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Paula Patrícia Serra Nabas
Francisquetti
Ana Mendieta:
atravessamentos em um
coração desprotegido
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Interunidades de Estética e História
da Arte para obtenção do título de Mestre
em Estética e História da Arte
Orientador: Prof. Dr. Artur Matuck
São Paulo

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fi ns de estudo ou pesquisa,
desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
PCD
Francisquetti, Paula Patrícia Serra Nabas
Ana Mendieta: atravessamentos em um coração desprotegido / Paula Patrícia
Serra Nabas Francisquetti; orientador Artur Matuck. – São Paulo, 2009.
153 p.
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação Interunidades de
Estética e História da Arte) – ECA/FAU/FFLCH - Universidade de São Paulo.
1. Mendieta, Ana 1948 -1985. 2. Arte – Experiência - Recepção estética.
3.Atravessamento.
I. Título. II. Matuck , Artur.
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Nome: FRANCISQUETTI, Paula Patrícia Serra Nabas
Titulo: Ana Mendieta: atravessamentos em um coração desprotegido
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
Interunidades de Estética e História da Arte da Universidade
de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Estética e
História da Arte
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. __________________________________ Instituição ________________________
Julgamento _____________________ Assinatura ________________________
Prof. Dr. __________________________________ Instituição ________________________
Julgamento _____________________ Assinatura ________________________
Prof. Dr. __________________________________ Instituição ________________________
Julgamento _____________________ Assinatura ________________________
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Agradecimentos
À
minha família pelo apoio respeitoso e carinho-
so: Luiz Aéssio Francisquetti, Ana Alice Serra
Nabas Francisquetti, Luiz Antonio Francisquetti,
Liliane Dias de Brito e Elora de Brito Francisquetti.
À Noemi Moritz Kon por sua abertura, franqueza e delicadeza ao testemunhar
meu texto, desde o seu nascimento.
Ao Sergio Kon pelo cuidado na diagramação do trabalho.
Aos amigos Filipe Ferreira e Juliano Garcia Pessanha pela interlocução, leitura,
sugestões e incentivo.
À Meire Gomes por sua revisão parceira, respeitosa e cuidadosa.
Ao Luiz Gonzaga da Silva Neto pela leitura delicada dos poemas e comentários.
Ao Sidney de Campos, professor de inglês, que me ajudou nas traduções.
Aos meus parceiros e amigos da Cia Teatral Ueinzz: Ana Carmen Del Collado,
Cássio Santiago, Elisa Band, Peter Pál Pelbart, Erika Inforsato, Eduardo Lettiere, Isa
Cremonine Silva, Alexandre Antunes, Maria Yoshiko Nagahashi, Fabrício Pedroni,
Amélia Montero de Melo, Leo Lui Cavalcanti, Ana Goldenstein Carvalhaes, Onés
Antonio Cervelin, Valéria Felippe Manzalli, Adélia Faustino, Luis Guilherme Cunha,
John Laudenberg, Catherine de Lima, Simone Mina, Alessandra Domingues, Patrí-
cia Brito.
Aos queridos amigos pela presença calorosa em minha vida: Renata Puliti, Marta
Okamoto, Nelson Motta Mello Filho, Silvio Hotimsky, Regina Elisa de Oliveira Fran-
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 :
    
ça (Naíza), Lia Yara Mirim, Lívia Mirim Nery, Kátia Jarandilha dos Santos, Lígia Reis
Queiros, Danielle Blanchard, Néle Azevedo, Elaine Armênio, Zina Filler, Renata U.
Cromberg, Luciana K. alemberg, Erika Miaciro Costa e Yara Machado.
Ao Carlos Alberto Godoy e à Maria Rita Kehl, por diferentes escutas.
À Ilva Silva e à Janete Duarte Gomes pelo apoio logístico tão precioso.
À Galerie Lelong (Nova York) que cedeu as imagens de Ana Mendieta colocadas
nesta dissertação.
Ao Programa de Pós-Graduação Interunidades de Estética e História da Arte da
Universidade de São Paulo pela oportunidade de trabalho.
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Resumo
, P. P. S. N. Ana Mendieta: atravessa-
mentos em um coração desprotegido. . . Dis-
sertação (mestrado) – Programa Interunidades de
Estética e História da Arte, Universidade de São
Paulo, São Paulo, .
A misteriosa força vulcânica presente na obra de Ana Mendieta e em meus sonhos,
fecundados por ela, me levaram a escrever esta dissertação, em que busco nomear o
que seria essa minha experiência de recepção estética. Para descrever essa experiência,
que teve um efeito prismático em mim e no meu texto, utilizei alguns guias e algumas
ideias como as de atravessamento, instante -já, oco prismático, coração desprotegido,
entre outras. Esta dissertação divide -se em quatro partes. A primeira consiste numa
breve biografi a de Ana Mendieta e na apresentação de seu trabalho. A segunda parte
apresenta uma refl exão sobre a questão do feminino e a da alteridade. A terceira con-
tém refl exões teóricas sobre arte, experiência, corpo e duração. E, nalmente a quarta
parte, o coração deste texto, relata minha experiência de recepção estética da obra da
artista através das ideias citadas acima.
Palavras -chave: Experiência. Recepção estética. Atravessamento.
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Abstract
, P. P. S. N. Ana Mendieta: traverses
in an unprotected heart. . . Dissertação (mes-
trado) − Programa Interunidades de Estética e His-
tória da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo,
.
e mysterious volcanic force present in the work of Ana Mendieta and in my dreams,
as her work fertilized them, led me to write this essay in which I seek to name that
which would be something like my experience of aesthetic reception. To describe this
experience, which had a prismatic eff ect on me and my writing, I used some guide-
lines and some ideas such as to be traversed, now-instant, prismatic hollow, unpro-
tected heart, among others. is dissertation is divided into four parts. e rst is a
biography of Ana Mendieta and her work. e second part presents a discussion on
the issue of women and alterity. e third contains theoretical refl ections on art, expe-
rience, body and duration. And fi nally the fourth part, the heart of this text, depicts my
experience of aesthetic reception of her work through the use of the ideas above.
Keywords: Experience. Aesthetics reception. Traverse.
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Lista de ilustrações
  Hans Breder. La ventosa (A Ventosa), 1973. Silver print, 25,4 x 25,4 cm. Autorizada
pelo artista por intermédio da Galeria Lelong (Nova York).
  Bird Transformation (Transformação em Pássaro), 1972.
Fotografi a colorida, 25,4 x 20,3 cm. Coleção privada, Nova
York. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Soul − Silhouette of Fireworks/Anima − Silueta de Cohetes (Alma − Silhueta
de Cohetes), de 1976.
Slide colorido 35mm. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled (Sem Título), 1983. Areia e cola sobre madeira, 160 x 94,9 x 51 cm. Coleção
do patrimônio de Ana Mendieta. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
 - Untitled/Facial Hair Transplants (Sem Título/Transplante de Pelos Faciais), 1972.
Documentação original: slide colorido 35 mm. Cortesia da Galeria Lelong
(Nova York).
  Sweating Blood /Still 7 (Suando Sangue/ Quadro 7), 1973.
Quadro 7 de Super-8, lme silencioso, 2min 42sec.
Coleção do Patrimônio de Ana Mendieta. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled − Body Tracks (Sem Título − Rastros do Corpo), 1974.
Fotografi a colorida, 25,4 x 20,3 cm. Documentação original: slide colorido 35 mm.
Coleção Carlos e Rosa de La Cruz. Cortesia da Galeria Lelong
(Nova York).
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 :
    

  Untitled/Grass on Woman (Sem Titulo/ Grama sobre Mulher), 1972.
Fotografi a colorida, 20,3 x25,4 cm. Documentação original: slide colorido 35 mm.
Museu Hirshorn de Escultura de Jardim/ Presente de Raquelín Mendieta em
homenagem a Olga Viso (2003). Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Image from Yagul (Imagem de Yagul), 1973.
Fotografi a colorida, 50,8 x 33,7 cm. Coleção de Hans Breder. Documentação
original: slide colorido 35 mm. Cortesia da Galeria Lelong
(Nova York).
  Rock Heart with Blood (Corazón de Roca con Sangre) (Coração de Rocha com
Sangue), 1975. Quadro (5) de Super 8, lme silencioso, 3min 3sec.
Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled/ Buryal Pyramid (Sem Titulo/ Pirâmide Tumular), 1974.
Quadro de fi lme Super-8, silencioso, 3min 15sec. Cortesia da Galeria Lelong
(Nova York).
  Untitled /Flower Person /Still 5 (Sem Título/Pessoa Flor/ Quadro 5), 1975.
Quadro de fi lme Super-8, lme silencioso, 6 min 7 1/2 sec. Cortesia da Galeria
Lelong (Nova York).
  Soul Silhouette on Fire (Alma Silueta en Fuego) ( Alma Silhueta em Fogo), 1975.
Fotografi a colorida, 25,4 x 20,3 cm. Documentação original; slide colorido de 35
mm. Coleção Dillon Cohen. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled − Varadero (Sem Título − Varadero), 1981.
Fotografi a preto e branco, 20,3 x 25,4 cm. Coleção do patrimônio de Ana Mendieta.
Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Bacayú [Light of Day (Rupestrian Sculptures)] (Bacayú − Luz do Dia − Esculturas
Rupestres), 1981.
Fotografi a em preto e branco, 101,6 x 135,3 cm. Coleção de Raquelín Mendieta.
Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Itiba Cuhababa − Old Mother Blood − Rupestrian Sculptures (Itiba Cuhababa − Velha
Mãe de Sangue − Esculturas Rupestres), 1981.
Fotografi a em branco e preto, 152,4 x 101,6 cm. Coleção Ignácio C. Mendieta.
Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled / Black Venus ( Sem Título/ Vênus Negra), 1980.
Fotografi a em preto e branco, 101,6 x 139,7 cm. Coleção Patrimônio de Ana
Mendieta. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
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 :
    

  Untitled (Sem Título), 1984.
Desenho sobre folha, 15 x 10,2 cm. Coleção de Ramiro A. Fernández. Cortesia da
Galeria Lelong (Nova York).
  Shell of Venus/ La Concha de Venus (A Concha de Vênus), 1981- 82.
Acrílico sobre papel amate, 61 x 40,6 cm. Fundação da família Ginny Williams.
Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  No momento da morte de Ana Mendieta (1985), foram encontradas essas quatro
esculturas, em confi guração similar. Elas não receberam um título. Não se sabe se
elas foram concebidas para serem expostas agrupadas ou uma a uma. Cortesia da
Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled / Blood and Feathers ( Sem Titulo/ Sangue e Penas), 1974.
Fotografi a colorida, 25.4 x 20.3 cm. Coleção de Raquelín Mendieta. Cortesia da
Galeria Lelong (Nova York).
  Ilustração − Untitled (Sem Titulo), 1980-84.
Óleo e caneta sobre pape, 21,6 x31,8 cm. Coleção de Heidi e Erik Murkoff , Los
Angeles. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Untitled − Silueta Series − Iowa (Sem Título − Série das Silhuetas − Iowa), 1977.
Fotografi a colorida, 33,7 x 50,8 cm. Documentação original: slide colorido 35 mm.
Coleção Permanente do Centro de Arte Des Moines. Cortesia da Galeria Lelong
(Nova York).
  Untitled/ Silueta Series/ Mexico (Sem Título/ Série das Silhuetas/México), 1976.
Slide colorido 35 mm. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
  Tree of Life (Árvore da Vida), 1976.
Slide colorido 35 mm. Cortesia da Galeria Lelong (Nova York).
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Sumário
Introdução 
primeira parte:
Uma trajetória através da biografi a e da obra de Ana Mendieta 
. Uma breve biografi a 
. Hans Breder e a Universidade de Iowa 
. Viagens ao México 
. A herança afro -cubana 
. O feminismo 
. Carl Andre e o minimalismo 
. Performance, body art, land art, body earth art 
. Os trabalhos 
.. Os primeiros trabalhos 
.. As silhuetas 
.. As esculturas rupestres 
.. Vênus Negra 
.. Os últimos trabalhos 
segunda parte:
O feminino e o outro 
. A guração do feminino é possível? 
. O mistério está entre nós que temos os pés
no chão e nos deslocamos… 
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terceira parte:
Breves articulações sobre arte, experiência, corpo e duração 
. Notas sobre a experiência 
. Algumas observações sobre arte e experiência
em Merleau -Ponty 
. Um breve passeio pela questão do corpo através
da psicanálise, de Nietzsche de Merleau -Ponty
e de Deleuze 
. Experiência e duração: caminhar sonhando 
quarta parte:
Atravessamentos em um coração desprotegido 
. O atravessamento 
. Tempos em jogo: duração e instante -já 
. O silêncio 
. Os pássaros e o tigre fatal 
. Os vulcões da Guatemala e o desalojamento 
. O sangue quente e o escuro como modo de ser 
. Tem um rio na gente que corre em direção
ao mundo 
. As tumbas mexicanas, a relva e o trágico:
uma imagem -respiração 
. Talento de árvore 
. Um punhado de terra do Nilo é uma silhueta
que é um punhado de terra do Nilo
que é uma silhueta que é… 
Referências 
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

Introdução
Quem já viu a esperança não se esquece dela. Procura -a sob
todos os céus e entre todos os homens. E sonha que um dia vai
encontrá -la de novo, não sabe onde, talvez entre os seus. Em cada
homem lateja a possibilidade de ser ou, mais exatamente, de tornar
a ser, outro homem.
Octavio Paz
De tudo o que é escrito amo apenas o que alguém escreve com
o próprio sangue. Escreve com sangue e dar -te -ás conta de que
sangue é espírito.
Nietzsche
Preâmbulo mínimo:
Algumas imagens são carregadas de palavras.
Algumas palavras são carregadas de imagens.
Algumas palavras são carregadas de terra, de estrela e do coração
escuro.
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 :
    


T
odo estudo, todo projeto é uma espécie de viagem,
de trajetória que nos faz penetrar numa terra desco-
nhecida e nos leva a descobertas a respeito do mundo
e de nós mesmos. Minha viagem começou na 
a
Bienal de São Paulo, em outubro
de . No espaço
1
dedicado à artista cubana Ana Mendieta, o assombro e a como-
ção tomaram conta de mim. Na primeira sala, mais escurecida, onde havia grandes
bancos de madeira, algumas pessoas assistiam atentamente a alguns fi lmes. Diante
de mim se descortina uma profusão de imagens. Numa delas, uma silhueta, forma-
da por inúmeras fl ores, desce a correnteza de um rio, como uma oferenda. Em ou-
tra, a artista, deitada numa antiga tumba mexicana, faz as pedras que recobrem seu
corpo deslizarem através do movimento de sua respiração. Era de tirar o fôlego! Em
outra sequência de imagens, repleta de lirismo, a artista se deita nua sobre um cora-
ção de animal recoberto de sangue. “Suando sangue é ainda outro fi lme dessa sala;
enigmático, mostra uma gota de sangue a escorrer lentamente pelo rosto da artista.
Logo após o início dessa descoberta do trabalho de Ana Mendieta, tive um so-
nho. Nele estou numa região de fl oresta da Guatemala, onde um vulcão vai entrar em
erupção. Tento escapar. Corro muito num chão quente, trêmulo e que mostra racha-
duras, fendas. Percebo que não é mais possível fugir. Em seguida, em meio a uma mata
densa, subo para uma região mais alta, onde entro numa casa e me deparo com uma
mulher e uma criança.
Esse sonho me confi rmou que eu devia seguir na pesquisa do trabalho de Ana
Mendieta, pois me mostrou que havia sido fi sgada, fecundada por suas imagens. Surgia
uma trilha fértil a seguir e não tinha mais como deixar de interrogar, com todas as mu-
lheres que fui e sou, a misteriosa força vulcânica presente na obra de Ana Mendieta e em
meus próprios sonhos. Mas afi nal, por que teria de escapar dessa força vulcânica? Não
escapei e, ainda com o chão a tremer sob meus pés, parti para minha pesquisa.
No início da dissertação, pesquisei sobre a possibilidade de fi gurabilidade do fe-
minino na obra de Ana Mendieta, mas, no seu decorrer, segui na direção de privilegiar
1 A seguir enumero o que foi apresentado do trabalho de Ana Mendieta na 27
a
Bienal de São Paulo. Na primeira
sala dedicada à artista cubana, havia quadro fi lmes curtos: “Suando Sangue”, de 1973; “Coração de Rocha com
Sangue”, de 1975; “Pirâmide Tumular”, de 1974; “Pessoa Flor”, de 1975. Nas outras duas salas, encontramos em
cada uma um fi lme (“Alma Silhueta em Fogo”, de 1975, e “Sinal de Sangue” número 2/ “Rastros do Corpo”, de 1974)
e várias fotografi as, alguns registros de performances e outros de trabalhos realizados na natureza. As fotografi as são
compostas por várias séries: 6 fotografi as de um conjunto de 12, que compõem a série “Obra Silhueta em Iowa”,
de 1976 -78; um conjunto de 12 fotografi as denominado “Obra Silhueta no México”, de 1977; um conjunto de 7
fotografi as da série “Sem Título (Transplantes de Pelo Facial)”, de 1972; um conjunto de 6 fotografi as denominado
“Sem Título (Vidro em Impressões sobre o Corpo)”, de 1972, e apenas uma fotografi a montada em caixa “Sem Título
(Varadero)”, de 1981.
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 :
    


o feminino como um performativo, como oportunidade para o novo, que pode, com
sorte, ganhar corpo numa experiência específi ca de recepção estética também marca-
da pelo feminino.
Na primeira parte do texto, faço uma apresentação da biografi a e do trabalho da
artista através de um percurso histórico. Na segunda parte, apresento dois textos com
algumas refl exões sobre a questão do feminino e da alteridade, que me serviram como
aproximações ao trabalho da artista. Na terceira parte, proponho algumas refl exões teóri-
cas sobre experiência, arte, corpo e duração, numa preparação para o que vem a seguir. Na
quarta parte, relato o impacto da força vulcânica do trabalho da artista cubana em mim,
assim como minha experiência de recepção estética, de mundo e uma refl exão sobre o
que é uma recepção estética. Mais do que tudo isso, é o relato de uma aprendizagem, de
uma iniciação, de uma abertura à vibração do mundo. Nessa parte, o coração deste escri-
to, discorro sobre as ideias de atravessamento, instante, silêncio, coração desprotegido….
Para narrar essa experiência, utilizei alguns guias como Clarice Lispector,
Marguerite Duras, Jorge Luis Borges, Ana Akhmátova, Octavio Paz, Maria Gabriela
Llansol, Rainer Maria Rilke, Gilles Deleuze, Maurice Merleau -Ponty, Friedrich
Nietzsche, Henri Bergson, Sigmund Freud, entre outros. O vaguear pelas palavras des-
ses escritores, poetas e fi lósofos fez engrossar um caldo que me possibilitou nomear
essa experiência vulcânica.
O contato que tive com a obra da artista Ana Mendieta provocou em mim uma
transformação. É interessante como o trabalho de um artista pode fecundar as pes-
soas e levá -las a novas experiências de mundo, a novas visões e estados. Deslocamen-
tos. Ganhei com esta pesquisa o presente de me iniciar na escrita de poemas. Ganhei
uma nova morada. As palavras e a escrita passaram a me habitar de uma forma dife-
rente de antes e, com elas, descobri uma liberdade antes insuspeitada. É como se um
pouco de água ali, outro pouco de água acolá, levassem à formação de um rio corrente,
riverrun
2
Fiquei por um tempo a matutar sobre por que fi z um texto assim: fi z para não ser
engolfada pela mudez, para não morrer. No decorrer dele, aprendi como um trabalho
de arte pode fecundar alguém, pode transformar as pessoas e, assim, ter uma potên-
cia de vida enorme. Aprendi que ainda hoje, no capitalismo avançado, um trabalho
de arte pode estar para além da mera mercadoria, do consumo estéril, o que nos leva
2 James Joyce começa o Finnegans Wake, o seu famoso romance -rio, com a palavra riverrun (uma conjunção de rio e
de correr).
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 :
    


a pensar numa crítica de arte que contemple essas questões. Isso sem esquecer que a
única crítica de arte que vale é aquela que desdobra “uma possibilidade de liberdade”
(, , p. ).
A obra de arte se realiza em quem tem dela uma experiência e essa experiência
pode ser muito diversa. A obra é também todo o desdobramento que a sucede. Não há
um jeito certo de olhar uma obra, de experimentá -la. No âmbito da recepção estética, é
assim mesmo: não há um certo ou um errado, apenas as experiências, os desdobramen-
tos, as transformações, enfi m, o rio que corre desde as obras e vai em direção ao mundo.
Quando uma arte entra em circulação no mundo, riocorrente entre rioscorrentes, es-
tabelece diálogos com outras artes, com outros; as artes se fazem nessa tessitura, nesse
emaranhado que se projeta em várias direções. Muitas vezes essas linhas que apontam
a direção da recepção de uma obra de arte se deparam com muros, com soterramentos
ou outros tipos de bloqueios, ou, ainda, seguem na direção de desvios, de fusões inusi-
tadas, de permutações, de transbordamentos e mais…
Além disso, é preciso pontuar que, sem um rasgo, este texto não seria possível.
Circunstâncias da vida me levaram ao rasgo, ao atravessamento, a uma abertura maior,
a uma maior porosidade em relação ao mundo. Quero acrescentar que sou grata a al-
gumas pessoas por me falarem sobre o rasgo de formas diferentes. Elas me ajudaram a
nomear essa experiência. Uma delas é Noemi Moritz Kon, que me apontou o rasgo a
partir das suas experiências de recepção estética e do famoso quadro de Lucio Fonta-
na, em que podemos ver uma tela perfurada, rasgada. A outra pessoa é Juliano Pessa-
nha, que me falou da fenda e de como ela nos convoca a celebrar o mundo, a celebrar a
tempestade plúmbea que se forma volumosa e se aproxima da praia. Alejandra Riera me
mostrou o rasgo a partir de sua experiência artística e de uma imagem impactante: uma
fotografi a de Graciela Carnavale (), em que pessoas presas numa galeria envidraça-
da, durante uma performance, quebram um vidro para poder sair desse cubo fechado.
Também nessa direção do rasgo e da fenda não posso deixar de citar a expe-
riência com meus parceiros da Cia Teatral Ueinzz
3
, parceiros de aventura, de risco;
3 A Cia Teatral Ueinzz tem doze anos de existência. É constituída por um coletivo de atores com trajetos de vida
os mais variados. Cada um traz, de seu percurso de fragilidades e tresloucamentos ou de seus colapsos de vida,
uma energia e um repertório singulares, que nutrem a criação do grupo. Ao longo desses anos foram mais de
duzentas apresentações públicas. Os três primeiros trabalhos foram dirigidos por Sérgio Penna e Renato Cohen, com
música de Wilson Sukorski. São eles: “Ueinzz, viagem a Babel”; “Dédalus” e “Gotham -SP”. A trupe apresentou -se
no Tucarena, Tusp, Teatro Ofi cina, Centro Cultural São Paulo, KVA, Sesc Pompeia, e fez turnées pelo Rio de Janeiro,
Belo Horizonte, Brasília e Fortaleza. Também foi convidada ao Festival Internacional de Teatro de Curitiba em 1999
e ao Porto Alegre em Cena em 2003. Participou em 2004 da Mostra de Artes do Cariri através do Projeto Palco
Giratório do Sesc. Em 2005 viajou a La Fonderie, a convite do Théâtre du Radeau, na França. No ano seguinte, teve
início um trabalho conjunto com a artista franco -argentina Alejandra Riera, que resultou em registros em vídeo de
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 :
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

experiência coletiva que me leva a um constante aprendizado, a uma abertura maior
em relação ao outro e ao mundo. Incluo aqui também aqueles com quem trabalho na
clínica, experiência também implicada com a aventura e o risco, na qual se vive rasgos
e se fala deles.
É função da arte destruir enquadramentos rígidos do mundo. É preciso rasgar
uma certa realidade, ou mesmo ser rasgado, para descortinar outros mundos… O atra-
vessamento que faz rasgo, ou é possibilitado por ele, nos aponta para uma fenda, uma
abertura -porosa, uma receptividade ativa, um oco prismático. Ele me levou à refl exibi-
lidade, um processo que produz uma transformação. Por um lado, uma obra singular,
como foi para mim a de Ana Mendieta, possibilita o acesso a imagens e fi gurações de
mim mesma insuspeitadas antes dessa experiência, por outro, minha experiência esté-
tica descortina novas facetas da arte de Ana Mendieta. Sobre esse aspecto, vejamos o
que Noemi Kon nos fala sobre o que pode ser uma leitura e que podemos transpor para
uma experiência de recepção de uma obra de arte:
Neste processo de leitura que se sustenta na refl exibilidade, nesta leitura de nós mes-
mos, via aquilo que não somos,o somos apenas nós que saímos transformados.
No ato refl exivo de leitura nada sai ileso, pois há também transitividade na refl exão:
modifi cam -se, assim, os outros dois vértices dessa relação triangular, que se con-
forma entre a obra, a leitura e o leitor. Por meio da leitura refl exiva e transitiva,
transformam -se tanto o leitor como a obra, pois esta última também se vê portando
uma outra face, uma nova face, dentre as múltiplas faces virtuais que pode assumir, e
que passa a ser construída nesse contato de leitura singular. (, , p.-)
O processo desta dissertação, sobretudo aquele apresentado na quarta parte, con-
templa o rasgo, o atravessamento, a refl exibilidade, a transitividade, a associação livre, o
devaneio. Quando os diques estão abertos, há refl exibilidade e transitividade, há devir.
entrevistas realizadas pelos atores na cidade de São Paulo, intitulada “Enquête sobre o nosso entorno”. O trabalho foi
apresentado em 2007, na Documenta XII, de Kassel, na Alemanha, para onde o grupo se deslocou e onde reativou
o dispositivo de entrevistas iniciado em São Paulo. Em dezembro deste mesmo ano, a companhia foi convidada pelo
diretor alemão Schliegensief a participar da ópera de Wagner “O Trem Fantasma”, no Sesc Belenzinho. Em seguida,
Cássio Santiago assumiu a direção artística do grupo, juntamente com a colaboradora e dramaturga Elisa Band,
e o grupo apresentou, em novembro de 2008 e em junho de 2009 no Centro Cultural B_arco, um conjunto de
ensaios abertos e experimentações cênicas com “Finnegans Ueinzz”, que agora estreia no Sesc Avenida Paulista. O
processo de trabalho do grupo durante a montagem de “Dédalus” e seus bastidores, ainda em 2001, foi objeto de
um documentário das cineastas Carmen Opipari e Sylvie Timbert, “Eu sou curinga, o enigma!”, fi nalizado em 2003.
Em 2007 Miriam Chnaiderman convidou o grupo para uma participação em seu fi lme “Sobreviventes”. Ambos serão
reapresentados por ocasião da Ocupação UEINZZ” (release apresentado ao SESC Paulista em setembro de 2009).
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 :
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

Uma presença porosa, uma presença não blindada e que se deixa atravessar, carre-
ga nela um oco prismático
4
, ou seja, uma abertura que é deiscência
5
da carne, convite,
oportunidade de aventura, de fecundação, de encontro, de acontecimento. É isso o fe-
minino. É isso o que possibilita uma transformação dos recantos do si mesmo, de uma
obra e do mundo. A partir daí começo meu trabalho, fruto de um contato com a obra
da artista Ana Mendieta que teve um efeito prismático em mim; processo de fecunda-
ção cubana, mexicana, taíno, neolítica… e de nomeação, de recriação.
O título Ana Mendieta: atravessamentos em um coração desprotegido aponta
que só desprotegido é que um coração pode se deixar atravessar, penetrar pela vibração
do mundo. Se o coração fi ca muito protegido, funciona mal, apaga as palavras, corrói sua
força. Só desprotegido e poroso é que um coração pode ser oportunidade para o nasci-
mento da palavra errante, excêntrica e do lançamento de grãos… instantes -semente. No
decorrer da quarta parte do texto delineia -se um corpo -coração desprotegido.
4 Entro mais no que penso sobre esse oco prismático no fi nal da quarta parte da dissertação.
5 Deiscência: “vocábulo vindo da botânica para referir -se à abertura espontânea dos órgãos dos vegetais quando
alcançam a maturidade, dispostos a fecundar e a serem fecundados” (
CHAUI, 1994, p. 470)
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primeira parte:
Uma trajetória através
da biografi a e da obra de
Ana Mendieta
Ah! Um lírio é o que procuro nas ilhas tenebrosas.
Herberto Helder
Uma obra para ser experimentada com o corpo inteiro: olhos na pele, ouvidos
no coração…
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
          
