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Thiago Monteiro Bernardo
Sob o Manto do morcego: Uma análise do imaginário da ameaça nos EUA da Era
Reagan através do universo ficcional do Batman.
Rio de Janeiro
2009
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-
Graduação em História Comparada, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em História Comparada.
Orientadora: Sabrina Evangelista Medeiros
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ii
B523
Bernardo, Thiago Monteiro.
Sob o manto negro do morcego : uma análise do
imaginário da ameaça nos EUA da Era Reagan através do
universo ficcional do Batman / Thiago Monteiro Bernardo.
Rio de Janeiro, 2009.
189f.
Dissertação (mestrado em História Comparada) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais, 2009.
Orientador: Sabrina Evangelista Medeiros.
1. Política e cultura – Estados Unidos. 2. Guerra Fria –
Aspectos políticos – Estados Unidos. 3. Histórias em
quadrinhos –
Estados Unidos. 4. Batman 5. História
comparada –Teses. I.Medeiros, Sabrina Evangelista
(Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais III. Título.
CDD:
327.073
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iii
FOLHA DE APROVAÇÃO
Thiago Monteiro Bernardo
Sob o Manto do morcego: Uma análise do imaginário da ameaça nos EUA da Era Reagan
através do universo ficcional do Batman.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Comparada,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História Comparada.
Rio de Janeiro, 31 de agosto de 2009
Aprovada por
_______________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Sabrina Evangelista Medeiros, Programa de Pós-Graduação
em História Comparada – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
_______________________________________________________
Professora Doutora Cristina Buarque de Holanda, Programa de Pós-Graduação em História
Comparada – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
_______________________________________________________
Professora Doutora Samantha Viz Quadrat, Programa de Pós-Graduação em História
Universidade Federal Fluminense.
iv
A uma geração dita perdida que busca encontrar seus próprios caminhos nas trilhas confusas
da pós-modernidade.
v
AGRADECIMENTOS
Ao longo deste trabalho pude contar com o apoio de diversas pessoas que acreditaram
neste tema de pesquisa e compartilharam muitas questões aqui apresentadas comigo. Alguns
de forma mais presente, como os professores do Programa de Pós-Graduação em História
Comparada, outros de maneira indireta, como os colegas de curso. Assim, certo que cometerei
o imperdoável erro de deixar alguém de fora desta lista de agradecimentos peço teimosas e
adiantadas desculpas a todos os não citados aqui.
Primeiramente a minha família, agradeço por tudo. Não como dimensionar a
presença de vocês em minha vida.
A Daniela, agradeço por todo seu amor, carinho e companheirismo ao longo destes
anos, ajudando a superar as crises e a dividir as alegrias deste trabalho.
Agradeço a Christiano Britto, Alexandre Valin, Cristina Rosa e Alexander Martins
Vianna pelo apoio na fase inicial do mestrado. Não poderia me esquecer também de agradecer
a Fábio Campelo pela leitura em cima da hora de meus rascunhos e a Aline Magalhães, que
me ajudou em algumas das traduções deste texto.
Devo também agradecimentos à professora Ana Maria Mauad pelo carinho e apoio
inestimáveis e incondicionais. Só deixo claro ao filho dela que apesar de trabalhar com o
Batman, eu não sou o Robin. Agradeço também ao professor Will Brooker da American
International University in London pela atenção as minhas demandas.
Muito obrigado às professoras Samantha Quadrat e Cristina Buarque e o professor
Francisco Carlos Teixeira da Silva, que compuseram as bancas de qualificação e defesa, por
terem lido atenciosamente estas páginas, contribuindo para o enriquecimento do trabalho.
Finalmente agradeço em particular à professora Sabrina Evangelista Medeiros pela sua
confiança, paciência e suporte em todos os momentos.
vi
Batman:
Criminosos
Criminosos são um terror.
Corações da noite. Eu preciso disfarçar meu terror.
Criminosos são covardes. Uma terrível visão
supersticiosa.
Um bando covarde. Meu disfarce precisa inspirar
terror.
Eu preciso ser negro. Terrível. Criminosos são.
Criminosos são um bando covarde e supersticioso
Eu preciso ser uma criatura da noite.
Mamãe morreu.
Papai morreu.
Brucinho morreu.
Eu me tornarei um morcego.
Coringa:
E quem é este
Puro
Tolo
Eis que,
Nas sagas dos velhos tempos
Lendas de escaldo,
De bardo, de druida
Não vinha ele trajando
Verde como a
Primavera?
O
Tu, água que és ar
Em todo complexo se resolve!
Oh! Sim!
Encha as igrejas com pensamentos imundos!
Apresente a honestidade para a Casa Branca
Escreva cartas em línguas mortas
Para pessoas que nunca conheceu!
Queima seus cartões de crédito
E use salto alto!
Portas do hospício escancaradas!
Encham os subúrbios com estupro e morte!
Divina insanidade!
Que haja êxtase, êxtase nas ruas!
Ria e o Mundo
Rirá com você!
Grant Morrison e Dave McKean, Batman: Asilo Arkham – Uma séria casa em um sério mundo, 1989.
vii
RESUMO
Bernardo, Thiago Monteiro. Sob o Manto do morcego: Uma análise do imaginário da ameaça
nos EUA da Era Reagan através do universo ficcional do Batman. Rio de Janeiro, 2009.
Dissertação (Mestrado em História Comparada) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.
O presente trabalho investiga as transformações ocorridas no imaginário da ameaça
nos EUA durante a segunda Guerra Fria. Para tanto, analisaremos representações de heróis e
vilões, presentes no universo ficcional das histórias em quadrinhos do personagem Batman
durante o segundo governo de Ronald Reagan (1985-1989), buscando compreender a relação
entre a conjuntura política e o ambiente cultural dos EUA no período do fim da Guerra Fria.
Nesta medida operamos com a hipótese de que neste período as representações do imaginário
da ameaça ao american way of life foram redimensionadas trazendo para o centro dos
planos de enredo das HQs do Batman temas como o mal-estar frente a desestruturação do
Estado de Bem-Estar Social, a escalada armamentista nuclear e a ascensão do
fundamentalismo islâmico.
Para tanto abordamos de forma comparada dois eixos temáticos, buscando
compreender as transformações deste imaginário. O primeiro trata das relações entre
identidade e Mal-Estar na pós-modernidade a partir da análise do arco de histórias “Batman:
Ano Um” e da graphic novel “Batman: A Piada Mortal”. O segundo trata das interações entre
política externa, cultura política e o imaginário da ameaça nos Estados Unidos, durante a
Segunda Guerra Fria, através dos conjuntos simbólicos, que compõe o binômio
herói/defensor, bem como seu contraponto, o de vilão/ameaça, nos arcos de histórias
“Batman: As dez Noites da Besta” e “Batman: Uma Morte em Família”. A política de
enfrentamento da administração de Ronald Reagan trazia de volta ao cenário político mundial
a ordem bipolar da Guerra Fria, sob a forma da luta contra o Império do Mal e o surgimento
de novas representações sobre a ameaça a nação, como o fundamentalismo terrorista Islâmico.
viii
ABSTRACT
Bernardo, Thiago Monteiro. Sob o Manto do morcego: Uma análise do imaginário da ameaça
nos EUA da Era Reagan através do universo ficcional do Batman. Rio de Janeiro, 2009.
Dissertação (Mestrado em História Comparada) Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.
This paper investigates the changes occurred in the imaginary of U.S. threat. during
the Second Cold War. To this end, we will analyze the representations of heroes and villains
present in the fictional universe of Batman´s comics during the second government of Ronald
Reagan (1985-1989), seeking to understand the relationship between the political and cultural
environment in the U.S. during the end of the Cold War. We work out with the hypothesis
that the imaginary representations of the threat to the "American way of life" in this period
have been enlarged, bringing to the center of the plot of Batman comics issues as the
Discontents facing the destruction of the Welfare State, the nuclear armament escalation and
the rise of Islamic fundamentalism.
For this approach we compared two themes, seeking to understand the transformations
of this imaginary. The first one investigates the relationship between identity and Discontents
in post-modernity from the analysis of the story arc of “Batman: Year One” and the graphic
novel “Batman: The Killing Joke”. The other one analyzes the interactions between foreign
policy, political culture and the imaginary of threat in the United States during the Second
Cold War through the symbolic sets, in which the binomial hero / defender is compound, as
well as its counterpoint, the one of villain / threat in the stories arcs “Batman: Ten Nights of
the Beast” and “Batman: A Death in the Family”. The policy of confronting of Ronald
Reagan'S administration brought back to the mundial political scene the bipolar order of the
Cold War, as the fight against the Evil Empire and the appearance of new representations
about the threat to the nation, as the Islamic terrorist fundamentalism.
ix
LISTA DE IMAGENS
Imagem 1: Capa da Revista Batman # 404, fev 1987
55
Imagem 2: Folha de rosto da revista Batman # 404, fev. 1987
55
Imagem 3: Ilustração da capa na versão encadernada de Batman Ano Um, 1988
55
Imagem 4: Versão encadernada de Batman Ano Um, 1988. p.1
55
Imagem 5: Chegada de Gordon e Bruce Wayne a Gotham City. Batman Ano
Um, 1988. p.2
56
Imagem 6: Batman Ano Um, 1988. p.18
59
Imagem 7: Gordon enfrenta a polícia corrupta da cidade e início a um novo
modo de ação. Batman Ano Um, 1988. p.19
59
Imagem 8: Miséria e crise social: os estranhos da sociedade pós-moderna.
Batman Ano Um, 1988. p.10.
60
Imagem 9: Assassinato dos pais de Bruce Wayne. Batman Ano Um, 1988. p.21.
63
Imagem 10: Busca por um lugar de reconstrução de identidade Batman Ano
Um, 1988. p.22.
63
Imagem 11: Batman declara guerra a elite criminosa de Gotham City. Batman:
Ano Um, 1988. p.38.
64
Imagem 12: Perseguição policial ao Batman. Batman Ano Um, 1988. p.46
65
Imagem 13: Eliminando estranhos: A morte dos sem-teto pela polícia de
Gotham. Batman Ano Um, 1988. p.50.
65
Imagem 14 Explosões provocadas pela polícia rompem a madrugada. Batman
Ano Um, 1988. p.51.
65
Imagem 15: Televisão como mediadora de informações para a população.
Batman Ano Um, 1988. p.52.
65
x
Imagem 16 : Dilemas de Batman e Gordon em Batman Ano Um, 1988. p.30
73
Imagem 17: Instalação do batsinal: incorporação do símbolo do morcego a
cidade e reconhecimento do vigilante pelo Estado. Batman Ano Um, 1988.
p.97
80
Imagem 18: Advertência sobre a temática adulta da graphic novel Batman: A
Piada Mortal
80
Imagem 18: Capa de Batman: A Piada Mortal, trazendo o Coringa em primeiro
plano, olhando diretamente para os leitores e fotografando-os.
80
Imagem 19: Autorretrato de Brian Bolland que serviu como referência para a
concepção da capa de Batman: A Piada Mortal. Publicado em Batman: The
Killing Joke – Deluxe Edition, de 2008.
80
Imagem 201: Pingos de chuva marcam a abertura e o encerramento de Batman:
A Piada Mortal numa temporalidade cíclica.
81
Imagem 21: Batman: A Piada Mortal, 1988. p.1
81
Imagem 22: Encerramento de Batman: A Piada Mortal. p.47
81
Imagem 24: Batman tenta dialogar com o Coringa. Batman: A Piada Mortal,
1988. p.5
81
Imagem 23: Em meio ao parque abandonado pode-se ver Gotham City ao
fundo, sob a mão do Coringa, no primeiro quadro. Também se destaca o cartaz
da “mulher gorda no último quadro é compõe uma ponte imagética e temporal
para o passado do Coringa, relacionando-se a sua esposa grávida, sentada em
uma cadeira de seu antigo apartamento. Batman: A Piada Mortal, 1988. p.7 .
82
Imagem 24: A insegurança pós-moderna: Homem que se tornaria o Coringa
fracassa em construir seu projeto de vida e perde seu suporte contra o
infortúnio. Batman: A Piada Mortal, 1988. p.8
83
Imagem 25: Continuação do diálogo anterior e ponte imagético-temporal entre
passado/presente e expectativas perdidas. .Batman: A Piada Mortal, 1988.p.9.
83
Imagem 26: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.11
84
Imagem 27: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.13
84
Imagem 28: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.14
85
xi
Imagem 29: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.15
85
Imagem 30: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.20
86
Imagem 32: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.21
86
Imagem 31: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.39
94
Imagem 32: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.40
94
Imagem 33: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.45
95
Imagem 34: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.46
95
Imagem 35: Capa da revista Batman #417, Mar. 1988
100
Imagem 38: Capa da revista Batman #418, Abr. 1988
100
Imagem 369: Capa da revista Batman #420, Maio. 1988
100
Imagem 40: Capa da revista Batman #420, Jun. 1988
100
Imagem 37: Batman #419, Maio 1988. p.4
105
Imagem 38: Batman #418, Abr. 1988, p.19
107
Imagem 39: Batman #418, Abr. 1988, p.1
114
Imagem 40: Batman #418, Abr. 1988, p.14
115
Imagem 41: Batman #420, Jun. 1988. p.14
118
xii
Imagem 42: Batman #420, Jun. 1988. p.15
118
Imagem 47: Batman #420, Jun. 1988. p.16
118
Imagem 43: Batman #420, Jun. 1988. p.17
118
Imagem 44: Batman #420, Jun. 1988. p.20
119
Imagem 45: Batman #420, Jun. 1988. p.21
120
Imagem 46: Primeira concepção visual para Jason Tood, o segundo Robin em
Detective Comics #526, maio de 1983
123
Imagem 47: Concepção visual de Dick Grayson, o primeiro Robin na capa de
Batman #1, primavera de 1940
123
Imagem 48: Batman #424, outubro de 1988. p.1
123
Imagem 49: Capa da revista Batman #426, Dez.
125
Imagem 50: Capa da revista Batman #427, Dez. 1988
125
Imagem 51: Capa da revista Batman #428, Dez. 1988
125
Imagem 52: Capa da revista Batman #429, Jan. 1989
125
Imagem 53: Batman #428, Dez. 1988. p.10
135
Imagem 54: Batman #428, Dez. 1988. p.13
136
Imagem 55: Batman #428, Dez. 1988. p.15
136
Imagem 56: A reconstrução da Origem do II Robin em Batman #408, Jun.
1987.
140
xiii
Imagem 57: Batman #408, Jun. 1987.
140
Imagem 58 Batman #408, Jun. 1987.
140
Imagem 59: Batman #408, Jun. 1987.
140
Imagem 60: Batman #427, Dez. 1988. p.7.
143
Imagem 61: Batman #428, Dez. 1988. p.7.
143
Imagem 62: Batman #427, Dez. 1988. p.23.
144
Imagem 63: Batman #426, Dez. 1988. p.28.
148
Imagem 64: Batman #426, Dez. 1988. p.37.
148
Imagem 65: Batman #427, Dez. 1988. p.14.
149
Imagem 66: Batman #427, Dez. 1988. p.36.
150
Imagem 67: Batman #429, Dez. 1988. p.13.
151
xiv
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1: Desemprego nos EUA classificado por raça e origem hispânica
43
Gráfico 2: Evolução histórica do coeficiente Gini nos EUA
44
Gráfico 3: Concentração de Renda nos EUA – Série Histórica 1979-1993
45
xv
SUMÁRIO
Introdução 1
Capítulo 1. Seguindo as pistas dos que nos precederam: Um balanço
bibliográfico das principais abordagens sobre História e Histórias em
Quadrinhos
Abordagem Marxista instrumentalista
Abordagem da Comunicação e sobre a estrutura de linguagem das HQs
Abordagem dos Estudos Culturais
Abordagens historiográficas sobre as HQs
17
Capítulo 2. Ascensão da New Right, a Doutrina Reagan e Cultura Política
nos EUA.
26
Capítulo 3. “Apenas um Dia Ruim”: As relações entre política, identidade
e mal-estar na Era Reagan
A Crise do estado do Bem-Estar Social e os novos estranhos da pós-
modernidade.
Heróis perdidos em uma cidade Perdida: As tragédias sociais e a construção do
Herói em Batman Ano Um.
Como se Constroem os Heróis: Batman e Gordon como modelo paradigmático.
Para provar que não sou um estranho: Coringa, anomia e a identidade na pós-
modernidade.
40
Capítulo 4. Novos Velhos Inimigos: A Guerra Fria, ameaças externas e
armamentismo em Batman
As Dez Noites da Besta e as relações entre Ocidente e Oriente
Olhares por cima do Muro e a desconfiança: as novas representações sobre o
99
xvi
comunismo
Morte em Família: O Armamentismo e Fundamentalismo Terrorista Islâmico
Narrativa, geopolítica e a internacionalização da ameaça
Neoconservadorismo, crise social e o mito da fronteira
Conclusão 157
Bibliografia 169
Glossário 164
Anexos
Cronologia Cronologia: Era Reagan e II Guerra Fria
171
1
Introdução
As motivações de um trabalho acadêmico normalmente estão muitas vezes mais
vinculadas as nossas vivências pessoais do que nossa percepção imediata é capaz de notar. A
deste trabalho provavelmente nasceu em uma banca de jornal no bairro de Vila Valqueire, no
Rio de Janeiro. Era o mês de janeiro de 1996 e estava prestes a mudar de colégio, saindo de
um, no qual estudei a maior parte de minha vida, para outro, cujo retrospecto de aprovações
no vestibular faziam uma publicidade impressionante, o que atraiu a atenção de minha
família. A situação era desconfortável e, antes de fazer a matrícula no colégio novo, passei em
uma banca de jornal e fiz algo que, até então, era inédito para mim: comprei uma revista em
quadrinhos. Obviamente eu já havia lido anteriormente uma história em quadrinhos, mas
todas elas eram apenas emprestadas e a leitura nunca fora contínua. Aquela revista, a edição
de número 19 de Batman e Liga da Justiça deveria servir como distração para as horas
seguintes. Contudo, ela foi mais que isso. Era um primeiro passo dentro do universo dos
quadrinhos. Ao término da última página estava ansioso pelo desenrolar dos acontecimentos.
Iniciei uma coleção, adquiri revistas de outros personagens e passei a frequentar os eventos de
quadrinhos da cidade, que atraiam um grande número de outros jovens, sabia de cor as datas
de lançamento de cada revista e tinha até mesmo uma “conta” de crédito em uma banca de
jornal próxima de casa, que reservava os lançamentos da semana. Ao fim, a ansiedade sobre
meu futuro escolar se mostrou desnecessária. Após três dias de sofrimento, acabei retornando
para meu antigo colégio. Mas a revista foi comigo.
Este trabalho tem como objetivo central investigar as transformações ocorridas com o
final da Guerra Fria no Imaginário sobre a Ameaça nos EUA. Para tanto, analisaremos
representações de heróis e vilões, presentes no universo ficcional das histórias em quadrinhos
do personagem Batman, durante o segundo governo de Ronald Reagan (1985-1989),
buscando compreender a relação entre a conjuntura política e o ambiente cultural dos EUA no
2
período do fim da Guerra Fria. Desta forma pautaremos este projeto pelas seguintes questões:
Qual a relação entre a conjuntura política e o ambiente cultural dos EUA no período final da
Guerra Fria, e como as HQs do Batman funcionaram como mediadoras deste ambiente
cultural? Quais transformações e(ou) continuidades podemos identificar nas representações
sobre heróis e ameaças nas HQs do Batman no período do governo Reagan?
A opção de analisar o imaginário da ameaça nos EUA através do universo ficcional do
Batman, neste duplo recorte cronológico, se deveu as características internas das diferentes
narrativas que o compõe. Suas histórias contam as aventuras de Bruce Wayne, um bilionário
filantropo que atua secretamente como um vigilante urbano noturno, utilizando uma fantasia
estilizada de morcego para combater o crime e “gerar terror no coração dos criminosos”. O
universo e a origem deste personagem são reveladores de uma visão sobre ameaças
características da modernidade, no qual a escolha do morcego como símbolo corresponde ao
uso do medo como arma para combater outros temores urbanos.
A origem de Batman é marcada pela tragédia e pela insegurança. Em uma noite
Thomas e Martha Wayne, pais de Bruce Wayne levam seu filho de oito anos ao cinema. Na
saída, enquanto caminham por um beco, o casal é abordado por um estranho armado que
anuncia o assalto. Por motivo banal, o criminoso aciona o gatilho de sua arma, disparando
contra Thomas e Martha, que caem mortos na frente de filho, fugindo logo em seguida em
direção às sombras de onde ele havia surgido. Daquela família, só restou a criança que assistiu
horrorizada a morte de seus pais, de joelhos junto ao sangue que aos poucos se espalha pelo
chão. Uma história contada e recontada centenas de vezes em histórias em quadrinhos, séries
de televisão, animações e filmes que definem o que é o Batman e suas motivações: um herói
atormentado por demônios internos, que inflige a si mesmo a missão de ser o protetor de uma
cidade caótica, como forma de tentar expurgá-los. Esta concepção sobre o Batman e seu
universo ganhou bastante força entre os anos de 1980 e 1990, onde, sob a influência de obras
3
marcantes como Cavaleiro das Trevas (The Returno of the Dark Knight 1986), de Frank
Miller, Klaus Janson e Lynn Varley e Asilo Arkham (Arkham Asylum 1989), de Grant
Morrison e Dave Mckean, recontam a origem e os aspectos motivadores deste personagem,
tornando cada vez mais violento e sombrio.
Analisando comparativamente este universo ficcional nos contextos da II Guerra Fria
1
,
nos anos de 1980, podemos perceber um período de transição, quando ocorrem uma série de
transformações nos referentes simbólicos nas HQs nos EUA, a respeito do imaginário da
ameaça ao american way of life. Durante a década de 1980 ocorreu o fortalecimento de um
projeto conservador no campo da direita norte-americana, que pretendia restaurar o orgulho e
o poder nacional, unindo em uma mesma semântica discursiva, o anticomunismo e a
necessidade de investimentos militares e da confrontação armada dos inimigos dos EUA no
mundo
2
. Este projeto, encampado pelo Partido Republicano, encontrou no ascendente político
Ronald Reagan um de seus maiores defensores, levando-o a vitória nas eleições presidenciais.
A violência e a guerra foram reabilitadas pelo discurso conservador e retornam à cena
política, como atribuição do sentido de missão da nação norte-americana, através de
intervenções militares em diferentes partes do mundo e do desenvolvimento de projetos
armamentistas. Da mesma forma, o anticomunismo serviu de tônica para que internamente
fosse aplicado um choque econômico neoliberal, com a adoção de uma ostensiva política de
desregulamentação, que se constituiu em um progressivo desmonte das redes de anteparos
sociais, construídas pelo Estado de Bem-Estar Social Rooseveltiano, o qual, como nos
demonstra Zygmunt Bauman
3
, produziu uma sensação contínua de insegurança e Mal-Estar.
O mundo se torna um jogo de escolhas perigosas, no qual nenhum emprego é garantido e
1
Utilizo aqui a denominação de II Guerra Fria para caracterizar a retomada da polarização entre os EUA e a
URSS a partir do fim da Detente. Cf. MUNHOZ, Sidnei J. Guerra Fria: um debate interpretativo. In: Francisco
Carlos Teixeira da Silva. (Org.). O Século Sombrio: Ensaios Sobre as Guerras e Revoluções do Século XX. Rio
de Janeiro, 2004, p. 261-281.
2
GERSTLE, Gary. American Crucible: Race and nation in the twentieth century. Princeton: Princeton
University Press, 2002.
3
BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
4
nenhuma posição é inteiramente segura. Nesta conjuntura, elementos profundos da cultura
política norte-americana, como o mito da fronteira, são evocados por diferentes atores sociais
como um chamado a nação em um grande esforço para derrotar os inimigos da América,
provocando uma nova corrida armamentista nuclear. Desta forma, temas como a
desestruturação do Estado de Bem-Estar Social, a escalada armamentista nuclear e a ascensão
do fundamentalismo islâmico, produziram novas formas de se representar os temores sociais
que compõe a trama narrativa das HQs do Batman produzidas neste período.
Frente a estas questões, podemos afirmar que houve uma reconfiguração no papel de
vilões e heróis nas narrativas das HQs, condicionada pela transformação dos referentes de
ameaça ao american way of life no período do fim da Guerra Fria, pois, para manter aquecido
o mercado de quadrinhos, era necessário que houvesse uma reformulação do processo de
identificação destes personagens com as angústias e desejos do leitor. Nesse sentido, as HQs
do Batman concebidas neste contexto tornam-se uma amostragem pertinente de artefatos
culturais para se analisar a transformação no conteúdo do imaginário da ameaça, expresso
nos meios de comunicação de massa norte-americanos.
Propomos assim analisar as transformações do imaginário político no final da Guerra
Fria. É inevitável nos depararmos aqui com as questões inerentes ao estudo do Tempo
Presente pela história, um campo em construção, que apresenta seus próprios desafios éticos e
metodológicos, que serão discutidos com maior profundidade a frente. Contudo, devemos
lembrar do que é a problematização de questões sociais que constroem o campo de estudo da
história, buscando a partir de um paradigma indiciário
4
estabelecer hipóteses sobre uma
determinada realidade social. Desta forma, na medida em que problematizamos hipóteses
sobre o passado, ainda que recente, estamos desenvolvendo um estudo historiográfico, pois,
ao contrário do que previu Francis Fukoyama no início dos anos de 1990, a história não
4
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e história. São Paulo: Companhia das letras, 1989.
5
acabou com o fim da Guerra Fria e a hegemonia liberal. Novos movimentos varreram e
transformaram o mundo, cabendo ao historiador a importante missão de analisá-los e
contextualizá-los em uma perspectiva histórica, na jornada que compõe a compreensão do
mundo atual.
Tomando o mapa da historiografia contemporânea, seguimos por uma trilha
relativamente recente, em busca de novas fontes e lugares de análise dos fenômenos sociais,
tendo como bússola a análise do papel da cultura da mídia no Tempo Presente e uma
aproximação entre o cultural e o político. Tentamos assim, conciliar as propostas da “História
Cultural” e da “Nova História Política” dentro do campo da História do Tempo Presente.
François Bédarida
5
, ao fazer um balanço sobre a produção do Instituto de História do
Tempo Presente, do qual ele fora fundador e diretor, constata que a principal inovação da
História do Tempo Presente é a possibilidade de se estabelecer uma ponte articulatória entre
passado e presente. Tendo suas fronteiras determinadas por eventos factuais, seria impossível
pensarmos o desenvolvimento da História do Tempo Presente de forma dissociada das
transformações na historiografia contemporânea que possibilitaram o surgimento da Nova
História Política, tal como concebida por René Rémond
6
. Nova porque marca sua diferença
em relação história política denominada de “positivista”, estritamente événementielle e que
dominou o mapa da historiografia durante o século XIX. Esta história política, marcadamente
narrativa, vinculava-se profundamente ao Estado-Nação, buscando centrar suas atenções
sobre os grandes eventos políticos fundadores deste estado e(ou) as biografias dos heróis
nacionais, onde o papel do historiador seria dar voz as fontes documentais presentes nos
arquivos oficiais, relatando os fatos como eles efetivamente teriam ocorrido. Foi contra este
5
BÉDARIDA, François. Tempo presente e presença da história. In: FERREIRA, Marieta de Moraes e
AMADO, Janaína. Usos e Abusos da história Oral. Rio de janeiro: Editora FGV, 2005. p.219-229.
6
RÉMOND, René (org.). Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
6
modelo de história, como nos mostra Peter Burke
7
, que a primeira geração dos Annales,
representada por Lucien Febvre e Marc Bloch, se insurgiu ao longo das décadas de 1930 e
1940. Esta geração propôs substituir a tradicional narrativa dos eventos políticos, onde o
objeto histórico já estava dado nos arquivos, cabendo ao historiador dar voz às fontes,
contando os fatos como eles efetivamente aconteceram, por uma perspectiva de história-
problema.
Nesta perspectiva, a História seria guiada a partir de hipóteses construídas pelo
historiador resultantes da problematização de diferentes questões. Ou seja, dava-se ênfase ao
papel do historiador como construtor do objeto histórico. Neste caminho, esta nova história
valorizou o estudo dos fenômenos de longa duração em detrimento dos acontecimentos
políticos, vistos como meros acidentes da conjuntura histórica, resultados da vontade
individual e, nessa medida, pouco reveladores das verdadeiras estruturas e forças sociais.
Nas últimas décadas do século XX, pudemos observar uma revolução no campo da
historiografia, com a incorporação de novas ferramentas conceituais e metodológicas de
outras áreas de conhecimento – como a linguística; a crítica literária; a comunicação; a
sociologia; a antropologia; a ciência política e a psicanálise que marcaram a abertura de
campo para novas questões teóricas e para novos questionamentos a respeito de temas e
objetos para o historiador. Observou-se uma “virada antropológica”, que deu um novo fôlego
aos estudos sobre questões culturais. O contato mais íntimo entre história e antropologia
permitiu uma mudança na abordagem dos trabalhos anteriores, que se centravam em uma
história social da cultura, para uma história cultural da sociedade, com a substituição de
idéias gidas, como regras sociais” por outras mais flexíveis, como “estratégias”, e
“representações”
8
.
7
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da historiografia. São Paulo:
UNESP, 1997
8
Idem. p.94.
7
Neste movimento, ocorreu também uma renovação mais do que um retorno do
político como objeto de estudo da História. Forjada e alimentada pela interdisciplinaridade,
que lhe ofereceu novas ferramentas e um novo recorte analítico, a Nova História Política
alicerçou-se no paradigma da história-problema, como forma de investigação dos fenômenos
políticos e de sua complexa rede de relações com as diferentes esferas da sociedade, evitando
com isso isolá-los. Contemplar estas diferentes relações estimula a busca por novas fontes e
objetos. As fronteiras da historiografia se expandem, criando novos territórios, como as
manifestações culturais mediadas pela comunicação de massa. Nesse sentido, é pertinente
analisar as HQs do Batman como uma forma expressiva de mediação cultural de um tema
recorrente na cultura política dos EUA: o imaginário da ameaça ao seu “way of life”.
Os medos e as ansiedades o poderosos catalisadores de forças sociais. Franz
Neumann
9
indica como estes sentimentos são acionados como chaves fundamentais no
processo de identificação de indivíduos (em busca de segurança frente a ameaças ao seu modo
de vida) com regimes políticos. O mundo que emergiu ao final da Guerra Fria mostrou-se, ao
contrário das previsões neoliberais, como um campo fértil para o florescimento de novos
medos. Muito embora o fim da Guerra Fria representasse para os EUA sua vitória, com a
consagração do american way of life como modelo hegemônico de sociedade, este
representava também o fim de uma ordem bipolar que, por quase meio século, norteou
processos de construção da identidade nacional.
Como nos mostra Zygmunt Bauman, ao analisar a sensação de mal-estar na sociedade
pós-moderna. Trata-se de um sentimento de incerteza e insegurança sobre a possibilidade de
futuro que não soa como temporário, mas sim permanente, ligado à própria natureza do
mundo. Foi sobre este novo contexto que se reconfigurou um novo mapa cognitivo para o
imaginário da ameaça.
9
NEUMANN, Franz. Estado Autoritário e Estado democrático. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1969.
8
Definindo imaginário e nação:
Entendemos a categoria de imaginário como uma rede comum de referentes culturais
para os quais os significantes e os significados são criados, reconhecidos e apreendidos dentro
de circuitos próprios de sentido, sendo utilizados coletivamente como dispositivos
orientadores e transformadores de práticas sociais, valores e normas e, por isso, são capazes
de mobilizar socialmente afetos, emoções e desejos
10
. Esta definição geral permite que
possamos compreender formas particulares de imaginário, como o imaginário da ameaça,
capaz de estabelecer ideais de nação, o que corresponde também a formar imagens-conceito
do que seriam os seus inimigos e aliados, construindo um sistema de conteúdos simbólicos no
qual se relacionam com sucesso a realidade e o imaginado. Ao operarmos com o imaginário
da ameaça como eixo temático para a análise das HQs de Batman, uma outra categoria
analítica torna-se pertinente: a de “inimigo conveniente”.
O inimigo conveniente é fundamentalmente aquele que não se encaixa nos mapas
cognitivos habituais, que definem os que pertencem a determinado mundo. Trata-se de um
desdobramento conceitual baseado na categoria de “outro conveniente”, desenvolvida por
Peter Gay e de “estranho”, trabalhada por Bauman
11
. A construção da representação de um
outro conveniente será fruto, segundo Gay, da projeção de tudo aquilo que é indesejável e
inaceitável em um grupo, convenientemente sobre o outro, a personificação do estranho. Isto,
“em primeiro lugar, permite a negação de que a pessoa está sujeita a tais defeitos e,
oportunamente, redescobre-os em estranhos ou em adversários, reais ou imaginários”
12
.
10
CAPELATO, Maria Helena Rolim; DUTRA, Eliana Regina de Freitas. “Representação política: O
reconhecimento de um conceito na historiografia brasileira”. In CARDOSO, Ciro Flamarion e MALERBA,
Jurandir(orgs). Representações: Contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. p. 229.
11
GAY, Peter. O Cultivo do ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp76-103; BAUMAN, Zygmunt.
Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.pp.49-61
12
Idem. p. 78.
9
É importante observarmos, para elucidar este ponto, que compreendemos o conceito
de nação como comunidade imaginada, como proposto por Benedict Anderson
13
, ou seja, uma
comunidade que compartilha um determinado conjunto de signos. Assim, procuramos
identificar o nacionalismo norte-americano com os discursos de liberdade e democracia,
concretizado no american way of life, cujas concepções foram transformadas no contexto
histórico da década de 1990. A nação é assim delimitada pelos mapas que compõe a idéia de
cultura nacional, os parâmetros simbólicos que regem seu “way of life”.
Stuart Hall aprimorou está noção, afirmando que “uma cultura nacional é um discurso
um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a
concepção que temos de nós mesmos
14
e estas produzem sentidos sobre a nação, a partir de
diferentes narrativas e mitos. De acordo com as nossas considerações anteriores, ela seria
então uma forma particular de imaginário com diferentes possibilidades expressivas. Nesse
sentido, as HQs do Batman, têm um papel fundamental na construção e reconfiguração de
narrativas sobre pertencimento e ameaça a um modo de vida. Douglas Kellner oferece-nos um
modelo conceitual e analítico adequado para nosso desenvolvimento temático de pesquisa, ao
afirmar que as diferentes formas expressivas de comunicação de massa são um terreno de
disputa que reproduz, em nível cultural, os conflitos fundamentais da sociedade, não podendo
ser encaradas como meros instrumentos de dominação
15
.
Histórias em Quadrinhos, Batman e universos ficcionais:
Do ponto de vista de sua estrutura de linguagem, as HQs realizam um amalgama da
mensagem verbal com a icônica, possibilitando a criação de sentido dos enredos a partir de
13
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo, Ática, 1989.
14
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 50-51.
15
KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia, Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-
moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
10
quadros sequenciais
16
. Um outro componente formal importante que caracteriza as HQs é a
continuidade de seus enredos em torno de um mesmo personagem central. As histórias em
quadrinhos de super-heróis quase sempre seguem um roteiro que preserva, ao longo do tempo,
as características principais de seus personagens centrais para que não haja uma quebra no
processo de identificação com o leitor fator calculado como garantia de nichos de consumo
pelas editoras de quadrinhos. Portanto, não se deve perder de vista que a composição de um
personagem está ligada a uma expectativa de processo de identificação com o leitor, mais ou
menos calculada, por quem produz e vende os roteiros de HQs.
Ambientado na fictícia Gotham City, este universo ficcional do Batman é impregnado
por uma atmosfera sombria e trágica, em que a associação entre sociedade moderna e perda
faz-se presente na configuração da maioria de seus personagens. Os vilões enfrentados por
Batman foram criados, inicialmente, sob forte inspiração das histórias de gangsters e do
cinema expressionista alemão
17
, e são em sua maioria loucos e excluídos de um modelo de
perfeição social em que estavam inseridos os pais de Bruce Wayne.
Mais do que um cenário, Gotham City é um grande personagem coletivo, investido de
estética gótica, cujas torres de concreto – ornamentadas por gárgulas pendentes nos parapeitos
expelem/expõem os seus demônios mais internos sob a marcante presença da Lua que
compõe o ambiente de uma noite sem fim. Suas sombras projetam-se pelas ruas e invadem os
becos que escondem segredos e mazelas familiares, tal como aquele que foi cenário para o
assassinato dos pais de Bruce Wayne. Este evento marcaria indelevelmente seu universo
mental levando-o, anos mais tarde, a criar seu complexo heroico de “homem morcego”. O
trauma da perda violenta ou da deformação física de pessoas amadas é um núcleo constante,
que caracteriza o universo mental do personagem, servindo como pretexto para justificar
como que ele construiu o seu tão singular complexo de super-herói. No entanto, os
16
McCLOUD, Scott. Understanding Comics: The invisible art. New York: Kitchen Sink Press, 1993.
