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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO SOCIAL
JACQUELINE SIMONE DE ALMEIDA MACHADO
GÊNERO SEM RAZÃO:
MULHERES E LOUCURA NO SERTÃO NORTE MINEIRO
MONTES CLAROS
MARÇO - 2009
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2
JACQUELINE SIMONE DE ALMEIDA MACHADO
GÊNERO SEM RAZÃO:
MULHERES E LOUCURA NO SERTÃO NORTE MINEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Desenvolvimento Social PPGDS, da
Universidade Estadual de Montes Claros, como
requisito para obtenção do título de Mestre.
Orientadora: Profa. Dra Regina Célia Lima Caleiro
.
MONTES CLAROS
MARÇO - 2009
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3
AGRADECIMENTOS
À Profª.Dra. Regina Célia Lima Caleiro, pela orientação, estímulo, mas principalmente pelo
carinho, confiança e apoio durante este percurso, sempre tentando despertar em mim o olhar de
pesquisadora; contrariando algumas considerações sobre a relação orientando/orientador, Regina
continua sendo uma grande amiga, merecedora da minha admiração e respeito.
À minha família, que sempre me apoiou e incentivou; aos meus pais, que depositam em mim uma
expectativa e confiança que acredito estar acima das minhas limitações; a Dalva, Sócrates e
Renata pela cumplicidade; à Júlia e André, responsáveis pelos momentos de descontração e
prazer nestes últimos meses.
À Nadja Botti, amiga e grande incentivadora da minha carreira acadêmica, a quem tenho o prazer
de convidar para compor a Banca de Avaliação na defesa desta dissertação.
Aos professores do PPGDS, pelos conhecimentos transmitidos; à Herbert Toledo e Simone
Lessa, pela grande contribuição nos momentos decisivos.
Aos colegas do Mestrado, que me acolheram com carinho e respeito; a Elisa, Shirley, Daiana
pelo incentivo. Em especial, à Andréa, por compartilhar seu conhecimento, pela escuta e pelas
caronas; à Joyce, pela transmissão de um outro olhar à construção do texto.
Aos amigos que toleraram os momentos difíceis e os períodos de afastamento, sem negar-me
carinho e compreensão; à Mariny, pela amizade e apoio incondicional; à Silvinha, pela ajuda
sempre a tempo; a Carlos André, Jane e Marcela, presenças constantes.
Aos colegas do Pitágoras, pelo interesse e apoio; à Simone Monteiro, pelo incentivo e amizade
constantes, à Lílian pelas discussões sobre o tema e paciência na leitura do trabalho.
Á Késia, pelo desprendimento com que me disponibilizou seu trabalho de pesquisa, dados
importantes que só mesmo um bom pesquisador poderia levantar.
Ao Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz e toda a sua equipe, através de Izaura Rotatori e
Paulo César.
Ás Instituições Psiquiátricas, Hospital Universitário Clemente Faria e Serviços de Saúde Mental
onde levantei dados para este trabalho.
Aos entrevistados, que compartilharam informações e dividiram sua experiência, emocionando-
me em muitos momentos.
4
Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada!...
Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...
Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!
Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!
Florbela Espanca - LOUCURA
5
RESUMO
Este trabalho trata da história da loucura feminina e da identidade da mulher louca do Norte de
Minas, na segunda metade do século XX. Fala das representações sociais positivas do mundo
reservado aos espaços femininos, e como a negação desses valores pode remeter a mulher à
condição de alienada, retirando-lhe a subjetividade, imprimindo-lhe o estigma da loucura.
Identificada pelo discurso da psiquiatria, esta marca qualifica a mulher como louca ou
degenerada, estabelecendo um contraponto demarcado pela racionalidade moderna, com a mulher
normal ou normatizada. Busca ainda estabelecer um diálogo entre o tratamento destinado às
loucas (sua exclusão através da internação em hospícios) e as estratégias de desenvolvimento
social adotadas no Brasil, numa perspectiva da análise histórica das condições que possibilitaram
os discursos e práticas referentes à loucura.
PALAVRAS-CHAVE: Loucura; Mulheres; Crime; Psiquiatria; Ordenamento
ABSTRACT
This work deals with the history of madness and the female identity of the mad woman of Norte
de Minas in the second half of the twentieth century. Speaks of social representations of the
world positive spaces reserved for women, and the denial of these values can refer the woman to
the condition sold, by removing the subjectivity, giving him the stigma of madness. Identified by
the discourse of psychiatry, this brand qualifies as a mad woman or degenerated, providing a
counterpoint demarcated by modern rationality, the woman with normal or normalized. Search
also establish a dialogue between the treatment for the insane (his exclusion by hospices in
hospital) and social development strategies adopted in Brazil, in a historical analysis of the
conditions that allowed the discourses and practices relating to the madness.
KEYWORDS: Madness, Women, Crime, Psychiatry; Planning
6
SUMÁRIO:
INTRODUÇÃO...........................................................................................................
08
CAPÍTULO I
:
15
1.1 – Nascimento da psiquiatria e o pensamento de Pinel............................................ 15
1.2 – Medicina Social e Estado.................................................................................... 18
1.3 – Loucura e Subjetividade....................................................................................... 22
1.4 – A Liga Brasileira de Higiene Mental e a Disciplinarização do Corpo................. 24
1.5 – A Condição Feminina.......................................................................................... 26
1.6 – Loucura nas Minas Gerais................................................................................... 32
1.7 – O Discurso Científico e a Classificação da Loucura........................................... 34
1.8- O Conhecimento Científico e o Poder................................................................... 38
1.9- A representação social da Loucura........................................................................ 39
1.10
A Subjetividade e o Saber.....................................................................................
42
CAPÍTULO II
:
AS INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS EM MINAS
GERAIS.......................................................................................................................
44
2.1 - Hospital Colônia de Barbacena: Sucursal do Inferno........................................... 44
2.2 - O Manicômio Judiciário de Barbacena ................................................................ 48
2.3 -Hospitais Psiquiátricos em Minas Gerais: Públicos e Privados............................ 49
2.4 - O Encantado Hospital Psiquiátrico do Norte de Minas....................................... 50
2.5
-
A Estrada de Ferro e os Loucos do Sertão.......................................................... 54
2.6 - O Pensamento Norte-mineiro e a Loucura nos Anos 40 e 50.............................. 57
2.7 – Casa de Saúde Santa Catarina X Hospital Fantasma.......................................... 62
2.8 - Hospital Universitário Clemente de Faria Referência em Tratamento
Mental...........................................................................................................................
65
7
CAPÍTULO III
:
MULHERES E LOUCURA NO SERTÃO NORTE
MINEIRO...................................................................................................................
67
3.1 – Gênero sem Razão............................................................................................... 67
3.2 – Transgressões Femininas ou Comportamentos Desviantes................................ 69
3.3 – O Tratamento Manicomial................................................................................. 73
3.4 - O Feminino e o Masculino no Espaço Manicomial............................................ 76
3.5 - Loucura Feminina: Sintomas e Diagnósticos...................................................... 78
3.6 - Crime e Loucura.................................................................................................. 79
3.7 – Processos-crime..................................................................................................
81
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................... 91
REFERÊNCIAS........................................................................................................
95
APÊNDICE................................................................................................................
98
A) Entrevista Semi-estruturada................................................................................... 98
B) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido....................................................... 99
C) Relação de entrevistados........................................................................................ 100
ANEXO................................................................................................................
101
Parecer consubstanciado – Comitê de Ética – Universidade Estadual de Montes Claros
101
8
INTRODUÇÃO
A constituição da Psiquiatria no Brasil coincide com o período de construção dos
discursos e das representações sobre o comportamento adequado às mulheres segundo a moral e
os valores da burguesia, da medicina e da Igreja, que se consolidaram no país a partir da segunda
metade do século XIX. Elevadas a uma condição quase sublime, mães e esposas consideradas
como mulheres “normais” foram elevadas à condição de “rainhas do lar”. A não adequação ao
modelo preconizado, remeteu as mulheres aos lugares prescritos às portadoras de
comportamentos desviantes: aos prostíbulos, as “perdidas” e as libertinas; aos conventos, as que
desejavam ser “noivas do senhor”; às escolas, as solteironas para se tornarem “tias” dos filhos
que não tiveram. Fora destas categorias circulavam “as loucas”, para elas, o hospício ou o
manicômio judiciário.
A loucura é uma construção histórica, e como tal, os critérios para classificar o sujeito
como louco basearam-se muito mais no lugar que ele ocupava na sociedade do que
necessariamente em uma patologia. A associação entre mulher e loucura, como processo cultural
fundamentado no discurso médico, referia-se às características da natureza feminina, inferior ao
homem nos aspectos psicológicos, físicos e intelectuais. E consequentemente, mais suscetível a
perturbações e desordens, enquanto a racionalidade era percebida como intrínseca ao mundo
masculino. Assim como os fatores econômicos e raciais, o fator gênero contribuiu para rotular
muitas mulheres como loucas ou insanas, à margem da esfera social civilizada e racional,
justificando, portanto, a expressão que adotamos “gênero sem razão”.
Lançar luz à história da loucura feminina e da própria Psiquiatria é romper com o
silêncio do manicômio e da sociedade que se calou para esconder seus desafetos ou vergonhas. È
mostrar que o desenvolvimento social também se fez à custa do sacrifício ou da anulação de
muitas pessoas, que se viram privadas da cidadania e do convívio social, segregadas em hospitais
psiquiátricos, perdendo o direito de serem sujeitos de sua própria história.
Diversas teorias médicas serviram para justificar a loucura das pessoas que não se
enquadravam nos padrões estabelecidos de acordo com o ideal de uma sociedade ordeira e
civilizada. Entre este contingente de “loucos”, as mulheres, foram muito visadas pelo olhar
inquisidor da medicina que procurava adestrar seu comportamento.
9
Os diagnósticos de loucura diferiam entre homens e mulheres. As causas atribuídas à
doença mental
1
feminina costumavam ligar-se aos distúrbios relacionados ao papel sexual e
social, constata Cunha.
2
A imagem da mulher era relacionada a maternidade e ao lar, onde
desempenhava o papel de esposa, mãe, educadora e dona de casa, sem espaço em outros
contextos de expressão social. O ideal feminino restringia a mulher à esfera privada, embora
pequeno número delas tenha participado ativamente da vida política e social.
Existia, portanto, uma concepção de mulher ideal, um papel pré-estabelecido na
sociedade. Qualquer tentativa de negá-lo ou transgredi-lo seria tratado como “loucura”, pois a
transgressão atingia a própria natureza da mulher, além das normas sociais. Assim estabeleceu-se
a relação entre a loucura e a submissão feminina, construída a partir do poder masculino,
pertinente a sociedade patriarcal.
A problemática feminina apresenta algumas de suas características. A busca ao
estranho engloba aqui tudo que foge a imagem construída para a mulher. É
evidente que diferenças no interior do grupo feminino recluso no hospício
(...). Mas perpassa todas estas histórias o dado comum de ter nascido
mulher em uma cultura e em uma circunstância histórica em que este
simples e fortuito evento é, de per si, tomado como uma deficiência.
3
(grifo
nosso)
A história da Medicina no Brasil, a partir do século XIX, demonstra sua efetiva
participação no ordenamento social da população por meio da influência da medicina social,
passando pela medicina higiênico-mental até o surgimento da psiquiatria, no século XX. Com sua
competência legitimada e reconhecida pelo Estado, esta ciência colocou seu conhecimento a
serviço do poder político, buscando estabelecer nova ordem e consequentemente o progresso. Foi
nesse contexto que a Medicina, aliada ao Estado e amparada pelo conhecimento científico da
época, classificou tudo e todos. Apontando assim o que era nocivo e oferecia riscos ao
estabelecimento da nova sociedade de acordo com o modelo desejado pelo Estado burguês. Esse
ordenamento social necessário ao desenvolvimento da sociedade, conforme o paradigma vigente
1
Nota: Assim como o conceito de loucura está ligado ao momento histórico, o conceito de doença mental também
varia numa dimensão espaço-temporal, possibilitando dizer que ela é uma construção social, histórica. Foucault, em
Doença Mental e Psicologia, apresenta o percurso da loucura e doença mental, tecendo considerações sobre seu
conceito à partir da percepção de cada sociedade.
2
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986
3
Ibidem, p144/145
10
no período demandava um processo de urbanização, de organização dos espaços sociais que foi
associado à força e ao exercício do poder repressivo do Estado.
No Brasil, a atividade psiquiátrica foi desenvolvida para atender uma necessidade da
sociedade oitocentista engendrada como mecanismo de controle social que validava a relação
entre a Psiquiatria e ordem pública. No final do século XIX o país assistiu a criação do primeiro
hospital psiquiátrico (Hospício Pedro II). Entretanto, é a partir do século XX que a Psiquiatria se
consolida, instaurando a higiene moral no sentido de normatizar a população: “A percepção da
loucura, após a lesgislação brasileira de 1903... consolida e solidifica um saber médico sobre a
pessoa do louco, significando uma transformação radical nas formas de sua percepção social”
4
.
Buscando ordenar a sociedade o Estado mobilizou o poder da Igreja e da Medicina como
parceiros para esta normatização. Diante desse panorama entendemos que o tratamento
psiquiátrico destinado às mulheres loucas, assim como a outros excluídos, não objetivava apenas
a cura, mas uma forma de evitar o contágio da sociedade.
A medicina higiênica aliou-se ao novo sistema. Utilizando práticas de higiene efetivou
um compromisso onde o Estado aceitou a medicalização das suas ações políticas. As ações
utilizadas pela medicina para apossar-se do espaço urbano, foram propostas em rios segmentos
e atingiram diversos grupos sociais. Ao diagnosticar pretensas causas, que poderiam interferir no
processo de desenvolvimento social, a ciência médica desvela ou revela desvios de
comportamentos nocivos a uma sociedade em crescimento, apontando possibilidades de
neutralizar ou exterminar essas influências. Assim, utilizando o manto ideológico da ciência para
neutralizar formas de expressão, socialização e, por que não dizer de sobrevivência popular, a
fala médica transferiu à esfera social a perspectiva que imprimia a abordagem dos desvios
individuais, medicalizando relações e práticas sociais.
O termo “Desenvolvimento Social” apresenta uma variedade de conceitos e
significados correspondente a uma determinada época e sociedade. Santos
5
aponta a cultura como
o elemento social para se realizar intervenções e fazer desenvolvimento social, como a matriz
primordial dos valores e comportamentos, como as razões de existir de uma população, modo de
vida de um povo. Alega ainda que toda cultura sofra a contaminação de outras culturas. Falar de
desenvolvimento social implica falar de sociedade, que é o conjunto de seus grupos ou de seus
4
LUZ, Nadia. Ruptura na história da Psiquiatria no Brasil: espiritismo e saúde mental (1880-1970). Franca, SP:
Unifran, 2006, p. 62
5
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: EDUSP, 2002.
