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Ana Paula de Almeida Muniz
“Foucault na “História da Sexualidade”: aspectos de um trabalho
inacabado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Irley Franco
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710666/CA
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Ana Paula de Almeida Muniz
“Foucault na “História da Sexualidade”: aspectos de um trabalho
inacabado”
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Irley Fernandes Franco
Orientadora
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. Paulo Cesar Duque Estrada
Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Prof. James Bastos Arêas
Departamento de Filosofia da UERJ
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de Agosto de 2009
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0710666/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da Universidade, da autora e do
orientador.
Ana Paula de Almeida Muniz
Graduou-se em psicologia pela PUC-Rio em
2001. Ingressou neste programa de pós
graduação em 2007. É psicanalista. Trabalhou
no Instituto Municipal Philippe Pinel entre
2004 e 2008. Atualmente exerce a clínica e
participa de atividades de formação e
transmissão da psicanálise.
Ficha Catalográfica
CDD:100
Muniz, Ana Paula de Almeida
Foucault e a “História da sexualidade” :
aspectos de um trabalho inacabado / Ana Paula
de Almeida Muniz ; orientador: Irley Franco.
2009.
109 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Filosofia)
Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
1. Filosofia Teses. 2. Foucault, Michel,
1926-1984. 3. Sexualidade. 4. Subjetividade. 5.
Ética. I. Franco, Irley F.. II. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Filosofia. III. Título.
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Agradecimentos
A Alexandre Belfort, que me encoraja a cada dia a abrir os portais do conhecimento
necessário ao cuidado de si.
A Mary Vanise pela ajuda valiosa no enfrentamento das resistências.
A Cristina Barbosa por ter me dado as chaves simbólicas para descobrir com criatividade
os atalhos reais das forças do inconsciente.
A Sérgio Lage e Anita Tandeta que estiveram comigo de mãos dadas nos encontros
secretos com o gênio da lâmpada.
A Camila do Valle por ter revelado em momentos precisos o valor de se escrever o que se
diz.
A Beatriz Bastos que me incentivou a transformar a imaginação lúdica em texto escrito.
A Andréa Farah, Christiano Marques, Julia Eizirik, Mirian Bacelo e Rafael Gaudenzi pelos
anos de afeto, trabalho e transformações.
Aos meus pais.
A Andrea Barbosa, Marieta Dantas, Raquel França e Marco Serragrande por
experimentarem comigo uma importante amizade em fragmentos.
A Irley Franco pela aposta no meu trabalho desde o início e pela parceria durante todo o
período de pesquisa.
A Capes e ao CNPq, pela concessão das bolsas de estudo.
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Resumo
Muniz, Ana Paula de Almeida; Franco, Irley. Foucault na ‘História da
sexualidade: aspectos de um trabalho inacabado. Rio de Janeiro, 2009. 109p.
Dissertação de Mestrado - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
Esta dissertação tem por objetivo traçar um percurso em torno da “História da
Sexualidade” de Michel Foucault. Partindo de uma contextualização deste
empreendimento no todo do projeto de Foucault, a dissertação destaca seu inacabamento: a
morte de Foucault deixa como legado à filosofia o caráter urgente das questões que levanta
em torno de três noções fundamentais, que caracterizam o que se convencionou chamar de
‘período da ética’. ‘Subjetividade’, ‘sexualidade’ e ‘natureza humana’ aparecem então
como chaves para compreender a significação da “História da Sexualidade” no panorama
da filosofia contemporânea.
Palavras-chave
Foucault, sexualidade, subjetividade, ética.
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Abstract
Muniz, Ana Paula de Almeida; Franco, Irley (advisor). Foucault in ‘The history of
sexuality: aspects of an unfinished work. Rio de Janeiro, 2009. 109p. MSc.
Dissertation. Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
This dissertation aims to follow a path along Michel Foucault's “History of
Sexuality”. By placing this undertaking within the context of Foucalt's project as a whole,
the dissertation emphasizes its unfinished character: Foucault's death leaves a legacy to
philosophy by revealing the urgent character of three basic notions, which form what is
conventionally called the “Ethics Period”. “Subejctivity”, “sexualilty” and “human nature”
are instrumental keys to the understanding of the “History of Sexuality” within the context
of contemporary philosophy.
Keywords
Foucault, subjectivity, sexuality, ethics
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Sumário
1. Introdução 10
2. Da ‘Vontade de saber’ ao ‘Uso dos prazeres’ 16
2.1. Percurso metodológico 16
2.1.1. arqueologia e genealogia 16
2.1.2. Período da ética: necessidade do recuo
para a Antiguidade 19
2.2. Algumas considerações sobre a hipótese repressiva 21
2.3. O ‘dispositivo de sexualidade’ 26
2.4. Algumas considerações sobre as modificações
do projeto de uma história da sexualidade 29
3. A perspectiva da águia: os fragmentos 36
3.1. Escolhas do texto e construção do objeto 37
3.2. Descontinuidade entre as constituições grega e cristã
da experiência individual 39
3.2.1. Lei universal e práticas singulares na Antiguidade 40
3.3. As cisões da alma: questões de ontologia 41
3.4 Heautocracia grega: conseqüências da dominação de si
na casa e na cidade 44
3.5. O exercício (askesis) 45
3.5.1. Questão ontológica e teleológica da askesis 47
3.6. O problema da liberdade 49
3.6.1. As liberdades dos Gêneros: virilidade e feminidade 52
3.6.2. A necessidade do logos para a liberdade: a prática
da verdade e da beleza 54
3.7. Austeridade na moral cristã: renuncia de si 58
3.7.1. Austeridade na moral grega: domínio de si 58
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4. A perspectiva da cobra: uma natureza dinâmica 60
4.1. Dietética 61
4.1.1. As opiniões 61
4.1.2. O cuidado com os doentes 62
4.1.3. A gerência da vida como gerência da natureza 64
4.1.4. Estratégia para o inusitado 65
4.1.5. transmissão de princípios racionais e posição política 65
4.1.6. Regime do prazer 66
4.1.6.1. Confrontação entre purificação cristã
e o modo grego de regulação do uso dos prazeres 69
4.1.6.2. Suspeita e restrição da atividade sexual 70
4.1.6.3. A atividade sexual e a progenitura 72
4.1.6.4. A atividade sexual como campo de forças 73
4.1.6.5. A atividade sexual em sua relação com
o dispêndio e com o corpo como totalidade 75
4.2. Econômica 79
4.3 Erótica 84
4.3.1. O amor 84
4.3.1.1 Divisão do amor: a natureza fora de questão 84
4.3.1.2. O amor masculino 85
4.3.1.3. O campo reflexivo do amor 86
4.3.1.4. A construção do objeto “bom” para o amor 88
4.3.1.5. Prova de educação moral: a prática
do campo amoroso 90
4.3.1.6. O nosso problema (erótico) 91
4.3.2. Objeto do prazer 92
4.3.2.1. Dificuldade da ética da superioridade 92
4.3.2.2. Traços da dificuldade 93
4.4 O verdadeiro amor 95
4.4.1. A relação entre o amor e verdade
na Grécia Antiga e na modernidade cristã 95
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4.4.2. A questão do consentimento:
da moral da renúncia à hermenêutica do sujeito. 96
4.5. Últimas elaborações sobre o uso dos prazeres 103
5. Conclusão 104
6. Referências Bibliográficas 108
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1
Introdução
Mas o que é filosofar hoje em dia quero dizer, a atividade
filosófica senão o trabalho crítico do pensamento sobre o
próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez
de legitimar o que já se sabe? Existe sempre algo de irrisório
no discurso filosófico quando ele quer, do exterior, fazer a lei
para os outros, dizer-lhes onde está a sua verdade e de que
maneira encontrá-la, ou quando pretende demonstrar-se por
positividade ingênua; mas é seu direito explorar o que pode ser
mudado, no seu próprio pensamento, através do exercício de
um saber que lhe é estranho. O “ensaio” que é necessário
entender como experiência modificadora de si no jogo da
verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para
fins de comunicação é o corpo vivo da filosofia, se, pelo
menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma
“ascese”, em exercício de si, no pensamento.
1
Esta dissertação pretende se fiar no espírito do que Foucault chama de
ensaio. Não falamos da forma a dissertação é, ela mesma, uma forma mas do
propósito. Foucault chama ensaio à reflexão filosófica em seu caráter mais vivo.
Àquilo que vem a se contrapor a toda tentativa de sistematização, de
aprisionamento do pensamento em um sistema. Não por acaso, o trabalho sobre a
História da sexualidade será perpassado de ponta a ponta pela oposição entre uma
moral de Código, ‘sistemática’, e a construção de uma estilística de vida, chamada
ética de si. É fato que passou a era dos grandes sistemas filosóficos
2
; mas a
preocupação manifesta em diversos filósofos recentes em reiterar que a tarefa
contemporânea da filosofia não se completa pela sistematização, talvez aponte
para a permanência do que Nietzsche denunciou como ‘vontade de sistema’:
Desconfio de todos os sistematizadores e os evito. A vontade de sistema é uma
falta de retidão.
3
Coloca-se, então, um desafio: apresentar um recorte dentro do pensamento
de Michel Foucault, dissertar sobre ele, sem sistemati-lo. Ou seja, tomar como
1
FOUCAULT, 2006, p. 13.
2
Pensamos, claro, na história da metafísica, mas também, já com Foucault, nos sistemas que
regulam a produção de saberes.
3
NIETZSCHE, 2008, p. 26.
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método a proposta de se permanecer tão perto quanto possível do movimento
investigativo traçado por Foucault em todo o seu trabalho. Isto implica em evitar
as classificações dos conceitos, das noções, dos temas e dos interesses abordados
por Foucault em categorias tradicionais, como as de autor, obra, escola, sistema
4
.
Antes, trata-se de tomar por objeto as próprias inquietações que moveram
Foucault em suas pesquisas. E de ir traçando um percurso sobre o que Foucault já
traçou, de modo a atualizar estas inquietações e de relançar suas urgências na
forma de pesquisa filosófica.
Em Foucault, o filosofar mistura-se com o trabalho do historiador. É fato
que, desde as questões colocadas pela virada hegeliana acerca da historicidade das
coisas, tanto a filosofia quanto a ciência têm de se haver com a história. Mas nem
a ciência, e tampouco a história podem, com isso, se desembaraçar da filosofia: ao
contrário, a articulação entre ‘historicidade’ e ‘cientificidade’ torna-se uma grande
tarefa que pode ser assumida pela filosofia. De modo análogo, nem a filosofia e
nem a história podem desprezar o impacto brutal do advento e do
desenvolvimento da ciência na ordem das coisas. Desse modo, Foucault aborda a
história como filósofo, ao mesmo tempo que interroga os conceitos como
historiador.
Em linhas gerais, costuma-se identificar em Foucault um projeto comum ao
longo de seu percurso, girando em torno de alguns temas privilegiados. Interessa-
lhe a questão do sujeito, deslocada de seus termos tradicionais. Pode-se observar
que este projeto já havia sido iniciado na História da Loucura, onde são
delineadas as condições históricas de possibilidade do sujeito da loucura. Ali a
análise gira em torno dos “jogos de verdade” pelos quais o próprio homem é
levado a se pensar como sujeito da loucura, quando se descobre como louco. Já
em As palavras e as coisas, a reflexão é a do próprio sujeito que se representa
como ser vivo e falante. Investiga-se, então, o recorte de um sujeito
epistemológico. Em Vigiar e punir, recorta-se o sujeito das disciplinas, implicado
nas relações de poder, aquele que se julga e se pune enquanto “criminoso”. Ou
seja, Foucault analisa a relação do sujeito com a verdade através de diferentes
lugares: lugar da loucura, lugar do saber, lugar do poder. Nesta dissertação
pretendemos abordar um quarto momento da pesquisa empreendida por Foucault,
4
Temas trabalhados por Foucault em Arqueologia do Saber
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quando ele se debruça sobre os jogos de verdade implicados na constituição do
sujeito em torno da noção, tão fugidia, de sexualidade.
Propomo-nos, então, a acompanhar o percurso traçado por Michel Foucault
na História da Sexualidade. Previsto para quatro volumes, A Vontade de saber, O
Uso dos prazeres, O cuidado de si e As confissões da carne, o projeto
foucaultiano de uma história da sexualidade ficou inacabado. A morte não
permitiu a conclusão do último volume. O fato trágico de que Foucault tenha
perecido por uma nova doença, sexualmente transmissível, parece apenas renovar
para o pensamento filosófico a tarefa de dar conta desse empreendimento, tão
urgente e tão difícil.
O caráter inacabado da “História da sexualidade”, contudo, pode ser
pensado como inerente à natureza da pesquisa. Foucault precisou realizar
importantes deslocamentos teóricos e modificar estratégias de investigação, na
medida em que se aprofundava no tema da sexualidade. De toda forma, os
primeiros volumes recortam algumas balizas em torno das quais será disposta uma
história. De fato, reencontramos na “História da Sexualidade” a problematização
de algumas noções fundamentais que não cessam de se apresentar como desafio
ao pensamento, tais como as de natureza humana, sexualidade e subjetividade.
Foucault, visando a um diagnóstico da contemporaneidade, inicia seu
percurso no que um certo ‘senso comum’ muito presente na produção de saber
toma como momento de origem da atualidade. É no século XVII, aurora do
capitalismo e momento de reação da Igreja Católica através da contra-reforma,
que muitos teóricos localizarão o início de uma era de repressão do sexo. Após
refutar a ‘hipótese repressiva’, devido a questões metodológicas que serão
apresentadas nesta dissertação, Foucault reorienta sua pesquisa e empreende seu
estudo voltando-se para as relações do indivíduo consigo mesmo na Grécia
clássica. A partir daí, pretendia avançar no tempo, observando, no espírito de sua
genealogia, as transformações sofridas pelas ‘práticas de si’ recortadas do período
clássico. Práticas estas, desde o início, relacionadas ao ‘uso dos prazeres’, que são
forjadas no alvorecer do pensamento filosófico. Já o volume três trata do período
romano, situado nos primeiros séculos cristãos. O volume quatro abordaria todo o
período da pastoral cristã.
Não sabemos se este plano seria cumprido, ou se Foucault sentiria a
necessidade de realizar novos deslocamentos. É fato que, após um intervalo de
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oito anos, os volumes II e III são lançados simultaneamente, no ano da morte de
Foucault. De certa forma, esses dois livros representam seu testamento para a
filosofia.
Nesta dissertação pretendemos nos deter justamente na primeira fase da
‘História da Sexualidade’: fase de problematização, diagnóstico e localização das
balizas históricas fundamentais. Neste sentido, analisaremos os livros I e II, A
vontade de saber e O uso dos prazeres, deixando para uma próxima pesquisa o
caminho apontado na transição do livro II para o livro III.
Optamos por nos situar o mais próximo possível do texto de Foucault.
Esperamos, com isto, proceder a uma leitura válida, ainda que não-sistemática.
Válida como aquisição de instrumentos para se agir filosoficamente. Apresentar o
pensamento de Foucault é mantê-lo vivo, afinal.
No primeiro capítulo, tentaremos contextualizar o projeto da História da
Sexualidade no panorama do trabalho realizado por Foucault ao longo de mais de
duas décadas de intensa atividade intelectual. Abordaremos seus principais
deslocamentos teóricos e estratégicos: analisaremos sucintamente as noções
metodológicas de arqueologia e genealogia, absorvidas no plano de um projeto da
história dos ‘jogos de verdade’ em torno dos quais se distribuem subjetividades.
Para isto será necessário destacar alguns aspectos da concepção foucaultiana da
história. Verificaremos que o tema da subjetividade aparece como um fio
condutor da pesquisa de Foucault.
Neste capítulo, acompanharemos ainda a exposição da questão de uma
história da sexualidade em seu primeiro volume, A vontade de saber.
Conheceremos o que Foucault denominou de hipótese repressiva e os motivos
para sua refutação. Observaremos que a questão da sexualidade é recolocada em
termos das intrincadas relações entre saber, poder e prazer, através da implantação
do ‘dispositivo de sexualidade’ e da constituição de uma ‘scientia sexualis’. Por
fim, analisaremos os motivos teóricos e estratégicos pelos quais Foucault se vê
obrigado a recuar sua pesquisa até a Grécia antiga. Perceberemos que o
deslocamento é provocado pela desnaturalização do tema da sexualidade.
No segundo capítulo, abordaremos com Foucault os principais aspectos das
práticas de si na Grécia clássica, no que, formando uma ‘estilística de si’ se
contrapõe às ‘morais de código’ tão próprias das formações discursivas
subseqüentes. Nossa preocupação, aqui, será de articular o que Foucault busca na
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Grécia com aquilo que fundamentalmente move o seu trabalho desde seus
primeiros livros, uma urgência em realizar uma história do presente. Talvez se
possa delinear nesta fase a recolocação, por Foucault, do tema da natureza
humana, ou, pelo menos, da natureza da subjetividade. Nossa idéia é relançar
alguns pontos recolhidos neste livro para que juntos nós e os leitores possamos
ir problematizando um dos registros mais significativos dentre aqueles produzidos
pelo pensamento racional, a noção de natureza humana. Por isso, pretendemos
apresentar, em consonância com os propósitos de Foucault, idéias recolhidas de
um tempo distante que, mostra Foucault, se tornaram imprescindíveis para a tarefa
atual de crítica sobre o pensamento e diagnóstico do presente.
5
O terceiro capítulo apresenta e analisa os temas centrais que norteiam o
estudo de Foucault sobre o uso dos prazeres na Grécia Clássica. Acompanharemos
a trajetória delineada por Foucault para tentarmos nos aproximar daquilo que ele
busca nos textos gregos. Conhecemos seu estilo. Sabemos que Foucault não tinha
a pretensão de, nessa etapa de seu percurso, dedicar-se a um estudo profundo de
Platão e do pensamento grego clássico. De saída, já no prefácio de O uso dos
prazeres, ele esclarece as razões de seu interesse pelos gregos. Nesse apanhado
geral vamos apresentar alguns temas que aparecem insistentemente no livro, como
o domínio de si necessário na busca da virtude e os exercícios (askesis)
necessários neste combate do indivíduo consigo mesmo em busca de um estado
virtuoso.
Podemos entender A História da Sexualidade II como um livro que
descreve práticas cotidianas seguidas pelos indivíduos na tentativa de se
conduzirem como sujeitos éticos. Na Antiguidade Clássica, encontraremos um
momento histórico no qual os indivíduos exerciam no cotidiano uma luta
permanente para não serem escravos de si mesmos no sentido de serem
dominados por seus desejos. Essa questão do domínio de si, própria aos gregos,
nos revelará uma concepção de indivíduo bem diferente da que lidamos hoje. O
indivíduo na Grécia apresentava-se dividido em duas partes. Nessa divisão seria
5
Observe-se, neste sentido, o que está disposto no apêndice das “Teses sobre a História” de Walter
Benjamin: “O historicismo se contenta em estabelecer uma ligação causal entre diversos
momentos da história. Mas nenhuma realidade constitui um fato histórico simplesmente por sua
qualidade de causa. Ela torna-se tal a título póstumo, sob ação de eventos que podem estar dela
separados por milênios. O historiador que parte daí pára de desfiar a seqüência dos eventos como a
um rosário. Ele capta a constelação que sua própria época forma com tal época anterior. Ele
funda, assim, um conceito do presente como ‘a-presente’, no qual se cravam os estilhaços do
tempo messiânico”. BENJAMIN, W. 2000, p. 442. Tradução nossa, grifo nosso.
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determinada a vitória de uma parte sobre a outra. Para a formação do sujeito ético
era necessário que a melhor parte dominasse. É sobre o material referente a essa
formação que Foucault vai se deter neste livro.
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2
Da ‘Vontade de saber’ ao ‘Uso dos prazeres’
E quanto à ‘ampliação’ do conceito de sexualidade, que a
análise das crianças e dos chamados perversos tornou
necessária, todos aqueles que desde seu ponto de vista superior
olham desdenhosamente para a psicanálise deveriam lembrar-
se de quanto essa sexualidade ampliada da psicanálise se
aproxima do Eros do divino Platão
1
2.1
Percurso metodológico
2.1.1
Arqueologia e genealogia
Todo o trabalho de Foucault é atravessado pelo interesse na produção do
que pode ser chamado de um diagnóstico da atualidade. A tarefa impôs, ao longo
das pesquisas, diferentes métodos e questões metodológicas. Em um primeiro
momento, nos anos sessenta, a investigação foucaultiana respondia pela noção de
arqueologia. O projeto de uma arqueologia foi, a partir dos anos setenta,
transformado em um projeto genealógico.
No período da arqueologia, Foucault propõe uma análise do arquivo. Na
Arqueologia do saber, encontramos a descrição do que ele denomina arquivo e
das indicações do uso do arquivo como instrumento metodológico:
A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo
próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que
cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade: é aquilo que,
fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e
o controle de suas possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar
justamente de ser os nossos; seu limiar de existência é instaurado pelo corte que
nos separa do que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática
discursiva; começa com o exterior da nossa própria linguagem; seu lugar é o
afastamento de nossas próprias práticas discursivas. Nesse sentido, vale para nosso
diagnóstico. Não porque nos permitiria levantar o quadro de nossos traços
distintivos e esboçar, antecipadamente, o perfil que teremos no futuro, mas porque
nos desprende de nossas continuidades; dissipa essa identidade temporal em que
gostamos de olhar para conjurar as rupturas da história; rompe o fio das teleologias
1
FREUD, 1996 (1905d, 1920e), p. 127
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transcendentais e aí onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem
ou sua subjetividade faz com que o outro e o externo se manifestem com evidência.
O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa identidade
pelo jogo das distinções. Ele estabelece que somos diferença, que nossa razão é a
diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença
das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é a
dispersão que somos e que fazemos.
2
Nos anos setenta, no projeto foucaultiano, há uma mudança
epistemológica na direção de uma analítica genealógica. O trabalho passa a
priorizar as relações de podersaber, ao esmiuçar o peso do poder na formação
dos saberes. Roberto Machado, em Ciência e saber: a trajetória da arqueologia
de Foucault
3
, apresenta uma breve análise de François Ewald sobre a genealogia,
onde se mostra que os problemas colocados a partir das elaborações de Vigiar e
punir precipitam as formulações genealógicas subseqüentes. Neste livro, a
problematização parte da relação entre poder e corpo, situada num momento
descrito como aquele da tomada do poder sobre os corpos.
O trato do material, a cada vez, obedece às necessidades impostas por suas
características específicas, isto é, àquilo que seria próprio do momento em questão
e dos problemas que então eram colocados. A diferenciação entre um método
arqueológico, apresentado, por exemplo, em As Palavras e as coisas, pesquisa
cujo corte incide sobre os discursos e arquivos presentes na irrupção das ciências
humanas, e uma análise genealógica não pretende dissociar as duas tarefas. Longe
disso, Ewald observa uma ligação entre os dois momentos na trajetória
foucaultiana: “Les mots et les choses eram uma arqueologia das ciências humanas,
Surveiller et punir retraça sua genealogia”
4
.
As análises genealógicas a partir de então vão considerar os mecanismos
de poder como uma concepção positiva que abre espaço, no campo de pesquisa,
para outros problemas que se estendem para além da concepção negativa de poder
(poder como força repressora, violenta e coercitiva). Uma análise do poder como
concepção positiva impõe uma maior complexidade à abordagem das questões
referentes ao poder, ao mesmo tempo em que exige uma energética delimitação
histórica e uma rigorosa demarcação dos objetos. A análise genealógica exige,
2
FOUCAULT, 2005, p.148, 149.
3
MACHADO, 1988, p. 188.
4
EWALD apud MACHADO, op. cit., p. 188.
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desta forma, ser realizada através de um dinamismo que faz o pesquisador lançar-
se desde o presente em direção ao material do passado.
A genealogia do poder conta com a noção de dispositivo, que aponta para
os mecanismos de poder atuantes na construção dos saberes estabelecidos. A fase
da pesquisa genealógica revelou que saber e poder são atrelados em suas bases,
que uma relação de poder implica na constituição de um campo de saber e,
simultaneamente, os saberes formatam novas relações de poder. Segundo
Machado, a análise genealógica apresenta como ponto de partida uma implicação
mútua entre saber e poder:
Cada vez mais se impõe a necessidade do poder se tornar competente: vivemos
cada vez mais sob o domínio do perito. Mais especificamente, a partir do século
XIX todo agente do poder vai ser um agente da constituição de saber, devendo
enviar, aos que lhe delegaram um poder, um determinado saber correlativo do
poder que exerce. É assim que se forma um saber experimental ou observacional.
Mas a relação ainda é mais intrínseca: é o saber enquanto tal que se encontra
dotado estatutariamente, institucionalmente, de determinado poder. O saber
funciona na sociedade dotado de poder. É enquanto é saber que tem poder.
5
A revelação da relação entre saber e poder demonstra que a genealogia
apreende o saber como materialidade, como prática, como acontecimento. A partir
da análise genealógica, o lugar imparcial do saber transmuta-se em sua
apropriação como peça de um dispositivo político. Para Machado “a questão da
genealogia tem sido a de como se formaram domínios de saber a partir de práticas
políticas disciplinares”
6
.
O trabalho que toma o poder como prática e como parte de um dispositivo
político implica a capacidade de olhar as coisas estando elas dispostas em
dispersão, de tornar vivo o material localizado em outro momento histórico,
recolhido através de referências estranhas para nós. Essa estranheza não deve ser
entendida como o resultado de uma diferença essencial que os materiais distintos
portariam, mas como indício de que as identidades foram construídas em sua
história por elementos estranhos e diversos. Segundo Martins, a pesquisa
genealógica:
5
MACHADO, 1988, p. 199.
6
Idem; p. 198.
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19
(...) tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica. Ao
fazê-lo a genealogia nos ensina que “atrás das coisas ‘há algo inteiramente
diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem
essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que
lhe são estranhas”
7
2.1.2
Período da ética: necessidade do recuo para a Antiguidade
O período final do trabalho de Foucault é conhecido como período da
ética. Então, um problema advindo do próprio material da pesquisa produziu um
recuo da contemporaneidade para a antiguidade, trabalho realizado na transição da
História da sexualidade I, a vontade de saber, para a História da sexualidade II, o
uso dos prazeres.
Na pesquisa sobre o sujeito em sua relação com o sexo e o desejo fez-se
necessário um recuo a um momento anterior ao da constituição do que Foucault
terá chamado de ‘dispositivo da sexualidade’, noção que abordaremos adiante.
Afigurou-se urgente localizar historicamente o momento em que começa a
construir-se uma relação positiva entre comportamento sexual e sujeito. Após
discorrer, em A vontade de saber, sobre alguns dispositivos de poder da sociedade
moderna, dispositivos interligados e constituintes do dispositivo da sexualidade,
Foucault verificou a necessidade de traçar uma hermenêutica do desejo para,
enfim, circunscrever o momento onde o sujeito passa a se perceber como sujeito
de desejo, momento em que o sujeito já porta uma sexualidade atrelada aos seus
desejos. Observe-se o seguinte trecho de O uso dos prazeres:
[...] parecia difícil analisar a formação e o desenvolvimento da experiência da
sexualidade a partir do século XVIII, sem fazer, a propósito do desejo e do sujeito
desejante, um trabalho histórico e crítico. Sem empreender, portanto, uma
“genealogia”. Com isso, não me refiro a fazer uma história das concepções
sucessivas do desejo, da concupiscência ou da libido, mas analisar as práticas
pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se
decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de
si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade
de seu ser, seja ele natural ou decaído. Em suma, a idéia era a de pesquisar nessa
genealogia, de que maneira os indivíduos foram levados a exercer, sobre eles
mesmos e sobre os outros, uma hermenêutica do desejo à qual o comportamento
sexual desses indivíduos sem dúvida deu ocasião, sem no entanto constituir seu
domínio exclusivo. Em resumo, para compreender de que maneira o indivíduo
7
MARTINS, 1998, p. 74.
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20
moderno podia fazer a experiência dele mesmo enquanto sujeito de uma
“sexualidade”, seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual,
durante séculos, o homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de
desejo.