17
BROOKER, Will. Batman Unmasked: Analyzing a cultural Icon. New York: Continuum, 2000. p. 49.
11
referenciais de ameaça, contra os quais o herói se lança, adquiriram características singulares
nas décadas de 1980 e 1990.
Do ponto de vista narrativo, a principal transformação formal nas HQs do Batman foi
a elaboração de grandes arcos fechados de histórias que eram narrados ao longo de diversas
edições e, em alguns casos, até mesmo em diversos títulos
18
, cujo propósito central é ampliar
os seus nichos de mercado ao atrair novas gerações de leitores com novas técnicas de
suspense. Temos também o surgimento das graphic novels
19
, edições em formato especial,
com histórias mais longas, de maior complexidade e escopo do que as histórias de uma
edição. Estas graphic novels possuem, muitas vezes, formato de luxo e preços diferenciados
voltadas para um público mais adulto.
Para o desenvolvimento de nosso quadro de hipóteses, recortamos como corpus
documental os seguintes arcos de histórias e graphic novels:
- Batman: Ano I (Batman: Year One 1987): História que reconta o primeiro ano da
existência de Batman em Gotham City, que reconstrói a origem deste personagem. A cidade é
descrita como um cenário de desolação e tragédia social, com a corrupção e o crime se
estendendo desde os salões e banquetes da alta sociedade até as zonas de prostituição da parte
mais decadente da cidade.
- Dez Noites da Besta (Ten Nights of the Beast 1988): arco de histórias que conta a
luta de Batman contra o KGbeast (KGBesta), um agente soviético renegado que contrariando
a aproximação entre os EUA e a URSS, recruta um terrorista iraniano afim de assassinar os
dez líderes do projeto de defesa Guerra nas Estrelas
20
, tendo como alvo final o próprio
presidente dos EUA Ronald Reagan.
18
No Brasil, este formato de arcos de histórias ficou conhecido genericamente como “sagas”.
19
Optamos por manter a expressão inglesa Graphic Novelno lugar de sua tradução como “Novela Gráfica”,
dado que esta terminologia já é utilizada de forma rotineira pelo mercado editorial brasileiro.
20
Nome pelo qual ficou popularmente conhecida a Iniciativa Estratégia de Defesa (SDI), ambicioso projeto de
defesa do governo Reagan.
12
- A Piada Mortal (Batman: The killing Joke – 1988): Graphic Novel que tem o
Coringa como personagem central. Nela é contada a origem deste personagem, narrando uma
série de reveses em sua vida que o levaram a insanidade. O ponto central do roteiro é o ataque
que o Coringa faz a filha do Comissário de Polícia, tentando provar que qualquer um poderia
enlouquecer. Partindo deste argumento, a história propõe que Batman não seria menos louco
que o próprio Coringa, mas sim que devido as circunstâncias de sua vida teria desenvolvido
outras formas de lidar com sua loucura.
- Morte em Família (Batman: a Death in the family 1988/1989
21
): A trama, que tem
como pano de fundo uma perseguição internacional de Batman ao Coringa, envolvendo armas
nucleares, terroristas islâmicos, espionagem, ajuda humanitária a países da África e a ONU. O
ápice da narrativa é a morte do personagem Robin, pelas mãos do Coringa.
Optamos por utilizar estas histórias em suas versões originais, com o formato de
página norte americano e com histórias em língua inglesa, a fim de evitar qualquer distorção
resultante da tradução ou da redefinição do tamanho de imagens. Isto foi possível graças ao
fato destes arcos de histórias terem sidos publicados em volumes encadernados
22
, que se
encontram a disposição em nosso acervo particular, garantindo a viabilidade deste trabalho.
Assim, todas as traduções dos textos contidos nas fontes primárias são de nossa
responsabilidade, buscando preservar sempre o sentido semântico original. Indicamos
também, através de notas explicativas, a existência de qualquer discrepância entre o tulo
original das histórias em quadrinhos em inglês e a forma como eles foram traduzidos e
adaptados para o português pelas editoras brasileiras. Optamos também por, sempre que
possível, analisar a composição imagética dos quadros em uma página no lugar de apenas um
quadro isolado. Este cuidado foi tomado em razão da página ser concebida como um elemento
21
Apenas a última parte desta história foi publicada em 1989. Desta forma, por questões práticas,
consideraremos o ano de 1988 como o período base em que este arco de histórias foi produzido.
22
Chamados de Trade Paper Backs ou simplesmente de TPBs.
13
único tanto pelos roteiristas quanto pelos desenhistas, cuja composição de elementos cria
passagens de tempo, movimento e significados.
Frente as características deste tipo de fonte e dos objetivos desta pesquisa, optamos
por uma análise do discurso verbal-icônico das HQs do Batman a partir do eixo temático
imaginário da ameaça ao american way of life”. Parece-nos útil a noção de ressonância de
Greenblatt
23
, o que significa aferir das HQs de Batman os elementos expressivos do enredo e
os caracteres de personagens que se relacionam contextualmente com o eixo temático. Além
disto, nos aproximamos da abordagem de Douglas Kellner em “A Cultura da Mídia”
24
.
Inserido no campo dos Estudos Culturais, Kellner analisa a mídia norte-americana e sua
cultura, buscando, através dela, compreender a sociedade contemporânea. Para tanto, o autor
desenvolve o que chamou de diagnóstico crítico uma espécie de análise de discurso com
enfoque na contextualização histórica do objeto analisado como ferramenta metodológica
para desenvolver análises sobre ícones da cultura norte-americana. Entre estas, destaca-se
uma análise da série de filmes de terror Poltergeist, relacionando-a aos medos da classe média
norte-americana frente a desestruturação do Estado de Bem-Estar Social, durante a Era
Reagan. Desta forma, o autor utiliza a cultura da mídia para diagnosticar, a partir da definição
de temas-eixo, comportamentos sociais, “lendo em suas entrelinhas as fantasias, os temores,
as esperanças e os desejos que ela articula”
25
.
Aliamos aqui a noção de diagnóstico crítico com a proposta de Cecília Azevedo, que
ao analisar as culturas políticas nos Estados Unidos no século XX, indica que, em lugar de
haver uma cultura política, existiriam diversas culturas políticas em conflito
26
. Desta maneira,
23
GREENBLATT, Stephen. “O Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento”. In Estudos Históricos, vol.4,
n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991. pp.244-261
24
KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia, Estudos Culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-
moderno. Bauru: EDUSC, 2001.
25
Idem. P.15.
26
AZEVEDO, Cecília. Sob Fogo Cruzado: A política externa e o confronto de culturas políticas nos EUA. IN:
Soihet, Raquel e outros (org.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de
história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
14
podemos ver as HQs como um local de destaque para a observação desta disputa entre
diferentes culturas políticas.
Para realizar esta operação, é necessário realizar uma contextualização temática
adequada, salientando que as relações entre artefato cultural e contexto não são imediatas ou
lineares. Como artefato cultural, as HQs têm uma forma própria de expressão comunicativa,
sendo atuadas e atuantes por/em seu contexto de produção e consumo. Assim, entendemos a
contextualização como um instrumento de interpretação, no sentido de alcançar melhor visão
interna de como o plano expressivo das HQs de Batman apresenta os elementos constitutivos
do imaginário da ameaça ao american way of life”, durante os períodos analisados. Sem o
parâmetro contextual, não poderíamos perceber em que medida as construções de enredo para
Batman endossavam, repeliam ou contestavam idéias, elementos estéticos, valores e
convenções sociais e políticos de seu momento de produção. Nesta tarefa, é essencial definir a
cultura visual na qual se insere as narrativas das HQs e com que outras referências visuais
suas imagens dialogam. Para tanto, é necessário os circuitos de produção e circulação destas
histórias em quadrinhos, bem como seus principais atores sociais.
Buscamos também definir a historicidade destas narrativas visuais, a fim de podermos
identificar seus elementos de continuidade e ruptura. Para sistematizar nossa análise
documental elaboramos uma tabela referencial que nos permitiu, primeiramente fazer um
mapeamento geral do conjunto do corpus documental, identificando os diferentes eixos
temáticos em seu interior. Em seguida, esta tabela nos possibilitou um levantamento
específico sobre as representações de heróis e ameaças/vilões presentes em cada uma das
histórias investigadas. Dividida em oito diferentes campos e aliada ao uso de um processador
de texto, este tipo de tabela permite que façamos diferentes entrecruzamentos de dados,
alterando os seus parâmetros de classificação.
15
Um outro aspecto fundamental deste trabalho é sua inserção dentro do campo dos
estudos de História comparada. Buscaremos a comparação como um recurso metodológico
essencial, sem o qual não poderíamos ter uma variável de controle para determinar o impacto
das transformações sociais da II Guerra fria, sobre o imaginário da ameaça nos EUA. Neste
sentido, não aplicamos a comparação apenas como metodologia para a análise de fontes, mas
o utilizamos como ferramenta para delimitar nossa problemática. Sem ele, não poderíamos
analisar a questão da transformação deste imaginário neste momento de transição da política
norte-americana. Utilizaremos o método comparativo tal qual proposto por Jugen Kocka
27
em
seu artigo Comparison and beyond. Neste artigo, Kocka nos diz que “comparar em História
significa discutir dois ou mais fenômenos históricos sistematicamente a respeito de suas
singularidades e diferenças de modo a se alcançar determinados intelectuais”
28
. Partindo deste
referencial investigaremos as “singularidades” e as “diferenças” que podem ser encontradas
nas representações de heróis e ameaças no universo ficcional das HQs do Batman.
Nesta medida desenvolvemos, no primeiro capítulo um debate teórico e bibliográfico
sobre o uso das HQs como fontes documentais para a pesquisa histórica, identificando suas
principais tendências. Observaremos também a criação de uma “cultura dos quadrinhos”, que
se insere como um circuito cultural da juventude do século XX. Além de mobilizar
comportamentos, este circuito dialoga com diferentes referências culturais como o cinema, a
televisão, as artes plásticas, a literatura, o cinema e a internet.
No segundo capítulo fazemos uma contextualização do ambiente político e cultural da
Era Reagan, destacando a ascensão da New Right nos EUA e os embates entre as diferentes
culturas políticas nos EUA na construção deste ambiente social. Destacamos a formação do
ideal do estilo de vida americano e seus movimentos de dissenso, bem como a reação
neoconservadora a crise do establishment que consolida o pensamento da nova direita norte-
27
KOCKA, J. Comparison and beyond. History and Theory, n. 42, p. 39-44, feb. 2003
28
Ibid. p. 39.
16
americana. Por fim apontamos os pilares da Doutrina Reagan, tanto na política externa quanto
na doméstica, que produziram diferentes representações para o imaginário da ameaça nos
EUA. A seguir, no terceiro capítulo, analisamos os impactos da desestruturação do Estado do
Bem-Estar Social e as relações entre identidade e Mal-Estar na pós-modernidade a partir da
análise do arco de histórias Batman: Ano Um e da graphic novel Batman: A Piada Mortal.
Identificamos aqui a desregulamentação, promovida pela política econômica dos governos
Reagan como um dos elementos desencadeadores de um Mal-Estar na construção dos lugares
de identidade na sociedade pós-moderna. Para tanto, observamos como se aqui a
construção de novos estranhos e outsiders nessa sociedade, bem como a construção de
Batman e Gordon como paradigmas de heróis neste contexto social.
Por fim, no quarto e último capítulo, investigamos as transformações do imaginário
sobre ameaça frente ao crescimento das tensões da política externa norte-americana, na Era
Reagan, e ao fortalecimento da retórica anticomunista no discurso missionário-salvacionista
da luta do ocidente contra o “império do mal” comunista. Neste contexto, identificamos uma
mudança nas representações sobre a ameaça, em que se evocavam “discursos emuladores” de
velhas categorias, como o mito da fronteira e a lógica de uma ordem bipolar para tentar
compreender o surgimento de uma nova ordem mundial. Na conclusão da dissertação,
sintetizamos e comparamos os principais temas abordados ao longo dos capítulos anteriores,
contrapondo os resultados apresentados às hipóteses que guiaram o presente trabalho.
17
Capítulo I
Seguindo as pistas dos que nos precederam: Um balanço bibliográfico das principais
abordagens sobre História e Histórias em Quadrinhos
Optamos por realizar um balanço bibliográfico no lugar de uma revisão historiográfica
sobre o tema de nosso trabalho, em razão dos esparsos estudos na área de história neste
campo. Realizaremos então uma discussão bibliográfica interdisciplinar, abordando os
principais autores e correntes teóricas que se propuseram a analisar as HQs. No mapeamento
deste material, identificamos cinco abordagens teóricas principais: a marxista
instrumentalista; a baseada nos estudos de comunicação e estrutura de linguagem das HQs;
os compêndios e os manuais; os estudos culturais e os trabalhos historiográficos.
Obviamente, não dizemos, com isto, que não haja outros estudos que extrapolem as correntes
teóricas identificadas neste mapeamento. Afirmamos apenas que as principais análises sobre
HQs produzidas, até o presente momento, podem ser compreendidas dentro destes campos.
Buscaremos fazer uma leitura crítica de cada uma destas abordagens, identificando suas
contribuições em nosso trabalho e seus problemas.
1.1) Abordagem Marxista instrumentalista:
Uma referência clássica para o estudo sobre HQs e política, e ainda hoje muito citada,
foi escrita por Ariel Dorfman
29
e Armand Mattelart em Para Ler o Pato Donald:
comunicação de massa e colonialismo
30
. Escrito nos anos de 1970, sob influência marxista,
este livro pretendeu desvelar a construção de uma ideologia colonialista e imperialista que
estaria oculta sob uma máscara de inocência pueril nas histórias em quadrinhos produzidas
pela Disney. Segundo os autores, tal construção ideológica, seria extremamente eficiente por
29
Um outro trabalho de Ariel Dorfman que seguiu por esta mesma linha teórica foi DORFMAN, Ariel e JOFRE,
Manuel. Super-Homem e seus amigos do Peito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
30
DORFMAN, Ariel ; MATTELART, Armand. Para ler o pato Donald: comunicação de massa e colonialismo.
Rio de janeiro: Paz e Terra, 1980.
18
se dirigir ao público infantil. Nota-se que o público-alvo do gênero infantil de HQs fora
delimitado de antemão, havendo a intenção de educá-lo, no qual seu autor, um adulto,
“dificilmente poderia propor para sua descendência uma ficção que colocasse em xeque o
futuro que ele deseja que esse pequeno construa e herde”
31
. Neste sentido, os enredos do
universo Disney são analisados como um instrumento ideológico e pedagógico para a
construção dos valores da sociedade burguesa e manutenção das diferenças sociais. Tal
relação seria demonstrada através de diferentes situações, como na submissão dos
personagens à autoridade patriarcal e na legitimação da dominação e da violência sobre o
outro.
Ainda que reconheçamos a importância deste trabalho, afastamo-nos de sua
abordagem estritamente instrumental das HQs, pois, mais do que um simples doutrinamento
ou manipulação ideológica engendrado pelas classes dominantes, encaramos as HQs como
formas expressivas do imaginário de uma sociedade a respeito de seus medos, sonhos e mitos.
Nesse sentido, a relação entre texto e contexto é complexa, posto que é permeada por
diferentes formas simbólicas, nem sempre coerentes ou unívocas entre si. Portanto, em vez de
simples “instrumentos ideológicos”, encaramos as HQs como mediadoras culturais de uma
“visão de mundo”, sendo detentoras de ressonância própria. Ou seja, como artefatos culturais,
as HQs possuem um poder de alcançar um mundo maior, além de seus limites formais, de
evocar as forças complexas e dinâmicas das quais emergiu, e em relação as quais podem ser
consideradas pelo historiador como metáforas
32
.
É valido ainda levantarmos outras duas críticas ao Para Ler o Pato Donald. A
primeira é de cunho metodológico. As narrativas produzidas pela Disney não eram de fato
produzidas por um só autor ou por autores/artistas exclusivamente norte-americanos. Algumas
destas histórias são trabalhos de uma enorme equipe de artistas fantasmas (ghosts) de diversos
31
Ibid.p.19.
32
GREENBLATT, Stephen. O Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento. Estudos Históricos, vol.4, n.8.
Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991. pp.244-261
19
países, cujos créditos são na maior parte das vezes omitidos. A segunda foi feita por Rafael
Bayce
33
em um artigo onde analisa a construção das relações culturais entre o Brasil e os
EUA. Bayce busca demonstrar que nas narrativas produzidas pela Disney não se opera uma
intencionalidade imperialista, com a “exportação da ideologia dos países centrais, veiculados
por meios culturais da sociedade de massas”. Segundo o autor, estas histórias teriam mais
influência através da “difusão de estereótipos sobre temas desconhecidos do grande público”,
como a construção de um estereótipo sobre o Brasil através da imagem do Zé Carioca.
1.2) Abordagem da Comunicação e sobre a estrutura de linguagem das HQs
Ainda nos anos de 1970, observamos a publicação de livros sobre histórias em
quadrinhos no Brasil, os quais abriram espaço para este tipo de estudo acadêmico. Entre estes
pioneiros, citamos os livros do professor de Comunicação Social Moacyr Cyrne
34
, como o A
Explosão Criativa dos Quadrinhos
35
, um dos primeiros, se não o primeiro livro sobre o tema
no Brasil, que se propõe a realizar um estudo dos elementos da estrutura linguística das HQs,
como a utilização de balões, onomatopéias, ou ainda a presença de influência barroca nas
artes de Tarzan e Flash Gordon. Neste mesmo período, destaca-se também o trabalho de
Álvaro Moya que escreveu sobre o tema e organizou livros como SHAZAM!
36
, coletânea de
artigos com diferentes abordagens sobre as HQs. Um livro que apesar da pouca profundidade
teórica – muitos artigos são vagos e escritos por não estudiosos sobre o tema, como Jô Soares
–, ajudou a criar uma abertura editorial para estudos sobre as HQs, firmando uma tendência
analítica, especialmente no campo da comunicação social. Estes estudos, no entanto, se
33
BAYCE, Rafael. “Conceituando a interação cultural Brasil-Estados Unidos”. IN GIUCCI, Guillermo, DIAS
DAVID, Maurício (org.). Brasil - Eua. Antigas e novas perspectivas sobre sociedade e cultura. Rio de Janeiro
1994.
34
A produção de Cyrne sobre o tema não se restringe aos anos de 1970. Ele prosseguiu publicando trabalhos
sobre o tema, tendo lançado em 2001 o livro Quadrinhos, Sedução e Paixão, também pela Editora Vozes e em
2002 o livro Literatura em Quadrinhos no Brasil, pela editora Nova Fronteira.
35
CYRNE, Moacyr. A Explosão Criativa dos Quadrinhos. Petrópolis: Vozes, 1970.
36
MOYA, Álvaro (org.). SHAZAM!. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
20
prendem demais a análise das HQs de um ponto de vista formal, pouco revelando as relações
entre as narrativas destas histórias com seu contexto de produção.
Nesta mesma linha, temos também os importantes trabalhos de Will Eisner e Scott
McCloud, dois artistas do campo das HQs que se tornaram importantes referências para o
estudo deste tipo de linguagem. Eisner, considerado um dos maiores artistas dos quadrinhos e
criador do personagem The Spirit (1941) escreveu, em 1985, uma das mais importantes obras
sobre Histórias em Quadrinhos: Quadrinhos e Arte Sequencial
37
, a partir do curso sobre arte
sequencial ministrado na Escola de Artes Visuais. Durante este período e em conversas com
outros artistas das HQs, o autor constatou a carência de estudos acadêmicos nos Estados
Unidos sobre o tema. Segundo ele, tradicionalmente, a maioria dos profissionais da área
“produziam sua arte instintivamente. Poucos tiveram tempo para diagnosticar a forma em
si”
38
. Assim, em sua análise, Eisner procura dissecar os aspectos técnicos da estrutura
narrativa das HQs, analisando temas como as relações entre texto escrito e imagem neste
suporte e a criação do efeito de passagem de tempo entre os diferentes quadros. Scott
McCloud publicou em 1993 seu estudo sobre o tema: Understanding Comics: the invisible
art
39
. Escrito no formato de uma narrativa em quadrinhos analisa, com o auxílio do recurso da
metalinguagem, diferentes elementos da criação e do desenvolvimento das HQs. McCloud
revisa alguns pontos abordados por Eisner e desenvolve outros, como a definição do que são
histórias em quadrinhos e a influência de recursos estilísticos na relação entre significantes e
significados nas narrativas das HQs.
A principal contribuição deste campo ao trabalho historiográfico é o fornecimento de
ferramentas para a construção de um método analítico para a linguagem das HQs. A
37
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
38
Ibid. p.6.
39
McCLOUD, Scott. Understanding Comics: The invisible art. New York: Kitchen Sink Press, 1993. O livro
publicado no Brasil com o título Desvendando os Quadrinhos, publicado pela M.Books.
21
compreensão da estrutura e dos códigos, que constituem este tipo de linguagem, é
fundamental para que possamos analisar este tipo de artefato cultural como fonte documental.
1.3) Abordagem dos Estudos Culturais
O campo dos Estudos Culturais é a abordagem que concentra o maior número de
estudos sobre as HQs. Os trabalhos, aqui, apresentam diferentes temáticas que vão desde a
análise sobre um personagem específico até os circuitos culturais de consumo das HQs e suas
relações com outras mídias. Uma das principais contribuições deste campo para a análise das
HQs é o trabalho de Mathew Pustz Comic book Culture: fanboys and true believers
40
. Este
livro, publicado em 1999, tenta definir os circuitos culturais nos quais se inserem os leitores
das HQs nos Estados Unidos. Pustz defende que as HQs criaram um circuito cultural, com
uma rede própria de significantes, capaz de promover elementos de identidade a uma
comunidade de fans de idades variadas que se encontram em lojas de quadrinhos, fóruns na
internet e convenções que atraem milhares de pessoas
41
. Para tanto o autor utiliza-se de
entrevistas com fans de quadrinhos para mapear este tipo de circuito cultural.
É também no campo dos Estudos Culturais que observamos os primeiros trabalhos
sobre Batman e seu universo ficcional. O primeiro é The Many Lives of the Batman: Critical
Approaches to a Superhero and his Media
42
, organizado por Roberta E. Pearson e William
Uricchio, e publicado em 1991. Este livro reúne artigos e entrevistas sobre diferentes aspectos
que envolvem o Batman. Este talvez tenha sido o primeiro trabalho acadêmico a abordar
especificamente este personagem, buscando construir um estudo crítico sobre diferentes
40
PUSTZ, Matthew J. Comic book Culture: fanboys and true believers. Jackson: University Press of Mississipi,
1999. Até o presente momento o livro não foi publicado no Brasil.
41
Nos EUA o fórum de quadrinhos NEWSARAMA: http://www.newsarama.com/common/forums/ possuía, em
setembro de 2009, 514896 usuários registrados. Observamos que esta comunidade cresceu para além das
fronteiras dos EUA. Tomando como exemplo o Brasil podemos citar fóruns de internet como o MBB
(Multiverso Bate Boc@) http://www.mbbforum.com/mbb/
com 2437 usuários registrados também em setembro
de 2009.
42
PEARSON, Roberta E. & URICCHIO, Willian. The Many Lives of the Batman: Critical Approaches to a
Superhero and his Média. New York: Routledge: 1991. Ainda não publicado no Brasil.
22
aspectos de sua produção, ainda que não apresentem uma investigação mais profunda da
construção destas diferentes representações sociais sobre o Batman.
O livro Batman Unmasked: Analyzing a cultural Icon
43
, de Will Brooker avança mais
neste sentido, investigando os diferentes contextos da construção referencial do personagem
Batman, da DC Comics, como um ícone da cultura popular do século XX. Este livro,
publicado em 2000 como resultado de sua pesquisa de PhD, pretende perceber esta construção
através das apropriações deste personagem por diversos segmentos da dia, como as HQs,
séries para TV e filmes, relacionando-as com diferentes contextos culturais e sociais.
Seguindo uma ordem cronológica, Brooker explica as transformações deste personagem em
diferentes contextos discursivos: a propaganda de apoio ao esforço de guerra durante a II
Guerra Mundial (1939-1945); as políticas de censura prévia nas HQs durante o Macartismo; a
ascensão da Cultura Pop e os diálogos entre as HQs e a famosa série de TV estrelada por
Adam West; e, por fim, a interatividade promovida pela Internet entre leitores, escritores,
desenhistas e editores das revistas, que interfere no processo de identificação com o herói e,
de certa forma, influencia o plano de novos enredos. Cada um desses meios expressivos de
comunicação tem sua própria forma de produzir encantamento, ou seja, um poder de prender
e transmitir um sentimento arrebatador de unicidade, de evocar uma atenção exaltada
44
.
1.4) Abordagens historiográficas sobre as HQs
Mais raros, são os trabalhos acadêmicos na área de História sobre o tema. Contudo,
este quadro vem sendo alterado nos últimos anos, com o surgimento de estudos relacionando
de diferentes maneiras HQs e História, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
43
BROOKER, Will. Batman Unmasked: Analyzing a cultural Icon. New York: Continuum, 2000. Não
publicado no Brasil.
44
GREENBLATT, Stephen. “O Novo Historicismo: Ressonância e Encantamento”. In Estudos Históricos, vol.4,
n.8. Rio de Janeiro: FGV-CPDOC, 1991. pp.244-261.
23
Nos Estados Unidos, obras como a Batman: the complete history, de Les Daniel,
45
que
busca mapear a trajetória deste personagem em diferentes mídias. Contudo, no desejo de
realizar uma “história completa” deste personagem, Daniel não nos apresenta nenhuma
problemática a ser analisada. Sua história completa do Batman deve ser encarada assim como
um grande manual – talvez o melhor produzido até o momento – que agrega diferentes
informações e referências cronológicas sobre esta figura, como surgimento de personagens,
brinquedos e outros itens colecionáveis, anúncios publicitários e bastidores de produção das
HQs, séries para a TV e o cinema, filmes e animações entre 1939 e o final do século XX.
Também nos EUA, outros autores vêm desenvolvendo trabalhos com perspectivas
bem interessantes relacionando as HQs a seu contexto de produção. Destacamos aqui a
análise do historiador Bradford W. Wright em seu livro, Comic Book Nation: The
transformation of youth culture in America
46
, Wright analisa a transformação da cultura
jovem – entendida aqui como um nicho cultural específico – nos EUA ao longo do século XX
a partir das narrativas das HQs norte-americanas. O autor opta por dividir as transformações e
as rupturas nas narrativas das HQs em eixos temáticos cronológicos, identificando as
principais mudanças nas fórmulas narrativas deste gênero. Wright, em cada um destes eixos,
busca construir uma análise que aprofunde as interações entre mudança política, mudanças
sociais e cultura popular. Ainda que apresente uma análise inovadora sobre HQs, cultura e
política nos EUA, a análise de Wright é limitada por um aspecto metodológico: ao analisar as
HQs, o autor centra toda sua atenção nos planos de roteiro, dando pouca atenção aos
elementos visuais que compõe a linguagem dos quadrinhos, relegando-as ao lugar de
ilustrações.
No Brasil, aos poucos, começamos a ver no horizonte o surgimento de algumas
produções acadêmicas sobre o tema. Em nossa historiografia os trabalhos de Ciro Flamarion
45
DANIEL, Les. Batman: the complete history. San Francisco. Chronicle Books, 1999.
46
WRIGHT. Bradford W. Comic Book Nation: The Transformation of Youth Culture in America. Baltimore:
The Johns Hopkins University Press, 2001.
24
Cardoso
47
foram os primeiros a apresentar uma análise das HQs e das obras de Ficção
Científica como fontes documentais, baseada no corpo metodológico da semiótica. Ainda que
não nos aproximemos desta proposta metodológica, é inegável a contribuição dos trabalhos de
Cardoso nesta área, que abriram caminho para outros estudos, conferindo-lhes espaço e
legitimidade dentro da historiografia brasileira.
Desta maneira podemos detectar o surgimento de uma outra vertente, com trabalhos de
novos historiadores
48
, que buscam analisar as inter-relações entre as HQs e diferentes
transformações sociais. Tomando como demonstrativo os trabalhos apresentados no Simpósio
Nacional de História, realizado em 2005 na cidade de Londrina, observamos um crescente
interesse pelo tema. Nesta ocasião, foram apresentados, além de painéis sobre o tema, três
trabalhos sobre HQs. São eles: Inimigos na Noite: Política Externa, Cultura Política e
Imaginário nos EUA, na Segunda Guerra Fria, através das histórias do Batman
49
, de nossa
autoria; O feminino e os quadrinhos: Mulher Maravilha (1942-1960)
50
, de Lenita Gerez e Um
Caipora na corte do Brasil, de Carlos Manuel de Hollanda Cavalcanti
51
. Estes trabalhos vêm
desenvolvendo uma nova tendência, ligando a história cultural a diferentes elementos, como
as representações do feminino nas HQs, a relação entre a narrativa das HQs e mitos políticos,
além de um diálogo interdisciplinar entre diferentes temporalidades. Identificamos aqui a
possibilidade de inauguração de uma tendência de pesquisa, onde se insere também o presente
trabalho, que vem ganhando espaço, através publicação de textos como o verbete Histórias
47
Como no artigo: CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, 1997 e
CARDOSO, Ciro Flamarion. “Um conto e suas transformações: Ficção Científica e História”. In: Tempo /
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Departamento de História. Vol. 9, n
o
17, Jul. 2004 Rio de Janeiro:
2004. pp 129-151.
48
Até agosto de 2009, o trabalho da maioria destes autores era composta por estudantes de pós graduação, cujas
pesquisas ainda estava em curso ou haviam sido recentemente concluídas.
49
BERNARDO, Thiago Monteiro. “Inimigos na Noite: Política Externa, Cultura Política e Imaginário nos EUA,
na Segunda Guerra Fria, através das histórias do Batman”. IN: Anais do XXIII Simpósio Nacional de História:
História: Guerra e Paz [CD-ROM]/Associação Nacional de História ANPUH. Londrina: Editorial Mídia, 2005.
50
GEREZ, Lenita. “O feminino e os quadrinhos: Mulher Maravilha (1942-1960)”. IN: Anais do XXIII Simpósio
Nacional de História: História: Guerra e Paz [CD-ROM]/Associação Nacional de História ANPUH. Londrina:
Editorial Mídia, 2005.
51
CAVALCANTI, Carlos Manuel de Hollanda. “Um Caipora na corte do Brasil”. IN: Anais do XXIII Simpósio
Nacional de História: História: Guerra e Paz [CD-ROM]/Associação Nacional de História ANPUH. Londrina:
Editorial Mídia, 2005.
25
em Quadrinhos e Política
52
também de nossa autoria, que relaciona as HQs de super-heróis às
principais transformações políticas e culturais do Século XX.
52
BERNARDO, Thiago Monteiro. “História em Quadrinhos e Política”. IN: Silva, Francisco Carlos Teixeira da
(org.). ENCICLOPÉDIA DE GUERRAS E REVOLUÇÕES DO CULO XX: as grandes transformações do
mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 450-453.
26
Capítulo 2
Ascensão da New Rigth, a Doutrina Reagan e Cultura Política nos EUA
Junto aos desdobramentos da Guerra Fria, podemos dizer, de forma geral, que as duas
décadas que se seguiram ao fim da II Guerra Mundial nos EUA, foram marcadas pela
prosperidade econômica e pela confiança no sentido da missão e da experiência norte-
americana. Iniciava-se o período que viria a ser conhecido como a chamada “Era de Ouro” do
capitalismo
53
. O modelo de sociedade industrial capitalista norte-americano se tornou um
paradigma mundial, com a incorporação da gica do sistema de produção fordista a setores
produtivos muito mais amplos que a indústria automobilística, como a construção civil, a
produção e o comércio, construindo um novo estilo de vida, reordenando as redes de relações
sociais. Correlacionado a este projeto, temos a ampliação da estrutura de proteção do Estado
do Bem-Estar Social, ou Welfare State, que garante uma sensação de segurança em relação a
possibilidade do infortúnio e uma melhoria considerável da qualidade de vida em relação aos
anos anteriores.
Segundo Gloria Regonini, o Estado do Bem-Estar Social pode ser definido, em primeira
análise, como o Estado que garante índices mínimos de renda, educação, alimentação e saúde
a todo cidadão, não como forma de caridade, mas como um direito político e social
54
. Ainda
que possamos entender o Estado do Bem-Estar Social através de diferentes perspectivas,
podemos identificar suas bases nos EUA a partir do New Deal. Com suas medidas de
intervenção estatal na economia, tomadas pelo governo de Franklin D. Rooselvelt (1933-
1945), buscou-se uma maneira de enfrentar a Grande Depressão de 1929 garantindo o
equilíbrio econômico. Devido a forte tradição norte-americana da liberdade negativa, com a
busca por garantias de defesa do indivíduo contra a ação do Estado, o New Deal foi mais do
53
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
54
REGONINI, Gloria. “Estado do Bem-Estar Social”. In Dicionário de Política, vol.I. Brasília: UnB, 1998. p.
416-419
27
que um conjunto de medidas econômicas emergências contra a Grande Depressão de 1929.
Ele operou uma profunda transformação cultural, alterando a dinâmica e a natureza da relação
entre Estado e sociedade, criando redes de proteção social aos cidadãos. O diagnóstico
apontado pelo New Deal afirmava que a crise enfrentada pelos norte-americanos não era,
contrariando o pensamento liberal, resultado da limitação de suas capacidades individuais. Ela
era consequência da ordem econômica e social vigente, cabendo ao Estado provê-los, ao
menos em parte, de suas necessidades básicas
55
.
Observa-se também neste período uma explosão tecnológica que afluiu na solidificação
de consumo na forma de uma série de revoluções culturais e comportamentais
56
. Para
ficarmos em poucos exemplos, podemos citar o supermercado que alterou por completo as
redes de comércio, o refrigerador e suas inúmeras possibilidades para a preparação e o
consumo de alimentos, a televisão tanto como mídia como aparelho eletrônico –, e os LPs
de música, que levaram a possibilidade de se ouvir música para dentro do espaço privado.
Todos estes elementos estavam cada vez mais incorporados ao cotidiano norte-americano.
Este movimento produziu um conjunto de práticas e representações que caracterizaram, por
fim, o tipo ideal do modo de vida americano, o American Way of Life, vivenciado
especialmente pelas famílias brancas, de classe média e cristãs. Um modo de viver que
serviria de argamassa para a consolidação de um imaginário nacional que se basearia na
noção de consenso e harmonia sobre a imagem dos Estados Unidos e de sua experiência
política. Uma situação que para além de um resultado conjuntural seria a própria transcrição
de uma missão e um destino nacional. Podemos constatar assim que o American Way of Life
molda uma cultura política a respeito da nação, com um discurso capaz de construir sentidos
55
LIMONCI, Flávio. “New Deal”. In: ENCICLOPÉDIA DE GUERRAS E REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX:
as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
56
LEUCHTENBURG, William E. Cultura de Consumo e Guerra Fria. In: LEUCHTENBURG, William E
(org.). O Século Inacabado: A América desde 1900. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. 2 v.
28
para as ações cotidianas e para as concepções que a nação tem sobre si mesma, ainda este
modelo tenha sido apropriado de diferentes formas pelos diversos grupos sociais.
Cecília Azevedo
57
demonstra que tal discurso sobre a nação não foi uníssono. Diversas
outras correntes de pensamentos se fizeram presentes, produzindo, através de movimentos
antissistêmicos, um dissenso a cerca do American Way of Life. Nos anos de 1950, que
geralmente são apresentados como um período quando o conservadorismo e o consenso foram
hegemônicos em contraste a rebeldia dos anos de 1960, percebemos o embate entre diferentes
culturas políticas nos EUA. Ainda que a década de 1950 tenha sido pautada pelo
anticomunismo do macarthismo, pela Guerra da Coréia (1950-1953) e o retorno da vigência
do Espionage Act de 1918 e a Doutrina da Contenção lançada pelo presidente Harry S.
Truman (1945-1953), outras vozes se levantaram. A contracultura ganhava espaço na
literatura através do movimento beat. On the Road (escrito em 1951 e publicado em 1957) de
Jack Kerouac, marcou este movimento, apresentando a busca, pelo interior da América
buscando a utopia americana perdida. Outro grande símbolo desta geração literária foi Uivo
(1956), livro de poemas de Allen Ginsberg, que sofreu tentativas de censura por ser
considerado como uma obra obscena. Nele, poemas como América questionavam, esvaziavam
e resignificavam em uma linguagem jazzística, visceral e escarnecedora, o sentido da nação
como podemos ler no trecho abaixo.
América não aguento mais minha própria mente.
América quando acabaremos com a guerra humana?
Vá se foder com sua bomba Atômica.
Não estou legal não me encha o saco.
Não escreverei meu poema enquanto não me sentir legal.
América quando é que você será angelical?
58
57
AZEVEDO, Cecília. Sob Fogo Cruzado: A política externa e o confronto de culturas políticas nos EUA. IN:
Soihet, Raquel e outros (org.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de
história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005.
58
GINSBERG, Allen. América. In: Uivo e outros poemas. Porto Alegr: L&PM, 1999. p. 58.