11
guetos. O desenvolvimento social é fruto da ação humana, está atrelado aos grupos sociais e às
ações dos seus membros: sua cultura, seus desejos, suas opções políticas e morais, suas tradições
e costumes. Relaciona-se ainda aos princípios a partir dos quais a sociedade se organiza, a
mobilização dos recursos para produção e desenvolvimento econômico, ao modo como ela
constrói suas práticas.
É na idéia de grupos sociais e da ação de seus membros como possibilidade de
desenvolvimento social que este trabalho se fundamenta. Considerando esse último como o
desenvolvimento dos grupos que compõem a sociedade e seu movimento em prol de uma
evolução, nas perspectivas culturais, históricas, econômicas e políticas. Nos países considerados
subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como o Brasil, foi comum adotar modelos e
comportamentos das sociedades consideradas mais desenvolvidas ou evoluídas. O Brasil se
lançou neste processo para viabilizar o processo de modernização. Na tentativa de criar um
ambiente sócio-político estável, o Estado adotou ações “transformadoras”, estabeleceu normas de
conduta, reordenou cidades e colocou a margem tudo que, em sua visão, pudesse impedir ou
retardar o desenvolvimento social do país. A prática da sociedade no sentido de modernizar a
produção e organizar o espaço social embasará a discussão do encarceramento da loucura como
forma de manter longe dos olhos os desajustados.
Diversos autores, como Amarante, Resende, Machado, entre outros, se debruçaram
sobre a história da loucura no Brasil, porém, poucas referências a Região Norte de Minas
Gerais. Especificamente acerca da loucura feminina, do pensamento médico, dos tratamentos
ministrados, não conhecemos nenhum trabalho acadêmico. Para contextualizar esta situação no
Norte de Minas é imprescindível falar das representações sociais positivas do mundo reservado
aos espaços femininos, da negação desses valores e do estigma da loucura. Identificada pelo
discurso da psiquiatria esta marca qualifica a mulher como louca ou degenerada. Estabelecendo
um contraponto, demarcado pela racionalidade moderna, com a mulher normal ou normatizada.
Diante do exposto surge a primeira indagação que motivou esta pesquisa: como as
mulheres “desajustadas” foram tratadas por aqueles que se julgavam responsáveis pelo
ordenamento social e desenvolvimento em Montes Claros?
A investigação exige um resgate histórico da constituição da Psiquiatria no Brasil e do
papel da mulher nesta sociedade em desenvolvimento, especialmente na região norte mineira,
objetivo desta proposta. Em busca da compreensão da loucura feminina, depara-se com duas
12
possibilidades: as mulheres foram consideradas loucas por algum distúrbio mental ou por não se
enquadrarem nos padrões de comportamento estabelecidos? Na bibliografia consultada, foram
encontrados fortes indícios que grande parte das mulheres rotuladas como “loucas” apresentavam
comportamento considerado desviante, conforme percebeu Lévi-Strauss; “as doenças mentais
podem ser também consideradas como incidência sociológica na conduta de indivíduos cuja
história e constituição pessoais se dissociaram parcialmente do sistema simbólico do grupo, dele
se alienando
6
.”
Para investigar e entender como as mulheres “desajustadas” foram tratadas pelos que
se julgavam responsáveis pelo ordenamento social e desenvolvimento em Montes Claros
delimitou-se, como objeto de estudo, as mulheres internadas em Hospitais Psiquiátricos ou
Manicômios Judiciários. Tendo como dimensão espaço-temporal a segunda metade do culo
XX, considerando que esse período é o marco do desenvolvimento social no Norte de Minas, e
ainda o período da criação da Casa de Saúde Santa Catarina, o primeiro hospital psiquiátrico da
região. A análise deste objeto de estudo não é exclusivamente do ponto de vista da patologia, mas
pretende discutir aspectos sociais que a ela se relacionam, uma vez que serão apresentadas
concepções sobre o papel feminino e os valores vigentes na sociedade nesta época.
Com o objetivo de conhecer a identidade social das mulheres “loucas” do Norte de
Minas, buscou-se analisar a representação social da loucura feminina - quem era a mulher louca e
quais as motivações que serviam de justificativas para a sua internação. Foi realizada uma
análise histórica sobre as práticas e os saberes, do campo da Psiquiatria, exercidas nos Hospitais
Psiquiátricos.
Na revisão bibliográfica, a partir das idéias de autores como Costa, Machado,
Foucault, Cunha e Luz, foi possível levantar a hipótese de que a transgressão social feminina ser
considerada como sintoma de loucura. Justificada pelo grande número de mulheres internado em
hospitais psiquiátricos no século XX , por não se enquadrarem nas normas e papéis femininos
estabelecidos pela sociedade, e supervisionadas pela medicina psiquiátrica. E ainda, que o
pensamento médico brasileiro foi influenciado pelas idéias de eugenia e higiene social.
A partir destas hipóteses, foram utilizados documentos e prontuários do Manicômio
Judiciário de Barbacena, Hospital Prontomente de Montes Claros e outros hospitais psiquiátricos
6
LÉVI-STRAUSS (apud TUNDIS, S. & COSTA, N. (org). Cidadania e Loucura: Políticas de saúde mental no
Brasil. Petrópolis: Vozes Editora, 2000, p.10).
13
de Minas Gerais e processos-crime (DPDOR/ Unimontes). Foi realizada pesquisa sobre as
justificativas médicas, políticas e sociais para a criação do primeiro hospital psiquiátrico de
Montes Claros, o Hospital Santa Catarina, utilizando jornais arquivados no DPDOR / Unimontes
e Centro Cultural Hermes de Paula, além de diversos autores. No intuito de aprofundar os
conhecimentos e buscar informações complementares para a pesquisa, foram feitas várias
entrevistas com funcionários e ex-funcionários de Instituições Psiquiátricas e Serviços de Saúde
Mental da região, nove utilizadas no trabalho. E ainda a análise de dez processos crimes, dos
quais cinco foram citados na dissertação.
A pesquisa procurou seguir todos os preceitos éticos orientado pela Resolução
196/1996, que resolve sobre Pesquisa com seres humanos no Brasil, e teve seu projeto aprovado
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Unimontes Universidade Estadual de Montes Claros (em
anexo). Buscando garantir a confidencialidade das informações e garantir a preservação da
identidade dos participantes será usada a letra “E”, para nomear os entrevistados. Para relatar os
casos referentes aos processos-crime, utilizamos apenas as iniciais das indiciadas.
O Capítulo I apresenta de forma sintética a história da psiquiatria no Brasil, sua
constituição enquanto ciência médica, as influências sofridas pelas idéias européias, o discurso
científico como instrumento de poder. Ao se apropriar da loucura, a Psiquiatria torna-se forte
aliada do Estado, utilizando seus conhecimentos no exercício de controle e dominação para o
estabelecimento de uma ordem social. Na perspectiva da análise histórica das condições que
possibilitaram os discursos e práticas referentes ao louco - considerado doente mental,
desenvolvidas por Foucault
7
, observa-se que, no contexto do paradigma asilar, acabou-se por
segregá-lo em muralhas até mais intransponíveis que as dos hospitais onde passa a ser alojado,
uma vez que foi considerado incapaz de escolher, desejar e julgar por um distúrbio no juízo
estando alheio ao mundo exterior e a ordem pública.
No Capítulo II será apresentado o histórico da criação dos hospitais psiquiátricos no
Brasil, Minas Gerais e Montes Claros. A partir de pesquisa bibliográfica e documental, serão
levantadas as justificativas médicas, políticas e sociais para a criação do Hospital Santa Catarina,
primeiro hospício da região, mais tarde Hospital Prontomente. Ainda neste capítulo, será
discutida a demanda de criação do hospital psiquiátrico que coincide com o ordenamento social
na região, o processo de crescimento populacional de Montes Claros e o êxodo rural em
7
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007
14
decorrência da seca que castigou a região nos anos 50 e 60, além da criação da SUDENE
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste.
O Capítulo III tratará das questões referentes à mulher e loucura no sertão norte-
mineiro, e das internações destas mulheres em hospitais psiquiátricos. Inspirado no famoso
“Trem de doido” e embasado em depoimentos, relatos e entrevistas, neste capítulo será relatado o
percurso destas mulheres rumo ao hospital psiquiátrico, pensando a representação social da
loucura, os motivos e causas para as internações. Serão apresentados ainda processos-crime do
período, que tratam de crimes cometidos por mulheres. Os julgamentos destes processos
permitiram uma análise da forma de tratamento dispensado às mulheres tanto pela justiça quanto
pela medicina. Consideradas “loucas” além de culpadas, foram encaminhadas ao Manicômio
Judiciário e quase totalmente esquecidas por suas famílias e pela sociedade que deveria abrigá-
las. Entretanto, alguns vestígios de suas vidas não se perderam e deles nos apossamos como jóias
preciosas para elaborarmos este trabalho, que, ao menos parcialmente rompe com o silêncio
constituído sobre as “loucas do Norte de Minas”.
Nas considerações finais, serão apresentados os resultados da pesquisa, assim como
uma conclusão sobre o tema.
15
CAPÍTULO I: MEDICINA, PSIQUIATRIA E ORDENAMENTO SOCIAL
“... a psiquiatria desde seu nascimento é em si uma técnica altamente
repressiva que o Estado sempre usou para oprimir os doentes pobres...”.
Franco Basaglia
Pensar o percurso da medicina e a constituição da Psiquiatria no Brasil é fazer um
retorno ao século XIX, período histórico em que a medicina, apoiada pelo Estado, passou a
ostentar sua autoridade na implementação da ordem e da moral da família burguesa. Neste
período, a Psiquiatria foi instituída como a ciência capaz de “tratar” a loucura, não porque os
médicos passaram a conhecê-la, mas porque passaram a dominá-la. Reduzida à condição de
negativo da ordem, a loucura foi segregada e abafada nos asilos e hospitais psiquiátricos. Por sua
vez, o discurso médico passou a defini-la pelo que ela não é: razão, virtude, paz, harmonia,
autocontrole, ou seja, qualidades valorizadas pela sociedade burguesa, estreitamente vinculada às
questões morais. Os alienistas e psiquiatras brasileiros, para definir a idéia de anormalidade,
utilizaram temas como a civilização, a raça, a sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a
delinqüência/criminalidade, o fanatismo religioso e a contestação política, nos propõe Engel
8
.
Assim, tudo o que ameaçava a ordem, seja nas dimensões morais, sociais, econômicas, políticas,
culturais, era identificado ou associado à doença mental, diz Engel
.
1.1 Nascimento da Psiquiatria e o Pensamento de Pinel
A Psiquiatria nasceu como resultado de reformas em instituições sociais francesas. De
acordo com Amarante
9
, seu nascimento foi marcado pelo poder excessivo, como o de retirar os
8
ENGEL, M. G.: As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde —
Manguinhos, V(3): 547-63, nov. 1998 - fev. 1999.
9
AMARANTE, P.D.C. O Homem e a serpente: outras histórias da loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1996.
16
loucos da sociedade, privando-os de liberdade e autonomia, o que confirma Garsonet (apud
AMARANTE)
10
ao afirmar que a medicina exercia uma autoridade exorbitante, um despotismo
sem limites, maior até que o poder exercido sobre os negros no período colonial.
A loucura, que até então era objeto de estudo da filosofia, é apropriada pelo discurso
médico, passando a ser denominada “doença mental”. Criaram então os hospícios, que abrigavam
pessoas consideradas perigosas à população, aquelas que atentavam, principalmente, contra a
moral pública, retirando-lhe a condição de cidadão, privando-o de participar da sociedade. O
tratamento moral destinado aos loucos, inspirados pela França, permite também comparar as
semelhanças entre os dois países no que diz respeito ao exercício da cidadania do louco. Foucault
faz esta articulação ao trabalhar com a concepção ou modelo de sociedade onde o louco não se
encaixava. A loucura, que durante tempos existia na sociedade, foi patologizada pela ciência e
legada à marginalização social. “Um saber de tipo médico sobre a loucura que a considera como
doença mental e uma prática com a finalidade de curá-la por um tratamento físico moral se
constituem em determinado momento da história”, afirma Machado
11
. E o louco, como insensato,
insano, privado da razão e da liberdade, é confiando em instituições psiquiátricas. O internamento
foi uma resposta à crise econômica que afetou o mundo ocidental, lembra Foucault: “diminuição
dos salários, desemprego, escassez de moeda”
12
. Insinua aqui, portanto, que a loucura não foi
institucionalizada apenas pela sua patologia, mas pela incapacidade do louco em acompanhar o
ritmo da sociedade, por transgredir as normas sociais.
Surgiram então, no século XVII, os espaços de internamento, chamados Hospitais
Gerais, onde eram recolhidos os marginalizados, pervertidos, miseráveis, delinqüentes, loucos e
outros, por meio de cartas régias ou prisões arbitrárias. Esta instituição Hospital Geral mais
tarde tornava-se a instituição médica. Estes espaços inauguravam o nascimento da psiquiatria,
permitindo a medicina psiquiátrica conhecer e “tratar” a loucura.
No final do século XVIII, Pinel
13
, exerceu grande influência sobre o pensamento
francês, ao considerar a loucura como rompimento com a realidade, fundando a clínica onde a
10
AMARANTE, P.D.C. O Homem e a serpente: outras histórias da loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz,
1996.
11
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p. 375
12
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007, p. 66
13
Nota: Philippe Pinel, médico e filósofo francês, pioneiro no tratamento dos doentes mentais. Médico-chefe do
Asilo de Bicêtre, libertou as correntes que prendiam alguns doentes mentais, tratando-os como doentes normais, e
aplicando choques elétricos em caso de crises de violência e agressividade. Considerou as doenças mentais como
17
loucura, os hábitos bizarros, as atitudes estranhas, os gestos e os olhares são registrados e
comparados com o que está perto, com o que é semelhante ou diferente. Colocado em um lugar
da ciência que, acredita-se, não é contaminado pelas influências da cultura, da economia e da
sociedade, o alienista, valendo-se de sua percepção social, determina o que é normal e o que é
patológico. Esse é o método do conhecimento, o que opera a passagem da loucura para a
alienação mental, objeto de interesse de filósofos entre outros, de questões da alma, das paixões
ou da moral, passava a ser objeto da medicina, e conceituada como doença ou alienação mental.
Porém, mesmo apropriada pelo discurso médico, à loucura não perdia o seu caráter moral, e Pinel
propunha o tratamento moral para a alienação. Amarante (1996) apresenta como definição de
“alienação” o ato de estar fora de si próprio, a perda de consciência de si e das coisas, e questiona
a prática segregante e excludente da psiquiatria. Pinel adquirira um mandato social e prestígio por
sua obra, consolidando a medicina mental, e o hospital Bicètre passava a formar os primeiros
alienistas. No pensamento pineliano, as mais importantes causas da loucura eram de ordem
moral, como as paixões intensas contrariadas ou prolongadas, os excessos de todos os tipos, as
irregularidades de costumes, hábitos.