8
O material da pesquisa recolhido da Antiguidade é constituído por textos
descritivos de determinadas práticas. Práticas que serviam para proporcionar ao
indivíduo condições de se tornar um sujeito moral. Na Grécia clássica e nos
primeiros séculos de nossa era, período que se convencionou chamar greco-
romano, é conhecida a idéia de um sujeito livre em sua atitude consigo mesmo,
em busca de uma vida pessoal predominantemente ética. O homem grego da
época clássica procurava dar uma forma de liberdade a sua vida pessoal que fosse
reconhecida pelos outros. Segundo Foucault:
[...] na Antiguidade, a vontade de ser um sujeito moral, a busca de uma ética da
existência eram principalmente um esforço para afirmar a sua liberdade e para dar
à sua própria vida uma certa forma da qual era possível se reconhecer, ser
reconhecido pelos outros e na qual a própria posteridade podia encontrar um
exemplo. Quanto a essa elaboração de sua própria vida como uma obra de arte
pessoal, creio que, embora obedecesse a cânones coletivos, ela estava no centro
da experiência moral, da vontade de moral na Antigüidade [...]”.
9
8
FOUCAULT, 2006, p.11.
9
MOTTA, 2006, p.289-290
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21
2.2
Algumas considerações sobre a hipótese repressiva:
No capítulo que trata deste tema (História da sexualidade I) Foucault põe
em xeque os fundamentos que sustentam a idéia bastante disseminada de que a
modernidade foi marcada por uma época de repressão, que se originou junto com
o capitalismo, na aurora das sociedades burguesas (século XVII). Seus efeitos
seriam ainda presentes, e a tarefa de um humanismo contemporâneo diria respeito
à mitigação dos efeitos dessa repressão e da liberação da sexualidade.
10
A idéia de uma época de repressão assinala o fato de que no plano real o
sexo teria sido posto sob tentativas de dominação, em primeiro lugar, através de
sua redução ao nível da linguagem. Num primeiro momento, porém, o sexo teria
sido controlado em sua livre circulação no discurso teria sido banido das coisas
ditas e teriam sido apagadas as palavras que o denominavam com mais
sensibilidade do que o necessário. Foucault reconhece aí os fundamentos de uma
hipótese repressiva:
Dir-se-ia mesmo que essas interdições temiam chamá-lo (o sexo) pelo nome. Sem
mesmo ter que dizê-lo, o pudor moderno obteria que não se falasse dele,
exclusivamente por intermédio de proibições que se completam mutuamente:
mutismos que, de tanto calar-se, impõe o silêncio. Censura.
11
Para ele, essa hipótese deveria ser colocada em questão. Foucault constata
que em torno do sexo ocorre uma verdadeira explosão discursiva. Para evidenciar
esse ponto, elabora uma diferenciação relacionada ao trato do sexo no discurso.
Primeiramente reconhece o delineamento de uma economia restritiva: uma
interdição em torno do vocabulário do sexo na forma de uma depuração rigorosa,
uma polícia dos enunciados e um controle das enunciações. Esse controle se
configura do seguinte modo: são decretados os lugares e os momentos para falar
do sexo, os locutores, os contextos sociais e os lugares e os momentos de tato e
discrição ou de até mesmo silêncio absoluto. Como exemplo de discrição ou de
silêncio, alguns lugares são conhecidos: a relação entre pais e filhos, educadores e
alunos, patrões e serviçais. Neste aspecto pode ter ocorrido, a partir do séc. XVII,
10
Neste sentido, Wilhelm Reich seria o grande porta-voz desse modo de pensar. Suas elaborações
estariam alinhadas, portanto, às formações discursivas que sustentam os dispositivos de poder
vigentes.
11
FOUCAULT, 1999, p. 21.
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22
em suas redistribuições sociais, uma redefinição que integrava uma política da
língua e da palavra de espontaneidade, por um lado, e de deliberação, por outro.
Ao mesmo tempo, observa-se uma proliferação dos discursos específicos
sobre o sexo nos domínios autorizados. Os discursos específicos ampliam-se,
espalham-se. Nesse sentido ele assinala:
Sobre o sexo, os discursos discursos específicos, diferentes tanto pela forma
como pelo objeto não cessaram de proliferar: uma fermentação discursiva que
se acelerou a partir do século XVIII. Não penso tanto, aqui, na multiplicação
provável dos discursos “ilícitos”, discursos de infração que denominam o sexo
cruamente por insulto ou zombaria aos novos pudores; o cerceamento das regras
de decência provocou, provavelmente, como contra-efeito, uma valorização e
uma intensificação do discurso indecente. Mas o essencial é a multiplicação dos
discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação
institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação das
instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da
articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado.
12
Foucault diferencia duas camadas no campo discursivo que geralmente
aparecem ligadas para indicar o mesmo tema. A primeira camada discursiva seria
efeito da interdição em torno dos discursos “ilícitos”. Aqui o cerceamento das
regras de decência acabou por produzir, como contra-efeito, um crescimento dos
discursos voltados para insultar os novos pudores. Na segunda camada, a de
exercício do poder, dois efeitos são recortados: ocorre uma incitação institucional
crescente de falar do sexo e uma incitação a ouvir o sexo falar dele mesmo pela
forma da articulação e do detalhe.
Para esclarecer essa diferenciação anterior, Foucault faz um recorte
histórico referente à evolução pastoral católica e do sacramento. Na Idade Média,
especificamente até o Concílio de Trento, a confissão, para ser completa,
prescrevia a enunciação do ato sexual em si posição dos parceiros, as atitudes,
os gestos e os toques no momento exato do prazer. Daí em diante, a discrição é
recomendada com insistência. Mesmo com uma recomendação cada vez maior a
favor da discrição e da reserva, a restrição da confissão à confissão da carne vai
tomando espaço nos países católicos por ação da contra-reforma. Neste processo,
os pecados da carne ganham mais importância que os outros pecados. Nascem em
maior número as regras meticulosas de exame de si mesmo visando encontrar no
interior de si mesmo as pistas dos pensamentos, desejos, imaginações
12
Ibid., p. 22.
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23
voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo. Com isso, a
nova pastoral instala uma associação do sexo com a prudência:
(...) seus aspectos, suas correlações e seus efeitos devem ser seguidos até às mais
finas ramificações: uma sombra num devaneio, uma imagem expulsa com
demasiada lentidão, uma cumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e
a complacência do espírito: tudo deve ser dito.
13
Assim um deslocamento é produzido: a atenção do ato em si volta-se para
a inquietação do desejo. A percepção e a formulação subseqüente do desejo são
tarefas que exigem bastante esforço pois o desejo é relacionado intimamente a um
mal que atinge todos os homens nas suas mais secretas formas. Este processo
instala um discurso obediente e atento que tenha capacidade de seguir segundo
todos os seus desvios a linha de junção do corpo e da alma:
(...) ele revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da carne. Sob
a capa de uma linguagem que se tem o cuidado de depurar de modo a não
mencioná-lo diretamente, o sexo é açambarcado e como que encurralado por um
discurso que pretende não lhe permitir nem obscuridade nem sossego.
14
Este discurso encerra o sexo em uma armadura na qual ele se torna objeto
de descrição ininterrupta. Foucault enfatiza não se tratar aqui da descrição de
infrações às leis do sexo como antes exigia a penitência tradicional. O objetivo
desse projeto de “colocação do sexo em discurso” vem de muito tempo atrás, de
uma tradição ascética e monástica. Nestas tradições já se encontrava uma prática
de descrição relacionada ao sexo. Porém, a partir do século XVII isto torna-se
regra para todos. Mas vale destacar um ponto importante: a massa dos fiéis tinha
acesso à prática da confissão apenas raras vezes no ano, sobrando para uma elite
mínima uma freqüência mais assídua ao confessionário. Isso não invalida o
projeto da pastoral de colocação do sexo em discurso. Essa obrigação é fixada
como ideal a ser alcançado por todo bom cristão. Além da confissão dos atos
ilícitos, deve-se seguir “sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da
carne”
15
:
13
Ibid., p. 23.
14
Ibid., p. 23-24.
15
Ibid., p. 23.
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24
Examinai, portanto diligentemente, todas as faculdades de vossa alma, a
memória, o entendimento, a vontade. Examinai, também, com exatidão todos os
vossos sentidos,... Examinai, ainda, todos os vossos pensamentos, todas as vossas
palavras e todas as vossas ações. Examinais, mesmo, até os vossos sonhos para
saber se, acordados, não lhes teríeis dado o vosso consentimento... Enfim, não
creiais que nessa matéria tão melindrosa e tão perigosa, exista qualquer coisa de
pequeno e de leve
16
.
Essa análise referente à evolução pastoral católica e ao sacramento
circunscreve a instauração do dispositivo da sexualidade o imperativo de além
de confessar os atos contrários à lei (como exigia a penitência tradicional), fazer
do desejo um discurso. Isto é, instala-se o dever de fazer passar qualquer fato
relacionado ao sexo pelo crivo interminável da palavra:
A interdição de certas palavras, a decência das expressões, todas as censuras do
vocabulário poderiam muito bem ser apenas dispositivos secundários com relação
a essa grande sujeição: maneiras de torná-la moralmente aceitável e tecnicamente
útil
17
.
Aqui se faz notar o uso dos dispositivos da interdição uso moral a
favor de outro uso tecnicamente útil, o de uma sujeição ampla e aceita sem grande
discussão pelo fato de validar-se em nome da moral. Agora o sujeito passa a ter de
responder à exigência do projeto de colocar em discurso tudo que se refere ao
sexo.
Esse interesse e projeto lançado pela pastoral cristã não permanece no
campo da espiritualidade cristã ou da economia dos prazeres individuais. Um
“interesse público” apóia e relança sobre tal projeto outros mecanismos de poder.
Não se trata apenas de uma curiosidade coletiva em relação às novas práticas
discursivas, nem de uma nova mentalidade. Os novos mecanismos de poder para
funcionar precisavam desta forma de discurso sobre o sexo, englobando as novas
estratégias da pastoral em vigor. Para além do destino da espiritualidade cristã,
este discurso serve como base para novas e essenciais modificações produzidas
pelos mecanismos de poder. Para efeito da presente dissertação, tais modificações
não serão detalhadas.
Para nos situarmos historicamente, lembremos que no século XVIII se
coloca como problema econômico e político o surgimento da “população” e seus
16
Ibid., p. 23.
17
Ibid., p. 24.
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25
fenômenos específicos natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade,
estado de saúde, doenças, alimentação e moradia. O sexo relaciona-se a esses
fenômenos de forma central. Desse modo, fizeram-se necessárias medidas
analíticas das taxas de natalidade, da idade do casamento, dos nascimentos
legítimos e ilegítimos, da precocidade e freqüência das relações sexuais e dos
efeitos do celibato e interdições. Questões de Estado ligadas ao futuro e às
riquezas. Observações sobre o sexo constituem o processo de circunscrição dos
fenômenos populacionais na forma de uma análise das condutas sexuais, de suas
determinações e efeitos, nos limites entre o biológico e o econômico. Foucault
aponta alguns efeitos da aproximação do campo biológico e do econômico:
Aparecem também as campanhas sistemáticas que, à margem dos meios
tradicionais exortações morais e religiosas, medidas fiscais tentam fazer do
comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política deliberada.
Os racismos dos séculos XIX e XX encontrarão nelas alguns de seus pontos de
fixação. Que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e os usos que
dele fazem e, também, que cada um seja capaz de controlar sua prática. Entre o
Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa, e disputa pública; toda
uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injunções o investiram.
18
Este contexto faz surgir uma incitação política, econômica, técnica a falar
do sexo na forma de análise, de contabilidade, classificação e especificação, e não
a partir de uma teoria da sexualidade. Na forma de pesquisas quantitativas ou
causais, o sexo passa a ser racionalmente circunscrito. Essa forma não diz respeito
a uma moral e sim a uma forma de abordagem racional. Isto é, a partir desse
momento, a razão vai falar do sexo por uma necessidade de administração da
população. Impõe-se a necessidade de superar a vergonha e os pudores morais
arraigados nos discursos sobre o sexo resultantes do mecanismo de julgamento
instalados até então. A partir daí, instaura-se uma exigência de falar do sexo
publicamente de modo a ultrapassar os limites do que é considerado lícito ou
ilícito. O sexo é transferido ao poder público e começa a exigir procedimentos de
gestão. Os discursos analíticos o assumem e assim encontramos o sexo no século
XVIII no âmbito do poder público como questão de polícia. Não no sentido de
repressão de desordem mas, mais do que isso, como agenciamento das forças
coletivas e individuais. Regulagem através de discursos úteis e públicos. Mais
18
Ibid., p. 29.
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26
uma vez, ressalta-se aqui um teor para além da interdição. Foucault, por meio de
um registro de 1769, exemplifica esse uso voltado para a utilidade:
Fortalecer e aumentar, pela sabedoria dos seus regulamentos, a potência interior
do Estado e, como essa potência consiste não somente na República em geral, e
em cada um dos membros que a compõe, mas ainda nas faculdades e talentos de
todos aqueles que lhe pertencem, segue-se que a polícia deve ocupar-se
inteiramente desses meios e fazê-los servir a felicidade pública. Ora, ela só pode
atingir esse objetivo através do conhecimento que possui dessas diferentes
vantagens.
19
Foucault afirma que sua análise não pretende exatamente dar conta dos
objetivos finais observados por essa colocação do sexo em discurso e de sua
administração. Mas acrescenta a importância em observar alguns de seus efeitos
como, por exemplo, o que denomina implantação perversa: uma multiplicação das
condenações judiciárias das perversões menores, uma incorporação de
irregularidades sexuais à doença mental, uma implantação da norma do
desenvolvimento sexual e uma caracterização minuciosa dos desvios. Além disso,
consolida-se um processo de controle pedagógico e tratamento médico voltado
para as mínimas fantasias e o aparecimento via os moralistas e médicos de um
vocabulário enfático da abominação. Para Foucault, não importa saber se essa
atenção loquaz em torno da sexualidade situada nos dois ou três últimos séculos
estaria focada na promoção de uma sexualidade economicamente útil e
politicamente conservadora a partir de uma preocupação em garantir o controle do
povoamento, em reproduzir a força de trabalho ou em reproduzir a forma das
relações sociais. Importante aqui é perceber no século XIX uma idade de
multiplicação:
O século XIX e o nosso foram, antes de mais nada, a idade da multiplicação: uma
dispersão de sexualidades, um reforço de suas formas absurdas, uma implantação
múltipla das “perversões”. Nossa época foi iniciadora de heterogeneidades
sexuais.
20
2.3
O ‘dispositivo de sexualidade’
19
Ibid., p. 28 .
20
Ibid., p. 38.
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27
Ainda em A vontade de saber, Foucault analisa o que ele designa de
scientia sexualis, uma ciência do sexo. Monteiro observa que:
A partir dos séculos XVI e XVII vemos na sociedade ocidental uma
multiplicação de discursos sobre o sexo que, ao esquadrinhá-lo, defini-lo,
acabaram por ocultá-lo, segundo o autor. Isso vai contra o senso comum
que prega que, até o século XIX, o sexo era reprimido, ocultado, negado.
Foucault diz claramente que existiu um projeto de iluminação de todos os
aspectos do sexo, do seu esquadrinhamento. Cria-se neste momento um
aparelho que, ao multiplicar os discursos sobre o sexo, visa produzir verdades
sobre ele. No século XIX, momento crítico, esse projeto alia-se a um projeto
científico, fatalmente comprometido com o evolucionismo e com os racismos
oficiais. O discurso médico, sob uma aura de neutralidade científica, produz
crescentemente verdades sobre o sexo, mas que estava ligado a uma moral da
assepsia e da conexão entre o "patológico" e o "pecaminoso". A medicina do sexo
se associa fortemente à biologia (evolucionista) da reprodução. Essa associação
do discurso sobre o sexo com o discurso científico deu a ele maior legitimidade.
21
Para circunscrever brevemente a produção de discursos sobre o sexo,
Foucault ensina que é necessário localizar historicamente quando o sexo passa a
servir socialmente a grandes estratégias de poder e saber. Isto é, é importante para
a análise da sexualidade situar o momento de emergência do termo e sua
sustentação como dispositivo histórico:
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à
realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da
superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e
das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes
estratégias de saber e de poder. Pode-se admitir, sem dúvida, que as relações de
sexo tenham dado lugar, em toda a sociedade, a um dispositivo de aliança:
sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos parentescos, de
transmissão dos nomes e dos bens. Este dispositivo de aliança, com os
mecanismos de constrição que o garantem, com o saber muitas vezes complexo
que requer, perdeu importância à medida que os processos econômicos e as
estruturas políticas passaram a não mais encontrar nele um instrumento adequado
ou um suporte suficiente.
22
O dispositivo da sexualidade surge a partir da sobreposição ao dispositivo
da aliança. Ambos os dispositivos são criados e prestam serviço à organização
social, de acordo com o momento histórico específico. O dispositivo da aliança,
21
MONTEIRO, 2009.
22
FOUCAULT, 1999, p,100-101.
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28
operante no Estado moderno contratualista, cede lugar ao dispositivo da
sexualidade. Hack esclarece em que contexto se configurava o dispositivo da
aliança:
A hegemonia aristocrática far-se-ia presente e predominante diante de laços
consangüíneos que se estenderiam indefinidamente pelo futuro, marcados
fundamentalmente, pela aquisição de bens e pelo acúmulo proporcionado pela
herança. A lei civil, o direito canônico, e a pastoral cristã balizaram a
configuração do poder no período clássico. O enunciado da lei regia as relações
de poder no período clássico, sendo que até mesmo o poder estatal, manifestava-
se, predominantemente, até o século XVIII, através do direito. O qual se
configurava enquanto forma operacional do Estado moderno contratualista.
Assim, a representação jurídica, mediante a proibição, a limitação e a repressão
colocava-se enquanto forma da manifestação do poder no período clássico.
23
A partir do século XVIII o dispositivo de aliança perde espaço para o
dispositivo de sexualidade. Com esse dispositivo, uma nova estratégia é acionada,
que considera as mais diversas e sutis articulações do corpo de modo particular.
No dispositivo de aliança, é o corpo social o principal foco de atenção e é o
âmbito jurídico que determina os discursos verdadeiros. O foco estava voltado
para o corpo social na forma de sistemas de regras que diferenciavam o permitido
e o proibido, o lícito e o ilícito. O saber científico mantinha sua atuação apenas
nas áreas da biologia e da medicina do sexo mantendo-se nesses limites do saber.
Foucault delineia o dispositivo da aliança como ordenado para manter uma
homeostase do corpo social. Para tal, esse dispositivo possui uma forte ligação
com o direito e tem como finalidade principal, e é até aí que ele pode alcançar, a
tarefa da “reprodução”
24
.
No dispositivo da sexualidade, os discursos sobre o sexo passam a
caracterizar-se a partir de uma associação à ciência médica e acabam adquirindo
progressivamente maior legitimidade. No dispositivo da sexualidade, ocorre uma
mudança na forma de domínio que leva a uma extensão incessante das formas de
controle, associando-se poder e saber. Exerce-se um domínio misto, ao contrário
do dispositivo de aliança que mantém bem demarcadas as fronteiras de poder e
saber.
O dispositivo da sexualidade superpõe-se ao dispositivo da aliança
utilizando-se dos sistemas de regras formulados por esse último, principalmente
23
HACK, 2007, p,108.
24
“Reprodução”, aqui, em dois sentidos: no controle das populações e na reprodução da estrutura
social.
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29
em relação à definição do status dos parceiros sexuais. Essa definição de status e
a manutenção e controle pela lei mantém um eficaz funcionamento do dispositivo
da aliança. Posteriormente, devido a mudanças políticas e reestruturações
econômicas, o dispositivo da sexualidade exerce o domínio das forças sociais e
passa a atuar de modo mais tênue, quase imperceptível em sua forma. Essa
atuação se exerce nos corpos dos indivíduos especificamente nas sensações
corporais, na qualidade dos prazeres, na natureza das impressões. Entre os dois
dispositivos nota-se uma diferença crucial: o da aliança age sobre o corpo social
mantendo-lhe regido pelas leis que marcam o status de cada um em sua relação
com a sexualidade (“sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos
parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens”
25
). O da sexualidade, por sua
vez, por cima desses lugares pré-estabelecidos pelo dispositivo anterior, age mais
detalhadamente nas sensações relacionadas à sexualidade de cada um.
Em termos de finalidade, o dispositivo da sexualidade não se limita à
tarefa da reprodução. Seu efeito se dá no detalhe e na expansão (expansão porque
não está mais restrito ao domínio do âmbito jurídico, o poder exercido pelo
dispositivo da sexualidade se dá de forma híbrida e atrelada ao corpo do indivíduo
em suas sensações). A partir dessa estratégia, pretende difundir-se de modo
global:
O dispositivo da sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o
proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada vez mais
detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais global.
26
2.4.
Algumas considerações sobre as modificações do projeto de uma
história da sexualidade
Para empreender uma pesquisa sobre a sexualidade, no sentido em que o
termo se apresenta na contemporaneidade, Foucault necessitou empreender um
deslocamento do tema e dos balizamentos cronológicos. Os primeiros
levantamentos sobre o termo indicam que trata-se de um termo recente, surgido
no século XIX. O termo denota um remanejamento de vocabulário e não equivale
25
FOUCAULT,1999, p. 100.
26
Ibid., p. 101.
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30
a uma brusca emergência do que se refere. O uso do termo relaciona-se ao uso de
outros termos advindos de fenômenos próprios às sociedades ocidentais
modernas. Trata-se do desenvolvimento de campos de saber referentes ao
desenvolvimento do campo da biologia da reprodução e do campo relativo às
mudanças atribuídas aos indivíduos e aos comportamentos, trata-se do
estabelecimento do conjunto de regras e normas que misturam as tradicionais às
novas, sustentadas em instituições religiosas, judiciárias, pedagógicas e médicas.
Trata-se também das mudanças nos modos pelos quais os indivíduos passam a
atribuir sentido e valor “à sua conduta, seus deveres, prazeres sensações e
sonhos”.
27
Foucault, atento a esses fenômenos, pretendeu empreender uma análise da
experiência da sexualidade, lembrando que, para ele, experiência é entendida
como a correlação entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de
subjetividade. Não se trata, portanto, de uma história contínua, que pretende dar
conta, tecer um fio evolutivo das condutas e das práticas sexuais.
Essa análise da sexualidade como experiência inter-relacionada entre
diversos campos opõe-se a uma visada habitual que toma a sexualidade como uma
invariante que se manifesta de acordo com cada momento histórico específico.
Neste modo de análise, a sexualidade é considerada um mesmo objeto que
tomaria formas diversas de acordo com os efeitos exercidos pelos diferentes
modos de repressão. Essa articulação de sexualidade e repressão como dois
objetos presentes no campo histórico acaba por colocar fora desse campo o desejo
e o sujeito do desejo. Isto é, acaba por deixar na conta de uma forma geral de
interdição o que a sexualidade carrega de histórico. O que significa que forçar
uma aproximação entre sexualidade e uma forma geral de interdição seria contar
uma história da sexualidade em cima de um terreno histórico construído a partir
de uma hipótese repressiva, para Foucault, uma hipótese insustentável.
Foucault afirma que observar esse uso da sexualidade objeto invariante
rastreado na história a partir de épocas distintas e abrir uma possibilidade crítica
a esse esquema de pensamento, é apenas um dos aspectos da tarefa de falar da
“sexualidade” como experiência historicamente singular. Para essa última análise,
seria necessário criar instrumentos capazes de analisar os elementos que
27
FOUCAULT, 2006, p. 9.
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sustentam o aparecimento do termo sexualidade e os seus usos: os saberes sobre a
sexualidade, os sistemas de poder que a regulam e as formas pelas quais os
indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade.
No que diz respeito aos saberes atrelados à emergência do termo
sexualidade, o trabalho arqueológico anteriormente desenvolvido abre caminho
para uma análise da formação dos saberes sobre a sexualidade que esteja livre da
tarefa de distinguir entre ciência e ideologia. O mesmo pode ser dito no que se
refere aos sistemas de poder reguladores da sexualidade. Isto é, o trabalho
realizado anteriormente sobre as relações de poder e suas tecnologias abre espaço
para uma análise dos sistemas de poder reguladores da sexualidade sem olhar para
o poder como uma questão autônoma, como um “ente”
28
que se anunciaria como
poder de dominação ou seria denunciado como simulacro. Essas indicações do
trabalho empreendido nas etapas anteriores arqueologia e genealogia fazem
observar que nesses pontos específicos alguns desvios puderam ser evitados.
No entanto, um problema se instala nesta etapa do percurso: como
empreender o estudo dos modos pelos quais os indivíduos são levados a se
reconhecerem como sujeitos sexuais? Para delinear uma possível resposta,
Foucault destaca que a noção de desejo ou de sujeito desejante tema teórico
bastante presente na teoria clássica da sexualidade com apenas algumas
diferenciações não apresenta consistência. Parecia-lhe que as teorias que
procuraram marcar diferença e oposição ao tema de desejo e sujeito desejante
eram herança, no século XIX e XX, de uma longa tradição cristã. Uma
diferenciação histórica pode ser traçada entre a experiência da sexualidade e a
experiência cristã da “carne”. Ambas são dominadas pelo princípio do homem de
desejo. Por isso, Foucault percebeu a necessidade de realizar um trabalho
histórico e crítico sobre a noção de desejo e sujeito desejante. Ou seja, foi preciso
empreender uma genealogia sobre esse objeto.
Uma análise genealógica não parte da concepção tradicional de história.
Foucault partia do princípio de que não seriam analisadas as concepções
sucessivas do desejo, da concupiscência ou da “libido”, era preciso recolher
material referente às:
28
Aqui podemos pensar na crítica de Foucault à fenomenologia.
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práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios,
a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo,
estabelecendo de si para consigo uma relação que lhes permite descobrir no
desejo, a verdade de seu ser, seja ele natural ou decaído.
29
Segundo Foucault, a análise das práticas que levaram o indivíduo a se ver
como objeto decifrável formava as bases de uma pesquisa histórica capaz de
problematizar as teorias clássicas da sexualidade. Este indivíduo se percebe como
objeto decifrável, como objeto portador de desejo em que o si mesmo pode indicar
uma forma de verdade, na forma de saberes vindos da ciência ou da religião. Para
tanto, a necessidade de mais um deslocamento se apresentou. Lembremos agora
dos dois deslocamentos de sua trajetória. Um localiza-se no momento de
problematização do que era denominado progresso dos conhecimentos que
conduziu Foucault ao questionamento sobre as práticas discursivas que
articulavam o saber. O segundo, conforme ele cita, o levou à análise do que era
geralmente considerado como manifestações do “poder”. Esse deslocamento o
levou a questionar primeiramente as relações múltiplas, as estratégias abertas e as
técnicas racionais que articulam o exercício dos poderes. A necessidade do
terceiro deslocamento se apresenta nesse momento da trajetória foucaultiana de
estudo da história da sexualidade. Esse deslocamento tinha por fim investigar o
que se conhece como “sujeito”. A pesquisa segue em direção às formas e
modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se constitui e se
reconhece como sujeito. Isto é, coloca-se a necessidade de analisar os jogos de
verdade na relação de si para consigo e a constituição de si mesmo como sujeito.
Foucault diz que:
Parecia agora que seria preciso empreender um terceiro deslocamento a fim de
analisar o que é designado como o “sujeito”; convinha pesquisar quais são as
formas e as modalidades da relação consigo através das quais o indivíduo se
constitui e se reconhece como sujeito. Após o estudo dos jogos de verdade
considerados entre si a partir do exemplo de um certo número de ciências
empíricas nos séculos XVII e XVIII e posteriormente ao estudo dos jogos de
verdade em referência às relações de poder, a partir das práticas punitivas, outro
trabalho parecia se impor: estudar os jogos de verdade na relação de si para si e a
constituição de si mesmo como sujeito, tomando como espaço de referência e
campo de investigação aquilo que poderia chamar-se “história do homem de
desejo”
30
29
Ibid., p. 11.