29
Além do movimento beat, a luta do movimento pelos direitos civis se intensificou,
conseguindo garantir, através das Suprema Corte promover a integração racial nas escolas,
após o caso da ativista negra do Alabama, Rosa Parks. Em dezembro de 1955 esta ativista
corajosamente se recusou a ceder seu lugar em um ônibus para um branco, sendo por isso
presa. Sua atitude alimentou o movimento dos direitos civis liderado por Martin Luther King
e deu início a uma nova estratégia de resistência a segregação racial nos EUA, através da
desobediência civil.
Os movimentos antissistêmicos se expandiram e se diversificaram, ainda mais nas
décadas de 1960 e 1970, fortalecendo uma cultura política do dissenso. Em meio ao
movimento negro cresceu uma vertente nacionalista separatista, surgida da percepção de parte
significativa da população negra sobre a impossibilidade de sua integração na concepção de
mundo da “América branca”. Neste mesmo período, o impacto da Guerra e da derrota no
Vietnã (1964-1975) se instalou como uma gangrena na opinião pública norte-americana e
mundial. Uma guerra acompanhada pela mídia e que soava cada vez mais como uma batalha
perdida, em que as chances de vitória eram inversamente proporcionais as cenas dos corpos
dos jovens mortos e as atrocidades cometidas pelos soldados nos campos de batalha eram
expostas nos lares norte-americanos através da TV. A mobilização contra a guerra serviu
como catalisador para a união de diferentes grupos reunindo hippies, intelectuais, grupos de
estudantes socialistas, anarquistas entre outros em protestos pela paz, como pode ser visto
na marcha sobre o Pentágono, em Washington D.C. durante o verão de 1967. Este verão ficou
conhecido como Summer of Love e apesar de ter seu epicentro na São Francisco, Califórnia,
seus reflexos se espalharam por todo o país.
Em contrapartida, cresciam, em oposição aos New Dealers e as lutas pelos direitos civis,
grupos neoconservadores dotados de uma forte retórica anticomunista. Estes movimentos
demonstraram sua força política na eleição presidencial de 1968, quando o governador do
30
Alabama George Wallace se candidata a presidência dos EUA pelo Partido Independente
Americano American Independent Party. Veemente defensor da segregação, Wallace foi
autor de uma das mais notórias defesas públicas da segregação durante seu discurso inaugural
como Governador do Alabama em 1963: Eu digo: segregação hoje, segregação amanhã,
segregação para sempre!
59
. Mesmo não conseguindo ganhar as eleições, sua votação foi
expressiva, conseguindo carregar cinco Estados Alabama; Geórgia; Mississipi, Louisiana e
Arkansas e obter 13,5% do total nacional dos votos
60
, rompendo a disputa bipolar dos
Partidos Republicano e Democrata. Ligas e clubes direitistas, como a John Birch Society
foram fundados, servindo como centros de sustentação e difusão deste pensamento
neoconservador
61
.
Este cenário, associado à crise econômica que se abateu em 1973, fez com que o futuro
desenhado pelo American Way of Life, que por anos parecera dourado, fosse permeado por
uma densa atmosfera de ansiedade e incerteza, colocando o sentido de missão da nação norte-
americana em xeque. Soma-se a isto, a divulgação e os desdobramentos, do escândalo
Watergate (1972), que culminam na abertura do processo de impeachment e, em seguida na
renuncia do presidente Richard Nixon em 1974. Em linhas gerais, podemos observar a
composição de um quadro geral de ruptura e desgaste no projeto de nação norte-americano,
que fora estabelecido nas décadas anteriores. A confiança no Establishment estava
definitivamente abalada. Como nos indica Gerstle
62
, análises oriundas de diversos setores
lançavam previsões pessimistas, declarando que os tempos de grandeza econômica, cultural e
política da América estariam definitivamente encerrados.
59
Discurso disponível no website do Alabama Departamento of Archimes and History:
http://www.archives.state.al.us/govs_list/InauguralSpeech.html
60
LEUCHTENBURG, William E. Cultura de Consumo e Guerra Fria. In: LEUCHTENBURG, William E
(org.). O Século Inacabado: A América desde 1900. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976. 2 v.. p. 922.
61
MEDEIROS, Sabrina Evangelista. Reflexões sobre a evolução da New-Right nos Estados Unidos
Contemporâneo. In: da Silva, Francisco Carlos Teixeira e outros (org.). Escritos sobre História e Educação:
Homenagem a Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. p. 118.
62
GERSTLE, Gary. American Crucible: Race and nation in the twentieth century. Princeton: Princeton
University Press, 2002.
31
Este desencanto com a missão norte-americana e mal-estar sobre a funcionalidade da
guerra, apareceu de forma dialogada em diferentes aspectos da cultura norte-americana, como
o cinema e o Rock and Roll, chegando também as histórias em quadrinhos
63
. Cada vez mais,
temas como a Guerra do Vietnã, os protestos da juventude nos campus universitários, a luta
pelos direitos civis, o feminismo e o ambientalismo eram trazidos para dentro do universo
temático dos super-heróis. O historiador Bradford Wright nos aponta, que a cultura jovem se
tornava um espaço para o questionamento da autoridade. Foi estabelecida assim, uma nova
concepção sobre as histórias em quadrinhos que deixavam de ser consideradas apenas como
um meio brutesco para a representação das fantasias infantis. Elas “traziam agora temas e
imagens mais sofisticados, os quais leitores de idades variadas, poderiam apreender em
diferentes níveis”
64
. Esta ruptura foi especialmente sentida por personagens que se identificam
com a missão dos EUA de guardião da liberdade e da democracia, como o Capitão América
(Captain America), os quais questionaram suas ações e o esvaziamento de seu papel como
herói. Que lugar eles teriam em um mundo, agora visto como dominado pela injustiça, pela
ganância cujo fim era a guerra? Um mundo onde os novos heróis seriam os que se rebelavam
contra a guerra, e não o super-soldado da II Guerra Mundial
65
. Cambaleante e caminhando
sozinho pelas ruas, Capitão América constata por fim que “gastei meu tempo de vida
defendendo a bandeira... e a lei! Talvez eu devesse ter lutado menos e questionado mais!”
66
.
Outro importante capítulo desta mudança foi a incorporação de novos neros
narrativos, advindos do cinema e da cultura pop como a criação de um “road-comics” na série
Lanterna Verde / Arqueiro Verde (Green Lantern/Green Arrow, 1969), criada pelo desenhista
63
Não podemos perder de vista o diálogo entre estes meios. O personagem de Peter Fonda em Easy Rider
atendia pelo nome de Capitão América. Bandas de Rock anunciaram seus discos nas páginas de histórias em
quadrinhos e gravariam músicas com personagens das HQs.
64
WRIGHT, Bradford W. Comic Book Nation: The Transformation of Youth Culture in America. Baltimore:
The Johns Hopkins University Press, 2001. p.233.
65
Uma análise mais aprofundada a cerca do personagem Capitão América e do lugar da II Guerra Mundial em
suas histórias em quadrinhos pode ser encontrada em: BERNARDO, Thiago Monteiro. Supersoldados e Nação:
Uma análise das representações de heróis e vilões nas histórias do Capitão América, nos EUA da década de
1960.
Rio de Janeiro : UFRJ. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2004.
66
“The Sting of the Scorpion”. Captain America 122. New Iorque: Marvel Comics, February, 1970.
32
Neal Adams e pelo jovem escritor Dennis O’Neil que anos mais tarde, como será visto
adiante, assumiria o cargo de editor geral das histórias do Batman. Nesta série, os personage
ns
Lanterna Verde e Arqueiro Verde são contrapostos. O primeiro representado como um
conservador moderado e o segundo como um ativista de esquerda, que juntos, embarcam
numa uma viagem de busca pela América, no interior do país. Ao longo desta viagem, os
personagens testam seus próprios paradigmas, se envolvendo em debates sobre as principais
demandas políticas daquele período. Surgiram também diversos personagens marcados por
atitudes violentas, como Wolverine (1974) e Justiceiro (Punisher, 1974). Estes heróis ou
anti-heróis marcam uma forma de agir individualizada, descrente das instituições e do
Estado. Wolverine é um mutante com poder de cura que trabalhava como agente do governo
canadense e foi utilizado como cobaia numa experiência militar na qual foi inserida em seu
corpo uma liga metálica conhecida como adamantiun. Este seria o material mais resistente
conhecido pelo homem, tornando o seu esqueleto virtualmente indestrutível. Contudo, por ser
um experimento extremamente doloroso e secreto, no qual o corpo de Wolverine passaria a
ser propriedade do governo, ele tem sua memória apagada. Quem ele fora? Qual era seu
nome? Quando e onde nascera? Quem ele amara? Tudo deixa de existir. Wolverine que
nada mais é do que um outro codinome abandona sua condição de sujeito para torna-se a
Arma X, vindo a resgatar novamente sua identidade como pessoa ao integrar-se
posteriormente aos X-Men
67
. Já o Justiceiro era um ex-combatente do Vietnã, que após ter sua
esposa e filhos assassinados torna-se um vigilante urbano sanguinário, que caça e mata os
bandidos de Nova Iorque.
O universo de Batman também sentiu tais mudanças com a entrada da dupla Neal
Adams e Dennis O’Neil em sua equipe de criação. As histórias deixaram de lado o tom
cômico e jocoso e mais ligado a ficção científica, que predominou nas décadas de 1950 e
67
BERNARDO, Thiago Monteiro. História em Quadrinhos e Política. In: ENCICLOPÉDIA DE GUERRAS E
REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Campus, 2004, p. 450-453.
33
1960 e fizeram uma revisão dos elementos pulps e detetivescos que compunham o universo
original de Batman em suas primeiras histórias.
Segundo as palavras de O’Neil:
Minha brilhante ideia foi simplesmente levar [as histórias de Batman] de
volta para onde elas haviam começado. Fui a biblioteca da DC e li
algumas das primeiras histórias. Tentei entender as intenções de Kane e
Finger. Com o benefício de vinte anos de sofisticação nas técnicas de
narrativas e vinte anos de aprendizado em relação a nossos predecessores,
Neal Adams e eu fizemos a história “The Secret of the Waiting Graves”
68
.
O universo ficcional de Batman era assim reformulado e revisitado, criando novos
personagens como Ra´s al Ghul, o Cabeça do Demônio (1971). Diferente dos demais
inimigos de Batman, Ra’s al Ghul não era um ladrão, um simples assassino que vagava pelas
ruas de Gotham City ou outro interno do Asilo Arkham. Tendo tomado para si a imortalidade
graças ao uso de artifícios alquímicos chamado de Poços de Lázaroele construiu ao
longo dos séculos de sua existência um império financeiro e se cercou de um grupo
fundamentalista com ramificações globais, que, nas sombras, operaria para construir o sonho
eugênico de seu líder: um mundo pacífico e sustentável, ao custo do extermínio de grande
parte da população mundial que não se encaixasse neste projeto. Apesar de Neal Adams
afirmar que tentou construir um personagem cujas feições não se associassem de forma
imediata a nenhum grupo étnico específico, a escolha de seu nome em árabe, as locações de
suas histórias e sua própria fisionomia são carregadas de estereótipos norte-americanos acerca
dos povos orientais
69
.
Em resposta a esse período de crise no final dos anos de 1970 e nos anos de 1980,
emergiu no campo da direita um programa que pretendia restaurar o orgulho e o poder
nacional, unindo em uma mesma semântica discursiva o liberalismo econômico, o
anticomunismo, a necessidade de investimentos militares e da confrontação armada dos
68
PEARSON, Roberta E. e URICCHIO, William. Notes from the Batcave: A Interview with Dennis O´Neal. In:
PEARSON, Roberta E. & URICCHIO, Willian. The Many Lives of the Batman: Critical Approaches to a
Superhero and his Média. New Iorque: Routledge: 1991.
69
HAMM, Sam. Introdução. In: Grandes Clássicos DC: Batman: Contos do Demônio, n. 4. São Paulo: Panini
Comics, outubro 2005. p. 7-10.
34
inimigos dos EUA no mundo
70
. Este programa, encampado pelo Partido Republicano,
encontrou no ascendente político Ronald Reagan um de seus maiores defensores. Ex-
governador da Califórnia, onde foi eleito por dois mandatos (1966 e 1970), venceu as eleições
prévias do Partido Republicano e se lançou como candidato a presidência em 1980.
Campanha esta que foi alicerçada em uma mensagem de otimismo, proposta de consenso e
confiança no futuro. Reagan ganhou a credibilidade do eleitorado, vencendo as eleições de
1980 sobre o então presidente democrata Jimmy Carter. Iniciava-se a Era Reagan (1981-
1989).
A figura pública de Reagan ganhou mais projeção quando em 30 de março de 1981,
apenas 69 dias após assumir a presidência, ele sofreu um atentado, sendo atingido por um tiro
em seu pulmão esquerdo. Tal evento provocou uma comoção nacional em torno da
recuperação do presidente. Após receber alta do hospital, em um discurso no Congresso em
28 de abril daquele mesmo ano, o presidente agradece a nação por suas orações, evocando um
discurso cristão para sua recuperação
71
, elevando sua popularidade. Reagan foi reeleito para
um segundo mandato nas eleições de 1984, após receber 58.77% do total nacional de votos e
ganhar a disputa em quarenta e nove dos cinquentas Estados
72
.
Em virtude disto, a organização da New Right a Nova Direita nos EUA é atribuída
aos anos da Era Reagan, “quando se aliaram todos os tipos de forças conservadoras, das
comunidades cristãs aos intelectuais do novo conservadorismo em torno de sua
candidatura”
73
. Deste modo a New Right pode aprofundar suas bases para o desenvolvimento
de suas ações internas nas duas décadas seguintes. A cultura política da New Right se
desenvolveu em torno da ideia de uma conspiração paranoica nacionalista, ancorada em
70
GERSTLE, Gary. American Crucible: Race and nation in the twentieth century. Princeton: Princeton
University Press, 2002.
71
Vídeo disponível no website: http://www.youtube.com/watch?v=5Zer4S910fQ&feature=player_embedded
72
O candidato democrata Walter Mondale venceu apenas em Minissota. Dados eleitorais detalhados podem ser
vistos no website: http://uselectionatlas.org/RESULTS/national.php?year=1984&f=1&off=0&elect=0
73
MEDEIROS, Sabrina Evangelista. Reflexões sobre a evolução da New-Right nos Estados Unidos
Contemporâneo. In: da Silva, Francisco Carlos Teixeira e outros (org.). Escritos sobre História e Educação:
Homenagem a Maria Yedda Linhares. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001.
35
teorias de supremacia eugenicistas. Nesta paranoia conspirativa o comunismo, o secularismo e
outros movimentos sociais se articulariam para destruir o seu projeto de nação branca, anglo-
saxônica e protestante nos EUA
Durante a Era Reagan a violência e a guerra, geradoras de crise e mal-estar e combatidas
nos anos de1960 e 1970, foram reabilitadas pelo discurso conservador e retornaram a cena
política como atribuição do sentido de missão da nação norte-americana. Da mesma forma, o
anticomunismo serviu de tônica para que, internamente, fosse aplicado um choque econômico
neoliberal, com a condução de uma ostensiva política de desregulamentação a
Reaganomics”, como viria a ser chamada pela imprensa que se constituiu em um
progressivo desmonte das redes de anteparos sociais, construídas pelo Estado do Bem-Estar
Social Rooseveltiano e cujas consequências serão analisadas com mais profundidade adiante.
No campo da política externa os conflitos da Guerra Fria foram restabelecidos, dando
origem a Doutrina Reagan, que pode ser definida como uma “verdadeira cruzada da
democracia da democracia contra o totalitarismo comunista e o fundamentalismo islâmico”
74
.
A intensidade da retomada destas questões pode ser medida pela análise de Fred Halliday
75
sobre a Guerra Fria, ao propor que a partir de 1979 iniciou-se uma Segunda Guerra Fria, após
a tente. Uma nova Guerra Fria que reproduzia características da primeira, com o
rompimento de relações entre as principais potências capitalistas com a URSS, com ambos os
lados preparando-se para uma reação hostil inimiga. Nesta feita iniciou-se uma nova corrida
armamentista nuclear, pondo o mundo mais uma vez sob a ameaça cotidiana do exterminismo
global. Os EUA buscaram afirmar seu poder como império realizando uma série de
intervenções diplomáticas, econômicas e incursões armadas em diversas partes do mundo. Os
desdobramentos de tais ações não se fizeram apenas através de ações governamentais. Elas
ganharam a mídia reverberando o enfático discurso anticomunista e cristão de Ronald Reagan,
74
VIANNA, Alexander Martins. Reagan, Ronald (Biografia política). In: Dicionário Critico do Pensamento de
Direita: Idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000. p. 387-389.
75
HALLIDAY, Fred. The Making of The Second Cold War. London: Verso, 1984, 2ed.
36
o que tencionou as relações internas e externas dos EUA. Nesta retórica o jogo equilibrado de
forças bipolares característico do período da détente não poderia mais ser aceito. Esta nova
Guerra Fria precisava ser vencida e esta vitória deveria ser o norte da política externa norte-
americana. Paralelo a esta política de enfrentamento, Mikhail Gorbachev, Secretário Geral do
Partido Comunista da União Soviética, dava início a uma profunda reforma política e
econômica em seu país. Primeiro em 1985, surpreendendo o mundo com a Perestroika, uma
reestruturação econômica e social, ou seja, imaginar reformas que pusessem em questão as
estruturas econômicas da URSS. Em seguida, no ano de 1986, no rastro do impacto destrutivo
do acidente nuclear de Chernobyl, a Glasnost, a transparência política nos atos de interesse
público
76
.
Entre as intervenções armadas norte-americanas, se destacaram o financiamento e o
apoio a grupos que operavam movimentos anticomunistas em países do Terceiro Mundo.
Conhecidos como Freedom Fighters, os “Combatentes da Liberdade”: militares, paramilitares
e terroristas anticomunistas, que recebiam treinamento e suporte logístico da CIA. Muitos
destes Freedom Fighters formavam verdadeiros esquadrões da morte, cujos integrantes
haviam sido formados na “Escola das Américas”, um centro de treinamento montado pelos
EUA que ao longo da Guerra Fria formou grupamentos militares que atuaram nas diferentes
ditaduras na América Latina. Curiosamente em 2003, apenas dois anos após o atentado de 11
de setembro em Nova Iorque, os jogos eletrônicos mais conhecidos como games, fizeram
uma releitura sobre os Freedom Fighters. Em um jogo homônimo, desenvolvido pela Io
Games, os jogadores poderiam assumir o papel de um Freedom Fighter que luta contra uma
ocupação soviética na cidade de Nova Iorque, fazendo uma releitura do tema da paranoia
anticomunista. Com jogabilidade e gráficos bem desenvolvidos, o game vai além da dinâmica
76
FILHO, Daniel Aarão Reis. Crise e desagregação do socialismo. In: FILHO, Daniel Aarão Reis e Outros
(org.)O Século XX: O tempo das dúvidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
37
dos jogos de tiros em primeira pessoa. O jogador deve acumular carisma como um atributo de
jogo, possibilitando que seu personagem agregue companheiros em sua campanha
77
.
Em 1983, forças militares dos EUA invadem a ilha de Granada, no Caribe, derrotando a
Revolução que havia se iniciado em 1979, liderada por Maurice Bishop. Granada, juntamente
com Cuba e Nicarágua, representava o avanço de um governo socialista na região das
Américas, contrariando os interesses capitalistas dos EUA na região, ao ponto de Fidel Castro
considera estes países “três gigantes enfrentando os Estados Unidos”
78
. Mesmo que a CIA
tenha trabalhado desde 1979 para desestabilizar o governo de Granada, a invasão militar
norte-americana ocorreu após o assassinato de Bishop derrubando o governo socialista no
país. A derrota da Revolução de Granada fui um duro golpe para a esquerda na região,
especialmente para a Nicarágua e sua Revolução Sandinista, que chegará ao poder também
em 1979 e, tal qual Granada, sofria enormes pressões dos EUA.
Os rumores sobre uma possível invasão norte-americana a Nicarágua tomaram
consistência a partir do exemplo de Granada. A sombra da invasão armada ganhava forma
com o apoio da CIA aos Contras. Criados em 1981, os Contras eram grupos paramilitares
anticomunistas que faziam oposição ao governo sandinista. Utilizando-se financiamento dos
EUA e de suas bases militares em Honduras e na Costa Rica, os Contras promoveram
diversas ações de guerrilha contra o governo. Em uma ostensiva campanha de
desestabilização da Revolução Nicaraguense, a CIA publicou em 1983 o Freedom Fighter’s
Manual
79
, uma cartilha ilustrada com instruções sobre como as forças de oposição e os
trabalhadores da Nicarágua poderiam realizar ações de sabotagem, como destruir documentos
e veículos, não ir trabalhar alegando uma falsa doença ou ainda plantar flores ao invés de
alimentos nos campos. O apoio norte-americano aos Contras culminou nos anos de 1986 e
77
Trailer do jogo Freedom Fighters no website: http://www.youtube.com/watch?v=Bt4T4MjK8rw
78
ZIMMERMANN, Matilde. A Revolução Nicaraguense. São Paulo: Editora UNESP, 2006. p.131.
79
O manual pode ser lido na íntegra no website: http://www.scribd.com/doc/487662/ebook-CIAThe-Freedom-
Fighters-Manual
38
1987 no escandaloso caso Irã-Contra”, quando se tornou pública a informação de que os
EUA financiaram a guerrilha nicaraguense com dinheiro oriundo da venda de armas ao Irã,
através de Israel, em troca do apoio iraniano na libertação de reféns presos no Líbano.
Além da América Latina, a Ásia Central e o Oriente Médio se tornavam novas áreas
estratégicas e de conflito no cenário geopolítico mundial. Em 1979, os EUA perdem sua
influência sobre o Irã, depois da Revolução Islâmica. Iniciada como um movimento pela
democratização do país, culminou na criação do Estado Islâmico, com a derrubada do
Mohammad Reza Pahlavi, e a ascensão ao poder do grupo religioso xiita, liderado pelo
Aiatolá Ruhollah Khomeini. Os EUA, com isso, deixavam de contar com um forte aliado que
nas décadas de 1960 e 1970 auxiliou no acesso norte-americano as reservas petrolíferas na
região do Golfo Pérsico. Em 1980 eclodiu na região um conflito entre Irã e Iraque (1980-
1988), polarizando diferentes forças políticas. Diante da possibilidade de avanço da revolução
islâmica, os EUA intervieram no conflito apoiando o Iraque de Saddam Hussein. A situação
ficou mais tensa a partir de 1984, quando o Iraque iniciou o uso de armas químicas contra o
Irã e, logo em seguida, com a descoberta dos acordos secretos do caso Irã-Contra que
indicavam uma posição de Washington.
Também em 1979, forças soviéticas invadiram o Afeganistão
80
, dando início a uma
guerra entre a URSS e os mujahedins de diferentes grupos étnicos que se estendeu até 1989.
Em uma das maiores operações secretas vistas, os mujahedins receberam, em 1985, apoio
do Paquistão, com seus campos de treinamento, investimentos da Arábia Saudita para custear
a guerrilha, e a partir de 1986, armamentos e apoio logístico dos EUA. O fornecimento de
armas, com destaque para os mísseis Stinger, com sua mobilidade e seu sensor infravermelho
capaz de travar seu alvo através do calor, se mostrou fundamental para a vitória dos
mujahedins, uma vez que eles eliminavam a principal vantagem tática soviética: o uso de
80
RIBEIRO, Vanderlei Vazelelesk. Guerras no Afeganistão. In: ENCICLOPÉDIA DE GUERRAS E
REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Campus, 2004.
39
helicópteros. Contudo, a vitória dos guerrilheiros não trouxe a estabilidade nem a influência
direta americana para a região. Antigos aliados na batalha contra os soviéticos como Osama
Bin Laden e o Talibã logo se tornariam, a partir da década de 1990, um novo desafio para o
poderio imperial norte-americano.
40
Capítulo 3
“Apenas um Dia Ruim”: As relações entre política, identidade e mal-estar na Era
Reagan
Neste capítulo estabeleceremos as relações entre identidade e Mal-Estar na pós-
modernidade a partir da análise do arco de histórias Batman: Ano Um e da graphic novel
Batman: A Piada Mortal. A primeira destas narrativas conta como Bruce Wayne se tornou
Batman e como foi seu primeiro ano atuando como vigilante/herói em Gotham City, uma
cidade caótica e perdida em crimes e corrupção. Batman: A Piada Mortal tem como
personagem principal o Coringa, remontando as peças que formam seu passado onde o vemos
como um indivíduo abandonado a seu próprio infortúnio. Sem emprego, sem sucesso e sem
lugar, sua vida sofre uma série de reveses que o teriam levado a insanidade. O ponto alto do
roteiro é o ataque que o Coringa faz a Batgirl, filha do Comissário Gordon, tentando provar
que no mundo atual qualquer um poderia enlouquecer, sendo necessário para isso “apenas um
dia ruim”. Buscaremos assim, demonstrar como a desestruturação do Estado do Bem-Estar
Social, promovida pela política econômica dos governos Reagan funcionam como elementos
desencadeadores de um Mal-Estar na construção dos lugares de identidade na sociedade pós-
moderna.
2.1) A crise do Estado do Bem-Estar Social e os novos estranhos na pós-modernidade
Tomemos como ponto de partida o discurso inaugural de Reagan como presidente em
1981. Em um de seus trechos mais emblemáticos ele indicava o norte para a política
doméstica dos EUA nos anos seguintes: “Nesta presente crise, o governo não é a solução para
nossos problemas. O governo é o problema.”
81
Mais do que uma frase de efeito, esta fala
81
Discurso Inaugural de Ronald Reagan. Texto integral disponível no website da enciclopédia Encarta:
http://encarta.msn.com/sidebar_762504106/Ronald_Reagan%27s_First_Inaugural_Address.html. O vídeo deste
discurso pode ser assistido na íntegra no canal da Ronald Reagan Presidential Fundation no website Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=LToM9bAnsyM&feature=channel_page
41
enuncia o fim do modelo político e econômico proposto pelo New Deal. Sob a égide do
anticomunismo conduziu-se uma profunda reforma neoliberal, cujas mediadas foram
batizadas pela mídia como as Reaganomics. A vitória de Reagan era também a vitória da
chamada ortodoxia econômica, que diagnosticava no cerceamento da capacidade de
autorregulamentação do mercado devido a intervenção estatal, como a razão para a grave
crise econômica que se abatia sobre os EUA. Não dizemos com isso que as diretrizes
econômicas do neoliberalismo se iniciaram nos EUA dos anos Reagan, nem que se
contiveram em suas fronteiras. O protótipo do modelo econômico neoliberal foi aplicado no
Chile durante o governo ditatorial de Augusto Pinochet
82
(1973-1990), com o nome de
Choque Econômico e sob a consultoria direta de Milton Friedman, professor de economia da
Universidade de Chicago ajudando a consolidar esta instituição como um centro de referência
do pensamento econômico liberal
83
. Em sequência, este modelo foi exportado para a Europa
Reino Unido, ganhando vigor durante o mandato de Margareth Thatcher como primeira
ministra (1979-1990).
As redes de proteção do Estado do Bem-Estar Social, que por quase meio século,
ofereceram a sensação de segurança aos indivíduos frente a situações de dependência de curta
duração como problemas de saúde e o desemprego ou de longa duração como a velhice
e a invalidez - passaram a ser vistas como dispendiosas e pouco ágeis para garantir o
equilíbrio econômico. Ou, nas palavras de Friedrich August von Hayek, um bastião do
pensamento da Direita, a ação do Estado sobre a economia seria “o caminho da servidão”.
Para Hayek a política assistencial do Estado sempre teria sido uma subvariedade de
socialismo; uma utopia falaciosa que prometia conjugar este socialismo com as noções de
82
SANTOS, Ângela Moulin S. Penalva. “Chicago Boys”. In: ENCICLOPÉDIA DE GUERRAS E
REVOLUÇÕES DO SÉCULO XX: as grandes transformações do mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Campus, 2004.
83
Não coincidentemente, Milton Friedman foi também conselheiro não oficial de Ronald Reagan durante as
eleições de 1980 e membro do Conselho Consultivo Presidencial de Política Econômica (President's Economic
Policy Advisory Board) durante seu governo, segundo sua autobiografia. Website do Prêmio Nobel
http://nobelprize.org/nobel_prizes/economics/laureates/1976/friedman-autobio.html.
42
liberdade e democracia. Para o pensamento de direita, a luta contra o comunismo não seria
diferente da luta contra os amparos estatais, que regulavam as relações econômicas. Seguindo
este modelo de pensamento, como nos indica Eric Hobsbawm em “A Era dos Extremos”, a
Guerra Fria reaganista, e por extensão seu discurso anticomunista/neoliberal, eram dirigidas
não contra o Império do Mal” do exterior, mas fundamentalmente contra a lembrança de
F.D. Roosevelt no plano interno: contra todo o Estado do Bem-Estar Social e contra qualquer
outro tipo de Estado interventor
84
. Um retorno ao pensamento liberal conservador, o qual
desde os primeiros anos da Guerra fria via o New Deal como uma ameaça de controle estatal.
O choque neoliberal das Reagonomics produziu ondulações, que foram muito além da
superfície econômica. A New Rigth buscou criar uma base de sustentação que pudesse
encontrar raízes, tanto na teoria econômica quanto na cultura popular, para seu modelo de
Estado-Mínimo. Para isso ela apoiou-se em fundações e institutos de pesquisa de direita,
lobbies empresariais e grandes setores da mídia, que defendiam com veemência seus ideais.
As medidas econômicas do governo eram apresentadas de forma didática diretamente aos
lares norte-americanos pelo próprio presidente, através de gráficos e do domínio preciso da
linguagem televisiva como ferramenta política. Nesta medida, tecia-se uma malha discursiva
capaz de justificar a privatização de muitos dos serviços públicos, a desregulamentação da
atividade industrial e das relações trabalhistas e a retirada do Estado de muitas áreas da
previdência social.
A tônica da liberdade americana
85
, da autorregulamentação do mercado e da livre
iniciativa foram utilizadas para criticar os programas sociais e econômicos voltados aos
trabalhadores e a assistência aos mais pobres. Seguindo o paradigma neoliberal estes
programas seriam os grandes responsáveis pela crise econômica, fomentando auxílio a
84
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: O breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.p.245.
85
A noção de liberdade talvez seja elemento mais caro as culturas políticas dos EUA, estando no bojo dos
principais movimentos nacionais desde a Revolução Americana em 1776 e servindo como base para a atribuição
de um sentido de missão nacional.
43
aqueles indivíduos que teriam se esforçado menos a massa de imigrantes e miseráveis
enquanto esgotaria a saúde financeira das empresas e impediria a livre iniciativa com o
aumento da carga tributária. Se este era o diagnóstico, a profilaxia seria a redução de impostos
e encargos trabalhistas, bem como a livre circulação de mercadorias, de modo a permitir que a
mão invisível tomasse o controle do equilíbrio do mundo.
Sean Purdy
86
, analisando a construção deste modelo político pondera que tais medidas
representaram um ataque frontal aos direitos conquistados pelos trabalhadores e sindicatos nas
décadas anteriores. O exemplo modelar desta nova relação entre capital e trabalho foi o
desfecho da greve de operadores de voo em 1981, quando o presidente Reagan demitiu onze
mil trabalhadores por considerar a greve ilegal. O corte de benefícios trabalhistas e a
contenção de salários tornaram-se possibilidades constantes nas rodas de negociação entre
patrões e empregados como meios para se garantir postos de trabalho diante dos crescentes
índices de desemprego da primeira metade da década de 1980.
Gráfico 1: Série histórica das taxas percentuais de desemprego nos EUA. Fonte: U.S. Census Bureau
86
PURDY, Sean, KARNAL, Leandro e outros. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. o
Paulo: Contexto, 2007. p.258-259.
44
Como visto no gráfico 1, a questão da manutenção do emprego, tão cara para o
orçamento familiar, e da criação de postos de trabalho era agravada pela iniquidade racial na
distribuição dos postos de trabalho. O desemprego havia aumentado entre todos os segmentos
étnicos/raciais dos EUA, mas a porcentagem de negros desempregados em 1985 era de
15,10%, aproximadamente 2,43 vezes maior do que a de brancos que era de 6,20%
87
.Outro
elemento se soma a esta composição, tornando-a ainda mais instável: as reformas tributárias
executadas em 1981 pelo governo Reagan e as desregulamentações econômicas produziram
um avanço feroz do capitalismo financeiro, provocando uma crescente concentração de renda.
Tomando como padrão analítico o “coeficiente Gini” que varia de onde o valor “0” a “1”,
em que o menor valor representa uma distribuição perfeita de renda, enquanto o maior
representaria a iniquidade total o U.S. Census Bureau aponta para uma progressiva
concentração de renda nos EUA ao longo das duas últimas décadas do século XX.
Concentração de renda nos EUA através do Coeficinete Gini
0,37
0,38
0,39
0,4
0,41
0,42
0,43
0,44
0,45
0,46
Coeficinete Gini
0,404 0,403 0,406 0,412 0,414 0,415 0,419 0,425 0,426 0,426 0,431 0,428 0,428 0,433 0,454
1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
Gráfico 2 Coeficiente Gini. Curva ascendente na série entre 1979 e 1993 mostra uma crescente concentração de
renda a partir dos anos Reagan.
87
U.S. Census Bureau, Statiscal Abstract of the United State: 1999.
http://www.census.gov/prod/99pubs/99statab/sec13.pdf
45
Acompanhando ainda estes dados, observamos que, quando dividimos a população a
renda dos 20% mais ricos seguiu uma curva ascendente, enquanto a renda dos 40% mais
pobres, justamente aquela socialmente mais vulnerável decaiu durante este mesmo período
88
.
Concentração de Renda nos EUA - Série Histórica 1979 - 1993
0%
2%
4%
6%
8%
10%
12%
14%
16%
18%
20%
22%
24%
26%
28%
30%
32%
34%
36%
38%
40%
42%
44%
46%
48%
50%
20% mais ricos
44,20% 44,10% 44,30% 45% 45,10% 45,20% 45,60% 46,10% 46,20% 46,30% 46,80% 46,60% 46,50% 46,90% 48,90%
40% mais pobres
14,30% 14,40% 14% 14% 14% 14% 13,70% 13,50% 13,40% 13,40% 13,30% 13,40% 13,40% 13,20% 12,60%
1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993
Gráfico 3: Comparativo entre a porcentagem de renda dos 20% mais ricos e dos 40% mais pobres da população.
Neste ambiente onde se somam altos índices de desemprego, especialmente no setor
industrial e a queda da renda nas populações mais pobres e de classe média, as relações
sociais e de trabalho tornaram-se cada vez mais frágeis. Duplas jornadas de trabalho,
empregos extras e trabalhos temporários deixaram de ser encarados como alternativas
reservadas a situações emergenciais e se cristalizaram como parte da rotina da população
economicamente ativa. Cada indivíduo dependia de sua própria sorte para sobreviver no
mundo da autorregulação do mercado, devendo contar com seu próprio esforço e rendimentos
para os momentos de maiores dificuldades, como doenças e desemprego. Seguros de saúde,
cuja extensão da cobertura varia segundo os valores pagos, e planos de previdência privada
tornaram-se cada vez mais itens de primeira necessidade, consumindo partes significativas
dos orçamentos familiares.
88
Dados obtidos do U.S. Cesus Bureau. Select Measusres of Housebold Income Dispersion: 1967-2007.
http://www.census.gov/hhes/www/income/histinc/p60no231_tablea3.pdf
46
Zygmunt Bauman demonstra que estas transformações ocorridas na sociedade pós-
moderna e pós-industrial lhe impregnam de uma sensação de incontrolabilidade, o que
produziu um sentimento contínuo de insegurança, suscitando o que ele denominou como o
mal-estar da pós-modernidade. Criam-se novos mesmos e estranhos, em uma dinâmica onde
os locais de identidade não param nunca de se deslocar. Todas as sociedades constroem
representações de estranhos, numa relação de criação entre identidade e alteridade nas
dinâmicas sociais foi apontada de forma bastante feliz por Norbert Elias e John L. Scotson em
“Os Estabelecidos e os Outsiders”
89
. Neste trabalho Elias e Scotson analisaram os
mecanismos de diferenciação e de exclusão social numa pequena comunidade inglesa, entre
os habitantes estabelecidos e os recém-chegados vistos como os estranhos, os outsiders. O
propósito de Elias nessa análise foi estudar os aspectos de uma figuração universal entre
estabelecidos e outsiders, elaborando um modelo teórico que pudesse abarcar a construção
deste tipo de relação social em diferentes contextos. Para Elias, isso seria possível uma vez
que embora pudessem variar muito a natureza das fontes de poder, sobre as quais se alicerçam
o sentimento da superioridade social e humana dos estabelecidos em relação aos outsiders, a
própria representação simbólica, em contextos diferentes, características constantes e
comuns
90
.