Percebe-se que a influência de Pinel rompia os limites geográficos, e a medicina
higienista se espalhava mundo afora. Surgia assim, a clínica psiquiátrica, onde o saber médico
exercia o domínio sobre a loucura. Mesmo após Pinel arrancar as correntes dos loucos para
assegurar-lhes a liberdade roubada pela loucura, esta liberdade era fictícia, pois o isolamento
excluía, privava o louco do seu direito à dignidade humana básica. Não lhe permitia exercer a sua
cidadania. A percepção que Pinel tinha da loucura marca um momento importante na história da
Psiquiatria, porém, ele e alguns de seus contemporâneos, como Tuke, não romperam com as
práticas do internamento (...) eles as estreitaram em torno do louco,” conclui Foucault (citado por
FRAYZE-PEREIRA)
14
. Mesmo se propondo a romper as correntes que prendiam os loucos num
lugar abafado, para que pudessem ter contato com o sol, eles estavam sujeitos a um controle
social e moral, exercidos pelo hospital e pelos médicos.
resultado de tensões sociais e psicológicas excessivas. Denominou a doença mental como “alienismo” ou alienado,
palavra que tem a mesma origem etimológica de alienígena, alien, estrangeiro, de fora do mundo e da realidade.
14
FRAYZE-PEREIRA. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 2005, p. 84.
18
Amarante destaca ainda que, mais tarde, Morel
15
, ao criar a doutrina das degenerações,
trazia novos elementos à alienação mental, reforçando o tratamento moral como princípio da cura
dos alienados. Este pensamento culminou na origem da eugenia
16
em Psiquiatria, e conforme
Foucault, consolida a noção de prevenção da alienação no meio social e moral, o que desloca a
atuação do alienismo do interior do asilo para o meio social e político”.
17
Amarante lembra que, na História da Loucura, Foucault apresenta um percurso da
loucura e do tratamento ao louco, permitindo constatar que a internação era uma solução social
para a loucura. E que havia uma correlação entre as práticas discursivas e as práticas políticas,
definidoras do papel e função das ciências e saberes no estabelecimento de normas e ordenação
social. Avançando para a realidade contemporânea, ainda hoje as práticas totalitárias e
excludentes da psiquiatria encontram justificativa no tratamento e na cura das doenças.
Portocarrero (citado por AMARANTE, p. 64) pontua que Foucault, em História da Loucura,
afirma que a loucura ou sua exclusão social depende não da ciência, mas da percepção que se tem
do indivíduo como ser social; e esta percepção é influenciada pelos critérios estabelecidos por
instituições como polícia, família e justiça, no que se refere à transgressão das normas. O autor
conclui dizendo que “a diferença entre loucura e razão é sobretudo ética, e não médica”.
18
1.2 Medicina Social e Estado
A medicina se aliou ao Estado para ordenar a cidade e disciplinar os corpos como
forma de controle da sociedade. Instalou-se como um campo de saber e de poder, com prática de
critérios classificatórios. Assim, se estabeleceu como arma de justificação científica, favorecendo
15
Nota: Bénédict Augustin Morel, psiquiatra franco-austríaco, argumenta que algumas doenças são causadas por
degeneração. Médico educado na frança, que em seu tratado coloca que diversos estigmas físicos e psíquicos
degenerativos explicariam as deformidades detectadas pelo mesmo em loucos e delinqüentes. Referida degeneração,
por sua vez, daria lugar a distintas enfermidades mentais: epilepsia, debilidade, loucura e, inclusive, ao
comportamento delitivo. Loucura, crime e degeneração estariam significamente associados.
http://pt.wikipedia.org/wiki/
dict_Morel
16
Nota: A eugenia, termo criado por Francis Galton e definido como “o estudo dos agentes sob o controle social que
podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente”. In:
http://pt.wikipedia.org/wiki/eugenia
17
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007, p. 56.
18
, AMARANTE, Paulo D.C. O Homem e a serpente: outras histórias da loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1996, p.64
19
as ações políticas para implantação da República, regime que era um imperativo científico, moral
e intelectual da evolução social.
Nesta perspectiva, sugere Costa
19
, o Brasil imitou a Europa: “as técnicas de
disciplinarização do corpo tinham por objetivo a criação de um sujeito apto a submeter-se às
exigências econômicas, sociais e políticas da sociedade européia do culo XIX”. E a medicina
se encarregou de implantar este sistema, culminando num novo tipo de medicina - a medicina
social - com um novo modo de intervenção, regulando a sociedade através de suas práticas de
policiamento e supervisão. E tornando-se um “Poder Político”, segundo Machado
20
, ao participar
do planejamento urbano, transformando a cidade, abolindo os excessos, ordenando os contatos. A
expressão do pensamento médico da época era o código de posturas. E ao orientar a ação
transformadora da cidade, a medicina direcionava o seu processo civilizatório.
No Brasil, as atividades psiquiátricas foram desenvolvidas para atender uma
necessidade da sociedade nos meados de 1800. Nesta época realizavam-se internações em Santas
Casas, bem como em outros lugares não específicos de tratamento, chamados “casinhas de
doudos”. Neste período, a assistência médica e hospitalar dependia de irmandades religiosas;
assim, a internação dos pacientes era vista como um ato de caridade
21
. Desde então se traduzia
como ato de exclusão, pois, nestes locais não haviam cuidado adequados para o restabelecimento
biopsicossocial e o que ocorria era uma “violência indiscriminada aos doentes.” No final do
século XIX, a medicina social inaugurava a prática psiquiátrica no Brasil. Em 1841, era criado o
primeiro hospital psiquiátrico (Hospício Pedro II), para solucionar o problema da loucura. A
definição de loucura encontrada na constituição define o alienado como “...indivíduo que, por
moléstia congênita ou adquirida, compromete a ordem pública ou a segurança das pessoas”
22
. À
partir de então, o louco, anteriormente visto como uma pessoa com mente alheia, indiferente,
passa a ser privado do convívio social, como medida preventiva.
Nesse período, a Medicina, a serviço do Estado, passava a exercer um controle sobre a
sociedade e cuidava de normatizar a vida pública e privada, em especial a das mulheres,
estabelecendo os papéis por ela desempenhados. Da consolidação da medicina social do século
19
COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 3.ed.rev.-Rio de Janeiro: Campus,
1980, p. 13.
20
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985
21
AMARANTE. P. (org.) Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994.
22
Ibidem, p. 60
20
XIX, prioritariamente uma medicina urbana, que cuidava de fiscalizar, normatizar e transformar a
cidade, surgia a Psiquiatria, que circunscrevia a loucura à condição de “doença mental”. Neste
momento histórico, sofrendo influências de Esquirol e Pinel e inspirados pelo pensamento
francês, os psiquiatras concluíram que os loucos não deviam mais conviver em sociedade.
Criaram-se então os hospícios, que abrigava pessoas consideradas perigosas à população, aquelas
que atentavam, principalmente, contra a moral pública. Segundo Machado, para a Psiquiatria da
época, a loucura se tratava com disciplina e não com liberdade ou repressão. Era preciso isolar a
loucura da sociedade:
é, portanto, possível compreender o nascimento da psiquiatria brasileira a
partir da medicina que incorpora a sociedade como novo objeto e se impõe como
instância de controle social dos indivíduos e das populações. É no seio da
medicina social que se constitui a psiquiatria. Do processo de medicalização da
sociedade, elaborado e desenvolvido pela medicina que explicitamente se
denominou política, surge o projeto característico da psiquiatria de
patologizar o comportamento do louco, só a partir de então considerado anormal
e, portanto, medicalizável.
23
Como Machado, Pereira propõe uma análise crítica sobre a dicotomia loucura-
normalidade: “A história sempre colocou os loucos de um lado, em contraposição à razão. Mas
esta fronteira entre o normal e o anormal deve ser questionada, mesmo porque ela tem variado ao
longo do tempo. A insensatez, a feitiçaria, a paixão desesperada eram loucura.”
24
.
A medicina social via o louco como perigo para a cidade, desencadeando a
“necessidade de exercer sobre a loucura uma regulação de caráter moral, inscrevendo-a na
categoria das condutas anormais.”
25
. A medicina mental vai demarcar o que é excesso,
estabelecer o que é conduta normal e o que é comportamento desviante ou patológico, de acordo
com critérios por ela estabelecidos, que visavam atender a normatização urbana, como descreve
Machado
26
: “O reconhecimento da loucura, a possibilidade de dizer 'este é um louco', aparece
23
LUZ, Nadia. Ruptura na história da Psiquiatria no Brasil: espiritismo e saúde mental (1880-1970). Franca, SP:
Unifran, 2006, p 376.
24
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Todo Gênero de Louco – Uma Questão de Capacidade In: ZIMERMAN, David e
COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. Campinas: Millennium, 1999, p.
520.
25
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p 383.
26
Ibidem, p. 411.
21
ligado um grande parte a uma mudança de hábitos e de idéias, à existência de uma diferença, ao
rompimento de relações sociais (...)”.
No século XIX, a loucura passa a ser definida como alienação mental, porém Machado
apresenta alguns questionamentos sobre a relação entre a loucura e razão ou inteligência:
Será a definição de alienação mental situada ao nível da inteligência ou mais
fundamentalmente diz ela respeito aos fenômenos ligados à vontade? Deve ser
caracterizada como erro, ilusão, alucinação, delírio ou perversão da vontade,
desregramento das paixões, força do instinto, comportamento desviado?
27
Na opinião do autor, é a obra de Esquirol
28
que marca o aparecimento do conceito
médico de loucura e dos fenômenos psíquicos da alienação: “é o melhor exemplo a partir do qual
se podem investigar as dificuldades que marcam o aparecimento da psiquiatria (...) traduzem a
função política do discurso psiquiátrico”.
29
Se Esquirol afirma que existem tipos diferentes de monomania, doença caracterizada
por um ”delírio parcial com predomínio de uma paixão”
30
, a loucura não se fundamenta mais
apenas na inteligência, e as paixões tornam-se uma forte marca da alienação mental: “se a loucura
implica desordem na sensibilidade, da inteligência ou da vontade, sua característica essencial não
é ser erro ou ilusão dos sentidos, delírio da inteligência, mas perversão da vontade que é um
fenômeno moral e não intelectual”.
31
Desta forma, Esquirol vem dizer de uma “alienação moral”,
e o comportamento social passa a ser fator determinante no diagnóstico da loucura.
Embasados nestas teorias, os psiquiatras brasileiros vão operar, privilegiando os
tratamentos morais, como mostram as palavras de Machado, “a inteligência delirante da loucura
deve ser objeto de intervenção, de uma ação tanto física quanto moral”
32
e buscando controlar os
comportamentos, rotulando ou medicalizando as condutas consideradas desviantes. E a teoria
moreliana de degeneração vem reforçar o poder moralizador da medicina, diagnosticando pessoas
a partir de suas origens genéticas – a loucura é considerada também hereditária.
27
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p 385.
28
Nota: Jean-Étienne Esquirol, Psiquiatra francês, foi discípulo de Pinel e fundador da clínica psiquiátrica.
Descreveu as formas clínicas da lipemania ou das monomanias e considerava a alienação mental como devida a
causas físicas e morais.
29
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p 386.
30
Ibdem, p. 386.
31
Ibdem, p. 388.
32
Ibdem, p. 395
22
1.3 Loucura e Subjetividade
Na perspectiva da análise histórica das condições que possibilitaram os discursos e
práticas referentes ao louco - considerado doente mental, desenvolvidas por Foucault, observa-se
que, no contexto do paradigma asilar, acabou-se por segregá-lo em muralhas até mais
intransponíveis que as dos hospitais onde passa a ser alojado, uma vez que foi considerado
incapaz de escolher, desejar e julgar por um distúrbio no juízo estando alheio a mundo exterior
e à ordem púbica.
Historicamente, o modelo assistencial psiquiátrico baseado, em síntese, na constituição
da ordem asilar e no isolamento do mundo exterior ofereceu tratamento excludente, privando o
sujeito de sua liberdade e dos direitos de cidadania.
33
. Desse modo, no contexto da Revolução
Francesa, a Psiquiatria, enquanto especialidade médica de tratamento do alienado tornou-se seu
feitor, pois, a loucura - inscrita no eixo paixão-vontade-liberdade - foi entendida como resultado
da alienação do homem perante a sua própria natureza, como doença mental que altera a
sensibilidade, os desejos e a imaginação. Percebe-se no Tratado Médico-Filosófico sobre a
Alienação Mental (1801), uma etiologia afetiva, passional para a loucura como desregramento da
razão: “Não se poderia compreender o conceito mesmo de alienação se não se enfoca a causa que
mais freqüentemente a provoca (...) as paixões violentas ou exasperadas pelas contradições”
34
.
Doravante práticas de controle disciplinar e reeducação do comportamento desviante
(isolamento, interrogatórios, tratamentos-punições como a ducha, os sermões e recompensas,
trabalho obrigatório) são legitimadas como científicas, a partir do que se denominou tratamento
moral. Em decorrência, os hospitais psiquiátricos que deveriam ser instituições para tratamento,
transformaram-se em verdadeiros “lugares de segregação”, onde os loucos estavam sujeitos a
toda a sorte de maus tratos e torturas. O manicômio retirou-lhe a condição de sujeito: a loucura
foi silenciada.
35
Condição que perpassa o tempo e espaço, e continua a existir nos dias atuais. O
33
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
34
PINEL Philippe. Traité Médico-Philosophique sur l´aliénation mentale. Paris: J.A Brosson. 1809 apud PESSOTI,
Isaías. A loucura e as Épocas. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994, p.145
35
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
23
tratamento moral que se imprimiu à loucura, na opinião de Foucault,
36
é um legado da imposição
do positivismo à Medicina e à Psiquiatria, e permanece imprimindo suas marcas ainda hoje, na
Psiquiatria moderna. Hoje em dia, a psiquiatria utiliza de medicamentos, o que pode ser
chamado de camisa-de-força química, não para tratar a loucura, mas também em casos de
comportamentos inadequados, que muitas vezes estão relacionados à moral. O primeiro
medicamento neuroléptico foi a Clorpromazina, na década de 50, utilizada nas psicoses, como a
possibilidade de cura da loucura. Na opinião de Costa
37
, isto foi o início da era dos
psicofármacos. Segundo o autor, essa e outras drogas modificaram o tratamento manicomial,
possibilitando a retirada das correntes ou camisas de força devido à contenção de alguns sintomas
e ao controle dos surtos psicóticos pela medicação. Porém, ao serem usados de forma exagerada e
indiscriminada, mais como forma de controle do que como método terapêutico, silenciando os
pacientes ao invés de buscar reinseri-los socialmente, rendeu-lhe a denominação de "camisa de
força química" ou "sossega leão", como ressalta Costa.