30
Ibid., p. 11.
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33
Quando Foucault diz que vai empreender um estudo de história, ele
enfatiza que não vai resumir ou sintetizar o trabalho feito por outros, e que
embora trate de “história”, não é um trabalho de historiador. O seu trabalho tem o
formato do que ele chama de “protocolo”, ou seja, o registro de um exercício
longo e atravessado por hesitações, precisando freqüentemente ser retomado e
corrigido. O trabalho do termo sexualidade e o contato com o material histórico
que fundamenta essa relação entre sexualidade e hipótese repressiva teoria
clássica da sexualidade (História da sexualidade I) problematiza o termo, ao
analisar os jogos de verdade que sustentam, por exemplo, a relação entre dois
objetos: sexualidade e repressão. Ele foi construindo o texto fazendo uso dos
impasses que lhe atravessaram até chegar à problematização moral dos prazeres
na antiguidade e assim debruçar-se sobre esse tema. A atitude crítica de Foucault
pressupõe o embate, o confronto com o material recortado. Isto é, ele não parte de
uma idéia e desenvolve um texto que seria a associação de diversas representações
estabelecidas como verdades. Nota-se a elaboração de uma opção à metafísica, ou
à história contínua e suas verdades. Para Foucault, o estudo empreendido deste
modo é o que pode ser considerado um exercício filosófico:
[...] eles são [os estudos] se quisermos encará-los do ponto de vista de sua
“pragmática” o protocolo de um exercício que foi longo, hesitante, e que
frequentemente precisou se retomar e se corrigir. Um exercício filosófico: sua
articulação foi a de saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história
pode liberar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, e permitir-lhe
pensar diferentemente. Teria eu razão de correr esses riscos? Não cabe a mim
dizê-lo. Sei apenas que, deslocando assim o tema e os balizamentos cronológicos
de meu estudo, encontrei algum proveito teórico; foi-me possível proceder a duas
generalizações que me permitiram, ao mesmo tempo, situá-lo num horizonte mais
amplo e precisar melhor seu método e seu objeto.
31
O recuo da época moderna, via cristianismo, até a antiguidade produz um
questionamento em torno da atenção moral atribuída às atividades e aos prazeres
vinculados ao comportamento sexual. O comportamento sexual, em determinados
momentos históricos e em algumas sociedades, recebeu maior atenção do que
outros campos do comportamento também essenciais para a vida individual ou
coletiva, como por exemplo, as condutas alimentares e os deveres cívicos. Ao se
perguntar sobre a ênfase moral conferida ao comportamento sexual, Foucault
31
Ibid., p. 14.
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34
apresenta uma crítica à resposta que geralmente se oferece como evidente que o
campo sexual deve ser observado com rigor já que o comportamento sexual e os
prazeres e atividades a ele relacionados constituem objeto de interdições
fundamentais cuja transgressão é considerada falta grave:
Mas isso seria dar como solução a própria questão; e, sobretudo, implicaria
desconhecer que o cuidado ético a respeito da conduta sexual não está sempre,
em sua intensidade ou em suas formas, em relação direta com o sistema de
interdições; ocorre frequentemente que a preocupação moral seja forte, lá onde
precisamente não há obrigação nem proibição. Em suma, a interdição é uma
coisa, a problematização moral é outra. Portanto, pareceu-me que a questão que
deveria servir de fio condutor era a seguinte: de que maneira, por que e sob que
forma a atividade sexual foi constituída como campo moral? Por que esse
cuidado ético tão insistente, apesar de variável em suas formas e em sua
intensidade? Por que essa “problematização”? E, afinal, é esta a tarefa de uma
história do pensamento por oposição à história dos comportamentos ou das
representações: definir as condições nas quais o ser humano “problematiza” o que
ele é, e o mundo no qual ele vive.
32
Aqui se entende que interdição e um determinado tipo de preocupação não
têm ligação intrínseca: aparecem muitas vezes próximas, mas devem ser
diferenciadas. A partir dessa diferenciação, um questionamento mais amplo se
impõe: como a atividade sexual foi se constituindo enquanto campo ético. O
delineamento desse campo conduziu a uma investigação sobre a insistência do
cuidado ético a ele atribuído e ao fato de serem encontradas diferenças nas formas
e na intensidade desse cuidado. Essa investigação, contextualizada na cultura
grega e greco-latina, levou Foucault a uma aproximação do conjunto de práticas
que para ele tiveram uma importância significativa nas sociedades ocidentais. As
“artes da existência” eram práticas refletidas que os homens usavam em sua
conduta para se transformar, se modificar em seu ser singular e obter em suas
vidas certos valores estéticos relacionados a certos critérios de estilo.
Essas “técnicas de existência” não correspondiam a sistemas de regras
fixas que deveriam ser seguidos em vista de um bom comportamento. No decorrer
da história, essas técnicas singulares “técnicas de si” perderam força e
autonomia ao serem incorporadas, com o cristianismo, ao exercício do poder
pastoral e, posteriormente, às práticas de controle pedagógicas, médicas e
psicológicas.
32
Ibid., p. 14.
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35
A proposta de uma história da verdade é feita aqui em torno de fragmentos
sucessivos e diferentes descontinuidades históricas, que dizem respeito às
problematizações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser
pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”
33
.
O fio condutor da pesquisa se forma em torno das práticas dos indivíduos,
para localizar os pontos que apresentam:
(...) de que maneira os indivíduos foram levados a exercer, sobre eles mesmos e
sobre os outros, uma hermenêutica do desejo à qual o comportamento sexual
desses indivíduos sem dúvida deu ocasião, sem no entanto constituir seu domínio
exclusivo.
34
Isto é, para questionar a aparente evidência de que existe um sujeito
portador de sexualidade que corresponde ao indivíduo moderno, era
imprescindível discernir as maneiras pelas quais o homem ocidental aprendeu, no
decorrer dos séculos, a se reconhecer como sujeito de desejo.
Assim, trata-se neste trabalho de descrever em linhas gerais os traços
gregos de formação da subjetividade assinalados por Foucault em História da
Sexualidade II, acompanhando a divisão mesma presente no livro. Em um
primeiro momento, será descrito o esboço preliminar do capítulo I,
“Problematização moral dos prazeres”, que servirá como fio condutor das quatro
análises mais detalhadas nos capítulos subseqüentes sobre a “Dietética”, a
“Econômica”, a “Erótica” e “o Verdadeiro Amor”.
33
Ibid., p.15.
34
Ibid., p.11.
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3
A perspectiva da águia: os fragmentos
Para uma primeira aproximação dos modos de “se conduzir” que os gregos
da época clássica elaboraram, Foucault apresenta algumas noções gerais que
compuseram uma espécie de quadro de referência, pois apareciam reiteradamente
nas diversas reflexões desenvolvidas sobre os aphrodisia. Vamos resgatá-las
como maneira de introduzir o tema que a partir de agora iremos acompanhar no
livro passo a passo. Em primeiro lugar, lembremos que Foucault sustenta não
traduzir o termo aphrodisia, pois tal noção grega era referida a uma realidade para
nós desconhecida. Por isso, Foucault resolve manter o termo grego no original no
decorrer do livro. Além de ressaltar também que:
nossa idéia de ‘sexualidade’ não apenas cobre um campo muito mais amplo,
como visa também uma realidade de outro tipo, e possui, em nossa moral e em
nosso saber, funções inteiramente diversas. Em troca, não dispomos, de nossa
parte, de uma noção que opere um recorte e que reúna um conjunto análogo ao
dos aphrodisia”.
1
Seguiremos, por essa via, no rastro de fragmentos históricos, sucessivos e
diferentes, até a “orla do tempo que cerca nosso presente”
2
. Acreditamos que esse
primeiro contato com os fragmentos referentes ao tema do uso dos prazeres na
Grécia clássica não ocupa o lugar apenas de uma simples introdução ao tema.
Parece-nos que, com esse contato, Foucault pretendia provocar no leitor uma
reação especial, pois se trata de um material textual que se refere ao cotidiano de
um povo largamente distante de nós. E Foucault mostra que frente ao impacto
causado pela diferença, temos o hábito de responder por meio de interpretações
pré-formuladas.
Faz-se necessário, uma vez que já reconhecemos um certo vício em olhar
para o estranho a partir das nossas ferramentas habituais, lançar mão de
instrumentos que possam nos ajudar a lidar com isso de outra forma. Então, para
não sermos capturados por uma primeira interpretação, seguiremos Foucault nessa
1
FOUCAULT, 2006, p. 36.
2
FOUCAULT, 2005, p. 148.
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37
primeira apresentação geral como se encontra no livro. Assim, amortecendo o
impacto causado pela aproximação inevitável das diferenças, talvez nos seja
possível resistir e não enquadrar as descobertas sobre os costumes dos gregos ao
conjunto habitual e contemporâneo das nossas práticas.
Foucault apresenta um campo de práticas, de modos de se conduzir entre os
gregos às quais denomina “técnicas de si”. Essas práticas estavam relacionadas,
geralmente, a certas correntes filosóficas, e os homens pretendiam, através destas,
transformarem-se, produzindo modificações em seu ser singular, fazendo de sua
vida uma obra portadora de certos valores estéticos. Posteriormente, com o
cristianismo e o poder pastoral e, mais adiante, na contemporaneidade, com as
práticas pedagógicas, médicas ou psicológicas, essas técnicas de si não
continuam a ter a mesma importância e, principalmente, a mesma autonomia. No
entanto, com fins de investigar certos aspectos da formação do sujeito, faz-se
necessário percorrer os momentos em que o homem aparece problematizando-se,
arqueologicamente, as próprias formas da problematização e, genealogicamente, a
formação dessa problematização, a partir das práticas e de suas modificações.
Enfim, o seu estudo se propõe a fazer uma análise de passagens de determinados
momentos históricos, problematizando as práticas dos sujeitos na Antiguidade e
nos dois primeiros séculos de nossa era. A presente dissertação enfatiza apenas as
práticas dos sujeitos na Antiguidade Clássica, descritas em O uso dos prazeres.
3.1
Escolha dos textos e construção do objeto
O modo pelo qual Foucault trata os textos é bem peculiar se pensarmos o
modo pelo qual geralmente esses textos são tratados. Ele recolhe textos bem
diferentes uns dos outros Xenofonte, Platão e Aristóteles e afirma que não irá
restituir o “contexto doutrinário” que poderia fornecer a cada um deles seu sentido
particular e seu valor diferencial. Ele elabora, a partir destes textos, o “campo de
problematização” comum a eles e que, ao mesmo tempo, os tornou possíveis.
Foucault, no prefácio do segundo volume, menciona a importância da
relação com os comentadores dos textos antigos. No trecho a seguir, ao referir-se
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38
a P. Veyne, faz uma comparação entre a história contínua, constituída pelo
verdadeiro e a descontínua, pelos jogos entre o verdadeiro e o falso:
P. Veyne ajudou-me constantemente no decorrer desses anos. Ele sabe o que é
pesquisar o verdadeiro, como historiador de verdade; mas também conhece o
labirinto em que se entra quando se quer fazer a história dos jogos entre o
verdadeiro e o falso; ele é daqueles, raros hoje em dia, que aceitam enfrentar o
perigo, para todo e qualquer pensamento, que a questão da história da verdade traz
consigo. Seria difícil circunscrever sua influência sobre estas páginas.
3
É importante salientar o modo como Foucault escolhe os textos analisados.
Ele destaca que os textos escolhidos para sua pesquisa referem-se àqueles que
eram utilizados visando regras, opiniões, conselhos e comportamentos. O seu
recorte, no momento de virada para a Grécia na pesquisa sobre a História da
sexualidade, segue:
(...) uma distribuição cronológica simples: um primeiro volume, O uso dos
prazeres, é dedicado à maneira pela qual a atividade sexual foi problematizada
pelos filósofos e pelos médicos na cultura grega clássica, no século IV a. C.; O
cuidado de si é dedicado a essa problematização nos textos gregos e latinos nos
dois primeiros séculos de nossa era; (...). Em relação aos documentos que utilizarei,
eles serão na maior parte textos “prescritivos”; com isso, quero me referir a textos
que, qualquer que seja sua forma (discurso, diálogo, tratado, coletânea de preceitos,
cartas, etc.), têm como objetivo principal propor regras de conduta. Só recorrerei
aos textos teóricos sobre a doutrina do prazer ou das paixões para encontrar
esclarecimentos. O campo que analisarei é constituído por textos que pretendem
estabelecer regras, dar opiniões, conselhos, para se comportar como convém: textos
“práticos” que são eles próprios, objeto de “prática” na medida em que eram feitos
para serem lidos, aprendidos, meditados, utilizados, postos à prova, e visavam, no
final das contas, constituir a armadura da conduta cotidiana.
4
Tal recorte de textos nos possibilita ver que os gregos tematizavam aquilo
que Foucault denomina uma “quadritemática” da austeridade sexual, temas estes
que compõem os quatro capítulos subseqüentes ao primeiro que ora analisamos.
São eles o tema (1) do corpo (Dietética), (2) da instituição do casamento
(Econômica), (3) das relações entre os homens (Erótica) e (4) da existência da
sabedoria, sempre vinculada ao Eros (Verdadeiro amor).
No entanto, seria ingênua uma aproximação imediata destes temas sem levar
em consideração as interferências históricas das instituições e dos diversos
modelos, conjuntos de regras e preceitos referentes às épocas posteriores. Isto é,
3
FOUCAULT, 2006, p. 13.
4
Ibid., p. 16.
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39
não se pode perder de vista que essa quadritemática atravessa o tempo, e que em
torno desses temas, muitas questões permanecem e se alteram. É fundamental
verificar a importância de tal transformação histórica, pois aí se encontra um dos
pontos cruciais da pesquisa foucaultiana. Trata-se de chamar a atenção para os
diversos remanejamentos, intervenções e atravessamentos que aconteceram ao
longo da história nas diversas instituições. No entanto, para o efeito desta
dissertação, não se levará em conta explicitamente tais transformações históricas.
3.2
Descontinuidade entre as constituições grega e cristã da experiência
individual
Deve-se salientar, de início, uma noção grega de si mesmo que se contrapõe
a uma interioridade cristã. Não se pode ver tão facilmente uma continuidade entre
as noções de si mesmo grega e cristã, pois não se trata de uma evolução
progressiva da exterioridade da moral pagã levada à forma de uma interioridade
da moral cristã. A tão debatida exterioridade da moral pagã diz respeito a uma
visualização manifesta dos atos. A simples oposição do que seria uma
visualização dos atos em si, própria da moral pagã, a uma internalização da
reflexão moral, deixa de lado uma atividade muito particular característica da
moral cristã.
A interioridade cristã exige uma “relação consigo” na forma de uma
atividade complexa num confronto com um outro introjetado, confronto esse que
“comporta formas precisas de atenção, de suspeita, de decifração, de verbalização,
de confissão, de auto-acusação, de luta contra as tentações, de renúncia, de
combate espiritual, etc.”
5
. Por outro lado, o si mesmo grego mostra uma forma
diferente de trabalho sobre si, pois não se trata de um outro introjetado. A
imediata aproximação destas duas formas de moral e a construção da idéia de
passagem da exterioridade da moral pagã para a interioridade cristã, levaria ao
erro habitual de entender os acontecimentos lançando mão da noção de progresso.
Mais uma vez, vale ressaltar que para Foucault a história é sempre analisada
descontinuamente. Assim, ele entende que nessa passagem, aliás bastante lenta do
5
Ibid., p. 60.
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40
paganismo ao cristianismo, não se trata de uma evolução que consistiria numa
“interiorização progressiva da regra”
6
. Essa evolução se dá a partir de uma
reestruturação operada no que diz respeito às formas da relação consigo que
transforma, por conseguinte, as diversas práticas e técnicas a ela relacionadas.
3.2.1
Lei universal e práticas singulares na Antiguidade
A aproximação do que era para os antigos uma busca de austeridade permite
perceber que não se tratava de uma tentativa comum, na qual todos deveriam
ajustar-se aos moldes de uma lei universal e em que os indivíduos apenas se
difeririam no que diz respeito à aplicação singular desta lei, feita por meio de uma
casuística. Certamente, havia leis comuns que diziam respeito à cidade, à religião
e à natureza, mas, no entanto, tais leis serviam como uma espécie de parâmetro
para um pensamento prático. Era pela via deste pensamento prático que a ação
seria deliberada, através da capacidade de reflexão dos indivíduos. O trecho a
seguir ilustra o papel da ação relacionada ao pensamento nessa forma de moral:
(...) não é universalizando a regra de sua ação que, nessa forma de moral, o
indivíduo se constitui como sujeito ético; é, ao contrário, por meio de uma atitude e
de uma procura que individualizam sua ação, que modulam e que até podem dar
um brilho singular pela estrutura racional e refletida que lhe confere.
7
Com a noção de enkrateia grega ter-se-á uma maior clareza sobre de que si
mesmo se está tratando aqui. Os antigos utilizavam o termo enkrateia para
denominar a atitude e a forma de relação consigo mesmo referente ao bom uso
dos prazeres. Outro termo importante nessa relação é o termo sophrosune.
Estes dois termos aparecem muitas vezes juntos, apresentando significações
bem próximas. Mas alguns pontos de diferenciação podem ser identificados: a
enkrateia apresenta a especificidade de uma luta consigo buscando um domínio
de si, ou seja, há uma luta do indivíduo em busca de conter seus desejos; o homem
temperante, sophron, por outro lado, procura manter-se em um estado bastante
geral, capaz de garantir uma conduta “como convém para os deuses e para com os
6
Ibid., p. 60.
7
Ibid., p. 59
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41
homens”
8
. Não se trata tanto de pensar o sophron como um ser em luta, mas sim
alguém que já atingiu um certo grau de estabilidade.
A enkrateia é a condição da sophrosune, a forma de trabalho e de controle
que o indivíduo deve exercer sobre si por si para se tornar temperante (sophron).
O termo enkrateia no vocabulário clássico geralmente dá contorno à idéia de uma
dinâmica de uma dominação de si por si e ao esforço que ela exige, dinâmica esta
não necessariamente encontrada em sophrosune.
3.3
As cisões da alma: questão da ontologia
A divisão da alma efetuada com Platão é um dos pontos óbvios para
elucidar os pressupostos que possibilitam a justa de si para consigo, na Grécia, e a
conseqüente relação com o nível cívico. Tanto na República, com a tripartição da
alma nos livros IV e IX, quanto no Fedro, na imagem da carruagem alada
9
, temos
claras descrições de um si mesmo cindido que vai possibilitar a instauração desta
dinâmica de conflito entre um elemento essencialmente racional (chamado de
logistikon na República) e outro elemento irracional (cindido em duas partes,
thymoeides e epithymetikon).
Vale indicar certas noções que o próprio Foucault sublinha. Ele recolhe na
República, uma passagem na qual Platão salienta algumas expressões ao mesmo
tempo familiares e estranhas. São expressões muito utilizadas no âmbito moral
grego que concernem à concepção do homem como sendo “mais forte” ou “mais
fraco” do que ele mesmo, e que implicam um paradoxo claro ao afirmar que o
mesmo individuo é, ao mesmo tempo, mais forte e mais fraco.
Quando a parte que é naturalmente a melhor mantém a menos boa sob seu império,
isso é marcado pela expressão “ser mais forte do que ele mesmo”, e é um elogio.
Quando, ao contrário, em conseqüência de uma educação ruim ou de certas
convivências, a melhor parte, que se encontra enfraquecida é vencida pelas forças
da parte má, então se diz do homem que está nesse estado, e nesse caso trata-se de
reprovação e censura, que ele é “escravo de si mesmo e intemperante”
10
.
O uso bastante corrente dessa expressão supõe, como forma de superar este
paradoxo, uma divisão da alma, em que uma parte seria melhor do que a outra e
8
Ibid., p. 61.
9
Assim como em outras passagens de Platão que se pode ver uma divisão na alma.
10
FOUCAULT, 2006, p. 65.
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42
deve dominá-la. Essa comparação entre duas partes da alma, exemplificada no
Fedro (cocheiros), demonstra uma vitória ou uma derrota do indivíduo consigo
mesmo ,
a batalha a ser travada, a vitória a ser conseguida e a derrota que se corre o risco de
sofrer são processos e acontecimentos que ocorrem de si para consigo. Os
adversários que o indivíduo deve combater não estão simplesmente nele ou perto
dele. São parte dele mesmo.
11
Quando o melhor lado da alma vence, esse lado impera e o indivíduo torna-
se bem visto. Essa vitória é resultado de uma educação correta, de uma boa
condução de si mesmo, e configura o homem virtuoso. Ao contrário, quando a
melhor parte da alma é vencida pela pior, o homem é tido como “escravo de si
mesmo e intemperante” sendo, desse modo, censurado ao invés de elogiado.
Foucault cita um trecho das Leis:
E que esse antagonismo de si para consigo tenha que estruturar a atitude ética do
indivíduo, no que diz respeito aos desejos e aos prazeres, é o que está claramente
afirmado no início das Leis: a razão dada para que haja em cada Estado um
comando e uma legislação é que, mesmo na paz, todos os Estados estão em guerra
uns com os outros; do mesmo modo, é preciso entender que, se ‘na vida pública
todo homem é para todo homem um inimigo’, na vida privada ‘ cada um, face a si
próprio, é um inimigo de si mesmo’; e de todas as vitórias possíveis de serem
obtidas, ‘a primeira e a mais gloriosa’ é a que se consegue ‘sobre si mesmo’, ao
passo que ‘o mais vergonhoso’ dos fracassos, ‘o mais desprezível’, ‘consiste em ser
vencido por si mesmo’.
12
O pensamento prático (e não uma lei universal) sobre as atitudes dos
indivíduos levava em conta o domínio dos desejos. Não se tratava de suprimi-los
(exceto em algumas poucas correntes), ao contrário do que se observa com o
desenvolvimento da moral cristã. A concepção ética dos gregos considerava a
provação sempre numa relação do sujeito consigo, não sendo o inimigo algo outro
que o si mesmo. “O que se deve reter para definir o estilo geral dessa ascética é
que o adversário a ser combatido, por mais afastado que esteja, por sua natureza,
daquilo que pode ser a alma, a razão ou a virtude, não representa uma outra
potência, ontologicamente estranha”.
13
11
Ibid., p. 64
12
Ibid., p. 65.
13
Ibid., p. 64.
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43
Na ética da carne, isto é, no cristianismo, um salto se dá para além do
indivíduo em seu combate rumo à virtude. Um “Outro é introduzido, em um
lugar ilusório, isto é, “o que se chama interioridade cristã é um modo particular da
relação consigo”
14
, que passa a conduzir em uma dimensão imaginária, a luta
exercida em relação aos desejos. Tal opositor não provém do próprio indivíduo,
mas se trata de um Outro introjetado. No cristianismo, não se mostra em público
como esse controle é dado, ao contrário dos gregos que buscavam um exercício
constante de controle em que se devia apresentar ao máximo as conquistas nesse
campo de luta.
Um dos traços essenciais da ética da carne será o vínculo de princípio entre o
movimento da concupiscência, sob suas mais insidiosas e secretas formas, e a
presença do Outro, com suas artimanhas e seu poder de ilusão. Na ética dos
aphrodisia, a necessidade e a dificuldade do combate se deve, ao contrário, a que
ele se desenrola como uma justa consigo mesmo: lutar contra “os desejos e os
prazeres” é se medir consigo.
15
No desenvolvimento de uma experiência histórica da subjetividade a partir
da divisão dos gregos e da indicação de outra divisão elaborada com a pastoral
cristã, Foucault mostra que o sujeito nasce dividido e que foi historicamente
relançado com essa divisão. Na Grécia clássica, para alcançar a virtude na ordem
dos prazeres, o indivíduo deveria confrontar-se a todo tempo com uma relação de
dominação, ao invés de tentar atingir um “estado de integridade”
16
. Esta
conclusão pode ser encontrada a partir dos
termos que são utilizados seja por Platão, Xenofonte, Diógenes, Antifonte ou
Aristóteles para definir a temperança [...] “dominar os desejos e os prazeres sem
se deixar vencer por eles; e não o fato de não recorrer a eles”
17
.
Uma comparação com a espiritualidade cristã merece mais uma vez ser
destacada: aqui, a relação de si para consigo pode ser representada pelo par
“elucidação-renúncia”, “decifração-purificação”, enquanto que o grego para se
tornar sujeito virtuoso e temperante no uso de seus prazeres deve estabelecer de si
14
Ibid., p. 60.
15
Ibid., p. 64.
16
Ibid., p. 66.
17
Ibid., p. 66.
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44
para consigo uma relação que é do tipo “dominação-obediência”, “domínio-
docilidade”.
18
3.4
A heautocracia grega: conseqüências da dominação de si na casa e
na cidade
Para Foucault, essa busca do sujeito pela virtude, na prática moral dos
prazeres, pode ser delineada como uma estrutura “heautocrática” do sujeito, o si
mesmo (heautós) dominante:
Essa forma heautocrática é desenvolvida seguindo vários modelos: assim em
Platão, o da equipagem com seu cocheiro e, em Aristóteles, o da criança com o
adulto (nossa faculdade de desejar deve conformar-se às prescrições da razão
‘como a criança deve viver segundo os preceitos de seu pedagogo’).
19
A heautocracia apresenta uma clara imbricação entre o aspecto pessoal da
virtude e o aspecto econômico, da organização da casa. Para manter uma casa em
ordem, seu dono deve manter uma relação de hierarquia. Assim, se o homem tem
sua autoridade respeitada e sabe comandar seus serviçais, tem ao mesmo tempo
seus desejos sob domínio. O comando de si e da vida doméstica caracteriza a
temperança. Ao contrário, a intemperança é caracterizada por um interior mal
gerido. No início da Econômica, Xenofonte expõe o que definiria uma alma
desordenada:
é ao mesmo tempo um contra-exemplo do que deve ser uma casa bem dirigida e
um perfil desses maus senhores que, incapazes de se governarem a si próprios,
levam seus patrimônios à ruína; na alma do homem intemperante, senhores ‘maus’,
‘intratáveis’ trata-se da voracidade, da embriaguez, da lubricidade e da ambição
reduzem à escravidão aquele que deveria comandar e, após tê-lo explorado na sua
juventude, preparam-lhe uma velhice miserável.
20
Os gregos da época clássica comparavam a alma e a vida doméstica e
buscavam sempre expor tais realidades no âmbito público. Neste aspecto,
podemos pensar que a posse e o manejo tanto da mulher quanto da casa
apresentam publicamente um bom governo que se relaciona com a virtude do
18
Ibid., p. 66.
19
Ibid., p. 67.
20
Ibid., p. 67
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45
homem, isto é o bom governo de sua alma. Neste sentido, a organização da casa
era algo fundamental na estrutura moral do próprio indivíduo, já que está
intimamente relacionada com a sua alma, sua virtude e, portanto, sua capacidade
de ser feliz. Tal aspecto será melhor analisado no capítulo sobre a Econômica da
História da Sexualidade.
Além deste modelo da vida familiar, do oikos, o modelo da vida cívica
também era tomado como parâmetro para se pensar a atitude de temperança e a
vida moral em geral. Foucault no trecho a seguir cita os ensinamentos de Platão
que relacionam temperança e modelo cívico:
(...) a reflexão da República, permite desenvolver inteiramente o modelo “cívico”
da temperança e de seu contrário. Nele, a ética dos prazeres é da mesma ordem que
a estrutura política: “Se o indivíduo se assemelha à cidade, não é uma necessidade
que se passem nele as mesmas coisas?” e o homem será intemperante quando
fracassa a estrutura de poder, a arche que lhe permite vencer, dominar (kratein) as
potências inferiores; então, “uma servidão e uma baixeza extrema “tomarão sua
alma; e as partes mais honestas” dessa alma cairão na escravidão e “uma minoria,
formada pela parte pior e mais furiosa, nela comandará como senhora e mestra. [...]
A virtude individual tem que se estruturar como uma cidade.
21
Foucault cita um trecho das Leis que também serve como exemplo para
comparar temperança e modelo cívico: “a parte que sofre e a que goza é na alma o
que o povo e a multidão são na cidade”
22
.