.
Uma breve biografi a
[…] só quando o homem toma conhecimento através de seu rude
olhar é que lhe parece um começo.
Clarice Lispector
U
m começo a partir do rude olhar uma breve bio-
grafi a da artista se faz indispensável num estu-
do como este, mas de forma alguma seria o caso
de ir atrás das mazelas do psiquismo da artista, o que seria inútil e sem sentido. Trata-
-se apenas de uma tentativa de contextualizar o trabalho da artista em um momento
pessoal/histórico/impessoal.
Ana Mendieta nasceu em Cuba, em , e morreu de forma trágica
6
em Nova
York, em . Fazia parte de uma família com tradição política, que participou tanto
da luta pela independência de Cuba, no fi nal do século , como da revolução de ,
quando Fidel Castro chegou ao poder. Em torno de , Inácio Mendieta, seu pai, pas-
sou a divergir de Fidel. Em , por motivo de segurança, ela e a irmã, Raquelín, foram
6 Em 1985, Ana Mendieta caiu da janela de um prédio em Nova York, onde morava com seu marido Carl Andre.
Esse evento fi cou cercado por mistério. Carl Andre chegou a ser julgado e foi absolvido. As feministas americanas
realizaram vários protestos após o incidente. Até hoje não sabemos ao certo o que teria acontecido: crime passional?
acidente? suicídio?
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
          
enviadas aos Estados Unidos, através da “Operação Peter Pan”, organizada pela igreja ca-
tólica americana e que pretendia “salvar” jovens cubanos do regime comunista.
Nos Estados Unidos, Ana Mendieta, com  anos, e sua irmã Raquelín, de 
anos, foram encaminhadas ao Campo Kendall, um campo para jovens refugiados cuba-
nos. Seguiram depois, a partir de Miami, sem uma família que quisesse adotá -las, para
Dubuque, em Iowa, e lá fi caram numa instituição residencial da arquidiocese católica.
Só voltaram a encontrar a mãe, Raquel, e o irmão, Inácio, no inverno de , quando
ambas já estavam graduadas no ensino médio. O pai, Inácio Mendieta, preso em Cuba,
só voltou a reencontrá -las em .
As irmãs Mendieta completaram o ensino secundário em escolas católicas de
Iowa, tendo o tempo todo de se deslocar entre diferentes instituições residenciais e fa-
mílias adotivas das cidades de Dubuque, Clinton e Cedar Rapids. Nesses locais, tive-
ram contato com jovens delinquentes. As irmãs passaram o período da adolescência,
período em si já complexo, num ambiente difícil e problemático, e, ainda, distantes da
família e do calor de sua terra.
Ana Mendieta teve de se desdobrar para conseguir viver nesse país estrangeiro
e radicalmente diferente de sua terra natal. Numa entrevista, republicada no Guia da
ª Bienal, a artista nos fala sobre a experiência arrasadora que foi para ela chegar aos
, onde se sentiu deslocada e distante de tudo. Segundo ela, a experiência do deslo-
camento, da distância e das diferenças levou -a a buscar lugares com os quais pudesse se
reconhecer. Ela encontrou na arte uma forma de ajudá -la nessa empreitada, nesse vi-
ver junto, sendo diferente. Nesse sentido, a arte foi sua possibilidade de respiração, um
meio de tornar a vida possível.
.
Hans Breder
e a Universidade de Iowa
No verão de , Ana Mendieta transferiu -se para a
Universidade de Iowa, onde recebeu o diploma de
bacharelado em artes em . No verão de , começou sua graduação em pintura.
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          
Conheceu Hans Breder, numa festa de Halloween também no ano de , ainda
recém -chegado à cidade. Logo depois, além de manter uma relação amorosa com
ele, passou a frequentar o Programa de Artes Intermídia, fundado e coordenado pelo
artista alemão. “Breder tornou -se seu mentor, companheiro, confi dente e inspirou a
artista com seu entusiasmo pela performance, pela arte conceitual e o trabalho multi-
mídia [intermídia talvez seja um termo melhor]” (, , p. )
7
.
Nos anos , Hans Breder esteve em Nova York, onde participou de vários happe-
nings e eventos ligados ao grupo Fluxus, experiência que teria levado o artista a se inte-
ressar por novas formas de arte, assim como a transformar suas discretas esculturas em
performances. Ele foi um dos primeiros professores de Iowa a ter uma câmara de vídeo
e a registrar os trabalhos feitos em estúdio. Hans Breder apresentou a Ana Mendieta
o grupo Fluxus, de arte conceitual e performance, assim como o grupo Acionismo Vie-
nense
8
, que faziam uma arte ritual e usavam sangue em suas ações.
Como os artistas do grupo Fluxus, Hans Breder dava ênfase ao caráter intermí-
dia, e não multimídia, no Programa que coordenava. O termo intermídia
9
, que tomou
fôlego nos anos  e , se refere a trabalhos de arte criados a partir do entrecruzamen-
to de diversas categorias, assim como de uma pluralidade de meios de expressão e de
mídias. E essa questão do intermídia está muito presente na arte contemporânea desde
esse momento, pois não há mais uma busca da pureza disciplinar dos meios artísticos,
como aconteceu no suprematismo e outras vertentes do modernismo.
Para Hans Breder (, ), a performance era um novo meio de expres-
são crítica que utilizava a tecnologia do vídeo como um meio para construir elos entre
as mídias e as disciplinas. Sua intenção era ativar o espaço entre as disciplinas, as mí-
dias e as formas de arte. Seus alunos eram estimulados a examinar lugares de acomo-
dação e de ruptura nas relações das pessoas com o mundo, assim como a explorar os
limites da percepção.
No Programa Intermídia aconteciam workshops semanais, onde se misturavam
estudantes de vários departamentos como teatro, lme, música, artes visuais, literatura
7 O livro de Olga Viso é o mais completo sobre a artista Ana Mendieta. Essa autora é uma das estudiosas que mais
pesquisou sobre a artista, e por esse motivo é minha principal referência.
8 Faziam parte do grupo Acionistas de Viena os artistas Gunter Brus, Otto Muhl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler,
que nessa época ainda eram pouco conhecidos nos EUA. Eles tinham noções profundas de catharsis física e espiritual.
Faziam uso de sangue e carcaças de animais em seus rituais artísticos. Mantinham uma relação com o romantismo,
o dionisíaco e a mitologia católica. Aspiravam a liberar os traumas e as ansiedades do pós -guerra.
9 Dick Higgins (VISO, 2004), um infl uente artista e teórico do Fluxus, foi o primeiro a usar o termo intermídia, em 1966,
para descrever as atividades de alguns artistas como Joseph Beuys, John Cage, George Maciunas, Shigeko Kubota,
Nan June Paik e Wolf Vostell, entre outros.
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 :
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
          
comparada, psicologia, matemática e antropologia. Esse programa foi o primeiro do
país a apresentar aos estudantes de arte uma abordagem interdisciplinar. O objetivo era
criar trabalhos e apresentá -los através do estabelecimento de canais não convencionais
de troca. Sabemos, por exemplo, que Ana Mendieta fez cursos no departamento de ar-
queologia e que usou suas pesquisas nessa área para realizar diversos trabalhos.
Esse Programa e o  (Center for New Performing Arts), fundado por Hans
Breder e outros professores, contribuíram de forma importante para a reputação da
Universidade de Iowa, que era, nesse momento, um dos mais avançados programas
de arte dos  com foco em performance. Aliás, muitos artistas radicais passaram por
Iowa a convite de Hans Breder por volta dos anos , como: Allan Krapow e Hans
Haacke (); Scott Burton, Willoughby Sharp, Marjorie Strider, Robert Wilson e
Ted Victoria (); John Freeman (); Charles Mattox (); Elaine Summers
e Cynthia Hedstrom (); Vito Acconci, Jon Gibson, Bruce Kurtz e Gretchen
Langstaff (); Jack Burnham, Michael Kirby, Lucy Lippard e John Perreault
(); Vito Acconci e Robert Barry (); Dotty Attie, Mac Adams, Lynda Benglis,
Lyn Blumenthal, Luis Camnitzer e Martha Wilson (); Mary Beth Edelson, Pe-
ter Frank, Kenneth Friedman, Anselm Hollo, Dennis Oppenheim, Nam June Paik e
Liliana Porter () (ver , , p. ).
Na década de , Hans Breder começou a usar o corpo como meio primordial
de sua arte, ao incorporar modelos às suas esculturas com espelhos (, ).
Algumas vezes, Ana Mendieta serviu de modelo para Hans Breder, como no trabalho
La Ventosa (), em que segura um espelho contra seu corpo em meio a ondas se
quebrando, na praia de La Ventosa, no México. Nesse trabalho e em outros dessa fase,
Hans Breder explorava a visão fragmentada do corpo e a transitoriedade.
A colaboração entre os dois artistas foi intensa. Ana Mendieta passou à perfor-
mance, encorajada por Hans Breder, que propunha aos alunos usar o corpo como ma-
téria para a arte, como superfície que poderia ser despida das referências pessoais. Ana
Mendieta envolveu -se com as atividades do  (Center for New Performing Arts),
onde conheceu vários artistas e críticos, como Sharp, Perreault, Acconci, Robert Wilson,
Lippard etc; ela também teve acesso a vários trabalhos experimentais (Nauman,
Oppenheim, Richard Serra, Keith Sonnier, William Wegman, entre outros).
Ana Mendieta teve contato com Scott Burton e Marjorie Strider, que vieram à
Iowa a convite de Hans Breder para participar de um curso sobre o ambiente urbano
em . Esse curso tinha como objetivo introduzir ideias a partir do trabalho de rua,
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 :
    
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Hans Breder. La ventosa (A Ventosa), 1973. Silver print.
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 :
    
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          
da instalação e da performance. Nesse verão, Burton fez a performance de sua peça Fur-
niture Landscape (Paisagem com Móveis), que consistia num conjunto de móveis colo-
cados numa área de mata do campus de Iowa (, , p. ).
Essa performance de Burton era inspirada em Marcel Duchamp, o pai espiritual
da geração dos anos . Ao usar móveis comuns numa situação inusitada, colapsava a
distância entre a arte e o mundano. Nesse momento, o conceito de trabalho em área
externa, em lugares específi cos, ainda era pouco conhecido. Burton teria infl uencia-
do Ana Mendieta, que estava para iniciar seu trabalho em lugares específi cos, fora do
estúdio.
No , Ana Mendieta entrou em contato com os fundamentos fi losófi cos da
arte conceitual, da performance e do working in process. Teve a oportunidade de tra-
balhar com Robert Wilson, diretor de teatro e de ópera experimentais, e com Elaine
Summers, que trabalhava com dança. Robert Wilson, em , ainda jovem, fez uma
residência artística em Iowa, a convite do . Segundo Viso (), ele morou
numa velha fazenda, onde oferecia workshops gratuitos sobre movimento e cons-
ciência corporal aos estudantes de Iowa. Desse trabalho em Iowa, resultaram duas pe-
ças, Handbill e Deafman Glance.
Também esteve em Iowa o crítico e curador Willoughby Sharp, que havia pro-
movido a arte cinética nos anos . Ele chegou a organizar uma revista chamada
Avalanche, que disseminava as novas formas de arte, como a arte do corpo, a arte con-
ceitual e o minimalismo (, ). Um de seus artigos, com o título Body
Works (Trabalhos Corporais), publicado no outono de , teria aberto caminho
para muitos artistas como Dan Graham, Vito Acconci, Larry Smith, Bruce Nauman,
Richard Long, entre outros. Nesse famoso artigo, ele discutia como os jovens artistas
usavam seu próprio corpo como material de arte, como material escultural, aliás, um
material vivo.
O ensino de Hans Breder sobre arte conceitual e performance partia de artistas como
Marcel Duchamp, Haacke, Kaprow, Yves Klein, Piero Manzoni e Robert Morris. Ele in-
sistia no uso do corpo e na quebra de barreiras entre a arte e a vida, o público e o privado,
os costumes e os tabus. É nesse ambiente efervescente que emerge a arte de Ana Men-
dieta. Ela desabrocha a partir de um diálogo intenso com a arte de seu tempo.
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 :
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
          
.
Viagens ao México
No momento em que desenvolvia suas atividades no
Intermídia, crescia em Ana Mendieta um interesse
por culturas antigas e indígenas. Ela fez um curso de arte primitiva, no outono de ,
e outro de antropologia, na primavera de . Em , viajou ao México para traba-
lhar no sítio arqueológico centro -americano de San Juan Teotihuacán, com seu professor
omas Charlton. Segundo Viso (), nesse período ela fez muitas anotações acom-
panhadas de desenhos esquemáticos dos ícones.
Ana Mendieta admirava o conhecimento dos povos primitivos a respeito da na-
tureza e de suas forças, assim como a visão holística desses povos. Teria dito que: o
senso de magia, de conhecimento e de poder da arte primitiva teria infl uenciado sua
maneira de fazer arte” (, , p. ). Viso () nota a coincidência do interesse
da artista cubana pela arte primitiva com a descoberta das feministas americanas dos
arquétipos das deusas femininas.
Em , Ana Mendieta fez sua primeira jornada ao México, acompanhada por
Hans Breder. Por quase uma década, eles trabalharam na região de Oaxaca, já conhe-
cida de muitos artistas, como, por exemplo, Robert Smithson, que havia trabalhado no
México e escrito o artigo “Incidentes de uma viagem -espelho em Yucatan”, publicado
na revista Artforum em setembro de .
Além da já conhecida infl uência de Robert Smithson e de seus trabalhos na na-
tureza, encontramos, na história de Ana Mendieta, o impacto provocado pela leitura
do livro O Labirinto da Solidão de Octavio Paz. Segundo Viso (), a artista cubana
teria se inspirado nas ideias de Octavio Paz sobre o exílio. A famosa expressão de Ana
Mendieta sobre ter sido arrancada do útero (natureza -terra natal), para se referir a sua
saída de Cuba, seria muito próxima às palavras do escritor mexicano.
No Vale do México, o homem se sente suspenso entre o céu e a terra e oscila en-
tre poderes e forças contrárias, olhos petrifi cados, forças que devoram. A reali-
dade, isto que nos cerca, existe em si, tem vida própria e não foi inventada pelo
homem como nos Estados Unidos. O mexicano [nos Estados Unidos] se sente
arrancado do seio desta realidade, ao mesmo tempo criadora e destruidora, mãe
e túmulo. Esqueceu o nome, a palavra que o liga a todas estas forças em que se
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 :
    

          
manifesta a vida. Por isto grita ou cala, apunhala ou reza, põe -se a dormir cem
anos. (, , p. -)
Ana Mendieta, como cubana, viveu algo parecido com o que viviam os mexica-
nos nos Estados Unidos a que Octavio Paz se refere. Sua arte, segundo ela mesma, era
uma tentativa de reconexão à terra -mãe. A artista também teria trabalhado sobre essas
polaridades apontadas por Octavio Paz, como: criação e destruição, mãe e túmulo. Sua
arte era um grito para o mundo
Outro aspecto salientado por Octavio Paz (, ), e que parece ter tocado
Ana Mendieta, refere -se à história do México, uma história do homem à procura de
sua fi liação, de suas origens. O homem mexicano estaria atrás de sua catástrofe. Ele
gostaria de voltar a ser sol, voltar ao centro da vida de onde foi violentamente desliga-
do (, , p. ).
A artista cubana, por sua vez, também andou à procura de suas origens e encon-
trou no México, a sua terra adotiva, uma história de conquistas que tem paralelos com
a história de Cuba e do Caribe. Certas declarações de Octavio Paz teriam sido motiva-
doras para seu trabalho, como, por exemplo: “o homem não está na história: é história
(, , p.  ) ou despertar para a história signifi ca adquirir consciência de nossa
singularidade” (, , p.).
Ana Mendieta dividiria com esse autor uma visão prevalente na região de Oaxaca
segundo a qual a humanidade existiria num estado de suspensão entre o céu e a terra,
numa relação simbiótica entre vida e morte. Essa presença quase obsessiva da morte na
cultura mexicana, com suas famosas celebrações anuais do Dia dos Mortos
10
e a ima-
gem da caveira que domina a arte popular, teria marcado fortemente a artista cubana.
Para Octavio Paz, o culto à morte dos mexicanos é um culto à vida da mesma for-
ma que o amor é fome de vida e também desejo de morte. E a familiaridade com a des-
truição e a morte derivariam não apenas de uma tendência masoquista, mas também
de um sentimento religioso.
Para os antigos mexicanos a oposição entre vida e morte não era absoluta quanto para
nós. A vida se prolongava na morte e o inverso. A morte não era o fi m natural da vida,
mas sim outra fase de um ciclo infi nito. Vida, morte e ressurreição eram estágios de um
10 No Dia dos Mortos, no México, muitas famílias colocam suas oferendas (velas, fl ores, frutas e papéis coloridos) nos
túmulos, para agradar seus entes queridos que voltam por poucas horas para desfrutar do que conheceram em vid.
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processo cósmico, que se repetia insaciável. A vida não tinha função mais nobre que
desembocar na morte, seu contrário e complemento; e a morte, por sua vez, não era um
m em si; o homem alimentava com sua morte a voracidade da vida, sempre insatis-
feita. O sacrifício possuía um duplo objetivo: por um lado o homem acedia ao processo
criador (pagando aos deuses, simultaneamente, a dívida feita pela espécie); pelo outro,
alimentava a vida cósmica e a social, que se nutria da primeira. (, , p. )
Essa polaridade vida e morte, apontada acima por Octavio Paz, está presente, de
forma recorrente no trabalho de Ana Mendieta, assim como a ideia da natureza cícli-
ca, cósmica, da vida. Inspirada em imagens relacionadas ao Dia dos Mortos, muito ce-
lebrado no México, Ana Mendieta produziu outras tantas obras, como Flower Person
(Pessoa Flor), de , uma silhueta de fl ores armada sobre uma jangada fl utuante
jogada na correnteza de um rio, e Nanigo Burial (Túmulo Nanigo), de , em que
ela desenhou uma silhueta com velas pretas acesas (discutido no próximo item . A he-
rança afro -cubana).
A artista cubana mostra -nos uma intimidade e um fascínio com a morte. Segun-
do Octavio Paz, diferente dos americanos e europeus que não podem nem proferir a
palavra morte, os mexicanos a frequentam, riem dela, dormem com ela, a acariciam e
a festejam (, , p. ).
Os livros de Carlos Castaneda, como Ensinamentos de Don Juan: um caminho
Yaqui para o conhecimento, de , e Jornada para Ixtlán: lições de Don Juan, de ,
foram lidos por muitos estudantes de Iowa, o que teria estimulado o trabalho des-
tes com modos não convencionais da percepção. No livro Jornada para Ixtlán: lições
de Don Juan, de , o narrador relata seu convívio com o feiticeiro Dom Juan e sua
busca por antigos caminhos indígenas de comunicação com a natureza e os espíritos.
Sua meta principal é descobrir como parar o mundo, para, assim, se abrir a uma nova
percepção deste.
Vários trabalhos iniciais de Ana Mendieta foram motivados pela leitura desse es-
critor, como, por exemplo, a performance da mulher que se transforma em pássaro, Bird
Transformation (Transformação em Pássaro), de , e Untitled (Blood and Feathers)
(Sem Título−Sangue e Penas), de , documentada em super -.
Em suas viagens de verão ao México, Hans Breder e Ana Mendieta tinham certa
predileção pela região em torno de Oaxaca. Chegaram também a trabalhar na praia de
La Ventosa, em Salina Cruz, no Istmo de Tehuantepec (quatro horas ao sul de Oaxaca),
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Bird Transformation (Transformação em Pássaro),
1972. Fotografi a colorida.
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conhecida pelo maior conjunto de ruínas da América Central, incluindo Chichén Itzá,
Palenque, Teotihuacán, Tula, Tulúm e Uxmal (, , p. ).
Ana Mendieta e Hans Breder frequentaram as ruínas de Mixtec e Zapotec, no
vale de Oaxaca, chamadas de Dainzú, Mitla, Monte Albán, Yagul e Zaachila, onde
haviam sítios arqueológicos ativos. Também tiveram acesso a um sítio mais reservado
como o de Guilapán De Guerrero, um complexo de igreja e monastério dominicanos,
do século , onde executaram muitos trabalhos no ano de . Nessas viagens, os
artistas tiveram uma intensa e frutífera troca. Eles preferiam locais não turísticos, onde
pudessem plasmar a fusão das culturas indígenas e católica, como nas pequenas vilas
próximas a Oaxaca, Teotitlán Del Valle e Mitla. Por exemplo, em Mitla, parte do com-
plexo eclesiástico foi construído sobre ruínas mesoamericanas.
Na última viagem que Hans Breder e Ana Mendieta fi zeram ao México, nos anos
, eles foram para a região montanhosa de Chiapas, particularmente a cidade de San
Cristóbal de las Casas, uma cidade colonial mágica. Eles também teriam visitado Ya-
lalag, uma vila remota, no alto da serra de Oaxaca.
A importância dessas viagens ao México para a constituição do trabalho de Ana
Mendieta é indiscutível. Delas surgiram várias imagens que proliferam no trabalho
da artista, como, por exemplo, a árvore da vida, que remete ao renascimento. Em
, na primeira viagem que a artista cubana fez para Oaxaca, ela conheceu a exu-
berante árvore genealógica da família Guzmán, que decora o teto da Igreja de São
Domingo; a partir daí, passou a incorporar ao seu trabalho essa imagem, também
muito presente na iconografi a popular mexicana (, ).
No verão de , a artista cubana fez uma viagem para documentar as múmias,
que tanto a interessavam, em Guanajuato. Ana Mendieta teria sido estimulada a pes-
quisar as múmias depois de ter visto a exposição do Metropolitan Museum, de -
-, Treasures of Tutankhamun (Tesouros de Tutankhamun) (, ). A artista
cubana chegou a fazer inúmeros trabalhos inspirados em múmias, que chamou de feti-
ches. Neles, envolvia -se com tecido branco ou preto, assim como compunha uma espé-
cie de cenário através da pintura de desenhos enigmáticos, como no trabalho e Black
Ix -Chell/El Ix -Chell Negro (A Ix -Chell Negra)
11
, de .
As silhuetas de armaduras que a artista colocava fogo eram inspiradas em fi gu-
ras de Judas, queimadas nas procissões mexicanas e em festas, como a de julho, na
11 Ix -Chell é o nome da deusa maia da medicina, do nascimento e da tecelagem.
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Igreja do Sangue de Cristo, no centro de Oaxaca. Vários trabalhos surgiram a partir
daí, por exemplo, Soul Silhouette of Fireworks/Anima Silueta de Cohetes (Alma
Silhueta de Cohetes), de .
Outro detalhe importante e que aparece de forma recorrente no trabalho da artista,
entre os anos de  e , é a postura da silhueta com os braços levantados para cima,
como é frequente ser encontrado na iconografi a católica mexicana, em imagens das cul-
turas do Paleolítico e do Neolítico europeus, e também nas civilizações do Oriente. Para
os estudiosos, essa posição dos braços teria relação com a postura das deusas arquetípicas,
mas também seria uma postura “abraçada pelas feministas nos anos  como um cami-
nho para evocar o feminino e se ligar ao passado antigo” (, , p. ). As fi guras
com braços levantados aparecem também em velas feitas no Vale do Teotitlán e revelam
a fusão das culturas pré -hispânicas com a tradição católica europeia.
Em , Ana Mendieta completou sua tese de mestrado em artes na Univer-
sidade de Iowa e decidiu se mudar para Nova York, em janeiro de .
.
A herança afro -cubana
A herança afro -cubana é muito presente no trabalho de
Ana Mendieta. Depois de chegar à Nova York, em
, a artista fez algumas viagens para Cuba, onde refez o contato com as tradições
afro -cubanas, já conhecidas desde a infância. Além disso, a artista manteve um diálogo
com vários artistas e estudiosos que trabalhavam com referências afro -cubanas como
Juan Sanches, Eduardo Costa, Gerardo Mosquera, Ricardo Rodríguez Brey, José Bedia,
Juan Francisco Elso, César Trasobares, entre outros.
Viso () nos diz que em Cuba podemos encontrar três diferentes ramos das
religiões africanas, correspondentes a diferentes rotas de escravos, e com diversas his-
tórias, como Regla de Ocha (Santería), Reglas Congo (Palo Monte) e o Abakuá (popular-
mente conhecido como naniguismo). Nas viagens a Cuba, Ana Mendieta testemunhou
várias dessas festas e rituais, sendo que a extrema capacidade de hibridismo e de adap-
tabilidade da Santería a teria impressionado, pois ela estava interessada nesses aspectos,
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Soul − Silhouette of Fireworks/Anima − Silueta de
Cohetes (Alma − Silhueta de Cohetes), 1976.
Slide colorido.
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
          
devido a sua prática artística que também incluía um manejo com diversas culturas
(, , p. ).
Já em Iowa, a artista cubana teria produzido trabalhos relacionados a Santería,
como Untitled Death of a Chicken (Sem Título – Morte da Galinha), de  (,
, p. ). Nesse trabalho, a artista nua segura uma galinha decapitada que se debate
e espirra sangue, ação que foi documentada em slides e fi lme super -. Essa foi uma de
suas primeiras performances no Intermídia e também mostra a infl uência do grupo dos
Acionistas de Viena (, , p. ). É interessante como Ana Mendieta transfor-
mava as práticas rituais na direção de seus próprios fi ns.
O trabalho Nanigo Burial (Túmulo Nanigo), de , que foi apresentado numa
galeria da rua Greene, em Nova York, tem tanto a infl uência mexicana quanto a
afro -cubana. Nesse trabalho, a artista desenhou uma silhueta, com  velas pretas
no chão da galeria, que eram continuamente acesas. A referência a Nanigo no título
do trabalho mostra a relação da artista com o Abakuá, que, nas suas práticas secretas,
faziam sacrifícios humanos e eram temidos pela comunidade cubana (, ,
p. )
12
.
Com esse trabalho, Ana Mendieta invocava os nanigos, as forças do bem e do
mal, e abria um canal entre os humanos e os deuses. Segundo Raquelín Mendieta
(, , p. ), Ana fazia isso para exorcizar seus medos e suas difíceis memórias.
Na minha opinião, a artista, através de sua arte e de suas narrativas, produz novas ela-
borações, novas escrituras, não apenas a partir de um arquivo individual, mas também
coletivo.
A artista usou os nomes dos orixás da Santería, do Abakuá e do Palo Monte para
dar títulos a vários de seus trabalhos no fi nal da década de  e início da . Ela ain-
da usou assinaturas ou anaforuanas
13
dos senhores do Abakuá para fazer inscrições em
seu trabalho com têmpera ou carvão (, , p. ). No trabalho Untitled Fetish
Series (Sem Título – Série Fetiche), de , realizado às margens do rio na região de
Old Mans Creek, a artista molda uma silhueta com areia e inscreve nela, com têmpera
vermelha, uma imagem inspirada nos anaforuanas do Abakuá (, , p. ).
São muitas as interpretações sobre o uso que Ana Mendieta fez das tradições
afro -cubanas e das culturas de outros povos. Juan Sanches, artista e amigo de Ana
12 Em 1912, numa guerra racista, cinco nanigos teriam sido linchados em Matanzas, Cuba. Toda essa guerra teria
afetado por muitos anos as práticas religiosas cubanas.
13 Os anaforuanas são desenhos esquemáticos, assinaturas, que servem para invocar os orixás.
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
          
Mendieta, comenta: “Mendieta, atraída pela linguagem e pela iconografi a africana,
afro -cubana e dos povos Taíno, as reinventou e transformou em algo que era uma re-
exão sobre si mesma (, , p. ).
Numa outra perspectiva, a artista Carolee Schneemann afi rma: a apropriação de
Mendieta das tradições rituais é como um desenho das energias psíquicas e das di-
reções físicas de outras culturas pelo viés de sua própria sensibilidade” (, , p.
). Considero essa uma boa interpretação, parece -me que a artista realmente cria algo
novo com essas energias.
Para Ligia Clark, o artista contemporâneo seria o propositor de “um rito sem
mito (, ). Ana Mendieta não escapou a essa ideia e trabalhou na elabo-
ração de ritos, como outros artistas de sua época; por exemplo, os brasileiros Ligia
Clark, Tunga e Hélio Oiticica. Segundo Sueli Rolnik, não haveria nem rito e nem
mito estabelecidos a priori; o mito surge a partir do ritual e está na contracorrente da
eternidade dos mitos do passado (, ). Os ritos não seriam um sacrilégio,
mas sim uma pantomina, ou seja, “uma ação que se manifesta por uma linha inco-
mum de expressão (, , p. ). Numa época privada de transcendência,
o artista contemporâneo procuraria no gesto um retorno possível ao cerimonial?
Para alguns, Ana Mendieta usaria as imagens e as narrativas de outros povos e
culturas para fazer uma refl exão sobre si mesma, uma espécie de exorcismo. Outros
consideram que ela usa esse elementos para compor uma espécie de autorretrato
(, , p. ). Embora reconheça que tenha aí algo da história pessoal e da
sensibilidade da artista, outra interpretação possível seria o uso dessas referências a cul-
turas marginais, esquecidas ou dizimadas, para criar uma língua própria, celebrar e dar
voz a um impessoal de um povo que falta (, )
14
.
Para Viso, a artista cubana não teria privilegiado apenas as referências às tradições
afro -cubanas, mas teria, sim, um interesse amplo pelas várias culturas antigas: as mesoa-
mericanas, como a maia, asteca, zapoteca, mixteca
15
; a Taíno e Siboney, dos antigos habi-
tantes das Antilhas pré -hispânicas; e a do Neolítico. Na época de sua morte, a biblioteca
da artista era prova do seu interesse por outras culturas, o que também atestam suas inú-
meras viagens, para além daquelas ao México e Cuba. Ana Mendieta teria visitado: a
14 Sobre essa discussão ver item 2.2.
15 Maia é a antiga civilização que se situava onde hoje temos o sul do México, Belize, Guatemala e Honduras. Nas
populações dos países citados, encontramos seus descendentes. Mixteca refere -se à antiga civilização e às pessoas
do sudoeste mexicano. Zapoteca, à antiga civilização e às pessoas do sudoeste mexicano. Asteca, à antiga civilização
e às pessoas da região central do México.
http: //www.angelfi re.com/ca/humanorigins/defi nitions.html (22/06/07).
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 :
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          
Inglaterra (Stonehenge -); a Itália (Roma, Pompeia, entre outros sítios,  -); a
Irlanda (New Grange, ); Malta (Hagar Qim, Mnajdra e Tarxien, ); e o Egito
(Abu Simbel, Giza, Karnak, Luxor, Saqqara e o Vale dos Reis, )” (, , p. ).
.
O feminismo
O feminismo teve uma presença importante tanto
na vida de Ana Mendieta como em seu trabalho. Já em
Iowa, a artista iniciou seu contato com o movimento das mulheres, que tomou fôlego
nas décadas de ,  e . Embora o feminismo não estivesse no centro dos debates
do Intermídia, as estudantes se mantinham a par desse movimento.
A historiadora da arte Sherry Buckberrough deu os primeiros cursos sobre ar-
tistas mulheres (como Mary Cassatt, Judy Chicago, Georgia O’Keeff e, Carolee
Schneemann, Louise Nevelson, Agnes Martin, Hannah Wilke, entre outras) na School
of Art and Art History, da Universidade de Iowa, na década de , e chegou a assistir
várias performances e documentários realizados pela artista cubana.
Na primavera de , Lucy Lippard, uma importante líder do movimento fe-
minista no campo da arte, conheceu Ana Mendieta durante uma visita que fez a Iowa
para uma palestra sobre o trabalho de mulheres artistas. Foi ela quem fez os primeiros
artigos sobre o trabalho de Ana Mendieta na imprensa de arte internacional, como a
revista Ms Magasine () e Art in America (). Além disso, Lippard possibilitou
conexões da artista cubana com muitas outras artistas mulheres.
Em fevereiro de , Ana Mendieta conheceu a artista Mary Beth Edelson,
quando foi com Hans Breder para Nova York para apresentar o trabalho Nanigo Bu-
rial (Túmulo Nanigo) numa galeria. Edelson era muito envolvida com o movimen-
to feminista e uma das fundadoras da ... Gallery. Aliás, foi ela quem apresentou
o livro e Great Mother: An Analysis of the Archetype, de Erich Neumanns, para Ana
Mendieta que, a partir daí, passou a usar nomes de deusas no título de seus traba-
lhos, sendo um dos primeiros o já citado e Black Ix -Chell/El Ix -Chell Negro (A Ix-
-Chell Negra), de , executado em Iowa e que se referia a uma deusa maia. Além
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 :
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
          
disso, como já dito, Ana Mendieta começou a usar com mais frequência, nas silhuetas,
a postura estática com os braços para cima das deusas clássicas orientais, que ela já ti-
nha usado no trabalho Laberinth Blood Imprint (Impressão Labiríntica em Sangue),
em Oaxaca, em .
Em , depois de sua mudança para Nova York, Ana Mendieta conheceu al-
gumas artistas com trabalhos importantes, como Nancy Spero, Carolee Schneemann,
Louise Bourgeois, entre outras. Com o apoio de Edelson, conseguiu entrar para a ...
Gallery, onde trabalhou até , organizando e instalando exposições, assim como
promovendo debates. Nessa galeria também teve a oportunidade de apresentar várias
exposições individuais. Além disso, Ana Mendieta se envolveu com o jornal feminista
Heresia, que surgiu em  e tinha como foco a arte das mulheres.
Em , Ana Mendieta foi curadora de uma exposição e organizadora de um
debate sobre as artistas do terceiro mundo. O painel de discussão recebeu o título e
Dialectics of Isolation: Exhibition of ird World Women Artists of the United States (A Dia-
lética do Isolamento: Uma Exposição das Mulheres do Terceiro Mundo nos ). A ar-
tista cubana manteve uma postura crítica com relação ao feminismo americano, que
lhe parecia um movimento da classe média branca anglo -saxônica que falhava em não
considerar a dimensão da cor. Segundo a artista, essa exposição afi rmava seu desejo de
continuar a ser outra, diferente, inclusive com relação às feministas americanas.
Ainda nos anos , Ana Mendieta foi associada ao feminismo essencialista devi-
do aos trabalhos em que o corpo emerge da terra, as referências às deusas femininas e a
encenação de um estupro violento que se encaixariam na busca das feministas por ex-
pressões essencialmente femininas e denúncias (, , p. ). Nos anos ,
essa noção do essencialismo perdeu força em seu trabalho. Além disso, a artista pouco
tinha em comum com as feministas que interpretavam todas as representações do cor-
po feminino como construções de caráter machista. Sabemos que a artista procurou se
afastar dessas associações, pois preferia que seu trabalho estivesse colocado num âmbi-
to mais universal (, ).
Percebe -se claramente no trabalho da artista uma marca do feminismo essencia-
lista, mas ele também aponta para algo além disso. O interesse da artista por outras
culturas não me parece passar apenas pela busca de uma essência feminina, mas vai em
direção a uma celebração dessas culturas ancestrais.
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 :
    