A comparação do tratamento químico com o tratamento manicomial, da medicação
enquanto uma camisa-de-força é legítima, não como simples camisa-de-força, mas no sentido que
é uma crítica que recai sobre o uso indevido da medicação. Entende-se a importância da
medicação em vários casos e situações, como num surto, no caso da loucura, mas a crítica da
Psicanálise é que ela pode suprimir a subjetividade, de tal forma que o sujeito não uma
resposta ao seu sofrimento. “Os psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e
eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação",
afirma Roudinesco.
38
Para a autora, estas substâncias químicas não curam, apenas alteram as
representações psíquicas, mostrando um novo sujeito, porém, sem humor, e principalmente, com
vergonha por não ser o que se esperava dele. A camisa-de-força química funciona como mais
uma contenção disciplinadora da loucura.
Ora, se havia distância e impossibilidade de diálogo entre a sociedade e a loucura, esta
dificuldade dividia diferentes populações, pois o louco também era parte desta sociedade. Ao ser
entendida pela Psiquiatria como resultado da alienação do homem perante a sua própria natureza,
como doença mental que altera a sensibilidade, os desejos e a imaginação, a loucura excluía o
36
FOUCAULT citado por LOBOSQUE, Ana Marta. Princípios para uma clínica antimanicomial e outros escritos.
São Paulo: Hucitec, 1997.
37
COSTA, Augusto César de Farias. Direito, Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. In:
www.saudepublica.bvs.br/itd/legis/curso. Acesso em 22 de fevereiro de 2009 às 18:19h
38
ROUDINESCO, Elisabeth. Porque a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 21
24
louco do contexto social, sujeitando-o às práticas de controle disciplinar e reeducação do
comportamento desviante através do tratamento moral. Muitos cidadãos foram recolhidos em
instituições manicomiais por motivos de doença mental, e outros “desvios” de comportamento,
porque representavam um mal e uma ameaça à sociedade A lógica manicomial não era o
tratamento, e a internação tinha como função a interdição social e a segregação
.
1.4 A Liga Brasileira de Higiene Mental e a Disciplinarização do Corpo
Os doentes mentais do Rio de Janeiro, então capital do Império, não tinham tratamento
especializado, seu destino muitas vezes eram as prisões, ao lado de criminosos, ou vagar pelas
ruas abandonados à sua própria sorte. Na melhor das hipóteses, acabavam internados em
hospitais gerais. Influenciados pelas idéias francesas os médicos adotaram princípios de
tratamento moral para a loucura. Criaram uma Sociedade de Medicina no Rio de Janeiro, por
volta de 1830, idealizando um asilo para internação dos loucos, o que culminou com a criação do
primeiro hospital psiquiátrico no Brasil, o Hospício D. Pedro II.
Apenas no início do século XX, mais especificamente em 1912, a Psiquiatria tornou-se
uma especialidade médica autônoma, reproduzindo o discurso teórico da psiquiatria francesa. E
ao dominar o corpo, a medicina reforçou o exercício de poder sobre a razão, ou a desrazão. Surge
em 1923, no Rio de Janeiro, a LBHM - Liga Brasileira de Higiene Mental
39
, entidade civil que
contava, inicialmente com subvenção federal. Costa faz uma crítica à atuação da LBHM, por ser
ela composta por psiquiatras que não se percebiam como sujeitos históricos, criando programas
de higiene mental sem considerar a referência histórica da cultura brasileira. Desta forma,
desprezavam a cultura, os valores e própria subjetividade das pessoas. Os psiquiatras da LBHM,
com sua visão de um Brasil sofredor em função da degradação moral e social, causada pelos
vícios, ociosidade e miscigenação racial, adotaram a “prevenção eugênica”, que não tinha
compromisso com a racionalidade da ciência moderna e sim com os interesses políticos e
particulares. Desejavam dominar a loucura, ou melhor, todos os indivíduos que ousavam
manifestar sua subjetividade, os que não se permitiam ser “normatizados”, os “fora da ordem”.
39
Nota: A partir deste momento, será utilizada a sigla LBHM para nomear a Liga Brasileira de Higiene Mental.
25
A relação de poder que permeava o pensamento psiquiátrico brasileiro favoreceu a
criação da LBHM. Fundada pelo psiquiatra Gustavo Riedel
40
, o objetivo da Liga era, na opinião
de Costa
41
, “melhorar a assistência aos doentes mentais através da renovação dos quadros
profissionais e dos estabelecimentos psiquiátricos”. Mais tarde, ela desviava-se do objetivo inicial
de cuidar do doente, e contaminada pela idéia de prevenção, tomou como objeto de cuidado o
indivíduo normal, definindo-se como higienista. Desencadeava então o processo de invasão
social: tomados pelo ideal eugênico, os psiquiatras encontraram espaço na política, servindo aos
interesses do Estado, no momento em que o país enfrentava crises e revoltas com a República.
Ao receber o apoio do Departamento de Saúde e do Governo da Revolução de 1930 para o
combate do alcoolismo numa campanha repressiva, a Liga sentiu-se estimulada a ampliar sua
atuação e aplicar os métodos de higiene mental em outras esferas da sociedade, adotando a idéia
de eugenia como higiene social. E a propaganda eugênica se intensificou, paralelamente a nova
concepção de eugenia na Alemanha, pleiteando cuidar da vida de pessoas doentes e também
sadias.
Em suma, a medicina higienista do século XIX, reconhecida pelo Estado ao
medicalizar suas ações políticas e reforçar seu poder, é por ele legitimada para converter os
sujeitos à uma nova ordem, na opinião de Costa. A Medicina, apoiada pelo Estado, se apodera
do espaço urbano, e ao se lançar na higienização das cidades encontra resistência na tradições
familiares. Estabelece neste momento a higiene familiar, modificando a conduta de seus
membros, criando uma estrutura de controle da família: “A ordem dica vai produzir uma
norma familiar capaz de formar cidadãos individualizados, domesticados e colocados à
disposição da cidade, do Estado, da Pátria.”
42
Tudo isso se reflete na prática da psiquiatria, que dá
continuidade ao discurso normativo e moralizador no século XX.
Ao desenvolver as hipóteses que possibilitaram essa continuidade epistemológica e
conceitual de higiene, Luz
43
observa que o louco no Brasil era pensado de diferentes formas de
40
Nota: Gustavo Riedel foi um dos pioneiros da psiquiatria brasileira. Trabalhou com profilaxia de doenças mentais,
foi Diretor da Colônia do Engenho de Dentro no Rio de Janeiro e presidente da LBHM Organizou um serviço aberto
para psicopatas, um serviço de psicologia e uma escola de enfermagem, onde eram formadas as monitoras de higiene
mental. (Costa, 1980)..
41
COSTA, Jurandir Freire. História da Psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 3.ed.rev.-Rio de Janeiro:
Campus, 1980, p. 27
42
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004. p. 48.
43
LUZ, Nadia. Ruptura na história da Psiquiatria no Brasil: espiritismo e saúde mental (1880-1970). Franca, SP:
Unifran, 2006
26
acordo com o momento histórico. E que, se por um lado, acredita-se que a Psiquiatria criou o
mito da doença mental ao fabricar a loucura, por outro, a própria Psiquiatria, pela sua inoperância
ou abuso de poder, preconizou a sua morte. Durante as duas primeiras décadas do século XX, a
psiquiatria faz campanhas e discursos geradores de estigmas sociais, desenvolvendo mecanismos
de controle moral e racial da sociedade brasileira, ressalta. Costa acrescenta que a década de 20
marcou o adoecimento ou a transformação da psiquiatria, a partir dos propósitos preventivos da
Liga Brasileira de Higiene Mental. A Psiquiatria, originada como discurso e práticas políticas,
objetivando normalizar e normatizar a sociedade, se fortalecia principalmente no século XX,
marcado pela desordem social. Situação que gerava grande número de excluídos, entre eles
loucos, negros, desvalidos, desordeiros, transgressores das normas: “campo fértil para que se
desenvolvesse uma racionalidade apoiada no saber técnico-científico”.
44
1.5 A Condição Feminina
Neste contexto histórico, não havia espaço para a singularidade ou diversidade, o
social surgia como um regime em que as normas substituíam as leis, alterando as relações entre
as pessoas, entre estado e sociedade. Por estas e outras razões, afirma-se que a questão “mulher e
loucura” é também social, pois diz respeito às relações de gênero, étnicas, religiosas e morais.
Existe uma diferença entre homem e mulher, do ponto de vista fisiológico, mas a diferença de
gênero se estabelece a partir das relações sociais, fundamentadas nas diferenças percebidas entre
os sexos. Entender a loucura feminina requer uma nova escrita desta história, onde se tome como
referência os valores sociais e culturais da época, e as representações sociais da mulher neste
contexto e, quem sabe, os pequenos fragmentos dos discursos dos “insanos”.
Se a sociedade lançou mão de diversas teorias médicas para justificar a loucura das
pessoas que não se enquadravam nos padrões estabelecidos, encontra-se entre este contingente de
“loucos”, algumas categorias mais visadas por este olhar disciplinador da Medicina, como os
44
I LUZ, Nadia. Ruptura na história da Psiquiatria no Brasil: espiritismo e saúde mental (1880-1970). Franca, SP:
Unifran, 2006, p. 60.
27
negros e as mulheres, principalmente as mulheres negras, conforme relata Cunha
45
: “a
degeneração e a loucura são inerentes à visão animalizada das negras, tornando sua presença no
hospício uma contingência quase natural”.
Entretanto, é importante lembrar que a constituição da Psiquiatria no Brasil apenas
reforçou antigas interdições morais acerca do papel das mulheres nessa sociedade em
desenvolvimento. No seu livro Ao Sul do Corpo, Del Priore
46
discorre sobre a condição feminina
no Brasil colonial, do processo de domesticação da mulher, da maternidade, dos papéis femininos
estabelecidos pela Igreja e pela Sociedade. Houve um processo de adestramento da mulher,
através do discurso sobre padrões ideais de comportamento, e cabia a Igreja disseminar estes
valores entre a população feminina. “Adestrar a mulher fazia parte do processo civilizatório, e, no
Brasil, este adestramento fez-se a serviço do processo de colonização.”
47
Esse adestramento
utilizou também outro instrumento: o discurso normativo médico sobre o funcionamento do
corpo feminino, especificando como função natural da mulher a procriação. Conforme a autora, e
enquanto a Igreja cuidava das almas, a Medicina ocupava-se dos corpos, conseqüentemente, tudo
o que fugia às regras estabelecidas era objeto de perseguição:
A sacralização do papel social das mães passava, portanto, pela construção do
seu avesso: a mulher mundana, lasciva e luxuriosa, para quem a procriação não
era dever, mas prazer. As mulheres que viviam em ambigüidade desses dois
papéis foram sistematicamente perseguidas, pois o uso autônomo da sexualidade
feminina era interpretado como revolucionário e contrariava o desejo da Igreja e
do Estado de colocar o corpo feminino a serviço da sociedade patriarcal e do
projeto colonizador.
48
A conduta da mulher, a feminilidade e a maternidade, sempre despertaram receios, ou
significaram mistério. Suas características fisiológicas, sua sensibilidade e afetividade eram
motivos de estranhamento. Era preciso neutralizar ou normatizar a mulher, estabelecendo limites
para sua ação. No Brasil colônia, ela deveria ficar restrita ao ambiente doméstico. Segundo Del
Priori, ela deveria fazer o trabalho de base: educar a prole, cuidar de seu sustento e saúde física e
espiritual, obedecer e ajudar o marido. A mulher foi considerada inferior, idéia endossada pela
45
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do MundoJuquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 124
46
DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do Corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. 2. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
47
Ibidem, p. 27
48
Ibidem, p. 83.
28
Igreja e pela Medicina, segundo a autora
49
: “ela era possuidora de um temperamento comumente
melancólico, era um ser débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça. (...) sua inferioridade física
fora decretada por Deus.” Esta era a imagem de mulher que prevalecia, inclusive no imaginário
feminino: submissa, disposta a aceitar os valores impostos. Desobedecer ou manifestar seus
desejos e necessidades, ser sujeito de sua própria existência significava “estar louca”.
Após o período colonial, no século XIX, a mulher ultrapassava o limite de segurança
ao tentar concorrer com o homem, diz Costa, e “do ponto de vista dos higienistas, a
independência da mulher não podia extravasar as fronteiras da casa e do consumo de bens e
idéias que reforçassem a imagem da mulher-mãe”. Segundo ele, para que o machismo
continuasse existindo, era necessário reforçar a inferioridade da mulher, e a loucura era uma
forma higiênica de punir a mulher pelos seus “desvios”. Viver seus desejos, ou desejar se deliciar
com os prazeres mundanos, gozar a liberdade, era sinônimo de loucura: “A correlação entre
mundanismo e doença teve um papel fundamental na domesticação da mulher. Fazendo do
excesso social causa de enfermidade físico-moral, a higiene retirava a mulher do mundo”.
50
Outro sintoma considerado como loucura, era de origem sexual. A insatisfação sexual
causava nervosismo na mulher, e ela utilizava desse nervosismo para defender-se de seus
opressores:
A teoria higiênica da doença nervosa, fruto da insatisfação sexual começou a ser
usada pelas mulheres num sentido paralelo ao inventado pelos médicos. O
nervosismo passou a ser simulado ou sentido sempre que a mulher pretendia
opor-se ao homem ou obter dele concessões sexuais.
51
Viver a própria sexualidade, manifestar suas emoções ou preocupar-se com o seu
prazer sexual não era permitido às mulheres. Esses comportamentos, aliados as particularidades
femininas, a personalidade, aos aspectos fisiológicos da mulher e a tentativa de burlar as normas
estabelecidas, com certeza contribuíram para um diagnóstico de loucura ou de doença mental. É
neste contexto que se define a representação da mulher no Brasil, que perpassou os tempos e
ainda hoje se encontra arraigada na cultura brasileira. Falar da “Mulher Louca” é falar da
representação social da mulher, dos papéis sexuais estabelecidos, das transgressões cometidas por
algumas delas que não se enquadravam ao modelo da ordem burguesa, que ousavam tomar as
49
Ibidem, p. 36 a 38.
50
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 269.
51
Ibdem, p. 272.
29
rédeas do seu próprio destino. Existe, portanto, um modelo do feminino que insiste em prevalecer
no imaginário coletivo, sua negação conduz a mulher a exclusão ou reclusão num Hospital
Psiquiátrico. No hospício, a mulher perde toda a sua condição de sujeito, sua identidade, torna-se
submissa, institucionalizada, não mais oferece perigo à sociedade ou à família. É importante
ressaltar que, em muitos casos, as internações eram feitas pela família, por não suportarem a
alteridade, a “vergonha” por determinados comportamentos ou até mesmo por questões de ordem
econômica.