3.5
O Exercício (askesis)
Ainda dentro deste esboço preliminar, no capítulo um do Uso dos Prazeres,
Foucault analisa a importância dos exercícios para uma luta dessa natureza. É o
exercício que sustenta a atitude de busca da virtude. Não se trata de conhecer um
princípio e de segui-lo cegamente, mas sim de se exercitar para poder incorporar a
luta constante para o domínio prático e concreto de si mesmo. Este exercício é
uma técnica de realizar o combate no nível prático que dá forma ao saber.
Tal princípio socrático da askesis é retomado em Platão com assiduidade. A
lembrança de Sócrates, expondo para Alcebíades ou Cálicles que só seria possível
ocupar-se da cidade e governar os outros aprendendo o necessário e, portanto,
21
Ibid., p. 67-68.
22
Ibid., p. 67.
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46
exercitando-se para tal, serve como exemplo: “Quando juntos tivermos praticado
suficientemente esse exercício (askesantes), então poderemos, se quisermos,
abordar a política”.
23
Mais ainda, Platão aproxima a exigência do exercício à
necessidade de se ocupar de si.
A epimeleia heautou, a aplicação consigo que é uma condição prévia para poder se
ocupar com os outros e dirigi-los, comporta não somente a necessidade de
conhecer (de conhecer o que se ignora, de conhecer que se é ignorante, de conhecer
o que se é), como também a necessidade de se aplicar efetivamente a si e de se
exercer e se transformar.
24
Em uma comparação com a doutrina e a prática dos cínicos, pode-se
verificar aí também, uma importância considerável no que diz respeito a askesis.
A vida dos cínicos era repleta de uma “espécie de exercício permanente”.
25
Para
Diógenes, era conveniente exercitar tanto o corpo quanto a alma, posto que, para
ele, “cada um dos dois exercícios, é impotente sem o outro, a boa saúde e força
não são menos úteis que o resto porque o que concerne ao corpo concerne também
à alma”. Foucault recolhe da “Vida dos filósofos” um fragmento no qual
Diógenes discorre sobre o valor do exercício: “o exercício é ao mesmo tempo
redução à natureza, vitória sobre si e economia natural de uma vida de verdadeiras
satisfações”.
Não se pode fazer nada da vida dizia Diógenes sem o exercício e o exercício
permite aos homens tudo vencer (pan eknikesai)... Deixando de lado os sofrimentos
fúteis que nós nos damos e exercitando-se em conformidade com a natureza,
poderíamos e deveríamos viver felizes... O próprio desprezo do prazer nos daria, se
nos exercitássemos, muita satisfação. Se aqueles que adquiriram o hábito de viver
nos prazeres sofrem quando lhes é necessário mudar de vida, aqueles que se
exercitaram em suportar as coisas penosas desprezam sem sofrimento os prazeres
(hedio auton ton hedonon kataphronousi).
26
23
Ibid., p. 68-69.
24
Ibid., p. 69.
25
Ibid., p. 69.
26
Ibid., p. 69.
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47
3.5.1
Questão ontológica e teleológica da askesis
Devemos indicar, a propósito de circunscrever algumas características
significativas deste período histórico que, segundo Foucault, não se encontra, nos
textos gregos e latinos, uma noção semelhante ao termo sexualidade e carne.
Também não se encontra nos textos da época clássica uma definição sobre as
formas concretas da askesis moral.
Entretanto, Foucault assinala que podemos verificar após a prática do
exercício na tradição socrático-platônica que ela irá ganhar cada vez mais
importância na tradição filosófica posterior. O espaço para os exercícios torna-se
maior. São difundidos ao mesmo tempo em que sofrem uma delimitação dos
procedimentos, dos objetivos e das variantes possíveis. Isso acaba por gerar uma
interrogação sobre sua eficácia e acaba por produzir também cada vez mais
formas: exercícios, meditação, provas de pensamento, exame de consciência,
controle das representações tudo isso torna-se matéria de ensino. Não são
encontrados nos textos da época clássica definições sobre as formas concretas da
askesis moral, no entanto, as referências indicam que havia uma série de
discussões sobre a eficácia dos exercícios.
Foucault afirma que a tradição pitagórica compilava diversos exercícios:
regime alimentar, enumeração das faltas no fim do dia, e ainda práticas de
meditação antes do sono, de modo a afastar os maus sonhos e favorecer as visões
que poderiam vir dos deuses. Em uma passagem da República, lembra Foucault,
Platão se refere a essas preparações espirituais da noite usadas contra o perigo
imanente dos desejos que podem invadir a alma.
27
Exceto as práticas pitagóricas
praticamente não se encontra especificação da askesis como exercício de
continência nem nos textos de Xenofonte, Platão, Diógenes, ou Aristóteles.
Para Foucault, uma das razões dessa não especificação está relacionada ao
fato de que o exercício era concebido como a própria prática para a qual era
preciso se preparar. Não há singularidade do exercício no que se refere a meta
almejada, isto é, não se escolhia um exercício de acordo com um determinado
objetivo. O treinamento cria o hábito para a conduta que, daí por diante, será
preciso observar. Um exemplo disso encontra-se em Xenofonte. Para ele, a
27
Ibid., p. 70.
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48
educação espartana era admirável pois ensinava às crianças a suportar a fome
através do racionamento dos alimentos, suportar o frio usando apenas uma roupa e
suportar o sofrimento submetendo-as a castigos físicos.
28
Outra razão justifica não existir uma arte específica do exercício da alma: é
que para os gregos a questão do domínio de si e do domínio dos outros tinha a
mesma forma. Assim, Foucault revela:
já que se deve governar a si mesmo como se governa a própria casa e da maneira
como se desempenha o próprio papel na cidade, segue-se que a formação das
virtudes pessoais e particularmente da enkrateia não será diferente, por natureza,
da formação que permite sobressair-se sobre os outros cidadãos e dirigi-los. A
mesma aprendizagem deve tornar capaz de virtude e de poder.
29
Assim, são consideradas práticas equivalentes assegurar a direção de si
mesmo, gerir a própria casa e participar do governo da cidade. Desse modo, a
askesis moral, a paideia do homem livre e a educação política do homem
enquanto cidadão não são coisas divergentes. Os procedimentos para a educação
em geral são os mesmos. Foucault os descreve: a ginástica e as provas de
resistência, a música, a aprendizagem dos ritmos viris e vigorosos, a prática da
caça e o manejo de armas, o cuidado na apresentação em público, aquisição do
aidos (respeito a si mesmo através do respeito aos outros) andam juntos tanto no
exercício moral do domínio de si quanto no exercício necessário para o homem
como cidadão.
Ao evocar as provas de medo artificial que ele recomenda, Platão vê nelas um meio
para destacar, dentre os jovens, aqueles que serão mais capazes de ser “úteis a eles
próprios e ao Estado”; são aqueles que serão recrutados para governar:
“Estabeleceremos como chefe e guardião da cidade aquele que, tendo sofrido todas
as provas sucessivas da infância, da juventude e da idade madura, saia intacto
(akeratos) de todas elas”. E quando nas Leis o Ateniense dá a definição daquilo
que ele entende por paideia, ele a caracteriza como aquilo que forma “desde a
infância para a virtude” e que inspira “o desejo apaixonado de tornar-se um
cidadão realizado, sabendo comandar e obedecer segundo a justiça”.
30
Assim, Foucault esclarece que o tema da askesis enquanto preparação
prática fundamental para a formação no indivíduo de um sujeito moral não só é
importante como também reiterativo no pensamento grego clássico, especialmente
28
Ibid., p. 70.
29
Ibid., p. 71.
30
Ibid., p.71-72.
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49
na tradição vinda de Sócrates. Essa “ascética” não forma um conjunto de práticas
singulares, não tem o formato de uma arte própria da alma com suas técnicas
particulares. Enquanto essa ascética constitui o exercício virtuoso da busca pela
virtude, já que a própria busca da virtude é por si própria virtuosa, ela se forma,
simultaneamente, à formação do cidadão. Ou seja, o mestre de si se forma em
concomitância com o mestre dos outros.
Essa ascética passa a ganhar alguma autonomia quando os exercícios
voltados para o governo de si começam a ser desmembrados do procedimento de
aprendizagem para o governo do outro. Os exercícios ganham uma forma
específica e vão sendo desassociados em seu curso daquilo que tinham como
tarefa alcançar virtude, moderação e temperança. Os procedimentos (provas,
exames e tarefas) vão dando forma, pouco a pouco, a uma técnica particular. Mais
que a simples repetição da conduta moral que pretendia retomar a conduta moral
num movimento relativamente simples, de “reflexão”, nota-se que a partir de
agora, a arte de si ganha sua própria forma, “em relação à paideia que forma seu
contexto e em relação à conduta moral que lhe serve de objetivo”.
3.6
O problema da liberdade
Foucault esclarece que no pensamento grego clássico, o sujeito moral era
constituído através de uma “ascética” que fazia parte por completo do exercício
do indivíduo por uma vida virtuosa. Aqui o exercício de uma vida virtuosa
apresenta a mesma forma da vida do homem “livre”. Homem “livre”, como diz
Foucault, no sentido pleno, positivo e político do termo.
31
Pode-se compreender a idéia de liberdade como o motor que promove a
busca pelo estado de sophrosune. Era precisamente para atingir um grau de
liberdade e, ainda, para poder mantê-la, que os indivíduos procuravam lidar com
os prazeres de modo a dominá-los ou contê-los. Não havia, desse modo, a idéia de
resgate de uma “inocência de origem”.
32
31
Ibid., p.72.
32
Foucault observa: “Não se trata, evidentemente, de dizer que o tema da pureza esteve ausente da
moral grega dos prazeres na época clássica; ele ocupou um lugar considerável nos pitagóricos; e
foi importante para Platão. Entretanto, parece que, de modo geral, no que concerne aos desejos e
prazeres físicos, o que estava em jogo na conduta moral foi pensado sobretudo como uma
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50
A busca da liberdade fazia-se em um movimento do indivíduo consigo
mesmo que acabava por ir em direção à cidade. Sendo assim, prioriza-se a relação
do indivíduo consigo mesmo, em uma tentativa ininterrupta da obtenção de um
estado virtuoso. E, assim, a liberdade a ser alcançada era buscada pelo grupo dos
cidadãos, contudo, tal propósito estava presente para cada um em uma
configuração individual do indivíduo para consigo. Foucault recolhe um trecho da
Política de Aristóteles para esclarecer essa relação do indivíduo consigo mesmo e
seus efeitos como constituintes de um bom Estado:
É claro que a constituição da cidade, o caráter das leis, as formas da educação, a
maneira pela qual os chefes se conduzem são fatores importantes para o
comportamento dos cidadãos; mas, em troca, a liberdade dos indivíduos, entendida
como o domínio que eles são capazes de exercer sobre si mesmos é indispensável a
todo o Estado. Escutemos Aristóteles na Política: “Uma cidade é virtuosa pelo fato
de que os cidadãos que participam em seu governo são eles próprios virtuosos; ora,
em nosso Estado todos os cidadãos participam do governo. O ponto a ser
considerado é o seguinte: de que maneira um homem se torna virtuoso? Pois
mesmo no caso de ser possível a todo o corpo de cidadãos ser virtuoso sem que
nenhum deles o seja individualmente, é a virtude individual, no entanto, que é
necessário preferir, já que a virtude de cada corpo social segue logicamente a
virtude de cada cidadão”. A atitude do indivíduo em relação a si mesmo, a maneira
pela qual ele garante sua própria liberdade no que diz respeito aos seus desejos, a
forma de soberania que ele exerce sobre si, são elementos constitutivos da
felicidade e da boa ordem da cidade.
33
Faz-se necessário uma boa atitude do indivíduo consigo, uma luta com os
seus desejos pela sua liberdade enquanto indivíduo, de modo que possa contribuir
como parte de um todo em que haja felicidade e uma cidade em boa ordem.
Ressalta-se aqui um elemento importante dessa liberdade individual não se pode
compreender que se tratava de um estado de “independência de um livre arbítrio”.
A liberdade referente aos prazeres não “é um determinismo natural nem a vontade
de uma onipotência: é uma escravidão e a escravidão de si para consigo”. A
liberdade em relação aos prazeres é alcançada quando o indivíduo não está a
serviço dos prazeres, portanto, quando não se torna escravo destes. A escravidão
era tida como a maior ameaça oferecida pelos aphrodisia.
Vale reforçar que a medida dessa escravidão dava-se pelo poder
desempenhado em relação a si e sobre os outros, mais do que formas de coerção
exteriores e interiores. Sendo assim, aqueles que por status estão sob a autoridade
dominação. A ascensão e o desenvolvimento de uma ética da pureza, com as práticas de si que lhe
são correlativas, será um fenômeno histórico de longo alcance". FOUCAULT, op. cit., p.73.
33
Ibid., p. 74.
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51
de outros não podem dirigir-se de acordo com seu estado de temperança. Segundo
Platão, a alma do artesão “é tão fraca por natureza que ele não pode comandar
suas feras interiores, que ele as deleita, não podendo aprender outra coisa a não
ser bajulá-las”
34
. A partir disso, Platão conclui que, para se exercer sobre o artesão
um princípio racional como o que governa o homem superior, seria
imprescindível mantê-lo sob a autoridade deste. Foucault cita Platão referindo-se
ao artesão:
“Que ele se faça escravo daquele em quem o elemento divino comanda”. (...) ao
mesmo tempo porque, em sua posição e com o poder que ele exerce, lhe seria fácil
satisfazer todos os seus desejos e, portanto, entregar-se a eles, como também
porque as desordens de sua conduta têm efeitos sobre todos e na vida coletiva da
cidade. Para não ser excessivo e não fazer violência, para escapar à dupla
constituída pela autoridade tirânica (sobre os outros) e pela alma tiranizada (por
seus próprios desejos), o exercício do poder político exigirá como seu próprio
princípio de regulação interna o poder sobre si. A temperança entendida como um
dos aspectos de soberania sobre si é, não menos do que a justiça, a coragem ou a
prudência, uma virtude qualificadora daquele que tem a exercer domínio sobre os
outros. O mais real dos homens é rei de si mesmo (basilikos, basileuon heauton).
35
Essa relação entre a autoridade tirânica e a alma tiranizada tinha
considerável importância para os gregos. O mau tirano, inabilitado frente ao
domínio de suas paixões, acaba abusando do poder na relação com seus súditos,
gerando violência como resposta, uma revolta dos cidadãos. Ao contrário, aquele
capaz de praticar o exercício de poder sobre si, ao mesmo tempo em que exerce
autoridade em relação aos outros, consegue comedir-se ao exercer o poder sobre
os outros. Alguns fragmentos extraídos por Foucault podem ilustrar essa idéia:
É testemunho o Ciro de Xenofonte que poderia mais do que qualquer outro abusar
do seu poder e que, contudo, em meio à sua própria corte, manifestava o domínio
de seus sentimentos: “Assim, um tal comportamento criava na corte, entre os
inferiores, um sentimento exato de sua posição, que os fazia ceder aos superiores e,
deles entre si, um exato sentimento de respeito e cortesia”. (...) É em termos de
prudência que Aristóteles recomendará, ao soberano absoluto, não se entregar a
qualquer desregramento; ele deve, efetivamente, ter em conta o apreço dos homens
de bem por sua honra; por essa razão seria imprudente se os expusesse à
humilhação dos castigos corporais; pela mesma razão lhe seria necessário abster-se
“das ofensas ao pudor da juventude”.
36
34
Ibid., p.75.
35
Ibid., p.75.
36
Ibid., p.76.
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52
3.6.1
As liberdades dos gêneros: virilidade e feminidade
Essa liberdade ativa conquistada com o domínio de si revela o aspecto viril
da temperança. Cada homem deve manter-se atento a si mesmo para exercer sobre
si mesmo suas qualidades de homem. A relação consigo e as relações de
dominação, hierarquia e de autoridade com os subordinados permaneciam no
mesmo plano. Assim, é possível comparar as categorias de “virilidade ética” com
as de “virilidade social” e “virilidade sexual”. Foucault explica: “No uso desses
prazeres de macho é necessário ser viril consigo mesmo como se é masculino no
papel social. A temperança é no sentido pleno uma virtude de homem”.
37
As
mulheres participavam da busca pela enkrateia ou sophrosune de outra maneira,
pois o lugar social ocupado por elas era diferente, em diversos aspectos, do lugar
ocupado pelos homens. As mulheres tinham o intuito de alcançar essa virtude,
porém, de outro modo. Em primeiro lugar, a mulher possuía um papel social
definido em relação ao homem e assim à sua virilidade. Sua dependência à família
e ao marido e a sua função procriadora lhe atribuía a capacidade de transmissão
dos bens e continuidade da cidade, que lhes impõem a temperança. Mas, também,
referência estrutural, já que uma mulher, para poder ser temperante, deve
estabelecer consigo uma relação de superioridade e de dominação que é em si
mesma uma relação de tipo viril. (...) Sócrates, na Econômica de Xenofonte, após
ter ouvido Isômaco vangloriar-se dos méritos da esposa que ele próprio formou,
declara “(...)Eis que se revela em tua mulher uma alma bem viril”. Ao que
Isômaco, para introduzir a lição de postura sem coquetismo que tinha dado à sua
esposa, acrescenta a seguinte réplica onde se lêem os dois elementos essenciais
dessa virilidade virtuosa da mulher força de espírito própria e dependência em
relação ao marido: “Quero ainda te citar outros traços de sua força de espírito e
mostrar-te com que prontidão ela me obedecia após ouvir meus conselhos”.
38
Em Aristóteles não se encontra uma “unidade essencial da virtude”, uma
identidade da virtude nos homens e nas mulheres. A descrição das virtudes
femininas aparece referida às virtudes dos homens como virtudes que neles,
homens, podem ser obtidas “em sua forma plena e acabada”. Para Aristóteles a
relação entre homem e mulher é política - o homem governa a mulher:
37
Ibid., p. 77.
38
Ibid., p. 78.
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53
Aquele que comanda o homem, portanto “possui a virtude ética em sua
plenitude”, enquanto que para os governados e para a mulher basta ter “o
quanto de virtude apropriado a cada um”. Portanto, a temperança e a coragem são
no homem virtude plena e completa “de comando”; quanto à temperança ou à
coragem da mulher, são virtudes “de subordinação”, o que significa que elas
encontram no homem, ao mesmo tempo, seu modelo perfeito e acabado e o seu
princípio de funcionamento.
39
Essa descrição revela como os gregos diferenciavam a atividade e a
passividade. A concepção moral grega determina a característica da feminilidade
em um homem pelo comportamento consigo mesmo, e não a partir da relação com
o sexo do outro indivíduo. É de acordo com o nível de atividade e de domínio de
si que o homem era visto como ativo ou passivo. Na Grécia não dizia-se que um
homem era “feminino” pelo fato de escolher outro indivíduo do mesmo sexo. A
marca do feminino instalava-se pelo grau de atividade apresentado na relação
sexual e no domínio de si. Um homem quando não possuía características de
atividade e domínio era tido como “feminino”. Para o homem grego a
intemperança traz uma passividade semelhante à verificada na feminilidade, isto
é, frente à força dos prazeres ela acarreta um estado de não-resistência e uma
posição de fraqueza e de submissão. O intemperante não carrega consigo uma
atitude viril imprescindível para ser mais forte do que si mesmo. Desse modo, o
homem que não exerce domínio sobre si próprio é feminino em relação a si e em
relação aos outros. Passividade e atividade servem como indicadores ao mesmo
tempo dos comportamentos sexuais e das atitudes morais. Se um homem
relacionava-se com outro homem não era considerado efeminado a não ser quando
se colocava de modo passivo no domínio de si.
Para esclarecer essas distinções, Foucault faz uma comparação com o que,
para nós, é concebido como características da virilidade de um homem. Não era a
escolha de objeto que o definia viril, mas sua atitude em relação ao uso dos
prazeres. Não encontramos semelhança com aquilo que definimos como virilidade
em um homem e como os gregos o definiam. Nem mesmo referente ao que
conhecemos como homossexualidade passiva ou ativa. Foucault afirma que a
feminidade para os gregos é marcada pelos signos de preguiça, indolência, recusa
das atividades um tanto rudes dos esportes, gosto pelos perfumes e pelos adornos
39
Ibid., p. 78.
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54
e lassidão. Então, pode-se reconhecer que para os gregos era a atitude passiva em
relação aos prazeres e não o fato de se amar os dois sexos que representava “a
negatividade ética por excelência”
40
.
(...) vê-se, então, por que um homem pode preferir os amores masculinos sem que
ninguém sonhe em suspeitá-lo de feminidade, desde que ele seja ativo na relação
sexual e ativo no domínio de si; em troca, um homem que não é suficientemente
dono de seus prazeres pouco importa a escolha de objeto que faça é
considerado como “feminino
41
”.
Na experiência atual da sexualidade uma cesura fundamental delimita e
opõe feminino e masculino. O homem efeminado é caracterizado pela
transgressão de seu papel sexual. Na experiência da atualidade, segundo Foucault:
Ninguém será tentado a dizer de um homem, cujo amor às mulheres o leva ao
excesso, que ele seja efeminado a não ser operando sobre o seu desejo todo um
trabalho de decifração e desentocando “a homossexualidade latente” que habita em
segredo sua relação instável e multiplicada com as mulheres.
42
3.6.2
A necessidade do logos para a liberdade: a prática da verdade e da
beleza
Para os gregos, a relação entre poder e liberdade não seria possível sem a
garantia do logos em uma relação com a verdade. Aquele que pretendia ser
temperante, diz Aristóteles, deveria fazer uso daquilo “que a justa razão (orthos
logos) prescreve”.
43
Foucault afirma que é conhecido “o longo debate que se
desenvolveu a partir da tradição socrática a propósito do papel do conhecimento
na virtude em geral e na temperança em particular”.
44
Como exemplo, ele recolhe
o trecho no qual Xenofonte nos Memoráveis traz à tona a tese de Sócrates de que
não era possível separar ciência e temperança, isto significava que os
intemperantes não seriam capazes de saber. Sócrates afirma que os intemperantes
são sempre ignorantes, visto que, de toda forma, os homens “escolhem dentre
40
Ibid., p.79
41
Ibid., p.79.
42
Ibid., p.79.
43
Ibid., p.79.
44
Ibid., p.80.
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55
todas as ações aquelas que julgam ser as mais vantajosas”.
45
Para Foucault, não é
tão importante diferenciar se, ao se cometer o mal, se sabe ou não o que se está
fazendo, o que interessava era ter em mente que não haveria como buscar a
temperança “sem uma forma de saber que constitui pelo menos uma de suas
condições essenciais. Não se pode constituir-se como sujeito moral no uso dos
prazeres sem constituir-se ao mesmo tempo como sujeito de conhecimento”.
46
A filosofia grega do século IV engendra a relação com o logos na prática
dos prazeres basicamente segundo três formas: uma forma estrutural, na qual o
logos ocupa o lugar de soberano no ser humano enquanto funciona, ao mesmo
tempo, como responsável em controlar o comportamento. É ao logos que devem
estar sujeitos os desejos. Foucault lembra que, para Sócrates, como a razão é
bia, ela deve velar sobre a totalidade da alma:
(...) e a partir daí ele (Sócrates) define o sophron como aquele em quem as
diferentes partes da alma estão em amizade e harmonia, quando aquela que
comanda e as que obedecem estão de acordo para reconhecer que é a razão que
deve comandar e que elas não disputam mais sua autoridade. E a despeito de todas
as diferenças que opõem a tripartição platônica da alma à concepção aristotélica da
época da Ética a Nicômaco, é em termos de superioridade da razão sobre o desejo
que aí se encontra caracterizada a sophrosune: “o desejo, portanto, crescerá de
maneira excessiva “se não se for dócil e submisso à autoridade”; e essa autoridade
é a do logos à qual deve conformar-se a “faculdade de concupiscência (to
epithumetikon)”.
47
Uma segunda forma a instrumental, é utilizada para descrever a prática do
logos na temperança. Por meio de uma razão prática indicadora das necessidades,
dos momentos e circunstâncias, era possível fazer um bom uso dos prazeres:
Platão sublinhava a importância, para o indivíduo como para a cidade, de não usar
os prazeres “fora das circunstâncias oportunas (ektos ton kairon) e sem saber
(anepistemonos)”. E num espírito bem próximo, Xenofonte mostrava que o homem
de temperança era também o homem da dialética apto a comandar e a discutir,
capaz de ser melhor visto que, explica Sócrates, nos Memoráveis, “só os homens
temperantes são capazes de considerar, dentre as coisas, aquelas que são as
melhores, de classificá-las prática e teoricamente por gênero, de escolher as boas e
de abster-se das más”.
48
45
Ibid., p. 80.
46
Ibid., p. 80.
47
Ibid., p. 80.
48
Ibid., p. 81
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56
A terceira e última forma que delineava a prática do logos na temperança
encontra-se em Platão e diz respeito ao “reconhecimento ontológico de si por si”.
Sócrates discorre sobre a questão do ser: para levar a efeito a virtude e dominar os
desejos, o indivíduo deveria olhar para si mesmo a fim de se conhecer:
Mas quanto à forma que esse conhecimento de si deve tomar, um texto como o
grande discurso do Fedro, onde se conta a viagem das almas e o nascimento do
amor, fornece algumas precisões. Tem-se aí, sem dúvida, na literatura antiga, a
primeira descrição daquilo que será mais tarde “o combate espiritual”. Aí se
encontra bem longe da impassibilidade e das proezas de resistência ou de
abstinência das quais Sócrates, segundo o Alcebíades do Banquete, sabia dar
provas toda uma dramaturgia da alma lutando consigo mesma e contra a
violência de seus desejos; esses diferentes elementos terão um longo destino na
história da espiritualidade: a perturbação que se apodera da alma e cujo próprio
nome ela ignora, a inquietação que a mantém desperta, a efervescência misteriosa,
o sofrimento e o prazer que se alternam e se mesclam, o movimento que arrebata o
ser, a luta entre as potências opostas, as quedas, as feridas, os sofrimentos, a
recompensa e o apaziguamento final. Ora, ao longo dessa narrativa que se dá como
a manifestação daquilo que é, na sua verdade, a natureza da alma tanto humana
como divina, a relação com a verdade desempenha um papel fundamental.
49
A alma em conseqüência de ter contemplado “as realidades que estão fora
do céu” e ter percebido o seu reflexo numa beleza deste mundo acaba sendo
arrebatada pelo delírio de amor, sendo exposta fora de si:
Mas é também porque essas lembranças levam-na “para a realidade da beleza”, é
porque ela “a revê, acompanhada da sabedoria e elevada sobre o seu pedestal
sagrado”, que ela se contém, que toma a si de sofrear o desejo físico e procura
liberar-se de tudo o que poderia entorpecê-la e impedi-la de reencontrar a verdade
que ela viu. A relação da alma com a verdade é, ao mesmo tempo, o que
fundamenta Eros em seu movimento, força e intensidade e o que, ajudando-o a
desenredar-se de qualquer gozo físico, permite-lhe tornar-se o verdadeiro amor.
50
Pode-se perceber através desse recorte a temperança em uma forte conexão
com o verdadeiro a partir da forma de uma estrutura “hierárquica do ser humano”,
do exercício de cautela ou de um olhar para si mesmo no sentido de reconhecer-
se, olhar para a própria alma. Essas observações demonstram o peso dessa ligação
entre temperança e verdade, mas, no entanto, revela que essa ligação não se fazia
por uma decifração de si por si, de uma hermenêutica do sujeito. O sujeito
temperante, ao se fazer temperante já produzia, ao mesmo tempo, uma relação
49
Ibid., p. 81.
50
Ibid., p. 82.
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57
com a verdade. Essa relação com a verdade dá-se então como constitutiva daquele
que é temperante, o que quer dizer que não se tratava de o indivíduo dizer uma
verdade sobre si mesmo, ou melhor, não se tinha a idéia de tomar a alma como
receptáculo de verdade, como terreno passível de ser conhecido, onde poderia
encontrar registros dos desejos para decifrá-los. Foucault esclarece:
A relação com a verdade é uma condição estrutural instrumental e ontológica da
instauração do indivíduo como sujeito temperante e levando uma vida de
temperança; ela não é uma condição epistemológica para que o indivíduo se
reconheça na sua singularidade de sujeito desejante, e para que possa purificar-se
do desejo assim elucidado.