O modelo de figuração entre estabelecidos e outsiders proposto por Elias nos ajuda a
compreender os mecanismos pelos quais este tipo de relação cultural e também de poder se
estruturam. Contudo se toda sociedade produz seus estranhos, cada tipo de sociedade produz
seu próprio tipo de estranhos, de maneira única e inimitável. Os estranhos são, para Bauman,
as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético de um mundo social.
Sua simples presença é suficiente para provocar uma sensação de estranhamento que deixa
turvo o que deve ser transparente, confuso o que deveria parecer coerente. Impõem incertezas
89
ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
90
Ibid. p.22.
47
as certezas e injetam angústia onde deveria haver a alegria ao mesmo tempo em que fazem
atraente o fruto proibido
91
. Em outras palavras podemos dizer que estranhos são aqueles que
tornam borradas os marcos fronteiriços que deveriam estar claramente traçados, gerando por
isso incerteza e mal-estar. Ao mesmo tempo em que cada sociedade traça seus mapas e
fronteiras cognitivas, estéticas e morais, ela determina também as pessoas que estão fora
destas linhas, àquelas que geram este mal-estar, o qual não pode ser tolerado em razão da
manutenção destas próprias fronteiras.
Mas, que tipos de estranhos são produzidos pela sociedade pós-moderna? Em primeiro
lugar, não entendemos a pós-modernidade como a superação da modernidade. Referimos-nos
aqui a um conjunto que características de uma época cuja definição conceitual ainda é um
motivo de forte debate, que Anthony Giddens chama de “modernidade tardia”, Georges
Balandier de “supermodernidade” e o próprio Bauman viria a chamar de “modernidade
líquida”. Talvez nenhum destes conceitos/denominações sozinhos deem conta de explicar de
maneira satisfatória suas características, sendo necessário conjuga-los a fim de se obter uma
visão mais ampla deste fenômeno. Compreendemos a pós-modernidade não como a
modernidade sobrepujada. Preferimos defini-la como a exacerbação das contradições da
própria modernidade, levadas ao seu limite, produzindo um estado de fluidez. Os conflitos e
tensões da pós-modernidade foram gestados dentro da modernidade. Como exemplo, recorro
às palavras do escritor inglês Robert Louis Stvenson. Em sua obra “O Estranho Caso do Dr.
Jeckyll e Mr. Hyde”
92
, publicada em 1886, um homem do final do século XIX percebia a
possibilidade sobre a liquides dos locais de identidade e da fragmentação do sujeito. Na
última parte do livro, quando se revela o conflito de identidades vivido no romance, Dr.
Jeckyll em sua carta de confissão a cerca de seu ego partido relata:
A cada dia, e a partir de ambos os lados de minha inteligência, o moral e o
intelectual, eu chegava mais perto dessa verdade, cuja parcial descoberta
91
BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. p.27.
92
No Brasil o título deste romance foi traduzido livremente para “O Médico e o Monstro”.
48
me condenara à ruína: a verdade que o homem não é verdadeiramente um
só, mas dois. Digo dois porque meu conhecimento, no estágio em que se
encontra, não vai além desse ponto. Outros hão de se seguir, outros irão
me superar neste objeto de pesquisa; arrisco o palpite que o homem
acabará por ser conhecido como uma mera sociedade organizada de
habitantes independentes, variados e incongruentes
93
.
A identidade na modernidade deixou de ser uma questão de atribuição para se tornar
uma questão de realização, tornando-se uma tarefa cuja responsabilidade recaia sobre cada
indivíduo, um projeto de vida construído progressivamente em direção a um futuro planejado.
Contudo, ao passo que as expectativas sobre as possibilidades de futuro se tornam difusas,
convertendo-se em trilhas onde é possível andar apenas por caminhos imprecisos, será
também sobre o indivíduo que recairá o maior peso. As redes que poderiam proteger o
indivíduo em seu salto do trapézio em busca de sua identidade foram retiradas, aumentando a
sensação de risco de cada salto. Mais que um sentimento paranóico, o mal-estar alimenta-se
da realidade material do cenário social, político e econômico dos anos Reagan.
Analisando o mal-estar na pós modernidade, Bauman aponta para o surgimento de um
novo tipo de incerteza, “não limitada à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas
igualmente a respeito da futura configuração do mundo”
94
. Trata-se de um sentimento de
incerteza sobre a possibilidade de futuro, que não soa como temporário ou ligado a uma crise
circunstancial decorrente de alguma conjuntura específica; mas sim permanente e inerente a
essência do mundo. A desregulamentação universal, alavancada pela economia de livre
mercado liquefez as regras sobre como se locomover neste novo cenário tornando-as
inconstantes.
Os estranhos, os outsiders, os viscosos e os inimigos foram aqueles que não
conseguiram se moldar a líquida sociedade de consumo que se formou, restando-lhes a
condição de impureza. Os moradores de rua, os desempregados, os que carregam consigo os
93
STEVENSON, Robert Louis. O Médico e o Monstro. In: Frankenstein / Mary Shelley. Drácula / Bram Stoker.
O Médico e o monstro / Robert Louis Stevenson. Rio de janeiro: Ediouro, 2001. p.682. Grifo nosso.
94
BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. p.32.
49
estigmas de losers, os derrotados no jogo de sobrevivência da sociedade capitalista, que não
compartilham ou não podem compartilhar dos sonhos e dos rituais de consumo yuppies. Serão
estes personagens anômicos que ganharão forma nas histórias contadas em Batman: Ano Um
e Batman: A Piada Mortal.
2.2) Heróis perdidos em uma Cidade Perdida: As tragédias sociais e a construção do
Herói em Batman: Ano Um.
Em 1986 a editora DC Comics concluiu que o seu quadro de personagens o qual era
composto por muitos personagens criados entre 1938 e 1941
95
– havia se tornado datado e que
era necessário reformula-lo para uma nova geração de leitores. A chave para esta mudança
veio com a publicação da maxissérie Crise nas Infinitas Terras. Nesta série, o multiverso
ficcional da editora, que envolvia todos os seus mundos paralelos, nos quais se abrigavam
diferentes personagens, foi obliterado em uma crise cósmica. A partir de então surgia um
novo e mais coeso universo DC, no qual as histórias dos personagens poderiam ser reescritas,
alterando suas versões canônicas e reestruturando suas ambientações ficcionais. Com este
objetivo foi publicado o arco de histórias Batman: Ano Um, escrito por Frank Miller,
desenhando por David Mazzuchelli e colorido por Richmond Lewis. Originalmente dividido
em quatro capítulos publicados nas edições 404, 405, 406 e 407 da revista Batman (fevereiro
a maio de 1987) este arco de histórias foi relançado na forma de uma Graphic Novel,
publicada num volume único no ano seguinte, com uma nova e mais elaborada colorização
96
.
Analisando a narrativa de Ano Um, constatamos que ela trata fundamentalmente sobre
a construção de lugares de identidades, entrelaçando os dilemas vividos ao longo de um ano
95
Alguns personagens surgidos neste período e o ano de sua primeira aparição: Superman (1938); Batman
(1939); Flash/Jay Garrick (1940); Capitão Marvel (Captain Marvel, 1939); Gavião Negro (Hawkman, 1940);
Lanterna Verde/ Alan Scott (Green Lantern, 1940); Robin (1940); Sociedade da Justiça da América SJA
(Justice Society of America JSA, 1940); Aquaman (1941); Arqueiro Verde (Green Arrow, 1941); Homem
Borracha (Plastic Man,1941)e Mulher-Maravilha (Wonder-Woman, 1941).
96
A técnica de impressão de histórias em quadrinhos em papel jornal em 1987 permitia o uso de uma paleta de
aproximadamente setenta cores. Papéis diferenciados, como o LWC, utilizados em edições especiais permitiam
um acabamento gráfico mais sofisticado, o que deu a Richmond Lewis a possibilidade de aprimorar seu trabalho.
50
pelos seus protagonistas: Bruce Wayne/Batman e o policial James Gordon. O primeiro
retornava a sua cidade natal após anos fora, tempo no qual viajou pelo mundo se
aperfeiçoando nas mais diversas técnicas de luta e investigação. Gordon era um policial
transferido de Chicago, que chegava a Gotham City tentando reconstruir sua carreira,
amedrontado com a possibilidade de gravidez de sua esposa. Ambos estão naquela cidade sem
esperança para se expiar de seus passados e construir uma nova vida.
A cidade de Gotham de Miller e Mazzuchelli é a quinta essência dos temores urbanos
do final do século XX. Sua atmosfera é decadente e a população vive sitiada, cercada pela
miséria e pela criminalidade. Além disso, ela é o espaço de um universo majoritariamente
masculino e violento algo que perpassa toda produção ficcional de Miller e se destaca em
seus trabalhos mais autorais como as séries em quadrinhos Sin City e 300
97
. Seus principais
personagens são homens aos quais se somam papeis femininos secundários: A esposa, a
prostituta e a amante. Nesta cidade, a corrupção se espalha por todos os níveis sociais,
estendo-se da força policial aos gabinetes políticos dominados pela máfia. Assim, ao contrário
de oferecer proteção aos indivíduos, o Estado é corrupto e corruptor, servindo apenas como
uma carcaça que permite aos mafiosos deter o controle sobre a sociedade. Gotham não é
apenas uma cidade ou um cenário. Ela é um arquétipo, um poderoso personagem coletivo que
agoniza intoxicado e contaminado por todos os tipos de impurezas para utilizarmos um
apropriado conceito de Bauman
98
da sociedade pós-moderna, enquanto mostra sua face
gótica. Tomemos a descrição feita por Frank Miller sobre o universo visual de Batman na
introdução da edição encadernada de Ano Um. Através dela podemos perceber como Gotham,
na visão deste autor, dialoga o real e o fantástico, construindo uma representação única sobre
os medos urbanos na qual, em meio a violência e tiros de metralhadoras, emerge uma figura
97
Posteriormente adaptadas para o cinema. Sin City estreou em 2005, dirigido coletivamente por Robert
Rodriguez, Quentin Tarantino e pelo próprio Frank Miller. 300 estreou em 2007, dirigido por Zack Snyder e
produzido por Miller.
98
As noções de pureza e impureza serão trabalhadas mais adiante, seguindo a proposição teórica de BAUMAN,
Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998.
51
da noite que beira o onírico; um morcego humano que salta entre as névoas e cujas asas se
transformam em uma capa:
Se sua única lembrança de Batman é a de Adam West e Burt Ward
trocando sarcasmos enquanto espancavam astros convidados como Vicent
Price e Cesar Romero, espero que este livro lhe seja uma surpresa.
Para mim, Batman nunca foi engraçado. Tinha oito anos quando peguei
uma edição anual de 80 páginas na prateleira de um supermercado local. A
arte de uma das histórias parecia muito boa e assustadora.
Gotham City era feita de colunas de frias de concreto, iluminada pela
claridade da lua, açoitada pelo vento e parecia não ter fim, esvanecendo-se
em uma nuvem de luzes, uma névoa branca e úmida, por milhas abaixo de
mim. O som das ruas parecia um fraco rugido contínuo e imutável.
Então, em algum lugar, algum lugar no labirinto de pedra embaixo,
minúsculo mas audível, o som de uma vidraça se quebrando. O ruído era
quase belo, como carrilhões. Carrilhões que se transformaram no ruído
contínuo de uma campainha, um alarme de ladros, do tipo antigo.
Uma metralhadora Thompson cuspiu na campainha. Um louco ria de forma
alucinada, maliciosa. A risada ecoou para sempre.
Uma sombra caiu sobre mim, vinda do alto. Asas tremularam, próximas e
quase silenciosas.
Brilhando molhado, negro de encontro ao céu escurecido, um monstro, uma
gárgula gigante e alada, curvada para frente, detendo-se no peitoril de um
prédio, a cabeça inclinada acompanhando os últimos segundos da risada.
A luz da lua cintilou por suas costas, pelos ombros maciços, pelo pescoço
ereto e cheio de tendões, pelo crânio, até formar um triângulo numa das
orelhas pontiagudas de morcego.
Ele ergueu-se no espaço, asas estendidas, e então caiu, as asas agora na
forma de uma capa tremulante, envolvendo o corpo de um homem.
Ele caiu passando por mim, sua sombra deslizando pelas paredes,
crescendo cada vez mais a ponto de engolir prédios inteiros, iluminado
pelas nuvens abaixo.
A sombra se misturou às nuvens.
E sumiu..
99
Dentre os escritores do quadro da DC Comics talvez nenhum se habilitasse mais para a
tarefa de recriar a origem de Batman que Frank Miller. Um ano antes, em 1986 ele escrevera e
desenhara a Graphic Novel Batman: O Retorno do Cavaleiro das Trevas (Batman: The Dark
Knight Returns)
100
, que redefiniu o personagem, lançando novas bases para a construção de
suas histórias futuras. Ela contaria o crepúsculo deste herói, passando-se em um futuro onde
Bruce Wayne teria abandonado a identidade de Batman dez anos após a morte de Robin.
99
MILLER, Frank. Introdução. In: Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988.
100
Batman: The Dark Knight Returns: New York: DC Comics, 1986. Publicada no Brasil com o nome de
Batman: O Cavaleiros das Trevas.
52
Contudo, o mundo não se tornara um lugar mais seguro. Um caricatural Ronald Reagan
continuava na presidência dos EUA, utilizando o Superman
101
como arma secreta para impor
a supremacia norte-americana sobre o globo e garantir sua estabilidade política. Nesta
Graphic Novel, Superman representa um contraponto ao Batman, seja pelo seu aspecto visual,
compondo uma oposição entre o colorido solar enfatizando o vermelho e o azul da bandeira
dos EUA do primeiro e o acinzentado noturnal do segundo, quanto por suas atitudes e
crenças políticas. A Guerra Fria não terminara e a humanidade continuava caminhando a
passos largos para um conflito nuclear. Em oposição a isso, Batman retorna a ação tentando
restaurar a ordem do seu mundo, lutando contra criminosos de rua, líderes de gangues e
também contra o próprio governo, culminando numa batalha icônica com o Superman nas
ruas de Gotham City. Como diz Frank Miller, numa entrevista sobre esta graphic novel:
Heróis têm que funcionar com a sociedade que os cerca e Batman funciona
melhor em uma sociedade que foi para o inferno. Este é o único jeito que
ele sempre funcionou. Ele foi criado quando o mundo estava indo para o
inferno e, em Cavaleiro das Trevas, voltou quando o mundo foi para o
inferno
102
.
Batman seria um personagem nascido do caos social, em meio ao mal-estar da crise do
liberalismo de 1929 e do ambiente cultural das guerras mundiais e, diante de um novo mal-
estar causado pela fragilização do indivíduo frente à desregulamentação do neoliberalismo e
pela possibilidade do exterminismo nuclear ele era revisto e fortalecido.
2.2.2) Como se constroem os Heróis: Batman e Gordon como modelo paradigmático
O título do primeiro capítulo de Ano Um é: Quem eu sou e como vim a ser. Nele se
buscou definir, conjugando textos e imagens, quem é Bruce Wayne e o tortuoso caminho que
101
Com a decisão da DC Comics em padronizar o nome do personagem Superman em todas as suas publicações
ao redor do mundo inclusive no Brasil –, optamos por utilizar aqui o nome em sua versão original no lugar de
sua tradução para o português como Super-Homem. È interessante notarmos que com esta medida reforça a
noção de que hoje, além de serem nomes de personagens, Superman e Batman são também como marcas
comerciais.
102
SHARRETT, Christopher. Batman and ht Twilight of the Idols: An Interview with Frank Miller. In:
PEARSON, Roberta E. & URICCHIO, Willian. The Many Lives of the Batman: Critical Approaches to a
Superhero and his Média. New Iorque: Routledge: 1991
53
o levou a se tornar Batman. A capa original de Batman #404 dialoga com sua splash page
103
nos indicando que o assassinato dos pais de Bruce Wayne como o elemento desencadeador da
origem de Batman. Na capa podemos observar Bruce Wayne ainda criança, ajoelhado entre os
corpos baleados de seus pais. A luz da cena incide apenas sobre eles aumentando sua
dimensão trágica. Ali não há o cenário citadino, com seu movimento característicos de
transeuntes, imagens luminosas e ruídos. apenas uma criança e a sua dor. Com a cabeça
inclinada para baixo e as mãos abertas, tentando ainda segurar a mão de sua mãe, o menino
está absolutamente desamparado, diante de uma perda que ele nunca conseguiria superar. O
símbolo do Morcego estilizado no logotipo da revista abraça a escuridão da cena,
emoldurando-a numa representação noturna de medo. Esta cena é complementada na página
seguinte, onde vemos Bruce Wayne adulto, em uma postura bastante semelhante a anterior
sentado numa poltrona e gravemente ferido, perdendo sangue que escorre pelo chão. A
sombra de um morcego está em primeiro plano, cobrindo o corpo de Bruce Wayne, fazendo
de suas asas os braços dele. Trata-se de uma citação de um dos trechos finais do capítulo um,
quando este personagem tenta conversar com seu falecido pai, sem saber como poderia levar
adiante a missão que ele se auto-impôs, até que um morcego atravessa sua janela. A escolha
destas cenas estabelece, como veremos adiante, dois marcos narrativo-temporais: O fim de
Bruce Wayne e o nascimento de Batman. (ver imagens 1, 2, 3 e 4)
A história deste primeiro capítulo se passa entre janeiro e março, e se abre com a
chegada do tenente James Gordon e de Bruce Wayne a Gotham City: A trajetória destes dois
personagens se liga em diversos momentos chaves, produzindo uma narrativa única, que
define o que é ser um herói e um policial naquela cidade. Gordon vem para Gotham de trem,
após quase ter tido sua carreira encerrada por ter cometido alguns erros os quais não são
revelados em Chicago, sua cidade de origem. A chegada a cidade é desoladora. O trem
103
No lugar de uma Splah Page convencional, o formato utilizado por Miller e Mazzuchelli, eliminando a
utilização de quadros e utilizando textos mais complexos que um simples titulo, se assemelhando mais a uma
folha de rosto de um livro que conjuga imagens e textos.
54
segue entre esqueletos de metal, cortando uma paisagem plúmbea em seus vagarosos e
pesados movimentos. Em um vagão lotado, Gordon olha seu relógio contando o tempo da
viagem, enquanto lida com dores no estômago. Ele está sozinho. Em um sacrifício financeiro
enviou sua esposa grávida de avião para poupá-la da visão desesperadora da verdadeira face
de Gotham. Ao tempo em que os olhos de Gordon se lançam para baixo, observando a cidade,
um avião prepara-se para aterrissar em Gotham, trazendo Bruce Wayne, de volta a cidade,
após doze anos fora, viajando pelo mundo. O diagnóstico de ambos é semelhante e
complementar. Do alto de um avião veriam ruas e prédios, o resultado do trabalho das
gerações anteriores de homens, dando-lhe a aparecia de civilizada. Contudo, Bruce Wayne vai
além. Ele diz que deveria ter vindo de trem. Ele “precisava ver o inimigo”
104
(ver imagem 5).
Ao desembargar na estação de Gotham, Gordon é recebido pelo detetive Flass, seu
futuro parceiro, enviado pelo comissário de polícia Gillian. B. Loeb para recebê-lo. Flass é o
próprio retrato da força policial da cidade: Corrupto, violento e irresponsável. Sua presença
anuncia o desafio que Gordon encontraria para se estabelecer em uma estrutura tão viciada de
forma clara: em seu primeiro dia de serviço, Gordon Flass beber em serviço e a agredir
jovens nas ruas. Em silêncio, Gordon observa que Flass tem treinamento militar como Boina
Verde e guarda essa informação como referência para quando for preciso, ou possível, reagir.
Descobrimos a seguir que comissário de polícia Loeb é, em verdade, o braço político
da ligação entre a máfia e o departamento de polícia. Em sua narrativa, Miller e Mazzuchelli
enfatizam a ideia de que a decadência que envolve a polícia de Gothamo é apenas material,
sendo também um sinal de fraqueza moral. Além do envolvimento dos policiais nos mais
diversos tipos de crime, como suborno, extorsão, sequestros e assassinatos, eles demonstram
ainda outros vícios em seu comportamento, como o jogo, o alcoolismo e o adultério.
104
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.2.
55
Imagem 68: Capa da Revista Batman # 404, fev. 1987
Imagem 69: Folha de rosto da revista Batman # 404, fev. 1987
Imagem 70: Ilustração da capa na versão encadernada de
Batman Ano Um, 1988
Imagem 71: Versão encadernada de Batman Ano Um, 1988.
p.1.
56
Imagem 72: Chegada de Gordon e Bruce Wayne a Gotham City. Batman Ano Um, 1988. p.2
57
Estabelece-se uma relação de tensão entre o departamento de polícia e Gordon que
eclode dois meses depois numa violenta represália. Quando Gordon se recusa a aceitar o
suborno de um padre, Flass e outros policiais disfarçados atacam-no, batem nele e após isso
ameaçam sua esposa grávida. Na mesma noite Gordon prepara sua revanche. Ferido ele pega
o carro e segue até a casa de um dos policiais que o agrediram, que estaria naquele momento
reunidos para uma partida de pôquer. Gordon espera Flass sair e o cerca sozinho na estrada.
Tendo também treinamento militar ele derruba o ex-boina verde, batendo o suficiente para
deixá-lo caído. Após tirar as roupas dele, Gordon o algema. Neste momento Gordon entende
a dinâmica política caótica que impera em Gotham City, ao afirmar que:
Ele nunca vai fazer um relatório sobre isso. Não o Flass. Ele
inventará uma história que envolva pelo menos dez agressores sem
nunca admitir que fui eu. Mas ele vai saber. E não vai chegar perto
de Barbara. Obrigado, Flass. Você me mostrou o que é preciso para
ser um policial em Gotham City
105
. (ver imagens 6 e 7)
Neste mesmo espaço de tempo, Bruce Wayne retorna a sua casa/família. Ali resta seu
último elo afetivo familiar: o mordomo Alfred e as lembranças de seus pais, que toma forma
física na mansão erguida por seus ancestrais. É ali que ele espera e avigora seu corpo,
enquanto espera encontrar o que falta a ele para levar adiante a promessa feita junto ao túmulo
de seus pais. Na mesma noite em que Gordon sofre o atentado, Bruce Wayne decide fazer sua
primeira investida contra os criminosos da cidade. Disfarçado como um veterano, Bruce
Wayne caminha até a Zona Leste, a área mais decadente de Gotham City, se deparando no
caminho com mendigos, prostitutas, homossexuais e toxicômanos. O lugar é caracterizado
pela prostituição e pela pornografia, ao ponto de Bruce Wayne ser abordado por uma menor
chamada Holly que é sexualmente explorada nas ruas da cidade. É neste ambiente que
conhecemos a interpretação de Frank Miller para Selina Kyle, futura Mulher-Gato: uma
prostituta, que observa a cena na janela, enquanto diz que odeia os homens por não ter jamais
105
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.19.
58
conhecido um. Inicia-se uma luta entre Bruce Wayne e o cafetão local, que acaba por envolver
outras pessoas no lugar. Em meio à confusão, Bruce é esfaqueado na perna por Holly e
quando tenta se livrar dos travestis e prostitutas que o cercam ele é detido pela polícia, que
chega naquele instante. Ao tentar fugir Bruce Wayne leva um tiro dos policiais e é levado para
ser autuado (ver imagem 8).
No carro os policiais discutem se devem ou não leva-lo ao hospital. Contudo, Bruce
Wayne consegue se livrar e foge, voltando para sua mansão, cruzando no caminho com
Gordon, que foi ao encontro de Flass para revidar a agressão que sofrera. Na mansão Wayne,
com diversos ferimentos e acreditando estar a beira da morte, ele olha para o busto de seu pai
pensa no fracasso daquela noite. Revivendo o assassinato de seus pais, Bruce Wayne prefere a
morte a esperar mais. Já fazia dezoito anos que sua vida perdera completamente o sentido e
ele precisava fazer algo para recuperá-la. Ele havia herdado uma fortuna, uma caverna sob a
mansão que poderia servir como um perfeito quartel-general e até mesmo um mordomo com
treinamento em medicina de guerra . Faltava-lhe apenas algo que pudesse levar o medo aos
criminosos. Nesse instante um morcego rompe a janela e pousa sobe o busto de seu pai. A
partir dali ele se tornaria um morcego. (ver imagens 9 e 10)
O tenente Gordon toma a frente de uma ação policial impedindo que um louco, recém
saído do Asilo Arkham, mate três crianças e que a swat invada o local pondo em risco a vida
dos reféns. Este tipo de ação dá maior visibilidade a Gordon, deixando a impressa a seu lado e
lhe conferindo maior proteção contra os policiais corruptos. Ao mesmo tempo, Bruce Wayne
começa a atuar como Batman, testando suas habilidades, roupa e equipamentos, a princípio
atacando assaltantes e, depois, todos os setores do crime organizado e as elites corruptas da
cidade. Em uma ação carregada de teatralidade, Batman invade um jantar do qual participam
as principais autoridades de Gotham City e os chefes da máfia. Preparando uma iluminação
59
Imagem 73: Batman Ano Um, 1988. p.18.
Imagem 74: Gordon enfrenta a polícia corrupta da cidade e dá
início a um novo modo de ação. Batman Ano Um, 1988. p.19.
60
Imagem 75: Miséria e crise social: os estranhos da sociedade pós-moderna. Batman Ano Um, 1988. p.10.
61
cênica ele corta as luzes do interior do salão de jantar e explode uma de seus paredes,
surgindo em meio a uma nuvem de gás, enquanto diz: “Senhoras e senhores, Vocês comeram
bem. Comeram a riqueza de Gotham. Seu espírito. Seu banquete está prestes a terminar. A
partir deste momento... nenhum de vocês está a salvo”
106
(ver imagem 11). Este ataque
desencadeia uma grande caçada ao Batman, envolvendo todo o Deparamento de Polícia de
Gotham City (GCPD) e a prefeitura, agora ameaçados pela presença de Batman. Contudo,
isso não detém Batman, que continua atacando e humilhando os chefes da máfia. Porém,
apesar de ser um vigilante, a concepção de justiça de Batman funda-se na atuação do pelo
Estado. Para ele atacar e prender os criminosos não seria o suficiente para garanti-la. Seria
também necessário julga-los, condena-los e isola-los. Nesta gica, Batman quebra o balanço
entre lei e justiça, desrespeitando a primeira para garantir de alguma forma a segunda. Isso
talvez explique os motivos pelos quais Batman teria estabelecido, para si, um rigoroso código
de conduta sobre não matar e não utilizar armas de fogo, bem como as razões que o fizeram se
aliar ao promotor público Harvey Dent e buscar construir uma aliança com a polícia através
de Gordon.
Ao curso da investigação para descobrir quem seria o Batman, Gordon suspeita do
promotor, que conseguiu graças as suas ações do vigilante atingir alguns criminosos até então
intocáveis. Além de Harvey Dent, Bruce Wayne é incluído por Gordon na lista de suspeitos
por conta de seus recursos financeiros – que poderiam financiar o equipamento de Batmane
seu histórico familiar, que lhe daria um motivo para atuar como um vigilante. Durante essa
investigação, Gordon se aproxima cada vez mais de sua nova parceira de trabalho, a detetive
Sarah Essen, com quem ele viria a ter um relacionamento extraconjugal.
106
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.28.
62
Após interrogar Dent, Gordon acaba encontrado Batman nas ruas, quando ele se atira
na frente de um furgão, para impedir o atropelamento de uma catadora de lixo. O vigilante
acaba cercado pela polícia e quando tenta fugir é atingido por um tiro em sua perna direita.
Ferido ele se refugia em um prédio abandonado, onde moram alguns mendigos. Contrariando
Gordon, o comissário Loeb convoca a swat que dispara bombas incendiárias sobre o prédio,
para matar qualquer um que estivesse em seu interior. O prédio onde Batman se refugiou está
em chamas após cinco explosões provocadas pelos ataques aéreos da swat. Os explosivos no
cinto de utilidades de Batman começam a combustar, obrigando-o a se livrar da maioria de
seus equipamentos e armas. Na busca por um refúgio no meio das chamas, Batman não
consegue salvar os mendigos que morrem queimados. A perseguição ganha grandes
proporções, quando a população da Zona Leste acorda com as explosões e a TV anuncia que
se tratava de uma ofensiva da polícia contra o Batman (ver imagens 12, 13, 14 e 15).
Temos aqui a citação de mais um dos perigos que cercam a sociedade pós-moderna. A
vida dos sem-teto, os estranhos da sociedade de consumo, é tratada pelos agentes do Estado
de Gotham City como uma perda aceitável. Suas mortes não reapresentam qualquer obstáculo
para a violenta polícia em sua caçada por Batman. Sem família ou propriedade suas
existências poderiam ser facilmente descartadas, desaparecendo sem deixar qualquer registro
ou culpa – legal ou moral – para seus assassinos. Dentro das figurações das relações sociais de
Gotham City, a ação fora da lei de Batman seria a única forma de invenção possível contra
isso, com a população o consagrando como herói, como veremos adiante, quando ele ataca a
swat.
Quando o incêndio chega ao fim, uma equipe da swat invade o prédio procurando pelo
corpo de Batman, mas descobre que ele se refugiou no quarto de um mendigo, ornamentado
com inscrições religiosas e com uma bíblia sobre a mesa. Escondido nas trevas, Batman
63
Imagem 76: Assassinato dos pais de Bruce Wayne. Batman Ano
Um, 1988. p.21.
Imagem 77: Busca por um lugar de reconstrução de identidade
Batman Ano Um, 1988. p.22.
64
Imagem 78: Batman declara guerra a elite criminosa de Gotham City. Batman: Ano Um, 1988. p.38.
65
Imagem 79: Perseguição policial ao Batman. Batman Ano Um,
1988. p.46
Imagem 80: Eliminando estranhos: A morte dos sem-teto pela
polícia de Gotham. Batman Ano Um, 1988. p.50.
Imagem 81 Explosões provocadas pela polícia rompem a
madrugada. Batman Ano Um, 1988. p.51.
Imagem 82: Televisão como mediadora de informações para a
população. Batman Ano Um, 1988. p.52.
66
derruba um a um os agentes da swat, enquanto aterroriza os demais através de transmissões
feitas pelo rádio da polícia. Na alvorada, uma multidão já cerca o prédio e os policiais
continuam a busca por Batman. Um gato, que dividia com o herói o esconderijo foge ficando
na mira de um dos policiais, que atiram indiscriminadamente em qualquer alvo móvel. Assim,
Batman é atingido no braço enquanto tentava proteger o felino.
Sem suas armas, Batman conta apenas com uma zarabatana, três dardos envenenados e
um dispositivo capaz de atrair morcegos da batcaverna até ali, por meio de uma frequência
sonora
107
. Contudo os morcegos levariam alguns minutos para chegar e durante este tempo,
Batman deveria ganhar tempo, utilizando os três dardos contra vinte e um policiais armados
com milhares de balas. Batman, então, ataca um dos policiais com um dos dardos e tenta se
esquivar dos tiros, correndo pelo prédio. A swat atira pelas janelas do prédio, fazendo com
que Gordon peça, inutilmente o cessar fogo. Para se livrar dos policiais ele derruba uma das
colunas do prédio com um chute, levantando uma nuvem de poeira que o permite atacar os
policiais sem ser visto. Do lado de fora, com o dia claro, a multidão vibra quando um
policial o que atirou no gato é arremessado pelo Batman através da parede. A ovação,
porém desaparece e a multidão grita em pânico, quando uma nuvem de morcegos cobre o sol,
fornecendo ao Batman a cobertura necessária para sua fuga. Após este incidente, Selina Kyle
abandona a prostituição, após surrar seu cafetão, e se torna a Mulher-Gato.
Sabendo dos ferimentos de Batman, Gordon tenta interrogar Bruce Wayne, mas o
bilionário consegue um álibi na Suíça, onde alega ter sofrido um acidente esquiando. Por
outro lado, Bruce Wayne chega a conclusão que precisa de um aliado dentro da polícia e que
Gordon era o candidato perfeito para isso. Paralelamente, Gordon se encontra imerso em
dúvidas após suas experiências nos últimos meses em Gotham. Sentado na cama, sentido o
peso da arma em suas mãos, enquanto sua esposa grávida está adormecida ele se questiona
107
Uma referência a esta cena foi introduzida no filme Batman Begins quando um dispositivo semelhante é
utilizado por Batman para encobrir sua saída do Asilo Arkham.
67
sobre seu envolvimento extraconjugal e a atuação de Batman, estabelecendo em seus
pensamentos uma relação de complementaridade entre estes dois outsiders do Estado.
Barbara... eu devia falar com ela. Não podia estar pensando na
sargento...nem no Batman. Ele é um criminoso. Eu sou um policial. Mas...
Mas sou policial numa cidade onde o prefeito e o comissário de polícia
usam os policiais como assassinos contratados. Batman salvou aquela
velha. Ele salvou aquele gato. Até pagou o terno. A peça metálica em
minha mão está mais pesada que nunca
108
.
James Gordon e Sarah Essem estão cada vez mais envolvidos. Contudo, diante do
nascimento do filho de Gordon ela decide terminar o relacionamento e pede transferência para
fora da cidade. Gordon prende Jefferson Skeevers, um grande traficante, cujas falas e
concepção visual e enfatizam ser negro, que é solto logo em seguida, graças a um plano
elaborado por Batman e o promotor Harvey Dent. Em liberdade, enquanto consome cocaína,
Skeevers é atacado por Batman, que o força a confessar seus crimes e participação do detetive
Flass na rede de corrupção da polícia de Gotham. Como o comissário Loeb seria envolvido
graças ao depoimento de Flass, os policiais corruptos de Gotham ameaçam revelar o
relacionamento extraconjugal de Gordon para a imprensa, deixando-o em xeque caso caso as
investigações prosseguissem.
Treze dias se passam e a caçada ao Batman continua, com Gordon investigando seu
principal suspeito, Bruce Wayne. Gordon vai até a Mansão Wayne buscar esclarecimentos e
álibis, sendo recebido por seu dono que se comporta de maneira fútil. Além de oferecer
bebida pela manhã e lhe apresentar uma bela mulher, cujo nome ele não lembraria e cujo
idioma ele não falaria, Bruce Wayne oferece a Gordon uma lista de belas mulheres famosas
que poderiam lhe fornecer um álibi. Gordon desconfia que aquilo possa ter sido apenas uma
simulação para esconder sua identidade/atividade. Diante da contradição de buscar como
policial a verdade e como marido mentir para sua esposa, Gordon conta, neste mesmo dia,
108
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.70.
68
para ela o seu envolvimento com a tenente, ficando livre para agir contra Flass e o comissário
de polícia.
O ritmo da passagem de tempo se torna mais rápido, acompanhado por pequenos
quadros sequenciais. Nasce o filho de Gordon, que recebe o nome do pai. Diante da
movimentação da máfia, Batman investiga Romano (Roman) sugestivo nome para o chefe
da máfia italiana que vive em um prédio cujo padrão arquitetônico se assemelha a uma
terma romana. Apesar de sua investigação ter sido frustrada pela ação da Mulher-Gato, que
tenta invadir o local, Batman deduz que Gordon é o alvo da máfia e sai para tentar protege-lo,
disfarçado como um motoqueiro.
Romano e o comissário engendram uma armadilha para tirar Gordon de casa e
sequestrar sua família. Contudo, a chegada de Bruce Wayne/Batman alerta Gordon de que
algo está errado e ele volta para casa. Após uma luta contra os sequestradores, Gordon salva
sua esposa, mas não consegue impedir que seu filho seja levado. Sem saber que era o Batman
que estava na moto, Gordon alveja-o, e persegue o carro dos sequestradores. Batman, que
escapou do tiro, vai atrás dele e consegue salvar seu filho, quando este cai de uma ponte.
Gordon pega seu filho com Bruce Wayne, que está sem máscara. Em uma fala ambígua,
Gordon diz que é praticamente cego sem óculos e que por isso não conseguiria reconhece-lo.
Estaria Gordon dizendo a verdade ou encontrando uma solução para balancear sua relação
com um herói/criminoso e garantir algum equilíbrio entre a lei e a justiça? A dúvida, criada
pelo roteiro de Miller, não é respondia pela narrativa, inserindo mais um elemento no
paradigma de herói representado pela relação entre Batman e Gordon. Por fim, A d a cidade
começa a se transformar. Gordon é promovido a Capitão e aumenta sua aproximação com
Batman. Ao fim do ano surge o Coringa, tentando envenenar o reservatório de água da
cidade. Um novo modelo de ameaça para uma cidade com novos heróis.