          
.
Carl Andre e o minimalismo
Em novembro de , em Nova York, Ana Men-
dieta conheceu Carl Andre na ... Gallery durante
o debate: “Como o movimento artístico das mulheres afeta as atitudes artísticas mas-
culinas?”. A discussão teria sido tão acalorada que fez cair das paredes duas fotografi as
que Ana Mendieta expunha na galeria. Depois do debate, Ana Mendieta foi convida-
da a participar de um jantar oferecido por Carl Andre, na época um importante artista
do minimalismo.
Antes disso, Ana Mendieta já teria tido contato com a arte de Carl Andre em
Iowa, numa conferência sobre arte contemporânea do escritor e curador John Perreault,
quando ele apresentou um slide do trabalho Spill Scatter Piece (Derramamento – Pa
Dispersa) (/), para falar sobre o acaso. Ana Mendieta também teria visto a expo-
sição

Years of American Sculpture ( Anos da Escultura Americana), apresentada
no Museu Whitney, onde havia sete trabalhos de Carl Andre. No ensaio da curado-
ra Marcia Tucker, publicado no catálogo dessa exposição, Carl Andre era apresentado
com outros artistas como um dos precursores do minimalismo (, ).
Ana Mendieta e Carl Andre se relacionaram por cerca de cinco anos, até a trági-
ca morte de Ana Mendieta em , quando ela caiu do 
a
andar do seu apartamen-
to no Greenwich Village, em Nova York. Nesse dia fatídico, Carl Andre estava casado
com a artista e era o único presente no apartamento no momento da queda. Apesar
desse fato impregnado de mistério e tristeza, é importante lembrar que os dois artistas
tiveram uma relação extremamente rica, com muitas trocas, viagens, amigos comuns,
afi nidades políticas e exposições.
Os dois artistas tinham trabalhos bem distintos, apesar de algumas preocupações
em comum, como a escala do trabalho, os materiais, a apresentação e o ambiente. A
colaboração recíproca que existiu entre eles teria modifi cado o trabalho de ambos. Por
exemplo, Carl Andre passou a usar materiais como terra, grama e fl ores. Ana Mendieta
direcionou seu trabalho às formas mais permanentes, que podiam ser apresentadas em
espaços interiores. O uso do plano horizontal, por parte de Ana Mendieta, teria relação
com o uso do chão feito pelo artista minimalista, como demonstra o trabalho Untitled
(Sem Título), de , uma espécie de silhueta feminina, formada por espirais, na for-
ma de uma placa, feita com areia e poliuretano.
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 :
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
          
Untitled (Sem Título), 1983.
Areia e cola sobre madeira.
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 :
    

          
Eles participaram juntos de algumas exposições. Em maio de , estiveram na
a
Bienal de Medellín, na Colômbia, onde foram recebidos como um importante casal
do mundo das artes. Eles foram alguns dos poucos artistas dessa Bienal a trabalhar no
espaço exterior, o que, aliás, era frequente para Ana Mendieta e incomum para Carl
Andre (ver , ).
Nessa Bienal, o trabalho de Ana Mendieta consistia numa silhueta feminina dese-
nhada num chão de grama, em que a linha do desenho da silhueta era formada por um
monte mais alto de grama, que ela teria plantado, fertilizado e molhado, como uma jar-
dineira e por grama que havia sido arrancada durante a realização do trabalho de Carl
Andre, que consistia num caminho, feito através da escavação da terra, que passava por
dentro da silhueta feita por Ana Mendieta, e por onde o espectador podia seguir. Carl
Andre plantou fl ores amarelas nesse caminho (ver , ). Podemos notar uma
grande interação dos dois trabalhos que se mostram numa interpenetração. Nota -se no
trabalho de cada artista transformações que parecem se dever a uma contaminação recí-
proca. O amor produz isso, ou seja, contaminações, nascimentos; também, muitas vezes,
o amor não é sufi ciente para se evitar o trágico e como nos diz Oscar Wilde: “o mistério
do amor é maior que o mistério da morte” (, [ - -], p. ).
Em outubro de , Carl Andre e Ana Mendieta participaram de exposições no
Museu de Arte Lowe, da Universidade de Miami, e no Museu de Arte da Universida-
de do Novo México, em Albuquerque. Em ambos os museus, o trabalho de Carl Andre
foi exposto no espaço interior, enquanto o trabalho de Ana Mendieta foi exposto fora
do museu. Para o Museu Lowe, Ana Mendieta planejou quatro peças que incorporavam
plantas nativas da Flórida. Uma delas era Mother of All ings (Mãe de Todas as Coisas)
ou Arbol de la Vida (Árvore da vida) e consistia numa escultura viva, formada por plantas
manipuladas pela artista e que receberam a forma de uma silhueta tripartida. Dentro do
Museu Lowe, Carl Andre apresentou um conjunto de antigas e novas esculturas.
Já na Universidade do Novo México, Carl Andre realizou um trabalho no espa-
ço interior do museu chamado de Palanca, um nome em espanhol para Lever (Ala-
vanca), em que usou tijolos de barro. Ana Mendieta, por sua vez, realizou duas obras
nas beiradas lamacentas do Rio Grande: duas fi guras abstratas que remetiam a deu-
sas femininas.
Os pontos de contato e as diferenças entre os artistas foram extensivamente arro-
lados pela crítica de arte. Carl Andre, no contexto da estética minimalista, se inspirava
em conceitos universais e na matemática:
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 :
    

          
[…] usava unidades idênticas e do mesmo tamanho, como, por exemplo, tijolos ou la-
tas, e as arranjava de modo a refl etir o senso de ordem da geometria euclidiana. Ana
Mendieta tinha como referências sua cultura, seu gênero e seu corpo. E, apesar de am-
bos os artistas usarem materiais naturais, o trabalho de Ana Mendieta era efêmero, as-
sim como sua fabricação evidenciava um toque pessoal. (, , p. )
É importante destacar que o minimalismo teria desbancado a escultura de seu
pedestal e artistas como Andre, Donald Judd, e Dan Flavin haviam mudado as con-
venções tradicionais da escultura como: representação, ilusionismo, artesanato, perma-
nência e ainda o objeto em si” (, , p. ). As proposições do minimalismo
passavam por algumas estratégias formais como estrutura, serialidade, unidades modu-
lares idênticas, estrutura geométrica e materiais industriais.
Os pós -minimalistas, entre os quais podemos incluir Ana Mendieta, transforma-
ram alguns preceitos minimalistas ao fazer uso de materiais não ortodoxos e insistir na
repetição em série, na fi sicalidade e no erotismo. Surgiram termos como “antiforma” e
desmaterialização para designar esse movimento que subvertia o minimalismo e tinha
como proposições: o antropomórfi co, o biomórfi co, o feito a mão, o uso de várias mí-
dias e o orgânico. Eva Hesse, Bruce Nauman, Mel Bochner e Lucas Sâmaras seriam
alguns dos expoentes desse movimento.
Há outro aspecto com relação aos pós -minimalistas que merece destaque: eles
voltam a trabalhar com a interioridade do indivíduo, o que havia sido duramente
atacado pelos minimalistas, com a crítica a uma subjetividade humanista e o uso de
materiais industriais. Mas os pós -minimalistas fazem esse retorno a interioridade em
novas bases, ou seja,operando subjetividades conscientes de um impessoal, permitindo a
realização de obras em que o corpo do artista é seu próprio material, um objeto de traba-
lho para si próprio (body art, performance, por exemplo)” (, , p. ).
Não podemos deixar de salientar a afi nidade política pela esquerda de ambos os
artistas. Com relação a Ana Mendieta, já foi citada a tradição política de sua família,
assim como ainda será explorada a dimensão política de sua arte. Carl Andre, por sua
vez, cresceu no Quincy, em Massachusetts, e se orgulhava de suas raízes operárias; -
cou famoso por trajar roupas de operário. Numa entrevista, ele teria dito sobre o mini-
malismo e a política: “Minha arte não refl ete necessariamente consciência política, mas a
política não analisada de minha vida. A matéria como matéria, em vez da matéria como
símbolo, é uma posição política e essencialmente marxista” (, , p. ).
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 :
    

          
Carl Andre foi membro e líder da Art Workers Coalition () (Coalizão de Tra-
balhadores Artistas), que tinha, entre suas reivindicações, algumas questões sobre a
comercialização da arte e também a inclusão das mulheres e das minorias no circuito
dos museus. Em , a  ganhou notoriedade com um protesto contra a guerra
do Vietnã, realizado no o (Museu de Arte Moderna de Nova York), em frente ao
quadro Guernica de Pablo Picasso. Segundo Roulet (), Carl Andre teria despon-
tado politicamente nos anos , enquanto Ana Mendieta teria se tornado uma ativista
importante nos anos , na segunda onda do feminismo americano.
Em março de , Ana Mendieta recebeu um prêmio que lhe concedia residên-
cia em Roma, onde teve a oportunidade de trabalhar num estúdio. A partir desse mo-
mento, Carl Andre e Ana Mendieta fi zeram inúmeras viagens pela Europa e puderam
conviver e fazer contato com inúmeros artistas e curadores. O casal era amigo do artis-
ta Sol LeWitt, com quem estiveram, em diversas ocasiões, em Spoleto, na Itália. Não
podemos deixar de mencionar que antecedeu a esse período europeu algumas viagens
e exposições em Cuba, em que Ana Mendieta apresentou Carl Andre para vários ar-
tistas cubanos.
Cabe destacar que ambos os artistas mantinham uma relação apaixonada com
o Neolítico, embora por perspectivas muito diferentes. Por exemplo, enquanto Carl
Andre era um observador intelectual das estruturas e da história, Ana Mendieta tinha
uma relação visceral e espiritual com esses sítios relacionados ao Neolítico. A artis-
ta cubana teria escrito num postal para Lucy Lippard: estar dentro de templos pré-
-históricos é como estar dentro de um útero. Eles são realmente aconchegantes, e tem
um forte poder, na sua escala humana. São mais dramáticos que os grandes monumen-
tos porque eles têm um espaço interior” (, , p. ).
Em Roma, em de , no mesmo dia do casamento no civil, Ana Mendieta e
Carl Andre comemoraram também o lançamento de um livro de litografi as que eles
produziram juntos e que recebeu o título de Duetto Pietre Foglie -Duet of Stone and Leaf
16
(Dueto de Pedra e Folha).
16 O livro foi impresso por Romolo e Rosalba Bulla. Teve uma edição de 40 exemplares e continha 20 gravuras de cada
artista, que se alternavam na sequência.
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 :
    

          
.
Performance, body art, land art,
body earth art
A arte de Ana Mendieta é complexa, multiforme e
relaciona -se com a performance, a body art, a land art,
a earth art, assim como com a escultura. Nela encontramos um diálogo intenso com
artistas de sua geração e de gerações anteriores como Hans Breder, Vito Acconci, Bruce
Nauman, Robert Smithson, Carl Andre, entre outros; também podemos encontrar res-
sonâncias de seu trabalho na obra de vários artistas que a sucederam como Janine An-
toni
17
, Tânia Brugera
18
e outros interessados em redefi nições radicais da arte.
No Programa Intermídia de Hans Breder
, interessava mais o processo de produ-
ção de um trabalho do que sua forma acabada. A preocupação era como transformar
uma ideia em arte. Importava o processo que podia levar a isso, sobretudo a concepção
do trabalho, a atitude, as decisões a serem tomadas. Fora do estúdio, na rua e na natu-
reza, os alunos trabalhavam criando situações efêmeras, transitórias.
Com relação ao trabalho de performance, há toda uma tensão presente na relação
entre a ideia, a ação e a documentação ou o resíduo da ação. No Intermídia, Breder in-
sistia com os alunos sobre a importância de se trabalhar as várias etapas de um proces-
so, como: formulação da proposta, execução e documentação (, , p. ). Ana
Mendieta, por sua vez, acreditava que o resíduo de suas ações tinha o poder de comuni-
car ideias, comportamentos e histórias (, ). A própria artista teria expressado a
esperança de que suas fotografi as permitissem aos espectadores compartilhar histórias.
Depois das suas incursões iniciais na pintura, Ana Mendieta fez várias perfor-
mances, em que o seu corpo era um eixo de atuação, como: UntitledGlass on Body Im-
prints (Sem Título – Vidro em Impressões sobre o Corpo) (); UntitledFacial
Hair Transplants (Sem Título Transplantes de Pelo Facial) (); Untitled Rape
17 Janine Antoni nasceu nas Bahamas, em Freeport, no ano de 1964. Fez sua formação artística nos Estados Unidos e
atualmente vive em Nova York. O seu trabalho borra as fronteiras entre a arte da escultura e a arte da performance.
Ela transforma as atividades do cotidiano, como comer, tomar banho e dormir, em arte. Seu ponto de partida é
sempre o corpo. Algumas de suas obras são: Touch (Toque), Moor (Ancoragem), Lick & Lather (Lamber e espumar),
entre outras.
18 Tânia Brugera é cubana e tem apresentado seus trabalhos em diversos lugares, como: na Bienal de Veneza (2009), na
Tate Gallery em Londres, na Bienal do Mercosul (2009), na Bienal de Havana (2009), entre outros. “Suas performances
falam quase sempre de um estado de exceção, criando um confronto entre uma normalidade opressora e alguns
poucos e breves lampejos de paz” (Folha de S. Paulo, 9 de jul. 2009). Ela tenta criar uma utopia possível. Na Bienal
de Havana, causou impacto quando ofereceu um minuto ao microfone sem censura para quem quisesse falar.
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 :
    

          
Scene (Sem Título – Cena de Estupro) de ; e Untitled Performance with fl owers
(Sem Título – Performance com Flores) (), entre outras. Há também a performance,
Feathers on Woman (Penas sobre mulher), de , em que outra pessoa participa da
ação performática, enquanto a artista atua como uma espécie de diretora.
As performances são ações efêmeras que surgiram nos anos  e  como forma
de contestar o objeto artístico como objeto de consumo e de mercado; nesse momen-
to, elas eram feitas de modo a não poderem ser apropriadas pelo sistema de mercado,
pelas instituições artísticas. Mas os registros das performances não são efêmeros, muito
pelo contrário, e fi caram arquivados.
Apesar da experiência importante de Ana Mendieta com a performance, desde
cedo ela teria algumas críticas ao imediatismo da presença do corpo na performance,
que demandava um engajamento direto do artista com o público. Posteriormente, ela
preferiu trabalhar a sós com a natureza e privilegiar a linguagem visual, resultante da
sua relação com a natureza, registrada por meio de fotografi as e fi lmes. Nos anos ,
ela registra o continuum dessas ações na natureza.
Segundo Viso (), Ana Mendieta evitava relacionar seu trabalho com a his-
tória da performance, apesar de sua insistência quanto ao uso do corpo em sua arte e de
reconhecer a infl uência em seu trabalho dos artistas performáticos que conheceu e es-
tudou em Iowa, como Nauman, Acconci, Oppenheim, Burden e os artistas do Acio-
nismo Vienense. Teria inclusive proposto o nome living sculpture para alguns de seus
trabalhos, um conceito inicialmente formulado pelos ingleses Gilbert e George, quando
elaboraram o trabalho e Singing Sculpture (Escultura Cantante), apresentado no fi -
nal dos anos . Já cedo em sua carreira, Ana Mendieta teria descrito algumas de suas
performances como quadros, ou melhor, quadros vivos, por exemplo, a performance Un-
titled Rape Scene, em que apresenta uma cena de estupro.
Ao longo de sua história, a performance tem perpetrado uma luta contra o ilusio-
nismo e o artifi cialismo das artes (, , p. ). Para Regina Melim, ela é
uma categoria aberta, que tem se ampliado e foi contaminada por várias práticas como
a arte conceitual dos anos , a pintura ( Jackson Pollock, entre outros), a escultura, o
teatro, a dança, a música, a poesia (ver , , p. ). Atualmente, ela pode ter
múltiplos formatos, não necessariamente o corpo do artista está incluso, nem neces-
sariamente há um público, embora isso possa acontecer. Segundo Glusberg (), o
fundamental para a performance e a body art não é o trabalho com o corpo, mas sim
com o discurso do corpo.
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 :
    

          
Kaprow, por exemplo, não inclui o seu próprio corpo nas performances e, ainda,
tem como premissas a ausência de plateia, pois funde o espectador com o performer. Ele
propõe um roteiro para grupos improvisados com um número restrito de participantes.
Seu foco principal é levar a um questionamento dos hábitos e costumes cotidianos ao
promover atos autorreferentes e autorrefl exivos (ver , , p.  -). São
algumas de suas performances: Maneuvers (Manobras), Private Parts (Partes Íntimas),
Seven Kinds of Simpathy (Sete Formas de Simpatia), Air Condition (Ar Condicionado),
entre outras.
Já há alguns anos alguns artistas têm feito reexecuções de roteiros de perfor-
mances históricas, as chamadas re -performances. A artista Marina Abramovic reen-
cenou” sete performances históricas Seven Easy Pieces (Sete Peças Fáceis) no Museu
Guggenheim de Nova York, em novembro de . Essas reexecuções seriam uma
traição a proposição inicial? Elas teriam seu poder de contestação e revolta neutraliza-
dos pela institucionalização? Se o corpo/sangue/espírito está tão imbricado na obra, e
se ele se confunde com ela, faria sentido outra pessoa executar as performances de Ana
Mendieta? Que tipo de reencenação manteria a fi delidade com a proposta inicial?
Já a body art, que surgiu nos anos , envolve a expressão ou articulação da ideia
do artista através da manipulação de seu próprio corpo. Uma de suas propostas era:
desfetichizar o corpo humano – eliminando toda a exaltação à beleza a que ele foi
elevado durante séculos pela literatura, pintura e escultura – para trazê -lo à sua
verdadeira função: a de instrumento do homem, do qual, por sua vez, depende o ho-
mem. (, , p.  -)
Ana Mendieta conjugou sua experiência de performance com a body art, a land art
(produção de trabalhos na natureza e na paisagem) e a earth art (produção de trabalhos
na terra), no que veio a se chamar earth body art. E ela, assim como vários artistas que
trabalharam com o corpo e a natureza como meios primordiais, registrou suas ações
efêmeras através da fotografi a e de fi lmes em Super -. O que encontramos em Ana
Mendieta com a denominação earth body art poderia ser incluído como performance se-
gundo a concepção atual mais ampliada?
Os trabalhos de arte híbridos denominados earth body works são intervenções na
paisagem que Ana Mendieta fez com a forma e o contorno de seu corpo. A intimidade
com a natureza, em que se percebe certa delicadeza em alguns momentos, assim como
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 :
    

          
uma agressividade em outros, chamou a atenção da crítica americana, que notou uma
diferença enorme em relação aos trabalhos de Robert Smithson (land art), monumen-
tais e invasivos. Para Seligmann -Silva (, p. ), a arte do corpo, ao apagar/retraçar
os limites entre o homem e a natureza, tenta reinscrever o simbólico. Podemos incluir
nessa exploração dos limites também a land art e a earth body art.
Apesar das diferenças com Robert Smithson quanto à escala do trabalho e o tipo
de relação com a natureza, é possível notar pontos de contato entre os dois artistas. Em
, Robert Smithson escreveu para o catálogo da  Documenta de Kassel um impor-
tante texto sobre o confi namento cultural e contra a metafísica da arte. Segundo ele, o
confi namento cultural teria lugar quando um curador impõe um limite para a arte a ser
exibida, ao invés de perguntar ao artista sobre sua proposta. Os museus seriam feitos de
celas, de jaulas, ou seja, de espaços neutros que retirariam a força dos trabalhos de arte.
Ele se refere a essa estética como estética da convalescença, em que o curador é uma es-
pécie de enfermeiro com a função de separar a arte do resto da sociedade. Apenas quando
o trabalho de arte estiver neutralizado, seguro, lobotomizado politicamente é que estaria
pronto para ser consumido pela sociedade. Sendo assim, as inovações só serviriam se su-
portassem um confi namento desse tipo (; , Ed., , p.  -).
Surge desse texto de Robert Smithson a proposta de uma arte física, selvagem,
não domesticável pelos museus e, ainda, uma arte política e integrada à natureza/socie-
dade. Considero que Ana Mendieta, na fase do trabalho com as silhuetas, segue nessa
trilha aberta por Robert Smithson, embora com as diferenças quanto à escala e à forma
de relação com a natureza já apontadas anteriormente.
Ana Mendieta teria mais afi nidade com o trabalho do inglês Richard Long? O
trabalho de Richard Long e o da artista cubana tem pontos em comum: se aproxi-
mam da paisagem de forma respeitosa, não são monumentais e se propõem a uma es-
cala humana, assim como a uma refl exão sobre a relação do homem com a natureza,
seus ciclos e forças. Além disso, pode -se encontrar como marcas de ambos os artistas
a simplicidade das ações e o envolvimento com a natureza, que é diferente de se apos-
sar dela.
No trabalho de Richard Long A Line Made by Walking, (Uma Linha feita pelo
Caminhar), de , realizado em Somerset (Inglaterra), nos deparamos com uma
delicada interferência na paisagem feita pelo deslocamento de pedras e por uma in-
sistência do andar que marca o chão, deixando uma trilha. Há nesse trabalho uma sim-
plicidade extrema. Richard Long disse ter usado pedras porque gosta delas e também
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 :
    

          
porque são fáceis de serem encontradas e manuseadas (, ). Outra carac-
terística do trabalho desse artista é que ele coloca as pedras ou os galhos que encon-
tra em forma de linhas ou círculos. Nesse ponto, é muito diferente do trabalho de Ana
Mendieta, que, com sua silhueta, remete imediatamente à forma humana. Na obra de
Richard Long, o humano é apenas sugerido pela alteração na paisagem.
A artista cubana admirava o trabalho de Richard Long, desde os tempos de
Iowa, enquanto Richard Long só veio a ter contato com o dela depois que a conhe-
ceu pessoalmente em Bristol, na Inglaterra. Ele passou a admirá -la, inclusive por
seu espírito de liberdade e originalidade” (, , p. ). A evocação do
lugar e a transferência de materiais do ambiente natural para a galeria, presente na
obra de Richard Long, teriam sido vistas pela artista como uma espécie de modelo
para os trabalhos realizados em estúdio e que podiam ser expostos dentro das gale-
rias e museus.
Numa nova fase da artista, que toma fôlego em Roma, há uma preocupação com
a origem dos materiais. Ana Mendieta considerava que resguardar a origem dos ma-
teriais era uma forma de garantir sua força e sua presença, como, por exemplo, no tra-
balho Nile Born (Nascido no Nilo), de , no qual ela usou areia trazida do Nilo por
uma amiga. O transporte do solo como um talismã simbólico pode ser conectado ao
trabalho de Richard Long (, , p. ). Sobre essa fase dentro do estúdio,
Ana Mendieta teria comentado com Montano:
Eu me dei esse problema para mim mesma, de trabalhar nos espaços interiores (in-
doors). Eu estava trabalhando e trabalhando sem certeza do que havia lá, até que
um dia entrei no estúdio e vi que as esculturas tinham presença. Todas elas tinham
uma carga nelas. Uma amiga minha trouxe areia do Egito e uma das esculturas ti-
nha uma carga, um peso egípcio. Cada uma era diferente da outra. (, ,
p. )
Os trabalhos de earth body art de Ana Mendieta haviam sido infl uenciados pela
body art, pela arte conceitual, pelo feminismo e o minimalismo (, ). Obser-
vamos que a artista cubana passou, em seus trabalhos, do uso do próprio corpo para a
referência ao corpo através de seus vestígios e marcas, até chegar a um objeto mais per-
manente e que podia ser exposto num interior de um museu ou de uma galeria, embo-
ra mantendo o uso de materiais naturais como madeiras, areia e folhas. Ana Mendieta
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 :
    

          
foi do mais efêmero em direção ao mais permanente, do site -specifi c (lugar -específi co)
19
para o material específi co”, que podia ser apresentado no interior de um ateliê, de uma
galeria ou de um museu.
.
Os Trabalhos
.. Os primeiros trabalhos
A seguir, exponho alguns trabalhos iniciais de Ana
Mendieta, feitos quando ela ainda participava do Programa de Artes Intermídia. Po-
demos nomear esses trabalhos como performances; apenas posteriormente Ana Men-
dieta chegou à formulação da earth body art, em que fez uma mistura de body art, land
art e arte conceitual. Dentre os primeiros trabalhos, encontramos: a performance regis-
trada no conjunto de fotografi as UntitledGlass on Body Imprints (Sem Título – Vi-
dro em Impressões sobre o Corpo) (); a performance registrada nas fotografi as
UntitledFacial Hair Transplants (Sem Título – Transplantes de Pelo Facial) ();
Untitled (Sem Título) (); Untitled Facial Cosmetic Variations (Sem Título
Variações Faciais Cosméticas) (); People Looking at Blood (Pessoas Olhando o
Sangue) (); Untitled Rape Scene (Sem Título – Cena de Estupro) (); Perfor-
mance with fl owers (Performance com Flores) (); Sweating Blood (Suando Sangue)
(); Untitled Body Tracks (Sem Título – Rastros do Corpo) ().
Na performance registrada no conjunto de fotografi as UntitledGlass on Body Im-
prints (Sem Título – Vidro em Impressões sobre o Corpo), Ana Mendieta pesquisa as
transformações produzidas pela impressão de um vidro em seu corpo. Podemos notar,
nessas fotografi as, como a artista explorou a plasticidade do corpo ao extremo durante
a performance, o que nos remete imediatamente às inúmeras transformações pelas quais
passa um corpo durante uma vida, sobretudo o corpo da mulher. Sobressai aqui uma
característica forte da obra de Ana Mendieta: o trabalho com a questão da transitoriedade,
19 O conceito de site -specifi c (lugar -específi co) relaciona -se a trabalhos artísticos construídos especialmente em certos
locais e que não podem ser transportados e deslocados sem serem completamente descaracterizados.
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    

          
da efemeridade da vida. Além disso, muitos de seus trabalhos não apenas abordam o
tema do efêmero, mas são eles mesmos efêmeros e só podem ser vistos através dos re-
gistros fotográfi cos ou dos fi lmes.
Em outra performance registrada nas fotografi as UntitledFacial Hair Trans-
plants (Sem Título Transplantes de Pelo Facial) podemos notar uma espécie de jogo
dos sexos. Nela Ana Mendieta cola, na pele de seu rosto, os pelos cortados da barba
de um jovem amigo. Um jogo que questiona o que cabe à mulher e ao homem, e nos
faz pensar sobre o gênero e a diferença sexual. As fotografi as suscitam também pensar
no amor e no momento em que um amante se mistura com o outro e não sabe mais
quem ele é.
Há outros trabalhos em que a artista faz transformações faciais como: Untitled
(Sem Título), em que ela faz um bigode em seu rosto, denominando -o como um au-
torretrato e Untitled Facial Cosmetic Variations (Sem Titulo – Variações Faciais Cos-
méticas) em que altera sua persona ao usar peruca, maquiagem e uma meia de seda
feminina, antecipando transformações de identidade feitas por Cindy Sherman no fi -
nal dos anos .
A obra de Marcel Duchamp, assim como seu famoso trabalho Rrose Sélavy, em
que o artista trabalha com a questão da identidade de gênero e cria uma personagem
mulher eram conhecidos em Iowa. No Programa de Artes Multimídia, nessa mesma
época, outros artistas como William Wegman, Vito Acconci e Eleanor Antins tam-
bém trabalharam com a temática do gênero e da identidade.
A artista cubana também fez alguns trabalhos denunciando a violência, como, por
exemplo, People Looking at Blood (Pessoas Olhando o Sangue) e Untitled Rape Scene
(Sem Título – Cena de Estupro), ambos de . No primeiro trabalho, a reação de
pessoas diante de uma calçada manchada de sangue é registrada/fotografada pela ar-
tista. No outro, a artista provocava o espectador ao convidá -lo para assistir uma cena
de estupro, em que a própria artista é a protagonista. Observamos nas fotos um cômo-
do que parece escuro e sujo, onde os convidados encontravam Ana Mendieta seminua,
manchada de sangue, com as mãos e os pés atados e fl exionada de pé sobre uma mesa,
numa espécie de quadro em que fazia o papel de uma vítima de estupro.
O trabalho sobre o estupro é uma obra de protesto diante do homicídio e do es-
tupro de uma estudante da Universidade de Iowa. Reencenar o real, através da perfor-
mance, seria uma forma da artista acordar o espectador, de tirá -lo de uma anestesia, ao
colocá -lo na incômoda posição de cúmplice. Em um mundo em que a violência é cada
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Untitled/Facial Hair Transplants (Sem Título/
Transplante de Pelos Faciais), 1972.
Slide colorido
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
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vez mais banalizada, seria uma saída para a arte apelar para o real com o objetivo de
acordar as pessoas de uma indiferença?
Outra interpretação dessa performance colocaria Ana Mendieta como objeto-
-vítima, ao encenar uma cena de estupro, para denunciar o fato de a mulher ser ofere-
cida em sacrifício na ordem patriarcal (, , p. ). Muitas artistas dessa época
teriam realizado trabalhos para denunciar a violência contra a mulher. Por exemplo, em
, Yoko Ono fez a performance Cut Piece (Pa Cortada), em que os espectadores
eram convidados a cortar pedaços de sua roupa, enquanto fi cava sentada passivamente
no chão. Ainda segundo Maria Ruido, a excessiva e desagradável exposição presente na
performance Rape Scene e nas suas imagens fotográfi cas é efi caz em não deixar a artis-
ta se transformar em objeto de prazer e de olhar voyer (, , p. ). Para Ana
Mendieta, quanto ao aspecto formal, esse trabalho se aproximaria mais de um quadro
vivo do que de uma performance (, ).
Um trabalho que me toca especialmente é Performance with fl owers (Performance
com Flores), em que Ana Mendieta usa fl ores, contrapondo -se às anteriores que abor-
dam a questão da violência. Nele a artista se coloca atrás de algo que parece um vaso e
vai introduzindo fl ores em sua blusa até que seu rosto fi ca recoberto por inúmeras fl o-
res, como se ela fosse o vaso e as fl ores. Seu rosto se transforma num buquê. Mulher-
-vaso, mulher -buquê de fl ores. O deslocamento para as fl ores, o devir fl or seria uma
maneira de se contrapor à violência e fazer uma celebração da vida?
No fi lme em que Ana Mendieta registra a performance Sweating Blood (Suando
Sangue), podemos observar uma gota de sangue que escorre lentamente pela testa da
artista. Aqui é inevitável a associação com a iconografi a católica, com os santos mila-
grosos que choram lágrimas de sangue ou mesmo com a imagem de Cristo com sua
coroa de espinhos. Nesse trabalho sangue é suor, sofrimento, sacrifício.
Segundo Heartney (), haveria no trabalho de Ana Mendieta uma presença
da emoção exagerada da arte devocional do colonial espanhol. O uso do sangue pela
artista pode ser relacionado com o contato que ela teve na infância e na adolescência com
as tradições afro -caribenhas e suas práticas de sacrifícios de animais. Aliás, os maias, os
zapotecas, os mixtecas ofereciam aos deuses, inclusive, o sacrifício de seres humanos.
O sangue marca numa parede branca o movimento descendente feito pelos bra-
ços da artista, no fi lme Untitled Body Tracks (Sem Título – Rastros do Corpo). Nesse
trabalho o sangue é dança, rastro, vestígio do movimento do corpo da artista, impres-
são, marca de um momento da existência.
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 :
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          
Sweating Blood /Still 7 (Suando Sangue/ Quadro 7),
1973. Super-8, fi lme silencioso.
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 :
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
          