51
O modo grego de condução apresenta uma distinção na prática da verdade
com relação ao que será desenvolvida posteriormente na espiritualidade cristã.
Foucault entende que a relação dos gregos com a verdade inaugura uma estética
da existência. A maneira de viver dos gregos estava relacionada a códigos morais
e a preocupações referentes à moral, no entanto, o modo de vida de cada um não
era referido a um código de comportamento nem mesmo a uma prática de
purificação. Os gregos sujeitavam-se a “certos princípios formais gerais no uso
dos prazeres, na distribuição que deles se faz, nos limites que se observa, na
hierarquia que se respeita”
52
. Isso era possível por existir uma ordem ontológica,
pela qual os indivíduos se orientavam em busca de um estado de temperança para,
enfim, organizar a vida tomando sempre como referência o logos, a razão e a
relação com a verdade, e também os efeitos que interessavam aos indivíduos.
Efeitos ligados a beleza: “de uma beleza manifesta aos olhos daqueles que podem
contemplá-la ou guardá-la na memória”. Para Foucault, tratava-se da busca por
uma existência temperante fundamentada na verdade. Há nos textos de Xenofonte,
Platão e Aristóteles, em vários momentos, uma discussão sobre essas questões:
Eis por exemplo em Górgias a maneira pela qual Sócrates a descreve dando ele
mesmo às suas próprias questões as respostas de Cálicles silencioso: “A qualidade
própria a cada coisa, móvel, corpo, alma, qualquer animal, não lhe vem por acaso:
ela resulta de uma certa ordem, de uma certa justeza, de uma certa arte (taxis,
orthotes, techne) adaptadas à natureza dessa coisa. (...) Consequentemente, uma
certa beleza de arranjo (kosmos tis), própria à natureza de cada coisa é o que, por
sua presença, torna essa coisa boa? Eu o creio. E por conseguinte, também, uma
alma na qual se encontra a ordem que convém à alma vale mais do que aquela onde
essa ordem está ausente? Necessariamente. Ora, uma alma que possui a ordem é
51
Ibid., p. 82.
52
Ibid., p. 82.
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58
uma alma bem ordenada? Sem dúvida. E uma alma bem ordenada é temperante e
sábia? Necessariamente. Portanto uma alma temperante é boa... eis o que,
quanto a mim, afirmo e sustento como certo. Se isso é verdade, parece-me pois que
cada um de nós, para ser feliz, deve buscar a temperança e nela exercitar (diokteon
kai asketeon)”.
53
3.7
Austeridade na moral cristã: renúncia de si
A arte moral desenvolveu temas de austeridade em relação às práticas
individuais, domésticas e políticas (corpo, casamento, amor pelos rapazes). O
tema da austeridade permaneceu em épocas posteriores, foi largamente investido
na moral cristã. Porém, Foucault ressalta que tal continuidade é apenas aparente.
O sujeito moral se constitui de modo muito distinto apesar de alguns temas
poderem ser recortados como permanentes.
Os elementos que constituem o campo da moral no cristianismo não são
regidos por uma natureza excessiva e virulenta, mas por uma natureza composta
por desejos escondidos no corpo e por atos bem definidos. A sujeição dessa
natureza a uma ordem não será mais do tipo savoir-faire, mas na necessidade de
obediência a uma lei e à autoridade. O que se espera do indivíduo, o que ele deve
aprender, em nada lembra o domínio de si dos gregos ou à sua atividade viril. O
indivíduo da moral cristã deve ser capaz de renunciar a si mesmo em nome de
uma pureza relacionada intrinsecamente à virgindade.
As duas práticas fundamentais da moral cristã são, por um lado, a
codificação, cada vez mais minuciosa, de todos os atos sexuais e, por outro lado, o
estabelecimento do que seria uma hermenêutica do desejo como procedimentos
que permitem algo como uma decifração de si.
3.7.1
Austeridade grega: domínio de si
O exercício da liberdade variava de acordo com a posição que se ocupava
em relação ao modo econômico e político de usufruir da temperança. Ao mesmo
tempo, toda a conduta individual era pautada na experiência estética, a cada
53
Ibid., p. 83.
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59
indivíduo era garantida a possibilidade de comportar-se de modo a levar à moral o
brilho singular. Se o indivíduo grego, fosse ele homem, jovem, escravo ou
mulher, pudesse exercitar-se em sua temperança, sua conduta seria
necessariamente boa.
Se, por um lado, o esplendor e brilho da alma correspondiam, na citação
acima, à busca da temperança e garantia por si o exercício do que seria bom, por
outro lado, a República mostra como o brilho da alma é antagônico ao uso
excessivo dos prazeres. A cidade ideal, imersa na beleza, seria aquela em que
todos vivem no perfeito domínio de si, em comedimento de acordo com sua
posição, em um cuidadoso e visível controle da alma e do corpo.
A necessidade de controle dos prazeres, que acaba por se alastrar para o
controle de todos os gestos e atos, demonstra que os elementos que constituem o
campo da moral grega eram determinados por uma natureza que sempre poderia
associá-los a um prazer intenso e a uma força sempre suscetível de insurreição. O
modo de controle dessa natureza sempre pronta a excessos não criara na Grécia
Antiga uma legislação universal. As condutas, variáveis em relação à posição
política, eram tomadas com base em uma arte. Uma arte também variável.
O pensamento moral do que seriam os prazeres em nada lembra a
codificação que depois se apresentou. A prática da reflexão moral na Antiguidade
se situa no âmbito da estética da existência, da estilização das atitudes. Não há
registros de códigos de conduta porque, sendo a atividade sexual uma parte do
exercício viril de domínio de si na prática da temperança, sua forma austera de
organização torna-se visível pelo modo como o indivíduo relaciona-se consigo na
sua lida com os outros.
Desse modo, o acesso privilegiado ao modo de conduta austero da
antiguidade grega, que teve um “destino histórico”
54
de alcance muito maior do
que sua circunscrição àquela cultura, deveriam ser as práticas existentes
reconhecidas pelas quais as condutas tomavam suas formas reais. O interesse pelo
destino histórico parece mover Foucault a empreender uma descrição detalhada
dos âmbitos que compõem a estrutura daquelas condutas antigas. Este é, também,
o nosso interesse, por isso, iremos no encalço da pesquisa de Foucault, na aposta
de que poderemos apresentar algumas conclusões acerca do destino histórico.
54
Ibid., p. 85.
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4
A perspectiva da cobra: uma natureza dinâmica
Algo para homens trabalhadores Quem hoje pretende estudar
as coisas morais, abre para si um imenso campo de trabalho.
Todas as espécies de paixões têm de ser examinadas
individualmente, perseguidas através de tempos, povos,
grandes e pequenos indivíduos; toda a sua razão, todas as suas
valorações e clarificações das coisas devem ser trazidas à luz!
Até o momento, nada daquilo que deu colorido à existência
teve história: se não, onde está uma história do amor, da
cupidez, da inveja, da consciência, da piedade, da crueldade?
Mesmo uma história comparada do direito, ou apenas do
castigo, falta inteiramente até aqui. Já se tomou por objeto de
pesquisa as diferentes divisões do dia, as conseqüências de uma
fixação regular do trabalho, das festas e do repouso? Conhece-
se os efeitos morais dos alimentos? Existe uma filosofia da
alimentação? (O alarido a favor e contra o vegetarianismo, que
volta e meia aparece, já mostra que ainda não há uma tal
filosofia!) Já foram reunidas as experiências de vida
comunitária, as experiências dos mosteiros, por exemplo? Já
foi mostrada a dialética do casamento e da amizade? Os
costumes dos eruditos, dos comerciantes, artistas, artesãos
encontraram seus pensadores? Há tanto a pensar aqui! Tudo o
que até agora os homens consideraram suas “condições de
existência”, e toda a razão, paixão e crendice desta
consideração isto já foi pesquisado até o fim? Apenas a
observação do crescimento diverso que tiveram e poderiam ter
ainda os impulsos humanos, conforme os diversos climas
morais, já significa trabalho em demasia para o homem mais
trabalhador; gerações inteiras, gerações de eruditos a trabalhar
conjuntamente e de modo planejado, serão necessárias para
esgotar aqui o material e os pontos de vista. O mesmo vale para
a demonstração dos motivos para a diferença de clima moral
(“Por que brilha aqui este sol de um juízo moral e medida de
valor fundamental e ali aquele outro?”). E seria um novo
trabalho estabelecer o caráter errôneo de todos esses motivos e
toda a natureza do juízo moral até agora. Supondo que todos
esses trabalhos fossem realizados, viria o primeiro plano a
questão mais espinhosa: se a ciência estaria em condições de
oferecer objetivos para a ação, após haver demonstrado que
pode liquidá-los então caberia uma experimentação que
permitiria a satisfação de toda espécie de heroísmo, séculos de
experimentação, que poderia deixar na sombra todos os
grandes trabalhos e sacrifícios da história até o momento. A
ciência ainda não ergueu suas construções ciclópicas até hoje;
também para isso chegará o tempo.
1
1
NIETZSCHE, 2001, p. 59.
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61
4.1
A Dietética
4.1.1 As opiniões
A cultura grega era segmentada no que diz respeito às opiniões sobre a
moral sexual. No entanto, não se formavam critérios rígidos e universais que
deveriam ser seguidos como regras incontestes pelos indivíduos. Estas opiniões
não buscavam fundamentar quais condutas deveriam ser seguidas e as formas
corretas de se conduzir. Consequentemente, interdições não eram justificáveis.
Eles buscavam, sobretudo, um valor moral sempre visto como um valor estético
que continha uma verdade. Ao falar de um valor estético que contém um valor de
verdade, Foucault chama atenção para o aspecto de beleza na conduta moral. Tais
condutas não requeriam uma fundamentação que as justificasse, mas deveriam
aparecer como belas. Como diz Foucault: “A reflexão moral dos gregos sobre o
comportamento sexual não procurou justificar interdições, mas estilizar uma
liberdade, aquela que o homem “livre” exerce em sua atividade.”
2
Isso era
alcançado através de um exercício de liberdade, na forma do domínio de si. Esse
exercício de liberdade sempre se dava num jogo de olhares recíprocos, isto é,
sempre em sociedade. A moral para os gregos, ao mesmo tempo em que se
exercia numa atitude individual, na capacidade do homem de dominar a si mesmo,
também era configurada pelo relacionamento com os outros, pelo fato de ser
reconhecido como alguém que alcança este domínio de si.
3
Se por um lado os gregos não buscavam um fundamento último e universal
para justificar suas condutas, não se valiam de uma permissividade absoluta. Pelo
contrário, trata-se de se ressaltar uma estilística moral, em que se admoestava a
uma conduta bela e boa. Portanto, as diversas opiniões não continham verdades
únicas e não eram excludentes. Para o homem grego, o domínio de si se dava
justamente na capacidade de lidar com a diversidade, inclusive de opiniões.
Vale lembrar alguns exemplos. Sobre a diversidade de opiniões sobre as
relações entre homens e rapazes: elas eram vividas abertamente e até mesmo
valorizadas pelo povo em geral, porém, entre os filósofos gregos, havia aqueles
que construíram e transmitiram uma moral de abstenção. Os gregos aceitavam a
2
FOUCAULT, 2006, p.89, grifo nosso.
3
O sexo na História faz uma interessante descrição da importância da relação na moral grega “A
vaidade era um fator bilateral”. TANNAHILL, 1983, p. 93.
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62
busca de prazeres sexuais fora do casamento, ao mesmo tempo em que os
moralistas idealizaram o preceito de uma vida de casado na qual o marido deveria
manter relações sexuais apenas com sua esposa.
Da mesma maneira, pode-se encontrar um aparente paradoxo na relação da
medicina com o ato sexual: a relação da saúde do indivíduo e sua atividade sexual
preocupava os médicos a ponto de terem elaborado uma reflexão moral em torno
dessa prática e de seus possíveis perigos, no entanto, não se verifica entre eles a
formação de uma concepção de prazer sexual como um mal em si mesmo ou
como a marca natural de um pecado. Para os gregos, não é pelo fato desta reflexão
moral ter sublinhado perigos
4
importantes em determinados atos sexuais, que ela
os concebia como patologias, isto é, como um ato errado em si e que devesse ser
extirpado.
Além disso, essas considerações não partiam do princípio de uma
catalogação do comportamento sexual de divisão das condutas como normais ou
anormais e patológicas. Não que essa divisão não tenha aparecido entre as
questões surgidas na época, mas definitivamente não eram elas que estabeleciam
“o quadro geral da interrogação sobre as relações entre os aphrodisia, a saúde, a
vida e a morte”
5
.
Esses distintos modos de conduzir a vida entre os gregos, na relação entre os
rapazes, no sexo fora do casamento, e frente aos perigos para a saúde provenientes
da atividade sexual eram explícitos e públicos e eram posições necessariamente
paradoxais, pois, como já foi dito, eles não buscavam justificativas monolíticas e
não havia exigência de universalidade.
4.1.2
Os cuidados com os doentes
A atenção no cuidado com os efeitos patológicos da atividade sexual
procurava definir as circunstâncias convenientes e as práticas que fossem de
alguma forma úteis como, por exemplo, a necessidade de rarefação, quais
condições favoráveis e sua prática útil. Desse modo, configurava-se uma
preocupação mais “dietética” do que “terapêutica”. A reflexão dietética consistia
4
Como veremos mais adiante, mesmo tais atos perigosos só o eram circunscritos a determinadas
estações do ano e a idades específicas, isto é, eles não eram fundamentados em regras universais.
5
FOUCAULT, 2006, p.89.
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63
em um cuidado com o próprio corpo, com uma atividade considerada importante
para a saúde. A terapêutica, por outro lado, considera certos fatores como
patológicos e procura excluí-los. Portanto, tratava-se de regular a atividade
sexual, assim como as outras atividades tidas como essenciais à saúde. O termo
regular chama atenção para um uso conveniente de práticas e não para uma
interdição destas práticas, termo este que pode ser associado a “diaites”, dieta, e
assim com regime.
Acerca das origens da dietética grega, Foucault apresenta um trecho da
República em que Platão
6
demonstra que ela teria surgido a partir de práticas
médicas simples que ainda não apresentam traços de reflexão e organização
mínimas:
Na origem o deus Asclépios teria ensinado aos homens de que maneira curar
doenças e feridas com remédios drásticos e operações eficazes. Homero, segundo
Platão, na narrativa que faz das curas de Menelau e de Euripilo nos muros de Tróia,
dará testemunho dessa prática das medicações simples: chupava-se o sangue dos
feridos, derramava-se alguns emolientes sobre as chagas e dava-se, para beber,
vinho polvilhado de farinha e de queijo ralado. Foi mais tarde, quando os homens
se afastavam da vida rude e sã dos antigos tempos, que se procurou acompanhar
“passo a passo” as doenças e manter, mediante um longo regime, aqueles que
estavam mal de saúde, e que justamente se encontravam assim, porque, não
vivendo mais como convinha, eram vítimas de males duráveis.
7
Explicitam-se aqui algumas idéias para se entender o trecho acima. Para
Platão, na época de Asclépios ou de seus primeiros sucessores, não cabia pensar
na prática de um regime, pois eles viviam junto à natureza. Então, para Platão, não
há como pensar a dietética como uma arte natural, que sempre existiu. Quando
surge uma prática médica que passa a acompanhar “passo a passo” as doenças,
surge o regime como modo de vida, e desenvolve a sua forma própria a partir de
um prolongamento desta prática médica refletida. Ou seja, no tratamento de um
doente, sugere-se uma nova orientação das condutas alimentares e de exercícios,
do modo de vida que ocasionou o estado de doença.
6
Foucault ainda cita Hipócrates que vê o nascimento da medicina como um prolongamento da
preocupação com a dieta.
7
Ibid., p.92.
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64
4.1.3
A gerência da vida como gerência da natureza
A noção de “dieta” - regime para os gregos - deve ser entendida como “uma
categoria fundamental através da qual pode-se pensar a conduta humana”
8
. É por
meio dela que se pensa como gerir a própria vida, isto é, que se pensa os modos
possíveis de elaboração de determinadas regras capazes de alcançar uma vida
saudável. O regime seria uma problematização em torno da natureza, que para não
se deteriorar e ser preservada, deve levar em conta suas condições materiais
específicas essa arte de viver que constitui o regime:
O domínio que um regime convenientemente refletido deve cobrir é definido por
uma lista que, com o tempo, assumiu um valor quase canônico. É a que se encontra
no IV livro das Epidemias; ela compreende: “os exercícios (ponoi), os alimentos
(sitia), as bebidas (pota), os sonos (hupnoi), as relações sexuais (aphrodisia)”
todas sendo coisas que devem ser medidas. [...] O regime, portanto, deve levar em
conta numerosos elementos da vida física do homem, ou pelo menos de um homem
livre; e isso ao longo de todos os dias, do levantar ao deitar.
9
Cada indivíduo deve compor um regime de acordo com as circunstâncias
materiais da vida. A conduta de sua própria existência como uma arte de viver era
feita através da fixação de um conjunto de regras voltada para uma
problematização do comportamento referida sempre à natureza que era preciso
preservar e a qual também era necessário se conformar.
Foucault afirma que Platão via com desconfiança os excessos rígidos na
busca de uma saúde perfeita. Deste modo, para ter uma vida útil e feliz dentro dos
limites estabelecidos para cada indivíduo não era aconselhável exercitar-se para
além dos próprios limites de cada um, nem tão pouco perseguir como objetivo um
prolongamento da vida para além das fronteiras de tempo. Além disso, a dieta não
deveria servir para fornecer as rédeas da vida a cada indivíduo determinando-lhe
as condições de existência, isto é, “um regime que só permita viver num único
lugar e com um único tipo de alimento, sem que se possa ficar exposto a algum
tipo de mudança, não é bom”
10
. Ao contrário, o regime eficaz proporciona aos
indivíduos a capacidade de lidar com as mais diversas situações:
8
Ibid., p.93.
9
Ibid., p.93.
10
Ibid., p.96.
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65
É assim que Platão opõe o regime dos atletas, tão estrito a ponto de não permitir
que eles se afastem sem “graves e violentas doenças”, àquele que ele gostaria de
ver adotado por seus guerreiros; estes devem ser como cães, sempre despertos;
quando estão em campanha devem poder “mudar frequentemente de águas e de
alimentos”, expor-se “alternadamente ao sol escaldante e ao frio do inverno”, ao
mesmo tempo que mantêm uma “saúde inalterável”. Sem dúvida, os guerreiros de
Platão possuem responsabilidades particulares. Entretanto, regimes mais gerais
obedecem também a esse mesmo princípio.
11
4.1.4
Estratégia para o inusitado
Esta passagem, lembra Foucault, já foi até mesmo interpretada como se
indicasse um interesse particular pela vida ativa e profissional. Para ele, vale
ressaltar neste texto a preocupação própria à moral e à medicina da época de
prevenir o indivíduo para circunstâncias também inusitadas. Desse modo, era
possível reagir às situações inesperadas de forma ativa e refletida. A reflexão
racional para os gregos em não lidar às cegas, portanto, de forma irracional às
situações desfavoráveis tinha grande valor. Assim, o indivíduo faria uso da
dietética como uma arte estratégica, e não como instrumento de evitação para
contornar fatalidades. Isso quer dizer que, frente a circunstâncias imprevisíveis,
era possível manter-se atento e guiar-se através do regime, apropriando-se da arte
da dietética como um instrumento capaz de compor uma estética da existência.
Para o homem grego a dietética funcionava como uma “espécie de manual para
reagir às situações diversas nas quais é possível encontrar-se; um tratado para
ajustar o comportamento de acordo com as circunstâncias”
12
.
4.1.5
Transmissão de princípios racionais e posição política
Para a medicina da época, a dietética também desempenhava o papel de uma
técnica de existência. O médico transmitia seu conhecimento ao doente sem se
limitar a oferecer, como indivíduo ativo detentor do saber, um bloco de conselhos
a um indivíduo passivo e isento de saber. Aqui a transmissão toma a forma mais
de uma persuasão do que a de “uma obediência nua ao saber do outro”, em que o
indivíduo ativo no uso da reflexão absorve esta prática para si. Os gregos
11
Ibid., p. 96.
12
Ibid., p.96-97.
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66
atribuíam valor ao ato de refletir, por isso a importância do médico inculcar
princípios ao indivíduo no ato de prescrição. Para servir como convém a dieta do
corpo, “deve ser também questão de pensamento, de reflexão e de prudência.
Enquanto os medicamentos agem sobre o corpo, o regime se dirige a alma e lhe
inculca princípios”
13
A prática da dietética se estendia para além do corpo e visava entrar em
sintonia com a alma. Sobre este aspecto, Platão diferencia os médicos que melhor
atuam com os escravos, daqueles médicos sábios capazes de lidar com os homens
livres. O médico sábio não iria se limitar a uma simples prescrição de receitas
ele trocava com o doente a partir de argumentos transmitindo-lhe uma “armação
racional para o conjunto de sua existência”. Platão faz esta distinção nas Leis:
Aqueles que são bons para os escravos (e são eles próprios frequentemente de
condição servil), e que se limitam a prescrever sem dar explicações; e aqueles
livres de nascimento, que se dirigem aos homens livres; eles não se contentam em
dar receitas, eles entram em conversação, informam-se junto aos doentes e aos seus
amigos; eles educam o doente, estimulam-no e o convencem através de argumentos
que, uma vez que ele fique persuadido, serão de natureza a lhe fazer levar a vida
que convém. O homem livre deve receber do médico sábio, além dos meios que
permitam a cura propriamente dita, uma armação racional para o conjunto de sua
existência.
14
4.1.6
Regime do prazer
Na prática do regime, o sujeito se constitui ao mesmo tempo em que
compõe uma atitude moral. O regime atravessa toda a vida cotidiana, tanto as
atividades maiores quanto as atividades rotineiras da existência. Saúde e moral
aqui entram juntas como uma estratégia de circunstância que oferece ao indivíduo
uma armação racional. Não se atribui a atividade sexual como se concebe
atualmente um aspecto de maior peso moral.
Nessa organização racional e natural da vida, os aphrodisia eram associados
a um movimento natural. Esse movimento que leva em conta as estações do ano
marcadas pelos astros em que as descrições do uso apropriado dos aphrodisia são
conjugados aos acontecimentos cósmicos. Não se destaca uma diferença entre a
13
Ibid., p.97.
14
Ibid., p.98.
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67
natureza do homem e cósmica, ao contrário, verifica-se uma composição de
forças, um conjunto de forças naturais que estruturam ao mesmo tempo o
indivíduo e sua atitude moral:
No solstício do inverno que é o tempo onde se está mais disposto ao catarro, a
prática sexual não tem que ser restrita. Durante o tempo da ascensão das Pleiades
período em que no corpo domina a bílis amarga, convém recorrer aos atos sexuais
comedidamente. E deve-se até mesmo renunciar completamente a eles no momento
do solstício de verão [...].
15
O regime é considerado como algo que deve ser examinado com dedicação,
visto que a dieta humana diz da natureza do homem e, por isso, “é preciso ser
capaz de ‘conhecer e reconhecer’ a natureza do homem em geral assim como sua
constituição de origem (he ex arches sustasis) e o princípio que deve comandar o
corpo (to epicrateon en toi somati)”
16
. A alimentação e os exercícios estão
ligados na medida em que o alimento serve fundamentalmente para compensar os
gastos causados pelos exercícios.
O tratado de Hipócrates discorre sobre a prática da dietética destacando “as
propriedades e os efeitos dos elementos que entram no regime”
17
: as regiões de
origem dos alimentos, baixas ou altas, secas ou úmidas, expostas a qual tipo de
vento, os banhos, os vômitos, o sono e exercícios. A atividade sexual (lagneie)
aparece descrita entre os banhos e as unções, por um lado, e os vômitos, por outro.
O que se fala dela neste tratado refere-se aos três efeitos a ela inerentes: dois
qualitativos aquecimento, oriundo da violência do exercício (ponos) e próprio à
eliminação de um elemento úmido, e produção de umidade, devido à fusão das
carnes. Outro efeito destacado, quantitativo, é de que a eliminação de secreções
causa emagrecimento. Os valores inerentes à atividade sexual não apresentam
conotação negativa neste tratado.
O tratado apresenta também prescrições sobre os aphrodisia, a partir da
apresentação de um grande calendário de saúde, no formato de um almanaque
definitivo de estações e de regimes específicos a cada uma delas. O autor do
calendário destaca que não seria possível traçar uma fórmula geral para organizar
15
Ibid., p.104.
16
Ibid., p.101.
17
Ibid., p.101.
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68
um equilíbrio justo entre os alimentos e os exercícios. Mesmo assim, há uma
necessidade de diferenciar as coisas, os indivíduos, as regiões, os momentos.
O calendário não tinha como função fornecer um conjunto de receitas
imperativas e sim um conjunto de princípios estratégicos. É importante notar que
na terceira parte do tratado de Hipócrates a apresentação do material relaciona-se
às variáveis de situação, enquanto nas duas primeiras o enfoque estava nos
elementos do regime e suas propriedades intrínsecas. Os aphrodisia eram citados
como uma das atividades confluentes em um conjunto de atividades voltadas para
a manutenção de uma boa saúde.
Essa organização do calendário serve, aqui, para mostrar o contexto geral no
qual se encontrava o uso dos aphrodisia regulado de acordo com os efeitos que
podem produzir no jogo entre o quente e o frio, o seco e o úmido. As indicações
referentes aos aphrodisia estavam localizadas junto às indicações relativas às
práticas alimentares, do exercício e das evacuações. Vale recortar um trecho no
qual Foucault se refere a esse contexto:
O inverno, desde o ocaso das plêiades até o equinócio da primavera, é uma estação
em que o regime deve ser aquele que seque e que aqueça na medida em que a
estação é fria e úmida: portanto, carnes assadas em vez de cozidas, pão de
frumento, legumes secos e em pequenas quantidades, vinho pouco diluído mas em
pequena quantidade; numerosos exercícios e de todas as espécies (corridas, luta,
passeio); banhos que devem ser frios após os exercícios de corrida que sempre
aquecem muito e quentes após todos os outros: relações sexuais mais freqüentes,
sobretudo para os homens mais velhos cujo corpo tende a se resfriar [...]
18
No período da primavera, de ar mais quente e mais seco, o regime deveria
se voltar a uma preparação para o crescimento do corpo. As indicações eram:
comer carnes assadas ou cozidas, legumes úmidos, tomar banhos, reduzir a
quantidade de relações sexuais e de vomitórios. Para o verão, recomendava-se um
regime para lutar contra a seca. Alimentos propícios a não esquentar, vinhos
leves, brancos e diluídos, abstenção do vomitório e redução dos atos sexuais.
(toisi de aphrodisiosin hos hekista).
19
Para a chegada do outono aconselhava-se
um regime mais brando e mais úmido. Aqui não é citada nenhuma recomendação
sobre o regime sexual.
18
Ibid., p. 103.
19
Ibid., p. 103.
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69
4.1.6.1
Confrontação entre purificação cristã e o modo grego de regulação
do uso dos prazeres
Para o autor do calendário, o seu bom uso poderia permitir ao indivíduo
alcançar uma “carne pura”. A percepção de “carne pura” para os gregos não é a de
purificação da carne que será desenvolvida posteriormente com o cristianismo.
20
No cristianismo, a prática de purificação é uma atividade voltada para si mesma,
espiritual, pois o pecado já faz parte da sua origem revela uma interioridade que
se destaca da natureza. Enquanto na Grécia o processo de purificação é mais
mecânico e centrado no físico, no cristianismo é transcendental, espiritualista.