69
No enredo de Ano Um, Gotham City é construída como um ambiente social onde a
presença de um vigilante como Batman se transforma na epopéia de um herói tentando salvar
uma cidade do caos. O cientista político Tony Spanakos propõe, em seu artigo Governando
Gotham
109
, uma análise das tragédias sociais que afligem a cidade de Batman através de uma
perspectiva hobbesiana. Para Spanakos, Gotham poderia ser entendida como uma
representação da guerra de todos contra todos”, resultante da ausência do Estado, um lugar
impossível de se governar e onde a justiça a muito não passa de um anseio e a sociedade
entrou em colapso caindo na desordem descrita por Hobbes. Um ponto importante deste tipo
de análise é o dialogo da temática da crise do modelo de Estado do Bem-Estar Social com a
atmosfera de medo e ansiedade do indivíduo, frente as incertezas e liquides do mundo pós-
moderno. É a ausência de garantias de seguranças e justiça que gerou Batman e os inúmeros
dos vilões de Gotham, como pode ser visto na Graphic Novel Batman: A Piada Mortal, que
será analisada neste mesmo capítulo.
A dinâmica da relação que se firma entre Batman e o tenente e futuro comissário de
polícia – James Gordon é primordial para compreendermos a construção de um paradigma de
herói que se defronta com as ansiedades do mundo desregulamentado da pós-modernidade. O
status de herói de Batman é tecido pelo entrelaçamento de sua atuação como vigilante
individual e a restauração do papel protetor do Estado, tornando-o aceito pela população de
Gotham City e legitimando o apoio de Gordon a este fora da lei. Em Ano Um, quando Batman
ataca os policiais da swat dentro do prédio abandonado, atirando-os inclusive através das
paredes para a rua, ele é aclamado pela população como seu herói. Aquele que conseguiu sair
da anomia e se levantar contra a violência ilegítima de parte da força policial corrompida da
cidade. É sintomático a swat ser denominada por Gordon como a gestapo
110
a polícia
secreta do Estado nazista cuja função primordial era eliminar a oposição política ao III
109
SPANAKOS, Tony. Governando Gotham. In: IRWIN, Willian. Batman e a filosofia: O Cavaleiro das trevas
da Alma. São Paulo: Madras, 2008. p.61-72.
110
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.26.
70
Reich
111
. A swat seria a face política da polícia de Gotham, responsável por eliminar as
impurezas do sonho de limpeza da sociedade pós-moderna: os loucos como o sequestrador
esquizofrênico detido por Gordon, os excluídos da sociedade de consumo, como os sem-teto
no prédio incendiado pela polícia e aqueles que se levantariam contra a ordem estabelecida
como Batman e Gordon.
Retomando um argumento anterior, consideramos que o personagem Batman não é um
alienígena, tanto do ponto de vista literal quanto metafórico. Ele não é um extraterrestre como
o Superman
112
, vindo de um outro mundo e aprendendo nossos valores para nos salvar e nos
servir como uma reserva moral. Batman também não é um completo estranho, um ser de fora
da sociedade onde ele atua. Ele é um produto de Gotham e suas incongruências. Podemos
defini-lo como uma “impureza” de Gotham que, contraditoriamente, existe com a função de
eliminar sua própria razão de existência.
Zygmunt Bauman nos fala que a sociedade pós-moderna é imbuída de um “sonho de
pureza”. A noção de pureza é, para este autor, antes de tudo um ideal, uma condição que ainda
está por ser criada e que necessitaria ser protegida contra todas as disparidades genuínas ou
imaginadas. A pureza é uma visão da ordem, capaz de atribuir às coisas quais seriam seus
lugares “justos” e “convenientes”. O inverso da pureza, o impuro, o sujo, os “agentes
poluidores” seriam justamente as coisas fora de seus lugares de ordem. Não são as
características intrínsecas das coisas que as transformariam em impuras ou sujas. Esta pecha
advém tão somente de sua localização e, de modo mais exato, de sua localização na ordem de
coisas idealizadas pelos que procuram a pureza
113
.
Ora, o que seria Batman senão um fruto e, depois, uma condição de impureza? Ele
nasceu do medo, da violência, da perda abrupta de tudo o que somos e do assassinato; daquilo
111
FERREIRA, Muniz. Gestapo. In: Dicionário Critico do Pensamento da Direita: Ideias, Instotuições e
Personagens. Rio de Janeiro: Mauad, 2000. p.209.
112
O personagem Superman não é um terráqueo. Ele teria vindo do planeta Kripton pouco antes de seu mundo
explodir para terra.
113
BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. p.13-14.
71
que mais se pode temer encontrar na vida urbana: o som seco de um tiro e a morte repentina e
inesperada irrompendo o curso da vida cotidiana. A impureza de Batman não se limita a sua
origem, espalhando-se também sobre seu modus operandi como herói/vigilante. Ele não é um
representante do Estado e tomou para si o direito do uso legítimo da violência. Batman, como
diz Spanakos, sempre viola os direitos civis dos criminosos, uma vez que ele não tem
autoridade para agir como um agente da lei
114
. Porém, em outra medida isso a Batman a
capacidade de ir além dos limites do Estado que fora corrompido. Em um mundo
desregulamentado, onde tanto o indivíduo quanto o estado são frágeis frente às forças do
poder econômico, Batman opera a partir da gica que ele é o único que pode fazer o que ele
faz, equilibrando a justiça e, contraditoriamente, restaurando a função do Estado. A atuação
de Batman pode ser lida como um teste aos limites do Estado. Se ele age fora da lei para
prender os criminosos, ele conta com o poder judiciário para puni-los. Batman não mata, não
usa armas de fogo e em seu código de conduta, entrega os criminosos para o Estado. Podemos
dizer assim que Batman busca trazer a ordem, mas ele não poderia existir em um mundo de
ordem. O sofrimento de sua atuação como herói surge exatamente deste fato: Batman
reconhece a si mesmo como algo impuro, um mbolo do medo e busca construir um mundo
onde seu lugar social desaparece.
Isso explica a dúvida e o dilema de Gordon. Ele é um policial, um agente do Estado
autorizado a portar uma arma de poder letal para defender os cidadãos segundo a lei. Todavia,
Gordon reconhece também a corrupção que assola Gotham. Ela corrompeu as autoridades
constituídas transformando-as em criminosas. Ao mesmo tempo, a relação entre Bruce Wayne
/ Batman e Gordon é complementar. Enquanto o primeiro vive o trauma da orfandade, ao
regressar a casa vazia de seus pais, o segundo se depara com as ansiedades e dilemas da
paternidade, como fica patente quando ele põe a mão na barriga de sua esposa adormecida e
114
SPANAKOS, Tony. Governando Gotham. In: IRWIN, Willian. Batman e a filosofia: O Cavaleiro das trevas
da Alma. São Paulo: Madras, 2008. p.71.
72
sente o bebê chutar. Enquanto a luz da lua invade o quarto, projetando-se sobre o corpo de sua
esposa, revelando também as sombras da cidade, Gordon, sentado de costas na cama sem
conseguir dormir e fumando um cigarro pensa: “rezo para que ele seja forte. E Esperto o
suficiente para permanecer vivo. Como deixei isso acontecer? Como estraguei tudo... trazer
uma criança inocente para viver em uma cidade sem esperança”
115
. Logo em seguida, no
quadro abaixo, vemos a imagem de Batman correndo pela primeira vez pelos telhados de
Gotham. Sua capa se abre como asas, representando o nascimento de um novo tipo de
esperança de reconstrução de ordem naquele mundo social (ver imagem 16). Esta figuração
chegará a seu ponto mais alto com o reconhecimento da importância de Batman por Gordon,
com a instalação do batsinal no telhado do GCPD, projetando, e incorporando, o símbolo do
morcego no céu noturno da cidade e, de alguma fornecendo o reconhecimento institucional do
Estado para a ação deste herói (ver imagem 17).
2.3) Para provar que não sou um estranho: Coringa, anomia e a identidade na pós-
modernidade.
Batman: A Piada Mortal, diferente de Ano Um, foi lançada diretamente no formato de
uma graphic Novel, o que lhe deu algumas especificidades. Como vimos na introdução deste
trabalho, as graphic novels são edições produzidas em formato e papel diferenciados, com
histórias mais longas, permitindo uma abordagem mais complexa do que as de uma história
de uma edição comum. Suas temáticas são voltadas para um público adulto – o que é sugerido
de forma implícita no preço mais elevado e explícita nas advertências impressas nas capas
(ver imagem 18). Fazem parte de seus roteiros questões envolvendo drogas, sexualidade,
política, fantasia e literatura. Dadas tais características, as graphic novels trazem histórias com
um maior caráter autoral, onde escritores e desenhistas possuem maior liberdade criativa.
115
Batman: Year one. New York: DC Comics, 1988. p.29.
73
Imagem 83 : Dilemas de Batman e Gordon em Batman Ano Um, 1988. p.30
74
O formato das graphic novels ganhou força com a mudança no perfil dos leitores e do
mercado de quadrinhos, a partir do final dos anos de 1970. Neste período foi introduzido o
conceito de “mercado direto”
116
para incrementar as vendas das revistas em quadrinhos.
Iniciava-se a venda direta e antecipada de revistas, mediante encomenda, para as comics
shops, as lojas de quadrinhos
117
. Tal estratégia de venda criou uma oposição entre o
comprador ocasional e a figura do fan, o leitor habitual e fiel, que acompanhava e colecionava
cada série e impulsionava as vendas dentro deste mercado. As HQs de super-heróis,
especialmente da Marvel e DC Comics, deixavam de ser definitivamente um produto voltado
exclusivamente para o público infantil, conquistando novos segmentos de consumo. Como
nos demonstra o historiador Bradford Wright, este quadro ajudou a criar a noção de “estrelas
dos quadrinhos”, onde escritores e desenhistas populares entre os fans obtinham altos salários
e autonomia para suas criações
118
. Uma destas estrelas foi o escritor inglês Alan Moore, autor
do roteiro de Piada Mortal. Dono de uma figura pitoresca, este filho de operários,
simpatizante do anarquismo, usuário assumido de drogas alucinógenas e praticante de magia
neopagã, foi o autor de algumas das mais influentes HQs escritas, como V de Vingança (V
for Vendetta, 1982-1988) e Watchmen (1986-1987).
Junto ao texto de Moore, trabalharam na composição de A Piada Mortal o desenhista
Brian Bolland e o colorista por John Higgins todos artistas ingleses
119
. Conjuga-se, aqui,
uma equipe artística britânica com um trabalho editorial norte-americano. Não por
coincidência, os EUA e a Inglaterra viviam neste momento conjunturas políticas e
econômicas muito semelhantes, com o avanço dos programas neoliberais de Reagan e
116
Direct Marketing
117
Em uma adaptação para o português do Brasil, as gibiterias.
118
WRIGHT. Bradford W. Comic Book Nation: The Transformation of Youth Culture in America. Baltimore:
The Johns Hopkins University Press, 2001.
119
Advindos da chamada “Invasão Britânica” ao mercado de quadrinhos dos EUA na década de 1980, quando as
principais editoras norte-americanos procuravam expandir seu quadro de criação com a contratação de jovens
artistas ingleses.
75
Tatcher, cujas consequências sociais serviram como pano de fundo para o desenvolvimento
do enredo desta graphic novel.
Diferente das demais HQs analisadas neste trabalho, A Piada Mortal não é uma
história do Batman. Ela é uma história sobre o Coringa. Como nos conta Bolland, Batman é
praticamente um personagem incidental, aparecendo muito pouco ao longo da narrativa. Isto
fica claro na composição artística da capa desta graphic novel. Nela vemos o rosto do
Coringa, em um enquadrado fechado, simulando um retrato fotográfico. Para tanto, Bolland
utilizou um autorretrato seu diante do espelho que serviu modelo para o desenho desta capa
(ver imagens 19 e 20). Contra um fundo negro, que aumenta o contraste e a vivacidade das
cores, o Coringa olha diretamente para os leitores, enquadrando-os em sua máquina
fotográfica e pedindo-os para sorrir. O sorriso deste personagem rasga sua face branca/sem
cor
120
, mostrando seus dentes amarelados e pontiagudos, assombrando e fascinando os
leitores e fazendo uma referência ao horror sofrido por Barbara Gordon
121
no curso dessa
história.
O roteiro de Moore é construído de forma detalhista, criando uma razão de existir para
cada elemento inserido dentro dos quadros, elaborando uma narrativa visual rebuscada e
polissêmica. A contracapa e as páginas finais da edição mostram pingos de chuva, que
demarcam o início e o fim da história. Esta será uma característica de toda narrativa. Ela
segue uma temporalidade cíclica e circular, com idas e vindas ligando seu início e o seu fim.
Estas mudanças de tempo se fazem através de “pontes imagético-temporais”, nas quais um
elemento presente na composição da cena no presente dialoga visualmente com outro do
passado.
120
Ainda que o branco seja, em verdade a junção de todas as cores do espectro de cores, ele pode ser também
definido como a ausência de cor, quando tratamos de cores pigmento, utilizadas em pinturas.
121
A filha adotiva do comissário de polícia teria o mesmo nome de sua primeira esposa, personagem de Batman
Ano Um: Barbara Gordon.
76
Os pingos de chuva formam círculos no asfalto da rua, até serem cortados por dois
feixes de luz, que se revelam ser os faróis do batmóvel. O veículo estaciona em frente ao Asilo
Arkham, onde estariam internados os criminosos insanos de Gotham. Batman deixa o veículo,
os portões de metal e adentra em direção ao prédio, onde encontra o comissário de polícia
Gordon acompanhado de um assustado policial (ver imagens 21 ,22 e 23). A cena segue em
silêncio, com Batman e o Gordon adentrando no prédio, seguindo as orientações de uma
secretária visivelmente perturbada com a presença sinistra do herói. Na mesa da secretária, a
mensagem de uma placa de mesa de escritório ganha um novo sentido: “Você não tem que ser
louco para trabalhar aqui. Mas isso ajuda”
122
.
Ambos seguem por corredores repletos de celas, grades e sombras, passando pela cela
de Harvey Dent, o criminoso conhecido como Duas Caras. A inserção deste personagem
define a dualidade que perpassa toda história. A composição narrativa é feita sempre em um
jogo da oposição refletida entre duplos/espelhos: seja entre o Batman e o Coringa ou mesmo
entre presente e passado, montando a série de tragédias que formam a vida do vilão.
Finalmente eles chegam a uma, porta onde uma placa informa que o nome verdadeiro daquele
interno é desconhecido, sendo ele reconhecido pelo número 0801. Um policial bate
continência para o Batman e abre a porta. Ela se fecha atrás da silhueta do herói e o
enquadramento se amplia, até vermos o Coringa sentado jogando cartas, sozinho numa mesa.
Uma luminária garante luz apenas em um pequeno círculo, ao redor dos personagens, sem
revelar seus rostos. Nesta mesma cena, temos o início da piada que fechará a história: “Havia
dois caras em um asilo para lunáticos”
123
.
Sentado em frente ao Coringa, Batman diz que está ali para conversar sobre o futuro
destrutivo para o qual caminhava a relação entre estes dois antagonistas:
122
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988. p.3.
123
Ibid. p.4.
77
Olá. Eu vim conversar. Estive pensando ultimamente sobre você e eu. Sobre o que
vai acontecer conosco no fim. Vamos acabar matando um ao outro, o? Talvez
você me mate, talvez eu o mate. Talvez mais cedo, talvez mais tarde. Eu queria
saber que fiz um esforço genuíno de mudar as coisas entre nós. uma vez. Vo
está me ouvindo? É sobre vida e morte que estou falando aqui. Talvez a minha
morte... talvez a sua. Nunca entendi completamente porque nosso relacionamento
deveria ser tão fatal, mas não quero seu assassinato em minhas... mãos
Esta passagem marca, como analisa Will Brooker uma diferenciação profunda entre a
concepção do personagem Batman de Frank Miller e de Alan Moore. Na primeira, ele é
representado como um indivíduo atormentado que não suporta mais esperar ou buscar,
inutilmente, explicações capazes de dar coerência ao seu mundo despedaçado, priorizando a
ação e o enfrentamento em detrimento da negociação. A linha de ação proposta por Moore
tanto para Batman, quanto para o Coringa é o diálogo
124
. Batman o procura para conversar.
Ao mesmo tempo em que toda ação do Coringa desenvolvida ao longo da história é uma
insana e cruel defesa de seu ponto de vista e de seu ego, que luta para o permanecer como
um estranho àquela sociedade. Ele necessita da presença de Batman como um interlocutor
para lograr o sucesso nesta empreitada. (ver imagem 24).
A cena prossegue com o Coringa calado, jogando cartas, o que leva Batman se exaltar,
segurando sua mão direita para alertá-lo. Nesse instante ele percebe que a brancura que cobre
a pele do Coringa era maquiagem e que aquele homem era um impostor. O verdadeiro
Coringa havia fugido e estaria preparando sua ambiciosa ação. Enquanto Batman interroga
violentamente o impostor, a cena se desloca para um parque de diversões abandonado, onde
um homem tenta vende-lo ao Coringa. O cenário do parque em ruínas constitui uma alegoria
de um mundo interno destroçado. Por entre brinquedos e suas formas surrealistas que agora
não oferecem lazer, mas sim riscos a quem se aventurar a caminhar por entre eles se pode
ver a silhueta dos edifícios da cidade de Gotham, posicionada abaixo da mão do Coringa (ver
124
BROOKER, Will. Batman Unmasked: Analyzing a cultural Icon. New York: Continuum, 2000.p.267-268.
78
imagem 25). A cidade berço das tragédias que levariam o Coringa e o Batman até ali. Eles
caminham entre cartazes de aberrações circenses discutindo preços, até pararem sobre o cartaz
da “mulher gorda”, onde o Coringa afirma que dinheiro não é o problema. Ao menos não
nesses dias.
O cartaz estabelece uma ponte temporal a primeira entre as diversas que surgem ao
longo da história que nos leva ao passado do Coringa, quando vemos um homem adulto e
franzino, chegando a um pequeno quarto desolado, cuja janela vista para uma parede de
tijolos e as roupas secam penduradas em um varal improvisado. uma jovem grávida o
espera, perguntando como havia sido o número. Desolado com mais uma resposta evasiva
sobre uma proposta de emprego, ele responde que os donos do estabelecimento disseram que
poderiam chamá-lo. Contudo ele teria ficado nervoso durante a apresentação e, por isso,
perdido o tempo da piada. Uma fala que revela ainda que o “tempo perdido” ao qual o texto se
refere não se encerrou no momento da apresentação cômica fracassada. O tempo do
indivíduo, como sujeito e ator social,havia também se esgotado tornando impossível para ele
recuperar o riso, a felicidade e as promessas de futuro. Nesta mesma sequência de quadros sua
esposa suspira o que o leva ao desespero. Para ele, a pequena interjeição “oh”, significava que
ele não conseguiria um emprego e não teria condições de alimentar o bebê. Chorando e
pedindo ajuda a Jesus, ele afirma que tem que conseguir fazê-los rir de seu número. Ele deita
em seu colo e pede desculpas. Que ele não queria tê-la feito sofre por ter se casado com um
fracassado.
Sua esposa, porém, o tranquiliza. Diz que a senhoria deixará que eles atrasem o
aluguel, pois teria piedade da condição em que eles se encontravam. Isso o deixa ainda mais
frustrado, pois ele afirma que gostaria de tirá-la daquele lugar que fede a gente velha e a
dejetos de gatos. Que ele precisa ganhar dinheiro para levá-la a uma vizinhança decente. Ela ri
da situação e responde que ele não deve se preocupar com nada disso. Ela o amaria com
79
emprego ou sem emprego, pois ele sabia como fazê-la rir. Uma nova ponte nos leva de volta
ao parque, onde o Coringa vê seu reflexo em um “Palhaço risonho”
125
(ver imagens 26 e 27).
Podemos perceber aqui como o ambiente de incerteza gerado pela desestruturação do
Estado do Bem-Estar Social envolve o homem que viria a se tornar o Coringa. Seus dons e
habilidades não são capazes de lhe fornecer qualquer plano seguro de vida nem de mantê-lo
em seu emprego anterior. Também não foram suficientes para realizar seu sonho de viver
como comediante. Destituído de um nome, de idade ou amigos, ele é apenas um indivíduo
empenhado na tentativa de construir sua própria identidade. Contudo, o lastro da incerteza e
do infortúnio impede-o de se locomover para um lugar de identidade. Frágil, vendo seu filho
prestes a nascer e sem conseguir garantir qualquer segurança material para sua família ele é
tomado pelo desespero. Ele tenta ser comediante em um mundo em crise, um tempo de
formas líquidas, em que ele é incapaz de fazer seu público rir.
De volta ao parque, o Coringa mata o vendedor com seu “soro do riso”, enquanto
explica que seus assistentes já haviam feito o outro sócio do parque passar a propriedade para
seu nome. Então ele se despede do cadáver, que fica montado sobre um elefante de brinquedo
cor de rosa, e parte, dando início aos preparativos de seu plano.
Na Batcaverna, Batman observa arquivos sobre o Coringa, onde constam como
desconhecidos qualquer nome, parentes ou data de nascimento. Suas diferentes faces nas telas
dos computadores são as faces de um estranho. Moore e Bolland constroem uma batcaverna
que amalgama diferentes estilos gráficos que se remetem as diferentes transformações visuais
sofridas ao longo das diferentes fases da história de Batman e do Coringa desde seus
primórdios. Batman põe uma carta coringa do baralho em frente a um porta-retrato, que
sustenta uma fotografia da Família Batman. Temos aqui outra fusão de temporalidades criada
dentro da narrativa. A imagem no porta-retrato é uma reprodução de um conhecido pin-up do
125
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988. p.9.
80
Imagem 84: Instalação do batsinal: incorporação do símbolo do
morcego a cidade e reconhecimento do vigilante pelo Estado.
Batman Ano Um, 1988. p.97
Imagem 85: Advertência sobre a temática adulta da graphic
novel Batman: A Piada Mortal.
Imagem 86: Capa de Batman: A Piada Mortal, trazendo o
Coringa em primeiro plano, olhando diretamente para os
leitores e fotografando-os.
Imagem 87: Autorretrato de Brian Bolland que serviu como
referência para a concepção da capa de Batman: A Piada
Mortal. Publicado em Batman: The Killing Joke Deluxe
Edition, de 2008.
81
Imagem 88: Pingos de chuva marcam a abertura e o
encerramento de Batman: A Piada Mortal numa
temporalidade cíclica.
Imagem 89: Batman: A Piada Mortal, 1988. p.1
Imagem 90: Encerramento de Batman: A Piada Mortal. p.47
Imagem 91: Batman tenta dialogar com o Coringa.
Batman: A Piada Mortal, 1988. p.5.
82
Imagem 92: Em meio ao parque abandonado pode-se ver Gotham City ao fundo, sob a mão do Coringa, no
primeiro quadro. Também se destaca o cartaz da “mulher gorda no último quadro é compõe uma ponte imagética
e temporal para o passado do Coringa, relacionando-se a sua esposa grávida, sentada em uma cadeira de seu
antigo apartamento. Batman: A Piada Mortal, 1988. p.7 .
83
Imagem 93: A insegurança pós-moderna: Homem que se
tornaria o Coringa fracassa em construir seu projeto de vida e
perde seu suporte contra o infortúnio. Batman: A Piada Mortal,
1988. p.8
Imagem 94: Continuação do diálogo anterior e ponte imagético-
temporal entre passado/presente e expectativas perdidas.
.Batman: A Piada Mortal, 1988.p.9.
84
ilustrador de quadrinhos Sheldon Moldoff
126
, trazendo personagens criados nas décadas de
1950 e 1960 cuja existência havia sido desconsiderada após a Crise nas Infinitas Terras. São
eles: a primeira Batwoman (Kathy Kane) e Bat-Girl (Betty Kane), assim como Ace, o bat-cão
e Bat-Mite
127
. Em meio a tantos rostos conhecidos e familiares, quem seria o Coringa. Não o
criminoso conhecido por Batman, mas a pessoa anterior ao palhaço. Alfred trás um lanche
para Batman e retira sua capa e sua máscara que assinala uma transição de identidades –,
enquanto Bruce Wayne afirma que após todos estes anos ele não conhece o Coringa mais do
que ele o conhece e se questiona como duas pessoas podem se odiar tanto sem ao menos se
conhecerem (ver imagem 28).
A palavra ódio nos leva ao apartamento do comissário Gordon, que recorta uma
reportagem escrita por Vicky Vale para o jornal Gotham Examiner a cerca da fuga do Coringa
para por em seu livro de recortes. Sua filha Barbara Gordon, que também atuava
secretamente como a vigilante Batgirl está no apartamento e lhe diz para se acalmar, enquanto
lhe serve um chocolate quente. O comissário encontra então a primeira reportagem falando
sobre o Coringa cuja fotografia do jornal que remete a capa da edição de número 27 da revista
Detective Comics
128
, onde o personagem Batman fez sua primeira aparição em 1939. Barbara
caminha para atender a porta, enquanto confessa o quanto ficou assustada na primeira vez que
seu pai lhe descreveu a face branca e os cabelos verdes do vilão. O abrir da porta acompanha
o movimento do virar da página realizado pelo leitor e vemos, quando ela é aberta, o Coringa,
vestindo uma camisa de botão com palmeiras, de chapéu e bermudas, com uma câmera
fotográfica ao pescoço e com uma arma em sua mão. Sem dizer qualquer palavra ele alveja
Barbara no ventre, fazendo com que seu corpo se projete e caia sobre a mesa de vidro no
centro da sala (ver imagens 29 e 30).
126
DANIEL, Les. Batman: the complete history. San Francisco. Chronicle Books, 1999.p.92-93
127
Um duende de outra dimensão com poderes mágicos que, sendo fan do Batman tentava emular seu uniforme
e ações, causando sempre transtornos ao seu ídolo
128
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988. p.13.
85
Gordon tenta socorre-la, mas é impedido pelo capanga do Coringa que o agride,
enquanto o vilão profere um discurso alegando que Barbara estaria provavelmente aleijada
devido ao ferimento na espinha. Enquanto Gordon é carregado, o Coringa começa a despir
Barbara. Quando ela pergunta o motivo de tudo aquilo ele responde que está ali para provar
uma tese (ver imagem 31).
Um novo salto no tempo nos leva ao passado do Coringa, onde, em um bar ele se
envolve com uma quadrilha, a qual planejava um assalto a fábrica de baralhos atravessando a
indústria química onde ele trabalhara antes de deixar o emprego para tentar a vida como
comediante. Assustado, ele argumenta que estava se envolvendo naquilo, pois tinha que se
provar como marido e como pai e cede a pressão dos assaltantes quando estes lhe perguntam
se ele queria ver o filho nascer na miséria. A única condição que ele impõe para participar do
assalto é a de que aquele seria seu primeiro e último crime. Por fim eles entregam ao Coringa
um capuz/elmo vermelho, que outros assaltantes já haviam utilizado anteriormente, para
garantir seu anonimato.
O arrancar da perna de um camarão no bar serve como ponte temporal para o quarto
de hospital onde Barbara está internada. um médico afirma que ela não voltaria a andar e
um policial explica ao Batman que Gordon foi sequestrado e que antes de partir, o Coringa
haveria tirado algumas fotos de Barbara nua e ferida. A expressão do rosto do Batman se
fecha e ele pede que o policial deixe-o sozinho com Barbara, por um instante, enquanto
amassa em suas mãos uma carta de baralho do coringa. Ele acaricia o rosto da moça,
chamando por seu nome e se apresentando como Bruce. Ela acorda assustada e o abraça,
dizendo que o Coringa havia levado seu pai e que ela se lembra do que ele fez. Batman tenta
consola-la, dizendo que para ela se acalmar e que tudo estaria bem. Contudo ela responde
chorando que não está tudo bem, que o Coringa havia levado tudo ao limite desta vez e que o
Batman não havia visto os seus olhos. Ela diz então que ele queria provar algo e se pergunta,
86
abrindo a capa do Batman, deixando o símbolo do morcego de seu peito exposto, o que ele
está fazendo com o pai dela.
Vemos então Gordon tendo suas roupas arrancadas no parque de diversões por vários
anões carecas, fantasiados com roupas de fetiches sexuais sadomasoquistas, misturadas a
laços de bebês prendendo poucos fios de cabelos loiros e asas douradas de anjos. Suas figuras
tomam a forma de representações perversas de uma infância maculada, que instigam o terror,
enquanto arrastam sua vítima. Gordon tenta resistir, mas é levado por uma coleira e choques,
como um animal, pelo parque, passando por personagens grotescos como o faquir, a mulher
gorda, as gêmeas siamesas, a mulher barbada e o bebê de duas cabeças, que o faz confundir
sonho/pesadelo com realidade. Em desespero ele pergunta o que está fazendo ali, quando é
atirado aos pés de uma escada que sobe um pequeno monte de bonecas de bebês nus, no alto
do qual está o Coringa, sentado em um trono, iluminado por duas cabeças de bonecas em
chamas, que lhe responde: “Fazendo? Você está fazendo o que qualquer homem são faria em
sua apavorante circunstância. Você está enlouquecendo”
129
(ver imagens 32 e 33).
Ao ver o Coringa, Gordon se lembra do que se passou e abre espaço para o vilão
dissertar sobre lembranças, passado, razão e loucura:
Gordon: Você. Oh não. Eu... Eu me lembro!
Coringa: Lembra? Oh, eu não faria isso! Lembrar é perigoso. Eu
vejo o passado como um lugar cheio de ansiedade. O “Pretérito
imperfeito” como suponho que você o chamaria. Há, Há, Há.
Memórias são traiçoeiras. Num momento você está perdido num
carnaval de deleites, com aromas da infância, as luzes de néon da
puberdade, todo esse algodão doce sentimental... No seguinte, elas
levam você a algum lugar que vonão quer ir... onde a escuridão e
o frio, preenchidos com a umidade, formas ambíguas de coisas que
você esperava esquecer.
Memórias podem ser vis, repulsivas, pequenas e brutais. Como as
crianças, suponho. HaHa.
Gordon: Bárbara. Oh não. Oh não...
129
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988. p.21.
87
Coringa: Mas podemos viver sem elas? Memórias são a base de
nossa razão. Não encara-las é o mesmo que negar a razão.
Porém, por que não? Não estamos presos contratualmente a
racionalidade. Não há cláusula de sanidade.
130
Dito isso o comissário é levado para um macabro brinquedo de trem fantasma, onde as
lembranças do ocorrido com sua filha iriam lhe assombrar. Antes da porta se fechar, com um
sorriso, que remete ao próprio vilão e seu universo mental, ele lembra ao comissário que
quando as lembranças se tornarem um lugar insuportável a loucura é a saída de emergência. A
loucura é apresentada assim como sendo a única resposta coerente ao sentimento de desordem
no mundo. A sensação de fluidez e a volatilidade das certezas são de tal magnitude que
qualquer tentativa de encaixe e solidez, ancoradas em memórias/identidades do que se foi e
em projetos de vida duradouros, parecem se revelar como escolhas perigosas e frágeis, uma
vez que o horizonte de eventos é mutante e imprevisível. O esquecer, dito pelo Coringa é a
desconstrução de lugares fixos de identidade e segurança, num contexto em que, como indica
Bauman, “a arte de esquecer é um bem não menos, se não mais, importante do que a arte de
memorizar, em que esquecer, mais do que aprender é a condição contínua de adaptação”
131
.
O uso do trem fantasma como o meio para se penetrar na loucura é também uma
alegoria para ideia de atmosfera de mal-estar que povoa a sociedade neoliberal e sua política
de desregulamentação. No trem fantasma, o indivíduo se encontra em um pequeno vagão,
que, em alta velocidade realiza curvas quase impossíveis em uma viagem onde,
inevitavelmente somos forçados a seguir, sem o direito de mudar de curso ou desistir,
encarando imagens aterradoras. Este sentido é potencializado na narrativa quando não é dada
a Gordon a oportunidade de fechar os olhos e ignorar o pesadelo ao seu redor. Os anões o
forçam a ver todos os horrores que lhe são mostrados e a voz do Coringa, seu agressor é uma
presença constante e perturbadora.
130
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988. p.22.
131
BAUMAN, Zygmunt. Mal-Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998. p.36.
88
Imagem 95: Desconhecimento e anomia no passado do
Coringa. Batman: A Piada Mortal, 1988.p.11.
Imagem 96: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.13.
89
Imagem 97: Ataque do Coringa a Barbara Gordon/Batgirl
Batman: A Piada Mortal, 1988.p.14.
Imagem 98: Coringa anuncia seu plano. Batman: A Piada
Mortal, 1988.p.15.
90
Imagem 99: Tortura de Gordon para levá-lo a loucura. Batman:
A Piada Mortal, 1988.p.20
Imagem 100: Batman: A Piada Mortal, 1988.p.21
91
Desorientado ele retorna para dentro do bar onde se senta e avisa que não fará mais o
roubo, já que com a esposa morta não haveria mais qualquer necessidade ou motivo. Contudo
os dois bandidos o ameaçam e dizem que não como voltar atrás. Eles saem deixando-o
sozinho no bar, sofrendo em frente a uma fotografia dele com sua mulher, observado pelos
rostos risonhos de uma mulher gorda e um homem de chapéu.
Uma outra ponte nos trás de volta ao trem fantasma, onde o comissário é forçado,
pelos anões, a levantar a cabeça e contemplar o Coringa discursando e cantando em várias
telas gigantes de TV, sobre como você deve se manter feliz e sorrindo mesmo quando tudo o
que você vê ao seu redor é trágico e destrutivo. Até que, em meio a canção, Gordon vê as
fotos de sua filha nua, agonizando em dor e sangue, levando-o ao desespero. Paralelamente,
temos uma ligação narrativa com as portas do trem fantasma se abrindo com a busca de
Batman pelo Coringa, interrogando bandidos por toda cidade. Até que ele é interrompido pelo
batsinal que o leva até o telhado da delegacia de polícia, onde lhe é entregue um convite do
Coringa com um ingresso para o parque de diversões.
O passeio no trem fantasma termina com Gordon em choque, sendo atirado em uma
jaula sob ordens do Coringa, que tem sua imagem refletida em uma poça de água. Este
reflexo serve como uma outra ponte ao passado do Coringa, quando ele se encontra em frente
a fábrica de produtos químicos, prestes a iniciar o assalto junto com os outros dois bandidos.
Utilizando o capuz/elmo vermelho, que lhe provoca uma visão dupla e avermelhada e
dificulta sua respiração, eles invadem na fábrica. Tudo sai do controle quando agentes de
segurança do local os avistam e iniciam um intenso tiroteio, matando os dois bandidos que
acompanhavam o Coringa. Ele continua fugindo desesperadamente pela fábrica, até que o
tiroteio é finalizado pela presença do Batman, que avança sobre ele confundindo-o com os
outros bandidos que também utilizaram o capuz/elmo vermelho em assaltos anteriores.
92
Assustado o Coringa avisa para que Batman não se aproxime ou ele pularia em um
dos tanques de detritos químicos. Ao ver o que sua ameaça foi em vão, o Coringa se atira,
sendo tragado pelos esgotos até conseguir finalmente sair no lado externo da fábrica. Sentindo
sua pele queimar ele retira o capuz e se depara com sua transformação. Sua pele se tornou
branca, suas feições deformadas e seu cabelo esverdeado. O medo inicial cede lugar a uma
crescente gargalhada diante da constatação do que ocorrera. O elmo é retirado e somos
apresentados ao rosto do Coringa. O processo que o transformou, retirou também sua cor e
sua identidade. O processo de nascimento do Coringa culmina com a perda de tudo o que ele
anteriormente fora.
A gargalhada leva a narrativa de volta ao parque, para dentro da jaula onde Gordon
está preso, ainda nu e sendo alvo do riso das aberrações circenses. o Coringa, tal qual um
mestre de cerimônias de um circo, anuncia-o como uma aberração, “o mais raro e trágico erro
da natureza”, o homem médio/mediano, uma criatura frágil que diante da irracionalidade e
crueldade do mundo atual se quebra, levando um a cada oito destes indivíduos a problemas
mentais. E, segundo o Coringa, quem pode culpá-los? Em um mundo psicótico como aquele,
qualquer outra resposta seria loucura
132
. Enquanto o Coringa fala, vemos a aproximação de
dois pontos de luz ao fundo da cena, que se revelam como sendo os faróis do batmóvel. Todos
os personagens do parque fogem, exceto o Coringa, que ansiava por aquele momento para
enfim tentar comprovar sua tese. Batman salta do veículo como um fantasma de sombras e a
sequência que narra sua luta com o Coringa, que procura arrasta-lo para a “Casa da
Diversão”
133
, são pontuadas pelo diálogo inicial no Asilo Arkham. Com a fuga do Coringa,
Batman liberta Gordon, que apesar de ainda estar em choque, permanece são. Ele pede a
132
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988.p.34.
133
No original “House of Fun”, brinquedo muito comum nos parques de diversões dos EUA até a metade do
século XX, tendo seu uso decaído nos anos seguintes. O principal objetivo deste brinquedo é criar a diversão nas
pessoas que nele adentram através da confusão sensorial, seja pelo uso de espelhos, cores ou formas. No Brasil
também foi utilizado com menor frequência em alguns parques e eventos.
93
Batman que não deixe o vilão escapar, prendendo-o com base na lei, como prova que ela
funcionaria.
