sir.
But he bid me tell you, that you might look to unnatural things for the cause
of it.
PARRIS,
his eyes going wide: No-no. There be no unnatural cause here. Tell
him I have sent for Reverend Hale of Beverly, and Mr. Hale will surely
confirm that. Let him look to medicine and put out all thought of unnatural
causes here. There be none. (MILLER, 2000, p. 18)
33
O Reverendo Hale, especialista em assuntos sobrenaturais é, então, chamado
para avaliar o caso e inicia-se o tumulto, pois a notícia de que o Demônio poderia estar
entre os membros da comunidade já havia sido espalhada. Ele examina as garotas,
procurando possíveis alternativas para a explicação dos eventos, mas nada encontra que
possa ser explicado como causas naturais. Decide, então, interrogar Tituba, uma vez que
ela seria a única a poder revelar quais as razões daquela cerimônia assombrosa.
A escrava nega ter tido qualquer má intenção com relação ao que acontecera
com as garotas, dizendo nem mesmo entender qual seria o problema com a pequena
Betty, de quem sempre cuidara e a quem queria como a uma filha. Chega a jurar nada
ter feito contra a garota e recebe a promessa de que, se confessasse ter chamado por
espíritos ou mesmo mantido alguma relação com o demônio, não seria considerada
culpada; do contrário, se continuasse negando suas influências e ligações malignas seria
presa e enforcada. Ameaçada pelo Reverendo Parris, a quem temia mortalmente, e por
toda a sociedade que via nela a única culpada, Tituba encontra como saída confessar
33 PARRIS, ansioso: Que disse o doutor, filha?
SUSANA,
desviando-se de Parris para poder deitar uma olhadela a Betty: O doutor pediu-me para lhe
dizer, Reverendo, que ele não encontra nos livros remédio para esta doença.
PARRIS: Então que continue a procurar.
SUSANA: Mas, Reverendo, ele tem estado a procurar nos alfarr
ábios desde que daqui saiu, senhor. Por
isso ele pediu-me para lhe vir dizer que o melhor é o senhor começar a procurar causas sobrenaturais para
isto, que as naturais não as encontra ele.
PARRIS,
esbugalhando os olhos: Não, não. o aqui nenhumas causas sobrenaturais. Vai dizer ao
doutor que eu já mandei chamar o Reverendo Hale de Beverley que vai com certeza confirmar o que
estou a dizer. O doutor que se ocupe de medicina e não pense em causas sobrenaturais. Não existe
disso. (MILLER, 1961, pp.20-21)
suas ligações com o sobrenatural, mesmo que elas o existissem, temendo a morte e,
ao mesmo tempo, sendo forçada a acusar outras pessoas daquela comunidade que
agissem da mesma forma, mantendo relações com o demônio:
HALE, resolved now: Tituba, I want you to wake this child.
TITUBA: I have no power on this child, sir.
HALE: You most certainly do, and you will free her from it now! When did
you compact with the Devil?
TITUBA: I don't compact with no Devil!
PARRIS: You will confess yourself or I will take you out and whip you to
your death, Tituba!
TITUBA,
terrified, falls to her knees: No, no, don't hang Tituba! I tell him I
don't desire to work for him, sir.
(
)
HALE,
with rising exaltation: You are God's instrument put in our hands to
discover the Devil's agents among us. You are selected, Tituba, you are
chosen to help us cleanse our village. So speak utterly, Tituba, turn your back
on him and face God, Tituba, and God will protect you.
(
)
HALE (
kindly): Who came to you with the devil? Two, Three, Four? How
many? () Who? Who? Their names, their names!
TITUBA,
suddenly bursting out: Oh, how many times he bid me kill you,
Mr. Parris! () And I look and there was Sarah Good () and Goody
Osburn. (MILLER, 2000, p.46-49)
34
Este é o momento no qual Abigail e as outras garotas notam a chance de se
vingar de quem sempre quiseram e de conseguir o que nunca tiveram, iniciando, então,
uma série de acusações infundadas. As acusações partem não somente das garotas, por
motivos aparentemente fúteis, mas também por outros membros da comunidade que
34 HALE, já decidido: Tituba, quero que acordes esta criança...
TITUBA: Tituba não tem poder sobre esta menina, senhor.
HALE: Eu estou certo que tens e vais libertar esta crian
ça desse poder, Tituba! Imediatamente! Desde
quando tens pacto com o Diabo?
TITUBA: Tituba n
ão tem pacto com o Diabo!
PARRIS: Ou tu confessas tudo, negra maldita, ou levo-te l
á para fora e chicoteio-te até morreres.
(...)
TITUBA: N
ão, não, não enforquem Tituba! Eu disse a ele que o queria trabalhar para ele, patrão, eu
disse.
(...)
HALE, com crescente exalta
ção: Tu és o instrumento que Deus pôs em nossas mãos para descobrirmos os
agentes do Demônio entre nós. Tu foste a escolhida, Tituba, tu foste eleita para nos ajudar a limpar a
nossa comunidade de todo o mal. Por isso fala abertamente, Tituba, vira as costas a satanás e põe os olhos
em Deus! Põe os olhos em Deus, Tituba que ele te protegerá! (...) Quem é que acompanhava o Demônio?
Quem eram? Eram duas? Três? Quatro? Quantas eram? (...) Diz os nomes delas.
TITUBA: Oh, quantas vezes ele me pediu para matar o Reverendo Parris! (...) Então eu olhei e vi a
Senhora Good (...) e a Senhora Osburn. (MILLER, 1961, pp. 85-92)
visavam interesses diversos, como disputas de terras e ascensão social. Surge entre os
acusados o nome de Elizabeth Proctor, esposa de John Proctor, com cujo marido
Abigail, a sobrinha de Parris, manteve um caso amoroso Elizabeth é presa e, na
tentativa de provar sua inocência, Proctor também é indiciado, assim como qualquer
cidadão que tentasse proteger algum acusado.
A situação em que se encontra Proctor é semelhante à de outros condenados,
uma vez que se recusavam a confessar qualquer possibilidade de ligação com o
demônio. Ele concorda em confessar, mas acaba por mudar de idéia quando percebe de
que valeria a sua confissão, quando não lhe é permitido ficar com o documento:
DANFORTH, as though PROCTOR did not understand: Mr. Proctor, I must
have -
PROCTOR: No, no. I have signed it. You have seen me. It is done! You have
no need for this.
PARRIS: Proctor, the village must have proof that
PROCTOR: Damn the village! I confess to God, and God has seen my name
on this! It is enough! () I have confessed myself! Is there no good
penitence but it be public? God does not need to see um name nailed upon
the church. God sees my name; God knows how black my sins are! Its
enough!
(
)
DANFORTH: Then explain to me, Mr. Proctor, why will you not let
PROCTOR, with a cry of his soul: Because it is my name! Because I cannot
have another in my life! Because I lie and sign myself to lies! Because I am
not worth the dust on the feet of them that hang! How many I live without my
name? I have given you my soul; leave me my name! (MILLER, 2000,
pp.123-124)
35
35DANFORTH: Senhor Proctor, eu tenho que ficar com essa confissão...
PROCTOR: Não, não. Eu assinei. Os senhores viram-me assinar. Pronto. O senhor não tem necessidade
desse pedaço de papel.
DANFORTH: Mas, Proctor, a aldeia tem que ter uma prova de que o senhor ...
PROCTOR: Ao Diabo, a aldeia! Eu confessei a Deus e deus viu bem o meu nome neste papel. Isso basta!
(...) Confessei, sim senhor! Então boas penitências em blico? Deus o precisa ver meu nome
afixado à porta da igreja! Deus vê o meu nome aqui. Deus conhece os meus pecados e sabe como eles são
negros! Isso basta!
(...)
DANFORTH: Ent
ão faça o favor de me explicar, senhor Proctor, por que razão não quer...
PROCTOR: Porque se trata do meu nome! Porque não posso ter outro nome na vida! Porque disse
mentiras e subscrevi calúnias! Porque o sou digno sequer do que levantam os s dos que vão
morrer na forca! Como posso eu viver sem o meu nome? Dei-lhes a minha alma, deixem-me meu nome!
(MILLER, 1961, pp. 278-281)
Muitos foram condenados à forca injustamente, mas com o passar do tempo,
veio à tona não somente a inconsistência das acusações, bem como os resultados
daquela chacina na comunidade, como demonstra o próprio autor ao final da peça:
Twenty years after the last execution, the government awarded compensation
to the victims still living, and to the families of the dead. However, it is
evident that some people still were unwilling to admit their total guilt, and
also that the factionalism was still alive, for some beneficiaries were actually
not victims at all, but informers. () In solemn meeting, the congregation
rescinded the excommunications this in March 1712. But they did so upon
orders of the government. The jury, however, wrote a statement praying
forgiveness of all who had suffered. Certain farms which had belonged to the
victims were left to ruin, and for more than a century no one would buy them
or live on them. To all intents and purposes, the power of theocracy in
Massachusetts was broken. (ibid., p.127)
36
A narrativa proposta por Miller cria uma atmosfera única quando retoma os
eventos históricos e as regras daquela comunidade puritana que havia deixado a Europa
para escapar da perseguição política e religiosa e buscava na América uma nova Canaã,
a terra prometida em que todos teriam as mesmas oportunidades e seriam realmente
iguais aos olhos divinos. Entretanto, ao estabelecerem sua comunidade em solo
americano, tomaram uma posição de intolerância religiosa, demonstrando sua fé,
honestidade e integridade através do trabalho físico e total cumplicidade com a doutrina
religiosa puritana, considerando desejos materiais e físicos como criações advindas do
demônio.
Quando recria este cenário histórico-social, Miller deixa claros seus objetivos
críticos à sociedade em que se insere relacionados à conduta imposta pelas atitudes do
Senador McCarthy, quando muitos eram acusados de subversão e apoio às atividades
comunistas. Tais pessoas eram presas pelas acusações sem que tivessem como provar
sua inocência ou terem direito à defesa. McCarthy, nessa atmosfera, propôs à nação
americana, como uma forma de expurgá-la dos seus pecadores, uma nova caça às
bruxas referência clara ao episódio de Salém, como se isso fosse um pedido de ajuda
ao povo americano, no intuito de lavar a sociedade de suas manchas. A peça, na
36Vinte anos após a última execução, o governo concedeu uma indenização às vítimas ainda vivas e às
famílias dos mortos. No entanto, é evidente que muita gente ainda não queria admitir a sua culpabilidade
total e que o fanatismo ainda vivia, porque muitos beneficiários não eram vítimas, mas informadores. (...)
Em reunião solene, a congregação levantou as excomunhões. Isto em março de 1712, mas fez isto por
ordem do governo. O júri, porém, lavrou acórdão em que pedia perdão aos que tinham sofrido. Algumas
herdades pertencentes às vítimas foram votadas à ruína e por mais dum século ninguém quis comprá-las
ou viver nelas. De qualquer maneira, o poder da teocracia em Massachusetts cairá por terra. (ibid., p. 285)
verdade, vai além da mera discussão acerca da bruxaria e do que realmente aconteceu
em Salém; o texto explora, de fato, a motivação e o comportamento humanos em face
de um determinado acontecimento, o que por si já deixa claro o indício de que tratamos
aqui de uma obra que claramente dialoga não somente com a História, mas também
consigo mesma, uma vez que propõe personagens semifictícias com um invólucro
baseado no real e um comportamento mais voltado para atingir as expectativas do autor
no intuito de criticar sua sociedade contemporânea.
Para uma análise mais aprofundada do quadro apresentado, pode-se dizer que
The Crucible, título da peça no original em Língua Inglesa, foi uma espécie de alegoria
dialógica representativa do período macartista, alardeado pela histeria em massa,
tornando-se, dentre as peças de Miller, a que alcançou o maior número de encenações.
O dramaturgo parece ter escrito sob uma atmosfera em que se via aceita a noção de que
a consciência o mais se tratava de uma questão pessoal, mas de um problema
coletivo. Na peça, Miller expressou sua crença na habilidade de um indivíduo em
resistir às pressões do meio, além de tratar de temas fortes como o amor proibido, o
ciúme e a traição, sendo que todos esses questionamentos, novamente, podem ser
compreendidos através dos comportamentos das personagens, altamente dialógicas para
com o momento histórico retratado na obra e para com o momento criticado pelo autor.
O título, curiosamente, chama a atenção para os eventos a serem desenvolvidos
pela narrativa. No original, The Crucible, a palavra crucible é definida como uma
espécie de caldeirão, cadinho ou uma provação, segundo o Dicionário New Websters
(2002, p. 103), ou complementando com a definição para cadinho pelo Dicionário
Houaiss, local ou instância em que algo (ou alguém) é testado, analisado, constituído
ou depurado, submetido a provas ou condições extremas. Scheidt (1971) faz o seguinte
comentário acerca do título da obra:
Millers title, The Crucible, is appropriate for the play. A crucible is a
container made of a substance that can resist great heat; a crucible is also
defined as a severe test. Within the context of the play the term takes on a
new meaning: not only is the crucible a test, but a test designed to bring about
change or reveal an individuals true character. The witch trials serve as a
metaphorical crucible, which burns away the characters outer shells to reveal
their true intentions and character beneath. Throughout the play, Miller
carefully peels away the layers of each character so that the audience can not
only identify the characters motivation, but also can reevaluate the character
through his or her actions. In other words, the audience observes the
character as he or she is tested, and the audience ultimately defines if he or
she passes the test. (p.7)
37
A tradução, intitulada, As Bruxas de Salém, apesar de mais evidente com relação
aos acontecimentos, não deixa claro que espécie de bruxas seriam essas, além apenas do
fato de estarem em Salém ou ali habitarem não nenhuma menção à motivação do
autor por meio desse título. Em Língua Portuguesa, o título remete imediatamente ao
episódio histórico, o que representa um ponto vantajoso, se comparado ao tulo do
original em Língua Inglesa, entretanto, não permite o leque de possibilidades que
permite o título no original, deixando óbvio, para o leitor que a narrativa apresentará
relações com o período em que os episódios de Salém ocorreram, mas nada,
necessariamente, que remeta às idéias de provação ou sacrifício. O título no original,
então, proporciona uma leitura dialógica mais rica em possibilidades, mesmo que a
escolha pela tradução em Língua Portuguesa automaticamente remeta ao episódio
histórico, o que por si já alimenta a questão intertextual.
Uma extensa nota antecede o texto, informando ao leitor acerca da fidelidade
histórica do enredo, previamente comentada no presente trabalho e, em seguida,
surgem, um a um, os seus quatro atos, sendo o último seguido por um comentário
intitulado Ecos ao longo do corredor, que dá conta do que aconteceu após a morte de
Proctor, como o afastamento do Reverendo Parris do púlpito, a ideia de que Abigail
tornou-se prostituta em Boston e o novo casamento de Elizabeth Proctor, quatro anos
após a morte de seu marido, além das indenizações oferecidas às famílias das vítimas
vinte anos depois das execuções e da suspensão das excomunhões, com o perdão
àqueles que haviam sofrido, concluindo assim: To all intents and purposes, the power
of theocracy in Massachusetts was broken. (MILLER, 2000, p. 127)
38
Vale ressaltar,
aqui, que o título dado a esta nota que aparece no final da peça não somente remonta ao
próprio significado da palavra eco, (...) repetição de um som por reflexão de ondas
sonoras; imitação ou repetição de atos, palavras, ideias de outra pessoa; notícia,
37 O título escolhido por Miller, The Crucible, é apropriado para a peça. Um crucible é um recipiente
feito de uma substância que possa resistir a altas temperaturas; um crucible também é definido como um
grande teste. No contexto da peça, o termo toma um novo significado: um crucible não é apenas um teste,
mas um teste destinado a trazer mudanças ou revelar o real caráter de um indivíduo. Os julgamentos
operam como um crucible metafórico, que queima as camadas externas das personagens e revela suas
reais intenções, além de seu caráter. Durante toda a peça, Miller cuidadosamente retira as camadas de
cada personagem, de forma que a platéia pode não somente identificar a motivação das personagens, mas
também reavaliá-la através de suas ações. Em outras palavras, a platéia observa a personagem conforme
ela é testada e, enfim, define se a personagem passa ou não nesse teste. (p.7, tradução nossa)
38 De qualquer maneira, o poder da teocracia em Massachusetts cairá por terra. (MILLER, 1961, p. 285)
memória, rastro (...)(HOUAISS eletrônico), como também ao farto de este eco revelar
diferentes possibilidades intertextuais de leitura dos comportamentos apresentados por
todas as personagens apresentadas pelo autor, não somente levando em conta o contexto
lietrário, mas também o histórico-social que a obra revela e no qual está inserida.
O primeiro ato traz como abertura informações a respeito da localização dos
fatos e época dos eventos, A small upper bedroom of REVEREND SAMUEL
PARRIS, Salem, Massachusetts, in the spring of the year 1692. (MILLER, 2000, p.
13)
39
Sabe-se, logo após essa abertura, que os acontecimentos relativos à dança na
floresta aconteceram antes da narrativa e que, neste momento, Betty já
estáinconsciente à espera do Dr. Griggs. Antes da chegada do dico, contudo, o
leitor é apresentado de forma mais veemente ao Reverendo Parris, conforme é possível
verificar no seguinte trecho: (...) there is very little
good to be said for him. He
believed he was being persecuted wherever he went, despite his best efforts to win
people and God to his side.(ibid., p.13)
40
Sabe-se também que a comunidade de Salém não era, exatamente, um modelo
de perfeição, assim como pregavam os preceitos puritanos, pois havia uma tendência
perigosa entre os habitantes: This predilection for minding other people´s business was
time-honoured among the people of Salem, and it undoubtedly created many of the
suspicious which were to feed the coming madness. (ibid., p. 14)
41
De fato, há um claro posicionamento do narrador quanto a esse aspecto, pois se
menciona que alguns cidadãos se encontravam descontentes com a velha disciplina,
mas temiam os arredores da vila, pois os índios ainda estavam por perto e muitos
haviam perdido familiares Who had lost relatives to these heathen. (ibid., p.14).
42
A
tal herança puritana é assim explicada,
They believed, in short, that they held in their steady hands the candle that
would light the world. We have inherited this belief, and it has helped and
hurt us. It helped them with the discipline it gave them. They were a
39 Estamos em Salém (Massachusetts), na Primavera de 1692: num pequeno quarto de cama da casa do
Reverendo Samuel Parris. (MILLER, 1961, p. 11)
40(...) h
á muito pouco bem a dizer dele. A despeito dos seus melhores esforços para ganhar as pessoas e o
próprio Deus para a sua causa, nunca o abandonava a idéia maníaca de que o perseguiam. (ibid., loc.cit.)
41 Esta tendência para a intromissão na vida alheia, é preciso notá-lo, era ao tempo altamente apreciada
pela gente de Salém e o é de admirar que tenha gerado muitas suspeitas que alimentaram depois o
trágico pandemônio que vai seguir-se. (id., p. 13)
42
Às mãos desses hereges. (id., p. 14)
dedicated folk, by and large, and they had to be to survive the life they had
chosen or been born into in this country. (ibid., p. 15)
43
O narrador deixa claro que os habitantes de Salém, em 1692, não eram como
os primeiros peregrinos que desembarcaram do Mayflower, pois acreditavam que tudo o
que não conseguiam justificar, a princípio, era that the time of confusion had been
brought upon them by deep and darkling forces (MILLER, 2000, p.16)
44
, que explica
seu comportamento ao acusar pessoas aleatoriamente, como ocorre no episódio a ser
descrito. Deixa, ainda, o alerta:
The Salem tragedy, which is about to begin in these pages, developed from a
paradox. It is a paradox in whose grip we still live, and there is no prospect
yet that we will discover its resolution. Simply, it was this: for good
purposes, even high purposes, the people of Salem developed a theocracy, a
combine of state and religious power whose function was to keep the
community together, and to prevent any kind of disunity that might open it to
destruction by material or ideological enemies. It was forged for a necessary
purpose and accomplished that purpose. But all organization is and must be
grounded on the idea of exclusion and prohibition, just as two objects cannot
occupy the same space. Evidently the time came in New England when the
repressions of order were heavier than seemed warranted by the dangers
against which the order was organized. The witch-hunt was a perverse
manifestation of the panic which set in among all classes when the balance
bean to turn toward greater individual freedom. (ibid., p. 16)
45
Depois dessa interrupção esclarecedora, a cena volta à casa dos Parris, com os
Putnam presentes, revelando que sua filha, Ruth, encontrava-se nas mesmas condições
que Betty, o que os preocupava muito, pois já haviam perdido sete outras crianças, em
circunstâncias inexplicáveis, sob o ponto de vista deles. Vem desse fato a primeira
43 Em resumo: eles acreditavam que as suas mãos rudes seguravam a candeia que havia um dia de
iluminar o mundo. Para nosso bem, para nosso mal, nós herdamos essa crença; crença que lhes foi útil na
medida em que lhes incutiu uma disciplina severa. Gente fiel, fiel tinha que ser se quisesse salvaguardar o
gênero de vida que tinham escolhido viver neste país. (id., p. 15)
44 Obra de forças ocultas e infernais. (id., p. 16)
45 A trag
édia de Salém, que está prestes a estalar nestas páginas, desenvolveu-se a partir dum paradoxo:
paradoxo em cujas malhas ainda hoje vivemos e para o qual ainda hoje não vejo perspectivas de
resolução; e que vem a ser singularmente este: com excelentes propósitos, o povo de Salém criou uma
teocracia, uma aliança do estado e da autoridade religiosa, cuja função foi manter coesa a comunidade,
prevenir qualquer espécie de desunião que a pudesse abrir à destruição por parte de eventuais inimigos
materiais ou ideológicos. Teocracia que foi forjada especialmente para tal propósito e que cumpriu o seu
objetivo. Porém, tal como dois objetos não podem ocupar o mesmo espaço, assim toda a organização é e
tem de ser baseada na idéia de proibição e de exclusão. Evidentemente chegou uma altura na Nova
Inglaterra em que as repressões da ordem eram mais pesadas do que parecia justificado pelos perigos
contra os quais a própria ordem fora organizada. A caça às bruxas foi assim uma manifestação perversa
do pânico que se instalou em todas as classes quando o fiel da balança começou a pender para a exigência
de uma maior liberdade individual. (ibid., pp. 16-17)
tentativa de convencer o Reverendo Parris de que o Maligno rondava a comunidade. O
Reverendo sabia de um grupo de moradores que, descontentes com sua atuação,
gostariam de tirá-lo dali e que se descobrissem que sua filha e sua sobrinha pudessem
estar envolvidas com feitiçaria, isso poderia ser usado como motivo para conseguirem a
sua remoção de Salém seria mais interessante, para seus objetivos, submeter-se à
presença do demônio na região e combatê-lo do que perder o poder que lhe era
conferido pela posição de pastor, deixando evidente a presença de quatro temáticas a
serem exploradas no decorrer da peça, como as idéias de decepção, posse, orgulho e a
busca pelo poder, todas positiva ou negativamente representadas por Parris, como
espelho de sua comunidade.
Abigail, ciente do fingimento da prima, afirma que o reverendo sabia do que
haviam feito na floresta e Betty, em desespero, tenta voar, como em uma tentativa de
escapar de um possível castigo. A esta altura, em companhia das outras garotas,
Abigail intimida a todas para que não assumam a verdade, apenas o fato de terem
dançado, o que em si, já era um pecado:
ABIGAIL: Now look you. All of you. We danced. And Tituba conjured Ruth
Putnams dead sisters. And that is all. And mark this. Let either of you
breathe a Word, or the edge of a Word, about the other things, and I will
come to you in the black of some terrible night and I will bring a pointy
reckoning that will shudder you. And you know I can do it; I saw Indians
smash my dear parents heads on the pillow next to mine, and I have seen
some reddish work done at night, and I can make you wish you had never
seen the sun go down! (MILLER, 2000, p.27)
46
Ao se darem conta de que algo estranho se passa na comunidade, os seus mais
importantes membros encontram-se na casa paroquial em busca de informações. Ali,
John Proctor encontra-se com Abigail e ela tenta uma aproximação, mas Proctor não
quer vê-la por perto. Abigail fica irritada por sua opção em manter-se fiel à esposa, o
que revela novas temáticas à peça: a traição e a perda da honra. Abigail deixa claro a
John Proctor que ainda o ama e que espera um pouco de atenção de sua parte, mas
Proctor, arrependido por ter traído sua esposa, tenta afastar Abigail, que culpa a rival:
46 ABIGAIL: Agora ouçam-me. Vocês todas. Estivemos a dançar na floresta, sim senhor. E Tituba
invocou os espíritos das irmãs de Ruth. Muito bem. Mas é tudo, ouviram? E fixem bem isto. Se alguma
de vocês deixa escapar uma palavra, uma sílaba sequer, sobre o resto do que se passou, ai dela! Hei de
procurá-la no mais fundo da noite mais escura e juro-vos que terá razão para ter medo. Vocês sabem
muito bem que sou capaz de fazê-lo: eu vi os Índios esmagar a cabeça dos meus pobres pais mesmo ao
do meu travesseiro e em certas noites já tenho visto fazer coisas de pôr cabelos em pé. Por isso tenham
cuidado: posso fazer com que se arrependam de ter nascido! (MILLER, 1961, p. 39)
ABIGAIL, with a bitter anger: Oh, I marvel how such a strong man may let
such a sickly wife be
PROCTOR,
angered at himself, as well: You´ll speak nothin' of Elizabeth!
ABIGAIL: She is blackening my name in the village! She is telling lies about
me! She is a cold, sniveling woman, and you bend to her! Let her turn you
like a- PROCTOR, shaking her: Do you look for a whippin'?
(
A psalm is heard being sang below)
ABIGAIL,
in tears: I look for John Proctor that took me from my sleep and
put knowledge in my heart! I never knew what pretence Salem was, I never
knew the lying lessons I was taught by all these Christian women and their
covenanted men! And now you bid me tear the light out of my eyes? I will
not, I cannot! You loved me, John Proctor, and whatever sin it is, you love
me yet! (He turns abruptly to go out. She rushes to him) John, pity me, pity
me! The words going up to Jesus are heard in the psalm, and Betty claps
her ears suddenly and whines loudly. (MILLER, 2000, pp.29-30)
47
Ao procurar manter seu casamento, Proctor revela a tentativa de recuperar a sua
própria moral e sua determinação provoca em Abigail, além de uma fúria incontrolável,
o desejo de vingar-se de Elizabeth, para então poder ficar com o homem que ama.
Ainda na casa paroquial, Betty é acalmada por Rebecca Nurse, que alerta Parris
sobre usar a feitiçaria como explicação para uma brincadeira infantil seria uma arma
por demais perigosa. A Sra. Putnam, convencida do poder da feitiçaria, começa a
suspeitar da anciã. Entre os homens, discute-se não somente a posição de Samuel Parris
na comunidade, mas também questões referentes a terras, o que coloca o Sr. Putnam
contra todos os outros, alegando que alguns, como Proctor, roubam madeira de suas
terras, enquanto outros, como o Sr Nurse, habitam terras impropriamente, pois elas na
verdade, pertenciam aos antepassados de Putnam. Tais animosidades deixam evidentes
motivações para que, futuramente, pessoas sejam acusadas por conta de seu
posicionamento:
PARRIS: There is either obedience or the church will burn like Hell is
burning! PROCTOR: Can you speak one minute without we land in Hell
again? I am sick of Hell!
47 ABIGAIL, com raiva torva: Oh, que coisa tão espantosa é ver um homem tão forte como tu deixar que
uma mulher tão enfermiça faça dele um...
PROCTOR
, furioso com ela e consigo próprio: Proíbo-te que digas uma palavra que seja acerca de
Elizabeth!
ABIGAIL: Essa mulher anda a manchar meu nome por toda a vila! Anda a espalhar cal
únias a meu
respeito! Não passa duma mulher fria, duma chorona, e tu abaixas-te diante dela! Ela faz de ti um...
PROCTOR, sacudindo-a: Queres chicote, queres?
Ouve-se um salmo ao andar de baixo
ABIGAIL, em lágrimas: Não. Quero o John Proctor que me acordou do sono em que eu andava e me deu
sabedoria! Eu não conhecia a falsidade de Salém, nem sabia que era mentira o que ensinavam todas estas
beatas e os seus maridos por escritura! E pedes-me agora para arrancar a luz dos meus olhos? Não
arranco, não posso arrancar! Tu amaste-me, John Proctor, e embora seja pecado, tu amas-me ainda! (Ele
pretende sair abruptamente. Ela corre para ele). John, tem piedade de mim!
Ouvem-se neste momento estas palavras do salmo: Caminhemos para Jesus! Betty tapa os ouvidos e
começa a gemer alto. (MILLER, 1961, pp. 46-47)
PARRIS: It is not for you to say what is good for you to hear!
PROCTOR: I may speak my heart, I think!
PARRIS,
in a fury: What, are we Quakers? We are not Quakers here yet, Mr.
Proctor. And you may tell that to your followers!
PROCTOR: My followers!
PARRIS,
now hes out with it: There is a party in this church. I am not blind;
there is a faction and a party.
PROCTOR: Against you?
PUTNAM: Against him and all authority!
PROCTOR: Why, then I must find it and join it. There is shock among the
others. (MILLER, 2000, p.35)
48
O assunto é interrompido pela chegada do Reverendo Hale, de Beverly,
chamado para examinar as meninas ele não encontra nada suspeito nelas, então,
resolve submeter Tituba a um interrogatório, no qual, convencida de que não será
punida, a escrava confessa ter mantido ligações com o demônio e acusa duas mulheres
de estarem envolvidas: Sarah Good e a Sra. Osburn. Ao perceber que poderia se utilizar
desse mesmo poder, Abigail declara:
ABIGAIL: I want to open myself! (They turn to Her, startled. She is
enraptured, as though in a pearly light.) I want the light of God, I want the
sweet love of Jesus! I danced with the Devil; I saw him; I wrote in his book; I
go back to Jesus; I kiss His hand. I saw Sarah Good with the Devil! I saw
Goody Osborn with the Devil! I saw Bridget Bishop with the Devil! She is
speaking, Betty is rising from the bed, a fever in her eyes, and picks up the
chant. (ibid., p. 49)
49
Todas as outras garotas, como em uma espécie de transe, começam a levantar
acusações semelhantes às de Abigail e de Tituba e o primeiro ato termina com a
48 PARRIS: Ou há obediência ou a igreja arde como o inferno arde em chamas!
PROCTOR: O senhor não pode falar um minuto sem nos mandar todos para o inferno? Estou farto de
tanto inferno!
PARRIS: N
ão é a si que compete decidir o que lhe convém e o que não lhe convém ouvir.
PROCTOR: Posso dizer o que sinto, julgo eu!
PARRIS,
furibundo: Somos nós porventura Quakers, senhor Proctor? Nós aqui não somos Quakers,
senhor Proctor. E é bom que repita isto aos seus sequazes!
PROCTOR: Os meus sequazes?!
PARRIS,
fora de si: Sim, sequazes! Há um partido nesta igreja. O senhor julga que eu sou cego?
uma facção e há um partido.
PROCTOR: Contra o senhor, por ventura?
PUTNAM: Contra ele e contra toda a autoridade!
PROCTOR: Tenho ent
ão que o procurar para me filiar nele.
Ao ouvir estas palavras os outros ficam estupefatos. (MILLER, 1961, pp. 58-59)
49Eu também quero me abrir (Voltam-se todos para ela, perplexos). Eu quero a luz de Deus, quero o
doce amor de Jesus! Eu dancei para o Demônio, eu vi o Demônio; eu assinei o livro negro do Demônio;
mas quero voltar para Jesus, quero beijar as mãos de Jesus. Eu vi Sarah Good com Satanás! Eu vi a
senhora Osburn com Satanás! Eu vi Bridget Bishop com satanás!
Durante a fala inspirada de Abigail, Betty soergue-se no leito com o olhar febril e retoma a ladainha.
(ibid., pp. 92-93)
promessa de que muitos ainda seriam acusados e o problema claro para o leitor é: como
provariam sua inocência aqueles acusados injustamente?
O prólogo do segundo ato revela ao leitor que a cena se passa na sala da casa dos
Proctor, oito dias mais tarde, com uma descrição do espaço em que se encontram John e
Elizabeth, com a esposa questionando o atraso do marido, uma vez que suspeitava que
ele pudesse ter ido a Salém procurar por Abigail, mesmo que não dissesse isso
explicitamente. Ela diz a Proctor que Mary Warren, a garota que trabalhava para eles
(em lugar de Abigail), estivera em Salém por todo o dia, o que deixa o homem
enfurecido, uma vez que ele a havia proibido de fazê-lo.
Mais tarde, Elizabeth revela ao marido que Mary fora convocada como
testemunha e que deveria, a partir daquele dia, comparecer aos julgamentos que viessem
a ser efetuados quatorze pessoas já estavam presas, como segue:
ELIZABETH: The Deputy Governor promise hangin' if they´ll not confess,
John. The town´s gone wild, I think. She speak of Abigail, and I thought she
were a saint, to hear her. Abigail brings the other girls into the court, and
where she walks the crowd will part like the sea for Israel. And folks are
brought before them, and if they scream and howl and fall to the floor the
person´s clapped in the jail for bewitchin' them.