Untitled − Body Tracks (Sem Título − Rastros do
Corpo), 1974. Fotografi a colorida.
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 :
    
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Podemos remeter o registro do movimento do corpo a Yves Klein, outro artista
com quem Ana Mendieta estabeleceu um diálogo. Mas, diferentemente dele, que tra-
balha predominantemente com a cor azul relacionada ao céu, ao vazio, ao espiritual e
ao imaterial, na obra de Ana Mendieta encontramos o vermelho -sangue, que nos re-
mete diretamente à tragicidade da vida. É importante lembrar que temos nesse mo-
mento histórico a guerra do Vietnã.
É possível também relacionar o uso do sangue, por parte de Ana Mendieta, com
as intervenções do Acionismo Vienense
20
(muito conhecidas pelos estudantes de Iowa),
muito embora eles usassem o sangue num contexto de perversão e violência sexual sa-
domasoquista. No trabalho de Ana Mendieta, o sangue remete mais ao trágico do que
ao sadomasoquista.
.. As silhuetas
A série das silhuetas é importante no contexto da
obra da artista Ana Mendieta, tanto por ocupar vários anos de seu trabalho como por
ser fruto de uma exploração experimental intensa, que resultou no desenvolvimento
de sua earth body art. Nessa série, a artista parece buscar um elo perdido com a terra, a
natureza e suas forças. Ela comenta, numa entrevista com Montano (), a respeito
de sua infância, em Cuba, que a praia, a areia e a água eram elementos muito presen-
tes, e, ainda, que foi na infância que aprendeu a se comunicar com a natureza através
do corpo. Para alguns críticos, a obra precursora da série das silhuetas, a primeira earth
body art, seria a performance Grass on Woman (Grama sobre Mulher), de . Nela o
corpo nu de Ana Mendieta foi parcialmente coberto por grama e parece estar emer-
gindo da paisagem.
A artista cubana fez sua primeira obra de impressão do corpo no México (-
, ). Ao se deparar com uma tumba pré -hispânica, provavelmente de origem
zapoteca e que estava coberta por grama e ervas daninhas, Ana Mendieta teria sido
20 O Grupo de Viena, ou o Acionismo Vienense, já em 1962, no auge do happening, começava a desenvolver o
que viria a se chamar de body art. Dele faziam parte: Gunther Brus, Otto Muhl, Arnulf Rainer, Hermann Nitsch e
Rudolf Schwarzkogler. Segundo Glusberg: “As ações dos membros do Grupo de Viena chamavam a atenção por sua
violência e por seu sadomasoquismo: Brus, Muhl e Schwarkogler se infl igiam feridas e mutilações (Schwarzkogler
morreu em 1969, com 29 anos, em consequência disto). Nitsch, com seu teatro de Orgia e Mistério, organizava
performances rituais, envolvendo sacrifício de animais, que terminavam com um abundante banho de sangue. Estes
eventos provocariam sua prisão na Áustria e na Grã -Bretanha” (
GLUSBERG, 2007, p. 39).
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 :
    

          
remetida à passagem do tempo, entendido aqui como desagregação da matéria. Diante
dessa visão, ela foi ao mercado, onde comprou pequenas fl ores brancas silvestres, depois
se deitou nua na tumba e se cobriu com elas, o que lhe deu a impressão de estar cober-
ta pelo tempo e pela história.
Essa obra, de , se chama Image from Yagul (Imagem de Yagul). Ela remete à
iconografi a da árvore da vida, também presente em muitos outros trabalhos da artista.
As fl ores que emergem de seu corpo seriam uma referência aos poderes regenerativos
da natureza e da humanidade. Nessa obra, está presente a desagregação da matéria, as-
sim como a sua regeneração. Sobressai, ainda, dessa obra, a relação da artista com cul-
turas ancestrais.
Depois dela, Ana Mendieta realizou uma série de trabalhos, conhecidos como a
série das silhuetas, na qual encontramos o corpo -fl or, o corpo -água, o corpo -fogo e o
corpo -sangue. Neles, Ana Mendieta usa seu próprio corpo, ou o contorno de seu corpo
impresso na terra, como matéria para sua arte, em consonância com o que Hans Bre-
der preconizava no Intermídia, ou seja, o uso do corpo como matéria primordial, como
meio de expressar uma ideia artística.
Na ª Bienal de São Paulo, encontravam -se várias obras dessa fase da artista,
quando proliferam as silhuetas: Rock Heart with Blood (Coração de Rocha com San-
gue) (fi lme), de ; Burial Pyramid (Pirâmide Tumular) (fi lme), de ; Flower
Person (Pessoa Flor) (fi lme), de ; Soul Silhouette of Fireworks (Alma – Silhueta
em Fogo) (fi lme), de ;  fotografi as de um conjunto de  que compõem a série
Untitled Silueta Series Iowa (Sem Título – Obra Silhueta em Iowa), de  -; e,
ainda, um conjunto de  fotografi as, Untitled Silueta Series México (Sem Título –
Obra Silhueta no México), de .
No fi lme Rock Heart with Blood (Coração de Rocha com Sangue), a artista se dei-
ta nua sobre um coração de rocha recoberto por pigmento vermelho e colocado sobre
uma silhueta escavada na beira de um rio. A imagem evoca lirismo e magia. Segun-
do Heartney (), no gesto da artista há uma intenção de proteção e de assimilação.
Mas qual seria essa assimilação, a das energias da terra? De forma diferente de outros
trabalhos, esse fi lme não mostra uma impressão de seu corpo na terra, mas sim um ges-
to que leva a uma impressão de um coração sobre o corpo.
O fi lme Burial Pyramid (Pirâmide Tumular) provoca impacto. Nele a artista está
deitada numa tumba antiga, coberta por pesadas pedras, que deslizam de seu corpo, em
decorrência do movimento de sua respiração. Tentativa de libertação, de renascimento?
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 :
    

          
Untitled/Grass on Woman (Sem Titulo/ Grama sobre
Mulher), 1972. Fotografi a colorida.
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 :
    

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Image from Yagul (Imagem de Yagul), 1973.
Fotografi a colorida.
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 :
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Rock Heart with Blood (Corazón de Roca
con Sangre) (Coração de Rocha com
Sangue), 1975. Super 8, fi lme silencioso.
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
          
Untitled/ Buryal Pyramid (Sem Titulo/ Pirâmide
Tumular), 1974. Super-8, fi lme silencioso.
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 :
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Untitled /Flower Person /Still 5 (Sem Título/Pessoa Flor/
Quadro 5), 1975. Super-8, fi lme silencioso.
PF PR-5 (miolo) Mendieta.indd 61PF PR-5 (miolo) Mendieta.indd 61 1/10/2009 21:08:321/10/2009 21:08:32
 :
    
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Soul Silhouette on Fire (Alma Silueta en Fuego) (Alma
Silhueta em Fogo), 1975. Fotografi a colorida.
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 :
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Aqui o movimento surge da respiração da artista. Considero que esse fi lme nos fala da
luta pela vida, da luta contra o peso, a opressão, num jogo de forças muito tocante.
Uma silhueta formada por fl ores desce um rio, no fi lme Flower Person (Pessoa
Flor). É uma oferenda à vida, ao movimento da vida, que corre e transforma tudo.
Mais uma vez surge a questão do tempo e da plasticidade da vida, bem como está pre-
sente a referência aos rituais afro -cubanos.
O fogo é outra força da natureza com a qual a artista cubana se relaciona. Ela usa
o fogo como material artístico, em diversos momentos, e no fi lme Soul Silhouette of
Fireworks (Alma Silhueta em Fogo), o fogo toma conta do desenho do contorno do
corpo da artista construído numa armação. O corpo -silhueta queima, entra em com-
bustão. Purifi cação? O fi lme nos faz pensar em morte e renascimento. “O fogo é sempre
um elemento mágico para mim… fusão ele transforma os materiais” (, , p.
), teria comentado Ana Mendieta durante uma apresentação de seus trabalhos na
Alfred State University. Segundo o crítico de arte inglês Guy Brett, Ana Mendieta, as-
sim como vários artistas da América Latina (Helio Oiticica, Ligia Clark) teriam usado
o fogo e a terra, elementos cósmicos da natureza, como metáforas do confl ito social.
Ana Mendieta seguiu na série das silhuetas até o momento de seu retorno à Cuba,
em . Em , notamos uma mudança no trabalho da artista ao criar as esculturas
de Jaruco que, embora nos mostrem silhuetas, não são mais referidas ao próprio corpo
da artista, mas remetidas a imagens de fi guras femininas da mitologia Taíno
21
.
.. As esculturas rupestres
A partir do momento em que Ana Mendieta se mu-
dou para Nova York, estreitou relações com grupos de ativistas cubanos, que trabalha-
vam no apoio a imigrantes e eram favoráveis à abertura do diálogo nas relações entre
os  e Cuba. Entre os anos  e , Ana Mendieta fez sete viagens a Cuba. Em
, fez uma série de esculturas rupestres na sua terra natal. Ela encravou nas paredes
das cavernas dos ásperos penhascos da região de Jaruco uma série de fi guras femininas
inspiradas na mitologia Taíno.
21 O povo Taíno é composto pelos antigos habitantes das Antilhas pré -hispânicas e que foram cruelmente dizimados
após a chegada de Cristovão Colombo, em 1492.
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 :
    

          
Antes disso, no inverno do mesmo ano (), Ana Mendieta já havia feito algu-
mas esculturas inspiradas na mitologia Taíno, na região de Varadero, onde encontrou
rochas semelhantes às de Jaruco. Antes de Cuba, em San Felipe, no México (), e
em Iowa (), a artista já estava no caminho de escavar cavernas e grutas, formadas
pela erosão natural ou pela interferência de animais. Em todos esses trabalhos, a artis-
ta usou tinta preta (tipo esmalte) para realçar alguns contornos e regiões das silhuetas
nas cavernas.
Ana Mendieta teria se encantado pela região de Jaruco, que tem uma rica história.
A uma hora de Havana, Jaruco é um parque nacional composto por terraços de rocha.
E as rochas, porosas e macias, resultantes da sedimentação de areia e conchas durante
milhares de anos, foram consideradas pela artista adequadas à escavação. Civilizações
pré -hispânicas teriam habitado essa zona, que serviu como refúgio para piratas na era
colonial e, no fi m do século , serviu de esconderijo para os mambíses
22
.
Em Jaruco, Ana Mendieta escolheu duas áreas principais para fazer seu trabalho.
Na primeira delas, a mais próxima do hotel, ela esculpiu na superfície das pedras, de
maneira semelhante ao que já havia feito em Varadero. Fez o mesmo tipo de contornos
e de pintura em esmalte, para salientar alguns detalhes das silhuetas. Também apro-
veitou pedaços de rocha que se desprenderam das paredes com a erosão para esculpir
algumas fi guras, como, por exemplo, a Bacayú (a deusa da luz do dia), em que ela apro-
veitou a forma da rocha e usou formão e tinta para destacar a forma musculosa da deu-
sa, que parece um ídolo cicládico
23
.
A segunda área escolhida pela artista era mais distante do hotel, de difícil acesso
e mais parecida com uma caverna ou uma câmera, mas onde a luz ainda podia alcan-
çar. Ela batizou essa caverna de Cova da Águia e, nesse local, as esculturas não foram
detalhadas com tinta como as da primeira área. Infelizmente as moldagens feitas nessa
22 Os mambíses foram soldados do século XIX que lutaram pela independência de Cuba. As tropas eram compostas
por cubanos de várias classes sociais, como escravos, mulatos livres e proprietários de terra que deram tudo pela
liberdade e independência de Cuba. A palavra mambíse vem de Eutimio Mambí, um líder que lutou contra os
espanhóis em Santo Domingo.
23 A arte cicládica se desenvolveu no período que se estende de 3000 a 2000 a. C., nas ilhas Cícladas, localizadas no
mar Egeu, que têm esse nome porque estão alinhadas num círculo. Temporalmente, o período Cicládico corresponde
à Idade do Bronze Antigo e precede a civilização Minóica (Idade do Bronze Médio) e a Micênica, que a sucedeu.
Os ídolos cicládicos têm um suave modelado que se conseguia através do desgaste do mármore pela pedra esmeril.
Nesses ídolos, encontramos uma tendência ao esquematismo. As fi guras femininas têm sido apontadas como deusas
da fertilidade, como protetoras dos mortos ou uma espécie de amuleto que acompanha os defuntos (se relacionam
com o costume egípcio de depositar ushebtis nas tumbas, ou seja, fi guras de serventes que atendem os defuntos até
o mais além). Outras teorias para esses ídolos é que eles teriam sido usados como substitutos de sacrifícios humanos
ou, ainda, como imagens dos antepassados portadoras de suas almas até o outro mundo.
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Untitled − Varadero (Sem Título Varadero), 1981.
Fotografi a preto e branco.
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região não foram tão duradouras, pois as rochas eram mais moles e um tempo depois
foram destruídas por serem inadvertidamente usadas como material de construção.
Ana Mendieta elaborou dois projetos de livro: um deles com as fotogravuras das
esculturas rupestres e outro com desenhos dos mitos Taíno. Ambos os projetos fi ca-
ram inacabados. Ela sabia que poucas pessoas se aventurariam nas cavernas, um local
de difícil acesso, e veio daí a ideia dos livros. Para o livro sobre as esculturas rupestres,
Ana Mendieta projetou inicialmente: uma página título, uma introdução, uma série de
 fotogravuras e uma edição de  livros -caixa (diminuída depois para uma tiragem
de vinte). Com a técnica da gravura e o formato do livro em caixa, a artista teria a in-
tenção de aproximar o espectador da experiência de ver as esculturas nos apertados es-
paços das cavernas de Jaruco, o que se diferencia da forma como ela usou a fotografi a
em outros trabalhos. Esse projeto de livro -caixa só foi realizado de forma modifi cada
após a morte da artista, em , por Liliana Porter com o apoio da Galerie Lelong,
de Nova York, e do Patrimônio de Ana Mendieta.
A artista cubana se considerava herdeira da cultura Taíno e explorou vários de
seus mitos. Aliás, o interesse da artista por essa cultura ia além da dimensão antropoló-
gica. Nesse sentido, o trabalho feito em Jaruco pode ser entendido como uma paródia,
ou seja, uma cópia (mimese) realizada em novo contexto, em que a artista coloca em
pauta a questão da desculturação, experiência de tensão que teria vivido na própria pele
durante seu exílio americano. Com esse trabalho, mais uma vez a artista cubana traz à
tona o diferente, o estrangeiro, o feminino e o esquecido de uma cultura dizimada e,
assim, nos revela o legado dos antigos habitantes das Antilhas.
Reconhecendo o legado da cultura dos povos Taíno, o útero e a gruta como lugar de
encontro entre o feminino (a Lua) e o masculino (o Sol), Mendieta dá vida à pe-
dra, lhe insufl a de energia através da sexuação das paredes de Jaruco e realiza uma
atribuição simbólica de poder através do corpo feminino gerador, reafi rmando de
novo a profunda vinculação de seu trabalho com algumas interpretações da arte pré-
-histórica. (, , p. )
O livro de Arrom, Mitologia e artes pré -hispânicas das Antilhas, foi uma das fontes
de pesquisa de Ana Mendieta. Segundo Clearwater (), pouco teria restado dessa
cultura que foi dizimada pela fome e doença. Sua identidade social, seus costumes, sua
língua e suas crenças teriam sido em parte perdidos e em parte absorvidos pelos novos
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
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habitantes da região. Outra fonte de pesquisa sobre o povo Taíno utilizada por Ana
Mendieta foi a transcrição do relato do frei Ramon Pané
24
, que acompanhou Colombo
em sua segunda viagem às Antilhas, em . Esse frei teria convivido com os antigos
habitantes das Antilhas pré -hispânicas e narrado, em seus escritos, muito do que ou-
viu desse povo sobre seus costumes e crenças. Ana Mendieta teria feito algumas ano-
tações a partir do pouco que restou do manuscrito de Pané para o seu projeto de livro
(, ).
Na mitologia Taíno existem muitas fi guras femininas, como, por exemplo: Gua-
bancex (Deusa do Vento), Guanaroca (A Primeira Mulher), Albohoa (A Beleza), Ba-
cayu (Luz do Dia), Guacar (Nossa Menstruação), Atabey (A Mãe das Águas), Itiba
Cahubaba (Velha Mãe de Sangue), Lyare (Mãe) e Maroya (Mãe Lua). Ana Mendieta
fez para cada uma delas um trabalho e, no livro sobre as esculturas rupestres, encontra-
mos um plano de disposição desses trabalhos para um espaço expositivo.
As fi guras femininas da mitologia Taíno têm relação com a natureza, as suas
forças e com o ciclo de vida da mulher. Por exemplo, a deusa Atabey, a protetora das
águas, era também a protetora dos fetos, nos úteros das mulheres; amuletos com sua
gura, feitos de osso, concha e cerâmica, eram dados às mulheres grávidas. Já a deu-
sa Itiba Cahubaba corresponderia à mãe terra ou à velha mãe de sangue e, segundo a
lenda, a terra, ao abrir -se, teria dado nascimento à humanidade. Na fi gura dessa deu-
sa, encontramos uma imagem que lembra o sistema circulatório, os vasos sanguíneos
ou a coluna vertebral, e até mesmo as raízes das plantas. A fi gura lembra um coração
e também um esqueleto. Ossos e sangue, morte e vida. As imagens das esculturas ru-
pestres de Ana Mendieta seriam semelhantes a essas fi guras e, como elas, enfatizam os
genitais, que se mostram aumentados, enquanto os ventres aparecem distendidos, su-
gerindo fertilidade.
Nos capítulos  e  do famoso relato do frei Ramón Pané, há uma curiosa
descrição sobre como a ilha de Hispaniola, que corresponde hoje ao Haiti e à Re-
pública Dominicana, voltou a ter mulheres entre seus habitantes, depois delas terem
sido levadas por Guahanoya, que as queria todas para si. De acordo com a lenda, te-
riam sido vistos estranhos seres assexuados vagando pelas matas e aí se decidiu
transformar esses seres em mulheres, através da ação do pássaro Inriri, que corres-
ponde ao que chamamos hoje de pica -pau. Os homens da ilha teriam atado os braços
24 O texto do relato do frei Ramon Pané que conhecemos hoje vem de uma tradução italiana do original.
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
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Bacayú [Light of Day (Rupestrian Sculptures)]
(Bacayú Luz do Dia Esculturas Rupestres), 1981.
Fotografi a em preto e branco.
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Itiba Cuhababa − Old Mother Blood − Rupestrian
Sculptures (Itiba Cuhababa Velha Mãe de Sangue
Esculturas Rupestres), 1981.
Fotografi a em branco e preto.
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
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e as pernas desses seres assexuados e aí trouxeram os tais pássaros, que fi zeram um
buraco, como faziam nos troncos, no lugar onde fi cava o sexo das mulheres. É uma
lenda curiosa.
Ainda com relação à fi guração, o aproveitamento de certas saliências ou mesmo
da forma que surge quando as rochas estão entreabertas para, a partir delas, construir
ou entalhar as fi guras sexuadas é característico dos antigos Taíno e reproduzido por
Ana Mendieta. Ao esculpir suas fi guras sexuadas, a artista fez o mesmo que o pássaro
Inriri da lenda.
O povo Taíno acreditava que a humanidade teria surgido das cavernas e nelas te-
riam representado seus ídolos ou deuses. Clearwater () aponta que, quando Ana
Mendieta foi trabalhar nas cavernas, é como se tivesse voltado ao útero da huma-
nidade, ao seu lugar de origem. A própria artista teria descrito o trabalho nas caver-
nas, para Geraldo Mosquera, um crítico de arte cubano,como um ato de intimidade e
comunicação com a terra, como um retorno amoroso ao seio materno (,
, p. ).
A problemática do exílio e da terra natal retorna, muitas vezes, na obra da artis-
ta cubana e aparece aí uma tentativa de reencontro, de retorno a uma infância perdida,
a uma Cuba perdida, que nunca se realiza de forma defi nitiva. Ainda para Clearwater
(), o interior vermelho de uma das cavernas que Ana Mendieta trabalhou refor-
ça a associação de seu trabalho com o útero e o nascimento. Os mistérios da origem e
da criação, mistérios relacionados tanto à mulher como ao feminino, foram explorados
pela artista cubana de maneira recorrente e conduzem o espectador a esse terreno in-
certo e enigmático.
Nas cavernas, Ana Mendieta reescreve e reinscreve a mitologia Taíno, e, em espe-
cial, as fi guras das deusas femininas no cerne das discussões contemporâneas da arte.
Além disso, Ana Mendieta amplia e modifi ca o seu próprio trabalho com as silhuetas,
que passam a não se referir mais imediatamente ao corpo da artista, mas a uma imagi-
nação mitológica, a uma mitologia recriada. As esculturas são uma memória inventa-
da, uma espécie de fi cção arqueológica. Apresentam um feminino fabulado a partir da
mitologia Taíno. A meu ver, é isso que se realiza, mais do que a busca de uma essência
ou verdade sobre o feminino
25
.
25 A busca de uma essência do feminino em culturas ancestrais e matriarcais foi uma das importantes pautas da primeira
onda do feminismo americano.
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
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.. Vênus Negra
Em , Ana Mendieta apresentou o trabalho Un-
titled Black Venus ( Vênus Negra) no jornal feminista americano Heresia. Ele me cha-
mou a atenção devido a sua ênfase política. Nesse trabalho, encontramos uma imagem
fotográfi ca de uma obra realizada às margens de um rio, associada a um texto em que a
artista discorre sobre a lenda cubana da Vênus Negra. Na fotografi a em preto e branco,
que aparece no jornal Heresia, parece brotar da terra uma silhueta escura, chamuscada
pelo efeito do fogo.
Ana Mendieta fi gura sua Vênus de forma muito diferente daquelas pintadas por
homens nos séculos  e , como, por exemplo, “O nascimento de Vênus”, de Botti-
celli (), e a Vênus de Urbino”, de Tiziano Vecellio (), em que a beleza, a deli-
cadeza e a sensualidade associadas ao feminino aparecem fi guradas segundo a maneira
grega
26
. Ao resgatar a Vênus Negra da lenda para sua silhueta, Ana Mendieta teria algo
de novo a nos dizer a respeito da fi guração do feminino?
Segundo a lenda cubana da Vênus Negra descrita por Ana Mendieta, em torno de
 os colonizadores espanhóis chegaram à região próxima à cidade de Cienfuegos
e lá encontraram uma mulher jovem, negra, de grande beleza, despida, usando apenas
braceletes e colares de conchas e sementes, única sobrevivente de inúmeras gerações de
índios “Siboney”, extintos pelos colonizadores. Descobriram depois que ela era muda e
que recusava tanto o trabalho como a comida oferecidos pelos colonizadores. Também
andava acompanhada por pássaros que a bicavam na boca, como se fosse uma carícia.
Deram a ela o nome de Vênus Negra. Em muitos momentos tentaram dominá -la, mas
sem sucesso. De tempos em tempos, ela reaparecia na península onde habitavam os an-
tigos índios “Siboney”. Mais tarde, ela se tornou um ícone da luta contra a escravidão e
a colonização devido a sua persistência e resistência (, , p. ).
Segundo Jane Blocker (), uma crítica de arte americana, a artista cubana te-
ria uma grande capacidade narrativa, um interesse em contar e recontar histórias; e essa
história da Vênus Negra seria mais uma forma de a artista abordar signifi cados contra-
ditórios com relação ao corpo feminino. Na obra Untitled Black Venus (Vênus Negra),
26 A representação da fi gura humana é uma das marcas da arte ocidental, assim como aquilo que a distingue das
tradições artísticas judaica e muçulmana. Da Antiguidade até o século
XX, os artistas e críticos fi caram entre a busca de
uma beleza ideal (concebida abstratamente ou construída por superposição dos mais belos traços de cada indivíduo)
e a de uma verdade da representação, algo que se aproxime de um personagem real. Podemos encontrar essa
oposição, por exemplo, entre a Grécia e Roma: “a arte realista do retrato romano sucedendo aos deuses e deusas
herdados da Grécia” (
LANEYRIE -DAGEN, 2004, p. 9).
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Untitled / Black Venus ( Sem Título/ Vênus Negra),
1980. Fotografi a em preto e branco.
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          
a imagem da silhueta se faz pelo vazio, pela imagem que brota da terra após sua escavação e
também pelas cinzas. A Vênus esboçada pela artista cubana nasce da combustão, surge
do borrado, do vazio e da terra sulcada, trabalhada.
A obra de Ana Mendieta nos mostra a impossibilidade de se tocar a origem. En-
quanto a Vênus Negra, presente na lenda cubana, sempre retorna à península, local de
origem, a imagem da Vênus escavada por Ana Mendieta, e que brota da terra, apon-
ta numa outra direção. Apesar de ela trabalhar a partir da mitologia Siboney, de tentar
reencontrar uma origem perdida com o exílio, essa origem se mostra impossível de
ser tocada, pois é impossível reencontrar a Cuba da infância de Ana Mendieta, assim
como é impossível encontrar uma essência ancestral do feminino. A multiplicação das
silhuetas nos remete a uma insistência, a uma errância que nos evidencia o desenraiza-
mento característico da modernidade, que rompeu com toda uma tradição da arte oci-
dental e foi buscar na arte primitiva outras referências do que poderia ser a arte.
Ana Mendieta trabalha com vários estratos do tempo e recria histórias. A partir
do manuseio dos materiais, ela cria e recria imagens, e assim proliferam novas formas.
Uma forma de circunscrever um corpo para si mesma? De reencontrar um lugar perdi-
do e impossível de ser atingido, como a Cuba de sua infância? Uma maneira de redese-
nhar o humano? O que essa Vênus teria a ver com a própria Ana Mendieta? O que ela
teria a ver com outros povos? O que ela denuncia da mulher e do feminino no contexto
histórico em que a artista a produziu?
A Vênus Negra, segundo a lenda, é muda. Ela se comunica apenas com a na-
tureza, com os pássaros. Rebelde, ela resiste à colonização pela recusa das roupas,
da comida e do trabalho. E, diferentemente das feministas americanas da época em
que Ana Mendieta viveu, a Vênus Negra não luta por igualdade, não quer se vestir
como homem, não quer lutar com o homem, mas sim preservar sua diferença e sua
liberdade.
Para a psicanálise, o território do feminino corresponde a um registro psíquico
diferente daquele relacionado ao falo. Segundo o psicanalista Joel Birman, o feminino
estaria vinculado a “uma postura voltada para o particular, o relativo e o não controle
sobre as coisas” (, , p. ). Além disso,a feminilidade [aqui sinônimo de
feminino] é o correlato de uma postura heterogênea que marca a diferença de um su-
jeito em relação a qualquer outro (, , p. ).
Uma longa tradição associou o corpo da mulher com a terra. Numa das versões
do Gênesis, que aparece depois do século  ou , a mulher teria sido criada a partir
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da terra, do barro (, ). Nos séculos  e , o “Novo Mundo foi
personifi cado através do corpo de uma mulher nua. A admiração pela natureza e o de-
sejo de conquistá -la tinham um paralelo com a admiração pela beleza feminina e com
o desejo de possuí -la (, , p. ). No século , Freud
27
relacionou a mu-
lher à terra, ao materno e à morte, bem como associou o feminino à mudez e à morte.
É possível pensar, então, na Vênus Negra da lenda como relacionada ao amor e à
morte, tanto por sua beleza como por sua mudez. Mas ela também pode ser relaciona-
da ao silêncio
28
presente na criação. Já a imagem do trabalho de Ana Mendieta sobre
a Vênus Negra, a silhueta escavada na terra, gura algo que já está na lenda, mas que
nela não aparece tão claramente, ou seja, a relação da Vênus com o erotismo, a morte e
a criação. Destruição e criação estão interligados. A imagem que brota da terra, contor-
nada por cinzas, remete tanto a uma silhueta como a uma abertura, uma vagina, tanto à
morte, à ausência, como ao vazio potencial pelo qual pode ser engendrada a criação.
O feminino é apenas sugerido pela Vênus Negra de Ana Mendieta, através da
abertura, do vazio que vem da escavação e da combustão da silhueta. O feminino não
está numa forma, mas no seu processo de criação ou, ainda, num momento de recep-
ção estética
29
. Muitas vezes Ana Mendieta foi vista como uma feminista, uma cubana
exótica ou como alguém que buscava na arte uma forma de curar o trauma do exílio
e, ainda, uma pós -moderna devido a seu hibridismo, uma vítima do patriarcado, uma
pioneira de estratégias pós -minimais. Muito além desses rótulos, considero -a uma ar-
tista com uma obra de grande complexidade, que conjuga senso estético com dimensão
política. A artista nos apresenta uma Vênus não fálica e a faz brotar da terra, dos vazios,
da fusão com a terra, com a natureza. Heresia?
27 Ver o texto “O Tema dos Três Escrínios” de Freud (1913). Esse texto de Freud O tema dos três escrínios (1913) parte
da análise de cenas de Shakespeare, de histórias gregas e de contos de fadas em que está presente o tema da
escolha de uma mulher entre três irmãs. Ele nos apresenta três representações da mulher que correspondem às “três
formas assumidas pela fi gura da mãe no decorrer da vida de um homem – a própria mãe, a amada que é escolhida
segundo o modelo da própria mãe, e por fi m, a Terra Mãe, que mais uma vez o recebe” (FREUD, 1913, p. 325).
Nesse texto, Freud aponta que, nos sonhos, muitas vezes a mudez é uma representação da morte. Além disso, ele
se pergunta por que, nessas histórias e lendas, a escolha de um homem entre uma de três mulheres sempre recai
na terceira delas, ou seja, a mais bela e aquela que representa a morte. A beleza seria um véu fálico para recobrir
a morte. Freud propõe que o homem com sua “atividade imaginativa a fi m de satisfazer os desejos que a realidade
não satisfaz” (
FREUD, 1913, p. 322) seria o responsável pela substituição da Deusa da Morte pela Deusa da Beleza.
Essa substituição teria sido promovida pela rebeldia do homem contra o reconhecimento de que, ao fazer parte da
natureza, está sujeito à lei da morte. Cabe salientar que essas são representações da mulher feitas por um homem
que viveu na transição do século XIX para o XX, período em que se iniciaram profundas transformações sociais.
28 Essa questão do silêncio será discutida mais adiante na quarta parte dessa dissertação ( item 4.3).
29 Para uma discussão mais detalhada sobre o feminino e a recepção estética, ver a quarta parte desta dissertação.
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.. Os últimos trabalhos
Nos anos , Ana Mendieta realizou inúmeras expe-
rimentações no campo da escultura. Fez também vários projetos para lugares públicos
e outros trabalhos que podiam ser expostos em galerias e comercializados. Uma traição
ao espírito crítico e provocativo dos anos anteriores? Uma forma de sobrevivência?
Ou apenas um desdobrar de suas pesquisas no campo da arte?
A artista cubana fez inúmeros desenhos em folhas que ela recolhia da natu-
reza, em papéis convencionais, artesanais ou feitos de casca de árvore, que trouxe
de suas viagens ao México com Hans Breder. O conjunto de silhuetas -folha é sur-
preendente pela delicadeza da interferência da artista em um elemento da natureza
tão frágil e perecível como a folha, e pelo fato de que cada folha com seu desenho é
única (, , p.  -). Já disse o quanto a artista tinha predileção pela for-
ma da folha.
Outro trabalho inusitado são as silhuetas moldadas com raízes de plantas ( gus) e cola,
chamadas Tallus Mater Stem Mother (Mãe Raiz), de  (, , p. -).
Essas raízes mostram silhuetas que me lembram a forma de um coração. Entrelaçam
mãe, raiz e coração.
Na série Amategram ( -), a artista cubana esboçou uma série de fi guras em
tinta acrílica sobre um papel de casca de árvore chamado amate, feito por índios me-
xicanos (Otomíe). Pontilhados, espirais, labirintos foram explorados nessas fi guras, de
forma semelhante as de trabalhos realizados na natureza. A textura e os tons terrosos
desses papéis de casca de árvore teriam chamado a atenção da artista. Também o uso
desse tipo de papel propiciava conexões com as tradições indígenas mexicanas, que
compunham o leque de culturas antigas que tanto interessava a artista.
Na primavera de , Ana Mendieta ganhou como prêmio um bolsa para re-
sidência e trabalho na Academia Americana, em Roma. A experimentação com pe-
ças de chão feitas antes em Nova York levou a artista a um desenvolvimento posterior
na Itália. Lá fez várias esculturas planas com um material de textura maleável que
criou ao misturar terra do chão da Academia, areia e diferentes colas. A forma dessas
esculturas -silhuetas ecoava as realizadas na natureza. Ela acreditava que, ao usar mate-
riais como a areia de Cuba ou do rio Nilo, podia evocar a energia desses lugares distan-
tes, e mesmo transportar sua carga histórica para suas esculturas. Por exemplo, Oráculo
(Oráculo) e Untitled (Sem Título), de , são feitas com grãos de areia de Varadero.
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 :
    