Vale ressaltar outra diferenciação entre o ato sexual para os antigos e o seu uso
tardio, a partir da pastoral cristã. O que foi visto até agora sobre o regime dos
prazeres nos faz perceber que a prática sexual estava no contexto geral de uma
reflexão sobre a questão dos exercícios e dos alimentos. Sendo que a questão dos
alimentos tinha mais importância para a reflexão dietética do que a questão
sexual. Foucault atenta para o fato de que no cuidado com o regime não havia
referência à forma mesma dos atos tipo de relação sexual e posição “natural”.
Não há descrição sobre práticas indevidas, sobre masturbação, coito interrompido
e procedimentos de contracepção, descrições encontradas posteriormente. A
problematização feita no regime dos prazeres considera os aphrodisia em termos
de ocorrência, frequência e contexto: questão de circunstância e quantidade.
Sendo que a reflexão em torno da quantidade não aparece sob a forma de
tentativas de enumeração e sim em termos de estimação global. A relação entre o
regime e os elementos do mundo exterior delineia a reflexão sobre a atividade
sexual sempre como uma busca de um equilíbrio do corpo através de um jogo
com os elementos do mundo exterior. O regime não pretendia uma regulação por
meio de uma fixação de quantidades ou de uma determinação de ritmos. Trata-se
de uma negociação voltada para as necessidades. Sendo assim, fica claro não se
tratar de estabelecer a priori, e para todos, um ritmo determinado. A atividade
sexual era refletida por uma negociação do corpo, estando em jogo para cada
pessoa um acordo com suas necessidades. Por exemplo, na medida em que o
20
Vale lembrar que a tradição pitagórica que pode ser identificada com o cristianismo, mas não se
trata da mesma idéia.
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70
corpo elimina o sêmen e assim produz efeitos de aquecimento, resfriamento,
ressecamento e umidificação. Isto é, para cada corpo, necessidades específicas.
A dietética considera e reflete a prática sexual como uma atividade cujos
fluxo ou freio deveriam ser manejados conforme as referências cronológicas era
colocado em questão o momento oportuno e a freqüência conveniente. Sendo
assim, reflexão e prudência serviam como norte para esta prática. Mais tarde, a
pastoral cristã delimitará a atividade sexual de acordo com critérios de ordem
temporal, no entanto, o modo pelo qual será efetuada essa delimitação é diferente.
Ocorre uma divisão rigorosa por meio da forma binária de permissão ou de
proibição de acordo com o ano litúrgico, ciclo menstrual, período de gravidez e
período pós parto. Em relação ao corpo do indivíduo, algumas indicações
mostram que o ato sexual, de acordo com o temperamento de cada um, produzia
em determinados casos efeitos favoráveis ou desfavoráveis.
4.1.6.2
Suspeita e restrição da atividade sexual
Para além dessa neutralidade de princípios e desse contexto ambivalente,
mantinha-se, entre os gregos, uma constante suspeita sobre a atividade sexual.
Foucault cita como exemplo dessa suspeita uma referência a uma sentença de
Pitágoras
21
na qual a regra geral de um regime sazonal deve ser a de manter uma
rarefação constante, pois a atividade sexual seria intrinsecamente nociva.
Há indicação de rarefação dessa atividade também em textos que se
pretendem exclusivamente médicos ou higiênicos. Sendo assim, verifica-se que ao
mesmo tempo em que a Dietética indicava o momento propício e não propício
para a prática dos prazeres, a tendência geral para uma economia restritiva era
delineada. Os médicos que atuavam nessa tendência fundamentavam-se na idéia
de que, por afetar órgãos importantes, a atividade sexual praticada em excesso
geraria consequências desfavoráveis.
Aristóteles apresenta como exemplo o cérebro, que sendo o órgão mais frio
de todo o corpo, acaba sendo o primeiro a sofrer as consequências dessa prática
o sêmen ao ser eliminado retira do organismo um “calor puro e natural”, o que
provoca um resfriamento geral no corpo. Para Diócles, a bexiga, os rins, os
21
Ibid., p. 108 .
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71
pulmões, os olhos, a medula espinhal, são os órgãos que mais se expõem aos
efeitos ocasionados por uma prática sexual excessiva. Nos Problemas, os olhos e
as costas é que são atingidos de maneira privilegiada, seja porque eles contribuem
mais do que os outros órgãos para o ato, seja porque o excesso de calor neles
produz uma liquefação”
22
.
Foucault afirma que as referências encontradas sobre as diversas correlações
orgânicas procuravam justificar os efeitos patológicos provenientes da atividade
sexual, quando o indivíduo não segue as regras da indispensável economia. Elas
sempre explicam as doenças como resultado de práticas em que a distribuição
geral não era bem feita, tendendo para excessos. Ele afirma ainda que o regime
dos atletas, sempre conduzido com certo exagero, é mencionado pelos efeitos
benéficos advindos da abstinência sexual.
Foucault destaca a presença de uma abstenção ritual, que, por exemplo, nos
concursos e nas batalhas, representava uma das condições para se alcançar à
vitória. Quando o atleta em seu período de treinamento mantinha-se em abstenção
para atingir uma superioridade necessária sobre os outros, ele tinha alcançado
duas vitórias. Uma moral, a capacidade e a dignidade adquiridas ao ter garantida a
sua superioridade atlética sobre os outros, e também a vitória de uma economia
necessária ao corpo, alcançada a partir da conservação da força que teria sido
gasta no ato sexual. As referências geralmente mostram que eventualmente os
homens poderiam praticar uma abstinência rigorosa para obter um acúmulo
elevado de forças. À guisa de comparação, Foucault lembra que em relação às
mulheres a idéia de necessidade de escoamento do organismo era a que ocorria
com maior frequência.
22
Ibid., p.108.
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72
4.1.6.3
A atividade sexual e a progenitura
O uso dos prazeres convocava os gregos para o cuidado com a progenitura.
Diversos cuidados eram considerados indispensáveis para a prática da procriação.
Para obter dela os resultados esperados, era necessária uma vigilância do ato
sexual. Para Platão, os esposos deveriam entrar em uma espécie de sintonia com a
cidade e oferecer a esta as crianças mais belas e melhores possíveis. Isso deveria
estar na mente dos esposos (dianoisthai) no momento da concepção de uma
criança. Do mesmo modo que no contexto geral das condutas dos gregos, também
para os esposos no período de procriação era necessário refletir sobre suas
condutas.
A atitude de reflexão moral aparece relacionada a uma atenção constante
direcionada à alma. Para os gregos, tudo que o homem faz atravessa a alma e
deixa marcas. Sendo assim, os esposos na época de procriação deveriam se manter
atentos para não fazerem nada que ameaçasse o corpo e a alma da criança.
Concretamente, destacava-se a atenção à idade dos pais, à dieta e ao momento do
ano mais propício para se alcançar uma bela descendência:
Eles devem pensar nessa tarefa intensamente em função do princípio de que os
homens são bem sucedidos naquilo que empreendem “quando refletem e aplicam
seu espírito ao que fazem”, ao passo que fracassam “se não aplicarem seu espírito
ou se não o possuem”. Consequentemente, “que o esposo preste atenção
(prosecheto ton noun) à esposa e à procriação, o mesmo quanto à esposa, sobretudo
durante o tempo que precede o primeiro nascimento”.
23
Foucault equipara a preocupação dos gregos com a sua descendência a uma
regra desenvolvida posteriormente pelo cristianismo. No “mundo da carne” o ato
sexual deve estar fundamentado pela intenção exata de procriar e se não for
justificado por este intuito consistirá em pecado mortal. O equivalente grego seria,
nesse caso, os perigos que se deveriam evitar que atingissem a alma.
23
Ibid., p.112 .
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73
4.1.6.4
A atividade sexual como campo de forças
Mesmo não se tratando de uma apreensão do ato sexual como um mal em si,
os textos gregos indicam grande inquietação em torno dessa atividade: no que diz
respeito à própria forma do ato, ao custo que ela exige do indivíduo e à morte, a
qual está ligada. Isto quer dizer que os gregos não atribuíam apenas um valor
positivo ao ato sexual. Tanto a reflexão médica quanto a filosófica exprimiam que
o ato sexual, pela violência peculiar a ele, poderia ameaçar o controle e o domínio
de si por dois fatores significativos: o efeito de esgotamento presente nessa
atividade, capaz de atingir a força conservada pelo indivíduo, e a marca de
mortalidade que essa atividade carrega enquanto serve ao mesmo tempo como
garantia de sobrevivência da espécie.
Foucault afirma que a importância do regime dos prazeres se deve ao fato de
que na atividade sexual estão em jogo, principalmente, o domínio, a força e a vida
do homem. Isto é, a preocupação com o regime referente à atividade sexual não se
dava apenas porque ela poderia produzir efeitos patológicos à saúde geral do
indivíduo.
Dar a essa atividade a forma rarefeita e estilizada de um regime é se garantir contra
os males futuros; é também se formar, se exercer, experimentar-se como um
indivíduo capaz de controlar sua própria violência e de deixá-la funcionar nos
limites convenientes, de reter em si o princípio de sua energia e de aceitar a morte
prevendo o nascimento de seus descendentes.
24
Assim, pode-se verificar o regime físico dos aphrodisia como um cuidado
com a saúde e também como um exercício: uma askesis de existência.
Foucault faz uma breve descrição sobre os efeitos de violência, dispêndio e
morte relacionados à atividade sexual. Por exemplo, sobre a violência do ato ele
relata que Platão, no Filebo, pensando nos aphrodisia, descreve que quando o
prazer se mistura intensamente ao sofrimento provoca no corpo uma super
excitação geral. Desse modo o paciente diz dele próprio, ou outros comentam
sobre ele, “que goza de todos os prazeres até a morte; assim ele os persegue sem
cessar tanto mais intensamente quanto menos comedimento e temperança tiver”
25
24
Ibid., p. 114.
25
Ibid., p.115.
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74
(akolasteros, aphronesteros). Por isso, a importância da temperança frente à
violência que o ato pode acarretar.
Vale destacar ainda dois outros exemplos: segundo Aulo-Gélio, Hipócrates
haveria afirmado que o gozo sexual teria a forma de uma pequena epilepsia.
Foucault diz que na verdade a fórmula é de Demócrito. O tratado de Hipócrates,
Da Geração, não se refere ao ato sexual por meio do modelo patológico do mal
comicial, mas sim segue a tradição que o considera como um ato mecânico que
expele um líquido aquecido e espumante. Esse modelo era o mesmo da tradição
de Diógenes de Apolônia, e de Clemente de Alexandria. Foucault cita o
Pedagogo
26
: “alguns supõem que o sêmen do ser vivo é a espuma do sangue,
quanto à substância. O sangue fortemente agitado no decorrer dos enlaces e
aquecido pelo calor natural do macho forma a espuma e se espalha nas veias
espermáticas”.
Foucault afirma que o Da geração, da coleção hipocrática, por meio da
organização de um “esquema ejaculatório”, fornece uma descrição sobre o tema
geral do líquido, da agitação, do calor e da espuma espalhada, que leva a uma
apreensão do ato sexual como sempre associado a uma mecânica violenta,
necessária para saída do esperma.
27
Esse esquema funcionaria desta forma: logo
de início, há uma fricção do sexo e uma movimentação corporal que produz um
aquecimento geral. Este aquecimento combinado à agitação acaba por fornecer
mais fluidez ao humor espalhado pelo corpo, o que o faz começar a espumar, do
mesmo modo que qualquer fluido agitado espuma. Ao espumar, ocorre um
movimento de “separação” (apokrisis) e a parte mais forte e mais gordurosa (to
ischurotaton kai piotaton) é conduzida até o cérebro e à medula espinhal. A partir
daí, essa espuma quente declina até as costas, atravessa os rins, chega aos
testículos e finalmente à verga por onde sairá devido a uma agitação violenta
(tarache).
Como esse momento da expulsão do líquido espumoso era considerado
indispensável ao ato e, por isso, recebia maior atenção, o centro da atividade
sexual acabava sendo caracterizado por sua violência, por uma mecânica
irrefreável e por uma força bem difícil de ser dominada. Todavia, era posto como
26
Ibid., p.115.
27
Ibid., p.116.
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75
problema fundamental no uso dos prazeres, uma questão de economia e de
dispêndio.
4.1.6.5
A atividade sexual em sua relação com o dispêndio e com o corpo
como totalidade
Foucault tece algumas considerações a respeito da preocupação dos gregos
com o dispêndio. A primeira refere-se ao sêmen como substância responsável pela
transmissão da vida. O sêmen só é capaz de cumprir essa tarefa porque, ao ser
eliminado, carrega consigo uma parte da existência. Sendo assim, quando o ser
vivo expulsa seu sêmen, não está eliminando apenas um excesso de humor, mas
está perdendo uma parte dos elementos essenciais para sua própria vida.
O sêmen, na concepção grega como um todo, era considerado como o
resultado de um processo que separa, isola, concentra a parte “mais forte” do
humor: to ischurotaton.
28
Há uma concentração de forças, tanto na natureza
gordurosa e espumosa do sêmen, quanto na violência exigida para sua eliminação.
Isso também pode ser percebido através da fraqueza verificada após o coito,
independente da quantidade de sêmen expelido.
As explicações dadas para o caráter valioso do esperma diferem de um autor
para outro. Por exemplo, o Da geração apresenta duas concepções. Em uma delas,
o sêmen seria formado no cérebro e desceria até a medula para chegar, enfim, às
partes inferiores do corpo.
Há também uma descrição de Diógenes Laércio referente à concepção
pitagórica. Esta seguia o princípio geral de que o esperma seria uma gota de
cérebro que continha em si um vapor quente e assim geraria, a partir dessa matéria
cerebral, o conjunto do corpo com os nervos, as carnes, os ossos e os cabelos; a
alma do embrião e a sensação nasceriam desse sopro quente.
29
No entanto, o valor conferido à cabeça, não põe de lado, no tratado Da
geração, o princípio geral segundo o qual o sêmen provém do conjunto do corpo.
O corpo como um todo produziria o sêmen que através das veias e dos nervos
alcançaria o sexo. Neste tratado, o esperma do homem provém de qualquer humor
presente no corpo. A mesma descrição servia para a mulher. Nela, a ejaculação
28
Ibid., p. 119.
29
Ibid., p. 118.
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76
também procede de todo o corpo. Neste tratado, explica-se que no período
anterior à puberdade não há possibilidade de eliminar sêmen porque como as
veias são, nesta época da vida, muito finas e estreitas o esperma não pode
caminhar.
Segundo Foucault, na literatura médica e filosófica havia uma discussão
permanente acerca da origem do sêmen. As investigações procuravam
fundamentar o fato de o sêmen transmitir a vida e gerar outro ser vivo. Para eles, a
substância seminal só poderia tirar o seu poder dos princípios da vida encontrados
no indivíduo. Sendo assim, toda emissão espermática subtrairia elementos
preciosos do indivíduo. A seguir um trecho no qual Foucault exemplifica esse
pensamento:
A demiurgia do Timeu enraizou assim o sêmen naquilo que constitui para os
humanos a articulação entre o corpo e a alma, entre a morte e a imortalidade. Essa
articulação é a medula (que em sua parte craniana e redonda abriga a sede da alma
imortal e em sua parte alongada e dorsal a da alma mortal): “Os vínculos da vida
pelos quais a alma é acorrentada ao corpo, é na medula que eles vêm se atar para
enraizar a espécie mortal”. Daí deriva, por meio das duas grandes veias dorsais, a
umidade de que o corpo necessita e que nele permanece encerrada; daí deriva
também o sêmen que escapa pelo sexo para dar nascimento a outro indivíduo. O
ser vivo e sua descendência têm um único e mesmo princípio de vida.
30
O tema da subtração, enredada ao mecanismo de formação ou de localização
do sêmen, permanece mesmo em análises distintas como as de Aristóteles, Platão
e Hipócrates. Na análise de Aristóteles o corpo adquire, através da elaboração
alimentar, uma matéria que se espalha por todo o corpo e, portanto, possibilita o
seu crescimento, ao mesmo tempo em que se forma uma reserva dessa matéria
disponível para o momento de expulsão.
Tanto o desenvolvimento do próprio indivíduo, quanto a sua reprodução,
têm os mesmos elementos formadores. O seu princípio também se localiza na
mesma substância. A vida de cada indivíduo e a existência de outra vida
dependem de uma elaboração alimentar. A Antiguidade grega entendia a
eliminação do sêmen como um acontecimento determinante por operar no corpo a
subtração de uma substância de grande valor, produzida após extenso trabalho
orgânico de concentração de elementos aptos a conduzirem-se por todo o corpo,
elementos que fariam o corpo crescer caso não fossem expelidos.
30
Ibid., p. 119.
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77
Aristóteles explica a inexistência de tal eliminação na juventude
argumentando tratar-se de uma época em que o corpo se ocuparia apenas com seu
desenvolvimento. Justifica a diminuição dessa subtração de sêmen na velhice pelo
fato de o organismo não ter a mesma capacidade de cocção anterior. Foucault
entende que, para Aristóteles, no decorrer da vida do indivíduo “desde a juventude
que tem necessidade de crescer até a velhice que a tanto custo se mantém se
marca essa relação de complementaridade entre o poder de procriar e a capacidade
para desenvolver-se ou para subsistir”
31
.
Independente da forma como era enunciada a forma de subtração do sêmen
do organismo, o ato sexual responsável por sua expulsão representava um elevado
dispêndio para o ser vivo. A natureza ao mesmo tempo em que proporciona prazer
ao homem no ato sexual e a conseqüente sobrevivência da espécie promove-
lhe também um choque violento, pois retira do ser aquilo que o constitui. Isso
justifica alguns casos de morte quando há abuso dos prazeres sexuais, como
lembra Foucault; “como o descrito por Hipócrates, da tísica dorsal, conduzir a
morte”
32
.
Entretanto, a atividade sexual não era, para a reflexão médica e filosófica,
associada à morte apenas pelo medo do dispêndio excessivo. Os gregos
acreditavam que a procriação servia como medida encobridora da morte
individual, já que ao favorecer a continuação da espécie como um todo encobre o
desaparecimento inevitável de cada um. Foucault relata:
O ato sexual está para Aristóteles, assim como para Platão, no ponto de cruzamento
entre uma vida individual que é destinada à morte e à qual, aliás, ele subtrai uma
parte de suas forças mais preciosas e uma imortalidade que toma a forma
concreta de uma sobrevivência da espécie. Entre essas duas vidas, para juntá-las e
para que, a sua maneira, a primeira participe da segunda, a relação sexual constitui,
como diz ainda Platão, um “artifício” (mechane), que assegura ao indivíduo um
“rebrotar” dele mesmo (apoblastema).
33
Para Platão o que garante “esse vínculo, ao mesmo tempo artificial e
natural” é o desejo de se perpetuar e de ser imortal existente no ser humano. Nos
animais este desejo de procriar também está presente, pois como lembra Foucault,
Diotímia no Banquete observa que os animais, invadidos pela vontade de procriar,
31
Ibid., p. 120.
32
Ibid., p. 121.
33
Ibid., p. 121.
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78
podem até ficar doentes desse estado amoroso, o que pode levá-los ao sacrifício
da própria vida a fim de manter a sua descendência. A atividade sexual encontra-
se inscrita entre os gregos “no amplo horizonte da morte e da vida, do tempo, do
vir-a-ser e da eternidade”.
34
Foucault afirma que estas especulações filosóficas
não eram tratadas diretamente na reflexão sobre o uso dos prazeres e sobre seu
regime. Mas ressalta o aspecto notável que Platão as atribuía na legislação
“persuasiva”
35
apresentada sobre o casamento:
Legislação essa que deve ser a primeira de todas, já que está no “princípio dos
nascimentos” nas cidades: “Casar-se-á entre trinta e trinta e cinco anos, dentro do
pensamento de que o gênero humano retira de um dom natural uma certa parte de
imortalidade cujo desejo também é inato em todos os homens e sob todos os pontos
de vista. Pois a ambição de se afamar e de não permanecer sem nome após a morte
provém desse desejo. Ora a raça humana possui uma afinidade natural com o
conjunto do tempo que ela acompanha e acompanhará através da duração; é por
meio disso que ela é imortal, deixando os filhos de seus filhos e assim, graças à
permanência de sua unidade sempre idêntica, participando, pela geração, da
imortalidade.
36
Tais observações eram feitas com o propósito de incitar os homens a aceitar
de modo agradável as prescrições necessárias à regulação da atividade sexual e de
seu casamento o regime racional para uma vida temperante.
Foucault faz uma relação dessa racionalização efetuada pelos gregos à
encontrada na doutrina cristã da carne. Nesta última, diz Foucault, estão presentes
temas completamente afins a essa inquietação: “a violência involuntária do ato,
seu parentesco com o mal e seu lugar no jogo entre a vida e a morte”
37
. Para Santo
Agostinho, a força irreprimível do desejo está relacionada a um dos principais
estigmas da queda, na forma de uma revolta do homem contra Deus. Foucault
afirma que a partir disso a pastoral cristã criará regras fixas sobre a economia a
qual cada indivíduo deve sujeitar-se, uma doutrina do casamento com finalidade
procriadora com fins de garantir a sobrevivência ou até mesmo a multiplicação do
povo de Deus, evitando que os indivíduos destinem, por meio da atividade sexual,
a alma à morte eterna. Os atos, os momentos e as intenções recebem aqui uma
codificação jurídico-moral em busca da legitimação de uma atividade que
essencialmente porta valor negativo. Assim, inscrita na instituição eclesiástica e
34
Ibid., p. 122.
35
Ibid., p. 122.
36
Ibid., p. 123.
37
Idem, p. 125.
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79
na instituição matrimonial, ela pode ser absolvida se praticada no tempo dos ritos
e da procriação legítima.
Os gregos, ao contrário, como verificado até agora, insistiam na experiência
de um regime para os aphrodisia justamente porque a atividade sexual,
“considerada em bloco”
38
, consistia em uma tentativa incessante do sujeito de se
constituir como mestre de sua própria conduta, escolhendo a medida e o momento
conveniente para si mesmo. Por isso não havia uma ênfase sobre os distúrbios
ocasionados por um possível abuso e havia pouco rigor sobre o que deveria ou
não ser feito. Como o ato sexual era tido entre os prazeres como o mais violento,
se comparado às outras atividades físicas, e por estar relacionado ao jogo da vida e
da morte, ele compunha um “domínio privilegiado para a formação ética do
sujeito”. Trata-se de uma techne, toda uma arte de si, na qual o sujeito deveria se
apresentar capaz de dominar as forças manifestadas nele, de distribuir o melhor
possível sua própria energia e de tornar sua vida uma obra que se mantém após
sua existência.
4.2
Econômica
Observamos logo de início que, neste capítulo, recolhemos apenas algumas
idéias que apresentam a relação da mulher grega ao status da mulher casada. A
problematização do casamento a partir da moral cristã é estruturada pelo modelo
monogâmico. Essa estrutura prioriza o objetivo da procriação nas relações
sexuais. Assim, a interrogação em torno do prazer na relação conjugal não dá
ênfase ao prazer. Foucault afirma que não pretende reduzir a doutrina cristã das
relações conjugais ao fim da procriação sem considerar o papel do prazer. Ele
afirma que a doutrina cristã será complexa, sujeita a discussão e apresentará
muitas variantes.
Segundo Foucault, o final do libelo Contra Nera atribuído a Demóstenes
apresenta a idéia de um campo de prazeres fora do casamento: “As cortesãs, nós a
temos para o prazer; as concubinas, para os cuidados de todo o dia; as esposas,
para ter uma descendência legítima e uma fiel guardiã do lar”
39
. Aqui a função
sexual no casamento estaria voltada para a função reprodutora e só era pensada
38
FOUCAULT, 2006, p. 125. Grifo de Foucault.
39
Idem, p. 129.
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80
como questão do prazer fora do casamento. Desse modo, os problemas conjugais
na Grécia referem-se à descendência. Por isso, o pensamento grego tinha uma
preocupação constante com o que poderia levar a esterilidade, quais técnicas
poderiam proporcionar uma boa saúde dos filhos, uma série de reflexões políticas
e sociais sobre o que seria uma boa combinação conjugal e também debates
jurídicos em torno das condições específicas de legitimidade dos filhos no status
de cidadão.
Foucault afirma que o status dos esposos na Atenas clássica não deu
margem para grandes problematizações. Isso porque os esposos tinham um
vínculo conjugal com papéis bem demarcados. As esposas mantinham-se sob o
poder dos homens através de um acordo jurídico e social. A prática sexual no
campo do casamento era bem simples e dissimétrica sendo organizada também
por uma moral simples. Elas deviam dar filhos aos esposos e se cometessem
adultério sofriam proibições tanto na esfera pública quanto privada. Foucault
afirma que:
O status familiar e cívico da mulher casada lhe impõe as regras de uma conduta
que é a de uma prática sexual estritamente conjugal. Não é que a virtude seja inútil
às mulheres, longe disso; mas sua sophrosune tem por função garantir que elas
saberão respeitar, por vontade e razão, as regras que lhes são impostas.
40
O homem não ficava restrito à prática sexual apenas nos limites do
casamento. Era exigido do homem o respeito à mulher casada ou a uma jovem sob
poder paterno pelo fato dela estar sob o poder de outro homem e não porque ela
teria seu próprio status. O adultério aqui estava sempre atrelado a uma infração da
mulher casada e não a uma ruptura do vínculo conjugal. Por isso, não se verifica
na Grécia clássica o uso da categoria de “fidelidade recíproca” que mais tarde será
introduzida junto com um “direito sexual” de valor moral com efeito jurídico e de
componente religioso. Por isso, não encontramos entre os gregos o princípio de
um duplo monopólio sexual no qual os dois esposos são parceiros exclusivos na
relação matrimonial. Era bem demarcado que a mulher pertencia ao marido e este
só pertencia a si mesmo. Assim, diz Foucault: “poder-se-ia concluir disso que,
embora os prazeres sexuais coloquem seus problemas, embora a vida de casado
coloque os seus, as duas problematizações não se encontram”.
40
Ibid., p. 131.
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81
Foucault afirma que tal organização não era sem furos. Encontram-se relatos
de ciúme sexual, pois as mulheres não aceitavam sem se afetar as relações que os
maridos viviam fora do casamento. Também alguns moralistas anunciavam que
em uma boa moral o homem casado não poderia praticar os prazeres da mesma
forma que um homem não casado.
Foucault afirma que a ligação do homem ao casamento e a exigência de não
ter parceiros fora do casamento não tem a mesma natureza da exigência imposta à
mulher. Ela, como vimos, deve manter-se sob o poder do marido. Já este
justamente porque tem o poder no casamento, deve mostrar que exerce domínio
sobre si mesmo. Segundo Foucault, “ter somente relação com o esposo é para a
mulher uma conseqüência do fato de que ela está sob o seu poder. Não ter relação
a não ser com sua esposa é, para o marido, a mais bela maneira de exercer seu
poder sobre a mulher”.
41
É também desse modo que Foucault compara esta forma
de moral à moral cristã que se desenvolverá depois. Para ele, é equivocado ver a
prefiguração de uma simetria que será encontrada posteriormente. Na Grécia
clássica, em cima dessa dissimetria opera-se uma estilização. Os dois esposos
podem ter que responder a exigência de uma restrição o que não significa que
ambos devem se conduzir da mesma forma. Respostas que partem da exigência de
restrição na forma de condutas próprias ao esposo ou a esposa.
Segundo Foucault, alguns textos do século IV e do início do século III
apresentam o tema da exigência de moderação sexual proveniente do homem.
Uma passagem das Leis em que Platão consagra às regras e às obrigações do
casamento. Um trecho no qual Isócrates tece um comentário sobre a vida de
Nicocles como homem casado, e um tratado que Foucault afirma ter vindo da
escola de Aristóteles. O primeiro traça um sistema de regulação autoritária das
condutas de uma possível cidade ideal, o referente a Nicocles trata de um
autocrata tido como alguém que respeitava a si e os outros e o último discorre
sobre alguns princípios para uma boa direção da casa. Para Foucault, a Econômica
de Xenofonte é o que apresenta uma melhor referência à forma de vida própria de
um proprietário de terra e, logo, às tarefas de gestão de um domínio que ele deve
assumir junto a sua mulher. Nestes textos, pode-se observar uma exigência bem
próxima ao que será designado posteriormente de “duplo monopólio sexual”. Por
41
Ibid., p. 135.