Batman entra na casa e segue passando por retratos de rostos deformados que
expressam emoções tortuosas e desviando-se de armadilhas mortais. No caminho ele houve o
Coringa por um alto-falante dizer que está muito feliz com a presença do Batman ali e que
não se importa em ser levado novamente ao Asilo. Gordon haveria enlouquecido
comprovando sua teoria: A de que não diferenças entre ele e qualquer outra pessoa. Que
seria preciso apenas um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático
134
. Indo
mais além, o Coringa diz ao Batman que ele também deve ter tido um dia ruim. Algo terrível,
abrupto e violento deveria ter interrompido sua vida, de modo tão contundente que não lhe
restara mais nada que não fosse ser Batman. Talvez uma namorada assassinada por uma
gangue ou o irmão esquartejado por assaltantes, mas algo ocorreu ou ele não se vestiria como
um rato voador. Porém, diferente do Batman, o Coringa afirma que percebeu que o mundo é
a grande piada mortal. Um lugar onde apenas um dia ruim seria o suficiente para despedaçar
completamente as vidas dos indivíduos, não oferecendo qualquer anteparo de segurança social
(ver imagens 34 e 35).
Acreditando ter provado sua tese, o Coringa aceita ser levado de volta ao Asilo
Arkham. Porém, mais uma vez a pecha do estigma do fracassado cai sobre ele quando Batman
lhe avisa que Gordon, a despeito do doentio jogo ao qual fora submetido, não havia
enlouquecido. Assim talvez pessoas comuns não quebrassem sempre e que, ao fim tudo
poderia ser apenas um problema dele. A luta entre os dois segue até que Batman o arremessa
para fora do brinquedo com um soco, fazendo-o cair no chão. Molhado e na lama ele saca um
revolver quando Batman está prestes a agarrá-lo e aperta o gatilho. Porém o revolver era de
brinquedo e dele sai apenas uma bandeira onomatopéica com as palavras “Click, Clikc,
134
Ibid. p.39-40.
94
Click”, indicando que o tambor da arma estaria descarregado. Representativamente não
haveriam mais argumentos a serem lançados. O Coringa havia lançado mão de todos os seus
cartuchos, restando apenas a figura de uma ameaça comicamente patética. Lamentando-se da
arma estar vazia ele pergunta ao Batman o que ele estaria esperando para prendê-lo, por ter
atirado em uma menina indefesa e aterrorizado um homem idoso, e receber a aclamação
popular.
Batman não o ataca, dizendo que não queria machucá-lo e não desejaria que eles se
matassem no final. Contudo ambos estariam em um curso suicida que levaria ambos a morte
e, talvez, aquela noite fosse a última chance de alterar isso. Ele não sabe o que teria
acontecido no passado do Coringa e que ele poderia até ter estado lá. Porém ele talvez
pudesse ajudar. Eles poderiam trabalhar juntos para reabilitá-lo e assim ele não precisaria
mais ficar sozinho. O vilão chora, diz que já é tarde demais para isso, e sorri pedindo
desculpas, pois aquela situação teria lhe lembrado uma piada.
Com um quadro panorâmico, que mostra os dois sozinhos no cenário do parque, o
Coringa começa a contar a piada sobre os dois caras no hospício e que tentaram fugir em uma
noite. Eles subiram até o telhado e viram a vizinhança os telhados dos prédios vizinhos
iluminados pela lua em um quadro que visualmente mostra a cidade ao fundo, separada do
parque por um rio e iluminada pela lua que faz um rastro de luz sobre a água a eles. O
primeiro louco pulou para o prédio vizinho sem problemas, mas o segundo ficou com medo
de cair. Então o primeiro disse ter uma lanterna e que poderia fazer um rastro de luz entre os
prédios sobre o qual o segundo poderia andar. Mas o segundo cara balançou a cabeça em
recusa e perguntou: “você acha que sou louco? Você desligará quando eu estiver no meio do
caminho”. O Coringa começa a rir, sendo acompanhado pelo Batman, até que ambos
gargalham, enquanto chegam os carros de polícia e o rastro de luz no farol, fazem uma linha
no asfalto molhado pela chuva.
95
Podemos observar, através da análise de A Piada Mortal a base da tese defendida pelo
Coringa funda-se no desejo de eliminar sua condição de estranho àquela sociedade. Antes de
se tornar um criminoso, ele era um outsider. Um indivíduo anômico que não consegue se
estabelecer na sociedade de consumo que o cerca. O ambiente que o cerca traça de forma
insistente a linha que divide os mesmos e os estranhos na sociedade pós-moderna, como é
representado visualmente pelo muro que encerra seu horizonte, quando ele tenta chegar até
janela de seu quarto alugado
135
. A tese do Coringa oculta um propósito dentro da
perversidade: sua comprovação o retiraria da condição de isolamento. Ele não seria diferente
de qualquer outra pessoa no mundo. Qualquer indivíduo poderia enlouquecer frente ao
infortúnio, especialmente num contexto no qual as redes de proteção do Estado do Bem-Estar
Social eram retiradas, e seus destinos eram jogando nas mãos do livre mercado,
transformando a incerteza e, por extensão a vida, em piada. Nesta condição ele poderia
retornar a ideia de normalidade, ainda que ela nunca pudesse ser de fato alcançada, posto que
a sensação de ordem e estabilidade haveriam desaparecido na pós-modernidade. Isto se torna
bastante claro quando, Batman oferece ajuda ao Coringa, prometendo buscar os meios
necessários para reabilitá-lo. A recusa da oferta pelo Coringa se sustenta em uma percepção
clara de que aquilo seria impossível. Batman estaria tão perdido quanto ele, com a diferença
que sua loucura fora revertida em heroísmo, enquanto a dele, em vilania, muito embora
continuam a ser os “dois caras” que fugiram do hospício (ver imagens 36 e 37).
Intencionalmente A Piada Mortal não oferece, seja em seu roteiro ou em sua
composição iconográfica, uma conclusão definitiva para as questões que ela mesma propõe.
Tanto o Batman quanto o Coringa teriam nascido sob o signo da fragilidade dos indivíduos
ruins aos “dias ruins”. Porém, um se tornou um herói e o outro um assassino. Isso indicaria
uma determinação moral sobre bem e mal que superariam as condições sociais? Esta pergunta
135
Batman: The killing Joke. New York: DC Comics, 1988.p.9.
96
Imagem 101: Coringa e sua tese: Basta um dia ruim para
destruir sua identidade no mundo pós-moderno. Batman: A
Piada Mortal, 1988.p.39
Imagem 102: Nivelamento entre Batman e Coringa como
loucos e outsiders. Batman: A Piada Mortal, 1988.p.40.
97
Imagem 103: Tentativa do Batman de traçar um caminho de
volta a normalidade, junto ao Coringa. Batman: A Piada
Mortal, 1988.p.45
Imagem 104: Piada sobre a impossibilidade da volta a
normalidade. Batman: A Piada Mortal, 1988.p.46.
98
não é respondida diretamente pelo texto. Contudo, alguns indícios presentes nesta narrativa
nos ajudam a diferenciar as condições sociais que envolvem Batman e o Coringa. A cena na
batcaverna, quando Batman cercado de lembranças familiares, que lhe deram suporte, não
encontra qualquer filiação do Coringa em seus registros marca esta diferença. Um, mesmo
louco, encontrou abrigo em amigos, parceiros e em uma fortuna que lhe serviu de legado. O
outro foi tragado pelos esgotos, não encontrando qualquer parapeito para deter sua queda.
Desta maneira, a análise de A Piada Mortal nos permite diagnosticar e compreender
um profundo mal-estar e uma sensação de anomia, presentes na sociedade pós-industrial,
onde operários com vidas arrasadas e os demais estranhos se tornam ameaças violentas e
assassinos e a desregulamentação da ordem desestrutura os lugares de identidade.
99
Capítulo 4
Novos Velhos Inimigos: A Guerra Fria, ameaças externas e o armamentismo em Batman
Diante do crescimento das tensões na política externa estadunidense no contexto da II
Guerra Fria, o imaginário sobre a ameaça externa também se transformou, realocando sob
velhas categorias os novos desafios que se apresentavam. Estas representações sobre as
ansiedades que cercavam a nação, que se entendia ao mesmo tempo como imperial e sitiada,
produziriam novas figurações de vilões e heróis nas narrativas das HQs do Batman, bem
como novas formas de ler o mundo. O roteirista Jim Starlin e o desenhista Jim Aparo
buscaram responder esta questão em dois arcos de histórias que analisaremos aqui: Batman:
Dez Noites da Besta e Batman: Morte em Família
136
. Essas histórias guardam semelhanças
entre si. Analisando primeiramente a construção visual destas narrativas, notamos que o
universo de Batman é concebido em cores mais realistas e acinzentadas. Em ambas as
histórias Gotham City deixa de assumir o papel alegórico de personagem, tal qual vimos no
capítulo anterior, passando a ser um pano de fundo secundário sobre o qual se desenrolam as
cenas de ação. Se em Dez Noites da Besta Jim Aparo ilustra os edifícios e suas ruas de
Gotham City, forma muito parecida com as de qualquer grande cidade nos EUA, no arco
Morte em Família a cidade é apenas o prelúdio para uma trama internacional.
Outro elemento comum entre as duas histórias é o enlace entre personagens ficcionais
com situações históricas reais. Tal estratégia possui um duplo impacto. Por um lado ela pode
aumentar a verossimilhança, dando maior profundidade aos personagens e novos sentidos
para acontecimentos e personagens históricos. Por outro ela insere a história em um
determinado contexto/recorte histórico, tornando-a facilmente datada. Isto é problemático
para a noção de continuidade das HQs de super-heróis norte-americanas, acelerando a
136
Cujos títulos originais são respectivamente Batman: Ten Nights of the Beast e Batman: Morte em Família,
como mostrado na introdução deste trabalho.
100
velocidade com a qual elas se tornam anacrônicas para o público mais jovem. Como explicar
a longevidade destes personagens que participaram de eventos históricos ocorridos na década
de 1980 ao público das décadas seguintes, sem desconsiderar tais histórias de seu cânone?
Propomos, aqui, uma leitura comparada destes dois arcos de histórias a fim de
analisarmos como elementos da política externa da Doutrina Reagan foram representados nas
HQs do Batman daquele período. Dez Noites da Besta enfatiza a construção de um novo
modelo de relações com a URSS após a Perestroika e a Glasnost e o estabelecimento de
uma nova política de defesa doméstica antimísseis, com a Iniciativa Estratégia de Defesa
(SDI), conhecido pelo midiático nome de Projeto Guerra nas Estrelas. Morte em Família
expande o campo de atuação de Batman e a rede de ameaças contra a qual ele se impõe para
além das fronteiras norte-americanas, indo ao Oriente Médio, África e por fim retornando aos
EUA, em Nova Iorque, na Assembleia Geral das Nações Unidas, inserindo na retórica bipolar
da Guerra fria, novos atores.
4.1) Dez Noites da Besta e as relações entre Ocidente e Oriente
Este arco de história foi dividido em quatro partes, publicadas nas edições de número
417, 418, 419 e 420 (março a junho de 1988) da Revista Batman e se passa, como sugere o
título, em um recorte temporal de dez dias. Neste tempo Batman tenta impedir uma série de
dez assassinatos que seriam cometidos por um criminoso até então desconhecido em território
americano. A narrativa é construída em uma escala crescente de ação, revelando
paulatinamente tanto ao leitor quanto aos personagens envolvidos quem são os inimigos,
quais suas habilidades e seus objetivos, quando o próprio presidente Reagan surge como um
personagem da história.
101
Podemos perceber esta progressão analisando as capas de cada uma das edições deste
arco de história. Na primeira Batman é identificado como elemento central da imagem. Ele
cruza os céus de Gotham City como o guardião da cidade, defendendo e vigiando seu
território, acima dos prédios e do movimento cotidiano das ruas movimentadas, com transito
intenso de veículos e pessoas. Seus prédios e ruas não apresentam as características góticas,
como gárgulas pendentes dos parapeitos, mas emanam luz, indicando a vida noturna das
grandes metrópoles. Contudo a mudança no logotipo da revista, posicionado no canto superior
direito da página indica o perigo que ronda aquela cidade. A palavra Beast (Besta) do título é
escrita com uma tipografia cuja aparência é similar a um líquido espirrado sobre uma
superfície, representando o sangue de alguém que acabou de ser brutamente assassinado (ver
imagem 38). A segunda capa nos mostra o primeiro confronto entre Batman e o KGBesta, seu
antagonista. Enquanto na primeira o enquadramento da cena é aberto, revelando diferentes
elementos da cidade, aqui se optou por um ângulo fechado e no interior de um beco, que mal
consegue abarcar toda imagem de Batman. Não mais horizonte e os espaços para
movimentação são extremamente curtos e cercados pelo lixo. A única luz presente na cena
circunscreve um alvo ao redor de Batman que sem qualquer outra saída tenta, com um salto se
proteger de uma intensa saraivada de tiros. As linhas de movimento, assim como a expressão
facial de Batman denotam a urgência e a velocidade da situação. Oculto, assumindo a posição
do leitor, KGBesta aparece apenas como uma sombra no canto inferior direto da imagem (ver
imagem 39).
Na terceira imagem a ameaça é conhecida. KGBesta aparece em primeiro plano
segurando de forma ameaçadora um machado que compõe a extremidade do seu corpo. Ao
fundo podemos ver um grande plano da cidade iluminada. Entre o assassino e a cidade está
Batman assustado e impotente sem nada poder fazer contra seu agressor, que se prepara para
atacá-lo ou, como é revelado durante a história, mutilar a si mesmo para conseguir escapar
102
(ver imagem 40). Por fim, na última capa Batman e KGBesta se enfrentam nos esgotos da
cidade. O enquadramento é novamente fechado, concentrando-se apenas nos dois personagens
principais. Aqui Batman volta a ficar em primeiro plano e não mais sob ataque, assumindo o
controle da situação. Com uma mão sobre o rosto do inimigo ele o cala, enquanto com a outra
desvia sua arma (ver imagem 41).
Na composição narrativa entre texto imagem, como um mecanismo para criar
suspense, as legendas servem também como marcadores de tempo, indicando os dias
passados, aproximando-os do número de vítimas do vilão principal. Completando a sensação
de vulnerabilidade, o marcador se inicia no segundo dia, indicando que, naquele momento, o
assassino teria iniciado seu trabalho, sendo impossível impedi-lo de começar a agir. Vindo
do leste/oriente pelo mar junto ao nascer do sol, KGBesta e seu assistente desembarcam em
uma pequena praia ao sul de Gotham. um grupo de agentes do DEA
137
o departamento
de combate às drogas nos EUA –, que esperava interceptar traficantes colombianos. Rápida e
silenciosamente todos os agentes, o aparato governamental para conter a ameaça das drogas,
são facilmente eliminados. Somente após o inimigo estar circulando em território norte-
americano, o leitor é informado sobre os eventos ocorridos no dia anterior.
A história se inicia com o agente da KGB
138
Andrei Yevtushenko comandando a
eliminação do Hammer. Durante os anos anteriores o Hammer teria sido uma célula altamente
secreta, cujo poder conspiratório havia crescido tanto que a mesmo o Comitê Central do
Partido Comunista da União Soviética o temia. De acordo com o roteiro, uma das reformas
políticas mais recentes de Mikhail Gorbachev teria sido a extinção do grupo. Contudo, seu
comandante, Zhores Kuanve, não teria aceitado perder o poder que outrora tivera em mãos.
Trancado em seu escritório destruiu documentos secretos e diante da possibilidade de ver seu
sonho político ser obliterado pela Perestroika e pela Glasnost, optou pelo suicídio. Com ele
137
DEA: Drug Enforcement Administration.
138
Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnost – Comitê de Segurança do Estado, responsável pelo serviço de
inteligência, informação e espionagem da União das repúblicas Socialistas Soviéticas entre 1954 e 1991.
103
Imagem 105: Capa da revista Batman #417, Mar. 1988
Imagem 106: Capa da revista Batman #418, Abr. 1988
Imagem 107: Capa da revista Batman #419, Maio 1988
Imagem 108: Capa da revista Batman #420, Jun. 1988
104
morriam muitos dos segredos do Hammer. Todavia, entre os restos dos documentos
encontrados queimados, um vestígio poderia indicar o legado mortal do comandante do
exército soviético: O envio do Projeto Skywalker, uma arma-humana assassina conhecida
como KGBesta (KGbeast), para Gotham City. Enviado em missões secretas, ele já teria
realizado mais de duzentos assassinatos em lugares tão diversos quanto Miami e Angola,
suspeitando-se de seu envolvimento, inclusive no atentado contra o presidente egípcio Anwar
Sadat
139
. Sua força, ampliada através de implantes cibernéticos, equivaleria a de quatro
homens, podendo eliminar qualquer pessoa utilizando apenas suas mãos. Contudo o assassino
seria treinado ainda no uso de qualquer tipo de armamento. Seu objetivo: eliminar os dez
líderes do Projeto Guerra nas Estrelas.
A profusão de personagens e acontecimentos históricos nesta narrativa ficcional ocorre
ao longo de todos os quatro capítulos desta história, enfatizando temas como as
transformações geopolíticas e a política externa norte-americana da década de 1980, as
eleições presidenciais de 1989 e a cultura política do dissenso nas décadas de 1960 e 1970.
Esta fusão de elementos ficcionais e históricos que se tornam por fim, também ficcionais
produz novos significados tanto para estas HQs como para a memória política do tempo
presente nos EUA, que passam a ser interpretados de uma nova maneira, criando ou
destruindo conexões entre estes diferentes elementos.
É interessante observarmos aqui a forma como o roteiro de Starlin construiu a
oposição entre os projetos de defesa dos EUA e da URSS. Enquanto o SDI recebeu o popular
título de Guerra nas Estrelas, em referência a série cinematográfica Star Wars de George
Lucas, iniciada em 1977, o projeto soviético teria sido batizado de Skywalker. Ainda que
possamos entender Skywalker em seu sentido literal, como “andarilho do céu”, ele também
pode ser lido como outra citação a série de George Lucas. Skywalker era o sobre nome tanto
139
Anwar Sadat (1918-1981), presidente egípcio entre 1970 e 1981, morto no exercício de seu mandato. Foi o
primeiro chefe de Estado árabe a reconhecer o Estado de Israel. Vencedor do Prêmio Nobel da Paz, juntamente
com o primeiro ministro israelense Menachem Begin em 1978 por negociarem a paz entre Egito e Israel.
105
de Luke Skywalker, o guerreiro Jedi herói da série, quanto de Anakin Skywalker, seu pai, o
vilão Darth Vader. Um nome que, no imaginário popular se vinculou ao dilema da escolha
entre o bem e o mal. Tanto Anakin quanto Luke Skywalker foram tentados pelo chamado
“Lado Sombrio da Força(The Dark Side of the Force), ao qual servia o Império, contra o
qual lutava a Aliança Rebelde
140
. Simbolicamente a noção de “Império do mal” foi
largamente utilizada pelo governo Reagan como metáfora para a URSS e o comunismo.
Outro aspecto que pode ser observado é que do mesmo modo como Anakin e Luke Skywalker
perderam um braço em batalha, substituindo-o por uma prótese cibernética,
Skywalker/KGBesta decepou seu próprio braço, substituindo-o por uma prótese que
funcionava também como diferentes armas.
em Gotham City, Yevtushenko em nome do governo soviético convoca uma reunião
conjunta entre o FBI, a CIA e o GCPD para eximi-lo de qualquer responsabilidade sobre as
ações do KGBesta, colaborando para a detenção do criminoso. Neste momento o agente do
FBI, Keith Parker informa que dois nomes ligados ao SDI teriam sido executados na
cidade: Michael Roberts, sufocado enquanto dormia em um hotel e Terry Cavanaush,
decapitado na estrada a caminho do trabalho.
Assustado o comissário de polícia James Gordon sugere que se peça o auxílio do
Batman para capturar o KGBesta, o que é imediatamente negado pelo FBI. Contudo, Gordon
trás consigo uma escuta que permite a Batman e a Robin
141
tomarem ciência do conteúdo da
reunião e começar a agir. Ao ficar a par da situação, Batman parte imediatamente para o
escritório do chefe de segurança dos projetos do SDI em Gotham onde estaria Jason Greene,
para protegê-lo e conseguir maiores informações.
Atrasado, Batman chega a tempo apenas de ver o vulto do KGBesta atirando Jason
Greene do alto do prédio. Em uma tentativa desesperada, Batman tenta alcança-lo, deixando
140
Cujo nome formal nos filmes seria Aliança para a Restauração da República.
141
O segundo Robin, Jason Todd.
106
para trás sua corda e caindo em queda livre, utilizando estandartes de bandeiras, parapeitos,
acrobacias e fios de telefone para diminuir o impacto de sua queda. Enfim eles caem sobre um
carro na rua para o choque de todas as pessoas que circulavam ao redor. Ali, Batman constata
que Jason está morto, tendo o pescoço quebrado antes mesmo de ter sido atirado do prédio.
Diante da situação, Batman chama, logo em seguida, o comissário Gordon, que trás consigo
Ralph Bundy, agente da CIA que se diz acostumando a lidar com pessoas não ortodoxas, para
lhes passar novas informações sobre o caso. O herói divulga uma lista com dez pessoas
centrais para o SDI e que estariam em Gotham City nos próximos dias. Além disso, Ralph
Bundy revela que o KGBesta estaria sendo assistido pelo terrorista Xiita iraniano Nabih
Salari, que mata, logo em seguida mais um dos membros da lista.
Sem saber como encontrar um rosto desconhecido no meio de milhões de pessoas,
Batman propõe a Robin uma arriscada estratégia: deixar o KGBesta vir até ele e esperar
sobreviver a este encontro.
KGBesta continua fazendo suas vítimas. Silvia Burrows, especialista em matemática
quem tendo dormido na casa de seu namorado não pode ser encontrada pela polícia e pelo
FBI, foi morta por envenenamento juntamente com companheiro. Ao saber disso, Batman
parte para o Gotham Excelsior Hotel, o quartel-general do Partido Republicano na cidade para
as eleições presidenciais de 1989, onde haveria um jantar com membros da elite de Gotham
para arrecadar fundos para a campanha. Neste jantar, discursaria Ben Wilder, conselheiro
presidencial do programa Guerra nas Estrelas, estando também na lista de alvos. Mesmo com
toda vigilância, o assistente do KGBesta, Salari, se infiltra na cozinha como um chef do
Departamento de Estado e envenena toda a sopa servida naquela noite, provocando a morte de
80 pessoas, além de Ben Wilder.
Batman persegue Salari, que é resgatado em uma van pelo KGBesta. Agarrado a van
Batman tenta deter os assassinos, enquanto eles dirigem pelas ruas da cidade até o momento
107
em que KGBesta atira a van em alta velocidade contra um ônibus escolar e salta do veículo.
Batman consegue impedir a colisão, mas não a fuga do assassino. Assim, o herói constata que
além de assassinar Wilder, KGBesta teria declarado em Gotham uma guerra contra os EUA,
ameaçando a estabilidade de seu processo eleitoral e sua capacidade de defesa, e que a
infiltração de Salari só teria sido possível graças a presença de um traidor interno.
Utilizando uma nova estratégia, Batman pede ao comissário Gordon que retire o FBI
do serviço de proteção as possíveis vítimas e prepara uma armadilha para o KGBesta, com um
cenário falso, forçando-o, pela primeira vez a se expor. Apesar de desconfiar da facilidade,
KGBesta segue adiante e, ao perceber que foi enganado, luta com o Batman, que mesmo
atingindo-o com dados tranquilizantes, não consegue vence-lo nem impedir sua fuga.
Na manhã do quinto dia, um jato de passageiros levanta voo do Aeroporto de Gotham
City, tendo listado como um de seus passageiros o General Brian Ridwell, líder militar do
SDI. Quando todos pensam que finalmente conseguiram ludibriar a besta o avião explode,
sendo abatido em pleno ar. A descrição de testemunhas indica que o KGBesta e o Nabih
Salari estiveram na rodovia do aeroporto, de onde dispararam com um míssil Stinger
Ironicamente o roteiro inclui uma arma produzida nos EUA, do mesmo modelo cedido pela
CIA aos mujahedins, na sua luta contra o exército soviético no Afeganistão, como aquela
utilizada pelo agente renegado soviético para atacar uma aeronave norte-americana.
Batman e Robin continuam tentando descobrir quem é o informante do KGBesta
infiltrado na tarefa de proteger as potencias vítimas deste assassino. As suspeitas principais
recaem sobre o agente do FBI Keith Parker e sobre o agente da KGB Andrei Yevtushenko. O
diálogo entre os dois heróis é também o embate entre duas culturas políticas norte-
americanas. Seguindo o pensamento neoconservador, que se opôs aos movimentos sociais que
produziram o dissenso sobre a política norte-americana, Robin desconfia do agente do FBI
por ele ter sido filiado nos anos de 1960 ao Students for a Democratic SocietySDS
108
(Estudantes por uma Sociedade Democrática). Historicamente o SDS, fundado em 1962, foi
o mais influente grupo estudantil dos anos de 1960, mobilizando estudantes mesmo após sua
dissolução oficial, em 1969
142
. Este grupo, juntamente com outras diversas organizações
conhecidas, participou da marcha ao Pentágono no ano de 1967, contra a Guerra do Vietnã
143
.
Sua utilização aqui como personagem ficcional serve como condutor para o debate do lugar
do dissenso no imaginário nacional. A pecha da traição recai sobre o ex-ativista e agora
agente federal, Keith Parker, tornando-o um suspeito quando uma ameaça a nação se
apresenta.
Por outra medida Batman discorda desta proposição, afirmando que nos anos de 1960
muitos estudantes “entraram para o SDS para protestar contra a Guerra no Vietnã. Ter sido
mebro deste grupo não tornava Parker um espião comunista
144
”. O pensamento de Batman se
estrutura no discurso anticomunista. Suas suspeitas recaem obviamente sobre agente da KGB,
que em sua opinião esconderia algo sob sua aparente colaboração, produzindo uma
representação ambígua sobre a aproximação com a URSS que será analisada ainda neste
capítulo. (ver imagem 42).
A ação segue com o agente Paker do FBI exigindo que Gordon lhe repasse o plano de
retirada de mais duas potenciais vítimas do KGBesta hospedadas em um hotel da cidade: um
senador e um congressista. A noite, inicia-se a transferência sob escolta da polícia e do FBI.
Batman segue junto de Gordon, disfarçado como um policial. No quarto do congressista
Batman percebe que a maçaneta da porta daquele quarto é diferente das demais do mesmo
andar e que nela foi colocada um explosivo plástico. Agindo rapidamente o herói impede a
morte dos policiais e do agente federal, mas não a do congressista com explosão.
142
O SDS deu origem a diferentes movimentos como o SDS-Worker-Student Alliance (SDS-WSA) e inspirou a
fundação do New SDS, em 2006: http://www.studentsforademocraticsociety.org/
143
AZEVEDO, Cecília. Sob Fogo Cruzado: A política externa e o confronto de culturas políticas nos EUA. IN:
Soihet, Raquel e outros (org.). Culturas Políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de
história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005. p.390.
144
Batman: Ten Nights of the Beast. London: Titan Books ltd, 1994.p. 55.
109
Imagem 109: A busca por suspeitos norteia o embate entre culturas políticas em Dez Noites da besta. Batman
#419, Maio 1988. p.4
110
Enquanto isso o senador foi retirado de seu quarto pelo agente MacDonald, um
segundo agente do FBI posteriormente revelado como o informante do KGBesta que o
conduz até os elevadores para retira-lo do prédio. Batman discorda do plano e prefere levar de
volta o senador para o quarto ou utilizar as escadas, onde eles poderiam se proteger melhor de
um novo ataque. Porém, o agente Parker proclama sua autoridade como líder da operação e
utiliza o elevador para descer, enquanto o agente MacDonald fica no hall dos elevadores para,
supostamente, garantir a segurança ao seu acesso. Quando todos estão descendo, o elevador se
revela uma armadilha. KGBesta atira, de alguns andares acima, blocos de concreto, que
perfuram o teto do elevador e matam um dos agente do FBI. Batman sai do elevador e escala
pelos cabos de aço do elevador atrás do KGBesta, que lhe acerta um tiro no ombro. Em
resposta, Batman acerta um dardo em sua mão, fazendo-o largar a arma.
Inicia-se assim uma perseguição na qual KGBesta abre seu caminho matando quatro
policiais com machadadas. Batman consegue deter a fuga do assassino prendendo o braço
dele em um cabo de aço. Contudo o homem-morcego fica pendurando do alto de um prédio
na outra ponta deste mesmo cabo, servindo de contrapeso e impedindo que o assassino saísse
dali até a polícia chegar. A única maneira que KGBesta teria de se libertar seria decepando
sua própria mão, o que ele faz sem hesitar. Superando a dor e se mutilando, o assassino é
desumanizado, tornando-se apenas besta-fera. Seu desejo foi sublimado na realização dos
objetivos que lhe foram designados, não podendo ser detido enquanto esses não tivessem sido
atingidos. No térreo, descobrimos que o General Ridwell, não morreu na explosão do avião,
tendo sido transportado de trem secretamente pelo agente da CIA Ralph Bundy. Além disso,
revela-se o nome do alvo mais importante da lista de vítimas do KGBesta: O presidente
Ronald Reagan, que estaria em Gotham dentro de alguns dias para a convenção do Partido
Republicano (ver imagem 43).
111
Imagem 110: KGBesta é desumanizado em sua caracterização através de sua anulação como indivíduo. Batman
#418, Abr. 1988, p.19
112
Longe dali, KGBesta procura um armeiro e lhe entrega o projeto de uma prótese que
funcionaria ao mesmo tempo como uma arma de fogo, uma baioneta e um lançador de gás.
Assim que entrega o aparato ao ex-agente soviético o armeiro é morto em sua própria oficina.
Pela manhã, o presidente Reagan chega à cidade e é sequestrado por Batman ainda no
aeroporto de Gotham, sendo levado de helicóptero pelo agente Bundy até o hotel onde ficaria
hospedado. Lá, Batman explica para o presidente seu plano para protegê-lo de um novo
atentado, colocando-o em ação, assim que recebe a autorização presidencial. Enquanto
aguardam o início do plano, Batman e Ralph Bundy conversam sobre o destino de KGBesta.
Bundy argumenta que se o assassino for pego vivo ele escaparia de qualquer punição, pois os
russos pediriam imunidade diplomática a ele, o levariam de volta a URSS.
Chegamos por fim a cima noite, quando se cria um embuste para a equipe do FBI,
chefiada por Parker. O comissário Gordon, utilizando uma máscara ultra-realista, se passando
pelo presidente se dirige ao telhado, onde tomaria um helicóptero que o levaria à convenção
republicana. O agente do FBI MacDonald teria informado ao KGBesta este itinerário e,
quando ele está prestes a entrar na aeronave, surge do céu o terrorista xiita Salari, voando em
uma Asa-Delta, pronto para uma missão suicida que culminaria com a morte do presidente.
Quando tudo parece perdido, Robin ataca o terrorista, fazendo-o cair e explodir em pleno ar,
destruindo apenas algumas janelas do prédio.
Em outro ponto, Batman, acompanhado por alguns policiais e pelo agente traidor
MacDonald, escolta Alfred, também disfarçado como o presidente. Em meio a ação,
descobrimos que se trata da segunda parte do plano de Batman, onde, além de revelar o
agente traidor, ele teria a oportunidade de capturar o KGBesta. Para tanto, Batman e os
policiais se protegem com coletes a prova de balas. Vendo-se desmascarado, MacDonald
perde o controle e acerta um tiro no ombro de Batman. Ao mesmo tempo KGBesta se
aproxima do falso presidente para matá-lo. No último instante surgem Ralph Bundy e outros
113
agentes da CIA que com tiros afugentam o assassino e matam MacDonald. Enquanto seu
corpo cai ao chão, ficamos sabendo que ele se vendeu por 40 mil dólares. Impiedosamente a
legenda que acompanha a imagem avisa que para ele, não haveria lágrimas.
O KGBesta foge para os esgotos, sendo perseguido por agentes da CIA e pelo Batman.
Ferido, ele deixa para trás um rastro de sangue e corpos de agentes, enquanto adentra mais e
mais fundo no sistema de esgotos da cidade. Batman encontra o KGBesta na região mais
antiga dos subterrâneos da cidade e ali ambos travam uma luta final, onde Batman aprisiona o
criminoso.
4.1.2) Olhares por cima do Muro e a desconfiança: as novas representações sobre o
comunismo
Ao longo de todas as partes de Dez Noites da Besta observamos uma figuração
ambivalente dos personagens em relação a política. Ao mesmo tempo em que a defesa de
temáticas políticas, sejam o dinamizador principal da trama com destaque para a
Perestroika e a Glasnost, o novo projeto Guerra nas Estrelas e a Revolução Islâmica no Irã
a política também é o motivador de toda tragédia vivenciada no curso daqueles dez dias. São
as questões políticas que tornam tudo mais mortal expondo ao risco todos que se envolvem
com ela. Foram elas que jogaram sobre Gotham City um novo tipo de ameaça, diferente
daquelas que já assolavam a cidade todas as noites. De forma marcante, a segunda parte da
série é aberta com uma splash page onde Batman investiga sozinho em seu computador dados
que possam levar a captura do assassino. Desolado, acompanhado apenas pela lembrança do
rosto de KGBesta e de suas vítimas que aparecem na página seguinte ele diz: Malditos
sejam os políticos. Por que eles não podem jogar seus jogos sem matar pessoas?”(ver
imagem 44)
114
Em uma mesma medida, entre os EUA e a URSS é também apresentada de maneira
dicotômica. A representação do velho inimigo, que perdurou por mais de quarenta anos
estaria finalmente se modificando? Seriam as reformas políticas propostas por Gorbachev
suficientes para alterar um imaginário sobre a ameaça tão cristalizado? Estas questões
atravessam por diversas vezes o texto. Ainda que esteja colaborando com o governo norte-
americano na captura de KGBesta, o agente Yevtushenko é visto sempre com desconfiança e
ressalva. Suas intenções não são explícitas e levantam suspeitas. A construção dual do campo
de significados a cerca das representações sobre a ameaça soviética está relacionada ao modo
como o mundo ocidental viu o anúncio da Perestroika e da Glasnost. As reformas de
Gorbachev tinham ainda mais peso no campo militar. Buscando diminuir a escalada
armamentista a URSS propunha a moratória unilateral dos testes nucleares; redução de 50%
dos armamentos estratégicos; a diminuição do arsenal de mísseis intermediários; destruição
dos armamentos nucleares até o ano de 2000 e o controle estrito sobre as armas
convencionais
145
. A repercussão destes anúncios forçou uma mudança na opinião pública a
respeito das pretensões expansionistas do comunismo soviético. O livro Perestroika: Novas
ideias para o Meu País e o Mundo, escrito por Mikhail Gorbachev e publicado em 1987, logo
se tornou um best-seller em diversos países. Nesta publicação, Gorbachev, segundo suas
próprias palavras, quis se dirigir:
[...]diretamente aos povos da União Soviética, dos Estados Unidos e, na
verdade, aos de todos os demais países.
Tenho me encontrado com chefes de Estado, líderes e representantes desses
povos, mas com este livro desejo conversar sem intermediários com
cidadãos do mundo inteiro sobre assuntos que dizem respeito a todos nós,
sem exceção.
Eu o escrevi porque acredito no bom senso das pessoas. Tenho certeza de
que, como eu, elas se preocupam com o futuro do nosso planeta. Esta é a
questão mais importante de todas
146
.
145
FILHO, Daniel Aarão Reis. Crise e desagregação do socialismo. In: FILHO, Daniel Aarão Reis e Outros
(org.)O Século XX: O tempo das dúvidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
146
GORBACHEV, Mikhail. Perestroika: Novas ideias para Meu País e o Mundo. São Paulo: Editora Best
Seller, 1987.
115
Desta forma, o tema das reformas propostas por Gorbachev se anunciava como uma
possibilidade de flexibilização nas tensões de uma guerra, cujo resultado seria a destruição
global pelas armas nucleares. De acordo com Daniel Aarão Reis Filho, a reação ocidental a
Perestroika e a Glasnost pode ser lida como um misto de espanto e incredulidade. As
opiniões variavam desde as esperançosas expectativas sobre o fim da Guerra Fria até as
análises críticas que apontavam Gorbachev como um perigoso farsante que prometia o que
não poderia cumprir
147
. O tom de desafio e provação da disposição da URSS em levar à frente
tais mudanças foi lido de diferentes formas pela cultura da mídia e utilizado pela política de
forma bastante intensa por Reagan. Em um discurso realizado no dia 12 de junho na dividida
cidade de Berlim, em frente ao Portão de Bradenburgo, Reagan lançou o seguinte desafio às
propostas de Gorbachev:
Secretário Geral Gorbachev, se você procura a paz, se você procura a
prosperidade para a União Soviética e para a Europa Oriental, se você
busca por liberalização, venha até este portal. Senhor Gorbachev, abra este
Portão. Senhor Gorbachev, derrube este muro!