A partir de sua pesquisa no Juquery
52
, São Paulo, Cunha levanta algumas causas para a
condução das mulheres ao Hospício: uso de bebidas, afastamento da família, mulheres que
insistiam em fugir às normas que a definiam como subordinada, frágil e dependente. Outras
causas extremamente recorrentes estavam relacionadas à sexualidade:
No que compete às mulheres, a sexualidade está relacionada desde longo tempo
a diferentes categorias de insanidade: tradicionalmente, os alienistas associaram
a loucura feminina a fases críticas de seu corpo a adolescência, os partos e
puerpérios, a menopausa e chegaram mesmo a adotar terapeuticamente
procedimentos tão cruéis quanto reveladores, que incluíram a extirpação do
clitóris, a introdução de gelo na vagina e outras formas de tortura destinadas ao
controle das sexualidades inconvencionais das mulheres.
53
A questão de gênero se fazia presente também nos hospícios, onde o tratamento era
diferenciado para homens e mulheres, caracterizando a divisão dos papéis. Caso contrário, como
explicar que nos primeiros anos de existência, os hospitais psiquiátricos internavam apenas
homens, e as mulheres ficavam em cárcere privado?
Podemos dizer ainda da identidade sexual em relação ao trabalho: os hospitais
psiquiátricos usavam o trabalho como forma de tratamento (laborterapia): os homens iam para o
trabalho agrícola e as mulheres para os trabalhos domésticos, reforçando a diferenciação dos
papéis ou dos valores vigentes. O hospício reproduzia os papéis sexuais, e enquanto se
considerava que para os homens as atividades ao ar livre aparentavam liberdade, o que
52
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986. Nesta obra a autora apresenta dados de uma pesquisa feita no Hospital Juquery, em São Paulo, onde
aponta como os saberes e práticas da psiquiatria lançaram-se à perspectiva da higiene mental, deixando o hospital
entregue ao seu destino de depósito de seres sem saída, espaço de incurabilidade, sala de espera dos cemitérios de
indigentes. E ainda fala sobre como e em quais circunstâncias foi gestada a proposta do hospício, produto de um
alienismo eclético para disciplinar uma cidade que explodia.
53
SHOWALTER citada por CUNHA, Maria Clementina Pereira, 1986,p. 154.
30
contribuiria para a cura, no caso das mulheres, o importante era a reclusão do trabalho doméstico,
pois a condição feminina se relacionava aos espaços fechados, diz Cunha. A autora mostra ainda
a diferença no padrão de tratamento e avaliação em relação a homens e mulheres:
Os homens são considerados “perigosos” ou problemáticos do ponto de vista
disciplinar quando agridem, xingam, reivindicam. Quebrados pela disciplina
asilar, exibem quase sempre a marca do asilo em seu rosto e postura corporal
(...) as mulheres, por sua vez, são vigiadas e reprimidas em relação a outros
aspectos de sua conduta, sobretudo os que dizem respeito à sexualidade: coibir a
masturbação, impedir a nudez, evitar o “espetáculo indecente” que as
transforma, no interior do Juquery, nas usuárias exclusivas da camisa-de-força.
Alguns homens permanecem constantemente nus pelos pátios internos. Às
mulheres, mesmo à custa da violência, deve ser “ensinado” o seu recato
“natural”.
54
Para Cunha, o Juquery apresentava situações onde se percebe claramente a
discriminação sexual presente no tratamento psiquiátrico, pois o hospício reproduzia as normas
sociais de conduta, destacando que conceitos como masculino e feminino são valores culturais:
A problemática feminina apresenta algumas de suas características. A busca ao
estranho engloba aqui tudo que foge à imagem construída para a mulher. É
evidente que diferenças no interior do grupo feminino recluso no hospício
(...). Mas perpassa todas estas histórias o dado comum de ter nascido mulher em
uma cultura e em uma circunstância histórica em que este simples e fortuito
evento é, de per si, tomado como uma deficiência.
55
Os diagnósticos de loucura diferiam entre homem e mulher, as causas atribuídas à
doença mental eram diferentes. As internações femininas, na maior parte das vezes, eram devidas
a distúrbios relacionados ao papel sexual e social, constata Cunha em sua pesquisa:
Assim, ao contrário dos homens, as mulheres quase sempre o internadas no
Juquery por alegados distúrbios relativos sobretudo ao espaço que lhes coube na
definição de papéis sexuais e sociais – a esfera privada. (...) as regras de
comportamento estiveram, desde um amplo processo de elaboração de uma
imagem ideal, apenas relacionadas à esfera corporal e familiar: boas mães, boas
filhas, boas esposas.
56
54
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 97.
55
Ibidem, p. 144.
56
Ibidem, p. 143.
31
Para as mulheres, a desrazão estava associada às questões de cunho moral, e o moral
feminino no mundo ocidental cristão sempre foi associado ao seu corpo e à sexualidade. Se no
século XVIII, os castigos públicos foram justificados como modo de conscientizar as pessoas
sobre as imoralidades cometidas, o século XX traz o manicômio como punição para estes
comportamentos. Na Inglaterra do século XVIII “uma mulher condenada por crime sexual é
exibida em praça pública, vergastada nua e marcada com um ferro quente na forma de flor de
lis”
57
, e no século XX, a psiquiatria brasileira circunscreveu todas as formas de “loucura,
desvarios e anormalidades” à condição de “doença mental”, reforçando antigas interdições
morais acerca do papel das mulheres nesta sociedade em desenvolvimento.
Os médicos e alienistas brasileiros relacionavam a loucura à sexualidade, identificando
como doença os comportamentos ou práticas sexuais inaceitáveis, de acordo com Engel: “os
mecanismos de controle social passam, entre outras coisas, pelas estratégias de disciplina dos
corpos e das mentes, concebidas e implantadas (...) a partir da disseminação de certos valores
morais referentes, por exemplo, a sexualidade.”
58
A autora afirma ainda que os limites para as
práticas sexuais foram definidos pelos alienistas, cujo objetivo era a reprodução, o que as
palavras de Franco da Rocha confirmam:
O instinto genital perturbado tem fornecido assunto aos psiquiatras, alguns dos
quais têm escrito volumes inteiros sobre tal matéria. Nesta espécie os
degenerados concorrem com quase todo o material de observação. Desde a
simples impotência, por um motivo fútil ou pela masturbação, até os mais
hediondos desvios, como, por exemplo, o de sentir prazer genital bebendo
urina, ainda quente, de mulheres, vai uma série infinita de tipos mórbidos...
59
- No Brasil, a constituição da Psiquiatria coincide com o período de consolidação
das representações positivas sobre os comportamentos adequados às mulheres segundo a moral e
os valores burgueses. Elevadas a uma condição quase sublime, as mulheres “normais” alçaram o
status de “rainhas do lar”, mães e esposas empenhavam-se na busca frenética pela perfeição. A
negação destes valores remeteria as mulheres aos lugares adequados às portadoras de
comportamentos desviantes da moral preconizada pela Igreja, pela família e pelo Estado. Aos
57
FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.81
58
ENGEL, M. G.: As fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde —
Manguinhos, V(3): 547-63, nov. 1998 - fev. 1999, s/p.In: www.historiaecultura.pro.br/cienciaepreconceito, acesso
em 05/10/08.
59
ROCHA, Franco da. Esboço de psiquiatria forense. São Paulo: Laemmert1904 (apud ENGEL, M. G.: As
fronteiras da anormalidade: psiquiatria e controle social. História, Ciências, Saúde Manguinhos, V(3): 547-63,
nov. 1998 - fev. 1999).
32
prostíbulos as “perdidas” e as libertinas, aos conventos as que desejavam ser “noivas do senhor”,
às escolas as solteironas para se tornarem “tias” dos filhos que não podiam ter. Fora destas
categorias circulava “as loucas”, para elas o hospício.
Havia uma relação de distúrbio psíquico com a rigidez das regras de comportamento
socialmente impostas, quando uma negação da “imagem feminina ideal”, conforme constata
Cunha
60
através do prontuário de uma paciente. Uma moça de 22 anos, solteira, havia sido
internada no Juquery em 1918, por estar viajando, utilizando os proventos de uma herança
recebida, vestida como homem. Ao ser reconhecida, como mulher, foi presa pela polícia, e
considerada fraca de espírito, com uma demência em desenvolvimento. Este caso demonstra que
os comportamentos sociais eram alvos de uma vigilância permanente. Existia uma concepção de
mulher ideal, um papel pré-estabelecido para ela na sociedade, e qualquer tentativa de negá-lo ou
transgredi-lo, seria tratada como “loucura”:
No caso da loucura feminina, transgressão não atinge apenas as normas sociais,
senão à própria natureza, que a destinara ao papel de mãe e esposa. (...) a sanção
e a condenação para comportamentos anômalos acabam assumindo, no caso das
mulheres, o caráter de julgamento mais profundo, e o comportamento “estranho”
aparece como muito mais transgressivo: não o anti-social, mas o antinatural.
Neste contexto, a loucura doença terrível não deixa de aparecer como uma
vingança da natureza contra a violação de suas leis.
61
Entende-se que a mulher, assim como os negros, os libertinos e outras categorias de
marginalizados, foram discriminados e punidos, tendo seu discurso abafado em prol da
manutenção do status quo, e que esta prática se perpetuou de geração em geração.
1.6 Loucura nas Minas Gerais
Magro Filho em seu livro A Tradição da Loucura, faz um estudo sobre a doença
mental em Minas Gerais, no período de 1870 a 1964, e questiona as internações nos hospícios
como questão mais política e social do que patológica: “a criação do hospício é uma medida
60
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 143.
61
Ibidem, p. 145.
33
preservadora da sociedade.”
62
Conforme o autor, já no século XX, o Hospital Colônia de
Barbacena adotou o trabalho agrícola como forma de tratamento para os alienados. Porém,
percebe-se uma incoerência: se a laborterapia era indicada como necessária para a cura do doente
mental, porque os internos pagantes não trabalhavam? “Ficam claro que o indigente, o pobre e o
marginal considerados infratores de uma norma social de conduta, deveriam agora redimir-se
trabalhando, não para sua melhora em verdade, mas sim em favor do Estado”.
63
Se havia no
hospital psiquiátrico uma discriminação de classe social, isso sugere uma falta de critério
científico nas internações. Entendemos que onde há a discriminação de classe pode ocorrer
também de gênero, uma vez que existe uma mentalidade preconceituosa. O autor propõe uma
reflexão sobre a reclusão como prevenção de contágio para a sociedade:
A questão, portanto, era muito pouco técnica e bastante política (...) Na verdade,
a sociedade recluiu nos hospícios, menores sem casa, jovens mulheres que não
se conduziam de acordo com a moral vigente, pessoas de quem as famílias
queriam se ver livres (alcoólatras), doentes portadores de moléstias infecciosas,
pobres, enfim, todo grupo que não se enquadrava nas regras sociais. Submetidos
a um estado duplamente repressor, os cidadãos indigentes podiam ser internados
no hospício, embora fossem pessoas sadias, bastando para isso autorização
policial.
64
Pensar que este tipo de conduta aconteceu em Minas Gerais, em meados do século XX,
pressupõe a reprodução de uma ideologia remanescente do Brasil - Colônia, e mostra que os
valores da nossa sociedade não mudaram tanto quanto acreditamos. Entende-se que a Psiquiatria,
assim como a Medicina, serviu ao Estado como uma forma de disciplina moral. Este fato não
desmerece suas conquistas no âmbito das ciências, mas a torna passível de questionamentos.
Várias questões levam a pensar que a loucura feminina foi, e talvez ainda seja, muito
mais uma questão de transgressão social ou moral do que uma doença mental, como pode se
constatar na bibliografia consultada. Sua identidade foi construída através do discurso dos
detentores do poder, seja ele político, religioso, médico, jurídico ou familiar. Ao privar uma
mulher do convívio social, a loucura é silenciada, a vergonha é camuflada, escondida debaixo do
tapete, e a honra de todos se restabelece. Porém, não se pode esquecer que a internação deixa
62
MAGRO FILHO, J. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo Horizonte: COOPMED/Editora
UFMG, 1992, p. 28.
63
Ibidem, p. 40.
64
Ibidem, p. 136.
34
marca profunda no ser humano, pois o estigma da loucura é irreversível: “o internamento oculta o
desatino e trai a vergonha que ele suscita, mas designa explicitamente a loucura: aponta-a com o
dedo”.
65
Segundo Foucault
66
a história da loucura não é a história do discurso psiquiátrico, mas
a “arqueologia desse silêncio” que se estabeleceu no mundo moderno das doenças mentais, a
partir do momento que foi interrompido o diálogo do louco com a sociedade. Portanto, o que se
construiu foi o discurso da razão sobre a loucura, não há discurso da loucura sobre a razão.
67
A
voz do louco é silenciada, tragada pela voracidade dos discursos, melhor dizendo, dos monólogos
da “razão”.
1.7 O Discurso Científico e a Classificação da Loucura
Para a loucura encontramos várias definições de acordo com cada momento histórico,
desde Esquirol, que avaliava o grau de sanidade e loucura dos seus pacientes pelas suas afeições
morais, remetendo a loucura à idéia de desvio e à esfera dos comportamentos e do ajustamento
social; a loucura moral ou tratamento moral inspirado no modelo assistencial de Pinel, definido
pelas condições de inteligibilidade do paciente, remetendo-a diretamente à esfera da razão; a
teoria da degenerescência, baseada nos princípios eugenistas e o alienismo, que atribuía à
manifestação das patologias mentais à existência de afecção (processo mórbido considerado em
suas manifestações atuais, doença) tomando-a por sua origem fisiológica que o organicismo
afirmava.
Acompanhando o processo de constituição do saber alienista, Castel observou
que, em cada avanço teórico, em cada aparente ruptura nos pressupostos que
fundamentavam a psiquiatria, estava embutida a estratégia de ampliação e
recortes e das possibilidades de intervenção social da medicina, delegando à
mesma o poder exclusivo de identificar, nomear e curar o conjunto de episódios
englobados pelo termo loucura.
68
65
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978, p. 148.
66
FOUCAULT ( apud FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 2005)
67
FRAYZE-PEREIRA, O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 2005, p.48
68
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p. 111.
35
Louco é aquele que perdeu a razão, é dominado por uma paixão intensa, esquisito,
excêntrico (fora do centro), imprudente, temerário. Segundo Cunha
69
algumas definições são
usadas para o comportamento desviante: “constitui uma ameaça concreta e palpável: desvio da
imaginação, reverso da razão, fim da inteligibilidade, uso indevido da liberdade”. E para livrar-se
dos loucos, a sociedade burguesa tratou de excluí-los, aprisionando os nos hospícios, buscando
anulá-los e transformá-los em objeto de conhecimento dos médicos psiquiatras, higienistas e
sanitaristas.
Silva Filho
70
refere-se ao louco como “aquele cuja voz foi anulada, abafada, nem
valorizada, nem importante”. Pode-se dizer que loucos” eram todos aqueles que incomodavam a
sociedade, que apresentavam um comportamento que não era o esperado ou determinado, aqueles
que não ficavam presos às convenções como os libertinos, os religiosos infratores, os velhos e
crianças abandonados, os venéreos, os aleijados, os transgressores, os epilépticos, as mulheres
transgressoras, os doentes mentais. Pessoas que viviam à margem da sociedade, consideradas
como perigosas, os excluídos, abandonados à própria sorte num Hospital Psiquiátrico (local que
deveria ser de tratamento), onde o que prevalecia era uma concepção excludente da loucura.