PROCTOR,
wide-eyed: Oh its a black mischief.
ELIZABETH: I think you must go to Salem, John. (
He turns to her) You
must tell them it is a fraud. (MILLER, 2000, pp. 53-54)
50
Proctor diz que não pode fazer nada, por não ter provas e sua esposa questiona-o
se não podia ou não queria fazê-lo, dando a entender que ele não o faria por ainda gostar
de Abigail. Enquanto discutem Mary chega com a notícia de que havia protegido o
nome de Elizabeth no tribunal, pois ela chegara a ser mencionada agora já eram trinta
e nove os acusados! Ela não diz quem havia mencionado o nome de Elizabeth, mas
deixa no ar a ameaça, o que faz com que a mulher sinta-se perturbada e Proctor, então,
decide-se por tentar resolver o problema.
50 ELIZABETH: O Delegado do Governador prometeu a forca a quem não confessasse, John. Tenho a
impressão que anda tudo doido. Mary falou-me de Abigail como quem fala de uma santa. É ela que leva
as outras mocinhas ao tribunal e quando passa na rua a multidão aparta-se como o mar de Israel. E
quando trazem alguém diante dela e as raparigas se atiram ao chão a gritar e a uivar... Metem-no na prisão
e acusam-no de estar a embruxá-las.
PROCTOR,
espantado: É horrível o que me contas.
ELIZABETH: Tens que ir a Sal
ém, John. (Proctor volta-se para ela). Tens que ir. Tens que ir dizer-lhes
que tudo isto não passa duma impostura. (MILLER, 1961, p. 102)
Nesta mesma noite, os Proctor recebem a visita do Reverendo Hale, que
confirma o fato de Elizabeth ter sido mencionada no tribunal. Na verdade, ele declara a
tentativa de entender o que se passa naquela comunidade e diz ter saído para algumas
visitas com base nos livros da Igreja, que mostravam, por exemplo, que a família o
era muito assídua às celebrações, além do fato de uma das crianças não ter sido
batizada, que poderiam ser provas de que eram contra a Igreja.
Proctor deixa transparecer que o problema não é a Igreja ou suas formalidades,
mas o Reverendo Parris, em pessoa, de quem não gostava e que não julgava digno de
assumir o posto de pastor. Hale se mostra inflexível quanto à observação de Proctor:
PROCTOR, starts to speak, then stops, then, as though unable to restrain
this: I like it not that Mr. Parris should lay his hand upon my baby. I see no
light of God in that man. I'll not conceal it.
HALE: I must say it, Mr. Proctor; that is not for you to decide. The man's
ordained, therefore the light of God is in him. (MILLER, 2000, p.63)
51
Elizabeth tenta interceder, dizendo que não há manchas no nome daquela família
e que todos ali eram tementes a Deus. Com base nesta declaração, Hale pede a eles que
recitem os mandamentos, mas Proctor, ao fazê-lo, se esquece e repete um dos
mandamentos mais de uma vez. De fato, esse esquecimento diz respeito ao
mandamento que fala do adultério, ao qual Proctor responde:
PROCTOR, as though a secret arrow had pained his heart: Aye. (Trying to
grin it away to Hale) You see, sir, between the two of us we do know them
all. (Hale only looks at Proctor, deep in his attempt to define this man.
Proctor grows more uneasy.) I think it be a small fault.
HALE: Theology, sir, is a fortress; no crackin a fortressmay be accounted
small. (ibid., pp. 64-65)
52
51 PROCTOR, vai para falar, hesita, e depois, como incapaz de refrear o que vai dizer: Não quero que
esse senhor Parris estenda as mãos sobre meu filho. Não vejo a luz de Deus nesse indivíduo. o o
escondo.
HALE,
severamente: Deixe-me dizer-lhe, senhor Proctor, que não cabe ao senhor decidir se existe ou não
a luz de Deus no seu pastor. Esse indivíduo, como o senhor diz, foi ordenado; por conseqüência, existe
nele a luz de Deus. (MILLER, 1961, p. 129)
52 PROCTOR,
como se uma seta invisível lhe atingisse o coração: É verdade. (Baixa os olhos. Depois,
para tentar dissipar a má impressão que deve ter deixado, tenta sorrir para Hale). Como vê, Reverendo, a
dois sabêmo-los todos. (Hale fixa Proctor com atenção e perplexidade, com o olhar profundo de quem
quer ficar com uma idéia exata do homem que tem na frente. Proctor sente-se cada vez mais
desconfortável). Julgo que a falta não foi grande.
HALE: A teologia, meu caro senhor,
é a fortaleza da alma do cristão; a mais pequena brecha pode abrir
passagem ao Demônio. (ibid., pp. 132-133)
Mais uma vez, Elizabeth tenta convencê-lo de que ali ninguém servia ao
Demônio e Hale resolve ir embora. Na saída, são interrompidos por Giles Corey e
Francis Nurse, cujas esposas haviam sido levadas, acusadas de feitiçaria. A próxima
seria Elizabeth, como se observa nos diálogos abaixo:
HALE: I know nothing of it! (To CHEEVER) When were she charged?
CHEEVER: I am given sixteen warrant tonight, sir, and she is one.
PROCTOR: Who charged her?
CHEEVER, looking about the room: Mr.Proctor, I have little time. The court
bid me search your house, but I like not to search a house. So will you hand
me any poppets that your wife may keep here?
PROCTOR: Poppets?
ELIZABETH: I have kept no poppets, not since I were a girl.
CHEEVER, embarrassed, glancing, toward the mantel where sits Mary
Warren´s poppet: I spy a poppet, Goody Proctor.
ELIZABETH: Oh! (
Going for it): Why this is Mary´s.
CHEEVER, shyly: Would you please to give it to me?
ELIZABETH,
handing it to him, asks HALE: Has the court discovered a text
in poppets now?
CHEEVER,
carefully holding the poppet: Do you keep any others in this
house? PROCTOR: No, nor this one either till tonight. What signifies a
poppet? CHEEVER: Why, a poppet (he gingerly turns the poppet over) a
poppet may signify Now, woman, will you please to come with me?
(MILLER, 2000, p.69)
53
Ocorre que Mary havia feito uma boneca para presentear Elizabeth durante os
julgamentos e Abigail espetou uma agulha nesta boneca sem que Mary o visse. Mais
tarde, ela se esfaqueou e procurou os juízes dizendo que estava sendo atormentada pelo
espírito maligno de Elizabeth, o que ocasionou sua prisão. Proctor, inconformado, tenta
impedir que levem sua esposa, mas Hale interfere, dizendo que se Elizabeth realmente
fosse inocente, nada haveria a temer:
53 HALE: Eu ignorava! (Para Cheever). Quando foi ela acusada?
CHEEVER: Entregaram-me esta noite dezesseis mandados de prisão, Reverendo. O dela é um deles.
PROCTOR, arrancando-lhe o mandado para verificar: Quem a acusou?
ELIZABETH, enquanto Proctor estende o mandado a Hale: Ainda perguntas, John?
CHEEVER, percorrendo o quarto com os olhos: Senhor Proctor, eu não tenho muito tempo. O Tribunal
deu-me ordem para fazer uma busca à vossa casa, mas eu não gosto nada de fazer buscas. Por isso
importa-se de me entregar as bonecas que a sua senhora tenha cá em casa?
PROCTOR: Bonecas?
ELIZABETH: N
ão tenho bonecas cá em casa. Desde garota que não tenho bonecas.
CHEEVER, embaraçado, olha na direção da prateleira do fogão onde está sentada a boneca de Mary
Warren: Mas eu estou a ver uma boneca, senhora Proctor.
ELIZABETH: Oh! (
Vai buscá-la). É a boneca de Mary Warren.
CHEEVER, timidamente: Não se importa de me dar?
ELIZABETH,
entrega-lhe e pergunta a Hale: O Tribunal agora também se entretém com bonecas?
CHEEVER, agarrando cuidadosamente a boneca: Não tem outras bonecas cá em casa?
ELIZABETH: Não. Aliás essa está em casa desde esta noite apenas. Mas que importância tem uma
boneca?
CHEEVER: Bem, uma boneca... (
virou cuidadosamente a boneca) uma boneca pode significar... E agora,
senhora, faça o favor de vir comigo. (MILLER, 1961, pp. 144-145)
HALE: Proctor, if she is innocent, the court
PROCTOR: If she is innocent! Why do you never wonder if Parris be
innocent, or Abigail? Is the accuser always holy now? Were they born this
morning as clean as God´s fingers? I´ll tell you what´s walking Salem
vengeance is walking Salem. We are what we always were in Salem, but now
the little crazy children are jangling the keys of the kingdom, and common
vengeance writes the law! This warrants vengeance! Ill not give my wife to
vengeance! (id., p. 72)
54
Ainda assim, Elizabeth é levada, não sem que Proctor lhe prometesse tentar tirá-
la daquela situação absurda, não somente ela, mas também Rebecca Nurse e Martha
Corey. Para que possa ter como libertar sua esposa e as esposas de seus amigos, Proctor
chama Mary e a obriga a ir ao tribunal com ele no dia seguinte para negar tudo o que
fora dito a respeito de Elizabeth. Mary tenta dizer-lhe que não adiantaria nada, mas ele a
obriga a dizer que Abigail estaria por trás de tudo, o que causa desespero na garota.
Deixando claro que ela teme a reação de Abigail e, ao final deste ato, mais evidente para
Proctor que sua esposa estava, na verdade, pagando por um erro seu,
PROCTOR: My wife will never die for me! I will bring your guts into your
mouth but that goodness will not die for me!
MARY WARREN,
struggling to escape him, I cannot do it, I cannot!
PROCTOR, grasping her by the throat as though he would strangle her:
Make your peace with it! Now Hell and Heaven grapple on our backs, and all
our old pretense is ripped away make your peace! (He throws her to the
floor, where she sobs: I cannot, I cannot…” And now, half to himself,
staring, and turning to open the door) Peace. It is a providence, and no great
change; we are only what we always were, but naked now. (He walks as
thiugh toward a great horror, facing the open sky.) Aye, naked! And the
wind, God's icy wind, will blow! (MILLER, 2000, pp. 74-75)
55
54HALE: Proctor, tenha confiança na justiça do Tribunal. Se ela está inocente o Tribunal decerto...
PROCTOR: Se ela está inocente! Por que é que o senhor não se preocupa também em saber se Parris está
inocente, se Abigail está inocente? Então só as vítimas é que não são inocentes? Então agora os
acusadores são sempre sagrados? Nasceram eles por ventura esta man puros e imaculados como as
mãos de Deus? Eu digo-lhe o que é que está a percorrer Salém. Nós somos o que sempre fomos aqui em
Salém, mas as crianças caprichosas disputam agora as chaves do reino e a vingança mais reles tem o valor
de lei! Este mandato cheira a vingança! Eu não entrego a minha mulher às mãos duma vingança! (ibid., p.
152)
55 PROCTOR: Minha mulher não pode morrer por mim! Que te arranques as entranhas pela boca, mas a
minha mulher não morrerá por minha causa!
MARY,
lutando para se libertar dele: Não posso! Não posso!
PROCTOR,
apertando-lhe a garganta como quem vai estrangulá-la: E, no entanto, vais fazê-lo porque é
teu dever fazê-lo! (Olhando-a nos olhos). Paz, rapariga, paz! Não vês que neste momento o Céu e o
Inferno lutam nas nossas costas e no coração de cada um e que toda a nossa velha presunção se
desvaneceu como fumo! Paz, rapariga, paz! (Atira Mary no chão, onde ela fica a soluçar: Não posso!
Não posso!... Depois, meio para si próprio, de olhos fitos, voltando-se para a porta aberta). Paz! Foi a
Providência, foi, mas não houve grande modificação. Nós somos afinal o que sempre fomos.
Simplesmente, agora, estamos nus. (Caminha como em direção a um grande horror, os olhos postos no
céu). Sim, nus! E o vento, o vento gelado de Deus, vai soprar! (MILLER, 1961, pp. 159-160)
Já no terceiro ato, ocorrem os julgamentos, de modo geral, na sacristia da igreja
de Salém, segundo consta do prólogo. Proctor, Giles Corey e Francis Nurse tentam
dissuadir o juiz Hathorne da prisão de suas respectivas esposas, segundo ele, por
motivos infundados e pela ausência de provas convincentes. A questão do tempo parece
extremamente relevantes neste ato, pois os pequenos indícios da histeria que foram
dados ao leitor no primeiro ato agora tomam proporções assustadoramente grandes. O
senhor Nurse chega a declarar ao juiz Danforth que as garotas fingiam: Excellency, we
have proof of it, sir. They are all deceiving you. (ibid., p. 79)
56
É quando Proctor traz à cena Mary Warren e, neste momento, o Reverendo
Parris vê-se em perigo, pois sabe que Mary é uma das amigas de Abigail e, por medo,
poderia por tudo a perder e, neste caso, sua carreira naquele ministério estaria para
sempre perdida. Como defesa, Parris tenta destituir a integridade de Proctor perante os
juízes, mas o Reverendo Hale, também presente, pede aos juízes que aceitem o
depoimento da moça. Eles se negam e questionam a possibilidade de a comunidade
saber dessa reviravolta, o que lhes é prontamente negado por Proctor, em nome do bom
senso.
Mary, pressionada, admite que toda a comoção das meninas não passa de uma
farsa, o que deixa os juízes momentaneamente sem ação e Parris totalmente
desnorteado:
PARRIS,
in a sweat: Excellency, you surely cannot think to let so vile a lie
be spread in open court!
DANFORTH: Indeed not, but it strike hard upon me that she will dare come
here with such a tale. Now, Mr. Proctor, before I decide whether I shall hear
you or not, it is my duty to tell you this. We burn a hot fire here; it melts
down all concealment. PROCTOR: I know that, sir.
DANFORTH: Let me continue. I understand well, a husband
´s tenderness
may drive him to extravagance in defense of a wife. Are you certain in your
conscience, Mister, that your evidence is the truth?
PROCTOR: It is. And you will surely know it.
DANFORTH: And you thought to declare this revelation in the open court
before the public?
56 Excelência, nunca pensei ter a ousadia de dizer isto a tão poderoso juiz, mas andam a enganá-lo. (ibid.,
p. 170)
PROCTOR: I thought I would, aye with your permission.
DANFORTH,
his eyes narrowing: Now, sir, what is your purpose in so
doing? PROCTOR: Why, I - I would free my wife, sir. (MILLER, 2000,
pp.81-82)
57
Proctor declara que a corte condenava pessoas com base em declarações
infundadas, provenientes de crianças que nada podiam provar. Na tentativa de defender
a corte e suas decisões, os juízes informam a Proctor que qualquer acontecimento
contrário ao que ele declarava seria considerado como uma tentativa de subverter o
poder da igreja e do estado e que ele poderia ser punido por tal atitude.
Em seguida, Proctor é informado que Elizabeth declarara estar grávida,
informação que ele desconhecia, mas garante que sua esposa jamais mentiria, por nada.
Ele entrega aos juízes as petições para a libertação de Elizabeth, Martha e Rebecca
enquanto Francis e Giles são chamados como testemunhas e, ao pedirem que eles
dessem nomes de outras pessoas que pudessem confirmar que suas declarações eram
verdadeiras, negam-se a fazê-lo, temendo prejudicar tais pessoas Corey é preso por
insultar a Corte e negar-se a entregar mais testemunhas, o que deixa a situação ainda
mais tensa e, de alguma forma, a favor de Parris:
FRANCIS,
trembling with anger: Mr. Danforh, I gave them all my Word no
harm would come to them for signing this.
PARRIS: This is a clear attack upon the court!
HALE (
to Parris, trying to contain himself): Is every defence an attack upon
the court? Can no one - ? (MILLER, 2000, p. 85)
58
57 PARRIS, suando: Excelência, o senhor não vai decerto deixar que mentira o vil se espalhe entre os
membros deste Tribunal!
DANFORTH: Decerto que n
ão, Reverendo, mas estou impressionado pelo fato de esta rapariga ter
ousado vir aqui contar semelhante história. Agora, senhor Proctor, antes de decidir se devo ouvi-lo ou
não, é meu dever dizer-lhe o seguinte: jogamos neste momento em Salém uma cartada muito grave. A
dissimulação não é muito bem vinda.
PROCTOR: Eu sei, senhor.
DANFORTH: Deixe-me continuar. Compreendo que a ternura dum esposo possa lev
á-lo a extravagâncias
na defesa de sua mulher. Está certo, em sua consciência, senhor Proctor, de que as suas declarações
correspondem à verdade?
PROCTOR: Correspondem. Como o senhor vai ter certamente a ocasi
ão de verificar.
DANFORTH: E o senhor tencionava fazer estas declarações em pleno tribunal, isto é, em público?
PROCTOR: Tencionava, sim... se Vossa Excelência me permitisse.
DANFORTH, franzindo o cenho: E qual era a sua intenção, senhor, ao fazer uma coisa dessas?
PROCTOR: A minha intenção? A libertação da minha mulher, Excelência. (MILLER, 1961, pp. 174-175)
58 FRANCIS: Senhor Danforth, eu dei a todos a minha palavra de honra que não arriscavam nada ao
assinar este papel.
PARRIS: Isto
é um ataque aberto ao Tribunal!
HALE,
para Parris, tentando conter-se: Então toda defesa é um ataque contra o Tribunal? Cada um não é
livre? ... (MILLER, 1961, p. 183)
O Reverendo Hale, cada vez mais, parece convencido de que a situação havia
ido longe demais, pois ao condenar Giles Corey, o único com provas reais para
condenar o senhor Putnam por invasão de suas terras e o o oposto, como ele
declarava, fica claro que aquele Tribunal apenas condenara pessoas sem ao mínimo uma
prova contra elas a não ser a palavra de crianças.
No intuito de enfatizar o rigor das investigações, de alguma maneira, durante o
depoimento de Mary, Danforth solicita que as meninas sejam chamadas, como em uma
acareação. Abigail nega tudo o que fora dito por Mary e toma tudo por calúnia. Proctor
pede a Mary que diga à Corte a respeito da dança na floresta, o que deixa Parris
decididamente desesperado e faz com que insista em que todos naquela comunidade o
perseguiam: Excellency, since I come to Salem this man is blackening my name. (...)
(ibid., p. 90)
59
Proctor insiste no assunto e os juízes pedem que Mary confirme tudo, e
que confirme também o porquê da mentira, uma vez que, como as outras garotas,
chegara a desmaiar durante alguns depoimentos, alegando estar enfeitiçada.
Mary diz que tudo era fingimento, que nunca havia visto o Demônio, nem
nenhuma das outras garotas, pois elas também fingiam. Ainda sob pressão, o juiz
Hathorne pede a ela que, se sempre havia fingido, que simulasse um desmaio naquele
momento:
HATHORNE: Then can she pretend to faint now?
PROCTOR: Now?
PARRIS: Why not? Now there are no spirits attacking her, for none in this
room is accused of witchcraft. So let her turn herself cold now, let her
pretend she is attacked now, let her faint. (He turns to Mary Warren). Faint.
MARY WARREN: Faint?
PARRIS: Aye, faint. Prove to us how you pretended in the court so many
times. MARY WARREN (looking to PROCTOR) I cannot faint now, sir.
PROCTOR (alarmed, quietly): Can you not pretend it?
MARY WARREN: I
(She looks about as though searching for the passion
to faint) I have no sense of it now, I
DANFORTH: Why? What is lacking now?
59Excelência, desde que cheguei a Salém, este homem não tem feito outra coisa senão procurar manchar
o meu nome (...). (ibid., p. 205).
MARY WARREN: I cannot tell, sir, I
DANFORTH: Might it be that here we have no afflicting spirit loose, but in
the court there were some?
MARY WARREN: I never saw no spirits. (MILLER, 2000, p. 95)
60
Desesperada, a garota não sabe explicar como conseguira desmaiar antes e,
assim, deixa transparecer que seu depoimento ali era uma mentira. Danforth tenta
interrogar Abigail, que se nega a responder qualquer pergunta e, mais uma vez, finge
ver espíritos, assim como todas as outras garotas ali presentes. Até que, em determinado
momento, Abigail deixa claro que a sombra que a persegue é enviada por Mary, o que
deixa Proctor furioso e o faz revelar seu ódio:
ABIGAIL, crying to Heaven: Oh, Heavenly Father, take away this shadow!
(Without warning or hesitation, Proctor leaps at Abigail and, grabbing her
by the hair, pulls her to her feet. She screams in pain.)
DANFORTH, astonished, cries: What are you about?
And HATHORNE and PARRIS call, Take your hands off her) and out of it
all comes Proctor´s roaring voice.
PROCTOR: How do you call Heaven! Whore! Whore! (
Herrick breaks
Proctor from her)
HERRICK: John!
DANFORTH: Man! Man, what do you
PROCTOR,
breathless and in agony: It is a whore!
DANFORTH,
dumbfounded: You change - ?
ABIGAIL: Mr. Danforth, He is lying!
PROCTOR: Mark her! Now she
´ll suck a scream to stab me with but.
DANFORTH: You will prove this! This will not pass!
PROCTOR,
trembling, his life collapsing about him: I have known her, sir. I
have known her.
DANFORTH: You
you are a lecher?
FRANCIS,
horrified: John, you cannot say such a
PROCTOR: Oh, Francis, I wish you had some evil in you that you might
know me! (To Danforth) A man will not cast away his good name. You
surely know that. DANFORTH, dumbfounded: In- in what time? In what
place?
PROCTOR, his voice about to break, and his shame great: In the proper place
where my beasts are bedded. On the last night of my joy, some eight
months past. She used to serve me in my house, sir. () She thinks to dance
60 HATHORNE: Neste caso, ela pode fingir agora que desmaia?
PROCTOR: Neste momento?
PARRIS: Por que n
ão? Neste momento não há nesta sala espíritos que a ataquem, visto que ninguém aqui
foi acusado de feitiçaria. Portanto, ela que fique fria agora, ela que finja que é atacada por espíritos, ela
que desmaie. (Volta-se para Mary Warren). Desmaia!
MARY: Desmaio?
PARRIS: Desmaia, pois, Prova-nos agora que fingias desmaiar no Tribunal as vezes que querias, prova,
desmaia, rapariga!
MARY,
olhando aflita, para Proctor: Eu... não posso desmaiar agora.
PROCTOR, alarmado, mas calmamente: Então não podes fingir que desmaias?
MARY: Eu... (Olhando à volta de si, perdida, como se procurasse inspiração para desmaiar). Eu... agora
não sinto vontade para desmaiar, eu...
DANFORTH: Por qu
ê? O que te falta agora?
MARY: Eu... n
ão sei dizer, senhor, eu...
DANFORTH: Ser
á porque aqui não há espíritos diabólicos à solta e no Tribunal havia?
MARY: Eu nunca vi espíritos. (MILLER, 1961, pp. 209-210)
with me on my wife's grave! And well she might, for I thought of her softly.
God help me, I lusted, and there is a promise in such sweat. But it is a
whores vengeance, and you must see it; I set myself entirely in your hands. I
know you must see it now. (MILLER, 2000, p. 97-98)
61
Apenas nesse momento, quando é acusada de ser uma prostituta, Abigail ra
com seus escândalos e, mais uma vez, seria possível à corte acabar com os julgamentos,
já que a acusação de que Abigail pretendia matar Elizabeth para ficar com Proctor seria
o bastante. Ironicamente, entretanto, os juízes pedem que Elizabeth seja trazida àquele
recinto para uma nova acareação e, caso ela confirmasse a devassidão do marido, seria
libertada ela, que nunca havia mentido antes, mente para proteger John. Sem saber
que ele já havia confessado. Ao fazê-lo, Elizabeth não apenas condena a John e a si
mesma, mas acaba por dar àquela situação um vulto ainda maior.
Torna-se óbvio que, ao assumir publicamente ter cometido o adultério, John
Proctor, de alguma forma, mostra certa redenção com relação ao seu casamento, como
que um real pedido de desculpas a Elizabeth, na tentativa de, com essa revelação, salvar
sua vida. Por outro lado, além de condenado, perdeu sua reputação e sujou para sempre
o nome de sua família, algo que jamais conseguiria recuperar e aí finda o terceiro ato.
O quarto ato é iniciado na prisão de Salem, com Sara Good e Tituba, presas,
mesmo tendo confessado. Tituba diz ao oficial que em breve o Demônio a levaria de
61 ABIGAIL, gritando, os braços para o céu: Ó Pai do Céu, afasta de mim esta sombra terrível!
Sem pré-aviso ou hesitação, Proctor, dum salto, atira-se a Abigail e, puxando-a pelos cabelos, obriga-a a
pôr-se de pé. A rapariga grita de dor. Danforth, estupefacto, grita: O que o senhor está a fazer? O que o
senhor está a fazer? Hathorne e Parris clamam também em coro: Largue-a! Largue-a! E a meio a todo
este alarido ergue-se a voz poderosa de John Proctor.
PROCTOR: Como te atreves a invocar o Céu?
DANFORTH: Homem! Homem, o que est
á a ...
PROCTOR,
ofegante: É uma prostituta, senhor!
DANFORTH,
de boca aberta: O que diz o senhor?
ABIGAIL: Senhor Danforth,
é mentira!
PROCTOR: Olhem para ela. Agora vai-se p
ôr aos berros e dizer que é atacada pelo meu espírito, mas...
DANFORTH: O senhor tem que provar o que disse! Isto não pode ficar assim!
PROCTOR, a tremer todo, sentindo a sua vida toda a ruir à sua volta: Eu conheci-a, senhor, eu conheci-
a.
DANFORTH: O senhor... o senhor
é um devasso?
FRANCIS,
horrorizado: John, não é verdade o que dizes, não pode ser...
PROCTOR: É a verdade! Oh, Francis, Oxahouvesse algum mal em ti para poderes compreender-me!
(Para Danforth). Ela é capaz de negar. Mas o senhor sabe que um homem o faz por perder a sua boa
reputação de ânimo leve.
DANFORTH,
que ainda não se recompôs da surpresa: Em... em que momento, senhor? ... Em que lugar?
PROCTOR, a voz quebra-se-lhe e sua vergonha é grande: No lugar que convinha: onde o meu gado
refocila. Na última noite da minha alegria, oito meses já. Ela servia então em minha casa. (...) Ela
tencionava dançar comigo em cima da campa da minha mulher! E quase o conseguiu, porque eu a
desejava como um doido! Santo Deus, desejava-a tanto e há sempre uma promessa no desejo. Mas a
vingança dela é uma vingança de prostituta, como os senhores podem ver. Estou inteiramente nas vossas
mãos. Agora já podem compreender tudo. (MILLER, 1961, pp. 214-216)
volta a Barbados: Oh, it be no Hell in Barbados. Devil, him be pleasure man in
Barbados, him be singin and dancin in Barbados! Its you folks you riles him up. He
freeze his soul in Massachusetts, but in Barbados he just as sweet () (MILLER,
2000, p. 108)
62
Enquanto isso, Parris percebe que Abigail desapareceu, levando consigo todas as
suas economias em seguida, ele vai dar a notícia aos juízes, mas o faz somente três
dias depois. Na ausência dela, Parris, temeroso de seu futuro na comunidade, já
envolvido pelos comentários que ouvira a respeito da repercussão das últimas prisões,
sugere:
PARRIS: Judge Harthorne it were another sort that hanged till now.
Rebecca Nurse is no Bridhet that lived three year with Bishop before she
married him. John Proctor is not Isaac Ward that drank his family to ruin. (To
Danforth) I would to God it were not so, Excellency, but these people have
great weight yet in the town. Let Rebecca stand upon the gibbet and send up
some righteous prayer, and I fear she'll wake a vengeance on you.
HATHORNE: Excellency, she is condemned a witch. The court have
DANFORTH, in deep concern, raising a hand to Hathorne: Pray you. (To
Parris) How do you propose, then?
PARRIS: Excellency, I would postpone these hangin's for a time.
DANFORTH: There will be no postponement. (ibid., pp. 111-112)
63
Sugere-se, então, a idéia de que se tente convencer Rebecca Nurse e Proctor,
principalmente, a confessar para que não fossem para a forca. A velha senhora nega e
Elizabeth é chamada para falar com John. Eles conversam e ela diz a ele que tome a
atitude que mais estivesse de acordo com sua consciência e John decide confessar,
como o faz, mas recusa-se a indicar outros, assim como se recusa a entregar sua
confissão assinada, o que invalida tudo o que havia dito e é enforcado com Martha e
Rebecca.
62 Oh, em Barbados não há inferno! o Diabo é um bom homem e dança e canta com a gente! A culpa
é dos brancos se ele é mau: fazem-no zangar! A alma dele é gelada em Massachusetts, mas em Barbados,
ele é bom (...). (MILLER, 1961, p. 239)
63PARRIS: At
é aqui tem morrido na forca gente doutra laia, juiz Hathorne. Rebecca Nurse não é a
Bridget que viveu três anos de casa e pucarinho com um bispo antes de casar com ele. E John Proctor está
longe de ser o Isaac Ward que arruinou a família com a bebedeira. (Para Danforth). A Deus prouvesse
que assim não fosse, Excelência, mas o certo é que esses dois indivíduos, apesar do julgamento
desfavorável do Tribunal, ainda gozam de grande estima em Salém. Receio muito que quando Rebecca
Nurse subir ao patíbulo, se começar a rezar, estale a indignação, e a vingança desta gente caia sobre vós.
HATHORNE: Excelência, ela foi condenada como bruxa. O Tribunal, muito justamente...
DANFORTH, profundamente preocupado, erguendo a mão para impor silêncio a Hathorne: Pelo amor
de Deus, Hathorne. (Para Parris). O que é que o senhor propõe então?
PARRIS: Excelência, eu adiaria as execuções por algum tempo.
DANFORTH: Não haverá adiamento. (ibid., pp. 249-250)
O que torna As Bruxas de Salém um drama tão instigante é a forma como foi
composto. De início, há suspeitas de que havia pessoas acusadas de bruxaria e, logo em
seguida, os pequenos indícios são transformados em um pandemônio, deixando toda a
comunidade em polvorosa e, com isso, revelando as ambiguidades moral e identitária
das personagens envolvidas nos episódios, como que fazendo reviver o clima de histeria
que se vê descrito nos registros históricos tanto datados da época do episódio ocorrido
em Salém quando nos momentos de perseguições aos comunistas na década de 50.
Retomando Aristóteles, as personagens são reflexos humanos ante uma
realidade, como que personificando características ora positivas ora negativas, estas
últimas, sendo repelidas pela sociedade. Cada uma delas ocupa, a seu modo, uma
representação dos indivíduos naquela sociedade recriada, como as personae do teatro
grego, revelando através dessas máscaras, críticas à sociedade. Pode-se aplicar tal
afirmação ao discurso crítico de Miller, principalmente no que diz respeito às
personagens de Parris, Abigail, John e Elizabeth Proctor, todas representantes desses
reflexos humanos que personificam qualidades e falhas.
De acordo com Décio de Almeida Prado em A personagem no teatro, artigo
publicado em A personagem de ficção (2002), se a personagem constitui a totalidade da
obra, por dispensar o narrador ao se dirigir ao público, estabelecendo não somente o
diálogo, mas as representações sociais há em As Bruxas de Salém a perfeita composição
dos elementos que o crítico desdobra como referentes aos manuais de escrita teatral,
com a personagem revelando aspectos de si mesma. Na obra de Miller é possível
verificar tais características, como no caso de Proctor, que assume ter cometido o
adultério e prefere manchar a sua reputação a ter sua esposa morta injustamente e a
própria Elizabeth, que assume ter sido distante demais do marido, talvez não sabendo
demonstrar seu amor, nem lutar por ele; a personagem que revela aquilo que faz, como
Abigail, que para a comunidade pode ser considerada, de início, como uma santa, mas
para as garotas que com ela participam dos julgamentos, é tida como uma líder a quem
temem, ou mesmo os juízes que, mesmo sabendo das proporções que suas decisões
haviam atingido, ainda que sem provas concretas, prosseguem com os enforcamentos e,
por fim, aquilo que outros dizem a respeito das personagens, como nas revelações de
Proctor acerca do caráter de Abigail e das contradições do pastorado de Parris.
Segundo Scheidt (1971), Abigail é a personagem propulsora da peça,
representando o extremo oposto de Elizabeth seu instinto de autopreservação,
eventualmente considerado infantil, de início, acaba se transformando em sua maior
forma de poder, enquanto que Elizabeth representa a repressão dos instintos (todos
revelados por Abigail), como todo bom puritano deveria ser, oposto novamente
revelado por Abigail: According to the Puritanical mindset, Abigails atraction to
Proctor constitutes a sin, but one that she could repent of and refuse to acknowledge.
Abigail does the opposite. She pursues Proctor and eventually seduces him. (p. 54)
64
Ainda de acordo com Scheidt, Abigail gives new meaning to the phrase 'all is
fair in love and war.'
65
(SCHEIDT, 1971, p. 54), revelando não apenas sua
imaturidade, mas também sua falta de caráter claro é aqui, fazer um paralelo com a
década de 50 e entender o comportamento de Abigail e o que induz às suas amigas
como o mesmo do Senador McCarthy e seus aliados, não apenas na tentativa de
perseguir os supostos comunistas infiltrados, mas na tentativa de ascender politicamente
as estratégias de Abigail e de McCarthy, assim, podem ser declaradas bastante
semelhantes.