148
Ora, em Dez Noites da Besta não seria esta a mesma dúvida de Batman em relação ao
agente Yevtushenko da KGB. Sua colaboração e seu apoio deveriam ser postos à prova. Ainda
que a URSS acenasse a abertura de um canal de negociação com o Ocidente, suas armas, seu
exército e o comunismo ainda seriam vistos como ameaças em potencial para os EUA. Isto
fica claro no debate entre Yevtushenko e Bundy sobre a disputa armamentista entre a URSS e
os EUA (ver imagem 45):
Yevtushenko: Mas você tem que admitir que o astronômico custo do
Programa Guerra nas Estrelas deveria desencorajar seu desenvolvimento.
Esta corrida armamentista falirá nossos dois países! Existem melhores usos
para esse dinheiro.
Bundy: Mas talvez esse seja o único meio para parar o seu avanço nuclear.
Existem poderosos interesses, em nossas duas sociedades que querem a
147
FILHO, Daniel Aarão Reis. Op.cit., p.167.
148
Discurso completo em vídeo disponibilizado pela Ronald Reagan Presidential Fundation no website:
http://www.youtube.com/watch?v=5MDFX-dNtsM
116
continuidade da proliferação de ogivas nucleares! Tornar obsoletas as
armas nucleares pode ser nossa única saída!
Yevtushenko: Nenhum dos especialistas pode garantir que o SDI realizará
isso! A Guerra nas Estrelas talvez seja uma esperança falsa, que pode hoje
engatilhar a aniquilação atômica! O desarmamento é a única resposta!
Bundy: Se você quer o desarmamento, vocês deveriam permitir a
verificação nos locais!
Yevtushenko:E permitir que seus agentes da CIA reinem livres por todo
nosso país? Nunca!
Bundy: Yeah, Yeah, É a mesma velha história..
Yevtushenko: Sim... a mesma velha história.
149
Neste sentido a ameaça do KGBesta representaria isto com precisão. Ele não seria um
espião soviético, mas sim uma arma precisa para realizar atentados políticos. Uma arma tão
perigosa quanto incontrolável, cujo alvo poderia ser o próprio governo soviético, uma vez que
seu rosto e detalhes de sua identidade seriam totalmente desconhecidos. Nesta visão, as
ameaças representadas pela URSS poderiam ser maiores do que a capacidade de seu governo
conseguir conte-las.
Aqui é demonstrado como o embate bipolar delimita a percepção dos personagens
sobre as situações nas quais estão envolvidos. Ainda que na luta contra um inimigo comum se
forje uma aliança entre as forças norte-americanas e soviéticas, ela é temporária frente à
desconfiança mútua, como se evidencia no diálogo entre o agente da CIA Bundy e Batman,
após elaborarem o plano sobre como impedir que o presidente fosse assassinado. Para Bundy,
prender KGBesta não acabaria com sua ameaça. Ele seria levado de volta a URSS onde lhe
fariam um processo de lavagem mental e o colocariam novamente em ão, enfrentando, em
menos de seis meses, agentes da CIA em lugares como Afeganistão e Angola. Ou seja, a
prisão de KGBesta, a solução do caso através dos instrumentos legais do Estado e o acordo de
cooperação entre os EUA e a URSSo seriam, em sua opinião, capazes de garantir a
149
Batman: Ten Nights of the Beast. London: Titan Books ltd, 1994.p. 42
117
segurança para o futuro. Para tanto, a CIA propõe a morte do assassino como uma solução
definitiva
150
para a conquista da segurança.
A construção visual do KGBesta também merece destaque. Seu rosto nunca é
revelado, estando sempre encoberto por uma máscara de couro, tal qual a de um carrasco
masoquista. Seu nome, Anatoli Kyazev é citado apenas uma vez. Depois disso, sua identidade
como indivíduo é destruída, restando espaço apenas para seu codinome, A Besta, ou KGBesta,
como preferiria os órgãos de inteligência dos EUA. O roteiro não permite a criação de
qualquer empatia com o personagem. Ele não obedece qualquer parâmetro humano: sua força
é delimitada ciberneticamente, seu corpo é indiferente a dor, sendo capaz de decepar seu
próprio braço para prosseguir com seus objetivos.
A rede de relações sociais tecida por KGBesta é também limitada. Ele não possui
qualquer fala nas primeiras três partes da série. Mesmo na última parte, suas palavras são
poucas, aparecendo apenas em quatro momentos: o primeiro, ao receber as informações do
agente Macdonald do FBI
151
. O segundo ao desejar, de maneira rápida e furtiva, boa sorte a
Salari em sua missão suicida
152
. O terceiro momento foi quando se prepara para atirar no
falso Reagan/Alfred
153
. O último em sua luta com Batman nos esgotos de Gotham City,
quando ele desafia o vigilante
154
. Seus objetivos nunca são verbalizados. KGBesta não
expressa nenhum desejo que não seja o de cumprir sua missão. Mesmo a perda de seu braço
não é sentida, visto que ele se transforma em uma nova arma.
Outro elemento importante a se destacar é a ambientação histórica de Dez Noites da
Besta. Todo arco de história ocorre durante as prévias do Partido Republicano para a eleição
de 1989, tendo como clímax narrativo o atentado contra o presidente dos Estados Unidos,
envolvido na campanha para seu sucessor. A representação de Ronald Reagan como
150
Ibid.p. 81
151
Batman: Ten Nights of the Beast. London: Titan Books ltd, 1994.p. 79
152
Ibid.p. 81
153
Ibid.p. 95
154
Ibid.p. 94
118
Imagem 111: Splash page indica o mal-estar com relação aos jogos geopolíticos da política externa dos EUA.
Batman #418, Abril 1988, p.1.
119
Imagem 112: Diálogo entre agentes da CIA e da KGB demonstram o estranhamento e incredulidade do ocidente
frente as reformas soviéticas no fim dos anos de 1980. Batman #418, Abr. 1988, p.14.
120
personagem nesta HQ funde dois importantes significados. Por um lado Reagan, como
político, conduziria o processo democrático de sucessão eleitoral. Por outro, ele se tornou um
alvo do KGBesta por conta de sua liderança em um projeto militar que tinha como
justificativa a garantia da segurança interna dos EUA, frente a ameaça soviética, enquanto
angariava recursos para a campanha televisiva de George Bush. Muitos dos principais nomes
do partido, bem como da alta sociedade da cidade são mortos por envenenamento. Os
resultados dos assassinatos em série de KGBesta são mais profundos que a eliminação de dez
indivíduos isolados. Seu alvo maior são os EUA e seu modelo de democracia.
Diante desse confronto, temos a luta final entre Batman e KGBesta. É bastante
significativa a maneira como este confronto foi descrito e desenhado por Starlin e Aparo. A
luta entre os dois não ocorre na superfície. Ambos entram cada vez mais fundo no interior da
cidade, atravessando seus dejetos fétidos e abandonando a civilização, penetrando numa
alegoria urbana da wilderness: um local isolado, sem lei, onde o herói/homem da fronteira
ferido vai enfrentar seus próprios dilemas, se mesclando a própria wilderness para vence-la e
depois emergir de volta a civilização. Como um caçador, Batman segue o rastro de sangue
deixado por KGBesta, encontrando também os agentes da CIA mortos pelo caminho. O mito
da fronteira funciona como um discurso emulador, que quando acionado coerência para as
ações do herói. A ponto culminante da presença dessa narrativa mítica em Dez Noites da
Besta ocorre quando os dois oponentes, como forças antagônicas se encontram e travam uma
luta equilibrada, na qual nenhum dos antagonistas pode se declarar vencedor (ver imagens 46,
47, 48 e 49).
Frente ao impasse KGBesta fugiria, tentando encontrar alguma vantagem no terreno,
até que entra em uma porta aberta que ele acredita ser uma saída. Mas aquilo era apenas uma
armadilha preparada por Batman, selando o destino da batalha. Após a porta apenas um
beco sem saída. O vilão convoca o herói para um teste mútuo de habilidades, onde o melhor
121
sairia vencedor. Porém, Batman diz que aquilo não era necessário. Alguns anos antes ele
provavelmente faria isso, mas hoje ele perceberia que não haveria razões para ele arriscar sua
vida em um combate assim.
Batman tranca o vilão na sala, enquanto pensa que “às vezes é preciso ignorar as
regras. Às vezes, as circunstâncias são tais que as regras pervertem a justiça. Eu não estou
neste negócio para proteger as regras. Eu sirvo a justiça
155
. Dito isso, KGBesta bate na
porta, tentando sair, enquanto Batman se afasta pelos esgotos, até chegar à superfície, levando
os corpos dos agentes deixados pelo caminho. Lá ele avisa ao agente Ralph Bundy que ele não
precisa mais se preocupar o KGBesta. Batman quebra seu próprio código ao deixar o inimigo
em uma situação de morte. Não fica claro qual foi o destino final do KGBesta
156
, mas aponta-
se que diante da reconfiguração do imaginário da ameaça foi necessário também reconfigurar
os limites da atuação dos heróis que as enfrentam. (ver imagens 50 e 51)
Analisamos assim o KGBesta, como produto da ameaça soviética na retórica
anticomunista da Era Reagan, a partir da categoria de inimigo conveniente
157
. É pela
estranheza deste inimigo, que mais do que não se encaixar, refuta os mapas identitários do
american way of life, que convenientemente se depositam sobre ele todas as ameaças que
pervertem a ordem, desestabilizando e ameaçando a nação. O inimigo conveniente não seria
confiável sobre o ele se deposita a razão de todos os males vividos pelos EUA. Este inimigo
não faria apenas o mal. Ele provocaria o mal, levando a queda da virtude do herói que viola
seu próprio código em prol de um bem maior. Sua força aglutinadora conseguiria somar
velhos e novos inimigos, como o terrorismo xiita muçulmano, representado por Nabih Salari,
o assistente iraniano do KGBesta em seu plano contra os EUA.
155
Batman: Ten Nights of the Beast. London: Titan Books ltd, 1994.p. 95
156
O personagem voltaria a aparecer, segundo o Guia não-oficial para o Universo DC na revista Robin III: Cry
of the Huntress #1, publicada em 1992. Contudo o fato do personagem não ter morrido não diminui o impacto
individual da resolução deste arco de histórias específico. Para maiores informações o guia pode ser acessado no
website: http://www.dcuguide.com/
157
Como explicado na introdução deste trabalho, a noção de inimigo conveniente seria um desdobramento
conceitual das noções de estranho, de Zygmunt Bauman e de outro conveniente, trabalhada por Peter Gay.
122
Imagem 113: caçada, duelo e o “mito da fronteira” na
wilderness urbana dos esgotos de Gotham. Batman #420, Jun.
1988. p.14.
Imagem 114: Batman #420, Jun. 1988. p.15.
Imagem 115: Batman #420, Jun. 1988. p.16.
Imagem 116: Batman #420, Jun. 1988. p.17.
123
Imagem 117: Final do duelo entre Batman e o KGBesta e a mudança na representação do modo de agir do Herói.
Em Batman #420, Jun. 1988. p.20.
124
Imagem 118: Batman subverte seu próprio código, deixando um inimigo em uma situação de morte. Em Batman
#420, Jun. 1988. p.21.
125
4.2) Morte em Família: O Armamentismo e Fundamentalismo Terrorista Islâmico
O arco de história Batman: Uma Morte em Família foi dividido, do ponto de vista
formal, em seis capítulos publicados entre as edições de número 426 e 429 da revista Batman
entre os meses de dezembro de 1988 e janeiro de 1989. Este formato foi possível pelas duas
primeiras edições terem sido publicadas em um formato especial com quarenta e quatro
páginas cada, o dobro de uma edição regular, com as edições 426 e 427 abarcando dois
capítulos de 22 páginas cada uma. As edições ganharam um acabamento gráfico diferenciado,
sendo denominadas de “livros”, cujo conjunto formaria uma história maior. Este formato viria
dar a solenidade necessária para que esta trama marcasse época no gênero das histórias em
quadrinhos de super-heróis, inserindo um elemento fundamental na construção do universo de
Batman: a violenta e repentina morte de Robin pelas mãos do Coringa. Vale ressaltar que o
Robin assassinado nesta história, não foi o personagem original, Richard John Dick
Grayson, criado em 1940 e que, por quatro décadas atuou como Robin. Dick Grayson havia
deixado de atuar junto de Batman no início dos anos de 1980 numa metáfora sobre o
amadurecer e deixar o lar dos pais assumindo a identidade de Asa Noturna (Nightwing)
158
.
Suas aventuras deixavam de se vincular diretamente ao universo de Batman e se ligavam ao
popular grupo de super-heróis Jovens Titãs (Teen Titans). O Robin em questão aqui era o
segundo a assumir esta identidade, um garoto chamado Jason Todd, introduzido em 1983
159
.
Apesar de sua curta existência 1983 a 1989
160
este personagem apresentou duas
origens. A primeira, publicada na edição de número 357 da revista Batman, contava a história
de um menino, filho de uma família de trapezistas, que após saber do assassinato de seus pais
é acolhido por Batman e se torna o novo Robin. Essa nova origem, em verdade não trazia
158
Tales of the Teen Titans #43. New York: DC Comics, June, 1984.
159
DANIEL, Les. Batman: the complete history. San Francisco. Chronicle Books, 1999. p. 147
160
Jason Tood foi trazido de volta ao universo ficcional canônico de Batman, através de uma polêmica
ressurreição, na edição 635 da revista Batman, de fevereiro de 2005, dezessete anos após a publicação de sua
morte. Sua personalidade foi alterada, dando lugar a um perturbado e violento rival a figura de Batman, que
acaba assumindo a identidade do Capuz Vermelho, a mesma utilizada pelo Coringa, seu assassino, na Graphic
Novel Batman; A Piada Mortal, analisada no capítulo anterior.
126
quase nenhuma novidade, repetindo o argumento do surgimento do primeiro Robin em 1940.
As semelhanças entre os dois personagens se estendiam também a seus comportamentos,
podendo-se distingui-los apenas, inicialmente, pelo uniforme do novo Robin e por seus
cabelos loiros. A mudança viria apenas após a maxissérie Crise nas Infinitas Terras (Crisis on
Infinite Earths, 1985-986), que organizou todos os diferentes mundos paralelos e alternativos
do Universo DC, unificando-os em uma única e mais coesa cronologia. Os editores
aproveitaram tal oportunidade de reescrever os cânones dos personagens para reformular essa
origem
161
. Assim, de artista circense, Jason Todd passou a ser um menino encontrado por
Batman, enquanto tentava roubar as rodas do Batmóvel estacionado em um dos becos de
Gotham. Órfão, após a doença da mulher que o criou como mãe e do assassinato de seu pai
pelo Duas-Caras, ele começou a praticar pequenos furtos para sobreviver. Em um misto de
compaixão e busca de um ponto de equilíbrio para si mesmo, Batman acolhe o garoto e inicia
seu treinamento como Robin. Contraditoriamente, se podemos dizer que do ponto de vista
narrativo esta origem pós-crise se diferencia da nese do primeiro Robin, o mesmo não pode
ser dito da imagem do personagem, identificada imediatamente com o visual estabelecido
no imaginário popular sobre o personagem (ver imagens 52, 53 e 54).
Mesmo considerando tais questões, o significado midiático e narrativo da morte de um
Robin não pode ser desconsiderado. Estava quebrado um dos ícones culturais mais conhecidos
do século XX, a dupla Batman e Robin. Rapidamente a notícia sobre a morte do personagem
ganhou os meios de comunicação, sendo noticiada nos principais jornais e suscitando debates
no rádio e na televisão nos EUA. A reação à morte de Robin, possuía ainda um outro
componente catalisador: em uma inovação editorial e mercadológica, foram os leitores que
161
Devido a reformulação cronológica do Universo DC em decorrência da maxissérie Crise nas Infinitas Terras,
muitas histórias deixaram de ser desconsideradas do cânone dos personagens. Assim tornou-se comum o uso das
expressões pré-crise e pós-crise, para se referir aos eventos válidos para o cânone de cada personagem da DC
Comics.
127
Imagem 119: Primeira concepção visual para Jason Tood, o segundo Robin em Detective Comics
#526, maio de 1983.
Imagem 120: Concepção visual de Dick Grayson, o
primeiro Robin na capa de Batman #1, primavera de
1940.
Imagem 121: A identidade visual do primeiro Robin
foi incorporada ao personagem Jason Tood como
pode ser visto na splash page da Batman #424,
outubro de 1988. p.1.
128
decidiram através de uma votação realizada por ligações telefônicas, em setembro de 1988, se
Robin viveria ou morreria na história. Por uma diferença de apenas 72 votos
162
, o destino de
Jason Todd foi decidido
163
e Robin não sobreviveu ao ataque do Coringa.
A história se inicia sendo narrada em primeira pessoa através de legendas, como se o
próprio Batman relatasse ao leitor sobre a tragédia que ocorrera em um tempo passado. O
gênero trágico é potencializado pelo acabamento gráfico dado a cada uma das capas de suas
quatro edições. Diferente das edições regulares, cujas capas geralmente reproduzem cenas de
ação ou suspense para atrair o leitor, aqui as ilustrações das capas não apontam qualquer
elemento cinético. São imagens estáticas, com um enquadramento fechado no rosto dos
personagens principais, onde na primeira edição temos a imagem de Batman, solitário e
soturno, cuja expressão de tristeza e desamparo se reforça com a utilização da cor vermelha
ao fundo. A este quadro é somado o texto introdutório posicionado no lado direito da imagem,
que diz: Robin iniciou uma busca por sua identidade. Sua mãe espera por ele em algum
lugar do Oriente Médio. Mas uma morte súbita e violenta também espera por ele. E o mais
trágico dos segredos. Conseguirá Batman chegar a tempo?
Na segunda capa a Robin está em primeiro plano, com uma iluminação que sombreia
seu rosto e obscurece o corpo de Batman, servindo como uma despedida para a dupla de
heróis. Através do texto descobrimos que Robin conseguiu encontrar sua mãe, mas que junto
a ela, encontrou também o Coringa que se utilizou dele para realizar sua vingança contra
Batman. Poderia Robin sobreviver? A resposta a esta pergunta, que esteve nas mãos dos
leitores, vem de maneira chocante na terceira edição. Como descreve o texto: “Batman
chegou tarde demais. E agora Robin está caído nos entulhos, quieto, silencioso,
despedaçado”.A capa da última edição, por fim trás o Coringa sozinho, vestindo trajes negros
162
No total foram 5271 votos favoráveis a salvação de Jason Todd e 5343 contra segundo O’Neil, Dennis.
Postscript. In: Batman: a Death in the Family. New York: DC Comics.
163
Jason Todd teve sua ressurreição contada em uma história bastante controversa entre os fans em 2005,
ressurgindo como Red Hood na revista Batman # 635, 16 anos após a publicação de sua morte.
129
e formais, como de um diplomata, diferentes de suas coloridas roupas costumeiras,
anunciando um novo tipo de ameaça, como veremos a frente (ver imagens 55, 56, 57 e 58).
4.2.1) Narrativa, geopolítica e a internacionalização da ameaça
O roteiro de Starlin busca traçar o temperamento de Jason Todd, como explosivo e
descontrolado. Esta tópica, acerca de a agressividade e do descontrole do novo Robin já vinha
sendo trabalhada nas histórias anteriores também escritas por Starlin, chegando a seu ápice na
história O Filho do Diplomata, publicada na edição 424 da revista Batman
164
. Nela insinuasse
a possibilidade de Robin/Jason ter matado um homem violento, filho de um diplomata, que
agredia sua esposa sucessivamente levando-a ao suicídio. Esta caracterização de Robin
construída por Starlin é mostrada na primeira cena de Uma Morte em Família, quando ele
ataca, sem esperar a autorização de Batman ou a chegada do reforço policial, um grupo
armado de vendedores de pornografia infantil. Batman o interpela de forma dura, afirmando
que mesmo eles, vigilantes que, por definição, estariam fora da lei –, deveriam seguir certos
procedimentos. Mas Robin desdenha do perigo no qual ele se pôs e diz que tudo aquilo não
passaria de um grande jogo.
Mais tarde, na Mansão Wayne, Bruce Wayne conversa com Alfred sobre o ocorrido e
eles chegam a conclusão que iniciar Jason como Robin, pouco tempo após ele ter perdido
seus pais foi um erro. Diante disso, o melhor a se fazer seria afastá-lo imediatamente desta
atribuição. Neste momento chega Jason, que se revolta contra aquela decisão. Se recusando a
falar sobre suas atitudes perigosas ou sobre como se sente em relação a morte de seus pais, ele
dá as costas para Bruce e Alfred deixando a mansão.
O conflito doméstico é cortado pela exibição da primeira página do jornal Gotham
Post informando que o Coringa escapou novamente do Asilo Arkham. Mais uma vez o roteiro
164
The Diplomat´s Son. In: Batman #424. New York: DC Comics, Outubro de 1988.
130
Imagem 122: Capa da revista Batman #426, Dez. 1988
Imagem 123: Capa da revista Batman #427, Dez. 1988
Imagem 124: Capa da revista Batman #428, Dez. 1988
Imagem 125: Capa da revista Batman #429, Jan. 1989
131
faz uso de uma cena de rápido impacto para caracterizar o vilão como um assassino brutal: o
caminho para sua fuga foi aberto através da mistura de produtos de limpeza comuns que
produziu uma versão do letal gás do riso, matando oito funcionários, permitindo que ele saísse
pela porta da frente do manicômio. Na cena do crime, Gordon se encontra com Batman e lhe
informa que alertou a todas as agências de segurança do país, sobre a fuga do criminoso.
Além disso, Gordon também teria comunicado o ocorrido a outros dois grupos de super-
heróis: Liga da Justiça e aos Titãs, os quais estariam ansiosos para prender o Coringa após
ele ter deixado Barbara Gordon/Batgirl paraplégica
165
.
Vemos então o Coringa se preparando para, em suas próprias palavras, tirar férias
fora do país. O governo teria confiscado a maior arte de seus bens, com exceção de um míssil
Nuclear Cruiser, desviado por um militar e escondido em um depósito secreto. Sem recursos
ele planejava vende-lo para terroristas árabes no Líbano, dando início a sua “nova linha de
trabalho”, ligada a política internacional.
Enquanto isso, Jason caminha pela cidade, indo parar em sua antiga vizinhança, o
Beco do Crime, mesmo local onde os pais de Bruce Wayne haviam sido assassinados anos
antes. Inconscientemente ele para frente ao prédio, onde viveu com seus pais o que reavivou
suas memórias. Neste instante ele é reconhecido por uma antiga vizinha, Mrs. Walker, que lhe
entrega uma caixa num estado ruim de conservação, na qual estariam diversos pertences, fotos
e documentos que ela retirou de seu antigo apartamento. Feliz, Jason encontra um novo lugar
de identidade e memória a partir do qual poderia redesenhar sua vida. De volta a Mansão
Wayne, Jason começa a ler os documentos de dentro da caixa. Ali ele acha sua certidão de
nascimento, que lhe revela uma surpresa ao descobrir que o nome de registro de sua mãe
começa com “S” e não com “C”, de Catherine Todd, a mulher que o criara. Estando o restante
165
Em referência a Graphic Novel Batman: A Piada Mortal, analisada no capítulo anterior.
132
do nome ilegível por conta do mofo ele investiga, nos demais documentos, pistas que possam
lhe revelar o nome de sua verdadeira mãe.
No caderno de endereços de seu pai ele encontra o nome de três mulheres iniciados
com a letra “S” e, com a ajuda do computador da batcaverna, identifica seus paradeiros. A
primeira seria Sharmin Rosen, que teria emigrado para Israel em 1982 e naquele momento
fazia parte do Serviço Secreto Israelense. A segunda seria Shiva Woosan, uma assassina
mercenária que estaria operando no Líbano. A última seria Dra. Sheila Haywood, que estaria
trabalhando com a assistência aos famintos na Etiópia. Acreditando que Bruce Wayne não o
ajudaria em sua missão, Jason parte sozinho em busca destas três mulheres. Enquanto isso o
Coringa sequestrou um avião militar da marinha e com ele se dirige ao Líbano, levando
consigo o míssil Cruise.
Em sua caça ao Coringa, Batman finalmente chega ao seu esconderijo mas encontra o
local vazio. Ali um contador geiser no chão indicava uma quantidade anormal de radiação
naquele ambiente. Juntando todas as evidências que ele levantou durante sua investigação,
Batman deduz qual seria o plano do criminoso e temendo o que ele poderia fazer tendo em
mãos um armamento nuclear, início a uma ação para detê-lo. Ao voltar para a Batcaverna,
Alfred lhe mostra o bilhete deixado por Jason, avisando sobre sua partida. Batman fica
dividido entre ir ao encalço do Coringa ou localizar Jason. A resposta para ele é obviamente
dolorosa. A captura do Coringa seria uma prioridade. A grande questão seria como ele viveria
com esta decisão.
Com a perseguição ao criminoso, o palco da ação se desloca para o Líbano. Antes de
partir para o Oriente Médio, Batman teria falado com o agente da CIA Ralph Bundy
personagem que como vimos também esteve presente em Dez Noites da Besta. Ele o
informou sobre roubo do avião militar e sua queda nas mãos de um grupo xiita radical, que se
133
recusava a devolvê-lo aos EUA. Assim Batman fez o seguinte acordo: garantiria aos
comandos navais o acesso ao avião, mas em troca teria a permissão de examinar seu interior.
Após a recuperação do avião, Batman permanece no Líbano a procura do Coringa e de
seu míssil. Contudo ele está tendo dificuldades em se concentrar, pois ainda não sabia onde
Jason poderia estar. Em contato via satélite com Alfred, ele é informado sobre a compra de
uma passagem aérea por Jason, uma passagem com destino a Israel. Enquanto Batman se
pergunta sobre o que Jason faria em Israel, Robin invade uma base militar israelense onde
descobre que Sharmin Rosen está em uma missão de campo, hospedada em um Hotel de
Beirute, para onde também Batman se dirige.
A capital libanesa é descrita, junto a um quadro panorâmico como uma cidade em
ebulição, com uma atmosfera tensa, onde se vêem por toda parte pessoas armadas ou feridas
pela guerra. Não sendo um local seguro para um americano, Bruce Wayne utiliza um
passaporte irlandês falso, enquanto procura por pistas do Coringa. Batman acredita que o
vilão negociará primeiro com seus clientes na capital, uma vez que se dirigir diretamente ao
Vale do Bekaa, onde os radicais estariam entrincheirados, seria muito perigoso.
Dialogando em persa, Bruce Wayne pega um táxi e para o espanto do motorista pede
para ser levado a pior área da cidade, onde os criminosos se reúnem. Lá, como Batman, ataca
guerrilheiros que atuam no mercado negro de medicamentos em busca de informação sobre a
venda do míssil. Assustados com um “homem morcego” que os tortura a procura de
informações, os guerrilheiros rapidamente falam sobre Peter Brando, que estaria oferecendo
aquele tipo de equipamento. Batman o reconhece como sendo um dos capangas do Coringa e
segue para o Hotel Blu, onde ele estaria escondido. Por coincidência Sharmin Rosen também
estaria neste hotel, atuando secretamente junto a Peter Brando, para impedir que o míssil
nuclear fosse utilizado contra Israel. Assim, quando Jason Todd chega ao hotel ele é
surpreendido por Bruce Wayne que lhe pergunta o que ele estaria fazendo ali. Ambos vêem
134
Sharmin Rosen e Peter Brando saindo do hotel e concluem que estariam trabalhando “no
mesmo caso”.
Os heróis os seguem em direção ao sul, até um acampamento próximo a fronteira de
Israel, onde por um milhão de lares, o Coringa vende o míssil a um grupo terrorista xiitas
que pretenderia lança-lo contra Tel-aviv. Neste momento Batman e Robin começam a agir,
derrubando um a um os terroristas. O Coringa se apavora não acreditando que Batman o
seguiu até ali. Juntos, os terroristas árabes e os criminosos norte-americanos tomam as armas
e tentam matar a dupla de heróis, mas Batman e Robin continuam avançando entre os tiros.
Quando um terrorista está prestes a disparar contra as costas do Batman, Sharmin Rosen
revela-se como agente infiltrada de Israel e o elimina. Contudo isso a põe na mira de Peter
Brando, que a captura, fazendo-a de refém.
Ao ver sua possível mãe em perigo, Robin corre em direção o que faz Brando largar
sua refém e apontar sua arma para Robin. Neste momento o rosto de Batman revela desespero
e raiva, pois um tiro daquela distância seria fatal e não haveria nada que ele pudesse fazer
para salva-lo. Paralelamente o líder dos terroristas, vendo que tudo está perdido digita o
código de disparo do míssil para Tel-aviv e está pronto para dispará-lo. Sharmin Rosen
consegue derrubar Peter Brando, salvando Robin, enquanto o terrorista aciona a arma nuclear.
Mas no lugar do disparo o que se é uma grande explosão. O míssil foi montado de forma
equivocada pelo Coringa o que o fez explodir antes mesmo de ser lançado. Todos os
terroristas e bandidos que estavam no entorno foram mortos, assim como a maleta com um
milhão de dólares foi destruída. Fortuitamente a ogiva nuclear não chegou a explodir, porém,
sem dinheiro, um choroso e cabisbaixo Coringa some na escuridão do deserto. Sharmin
Rosen agradece aos heróis em nome do Estado de Israel. Em troca, Batman pergunta se ela
teve algum filho em Gotham City, cuja resposta da agente é não. Após oferecer uma carona de
volta a Beirute e sem ter que se preocupar com as arma nuclear nas mãos do Coringa, a dupla
135
de heróis continua sua busca pela mãe de Jason. Nisso, a cena se desloca para um aeroporto,
onde vemos o Coringa, disfarçado como uma pessoa comum, para comprar uma passagem
para Addis Ababa, capital da Etiópia.
Batman e Robin partem então para o Vale do Bekaa e invadem um campo de
treinamento terrorista, onde Shiva Woosan supostamente estaria presa. Rapidamente os dois
avançam pelo campo, vencendo um a um seus sentinelas. Quando o último homem do
acampamento é enfim encurralado ele afirma que Shiva estaria na tenda central do
acampamento. Terminada a infiltração os heróis retiram seus disfarces, reassumindo as
identidades de Batman e Robin. Ao chegar à tenda central percebem que ela está vazia, algo
que, em parte, era uma expectativa de Batman. Ele então explica para Robin o porquê deles
terem entrado tão facilmente naquele acampamento. Ali não haveriam veteranos. Os homens
que eles enfrentaram estariam sendo ainda treinados por Lady Shiva. Todavia, antes de
terminar esta fala, Robin é derrubado pela mercenária, que finalmente se apresenta, vestida de
negro e armada de nunchakos.
Sem dar espaço para maiores diálogos sobre o motivo da presença dos heróis ali, Lady
Shiva inicia um combate com Batman como forma de testar a si mesma. A luta é dura e por
mais que se esforce, Batman não consegue supera-la. Ele obtém alguma vantagem quando
Robin recobra a consciência e intervém a seu favor. Juntos os heróis derrotam Shiva e a
imobilizam, levando-a consigo. A cerca de duas milhas dali, Batman e Robin param para
questionar Lady Shiva sobre a suposição de ela ter tido um bebê. Diante de sua recusa em
responder, Batman relutantemente injeta em Shiva uma dose de Sódio-Pentothal, o soro da
verdade, utilizado pelos serviços de inteligência dos EUA e que tem um efeito sobre o sistema
nervoso central. Drogada, Shiva responde que nunca teve filhos. Quando os efeitos da droga
se vão, Batman e Robin deixam Lady Shiva no deserto e partem em busca de Dra. Sheila
Haywood, na Etiópia.
136
A ação de Morte em Família desloca-se então para os arredores de Magdala, na
Etiópia. , sob a luz da lua, um jipe leva o Coringa procurando por Sheila Haywood. O vilão
invade a barraca da médica, cumprimentando-a por não -la há muito tempo e dizendo que
ela ataria muito distante de Gotham. A seguir ele pergunta se ela ainda realiza operações
ilegais em meninas adolescentes (ver imagem 65). Utilizando as informações sobre o passado
da Dra. Haywood, o Coringa começa a extorqui-la, exigindo que ela desvie seis caminhões de
medicamentos, que ele venderia no mercado negro. A médica ironiza o seu pedido, afirmando
que “o grande Coringa foi reduzido a um ladrão de caminhões”. A resposta é igualmente
irônica. O Coringa, levando uma mão a cabeça e outra ao coração, fazendo um pastiche, de
drama responde que ele é apenas uma outra tima da Reaganomics: infelizmente ele viveria
em um mundo que corre através do dinheiro, sem o qual ele não poderia voltar ao jogo.
Nesse ínterim, Bruce Wayne e Jason Todd chegam de carro a um campo de refugiados
na Etiópia. O cenário é desolador, com uma multidão de famintos e alguns sacos de
mantimentos doados pelos EUA no chão. A dupla finalmente localiza a barraca da Dra.
Haywood, que ao se encontrar com Jason reconhece seu nome, recebendo, assustada, um
abraço de seu filho. Bruce Wayne sai para deixá-los conversar a sós, dizendo que voltaria
dentro de algumas horas para saber quais seriam os planos de Jason. Mãe e filho conversam e
ela explica sobre os motivos que a fizeram abandona-lo, dizendo que era uma estudante de
medicina quando engravidou. Logo depois que Jason nasceu ela teria tido um problema com
uma operação na qual ela era assistente. Vendo que sua carreira médica havia acabado nos
EUA, ela partiu para Inglaterra, onde o pai de Jason deveria encontrá-la, levando consigo o
filho do casal. Contudo, neste ínterim, ele teria se apaixonado por Catherine, que acabou por
criá-lo como sua mãe. Sabendo que não venceria uma batalha legal pela custódia do filho,
Sheila Haywood preferiu deixar tudo para trás, aceitando que não o veria mais.
137
Jason abraça e perdoa sua mãe. Contudo, ao ver o relógio, ela pede que ele a
licença, pois precisa tratar de assuntos de trabalho por cerca de uma hora. Ao ver o Coringa
entrando na barraca de sua mãe, o rapaz se aproxima furtivamente e ouve a conversa dos dois,
descobrindo que o Coringa a chantageou, levando-a juntamente com os caminhões desviados.
Jason rouba uma moto do acampamento e segue os caminhões até o depósito onde os
medicamentos estão sendo desembarcados. Aumentando a crueldade de sua operação,
Coringa substitui o carregamento dos caminhões pelo mortal gás do riso, dizendo fazer um
favor a Sheila Haywood por diminuir o número de bocas que ela deve alimentar.
Percebendo que não conseguiria agir sozinho contra aquele crime, Jason retorna para
chamar Bruce Wayne, pois aquele seria um trabalho para Batman e Robin. Ao saber do que se
tratava, Batman parte com Jason para capturar o Coringa. Porém no meio do caminho
percebem que os caminhões levando o gás do riso já haviam partido. O único meio de
interceptá-los seria utilizando um mini-helicóptero, que teria vaga para uma pessoa.
Batman pede que Jason o espere voltar, pois o Coringa seria muito perigoso para ser
enfrentado sozinho. Todavia, Jason continua impulsivo e desobedece Batman, indo sozinho
enfrentar o Coringa para salvar sua mãe. O rapaz a encontra saindo do depósito para fumar e
se revela como Robin, dizendo que poderia ajudá-la. Ela se assusta com a revelação, mas pede
que ele a acompanhe para dentro do depósito, pois havia algo ali que ele precisava ver. Neste
momento ele descobre que sua mãe o traiu e o entregou para o Coringa, que surge
empunhando uma pistola de atrás de uma caixa. Chocado ele se vira para a mãe, que também
saca um revolver contra ele, dizendo que ele escolheu a pessoa errada para confiar, pois ela
também estava envolvida com o desvio de medicamentos. Encurralado, Robin é surrado pelo
Coringa e seus capangas até ficar caído no chão. Então o Coringa pega um “pé de cabra” e
diz para ele se preparar para ser severamente espancado.
138
Em uma sequência de quadros que enfocam o corpo do Coringa, vemos Jason apanhar
até estar próximo da morte, enquanto sua mãe desvia o olhar e acende um cigarro. Após
agredir Jason, vemos o Coringa segurando o “pé de cabra” do qual escorre sangue. Sua roupa
também está suja de sangue, indicando o grave estado em que Jason se encontra. Para não
deixar evidências para o Batman sobre o que ele fez, ele prende Dra. Haywood, no depósito,
juntamente com seu moribundo filho, deixando com eles uma bomba relógio. Com suas
últimas forças Jason se levanta e desamarra sua mãe, caindo novamente em seguida. Faltando
apenas um minuto para a bomba explodir ela segura seu filho e o leva-o até a porta. Inicia-se
uma sequência de suspense, com a contagem regressiva.
Batman consegue interceptar os caminhões, mas é atacado por seus guardas que o
confundem com um assaltante. Contudo ele consegue por os soldados fora de combate e deter
o carregamento mortal, pegando um dos caminhões emprestado para se juntar a Jason. Porém,
ao se aproximar do depósito ele o explodir em uma grande bola de fogo. Batman grita o
nome de Jason e pedindo ajuda a Deus entra no local em chamas. Caminhando entre os
escombros, Batman encontra Robin caído no chão. Seus ferimentos são tão severos que seria
desnecessário procurar por sinais vitais. Mas, mesmo assim Batman procura, na esperança de
que o Robin pudesse milagrosamente estar vivo. O esforço foi em vão; não havia pulsação.