Neste contexto, ao conceituar a doença mental, Silva Filho propõe que é impossível pensá-la
enquanto essência naturalizada no corpo, e sim que ela é acontecimento possibilitado
historicamente pelo saber psiquiátrico e médico no momento em que monopolizavam a loucura.
Segundo ele, a loucura indicava algo que não estava normatizado, que sua patologização poderia
curá-la através da medicina. Portanto, faz-se necessário interrogar através de quais jogos da
verdade o homem se pôs a pensar seu próprio ser, percebendo-se como louco, olhando-se como
doente, reconhecendo-se como sujeito do desejo.
Através da história da Psiquiatria no Brasil, percebe-se que o conceito de loucura é
variável, os comportamentos estabelecidos como “sintomas” mudam de acordo com o momento,
atendendo a interesses culturais, políticos e sociais, como descreveram Tundis e Costa
71
: “As
práticas e representações que as sociedades elaboram em torno da loucura são evocadas em sua
natureza histórica e transitória. São remetidas a processos sociais que condicionam o domínio do
69
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986, p.14.
70
SILVA FILHO, João Ferreira da. A medicina, a psiquiatria e a doença mental. In: TUNDIS, S. & COSTA, N.
(org). Cidadania e Loucura: Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes Editora, 1987, p. 78
71
TUNDIS, S. & COSTA, N. (org). Cidadania e Loucura: Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes
Editora, 1997, p. 10.
36
patológico a determinações que transcendem o plano puramente individual”. Roberto Machado
alega que os alienistas, para avaliarem se uma conduta era razoável ou não, comparavam-na com
os comportamentos comumente aceitos na sociedade num determinado momento histórico,
articulando a história individual e a história da sociedade:
Todo indivíduo se constitui como sujeito de paixões em sua vida de relação
social e é esta vida em sociedade que lhe assegura o exercício regulado de sua
atividade apaixonada. Transpostos os limites problemáticos desse exercício, o
indivíduo encontra-se doente porque rompe a rede de relações em que está
inserido, desequilibra e subverte, por seus excessos, os efeitos reguladores da
sociedade.
72
Vários autores afirmam o caráter histórico da loucura, demonstrando que os sintomas
da doença se diversificaram de acordo com o momento social. Foucault
73
faz uma
contextualização sobre o tema através dos séculos e lembra que no culo XIX o conceito de
loucura relacionava-se à consciência histórica. Pode-se dizer, portanto, que a loucura é temporal
e espacial, e como relata o autor, seu registro se relaciona com a relação de poder e o incômodo
causado pelos desarrazoados. E se os desarrazoados incomodam, o internamento é uma forma de
silenciá-los ou reprimi-los, com o objetivo de conduzi-los de volta à razão através da coerção
moral:
É evidente que o internamento, em suas formas primitivas, funcionou como um
mecanismo social (...). Daí supor que o sentido do internamento se esgota numa
obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe
são heterogêneos ou nocivos (...) o internamento seria assim a eliminação
espontânea dos “a-sociais” .
74
Foucault estabeleceu o século XIX como determinante na concepção de uma nova
relação do homem com a loucura, onde esta representava a perda da verdade, fornecendo
elementos para se questionar esta “verdade”. Que verdade é esta? Por quem foi estabelecida?
Pela ciência? Estudar o desenvolvimento das ciências, como proposta epistemológica, significa
refletir sobre a sua dimensão histórica, e sobre a produção de conhecimentos científicos,
conforme Machado:
72
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p. 410.
73
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007
74
Ibidem, p. 79.
37
Para a epistemologia, a ciência, discurso normatizado e normativo, é o lugar
próprio do conhecimento e da verdade e, como tal, é instauradora de
racionalidade. E se a razão tem uma história, a história das ciências é capaz
de demonstrá-lo e indicar o seu itinerário. Daí a exigência de criticidade que
confere à história das ciências sua dimensão propriamente filosófica. O que não
significa, de modo algum, que ela seja uma crítica da ciência; ela é, ao contrário,
uma crítica do negativo da razão: seu objetivo é analisar a superação dos
obstáculos, o desaparecimento dos preconceitos, o abandono dos mitos, o que
torna possível o progressivo acesso à racionalidade...
75
A racionalidade moderna acredita que a ciência é capaz de revelar verdades,
separando homem, natureza e divindade, e busca não apenas desvendar o mundo, mas também
ordená-lo, através da intervenção humana. Na opinião de LUZ, o conhecimento científico é o
instrumento que permite ao ser humano se apropriar da natureza para acumular riquezas e poder.
A ciência, ao dessacralizar a vida, transforma o homem em objeto, retirando-lhe a subjetividade.
A ciência prevalece sobre as outras formas de expressão humanas, que, de acordo com LUZ:...“as
artes, a política, a moral, a filosofia, a religião, serão reordenadas social e epistemologicamente
pela razão científica”.
76
O discurso científico, utilizado como ferramenta política e ideológica,
institui novas formas de criar ou validar verdades. Verdades que se constituem como fator de
exclusão e controle, negando a possibilidade dos questionamentos, tornando-se assim
instrumento de dominação e poder.
A ciência possui como característica fundamental aspirar à objetividade, o que pode
dotá-la de um discurso de detentora da verdade absoluta. Ao tornar-se objeto de ciência, o sujeito
é passível de intervenção, transformação, modelação, produção. Ao desconsiderar a subjetividade
humana e reduzi-lo à condição de objeto, a ciência encarregou-se de legitimar atrocidades
cometidas contra seres humanos. A razão se contrapõe à desrazão. Tudo o que não se encaixa nas
normas, que está fora dos padrões estabelecidos por essa “razão”, é considerado desrazão, deve
ser neutralizado ou eliminado. Estas idéias persistiram até o início do século XX, como podemos
comprovar em várias situações.
75
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1981, p. 9.
76
LUZ, Madel T. Natural, Racional, Social – Razão Médica e Racionalidade Científica Moderna, Rio de Janeiro:
Editora Campus, 1988, p. 36.
38
1.8 O Conhecimento Científico e o Poder
Numa leitura de Foucault, Machado aponta o aspecto inerente à existência e
transformações dos saberes, consideradas peças de relações de poder. Poder esse ressaltado como
importante fator constituinte e explicativo da constituição dos saberes. Machado sugere que
Foucault, ao falar em genealogia do poder, estaria analisando historicamente as condições
políticas de possibilidade dos discursos. E coloca que
...as condições de possibilidade políticas de saberes específicos, como a
medicina e a psiquiatria, podem ser encontradas, não por uma relação direta com
o Estado, considerado como um aparelho central e exclusivo de poder, mas por
um articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena
área de ação....
77
Refere-se aqui ao micro-poder considerado por Foucault um tipo de poder específico,
tomando formas mais regionais e concretas. Delineia-se, portanto, na visão foucaultiana, a idéia
de uma medicina utilizando seu conhecimento científico para garantir a efetividade do Estado,
através de técnicas de dominação nos diversos espaços institucionais: família, escola, hospital,
hospício, prisão, fábrica, etc., considerados focos de doenças e desordem que ameaçam o todo
urbano. Ao se propor a orientar a ação transformadora da sociedade para conduzi-la à civilização,
a medicina assumiu um poder que atingia o corpo e a vida cotidiana. Diagnosticar e combater a
periculosidade refletia a “desordem urbana heterogênea”, e o desejo médico de reorganizar os
contatos humanos, neutralizando assim os efeitos do contágio. Essas redes de relações permitiam
o exercício de poder travestido de democracia e civilização, descentralizando o poder do Estado
para outros espaços, apresentando “mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão
intimamente ligados com a produção de determinados saberes sobre o criminoso, a sexualidade, a
doença, a loucura, etc.”
78
O hospital psiquiátrico ( público), portanto, era o próprio Estado, que
garantia e legalizava as internações. Estas por sua vez funcionavam como normatizador social,
recluíndo, segregando, mutilando a subjetividade.
77
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1981, p. 189.
78
Ibidem, p. 191
39
Situando o poder em outros lugares na estrutura social, além do Estado, surgiam assim
as práticas ou relações de poder, rede de dispositivos que ultrapassava limites, se estabelecendo
não apenas pela violência, mas também pelo poder disciplinador. Essa rede relações sociais e de
poder é fator determinante na contextualização da loucura. Machado afirma que “saber e poder
se implicam mutuamente: não realação de poder sem constituição de um campo do saber,
como também todo saber constitui novas relações de poder”.
79
Entende-se que o exercício do
poder é lugar de formação do saber, e que todo saber assegura o exercício do poder. A medicina,
especificamente a psiquiatria, garantiu ao Estado condições propícias para desenvolver o projeto
de reordenação social daquela época, através do controle e regulação do comportamento.
Ao falar da relação de poder entre a medicina e os loucos, Celestino faz uma ressalva:
Não se trata aqui de um poder represessivo que reduziu a loucura ao silêncio de
forma asbitrária através da instrumentalização da ciência psqiuiátrica pelo
Estado com o objetivo maquiavélico de dominar todo o corpo social. Trata-se
antes de uma ciência cujo discurso se firma como verdade justamente porque
científico e que cabe aos propósitos políticos de ordenamento como uma solução
à desordem, justamente porque científica.
80
1.9 A Representação Social da Loucura
Analisar as diferentes concepções de loucura e sua influência na prática dos médicos
pressupõe a investigação das representações sociais da loucura e da doença mental em nossa
sociedade. Os saberes que subsidiaram as práticas profissionais levou os médicos ora a encontros,
ora a desencontros entre teoria e prática. A loucura suscita questões psiquiátricas, sociológicas,
psicológicas, filosóficas e políticas, o que torna difícil adotar um posicionamento neutro quando
se esclarece problemas que lhe dizem respeito, pois a loucura apresenta-se como um problema
social. A loucura e o tratamento ao louco sofreram diversas influências.
Houve uma expansão mundial das idéias eugenistas, que ao serem incorporadas, se
tornou uma forte arma de controle social e político, balizadas pelo pensamento médico e
científico da época. Existente no Brasil desde o século XIX a teoria da degenerescência, era
79
MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: a trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1981, p. 199.
80
CELESTINO, Kesia Tavares. Loucos do sertão: uma abordagem da percepção da loucura no Norte de Minas
Gerais nas décadas de 1950-1980. Monografia – Unimontes – Montes Claros, 2007, p. 24.
40
aceita pelos médicos e alguns intelectuais, que entendiam que a miscigenação impedia o
desenvolvimento do país. Um grupo de médicos de Salvador, conhecido como Escola Nina
Rodrigues, acreditava que a mistura de raças proporcionava a loucura, a criminalidade e a
doença
81
. Destaca-se ainda o pensamento eugenista de Kehl
82
na sociedade brasileira, que
pensava em raça, e propunha a consolidação da eugenia no Brasil. Embora as idéias higienistas e
eugênicas tenham permeado o inconsciente e as práticas dos médicos brasileiros, entende-se que
a razão para a segregação do louco não era apenas a idéia de purificação da raça, mas sim a
ordem social.
No Brasil, o “cuidado” com o louco não fazia parte do contexto da sociedade. Os
doentes considerados inúteis, necessitados, incuráveis, incômodos para a família, arruaceiros,
bêbados, etc., eram “depositados” em manicômios e, na maioria das vezes condenados a acabar
seus dias de vida nesta condição. Assim, a ciência ignora a subjetividade, transformando o ser
humano em objeto da ciência: passível de intervenção, transformação e modelação. A razão é um
poderoso instrumento que permite explicar e transformar a realidade. Porém, a apropriação
indevida ou o uso inadequado do conhecimento científico pode induzir a uma fragmentação do
sujeito. A razão desprovida da subjetividade leva a produção de verdades, o que não é o objetivo
das ciências. A ciência se caracteriza por questionar a verdade ao testar hipóteses.
Machado afirma que a medicina do século XX se delineou como um projeto de
medicalização da sociedade, assumindo o papel de controle da vida social, de forma autoritária,
tomando medidas médicas e políticas. Essa atuação marca o início da medicina social, e a higiene
pública se apresenta como uma de suas faces. Nesta época, havia uma preocupação exacerbada
com a limpeza e a ordem: “a medicina social intervém no sentido de destruir as causas das
doenças por uma ação positiva de regeneração, transformação do espaço social.”
83
A
transformação política e econômica do Brasil no século XIX se estende à área médica,
caracterizando, segundo o autor, a entrada da medicina na sociedade e seu apoio científico ao
Estado, possibilitando o exercício do poder. O médico começa a ocupar espaço dentro do
81
DIWAN, Pietra. Raça Pura. Uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007.
82
Nota: Renato Kehl, médico, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, pensava a questão nacional,
sob a perspectiva da cura e da regeneração
. Liderou a luta pela consolidação das idéias eugenistas no Brasil,
escreveu obras sobre o tema, entre elas A cura da fealdade(1923), Lições de Eugenia, tido como o seu livro
síntese.(1929), Sexo e Civilização(1933), Typos vulgares(1946), e dirigiu em 1920 a Comissão Central Brasileira de
Eugenia, no Rio de Janeiro.
83
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p. 96.
41
aparelho do estado, papel identificado também no nazismo: a medicina se organiza como um
poder político. O autor pontua que essa medicina política se coloca ao lado da democracia (esta
num sentido normalizado), numa ação de controle – a polícia-médica:
Intervir na sociedade é policiar tudo aquilo que pode ser causador da doença; é
destruir componentes do espaço social perigosos, porque causadores de
desordem médica; é transformar a desordem em ordem, através de um trabalho
contínuo e planificado de vigilância e controle da vida social.
84
Ao dizer que a Psiquiatria se propõe a conduzir os destinos da loucura, Cunha cita uma
definição desta ciência, encontrada em suas pesquisas: “... ciência imensa, onde o médico
consciencioso tem muito que aprender, para sair com vitória dos óbices... de cuja solução
depende muitas vezes a honra, o repouso das famílias, o interesse, enfim, aos mais imediatos da
sociedade”.
85
A autora sugere duplo papel dos hospícios: resolver os problemas de organização
do espaço urbano, atendendo necessidades políticas e governamentais de disciplinarização e
controle, como também os problemas para as famílias. O louco, que durante muito tempo não
tinha um espaço definido, sendo tratado como os desordeiros e marginais, encontra seu lugar no
hospício, que garante a continuidade do tratamento desumano. Os que a então viviam em
liberdade, convivendo com as outras pessoas, tornam-se alvo da medicina psiquiátrica, que ao
classificar a loucura como conduta anormal, desviante, busca a sua regulação com um caráter
moral. Cabia exclusivamente à Psiquiatria a designação da loucura. É o confronto com a razão.