John Proctor, por sua vez, seria o indivíduo atormentado pela culpa e pela
fraqueza, que não condizem com a sua posição social de homem respeitado naquela
comunidade, muito menos refletem, o seu comportamento, nada do que se diz puritano.
Ao optar por declarar sua culpa publicamente, a personagem dá um salto em seu
estatuto de culpado e busca por redenção não somente para si, mas para Elizabeth que,
segundo o próprio esposo, pagava por um crime que ele havia cometido. Seria uma
forma de duplo arrependimento: pela traição a Elizabeth e por -la levado àquela
situação, além de levar sua família à condição de escória da sociedade.
A tentativa corajosa de se despir de toda a moral que a comunidade acreditava
ver em Proctor lhe confere um novo status, como o de um mártir, que será punido
injustamente sob o ponto de vista do crime de bruxaria, que não cometeu, mas de forma
justa, de acordo com sua própria concepção moral, por ter traído não somente à sua
esposa, mas a si mesmo pedindo que lhe deixem seu nome, ele carrega a culpa para a
posteridade, como se seu sacrifício, de alguma forma, pudesse reaver-lhe o bom nome e
o respeito a si mesmo.
64 De acordo com os preceitos puritanos, a atração de Abigail por Proctor constitui um pecado, mas um
pecado do qual ela poderia se arrepender e recusar-se a aceitar. Abigail faz o contrário. Ele persegue
Proctor e, por fim, acaba por seduzi-lo. (SCHEIDT, 1971, p. 54, tradução nossa)
65 Abigail dá novo sentido à frase vale tudo no amor e na guerra. (SCHEIDT, 1971, p. 54, tradução
nossa)
Já o Reverendo Parris revela todas as características que não deveriam ser
atribuídas a um puritano, muito menos a um pastor. Sabe-se de sua falsa modéstia e
apreço aos valores materiais, como os castiçais de ouro mencionados por Proctor,
contrários à ideia puritana de evitar tudo o que lembrasse a ostentação dos templos
católicos, prática condenada pelos ideais puritanos, camuflada como que por uma
fachada de santidade, além dos sermões que enfatizavam exaustivamente a idéia de um
Deus castrador e do fogo do inferno. O que realmente preocupava Parris era a
possibilidade de não conseguir manter seu poder em Salém, pois se via perseguido por
parte da comunidade que não via nele um bom nome, nem boas atitudes é justamente
por conta de sua posição social que as atitudes de sua filha e sua sobrinha não podiam
ser reveladas apropriadamente e, de maneira indireta, o poder atribuído a Abigail seria,
talvez, o poder que Parris gostaria de ver conferido a si mesmo, mas do qual nunca
desfrutou.
Por fim, ainda com relação às personagens, merece atenção a escrava Tituba,
personagem secundária nesta narrativa, mas que, durante alguns momentos toma o lugar
de protagonista, ao ser acusada de feiticeira e que, na tentativa de autodefesa, acusa
membros da comunidade a possibilidade da culpa oferece a esta personagem um novo
patamar, uma espécie de ascensão social promovida pela culpa, quando pode ser ouvida
e exerce seu poder da mesma forma que Abigail o fará. Como escrava, marginalizada,
jamais seria dada a ela a condição de defesa, mas é a partir das acusações feitas por
Tituba que o episódio de Salém começa a tomar vulto e tanto é relevante este fato, que
contribuiu para a criação de Eu, Tituba,Feiticeira... Negra de Salém (1986), por Maryse
Condé.
Em termos de simbologia, chama-se aqui, atenção para dois dos diversos
símbolos presentes na peça, sendo eles a boneca e os enforcamentos, de alguma forma,
relacionados entre si. A boneca utilizada por Miller surge, na peça com duas
finalidades: a primeira, e mais simplória das duas é como um presente de Mary para
Elizabeth, como uma forma de desculpar-se pela ausência, uma vez que fora convocada
para os julgamentos e, a mais interessante, como forma de revelar as más intenções de
Abigail. A garota utiliza a boneca como um vodu: espeta uma agulha ali e, mais tarde,
ao esfaquear-se, diz ter sido perseguida pelo espírito de Elizabeth, acusando-a, assim de
magia negra. A prova seria a boneca, já agora em posse de Elizabeth, como
representante de seu suposto desejo de matar Abigail e não o oposto e real desejo da
garota. Mais uma vez, o vodu surge como representante da magia negra e altamente
condenado pela Igreja em toda sua existência, como revelava O martelo das
feiticeiras (Malleus Maleficarum), escrito em 1486, por Johannes Nider .
Já os enforcamentos representam uma das mais antigas formas de punição ao
que não era aceito pela igreja, assim como queimar hereges ainda vivos, fatos também
relatados pelo Malleus Maleficarum, entre outras formas de revelar a real identidade dos
feiticeiros e hereges. Simbolicamente, o ato de enforcar alguém revela a tentativa de
manter o mal entre o céu e a terra, como forma de punição para quem o praticou e, ao
mesmo tempo, como uma tentativa de lembrar à sociedade que qualquer outra pessoa
poderia ser igualmente punida caso cometesse o mesmo mal. A corda, entretanto,
utilizada para enforcar os réus revela a ideia de unir, como em uma corrente, e neste
caso, o bem e o mal, noções que se complementam, mas que nesse contexto
apresentam-se contraditórias, assim como são contraditórios os julgamentos e punições
estabelecidos em Salém.
Obviamente, a boneca e os enforcamentos, juntos, também apresentam uma
simbologia no interior da trama, uma vez que o fato de Abigail ter utilizado a boneca
como prova de que Elizabeth a havia esfaqueado levaria, possivelmente, do ponto de
vista da garota, a esposa de Proctor à prisão e, posteriormente, ao enforcamento, o que
abriria passagem para que ela, Abigail, finalmente pudesse ficar com aquele a quem
acreditava amar. Os comportamentos de Abigail e das garotas acabam, assim, tendo
uma importância mais do que relevante no decorrer da peça funcionam,
dialogicamente, como o coro do teatro grego e como a voz da consciência daquela
comunidade, mesmo que passassem por cima dessa mesma comunidade para atingir
desejos pessoais que poderiam prejudicar a uma ou várias pessoas.
Como conclusão para o presente capítulo, cabe citar Arthur Miller, na introdução
de suas Collected Plays (s/d):
By whatever means it is accomplished, the prime business of a play is to
arouse the passions of its audience so that by the route of passion may be
opened up a new relationship between a man and men, and between men and
Man. Drama is akin to the other inventions of man in that it ought to help us
know more, and not merely to spend our feelings.
66
66 Por mais perfeita que seja, o principal objetivo de uma peça é estimular paixões em sua platéia, de
modo que pela via da paixão possa ser aberta uma nova relação entre um homem e os homens, e entre
homens e o Homem. O drama é semelhante a outras invenções do homem, no sentido de que nos ajuda a
saber mais, e não meramente desperdiçar nossos sentimentos. (tradução nossa)
A presente citação nos faz concluir que toda a temática abordada por Miller
em As bruxas de Salém, sempre teve por objetivo, obviamente, a crítica social.
Entretanto, ao efetuar tal crítica, o autor vai muito além, pois coloca em contato, épocas
distintas em períodos cio-políticos também distintos, mas provando que esse diálogo
intertextual entre, como mencionado na citação, homem e homens, homens e Homem
apresenta uma conotação de extrema importância para o entendimento do
comportamento humano em qualquer momento que a leitura seja feita.
2.2 A LETRA ESCARLATE, NATHANIEL HAWTHORNE
An ambiguous blend of sin and virtue, pride and humility, severity and
gentleness, justice and mercy, the novels true message may lie in what
Hawthorne describes as its true genre: The Scarlet Letter, says its author,
is not so much a novel as a romance, filled with details that disclose the
truth of the human heart. (Nathaniel Hawthorne)
67
No romance A Letra Escarlate, lançado em 1850, Nathaniel Hawthorne compôs
o que viria a se tornar uma das mais consagradas obras de toda a Literatura Norte-
Americana. Em um estudo sobre a obra, publicado em 1926, William Lyon Phelps
chega a mencionar que (...) possuímos em A Letra Escarlate uma obra de arte
originalíssima na concepção e na 'maneira', profunda na revelação e na interpretação da
alma humana, exata na moldura histórica e escrita num estilo quase impecável. (apud
HAWTHORNE, 2006, p. 11, marcas do autor, edição em Língua Portuguesa)
Ainda no referido estudo, Phelps revela que Hawthorne tornou-se conhecido
logo após a publicação do romance, que além de ter obtido êxito imediato, teve
traduções logo no ano seguinte à sua publicação, além de ter sido transformado em
ópera e em filmes. Obviamente aqui, o crítico se refere à versão cinematográfica mais
antiga que adaptou o romance, em 1926, dirigida por Victor Seastrom. De qualquer
forma, fica claramente enfatizada pelo crítico a relevância do reconhecimento dado a
Hawthorne, considerado original em sua composição narrativa, que traz um jogo de
cores sombrias ao leitor, em pano de fundo para suas personagens brilhantes.
De fato, Hawthorne mescla, na narrativa, elementos mágicos e góticos, criando
uma forma de ficção que intitulou como romance psicológico, fórmula que seria, a
partir daí retomada por outros escritores. O exercício de leitura do romance leva o leitor
a confrontar o real e o irreal, o provável e o improvável, tanto sob a perspectiva do
período puritano, retomado historicamente, quanto sob a perspectiva contemporânea.
Segundo Susan Van Kirk, em The CliffsNotes on The Scarlet Letter (2000),
67Uma mistura ambígua de pecado, orgulho e humilhação, severidade e gentileza, justiça e piedade; a
verdadeira mensagem do romance pode estar no que Hawthorne descreve como seja seu verdadeiro
gênero: A Letra Escarlate, diz o autor, não é uma novela tanto quanto um romance, preenchido de
detalhes que revelam a verdade do coração humano. (Nathaniel Hawthorne) (in:
http://www.awerty.com/scarlet2.html, tradução nossa)
In The Scarlet Letter, the reader should be prepared to meet the real and the
unreal, the actual and the imaginary, the probable and the improbable, all
seen in the moonlight with the warmer light of a coal fire changing their
hues. What is Truth and what is Imagination? This is the Boston of the
Puritans: Bible-reading, rule making, judgement framing. Surrounding it is
the forest of the Devil, dark, shadowy, momentarily filled with sunlight, but
always the home of those who listen to their passions. Enter this setting with
Hawthorne and ample imagination, and the reader will find a story difficult to
forget. (p. 8)
68
A crítica sugere a possibilidade de o romance ter se tornado tão popular devido à
forma como foi conduzida a narrativa, com a introdução de camadas de significado
reveladas pelas incertezas e certas ambiguidades inseridas no comportamento das
personagens no decorrer dos acontecimentos. De alguma maneira, o romance de
Hawthorne, por conta dessa peculiaridade narrativa, poderia ser interpretado de formas
diferentes, por diferentes leitores, em momentos históricos distintos e nenhum deles,
nem leitores, muito menos épocas em que a leitura for efetuada, perderá o sentido de
toda a narrativa construída pelo autor. Pelo contrário, poderiam interpretá-la e notar sua
relevância, novamente mencionando Van Kirk, (...) in its subtle meanings and
appreciate the genius lying behind what many critics call the perfect book’”(2000,
p.7)
69
No romance é narrada a história de Hester Prynne, condenada por adultério pela
sociedade puritana de Boston do século XVII. O crime se devia ao fato de a
personagem, cujo marido estava desaparecido, ter engravidado antes do período
considerado aceitável pela Igreja Protestante, uma vez que o havia indício nenhum de
que seu marido realmente estivesse morto. Hester foi presa, deu à luz na prisão e,
quando de sua condenação, foi humilhada em público, tanto pelo fato de ser adúltera,
imoral, quanto por insistir em encobrir a identidade do pai de sua filha, Pearl. Sua pena
foi viver reclusa, nos arredores da cidade e passar a usar uma letra A, escarlate, em sua
vestimenta, sobre o peito, como símbolo do adultério que havia cometido, sinal de
imoralidade e vergonha públicas.
68 Em A Letra Escarlate, o leitor deveria estar preparado para encontrar o real e o irreal, o verdadeiro e o
imaginário, o provável e o improvável, todos vistos sob a luz da lua a breve chama de uma fogueira
mudando suas tonalidades. O que é Verdade e o que é Imaginação? Esta é a Boston dos puritanos: leitura
da Bíblia, regras, julgamentos. Ao seu redor está a floresta do Demônio, escura, sombria,
momentaneamente preenchida com a luz do sol, mas sempre o abrigo daqueles que seguem suas paixões.
Entre neste cenário com Hawthorne a uma grande imaginação, e o leitor encontrará uma história difícil de
ser esquecida.(p. 8, tradução nossa)
69
(...) em seus significados sutis e apreciar a genialidade sob o que os críticos chamam de 'livro
perfeito'. (id., p.7, tradução nossa)
Resignada, Hester aceita a punição sem nunca mencionar o nome do Reverendo
Dimmesdale, pai de sua filha, muito menos depois de descobrir que seu marido, Roger,
estava vivo e, agora a ameaçava pelo crime, exigindo saber o nome do pai da criança em
busca de vingança. Não bastasse tal descoberta, Pearl se desenvolve, no decorrer da
narrativa, como uma personagem problemática, fascinada pelo A escarlate, o que
causa estranhamento e problemas para sua mãe, que corre o risco de perder a guarda da
garota. Hester, em toda a obra, é exposta a pressões, mostrando força e coragem ao
proteger a identidade de Dimmesdale.
O reverendo, por sua vez, mostra-se fraco, por temer revelar a paternidade de
Pearl e, consequentemente, o envolvimento com Hester, ameaçando não somente sua
posição religiosa naquela comunidade, bem como a prova de que cometera atos
contrários aos preceitos puritanos. Atormentado pela culpa e pela omissão, pelos
próprios questionamentos morais, pede perdão a Hester e confessa a Pearl sua real
identidade, mas ainda não encontra coragem para fazê-lo publicamente. Hester propõe
que fujam para a Europa e lá iniciem vida nova, retirando o A de seu peito, prova de
aceitação de sua nova realidade, mas Pearl se recusa a aceitá-la sem a marca de sua
culpa.
Por fim, na impossibilidade de viverem juntos e felizes, Dimmesdale, já
adoentado e fraco, depois de pronunciar um dos seus melhores sermões, admite, em
praça pública a paternidade de Pearl e morre nos braços de Hester, que por sua vez,
revela o fato de Roger estar vivo, ludibriando toda a comunidade, como sendo o médico
recém chegado ali. Indignado por o cumprir sua palavra de vingança, Roger morre
pouco depois, deixando toda sua fortuna para Pearl, de forma que pudesse ir para a
Europa com sua mãe e conseguir um bom casamento. Hester retorna, depois de algum
tempo, a Boston, ainda usando sua letra escarlate.
Uma vez conhecido o teor da narrativa, cabe ressaltar alguns aspectos relevantes
para o presente trabalho tanto com relação aos comportamentos assumidos por Hester,
quanto por sua posição naquela sociedade puritana, uma vez que essa mesma
personagem será retomada por Maryse Condé em Eu, Tituba, feiticeira... Negra de
Salém (1986), sob outra perspectiva. Antes, porém, de iniciar tais comentários acerca da
personagem Hester, cabe ressaltar a importância do espaço e do tempo na obra de
Hawthorne.
Já no prefácio, a apresentação de um cenário espacial e temporal que une, de
algum modo, passado e presente, quando o narrador relata, um período em que
trabalhou na Alfândega, durante o qual, supostamente, surgiu a motivação para que o
romance fosse escrito:
(...) I again seize the public by the Button, and talk of my three years
experience in a Custom House. The example of the famous P.P., Clerk of
this Parish, was never more faithfully followed. The truth seems to be,
however, that, when he casts his leaves forth upon the wind, the author
addresses, not the many who will fling aside his volume, or never take it up,
but the few who will understand him, better than most of his schoolmates or
lifemates. Some authors, indeed, do far more than this, and indulge
themselves in such confidential depths of revelation as could fittingly be
addressed, only and exclusively, to the one heart and mind of perfect
sympathy; as if the printed book, thrown at large on the wide world, were
certain to find out the divided segment of the writer´s own nature, and
complete his circle of existence by bringing him into communion with it. It is
scarcely decorous, however, to speak all, even where we speak impersonally.
But, as thoughts are frozen and utterance benumbed unless the speaker stand
in some true relation with his audience, it may be pardonable to imagine that
a friend, () is listening to our talk (). (HAWTHORNE, 1999, pp.1-2)
70
De fato, o que se segue a este início do prefácio é um relato da vida do autor em
Salém, sua cidade natal, e de seu trabalho na Alfândega, bem como a lembrança de um
de seus antepassados ilustres, Juiz John Hathorne, He was a soldier, legislator, judge;
he was a ruler in the church; he had all the puritanic traits, both good and evil. He was
likewise a better persecutor; as witness the quakers (...) (ibid. p. 7)
71
até que menciona
essa relação tida como perene em todo o decorrer de sua obra, entre o presente e o
passado e seus resultados no comportamento humano, quando diz que:
70 (...) torno a pegar o público pela lapela para contar-lhe a minha experiência de três anos numa
Alfândega. O exemplo do famoso 'P.P., Sacristão desta Paróquia' nunca foi tão fielmente seguido.
Entretanto, parece que a verdade é que, ao atirar as suas páginas ao vento, o escritor se dirige não à
maioria que passará de esguelha pelo livro, mas aos raros que, mais do que os colegas e os íntimos, o
compreenderão. Aliás, certos autores vão além e como se lançado ao vasto mundo o volume impresso
fosse encontrar, na certa, o complemento do seu caráter e da sua sensibilidade, completando-lhe pelo
contato, o ciclo da existência permitem-se confidências tão profundas que caberiam, de maneira única e
exclusiva, a um coração e a um espírito absolutamente afins. E é muito pouco conveniente dizer-se tudo,
mesmo quando se fala de um modo impessoal. Quando, porém, as idéias se acham frias e as expressões
suavizadas, e uma vez que não se esteja em relação direta com o auditório, é perdoável que suponhamos
que algum amigo (...) esteja a nos ouvir. (...)
Ver-se-
á também que este esboço da Alfândega tem certa propriedade, de gênero sempre acatado em
literatura, ao explicar como tantas das páginas que se seguem caíram em meu poder e ao oferecer provas
da autenticidade da narração que nelas se contém. (HAWTHORNE, 2006, pp. 19-20)
71Ele foi soldado, legislador, juiz. Foi um dos paredros da Igreja. Tinha todas as características do
puritano, boas e más. Foi também um duro inquisidor, como testemunham os quacres (...). (ibid., p. 24)
But the past is not dead. Once in a great while, the thoughts that had seemed
so vital and so active, yet I had been out to rest so quietly, revived again. One
of the most remarkable occasions, when the habit of bygone days awoke in
me, was that which brings it within the law of literary propriety to offer the
public the sketch which I am now writing. (ibid., p. 23)
72
A partir dessa revelação, relata que encontrou, entre diversos documentos
antigos encontrados na Alfândega, (...) a small package, carefully done up in a piece of
ancient yellow parchment. (ibid., p. 25)
73
de onde tirou alguns registros e um objeto
feito em tecido bordado que denotava uma letra 'A' maiúscula que muito lhe causara
estranheza:
But the object that most drew my attention in the mysterious package was a
certain affair of fine red cloth, much worn and faded. There were traces about
it of gold embroidery, which, however, was greatly frayed and defaced; so
that none, or very little, of the glitter was left. I t had been wrought, as was
easy to perceive, with wonderful skill of neddlework: and the stitch (as I am
assured by ladies conversant with such mysteries) gives evidence of a now
forgotten art. () This rag of scarlet cloth for time, ad wear, and a
sacrilegious moth, had reduced it to little other than a rag on careful
examination, assumed the shape of a letter. It was the capital letter A. (.)
It had been intended, there could be no doubt, as an ornamental article of
dress. (HAWTHORNE, 1999, p.27)
74
Na verdade, não foi encontrado nenhum estudo crítico-literário acerca dessa
suposta descoberta do autor e que ela teria sido a motivação para a composição do
romance. Acredita-se que este capítulo represente, então, uma forma de técnica
narrativa aplicada por Hawthorne, de modo que sua história ficasse envolta em uma
atmosfera de verdade histórica e não apenas de ficção, o que, de algum modo, concerne
à personagem Hester uma aura ainda mais misteriosa e interessante.
Hester é apresentada como uma mulher forte e culta, mesmo que não sejam
dadas ao leitor muitas informações acerca de sua vida logo de início. Pelo contrário, o
72 Mas o passado não está morto. De tempos em tempos o pensamento, que dantes parecia o vivo e
atuante, e todavia fora posto num repouso tão completo, ressuscitava. Uma das ocasiões mais notáveis em
que os hábitos dos dias idos acordou em mim foi esta que reconduziu o meu espírito às linhas da
conveniência literária para oferecer ao público o esboço que estou escrevendo. (ibid., p. 38)
73 (...) um pequeno pacote, cuidadosamente feito de velho e encardido pergaminho. (ibid., p. 39)
74 Mas o que mais me chamou a atenção no misterioso pacote foi um objeto de leve tecido escarlate,
muito puído e desbotado, tanto que nada ou quase nada lhe restava da cor. Fora trabalhado, como se
constatava facilmente, com admirável habilidade de bordadeira, e o ponto (ao que me afirmaram senhoras
que lidam com esses místeres) era a prova de uma arte agora esquecida (...). O trapo escarlate porque o
tempo, o uso e uma traça sacrílega haviam reduzido aquilo a pouco menos de um trapo assumia, depois
de uma minuciosa observação, a forma de uma letra. Era um A maiúsculo (...). Não restava dúvida de
que aquilo fora ornamento de vestuário. (HAWTHORNE, 2006, p. 41)
autor a apresenta através de seu forte caráter, mantido intacto mesmo ao sofrer a imensa
humilhação pública e ter como penitência, além do isolamento, o fardo de carregar o 'A'
de adúltera bordado em seu peito a o fim de seus dias, revelando a marca de seu
pecado. Entretanto, a altivez de Hester é o que realmente impressiona o leitor, com no
trecho abaixo descrito, e o torna curioso quando a esse caráter ainda a ser revelado no
decorrer da narrativa:
(...) until, on the threshold of the prison door, she repelled him, by an action
marked with natural dignity and force of character, and stepped into the open
air, as if by her own free will. She bore in her arms a child, a baby of some
three months old, who winked and turned aside its little face from the too
vivid light of day; because its existence, heretofore, had brought it acquainted
only with the gray twilight of a dungeon, or other darksome apartment of the
prison.
It seemed to be her first impulse to clasp the infant closely to her bosom; not
so much by an impulse of motherly affection, as that she might thereby
conceal a certain token, which was wrought or fastened into her dress. In a
moment, however, wisely judging that one token of her shame would but
poorly serve to hide another, she took the baby on her arm, and a glance that
would not be abashed, looked around at her townspeople and neighbors. On
the breast of her gown, in fine red cloth surrounded with elaborate
embroidery and fantastic flourishes of gold thread, appeared the letter A. It
was so artistically done, and with so much fertility and gorgeous luxuriance
of fancy, that it had all the effect of a last and fitting decoration to the apparel
which she wore; and which was of a splendor in accordance with the taste of
the age, but greatly beyond what was allowed by the sumptuary regulations
of the colony. (HAWTHORNE, 1999, p.46)
75
Essa altivez de Hester passa a ser admirada pelo leitor e, a partir desta
característica, é possível notar que sua posição perante aqueles que a condenam é
impassível ela aceita carregar o fardo que lhe obrigam e se isola da comunidade para
viver, com sua filha, a sina que lhe foi destinada por amar Dimmesdale. Entretanto, o
leitor também observa, ao longo da narrativa, a gradual mudança que se opera na
personagem, tanto em sua aparência quanto em suas atitudes, demonstrando que a
75 Ao chegar à soleira da porta ela o repeliu [o meirinho], num movimento cheio de altivez e de força
moral, como se fora de sua própria vontade, caminhou para o ar livre. Tinha nos braços uma menina de
uns três meses, que estremeceu e furtou o rostinho à crua radiância do dia, pois até então a vida lhe
dera a conhecer a penumbra cinzenta de um cubículo, ou de outro qualquer sombrio aposento da cadeia.
Parece que, ao mostra-se em cheio à turba, o primeiro impulso da mulher mãe da criança foi estreitá-
la ao peito. Não tanto por instinto maternal como para, por esse meio, esconder certo emblema que trazia
bordado ou aplicado nas vestes. Todavia, concluindo rápida e sensatamente que uma prova da sua
vergonha bem pouco serviria para esconder a outra, embalou a filha, e, com um rubor escaldante, mas
com um sorriso ainda altaneiro e um olhar que ninguém poderia abater, encarou conterrâneas e cidadãos.
No corpete, emoldurada em laborioso trabalho de arabescos e fio de ouro, aparecia, em nítido recorte
escarlate, a letra 'A'. Fora tão artisticamente bordada, e tão exuberante e vistosamente ornada, que dava a
impressão perfeita de ser o último e definitivo enfeite do vestido, vistoso, de acordo com o gosto da
época, porém muito mais do que era permitido pelos regulamentos santuários da colônia.
(HAWTHORNE, 2006, pp. 59-60)
punição realmente se revelara como a uma espécie de sacrifício para ela, mesmo que,
pessoalmente, Hester jamais o admitisse.
Ocorre, porém, uma reviravolta nesse comportamento, como uma espécie de
rebeldia, cerca de sete anos após a libertação de Hester, como menciona Van Kirk
(1946):
Contrast this with her appearance after seven years of punishment for her sin.
Her beautiful hair is hidden under a cap, her beauty and warmth are gone,
buried under the burden of the elaborate scarlet letter on her bosom. When
she removes the letter and takes off her cap in Chapter 13, she once again
becomes the radiant beauty of seven years earlier. Symbolically, when Hester
removes the letter and takes off the cap, she is, in effect, removing the harsh,
stark, unbending Puritan social and moral structure. (p. 78)
76
O que é possível notar no referido capítulo são a representação e os resultados
do que os símbolos de seu pecado refletiam em Hester e Arthur. Ao deparar, mais uma
vez, com um Dimmesdale fraco, deprimido e impotente perante a culpa que carregava,
deixara-se levar e sua saúde era, neste momento, delicada demais para que pudesse ter
forças para lutar. Hester, por outro lado, apresenta-se, sob o ponto de vista do narrador e
daquele grupo puritano, com uma nova perspectiva, sendo que o símbolo de seu pecado,
o 'A era agora visto diferentemente pela mesma comunidade que a condenara. No
original, o narrador diz que a parte carente e sofrida daquela comunidade enxergava o
'A' de Hester não mais como o símbolo do adultério, mas como 'able' (apta), ou, como
na tradução, como um 'A' de 'amiga', como uma espécie de redenção para seus pecados:
She was self-ordained a Sister of Mercy; or, we may rather say, the worlds
heavy hand had do ordained her, when neither the world nor she looked
forward to this result. The letter was the symbol of her calling. Such
helpfulness was found in her so much power to do and power to sympathize
that many people refused to interpret the scarlet A by its original
signification. They said that it meant Able: so strong was Hester Prynne,
with a womans strength. (HAWTHORNE, 1999, p.145)
77
76 Faça um contraste entre esta e a aparência de Hester depois de sete anos de punição por seu pecado.
Seus belos cabelos estão escondidos por uma touca, sua beleza e calor desapareceram, enterrados sob o
fardo da elaborada letra escarlate em seu peito. Quando ela arranca a letra e se livra da touca, no capítulo
13, ela mais uma vez se torna a beleza radiante de sete anos atrás. Simbolicamente, quando Hester se livra
da letra e da touca, ela, de fato, remove a cruel e nitidamente inflexível estrutura moral e social puritana.
(p. 78, tradução nossa)
77 Tinha-se ordenado a si mesma Irm
ã de Caridade. Ou, devemos antes dizer, a pesada o do mundo a
ordenara, quando nem ele [Dimmesdale] nem ela previam os resultados. A letra era o emblema da sua
profissão. Encontrava-se nela tanto arrimo, tanta capacidade de servir e servir e se compadecer que
muitas pessoas se recusavam a dar ao 'A' a sua primitiva significação. Diziam que ela significava Amiga.
Tão forte era. Hester Prynne com uma força de mulher. (HAWTHORNE, 2006, p. 145)
Hester, entretanto, é descrita como um tipo de mulher que nunca se
envergonhara de seus atos, nunca ocultara a marca do pecado até que Pearl, a marca
mais real do que o 'A' que carregava no peito, resolve questionar-lhe o significado, o
que deixa Hester mais do que apreensiva, mas temerosa de como poderia ser
compreendida pela criança, ao mesmo tempo em que, solitária, Hester precisava de
alguém com quem pudesse compartilhar seus segredos mais íntimos. Neste ponto do
romance, o narrador apresenta uma Hester que declara odiar Roger Chillingworth, não
somente por ele ser como o é, mas por assumir a postura de amigo de Arthur,
enganando-o para dele retirar a verdade ao fazê-lo, o narrador contrasta os dois
relacionamentos de Hester, como cita Van Kirk (2000):
By now the reader should be examining the differences in the two
relationships that are presented in the novel. First, in the Hester-
Chillingworth relationship is a marriage accepted and legal in every way but
without love and passion. In the Hester-Dimmesdale relationship is love and
passion without marriage. The plot and themes of this novel are set in the
Puritan society at the confluence of these two relationships. (p. 52)
78
Van Kirk menciona ainda que ocorre uma outra variação da letra escarlate com a
pequena Pearl, que insistentemente a questiona acerca do real significado da letra que
leva no peito, mas ela, mesmo tentada, decide manter a história para si mesma, como
sempre o havia feito. Interessante é, contudo, a colocação que a menina faz com relação
ao que entende ser aquela letra que a mãe carrega no peito, fazendo uma analogia com a
forma com que o pastor, Dimmesdale, sempre aparece aos olhos da comunidade:
What does the letter mean, mother? and why dost thou wear it? and why
does the minister keep his hand over his heart?
-
What shall I say? thought Hester to herself. No.! If this be the price of
the child´s sympathy, I cannot pay it
Then she spoke aloud:
78 Por ora o leitor deveria examinar as diferenças entre os dois relacionamentos apresentados no
romance. De início, na relação Hester-Chillingworth, um casamento aceitável e legal em todas as
concepções, mas sem amor e paixão. Na relação Hester-Dimmesdale, por sua vez, há amor e paixão, mas
não o casamento. O enredo e as temáticas deste romance o desenvolvidos na sociedade puritana na
confluência dos dois relacionamentos. (p. 52, tradução nossa)
- Silly Pearl, said she, what questions are these? There are many things in
the world that a child must not ask about. What know I of the ministers
heart? And as for the scarlet letter, I wear it for the sake of this gold thread.
In all seven bygone years, Hester Pynne had never before been false to the
symbol on her bosom. (HAWTHORNE, 1999, p.163)
79
Em uma biografia sobre o autor, o crítico Mark Van Doren (1949) exalta a
composição da personagem Hester, por Hawthorne, ressaltando que sua presença é a
verdadeira vivacidade do texto do escritor norte-americano. Acrescenta que a concepção
de Hester é de suma importância, por ela ser efetivamente humana e pelo fato de o autor
tê-la descrito como tal:
Estamos perto de Hester o tempo todo, completamente convencidos de que é
de carne e osso, que tem coração e rebro. É uma mulher apaixonada, pois
tem a prova: se estado de excitação, chegando às raias do frenesi, na prisão,
após o primeiro castigo blico diante da multidão; sua 'agonia moral',
refletida nas convulsões que se apossaram da criança; seu orgulho; sua
ousadia, mais tarde, quando exibia, mais do que necessário a letra no peito,
símbolo que ela insistia em enfeitar com 'louca e pitoresca peculiaridade'; as
crises de desespero de desafio; o amor persistente (tão raramente confessado,
que podemos apenas supor que ali esteja) pelo homem cuja fraqueza parece
torná-lo bem pouco digno desse amor; o dom da palavra, lacônico e terno,
quando ela finalmente se vê na companhia desse homem; a súbita revelação
que ela faz, que através dos anos de solidão o consentiu que sua própria
alma fosse aniquilada... (VAN DOREN, 1949, p. 130, marcas do autor)
Van Doren também trata das personagens Roger, Arthur e Pearl e, para cada
uma delas, faz apontamentos precisos. Quanto a Chillingworth, refere-se ao ser amor
exclusivo por Hester, mesmo sabendo nunca tê-lo tido em retorno, nem mesmo quando
eram casados isso realça o fato de que Hester, durante toda a narrativa é descrita como
uma pessoa sincera, que fala o que pensa e não teme as consequências por isso.
Enquanto Hester pode ser considerada uma personagem redonda, segundo as
concepções de Forster, Chillingworth é uma personagem plana, pois seu desempenho
como um homem obsessivo faz com que pareça mais um símbolo do demônio do que
uma pessoa real até a descrição de sua aparência física corrobora com essa questão.
Van Kirk (2000) chega a mencionar que o leitor pode até sentir-se compadecido pela
79 - Que é que a letra quer dizer, mamãe? E por que tu a usas? E por que o pastor anda com a o no
coração?