Seu corpo começava a esfriar, restando a Batman simplesmente abraça-lo, chorar e retira-lo
dali, carregando em seus braços em uma referência a escultura Pietá, de Michelangelo (ver
imagem 59).
em Addis Abada, Coringa vende os medicamentos roubados até ser interrompido
por dois membros do serviço secreto iraniano, que pendem para ele acompanha-los, pois seu
superior desejaria lhe oferecer uma proposta. Soberbamente Coringa despreza a proposta, mas
fica sem palavras ao perceber que o superior é o próprio Aiatolá Khomeini, que lhe
139
cumprimentando como Monsieur Coringa, lhe oferece uma posição em seu governo (ver
imagem 60).
Paralelamente vemos Bruce Wayne cuidando das questões legais que envolvem a
morte de Jason, enquanto decide que é hora de dar um fim definitivo a seus confrontos com o
Coringa. A noite consegue localizar o endereço do local para onde o criminoso levara os
medicamentos roubados. Contudo ele apenas encontra corpos envenenados pelo gás do riso
e um recado escrito na parede em vermelho, sugerindo sangue, dizendo: “B. Vejo você na
42
nd
com a 1
st
. C.” (ver imagem 61).
De volta aos EUA, durante o enterro de Jason e sua mãe, Alfred pergunta a Bruce se
deveria entrar em contato com Dick Grayson, o primeiro Robin, mas ele responde que não,
pois precisava resolver as coisas com o Coringa sozinho. Pesquisando sobre o endereço
deixado pelo Coringa, Batman descobre que o único local relevante que combinaria com
aquela combinação de endereços seria em Nova Iorque: a sede da Organização das Nações
Unidas. Batman vai até e fica a espera do Coringa, decidido a matá-lo. Sua espera, porém,
é interrompida, por uma voz vinda do céu: era o Superman. Surpreso, Batman pergunta o que
ele está fazendo ali. Quando Superman responde que estava a pedido do Departamento de
Estado para garantir que Batman não desse início a uma crise internacional.
Batman aumenta sua quantidade de perguntas, cujas respostas são todas evasivas.
Superman tenta lhe explicar que o novo embaixador do Irã na ONU se apresentaria naquele
dia e sendo legalmente empossado ele teria imunidade diplomática, sobre qualquer crime
cometido naquele país. O carro oficial da comitiva iraniana chega a sede da ONU trazendo o
seu novo embaixador. Batman nega-se a acreditar, mas de dentro do carro sai o Coringa,
vestindo um traje árabe perguntando se os dois heróis vieram lhe congratular por sua nova
posição.
140
Imagem 126: Batman #428, Dez. 1988. p.10.
141
Imagem 127: Batman #428, Dez. 1988. p.13.
Imagem 128: Batman #428, Dez. 1988. p.15.
142
Em uma sala escura uma figuração visual da obscuridade dos acordos secretos do
governo Reagan, especialmente com a República Islâmica do Irã –, Batman, Superman e
Ralph Bundy conversam sobre a imunidade diplomática do Coringa. Bundy argumenta que o
Departamento de Estado estaria no meio de negociações delicadas com o Irã. Porém Batman
ironiza, perguntando se eles estão trocando armas por reféns em uma referência aos eventos
desenrolados pelo escândalo do Irã-Contra. Novamente Bundy diz que aquele não era assunto
deles e Batman não deveria por as mãos no embaixador iraniano. Diante da recusa da
cooperação de Batman, Ralph Bundy diz que neste caso o presidente enviou o Superman para
detê-lo. O agente da CIA se retira da sala deixando que os dois heróis se entendam. Quando se
vêem sozinhos, ambos começam a se tratar por seus nomes civis e Clark pergunta a Bruce se
Jason Todd era o Robin. Bruce responde que sim e que ele foi morto pelo Coringa. Além
disso, conceder imunidade diplomática a um criminoso “seria a lei. Não a Justiça”
166
.
Estabelece-se aqui uma dicotomia na qual Batman deseja vingança e(ou) justiça contra o
Coringa e o Superman defende os interesses do país. Batman chama Clark Kent de escoteiro e
se retira da sala, dizendo que, com um pouco de sorte, eles não estariam em lados contrários.
Bruce Wayne articula seus contatos federais para assistir a seção da Assembleia Geral
da ONU como um observador informal, para que assim possa manter seus olhos sobre o
Coringa sem deixar o Departamento de Estado nervoso. No outro dia à noite o salão da
Assembleia Geral da ONU está lotado, repleto de pessoas que o Coringa planeja massacrar.
Ali também está presente Bruce Wayne que não faria nada para detê-lo, pois foi impedido
pelas autoridades, mas que depois não o deixaria escapar dali. Finalmente o Coringa entra na
Assembleia Geral da ONU, vestindo trajes árabes. É válido ressaltarmos que são
desconsideradas todas as diferenças entre a cultura persa iraniana e a árabe, reduzindo-as a um
mesmo extrato.
166
Batman: a Death in the Family. New York: DC Comics. Capítulo 6, p.4.
143
Todos os olhares se voltam para o vilão, que é descrito pelo narrador como “A morte
personificada”, resumindo a identidade vilanesca desenvolvida este personagem ao longo de
toda a história. Em direção ao púlpito ele para, encara por alguns instantes Bruce Wayne como
se soubesse sua identidade secreta e segue, gargalhando, seu caminho. Em seu discurso,
narrado em uma intensa narrativa sequencial de 12 quadros em uma página, ele compara-se ao
Irã, dizendo que após ambos terem sido hostilizados pela comunidade internacional eles não
aceitariam mais isso. Neste momento, Coringa retira suas vestes árabes revelando que sob ela
se escondiam dois tanques de gás do riso que é liberado no interior da ONU para o desespero
de todos os presentes. Batman prepara-se para agir, mas neste momento o guarda que fazia a
segurança do Coringa segura sua pistola de gás, destruindo-a com apenas uma das mãos. Era
o Superman, que disfarçado começa a inalar todo o gás do ambiente. O super-herói levanta
voo para liberar o gás em local seguro, deixando o Coringa para o Batman. Contudo a ameaça
ainda não havia terminado. O criminoso instalara explosivos sob os assentos da Assembleia
geral da ONU, matando alguns de seus delegados. Segurando uma pistola ele tenta fugir no
meio da fumaça, mas em seu caminho ele encontra Batman.
A luta entre os dois faz novas vítimas quando mais um delegado é morto pelos tiros do
Coringa, que consegue sair do prédio e embarcar em um helicóptero iraniano, sendo seguido
pelo herói. O embate entre os dois continua nos céus, até que um soldado iraniano dispara no
interior da aeronave uma rajada de metralhadora que atinge o braço do Batman, o peito do
Coringa e a cabeça do piloto. Sem tempo de fazer qualquer outra ação, Batman abandona o
helicóptero, jogando-se nas águas do rio, enquanto a aeronave explode após bater em um
armazém das docas. Superman retorna e resgata o homem-morcego, que lhe pede
desesperadamente que ache o corpo do Coringa. Mas ele sabe que o corpo não será
encontrado, pois é sempre assim que terminam as coisas entre ele e o Coringa: elas ficam não
resolvidas.
144
4.2.2) Neoconservadorismo, crise social e o mito da fronteira
Como pudemos observar, duas tramas se cruzam em Morte em Família: A jornada de
Robin em busca de sua identidade e de seu próprio passado, representados por sua mãe e o
combate a ameaça terrorista, presente tanto através do armamentismo nuclear, quanto pelo
surgimento de um novo referencial de inimigo, o fundamentalismo islâmico. Através do
entrecruzamento do enredo destas duas tramas, podemos identificar importantes elementos
inseridos nos conjuntos simbólicos a cerca da ameaça e o lugar de disputa, entre diferentes
culturas políticas no imaginário norte-americano no final da década de 1980.
A simples procura por Robin de uma resposta sobre quem ele seria é bastante
significativa, quando a tomamos como ponto inicial para compreender a coerência interna das
narrativas do universo do Batman. Enquanto o Robin original gradualmente ganhava
contornos que o desvinculavam exclusivamente do universo de Batman, a equipe de criação
da DC Comics percebeu que se fazia necessário introduzir um novo Robin. Este personagem,
desde seu surgimento, em 1940 exerceria, como demonstra Will Brooker, três funções
principais na construção narrativa das HQs de Batman. Primeiro como um ponto de
identificação entre o leitor mais jovem e este universo. Segundo, como um recurso narrativo
para explicar ao leitor as deduções de Batman ao longo de suas investigações. A utilização
deste recurso foi uma ideia do roteirista Bill Finger
167
, que durante o primeiro ano de
publicação do personagem buscou um modo de incluir “um Watson o Batman/Holmes
168
Por fim, Robin era um contraponto tanto temático quanto visual para as sombras e a
crescente violência presentes no universo do homem-morcego. Um elemento de balanço que
firmava sua importância com o encrudelecimento das temáticas envolvendo as HQs do
Batman dos anos de 1980, como vimos nos capítulos anteriores. Para tanto, contudo, era
também necessário resignificar este personagem, dando-lhe uma identidade e uma coerência
167
Um dos criadores do personagem Batman, juntamente com Bob Kane.
168
BROOKER, Will. Batman Unmasked: Analyzing a cultural Icon. New York: Continuum, 2000. p. 56.
145
dentro do contexto político e cultural da Era Reagan, ao mesmo tempo em que ele
visualmente fosse um pastiche, para que fosse imediatamente reconhecido como Robin pelos
leitores
169
. Neste sentido, recontar sua origem como um assaltante de rua, perdido e sem
perspectivas a ser encontrado por Batman é relevante para entendermos os medos que
cercavam aquela sociedade (ver imagens 62, 63, 64 e 65). Observando a nova origem deste
personagem, podemos ver vazio de sua vida as sequência em que ele entra em um prédio em
ruínas – seu lar e esconderijo para fugir de Batman. A desolação do lugar é também a busca
por um retrato da América que havia perdido seu sonho.. Se o crime e a temática do
assassinato, estão presentes aqui, assim como estiveram na origem de Batman, em 1939 e do I
Robin, em 1940, elas agora ganhavam um novo relevo, onde as tragédias socioeconômicas,
tão presentes nos EUA durante a 1980, se tornaram contornos mais visíveis.
Estas representações sobre vidas socialmente destroçadas, que seguem sem rumo
definido a procura desesperada por um lugar seguro aparecem ainda outras vezes ao longo de
uma Morte em Família. A mãe de Jason ainda que tenha conseguido reconstruir sua carreira
longe de Gotham City é sempre assombrada por seu passado. Ainda que não haja uma menção
exata a qual tipo de cirurgias ilegais a Dra. Sheila Haywood realizava nos EUA, fica
subentendido ao leitor que se tratam de abortos, realizados em adolescentes. É interessante
notarmos aqui a presença do pensamento contrário ao aborto da New Right
170
. Sua prática
teria se tornado uma mácula moral na vida da Dra. Haywood, refletindo-se como uma falha
de caráter em seu papel como mãe. Ela teria abandonado seu filho e, em seguida, o condenado
friamente a morte pelas mãos do Coringa. As culpas que cercam a personagem seriam tão
grandes, que os autores somente lhe oferecem a redenção a custa de sua morte, quando, em
um último e tardio momento ela se arrependeria (ver imagem 66 e 67).
169
Sobre a função do pastiche na cultura pós-moderna ver: JAMESON, Fredric. s-Modernismo: A Lógica
Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996.
170
SILVA, Francisco Carlos da. Aborto. Dicionário Critico do Pensamento de Direita: Idéias, instituições e
personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000. p. 387-389.
146
Imagem 129: A reconstrução da Origem do II Robin em
Batman #408, Jun. 1987.
Imagem 130: Batman #408, Jun. 1987.
Imagem 131 Batman #408, Jun. 1987.
Imagem 132: Batman #408, Jun. 1987.
147
Ao chegar ao campo de refugiados na Etiópia, Bruce Wayne se depara com desamparo
daquela população frente a fome e a miséria. Os alimentos e as doações enviados não seriam
suficientes para aplacar tamanho mal. Enquanto caminha pelo campo, suas considerações
políticas acerca daquela situação não deixam de ser surpreendentes, revelando o víeis do
pensamento liberal que se fazia presente na cultura da mídia norte-americana, na qual a
filantropia poderia solucionar a miséria do mundo, além de garantir a paz de consciência para
quem a promove, permitindo o sentimento de isenção frente as mazelas alheias:
Mais uma vez o mundo não ouviu a tempo. Os mesmos erros foram
cometidos. A fome e a morte deixam uma longa sobra sobre estas terras.
Milhares de refugiados afluem para os campos todos os dias. Isto realmente
parte o coração. Quando retornar a Gotham enviarei outro cheque para
tentar ajudar o esforço humanitário e tentar esquecer o que vi aqui (ver
imagem 68).
171
Por outro lado, o enredo envolvendo a fuga do Coringa e seus planos para se inserir no
tráfico internacional de armas é revelador de um outro tipo de temor. Um artefato nuclear
surge de maneira incógnita, nas mãos do mais perigoso e insano inimigo de Batman. A
potencialidade destrutiva deste armamento é depurada quando observamos que, nesta mesma
sequência, o Coringa afirma que aquele míssil fora desviado por um militar aquele que
deveria zelar pela segurança doméstica não havendo assim registro oficial sobre ele. Fora
do controle do Estado, o armamento perde sua função de dissuasiva e defensiva, revertendo-se
em uma ameaça contra a nação. Mais do que o Coringa, o Estado falha em sua missão
principal ao permitir que armas norte-americanas caiam em mãos inimigas no caso
analisado, o terrorismo fundamentalista islâmico e serem utilizadas contra o país ou seus
aliados.
A ameaça externa é aqui redefinida. O terror do exterminismo global permanece como
uma infausta possibilidade de futuro, mas sua dinâmica foi alterada. O risco de um conflito
171
Batman: a Death in the Family. New York: DC Comics.
148
entre os EUA e a URSS cede espaço a um novo jogo internacional mais fluido e instável, no
qual outros atores emergem buscando defender seus próprios interesses. Sintomaticamente o
terreno da disputa entre Batman e os elementos de uma caótica e ameaçadora wilderness, que
constantemente assedia a comunidade nacional, são deslocados para fora de Gotham City e
das fronteiras dos EUA, indo para o Oriente Médio e suas áreas de influência e culminando,
por fim na dissolução de uma ordem internacional representada pela ONU. Podemos analisar
assim, que o borramento dos limites do imaginário bipolar da ameaça em Uma Morte em
Família se pela atuação de duas forças culturais. Primeiro a construção do
fundamentalismo islâmico e do Irã como inimigos convenientes a nação, tal qual se fizera com
o armamentismo soviético em Dez Noites da Besta. Em seguida, o impacto do escândalo
político do Irã-Contra, que levou parte da opinião pública norte-americana a desconfiar da
atuação dos serviços secretos e de inteligência do Estado.
As representações que compõe a construção do fundamentalismo islâmico como um
inimigo conveniente a nação remontam a retórica de uma cultura política norte-americana,
que Gary Gerstle denominou como nacionalismo racial ao associar seu rosto às
características de um povo, alimentando-se dos discursos da New Rigth. Segundo Gerstle, o
nacionalismo racial ancora-se na premissa de que a nação norte-americana fora fundada por
uma raça branca pioneira, imbuída em seu sangue dos valores democráticos republicanos.
Nesta perspectiva, africanos, asiáticos, latino-americanos, os não brancos e os imigrantes
vindos do sul da Europa ou leste deste continente, não poderiam compreender ou aceitar os
valores republicanos. Desta forma eles deveriam ser expelidos, segregados ou subordinados
por esta nação norte-americana pioneira. Ora, tomemos alguns exemplos sobre como são
caracterizados aqui os povos árabes e os iranianos.
Assim que chega a Beirute, Bruce Wayne se comunicaria com os
habitantes locais em persa
172
(ver imagem 69). Ignora-se que a língua oficial do Líbano seria
149
Imagem 133: Batman #427, Dez. 1988. p.7.
Imagem 134: Batman #428, Dez. 1988. p.7.
150
Imagem 135: Batman #427, Dez. 1988. p.23.
151
o Árabe, ou ainda, que o francês e o inglês também seriam bastante difundidos. Reduz-se
assim o outro a um estereótipo, uma representação disforme sobre a qual se projeta
convenientemente as características repudiadas por quem o representa. Velhas e novas
imagens de inimigos podem ser assim fundidas, como na cena em que o Coringa venderia o
míssil para um grupo de terroristas no deserto do Líbano. Promovendo seu produto de forma
similar a um vendedor de carros usados, ele funciona como uma metáfora para o desvio
secreto de armas do governo, vendendo-as para custear seus projetos. Juntos novos e velhos
inimigos saem para caçar os heróis americanos pela noite do deserto. Como diz o texto de
Starlin: “cooperação internacional. Terroristas árabes e a ralé americana juntando forças para
nos matar. Há uma lição para ser aprendida disso. Mas Robin e eu estamos um pouco
ocupados no momento para apreciar o significado geopolítico da situação”
173
(ver imagem
70).
Temos aqui a apresentação de um conjunto simbólico complexo, no qual se mesclam
os temores sobre o avanço do fundamentalismo, o nacionalismo norte americano e uma
agressiva política externa, baseada na ideia de que a liberdade americana dependeria de sua
força militar para enfrentar seus inimigos. Sintomaticamente, quando Batman e Robin estão
no campo de treinamento terrorista no Vale do Bekaa, e se defrontam contra Lady Shiva,
evoca-se o mito do homem da fronteira norte-americano para explicar o confronto contra os
terroristas. A luta dela contra Batman, segundo a construção do roteiro, não possuiria
qualquer motivação política. Conforme o combate se desenrola, Batman compara-o com um
duelo no Velho Oeste norte-americano, onde, quando se era o melhor, seu lugar seria
almejado, forçando-o constantemente a se por a prova: “É muito parecido com ser um
pistoleiro no Velho Oeste. Quando se é o melhor, todos os idiotas querem tirar seu título”
174
.
(ver imagem 71)
152
Está temática aparece de forma bastante clara quando, logo após ter atingido o ápice
de sua perversidade assassinando o Robin (ver imagem 72) e ter tentado matar centenas de
refugiados etíopes, o Coringa é convidado, pessoalmente, pelo Aiatolá Khomeini, para
assumir o cargo de embaixador do Irã. Procura-se aqui construir a imagem do Irã como um
Estado potencialmente perigoso, para a segurança da ordem democrática em todo mundo,
desrespeitando as leis internacionais tendo como único objetivo realizar um ataque terrorista a
uma reunião da Assembleia Geral da ONU, através do uso de explosivos e armas químicas. O
discurso do Coringa, pouco antes dele anunciar seu ataque a Assembleia Geral é bastante
expressivo sobre este tipo de construção, onde, em uma sequência de quadros, demonstrando
suas diversas expressões faciais, ele diz:
É uma grande honra para mim estar aqui essa noite. Venho falar em nome
da Grande República Islâmica do Irã. Os atuais líderes deste país e eu
temos muito em comum. Insanidade e uma grande paixão por peixe. Mas,
por infortúnio, também compartilhamos um problema mútuo. Não somos
respeitados. Todo pensam no Irã como o lar de terroristas fanáticos. Dizem
coisas ainda piores de mim, vocês podem acreditar? Nós dois sofremos
muito com este abuso e desdém! Bem, não vamos mais aguentar isso!!
Vocês não mais poderão nos julgar! Na verdade, vocês não serão mais
capazes de julgar ninguém de novo! Diga Boa Noite, Gracie!
175
.
As expressões faciais, seguidas pelo ataque embalado pelas gargalhadas desdenhosas do vilão,
dão as palavras desta fala um sentindo irônico, reforçando a imagem do Irã e do
fundamentalismo neste imaginário da ameaça (ver imagem 73).
153
Imagem 136: Batman #426, Dez. 1988. p.28.
Imagem 137: Batman #426, Dez. 1988. p.37.
154
Imagem 138: Batman #427, Dez. 1988. p.14.
155
Imagem 139: Batman #427, Dez. 1988. p.36.
156
Imagem 140: Batman #429, Dez. 1988. p.13.
157
Conclusão
Estudar a história do Tempo Presente exige antes de a realização de uma etnografia do
cotidiano. Estabelecer um lugar de estranhamento frente as nossas próprias práticas, discursos
e representações, possibilitando analisa-los dentro de uma perspectiva histórica. Estas práticas
e o surgimento da cultura da mídia – que cada dia assume formas diferentes graças ao
desenvolvimento das tecnologias da informação – reestruturou as formas tradicionais de
organização social. Ao optarmos por analisar o universo ficcional das histórias em quadrinhos
objetivamos compreender como se construiu no interior de uma cultura da juventude, que
vivenciou os momentos finais da Guerra Fria, o imaginário sobre as ameaças e ansiedades
frentes as transformações políticas e cultuais deste período.
Buscamos, ao longo deste trabalho investigar as transformações ocorridas no
imaginário da ameaça nos EUA durante a segunda Guerra Fria. Para tanto, analisamos as
representações de heróis e vilões, presentes no universo ficcional das HQs do personagem
Batman durante o segundo governo de Ronald Reagan (1985-1989), buscando compreender a
relação entre a conjuntura política e o ambiente cultural dos EUA no período do fim da
Guerra Fria. Nesta medida operamos com a hipótese de que neste período as representações
do imaginário da ameaça ao american way of lifeforam redimensionadas trazendo para o
centro dos planos de enredo das HQs do Batman temas como o mal-estar frente a
desestruturação do Estado de Bem-Estar Social, a escalada armamentista nuclear e a ascensão
do fundamentalismo islâmico.
Ao realizarmos um recorte do universo ficcional do Batman um dos primeiros
aspectos que nos sobressai é a sua pluralidade. Ao longo das décadas de publicação
ininterrupta de suas histórias, diferentes elementos foram acrescentados, modificados ou
retirados deste universo. Centenas de pessoas trabalharam na produção de seus roteiros,
desenhos e arte final, colocando um pouco de sua visão pessoal sobre o personagem. Assim,
158
ao mesmo tempo em que Batman se apresenta como um herói soturno, o cavaleiro das trevas,
para utilizar a denominação de Frank Miller, ele também é facilmente relembrado por
histórias cômicas, sejam elas as recheadas de um humor camp da série de TV dos anos de
1960 ou as aventurescas histórias do desenho animado Batman: Os Bravos e os Destemidos
176
dos anos 2000. Ainda que nos restringíssemos as abordagens presentes apenas nas HQs, o
que seria uma tarefa praticamente impossível, visto o diálogo constante entre os diferentes
tipos de mídia, teríamos o vigilante urbano, o herói que luta ao lado da Liga da Justiça contra
invasões alienígenas e crises cósmicas, ou ainda o “maior detetive do mundo” em suas
intrincadas investigações. Tal pluralidade nos permitiu levantar diferentes abordagens sobre o
personagem dentro do período dos anos de 1980.
O historiador Jugen Kocka afirma que a ação de comparar, como um procedimento
metodológico e teórico, em História significa discutir e dialogar fenômenos históricos,
confrontando suas semelhanças e diferenças, de modo a se construir um objeto de análise
177
.
Buscamos aqui comprar as narrativas das HQs Batman: Ano Um, Batman: A Paiada Mortal,
Batman: Dez Noites da Besta e Batman: Uma Morte em Família. Através destas narrativas,
pudemos diagnosticar e confrontar dois eixos temáticos. O resultado desta operação nos
permite visualizar e investigar as redes que compuseram o imaginário sobre as ameaças nos
EUA durante a II Guerra Fria, compreendendo seu papel na formação da sociedade
contemporânea.
Analisando comparativamente estas fontes, identificamos assim dois eixos temáticos
principais que se relacionam com o panorama político e cultural dos EUA neste período. O
primeiro aponta para a política interna dos EUA, ao tratar das relações entre identidade e Mal-
Estar na pós-modernidade, construídas a partir do avanço de um programa político e
econômico neoliberal, que culminou com a desestruturação das redes de proteção do Estado
do Bem-Estar Social. Com este intuito, analisamos as graphic novels Batman: Ano Um e
159
Batman: A Piada Mortal. O mal-estar produzido por estas transformações se fez presente na
concepção de Gotham City como um ambiente recheado de tragédias sociais. Em Ano Um, a
cidade é permeada de corrupção e crimes, um local em que o Estado falhou em sua função de
garantir a segurança, tornando-se um agente de interesses privados, ligados ao crime
organizado. Nesta sociedade proliferam-se estranhos, aqueles que não se enquadram nos
mapas cognitivo, moral ou estético de um mundo social. Os estranhos aqui são as massas
empobrecidas, os destituídos de um lugar na sociedade de consumo yuppie da década de
1980. A violência urbana e o sentimento impotência do indivíduo em alterar sua própria
condição de vida são temores frequentes, numa cidade onde o controle social funciona através
da tanto do uso de violência policial quanto através de chantagens, sequestros e atentados.
Diante disso, observamos a construção de um modelo paradigmático de herói capaz de fazer
frente àquela situação, envolvendo os dois protagonistas desta história: Batman e Gordon.
Em contrapartida, na graphic novel A Piada Mortal, protagonizada pelo Coringa, o
maior inimigo de Batman, os medos se tornam menos visíveis e palpáveis. Eles residem no
temor dos indivíduos frente ao não sucesso diante da desestruturação do Estado do Bem-Estar
Social e a sensação de incerteza que permeia a sociedade pós-moderna. A trama gira em torno
de um ataque do Coringa a três personagens: Barbara Gordon, que fora a Batgirl, a seu pai o
comissário de polícia e indiretamente ao Batman. Através de suas ações, o vilão tenta
comprovar que ele não é um estranho a sua sociedade, mas sim um produto dela, destruindo a
vida de Gordon para demonstrar que qualquer um poderia enlouquecer, bastando para isso um
dia ruim. Cabe ressaltar que a atmosfera de medo diante da incerteza pós-moderna não se
diluiu ao fim dos anos de 1980. As transformações observadas aqui ganharam novos
contornos através do universo ficcional de Batman nos anos seguintes.
O segundo eixo aborda as interações entre a política externa da Doutrina Reagan, os
embates entre diferentes culturas políticas e o imaginário da ameaça nos Estados Unidos,
160
durante a Segunda Guerra Fria através dos conjuntos simbólicos, que compõe o binômio
herói/defensor, bem como seu contraponto, o de vilão/ameaça, nos arcos de histórias
“Batman: Dez Noites da Besta” e “Batman: Uma Morte em Família”. A temática da ameaça
ao longo da II Guerra Fria ganhou cores próprias. Durante a década de 1980, o discurso
anticomunista ganhou nova força, através da veemente defesa de Ronald Reagan de que os
Estados Unidos deveriam adotar uma posição de enfrentamento deste “arquiinimigo” da
América, como forma de restaurar a glória nacional.
Através desta política, reconstruiu a idéia de missão nacional, como atesta seu discurso
inaugural como presidente dos EUA: Somos uma nação grande demais para nos limitarmos
a sonhos pequenos. Não estamos, como alguns gostariam de nos fazer acreditar, condenados
a um inevitável declínio... Temos o direito de sonhar sonhos heroicos
178
. Contudo, esta
bipolarização teve que se tornar mais flexível, adaptando-se a um novo cenário político e
cultural, no qual o surgiam novos e importantes elementos, como a nova corrida armamentista
e a ascensão do fundamentalismo islâmico no tabuleiro estratégico global. Estes elementos,
que como vimos, passaram a ocupar um lugar central neste imaginário, não deixaram de estar
inseridos em uma retórica bipolar. Desta forma, a semântica anticomunista da luta da América
contra o Império do Mal, incorpora a necessidade de ambiciosos projetos de segurança,
capazes de garantir a defesa doméstica, bem como a luta contra o fundamentalismo terrorista.
Ainda que nos afastemos de uma perspectiva teleológica desta temática, não podemos
deixar de notar que estas novas representações de ameaças, se tornaram fundamentais na
redefinição da forma como a nação norte-americana se imaginou nos anos seguintes. Embora
tenha representado para os EUA a vitória do american way of life”, o fim da Guerra Fria em
1989 representou também o fim de uma ordem bipolar, que ao longo de quase cinquenta anos,
norteou a construção das relações de identidade e alteridade.
161
Tal qual um sismo, decorrente do movimento em falhas geológicas, os tremores
decorrentes desta ruptura de um dos paradigmas identitários dos Estados Unidos, no final do
século XX, foram sentidos em diferentes campos da cultura e da política nos anos seguintes.
A chamada “Nova ordem Mundial” nascia sob o signo das figurações que podem ser lidas em
Dez Noites da Besta e Uma Morte em Família. A imagem conceito do inimigo foi assim
deslocada e pulverizada, em topoi sociais e culturais mais do que em um topoi político
bipolarizado. Enquanto na Guerra Fria, a pergunta chave para se identificar o inimigo era: “de
qual lado você está?”, neste novo mapa da ameaça, a pergunta central seria “quem (ou, o que)
é você?”. O medo, era a face – ou melhor, a não face – do desconhecido, que assombrava com
previsões de incerteza sobre as possibilidades de manutenção de um mundo seguro.
162
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Glossário
Arco de História: Termo apropriado da linguagem televisiva que designa uma história que
leva várias edições para ser contada dentro de um mesmo título de uma série contínua.
Também chamados de sagas.
Arte-finalista: Adiciona tinta nanquim aos desenhos, além de produzir texturas, sombras e
meio-tons.
Balão: Recurso utilizado para inserir falas, sons e pensamentos no desenho. Possui diversas
variáveis que podem ser utilizadas para expressar a intensidade ou a origem da fala.
Civil: Pessoa não pertencente a comunidade de leitores de HQs.
Colorista: Profissional responsável por colorir os desenhos. Com o advento da edição e do
tratamento digital de imagens, o trabalho dos coloristas se tornou cada vez mais
informatizado.
Continuidade: Conceito de trabalho introduzido na década de 1960 nas histórias em
quadrinhos de super-heróis. É a unidade e a coerência narrativa do universo ficcional de cada
personagem, formada dentro de suas ries contínuas. Cada história funciona como um
capítulo na biografia/cronologia dos personagens, acompanhada ao longo dos anos pelos fans.
Eventos ocorridos no passado devem ser respeitados pelas histórias do presente, construindo
um cânone em torno do universo ficcional de cada personagem.
Desenhista: Primeira pessoa da equipe de arte. Ele divide com o roteirista a tarefa de contar a
história, fazendo desenhos a lápis.
Editor: Seleciona e aprova os roteiros e desenhos a serem publicados, definindo o perfil do
universo ficcional de cada personagem. É também o responsável pela manutenção da
continuidade cronológica das séries continuadas.
Enquadramento: a maneira como o desenho se posiciona no quadro, determinando seu
ângulo, perspectiva e elementos que fazem parte de sua composição.
Flashback: Interrupção de sequência cronológica de uma narrativa pela interpolação de
eventos ocorridos anteriormente. Podem ser incorporados recursos que permitam ao leitor
compreender rapidamente que aquela ação em verdade ocorreu em um tempo passado. Os
mais comuns são colorização diferenciada, quadros arredondados e pequenas cabeças do
narrador dentro das legendas.
Graphic Novel: Edições em formato especial com histórias mais longas, de maior
complexidade e escopo do que as histórias de uma edição. As graphic novels possuem muitas
vezes com formato de luxo e preços diferenciados voltadas para um público mais adulto.
Podem ser publicadas em um ou vários volumes
Legenda ou recordatório: Caixa de texto que aparece no quadro com uma frase ou
fragmento de frase. São utilizadas de forma recorrente para expressar pensamentos dos
personagens, mudanças de tempo ou local em que transcorre a ação, como um veículo para
170
um narrador onisciente ou como nota de rodapé para alguma informação inserida no texto.
Em português são chamados também de recordatórios.
Letrista: Profissional que insere as letras nos balões e nas legendas, fechando os quadros com
tinta nanquim.
Linhas de ação ou movimento: Linhas que indicam o movimento de um personagem.
Linhas radiais: Mostram que um objeto é quente, radioativo ou energizado. Representam
também dor ou um estado de perturbação emocional do personagem.
Maxisséries: Similares às minisséries. Contudo seu formato é maior, podendo se estender por
vários meses.
Megasséries: Histórias que se desenvolvem ao longo de diversos títulos de uma série
contínua. Seus formatos são gigantescos (Batman: Terra de Ninguém, publicada em 1999 teve
ao todo 1449 páginas), envolvendo diversos artistas e editores.
Minisséries: título que tem uma história fechada, com um número limitado de edições.
Similar as Maxisséries.
Quadro de página inteira: Uma página com um único desenho, criando maior impacto
visual sobre uma determinada cena. Pode-se também criar um grande painel de página dupla.
Quadro: Uma caixa com um desenho. O posicionamento dos quadros expressa noções de
tempo, dando a sensação de movimento aos desenhos, fazendo parte da técnica narrativa.
Retcon: Sigla em inglês para continuidade retroativa. É quando o cânone do personagem é
alterado por uma mudança inserida em uma história do presente.
Roteirista ou escritor: Quem elabora a história ou argumento. O texto pode ser escrito na
forma de um roteiro completo ou de argumento prévio. O roteiro completo se assemelha aos
roteiros de cinema, detalhando as descrições dos desenhos, dos quadros e dos textos. o
argumento prévio, apresenta uma descrição da história que será desenvolvida pelo desenhista,
voltando depois para o roteirista para que as falas e os textos sejam inseridos nos desenhos.
Série contínua: título de um personagem publicado regularmente, na maioria das vezes com
periodicidade mensal, formando uma continuidade cronológica. Suas histórias podem ser
fechadas em uma mesma edição como podem se estender por várias edições.
Splash page: Página inteira com uma ou duas imagens, incorporando o título da história,
créditos e outras informações que caracterizem a apresentação e a identificação da história. É
geralmente a primeira página de uma edição. Contudo pode ser posicionada posteriormente,
normalmente até a página quatro, como forma de criar um pequeno prólogo a história a ser
narrada.
Tipografia: O formato, o tamanho e o tipo das letras utilizadas. São também recursos
utilizados para exprimir sentimentos e ações.
171
ANEXOS
172
Cronologia: Era Reagan e da II Guerra Fria
1979
Genocídio do Khmer Vermelho.
Revolução Islâmica no Irã.
Início da Revolução Sandinista na Nicarágua.
Início da revolução em Granada.
1979-1981
Crise dos reféns do Irã.
1979-1989
Invasão Soviética no Afeganistão.
1980
Em 4 de novembro os republicanos Ronald Reagan e seu vice
George H. Bush vencem a eleição presidencial dos EUA.
Boicote norte-americano aos Jogos Olímpicos de Moscou.
1980-1988
Guerra Irã-Iraque
1980-1999
Guerra Civil no Peru (entre o governo e a guerrilha maoísta Sendero
Luminoso).
1981
Ronald Reagan é baleado em um atentado.
Início da atividade dos Contra com apoio da CIA na Nicarágua.
Greve dos controladores de voo nos EUA termina com mais de
11000 profissionais demitidos pelo presidente.
1982
Invasão do Líbano por Israel.
1983
Primeiro registro de uso da expressão “Império do Mal” por Ronald
Reagan, em um discurso para a Associação nacional de Evangélicos
– NAE.
Início do “Projeto Guerra nas Estrelas”.
O voo comercial Korean Air Lines 007, que fazia a rota Nova
Iorque - Seul é abatido no ar após invadir o espaço aéreo soviético.
Atentado terrorista suicida contra militares dos EUA mata 242
soldados em Beirute, Líbano.
Invasão de Granada pelos EUA.
1984
Boicote Soviético aos Jogos Olímpicos de Los Angeles.
Ronald Reagan é reeleito presidente nos EUA.
1895
Início da Glasnost e da Perestroika na URSS.
Descoberto o Buraco na Camada de Ozônio na Antártica.
1986
Apoio financeiro e logístico dos EUA aos mujahedins no
Afeganistão contra as forças soviéticas.
Acidente Nuclear de Chernobyl na Ucrânia – URSS.
1986-1987
Escândalo do Irã-Contra
173
1987
Em um discurso na Alemanha ocidental, Reagan desafia Gorbachev
a derrubar o Muro de Berlim.
Assinatura do Tratado de Forças Nucleares de Alcance
Intermediário – INF, entre os EUA e a URSS.
1988
George H. Bush vence as eleições presidenciais nos EUA
1989
Derrubada do Muro de Berlim.
Revolução anticomunista na Romênia
Início do Movimento Separatista de Aceh (Indonésia)
Revolução de Veludo (Tchecoslováquia)
1990
Guerra de Secessão da Eslovênia contra a Sérvia
Conflitos religiosos e separatismo na Caxemira
Invasão do Panamá pelos EUA
Invasão do Kuwait pelo Iraque
1991
I Guerra dos EUA contra o Iraque
Dissolução da URSS
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