As políticas de saúde mental vieram reformular os dispositivos institucionais,
adaptando-os aos novos propósitos da eugenização. A relativização da loucura exigia um quadro
institucional compatível com seus objetivos. Numa visão da competência médica da época, se a
loucura funciona como metáfora da desordem social, a Psiquiatria, seu oposto, é a possibilidade
da ordem e da estabilidade, constata Cunha.
86
A Psiquiatria pretendeu, portanto, ajustar o indivíduo à sua função social. Como os
sintomas da loucura eram situacionais, em cada contexto histórico, o louco, tinha uma identidade.
O trabalho era considerado não mais como fator de recuperação e moralização do louco, mas a
8484
MACHADO, Roberto et al. Danação da Norma: a medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1985, p. 258.
85
Relatório dos trabalhos acadêmicos de 30 de junho de 1878 a 30 de junho de 1879. in Annaes Brasilienses de
Medicina, tomo XXXI, janeiro a março de 1880, nº. 3, p. 412. (citado por CUNHA, 1986, p. 41)
86
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo – Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
42
própria lógica em torno da qual a sociedade deve estar organizada, moldando e adestrando corpos
e mentes. A relativização da loucura exigia um quadro institucional compatível com seus
objetivos. Era preciso perguntar quais eram os interesses vigentes em determinado momento para
então a psiquiatria se lançar a construir os sintomas do louco.
As práticas e representações que as sociedades elaboram em torno da loucura
são evocadas em sua natureza histórica e transitória. São remetidas a processos
sociais que condicionam o domínio do patológico a determinações que
transcendem o plano puramente individual.
87
1.10 A Subjetividade e o Saber
A Escola de Frankfurt (1920- 1939) fazia uma leitura crítica da sociedade. Teóricos
como Teodor Adorno, Walter Benjamin, Jurgen Habermas, Horkheimer fizeram uma avaliação
dos processos sociais contemporâneos como o nazismo, fascismo, stalinismo, capitalismo. Os
frankfurtianos questionam as ditas certezas da razão, vendo de forma pessimista os movimentos
revolucionários, que em seu entendimento, levavam à perda da liberdade e do sentido, a um
empobrecimento do ser humano. Combatem a neutralidade da ciência, criticando o
desvanecimento do indivíduo. E assim firmam um compromisso ético e político, lutar contra a
neutralidade do sujeito histórico.
Ao falar sobre educação, Adorno
88
utiliza o termo “coisificação da consciência”. Para
o autor, a técnica ocupa um lugar em nossa sociedade capaz de gerar pessoas tecnológicas, o que
é positivo no sentido que são menos influenciáveis, e negativo quando esta técnica torna-se um
fim, deixando de lado o sujeito, os seus desejos, as identificações e desidentificações. Sua
preocupação que Auschwitz, não se repita, fundamenta sua discussão sobre a educação que a
relação com saber é determinante: “... é certo que todas as épocas produzem as personalidades de
que necessitam socialmente”.
89
Na sua análise sobre a personalidade de pessoas capazes de atos
87
RESENDE, H. Política de saúde mental no Brasil: Uma visão histórica. In: TUNDIS, S. & COSTA, N. (org).
Cidadania e Loucura: Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes Editora, 1997, p. 10.
88
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
89
Ibidem, p. 132
43
tão cruéis, afirma que a frieza e a incapacidade de identificação tornaram possível a barbárie
nazista:
Se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que
acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantém vínculos
estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então
Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceitado.
90
Se entendida corretamente a intenção de Adorno, ele aponta um aspecto a ser
considerado: o uso do saber vincula-se à apropriação que o sujeito faz do mundo, é influenciado
pelas relações sociais estabelecidas. Insinua-se, portanto uma questão: se os médicos brasileiros
tivessem sido mais perspicazes em sua avaliação da medicina alemã, não a teriam tomado como
modelo. Se no momento de sua constituição no Brasil, a psiquiatria não tivesse se sucumbido às
idéias higienistas e eugênicas, talvez hoje não houvesse o registro de uma história cujo percurso
foi marcado pelo sofrimento. Neste caso, vale lembrar que a ciência produz um tipo de
conhecimento passível de contestações, que não tem característica de verdade absoluta. E que a
própria Epistemologia possibilita um estudo crítico sobre os conhecimentos construídos pelas
ciências.
90
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 134.
44
CAPÍTULO II: AS INSTITUIÇÕES PSIQUIÁTRICAS EM MINAS GERAIS
“O hospício é construído para controlar e reprimir os trabalhadores que
perderam a capacidade de responder aos interesses capitalistas de produção.”
Franco Basaglia
2.1 Hospital Colônia de Barbacena: Sucursal do Inferno
Em 1903 foi criado o Hospital Psiquiátrico de Barbacena – primeiro hospício de Minas
Gerais. Para Magro Filho (1992), uma das justificativas usadas no início do século XX para a
criação dos hospícios era o sucessivo crescimento no número de alienados. Os loucos
considerados perigosos a si mesmo e às outras pessoas, deveriam ser vigiados e disciplinados,
cabendo ao Estado intervir para garantir a ordem e a segurança à sociedade: “Para se defender,
portanto, contra os perigos com que a ameaça à loucura de um de seus membros, a sociedade
instituiu o asilo de alienados, com que ela acena a esses infelizes, não como cárcere, mas como
promessa de cura às desordens da mentalidade.”
91
A Comissão de Saúde Pública, por entender
como uma questão social a necessidade de criação de um hospício no estado, apresentou à
Câmara dos Deputados, em 1900, o Projeto N°. 49, para criação da Assistência aos Alienados no
Estado de Minas Gerais. Aprovado em 16 de agosto deeste mesmo ano, o projeto tornou-se a Lei
290, que apresenta entre seus artigos:
Art. Primeiro: Fica creada no Estado de Minas Gerais a Assistência de
Alienados.
Art. Segundo: Ficam na dependência da Assistência todos os estebelecimentos
que venham a ser auxiliados pelo Estado para receberem alienados e portanto
sujeitos so mesmo regime.
Art. Terceiro No prédio que for destinado ao Hospício haverá, além das
acomoda,cões precisas, um pavilhão para observa,cão dos indivíduos suspeitos,
um gabinete electro terápico e officinas...
92
Segundo Magro Filho, o hospício nasceu para preservar a sociedade. Assim,
Barbacena foi escolhida para sediar o Hospital Psiquiátrico de Minas Gerais, através do Decreto
1.579 A, em 21 de fevereiro de 1903, pelo Senador Joaquim Dutra, que se tornou seu diretor. Na
opinião do autor, a criação do hospital e a escolha do local baseiam-se em dois movimentos: “em
91
MINAS GERAIS, 1900 b, citado por MAGRO FILHO, João Batista. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-
1964. Belo Horizonte: COOPMED/Editora UFMG, 1992, p.26.
92
Ibidem, p. 29.
45
nível estadual, significou centralizar os recursos em um local, um hospital: por outro lado,
em nível nacional, o próprio Estado passou a arcar com seus problemas sanitários, o que vinha de
encontro com a postura descentralizadora do governo republicano.”
93
Estas idéias, juntamente
com a necessidade de ordenar a sociedade, tentavam justificar o investimento. Outro fator que
influenciou a escolha de Barbacena para instalação do Hospital Psiquiátrico, aponta Magro Filho,
relaciona-se aos interesses políticos. Ao perder a disputa política para Belo Horizonte de sediar a
capital mineira, Barbacena ganha como “prêmio de consolação,” o hospício.
94
Inaugurado em 1903, o hospital inicialmente recebia apenas homens, tendo em sua
primeira turma, 15 internos. Apenas a partir de 1905 é criada a ala feminina. O hospital recebia
pacientes particulares (pagantes) e pacientes não pagantes, sob responsabilidade do Estado, e o
tratamento entre eles era diferenciado, assevera Magro Filho. Como exemplo, o autor citar o
tratamento com laborterapia, entre outras técnicas:
A conhecida laborterapia era usada na época como parte do tratamento da
loucura, na crença de que era necessário evitar a ociosidade, a qual era
perniciosa ao espírito do louco. Por meio do trabalho, retirava-se o louco de sua
condição de criatura inútil, possibilitando a canalização da sua agressividade e,
conseqüentemente, a cura. Dessa forma, os pacientes pobres e considerados
indigentes eram forçados a trabalhos monótonos e repetitivos, sem remuneração,
e faziam trabalhos pesados na lavoura, na área do hospital, e na confecção de
tijolos, bonecos, tapetes e outros produtos que eram vendidos ou consumidos
internamente.
95
Entende-se, portanto, que havia um preconceito, uma separação entre internos ricos e
pobres. O número de internos cresceu, e as verbas começaram a ser insuficientes para cobrir os
custos da instituição. Para resolver a questão financeira, foi criado um campo anexo ao hospital, a
colônia, onde os internos, indigentes ou não pagantes, foram trabalhar. A princípio, pela
necessidade de suprir as dificuldades da instituição, mais tarde em favor do Estado. A colônia
passou a ser uma fonte de renda para o Estado.
Em 1904 foi feita uma adaptação no prédio do antigo Sanatório para receber as
mulheres. Aumentava a demanda por internações de pacientes que se encontrava em hospitais de
outros estados ou mesmo nas cadeias de Minas Gerais. Já em 1905 surgem reclamações sobre as
93
MAGRO FILHO, João Batista. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo Horizonte:
OOPMED/Editora UFMG, 1992, p. 28.
94
Ibidem.
95
http://sademarat.blogspot.com/2008/06/mostra-memria-da-loucura-e-exposio.html
46
condições de vida dos internos em Barbacena, assegura Magro Filho (1992). O número de
internos se elevava, as despesas aumentavam, surgindo assim, a questão da superlotação do
manicômio de Barbacena, e o cenário que se via era de pacientes dormindo no chão (pois as
camas haviam sido substituídas por feno dentro dos pavilhões) e presos nas celas em condições
precárias. Silva
96
pontua que os pacientes exalavam um mau cheiro que atraía urubus muitas
vezes, e que muitas vezes, a higiene era feita de forma coletiva, quando se utilizava uma
mangueira de água fria, lavando vários ao mesmo tempo. A autora questiona o tratamento
psiquiátrico utilizado, ressaltando o desrespeito aos pacientes e a sua perda de identidade, pois ao
entrar nestas instituições, retiravam-lhe seus objetos pessoais e substituíam seus hábitos por
normas e padrões. O hospital, que deveria ser uma referência no tratamento mental, chegou a
contar com 3.500 pessoas, quando inicialmente recebia 200 pacientes, e o tratamento era muito
mais voltado ao controle do que a cura de doenças.
Em 1920, o Presidente Artur Bernardes comentou que o atendimento do Hospital
Colônia de Barbacena deixava a desejar, e preocupado com a segurança pública, afirmou que
naquele hospício não havia “capacidade para o número crescente de loucos de todo o gênero,
cuja guarda incumbe ao poder público.”
97
Propunha-se portanto, a construção do manicômio
penal para acolher os loucos criminosos.
Em 16 de setembro de 1920 foi aprovada pelo Congresso Nacional, uma Lei que
definia uma reforma na assistência aos alienados, em Minas Gerais. Essa Lei determinava a
criação de um asilo central e uma colônia em Barbacena, e um pavilhão de observação em Belo
Horizonte. A capital mineira crescia muito, e como tinha uma Faculdade de Medicina, acabou
ganhando um hospital psiquiátrico em 1922, o Instituto de Neuropsiquiatria, mais tarde
denominado, Instituto Raul Soares. Segundo Magro Filho, o regulamento de 1922 trouxe ainda
uma proposta de descentralização da assistência aos alienados, e os mesmos deveriam ser
atendidos no hospital mais próximo de sua região, estabelecendo assim o Hospital Colônia de
Barbacena e o Instituto Raul Soares, em Belo Horizonte.
98
96
SILVA, Mary Cristina Barros e. Colônia do terror. In: Revista Nossa História, Agosto 2006.
97
MINAS GERAIS, 1920 a. (apud MAGRO FILHO, João Batista. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-
1964. Belo Horizonte: COOPMED/Editora UFMG, 1992, p. 54).
98
MAGRO FILHO, João Batista. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo Horizonte: COOPMED/
Editora UFMG, 1992.
47
Mais tarde, para resolver a questão dessa superlotação, o governo autorizou a abertura
de novos hospitais psiquiátricos: o Manicômio Judiciário de Barbacena, (ainda em
funcionamento) e o Hospital Psiquiátrico de Oliveira (extinto), inaugurados em 1929.
Criar hospitais, colônias, escolas, manicômios, cadeias e hospitais psiquiátricos
é um movimento que se baseia tanto nas concepções morais de então como nos
determinantes econômicos da instalação de uma economia capitalista, ou seja, é
compor o espaço da exclusão sob uma ordem de conquista! A cada ano mais e
mais internações. A cada ano, mais e mais mortes sob o mesmo argumento de
tratamento que, na verdade, era mais uma concepção moralista e autoritária de
dominação social.
99
Várias denúncias foram feitas, sobre o tratamento desumano no Hospital Colônia de
Barbacena, através de jornais e revistas da época. O jornal Diário da Tarde, em 1961, denunciou
os horrores do Hospital Colônia de Barbacena, denominando-o “sucursal do inferno”. Na década
de 70, Helvécio Ratton, cineasta mineiro, lançou o documentário: “Em nome da razão”,
enfatizando a função social do manicômio e a quem ele serve e as formas de tratamento (ou de
tortura) praticadas naquela instituição. O jornalista Hiram Firmino, escreveu
uma série de
reportagens no Jornal Estado de Minas, intitulada:
"Os porões da loucura", denunciando a
violência e a forma desumana de tratamento aos doentes no Hospital Colônia de Barbacena.
As
denúncias, segundo Magro Filho, repercutiram na sociedade mineira, que teve de lidar com a
questão da assistência psiquiátrica em Minas Gerais. Tudo isso provocou atritos políticos: “e a
questão da saúde mental como um problema da assistência sanitária passa a fazer parte das
preocupações da sociedade a partir dos fatos relatados pela imprensa”.
100
2.2 O Manicômio Judiciário de Barbacena
Sérgio Carrara
101
, em Crime e Loucura”, percebe a loucura como linguagem para fins
de controle social, elaborado nos conceitos crime-doença e crime-atributo, a partir das teorias da
99
Ibidem, p77/78.
100
Ibidem, p. 137
101
CARRARA, Sérgio (apud FIGUEIREDO, Gabriel. Sérgio Carrara. Crime e loucura – o aparecimento do
manicômio judiciário na passagem do século. Rev. Antropologia. v.41 n.2 São Paulo 1998).
48
psiquiatria alienista francesa de Esquirol e Morel, e da antropologia criminal italiana de Ferri e
Lombroso.
102
Assim, o autor, diz que psiquiatras alienistas brasileiros, influenciados por essas
idéias, discutiram o tema com a medicina legal e o Direito penal, o que resultou no surgimento
oficial do manicômio judiciário no Brasil, em 1903. Carrara considera este evento como “um
monumento ao triunfo da psiquiatria".