          
Untitled (Sem Título), 1984.
Desenho sobre folha.
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
          
Shell of Venus/ La Concha de Venus (A Concha de
Vênus), 1981- 82. Acrílico sobre papel amate.
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 :
    

          
Na escultura Nile Born (Nascida no Nilo), de , ela teria usado um material trazido
do rio Nilo por uma amiga.
Na Itália, Ana Mendieta fez exposições na Galeria Primo Piano, em Roma e no
Palazzo Piccioli, uma galeria de Spoleto. Também em Roma, fez uma série de escultu-
ras em troncos de madeira colocados em pé, espécies de totens. São eles: Untitled To-
tem Grove Series (Sem Título – Série Arvoredo Totem), de  -, em que entalhou
e queimou silhuetas femininas e Untitled (Sem Título), de , em que fez desenhos
de folhas, que lembram silhuetas (, , p.  -).
Em grande parte de seus últimos trabalhos, tanto nos desenhos como nas escul-
turas, Ana Mendieta pesquisou padrões de espirais e pontilhados que ela teria visto em
paredes e estruturas antigas. Seu interesse por culturas antigas nunca diminuiu, aliás
parece ter crescido com o tempo. Na Itália, teria explorado vorazmente os arredores
de Roma como Cerveteri (onde se encontram túmulos etruscos), a Vila de Adriano e
Pompeia. Ela também teria viajado para a Espanha, o Egito, Malta, Suíça, Holanda
e Irlanda em busca de antigos sítios.
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 :
    

          
No momento da morte de Ana Mendieta (1985),
foram encontradas essas quatro esculturas, em
confi guração similar. Elas não receberam um título.
Não se sabe se elas foram concebidas para serem
expostas agrupadas ou uma a uma. Cortesia da
Galeria Lelong (Nova York).
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segunda parte:
O feminino e o outro
Mas o outro não se deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer
onde a razão perde os dentes.
Antonio Machado
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
    
.
A fi guração do feminino
é possível?
O
feminino é uma das amarras desta dissertação, e mi-
nha experiência de recepção estética da obra de Ana
Mendieta passa por interrogá -lo. Ao longo de todo
este trabalho, pipocam questões que voltam ao feminino, numa tentativa de elaboração
do que ele é para mim e de como pode estar presente na arte e numa experiência como
a que mergulho. Neste tópico, concentro um certo pensar sobre ele que reaparece em
muitos outros pontos do texto; portanto,o vou aqui esgotar a discussão, mas apenas
lançar breves refl exões.
A arte pode dar a oportunidade de explicitação e de fi guração de questões que
não encontram um caminho de simbolização possível por outras vias, embora saiba-
mos que nem tudo pode ser simbolizado. Para mim, o trabalho de Ana Mendieta dá
oportunidade de discussão sobre a possibilidade de fi guração do feminino. Afi nal, o
que esse trabalho tempestuoso e vulcânico teria a nos dizer sobre o feminino? O que
nos diriam sobre o feminino suas inúmeras silhuetas?
No texto sobre a Vênus Negra (primeira parte), já iniciei essa discussão sobre a fi gura-
ção do feminino nessa obra a. A Vênus de Ana Mendieta brota da terra, da sua escavação,
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 :
    

    
da combustão e está rodeada de cinzas. Ela é formada pelo vazio, é oca, sendo que essa fi -
gura nos remete tanto a uma silhueta como também a uma abertura, a uma vagina, tanto
à morte, à ausência, como ao vazio potencial, a partir do qual pode ser engendrada a cria-
ção. O feminino suscita questões sobre a ausência e o vazio que serão retomadas em ou-
tros pontos desta dissertação, sobretudo no fi nal da quarta parte, em que aponto para uma
diferença entre a ausência prismática e o oco prismático.
Segundo Freud, o feminino é da ordem do enigma e todo enigma tem relação
com a sexualidade. O psicanalista vienense recomenda, na conferência “ A feminilidade
(XII), que, para saber mais sobre a feminilidade (que aqui tomo como sinônimo de
feminino), indague -se sobre sua própria experiência de vida, a ciência e os poetas. O
feminino é ainda um enigma?
Para a psicanalista Silvia Alexim Nunes, Freud teria aprisionado suas refl exões
sobre o feminino em torno das teses centradas na referência ao pênis e ao falo, sendo
esse o motivo da mulher ter fi cado como um enigma para ele (, , p. ). Ela
acrescenta ainda que Freud não teria valorizado a questão da dúvida infantil sobre as
origens dos bebês, a questão da potência presente na gravidez e também nos seios, no
sentido erótico e da identidade feminina. Freud teria se referido aos seios extensiva-
mente, mas pelo viés da amamentação, que fi cou para ele como modelo de satisfação e
prazer, como um paradigma da relação objetal
30
.
É na arte que encontramos o feminino associado à criação e ao mistério do
surgimento do humano a partir do informe. Se o feminino é o formante, ele estaria
antes da forma e, por isso, não poderia ser representado. Suponho que a arte contem-
porânea nos favoreça a vislumbrar o feminino, pois ela valoriza e dá a ver o processo
artístico, o modo de transformar uma ideia em arte. O feminino, então, poderia ser
sugerido pela arte?
O feminino não é a mulher, mas algo que pode a atravessar ou não. O feminino
é uma disposição que pode ou não estar presente em mulheres e homens. Exerce um
fascínio por sua estranheza e mistério. Seria uma conquista temporária ou uma rocha
em relação a qual os homens e as mulheres resistiriam a se saberem castrados, mortais
e humanos, justamente quando se avizinham daquilo que é divino no humano. Ele é
30 Ao longo de sua obra, Freud teria privilegiado a dimensão da falta, do fálico castrado, no que tange a sexualidade
humana (
NUNES, 2002, p. 46). No que toca as mulheres, ele teria priorizado a questão da inveja do pênis. E, ainda,
teria apontado algumas saídas problemáticas para a inveja do pênis na mulher: a inibição sexual; a saída fálica, ou
histérica, que seria a mulher se fazer de homem ou demandar a um homem que ateste sua falicidade; e ter um fi lho,
substituto do falo, a saída menos problemática, mas que deixa a questão da criação para ser pensada como fálica.
Hoje as mulheres já encontraram outras saídas como o trabalho e a criação.
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 :
    

    
abertura, porosidade e pode nos levar a uma entrega, a um desdobramento de si, a um
além de si.
Mas, o que a arte de Ana Mendieta teria a nos dizer sobre o feminino? Como
ponto de partida, é importante frisar que a arte de Ana Mendieta é mais ampla do que
essa questão, e que esse é apenas um recorte possível de seu trabalho extremamente
complexo, rico e multiforme.
Diante da obra de Ana Mendieta, podemos nos surpreender com suas ousadias,
desviar o olhar do que provoca angústia, dor, assim como daquilo que remete à mor-
te, e nos deleitar com seu lirismo e sua poesia; também podemos nos intrigar com seu
trabalho. Com relação às imagens das silhuetas em Ana Mendieta, não se trata pro-
priamente de uma fi guração do corpo feminino, pois não há mimese, ou seja, não há
representação. Trata -se, muitas vezes, de um traço, de uma indicação, de um contorno,
de plantas germinando, de fl ores se espalhando, de um jorro, de um rastro, de um vestí-
gio, de uma imagem borrada, em desfazimento ou, ainda, de uma imagem esburacada.
Rastros de uma ação, vestígios de movimentos corporais… no início era o corpo.
Com relação a pergunta título deste item, sobre se a fi guração do feminino é pos-
sível, pode -se pensar que as imagens de Ana Mendieta são vestígios deixados por uma
ação, por um processo que passa pelo acesso ao feminino. Elas não são uma represen-
tação do feminino, pois o feminino seria esse processo que dá oportunidade ao sur-
gimento das imagens. Nesta dissertação, exploro minha relação com a obra da artista
cubana, que passa pelo atravessamento e por uma experiência do feminino, mais deta-
lhada na quarta parte do trabalho.
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 :
    

    
.
O mistério está entre nós
que temos os pés no chão
e nos deslocamos…
O além é aqui
Nós pisamos no além
Amém!
O além é vermelho
Ele se derrama
Amém!
Aqui e ali
a vida nos leva além
Além mar
Além do sorriso
Além, na volúpia…
O mistério são os outros. O mistério são os outros em nós. O mistério é a vida que
borbulha e é quente. O mistério é a morte que acena. O mistério mesmo é o amor que
brota, inesperado; é uma pequena fl or cor -de -rosa que cresce e irrompe em meio ao
gelo da montanha.
Uma certa relação com o outro percorre todo o trabalho de Ana Mendieta. E, se
hoje, no início do século , temos o artista como uma espécie de etnógrafo
31
, isso se
deve a toda uma história da relação da arte moderna e contemporânea com o outro, o
primitivo, o louco, o infantil. Ana Mendieta tem sua parte nessa história, na crítica que
fez à face sexista do modernismo, entre outras. Com sua arte, ela segue em busca de um
desconhecido, de um feminino, de um povo extinto, de um povo que falta.
31 A etnografi a seria o estudo de outros povos, de agrupamentos. Faz parte da antropologia. A pesquisa etnográfi ca visa
à compreensão da cultura de um grupo de pessoas. Envolve a imersão, a convivência, a observação e a entrevista
como métodos de pesquisa. O papel do investigador na pesquisa etnográfi ca seria o de intérprete da realidade que
ele está observando. É o crítico americano Hal Foster quem nos fala sobre o artista contemporâneo como etnógrafo.
Para ele, nos anos 70, a arte teria passado por um giro situacionista no modo de intervenção cultural a partir da
proposta de Jean Baudrillard, que sustentou que os meios de representação seriam tão importantes como os meios de
produção. Hoje, na interpretação de Foster, estaríamos em meio a um giro etnográfi co (
FOSTER, 2001).
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 :
    

    
A seguir, traço uma brevíssima linha para pensarmos nessa relação da arte com o
outro. Em , Walter Benjamin nos fala a respeito de arte, de política e da questão
da forma e do conteúdo. No texto “O autor como produtor (, ), apre-
sentado como conferência no Instituto para o Estudo do Fascismo de Paris, o autor
alemão discorre a respeito da política de intervenção cultural do Proletkult e aponta
para o risco do mecenato ideológico, para o risco do artista colocar o trabalhador na
posição de um outro passivo a ser “convertido”.
Nesse importante texto, que teria sido retomado por artistas e críticos na déca-
da de , o artista é convocado a tomar uma posição na luta de classes, a se alinhar ao
proletariado, a se engajar como produtor, para intervir nos meios de produção artística,
nos meios de comunicação tradicionais, no sentido de transformar o aparato da cultu-
ra burguesa, ao invés de fi car como uma espécie de “protetor” do proletariado ou como
um mecenas ideológico.
Segundo Foster (), Benjamin privilegia a técnica e a posição em relação ao
tema e à tendência, e, ainda, propõe uma outra maneira de articular a questão da for-
ma e do conteúdo. Para Benjamin, a solidariedade por parte do artista, que teria valor
político -revolucionário, seria aquela da prática material e não a do tema ou da atitude
puramente política, sem implicação estética. Também aí está suposto o lugar de trans-
formação artística como um lugar de transformação política.
Quando Foster propõe o modelo do artista como etnógrafo, ele sugere uma nova
forma de relação do artista com o outro, sendo esse outro com quem o artista se rela-
ciona o outro cultural ou étnico e não mais o proletariado, como no texto de Benjamin.
É a partir desse outro que o artista continuará a transformar o mundo, ainda que com o
mesmo risco de antes, ou seja, de se transformar numa espécie de mecenas ideológico.
Nesse modelo mais contemporâneo, o objeto de contestação segue sendo a instituição
burguesa capitalista da arte (o museu, a academia, o mercado e os meios de comuni-
cação), suas defi nições exclusivistas da arte e do artista, a identidade e a comunidade”
(, , p. ).
As práticas artísticas contemporâneas não se localizam mais exclusivamente numa
galeria, num museu ou num estúdio, mas, sobretudo, conforme afi rma Cristina Freire,
uma das curadoras da 
a
Bienal de São Paulo de , instalam -se numa rede discur-
siva e dirigem -se a um sujeito social marcado pela diferença étnica, econômica, políti-
ca e sexual” (, , p. ). E é isso, entre outras coisas, o que foi apresentado
na 
a
Bienal de São Paulo de , que tinha como tema “Como viver junto”, a partir
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 :
    

    
de questões inicialmente levantadas por Roland Barthes em seu curso no Collège de
France, na década de .
O viver junto continua um desafi o para nós, que nos deparamos cotidianamente
com tanta xenofobia e intolerância. Como não poderia deixar de ser, a artista cuba-
na Ana Mendieta foi incluída nessa Bienal, que abordou, por esse viés do viver junto,
a relação do artista com o outro, a convivência com o outro, em diferentes lugares e
comunidades do mundo. Para abordar essa proposição, entre outras estratégias, a 
a
Bienal acabou com as representações nacionais e, assim, trouxe à baila “questões re-
lativas à diferença entre pátria e terra, nacionalidade e exílio, casa e abrigo (-
, , p. ).
Sobre a presença de Ana Mendieta na 
a
Bienal de São Paulo, a curadora Lisette
Lagnado aponta:
Figura de proa, a presença de Ana Mendieta mostra sua atualidade em paralelo
ao Programa Ambiental de Oiticica. Ambos experimentaram o exílio da década
de  por terem questionado, entre outros tópicos, a face sexista do modernis-
mo; cada um à sua maneira, promoveu o encontro entre a política e a geografi a…
Deixando sua obra (muito) aberta, Mendieta e Oiticica apostaram na inter-
venção do Outro e no desaparecimento gradual da fi gura do artista. (,
, p. )
A experiência do exílio, desse deslocamento político, teria levado Ana Mendie-
ta a conviver com o diferente, a se descobrir diferente, outra, e isso percorre todo o seu
trabalho, assim como media sua relação com os povos e as civilizações antigas. Ela sa-
bia, por experiência própria, como cubana, como mulher, como branca em Cuba, como
preta nos , da resistência ao colonizador, ao dominador e da afi rmação da diferen-
ça diante da hostilidade.
A postura política da artista cubana chama a atenção quanto à marca da dife-
rença. Numa palestra que ela proferiu no Novo Museu de Arte Contemporânea de
Nova York, em , ela abordou sua posição de integridade estética ao afi rmar que
os artistas devem ser fi éis a si mesmos, devem lutar pelo seu trabalho, sem cair nas
malhas da cultura da classe dominante que banaliza, distorce e mistura tudo, que es-
tiliza tudo para os meios de comunicação de massa, para a sociedade de consumo.
Ela salientou: “o imperialismo não é uma questão de extensão, mas de reprodução”
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 :
    

    
(; , eds., , p. ). Observamos, por essa fala, uma artista que
questiona o mundo ao seu redor e que não fi ca indiferente a ele; uma artista que não se
furta a afi rmar sua diferença como cubana, como mulher, como exilada e como artista.
Tratemos agora da questão do lugar, do site -specifi c, termo inicialmente proposto
por Robert Smithson
32
e pelos minimalistas, e que depois foi retomado pelos artistas
de forma mais ampla, como, por exemplo, pelos pós -minimalistas (Donald Judd, Ri-
chard Serra) e outros. No mundo contemporâneo, a noção de lugar é central e passa a
interferir na obra de forma contundente a partir de suas especifi cidades. “O lugar é esse
território vivencial defi nido por espaços densos de sentidos, onde o psíquico e o social
se fundem aos traços da memória individual e coletiva” (, , p. ). Pode-
amos incluir aí também que o lugar carrega toda uma dimensão temporal, histórica
e, sobretudo, que ele tem uma dimensão política.
Nos trabalhos de Ana Mendieta, isso fi ca patente, por exemplo, naqueles reali-
zados nos sítios arqueológicos do México. As tumbas mexicanas transportam para o
trabalho da artista uma matéria vibrante
33
, uma carga simbólica, uma carga histórico-
-política, assim como todo um tempo anterior que nos remete à América pré -hispânica;
ainda, apresenta um tempo presente que se mostra dilacerado e em ruínas.
Quanto ao aspecto do lugar, devemos lembrar que há uma contestação dos artis-
tas contemporâneos em relação aos modernos, que tinham uma concepção de espacia-
lidade abstrata; suas obras podiam ser deslocadas para diversos lugares, pois, para eles,
o lugar era visto como neutro e não fazia parte da obra, não interferia na obra. Segundo
Cristina Freire, na arte contemporânea se abandona a dicotomia arte versus política; a
arte passa a ser imediatamente política, e isso nos leva a notar uma mudança na relação
do artista com o outro, pois, como já citamos, o outro passa a emergir na obra, a par-
tir do lugar, do site -specifi c (, ). No prefácio do livro Além da Pureza Visual,
de Ricardo Basbaum, Rogério Luz diz: A arte é, na atualidade, talvez o mais podero-
so gesto de inscrição instaurador de um outro tempo e um outro espaço históricos no
corpo das relações entre os seres humanos, além das fronteiras nacionais e dos precon-
ceitos de toda ordem (, , p. ).
No caso de Ana Mendieta, o deslocamento para fora do ateliê, o trabalho em ou-
tras paisagens, tanto na natureza como em sítios arqueológicos e históricos, nos leva
32 Robert Smithson trabalhou com land art e fez obras monumentais na paisagem. Arte pós -estúdio é como chamou sua
prática. O afastamento do estúdio liberaria o artista do artesanato.
33 Mais adiante vou discorrer sobre o que seria essa matéria vibrante para Ana Mendieta (item 4.10).
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    

    
para outros tempos e para outros espaços, que vão do Neolítico europeu, passando pela
África, e seguindo em direção à região da mesoamérica
34
e suas antigas civilizações.
Sobretudo, Ana Mendieta mantém uma forte ligação com a cultura afro -cubana, com
os povos Taíno e Siboney (que viveram nas Antilhas pré -hispânicas) e com as civiliza-
ções maia, asteca, zapoteca e mixteca.
No trabalho de Ana Mendieta há ação política. Ela revela -se na sua relação com
o outro. No caso de Ana Mendieta, seria apropriado pensar numa artista arqueóloga,
já que ela pesquisa culturas antigas que foram dizimadas, extintas e as recupera através
dos vestígios, das ruínas, das narrativas como a da Vênus Negra, já citada neste traba-
lho. Mas não é apenas pelo trato com os vestígios que podemos aproximar Ana Men-
dieta da arqueologia, mas também tomando a arqueologia como um arquivo, como
propõe Deleuze nas Conversações (). Diz ele: A arqueologia, a genealogia, são
igualmente uma geologia. A arqueologia não é necessariamente o passado. Há uma ar-
queologia do presente; de certa maneira ela está sempre no presente. A arqueologia é o
arquivo (, , p. ).
Deleuze nos fala da arqueologia como a constituição de uma superfície de inscri-
ção capaz de tornar visível o não oculto. Ele propõe o trabalho: rachar as coisas, rachar
as palavras. A superfície de inscrição criaria arquivos inusitados, estranhos mundos,
através das rachaduras que provoca e do que advém disso. Muitos artistas contempo-
râneos propõem dispositivos que sustentam superfícies de inscrição; assim, criam no-
vos arquivos que entram em circulação pelo mundo e participam da construção de uma
memória coletiva, ccional. A artista Alejandra Riera, por exemplo, trabalha nessa di-
reção. Ela criou a maquete -sem -qualidades, uma forma inédita de arquivo, em que:
Se misturam fotografi as, legendas, textos, relatos, documentos fi lmados… A maquete-
-sem -qualidades pode ser feita ou desfeita, é um livro em movimento, um esboço,
um plano de uma evasão. Um lugar onde é possível se defrontar com problemas não
resolvidos, pensar o mundo e nós mesmos… A maquete -sem -qualidades abre um
lugar onde muitas vozes se fazem ouvir permite liberar a palavra… é também um
refúgio, um espaço coletivo
35
.
34 Mesoamérica é a região que vai do sul do México até Guatemala e Honduras.
35 A Cia Teatral Ueinzz participou de um trabalho da artista Alejandra Riera apresentado na XII Documenta de Kassel,
com o nome Enquete sobre o redor, que segue na mesma direção da Maquete -sem -qualidades. O trecho citado
foi extraído de um projeto apresentado pela Cia Teatral Ueinzz para a Lei do Fomento da cidade de São Paulo, no
primeiro semestre de 2009.
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 :
    

    
O que Ana Mendieta criaria/revelaria com seu trabalho? Ela faria uma recons-
trução fi ccional do passado? De qual passado: individual ou coletivo? Com qual fi -
nalidade? Ela falaria e recomporia apenas uma história pessoal? Toda fião seria
autobiográfi ca e toda realidade uma fião?
Ana Mendieta trabalha com arquivos que foram parcialmente destruídos pelo
tempo, mas deixaram vestígios, rastros. Em suas viagens, em seus deslocamentos pelo
mundo, ela se depara com eles, os explicita, os revela, os transforma, os retrabalha, os
recria; faz uma fabulação com eles, uma fi cção poética; constrói superfícies -telas capa-
zes de nos revelar a mulher -pássaro, a jangada silhueta formada de fl ores e que desce
o rio, a múmia zapoteca manchada pelo sangue do coração -animal, a deusa -Maroya
(Lua) nas cavernas de Jaruco.
A artista cubana faz com o vestígio, com a sucata do passado, uma construção que
passa pela sua história de vida, mas não só, passa também pelos dinossauros lentos e,
ainda, é fi ccional e poética e visa ao seu presente daquele momento, assim como tam-
bém a um coletivo. Ainda hoje, no início do século , Ana Mendieta nos provoca. A
artista, durante a elaboração desta dissertação, me fertilizou, me levou além.
Para Lyotard, as narrativas não são uma forma de memorização, mas sim a pró-
pria atualização do passado no presente (,  p. ). Um narrador é uma
espécie de elo de uma corrente que liga gerações. E, se a arte de Ana Mendieta é to-
mada como narrativa, como propõe Blocker (), ela é um elo, uma atualização do
passado no presente.
Como entender a relação de Ana Mendieta com os povos Taíno, Siboney, antigos
povos da América pré -hispânica e que foram dizimados pelos colonizadores? Ela se-
ria uma espécie de enunciadora, ao se colocar como alguém que esculpe algo relativo a
esse povo que falta, como nas esculturas rupestres das cavernas de Jaruco?
Ana Mendieta fabula o outro. Ela não fala, por exemplo, do povo Taíno, a partir da
perspectiva deles, ela não faz uma história, ela faz arte contemporânea, poesia e resgata ima-
gens das deusas Taíno para falar do presente a partir de elementos do passado, no sentido
da pura fabulação. Ela dá voz a esse povo Taíno através de seu trabalho, mas sem uma pre-
cisão histórica e com um sentido político. A artista busca um feminino, uma essência que
ela acredita existir previamente? Ou, com esse procedimento, ela traz à tona algo do femi-
nino referido a esse povo extinto e renegado para intervir politicamente no seu presente?
Mas o que seria essa fabulação do outro? Não haveria arte, não haveria literatura
sem fabulação, e esta não consistiria em imaginar ou projetar um eu, mas em atingir
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 :
    

    
visões, potências e devires. Mistura do real e do imaginário. A função fabuladora, se-
gundo Deleuze, consiste em inventar um povo. “Não se escreve com as próprias lem-
branças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por
vir ainda enterrado em suas traições e renegações” (, , p. ).
A fabulação é delírio? Sim. A fabulação seria a excreção, o resto do devir, pois o
devir seria da ordem do real. E, ainda, segundo Deleuze, a literatura é delírio e todo de-
lírio é histórico -mundial, todo delírio passa pelos povos, pelas tribos. Delírio é desloca-
mento. E o delírio fi caria sempre entre dois polos, o da doença e o da saúde. É doença
quando erige uma raça pretensamente pura e dominante” (, , p. ). É
saúde quando invoca essa raça bastarda oprimida e que não pára de agitar -se sob as
dominações, de resistir a tudo o que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um
sulco para si na literatura (, , p. ).
Mas o que seria a literatura para Deleuze? A literatura colocaria em evidência
no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma pos-
sibilidade de vida (, , p. ). Ela seria escrever na intenção e não no lu-
gar desse povo que falta, o que nos leva a pensar em Ana Mendieta, que não fala por
um povo ou mesmo não se coloca na perspectiva dele, mas sim traz ele à tona, faz uma
poesia material com ele, traz uma vida dele de presente para nós. A artista abre espaço
para que esses povos se inscrevam em sua arte e é essa sua arqueologia fantástica, fa-
buladora, criadora.
Escrever é um caso de devir sempre inacabado, sempre em via de fazer -se, e que
extravasa qualquer matéria vivível ou vivida (, , p. ). Escrever, e mesmo
fazer arte, para Deleuze, seria uma forma de devir. Devir não seria atingir uma forma,
como na mimese, na arte clássica, mas encontrar uma zona de vizinhança, de indiscer-
nibilidade. O devir está sempre no entre. E ele é real. Ele acontece. Não é uma fusão com
o outro, mas uma transformação que passa pelo outro. Poderíamos pensar na arte de Ana
Mendieta como algo que resultou de um devir taíno, um devir zapoteca, um devir afro-
-cubano, um devir deusa, um devir mulher? Uma ideia é a de que o outro vem tomar lu-
gar em sua obra, a partir do lugar e da criação dessa zona de indiscernibilidade.
A ideia de que no devir algo extravasa é importante, pois escrever, e mesmo fa-
zer arte, leva aquele que escreve além, ou seja, além do vivido, além do vivível; também
aquele que passa pela experiência da obra de arte é levado além (quarta parte da dis-
sertação). O além, o que extravasa, tem relação com o mistério. O além pode ser o
observatório amoroso.
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 :
    

    
 
Entre dois amores,
o observatório lunar,
escadas que procuram os céus.
Liberdade ante o destino traçado.
Mansos degraus erodidos.
Pele escura
a manchar o horizonte.
No topo,
apenas o gozo noturno e sôfrego.
Ao redor,
cálculos difíceis,
enigmáticos
que pululam à moda antiga.
Depois do amor,
apenas os abismos, as quedas,
o derrame vermelho, profuso e quente.
Apenas a fulguração dionisíaca,
o frenesi e sua suave decomposição!
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terceira parte:
Breves articulações
sobre arte, experiência,
corpo e duração
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
  ,
,   
.
Notas sobre a experiência
Estou me sentindo como se já tivesse alcançado secretamente o
que eu queria e continuasse a não saber o que eu alcancei. Será que
foi essa coisa meio equívoca e esquiva que chamam vagamente de
experiência?
Clarice Lispector
U
m ponto de partida deste escrito é a ideia de experiência,
pois pretendo falar da recepção estética a partir dela,
sendo que, para mim, a experiência estética é o mesmo
que experiência do mundo, ou seja, aquilo que nos afeta não necessariamente é algo que
seja do mundo da estética ou defi nido a priori como arte, mas pode ser, por exemplo, uma
tempestade, um gesto, um aroma, uma textura da água do mar, um barulho das ondas…
O interessante da experiência é que ela mantém uma vinculação com o desco-
nhecido, diferentemente da vivência, relacionada com o já conhecido. A vivência, para
Benjamim (), é o oposto da experiência. Segundo ele, a vivência não produziria
necessariamente modifi cações no psiquismo. Ao nos permitir perceber o mundo com
uma sensibilidade aumentada, a experiência, por sua vez, rompe com a rotina, com o
hábito e nos abre ao novo, ao encantamento ou ao horror.
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 :
    