Que direi?, pensou a mãe. Não! Se esse é o preço da simpatia de minha filha, não posso pagá-lo!
E falou alto:
- Pearl, tolinha, que perguntas s
ão estas? Há muitas coisas neste mundo que uma criança o deve
perguntar. Que é que eu sei sobre o coração do pastor? E, quanto à letra escarlate, uso-a por causa do
bordado de ouro.
Em todos os sete anos passados, jamais Hester Prynne falseara a significa
ção do símbolo que trazia ao
peito.(...) (HAWTHORNE, 2006, p. 160)
situação de Roger quando chega à cidade e vê a situação em que sua esposa se encontra
(cf. p. 84), para depois mudar de compadecimento para, talvez, sentir-se mais próximo
de Hester e seu asco pelo ex-marido que, ao invés de ajudá-la, resolve buscar vingança.
O leitor também tende a se compadecer pela figura de Dimmesdale, talvez não a
princípio, uma vez que ele não assume a paternidade de Pearl, nem tenta fazer nada de
realmente eficaz para livrar Hester das punições que lhe foram aplicadas. Contudo,
passados os sete anos de distanciamento de Hester, o reverendo de quem se tem notícia
é de homem fisicamente enfraquecido e mentalmente afetado, mesmo que não tenha
deixado de lado sua vida como pastor daquela comunidade. Ele seria, conforme Van
Kirk (1946), a personificação da fragilidade e do sofrimento humanos (cf., p. 81), o que
se torna visível em seu sermão no Dia dos Eleitos e na revelação que faz de seu pecado,
revelação para o mesmo público que o entendia um homem santificado:
Hester Prynne, cried he, with a piercing earnestness, in the name of Him,
so terrible and so merciful, who gives me grace, at this last moment, to do
what for my own heavy sin and miserable agony I withheld myself from
doing seven years ago, come hither now, and twine thy strength about me!
Thy strength, Hester; but let it be guided by the will which God hath granted
me! This wretched and wronged old man is opposing it with all his might!
with all his own might, and the fiends! Come, Hester, come! Support me up
yonder scaffold. (HAWTHORNE, 1999, p.230)
80
Van Doren chama a atenção para o seguinte fato na relação entre Hester e
Dimmesdale: Hester e Arthur Dimmesdale m a vida toda como um auditório. Eles
não querem auditório, mas também precisam de um. Eles o têm, ironicamente, [na]
multidão, cujo poder de repulsa é igual ao poder de atração.(1949, p. 137)
Por fim, Pearl, a ligação mais concreta entre Hester e Arthur Dimmesdale, mais
ainda que a letra escarlate é representada por Hawthorne como um símbolo de seu ato
de amor, mas também um símbolo do adultério, concreto demais para ser simplesmente
ignorado. A garota é sempre descrita pelo narrador como inteligente e dona de uma
vivacidade única, a única pessoa através da qual Hester realmente podia se ver como
uma mulher normal, enquanto mãe, mas ainda como uma mulher que cometera um erro
80- Hester Prynne exclamou, com austeridade cruciada , em nome d'Aquele que é tão terrível e
misericordioso que me concedeu a graça de fazer neste derradeiro instante o que para meu próprio e
irremissível pecado e para minha desgraçada agonia eu me impedi de fazer sete anos atrás, vem até aqui
e esparze a tua energia sobre mim! Não relutes, Hester! Consente que a tua fortaleza seja útil ao desejo
que Deus me inspirou! Esse velho infeliz e malvado está se opondo a ele com todas as forças! Com todas
as suas forças e ao demônio! Vem, Hester! Ajuda-me a subir ao patíbulo! (HAWTHORNE, 2006, p.
216)
grave e que, por sua própria vontade, carregava o símbolo de seu pecado, tanto
estampado no peito, quanto na pele de sua filha.
Pearl é a personificação da paixão, do ato amoroso (e proibido) entre Hester e
Dimmesdale e, de uma maneira estranha, é ligada à letra escarlate, talvez mais até do
que a própria mãe pudesse explicar, mantendo-a sempre consciente dos frutos de seu
pecado, como se vê neste trecho:
One peculiarity of the childs was what? not the mothers smile,
responding to it, as other babies do, by that faint, embryo smile of the little
mouth, remembered so doubtfully afterwards, and with such fond discussion
whether it were indeed a smile. By no means! But that first object of which
Pearl seemed to become aware was shall we say it? the scarlet letter on
Hesters bosom! One day, as her mother stopped over the cradle, the infants
eyes had been caught by the glimmering of the gold embroidery about the
letter; and putting up her little hand, she grasped at it, smiling, not doubtfully,
but with a decided gleam, that gave her face the look of a much older child.
Then, gasping for breath, did Hester Prynne clutch the fatal token,
instinctively endeavoring to tear it away; so infinite was the torture inflicted
by the intelligent touch of Pearls baby hand,. Again, as if her mothers
agonized gesture were meant only to make sport for her, did little Pearl look
into her eyes, and smile! From that epoch, except when the child was asleep,
Hester had never felt a moments safety: not a moments calm enjoyment of
her. Weeks, its true, would sometimes elapse, during which Pearls gaze
might never one be fixed upon the scarlet letter; but then, again, it would
come at unawares, like the stroke of sudden death, and always with that
peculiar smile and odd expression of the eyes. (HAWTHORNE, 1999, pp.85-
86)
81
Van Kirk (1946) menciona que Pearl também pode ser interpretada como a
consciência de Dimmesdale, pois quando a menina ainda era um bebê, em público, no
dia em que Hester saiu da prisão, abriu os braços para o pastor, que não somente não
retribuiu ao chamado da criança, como também não revelou sua participação em sua
concepção. Mais tarde, maior, ela pede ao pastor que fique com ela e sua mãe no
mesmo lugar, aos olhos da comunidade ele nega e ela limpa o beijo que ele lhe havia
81Falta ainda contar uma peculiaridade do seu [de Pearl] comportamento. A primeira coisa que ela notou
na vida foi foi o quê? Não, como acontece com as demais crianças, o sorriso materno, respondido por
outro débil, embrionário sorriso da boca pequenina, depois recordado e discutido entre dúvidas. Nada
disso!O primeiro objeto em que Pearl reparou devemos dizê-lo? foi a letra escarlate no peito de
Hester! Um dia, quando a mãe se debruçou para o berço, os seus olhos sentiram-se atraídos pelo bordado
a ouro. E a pequena, estirando o bracinho, agarrou bem o lema sorrindo, sim, mas com um olhar franco,
que fez que a sua fisionomia parecesse a de uma criança muito mais velha. O toque inteligente da mão da
filhinha causou em Hester Prynne uma dor tão intensa que ela, quase sem fôlego, segurou o mbolo
fatídico procurando, instintivamente, arrancá-lo. Desde então, a não ser quando a menina estava
dormindo, nunca mais pôde se sentir tranqüila, nem gozou em sua companhia, de um minuto sereno de
prazer. É verdade que algumas vezes se passavam semanas sem que o olhar de Pearl se fixasse, um só
instante, na letra escarlate. Mas, de repente, lá estava ele, inesperado como o golpe da morte súbita, e
sempre acompanhado daquele sorriso singular e da mesma bizarra expressão de olhos. (HAWTHORNE,
2006, pp. 92-93)
dado, como um sinal de repugnância e, do ponto de vista dele, o indício de que a
resposta para o que deveria fazer para livrar-se de seus pecados seria justamente assumi-
los (cf. p. 89).
Entretanto, se desde o início da narrativa, essa personagem é vista mais
simbolicamente, ao final, ela se torna de carne e osso,
While Pearl functions mainly as a symbol, she is allowed to become a flesh
and blood person at the end. She is a combination of her mother's passion and
intuitive understanding and her father's keen mental acuity. Hawthorne has
created a symbol of great wealth layers. (VAN KIRK, 2000, p. 89)
82
O que ocorre em A Letra Escarlate é o fato de que, de maneira geral, pouca
ação no decorrer da narrativa. O real volume da obra é habitado por um narrador que
constrói as personagens de uma forma repleta de pensamentos, sentimentos e co-
relações, além de interromper o fluxo literário natural da narrativa, uma vez que
constantemente suspende a narração dos fatos para fazer especulações acerca dos
motivos pelos quais as personagens agem dessa ou daquela maneira, oferecendo seu
ponto de vista e sugerindo outras alternativas possíveis.
Phelps (1926, apud HAWTHORNE, 2006) retoma a idéia de que
substancialmente, os princípios sobre os quais a obra foi criada são os puritanos e,
justamente por isso, a noção de culpa em face dos preceitos pregados pela sociedade
puritana é que fornecem o tom trágico ao romance, ligando as personagens principais
como que em um círculo vicioso, sendo que a atitude isolada de cada um deles atinge
aos outros, de forma inevitável. Ironicamente, o crítico diz que se Jonathan Edwards,
renomado pastor puritano, a quem se deve o movimento chamado O Grande
Despertar, também notável pela sua habilidade com a linguagem, nem ele mesmo teria
composto a obra com tamanha atmosfera. Em seu estudo, cita George Woodberry, poeta
do século XIX,
É um romance cruel. Os personagens são singularmente isentos de piedade
por si mesmos e aceitam os seus destinos como legítimos. o se perdoam
nem dão amostras de se perdoar mutuamente. O próprio perdão de Deus é
82 Enquanto Pearl funciona principalmente como um símbolo, lhe é permitido tornar-se uma pessoa de
carne e osso no final. Ela é uma combinação da compreensão intuitiva e da paixão de sua mãe e da
penetrante acuidade mental de seu pai. Hawthorne criou um símbolo rico em camadas de significação.
(VAN KIRK, 2000, p. 89, tradução nossa)
deixado numa penumbra de futuro. Um livro de que a luz e o amor estão
ausentes pode nos conduzir, pela sinceridade, ao que é negro na vida. Mas,
num sentido mais elevado, é um livro falho. (in: HAWTHORNE, 2006, p. 14,
edição em Língua Portuguesa)
O crítico, Phelps, discorda de Woodberry, dizendo que houve um erro em sua
focalização na obra para explicar, usa a caracterização de Chillingworth como
exemplo de como Hawthorne usa toda sua habilidade para expressar a ideia de
negatividade, como que transformando o pesquisador em um demônio. Acrescenta,
além disso, que A luz e o amor não estão ausentes deste livro: sobre o cadafalso paira
uma aura celestial. (ibid., p. 15, edição em Língua Portuguesa)
Ainda assim, o que fica mais claro é o fato de que em toda a sua obra,
Hawthorne relata o contraste da perda do que se entende por respeito coletivo e pelo
respeito próprio, representados não somente pelas personagens protagonistas, mas por
toda a comunidade que apedreja Hester, mas glorifica Dimmesdale, que ignora as reais
intenções de Chillingworth e vê em Pearl apenas a marca de um pecado não revelado.
2.3
EU, TITUBA, FEITICEIRA... NEGRA DE SALÉM, DE MARYSE
CONDÉ
Et, cependant lenterprise coloniale cruelle et destructrice en son príncipe
nous offre, bien malgré elle, um fruit merveilleux qui illustre le caractère
indomptable de la créativité humaine. Cette langue demprunt, cette langue
imposée fut repensée, réterprétée, remodelée par les peuples colonisés en
fonction de leur génie spécifique. (Maryse Condé)83
É evidente a retomada da temática abordada por Miller em Eu, Tituba,
Feiticeira... Negra de Salém, romance publicado em 1986 pela antilhana Maryse Condé,
que relê a trama de As bruxas de Salém em outra chave. Sua narrativa, escrita sob a
forma de romance, traz a personagem Tituba, de Miller, e sua participação no episódio
de Salém. Entretanto, Condé vai muito, além disso, uma vez que propõe sua narrativa
subvertendo não somente a questão histórica quanto à ordem do texto de Miller,
apresentando todos os eventos sob o ponto de vista da escrava, desde antes de sua
chegada a Salém, até períodos posteriores ao episódio.
Ao tomar tal iniciativa, Condé torna possível explorar toda uma gama de
questões filosóficas, culturais e sociais, dentre elas: as questões de gênero, a
maternidade, o feminismo, as relações entre homem e mulher, marido e esposa, os
contrastes entre as vidas de brancos e negros, senhores e escravos e, de alguma forma,
indica as similaridades entre as agruras sofridas por negros e judeus, entre outros. Trata-
se, na verdade, de uma obra de ficção e, em termos efetivamente históricos, pouco se
conhece sobre a vida da escrava Tituba, assim como há pouquíssimas informações
acerca de sua participação no episódio histórico de Salém nada além do fato de ter
vindo de Barbados e confessar ser uma bruxa.
O romance de Condé é iniciado de forma impactante, como que para cativar o
leitor, buscando aproximá-lo da narradora e de seus sentimentos e, já de início, dando
voz ao excluído, através da menção à sua mãe, Abena, e relatando a forma pela qual a
protagonista do romance foi concebida: Abena, ma mère, un marin anglais la viola sur
le pont du Christ the King, un jour de 16**, alors que le navire voile vers la Barbade.
83 E, todavia o empreendimento colonial, apesar de cruel e destruidor em seu princípio, nos oferece,
involuntáriamente, um fruto maravilhoso que ilustra o caráter incontrolável da criatividade humana. Esta
língua emprestada, esta língua imposta foi repensada, remodelada pelos povos colonizados em função de
seu próprio etos. (tradução Profa. Ms. Raquel Botelho, UPM) (extraído do prefácio escrito por Maryse
Condé ao leitor de Diversité:la nouvelle francophone à travers le monde. (In: ANDERSON, s/d)
C'est de cette agressionj que je suis née. De cet acte de hainer et de agression que je suis
née. De cet acte de haine et de mépris. (CONDÉ, 2007, p. 13)
84
Condé promove, então, um diálogo entre a Tituba de Miller e a uma nova
Tituba, que relata sua história desde antes mesmo do próprio nascimento, como se pôde
observar na citação anterior, até sua chegada à América, passando pelo episódio de
Salem, sua condenação por ter confessado conjurar com o demônio e ter escrito em seu
livro e, posteriormente, cria uma nova realidade, obviamente ficcional, para a escrava
após a sua prisão. Em cada um desses momentos, é possível perceber, através da
narrativa, as diferenças entre a Tituba de Miller, escrava sem voz, calada pela
sociedade, que se aproveita do momento da confissão para dar voz às suas vontades,
pessoais e sociais, e a Tituba de Condé, ainda escrava, mesmo que por opção, mas com
personalidade marcante, questionadora e conhecedora de seu papel social e da realidade
em que habita.
Há que se observar que o romance de Maryse Condé apresenta, como já
mencionado, diálogos com a peça de Arthur Miller e, como será apresentado
posteriormente, também uma retomada do romance de Nathaniel Hawthorne.
Entretanto, não se pode dizer que todo o teor seu romance é constituído de releituras,
pois a autora apresenta, em sua narrativa, um plano de ação bastante interessante: o
romance é dividido em duas partes e, por fim, recebe um epílogo. Na primeira parte,
ficcional, a narradora protagonista apresenta as circunstâncias de seu nascimento e os
fatos que a levaram a ir para a América; na segunda parte, quase toda dialógica, surgem
os relatos acerca do episódio de Salém e sua condenação por feitiçaria, bem como sua
prisão e nesse espaço, um novo diálogo, mas agora com a obra de Hawthorne, através
de sua protagonista Hester Prynne. Os fatos que ocorrem posteriormente à libertação de
Tituba voltam à parte ficional da obra, como que se os diálogos estabelecidos pela
autora representassem uma moldura dentro de outra, a da história da protagonista
contada por ela mesma, como se ela tivesse que justificar os rumos que sua existência
tomaram até o seu retorno, como espírito, ao final da obra.
O que, de fato, ocorre com o romance da escritora antilhana é uma espécie de
retomada transgressora do cânone, uma vez que a evidente releitura de As bruxas de
Salém (1953), de Arthur Miller e a parcial releitura de Nathaniel Hawthorne e seu
84 Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês na ponte do Christ the King, num dia de
16**, quando o navio velejava rumo a Barbados. Foi dessa agressão que nasci. Desse ato de ódio e
desprezo. (CONDÉ, 1997, p. 11)
romance A Letra Escarlate (1850), mas ainda mais importante que a retomada de obras
já consideradas canônicas é a forma como tal trabalho é apresentado pela autora. A
escritora narra, sob o ponto de vista do pós-colonizado, no âmbito da pós-modernidade,
construindo um relato de metaficção historiográfica, conforme Hutcheon (1991), e
apresenta, neste romance, uma forma de reescrita transgressora não somente das obras
dos autores mencionados, mas também uma releitura marginal da História, mantendo,
internamente, o diálogo com as obras consideradas hipotextos. O resultado dessa
retomada é como o de uma reconstrução de alguns componentes da História e das obras
com que dialoga, ao dotar a protagonista de características que nunca antes lhe haviam
sido atribuídas, além de, primordialmente, escrever sob seu ponto de vista, o do
colonizado, e não o do colonizador.
O enredo é simples, mas a simplicidade não denota aqui, um caráter de
negatividade: do ponto de vista narrativo, o romance trata do papel de Tituba nos
julgamentos ocorridos em Salem. Entretanto, sabe-se, ao proceder ao exercício de
leitura, que a narrativa vai muito além disso. Ao ser apresentado, em primeira pessoa, o
discurso da personagem (e narradora) Tituba, deixa entrever diversos problemas que são
paulatinamente apresentados ao leitor, de forma que conforme a leitura do romance
ganha espaço progride, são descortinadas informações acerca do comportamento da
personagem protagonista. Nesse discurso é possível perceber que a personagem es
inserida em uma problemática da colonização e como ela reflete tal condição.
Na apresentação do romance, sabe-se que Tituba nasceu como fruto de um ato
de violência, além, obviamente, de ficar claramente estabelecido que a narração ocorre
em primeira pessoa. A personagem faz, na verdade, uma espécie de retrospectiva de sua
vida nos doze capítulos que constituem a primeira parte do romance, o que informa ao
leitor sobre os acontecimentos na trajetória da personagem Tituba desde seu nascimento
até o momento em que o episódio de Salém é retomado, ou seja, o romance apresenta,
inicialmente, um relato fictício acerca das origens da personagem protagonista e,
posteriormente, retoma outras duas obras, inserindo outras personagens à narrativa pré-
existente, como se elas fizessem parte da história de Tituba e não o contrário, como
ocorre em Miller, quando Tituba é personagem de segundo plano e A Letra Escarlate,
que apesar de abordar as mesmas temáticas em linhas gerais, não apresenta a
personagem Tituba em seu enredo.
Percebe-se, então, nesta primeira parte da narrativa, a construção de uma Tituba
que, aos poucos, é apresentada ao leitor: das condições de sua concepção e seu
nascimento, da espécie de adoção de sua mãe e dela própria, ainda bebê pelo escravo
Yao, que as toma sob sua responsabilidade e revela uma forma de amor incondicional
pelas duas e pelos temores de Abena com relação à criança que tinha nos braços:
(...) Ma mère pleura que je ne sois pas un garçon. Il lui semblait que le sort
des femmes était encore plus douloureux que celui des hommes. Pour
s'affranchir de leur condition, ne devaient-elle pas passer par les volontés de
ceux-là mêmes qui les tenaient em servitude et coucher dans leurs lits? Yao
au contraire fut content. (...) C'est lui qui me donna mon nom: Tituba. Ti-Tu-
Ba.
Ce n'est pas un pr
énom ashanti. Sans doutre, Yao em l'inventant, voulait-il
prouver que j'étais fille de sa volonté et de son imagination. Fille de son
amour. (CONDÉ, 2007, p. 17)
85
A descrição da infância de Tituba é marcada pela aparente ausência do amor
de sua mãe e, por outro lado, pelo excesso de zelo de Yao pelas duas: a narradora diz
que os primeiros anos de sua vida não foram marcados por nenhuma história, mas
que foi neste período a descoberta de um universo triste e, ao mesmo tempo,
esplêndido à sua volta. (cf. CONDÉ, 2007, p. 18)
86
Yao, o escravo que era a figura
paterna, incutia em Tituba a ideia de liberdade: Un jour, nous serons libres et nous
volerons de toutes nos ailes vers notre pays d'origine. (loc.cit.)
87
, mas ao narrar sua
história, a personagem sabia exatamente qual era a realidade daquele momento de
sua vida:
En vérité, Yao avait deux enfants, ma mère et moi. Car, pour ma mère, il était
bien plus qu'un amant, un père, un sauveur, un refuge! Quand découvris-je
que ma mère en m'aimait pas?
Peut-
être quand j'atteignis cinq ou six ans. J'avais beau être mal sortie,
c'est-à-dire le teint à peine rougeâtre et les cheveux carrément crépus, je en
cessais pas de lui remettre en l'esprit le Blanc qui l'avait possédée sur le pont
du Christ the King au milieu d'un cercle de marins, voyeurs obscènes. Je lui
rappelais à tout instant sa doleur et son humiliation. Aussi quand je me
blottissais passionnément contre elle comme aiment à le faire les enfants, elle
me repouissait inévitablement. Quand je nouais les bras autour de sonj cou,
elle se hâtait de se dégager. Elle n'obéissait qu'aux commandements de Yao:
85 (...) Minha mãe chorou por eu o ser menino Achava que a sorte das mulheres era ainda mais
dolorosa que a dos homens. Para se libertarem de sua condição, não tinham elas que passar pelas vontades
daqueles mesmos, que as mantinham na servidão e dormir em suas camas? Yao, ao contrário, ficou
contente. (...) Foi ele quem me deu meu nome: Tituba. Ti-Tu-Ba.
Não é um nome ashanti. Sem dúvida, ao inventá-lo, Yao quis provar que eu era filha de sua vontade e de
sua imaginação. Filha de seu amor. (CONDÉ, 1997, pp. 14-15)
86 (cf. p. 15)
87 Um dia, seremos livres e voaremos com todas as asas para o nosso pa
ís de origem. (loc. cit.)
- Prends-la sur tes genoux. Embrasse-la. Caresse-la...
Pourtant je en souffrais pas de ce manque d'affection, car Yao m'aimait pour
deux. (CONDÉ, loc. cit.)
88
Parece relevante ressaltar que essa busca pela felicidade, que pode ser lida
como liberdade, é uma constante na trajetória de Tituba, como se toda sua vida fosse
composta de pequenas jornadas em busca desse fim tais jornadas têm em comum
certo fatalismo, característica combatida pela personagem até o final de seus dias. Na
verdade, a jornada da protagonista é iniciada a partir do momento em que ela inicia
um questionamento acerca de sua existência do conhecimento de si mesma e da
consciência que é formada através desse conhecimento, tanto na personagem quanto,
consequentemente, no leitor.
Tituba passa a enfrentar uma nova realidade a partir da morte de sua mãe e,
na descrição desse evento, a noção de morte é apresentada de forma bastante
contundente, o que revela, de algum modo, a fragilidade da personagem ante a ideia
da perda não somente de sua mãe, mas da possibilidade de obter um amor que até
aquele momento não havia realmente existido. Abena foi abordada pelo dono da
fazenda na qual trabalhava, como já acontecera no passado, antes de ser tirada do
trabalho dentro da casa daquela família e ser levada para trabalhar com os outros
escravos. Darnell, o dono da fazenda, quis aproveitar-se de Abena e ela, em defesa,
esfaqueou-o, sendo socorrida por Tituba, ainda criança, que presenciou a cena:
- Le coutelas! Donne-moi le coutelas!
J'ob
éis aussi vite que je pus, tenant la lame énorme dans mês mains frêles.
Ma mère frappa à deux reprises. Lentement, la chemise de lin blanc [du
Darnell] vira à l'écarlate.
On pendit ma m
ère.
Je vis son corps tournoyer aux branches basses d'un fromager.
88 Yao, na verdade, tinha duas crianças: minha mãe e eu. Pois, para minha mãe, ele era muito mais que
um amante era pai, salvador, refúgio! Quando foi que descobri que minha mãe não me amava?
Talvez aos cinco ou seis anos. Por mais que tivesse saído mal, isto é, com a pele muito pouco
avermelhada e o cabelo totalmente crespo, nunca deixei de lhe trazer à lembrança o branco que a tinha
possuído na ponte do Christ the King, no meio de uma roda de marinheiros, obscenos observadores. Eu a
fazia recordar a todo instante sua dor e sua humilhação. E quando me enroscava nela apaixonadamente,
como as crianças gostam de fazer, me repelia, inevitavelmente. Quando punha os braços em torno de seu
pescoço, logo se desvencilhava. Só obedecia às ordens de Yao:
- Ponha-a no colo. Beije-a. Abrace-a.
Eu, ent
ão, não sofria de falta de afeição, pois Yao me amava por dois. (CONDÉ, loc. Cit.)
Elle avait commis le crime por lequel il n'est pas de pardon. Elle avait frappé
un Blanc. Elle ne l'avait pas tué cependant. Dans sa fureur maladroite, elle
n'était parvenue qu'à lui entailler l'épaule.
On pendit ma m
ère. (CONDÉ, 2007, p. 20)
89
Ainda menina, Tituba também presencia o enforcamento de sua mãe e, não
bastasse essa perda, a presença de Yao também lhe é destituída, uma vez que, para
puni-lo do crime de sua companheira, resolveram vendê-lo a outro fazendeiro, mas
Yao n'atteignit jamais cette destination. Em route, il parvint à se donner la mort em
avalant sa langue. (id., p. 21)
90
Darnell, então, expulsa Tituba de sua fazenda - a
menina mal tinha sete anos e ela é acolhida por uma velha senhora, considerada
louca, (...) car elle avait vu mourir suppliciés son compagnon et ses deuz fils,
accusés d'avoir fomenté une révolte. (id., p. 21)
91
Essa senhora é descrita como uma pessoa que (...) elle avait à peine les pieds
sur notre terre (loc. cit.)
92
, pois dizia viver em companhia de seus mortos, os seus
invisíveis. Era ela, também, uma escrava, cujo nome era Man Yaya e a comunidade
temia sua existência por conta do poder que exercia. Ela acolheu a pequena Tituba e,
ao banhar-lhe, prevê seu futuro, dizendo-lhe que ela, Tituba, ainda sofreria muito na
vida, mas que mesmo com todo esse sofrimento, sobreviveria e é em Man Yaya que
Tituba encontra a figura da mãe da qual fora privada, inicialmente por sua própria
mãe, traumatizada, e depois pelo assassinato de Abena e o suicídio de Yao. Man
Yaya, a nova figura materna, ensina-lhe toda sua sabedoria:
Man Yaya m'apprit les plantes.
Celles qui donnent le sommeil. Celles qui gu
érissent palies et ulcères.
Celles qui font avouer les voleurs.
Celles qui calment les
épileptiques et les plongent dans un bienheureux repos.
Celles qui mettent sur les lèvres des furieux, des désespérés et des suicidaires
des paroles d'espoir.
Man Yaya m'apprit
à écouter le vent quand il se ve et mesure ses forces au-
dessus des cases qu'il se prépare à boyer.
Man Yaya m'apprit a la mer. Les montagnes et les mornes.
89 - O facão, me dá o facão!
Obedeci o mais depressa que pude, segurando a l
âmina enorme nas minhas mãos frágeis. Minha mãe deu
dois golpes. Lentamente, a camisa de linho branco [de Darnell] ficou escarlate.
Enforcaram minha mãe.
Vi seu corpo girar nos ramos de uma suma
úma.
Ela tinha cometido o crime para o qual n
ão perdão. Tinha atacado um branco. No entanto, não o tinha
matado. Em seu furor desajeitado, só conseguiu feri-lo no ombro.
Enforcaram minha mãe. (CONDÉ, 1997, p. 17)
90 Yao nunca chegou ao destino. No caminho, conseguiu suicidar-se, engolindo a l
íngua. (id., p. 17)
91 (...) pois havia visto morrer sob tortura o companheiro e os dois filhos, acusados de fomentar uma
revolta. (id., p. 18)
92 (...) mal tinha os p
és na nossa terra. (loc. cit.)
Elle m'apprit que tout viv, tout a une âme, un souffle. Que tout doid être
respecté. Que l'homme n'est pas un maître parcourant à cheval son royaume.
(CONDÉ, 2007, p. 22)
93
Ainda enquanto estava em seu aprendizado com Man Yaya, Tituba teve, pela
primeira vez, a visão de sua mãe e de Yao - eram os seus mortos, os seus invisíveis
que conversavam com ela e, dali em diante, a cada 'reencontro' com seus invisíveis
há a sensação, por parte do leitor, de que mais do que protetores de Tituba, esses
seres ou essas visões constituem, de alguma forma, a sua subconsciência e a força de
que precisa para seguir em frente em suas jornadas, como no coro do teatro grego,
pois é a partir dessa visão que Man Yaya lhe inicia em um conhecimento
considerado superior, que a ajudou a entender a presença dos mortos entre os vivos e,
através deles, compreender melhor o que a realidade e o destino lhe reservam e ela
descreve assim tal aprendizado:
Les morts ne meurent que s'ils meurent dans nos coeurs. Ils vivent si nous les
chérissons, si nous honorons leur mémoire, si nous posons sur leurs tombes
les mets qui de leur vivant ont eu leurs préférences, si à intervalles réguliers
nous nous recueillons pour communier dans leur souvenir. Ils sont là, partout
autour de nous, avides d'attention, avides d'affection. Quelques mots suffisent
à les rameuter, pressant leurs corps invisibles contre les nôtres, impatients de
se rendre utiles. (ibid., p. 23)
94
Man Yaya ensinou a Tituba não somente a conviver com os seus mortos, como
também lhe ensinou as rezas apropriadas para invocá-los, além de iniciá-la na
sabedoria das ervas e líquidos corretos que, quando extraídos da natureza, lhe
ajudariam a fazer da vida um momento melhor foram momentos de pura troca
entre a menina aprendiz e a senhora que via naquela menina uma mulher forte e
guerreira, a quem queria como a uma filha. Entretanto, Man Yaya também deixa
93 Man Yaya me ensinou as plantas.
As que d
ão sono. As que curam feridas e úlceras.
As que espantam ladr
ão.
As que acalmam os epil
épticos e os mergulham num repouso feliz. As que põem nos lábios dos furiosos,
dos desesperados e dos suicidas, palavras de esperança.
Man Yaya me ensinou a escutar o vento, quando ele se levanta e mede for
ças por cima das cabanas que se
prepara para esmagar.
Man Yaya me ensinou o mar. As montanhas e os montes.
Ensinou-me que tudo vive, tudo tem uma alma, um sopro. Que tudo deve ser respeitado. Que o homem
não é um senhor que percorre a cavalo o seu domínio. (CONDÉ, 1997, p. 18)
94 Os mortos só morrem quando morrem nos nossos corações. Vivem se nós os amamos, se honramos a
memória deles, se colocamos nos seus mulos as coisas que foram as suas preferidas quando estavam
vivos, se a intervalos regulares nos recolhemos para comungar com a lembrança deles. Eles estão aí, em
toda parte à nossa volta, ávidos de atenção, ávidos de afeição. Algumas palavras bastam para os invocar,
então pressionam seus corpos invisíveis contra os nossos, impacientes por tornarem-se úteis. (ibid., p. 18)
Tituba: Peu de jours après l'anniversaire de mês quatorze ans, son corps subit la loi
de l'espèce. Je ne pleurai pas em la mettant em terre. Je savais que je n'étais pas seule
et que trois ombres se relayient autour de moi pour veiller. (CONDÉ, 2007, pp. 23-
24)
95
Mesmo só, Tituba continuou a viver na mesma cabana em que vivia com Man
Yaya, mesmo depois de Darnell vender suas terras para outras pessoas o lugar em
que a protagonista morava nunca era visitado por ninguém, como se ali fosse uma
espécie de refúgio, uma realidade dentro de outra, na qual Tituba estaria sempre a
salvo. Ela reconhece essa situação quando menciona: Je m'en aperçois aujourd'hui,
ce furent les moments les plus heureux de ma vie. (loc. cit.)
96
, para, logo em
seguida, já indicar o prenúncio de diversas mudanças em sua vida: J'étais loin des
hommes et sourtout des hommes blancs. J'étais heureuse! Hélas! Tout cela devait
changer! (id., p. 25)
97
Quando a protagonista declara tais fatos em primeira pessoa e utiliza o tempo
passado, essa modalidade de foco narrativo desperta no leitor a noção de que ela,
além de contar a história de sua vida do patamar de certa maturidade, isto é, depois
dos fatos terem acontecido, deixa suas palavras carregadas de uma mistura de
nostalgia e pesar, mas nunca de arrependimento pelos atos por ela praticados, ou
pelas situações que vivenciou, como se tudo isso efetivamente tivesse que acontecer,
como um aprendizado que faz parte de uma jornada ainda maior: a da sobrevivência.
Quando encontrava com escravos que trabalhavam nas terras próximas ao lugar
que vivia, Tituba sentia pesar pela situação em que aquelas pessoas viviam, Triste
spectacle!(loc. cit)
98
, como se ela mesma estivesse fora daquela realidade. E estava,
pois quando os outros a viam, deixavam clara a sua repulsa com relação à sua
presença e ela nem mesmo entendia por quê:
A ma vue, tout ce monde sauta prestement dans l'herbe et s'agenouilla tandis
qu'une demi-douzaine de paires d ýeux respectueuses et terrifiées se levaient
vers moi. Je restai abasourdie. Quelles légendes s'étaient tissées autour de
moi?