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82
isso, Foucault diz que eles apontam para um estreitamento da atividade sexual no
campo da relação conjugal. Mas Foucault chama atenção para não ver nessa idéia
as origens da projeção de um princípio de “fidelidade sexual recíproca” no
formato do que será disposto posteriormente como estrutura jurídico-moral da
prática matrimonial. Segundo Foucault:
É que, de fato, em todos esses textos, a obrigação ou a recomendação, feita ao
marido, de uma moderação tal que ele só tivesse como parceira sexual sua própria
esposa, não é efeito de um engajamento pessoal que ele contrairia em relação a ela;
mas de uma regulação política que é, no caso de Isócrates e no pseudo-Aristóteles
o homem se impõe a si mesmo por uma espécie de auto-limitação refletida no seu
próprio poder.
42
Isso porque, para Foucault, os princípios dessa moral são sempre
relacionados às necessidades do Estado. Assim, não se encontram referências às
exigências internas da casa, da família ou a vida matrimonial. A avaliação do que
seria um bom casamento era feita a partir dos parâmetros de utilidade para a
cidade. As uniões deveriam ser feitas visando o melhor retorno possível para a
cidade. Eles evitavam a união entre os ricos, empreendiam inspeções rigorosas a
fim de verificar o preparo da tarefa procriadora dos jovens casais, exigiam uma
ordem que ao ser desobedecido resultava em punição, por exemplo, no que se
refere à procriação, na idade de procriar só era permitido fecundar a esposa
legítima o homem não podia. Foucault observa que “tudo isso, que é ligado às
estruturas particulares da cidade ideal, é bastante estranho a um estilo de
temperança fundamentado na procura voluntária da moderação”.
43
Foucault
afirma que Platão reconhecia que à lei não poderia dar conta de regular por
completo a conduta sexual. Outros meios eram necessários para lidar com desejos
muito violentos. Foucault enumera quatro instrumentos utilizados por Platão: a
opinião, a glória, a honra do ser humano e a vergonha. Assim, Foucault afirma
que:
a legislação de Platão estabelece, portanto, uma exigência que é simétrica para o
homem e para a mulher. Porque eles têm um certo papel a desempenhar para um
objetivo comum o de genitor dos futuros cidadãos é que eles são circunscritos
42
Ibid., p. 150.
43
Ibid., p. 150.
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83
exatamente da mesma maneira às mesmas leis que lhes impõem as mesmas
restrições.
44
Foucault chama a atenção para o fato de que tal simetria não está
relacionada a uma fidelidade ligada a um vínculo pessoal próprio à relação
matrimonial. A simetria diz respeito aos princípios e às leis que todos estariam
submetidos. Essa submissão deveria se dar através de uma persuasão interna, mas
não por um apego entre os dois cônjuges. Eles deveriam ser persuadidos por uma
reverência à lei ou pelos cuidados consigo mesmo, com sua reputação e com sua
própria honra. Assim, essa obediência era exigida através da relação do indivíduo
consigo mesmo e com a cidade e não pela relação com o outro.
Sobre o texto de Isócrates, Foucault afirma que apresenta uma associação
sobre a temperança e o casamento com o poder político. Trata-se do discurso que
Isócrates dirige a Nicocles, logo após este tomar o poder. Foucault resume a idéia
do discurso, “é supostamente uma mensagem do monarca que explica, para
aqueles sobre os quais reina, a conduta que devem ter a teu respeito”.
45
A primeira
parte é uma justificativa desse poder, e o que importa aqui é que em nome de suas
próprias virtudes ele pode exigir a submissão de seus súditos. Dentre as
qualidades que ele reconhece ter estão a justiça dikaiosune apresentada por ele
na ordem das finanças, da jurisdição penal e, no exterior referente às relações com
outras potências. Quando apresenta a sophrosune temperança relaciona
totalmente ao domínio dos prazeres sexuais. Para Nicocles essa moderação
associa-se por completo à soberania que tem sobre seu país. Ele também apresenta
uma continuação entre o governo do Estado e o da casa. Assim, qualquer
associação deve ser respeitada. Se um homem se associou a uma mulher para o
resto da vida, não deve fazê-la ficar aflita.
Foucault afirma que os moralistas gregos da época clássica prescreviam a
temperança aos dois esposos na vida de casado, mas para cada um, um modo
próprio de relação consigo: “a virtude da mulher constituía o correlativo e a
garantia de uma conduta de submissão; a austeridade masculina inscrevia-se numa
ética da dominação que se limita”.
46
44
Ibid., p. 152.
45
Ibid., p. 152.
46
Ibid., p. 163.
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84
4.3
Erótica
4.3.1
O amor
4.3.1.1
Divisão do amor: a natureza fora de questão
O uso dos prazeres para os gregos tinha formas de valorização e sistemas de
recorte diferentes dos atuais. O uso do termo “homossexualidade”, por exemplo,
não é compatível com a análise das relações entre os rapazes na Grécia. A
alternância do amor que se dirige ora para um homem, ora para uma mulher não
era pensada como correspondendo a uma estrutura dupla, ambivalente ou
“bissexual”. O desejo era despertado pelo que fosse considerado “belo”. O gosto
conduzia o homem em sua escolha, que era, em princípio, independente do sexo
do indivíduo.
Se havia duas maneiras de amar não era, por princípio, por haver dois sexos.
O critério que dividia as práticas amorosas era, como em outras atividades, a
distinção entre aquilo que poderia ser considerado forte e temperante e aquilo que
tinha de ser visto como mais fraco. Um amor forte e temperante necessariamente
se daria entre os homens, mas de modo algum isso representava qualquer
investimento em uma construção do que seriam os amores próprios a naturezas
distintas. A questão parece ser muito mais a de quais práticas eram permitidas ao
status do indivíduo dentro da polis.
A possibilidade de que o amor correspondesse ao amor pelos dois sexos,
sem que houvesse necessidade de se decidir por um ou por outro gênero de modo
definitivo, não delineava a verdade do desejo, nem a legitimidade natural da sua
inclinação. A reflexão grega clássica atribuía valor cultural ao amor entre os
rapazes na forma de uma prática considerada livre, permitida pelas leis e aceita
pela opinião. Por meio das instituições militares ou pedagógicas, como também
através dos ritos e festas religiosas, “se interpelavam, a seu favor, as potências
divinas que deviam protegê-la. Enfim, era uma prática culturalmente valorizada
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85
por uma literatura que a cantava, e por uma reflexão que fundamentava sua
excelência”.
47
Esse suporte cultural atribuído ao amor direcionado a ambos os sexos
produziu uma problematização moral incessante. Segundo Foucault, a
problematização moral considerava a complexidade dessa prática, composta por
diversas opiniões e por um jogo de valorizações e desvalorizações. Os jovens
considerados muito fáceis ou muito interessados, como também os homens
considerados efeminados eram desvalorizados nessa forma de moral. No trecho a
seguir, Foucault afirma que a problematização moral era feita através da clara
consciência dessa complexidade:
(...) tinha-se uma clara consciência dessa complexidade; pelo menos é o que
sobressai na passagem do discurso onde Pausânias mostra o quanto é difícil saber
se em Atenas se é favorável ou hostil a uma tal forma de amor. Por um lado, ela é
tão aceita ou melhor; atribui-se-lhe um tão alto valor que se honra, no
enamorado, condutas que, em outrem, são julgadas loucuras ou desonestidades: as
preces, as súplicas, as insistências obstinadas e os falsos juramentos. Mas, por
outro lado, vê-se os cuidados com que os pais protegem seus filhos das intrigas ou
exigem dos pedagogos que as impeçam, enquanto se ouve os camaradas
reprovarem entre eles a aceitação de semelhantes relações.
48
4.3.1.2
O amor masculino
Foucault admite que seria um equívoco tentar compreender o amor pelos
rapazes no século IV através de esquemas lineares e simples e de termos como
“tolerância” ou “homossexualidade tão conhecidos por nós”. Na Grécia, a
reflexão sobre o desejo delineava o valor estético da honra e da beleza, de modo a
produzir distintas formas de moral do desejo. Formas de moral distintas quando se
tratava do amor entre um homem e uma mulher ou quando se tratava do amor
entre dois homens. O amor de um homem por outro homem produziu uma
estilística própria. Essa estilística, segundo Foucault, não diz respeito a concepçào
de que haveria naturezas opostas.
Foucault esclarece que as referências sobre o amor masculino na Grécia
clássica são restritas. A maioria dos textos preservados é ligada à tradição
47
Ibid., p. 170.
48
Ibid., p. 170-71.
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86
socrático-platônica. Mas ele afirma que o tema do amor entre os rapazes era sem
dúvida objeto de reflexões e discussões fervorosas a respeito da forma que
deveriam tomar ou do seu reconhecimento de valor. No que diz respeito à forma e
aos valores, Foucault afirma que o fato de não haver proibição do amor masculino
na Grécia não aponta obrigatoriamente para a construção de um campo de
discussão de uma prática livre. O fato de não haver proibição de determinada
prática não faz com que isso necessariamente se transforme em um domínio de
questionamento ou em um núcleo de preocupações teóricas e morais. Também
não se trata de considerar esses textos como uma tentativa de encobrimento de
uma prática de amor entre rapazes que a época não havia revelado como
desqualificada, o que posteriormente acontecerá. Isso seria olhar para aquele
momento com a noção construída posteriormente, segundo Foucault, pelo
cristianismo. Se na época não se conhecia a atividade sexual entre os homens
como uma atividade incorreta, também não seriam tomadas atitudes para encobri-
las. Ele propõe apreender as problematizações dos gregos como uma série de
problematizações que abarcavam os conflitos. Isso também pode ser associado ao
fato de já se partir de uma concepção de sujeito dividido, que considerava
importante a luta do indivíduo consigo mesmo.
4.3.1.3
O campo reflexivo do amor
Foucault estabelece três níveis presentes nas reflexões filosóficas e morais a
respeito do amor masculino. O primeiro recorta o campo dessa reflexão:
enfatizava-se não qualquer relação sexual entre os homens, mas uma relação que
ele denomina “privilegiada” núcleo de problemas e dificuldades, objeto de
cuidado particular. Essa relação era marcada pela diferença de idade e status dos
parceiros em que um deles ainda em formação não teria conquistado seu status
definitivo. Afirma que o âmago das reflexões dos filósofos e moralistas sobre o
amor masculino se organizava na defasagem que distingue o adolescente do
homem.
Foucault afirma que as relações sexuais entre os homens não ficavam
restritas a esse esquema. São encontradas várias referências a outras formas de
amor masculino, às quais não era atribuído necessariamente valor moral negativo.
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87
O importante é perceber que o campo da problematização ativa e intensa era
elaborado em cima da relação em que o homem mais velho, concluída a sua
formação, exercia sobre o mais jovem: o papel social, moral e sexualmente ativo.
Essa diferença de status é que, para Foucault, transformava-a em objeto de
pensamento e lhe conferia valor.
O segundo nível da reflexão recorta o aspecto de jogo social na relação entre
os homens gregos. Foucault suspende a idéia habitual que relaciona o amor
masculino na Grécia às práticas de educação e de ensino filosófico para trazer à
tona nessas relações o pretexto de um jogo social. Jogo caracterizado pela
delimitação de um conjunto de condutas oportunas e convenientes. Por mais que o
interesse estivesse voltado para o status do rapaz, na formação que vai da idade
jovem até a idade de homem, as relações entre os rapazes eram objeto de uma
certa ritualização. As exigências impostas por essa espécie de ritualização
outorgavam à atividade sexual forma, valor e a marca de um interesse. Tais
relações tinham como efeito a formação de um domínio cultural e moral
sobrecarregado. Foucault afirma que:
(...) essas práticas cuja realidade Dover atestou por meio de numerosos
documentos definem o comportamento mútuo e as respectivas estratégias que os
dois parceiros devem observar para dar ás suas relações uma forma “bela”, estética
e moralmente válida. Elas fixam o papel do erasta e do erômeno.
49
Tratava-se de dois parceiros e de dois papéis: o do erasta e do erômeno. O
erasta cumpre o lugar da iniciativa. A realização de seus direitos e de suas
obrigações deve permitir que mostre ao mesmo tempo seu ardor e também sua
capacidade de moderação. Com um papel ativo, oferece presentes e presta
serviços ao amado, por isso sente-se merecedor de recompensa. O erômeno que
ocupa o lugar do amado e cortejado não deve ceder com demasiada facilidade, e,
enquanto é colocado à mostra, deve apresentar o reconhecimento das façanhas do
amante. Para Foucault, a prática do cortejo revelada pela insistência de uma
abordagem feita por convenções, regras de comportamento e um jogo de
adiamentos tem por fim a continuação dela mesma através da incorporação a
outras atividades e relações complementares.
49
Ibid., p. 173 -74.
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88
O terceiro nível da reflexão se refere ao traço de abertura presente na
relação entre homens e rapazes na Grécia. Nessa forma de relação, o jogo se
constitui com a liberdade de deslocamento fruída pelos parceiros. Na relação
conjugal entre um homem e uma mulher, é atribuído à mulher o status de esposa e
ela o exerce, reservando-se ao interior da casa enquanto seu parceiro pode exercer
seu papel de esposo no exterior, como homem da cidade. O livre deslocamento é
necessário na formação do rapaz, pois apenas sob essa condição ele pode se tornar
objeto de perseguição, caça e espreita. Alem disso, como cabia a ele a escolha do
parceiro, era necessário também que tivesse liberdade de escolha. O rapaz, no
lugar do amado, não se prendia ao homem que, como amante, não exercia sobre
ele poderes estatutários.
4.3.1.4
A construção do objeto “bom” para o amor
A questão do tempo também era recortada pela elaboração que se fazia a
partir dos papéis amorosos. O tempo era vivido como precário e a forma era
sentida como uma passagem fugidia. O limite que marcava quando o rapaz
passaria a ser considerado velho para o papel do amado era tenazmente observado.
Segundo Foucault, a atenção dispensada ao tempo de duração da adolescência
teria intensificado o aspecto de beleza e de sensibilidade do corpo adolescente,
mas também as marcas de sua evolução. Daí a insistente valorização cultural do
corpo do adolescente. O corpo do adolescente na moral sexual é apresentado
geralmente como o “bom objeto” de prazer. Nessa estética, as marcas de
valorização do corpo do adolescente estavam relacionadas aos signos e as cauções
de uma virilidade em processo de formação, e não às marcas de uma virilidade
propriamente física, isto é, orgânica, como costumamos pensar hoje. A estética
elaborada em cima de mudanças tão rápidas requeria, como necessidade moral e
social, a conversão da relação de amor, fadada a acabar, em uma relação de
amizade duradoura philia.
Se essa relação de amor entre os rapazes ganha o aspecto de uma reflexão
sobre o amor, isso não indica necessariamente que Eros se restrinja a esse formato
de relação. A principal diferença com relação à ética moral do homem casado é
que nesta as regras não impõem a presença de uma relação ligada por Eros. A
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89
relação entre os rapazes, ao contrário, remete obrigatoriamente a Eros. Foucault
esclarece que tal problematização diz respeito a uma “erótica”:
É porque entre dois cônjuges, o status ligado ao estado de casamento, a gestão do
oikos, a manutenção da descendência podem fundamentar os princípios de conduta,
definir suas regras e fixar as formas da temperança exigida. Em compensação,
entre um homem e um rapaz, que estão em posição de independência recíproca, e
entre os quais não existe constrição institucional, mas um jogo aberto (com
preferências, escolha, liberdade de movimento, desfecho incerto), o princípio de
regulação das condutas deve ser buscado na própria relação, na natureza do
movimento que os leva um para o outro, e da afeição que os liga reciprocamente. A
problematização, portanto, se fará na forma de uma reflexão sobre a própria
relação: interrogação ao mesmo tempo teórica sobre o amor e prescritiva sobre a
maneira de amar.
50
A Erótica carrega a complexidade inerente ao jogo entre o amante e o
amado domínio de si e do amante, domínio do amado sobre si mesmo e escolha
refletida de ambos. Há, na Erótica, a tendência de privilegiar as observações do
rapaz ele é o principal interrogado e é ele quem recebe os pareceres, conselhos e
preceitos , o que estaria diretamente relacionado à função de formar um sujeito
de conduta moral.
51
A conduta do rapaz grego, sua honra e desonra, altamente observada para
além das exigências dos moralistas, era alvo de uma curiosidade social. A
importância atribuída ao rapaz grego estava atrelada ao status na cidade, o lugar
que viria ocupar posteriormente. Quando jovem, o rapaz deveria zelar pela sua
própria conduta, assim como quando envelhece deve preocupar-se em ter zelo
pela honra dos rapazes jovens.
Segundo Foucault, a observação exercida sobre a conduta do rapaz grego
recebia caráter de teste. O rapaz deveria provar seu valor na medida em que se
formava. Como exemplo, Foucault apresenta um trecho do Eroticos do pseudo-
Demóstenes que trata da exaltação e ao mesmo tempo de uma exortação do jovem
Epícrato:
Penso... que nossa cidade te encarregará de administrar um de seus serviços e que,
quanto mais os teus dons forem brilhantes, mais ela te julgará digno de postos
importantes, e tanto mais rápido ela quererá fazer a prova de tuas capacidades.
52
50
Ibid., p. 179.
51
“(...) é justamente o que aparece num texto como o elogio de Epícrato, atribuído a Demóstenes”.
FOUCAULT, op.cit., p.180.
52
Ibid., p. 183.
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90
4.3.1.5
Prova de educação moral: a prática no campo amoroso
Alguns pontos bem próprios à educação grega demarcam a honra do rapaz.
Foucault cita alguns aspectos dessa educação: a postura do corpo, o rapaz deveria
esforçar-se para evitar a rhathumia, morosidade intrínsecamente atrelada ao signo
da infâmia, os olhares, capazes de demonstrar o aidos, pudor, a maneira de falar.
Era importante apresentar um bom manejo das palavras sérias e leves e não se
esquivar através do uso do silêncio. A qualidade das pessoas escolhidas para
relação também era observada.
Entretanto, a diferença entre o honroso e o vergonhoso era estabelecida no
campo da conduta amorosa. O jovem muito assediado não era necessariamente
visto como desonroso. Na verdade, um alto grau de assédio podia funcionar como
a marca da visibilidade de suas qualidades. Da mesma forma, a entrada no jogo,
isto é, a receptividade do apaixonado, não denotava vergonha. O valor moral não
configurava um a priori, era obtido através do uso. Foucault afirma que observara
em suas leituras que um aspecto perseverava, o que pode se dominar “o ponto de
honra”. A prática é que vai determinar se há honra ou desonra. Foucault recorta do
Banquete um princípio que se aproxima dessa idéia e que para ele serve como
exemplo: “Nessa matéria nada é absoluto; a coisa, nela mesma, somente ela, não
tem nem beleza nem feiúra; mas o que a faz bela é a beleza de sua realização; e
sua fealdade o que a faz feia
53
.
Os gregos não marcavam as características específicas dos atos
considerados honrosos ou desonrosos do jovem. Todos deveriam ter em mente o
que era visto como honroso ou vergonhoso.
Mesmo que se verifique que a temperança sophrosune era uma das
maiores exigências feitas aos rapazes, o texto não apresenta com minúcia o que
deveria ser recusado ou aceito no campo da relação física, do mesmo modo que,
no tocante às praticas da Dietética e da Econômica, a reflexão moral não definia
os códigos que deviam ser seguidos nem o quadro dos atos permitidos ou não com
elevado grau de rigor. Se o texto não apresenta a descrição dos atos e dos gestos
53
Ibid., p. 184.
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91
tidos como desonrosos, não se trata de um ponto fraco do escrito. Mesmo no
dialogo Fedro, em que o tema da relação física é bem mais desenvolvido, também
não são encontrados detalhes a respeito:
Ao longo dos dois primeiros discursos sobre a oportunidade de ceder àquele que
ama ou àquele que não ama, e na grande fábula da atrelagem da alma com o seu
cavalo rebelde e com seu cavalo dócil, o texto de Platão mostra que a questão da
prática “honrosa” é essencial: e, contudo, os atos não são jamais designados a não
ser por expressões como “comprazer” ou “conceder seus favores” (charizesthai),
“fazer a coisa” (diaprattesthai), “tirar o máximo prazer do amado”, “obter aquilo
que se quer” (peithesthai), “ter prazer” (apolauesthai).
54
O dialogo enfatiza a situação agonística da qual o que deve sobressair é o
mérito e o brilho do jovem sobre os outros. Epícrato é apresentado como aquele
que se mantém superior aos demais sem se deixar dominar por ninguém, “todos
querem atraí-lo para a sua intimidade a palavra sunetheia tem ao mesmo tempo
o sentido geral de vida em comum e de relação sexual”.
55
Foucault também recorta do texto o papel da filosofia guardiã da honra do
rapaz em busca da superioridade perante os outros. A filosofia complementava as
provas pelo fato de ser a responsável pela direção do pensamento. Sobre o papel
da filosofia:
Essa filosofia, cujo conteúdo não é definido senão por referência ao tema socrático
do epimeleia heautôu, “do cuidado consigo” e à necessidade, também socrática, de
ligar o saber com o exercício (episteme melete) essa filosofia não aparece como
um princípio para se ter uma outra vida nem para se abster de todos os prazeres.
56
4.3.1.6
O nosso problema (erótico)
Foucault afirma que para o nosso pensamento a inquietação quanto à
relação entre dois indivíduos do mesmo sexo se dá a partir do questionamento
acerca do sujeito do desejo. A nossa pergunta seria: como é possível que se dê em
um homem a formação de desejo que vá na direção do mesmo objeto homem? Os
gregos não buscavam nem questionar qual desejo poderia resultar desse modo de
54
Ibid., p. 185.
55
Ibid., p. 186.
56
Ibid., p. 187.
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92
relação, nem sequer o sujeito desse desejo. A questão deles era sobre o objeto do
prazer: “como fazer, do objeto de prazer, o sujeito senhor de seus prazeres? ” “É
nesse ponto da problematização que a erótica filosófica ou, em todo o caso, a
reflexão socrático-platônica sobre o amor terá seu ponto de partida”.
57
O problema levantado na Erótica diz respeito ao modo pelo qual o rapaz
grego podia garantir seu domínio ao se colocar a prova frente o poder dos outros.
Foucault afirma que essa problematização do amor entre os rapazes na Grécia
clássica apresenta um ponto fundamental: ela deu lugar a toda uma elaboração
cultural. A questão que vale a pena nos colocarmos não é sobre o motivo do gosto
dos gregos pelos rapazes e sim por que eles elaboraram uma prática de corte, uma
reflexão moral e um ascetismo filosófico.
4.3.2
Objeto do prazer
4.3.2.1
Dificuldade da ética da superioridade
No jogo das relações de prazer, o homem que ocupava o lugar passivo era
ridicularizado e impedido de ocupar legitimamente o lugar de dominante no jogo
da atividade cívica e política. Para Foucault, esse olhar negativo designa uma
dificuldade dessa sociedade na elaboração e principalmente na sustentação da
ética da superioridade viril. O objeto do prazer fica restringido a ocupar dois
papéis: o ativo, carregado de valores positivos, ou o passivo, dominado e inferior.
É a dificuldade, nessa sociedade que admitia as relações sexuais entre homens,
provocada pela justaposição entre uma ética da superioridade viril e uma
concepção de qualquer relação sexual segundo o esquema da penetração e da
dominação do macho; a conseqüência disso consiste, por um lado, em que o papel
da “atividade” e da dominação é afetado por valores constantemente positivos mas,
por outro, é necessário atribuir a um dos parceiros no ato sexual a posição passiva,
dominada e inferior.
58
O silêncio em torno da relação entre os homens mais velhos e, da mesma
forma, a insistência nas críticas negativas feitas aos homens que se sustentavam
como objeto de prazer no lugar passivo funcionavam para a manutenção de um
57
Ibid., p. 198.
58
Ibid., p. 194.
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93
esquema problemático. Na mesma série, atribuía-se peso na relação entre os
homens e os rapazes já que estes, ainda jovens, por não estarem na eminência de
assumir um status permanente na atividade cívica, podiam assumir brevemente o
lugar passivo enquanto objeto de prazer honroso para os homens. Mesmo que
fosse permitido ao rapaz ocupar a posição de objeto passivo sem que isso
configurasse a sua desvalorização como cidadão, chegará a hora em que ele se
tornará homem, com responsabilidades próprias a esta etapa da vida. Isso gerava o
que seria denominado de “antinomia do rapaz” na moral grega dos aphrodisia. A
contradição diz respeito ao lugar de passividade ocupado pelo rapaz. Na relação
de dominação, o rapaz não deve se identificar com o papel de dominado. Ele
precisa escapar do lugar de objeto passivo ao mesmo tempo em que ocupa esse
lugar, já que deve praticar o exercício de domínio do outro para, quando alcançar
a vida adulta, saber exercê-lo. Cito Foucault
A relação que ele deve estabelecer consigo mesmo para vir a ser um homem livre,
senhor de si e capaz de vencer os outros, não poderia estar em consonância com
uma forma de relação na qual ele fosse objeto de prazer para um outro. Essa não-
consonância é moralmente necessária.
59
4.3.2.2
Traços da dificuldade
A dificuldade que aparece com o fato de o rapaz precisar ser objeto do
prazer ocupando um lugar de dominação está relacionada a determinados traços
da reflexão sobre o amor direcionado ao rapaz.
O primeiro traço é o da reflexão sobre o cunho natural ou “antinatural”
desse amor. Natural, por um lado, por se fundamentar na idéia do belo, por
configurar um movimento natural em direção aos belos rapazes. E antinatural,
pelo fato de o rapaz ser objeto de prazer e não aquele que usufrui do prazer.
Outro traço dessa dificuldade diz respeito à marca da reserva no que diz
respeito à evocação direta e nos próprios termos do papel do rapaz na relação
sexual. Essa reserva aparece no uso de expressões vagas como, por exemplo, fazer
a coisa (diaprattesthai to pragma), na falta de nomeação ou no uso de termos
59
Ibid., p. 195.
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94
referentes a metáforas “agonísticas” ou políticas como “ceder”, “se submeter”
(huperetein), “se colocar a serviço” (therapeuein, hupourgein).
60
Finalmente, outra marca dessa dificuldade encontra-se na reserva em se
falar do prazer que o rapaz vivenciava. Foucault afirma que essa “denegação”
pode ser vista como a afirmação contra esse prazer, como uma prescrição contra
vivenciá-lo. Não se quer dizer, contudo, que fosse prescrito aos rapazes ceder aos
homens com frieza, pois ceder a quem se admirava fazia parte do jogo. Foucault
lembra que “o verbo charizesthai é correntemente empregado para designar o fato
de que o rapaz ‘aceita’ e ‘concede seus favores’”.
61
A natureza da sensação que acomete o rapaz, como aquele que consente a
demanda e ao desejo do outro, é distinta do prazer sentido pelo homem ativo. Para
o rapaz, trata-se de uma resposta, quase que uma reação, que se distingue
absolutamente da ação de arcar, junto ao outro, com as conseqüências de seu
desejo. Cada parceiro tem sua própria conduta específica também no que se refere
aos sentimentos de prazer.
Desse modo, as características, por assim dizer, negativas das ações
empreendidas pelo rapaz durante a corte que lhe é feita, como a fuga, a recusa, a
resistência e a esquiva, aparecem como fazendo parte do estabelecimento das
condições para a efetivação do consentimento. Entram em jogo também o valor, o
status e a virtude do homem, assim como os benefícios recebidos com a relação.
O rapaz não tem que ser o titular de um prazer físico; ele nem mesmo tem que ter
prazer com o prazer do homem; ele tem é que ressentir um contentamento em dar
prazer ao outro se ele cede quando convém, isto é, sem demasiada precipitação
nem com demasiada contrariedade.
62
60
Ibid., p. 196.
61
Ibid., p. 197.
62
Ibid., p. 197.