  ,
,   
Para uma certa tradição fi losófi ca, experiência e iniciação seriam opostas. Vejamos:
De fato a primeira (a experiência), composta pelo prefi xo latino ex – para fora, em
direção a – e pela palavra grega peras – limite, demarcação, fronteira –, signifi ca um
sair de si rumo ao exterior, viagem e aventura fora de si, inspeção da exterioridade. A
segunda, porém, é composta pelo prefi xo latino in – em, para dentro, em direção ao
interior, e pelo verbo latino eo, na forma composta ineo – ir para dentro de, ir em,− e
dele derivando -se initium – começo, origem. Iniciação pertence ao vocabulário reli-
gioso de interpretação dos auspícios divinos no começo de uma cerimônia religiosa,
daí signifi car: ir para dentro de um mistério, dirigir -se para o interior de um misté-
rio. (, , p.  -)
No entanto, Marilena Chaui, propõe uma conjugação de experiência e iniciação,
a partir de sua leitura de Merleau -Ponty. Sobre isso, Chaui nos aponta a ideia de expe-
riência como iniciação aos mistérios do mundo:
Ora, se o sair de si e o entrar em si defi nem o espírito, se o mundo é carne ou interio-
ridade e a consciência está originariamente encarnada, não há como opor experientia e
initiatio. A experiência já não pode ser o que era para o empirismo, isto é, passividade
receptiva e resposta a estímulos sensoriais externos, mosaico de sensações que se as-
sociam mecanicamente para formar percepções, imagens e ideias; nem pode ser o que
era para o intelectualismo, isto é, atividade de inspeção intelectual do mundo. Percebi-
da, doravante, como nosso modo de ser e de existir no mundo, a experiência será aqui-
lo que sempre foi: iniciação aos mistérios do mundo. (, , p. )
Interessa -me tomar a ideia de experiência como iniciação aos mistérios do mundo e
também como aquilo que nos leva ao desconhecido, isto é, ao que não é nós, ao que está
fora e que nos afeta. Ser o não ser. Ainda segundo Chaui, a experiência: “É exercício do
que ainda não foi submetido à separação sujeito -objeto. É promiscuidade das coisas, dos
corpos, das palavras, das ideias. É atividade e passividade indiscerníveis. Abertura ao que
não é nós, excentricidade, mais do que descentramento” (, , p. ).
Uma abertura, uma passividade ativa e uma atividade passiva seriam imprescindí-
veis para uma experiência acontecer. É a experiência compreendida e não a compreen-
são da experiência que nos interessa. Ainda segundo Chaui:
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 :
    

  ,
,   
A tradição fi losófi ca nunca conseguiu suportar que a experiência seja ato selvagem
do querer e do poder Fugindo dela ou buscando domesticá -la, a fi losofi a sempre
procurou refúgio no pensamento da experiência, isto é, representada pelo entendi-
mento e, portanto, neutralizada: tida como região do conhecimento confuso ou ina-
cabado, a experiência como exercício promíscuo de um espírito encarnado só poderia
tornar -se conhecível e inteligível se fosse transformada numa representação ou no
pensamento de experimentar, pensamento de ver, pensamento de falar, pensamento
de pensar. (, , p. )
Nesta dissertação, na tentativa de nomeação da minha experiência de recepção
estética, aponto para algo que vem de uma abertura, de um rasgo, algo como uma
palavra -faísca que vem de um atravessamento, ou seja, para algo que vem da expe-
riência compreendida, mas não chega a isso, e é de ordem um tanto distinta, pois é
experiência compreendida de forma lacunar e multifacetada. Mais ato selvagem que
pensamento, e tentativa de escapar da domesticação dominante.
Sobre a experiência de recepção de uma obra, Noemi Moritz Kon, psicana-
lista, propõe um método de leitura fl utuante. O que se processa nesse método é
uma fertilização recíproca entre a obra e o seu leitor, através da associação livre,
do fl utuar e de um dobrar -se sobre si; para mim, uma tentativa de aproximação do
estado de sonho, do devaneio e da duração, ideia que será discutida mais adian-
te. Em poucas palavras, minha proposta é sonhar a obra, só assim seria possível
experimentá -la.
.
Algumas observações sobre arte
e experiência em Merleau -Ponty
A importância da ideia de experiência na investigação
de Merleau -Ponty fez dele um dos guias deste traba-
lho. No livro O visível e o invisível, Merleau -Ponty aponta: o Ser é o que exige de nós
criação para que tenhamos dele experiência (-, , p. ). E essa criação é
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 :
    

  ,
,   
experiência do originário. É preciso salientar que, nesse contexto, o originário nos remete
ao aqui e agora que sustenta, pelo avesso, toda forma de expressão (, , ). O
criador, através de sua experiência, vai à origem da cultura para fundá -la novamente.
A criação é uma experiência; e a recepção estética, neste texto, é também tomada
como uma experiência e, de certa forma, como uma criação, pois é um meio de trans-
mitir a outros uma experiência singular. O termo regularmente utilizado, recepção es-
tética, guarda nele uma ideia de passividade; sendo assim, co com o termo experiência
de recepção estética, que nos remete mais diretamente a uma via de mão dupla, a uma
atividade -passividade. E, se Merleau -Ponty privilegia a via da criação da obra de arte,
nesta dissertação vou destacar a outra via, aquela da experiência de recepção estética,
ou seja, a experiência de contato com a obra do artista.
Para falar da experiência, Merleau -Ponty propõe os conceitos Ser Bruto e Espí-
rito Selvagem. Para ele, o Ser Bruto é o que exige criação -trabalho, ou seja, exige uma
ação do Espírito Selvagem, um espírito de práxis, um querer poder. Por exemplo, o tra-
balho do pintor dá visibilidade ao ser do visível, enquanto o trabalho do escritor ex-
pressa o ser da linguagem e, ainda, o trabalho do fi lósofo leva à inteligibilidade o ser do
pensamento. O pintor, o escritor e o fi lósofo abrem no escuro, no desconhecido, uma
via de acesso à experiência do Ser; assim, eles encontram uma forma de aceder ao uni-
versal através do particular e de um estilo próprio.
O Ser Bruto desconhece a separação entre sujeito e objeto, corpo e alma, cons-
ciência e mundo. Como ser de indivisão, ele é pura diferença interna. Sem ser um ne-
gativo nem um positivo, o Ser Bruto sustenta um visível, um dizível e um pensável; ele
propicia ao Espírito Selvagem o fundo do qual e no qual nasce uma criação. Ambos, o
Ser Bruto e o Ser Selvagem, são inseparáveis, como são a polpa carnal do mundo, car-
ne de nosso corpo e carne das coisas” (, , p. ).
Sendo assim, o Ser Bruto é o fundo do qual e no qual emerge a criação, é uma
presença -porosa, uma presença -abertura, e também um excesso que pede novas ex-
pressões, novas relações. Experiência e obra de arte são pura inquietude, pulsação. O
mundo da arte é cópula entre o Ser Bruto e o Espírito Selvagem, que não cessa de
acontecer e produzir novas facetas do Ser, outros mundos. A deiscência da carne do
mundo é o que possibilita a experiência estética, pois é abertura, convite à copula, dis-
posição para se deixar fecundar e também fecundar.
A arte, para Merleau -Ponty, é uma fi losofi a selvagem que ensina ao fi lósofo o
que é existir como humano. Marilena Chaui ao discutir esse aspecto da fi losofi a de
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 :
    

  ,
,   
Merleau -Ponty afi rma: A obra de arte é a chave do enigma da experiência e do espí-
rito, e dessa maneira ensina a fi losofi a a fi losofar, ensinando -lhe a reversibilidade entre
atividade e passividade, que a tradição julgara opostas” (, , p. ).
Merleau -Ponty propõe ainda que o pensamento não pode se fi xar, mas tem de
mover -se num entre dois. No pensar com o corpo, o movimento é o mais importante.
Também o pensamento não pode nos dar uma visão geral, panorâmica do mundo, ou
mesmo de cada coisa em seu lugar e com sua identidade. Só é possível um pensamento
por facetas, por uma experiência que passa pelo corpo e pela percepção.
Cada obra de arte retoma uma tradição que passa pela percepção e usa os meios
oferecidos por ela para deformá -los, transformá -los ao buscar novas maneiras de per-
ceber o mundo. O trabalho do artista é uma ação fecunda, ou seja, deiscência, parto
interminável, desdobramento de mundos; uma experiência de recepção estética, por
sua vez, pode ser tomada como uma fl oração de novas facetas de uma obra singular.
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 :
    

  ,
,   
.
Um breve passeio pela questão
do corpo através da psicanálise, de
Nietzsche, de Merleau -Ponty
e de Deleuze
A luta com a sombra é a única luta real.
Gilles Deleuze
E vibra -me esse it. Estou viva. Como uma ferida, or na carne,
está em mim aberto o caminho doloroso do sangue. Com o direto
e por isso mesmo inocente erotismo dos índios da Lagoa Santa.
Eu, exposta às intempéries, eu inscrição aberta no dorso de uma
pedra, dentro dos largos espaços cronológicos legados pelo homem
da pré -história. Sopra o vento quente das grandes extensões
milenares e cresta minha superfície.
Clarice Lispector
A obra de Ana Mendieta nos lança imediatamente
em direção à questão do corpo. Ela surge no esteio do
mundo da arte, que passou a usar o corpo como matéria da própria arte, um material vivo.
O corpo de Ana Mendieta está presente em algumas obras. Em outras há uma referên-
cia ao corpo da artista, mas ele está ausente. E, ainda, em outras obras, há a menção a um
corpo mais universal, como por exemplo, o corpo das deusas da mitologia Taíno.
Ao trabalhar minha experiência de recepção estética da obra da artista, fui levada
à questão do corpo.
A experiência de recepção estética acontece num corpo, mas de qual corpo se tra-
ta? Existem inúmeras concepções do que é um corpo, mas qual delas sustentaria uma
experiência dessa ordem? Certamente não é a concepção do corpo meramente bioló-
gico, como organismo, que pode ancorar tal questão.
A presença marcante do corpo na obra da artista me fez entrar em contato com
diversos autores que pensaram sobre o corpo e sua afetação pelo mundo. Fiz um passeio
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 :
    

  ,
,   
por quatro concepções do corpo: o corpo erógeno da psicanálise, o corpo indomável de
Nietzsche, o corpo que refl exiona de Merleau -Ponty e o corpo sem órgãos, ou o cor-
po intensivo, de Deleuze. Privilegiarei apenas algumas ideias pontuais de cada autor,
ideias -centelha, para pensar minha experiência.
O corpo, para a psicanálise, se organiza, se confi gura, fundamentalmente, a partir
do investimento erótico do outro. Sem essa intervenção erógena de um outro, o orga-
nismo sucumbiria, não haveria vida. Para se manter vivo, o homem, que nasce em esta-
do de prematuridade, depende da intervenção, do cuidado, de outro homem, que passa,
inclusive, pela linguagem. Esse corpo psicanalítico interessa a esta dissertação por ser
um corpo atravessado, afetado pela linguagem. Através dela, pode ser transformado e
também intervir no mundo. Ana Mendieta explorou exaustivamente formas poéticas
de chegar ao corpo, de mergulhar nele e de falar dele no mundo.
As confi gurações erógenas, produzidas nessa relação com o outro, seriam ma-
neiras do corpo se organizar para trocar com o mundo, obter prazer, enfrentar a vida.
Nesse contexto, o corpo é tomado como um lugar de tessitura de territórios, como um
campo de batalha das forças da vida versus as forças da morte.
Contudo, nem tudo no corpo é passível de representação, de ser introduzido na
linguagem. Pode haver algo no corpo que transborda e está aquém da simbolização.
Não é demais lembrar que Freud jamais submete o corpo exclusivamente ao reinado da
pura representação (, , p. ). Para ele, o corpo continua misterioso,
assim como a sua relação com a palavra. Como já disse, uma de suas maiores contribui-
ções foi perceber que a palavra afeta, atravessa o corpo e o modifi ca, embora nem sem-
pre isso aconteça, pois há corpos impermeáveis, corpos blocos fechados ou tão abertos
que não conseguem tecer um campo psíquico capaz de relacionar -se com a palavra e
ser transformado por ela.
Seguindo o passeio… Para Nietzsche, não há nenhuma separação entre o corpo
e o espírito. O sangue é espírito. Ele empreende uma luta contra os desprezadores do
corpo. Valoriza o que vem do corpo. E mais, para ele, a sabedoria brota do corpo, da
sua afetação. Os bons e maus encontros levam a um desdobramento do si -mesmo, que
é corporal e espiritual. E, ao valorizar o que vem do corpo, sua inteligência, o fi lósofo
inaugura um campo de experiência. O corpo é, ainda, o que produz a escrita. A palavra
é coberta de sangue; a linguagem é pensada fi sicamente, é gesto, corpo.
Nietzsche é um pensador do terreno, que ancora seu pensamento no corpo. Aliás,
para ele, é o corpo que pensa e é de sua opacidade, de seu desconhecido, que nasce o
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 :
    