95 Poucos dias depois do meu aniversário de quatorze anos, seu corpo obedeceu à lei da espécie. o
chorei quando a enterrei. Sabia que não estava sozinha e que três sombras se revezavam em minha volta,
para cuidar de mim. (CONDÉ, 1997, p. 20)
96 Hoje percebo que foram esses os momentos mais felizes da minha vida. (loc. cit.)
97 Eu estava longe dos homens, sobretudo dos homens brancos. Estava feliz! Pobre de mim! Aquilo iria
mudar! (id., p. 21)
98 Triste espet
áculo (...) (loc. cit)
On semblait me caindre. Pourquoi? Fille d'une pendue, recluse au bord d'une
mare, n'aurait-on pas dû plutôt me plaindre? Je compris quón pensait surtout
à mn association avec Man Yaya et qu'on la redoutait. Pourquoi? Man Yaya
n'avait-elle pas emplyé son don à faire le bien. Sans cesse et encore le bien?
Cette terreur me paraissait une injustice. Ah! C'est par des cris de joie et de
bonne arrivée que l'on aurait m'accueillir! C'est par l'exposé de maux que
j'aurais de mon mieux tenté de guérir. J'étais faite pour panser et non pour
effrayer. (...)
Cette rencontre avec les miens fut lourde de cons
équences. C'est à partir de
ce jour-là que je me rapprochai des plantations afin de faire connaître mon
vrai visage. Il fallait l'aimer, Tituba! (CONDÉ, 2007, pp. 26-27)
99
Este trecho deixa evidente a ausência de pessoas reais na vida de Tituba, além
de uma família ou alguém com quem pudesse compartilhar sua existência. Tituba
não era má, mas era temida pela sociedade. Não era escrava, mas sempre seria vista
como uma. Não era uma mulher como qualquer outra, pois possuía dons que a
destacavam do lugar-comum do ser humano e é exatamente por isso que ela
creditava que todos precisavam conhecê-la antes de decidir ignorá-la. Assim, passou
a freqüentar mais a comunidade, a que as pessoas se acostumaram com a sua
presença e permitiram que ela os ajudasse a confortar os doentes com seus dons.
É em uma dessas incursões à comunidade que Tituba encontra John Índio e
desse encontro surge talvez uma de suas maiores e mais perigosas jornadas: a do
desconhecido terreno do amor, da paixão e do desejo. É ele quem chama a atenção de
Tituba para o seu corpo, mal cuidado, e para a possibilidade de que ela poderia ser
bonita ele se apresenta para ela e a deixa espantada por ser feliz, mesmo na
condição de escravo: Cette gaieté me sidéra. Ainsi, il y avait des êtres heureux sur
cette terre de misère... (ibid., p. 28)
100
Ele lhe conta que é escravo da Sra. Susanna
Endicott e, antes que Tituba sequer tivesse tempo de entender tantos nomes de
pessoas das quais nunca tinha ouvido falar, ou as sensações que nunca antes havia
sentido, John Índio lhe faz um convite em resposta à sua pergunta:
99 Quando me viram, todos pularam rapidamente para o mato e se ajoelharam, enquanto meia dúzia de
pares de olhos respeitosos e aterrorizados erguia-se em direção a mim. Fiquei aturdida. Que lendas teriam
tecido em torno de mim?
Pareciam me temer. Por qu
ê? Filha de uma enforcada, reclusa à beira de um pântano, não deveriam, ao
contrário, ter pena de mim? Entendi que pensavam principalmente na minha associação com Man Yaya, e
que a temiam. Por quê? Man Yaya não tinha usado o seu dom para fazer o bem sempre, sempre o bem?
Aquele terror me parecia uma injustiça. Ah! Deviam era ter me acolhido com gritos de alegria e boas
vindas! Expondo-me os males que, da melhor maneira possível, eu tentaria curar. Eu tinha sido feita para
aliviar, não para assustar. (...)
Esse reencontro com os meus teve s
érias conseqüências. Foi a partir desse dia que me aproximei das
plantações para dar a conhecer meu verdadeiro rosto. Era preciso que amassem Tituba! (CONDÉ, 1997,
pp. 21-22)
100 Aquela alegria me deixou estupefata. Ent
ão havia seres felizes nesta terra de miséria... (ibid., p. 24)
Tout cer verbiage! La tête me tournait. Comme il s'eloignait après m'avoir
adressé un signe de la main, je ne sais ce qui me prit. Je fis avec une
intonation qui m'était totalement inconnue:
- Est-ce que je te reverrai?
Il me fixa. Je me demande ce qu
íl lut sur mon visage, mas il prit un air
faraud:
- Dimanche apr
ès-midi, il y a la danse à carlisle Bay. Veux-tu y venir? J'y
serai.
J'inclinai convulsivement la t
ête. (CONDÉ, 2007, p. 29)
101
A partir desse momento, uma nova consciência se apossa da personagem, que
passa a preocupar-se com sua própria aparência e, mais do que apenas a forma
estética, o desejo por aquele homem a perturbava e, ao mesmo tempo, a deixava em
estado de êxtase. Toda a vida que tivera anteriormente parece deixar de ter sentido:
Je revins lentement vers ma case. Pour la première fois, je vis ce lieu qui m'avait
servi d'abri et il me parut sinistre. (loc. cit)
102
Não bastasse esse negação
relacionada à sua antiga realidade em vista do mundo novo que se descortina diante
de si, Tituba compreende que precisa ser amada e deixa claro, em seu discurso, a
aflição em que se encontra ao sentir o desejo e não poder compartilhar de uma vida
com ele, caso permanecesse exatamente como sempre, só ela chama por Man Yaya
em busca de conforto e conselho:
- Man Yaya! Man Yaya!
Celle-ci m'apparut bien vite. Non pas sous sa forme mortelle de femme au
grand âge, mais sous celle qu'elle avait revêtue pour l'éternité. Parfumée, une
couronne de boutons d'oranger en guise de parure. Je dis en haletant:
- Man Yaya, je veux que cet homme m'aime.
Elle hocha la t
ête:
Les hommes n'aiment pas. Ils poss
èdent. Ils asservissent. (ibid., p. 29)
103
De fato, Tituba sabia dos riscos que correria ao se abrir para o desconhecido,
mas o desejo a cegava, mesmo que pressentisse certa aura de fatalidade, pois Sans
doute observait-elle là le début de l'accomplissement de ma vie. Ma vie, fleuve qui
101 Quanta falação! Minha cabeça rodava. Enquanto ele se afastava, depois de me ter acenado, não sei o
que me deu. Com uma entonação que me era totalmente desconhecida, perguntei:
- Vou ver você de novo?
Ele me olhou fixamente. Fico imaginando o que ter
á lido no meu rosto, mas fez um ar presunçoso:
- Domingo à tarde tem dança em Carlisle Bay. Quer vir? Estarei lá.
- Fiz que sim com a cabeça, convulsivamente. (CONDÉ, 1997, pp. 24-25)
102Voltei lentamente para a minha choupana. Vi pela primeira vez aquele lugar, que tinha me servido de
abrigo, me parecer sinistro. (ibid., p. 25)
103 - Man Yaya! Man Yaya!
Ela logo apareceu. N
ão na sua forma mortal de mulher idosa, mas na que tomou para a eternidade.
Perfumada, uma coroa de botões de laranjeira à guisa de seu adereço. Eu disse ofegante:
- Man Yaya, quero que aquele homem me ame.
Ela balan
çou a cabeça.
- Os homens n
ão amam. Eles possuem. Eles servem. (ibid., p.25)
ne peut être entièrement détourné. (ibid., p. 30)
104
Ela se questiona, mas não
encontra respostas e, mesmo sem invocar seus espíritos, Abena lheum prenúncio,
em forma de lamento, como que indicando que qualquer atitude tomada por Tituba
naquele momento constituiria não somente imprudência, mas também um certo grau
de fatalidade:
Le lendemain à mon veil, je me rendis vers la rivière Ormonde et je coupai
tant bien que mal ma tignasse. Comme les dernières mèches laineuses
tombaient dans l'eau, j'entendis un soupir. C'était ma mère. Je ne l'avais pas
appelée et je compris que l'imminence d'un danger la faisat sortir de
l'invisible. Elle gémit:
- Pourquoi les femmes ne peuvent-elles se passer des hommes? Voil
à que tu
vas être entraînée de l'autre côté de l'eau...
Je fus surprise et l'interrompis:
- De l'autre c
ôté de l'eau?
Mais elle ne s'expliqua pas davantage, r
épétant sur un ton de détresse:
- Pourquoi les femmes ne peuvet-elles se passer des hommes?
Tout cela, les r
éticences de Man yaya, les lamentations de ma mère, aurait pu
m'inciter à la prudence. Il n'en fut rien. (CONDÉ, 2007, p.31)
105
Tituba ignorou todos os avisos de seus invisíveis e foi ao encontro do
desconhecido. Ao deparar com John Índio em Carlisle, -se tomada de uma força
desconhecida: Un mystérieux serpent était entré moi. Était-ce le serpent primordial
dont Man Yaya m ávait parlé tant de fois, figure du dieu créateur de toutes les choses
à la surface de la terre? Était-ce lui qui me faisait vibrer? (ibid., p. 33)
106
Seria essa
serpente a mesma da Bíblia? O demônio, neste caso, rondaria as atitudes de Tituba
ou seria apenas o desejo pelo homem, algo inusitado para uma mulher que até então
vivera isolada do convívio social?
104 (...) sem dúvida, estava observando o início do desenrolar de minha vida. Minha vida, rio que não
pode ser inteiramente desviado. (ibid., p. 26)
105 No dia seguinte, ao acordar, fui ao rio Ormonde e cortei como podia minha cabeleira. Quando as
últimas mechas lanosas caíram na água, ouvi um suspiro. Era minha mãe. Eu o a tinha chamado e
entendi que a iminência de um perigo a fazia sair do invisível. Ela gemia:
- Por que as mulheres não podem ficar sem homem? Olha que você vai ser levada para o outro lado da
água...
Fiquei surpresa e a interrompi:
- Para o outro lado da
água?
Mas ela n
ão se explicou logo, repetindo em tom de aflição:
- Por que as mulheres n
ão podem ficar sem homem?
Tudo isso
as reticências de Man Yaya, as lamentações de minha mãe poderia ter me incitado à
prudência. Que nada. (CONDÉ, 1997, pp. 26-27)
106 (...) Uma serpente misteriosa tinha entrado em mim. Seria a serpente primordial, de que Man Yaya
tantas vezes tinha me falado, a figura do deus criador de todas as coisas na superfície da terra? Seria ela
que me fazia vibrar? (ibid., p. 28)
Fato é que Tituba resolveu-se por seduzir John Índio e torná-lo seu... e, ao tentar
fazê-lo, tomando seu lenço e arranhando-o para obter um pouco de seu sangue,
recebe a seguinte pergunta:
- Aïe! Qu'est-ce que tu fais là, sorcière?
Il parlait ainsi par jeu. N
éanmois, cela m'assombrit.
Qu'est-ce qu'une sorci
ère?
Je m'apercevais que dans sa bouche, le mot
était entaché d'opprobre.
Comment cela? Comment? La faculté de communiquer avec les invisibles, de
garder un lien constant avec les disparus, de soigner, de guérir n'est-elle pas
une grâce supérieure de nature à inspirer respect, admiration et gratitude? Em
conséquence, la sorcière, si on veut nommer ainsi celle qui possède cette
grâce, ne devrait-elle pas être choyée et vérée au lieu d'être crainte?
(CONDÉ, 2007, pp. 33-34)
107
Todo esse questionamento por parte de Tituba revela ao leitor uma temática de
imensa relevância em todo o decorrer do romance de Condé a temática da
feitiçaria, igualmente abordada nos romances hipotextos retomados pela escritora, de
maneira mais explícita, no caso da peça de Miller e, no romance de Hawthorne, um
pouco mais implicitamente. De qualquer forma, são revelados, a partir desse
momento no romance de Condé, os questionamentos acerca do papel da feitiçaria e
da figura da feiticeira, da mesma forma que a personagem Tituba coloca em dúvida o
que ou quem realmente seria uma feiticeira, se essa figura deveria ser entendida
como maléfica à sociedade ou como um ser dotado de graças que serviriam para
ajudar as pessoas a viverem melhor. Por que tais figuras deveriam ser punidas ou mal
vistas? Na verdade, trata-se aqui, não apenas de se apontar tais questionamentos, mas
de chamar a atenção para a pluralidade de discursos implícitos na temática da obra de
Condé, segundo as teorias de Bakhtin e de Hutcheon, pensando na figura da feiticeira
como um ser híbrido, uma figura contestadora e contrastante em suas imagens real e
simbólica.
Na tentativa de alertá-la, John Índio deixa claro para Tituba que todos ali a
julgavam uma feiticeira, mas que gostaria de ficar com ela, desde que não fosse em
107 - Ai! O que está fazendo, feiticeira?
Falava assim de brincadeira. De todo modo, fiquei espantada.
O que
é uma feiticeira?
Percebi que, em sua boca, a palavra estava manchada de desonra. Como isso? A faculdade de se
comunicar com os invisíveis, manter uma ligação constante com os desaparecidos, de cuidar, de curar,
não é uma graça superior da natureza, que inspira respeito, admiração e gratidão? Em conseqüência, a
feiticeira, se se quer dar esse nome àquela que possui essa graça, o deveria ser tratada com desvelos e
reverenciada em lugar de temida? (CONDÉ, 1997, pp. 28-29)
sua choupana, pois ele não era alguém que devia se esconder no meio do mato e,
então lhe faz o convite:
- Je ne suis pas un nègre des bois, un gre marron! Jamais je ne viendrai
vivre dans cette caloge à lapins que tu as -haut au milieu des bois. Si tu
veux vivre avec moi, tu dois venir chez moi à Bridgetown!
- Chez toi?
J'eus un rire de d
érision, ajoutant:
- Un esclave n'a pas de
chez moi! Est- ce que tu n'appartiens pas à Susanna
Endicott?
Il parut m
écontent:
- Oui, j'appartiens
à maîtresse Susanna Endicott, mais la maîtresse est
bonne...
Je l'interrompis:
- Comment une ma
îtresse peut-elle être bonne? L'esclave peut-il chérir son
maître? (CONDÉ, 2007, p. 34)
108
Claras aqui estão, também, as menções às dicotomias senhor/escravo,
colonizador/ colonizado, uma vez que Tituba não consegue entender como alguém
pode ser escravo e permanecer satisfeito com sua situação, sem liberdade de fazer o
que bem entendesse e onde quisesse mas o que fala mais forte aqui, mesmo
sabendo que sua vida tomaria um rumo totalmente diferente do que jamais tivera, o
que realmente importa para a protagonista é aproveitar a chance que o destino lhe
apresentou: ser amada e amar alguém: C'était bien à le malheur. Je voulais cet
homme comme je n'avais jamais rien voulou avant lui. Je désirais son amour comme
je n'avais jamais désiré aucun amour. Même pas celui de ma mère. (...) Qu'avait-il
donc, John Indien, pour que je sois malade de lui? (ibid., pp. 35-36)
109
Tituba, a princípio, se nega a aceitar deixar a sua vida para assumir uma nova
realidade, pois teme retornar ao 'mundo dos brancos' clama pela ajuda de Man
Yaya para tentar resolver qual atitude tomar:
108 Não sou negro do mato, negro fugido! Nunca irei viver naquela toca de coelho que você tem em
cima, no meio do mato. Se quiser viver comigo, tem de vir para minha casa em Bridgetown!
- Sua casa?
Dei risada de esc
árnio, acrescentando:
- Escravo n
ão tem 'casa'! Você não pertence a Susanna Endicott?
Ele pareceu não gostar.
- Sim, perten
ço à dona Susanna Endicott, mas é uma boa dona...
Interrompi:
- Como
é que uma dona pode ser boa? O escravo pode gostar do senhor? (CONDÉ, 1997, p. 29)
109 Essa era a desgraça. Eu queria aquele homem como jamais desejei amor algum. Nem o da minha
mãe. (...) O que é que ele tinha, John Índio, para eu ficar doente por ele? (ibid., p. 30)
A peine arrivée chez moi, j'appelai Man Yaya qui ne se hâta pas de m'écouter
et apparut, le visage refrogné:
- Qu'est-ce que tu veux encore? Est-ce que tu n'es pas combl
ée? Voilà qu'il te
propose de te mettre avec lui...
Je fis tr
ès bas:
-Tu sais bien que je ne veux pas retourner dans le monde des Blancs.
- Il faudra bien que tu em passes par là.
- Pourquoi?
Je hurlai presque:
- Pourquoi? Ne peux-tu me l'amener ici? Est-ce que cela veut dire que tes
poicoirs sont limités?
Elle ne se f
âcha pas et me regarda avec une commisération très tendre:
- Je te l'ai toujours dit. L'univers a ses règles que je ne peux bouleverser
entirèment. Sinon, je détruirais ce monde et em rebâtirais un autre les
nôtres seraient libres. Libres d'assujettir à leur tour les Blancs. Hélas! Je ne le
peux pas!
(...)
Ma m
ère avait été violée par un Blanc. Elle avait é pendue à cause d'un
Blanc. J'avais vu sa langue pointer hors de sa bouche, pénis turgescent et
violacé. Mon père adotif s'était suicià cause d'un Blanc. Em dépit de tout
cela, j'envisageais de recommencer à vivre parmi eux, dans leur sein, sous
leur coupe. Tout cela par goût effréd'un mortel. Est-ce que ce n'était pas
folie? Folie et trahison? (CONDÉ, 2007, pp. 36-37)
110
Neste trecho é possível perceber que a personagem esdiante de um conflito
entre a busca de sua felicidade e o abandono da vida segura que levara até ali para
alcançar a mesma felicidade que almejava. Ela se questiona e, ao mesmo tempo,
coloca o leitor em posição de questionamento, como se dialogasse com ele e pudesse
ouvir sua opinião, mesmo que ambos, leitor e personagem, soubessem qual seria a
sua escolha: a volta ao 'mundo dos brancos'.
110 Mal cheguei em casa, chamei Man Yaya, que demorou para me escutar, aparecendo de cara
amarrada:
- O que
é que você quer mais? Não está satisfeita? Ele propõe que você fique com ele...
Eu disse bem baixo:
- Voc
ê bem sabe que eu não quero voltar para o mundo dos brancos.
- Vai ser necessário passar por lá.
- Por qu
ê?
Eu quase gritava:
- Por qu
ê? Você não pode trazê-lo aqui para mim? Isso quer dizer que seus poderes são limitados?
Ela não se zangou. Olhou-me com terna comiseração:
- Sempre lhe disse que o universo tem suas regras, que n
ão posso mudar inteiramente. Se pudesse,
destruiria este mundo e construiria outro, onde os nossos seriam livres. Livres, para por sua vez,
escravizar os brancos. Ai de mim, não posso!
(...)
Minha m
ãe tinha sido violentada por um branco. (...) Meu pai adotivo tinha se suicidado por causa de um
branco. Apesar de tudo isso, eu vislumbrava retomar a vida entre eles. Tudo isso em função do gosto
desenfreado por um mortal. Não era loucura aquilo? Loucura e traição? (CONDÉ, 1997, pp. 31-32)
Seu retorno ao convívio social trouxe a Tituba a certeza de que tudo o que
sempre pensara na vida a respeito da escravidão estava correto: era uma prática
abusiva e desumana. Quando John Índio a apresentou a Susanna Endicott, mesmo
que não fosse, legalmente, escrava dessa senhora, Tituba recebe as seguintes ordens:
- Tu nettoieras la maison. Une fois la semaine, tu récureras le plancher. Tu
laveras le linge et tu le repasseras. Mais tu ne t'occuperas pas de la nourriture.
Je ferai ma cuisine moi-même, car je ne supporte pas que vous autres nègres
touchiez à mês aliments avec vos mains dont l'intérieur est décolouré et
cireux.
Je regardai m
ês paumes. Mês paumes, grises et roses comme un coquillage
marin.
Tandis que John Indien saluiat ces phrases d'un grand
éclat de rire, je
demeurais abasourdie. Perdonne, jamais, ne m'avait parlé, himiliée ainsi!
(ibid., pp. 39-40)
111
A comunidade passou a questionar Susanna Endicott acerca da presença de
Tituba em sua casa, como se a própria Tituba não estivesse ali, dizendo à senhora que
ela dava muita liberdade aos seus negros e que devia providenciar o casamento dos dois.
A protagonista sente a invasão não somente à sua privacidade, mas à sua existência
entre aquelas pessoas: J'étais un non-être. Un invisible. Plus invisible que les
invisibles, cat eux au moins détiennent un pouvoir que chacun redoute. (...) C'était
atroce. (...) Tituba devenait laide, grossière, inférieure parce qu'elles em avaient décidé
ainsi. (CONDÉ, 2007, p. 44)
112
A única certeza de Tituba era o fato de que conviver
com a Sra. Endicott não lhe fazia bem, certamente pelo fato de que ela sabia quem
Tituba era: uma feiticeira, obviamente, do ponto vista negativo do termo.
Na tentativa de extinguir esse mal, Tituba invoca Man Yaya para ajudá-la a se
livrar de Susanna Endicott, pois teme por seu futuro com John Índio e por sua vida
naquela comunidade que a via como feiticeira. Man Yaya lhe diz que tudo o que
poderiam ensinar a Tituba já havia sido feito e que qualquer atitude contra a mulher
igualaria Tituba aos brancos, além do fato de que a tentativa de prender John Índio a ela
111 - Você vai limpar a casa. Uma vez por semana, vai limpar o assoalho. Vai lavar e passar a roupa.
Mas não vai cuidar da cozinha. Eu mesma cozinho para mim, pois não suporto que vocês, negras, toquem
na minha comida com essas mãos de vocês, que têm a parte de dentro descolorida e sebosa.
Olhei as palmas da minha mão. Minhas palmas, cinzentas e rosadas, como uma concha marinha.
Enquanto John Índio saudava essas frases com uma gargalhada, eu permanecia aturdida. Ninguém,
jamais, tinha falado comigo daquela maneira, me humilhado, assim! (ibid., p. 34)
112 Eu era um não-ser. Um invisível. Mais invisível que os invisíveis, pois eles, pelo menos, detêm um
poder em que todos acreditam. (...) Aquilo era atroz. (...) Tituba se tornava feia, rude, inferior porque elas
tinham decidido assim. (CONDÉ,1997, p. 38)
era em vão, pois ela o perderia de qualquer jeito (cf. p.51)
113
e que seu destino já estava
traçado, além da água que viria a cruzar: Même si elle [Susanna Endicott] meurt, ton
destin s'accomplira. Et tu auras vicié ton coeur. Tu seras devenue pareille à eux, qui ne
savent que tuer, détruire. Frappe-la seulement d'une maladie incommode, humiliante!
(ibid. p. 53)
114
Tituba começa aa questionar se John Índio realmente a amava, se valeria à
pena continuar insistindo nesse sofrimento nesse ínterim, Susanna Endicott cai
enferma e Tituba começa a sentir que seu destino está prestes a tomar outros rumos: Je
le sentais, de terribles dangers me menaçaient, mais j'étais incapable de les nommer, et
je le savais, ni Abena ma mère ni Man yaya ne pourraient intervenir pour m'éclairer.
(ibid., p. 59)
115
O futuro realmente reservava surpresas para a protagonista e sua vida realmente
mudaria a partir de agora: Susanna Endicott vendeu seus escravos, e Tituba entre eles, a
um pastor chamado Samuel Parris que, junto a sua família, estava prestes a embarcar
para a América. Assim, Tituba vai para a América para não ser separada do marido,
abdicando de sua própria liberdade, uma vez que não tinha donos, para poder ficar ao
lado do homem que amava. Pressentia os perigos que a cercavam, mas mesmo assim,
insistiu:
Il y eut un cyclone cette nuit-là.
(...)
John Indien b
égaya:
- Un noveau ma
ître, maîtresse!
- Oui, c'est un homme de Dieu qui aura souci de vos
âmes. C'est un ministre
du nom de Samuel Parris. Il avait tenté de faire du commerce ici, mais ses
affaires n'ont pas marché. Aussi, il s'en va à Boston.
- A Boston, ma
îtresse?
- Oui, c'est dans les colonies d'Am
érique. Préparez-vous à le suivre.
John Indien était effaré. Il appartenait à Susanna Endicott depuis son enfance.
(...) Il était convaincu qu'un jour l'autre, elle parlerait de son
affranchissement. Mais voilà qu'au lieu de cela, tout de go, elle lui annonçait
qu'elle le vendait. Et à qui, Seigneur? A un inconnu qui allait traverser la mer
pour chercher fortune em Amérique... em Amérique? Qui était jamais allé em
Amérique?
113 cf. p. 43
114 Mesmo que ela morra [Susanna Endicott], seu destino vai se cumprir. E voc
ê estará com o coração
corrompido. Terá se tornado parecida com eles, que só sabem matar, destruir. Abata-a somente com uma
doença incômoda, humilhante! (ibid., p. 45)
115 Eu sentia, perigos terr
íveis me ameaçavam, mas era incapaz de nomeá-los, e sabia que nem Abena,
minha mãe, nem Man Yaya poderiam intervir para me esclarecer. (ibid., p. 50)
Je comprenais, quant à moi, l'horrible calcul de Susanna Endicott. C'était moi
et moi seule qui étais visée. C'était moi qu'elle exilait aux Amériques!
(CONDÉ, 2007, pp. 59-60)
116
Desde sua chegada ao continente americano, Tituba soube que sua vida ali nunca
seria fácil. Ela descreve a chegada ao porto com a família Parris, seu contato com a
esposa do Reverendo, sua filha e sobrinha e do carinho que nutria pela pequena Betty,
filha de Parris. Revela que a família é transferida para a aldeia de Salém, mostrando que
nem tudo parecia bem: Dès l'instant de mon entrée à Salem, je sentis que je n'y serais
jamais hereuse. Je sentis que ma vie y connaîtrait des épreuves terribles et que des
événements d'une douleur inouïe feraient blanchir tous les cheveux de ma tête!(ibid.,
pp. 94-95)
117
, o que mais uma vez comprova o fato de que a narradora-protagonista
insere o leitor em sua narrativa, comunicando-se com ele e, neste caso, antevendo
possíveis fatos que serão descritos no restante da narrativa, como se o leitor estivesse
sendo preparado pela personagem para o que está por vir.
Também a partir desse momento da narrativa é apresentado umcontraste entre
história e ficção, não somente com o desenrolar dos acontecimentos que envolvem
Tituba, mas também com a menção ao episódio ocorrido em Salém, já retomado por
Miller e relido, mais uma vez, por Condé. A Tituba do romance contraria as meninas ao
negar ser feitceira e revela, em seguida, o início dos comportamentos estranhos, tidos
como sobrenaturais, por parte do grupo de garotas com quem mantinha contado neste
caso, o real e o sobrenatural passam a ser vistos no mesmo plano e a questão da dúvida
passa a ter o mesmo valor da acusação, pelo menos quando se menciona que as garotas
poderiam estar enfeitiçadas e, neste caso, alguém seria culpado por isso.
116 Aquela noite soprou um ciclone.
(...)
John
Índio balbuciou:
- Um novo propriet
ário, senhora!
-
É. Um homem de Deus que cuidará da alma de vocês. É um ministro chamado Samuel Parris. Tentou
fazer comércio aqui, mas seus negócios não andaram bem. Então vai para Boston.
-Para Boston, senhora?
-
É, fica nas colônias da América. Preparem-se para acompanhá-lo.
John Índio estava perplexo. Pertencia a Susanna Endicott desde a infância. (...) estava convencido de que
mais dia menos dia iria falar em sua libertação. Mas eis que, em vez disso, sem mais nem menos, lhe
anunciava que o vendia. E a quem, Senhor? A um desconhecido que ia atravessar o mar para tentar a
fortuna na América... Na América? Quem é que já tinha ido à América?
Quanto a mim, entendi o terrível projeto calculado por Susanna Endicott. Eu, somente eu era visada. Era
eu que ela estava exilando nas Américas! (...) (CONDÉ, 1997, pp. 50-51)
117 Desde o instante em que entrei em Salém senti que nunca seria feliz ali. Senti que minha vida aí
conheceria provas terríveis, e que acontecimentos singularmente dolorosos embranqueceriam todos os
cabelos da minha cabeça! (ibid., p. 81)
No caso de Tituba, com sua jornada marcada pela credulidade no ser humano,
mas marcada pelo sofrimento possivelmente decorrente do erro de ter abandonado sua
vida anterior por amor a John Índio e, agora, com a consciência desse erro, mas não
exatamente com o arrependimento, a personagem, na verdade, se vê diante de uma
situação na qual depende exclusivamente de sua própria força, como é possível perceber
quando Tituba conclui que Il y avait cependant une chose que j'ignorais: la méchanceté
est un don reçu em naissant. Il ne s'acquiert pas. Ceux d'entre nous qui ne sont pas
venus au monde, armés d'ergots et de crocs, partent perdants dans tous les combats.
(CONDÉ, 2007, p. 117)
118
Ao chegar a tal conclusão, Tituba percebe que não havia nada a fazer a não ser
agir exatamente como era esperado por todos que agisse assumir o fato de que havia
conjurado com o demônio e acusar outras pessoas de terem ligações com ele, como
afirma: Je le sentais, elles n'auraient de cesse qu'elles n'entrent, elles aussi, dans la
danse!(ibid., p. 121)
119
e complementa:
Moi, je me rappelai les paroles de John Indien et je comprenais à présent leur
profonde sagesse. Naïve, qui croyait qu'il suffisait de clamer son innocence
pour la prouver! Naïve, qui ignorait que faire le bien à des méchants ou à des
faibles revient à faire le mal! Oui, j'allais me venger. J'allais dénoncer et du
haut de cette puissance qu'ils me conféraient, j'allais déchaîner la tempête,
creuser la mer de vagues aussi hautes que des murailles, déraciner les arbres,
lancer em l'air comme des fétus de paille, les poutres maîtresses des maisons
et des hangars.
Qui voulaient-ils que je nomme?
Attention! Je ne me contentarais pas de nommer les gadoue. Je frapperais
fort. Je frapperais à la tête. Et voilà que dans l'extrême dénuement je me
trouvais, le sentiment de mon pouvoir m'enivrait! Ah oui, mon John Indien
avait raison. Cette vengeance à laquelle j'avais souvent têvé, m'appartenait et
de par leur propre volonté!(ibid., pp. 147-148)
120
118 Havia, no entanto, uma coisa que eu ignorava: a maldade é um dom que se recebe ao nascer. Não se
adquire. Aqueles de nós que não vieram armados de esporões e de presas saem perdendo em todos os
combates. (CONDÉ, 1997, p. 99)
119 Eu sentia: n
ão parariam enquanto não entrassem também na dança. (ibid., p.103)
120 Eu... eu recordava as palavras de John Índio e compreendia agora sua profunda sabedoria. Ingênuo
quem acreditasse que bastava clamar sua inocência para prová-la! Ingênuo quem ignorasse que fazer o
bem aos maus ou aos fracos era o mesmo que fazer o mal! Sim, eu ia me vingar. Iria denunciar e, do alto
desse poder que me conferiam, desencadear a tempestade, escavar no mar ondas tão altas quanto
muralhas, desenraizar as árvores, lançar no ar como insignificâncias de palha as vigas mestras das casas e
galpões.
Quem eles queriam que eu denunciasse?
Aten
ção! Eu não ia me contentar com denunciar as infelizes que caminhavam comigo na lama. Eu ia
bater forte. Ia bater na cabeça. E eis que na extrema miséria em que me encontrava, o sentimento do meu
poder me embriagava! Ah, sim, o meu John Índio tinha razão. Aquela vingança, com a qual eu tinha
freqüentemente sonhado, me pertencia, e pela vontade deles próprios! (ibid., pp. 124-125)
E é com esta situação que se inicia a segunda parte do romance, com Tituba
prestes a ser presa, acusada de bruxaria e decidida a acusar quem quer que fosse, na
tentativa de salvar sua própria vida. na prisão, o leitor é levado, pela personagem a
deparar com a nova releitura efetuada por Condé, quando uma mulher, presa na cela
próxima ao lugar onde Tituba havia sido deixada, pede ao guarda que permite que
Tituba seja colocada ali com ela essa mulher é Hester Prynne, descrita pela
protagonista como uma mulher jovem e bela, com uma longa cabeleira negra, assim
como seus olhos: De me, ses yeux étaient noirs, pas gris couleur d'eau sale, pas
verts couleur de méchanceté, noirs comme l'ombre bienfaisante de la nuit.(CONDÉ,
2007, p. 150)
121
Hester e Tituba se tornam amigas e a primeira impede que Tituba a chame de
'senhora', pois acreditava serem as duas iguais e, naquelas circunstâncias, passando por
situação semelhante: presas por atos que, na verdade, não cometeram pelo menos não
da forma como a sociedade os entendia. Hester, na verdade, mostra a Tituba um mundo
de possibilidades quando a faz entender que ela não era culpada por ser feiticeira, mas
sim por representar o diferente, o perigoso e desconhecido, o negro e sua cultura. A
companheira de Tituba lhe mostra uma consciência social que a escrava jamais pensaria
ouvir de uma mulher, branca e pertencente àquela mesma sociedade puritana que lhe
julgara e condenara.