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95
4.4
O verdadeiro amor
4.4.1
A relação entre amor e verdade na Grécia antiga e na modernidade
cristã
A relação com a verdade também constituiu para os gregos da época
clássica um foco de problematização intensa. Acompanhamos com Foucault
alguns pontos importantes referentes à reflexão e as atitudes morais dos gregos.
Vimos até agora algumas questões sobre a relação com o corpo e com a saúde,
sobre o papel desempenhado pela mulher grega na instituição do casamento, e
sobre o cortejo do rapaz e sua relação com a liberdade e virilidade. O amor pelos
rapazes, ao mesmo tempo em que exigia uma estilização especial no uso dos
aphrodisia e também uma atenção especial na elaboração da conduta, era também
o lugar para a irrupção das questões referentes ao que consistiria o acesso à
verdade em sua relação com o uso dos prazeres. As questões apareciam sob a
forma de perguntas sobre o verdadeiro amor, em uma cultura que refletia sobre os
vínculos amorosos e sobre a austeridade sexual como possibilidades de acesso à
verdade. O lugar privilegiado para essa prática eram as relações de amor
masculinas. Isso para nós não deixa de ser uma novidade.
De modo distinto, nas culturas cristã e moderna, as questões da verdade, do
amor e do prazer são elaboradas através dos elementos formadores da relação
homem-mulher. O campo do amor masculino, em que o homem desempenha o
papel do erasta ou do erômeno foi perdendo espaço para um campo de
experiências povoado pela relação entre o homem e a mulher. Neste campo, a
figura da feminidade obedece a critérios específicos, ela recebe seus contornos de
temas como a virgindade, as bodas espirituais e a alma esposa. O Fausto, um belo
exemplo da associação entre prazer e acesso ao conhecimento produzido sob a
égide do cristianismo e da modernidade, aborda o amor através dos temas da
virgindade, da pureza, da queda e do poder redentor da mulher.
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96
4.4.2
A questão do consentimento: da moral da renúncia à hermenêutica
do desejo
Na introdução de algumas idéias sobre a filosofia do Eros, Foucault ressalta
a importância de não se resgatar os aspectos próprios à doutrina socrático-
platônica como se estruturassem a compilação de todas as formas que a filosofia
da Grécia clássica tomou. Como demonstram, por exemplo, o diálogo de Plutarco,
os Amores do pseudo-Luciano ou os discursos de Máximo de Tiro, a doutrina
platônica permaneceu durante muito tempo como um pólo de reflexão, porém não
seriam os únicos escritos sobre a relação entre austeridade sexual e a verdade. O
assunto foi tratado por outros filósofos, porém não sobreviveram até os dias de
hoje. É o caso, por exemplo, dos ditos e os escritos sobre a ligação entre pureza e
conhecimento nos pitagóricos e dos tratados sobre o amor escritos por Antístenes,
Diógenes (o Cínico), Aristóteles e Teofrasto.
A leitura do Banquete, do Fedro e de outras análises referentes ao amor,
permitiu que Foucault trouxesse à tona a um intervalo existente entre a filosofia
do Eros e a Erótica corrente, que insidia sobre a conduta do jovem durante a
relação com seu pretendente e sobre a sua relação com a honra. A filosofia do
Eros, mesmo partindo de uma forte ligação com os temas comuns à ética dos
prazeres, imprimiu a marca de uma interrogação que abriu espaço para uma
transformação crucial dessa ética: a passagem de uma moral da renúncia para uma
hermenêutica do desejo.
Foucault chama atenção para um ponto significativo da moral de renúncia
presente no amor pelos rapazes que também é elaborado na interrogação sobre o
verdadeiro amor. Trata-se da questão do consentimento.
Toda uma grande parte do Banquete e do Fedro é consagrada à “reprodução”
imitação ou pastiche daquilo que se diz habitualmente nos discursos sobre o
amor: tais são os “discursos testemunhos” de Fedro, Pausânias, de Erixímaco, de
Ágaton no Banquete; ou o de Lísias no Fedro, bem como o primeiro contra-
discurso irônico que Sócrates propõe. Eles tornam presente o pano de fundo da
doutrina platônica, a matéria-prima que Platão elabora e transforma quando ele
substitui a problemática da “corte” e da honra por aquela da verdade e da ascese.
Nesses discursos-testemunhos, um elemento é essencial: através do elogio do amor,
de sua potência, de sua divindade, volta sempre a questão do consentimento.
63
63
Ibid., p. 202.
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97
A questão do consentimento aparece formulada nas perguntas feitas ao
jovem: se ele deveria ou não ceder, a quem ele deveria ceder, em que condições e
com quais garantias e, ainda, se o amante merecia ser legitimado no seu desejo de
ver o amado ceder facilmente. A questão de consentimento se impõe já que se
trata de uma Erótica vivida como a arte de uma justa entre um indivíduo que
corteja e um indivíduo cortejado.
No primeiro discurso do Banquete, em Ágaton, encontramos a questão
formulada como um “princípio absolutamente geral e agradavelmente
tautológico”
64
que relaciona a desonra com as coisas vis e o desejo de estima com
as coisas belas. Já Pausânias aborda-as num tom mais sério ao apresentar dois
amores. Um amor voltado ao ato e outro amor que se volta para a experiência da
alma em primeiro plano. E no Fedro, “os dois discursos iniciais aqueles que
serão rejeitados, um numa retomada irônica e o outro numa palinódia reparadora
colocam, cada um à sua maneira, a questão de ‘a quem ceder’; e que eles a isso
respondem dizendo que convém ceder àquele que ama”.
65
O que Foucault assinala
é que todos esses discursos fazem referência aos temas dos amores fugidios, com
fim previsto para o momento em que o rapaz ficará mais velho e será abandonado.
O tema do amor fugidio se atrelava à noção de desonra sob o olhar dos outros,
causada pela relação de dependência do rapaz ao amante e pelo seu desvio da
família ou, além disso, das relações honrosas que ele poderia desfrutar. Também
quando se trata dos sentimentos de repugnância e desprezo inerentes a posição
complacente do rapaz ao oferecer seu amor ou do ódio que o rapaz pode ter frente
às exigências sentidas como desagradáveis que partem do homem mais velho.
Esses discursos, da mesma forma, tratam do papel feminino que muitas vezes é
exigido ao rapaz apresentar, dos danos físicos e morais próprios a essa relação e
da série de recompensas e benefícios trabalhosos que o amante é conduzido a
fazer pelo amado. Isso aparece atrelado a vontade que o amado tem de logo se
livrar do antigo amigo que acaba sendo deixado na solidão e na vergonha. É disso
essencialmente que trata a problemática dos prazeres e de seu uso no amor pelos
rapazes na Grécia clássica. Para Foucault, podemos ver nas conveniências, nas
práticas da corte e nos jogos regulados do amor uma tentativa de resposta para tais
dificuldades.
64
Ibid., p. 202.
65
Ibid., p. 203.
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98
Mas na Erótica socrático-platônica as coisas se configuram de outra forma.
Sobre o verdadeiro amor as questões relevantes não são sobre o objeto amado ou
sobre o peso da honra dos parceiros no ato de amar. A questão proeminente é o
amor em seu ser mesmo. Assim, as outras questões aparecem sob a questão do ser
do amor aqui o personagem principal.
No Banquete, no discurso de Xenofonte, encontramos um bom exemplo que
demarca uma diferença entre a erótica corrente e a elaboração platônica. Ele
apresenta um Eros e os prazeres do Eros voltados para a amizade:
Xenofonte não faz dessa amizade, daquilo que ela pode comportar de vida comum,
de atenção recíproca, de benevolência de um para com o outro, de sentimentos
compartilhados, o substituto do amor ou algo que lhe dê seqüência no momento
oportuno; ele faz da amizade aquilo mesmo por que os amantes devem se
enamorar: erontes tes philias, diz ele numa expressão característica que permite
salvar o Eros, manter-lhe a força mas dando-lhe por conteúdo concreto apenas as
condutas de afeição recíproca e duradouras compreendidas na amizade.
66
O material que constitui a erótica platônica não é o mesmo da erótica
corrente. Apesar de ambas reservarem aos aphrodisia um lugar de destaque na
relação de amor, elas seguem suas elaborações por vias distintas. Platão já parte
do princípio daquilo que a interrogação tradicional não dá conta. Por isso ele traz
à tona essa interrogação, para apontar aonde se perde o fio que levaria ao
problema essencial. Vamos resgatar, a partir de agora, exatamente os mesmos
tópicos elaborados por Foucault.
Passagem da questão da conduta amorosa à interrogação sobre o
ser do amor
Para esclarecer essa demarcação das diferenças, Foucault faz uma
comparação entre os discursos do Fedro, o de Lísias, inocente, e o de Sócrates
gozador, com as palavras de Diotímia, no Banquete e a grande fábula do Fedro,
contadas pelo próprio Sócrates. Nos primeiros discursos frente à questão do
consentimento, o não ceder sobressai. Não ceder a quem ama enfim é o melhor a
se fazer. Sócrates diz que isso não pode ser considerado uma verdade. E em
oposição a eles, os discursos que pretendem elogiar o amor, não são mais
verdadeiros, etumoi, que os de Lísias ou os de Sócrates no Fedro. Os dois
66
Ibid., p. 205-206.
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99
exemplos a seguir referem-se a trechos de ambos os discursos, um contra o amor e
outro a seu favor:
Não há verdade numa linguagem (ouk esti etumos logos) que, sendo admitida a
existência de um enamorado, pretenderá que é àquele que não ama que se deve de
preferência conceder seus favores, e isso pelo motivo de que o primeiro está em
delírio e o segundo com os sentidos em repouso.
67
A favor do amor segue um trecho do início do Banquete, que segundo
Foucault, também como os do Fedro, entre Lísias e seu censor irônico, não
apresenta características próprias aos discursos etumoi:
Os discursos do início do Banquete, em oposição a isso e com mais preocupação
em louvar o amor do que ofendê-lo, afirmam que é belo ceder se isso se faz, como
convém, a um amante de valor, que não há nada de impudico nem vergonhoso
nisso, e que sob a lei do amor “o bom grado se afina com o bom grado”.
68
Os discursos etumoi discursos verdadeiros e aparentados, por sua origem,
à verdade que dizem apresentam uma marca que os diferencia. Essa marca já
aparece no ponto de partida do problema, já que eles partem de outro
questionamento. Essa transformação, do ponto de partida do problema, atribui ao
jogo de questões do amor colocadas tradicionalmente nos debates referentes ao
amor, novas transformações.
A questão de ceder ou não ao amado desliza para um questionamento sobre
o próprio ser do amor. Sobre a natureza do amor, sua origem, sua determinação e
sua força na direção do objeto. Deslocamento da questão que passa a ser agora
ontológica e não mais deontológica. A elaboração da arte de cortejar perde espaço
na elaboração platônica. Há um salto da questão entre o bem e o mal para a
questão de saber o que é amar. Para isso, é necessário deslocar o objeto do
discurso. Ao invés de perguntar ao amado o que se deve dizer do amor, deve-se
perguntar a quem ama sobre os elementos desse amor. Porque se a pergunta é
dirigida ao amado se corre o risco de confundir os atributos do amado no próprio
amor, em uma oferta de elementos ao amor que não pertencem a ele.
Foucault afirma que o longo desvio que Sócrates faz através da teoria das
almas, na resposta aos dois primeiros contra-elogios, serve como exemplo desse
67
Ibid., p. 206.
68
Ibid., p. 206.
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100
deslocamento. O discurso do amor perde a forma de elogio para abrir uma brecha
para uma natureza “intermediária” do amor. Onde os elogios misturados aos
elogios ao rapaz preenchiam as lacunas do discurso corrente sobre o amor, a
erótica platônica vai abrir os espaços próprios a este discurso.
(...) a falha que o marca (posto que ele não está na posse das belas coisas que
deseja), a parentela de miséria e de manha, de ignorância e de saber na qual ele se
origina; ele terá também que dizer como no Fedro de que maneira se misturam
nele mesmo o esquecimento e a lembrança do espetáculo supra-celeste, e o que é o
longo caminho de sofrimento que o levará finalmente até seu objeto.
69
Passagem da questão da honra do rapaz para a questão do amor da
verdade
Essa transferência do objeto do elemento amado para “reportá-lo sobre o
princípio amante” não traduz a abolição completa da questão do objeto. Agora se
torna relevante definir aquilo que no amor é amado. Com essa alteração a questão
do objeto vai sendo colocada no debate em novo formato. Um giro se opera nessa
forma de interrogação platônica. Ela traz à baila o próprio amor como indicativo
na direção do que é o seu objeto.
Além das diferentes coisas belas às quais o enamorado pode se apegar, Diotímia
mostra a Sócrates que o amor busca gerar no pensamento e ver “o belo em si
mesmo”, em conformidade com a verdade de sua natureza, em conformidade com
a sua pureza sem mescla e “a unicidade de sua forma”.
70
Por isso, Foucault relembra que o próprio Sócrates no Fedro, ao apresentar
como a alma, no caso de forte lembrança daquilo que viu no céu, quando não
desviada na sua volta pelos impulsos na direção dos apetites impuros, tem a
chance de encontrar o objeto amado pela força de reflexo e de imitação advindos
da própria beleza. Esse exemplo contribui para compreender o valor atribuído por
Platão em uma direção do amor à alma dos rapazes ao invés de uma direção para
o corpo. Este tema bastante comum nos debates tradicionais, e de conseqüências
relativamente rigorosas, recebe uma forma radical em Xenofonte. Segundo
Foucault, devemos ficar atentos à maneira pela qual a doutrina platônica desenha
69
Ibid., p. 208.
70
Ibid., p. 208.
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101
a inferioridade dos corpos e não à crença de que se deve a Platão o processo de
desvalorização dos corpos:
Ele a fundamenta, com efeito, não sobre a dignidade do rapaz amado e o respeito
que se lhe deve, mas sobre o que, no próprio amante, determina o ser e a forma de
seu amor (seu desejo de imortalidade, sua aspiração ao belo em sua pureza, a
reminiscência do que viu acima do céu)
71
.
Também não encontramos em Platão uma delimitação que defina o mau
amor relacionado ao corpo e a beleza do amor referente à alma, mesmo com toda
a desvalorização tida nessa reflexão quando trata do amor do corpo no confronto
com o movimento para o belo. De fato, com todo o risco inerente à relação com o
corpo, pelo perigo de desviar e estancar o movimento na direção do belo, não
vamos ver em Platão, sua exclusão e condenação eterna.
De um belo corpo, para os belos corpos, conforme a célebre fórmula do Banquete,
em seguida destes para as almas, depois para o que existe de belo nas “ocupações”,
“as regras de conduta”, “os conhecimentos”, até que, finalmente, o olhar atinja “a
vasta região já ocupada pelo belo”, o movimento é contínuo. E o Fedro, mesmo
cantando a coragem e a perfeição das almas que não cederam, não destina ao
castigo aquelas que, levando uma vida ligada mais à honra do que à filosofia,
deixaram-se surpreender, e para as quais aconteceu de “cometer a coisa” levadas
por seu ardor; sem dúvida, no momento em que, chegando a vida terrestre a seu
termo, a lama deixa o corpo, eles são desprovidos de asas (diferentemente do que
se passa com aqueles que permaneceram “mestres de si mesmo”); eles não
poderão, portanto, subir ao mais alto; mas não serão obrigados à viagem acima do
céu até que, por sua vez, “em razão de seu amor” eles recebam asas.
72
Em Platão, para encontrar a verdade, é fundamental percorrer o corpo, pela
via do verdadeiro amor, na busca de pistas para a verdade. “(...) é que ele é,
através das aparências do objeto, relação com a verdade”
73
.
Passagem da questão da dissimetria dos parceiros para a questão
da convergência do amor.
Se no debate tradicional o Eros era considerado em uma dissimetria entre
aquele que ama e aquele que é amado –, na reflexão platônica ela aparece sem
71
Ibid., p. 209.
72
Ibid., p. 209.
73
Ibid., p. 209.
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102
propósito. Pois como Eros é relação com a verdade, “os dois amantes só poderiam
se unir com a condição de que também o amado fosse levado ao verdadeiro pela
força do mesmo Eros”
74
. O amado também precisaria ser ativo enquanto sujeito
na relação de amor.
Esta é a razão pela qual se produz, no final do terceiro discurso do Fedro, a
inversão que faz passar do ponto de vista do amante ao do amado. Sócrates
descreveu o caminho, o ardor, os sofrimentos daquele que ama e o duro combate
que teve que travar para dominar sua equipagem. Eis que agora ele evoca o amado:
talvez, à sua volta, tenham feito o rapaz acreditar que não era bom ceder a um
enamorado; ele, contudo, aceita a convivência com o seu amante; a presença deste
coloca-o fora de si, por sua vez ele se sente agitado pela onda do desejo, asas e
plumas brotam em sua alma.
75
Este momento reclama aos dois amantes um movimento de entrega
recíproca. Se é no amor que se tem a pista para a verdade, ambos devem ter o
mesmo amor para que se lancem em busca do verdadeiro.
Passagem da virtude do rapaz amado para o amor do mestre e para a
sua sabedoria
Quando Eros se dirige para a verdade, aquele que mais está perto da verdade
vai ser considerado mais apto em direcionar o outro. Diferente da arte de cortejar,
na erótica de Platão, não é garantido ao mais velho a posição como ativo na
relação. Quem mais sabe amar é, ao mesmo tempo, mestre da verdade e poderá
ensinar ao amado como se manter na posição de líder na relação com seus desejos.
Na relação de amor, e como conseqüência dessa relação com a verdade que, a
partir daí, a estrutura, uma nova personagem aparece: o mestre que vem ocupar o
lugar do enamorado, mas que, pelo domínio completo que exerce sobre si mesmo,
modifica o sentido do jogo, transforma os papéis, estabelece o princípio de uma
renúncia aos aphrodisia e passa a ser, para todos os jovens ávidos de verdade,
objeto de amor.
76
74
Ibid., p. 210.
75
Ibid., p. 210.
76
Ibid., p. 211.
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103
4.5
Últimas elaborações sobre o uso dos prazeres
Foucault levanta a partir desse contato com os fragmentos deixados pelos
gregos que, na prática moral grega de reflexão do comportamento sexual, na
forma de aphrodisia, era idealizada uma precisão do domínio de si. Nessa espécie
de combate consigo mesmo era bem visto manter-se em busca de um domínio
preciso, no qual o sujeito deveria ser mais forte do que ele mesmo, inclusive no
exercício do poder sobre outros. Ele afirma também que essa exigência de
austeridade, que buscava constituir esse sujeito senhor de si mesmo, não estava
relacionada à forma de uma lei universal, isto é, uma mesma lei para todos os
indivíduos. Essa exigência de austeridade formava um princípio de estilização da
conduta dos indivíduos que buscavam dar à sua existência uma forma bela e
realizada.
Foucault lembra que os grandes temas do prazer relacionado ao perigo, da
obrigação da fidelidade monogâmica e da privação da atividade sexual entre
parceiros do mesmo sexo são bem conhecidos entre nós. No entanto, uma
aproximação entre nós e os gregos deve ser feita com cautela. Não se trata de
deslindar no pensamento grego a origem da nossa moral sexual: “Não somente é
preciso não atribuí-los a essa ficção chamada moral ‘judeu-cristã’ mas, sobretudo,
é preciso não ir buscar neles a função intemporal da interdição ou a forma
permanente da lei”
77
.
Assim, Foucault abala mais uma vez a idéia de origem. Pois, para ele, não
se trata de submeter a austeridade sexual desenvolvida entre os gregos a uma
intemporalidade de uma lei que foi se situando na história sob as mais variadas
formas de repressão. Essa austeridade sexual presente na Grécia constitui uma
história da “ética” história mais decisiva que a dos códigos. Uma história da
ética porque trata da elaboração de uma forma na qual o indivíduo, na relação
consigo mesmo, podia se constituir como sujeito de uma conduta moral.
77
Ibid., p. 218.
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5
Conclusão
Certos escritores se desculpam de não haverem forjado coisas
excelentes por falta de liberdade talvez ingênuo recurso de
justificar inépcia ou preguiça. Liberdade completa ninguém
desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às
voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos
estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos
podemos mexer.
1
Agora nessas últimas linhas vou contar, observando os limites que a
gramática e a lei nos impõem, um pouco sobre a experiência de liberdade que o
texto de Foucault me proporcionou. Apresentei, neste trabalho, um encontro raro
que agora termina, que deixou como registro algumas marcas provenientes, ao
mesmo tempo, do presente e da antiguidade. Destaquei a força própria ao projeto
geral de Foucault de diagnóstico do presente: ao nos lançarmos para trás,
carregados pela capacidade de usar energeticamente o pensamento, podemos viver
o que chamarei de uma experiência mística
2
. Entendo a experiência mística como
um encontro precioso, desses encontros raros que muitas vezes temos dificuldade
de viver mesmo com aqueles que estão bem perto.
Nesse encontro pude conhecer um Platão bastante preocupado com sua
cultura. Conheci também alguns aspectos dessa cultura tão diferente da nossa.
Minha experiência foi uma tentativa de chegar o mais perto possível de práticas
existenciais sem cair na tentação de capturá-las imediatamente pelo conhecimento
construído apenas no tempo atual. A construção de um novo olhar me exigiu
bastante atenção às interferências causadas a partir da nossa experiência atual,
mas também me permitiu viver com riqueza a experiência de olhar para trás.
Penso que o percurso de construção de um olhar que fosse mais próprio ao
passado de nossas experiências me permite retornar para o presente carregando na
bagagem da minha existência algumas novidades.
Para liberar o pensamento, para experimentar o novo, Foucault nos orienta
a todo instante a nos lançarmos em um trabalho de recordação sobre o que é
antigo. Foucault me ajudou o tempo inteiro nesse exercício. Não tenho dúvida de
1
GRACILIANO RAMOS, Memórias do Cárcere.
2
Com o termo “experiência mística” queremos nos aproximar do que Walter Benjamin vai
denominar de “messianismo” em suas teses sobre a historia.
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105
que o modo de apresentação do livro
3
traz as marcas de seu interesse. Como expus
na introdução, minha proposta era que o método de elaboração do meu trabalho
fosse justamente acompanhar o texto de Foucault muito de perto, tanto quanto
possível.
Posso concluir agora que o resgate dos diversos pontos de comparação
com a nossa moral herdeira legítima da moral cristã , descritos no decorrer do
livro, foi crucial para a experiência que me foi possível realizar. Talvez, um dos
maiores interesses de Foucault nesse livro tenha sido o de nos liberar, seus
leitores, como sujeitos. Os impasses que presenciamos e as angústias advindas da
experimentação de lançar um olhar para costumes vividos em outro tempo, sem
abrir mão do esforço de não interpretá-los a partir dos nossos costumes, podem ser
considerados parte de uma experiência radical. Senti na pele o processo de
liberação das diversas interferências apontadas por Foucault em todo o seu
projeto. O momento final do trabalho de Foucault, nos faz viver na carne um
“processo” de reviravolta do olhar que se dirige para outro tempo. As
interferências fazem parte da construção do texto desta dissertação. Tais registros
aparecem demarcados, cada um ao seu modo, nas diferentes etapas do processo de
escrita.
Fui seguindo na direção de fazer o trabalho de descrição do arquivo. Na
esteira de Foucault, tomei o material referente à Grécia clássica como material
“que fora de nós, nos delimita”
4
. A partir disso, pude recortar, de algum modo, no
surgimento do indivíduo que valoriza o logos em suas práticas mais costumeiras,
a atualização de uma necessidade. Necessidade que Foucault descreveria como a
de uma armadura construída pelos indivíduos para conduzirem-se na vida
cotidiana.
A necessidade de que uma armadura fosse construída sistematicamente na
vida da Grécia clássica está referida à dimensão de luta em que os indivíduos
viviam no cotidiano daquele tempo. Essa dimensão de luta parece ter mantido os
indivíduos mais próximos de si mesmos. Quero dizer que o empreendimento da
luta impunha a existência de pensamentos e de práticas que respondiam a uma
ética, àquilo que deveria ser feito cotidianamente e, mais ainda, ao que deveria ser
bem feito cotidianamente. Apesar de o indivíduo já se constituir marcado por
3
O livro ao qual me refiro é a História da sexualidade 2.
4
FOUCAULT, 2005, p. 148.
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divisões, apesar de existirem cotidianamente o medo da morte e as muitas
tentativas de controle desse medo, pude perceber, naquele momento histórico, um
tempo de maior mobilidade do indivíduo na lida consigo próprio.
Não estou propondo olhar para os gregos sem levar em conta a riqueza da
experiência que aí foi desenvolvida no que se refere ao valor conferido aos
deuses. Lembro do que foi dito no decorrer do texto, que, acompanhando
Foucault, não me proporia a um estudo profundo dos gregos, sim à organização
social deles na vida cotidiana. Meu interesse era o de recortar o que de lá poderia
nos servir para pensar sobre as nossas questões referentes à subjetividade.
A mobilidade imiscuída nos modos de proceder cotidianos dos indivíduos
antigos se mostra, a partir do olhar contemporâneo, como significando uma
abertura. Havia então quase que uma prescrição para que os indivíduos
negociassem abertamente com suas diferentes instâncias. Qualquer negociação se
dava às claras, fazia parte da própria maneira de viver, era legítima. A abertura
com que nos deparamos no estudo do livro de costumes dos gregos diz respeito
também à maior amplitude de possibilidades na lida do indivíduo consigo mesmo.
A abertura grega se dava, por assim dizer, em direção ao exterior.
Em contraposição à abertura grega, Foucault nos mostra o surgimento de
uma outra abertura, escavada a partir do exercício promovido pela pastoral cristã.
O resultado do trabalho da pastoral cristã pode ser resumido pelo gesto, sempre
repetido, da introdução no indivíduo de um Outro idealizado. Aqui pude ver
irromper um dos aspectos que caracterizam o indivíduo portador de uma
interioridade. Interioridade que porta o secreto, aquilo que deve ser desvendado.
Descobrimos com Foucault que a abertura promovida pela pastoral cristã forjava
um interior.
A experiência de chegar tão perto dessa diferença ajuda a entender os
vários momentos da crítica foucaultiana à idéia de um único sujeito que teria
percorrido toda a história. Além disso, posso agora entender porque Foucault
optou por não se ater aos conteúdos da suposta subjetividade e sim às
determinações dos lugares de onde os sujeitos vieram a responder.
No final do livro, na parte sobre a erótica e o verdadeiro amor, vimos um
recorte que parece demonstrar a necessidade dos gregos de ritualizar. Foucault nos
mostra que não devemos apreender as diversas justificativas que os gregos
atribuíam ao amor masculino, por exemplo, a partir das nossas justificativas.
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Então, reconhecemos, em momentos históricos tão diferentes, por um lado, uma
mesma necessidade de ritualizar e de racionalizar, e, por outro lado, a radical
distinção que se apresenta quando a pesquisa se dirige para o material concreto
das produções humanas.
A experiência mística irrompe quando conseguimos, com muito exercício,
afastar mesmo que por um período limitado, as nossas antigas e conhecidas
maneiras de ritualizar nosso próprio pensamento. Para que nos serve tamanho
trabalho de pensar sobre a nossa subjetividade tomando como material os
costumes da antiguidade grega? Para seguir a orientação de Foucault: se
pensarmos apenas a partir da experiência atual, somente iremos nos manter na
dimensão dos nossos rituais de pensamento. O trabalho de nos colocar em questão
exige a tarefa de liberar o pensamento, para que o próprio trabalho de nos colocar
em questão se revele mais complexo.
Retomemos aqui o fato de termos tratado de um projeto que possui o
caráter de ser inacabado. Agora podemos ver mais de perto que tal caráter diz
respeito à natureza dinâmica da pesquisa. Depois do trabalho de escrita desta
dissertação, está, para mim, mais bem colocada a importância de o pensamento se
manter aberto, funcionando e se relançando, quando se trata de um projeto sobre
uma história da sexualidade conforme Foucault propusera. Dado o abalo sofrido
pela idéia de um mesmo sujeito presente no fio do tempo, um projeto da história
da sexualidade deve se estabelecer como um projeto vivo, não sistemático, sempre
relançado no seu tempo.
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6
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