  ,
,   
pensamento. No Ecce Homo, ao comentar o seu escrito sobre Schopenhauer como educa-
dor, Nietzsche revela que está aí sua história mais íntima, seu vir a ser. Diz ele: Ali cada
palavra é vivida, profunda, interior; os sofrimentos maiores estão presentes, existem
palavras cobertas com sangue. Mas um vento de grande liberdade sopra sobre tudo; a
própria ferida não é sentida como obstáculo” (, , p. ).
Longe de ser um obstáculo, pelo contrário, a ferida é uma alavanca vital, um pon-
to de virada, uma possibilidade de permutação. A doença é uma mensageira, um alerta,
uma forma de revolta e resistência a uma renúncia de si, a um abandono de si, quan-
do se é submetido violentamente ao mundo. Através de sua turbulência e incômodo, a
doença provoca uma volta a si, e, ao apontar na direção do si -mesmo, com sorte, pode
levar a um desdobrar de si, à libertação de alguma amarra, a uma maior posse de si.
O fi lósofo é entendido, por Nietzsche, como um corpo explosivo diante do qual
tudo corre perigo (, , p. ). O corpo indomável de Nietzsche é o que
o leva à fi losofi a, a um pensamento próprio, singular, pura dinamite. O corpo traz nele
a possibilidade de revolta, ele é insubmisso. Também, para o fi lósofo, a ética nasce no
corpo, nos seus afetos, enquanto a moral não permite o afl orar do si -mesmo e leva a
uma renúncia de si (, , p. ).
Ana Mendieta pareceu -me nietzschiana, pois não apaga, nem deixa de lado, suas
feridas, como, por exemplo, o exílio a que foi submetida, mas sim as problematiza, as
usa como um trampolim para desdobrar a vida. É passando pelas feridas e não as es-
camoteando que segue para além delas. Haveria na obra de Ana Mendieta a presença
de um corpo indomável? O sangue em suas obras é espírito? O que sua obra, que tanto
me impactou, aponta do meu si -mesmo?
Já Merleau -Ponty fala sobre o corpo que refl exiona. O corpo, para o fi lósofo fran-
cês, é sensível e o pensamento está encarnado num corpo; esse corpo pensa no contato
com as coisas, adentrando -as de maneira indireta. O corpo “pensa sendo sensível, não
há dicotomia entre subjetividade e objetividade; ele é sensível em relação ao mundo e a
si mesmo. Ele é ao mesmo tempo visível e vidente, tátil e tocante, móvel e movente. No
belo apontamento de Marilena Chaui sobre Merleau -Ponty, o corpo ao encontrar -se:
[…] preso no tecido do visível, continua a se ver; atado ao tangível, continua a se to-
car; movido no tecido do movimento, não cessa de mover -se. Sofre do visto, do toca-
do e do movido a ação que exerce sobre eles. Sente de dentro seu fora e sente de fora
seu dentro. Sentindo -se, o corpo refl exiona. (, , p. )
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Essa refl exão corporal não signifi ca plena posse de si. No texto “O olho e o espí-
rito”, Merleau -Ponty fala sobre o corpo sensível (e que eu poderia chamar de corpo-
-centelha), um corpo que nasce, que é aceso, a partir de sua afetação pelo mundo:
O corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tateante e tocado,
entre um olho e outro, entre a mão e a mão, faz -se uma espécie de recruzamen-
to, quando se acende a centelha do senciente -sensível, quando esse fogo que não
cessará de arder pega, até que tal acidente do corpo desfaça aquilo que nenhum
acidente teria bastado para fazer. ( -, , p. )
Ana Mendieta trabalha com seu corpo, faz uma “escultura de si que toma forma
através de sua experimentação corporal com elementos como a terra, a água, o fogo, as
ores, as folhas etc. Seu corpo é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto. Em sua arte, o cor-
po é um material vivo, que se transforma em material artístico. Ele é um material sen-
sível, que toca e sente ser tocado A artista coloca as fl ores sobre seu corpo e sente sua
textura recobrindo seu corpo, sente -as se movimentarem com sua respiração. Assim,
faz uma experiência -fl or e produz em si mesma uma transformação. Depois disso, não
é mais a mesma. Também coloca as pedras sobre o corpo, as move com sua respiração
e as sente deslizar. Ou, ainda, prepara a ação e sente uma pequena gota de sangue des-
lizar sobre sua testa e rosto. Também, ao colocar penas sobre seu corpo, transforma -se
em pássaro, pode sentir/viver o bicho em que se transformou.
Quem é o sujeito e quem/o que é o objeto em sua arte? A artista borra as fron-
teiras entre o sujeito e o objeto e, com isso, transforma a si mesma e provoca o corpo
de quem tem contato com sua arte. A partir daí, me movo, sou movida… e movi-
mento. Ou, ainda, percebo que os dinossauros lentos me movem, assim como o povo
Taíno, as marés, as ruínas zapotecas… Há uma reversibilidade, há um ativo e um
passivo em meu corpo, em minhas relações. Refl etir é retroceder, desviar do cami-
nho, voltar a si, inaugurar um novo caminho
36
. Há uma cumplicidade com o mundo
que tem nascimento na refl exibilidade
37
. Há um mundo que se descortina, se abre e
se produz nesse processo.
36 No texto “O que me lê”, Noemi Moritz Kon diz: “Refl etir do latim, refl ectere, designa fazer retroceder, desviando da
direção original. É, justamente, nesse sentido que proponho o novo título de minha fala aqui: não mais ‘o que lê
a gente’, mas sim, ‘o que me lê’, ou seja, ‘aquilo que, suportando minha leitura refl exiva, me faz desviar de meu
caminho, impulsionando -me a uma visão inaugural de mim mesma” (KON, 1999).
37 Noemi Moritz Kon discute a relação entre cumplicidade e reversibilidade no texto “O que me lê” (KON, 1999).
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Deleuze, por sua vez, faz a crítica da fenomenologia por ela se referir apenas ao
corpo vivido, que seria pouco [para mim esse pouco é muito, mas… ] em relação a uma
Potência insuportável, que pulsa no caos e está mergulhada na noite. Ele nos aponta
para o corpo sem órgãos de Artaud, um corpo intensivo, um corpo que transborda e
enlouquece.
O corpo sem órgãos não passaria pela representação. Segundo Deleuze, o orga-
nismo seria diferente do corpo sem órgãos, pois no organismo haveria uma organiza-
ção dos órgãos, enquanto no corpo sem órgãos não encontraríamos essa organização.
O corpo sem órgãos é fl uxo, intensidade, um corpo vivo. O organismo aprisiona a vida,
enquanto a sensação, com seu caráter excessivo, rompe com seus limites. Para Deleuze,
o corpo intensivo é:
percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares segundo as variações
de sua amplitude. O corpo, portanto, não tem órgãos, mas limiares ou níveis. De
modo que a sensação não é qualitativa nem qualifi cada: ela possui apenas uma rea-
lidade intensiva que nela não determina mais dados representativos, mas variações
alotrópicas. A sensação é vibração. (, , p. )
Fica a pergunta: o corpo sem órgãos pode se defi nir pela presença expandida e
surreal de determinados órgãos, como, por exemplo, o corpo -cabeça que surge nos de-
senhos de Artaud ou o corpo -coração desprotegido, como proponho nesta dissertação?
Deleuze diz que o corpo sem órgãos não tem órgãos como os que compõem um orga-
nismo, mas pode sim ter órgãos surreais, provisórios, engendrados pela força. Diz ele:
Eis o que é preciso compreender: a onda percorre o corpo; um órgão será determi-
nado num certo nível, de acordo com a força encontrada; e esse órgão mudará se a
força também mudar, ou quando se passar de um nível a outro. Em suma, um corpo
sem órgãos não se defi ne pela ausência de órgãos, não se defi ne pela existência de um
órgão indeterminado; ele se defi ne, enfi m, pela presença temporária e provisória de
determinados órgãos. (, , p. )
O corpo seria atravessado por ondas em diversos níveis, pela vibração, pela sensa-
ção. Aliás, a “sensação é como o encontro da onda com Forças que agem sobre o corpo
(, , p. ). Na análise de Deleuze, no livro A lógica da sensação, muitas das
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guras pintadas por Bacon mostram o corpo sem órgãos varado por forças, ou seja, o
corpo atravessado por forças -ondas que provocam sensações (, , p. ).
E isso pode acontecer numa pintura ou num corpo real.
Além disso, Deleuze propõe uma relação entre a histeria e o corpo sem órgãos,
sendo o corpo histérico uma das inúmeras possibilidades de um corpo sem órgãos.
Outras possibilidades desse corpo passariam pelo álcool, a droga, a esquizofrenia, o
sadomasoquismo etc. Nos desenhos de Artaud, são recorrentes cabeças sem corpo, ca-
beças separadas do corpo, ou seja, para mim, apresenta -se aí um corpo -cabeça, em que
uma certa anatomia está explodida. Já nas imagens -fi guras de Bacon, haveria muito
da histeria, pelo menos tal como ela foi defi nida no século . A respeito disso, afi r-
ma Deleuze:
Primeiro, as célebres contraturas e paralisias, as hiperestesias ou as anestesias, asso-
ciadas ou alternantes, ora fi xas, ora migrantes, de acordo com a passagem da onda
nervosa, de acordo com as zonas que ela se apropria ou das quais se retira. Segundo,
os fenômenos de precipitação e antecipação, e, ao contrário, de atraso, de posterio-
ridade, de acordo com as oscilações de onda antecipada ou atrasada. Terceiro, o ca-
ráter transitório da determinação do órgão de acordo com as forças que se exercem.
Quarto, a ação direta dessas forças sobre o sistema nervoso, como se o histérico
fosse um sonâmbulo em estado de vigília, um “Vigilâmbulo”. Finalmente, um
sentimento muito especial do corpo, pois o corpo é precisamente sentido sob o
organismo, órgãos transitórios são sentidos sob a organização de órgãos fi xos.
(, , p.  -)
Deleuze observa o excesso de presença que o histérico nos impõe, assim como
o excesso de presença que as coisas e o mundo têm para ele. Um de seus exemplos
da histeria é a pintura de Bacon, que nos marca com um excesso de presença, com
uma presença intensa. A pintura, por sua vez, ao fazer ver a presença, ao fazer ver
com os olhos que coloca por todos os lados, seria histérica, nos aponta Deleuze.
Nessa perspectiva, o trabalho de Ana Mendieta não conteria também certo ex-
cesso de presença com suas silhuetas atravessadas pelo fogo, pelo mar, pelo sangue,
pela relva?
É importante frisar que não é sobre a histeria do pintor que Deleuze nos fala, mas
sim sobre a histeria da pintura, ou seja, com o pintor, e nesse caso trata -se de Bacon,
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,   
a histeria se torna arte, pintura. Ao extrair as presenças sob e além da representação, a
pintura se faz histérica.
Nesta dissertação me interessa a questão do corpo intensivo, aquele que se de-
sorganiza ao ser atravessado por ondas, vibrações, sensações. Ideia -centelha que trago
para o campo de minha experiência. E esse corpo intensivo pode assumir vários dese-
nhos, como o presente na pintura de Bacon ligado à histeria ou o corpo -cabeça de
Artaud. Mas qual seria o desenho intensivo proposto pela obra de Ana Mendieta? Se-
ria um desenho histérico, como o que aparece na pintura de Bacon, pois faz ver a pre-
sença através das silhuetas?
Ainda a partir de Deleuze, pode -se tomar o artista como um detector. Ele detec-
ta forças e as torna visíveis através de sua luta, de seu trabalho. Ele luta com a sombra.
Para esse autor a arte é vital, uma luta com a sombra, um ato de alegria. A esse respei-
to, diz ele:
Quando a sensação visual confronta a força invisível que a condiciona, libera uma
força que pode vencer esta força, ou então pode fazer dela uma amiga. A vida grita
para a morte, mas a morte não é esse demasiado -visível que nos faz desfalecer, ela é
essa força invisível que a vida detecta, desentoca e faz ver, ao gritar. É do ponto de
vista da vida que a morte é julgada, e não o inverso. (, , p.  -)
Em uma experiência de recepção estética, pode -se ou não tornar visíveis, através
de um ato de nomeação, determinadas forças, que surgem das sensações que determi-
nada obra provoca em nosso corpo. A respeito do desenho intensivo que surge de mi-
nha experiência com a obra de Ana Mendieta, penso num corpo varado, atravessado e
relacionado ao feminino. Na quarta parte desta dissertação, delineia -se um corpo in-
ventado, um corpo -coração desprotegido, em que me deparo com uma certa possibi-
lidade de fl uxo, e não mais com um corpo -organismo.
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.
Experiência e duração:
caminhar sonhando
Tornou -se necessário incluir nesta dissertação uma
discussão sobre a duração, pois a experiência, o co-
ração deste trabalho, tem ela como uma de suas condições. Ao discutir a ideia de
duração de Henri Bergson no livro O tempo e o cão a atualidade das depressões, a psi-
canalista Maria Rita Kehl relaciona a vivência ao tempo presente, que mobiliza o apara-
to da percepção -consciência, e a experiência à duração, ao tempo distendido, sendo que
dela também participa a vida psíquica, que se passa fora da consciência (, ,
p. ).
No livro Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, Henri Bergson discute o
conceito de duração. Segundo ele, haveria planos, níveis da consciência, sendo um mais
superfi cial, voltado ao espaço, às quantidades e ao homogêneo, ou seja, às coisas que se
distinguem nitidamente umas das outras, e um plano mais profundo, ligado ao tem-
po, às intensidades, às qualidades e ao heterogêneo. Mas o que seria a duração? Para
Bergson, a duração totalmente pura é:
A forma que a sucessão dos novos estados de consciência adquire quando o eu se dei-
xa viver, quando não estabelece uma separação entre o estado presente e os anterio-
res. Não há necessidade, para isso, de se absorver completamente na sensação ou na
ideia que passa, porque então, ao invés, deixaria de durar. Também não tem de esquecer
os estados anteriores: basta que, lembrando -se desses estados, não os justaponha ao
atual como um ponto, mas os organize com ele, como acontece quando nos lembra-
mos das notas de uma melodia, fundidas no todo. (, , p. )
A duração é a sensação subjetiva de indivisibilidade. Uma espécie de ilusão da
continuidade da existência, pois,se o movimento fosse realmente indivisível, o instan-
te não existiria” (, , p. ). Ela não é a soma dos vários instantes; não pode
ser medida objetivamente, é subjetiva. Henri Bergson diz que é interior o sentimen-
to de continuidade entre passado, presente e futuro; aquilo que constitui a duração
é o processo de penetração mútua dos fatos da consciência, a sucessão de mudanças
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qualitativas que se fundem sem contornos precisos, a pura heterogeneidade. O interior
é como uma melodia, em que as notas se sucedem, mas o ouvinte tem a impressão de
indivisibilidade.
Segundo Henri Bergson, haveria dois eus diferentes. Um deles é a projeção exte-
rior do outro, sua espacialização, sua representação social. O outro eu, o eu mais pro-
fundo, é atingido apenas por meio de uma refl exão mais aprofundada, que nos leva a
captar nossos estados internos, que se penetram e cuja sucessão na duração nada tem
de comum com uma justaposição no espaço homogêneo (, , p. ).
Como a duração é essa interpenetração dos estados da consciência, pode -se fazer
um paralelo da duração com o sonho e o devaneio. Sobre a durée bergsoniana, nos diz
Maria Rita Kehl:
A durée bergsoniana, além da função de conservação do passado no presente necessá-
ria a cada tomada de decisões que a vida impõe aos homens, pode se expandir a pon-
to de alcançar grandes extensões da existência, desde que o espírito possa desligar -se
com certa frequência dos imperativos da ação presente e colocar -se à disposição para
o devaneio e o sonho. (, , p. )
Haveria um presente mais dominado pela premência do fazer, em que a intuição
da duração é mais restrita, e um presente mais dilatado, em que a intuição da duração
é maior. A duração nos possibilita tanto o sentimento de continuidade da existência
como a fruição de tempos não apressados.
O grande problema é que, no mundo contemporâneo, os imperativos da ação im-
pedem o sonho e o devaneio, pois o que conta é a efi ciência, a produção. A hipótese
de Kehl, que me parece muito interessante, é que há um aumento das depressões em
decorrência da proliferação desses imperativos da ação que, aliados a outros fatores,
levam a um esvaziamento e a uma perda de sentido da vida. Um caminho possível para
o homem contemporâneo é dar -se tempo, permitir -se viver a experiência, o sonho e o
devaneio.
A duração está implicada com a liberdade, com a posse de si, com um intuir de si,
sendo oposta ao viver exterior a nós mesmos, ao viver mais no espaço que no tempo.
Segundo Henri Bergson: “somos agidos mais do que agimos. Agir livremente é reto-
mar a posse de si, é situar -se na pura duração (, , p. ). Mas será que é
possível ser totalmente livre e ter plena posse de si? Não acredito na plena posse de si,
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pois há sempre algo a nos escapar. A vida joga conosco e nos leva a lugares inimaginá-
veis. Talvez se possa pensar numa gradação, ou seja, que é possível ter mais ou menos
posse de si, mais ou menos acesso à duração, mais ou menos liberdade.
Na contramão da velocidade que tende a nos engolir, este escrito, sobre uma
experiência de recepção estética, passa pelo tempo distendido, pelo devaneio, por um
caminhar sonhando
38
.
38 Hay que caminar… soñando é o nome de uma peça do compositor contemporâneo italiano Luigi Nono (1924 -90).
Na peça de Luigi Nono, o sonhar está relacionado a uma utopia social. Aqui me interessa o sonho como possibilidade
de devaneio e como utopia, esperança de um dia o homem vir a ser outro.
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quarta parte:
Atravessamentos em um
coração desprotegido
O que me guia apenas é um senso de descoberta. Atrás do atrás
do pensamento.
Clarice Lispector
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.
O atravessamento
E ela soube que tinha sido atravessada por uma trilha luminosa,
varada, instantaneamente, de um quadrante a outro, por um clarão
fugitivo que o pensamento só podia seguir no encalço.
E o que havia ali para ser entendido era o corpo que entendia –
num viés absolutamente novo, onde as imagens se estendiam sobre
as sensações – ou, antes, se enlaçavam a elas. E a culminância para
onde ela (em cada um dos seus corpos) convergia, ao abrir -se em
pétalas, tornava inseparáveis a queda aniquiladora do seu próprio
corpo, entregue que estava ali, e o vislumbre, simultaneamente doce,
do outro corpo, ausente.
Claudia Roquette -Pinto
A
lgumas ideias servirão de apoios, de boias, para que eu
possa falar de minha experiência de recepção estética.
Trata -se de uma experiência única, singular. Ela atin-
giu meu corpo e fez brotar zonas de sombras, clarões, inquietações, tremores, estranha-
mentos, desassossegos, sonhos e, dentre estes, um em que o chão racha e abre enormes
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fendas sob os meus pés. Um chão que balança e desestabiliza é o que impulsiona essa
experiência.
O atravessamento que pode se dar numa experiência estética é minha primeira
ideia -boia. E, se a experiência implica uma duração, o atravessamento que a compõe se
dá no instante
39
. Por um lado, o atravessamento produz uma abertura, um corte, uma
fenda; por outro lado, ele é facilitado por uma presença porosa, fértil e que se deixa pe-
netrar, tocar pela vibração do mundo. Estão em jogo aí uma passividade ativa ou uma
atividade passiva. Com sorte, um atravessamento pode ser algo para além de um corte,
de uma fenda, pode ser um processo de fecundação e gestação.
O feminino levou -me ao atravessamento. Na segunda parte desta dissertação,
indaguei sobre a possibilidade de fi guração do feminino na obra de Ana Mendieta,
sobretudo no trabalho da Vênus Negra, e cheguei à ideia de que o feminino não está
presente numa forma, mas ele é porosidade, convite que possibilita uma fecundação,
uma gestação, enfi m, uma criação. Deiscência. O feminino é o que chamo a seguir
de vazio -oco -prismático. Por um certo viés, o feminino se abre ao atravessamento
e, por outro, o atravessamento, ao derrubar diques, ao abrir fendas, possibilita o fe-
minino.
É importante salientar que o atravessamento não é uma peculiaridade exclusi-
va de uma experiência estética, embora ele possa acontecer/produzir uma experiência
dessa ordem. A espuma do mar, um clarão no céu, o desfalecimento de um vendedor
de pipas na praia podem nos atravessar tanto quanto um desenho de vulcão de Ana
Mendieta ou a imagem em que a artista se deita sobre um coração de animal coloca-
do ao lado de um rio.
O atravessamento não é algo que possa ser determinado pela pessoa, ele sim-
plesmente acontece, à revelia, num desconhecido do corpo, em seus recantos mais
insuspeitos. É como se possibilitasse uma espécie de irrigação, uma respiração, um des-
congelamento ao derrubar diques, muros ou uma blindagem de determinada zona do
corpo. Ao intensifi car certas zonas, certas disposições, produz novas confi gurações de
corpo. Durante o relato dessa minha experiência surge uma dessas confi gurações, um
corpo -coração desprotegido. No texto da epígrafe, encontramos outra dessas confi gu-
rações, ou seja, uma personagem varada por um raio luminoso, atravessada por ele: um
corpo -clarão.
39 No próximo item discuto a relação do instante com a duração.
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Assim como acontece no amor, um atravessamento pode produzir desdobramen-
tos do si -mesmo, nascimentos. Nascimentos de facetas de si mesmo, de sensações, de
emoções, de palavras, de mundos, de visões… Uma palavra viva pode nascer de um
atravessamento, da vibração, do tremor que nos atinge. Ela é faísca, é música clandes-
tina que corre nas veias e surge abrupta. A palavra viva é obtida quando o corpo eró-
geno acessa o mundo de forma porosa. É quando o mundo toca num desconhecido do
corpo e produz faísca.
A revelação, um presente do atravessamento, acontece no corpo, vem do corpo. É
ele que é atravessado. É nele que o atravessamento passa pela experiência, por um pro-
cessamento. Do contrário, o atravessamento pode fi car apenas como trauma. O cor-
po é mistério, nele há sempre um desconhecido, um escuro, um impronunciável e uma
surpresa… Algo como um ritmo que vem do corpo está em jogo nesse processamento.
Ao ser fecundado produz palavras -faísca que ressoam o mundo. Diferente da vivência
que não transforma, um atravessamento nunca é inócuo, é sempre algo que nos mo-
difi ca, como uma onda que ao passar altera a textura da areia da praia. E essa onda-
-atravessamento pode nos levar à dor, à angústia, ao júbilo, à indignação, à entrega, à
criação, ao poema…
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.
Tempos em jogo:
duração e instante -já
Minha atualidade inalcançável é o meu paraíso perdido.
Clarice Lispector
O valor supremo não é o futuro, mas sim o presente; o futuro é um
tempo falaz que sempre nos diz ainda não está na hora” e assim
nos nega. O futuro não é o tempo do amor: o que o homem quer
de verdade, quer agora.
Octavio Paz
O atravessamento é fugidio, ele se passa no instante
40
,
no instante -já
41
. É possível tocar no instante -já? Só
de pensar ele já passou. Ele é impronunciável? Inapreensível? O instante seria aquele
tempo que nunca é, que não existe, pois, por um lado, já passou, já morreu e, por ou-
tro, está sempre por vir. Os instantes escorrem por nossas mãos… É impossível deter o
tempo, mas é no instante -já que o mar respinga no corpo quente, é no instante -já que
a fotografi a capta uma imagem do mundo. E, ainda, é um “instante do mundo” que
40 Um amigo me enviou um e -mail e, numa conversa sobre a fotografi a, me escreveu sobre o instante. Segundo ele,
a fotografi a procura o instante e, assim, a origem de toda a criação; ela não seria mais arte e sim sua condição,
sua origem, uma ligação profunda com o mundo, diferença em estado puro. Diz ele: “o instante é, para mim,
uma temporalidade fascinante. Se a olharmos com uma lupa, vemos que o instante é um tempo que não existe,
já que, por um lado, já passou, e por outro, está sempre por vir. O instante divide -se nessas duas direções. O
Deleuze também fala muito nisto – é um dos pensamentos dele onde mais me perco, onde mais volto.E a morte?
Voltemos ao instante. Peguemos a lupa – o instante é aquele ponto que se está sempre a dividir, partindo -se no
devir universal. Ao perder -se num passado que já foi e num futuro que está por vir, o instante desaparece, está
para toda a eternidade a evaporar -se. Se considerarmos esse desaparecimento na sua temporalidade, dizemos que
o instante é aquele tempo que nunca é. Em si, o instante é um tempo que nunca existe, ou seja, o instante é um
nunca. Comecemos a abrir uma outra morte, uma morte impessoal… coletiva e mesmo assim singular, uma morte
para além da morte pessoal, do luto – uma morte metafísica. Morre -se no instante, Blanchot fala disso. O que é
essa morte? Deleuze, no fi nal de sua vida, fala nela não como morte pessoal, mas também não lhe dá o estatuto
de vida, e chama -lhe ‘uma vida…’. A ênfase está toda no ‘uma’ e na elipse que fala de algo que continua, que
perdura no seu perder -se. Uma vida e um entre, de uma pureza absoluta, entre a vida e a morte. Ali, nesse entre,
encontramos o instante. Não é o instante aquilo que está entre, que, na sua pureza, é o entre em si? Uma vida e o
instante puro coincidem. Ou melhor, a morte e o instante coincidem, não num nada ou num algo, mas no tempo
daquilo que nunca é, mas que nem por isso deixa de ser temporal, deste mundo” (informação pessoal; mensagem
de Filipe Ferreira recebida por e -mail em maio de 2008).
41 O instante -já, o instante do atravessamento, é muito diferente do instante proposto por Bergson, um instante -ponto,
matemático, cronológico. Neste trecho da dissertação, o instante -já é fulguração, é algo que racha a duração.
Procuro compor os dois tempos, ou seja, o instante -já com a duração.
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Cézanne buscava ao pintar. E esses instantes que já passaram continuam a nos ser lan-
çados por suas pinturas de forma misteriosa.
No romance Água Viva”, Clarice Lispector sugere que o instante é um átomo de
tempo, algo impossível de se alcançar. Ao nos escapar, ao escorrer por nossas mãos, o
instante -presente nos seria interditado, ao mesmo tempo em que é cerne, semente de
vida. Uma fecundação, uma vida, começa num instante . O coração bate forte num
instante . Cruzamos o olhar com alguém num instante . Um instante nos leva ao
próximo instante, a uma vida por vir. Surge aqui um instante espesso, afi rmativo
42
.
O mais difícil seria o entregar -se ao instante, e é exatamente isso o que se bus-
ca em certas formas de arte como a dança e o teatro, ou seja, busca -se o estar presente,
busca -se o mais vivo possível. Não poder estar presente é uma das dores do humano.
Se ausentar de si mesmo é morrer para o presente, para a vida. O congelamento, a pa-
ralisia, a cristalização, uma tentativa de deter o tempo -instante, de eternizar o presen-
te, impede o movimento, o fl uxo da vida. A vida é confl ito, luta, dádiva e movimento
quando a sabemos efêmera, passageira. Um atravessamento se dá no instante, num
momento de vida. Uma criação nasce no instante, embora também implique uma du-
ração, um trabalho.
Já a experiência implica uma duração, um tempo distendido. Ela é trabalho com os
tempos passado – presente – futuro. É trabalho com o instante -já, um instante puro, es-
pesso, fulguração, máxima condensação. Os atravessamentos que se dão no instante dei-
xam marcas, queimaduras e a duração é o que nos permite lidar com elas, criar a partir
delas, através do tempo dilatado do devaneio. Um poema, por exemplo, é feito das quei-
maduras de um atravessamento, mas também de um trabalho, de uma paciente tessitura.
Por um lado, Ana Mendieta trabalha com o instante ao utilizar a fotografi a para
registrar suas performances e ações na natureza; por outro, trabalha com a duração nas
ações e nos processos que coloca em andamento e também quando registra seu traba-
lho em fi lmes. Suas ações são sempre efêmeras, passageiras; vida em movimento, vida
em desfazimento Uma de suas silhuetas é desmanchada pela água do mar, outra é
desfeita pelo turbilhão da correnteza de um rio.
42 Peter Pál Pelbart, no livro O tempo não reconciliado, ao discutir sobre o tempo em Deleuze, nos fala sobre o
instante: “O instante não deve ser concebido, nesse contexto, como lâmina sem espessura a separar um passado
de um futuro, mas de modo sintético, afi rmativo, produtivo. O instante, diz Deleuze, determina a si mesmo a partir
daquilo que ele afi rma, ele afi rma no seu retorno o presente, o passado e o futuro… Passar signifi ca retornar
afi rmando o que passa. Que o instante passe não signifi ca que ele é empurrado pelos demais, mas ‘o próprio
retornar constitui o ser enquanto é afi rmado do devir e daquilo que passa’ (Deleuze, Nietzsche e a Filosofi a, p. 40)”
(PELBART, 1998, p. 173).
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A desaparição é um tema caro à artista cubana. Muitas de suas obras desapare-
cem, assim como a vida em nós está destinada a desaparecer. Por exemplo, algumas das
silhuetas que cria se desfazem ao estarem propositalmente expostas ao tempo, ao mar,
as águas de um rio, ao fogo Seu trabalho é esse processo de transformação, de de-
composição, de recomposição, de regeneração da matéria.
Ao trabalhar com culturas antigas e dizimadas, Ana Mendieta toca em desaparições
coletivas, históricas. Através delas faz conexões, constrói narrativas, imagens e, assim, pro-
move uma espécie de renascimento/nascimento de antigas/novas narrativas e imagens.
Um exemplo disso é o trabalho sobre a Vênus Negra já discutido nesta dissertação.
.
O silêncio
Quero um manto tecido com fi os de ouro solar. O sol é a tensão
mágica do silêncio.
Clarice Lispector
Porque em toda a palavra está o silêncio dessa palavra
e cada silêncio fulgura no centro da ameaça
da sua palavra –
como um buraco dentro de um buraco no ouro dentro do ouro
Herberto Helder
Em seu silêncio há dobras, matizes, nuvens, arco -íris súbitos,
ameaças indecifráveis.
Octavio Paz
Silêncio bordado de folhas e relva
guarda uma palavra
palavra secreta
feita de húmus e escuridão
Ouro, silêncio e palavras tecem seu manto esburacado e solar.
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Há um silêncio que não é morte. Há um silêncio que
precede o nome. Interessa -me pensar o silêncio como
respiração do mundo, como aquilo que fi ca entre duas notas musicais, ou mesmo como
aquilo que fi ca entre o número um e o número dois, como nos sugere Clarice Lispec-
tor. Um silêncio pode ser uma respiração. Sem ela não há como surgir nada de novo,
apenas se mantém a repetição monótona do mesmo. Sem o silêncio não há nascimen-
to, criação. Uma obra de arte, ao possibilitar que algo inusitado se destaque do barulho
do mundo, é uma morada de silêncio. Sem ele não há o atravessamento que constitui a
experiência de recepção estética como proponho nesta dissertação.
É difícil escutar o silêncio, a música. O compositor italiano contemporâneo, Luigi
Nono, no texto “O erro como necesssidade”
43
, comenta que com frequência busca-se
os próprios mecanismos, racionalismos, nos outros, e até mesmo na música. O que vale
também para a imagem. É preciso escapar de si para que ocorra uma transformação,
uma saída da repetição. Sem um acesso ao silêncio, não há como sair da mesmice a que
nos leva nossa projeção no mundo
Para Nietzsche, o silêncio permitiria enriquecer, adensar o si -mesmo (diferente
do eu), isto é, afl orar o que é próprio, a partir dos confrontos com o mundo, dos atra-
vessamentos. Como constituinte da gestação da palavra, o silêncio possibilita o nome.
O silêncio da montanha nos permite escutar outros sons dentro e fora de nós, por
exemplo, os sons dos pássaros que nos habitam e os sons dos pássaros das montanhas.
O silêncio propicia a diferenciação.
É verdade que há silêncios e silêncios… e que o silêncio pode ser mortífero. Para
Nietzsche, a palavra mais grosseira, a carta mais grosseira, ainda é mais humana e ho-
nesta que certos silêncios. Diz ele, no “Ecce Homo”:Aos que silenciam falta -lhes quase
sempre fi nura e cortesia no coração; silenciar é uma objeção, engolir as coisas produz
sempre mau caráter – estraga inclusive o estômago. Todos os calados são dispépticos”
(, , p. ).
Ao ler O deslumbramento, de Marguerite Duras, encontrei outras nuances do silêncio,
na história de Lol V. Stein, uma misteriosa personagem. Lol é uma mulher de presença
furtiva, habitada por um oco, sem coração. Depois de ter sido abandonada pelo noivo em
pleno baile, desencorajou -se. Despida de seu olhar, nua, não gritou, nem se revoltou, ape-
nas com o olhar seguiu -o ir embora de sua vida. Sua raiva envelheceu. Seu nome perdeu
43 Agradeço à César A. Sponton a tradução do italiano do texto “ O erro como necessidade” de Luigi Nono.
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algumas letras. E, por um tempo, cou sem falar e sem comer. Aquiescia a tudo. Suas
frases eram interrompidas, as palavras caíam num precipício. Vivia uma espécie de ausên-
cia, de desligamento. Não lhe era possível estar presente. Suas palavras pareciam ter todas a
mesma importância, a mesma tonalidade; eram pura língua morta, apagadas e sem brilho.
A autora sugere que Lol tem um coração ausente e não conhece essa região do senti-
mento. Apenas quando Lol reencontra a amiga Tatiana e seu amante Jacques Hold é que
as coisas mudam e surge um novo silêncio, diferente daquele habitado por um oco. Nesse
instante, a autora aponta para uma ausência habitada por pássaros selvagens. Vejamos:
Lol não responde imediatamente, todos a olham, alguma coisa passa em seus olhos,
como um tremor. Ela se imobiliza sob a sensação de uma passagem nela, de quê? De
versões desconhecidas, selvagens, dos pássaros selvagens de sua vida – o que sabe-
mos disso? – que a atravessam de lado a lado, desaparecem num sorvedouro? Depois
o vento desse voo se aplaca? Ela responde que ignora ter algum dia morado. A frase
não é concluída. Passam -se dois segundos, ela se domina, diz rindo que se trata de
uma brincadeira, uma maneira de dizer que ela está mais contente aqui em S. Tahla
do que em U. Bridge. (, , p.)
O narrador do livro, também amante de Lol, Jacques Hold, afi rma que esse tre-
mor, essa parada, nos mostra que Lol ainda está doente. Será? Já não seria esse um
outro silêncio? Lol treme… e quem sabe dos pássaros selvagens que a atravessam e de-
saparecem no sorvedouro, quem sabe do vento produzido pelos pássaros?
É provável que essa suposição cardíaca de Duras sobre sua personagem tenha me
sgado por estar com as imagens -semente de Ana Mendieta em decantação; são elas:
a de um coração animal, que a artista incrusta numa árvore, e a imagem de um coração
embebido por sangue e sobre o qual a artista se deita nua, imprimindo -o em seu corpo.
Também em mim um coração fi cou impresso. O coração transformou -se no coração
da minha experiência, o coração desta dissertação.
Acrescentei à história de Lol e de seus silêncios um pouco de devaneio, e, assim,
surgiu uma curiosa anatomofi siologia. Delineou -se: sem um coração não há palavras,
palavras vivas… O silêncio que sobrevém do oco é diferente do silêncio de um coração
aquecido e aquecido porque desprotegido.
Se o coração desaparece deixando o corpo oco, ou se ele fi ca muito protegido, apaga
as palavras, destrói, corrói sua força. Só desprotegido, vulnerável e poroso, é que um cora-
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
    
ção no seu silêncio pode, ao ser atravessado, com sorte, ser fecundado, e assim lançar seus
grãos… palavras -semente. Só um coração que volta a ser irrigado, e assim volta à vida, faz
tremer o corpo, produz pássaros selvagens, palavras -pássaro, palavras -semente, palavras
que ainda não germinaram, mas que se preparam para um lançamento.
Utilizo essas referências do romance de Duras também para explorar uma articu-
lação entre o silêncio e o atravessamento. Noto que o silêncio em mim deixado pelo tra-
balho de Ana Mendieta é habitado por vulcões da Guatemala, águas correntes, tumbas
mexicanas, anaforuamas, grutas, cavernas e também pela relva, a areia do Nilo o sangue
quente, imagens -semente, imagens -fonte de palavras -pássaro selvagem que surgiram no
instante -já, mas que fi caram por ser decantadas pelo tempo da experiência.
NOMES
O vento me soprava um nome
Um nome secreto
Um nome sagrado
Meus olhos pregados nas chamas da fogueira
Adivinhavam um nome que queimava
Nome secreto
Nome sagrado
Quando irá nascer?
Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para
sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde
boiarei sobre vagalhões de mudez.
[Clarice Lispector]
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.
Os pássaros e o tigre fatal
O entregar -se ao instante -já pode ser o luar -se, o
orar -se, o azular -se, o marear -se, o estrelar -se… São
muitos os atravessamentos. A seguir, vamos abordar o animalizar -se, o passarinhar -se,
presente em algumas performances de Ana Mendieta. Elas me fi zeram girar em torno
dos pássaros e do tigre fatal… é possível tigrar -se?
Na performance Feathers on Woman (Penas sobre Mulher), de , realizada em
Iowa, Ana Mendieta cobre uma mulher de penas brancas e assim cria uma mulher-
-pássaro que anda pela sala diante dos espectadores e depois se coloca em diferentes
poses. Numa das poses, a mulher senta -se encostada a uma parede e abre suas pernas,
como quem vai parir. A visão dos genitais quase se confunde com as penas. Nasce uma
mulher -pássaro, uma mulher -bicho. Noutra das poses, ela está de pé, estática, muda e
com os braços abertos, diante de uma parede branca. Figura enigmática, apenas a re-
gião do púbis sobressai por não estar coberta de penas brancas, e o restante, inclusive o
rosto e os cabelos, quase desaparecem sob as penas.
A artista cubana fez várias performances com o uso do sangue, de penas e dos ani-
mais, como, por exemplo, a performance Untitled Blood and Feathers (Sem Título
Sangue e Penas), de . Esta foi documentada em super - e registrada num fi lme
de três minutos, em que Ana Mendieta se ensopa com sangue animal e rola por um
monte de penas brancas expostas no solo. Depois, já coberta pelas penas, ca diante do
espectador, com os braços abertos.
Ana Mendieta escolheu a performance e não a poesia ou a pintura para fazer essa
transfomação em pássaro. A artista propõe um mergulho, uma imersão corporal na
experiência -pássaro. Com seu corpo, faz sua experiência da arte, do mundo. E o corpo do
performer é um corpo vulnerável, que, nas performances citadas anteriormente, aspira ao ser
bicho. René Berger, um estudioso das artes, citado por Glusberg (), nos aponta que:
o corpo, se não chega a se vingar, aspira ao menos a escapar da sujeição do discurso,
que é um prolongamento de sua sujeição ao olho. Não somos e nunca fomos cria-
turas falantes ou visuais: nós somos criaturas de carne e sangue. Tampouco somos
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Untitled / Blood and Feathers ( Sem Titulo/ Sangue
e Penas), 1974. Fotografi a colorida.
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
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alvos para tiros, que é ao que nos reduz o discurso da propaganda de massa e da pu-
blicidade.
De tal forma – conclui ele – que a performance e a body art devem mostrar não
o homo sapiens – que é como nos intitulamos do alto de nosso orgulho – e sim o homo
vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre o duplo trauma do nasci-
mento e da morte, algo que pretende ignorar a ordem social, ersatz da ordem bioló-
gica. ( apud , , p. )
A transformação em pássaro é uma maneira de Ana Mendieta escapar da sujei-
ção ao discurso hegemônico e, como criatura de carne e sangue, encarnar um outro ser.
Mas qual seria a ideia de Ana Mendieta com essa performance? Haveria aí uma busca
de comunicação com a natureza? Como podemos falar dessa transformação de uma
mulher em um pássaro?
Clarice Lispector nos fala lindamente sobre o entregar -se ao animal, sobre o
entregar -se a esse mundo selvagem e sem nomes:
Preciso sentir de novo o it dos animais… Quero captar o it para poder pintar não
uma águia e um cavalo, mas um cavalo com asas abertas de grande águia… Os bi-
chos me fantasticam… Às vezes eletrizo -me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o
grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais criatura, se eu ou o
bicho. E confundo -me toda. Fico com medo de encarar instintos abafados que dian-
te do bicho sou obrigada a assumir Não humanizo bicho porque é ofensa – há
de respeitar -lhe a natureza – eu é que me animalizo É só não lutar contra e é só
entregar -se… Não existe nada mais difícil do que entregar -se ao instante. Esta difi -
culdade é a dor humana. É nossa. (, , p.  -)
Reconheço que algo de bicho, de selvagem, de não domesticável, de não humano,
me enlaçou ao trabalho de Ana Mendieta. Ela me fez voltar o olhar para o bicho, para
o pássaro em mim. Puro voo, abertura ao se fantasticar”. De maneira bem diferente,
mas numa mesma sintonia, Deleuze discorre sobre o devir animal:
Não se trata de um acordo entre homem e bicho, nem de uma semelhança, mas de
uma identidade profunda, de uma zona de indiscernibilidade mais profunda que
toda identifi cação sentimental: o homem que sofre é um bicho, o bicho que sofre é
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um homem. É a realidade do devir. Que homem revolucionário, na arte, na política,
na religião ou qualquer outra coisa, nunca sentiu o momento extremo em que ele não
passava de um bicho e se tornara responsável não pelos bezerros que morrem, mas
diante dos bezerros que morrem? (, , p. )
Em muitas culturas encontramos hibridismos homem -animal, como, por exem-
plo, o Deus Ganesha da cultura indiana, homem/deus com cabeça de elefante, com
poderes de homem e de elefante, como perseverança e força. Nos trabalhos de Ana
Mendieta, não nos deparamos com um hibridismo, uma justaposição homem e animal,
mas com outra forma de articulação entre eles. Encontramos o animalizar -se, ou seja,
um mergulho no ser pássaro, um ritual de transformação em pássaro. O que impor-
ta aqui não é a semelhança, mas sim o nascimento de um bicho estranho, nunca antes
visto, uma mulher -pássaro, com toda a sua dimensão sexuada, o sexo à mostra, exube-
rante, desavergonhado, despudorado.
Em uma performance pode -se encontrar uma experiência de atravessamento,
o entregar -se ao instante, o entregar -se ao animal, a uma presença viva, intensa, selvagem.
As performances de Ana Mendieta mostram -me um caminho possível em direção ao
animal, ao animalizar -se. Borges farejou um caminho desses através de sua poesia.
  
Penso num tigre. A penumbra exalta
a vasta Biblioteca laboriosa
e parece afastar suas estantes;
forte, inocente, ensanguentado e novo,
ele irá por sua selva e sua manhã
e deixará seu rastro na lodosa
margem de um rio cujo nome ignora
(seu mundo não tem nomes nem passado,
nem há futuro, só um instante certo).
E vencerá as bárbaras distâncias
farejará no enleado labirinto
dos aromas o aroma da alvorada
e o aroma deleitável do veado.
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
    
Entre as riscas do bambu decifro
suas riscas e pressinto a ossatura
sob essa pele esplêndida que vibra.
Inúteis interpõem -se os convexos
mares e os desertos dos planetas;
desta morada de um remoto porto
da América do Sul, te sigo e sonho,
oh, tigre das ribeiras do rio Ganges.
Corre a tarde em minha alma e eu pondero
que o tigre vocativo do meu verso
é um tigre de símbolos e de sombras,
uma série de tropos literários
e de memórias da enciclopédia,
não o tigre fatal, joia nefasta
que, sob o sol ou a diversa lua,
vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
sua rotina de amor, de ódio e de morte.
A esse tigre dos símbolos opus
o verdadeiro, o que tem sangue quente,
o que dizima a tribo dos búfalos,
e hoje,  de agosto de ,
estende sobre o prado uma pausada
sombra, mas só o fato de nomeá -lo
e de conjecturar sua circunstância
torna -o fião da arte e não criatura
animada das que andam pela terra.
Procuraremos um terceiro tigre.
Como os outros, também será uma forma
de meu sonho, um sistema de palavras
humanas, não o tigre vertebrado
que, para além dessas mitologias,
pisa a terra. Bem o sei, mas algo
me impõe essa aventura indefi nida,
insensata e antiga, e persevero
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 :
    
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    
em procurar pelo tempo da tarde
o outro tigre, o que não está no verso.
Borges passeia pelo tigre do verso e pelo tigre fora do verso. Mais do que isso,
procura pelo tigre que está fora da biblioteca. Ele fareja o tigre fatal, aquele com a
boca suja de sangue. Ele fareja o it do tigre. Procura por um instante -tigre, por um
tigrar -se.
Em uma experiência de recepção estética também é possível um desdobrar dessa
entrega ao animalizar -se. Uma porosidade em relação ao animal pode, com sorte, levar
ao estado de indiscernibilidade proposto por Deleuze. Diante das performances de Ana
Mendieta e do poema de Borges, não pude deixar de me perguntar sobre o animal em
mim. Um instante -pássaro insinuou -se. Os poemas “Levíssima presença ” e “Levíssi-
ma presença ”, a seguir, são uma experiência pássaro vivida e desdobrada em palavras.
São um exercício, uma tentativa de aceder a uma leveza selvagem, a um estar no mun-
do de bicho -pássaro exposto ao vento e ao verde da montanha.
  