A grande diferença entre as duas, diz Hester a Tituba, é que a escrava jamais
poderia ser feminista, como ela: Tu aimes trop l'amour, Tituba! Je ne ferai jamais de
toi une féministe! (ibid., p. 160)
122
, mas concordavam no seguinte ponto: Blancs ou
Noirs, la vie sert trop bien les hommes. (ibid., p. 159)
123
Entretanto, a aproximação entre Tituba e Hester é abruptamente interrompida
quando Hester comete o suicídio em sua própria cela, deixando Tituba só no tocante ao
ato de lutar por sua liberdade e ela assim o faz, sobrevivendo ao julgamento e
permanecendo presa até que Benjamin Cohen D'Azevedo, português, judeu,
comerciante rico, a comprasse para que servisse em sua casa e eis aqui uma nova
realidade para Tituba: o início de uma nova oportunidade de vida e a repetição de mais
um estigma, pois continuaria a servir e, desta vez, estava acompanhada no fato de ser
121 Do mesmo modo, seus olhos eram negros; não cinzentos, cor de água suja, nem verdes, cor da
maldade. Negros, como a escuridão benéfica da noite (...). (CONDÉ, 1997, p. 127)
122 Você gosta demais do amor, Tituba! Eu jamais faria de você uma feminista! (ibid., p. 135)
123 Brancos ou negros, a vida é muito generosa para com os homens! (ibid., p. 134)
diferente, uma vez que Cohen D'Azevedo era igualmente excluído daquela sociedade
puritana por sua condição, sua história de vida e isso, de alguma forma, os aproximou,
uma vez que Tituba e Benjamin se compadecem um do outro e se ajudam.
O desenrolar desse relacionamento coloca Tituba em uma perspectiva nunca
dantes experimentada pela personagem: Je vécus désormais cette étrange situation
d'être à la fois maîtresse et servante. (CONDÉ, 2007, p. 197)
124
Cohen D'Azevedo
sente-se grato a Tituba por fazer parte de sua vida, mas enxerga nela, em seus olhos, um
fundo de tristeza, como que representado por uma sombra e, quando lhe pergunta a
respeito, obtém a seguinte resposta:
- Il a toujours une ombre au fond de tes yeux, Tituba. Qu'est-ce que je peux te
donner pour que tu sois heureuse ou presque?
- La libert
é!
Les mots
étaient partis sans que je puisse les retenir. Il me fixa de ses yeux
bouleversés:
- La libert
é! Mais qu'en ferais-tu?
- Je prendais place sur un de vos navires et partirais aussit
ôt pour ma
Barbade. (ibid., p. 199)
125
Tituba se sentia feliz na casa de Cohen D'Azevedo, mas era como se algo
estivesse por acontecer: par moments pourtant, l'angoisse renaissait. Je savais que le
malheur n'abandonne jamais. Je savais qu'il privilégie ceux d'une sorte et j'attendais.
J'attendais. (ibid., p. 204)
126
Em seguida, depois de uma represáolia da comunidade
contra a presença de judeus ali, com a casa de Cohen D'Azevedo sendo posta em
chamas e com a conseqüente morte de sues filhos, restaram apenas Tituba e o judeu
ele resolve se mudar e concede a Tituba o seu maior desejo: voltar a Barbados: Je t'ai
retenue une place à bord du Bless the Lord qui fait voile dans quelques jours pour
Bridgetown. Tiens, voilà une lettre à l'intention d'un coreligionnaire (...). Je lui demande
de te venir em aide si besoin est. (ibid., p. 208)
127
124 Vivi daí para diante a estranha situação de ser ao mesmo tempo senhora e escrava. (CONDÉ, 1997, p.
168)
125 - H
á sempre uma sombra no fundo dos seus olhos, Tutuba. O que posso lhe dar para ser feliz, ou
quase?
- Liberdade!
As palavras sa
íram de mim sem eu poder contê-las. Ele me encarou com os olhos agitados:
- Liberdade! Mas o que faria com ela?
- Pegaria um dos seus navios e partiria imediatamente para o meu Barbados. (ibid., p. 169)
126 Havia momentos (...) em que a angústia renascia. Eu sabia que a infelicidade nunca abandona. Eu
sabia que ela privilegia as pessoas de um certo tipo, e esperava. (ibid., p. 173)
127 Reservei um lugar para você no Bless the Lord, que sai daqui a alguns dias para Bridgetown. Tome,
eis aqui uma carta para um correligionário (...). Peço a ele que a ajude se houver necessidade. (ibid., p.
177)
A viagem de volta não foi tão fácil quanto parecia e, ainda humilhada, Tituba só
pensava nos ensinamentos de Man Yaya, que sempre repetiam que o mais importante
era sobreviver, mas ela chegou, por si mesma a uma conclusão: (...) la vie n'est que
pierre au cou des hommes et des femmes. Potion amère et brûlante!(ibid., p. 211)
128
Ainda no navio, ao ajudar a tratar de um negro doente, é reconhecida por ele como
Tituba, a filha de Abena e descobre que todos a acreditavam morta em sua terra.
Ao pisar novamente em Barbados, é acompanhada por seus espíritos que lhe
dizem que não deveria desviar mais de seu caminho, que o destino era voltar para seu
lugar de origem, mas mais numa vez, Tituba se desvia vai para Belleplaine, do outro
lado de seu país, em busca de ajudar a lutar pela liberdade dos seus e envolve-se com
Christopher, que queria que Tituba, com seus poderes, o tornasse invencível, em troca
de ele ser para ela o homem que ela precisava, mas ela, mesmo com ele, não se esquece
de John Índio:
Christopher avait pris l'habitude de passer la nuit dans ma case. Je ne sais
trop comment avait commencé cette nouvelle aventure. Un regard un peu
plus appuyé. L'embrasement du désir. L'envie de me prouver que je n'étais
pas encore défaite, jetée comme une monture qui a por de trop lourds
fardeaux? Pourtant est-il besoin de le dire? Ce commerce n'engageait que
mês sens. Tout le reste de mon être continuait d'appartenir à John Indien
auquel par un surprenant paradoxe, je pensais chaque jour davantage.
(CONDÉ, 2007, pp. 234-235)
129
Tituba agora questiona Christopher sobre o porquê de sua vontade de ser
invencível e chega à conclusão de que ele busca, na verdade, virar um herói, uma lenda,
o que, de fato, ela era, sem o menos esforço Tituba se sente abusada por Christopher e
decide:
Dans le devat-jour, j'appelai Man Yaya, Abena ma mère, qui depuis quelques
jours n'étaient pas apparues comme si elles se refusaient à assister à ma
déconfiture. Elles se firent prier pour obéir et quand delle furent auprès de
moi, remplissant la case de leur parfum de goyave et de pomme rose, elles
me fixèrent de leurs yeux pleins de reproche:
- Tes cheveux grisonnent d
èjá et tu nr peux te passer des hommes?
Je ne répondis rien. Après un moment, je me décidai à les regarder em face:
128 (...) a vida não passa de pedra nas costas de homens e mulheres. Poção amarga e ardida! (ibid., p.
179)
129 Christopher tinha se habituado a passar a noite em minha choupana. N
ão sei muito bem como
começou essa nova aventura. Um olhar um pouco mais demorado. O ardor do desejo. A vontade de
provar para mim mesma que ainda não estava acabada, arriada feito besta que carregou fardos pesados
demais. E é preciso dizer? Esse comércio só engajava meus sentidos. Todo o resto do meu ser continuava
pertencendo a John Índio, no qual, num surpreendente paradoxo, eu pensava mais e mais a cada
dia.(CONDÉ,1997, pp. 199-200)
- Je vais rentrer chez nous! (ibid., p. 239)
130
Logo em seguida, a protagonista descreve o seu retorno ao antigo lar,
mencionando que a choupana estava exatamente como a havia deixado e, ali, Tituba
percebe o quanto envelheceu ao passar por todas as provações que o destino lhe trouxe,
preferindo ficar ali, pois se sentia segura e descobre que carregava um filho de
Christopher, sendo advertida por sua mãe que desta vez seria impossível se ver livre da
criança. Tituba ainda tem de ajudar Iphigene, um jovem, escravo que, oitado até
quase a morte, recobrou os sentidos depois de ficar sob os cuidados da protagonista.
Obviamente, ele lhe pede, posteriormente, que ajude, de alguma forma, na luta pela
libertação dos negros, o que implicaria reencontrar Christopher é aconselhada por
Man Yaya e Abena, que lhe dizem que Le malheur du nègre n'a pas de fin.(CONDÉ,
2007, p. 253)
131
e, em seguida, há o prenúncio: Peu avant minuit, une lune sans force se
lova sur un coussin de nuage. (loc. cit.)
132
como se fosse o início do fim apara Tituba
e sua jornada.
No capítulo anterior ao epílogo, a narradora-personagem se comunica,
novamente com o leitor, questionando-o: Est-il nécessaire que je termine mon histoire?
Ceux qui l'ont suivie jusqu'ici, n'en auront-ils pas deviné la fin? (ibid., p. 254)
133
Iphigene retornou para a batalha, armado, mas não antes de dizer a Tituba que gostaria
que ela não o tratasse como filho, mas que o enxergasse como homem, até que se vêem
rodeados por soldados que carregavam fuzis Iphigene é morto e a Tituba, sobrou o
seguinte recado: Eh bien, sorcière! Ce que tu aurais dû connaître à Salem, c'est ici que
tu vas le connaître! Et tu retrouveras tes coeurs qui sont parties avant toi. Bom sabbat là-
bas! (ibid., p.262)
134
e, mais adiante, Tituba declara: Assis à califourchon sur le bois
de ma potence, Man Yaya, Abena ma mère et Yao m'attendaient por me prendre par la
130 Na madrugada chamei Man Yaya e Abena, minha mãe, que há alguns dias não apareciam como se
se recusassem a assistir à minha decadência. Fizeram com que eu rezasse, para obedecer, e quando
chegaram perto de mim, enchendo a choupana de um perfume de goiaba e maçã, me olharam com os
olhos cheios de reprovação:
- J
á está com cabelo grisalho e não pode ficar sem homem?
N
ão respondi. Um instante depois, decidi encará-las:
- Vou voltar para casa! (ibid., p. 203)
131 A desgra
ça do negro não tem fim. (CONDÉ, 1997, p. 215)
132 Pouco antes da meia-noite, uma lua sem for
ça se enrolou numa almofada de nuvem. (loc. cit.)
133 Será necessário que eu termine minha história? Os que a acompanharam até aqui não terão
adivinhado o seu fim? (ibid., p. 217)
134Muito bem, feiticeira! O que devia ter acontecido com voc
ê em Salém, vai acontecer aqui! E você vai
rever as suas irmãs, que partiram antes de você. Bom Sabá! (ibid., p. 224)
main. Je fus la dernière à être conduite à la potence. Autour de moi, d'étranges arbres se
hérissaient d'étranges fruits. (ibid., p. 263)
135
O epílogo traz um sumário da vida de Tituba narrado pela própria protagonista,
que afirma que sua verdadeira história nunca tefim, pois lhe foi permitido escolher
uma descendente, uma vez que havia morrido sem dar à luz e assim ela o fez e, somente
agora, sendo um de seus próprios invisíveis, Tituba enfim assume: Oui, à présent je
suis heureuse. Je comprends le passé. Je lis le présent. Je connais l'avenir.(ibid., p.
271)
136
Sendo dessa forma representada, a personagem Tituba é apresentada ao leitor
conforme os temas estabelecidos por Forster com relação à constituição da personagem,
sendo classificada como uma personagem redonda e carregando, em si, toda a riqueza
possível, considerando-se o fato de que ela, em si, engloba três personagens e a
possibilidade de mais uma: a Tituba histórica, a Tituba de Miller e a retomada da
personagem Hester Prynne todas separadamente compreendidas, complementarmente
unidas e, sob o ponto de vista Bakhtiniano, dialogicamente lidas e relidas.
Concluindo, ao retomar o fato histórico e a narrativa de Arthur Miller, Condé
estabelece uma interação entre as personagens apresentadas, revelando, em seus
diálogos, uma série de críticas severas ao comportamento social da época no tocante à
condição feminina e, ainda mais importante e abrangente, questiona os silêncios e a
submissão, o poder e o fazer inexoravelmente presentes na condição a mulher sob
diferentes pontos de vista, além de questionar o que realmente representaria ser uma
feiticeira em uma sociedade que de o conservadora, revelava-se, em verdade,
hipócrita em demasia.
Desta forma, a releitura da peça de Miller apresentada no romance de Condé
apresenta a possibilidade de discussão entre as dicotomias estória / história, verdade /
exclusão, colonizador / colonizado, civilização / selvageria, racismo / sexismo,
dominação / submissão, centro / periferia, exílio / alienação, tempo / espaço, realidade /
ficção ou, como Linda Hutcheon assim denota, uma metaficção historiográfica.
Quando expõe as formas pelas quais tal ficção é produzida, Hutcheon chama a atenção
do leitor para o status do romance como uma espécie de artefato e não como uma
reprodução relativamente fiel da realidade. Assim, essa consciência pessoal da narrativa
135 Sentados a cavalo sobre a madeira da minha forca, Man Yaya, Abena, minha mãe e Yao me
esperavam, para me segurar a mão. Fui a última a ser conduzida ao patíbulo. Ao meu redor, as árvores
exibiam frutos estranhos. (ibid., pp. 224-225)
136 Sim, agora sou feliz. Compreendo o passado. Leio o presente. Conhe
ço o futuro. (ibid., p. 230)
revela o fato de que a literatura não reflete nenhuma realidade de maneira inocente, pelo
contrário, cria ou denota uma realidade, e, ao fazê-lo, a torna significativa.
2.4 DIFERENTES DISCURSOS EM DESTAQUE
Ser ex-cêntrico, ficar na fronteira ou na margem, ficar dentro e, apesar
disso, fora é ter uma perspectiva diferente (...) (Hutcheon, 1991, p. 96)
Quando levamos em conta a postura de diversas obras construídas na pós-
modernidade que têm como característica retomar obras de períodos anteriores,
podemos entender que, de alguma forma, a proposta pode ser vista como uma tentativa
de ver o passado reformulado ou de preencher lacunas deixadas em aberto por esse
mesmo passado, na tentativa de re-ver, re-avaliar, re-escrever as ideias presentes em
tais obras, principalmente sendo tais tentativas provenientes de autores cujas raízes
estão em países colonizados, como ocorre com tantas obras da ficção contemporânea,
trazendo novas perspectivas para o leitor, de maneira mais abrangente, e, de forma mais
estrita, para o estudo da literatura.
O romance Eu, Tituba, feiticeira... negra de Salém (1986), escrito por Maryse
Condé pode ser visto como uma das obras inseridas nessa proposta, em um viés um
tanto inusitado, uma vez que retoma não somente uma, mas duas obras anteriores à sua
composição, As bruxas de Salém (1953), de Artur Miller e A letra escarlate (1850), de
Nathaniel Hawthorne. O presente capítulo visa analisar de que maneira a escritora
antilhana tomou posse das personagens criadas por Miller e Hawthorne, fazendo reviver
não somente a temática vigente nas obras dos dois autores, mas também reaproveitando
suas personagens, transformando, por exemplo, personagens meramente secundárias de
uma obra em protagonista em outra, ou seja, alterando seu status e promovendo uma
nova perspectiva de leitura desse novo universo que passa a ser descortinado no
romance da escritora.
Ao fazê-lo, Condé promove novas possibilidades não somente de entendimento,
mas uma nova visão, agora do ponto de vista feminino e marginalizado, dos eventos e
dos comportamentos de tais figuras em um momento distinto daquele em que os
hipotextos foram escritos. Quando coloca em seu romance, como figura central, uma
personagem que era anteriormente secundária, Condé ressalta a questão das
desigualdades sociais, dá atenção à visão marginal que é dada à figura feminina da
escrava, dando visibilidade e voz ao excluído, ao ex-cêntrico, como diria Hutcheon
(1991).
Cabe lembrar que se a proposta de estudo nesta altura do trabalho é colocar em
confronto as personagens dos três autores, ou melhor, como Maryse Condé se
reaproveitou das personagens presentes nas obras de Miller e Hawthorne, tal retomada
se dará aqui em duas partes: inicialmente, colocando em confronto as Titubas
compostas por Condé e Miller e, em seguida, as Hesters compostas por Condé e
Hawthorne, sempre tendo em mente que a interação das personagens apresentadas se
complementa também através de outras personagens, reaproveitadas ou não dos
hipotextos.
Ao proceder à leitura do romance de Condé, o leitor percebe que há uma
determinada temática clara durante todo o percurso da personagem protagonista, a
escrava Tituba a busca por reconhecimento, ou melhor, uma jornada em busca da
verdade, quer seja da própria personagem, quer seja daquilo que ela acredita ser real.
Ocorre que, ao fazê-lo, a autora promove também um retorno aos já mencionados
hipotextos, o que, para um leitor menos desavisado, conhecedor das obras de Miller e
Hawthorne, passa a ser uma busca incessante pela verdade daquela personagem em uma
realidade diferente daquela veiculada pelos autores norte-americanos.
Ambas as jornadas sugerem um retorno não somente às temáticas criadas por
Miller e Hawthorne e retomadas por Condé, mas também uma problematização dos
eventos históricos que se fazem presentes nas três obras, quer seja de forma explícita,
quer seja por mera sugestão, possivelmente com o intuito de questionar o passado,
revendo-o à luz do presente, não com fundo de nostalgia, mas trazendo à tona uma nova
perspectiva de leitura e posicionamento não apenas sob o ponto de vista da literatura,
mas também sob o cunho do social.
Nesse contexto e, segundo Linda Hutcheon (1991), o termo pós-modernismo
deve ser entendido como uma característica cultural presente em quase todas as
variantes artísticas da atualidade, sendo fundamentalmente contraditória,
deliberadamente histórica e inevitavelmente política, sugerindo uma espécie de
reavaliação, além de uma separação entre o literário e o histórico:
(...) Entretanto, é essa mesma separação entre o literário e o histórico que
hoje se contesta na teoria e na arte pós-modernas, e as recentes leituras
críticas da história e da ficção têm se concentrado mais naquilo que as duas
formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se
que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a
partir de qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como
construtos linguísticos, altamente convencionalizadas em suas formas
narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de estrutura, e
parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os textos do passado
com sua própria textualidade complexa (...). (p. 141)
Dessa forma, vemos em Eu, Tituba... uma personagem protagonista, a escrava
Tituba, que toma as rédeas de seu destino e se aventura em um mundo totalmente
distinto daquele em que vivia para acompanhar o homem a quem amava essa seria a
forma de leitura mais inocente desse abandono da realidade pela personagem, não como
um retorno nostálgico ao passado, mas como uma busca pelo seu entendimento.
Mesmo que inconscientemente, o que Tituba realmente buscava era viver uma
realidade à qual tinha sido brevemente apresentada, ainda enquanto criança, quando
vivia sob a proteção de seu pai postiço, Yao, e sua mãe, mesmo que distante em
comportamento, Abena, e posteriormente, quando isolada daquela realidade pelo
destino traçado a Abena e Yao, quando esteve sob os cuidados de Man Yaya, mesmo
enquanto viva, descrita como uma entidade espiritual superior que ensinou a Tituba
tudo o que era possível a uma pessoa naquelas condições aprender.
Faltava a Tituba, entretanto, a busca por ela mesma, por seu próprio eu interior e
exterior, além de sua interação com o mundo, pois enquanto vivia isolada da
comunidade era vista como uma selvagem, uma feiticeira e, para si mesma, embora
lutasse contra essa imagem, seria sempre uma estranha, ainda que até aquele momento
não soubesse exatamente entender por quê.
É possível verificar tais fatos em diversas passagens do romance, o que parece
ter sido a trajetória escolhida por Condé para que o leitor pudesse acompanhar o
desenvolvimento da personagem e conseguir penetrar em seu mundo. Logo de início, o
conhecimento de sua própria existência causava na pequena Tituba o sentimento de
culpa, de uma vida impura e a representação da dor pelos maltratos sofridos por sua
mãe que deram origem ao seu nascimento:
Peut-être quand j'atteignis cinq ou six ans. J'avais beau être mal sortie,
c'est-à-dire le teint à peine rougeâtre et les cheveux carrément crépus, je en
cessais pas de lui remettre en l'esprit le Blanc qui l'avait possédée sur le pont
du Christ the King au milieu d'un cercle de marins, voyeurs obscènes. Je lui
rappelais à tout instant sa doleur et son humiliation. Aussi quand je me
blottissais passionnément contre elle comme aiment à le faire les enfants, elle
me repouissait inévitablement. Quand je nouais les bras autour de sonj cou,
elle se hâtait de se dégager. (CONDÉ, 2007, p.18)
137
A trajetória de Tituba passa a ser uma de igual sofrimento, uma vez que nunca
soube, efetivamente, quem era naquele mundo em que vivia daí a busca pelo seu
autoconhecimento. Condé deixa sempre clara, no decorrer da narrativa, essa dor
presente no íntimo da protagonista e a certeza de que tudo para ela acontece depois de
alguma forma de punição ou sofrimento, com a morte sempre rondando sua existência,
como em: On pendit ma mère. (id., p. 20)
138
, frase mencionada três vezes na mesma
página da obra, causando certo desconforto no leitor e a confirmação da tristeza e do
desamparo aos quais a personagem se via recolhida, assim como a prévia de seu destino
mencionada por Man Yaya: Tu souffriras dans ta vie. Beaucoup. Beaucoup. (...) Mais
tu survivras!(CONDÉ, 2007, p. 21)
139
Da mesma forma, o leitor vê indicado o
prenúncio da busca que se delineia para a personagem, quando se refere ao período
vivido sob aprendizado com Man Yaya: Je m'en aperçois aujourd'hui, ce furent les
moments les plus heureux de ma vie. (ibid., p. 24)
140
e o que se descortinava como
futuro: J'étais loin des hommes et sourtout des hommes blancs. J'étais heureuse! Hélas!
Tout cela devait changer! (ibid., p. 25)
141
Ora, apoiados nas teorias de estudo do foco
narrativo, temos aqui a certeza de que a autora indica a seu leitor o fato de que a
personagem Tituba narra sua trajetória com a consciência dos eventos acontecidos,
sob a perspectiva de quem já passou por eles e pondera a respeito de seu
comportamento em tais ocasiões: J'étais faite pour panser et non por effrayer.(ibid., p
26)
142
, menciona a personagem com relação ao início de seu convívio com a
comunidade da qual se via distanciada.
Todo esse preparo oferecido por Condé ao leitor serve como uma forma de guiá-
lo para um melhor entendimento de sua personagem Tituba, retirada da obra de Artur
137 Talvez aos cinco ou seis anos. Por mais que tivesse saído mal, isto é, com a pele muito pouco
avermelhada e o cabelo totalmente crespo, nunca deixei de lhe trazer à lembrança o branco que a tinha
possuído na ponte do Christ the King, no meio de uma roda de marinheiros, obscenos observadores. Eu a
fazia recordar a todo instante sua dor e sua humilhação. E quando me enroscava nela apaixonadamente,
como as crianças gostam de fazer, me repelia, inevitavelmente. Quando punha os braços em torno de seu
pescoço, logo se desvencilhava. (CONDÉ, 1997, p. 15)
138 Enforcaram minha m
ãe. (ibid., p. 17)
139 Voc
ê vai sofrer na vida. Muito. Muito. (...) Mas vai sobreviver. (CONDÉ, 1997, p. 18)
140 Hoje percebo que foram esses os momentos mais felizes da minha vida. (ibid., p. 20)
141 Eu estava longe dos homens, sobretudo dos homens brancos. Estava feliz! Pobre de mim! Aquilo
tudo iria mudar! (ibid. p. 21)
142 Eu tinha sido feita para aliviar, n
ão para assustar. (ibid., p. 22)
Miller e também do evento histórico da caça às bruxas, mas totalmente diferente de suas
origens. É a partir daqui que se inicia o confronto entre a Tituba do romance escrito por
Condé e a Tituba da peça de Miller, a primeira, uma personagem protagonista,
narradora em primeira pessoa e a outra, personagem secundária, com um breve
momento de protagonista, assim como também é breve a sua participação na obra do
americano, mesmo que esse breve momento seja crucial para todo o desenrolar da
trama.
Ambas as Titubas são, na realidade, releituras da escrava originária de
Barbados, enviada à América, acompanhando a família do Reverendo Samuel Parris, no
século 17, e que foi acusada de estar envolvida com feitiçaria e de ter ligações com o
Demônio. Como anteriormente mencionado do capítulo de apresentação das obras em
questão, não há, historicamente, muito o que se dizer sobre tal escrava sabe-se que ela
foi acusada, que assumiu a culpa por estar envolvida com a prática ilícita da magia e
que iniciou uma série de acusações contra outras pessoas que estariam envolvidas com
essas mesmas práticas. Foi condenada por seu crime e, surpreendentemente, nada mais
se encontra sobre sua existência... Não se sabe se foi enforcada, se permaneceu presa... é
como se tivesse desaparecido, pura e simplesmente, uma vez que não há nenhum
documento histórico que comprove seu paradeiro é nessa falha, nessa ausência
encontrada na documentação histórica sobre a escrava que surgem suas releituras,
inicialmente por Miller em 1953 e, posteriormente, por Condé, em 1986.
Em As bruxas de Salém, a personagem Tituba é vista como secundária não
somente por sua presença na narrativa, mas também pela posição social que ocupava:
mulher, negra, escrava e estrangeira, em uma comunidade severamente voltada para os
preceitos religiosos e que não aceitava, sob hipótese alguma, outra forma de
entendimento religioso que não fosse aquele voltado ao puritanismo. A escrava surge,
logo no início da peça, descrita como alguém descontente naquele meio e certa de que
sua sorte sempre pendia para o lado negro da moeda, como pode ser observado na
apresentação, ainda no primeiro ato:
REVEREND PARRIS is praying now, and, though we cannot hear his
words, a sense of his confusion hangs about him. He mumbles, then seems
about to weep; then he weeps, then prays again; but his daughter does not
stir on the bed. The door opens, and his Negro slave enters. Tituba is in her
forties. Parris brought her with from Barbados, where He spent some years
as a Merchant before entering the ministry. She enters as one does who can
no longer bear to be barred from the sight of her beloved, but she is also very
frightened because her slave sense was warned her that, as always, trouble in
this house eventually lands on her back.
TITUBA, already taking a step backward: My Betty be hearty soon?
PARRIS: Out of here! (MILLER, 2000, p.17, marcas do autor)
143
Neste trecho é possível notar que a escrava, além de sua posição socialmente
inferior, era maltratada pela família Parris, mas mantinha certa devoção pela menina
Betty, a quem queria como filha. Na obra de Condé, sua realidade não é muito distinta
a diferença é que além de Betty, também gostava muito da Sra. Parris, personagem
apenas brevemente mencionado na obra de Miller, uma vez que o Reverendo, na peça,
era viúvo.
Vale lembrar que no romance de Condé, a família Parris é apresentada ao
leitor no final do capítulo quatro, quando Susanna Endicott, então proprietária de John
Índio e, indiretamente, de Tituba resolve vender o casal ao Reverendo a partir daqui é
que se toma contato com o comportamento desse homem que, por muitas vezes, é
apresentado pela escrava, narradora, como um carrasco para com ela e John Índio e para
com sua própria família. Também é a partir do surgimento da família Parris que a
narrativa do romance começa a se aproximar da narrativa da peça, mesmo que em
diversos trechos haja criações inseridas por Condé ao contexto criado por Miller,
lembrando, evidentemente, que o romance é narrado sob o ponto de vista da própria
Tituba, o que garante ao leitor uma outra perspectiva dos fatos, um novo olhar.
Para a Tituba de Condé, sua inserção no seio da família Parris é marcada por ser
considerada inferior: era vista como impura e culpada por sua condição. Coube ao
Reverendo, na tentativa de torná-la menos impura aos olhos da sociedade puritana,
batizá-la e casá-la com John Índio, com quem, sob o seu ponto de vista religioso, Tituba
vivia em pecado. Seguem os comentários da personagem:
143 O Reverendo Parris, neste momento, reza, e, embora não possamos ouvir-lhe s palavras, um
sentimento de confusão e angústia paira à sua volta. Murmura, à beira das lágrimas; chora, reza de
novo. A filha, sobre a cama, continua imóvel.
A porta abre-se e entra Tituba, a escrava negra do Reverendo. Mulher dos seus quarenta anos. Parris
trouxe-a consigo de Barbados, onde ele foi mercador antes de se devotar ao sacerdócio. Ela entra como
quem o suporta estar mais tempo afastada da vista de quem ama, mas, ao mesmo tempo, com medo
porque o seu sexto sentido de escrava adverte-a de que, como sempre nesta casa, a tormenta vem sempre
desaguar nas suas costas.
TITUBA,
já a esboçar o movimento de recuo: A minha Betinha vai ficar boa depressa, não vai?
PARRIS: Fora daqui!
TITUBA,
recuando para o pé da porta: A minha Betinha não vai morrer, não?...
PARRIS, fulo, pondo-se em pé num salto: Fora da minha vista! (MILLER, 1961, p. 18, marcas do autor)
Le nouveau maître me fit agenouiller sur le pont du brigatin parmi les cordes,
les tonneaux et les marins narquois et fit couler un filet d'eau glacée sur mon
front. Puis il m'ordonna de me lever et je le suivis à l'arrière du navire où se
tenait John Indien. Il nous commanda de nous agenouiller l'un à côté de
l'autre. Il s'avança et son ombre nous couvrit, obscurcissant la lumière du
soleil.
- John et Tituba Indien, je vous d
éclare unis par les sacrés liens du marriage
pour vivre et rester em paix jusqu'à ce que la mort vous sépare.
John Indien b
égaya:
- Amen!
Quant
à moi, je ne prononcer une parole. Mês lèvres étaient soudées l'une à
l'autre. Malgré la chaleur étouffante, j'avais froid. Une sueur glacée ruisselait
entre mês omoplates comme si j'allais être prise par la malaria, le choléra ou
la typhoïde. Je n'osais regarder dans la direction de Samuel Parris tant
l'horreur qu'il me causait était immense. Autour de nous, la mer était bleu vif
et la ligne ininterrompue de la côte, vert sombre. (CONDÉ, 2007, p. 63)
144
Não há, em Miller, nenhuma menção a um suposto casamento da escrava, nem
sequer algum membro de sua família é citado. Em Condé, a história de Tituba é
apresentada ao leitor, pela própria personagem, como alguém que tem uma história e,
portanto, não pode ser relegado à mera posição de ser inferior e marginalizado no
romance, o leitor é levado a considerar todos os aspectos da narrativa para que possa
compreender os passos e atitudes da personagem no decorrer de sua jornada, enquanto
na peça isso seria inviável pelo simples fato de não ser possível construir um vínculo
com a personagem que surge em meio a uma cena tumultuada e, depois, desaparece.
Vê-se, então, a possibilidade de se estabelecer a personagem Tituba como um
ponto de passagem entre a questão da doutrina puritana e da possível presença da
feitiçaria na comunidade de Salém: entre a posição de submissão da figura feminina em
um primeiro momento e, em outro ângulo, da figura feminina inferiorizada não somente
pelo sexo, mas por sua posição social, a da escravidão, figura, portanto, marginalizada
e, em uma terceira instância, reduzida triplamente, pois além de pertencer a todos os
grupos anteriores, a personagem Tituba é negra e, portanto, sofre todas as formas
144 O novo senhor me fez ajoelhar na ponte do brigue entre as cordas, os tonéis e os marinheiros trocistas
e derramou um filete de água gelada em minha testa. Depois, ordenou que me levantasse e o seguisse até
a parte de trás do navio, onde se encontrava John Índio. Ordenou que nos ajoelhássemos um ao lado do
outro. Avançou, e sua sombra nos cobriu, obscurecendo a luz do sol.
- John Índio e Tituba, eu os declaro unidos pelos laços sagrados do matrimônio, para viver e permanecer
em paz até que a morte os separe.
John
Índio balbuciou:
- Am
ém!
Quanto a mim, n
ão consegui pronunciar uma palavra. Meus lábios estavam colados um no outro. Apesar
do calor sufocante, eu sentia frio. Um suor gelado me escorria entre as omoplatas, como se eu fosse
adoecer de malária, cólera ou tifóide. Eu não ousava olhar na direção de Samuel Parris, tão imenso era o
horror que ele me causava. Ao nosso redor o mar estava azul vivo e a linha ininterrupta da costa, verde-
escuro. (CONDÉ, 1997, pp. 53-54)
possíveis de preconceito, historicamente comprovado, por sua condição. Tituba é, na
verdade, a personificação do sujeito ex-cêntrico mencionado por Hutcheon (1991),
comprovando que a não-homogeneidade social ainda provoca conflitos que sempre
estiveram presentes na literatura, quer seja como forma de retratar a realidade, quer seja
como uma maneira de, através da arte, revelar a insatisfação do autor para com os
acontecimentos de seu tempo, assim como demonstrou Miller com As bruxas de Salém,
criticando o macartismo e suas consequências.
Ainda em Condé, vemos a caracterização da personagem Elizabeth Parris, como
já mencionado anteriormente, que mesmo chega a ser citada na obra de Miller. É
através da esposa do Reverendo que o leitor tem a oportunidade de tomar contato,
novamente, com a posição de submissão da figura feminina desta vez não através da
escrava, subserviente, mas através da esposa que se anula diante da posição do marido.
A Sra. Parris é descrita pela personagem Tituba como carente, fisicamente fraca, doente
e psicologicamente abalada: ninguém dava atenção a ela, a o ser a própria escrava,
com quem compartilhava o terror causado pelo Reverendo:
Quelqu'un partageait l'effroi et la répugnance que m'inspirait Samuel Parris,
je ne tardai pas à m'en apercevoir: sa femme Élizabeth.
C'
était une jeune femme d'une étrange joliesse, dont les beaux cheveux
blonds dissimulés sous un vère béguin n'en moussaient pas moins comme
un halo lumineux autour de sa tête. Elle était envelopée de châles et de
couvertures comme si elle grelottait malgré l'atmosphère tiède et confinée de
la cabine.
(...)
- Bienheureuse si tu crois qu'un mari peut
être un compagnon plaisant et si le
contact de sa main ne te fait pas courir un frisson de long du dos! (CONDÉ,
2007, p. 64)
145
Enquanto no romance é dada certa importância a essa personagem, como alguém
que, durante um determinado período cria um elo com Tituba, é a outra Elizabeth que
Miller dá importância: Elizabeth Proctor, esposa de John Proctor, um dos protagonistas
da peça no romance ela é mencionada, mas sua participação parece ser abafada pelos
145 Alguém compartilhava o terror e a repugnância que me inspirava Samuel Parris, não tardei a
perceber: sua mulher Elizabeth.
Era uma mo
ça de uma beleza estranha, cujo belo cabelo louro, dissimulado por uma touca austera, mesmo
assim ondeava como uma aura luminosa em torno de sua cabeça. Estava envolta em xales e cobertores,
como se tiritasse de frio, apesar do ar morno e abafado da cabine.
(...)
- Feliz de quem acredita que um marido pode ser um companheiro agrad
ável, e que o contato com sua
mão não faz correr um arrepio ao longo da espinha! (CONDÉ, 1997, p. 55)
relatos da escrava. Embora, de certa forma, excluída da narrativa de Tituba no romance,
Elizabeth Proctor ainda é o estopim para que Abigail quisesse por um fim ao
relacionamento daquele casal, para que tivesse John Proctor apenas para si na peça, o
leitor é apresentado a uma Abigail enlouquecida pela ideia de continuar envolvida com
John Proctor e Elizabeth. Inicialmente, surge descrita como uma mulher fria, mesmo
depois de ter conseguido seu marido de volta, após a expulsão de Abigail de sua
propriedade e, supostamente, da vida de seu marido, como neste trecho:
PROCTOR: It´s winter in here yet. On Sunday let you come with me, and
we´ll walk the farm together; I never seen such a load of flowers on the earth
(With good feeling he goes and looks up t the sky through the open doorway).
Lilacs have a purple smell. Lilac is the smell of nightfall, I think.
Massachusetts is a beauty in the spring!
ELIZABETH: Aye, it is.
(
There is a pause. She is watching him from the table as he stands there
absorbing the night. I is a as though she would speak but cannot. Instead,
now, she takes up his plate and glass and fork and goes with them to the
basin. Her back is turned to him. He turns to her and watches her. A sense of
their separation rises.)
PROCTOR: I think you
´re sad again. Are you?
ELIZABETH (
she doesn't want friction, and yet she must): You come so late
I thought you'd gone to Salem this afternoon. (MILLER, 2000, p. 52, grifos
do autor)
146
De qualquer modo, mesmo que quase ausente na narrativa de Condé, um
trecho em que Elizabeth Proctor trava um breve diálogo com a escrava Tituba,
mostrando que também ela, mesmo na condição de traída, considerava a posição da
escrava como a de um ser inferior:
A ma surprise, maîtresse Élizabeth Proctor qui observait tout cela avec la
plus grande affliction, osa élever la voix:
- Gardez-vous de condamner avant m
ême que ce soit l'heure de juger! Nous
ne savons pas s'il a'agit d'ensorcellement...
Dix voix couvrient la sienne:
146 PROCTOR: Aqui em casa parece que ainda estamos no inverno! No domingo hás de vir comigo dar
um passeio pela quinta: nunca na minha vida vi tantas flores sobre a terra. (Cheio de si, vai olhar o céu
através da porta aberta). Os lilases têm um cheiro rubro, já reparaste? Os lilases são o cheiro do
crepúsculo, não achas? Massachusetts é lindo na primavera!
ELIZABETH:
É lindo, é.
uma pausa. Ela, junto à mesa, observa-o: ele, parado à porta, parece querer absorver a própria
noite. Dir-se-ia que ela quer falar mas não pode. Em vez disso, levanta da mesa o prato, o copo e o garfo
e dirige-se com eles para o lavadouro. Fica de costas voltadas para o marido. Ele volta-se a fica-se a
olhar para a mulher. É sensível o isolamento daquelas duas almas.
PROCTOR: Tenho a impressão de que andas triste outra vez. Não andas?
ELIZABETH, que deseja sobretudo não provocar atritos, mas não resiste :Vieste tão tarde que cheguei a
pensar que tinhas ido a Salém esta tarde. (MILLER, 1961, pp. 99-100, marcas do autor)
- Que si! Que si! Le Dr Griggs l'a reconnu!
Ma
îtresse Proctor haussa couraeusement les épaules:
- Eh bien! N'a-t-on jamais vu un m
édicin se tromper? N'est-ce pas ce même
Griggs qui a couché au cimetière la femme de Nathaniel Bayley en soignant
sa gorge quand son sang était empoisonée?
Je lui dis:
- Ne prenez pas tant de peine pour moi, ma
îtresse Proctor! Bave de crapaud
n'a jamais diminué parfum de rose!
C'est s
ûr, j'aurais pu choisir meilleure comparaison et mes ennemies ne
manquèrent pas de s'en apercevoir, s'esclaffant:
- C'est qui la rose? C'est toi? C'est toi? Ma pauvre Tituba, tu te trompes, oui,
tu te trompes sur ta couleur. (CONDÉ, 2007, pp. 132-133)
147
É possível notar que a personagem Tituba é a única a partir da qual é possível
estabelecer qualquer tipo de confronto entre romance e peça, pois as outras personagens
são apenas mencionadas de forma breve ou simplesmente não são relevantes à
narrativa; ainda assim, vale destacar o papel que a Sra. Elizabeth Parris exerce na vida
de Tituba no romance, uma vez que a escrava se identifica com a patroa no que diz
respeito ao seu sentimento quando ao Reverendo Parris, mas rapidamente percebe que
no momento em que se estabelece a relação branco e negro, o relacionamento segue o
padrão considerado normal para aquela época: superior-colonizador, inferior-
colonizado, mesmo que haja, por parte da Sra. Parris uma certa dependência quanto à
forma pela qual era tratada por Tituba. De início, entretanto, há uma relação de
simpatia mútua, como se a escrava tivesse vindo preencher um vazio na vida daquela
mulher e esta, por sua vez, fazia com que Tituba tivesse um novo olhar sobre si mesma,
como se pode observar nesse diálogo entre as duas personagens:
- Maîtresse, vous semblez mal portance! De quoi souffrez-vous?
Elle eut un rire sans joie:
- Plus de vongt m
édicins se sont succédé à mon chevet et n'ont pu trouver la
cause de mon mal. Tout ce que je sais, c'est que mon existence est un
martyre! (...)
147 Para minha surpresa, a senhora Elizabeth Proctor, que observava aquilo tudo na maior aflição, ousou
levantar a voz:
- Poupem-se de condenar antes mesmo da hora do julgamento! N
ós não sabemos se se trata de
enfeitiçamento...
Dez vozes cobriram a dela:
-
É sim! É sim!O Doutor Griggs reconheceu que é!
A senhora Proctor sacudiu os ombros, corajosamente:
- E da
í? Nunca se viu um médico se enganar? Não foi esse mesmo Griggs que levou ao cemitério a
mulher de Nathaniel Bayley, tratando da garganta dela, quando o sangue é que estava envenenado?
Eu disse a ela:
- N
ão se sacrifique tanto assim por mim, senhora Proctor! Baba de sapo nunca diminuiu o perfume da
rosa!
É claro, eu poderia ter escolhido uma comparação melhor e minhas inimigas não deixaram passar, rindo
às gargalhadas:
- Quem
é a rosa? É você? É você? Minha pobre Tituba, você está enganada. Sim, está enganada quanto à
sua cor. (CONDÉ, 1997, pp. 112-113)
Je m'approchai et elle me fir signe de m'asseoir près d'elle, em murmurant:
- Que tu es belle, Tituba!
- Belle?
Je pronon
çai ce mot avec incrédulité, car le miroir que m'avaient tendu
Susanna Endicott et Samuel Parris, m'avait persuadée du contraire. Quelque
chose se dénoua em moi et j'offris, mue par une irrésistible impulsion:
- Maîtresse, laisse-moi te soigner!
Elle sourit et me prit les mains:
- Tant d'autres on essay
é avant toi et n'y sont pas parvenus! Mais c'est vrai
que tes mains sont douces. Douces comme des fleurs coupées.
Je raillai:
- Vous avez d
éjà vu des fleurs noires, vous?
Elle r
éfléchit un instant puis répondit:
- Non, mais s'il em existait, elles seraient pereilles
à tes mains. (CONDÉ,
2007, p. 65)
148
É possível entender, então, porque Tituba se sentia envolvida com a suposta
amizade que havia estabelecido com a Sra. Parris, extensiva à sua filha Betty e,
inicialmente à sobrinha do pastor, que vivia com a família desde a morte de seus pais.
Era como se naquelas três pessoas Tituba encontrasse a família que nunca teve. Mesmo
que incorporasse a condição de preconceito à qual era relegada, o fato de elas terem que
conviver com o Reverendo deixava todas no mesmo patamar, como se pode observar
neste trecho em que a escrava estava cuidando da Sra Parris, deitada a seu lado para
ajudá-la a se aquecer:
A ce moment, la porte s'ouvrit sous une poussée brutale et Samuel Parris
entra. Je ne saurai dire qui, de maîtresse Parris ou de moi, fut la plus confuse,
la plus terrifiée. La voix de Samuel Parris ne s'eleva pas d'un pouce. Le sang
ne monta pas à son visage crayeux: Il dit simplement:
-
Élizabeth, êtes-vous folle? Vous laissez cette négresse s'asseoir à côté de
vous? Dehors Tituba, et vite!
J'ob
éis.
L'air froid du pont agit sur moi comme une r
éprimande. Quoi? Je laissais cet
homme me traiter comme une bête sans mot dire? J'allais pour me raviser et
148 - A senhora, ao que parece, está se sentindo mal! O que tem?
Ela riu sem alegria:
- Mais de vinte m
édicos se sucederam à minha cabeceira sem conseguir atinar a causa do meu mal Só sei
que a minha existência é um martírio! (...)
Aproximei-me e ela fez sinal para eu me sentar junto dela, murmurando:
- Como você é bonita, Tituba!
- Bonita?
Eu pronunciava essa palavra com incredulidade, pois o espelho a mim estendido por Susanna Endicott e
Samuel Parris tinha me convencido do contrário. Alguma coisa se desatou em mim e me ofereci, movida
por um impulso irresistível:
- Senhora, deixe-me cuidar de voc
ê!
Ela sorriu e me segurou as m
ãos:
- Tantos outros tentaram antes de voc
ê e o conseguiram! Mas é verdade que as suas mãos são doces.
Doces como folhas cortadas.
Escarneci:
- A senhora j
á viu flores negras?
Ela pensou um instante, depois respondeu:
N
ão, mas se existissem, seriam parecidas com as suas mãos. (CONDÉ, 1997, p. 56)
retourner dans la cabine quand je croisai les regards de deux fillettes,
affublées de longues robes noires sur lesquelles tranchaient d'étroits tabliers
blancs et coifféés de béguins qui ne laiassaient pas dépasser un brin de leurs
chevelures. Je n'avais jamais vu d'enfants pareillement attifées. L'une était le
portrait craché de la pauvre recluse que je venais de quitter. Elle interrogea:
- C'est toi, Tituba?
- Je reconnus les gracieuses intonations de sa m
ère. L'autre fillette de deux ou
trois ans plus âgée, me fixait d'un air d'insupportable arrogance.
Je fis doucement:
-
Êtes-vous les enfants Parris?
Ce fut la plus
âgée des fillettes qui répondit:
- Elle est Betsey Parris. Je suis Abigail Williams, la ni
èce du pasteur.
Je n'ai pas eu d'enfance. L'ombre de la potence de ma mère a assombri toutes
les annés qui auraient dû être consacrées à l'insouciance et aux jeux. Pour des
raisons sans nul doute différentes des miennes, je devinais que Betsey Parris
et Abigail Williams étaient, elles aussi, privées de leur enfance, dépossédées
à jamais de ce capital de légèreté et de douceur. Je devinai qu'on ne leur avait
jamais chanté de berceuses, raconté de contes, empli l'imagination
d'aventures magiques et bienfaisantes. J'eprouvai une profonde pitié pour
elles, pour la petite Betsey sourtout, si charmante et désarmée. (CONDÉ,
2007, pp.66-67)
149
Aos poucos, entretanto, Tituba percebeu que a recíproca não era verdadeira, pelo
menos não com relação a Abigail. Algo naquela menina incomodava a escrava, como
se, de alguma forma, Tituba pudesse prever que seu destino estava atrelado ao
comportamento daquela garota, como esteve, antes, ao comportamento de Susanna
Endicott, a antiga dona de John Índio. A diferença reside no fato de que, desta vez, ela
149 Nesse momento, a porta se abriu com um empurrão brutal, e Samuel Parris entrou. Eu não saberia
dizer quem, dona Parris ou eu, estava mais confusa, mais aterrorizada. A voz de Samuel Parris não se
elevou minimamente. O sangue não subiu ao seu rosto de giz. Ele simplesmente disse:
- Elizabeth, a senhora está louca? A senhora permite que esta negra se sente ao seu lado? Fora, Tituba, e
depressa!
Obedeci.
O ar frio da coberta teve sobre mim o efeito de uma reprimenda. O qu
ê? Eu deixava aquele homem me
tratar como animal sem dizer palavra? Ia mudar de idéia e voltar à cabine quando cruzei com os olhares
de duas meninotas, ridiculamente cobertas por longos vestidos pretos, sobre os quais se atravessavam
estreitos aventais brancos, usando toucas que não deixavam passar nem um fio de suas cabeleiras. Eu
nunca tinha visto crianças tão exageradamente ornadas. Uma era o retrato cuspido da pobre reclusa que eu
acabava de deixar. Ela perguntou:
- Voc
ê é Tituba?
Reconheci as graciosas entona
ções da mãe. A outra menina, dois ou três anos mais velha, me olhava
fixamente com um ar insuportável de arrogância.
Eu disse docemente: - Voc
ês são as filhas de Parris?
Foi a mais velha das meninas quem respondeu:
- Ela
é Betty Parris. Eu sou Abigail Williams, sobrinha do pastor.
Eu não tive infância. A sombra do poder de minha mãe escureceu todos os anos que deveriam ter sido
consagrados à despreocupação e às brincadeiras. Por razões em dúvida nenhuma diferentes das minhas,
eu adivinhava que Betty Parris e Abigail Williams também tinham sido privadas de sua infância,
destituídas para sempre desse capital de ligeireza e de doçura. Eu intuía que jamais tinham cantado para
elas canções de embalo, jamais tinham contado histórias, enchido a imaginação de aventuras mágicas e
benéficas. Senti uma pena profunda delas, principalmente da pequena Betty, tão charmosa e desarmada.
(CONDÉ, 1997, pp. 57-58)
se via sozinha, pois seu companheiro não compartilhava da rotina da família Parris
como Tituba o fazia:
Sa manière de m'écouter, de me regarder comme si j'étais un objet
épouvantable et cependant attirant! D'une manière autoritaire, elle demandait
des précisions sour tout. (...)
Je lui fournissais des r
ésponses évasives. Em vérité, je craignais qu'elle ne
raconte ces entretiens à son oncle, Samurl Parris et que la leur de plaisir qu'ils
mettaient dans notre vie ne s'éteigne. Elle n'en fit rien. Il y avait em elle une
faculté de dissimulation extraordinaire. (CONDÉ, 2007, p. 71)
150
O cerco foi se fechando para Tituba e a situação se agravou quando a família
Parris se mudou de Boston para Salém e as meninas passaram a trazer suas amigas para
a casa paroquial e todas pediam a Tituba que lhes contassem suas histórias de Barbados,
que sempre evocavam o sobrenatural. É num desses dias que a primeira menção a uma
possível idéia de alguém ter ligações com o além surgiu:
Leurs histoires favorites étaient celles des gens gagés. Elles s'asseyaeint en
rond autour de moi et je respirais l'odeur aigre de leurs corps lavés avec
parcimonie. Elles m'assourdissaient de questions:
- Tituba, penses-tu qu'il y ait des gens gag
és à Salem?
J'acquies
çais avec un rire:
- Oui, je crois bien que Sarah Good en est une!
(...)
- Tu crois cela, Tituba! Et Sarah Osburne, en est-elle une aussi?
(...)
- Les as-tu vues l'une et l'autre avec leur chair toute
é corchée, voler dans
l'air? Et Élizabeth Proctor, l'as-tu vue? L'as tu-vue?
Je me faisais s
évère, car maîtresse Proctor était une des meilleures femmes
du village, la seule qui ait eu à coeur de m'entretenir de l'esclavage, du pays
d'où je venais et de ses habitants.
- Vous savez bien que je plaisante, Abigail! (ibid., pp. 97-98)
151
150 Sua maneira de me ouvir, de me olhar como seu eu fosse um objeto assustador e ao mesmo tempo
atraente! De uma maneira autoritária, ela pedia informações precisas sobre tudo(...) Minhas respostas
eram evasivas. Na verdade, eu temia que ela contasse essas conversas para o tio, Samuel Parris, e que o
luar de prazer que elas traziam à nossa vida se extinguisse. Mas ela não disse nada. Havia nela uma
extraordinária capacidade de dissimulação. (CONDÉ,1997, p. 61)
151 As histórias favoritas delas eram as das almas sequestradas. Elas se sentavam em roda, em volta de
mim, e eu sentia o cheiro azedo de seus corpos lavados com parcimônia. Deixavam-me surda com as
perguntas:
- Tituba, voc
ê acha que existem almas sequestradas em Salém?
Eu assentia, rindo: - Acho que sim, acho que Sarah Good
é uma!
(...)
- Voc
ê acredita, Tituba? E Sarah Osbourne, também é?
(...)
- Voc
ê viu as duas voarem pelo ar, com a carne toda esfolada? E Elizabeth Proctor, você viu, viu?
Eu fazia cara séria, pois a senhora Proctor era uma das melhores mulheres da aldeia, a única que se deu ao
trabalho de me informar sobre a escravidão, sobre o país de onde eu vinha e seus habitantes.
- Vocês sabem muito bem que eu estou brincando, Abigail! (ibid., pp. 83-84)
Entretanto, o que não passava de brincadeira inocente, passou a ser visto como
realidade, uma vez que as meninas atribuíam a Tituba qualidades sobrenaturais, o que
naquela época não era considerado saudável, muito menos permissível:
- Tituba, est-ce vrai que tu sais tout, que tu vois tout, que tu peux tout? Tu es
donc une sorcière?
Je me f
âchai tout net:
- N'employez pas des mots dont vous ignorez le sens. Savez-vous seulement
ce qu'est une sorcière?
Anne Putnam intervint:
- Pour s
ûr que nous savons! C'est quelqu'un qui a fait un pacte avec Satan.
Mary a raison; êtres-vous sorcière, Tituba? Je crois bien que oui. (CONDÉ,
2007, pp. 99-100)
152
Em Miller, o suposto envolvimento de Tituba com a feitiçaria foi indicado pela
própria Abigail quando é colocada à prova pelos Reverendos Parris e Hale,
principalmente pelo último, que pesquisava quais as possíveis causas para aquele temor
ter se apossado de Salém através das meninas. O tio, Parris, confessa a Hale, quando de
sua chegada, o episódio da dança na floresta e o reverendo menciona este fato ao
questionar Abigail:
HALE (...): Abigail, what sort of dancing were you doing with her in the
forest? ABIGAIL: Why common dancing is all.
PARRIS: I think I ought to say I
I saw a kettle in the grass where they were
dancing.
ABIGAIL: That were only soup.
(
)
HALE , grasping Abigail: Abigail, it may be your cousin is dying. Did you
call the Devil last night?
ABIGAIL: I never called him! Tituba,Tituba
152 - Tituba, é verdade que você sabe tudo, que você vê tudo, que pode tudo? Então você é uma
feiticeira?
Fiquei logo zangada:
- N
ão empregue palavras cujo significado ignora. A senhora lá sabe o que é uma feiticeira?
Anne Putnam interveio:
-
É claro que sabemos! É uma pessoa que fez um pacto com Satanás. Mary tem razão; você é feiticeira,
Tituba? Eu acho que é. (CONDÉ, 1997, p. 85)
HALE: How did she call him?
ABIGAIL: I know not
she spoke Barbados. (MILLER, 2000, pp.45-46,
marcas do autor, passim)
153
Tituba, inicialmente, nega qualquer forma de ligação com o Demônio,
confessando-se crente em Deus e reforçando o fato de nunca ter tido nenhuma intenção
de deixar as garotas perturbadas, pelo contrário, esteve na floresta a pedido delas. Seu
discurso permanece o mesmo até que ouve que seria condenada ao enforcamento a
partir daí, é como se reconhecesse sua culpa, como se em um passa de mágica toda a
solução de seus problemas estivesse claramente exposta aos seus olhos. A escrava não
somente assume uma suposta ligação com o demônio como menciona que este lhe havia
pedido que matasse o Reverendo Parris, além do fato de o demônio ter arrebanhado
diversas outras almas a seu serviço ela foi convencida de que se denunciasse tais
pecadores seria abssolvida de sua culpa e assim o fez, mesmo sabendo que acusaria
inocentes assim como ela. Eis o discurso utilizado pelo Reverendo Hale para justificar a
Tituba a necessidade de sua confissão:
HALE, with rising exaltation: You are God´s instrument put in our hands to
discover the Devil´s agents among us. You are selected, Tituba, you are
chosen to help us cleanse our village. So speak utterly, Tituba, turn your back
on him and face God face God, Tituba, and God will protect you. (ibid., p.
48, marcas do autor)
154
No romance de Condé, Tituba é acusada por Samuel e Elizabeth Parris por ter
enfeitiçado sua Betty e é, na verdade, surpreendida pelo comportamento de sua patroa, a
153 HALE: (...) Abigail, que espécie de dança dançavam vocês com esta criança na floresta?
ABIGAIL: Que dança havia de ser? Uma dança vulgar.
PARRIS: Julgo que eu ainda n
ão lhe disse que eu... eu vi uma caldeira sobre o relvado em que elas
dançavam
ABIGAIL: Era a caldeira da sopa.
(...)
PARRIS: Abigail, v
ê bem, a tua prima talvez esteja a morrer. Vocês invocaram o demônio na noite
passada?
ABIGAIL: Eu n
ão invoquei o Demônio! Tituba, foi Tituba...
PARRIS,
empalidecendo: Tituba invocou o Demônio?
(...)
HALE: De que maneira ela o invocou?
ABIGAIL: N
ão sei dizer-lhe. Ela falava a língua dela. (MILLER, 1961, pp. 79-81, marcas do autor,
passim)
154 HALE,
com crescente exaltação: Tu és o instrumento que Deus pôs em nossas mãos para
descobrirmos os agentes do Demônio entre nós. Tu foste a escolhida, Tituba, tu foste eleita para nos
ajudar a limpar a nossa comunidade de todo o mal. Por isso fala abertamente, Tituba, vira as costas a
Satanás e põe os olhos em Deus! Põe os olhos em Deus, Tituba, que Deus te protegerá. (MILLER, 1961,
p.90, marcas do autor)
quem tinha como alguém a quem prezava. A escrava imediatamente se assusta e mostra
seu estranhamento: Maîtresse Parris, quand vous étiez malade, qui vous a soignée?
Dans le taudis de Boston où vous avec failli passer, qui a fait briller sur votre tête le
soleil de la guérison? N'est-ce pas mpi, et alors parliez- vous de sortilèges? (CONDÉ,
2007, p. 115)
155
Assim como no texto dramático, a Tutuba do romance nega qualquer
envolvimento com o Demônio, mas acaba sendo convencida por John Índio a dar àquela
comunidade aquilo que eles queriam: uma confissão e, ao mesmo tempo, teria a
oportunidade de acusar a quem bem entendesse, a todos aqueles que, direta ou
indiretamente, tiveram a oportunidade de prejudicá-la: Bientôt la meute des loups se
jettera sur toi, te déchirera (...). Tu dois te défendre et prouver que ces enfants ne sont
pas ensorcelées. (id., p. 124)
156
Em ambas as obras, Tituba acaba sendo presa: a partir daqui é que as narrativas
tomam rumos distintos. Em Miller, a escrava nem mais é mencionada, assim como a
personagem histórica, de quem não se tem mais notícias após seu encarceramento, e o
texto se volta cada vez mais para o comportamento das garotas e as consequências
relacionadas a tal posicionamento para a sociedade como um todo e para a família
Proctor em especial. Em Condé, é a própria Tituba quem continua a comandar a
narrativa e, presa, encontra-se com a protagonista do segundo hipotexto analisado neste
trabalho: Hester Prynne, de A letra escarlate (1890). Todos os acusados foram presos à
espera de julgamento e Tituba narra, então, seu encontro com Hester:
Nous demerâumes une semaine em prison em attendant que s'achèvent les
préparatifs de notre comparution devant le Tribunal à salem. Et là, une fois
de plus, malgré mês récents déboires et le souvenir des recommandations de
John Indien, je me laissai prendre au piège de l'apparente amitié. Comme je
grelottais et perdais mon sang dans le corridor où j'étais enchaînée, une
femme passala main à travers les barreaux de sa ceulle et arrêta un des
hommes de police:
- Ici, il y a place pour deux. Fais entrer cette pauvre cr
éature!
La femme qui avait parl
é ainsi était jeune, pas plus de vingt-trois ans, belle.
Elle avait, sans modestie rejeté le béguin et montrait une luxurirante
chevelure, noire comme l'aile d'un corbeau, qui aux yeux de certains devait à
elle seule symboliser le péché et appeler le châtiment. De même, ses yeux
étaient noirs, pas gris couleur d'eau sale, pas verts couleurs de méchanceté,
155 Senhora Parris, quando a senhora esteve doente, quem cuidou da senhora? (...) quem fez brilhar sobre
sua cabeça o sol da cura? Não fui eu? E agora a senhora vem falar em sortilégios? (CONDÉ, 1997, p. 98)
156 Escute, Tituba! Daqui a pouco a matilha de lobos vai cair em cima de você, rasgar você (...). Você
tem que se defender e provar que essas crianças não estão enfeitiçadas. (ibid., p. 105)
noirs comme l'ombre bienfaisante de la nuit. (CONDÉ, 2007, p. 150, marcas
nossas)
157
De início, e como pode ser observado no último fragmento citado, o encontro
com Hester foi, para Tituba, assim como ela o mostra por meio de sua narrativa, uma
espécie de armadilha com essa menção, a narrativa suscita no leitor a dúvida: em que
situação a escrava seria envolvida agora? Seria, novamente, punida por se envolver com
alguém que a princípio lhe pareceria amigável e depois se voltaria contra ela?
Na verdade, a Hester de Condé é retratada como uma mulher bela, culta e, ao
mesmo tempo, revoltada com sua condição naquela sociedade, como se não fosse
compatível com o lugar que habitava e o período em que vivia. De certa forma, tanto a
Hester revista por Condé quanto a Hester de Hawthorne parecem similares sob esse
prisma, mas vale ressaltar que o confronto que passará a ser traçado a partir de agora é
feito sob a perspectiva do pesquisador, uma vez que não como inserir Tituba na obra
de Hawthorne, pois ela não existe nessa narrativa e a Hester que é delineada por Maryse
Condé tem um quê de distinção da mesma personagem na obra do escritor americano,
não somente pelo que acontece com a personagem no decorrer das narrativas, mas
também pelo fato de que na narrativa de Condé sua passagem é breve, mesmo que
marcante.
No romance da antilhana, Hester mostra-se encantada com a nova companheira
de cela e logo nos primeiros momentos juntas tenta amenizar as dores de Tituba, além
de ser uma forma de se aproximar dela:
Elle alla chercher l'eau d'une cruche et s'agenouillant, s'efforça de laver les
tumeurs de mon visage. Tout en s'activant ainsi, elle parlait comme pour elle-
même, sans peut-être attendre de réponse:
- Quelle couleur magnifique a sa peau et comme elle peut sous ce couvert,
dissimuler ses sentiments! Peur, angoisse, fureur, dégôut! Moi, je n'y suis
157 Ficamos na prisão uma semana, esperando que terminassem os preparativos para o nosso
comparecimento perante o tribunal de Salém. E aí, mais uma vez, apesar dos mais recentes dissabores e
da lembrança das recomendações de John Índio, eu me deixava cair na armadilha da amizade aparente.
Como eu tiritava e perdia sangue no corredor onde estava acorrentada, uma mulher passou a mão através
das barras da cela e parou um dos policiais:
- Aqui tem lugar para duas. Ponha essa pobre criatura aqui dentro!
A mulher que tinha falado isso era jovem, não mais de vinte e três anos, bonita. Tinha, sem modéstia,
rejeitado a touca, e exibia uma cabeleira luxuriante, negra como a asa de um corvo, que aos olhos de
alguns deveria, por si só, simbolizar o pecado e chamar o castigo. Do mesmo modo, seus olhos eram
negros; não cinzentos, cor de água suja, nem verdes, cor de maldade. Negros como a escuridão benéfica
da noite. (ibid., p.127, marcas nossas)
jamais parvenue et les mouvements de mon sang m'ont toujours trahie!
(CONDÉ, 2007, pp. 150-151)
158
A partir da acolhida, mesmo que, como mencionado na citação anterior, pudesse
parecer que Hester não estivesse preocupada em receber qualquer tipo de resposta,
segue-se em Condé um diálogo entre as companheiras de cela, como uma espécie de
apresentação, sempre, obviamente, passando pelo crivo da personagem protagonista,
Tituba, mas desde o início deixando claro o comportamento, diríamos, moderno de
Hester, pelo menos para aquela época:
- Maîtresse...
- Ne m'appele pas
maîtresse.
- Comment vous nommerai-je alors?
- Mais par mon nom: Hester! Et toi quel est le tien?
- Tituba
- Tituba?
Elle r
épéta cela avec ravissement:
- D'o
ù te vient-il?
- Mon p
ère me l'a donné à ma naissance!
- Ton p
ère?
Sa l
èvre eut un rictus d'irritation:
- Tu portes le nom qu'un homme t
á donné?
Dans mon
étonnement, je fus un instant sans répondre, puis je répliquai:
- N'en est-il pas de même pour toute femme? D'abord le nom de son père,
ensuite, celui de son mari?
Elle fit songeuse:
- J'esp
érais qu'au moins certaines sociétés échappaient à cette loi. La tienne,
par exemple! (CONDÉ, 2007, p. 151)
159
158 Ela foi buscar água numa moringa e, se ajoelhando, esforçou-se para lavar os tumores do meu rosto.
Nessa atividade, falava, como se para si mesma, sem esperar resposta, talvez:
- Que cor magnífica tem sua pele e como pode, sob esta cobertura, dissimular seus sentimentos! Medo,
angústia, furor, desgosto! Eu jamais consegui isso; os movimentos do meu sangue sempre me traíram!
(CONDÉ, 1997, pp. 127-128)
159 - Senhora...
- N
ão me chame de senhora.
- Como vou cham
á-la, então?
- Pelo meu nome, ora: Hester! E o seu, qual
é?
- Tituba.
- Tituba?
Ela repetiu enlevada:
- De onde vem esse nome?
- Meu pai me deu quando nasci!
- Seu pai?
Por meio de uma contra
ção, seus lábios demonstraram irritação:
- Você usa um nome dado por um homem?
No meu espanto, fiquei um instante sem responder. Depois repliquei:
- Não é o que acontece com toda mulher? Em primeiro lugar, o nome do pai; depois o nome do marido?
Ela disse sonhadora:
- Eu esperava que ao menos certas sociedades escapassem dessa lei. A sua, por exemplo! (COND
É, 1997,
p. 128)
No hipotexto, o leitor é apresentado à protagonista conhecendo seu destino: a
condenação a usar em seu peito uma letra A, escarlate, em virtude de ter cometido
adultério e não obedecer às ordens da lei, no sentido de revelar quem fora seu parceiro
para que, também ele, recebesse a punição cabível. Sua primeira descrição é feita pelo
narrador apenas depois de ter sido apresentada sua vestimenta, ostentando o A, marca
de seu pecado:
The young woman was tall, with a figure of perfect elegance on a large scale.