Hoje cruzei o mar
como pássaro solitário
o vento acariciava meu corpo em sobressalto
Hoje cruzei o mar
como pássaro faminto
a espuma do mar respingava no meu corpo quente
Hoje cruzei o mar
como mulher -pássaro
o azul do céu atravessava meu corpo candente
  
Hoje atravessei as montanhas
como ave de rapina
meu corpo -olho fl utuava hirto
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 :
    

    
Hoje atravessei as montanhas
como ave ferida
meu corpo revolto cedia à quietude
Hoje atravessei as montanhas
como ave migratória
meu corpo fl amejante seguia impávido
O mundo sem nomes, sem passado, sem futuro, apenas instante certo, apontado
por Borges no poema do tigre, me remete ao feminino, pois é instante -entrega ao pre-
sente, porosidade, abertura a uma fecundação animal. O instante certo é o instante-
-pássaro, o instante -tigre. É o feminino que nos dá acesso aos mistérios do mundo, ao
silêncio da savana africana, ao aroma da alvorada, ao calor do mar orgânico e selvagem;
é ele a abertura que possibilita o entregar -se ao animal, à imersão no animal. Muitas
vezes resistimos ao real, ao erotismo, à intensidade, à vibração incessante da vida. Para
sentir o gosto do vivo
44
, para encontrar o tigre voador, é preciso vencer essa resistência
e ter coragem de pisar na terra molhada.
44 O gosto do vivo é uma expressão de Clarice Lispector em A paixão segundo GH (1968, p.183)
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
Eu quero mais vazio em mim, mais inocência. O vazio é o
meu lugar de existir. Quanto mais vazio, mais existir, mais o
gosto do vivo.
(a partir de Clarice Lispector)
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 :
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
    
.
Os vulcões da Guatemala
e o desalojamento
Depois do contato com a obra de Ana Mendieta
compareceram, em meus sonhos, os vulcões da Gua-
temala. Eles fi zeram meu chão tremer. Abriu -se uma profunda fenda em mim. Vulcões,
fogueiras, fogos de todo tipo irrompiam incandescentes com o seu trepidar ruidoso.
Mal sabemos o quanto a terra é viva e a vida inesperada. Que feiticeira cubana seria
essa diante de mim?
Entre as obras de Ana Mendieta encontramos vários desenhos de vulcões em
ebulição realizados entre  e  (, , p. ); e também o pequeno vul-
cão que expele fogo, em Untitled Silueta Series (Sem Título – Série das Silhuetas)
de , realizado na região de Old Mans Creek, em Iowa (, , p. ). Nesse
trabalho, um tronco de árvore na forma de uma silhueta expele fogo através de uma
região entreaberta que se parece com uma boca. Diversas vezes Ana Mendieta teria
voltado a esse local para atear fogo no tronco, numa espécie de ritual.
Nesses trabalhos encontramos uma energia que vem de dentro da terra para aba-
lar e tumultuar o mundo. Em algumas obras da artista cubana, os vulcões são fi gurados
de forma literal, em outras, nos deparamos apenas com a intensidade, com a força vul-
cânica e disruptiva que se pronuncia.
No trabalho Soul Silhouette of Fireworks (Alma – Silhueta de Fogo), de ,
uma silhueta em fogo, ao vento, fez algo desmoronar em mim sobre o humano. Nele
uma silhueta queimava vermelha e se quebrava pouco a pouco; as máscaras, as cara-
paças, a boa educação ardiam. E sem os mantos… só o pré -humano, só o inumano
restava, e como sugere Clarice Lispector: o inumano é a coisa, a parte coisa da gen-
te”. O inumano é a parte pó, a parte mineral da gente. O inumano é também o vivo,
o animal, o que escapa à domesticação e sabemos o quanto a vida em estado selva-
gem assusta…
Quero o material das coisas. A humanidade está ensopada de humanização, como se
fosse preciso; e essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade.
Existe uma coisa que é mais ampla, mais surda, mais funda, menos boa, menos ruim,
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 :
    

    
Ilustração − Untitled (Sem Titulo), 1980-84.
Óleo e caneta sobre papel
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 :
    

    
Untitled − Silueta Series − Iowa (Sem Título Série
das Silhuetas Iowa), 1977. Fotografi a colorida.
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 :
    

    
menos bonita. Embora também essa coisa corra o perigo de, em nossas mãos gros-
sas, vir a se transformar em pureza, nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.
(, , p. )
Somos feitos do inumano, do que vibra dentro da terra, dos fósseis, das ou-
tras eras. As lavas nos trazem notícias de longe. Os lentos dinossauros correm em
nossas veias, assim como um tanto de estrelas. Sem os asteróides a invadir a Terra
há milhões de anos, não haveria vida humana. Sobre o vulcânico, Juliano Pessanha
aponta -nos:
Sabemos hoje, pois os vulcanólogos não se cansam de repetir que, se não existis-
sem os vulcões, a Terra seria lisa como uma bola de gude ou de bilhar. Não have-
ria relevo ou rugosidade, e muito menos sombra. E isso é o que está acontecendo
hoje a todos nós, em todos os níveis, e isso é de uma evidência cristalina, pois
sentimos cada vez mais o frio da luminosidade avassaladora, e o frio oriundo da
trituração e do massacre de pessoas e lugares nesta engrenagem inteiramente fal-
sa e destrutiva que chamamos de sistema ou mundo normal. (
, ,
p. )
Ana Mendieta nos presenteia com fogueiras, rugosidades, sombras e fere essa en-
grenagem do mundo normal, do mundo blindado, ordenado. Como falar de sua obra
sem a trair, sem perder sua força disruptiva e ceder à fria trituração? Como encontrar
a palavra vulcânica, a palavra -lava?
Um atravessamento estremece a vida, toca o coração escuro, o nosso pequeno vul-
cão adormecido, que pode entrar em erupção a qualquer momento. Com sorte, essa
desorganização, esse tumulto, quebra cristalizações mortíferas. Quem fi ca muito tem-
po sem entrar em erupção acaba envolto por um manto mortuário.
Uma arte vulcânica, como é para mim a de Ana Mendieta, é aquela que pode
trazer à tona o inumano, é aquela que nos desaloja, nos desconforta e que quebra
nossas certezas a respeito do mundo e de nós mesmos. Também é aquela que nos
coloca em estado de perda, de vertigem, ao abrir frestas, fendas, dentro de nós, para
que possamos nos desdobrar, nos fertilizar, nos tornar outros. Sem desestabiliza-
ção, sem quedas, não há mudanças, permutações. Isso o mundo está cansado de nos
mostrar
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 :
    

    
.
O sangue quente e o escuro
como um modo de ser
Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte.
Cantavas o que já não se quebra com o uso
das vozes. Porque tu eras a minha
água salgada
Herberto Helder
SANGUE E SEXO
Só o sangue ilumina o corpo quente
e suas fi nas raízes.
Só o sangue irriga o coração desavisado
e lateja despudorado em fl or.
Só o sexo arde
e brilha como as estrelas estranguladas.
Só o sexo expõe
a carne em resplandecente pulsação.
COAGULAÇÃO
Só o sangue cheira a sangue.
Só o sangue irriga o último estertor.
Só o sangue impregna as dobras do pano negro.
Corpo que fi nda.
Corpo que se bate contra o muro cego.
Descansa!
E desliza… para a turva lembrança.
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 :
    

    
O sangue, elemento vital do corpo, é uma presença importante a ser destacada em
vários momentos da obra de Ana Mendieta. No trabalho Rock Heart with Blood (Cora-
ção de Rocha com Sangue), de , ele é usado mais uma vez pela artista como mate-
rial artístico. Nesse trabalho, a artista coloca sangue no coração de um animal e se deita
nua sobre ele. Fica em nós, espectadores, a impressão de que a artista quer penetrar na
terra, se misturar com ela, car com esse coração animal dentro dela e se nutrir dele.
A ação sugere que um coração fi cou impresso em seu corpo, mas isso não chega a ser
explicitado no fi lme. Em mim, cou impressa uma presença forte da imagem do co-
ração vermelho, e como diz Nietzsche, sangue é espírito, e daí coração é espírito. Ana
Mendieta busca o coração -espírito -animal, aquilo que pulsa, o núcleo da coisa, o nú-
cleo vivo da coisa, para assim atingir o inatingível e tocar o sagrado?
A coisa nunca pode ser realmente tocada. O nó vital é um dedo apontando -o – e,
aquilo que foi apontado, desperta como um miligrama de radium no escuro tranqui-
lo. Então ouvem -se os gritos molhados. A luz do miligrama não altera o escuro. Pois
o escuro não é iluminável, o escuro é um modo de ser: o escuro é o nó vital do escuro,
e nunca se toca no nó vital de uma coisa. (, , p. -)
O coração está além do coração, ele é o escuro. Ana Mendieta, num gesto poético,
sem palavras, tenta atingir, com seu corpo, o inatingível, o escuro do coração. Ela che-
ga a tocar no escuro? Não, com seu gesto apenas nos aponta a direção do escuro sa-
bemos que a palavra e mesmo o gesto ou a dança são apenas acréscimos, faíscas toscas
em relação à vibração da coisa e do seu coração escuro. E o escuro é um modo de ser,
como nos sugere Clarice Lispector.
Uma palavra pode esmagar o coração escuro Sobre a relação da palavra com a
sensação e o sentimento, sugere Bergson:
A infl uência da linguagem sobre a sensação é mais profunda do que normalmente
se pode pensar Em síntese, a palavra com contornos bem defi nidos, a palavra em
bruto, que armazena o que há de estável, de comum e, por conseguinte, de impes-
soal nas impressões da humanidade esmaga ou, pelo menos, encobre as impressões
delicadas e fugitivas de nossa consciência individual… [As sensações] deveriam
exprimir -se por palavras precisas; mas as palavras, logo que formadas, voltar -se-
-iam contra a sensação que lhes deu origem, e inventadas para testemunha que a
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 :
    

    
sensação é instável, acabariam por lhes impor a sua própria estabilidade. (,
, p. )
A sensação e o sentimento não poderiam ser ditos sem que sua coloração se des-
bote? O quanto é possível estar na presença de nós próprios? Haveria um paradoxo in-
transponível entre a palavra e a sensação? É possível nomear uma duração? Para Henri
Bergson, é o sonho que poderia nos dar uma ideia da duração. E uma experiência pode
ser transmitida de forma fi el a ela mesma? Os homens não cessam de buscar a palavra
excêntrica, aquela que poderia dizer o instável, o mutante. Mas, apesar dessas buscas, o
ser guarda nele um coração escuro, pulsante, intransmissível, e que um dia está desti-
nado a apagar -se como as estrelas…
Como cada pessoa tem o seu próprio coração escuro, cada pessoa mereceria uma
palavra -mantra, uma palavra virgem de um sentido prévio, e que pudesse dizer de
si, como nos propõe lindamente Herberto Helder. Qual seria minha palavra virgem?
Qual seria a sua palavra virgem?
Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e rastros
caísse sobre um rosto dormente, essa fachada
essa exaltação
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 :
    

    
.
Tem um rio na gente que corre
em direção ao mundo
Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que rostos passam como a água
Borges
De repente, de noite, ao mesmo tempo, todo rio é rio abaixo, de
toda fonte é preciso fugir, tensas asas rasgam furiosamente o fi o
da água: Nietszche, Nietszche.
Julio Cortázar
No fi lme Flower Person (Pessoa Flor), de , encon-
tramos a imagem de uma silhueta formada por fl ores
que recobrem uma jangada e desce a correnteza de um rio. A força da água quebra e
desmancha, pouco a pouco, a silhueta -jangada. Esse fi lme nos apresenta uma oferenda
à vida, que é acolhida e desfeita pelo leito do rio, pelo curso do tempo.
Várias obras de Ana Mendieta nos remetem ao tempo, ao efêmero e ao poder de
regeneração da matéria, da vida. Um deles é Untitled – Silueta Series – México (Sem Tí-
tulo Série das Silhuetas México), de . Nele uma silhueta escavada e preenchida
de pigmento vermelho, na areia da praia de La Ventosa, no México, se desmancha sob
a ação das ondas, que chegam cada vez com mais força. O pigmento vermelho se es-
parrama pela areia da praia, feito um pólen.
No livro Ante el tiempo, o lósofo francês Didi -Huberman () faz uma rica
refl exão sobre o tempo e a história da arte, em que toma a imagem como portadora da
memória, dos tempos. Ele nos aponta que, quando estamos diante de uma imagem,
estamos diante do tempo. A imagem seria uma porta aberta ao tempo e não nos ocul-
taria nada. O desejo é o que nos deteria diante dela. Assim, temos os tempos possíveis
de uma imagem e também o nosso tempo diante dela, o instante de entregar -se a ela, de
se banhar nela ou de se proteger, de afastar o olhar.
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 :
    

    
Untitled/ Silueta Series/ Mexico (Sem Título/ Série das
Silhuetas/México), 1976. Slide colorido.
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 :
    

    
Perante uma imagem teríamos de reconhecer humildemente que ela nos sobrevi-
verá, sendo o elemento do futuro, da duração, enquanto nós somos o elemento passa-
geiro e frágil (-, ). A arte é o que resta, é o que fi ca no mundo de
um outro tempo. A imagem é uma mensageira do tempo, de um mundo, de um povo;
e, cada um que a recebe, a reconfi gura de uma maneira, sendo que este relato é a tenta-
tiva de tradução de algumas dessas reconfi gurações.
Ana Mendieta gera inúmeras imagens que evocam o tempo. Elas revelam o tem-
po em ação; por exemplo, o tempo é o escultor da silhueta -oferenda que desce o rio
e se quebra, e da silhueta que se desmancha em vermelhos ao ser coberta pelas ondas
do mar
45
. O tempo produz imagens inusitadas e sempre diferentes umas das outras…
propicia a diferenciação.
Pode -se pensar que para Ana Mendieta, assim como nos afi rma Clarice Lispector,
o tempo signifi ca a desagregação da matéria. A esse respeito, a escritora sugere:
Nunca a vida foi tão atual como hoje: por um triz é o futuro. Tempo para mim signi-
ca a desagregação da matéria. O apodrecimento do que é orgânico como se o tempo
tivesse como um verme dentro de um fruto e fosse roubando a este fruto toda a sua
polpa. O tempo não existe. O que chamamos de tempo é o movimento de evolução
das coisas, mas o tempo em si não existe. Ou existe imutável e nele nos transladamos.
(, , p. ).
O tempo nos come como um verme insaciável, nos transforma pouco a pouco,
sendo que dele só nos restam as marcas, os vestígios e a memória turva. Mas será que
do tempo só nos resta a destruição, a degeneração da matéria? De outro modo, pode -se
considerar que o tempo nos surpreende, ele é o intempestivo
46
, o que nos leva além, e
não apenas na direção da morte, da desagregação da matéria, mas é, sobretudo, briga
com a morte, afi rmação da vida.
Depois desses trabalhos de Ana Mendieta, não podemos mais dissociar o rio e
a oferenda, o mar e o apagamento, a água e o tempo. A água leva embora, lava, purifi ca,
45 Untitled/ Silueta Series/ Mexico (Sem Título/ Série das Silhuetas/México, 1976. (VISO, 2004, p. 34).
46 Deleuze faz uma refl exão sobre o intempestivo a partir de Nietzsche. Segundo Pelbart: “Com o intempestivo, Nietzsche
deu à fi losofi a esse tempo próprio a partir do qual pode ela contrapor -se ao presente da cidade sem invocar o
eterno… Porém, de onde viria o Intempestivo, se não do presente que ele combate? ” (
PELBART, 1998, p. 108). Seria
o intempestivo um corte no atual? Ao refl etir sobre o intempestivo em Deleuze, Pelbart comenta que o intempestivo
é fruto de uma nuvem não -histórica, de uma atmosfera ambiente, onde a vida pode engendrar -se e também ser
aniquilada.
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 :
    

    
destrói, enferruja, desagrega a matéria, assim como propicia a vida, o surgimento de
formas nutrindo a ação poética de Ana Mendieta. Viemos do caldo primordial,
das águas, somos feitos de água e, ao nos lembrar disso, a artista cubana homenageia
as águas, assim como nos indica… que tem um rio na gente que corre em direção ao
mundo, às infi nitas possibilidades do viver.
Para onde corre seu rio? Por quais planícies? Que dobras, que sinuosidades ele
empreende no seu curso?
É preciso rasgar o fi o da água!
  
Dentro da gente habita
uma or obstinada,
uma fera que boceja,
uma semente incandescente,
um escuro que lateja,
ali onde a vida nasce.
E também corre um rio
em direção ao mundo.
Agora, Rainer Maria Rilke!
,
Respirar, invisível dom -poesia!
Permutação entre o espaço infi nito
e o ser. Pura harmonia
onde em ritmos me habito
Única onda, onde me assumo
mar, sucessivamente transformado.
De todos os possíveis mares – sumo.
Espaço conquistado.
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 :
    

    
Quantas dessas estâncias dos espaços
estavam já em mim. E quanta brisa
como um fi lho em meus braços.
Me reconheces, ar, nas tuas velhas lavras?
Outrora casca lisa,
céu e folhagem das minhas palavras.
Numa experiência de recepção estética pode acontecer um desdobrar da obra
em nós. Diante do rio de Ana Mendieta, do mar de Rilke, surpreendi -me com os rios
e mares de minha vida já visitados, sentidos, escutados, vistos, imaginados… Somos
também permutação em ondas e mares impossíveis. É parte do atravessamento ras-
gar o fi o da água, conquistar novos mares, inclusive aqueles formados por palavras. O
feminino é essa abertura que nos leva a uma permutação, a uma exploração de mares
nunca antes navegados, é deiscência, abertura, disposição a uma fecundação marítima,
orla hospitaleira, convidativa…

Embalados pelas ondas,
utuamos lado a lado,
anêmonas amarelas em mar escuro.
Pés suspensos nas águas,
em pulsação terna, orgânica.
O mar cálido acendia nossos corpos,
plâncton em festa,
enquanto uma mesa de sonhos se oferecia generosa.
Volumes negros em passagem,
nos acenavam,
silenciosos e soturnos.
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 :
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
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.
As tumbas mexicanas,
a relva e o trágico:
uma imagem -respiração
Coroai -vos de hera, tomai o tirso na mão e não vos admireis se
tigres e panteras se deitarem, acariciadores, a vossos pés. Ousai ser
homens trágicos: pois sereis redimidos. Acompanhareis, da Índia a
Grécia, a procissão festiva de Dionísio!
Nietzsche
-nos tua ardente e sombria transformação.
Herberto Helder

Vai e vem
Vai e vem
A vida insondável e turva
Vai e vem
Vai e vem
O amor úmido que fl oresce
Vai e vem
Vai e vem
A guerra insana que traz as trevas
E ela vai e vem, vai e vem
Sem que possamos lhe escapar
Vai e vem
Vai e vem
O espasmo lunar corruptor
Vai e vem
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
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Vai e vem
O calor que faz o ventre arquear
Vai e vem
Vai e vem
O olhar oblíquo e volúvel
Vai e vem
Vai e vem
Até se abismar
A Image from Yagul (Imagem de Yagul), de , é uma das primeiras imagens
da série das silhuetas. Nela podemos ver Ana Mendieta nua, deitada numa tumba pré-
-hispânica, provavelmente de origem zapoteca, coberta pela relva e por pequenas fl o-
res brancas silvestres. É uma das imagens da artista cubana que mais me toca. Ela nos
leva às lentas transformações da matéria, à relva que germina, à relva que morre pouco
a pouco e também à exuberância e à sombra, à expansão e ao refl uxo, à afi rmação da
vida e à destruição. A artista respira sob a relva que borda seu corpo; e desaparece sob a
relva que borra sua imagem. Através da relva se delineia uma silhueta que pulsa. Uma
respiração tingida de pequenas fl ores brancas. A antiga tumba, inundada de carne viva e
de uma profusão de folhas e fl ores atrevidas e trêmulas, retorna à vida. Singelo poema
encarnado. Pode um poema respirar?
Digo carne viva porque nessa imagem que acabamos de descrever encontramos
um certo despojamento de humanidade. A artista está nua, despida dos sinais da cultura.
Como nos diz Clarice Lispector, é preciso voltar à materialidade da coisa para resgatar
uma humanidade perdida. Lembremos da lenda cubana da Vênus Negra, aquela que re-
siste aos colonizadores e não aceita suas roupas, sua comida, sua língua. O nu feminino,
tão banalizado pela cultura de massas, resgata aqui sua força, seu poder de afrontamento
e de resistência à domesticação, a uma tendência forte de homogeneização dos corpos.
Ainda, na linhagem de Ana Mendieta, encontramos a artista cubana Tania Bru-
gera, que, na performance El peso de la culpa, de , veste uma carcaça de carneiro e
lentamente come bolas de terra misturada com água salgada, numa homenagem aos
nativos da América pré -hispânica que, num ato de desafi o e resistência, escolheram co-
mer terra e morrer de fome a se submeter aos colonizadores (, ). A vida não
vale qualquer vida. É preciso se despojar de uma certa humanidade. Nós sabemos bem
o quanto de genocídio já foi feito em nome de uma certa civilidade.
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
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A vida traz nela mesma a morte, o confl ito faz parte da vida. E a vida renasce
após a destruição, como nos mostra o belíssimo fi lme de Alain Resnais, Hiroshima mon
Amour, em que assistimos a vida e o amor voltarem à cidade devastada, eterno retorno
da vida que insiste em se afi rmar e de modo diferente de antes.
Nesse fi lme também encontramos uma imagem -respiração
47
: dois amantes se
acariciam lentamente, docemente. Pode -se observar, nessa dança, a respiração de am-
bos, a pulsação, o mistério do amor. Eles respiram, expiram luz. Reluzem. O amor faz
o mundo respirar depois da guerra, o amor é mais forte que a guerra e a subverte. Não
é passível de domesticação. Ele renasce como as formigas e os animais pequenos que
apareceram apenas dois dias depois da bomba atômica. Uma francesa ama um japo-
nês, um japonês ama uma francesa… Hiroshima, Nevers. O amor: uma fulguração. Ele
corre em direção ao abismo do esquecimento Pode -se amar o desconhecido, o dife-
rente, o estrangeiro. Nosso destino não é apenas a guerra e a intolerância. Nosso des-
tino é o mistério!
Em Nietzsche, não há tentativa de pacifi car o confl ito. Dizer sim à vida seria um
dizer sim ao trágico que faz parte da vida. Podemos fazer uma relação entre as forças da
vida e da morte que aparecem no trabalho de Ana Mendieta com a questão do trágico
proposta por Nietzsche. Também encontramos uma postura que remete ao trágico na
Vênus Negra e no desafi o dos nativos da América pré -hispânica. Vejo Ana Mendieta
como uma defensora do terreno, assim como Nietzsche. O fi lósofo alemão foi respon-
sável pelo resgate do dionisíaco varrido da cultura grega pelo socratismo. Para ele, a tra-
gédia seria uma resposta não pessimista à dor e uma afi rmação da vida, um sim à vida.
O trágico em Nietzsche resulta do confl ito entre o apolíneo e o dionisíaco. No li-
vro Ecce Homocomo alguém se torna o que é, Nietzsche se denomina Dionísio. Ele ter-
mina esse escrito com a frase emblemática: “− Dionísio contra o crucifi cado”. Coube
a Nietzsche, o Dionísio, empreender um combate feroz contra a moral cristã, os ideais
e a metafísica. Para ele o corpo, não separado da alma, é um norteador da vida, do si-
-mesmo de cada um, a ser desdobrado pelos bons e maus encontros. Numa luta contra
os ideais que massacram o homem, ele persegue a realidade, mesmo com seus horrores;
prefere -a ao que chamamos de forma hipócrita: felicidade, bondade, otimismo.
Na atualidade, encontraríamos um grande privilégio do que diz respeito ao apolí-
neo; e o dionisíaco, por onde andaria? Ao menos numa certa arte, como, por exemplo, a
47 Agradeço a Meire Gomes a lembrança dessa cena depois da leitura deste texto.
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 :
    

    
da artista Ana Mendieta, e também no corpo, no erotismo não domado, não esquadri-
nhado, no rubor que nos escapa. Com o casamento, o sexo foi, de certa forma, domado,
institucionalizado; e com as políticas de gênero encontramos, ao mesmo tempo, uma
abertura social para novas formas de erotismo, mas também uma domesticação dessas
novas formas, que são rapidamente engolidas pelo capitalismo como novos mercados
consumidores.
O dionisíaco, para Nietzsche, nessa que é sua última obra, é pura dinamite, é aqui-
lo que faz desmoronar e impulsiona o movimento da vida. Manifesta -se na luta contra
um Deus nocivo, caluniador, mortífero e moralista. Penso que hoje podemos encontrá-
-lo no terreno, na sexualidade não domada, em certas festas populares, numa arte como
a de Ana Mendieta, nos desmoronamentos que levam a mudanças/deslocamentos, no
vulcânico, na vida e nas suas infi nitas possibilidades de desdobramento e novidade.
.
Talento de árvore
De camada em camada subterrânea chego ao primeiro homem
criado. Chego ao passado dos outros. Lembro -me desse infi nito
e impessoal passado que é sem inteligência: é orgânico e é o que
me inquieta. Eu não comecei comigo ao nascer. Comecei quando
dinossauros lentos tinham começado. Ou melhor: nada se começa.
É isso: só quando o homem toma conhecimento através de seu
rude olhar é que lhe parece um começo.
Clarice Lispector
Não é demais repetir que nada se começa: só quando
o homem toma conhecimento através de seu rude
olhar é que lhe parece um começo”. Ana Mendieta segue em direção ao encontro de
um passado orgânico, inquietante e sem inteligência. E antes de chegar a ele, visita um
passado repleto de nomes, de histórias. Na sua primeira viagem ao México, cou ma-
ravilhada com a imagem da árvore genealógica da família Gusmán, que adorna o teto
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
    
da igreja barroca de Santo Domingo, no centro de Oaxaca. A partir desse momento,
encontramos de forma recorrente no trabalho da artista a imagem da árvore da vida.
A iconografi a da árvore da vida é muito popular no México. Nas cerimônias de
casamento da região do Istmo do México, podemos encontrar a árvore da vida, borda-
da de forma colorida e com motivos fl orais, nos vestidos brancos das noivas. Os Tehua-
nas
48
, habitantes do Istmo do México, foram também foco de interesse da artista Frida Kahlo
(
 -
), conhecida por vestir trajes Tehuanas, como sinal de orgulho nacional, sen-
do a árvore da vida um tema também presente em muitas de suas pinturas, como, por
exemplo, Retrato de Luther Burbank, de . Aliás, Ana Mendieta conhecia bem a
obra da artista mexicana, assim como também havia visitado o Museu Frida Kahlo, na
Cidade do México.
A apropriação desse tema da árvore da vida, por parte de Ana Mendieta, assu-
miu formas mais contemporâneas, ligadas à performance, à land art e à earth body art.
Na Image from Yagul (Imagem de Yagul), feita no México, Ana Mendieta se deitou
numa tumba asteca e se cobriu de fl ores, como já descrevi. Em , em Iowa, Ana
Mendieta se cobriu de barro e se colocou diante de uma árvore para criar a Tree of Life
(Árvore da Vida). Em , num trabalho bem diferente do anterior, mas também
chamado Tree of Life (Árvore da Vida), Ana Mendieta levou meses para moldar uma
árvore viva numa armadura de metal, e, assim, criou uma escultura viva que foi molda-
da pelas folhas e pelo tempo.
E como sugere Herberto Helder: “o luxo do espaço é um talento da árvore, a
arte do mundo úmido (, , p. ). O talento da árvore é abrir espaço,
expandir -se; sua seiva trabalha para isso. Árvore é desdobramento, redobramento, pro-
liferação, frutifi cação, sombra, sobrevivência às agruras do tempo, resguardo, possibi-
lidade de renascimento, fonte.
Ana Mendieta passou das árvores às folhas, da história ao passado orgânico. Al-
guns de seus trabalhos são feitos a partir das folhas, são folhas -silhueta a se multipli-
carem. As folhas ganham formas biomórfi cas, ganham corpo. As folhas dialogam com
as pedras no álbum de litogravuras feito em parceria com Carl Andre, Duetto Pietre
Foglie -Duet of Stone and Leaf (Dueto de Pedra e Folha).
Esse albúm mostra a sinergia entre os dois artistas, assim como suas divergências.
Ambos os artistas teriam usado materiais orgânicos para elaborar suas composições,
48 O termo Tehuanas se refere à população indígena da região do Istmo de Tehuantepec, que teve um passado matriarcal.
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
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Tree of Life (Árvore da Vida), 1976.
Slide colorido
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
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mas, enquanto Carl Andre usou pedras de pavimento, de forma irregular e quadrada,
para montar agrupamentos retangulares, Ana Mendieta usou folhas ovais para compor
silhuetas ou formas biomórfi cas. Nessa época, a artista cubana teria confi denciado a
uma amiga artista, May Stevens, ter descoberto que a folha seria a sua forma preferida,
aquilo que mais poderia falar de si mesma (, , p. ).
Às vezes meu pensamento é apenas o sussurro de minhas folhas e galhos
[Clarice Lispector].
O que murmuram minhas folhas e galhos?
 
Para minha avó Alice ou Ali
Um pedaço de mim está ali,
no grunhir dos pássaros da fl oresta.
Está ali, onde as árvores escondem o céu.
Memória orgânica, memória úmida.
Ali no escuro as raízes procuram por algo,
ali elas formam um mapa,
onde borbulham sementes e estrelas.
Apenas algumas estrelas,
só aquelas que conseguem escapulir
e furar o bloqueio dos galhos e das folhas,
em pura vagueação.
No coração escuro da fl oresta,
encontro um silencioso pedaço de mim
uma lama que gruda no corpo
e quer devolvê -lo à terra,
ali.
As folhas adoram vagamundos.
[Maria Gabriela Llansol]
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
    
.
Um punhado de terra do Nilo
é uma silhueta que é um punhado
de terra do Nilo que é uma
silhueta que é…
Ah, mas não ceder ao reclamo dessa inteligência habituada a
outros convites: invadi -la a palavras, assolá -la a lanço de estrelas,
de vômito ou de enguias.
Julio Cortázar
Invadir essa inteligência habituada a outros convites
com palavras, invadir essa inteligência com um pu-
nhado da areia do Nilo, com pedras… Nas obras dos últimos anos de vida de Ana
Mendieta, não encontramos mais a ideia do site -specifi c, mas a de que certos materiais
poderiam guardar algo da vibração do lugar de onde vieram, ou seja, estaria em pauta
um material específi co. A artista cubana é a guardiã de uma poesia material feita de pó
e lama, de selvageria e inocência, de ruínas zapotecas e do coração -espírito -animal; ela
é a guardiã das vibrações presentes na areia do Nilo
49
, na areia de Varadero, nas caver-
nas de Jaruco, nos sítios arqueológicos que nos remetem a um México pré -hispânico.
A artista cubana travou uma luta feroz contra a domesticação da arte, mas sobre-
tudo contra a domesticação de seu próprio coração escuro, de seu coração africano, de
seu coração taíno, de seu coração zapoteca… Uma ultrapassagem assim é pura bruxa-
ria deslocada no tempo e sabe -se que alguns de nós podemos acessá -la, sobretudo as
crianças e as mulheres sós, capazes de coisas inimagináveis como falar com as plantas,
com os animais e com as estrelas; é isso inclusive o que lhes permite respirar o perfu-
me dos jasmins que invade o escuro da noite, fazer frente ao dragão e à ferocidade do
mundo, e, ainda, arrancar a liberdade à unha. Suponho que no atravessamento, já re-
lacionado com o feminino, há algo de bruxaria, isto é, se chamamos de bruxaria uma
49 Ana Mendieta usou a areia do Nilo em alguns trabalhos, ver item 1.8 da primeira parte.
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 :
    

    
abertura, uma porosidade, uma disposição a se deixar fecundar, a propiciar a fecunda-
ção e assim transformar o mundo.
Ao longo desta dissertação, ao me aproximar da questão do feminino, passei por
essa bruxaria, circulei tanto pela ausência prismática como pelo oco prismático. Mas
qual a diferença entre eles? Uma ausência é sempre ausência de algo ou de alguém que
nos afetou, nos atravessou, nos queimou”. Diante dela, pode -se cair num buraco, ta-
par o buraco ou transformar essa ausência através do prisma. Uma ausência prismática
transforma, desdobra o mundo daquele que a carrega, leva a lugares inusitados, a novas
conexões, produções e criações.
Uma maior liberdade encontra -se quando há um vazio, um oco prismático. Um
vazio, um oco prismático, não tem relação com a ausência, com a falta de algo. Aqui
não falta nada, o vazio é comoção diante do mundo, é um oco potência, propiciador,
abertura, porosidade, convite, oportunidade de algo novo surgir. É um feminino po-
sitivado, terreno e fértil. Com sorte, em uma experiência de recepção estética, o oco
prismático, a presença porosa, aberta a atravessamentos, leva a novos devires, a novos
mundos e a novas amizades.
   
Uma ausência -prisma
produz ventres de lua,
noites intermináveis,
conversas infi nitas,
rastros de sangue e urtigas.
Uma ausência -prisma
lava teus passos outrora quentes,
inventa procênios,
guarda tua morte
onde terminam meus mares.
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 
Eu quero mais vazio para que eu possa rasgar o fi o da água, mais abertura para que
eu possa pisar na lama do tigre fatal. Quero tocar no coração escuro
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Documento em formato eletrônico
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Trabalho apresentado em congresso
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o
Congresso de Leituras do Brasil () da Associação de
Leituras do Brasil  no 
o
Encontro sobre Literatura e Psicanálise. Campinas: Unicamp,
julho de . Texto enviado pela autora.
Jornal
FOLHA DE S. PAULO. Arte serve para criar utopias possíveis. São Paulo,  jul. . Ilustrada. Cader-
no E, p. .
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