She had dark and abundant hair, so glossy that it threw off the sunshine with
a gleam and a face which, besides being beautiful from regularity of feature
and richness of complexion, had the impressiveness belonging to a marked
brow and deep black eyes. She was ladylike, too, after the manner of the
feminine gentility of those days; characterized by a certain state and dignity,
rather than by the delicate, evanescent and indescribable grace, which is now
recognize as its indication. And never had Hester Prynne appeared more
ladylike, in the antique interpretation of the term, than as she issued from the
prison. Those who had before known her and had expected to behold her
dimmed and obscured by a disastrous cloud, were astonished, and even
startled, to perceive how her beauty shone out and made a halo of the
misfortune and ignominy in which she was enveloped. It may be true that, to
a sensitive observer, there was something exquisitely painful in it. Her attire,
which, indeed, she had wrought for the occasion, in prison, and had modeled
much after her own fancy, seemed to express the attitude of her spirit, the
desperate recklessness of her mood, by its wild and picturesque peculiarity.
But the point which drew all eyes and, as it were, transfigured the wearer so
that both men and women, who had been familiarly acquainted with Hester
Prynne, were now impressed as if they beheld her for the first time was that
Scarlet Letter, so fantastically embroidered and illuminated upon her bosom.
It had the effect of a spell, taking her out of the ordinary relations with
humanity and enclosing her in a sphere by herself.(HAWTHORNE, 1999, p.
47)
160
160 A jovem era alta, elegantíssima. Tinha os cabelos pretos e copiosos, tão espelhantes que refrangiam
em chispas os raios do sol. O seu rosto, além de belo pela regularidade e pela riqueza dos traços, irradiava
a unção que vem de uma das pestanas arqueadas e de uns olhos negros e pensativos. Tinha também um ar
de grande dama, no padrão da nobreza feminina daquele tempo, caracterizado mais por uma espécie de
aparato e majestade do que pela graça gentil, vaporosa e inexprimível de agora, e jamais parecera mais
distinta, na antiga compreensão do termo, do que ao emergir da cadeia. Os que já a conheciam e
esperavam vê-la empanada e esbatida numa nuvem de catástrofe ficaram atônitos, pasmados de
testemunhar como a sua beleza fulgurava, transformando o infortúnio e o labéu num lado que a envolvia
toda. É verdade que, para um observador sensível, havia naquele esplendor qualquer coisa de
estranhamente doloroso. A insolente e pitoresca originalidade do traje por ela confeccionado no cárcere
para aquela ocasião parecia revelar a atitude do seu espírito, a desesperada temeridade do seu ânimo. Mas
o detalhe que atraía todos os olhares e os esgazeava a ponto de os homens e mulheres que a conheciam
intimamente se sentirem impressionados como se a estivessem vendo pela primeira vez era aquela letra
escarlate, tão imaginosamente trabalhada no corpete. Dir-se-ia ungida de um feitiço que a arrebatava das
relações ordinárias com a humanidade, enclausurando-a num mundo todo seu. (HAWTHORNE, 2006, p.
60)
Essa jovem, no romance de Condé, é igualmente vista por Tituba como alguém,
na mesma condição de submissão às leis dos homens, mesmo que por motivos diversos
aos dela, mas igualmente infeliz por ali estar. Ambas padecem das mesmas dores: são
mulheres que, mesmo pertencentes a estatutos sociais diferentes, encontram-se em
condição de submissão àquela sociedade, culpadas por crimes questionáveis: Tituba,
acusada de ser feiticeira e Hester, por ter engravidado de um homem que não era o seu
marido mesmo que este estivesse há muito desaparecido nenhuma das duas
precisaria, efetivamente estar ali. Hester mostra-se, inclusive, revoltada por ter sido
acusada de adultério, mesmo que se recuse a entregar o co-responsável pelo crime: Et
pendant que je croupis ici, celui qui m'a planté cet enfant dans le ventre va et vient
librement.(CONDÉ, 2007, p. 153)
161
Cabe, aqui, um aparte para que se trace um paralelo que diga respeito à gravidez
de Hester e à gravidez de Tituba, anterior à sua prisão, que acabou por ser interrompida
pela escrava. A descrição dos sentimentos em relação às crianças que abrigavam em
seus ventres parece, de algum modo, similar entre as duas personagens Tituba
descobre estar grávida logo após um episódio em que assistiu ao enforcamento de uma
mulher acusada de feitiçaria. Inicialmente, a escrava diz que era como se tivesse seis
anos novamente e revivesse o enforcamento de sua própria mãe, tamanha foi a sensação
de impotência e de sofrimento que sentiu ao assistir àquela cena:
Ce fut peu après cela que je m'aperçus que je portais un enfant et que je
décidai de le tuer.
Dans ma triste existence,
à part les baisers volés à betsey et les secrets
échangés avec Élizabeth Parris, les seuls moments de bonheur étaient ceux
que je passais avec John Indien.
(...)
Pour une esclave, la maternit
é n'est pas un bonheur. Elle revient à expulser
dans un monde de servitude et d'abjection, un petit innocent dont il lui sera
impossible de changer la destinée. (CONDÉ, 2007, pp. 82-83)
162
161 E enquanto eu apodreço aqui, aquele que me plantou esta criança no ventre vai e vem em liberdade.
(CONDÉ, 1997, p. 129)
162 Foi um pouco depois disso que me dei conta de que estava gr
ávida e decidi matar a criança.
Na minha triste existência, à parte os beijos roubados de Betsey e os segredos trocados com Elizabeth
Parris, os únicos momentos de felicidade eram os que eu passava com John Índio.
(...)
Para uma escrava, a maternidade n
ão é uma felicidade. Ela joga num mundo de servidão e de abjeção um
pequeno inocente, a quem será impossível mudar o destino. (CONDÉ, 1997, pp.70-71)
No romance de Hawthorne, o narrador descreve a cena em que Hester se
encontra na plataforma do pelourinho, o que lembra, de alguma forma, essa
preocupação com a condição da vida humana:
Had there been a Papist among the crowd of Puritans, He might have seen in
this beautiful woman, so picturesque in her attire and mien, and with the
infant at her bosom, an object to remind him of the image of Divine
Maternity, which so many illustrious painters have vied with one another to
represent; something which should remind him, indeed, but only by contrast,
of that sacred image of sinless motherhood, whose infant was to redeem the
world. Here, there was the taint of deepest sin in the most sacred quality of
human life, working such effect that the world was only the darker for this
woman´s beauty, and the more lost for the infant that she had borne.
(HAWTHORNE, 1999, p. 49)
163
Mesmo que sob diferentes perspectivas é possível confrontar tais
posicionamentos, com a escrava Tituba não se esquivando da responsabilidade trazida
pela maternidade, mas em uma tentativa de proteger sua cria de viver em um mundo do
qual nada poderia tirar de seu, no qual teria apenas um futuro igual a todos os outros de
sua classe: um destino de servidão e submissão, sofrimento e nenhuma forma de
liberdade. Já Hester preserva-se o direito de não tornar público o nome daquele com
quem cometera o adultério, não somente na intenção de protegê-lo, em sua posição
como pastor, mas também na tentativa de proteger sua filha de ser vista como fruto de
uma relação sem nenhuma forma de amor, mas simplesmente como um ato meramente
carnal. Na verdade, o próprio nome que deu à menina pode ajudar a entender tal
posicionamento: Pearl, em língua portuguesa, Pérola, símbolo do feminino, que
representa a perfeição e a incorruptibilidade, além de também simbolizar vida longa e
fertilidade. Do significado literal, a pérola vem encerrada em uma ostra, o que pode
representar o desejo feminino, escondido e, em muitas filosofias orientais, como o
Budismo, o Taoísmo e o Hinduísmo, a pérola pode significar sabedoria e conhecimento
espiritual.
164
A pérola é, ainda, um símbolo lunar ligado à água e à mulher e representa a
feminilidade criativa, a sublimação dos instintos, a espiritualização da matéria, a
163 Houvesse um papista ali, na turba de puritanos, e teria visto naquela mulher, tão singular nos trajes e
na atitude, e com a criança ao colo, qualquer coisa que lhe recordaria a figura da Divina Maternidade, que
tantos pintores ilustres têm porfiado em representar. Qualquer coisa que lhe teria evocado, mas pelo
contraste, a sagrada imagem da Mãe cujo filho veio redimir o Mundo. No caso, entretanto, a mancha do
mais negro pecado contra a mais santa condição da vida humana atuava de tal maneira que, para aquela
beldade feminina, o Mundo era todo trevas. E estava perdido para a filha que ela concebera.
(HAWTHORNE, 2006, p. 62)
164http://www.salves.com.br/dicsimb/dicsimbolon/perola.htm acesso em 18/05/09
às 18:26
transfiguração dos elementos, o termo brilhante da evolução. (CHEVALIER &
GHEERBRANT, 1998, p.711)
Todas as características atribuídas ao nome da filha de Hester Prynne podem,
também, estar relacionadas a ela mesma, tanto na obra de Hawthorne quanto na de
Condé. Hester é forte, decidida, firme em seus posicionamentos e decisões. No
hipotexto, por exemplo, há o trecho em que o Reverendo Dimmesdale é obrigado por
seus pares, devido à sua posição naquela comunidade, a tentar fazer com que Hester
confessasse o nome do pai de sua filha, mas suas tentativas mostram-se frustradas,
como se segue, ante o posicionamento firme de Hester, apesar do sofrimento que toda
aquela situação lhe causava, principalmente por ser ele o homem a quem amava e, por
esse motivo, precisava esconder de todos ali esse amor:
Speak, woman! Said another voice, coldly and sternly, proceeding from the
crowd about the scaffold. Speak, and give your child a father! I will not
speak! answered Hester, turning pale as death, but responding to this voice,
which she too surely recognized. And my child must seek a heavenly
Father; she shall never know an earthly one! She will not speak! Murmured
Mr. Dimmesdale, Who, leaning over the balcony, with his hand upon his
heart, had awaited the resulto f his appeal. He now drew back, with a long
respiration. Wondrous strength and generosity of a woman´s heart! She will
not speak.
(...)
Hester Prynne, meanwhile, jept her place upon the pedestal of shame, with
glazed eyes, and an air of weary indifference. She had borne, that morning,
all that nature could endure; and as her temperament was not of the order that
escapes from too intense suffering by a swoon, her spirit could only shelter
itself beneath a stony crust of insensibility, while the faculties of animal life
remained entire. (HAWTHORNE, 1999, pp. 60-61)
165
O que fica mais evidente na leitura de Condé é o comportamento que seria visto,
nos dias atuais, como partidário do feminismo. Obviamente, não é possível dizer, sob o
ponto de vista puritano, que a personagem Hester era feminista, uma vez que essa
165 - Fala, mulher! - disse fria e severamente, outra voz que vinha da turba em redor do cadafalso. - Fala
e dá um pai à tua filha!
- N
ão falarei Respondeu Hester, tornando-se pálida como morta, mas replicando à voz que reconhecera
com absoluta certeza. - E minha filha terá que procurar um Pai no Céu. Jamais o conhecerá na Terra!
- Não falará! - murmurou o Sr. Dimmesdale, que, debruçado na tribuna, com a mão no coração,
aguardava o resultado do seu apelo. - prodigiosa energia, generosidade admirável de um coração de
mulher! Não falará!
(...)
Hester Prynne permanecia no pelourinho, os olhos vagos e um ar de fatigada indiferen
ça. Sofrera naquela
manhã tudo quanto a dignidade pode sofrer. E, como não possuía o tipo de temperamento que foge pelo
desmaio às dores lancinantes, o seu espírito só se pudera valer de uma pétrea crosta de insensibilidade, ao
passo que as funções da vida animal continuavam íntegras. (HAWTHORNE, 2006, pp. 71-72)
postura não existia naquele período, mas é possível afirmar que a personagem assume
um papel que reforça a idéia da luta por um direito feminino e esse posicionamento
pode ser observado em muitos dos diálogos que trava com Tituba, também em uma
forma de ajudar a escrava a entender que não deve aceitar uma posição de inferioridade
somente porque aquela sociedade a julga como marginal por ser negra, escrava, mulher
e, ainda, acusada de feitiçaria. Tal posicionamento de Hester na obra de Condé revela
sua cultura, seu status social e, acima de tudo, suas idéias, por meio de um discurso que
está além de seu tempo, como é possível notar em:
- Il faut peut-être que je commence par le commencement si je veux que tu
comprennes quelque chose à mon histoire. (...) Moi, já avais le malheur
d'appartenir à une famille qui croyant à l'égalité des sexes et, à l'âge l'on
joue sainement à la poupée, mon père me faisant réciter mes classiques!
en étais-je? Ah, oui! A seize ans, on m'a mariée à un Révérend, ami de ma
famille qui avait enterré trois épouses et cinq enfants. L'odeur de sa
boucheétait telle que, pour mon bonheur, je m'évanouissais dès qu'il se
penchait sur moi. Tout mon être se refusait à lui, pourtant, il m'a fait quatre
enfants qu'il a plu au seigner d'enlever à la terre au Seigneur et à moi aussi!
Car il m'était impossible d'aimer les rejetons d'un homme que je haïssais. Je
ne te cacherai pas, Tituba, que le nombre de potions, décoctions, purgatifs et
laxatifs que j'ai pris pendant mes grossesses a aidé à cet heureux
aboutissement. (CONDÉ, 2007, pp. 153-154)
166
A personagem Tituba começa a se identificar com Hester, quando murmura para
si mesma: Moi aussi, j'ai tuer mon enfant!(ibid., p. 154)
167
e é apresentada, mais
uma vez, pela narradora, como uma vítima que era considerada culpada, assim como a
própria Tituba e, por se compadecerem uma da outra, a escrava tenta confortar Hester,
enquanto esta se mostra solidária à situação da escrava e se oferece para ajudá-la a
preparar seu depoimento, uma vez que ninguém melhor que ela, que além de todo seu
conhecimento, vivera com membros da igreja, para saber o que poderia ser dito e como
isso seria interpretado pela comunidade:
166 - Talvez seja preciso eu começar pelo começo, se quiser que você entenda alguma coisa da minha
história. (...) Eu tive a infelicidade de pertencer a uma família que acreditava na igualdade dos sexos e, na
idade em que se brinca saudavelmente de boneca, meu pai me fazia recitar os clássicos! Onde eu estava?
Ah, sim! Aos dezesseis anos, me casaram com um reverendo, amigo da família, que tinha enterrado três
esposas e cinco filhos. O cheiro de sua boca era tal que, para minha felicidade, eu desmaiava quando ele
se inclinava sobre mim. Todo o meu ser o rejeitava e no entanto, ele me fez quatro filhos, que quis o
Senhor levar para a terra. Quis o Senhor e quis eu também! Pois era impossível para mim amar os
rebentos de um homem que eu odiava. Não vou esconder de você, Tituba, que a quantidade de poções,
cocções, purgativos e laxativos que tomei durante gravidez ajudou chegar a esse final feliz. (CONDÉ,
1997, pp. 130-131)
167 Eu tamb
ém tive de matar meu filho! (ibid., p. 131)
Hester m'apprit à préparer ma déposition.
Parlez d'une fille de R
évérend pour en savoir un bout sur Satan! N'avait-elle
pas rompu le pain avec lui depuis l'enfance? Ne s'était-il pas vautré sur son
édredon dans sa chambre sans feu en la fixant de ses prunelles jaunâtres?
N'avait-il pas miaulé dans tous les chats noirs? Coassé dans les grenouilles?
Et même fait la ronde dans les souris grises?
- Fais-leur peur, Tituba! Donne-leur-en pour leur argent! D
écris-le sous la
forme d'un bouc avec un nez en forme de bec d'aigle, un corps tout couvert
de longs poils noirs et, attachée à la taille, une ceinture de têtes de scorpions.
Qu'ils tremblent, qu'ils frémissent, qu'ils se pâment! Qu'ils dansent au son de
sa flûte, peue dans le lointain! Décris-leur les réunions de sorcières,
chacune arrivant sur son balai, les mâchoires dégoulinantes de désir à la
pensée du banquet de foetus et d'enfants nouveau-nés qui serait servi avec
force chopes de sang frais...
J'
éclatais de rire:
- Vouyons, Hester, tout cela est ridicule!
- Mais puisqu'ils y croient! Que t'importe, d
écris! (CONDÉ, 2007, pp. 157-
158)
168
Tituba segue os conselhos de Hester em seu depoimento e faz as denúncias
cabíveis, assim como a própria Hester e, antes dela, John Índio, tinham lhe aconselhado,
mas tudo isso apenas serviu para que a escrava se sentisse exatamente como aqueles que
a acusavam. De volta à prisão, pede para ficar na mesma cela em que Hester estaria,
mas percebe que isso seria impossível, pois ela não estava mais lá:
- Maître, ayez la bonté de me dire ce qu'il est advenu d'elle, car il n'y a pas
d'âme plus bienfaisante sur cette terre!
L'homme de police eut une sorte d'exclamation:
- Bienfaisante? Eh bien! Toute bienfaisante qu
élle te semble, elle est à cette
heure damnée, car elle s'est pendue dans sa cellule.
- Pendue?
- Oui, pendue!
168 Hester me ensinou a preparar meu depoimento.
Nada como uma filha de reverendo para conhecer Satan
ás! Não repartia o pão com ele desde a infância?
Ele não tinha se espojado sobre o edredon dela, em seu quarto sem lareira, fixando-a com as pupilas
amareladas? Não tinha miado na voz de todos os gatos pretos? Coaxado nos sapos? E até mesmo feito
rondas dentro dos ratos cinzentos?
- Amedronte-os, Tituba! D
ê a eles o que merecem! Descreva-o sob a forma de um bode, com nariz em
forma de bico de águia, o corpo todo coberto de pelos negros compridos e, preso à cintura, um cinto de
cabeças de escorpiões. Que estremeçam, que se agitem, que desfaleçam! Que dancem ao som de sua
flauta, ouvida na distância. Descreva a eles as reuniões das feiticeiras, cada uma chegando com sua
vassoura, as mandíbulas pingando de desejo só de pensar no banquete de fetos e recém-nascidos a ser
servido com canecos de sangue fresco...
Ca
í na risada:
- Ora, Hester, isso
é ridículo!
- Mas se acreditam! Que importa? Descreva! (COND
É, 1997, p. 133)
(...)
Pendue? Hester, Hester, pourquoi ne m'as-tu pas attendue? (COND
É, 2007,
p.174)
169
Tituba adoece e chega a pensar na morte, como se quisesse por um fim a seu
sofrimento: Il me semblait qu'Hester m'avait montré un exemple que je devais suivre.
Hélas! Je n'en avais point le courage.(ibid., p. 176)
170
Entretanto, o comportamento da
Hester composta por Maryse Condé distancia-se da trajetória da Hester de Hawthorne,
pois esta última mostra-se, mesmo fragilizada por sua posição de pária da sociedade em
que vivia, firme no propósito de criar sua filha nos preceitos que acreditava corretos e,
ainda, preservar a identidade daquele que amava, além de proteger tanto Pearl quanto
Dimmesdale das garras de Chillington, caso ele descobrisse que o reverendo era o
homem com quem Hester o havia traído.
De qualquer forma, o que fica claro para o leitor de ambas as obras é a forma
como a releitura da Hester de Hawthorne é feita por Condé: em Hawthorne, mesmo
sendo uma mulher com uma forma de comportamento que chocava a sociedade, Hester
ainda se enquadrava dentro dos preceitos puritanos e respeitava-os, assim como acabou
por respeitar até o final de sua existência, a punição que lhe for a atribuída. Mesmo
quando retirou a letra de seu peito, ao conversar com Dimmesdale às margens do
riacho, sua filha representou a sociedade, como se não a reconhecesse, quando Hester a
chama sem a letra em seu peito e sem a touca cobrindo seus cabelos:
Hester turned again towards Pearl with a crimson blush upon her cheek, a
conscious glance aside at the clergyman, and then a heavy sigh; while, even
before she had time to speak, the blush yielded to a deadly pallor. Pearl,
said she, sadly, look down at thy feet! There!- before thee!- on the hither
side of the brook! The child turned her eyes to the point indicated; and there
lay the scarlet letter, so close ipon the margin of the stream that the gold
embroidery was reflected in it. Bring it hither! said Hester. Come thou
and take it up! answered Pearl. Was ever such a child! observed Hester,
aside to the minister.
169 - Senhor, tenha a bondade de me dizer o que aconteceu com ela, pois não existe alma mais bondosa
nesta terra!
O policial como que exclamou:
- Bondosa? Muito bem. Por mais bondosa que lhe pare
ça, a esta hora está danada, pois enforcou-se na
cela.
- Enforcou-se?
- Sim, enforcou-se!
(...)
Enforcada? Hester, Hester, por que n
ão esperou por mim? (ibid., pp.147-148)
170 Parecia-me que Hester me tinha mostrado um exemplo que eu devia seguir. Ai de mim! Eu não
tinha, absolutamente, coragem. (ibid., p. 149)
Oh, I have much to tell thee about her! But, in very truth, she is right as
regards this hateful token. I must bear its torture yet a little longer only a
few days longer until we shall have left this region and look back ither as to
land which we have dreamed of. The forest cannot hide it! The mid-ocean
shall take it from my hand and swallow it up forever. (HAWTHORNE, 1999,
p. 192)
171
De fato, tanto Hester quanto Tituba têm seus pecados revelados e jamais
esquecidos em uma floresta a primeira sem poder se sentir livre de sua sina mesmo
longe dos olhos da sociedade, pois sua filha representa os olhos que não a estão vendo e
a segunda, tem na floresta o início, o meio e o final de sua jornada: é na floresta que
habitava antes de conhecer John Índio e resolver voltar ao convívio com a comunidade;
é na floresta que supostamente dançava com as meninas e é na floresta que volta a viver
quando retorna a Barbados.
As Titubas de Miller e Condé e as Hesters de Hawthorne e Condé encerram,
todas, a mesma temática: não importa em que tempo ou em que circunstâncias, elas
seriam consideradas culpadas, por sua força ou posicionamento, pelo fascínio que
exerciam ao representar o pecado e pela coragem de enfrentar o mundo que as cercava,
mesmo que a intolerância, em todos os seus aspectos, continuasse a puni-las. Essas
personagens, além de significativas do ponto de vista temático, também o são do
aspecto discursivo: é possível, por meio da leitura de seus discursos, perceber que a
Tituba e a Hester apresentadas por Maryse Condé estão à frente de seu tempo, tanto em
comportamento quanto em representação na sociedade que ocupavam, enquanto que as
mesmas personagens, em seus hipotextos, ocupam papéis convencionais, de acordo com
as convenções de seu tempo e do momento em que as obras foram escritas.
171 Hester voltou-se de novo para Pearl, com um rubor nas faces, em olhar de compreensão dado de lado
ao pastor e, depois, um profundo suspiro. E, antes que pudesse falar, o rubor desfaleceu numa palidez
mortal.
- Pearl! - disse ela tristemente -, olha para teus p
és! Ali! Diante de ti! Do lado de cá do regato!
A menina volveu a vista para o ponto indicado e lá estava a letra escarlate tão perto da água que o
bordado a ouro se refletia nela.
- Traze-me isto! - ordenou a m
ãe.
- Vem tu apanha-a - respondeu a crian
ça.
-
É sempre assim esta menina! - observou Hester, para o sacerdote. Oh, tenho muito o que te contar a
respeito dela! Mas, quanto a este símbolo odioso, tem razão. Devo suportar um pouco mais a tortura que
ele me inflige. Somente por uns dias, até que deixemos esta terra e a possamos recordar como um lugar
que vimos apenas em um sonho. A floresta não pode esconder aquela letra! O oceano a receberá de mim e
a tragará para sempre!
(...)
- Agora reconheces a tua m
ãe, minha filha? - perguntou, repreensiva, mas num tom discreto. - Queres
atravessar o regato e voltar a pertencer à tua mãe, agora que ela tem sobre si a vergonha, agora que ela
está triste?
- Sim, agora irei! - respondeu a menina saltando o c
órrego e abraçando-a. - Agora és minha mãe. E eu sou
a tua pequena Pearl. (HAWTHORNE, 2006, pp. 185-186)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposta do presente estudo foi discutir a forma pela qual a autora antilhana,
Maryse Condé, por meio de sua obra, Eu, Tituba, feiticeira... Negra de Salém (1986),
retomou duas das grandes obras do cânone literário americano: As bruxas de Salém
(1953), do dramaturgo Arthur Miller e A letra escarlate (1850), de Nathaniel
Hawthorne. Tal retomada se deu de maneira bastante inusitada, uma vez que a autora
tomou os hipotextos dos americanos e subverteu-os, de certa forma, ao dar voz a uma
personagem que, em uma obra era considerada secundária e, em outra, sequer existia,
fazendo uso, então da personagem principal desse romance, agora como secundária em
sua própria versão dessas novas realidades.
Entretanto, antes de retomar os aspectos que se fizeram mais relevantes em todo
o levantamento e discussões apresentados no decorrer do estudo, faz-se relevante
mencionar que acima de tudo, a temática apresentada por Condé é por demais marcante
sob a ótica do pós-modernismo e todas as suas características: como releitura do
passado, na tentativa de suprir possíveis lacunas, com a possibilidade de rever esse
mesmo passado com um novo olhar, muitas vezes a partir de um sujeito ex-cêntrico,
marginalizado, que sofre preconceito mais especificamente aqui, tratando de Tituba,
mulher, escrava, negra, supostamente feiticeira, inicialmente considerada estranha a
seus pares quando ainda habitava sua terra natal, estrangeira em uma terra de brancos e,
novamente, uma estranha, quando retorna a Barbados e passa a ser vista como ícone e
não como ser humano.
Parece relevante destacar que o romance de Maryse Condé apresenta diversas
possibilidades de entendimento do que seria discutir as temáticas de diferentes
representações sociais, políticas e culturais, como a questão da intolerância em todas as
suas formas de expressão, os diferentes neros discursivos em que cada uma das obras
estudadas é classificada, a saber, romance e teatro, o estudo das personagens, no qual se
tenta traçar as diferenças entre os conceitos acerca da concepção tradicional da
personagem e sua concepção sob o ponto de vista da pós-modernidade, vista neste
estudo sob a ótica da metaficção historiográfica.
Para que os objetivos tra
çados fossem alcançados, este trabalho foi iniciado com
um levantamento acerca das convergências entre os conceitos de História e Literatura,
de forma a tentar estabelecer um paralelo entre estas duas maneiras de se tratar de um
fato, seja do ponto de vista objetivamente prático e científico, sob a ótica do historiador,
que seleciona determinado acontecimento e faz dele a sua narrativa, sob o seu ponto de
vista, isolando esse fato para poder dar a ele maior destaque e, muitas vezes, aplicar
maior didatismo à sua descrição; seja do ponto de vista literário, que pode fazer uso de
um fato amplamente ficcional ou tornar um fato histórico ficcional, aproveitando-se da
realidade científica de tal acontecimento e aplicando a tal realidade uma nova e, muitas
vezes, inusitada, perspectiva, criando novas e infinitas possibilidades de leituras.
Em seguida, julgou-se conveniente apresentar um breve levantamento acerca da
história norte-americana em diferentes momentos, obviamente relevantes para o
entendimento das obras a serem posteriormente apresentadas, a saber: foram tratados
momentos referentes ao período de colonização norte-americana, retratado tanto na peça
de Arthur Miller quanto no romance de Nathaniel Hawthorne, bem como um momento
da década de 50, no século XX, conhecido como Guerra Fria, momento no qual se viu
estabelecida uma nova proposta de 'caça às bruxas', lançada pelo então Senador Joseph
McCarthy foi esse o momento em que Artur Miller resolveu escrever sua peça, para
criticar a situação política e de extrema hipocrisia pela qual passava a sociedade
americana em que vivia, enfatizando a questão da hipocrisia associada à intolerância em
um âmbito generalizado.
Antes que fosse feita a efetiva apresentação dos fundamentos teóricos e das
obras em contraste, falamos, ainda de Miller e Hawthorne, com suas obras sob a
perspectiva de serem elas releituras da história tanto do passado quanto do momento em
que ambos escreveram, momentos esses que não apresentavam, a princípio, conexão
com o passado colonial, mas que, ao mesmo tempo, deixavam margem a uma
possibilidade de aproximação com esse mesmo passado.
Em Miller, fica clara a noção de que seu retorno ao passado histórico do período
colonial representa uma crítica à sociedade de seu tempo, carente de modelos sadios de
atitude política, em um período em que mais valia acusar do que tentar se defender,
além, obviamente, do medo claro causado pela bomba atômica e pelo comunismo
infiltrado no seio daquela sociedade tão intrinsecamente puritana, como o havia sido
ainda no passado colonial.
Em Hawthorne, o retorno ao passado, agora não o distante, revela uma fuga
relativa aos padrões do romantismo, em busca de uma nova realidade, embora tal
realidade encontrada em A letra escarlate não apresente nenhum paraíso perdido, mas a
dura façanha de se sobreviver perante a hipocrisia social e religiosa de um período
igualmente puritano, mas mais intrinsecamente vivido por aqueles que vieram da
Europa em busca de uma nova Canaã na América do Norte.
É entre essas duas vertentes que se apresenta a obra de Condé, como releitura da
peça de Miller, agora sob o ponto de vista da escrava, Tituba, e, por conta dessa
subversão, sob uma perspectiva totalmente diversa daquela apresentada pelo
dramaturgo, assim como também é diferente a sua apropriação da personagem criada
por Hawthorne, Hester Prynne, que de protagonista no hipotexto, passa a ter papel
secundário, mas bastante relevante na trajetória da heroína desta nova narrativa, que
coloca para o leitor todas as angústias e dilemas de alguém que vive sempre à margem
da sociedade, quer seja como mulher, negra, quer seja como escrava, feiticeira.
Falamos, ainda em dialogismo e intertextualidade, na tentativa de melhor
compreender o processo pelo qual se dá esse diálogo entre as três diferentes obras
estudadas e como se pode analisar a narrativa de Condé sob a ótica da leitura
intertextual, do diálogo com o(s) outro(s). Coube também, neste trecho do trabalho,
apresentar um novo levantamento, agora sobre a teoria da personagem, iniciando com
uma apresentação dessa teoria sob o ponto de vista tradicional para que, posteriormente,
fosse possível entender o comportamento da personagem na obra de Condé, com uma
nova roupagem, com a ajuda dos fundamentos baseados em Bakhtin.
Por fim, quando tratamos de textos ficcionais, foram apresentadas e brevemente
analisadas, uma a uma, as três obras constituintes do corpus para que, em seguida, fosse
feito um confronto entre as personagens que mais se destacam nesta proposta de estudo:
as Titubas, de Miller e Condé e as Hesters, de Hawhtorne e Condé.
Ao acompanhar o desenvolvimento dessas personagens em cada uma dessas
obras e, depois, ao confrontá-las ficou clara, mais uma vez, a ideia de que Maryse
Condé fez muito mais do que simplesmente se reaproveitar de personagens já
consagradas pelo cânone e criar para elas uma nova realidade literária: a escritora
oferece, com seu romance, a possibilidade de diferentes leituras, todas ricas sob
aspectos igualmente diversos.
Inicialmente, por retornar a um passado que propõe, por si mesmo, uma reflexão
crítica o que efetivamente teria sido o episódio da 'caça às bruxas', mas agora sob o
ponto de vista de um acusado de feitiçaria... mais do que tentar provar sua inocência, a
personagem Tituba tinha muito mais a fazer: como mulher, negra, escrava e, de acordo
com aquela comunidade, feiticeira, sua posição é colocada em xeque e é neste momento
que o leitor é apresentado a uma crítica social que não se refere somente àquele
momento, mas a qualquer momento histórico que apresente intolerância, não somente
no comportamento das personagens, mas também em sua organização política e social.
Tomar as personagens femininas como peças fundamentais para o
desenvolvimento deste estudo foi a alternativa encontrada para que essa reflexão crítica
viesse à tona, apontando a personagem Tituba como ponto de passagem entre a questão
da doutrina religiosa e a possível presença da feitiçaria naquela comunidade e, nesse
caso, o que efetivamente se deveria entender por feiticeira: aquela que traz o mal ou a
que faz o bem? Quem seria Tituba nessa dicotomia?
Antes de mais nada, Tituba é a personificação da figura feminina inferiorizada,
que historicamente sofreu e sofre todas as formas possíveis (às vezes também as
inusitadas) de preconceito e que revela em si o sujeito ex-cêntrico ao qual se refere
Linda Hutcheon, principalmente quando este sujeito encontra-se em meio a uma não-
homogeneidade social, o que provoca ainda mais conflitos e mais desigualdades,
levando, inevitavelmente, à temática da intolerância.
Não há, no romance de Condé, um retorno nostálgico ao passado, mas um
retorno que propicia ao leitor uma visão crítica de diversas sociedades em uma, ao
revelar um passado não positivamente cultivado, mas um período marcado por
adversidades sem explicação e por posicionamentos mais do que inadequados sob todos
os pontos de vista. O que se apresenta de maneira positiva nesta releitura oferecida pela
escritora antilhana é a possibilidade de rever a história sob a ótica distinta do colonizado
e não do colonizador.
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