103
Segundo Figueiredo, Carrara, aponta uma correlação de forças na psiquiatria brasileira,
na qual prevaleceu a posição de Teixeira Brandão, separar a convivência do louco comum com o
louco criminoso; considerando assim as degenerações, entendidas como fator histórico social que
influenciou a criação do manicômio judiciário no país. E ainda, a relação morelombrosiana que
impactou a psiquiatria brasileira, que se via diante de uma questão, sem saber para onde mandar
os criminosos natos ou degenerados. “Na sua incapacidade de dar conta sozinha do problema, a
nascente especialidade médica chamou, literalmente, a polícia...”
104
comenta Gabriel Figueiredo,
sugerindo que a psiquiatria não sabia o que fazer com os loucos criminosos.
O manicômio judiciário de Minas Gerais foi criado pelo Decreto Nº. 7471 de 31 de
janeiro de 1927, inaugurado em 15 de junho de 1929; seu primeiro nome foi: “Manicômio
Judiciário de Barbacena”, o segundo, por força do Decreto Nº. 5.021, de 29 de maio de 1956,
“Manicômio Judiciário Jorge Vaz”
105
. Em 1987, passou a se chamar Hospital Psiquiátrico e
Judiciário Jorge Vaz, diretamente subordinado à Superintendência de Articulação Institucional e
Gestão de Vagas SAIGV. Sua capacidade atual é de 161 homens e 54 mulheres, nos dois
prédios que compõem a Unidade. Para ele, são encaminhados pacientes portadores de doença
mental, destinados ao cumprimento de Medidas de Segurança, Tratamentos Psiquiátricos e a
Exames Periciais específicos de Sanidade Mental, de Cessação de Periculosidade ou de
Dependência Toxicológica, os indiciados ou já condenados pela Justiça Mineira.
O Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz de Barbacena recebeu muitas mulheres
do Norte de Minas desde o início de suas atividades, tanto para cumprir medida de segurança em
102
Nota: Jean Étienne Dominique Esquirol e Benédicte Augustin Morel: teoria das monomanias e da degeneração
Enrico Ferri, Cesare Lombroso e Rafaelle Garofalo: Lombroso - teoria que levavam em conta as características
somáticas para indicar um criminoso nato; Ferri – considerava fatores econômicos e sociais no estudo dos
criminosos.
103
FIGUEIREDO, Gabriel. Sérgio Carrara. Crime e loucura – o aparecimento do manicômio judiciário na passagem
do século. Rev. Antropologia. v.41 n.2 São Paulo 1998, p. 1.
104
Ibidem,, p. 5.
105
Nota: em homenagem ao seu primeiro Diretor, Dr. Jorge de Paula Vaz.
49
razão de um crime cometido por inimputabilidade
106
como para exames de sanidade mental. Este
exame é utilizado ainda hoje para instrução de Processos Crimes onde haja suspeita de doença
mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado, no indiciado.
2.3 Hospitais Psiquiátricos Públicos e Privados em Minas Gerais
Dentro de uma gica que criava mais instituições para que se internassem os
excluídos, o Governo investiu em hospitais públicos para “cuidar” dos alienados. A assinatura de
acordos pelo Governo Estadual de Minas Gerais para a construção de estabelecimentos
psiquiátricos, através do Decreto 8.550 e outro para aplicação de crédito destinado a manutenção
de serviços psiquiátricos em Unidades hospitalares mineiras, foi noticiada pelo Jornal Diário de
Montes Claros
107
, em 1963. A matéria ressaltava também o interesse das pessoas pela criação de
uma instituição psiquiátrica na região norte-mineira. Segundo o jornal, o acordo assinado entre o
governo mineiro e o Ministério da Saúde, “através do Serviço Nacional de Doenças Mentais”,
previa a construção de hospitais psiquiátricos no Estado e ainda a aplicação de crédito para a
manutenção de serviços psiquiátricos, onde tanto o Estado de Minas Gerais quanto o Ministério
da Saúde contribuiriam financeiramente.
No período de 1930 a 1964, funcionavam em Minas Gerais os seguintes hospitais:
Hospital Colônia de Barbacena, desde 1903; Instituto Raul Soares, inaugurado em 1922, como
Instituto de Neuropsiquiatria; Hospital Psiquiátrico de Oliveira, inaugurado em 1924; Hospital de
Neuropsiquiatria Infantil, desde 1947. Com a superlotação de todos eles, inaugura-se em 1962,
em Belo Horizonte, o Hospital Galba Veloso
108
. Além, do Manicômio Judiciário de Barbacena, o
Jorge Vaz, inaugurado em 1929, para receber os loucos que tinham cometido crimes. Mesmo
assim, o hospício de Barbacena continuava num processo de decadência. Com irregularidades,
denunciadas até mesmo pelos diretores: superlotação de 300 a 400 % (dados apresentados por
106
Inimputabilidade: É inimputável todo indivíduo que, em virtude de doença mental, de desenvolvimento
incompleto ou retardado ou por embriagues completa e fortuita, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente
incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com tal entendimento”. (CPB, art.
26).
107
Diário de Montes Claros, 20 de novembro de 1963, p. 2
108
Ibidem, p. 97.
50
MAGRO FILHO, 1992), os pavilhões em estado precário, expondo os internos a doenças e
diversos outros riscos, além da falta de tratamento. A dificuldade das instituições públicas em
atender toda a demanda pela internação abriu precedentes para criação de clínicas privadas.
Autorizadas por regulamentos criados pelo próprio governo para normatizar o
atendimento aos alienados, surgiram as casas de saúde particulares. Dividindo-se em: Casas de
saúde para tratamento de alienados e Casas particulares de assistência hetero-familiar, afirma
Magro Filho (1992). Os hospitais particulares também enfrentaram problemas financeiros, assim
como os hospitais públicos, e muitos receberam subvenção do Governo para que conseguissem se
manter, através de quotas lotéricas, contribuições de associações, entre outras Em 1930, o
Governo encerrou as subvenções aos hospitais particulares, deixando-os em situação financeira
difícil. Em 1937, estabeleceram-se novamente as subvenções, como critério do leito-dia ao invés
de quota fixa, mas já havia instalado uma crise na área hospitalar. O número de hospitais
particulares era muito superior ao de hospitais públicos. E na opinião de Alvim (apud MAGRO
FILHO, 1992), essas casas de saúde revelavam “desde o começo de sua existência, uma situação
precária e na verdade existia como casas tipicamente comerciais.”
109
Várias clínicas privadas
surgiram, oferecendo assistência complementar ao serviço público, porém, no entendimento de
Magro Filho, elas traziam a possibilidade do tratamento mental numa perspectiva capitalista, do
lucro. Em sua opinião, o setor médico em Minas Gerais ganhou mais força nas décadas de 40 e
50, quando se organizou, através da criação de associações, realização de congressos, defesa dos
interesses da categoria e exercendo grande influência na política mineira.
2.4 O Encantado Hospital Psiquiátrico do Norte de Minas
A idéia de criação de um hospital psiquiátrico em Montes Claros permeava o
pensamento de médicos, políticos e de grande parte da população desde a primeira metade do
século XX. E se tornou um desejo a partir dos anos 50, com o crescimento da população, e
principalmente, com o surgimento da mendicância, num momento em que a cidade passava por
109
ALVIM. Revista da Associação Médica de Minas Gerais, 119-153,( apud MAGRO FILHO, João Batista. A
tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo Horizonte: COOPMED/Editora UFMG, 1992,p. 107)
51
um período de ordenamento e desenvolvimento, iniciado ainda na década de 20, com a chegada
da estrada de ferro. Mary Cristina Barros e Silva assevera que a demanda pela construção de
hospitais psiquiátricos, foi favorecida pelo modelo capitalista, que impunha uma submissão ao
novo modelo econômico implantado nas cidades que passavam pelo processo de urbanização e
industrialização. As pessoas que não se adaptavam ao sistema produtivo, eram consideradas
“desviantes”, ameaçavam a proposta de crescimento e desenvolvimento. Como elas ficavam a
margem da sociedade representavam algo fora da ordem, um impedimento ao progresso. Salles,
também analisa a demanda de criação dos hospícios por este ângulo, e afirma que “era gico o
crescimento da cidade, o aumento da população, acompanhados da impressionante incidência de
doenças nervosas fato constatado em todos os países esgotaram a capacidade de atendimento
do antigo hospital”
110
.
As notícias da imprensa local permitem estabelecer uma correlação, entre as
justificativas médicas, políticas e sociais para a criação do primeiro hospital psiquiátrico de
Montes Claros, com o desenvolvimento da região. Percebe-se que havia um esforço de todos no
sentido de criar esse hospital, e desde o início da década de 50, prometido pelo Governo do
Estado o “encantado hospital”, cuja expressão apareceu como titulo de uma reportagem do Jornal
do Norte já na década de 60, falando sobre o hospital que não ficava pronto:
Ninguém ignora que a falta de um hospital neuropsiquiátrico em Montes Claros
constitui um dos mais graves problemas da região. Não se compreendeu até hoje
porque o governo federal abandonou as obras que através do Ministério da
Saúde e em convênio com ao Prefeitura iniciou há mais de 20 anos nesta cidade.
Fala-se que foi o desvio de verbas o que motivou a paralisação da construção do
hospital (...) Felizmente nem tudo está perdido. A região poderá contar agora
com aquele nosocômio se alguma coisa depender do atual Secretaria de Saúde
de Minas, deputado Teófilo Pires, que desde o seu tempo na Assembléia
Legislativa, duas legislaturas, vem lutando incansavelmente pelo Hospital
Psiquiátrico, por reconhecer a importância da Obra. Por outro lado, justiça
também seja feita ao médico Áflio Mendes de Aguiar, outro que muito lutou e
vem lutando pelo Hospital Psiquiátrico (...) Esperemos assim, que o hospital
psiquiátrico de montes Claros possa “desencantar” desta vez e funcionar dentro
de breve tempo para atendimento a uma das maiores necessidades do Norte de
Minas no setor de saúde.
111
110
SALLES, Pedro. História da Medicina no Brasil. (apud SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da
loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008, p. 31)
111
Jornal do Norte, 22 de agosto de 1965, p. 3.
52
O Jornal Gazeta do Norte noticiou em 04/06/1950 a preocupação do Deputado Milton
Prates com os problemas da cidade, inclusive sobre os males físicos e mentais que perseguiam a
região. Relatou a visita do Prof. Adauto Botelho, psiquiatra de renome nacional, acompanhado do
Dr. Baeta Viana, Diretor da Saúde Pública do Estado, a fim de estudar o melhor local para
construção de um hospital para alienados na cidade. Uma vez que, Montes Claros era um “centro
de convergência de toda a região, e onde se verifica a cada instante, o triste espetáculo de loucos
ou semi-loucos a perambular por nossas ruas, forçando medidas policiais de reclusão, em
ambiente desaconselhável”
112
. O desejo de um hospício que pudesse colocar fim aos “graves
problemas” causados pelos loucos, e que de certa forma impedia ou atrapalhava o
desenvolvimento e o progresso da cidade, era comum aos políticos, médicos e por que não dizer,
a grande parte da população de Montes Claros. Diante da possibilidade da criação de tal hospital,
não se mediu esforços para a efetivação deste sonho.
Sob o título: “Assistência Psiquiátrica em Montes Claros”, o Dr. Áflio Mendes de
Aguiar,
113
psiquiatra, assina uma matéria na primeira página do Jornal Gazeta do Norte,
publicado no dia 11 do mês de junho de 1950, sobre a criação de um hospital psiquiátrico para a
região. As palavras do médico ilustram a importância atribuída aos “problemas” criados pelos
loucos na cidade e ainda a relação da demanda de um hospício com o desenvolvimento regional
no período:
Entre os múltiplos problemas de um povo, nenhum deles tem a antissonância e a
primazia que desperta o da saúde e bem estar da população. A incapacidade
física e mental a que predispõe a doença inutiliza o indivíduo para as realizações
primordiais à vida: TRABALHO, AMOR, PROGRESSO. Não nos é possível
compreender a vida sem equilíbrio somático ou físico, cuja ausência predispõe
por vezes a desorganização mental. O mundo pertence a aqueles que conduzem
consigo o equilíbrio do ‘Men Sana In Corpore Sano’, dada a incompatibilidade
existente entre um corpo são em mente doente e mente doente em corpo são.
Para viver e dominar é preciso a coesão destas duas forças dirigidas no mesmo
sentido, fora disto é vegetar. Compreendendo os governos dinâmicos e
inteligentes, esta necessidade fundamental fazem edificar em seus mandatos, sob
a égide de homens discernidos, - hospitais, centros de saúde, isolamentos,
serviços profiláticos, etc., no sentido de amparo decisivo as populações
112
DPDOR/ AFGC, Jornal Gazeta do Norte, 04 de junho de 1950, p. 01
113
Nota: Aflio Mendes de Aguiar, mineiro de Porteirinha, médico formado no Rio de Janeiro em 1947, especialista
em psiquiatria, renomado no Norte de Minas, fundador da Casa de Saúde Santa Catarina, em Montes Claros.
(MORETZSOHN, Joaquim Affonso. História da psiquiatria mineira. Belo Horizonte: Coopmed Editora, 1989).
53
numerosas ou aglomeradas, que são as mais sujeitas as disseminações das
doenças.
114
Para ilustrar sua afirmação, Áflio Mendes continuou:
Agora mesmo, deparamos em um Diário Oficial da Capital, a notícia altamente
significativa e profundamente humana, na qual o Governo da União, através de
seu representante legal assume compromissos formais, no sentido de ampliar o
serviço de assistência aos psicopatas em Minas Gerais, e colocando Montes
Claros como posição chave dessa assistência no Norte do Estado. É evidente
encontrarmos na iniciativa, a clarividência, dinamismo e a mão fecunda do
Mestre Adauto Botelho, cujo nome já é um símbolo ao lado de Juliano Moreira,
Gustavo Riedel e outros, para os quais o Brasil se acha endividado. Segundo
dados da reportagem, ainda este ano iniciarão as obras de construção e tudo faz
crer que até princípios do próximo ano, teremos em pleno funcionamento uma
das maiores necessidades da região que será o Hospital de assistência a
psicopatas, cuja finalidade e significação desnecessário se torna dizê-la,
entrementes, toda a população direta ou indiretamente, poderá contribuir para
que esta assistência se torne um fato, ora pelo apoio moral, ora facilitando seus
múltiplos problemas.
115
Percebe-se o entusiasmo e empenho do médico ao relatar sobre o andamento do
projeto, ao informar sobre o terreno adquirido pela prefeitura, e os melhoramentos que se
pretendia fazer no local. Áflio Mendes justificou a relevância desta questão, exaltando a
magnitude da obra e gravidade do “problema da loucura” na região. Considerando o um dos mais
angustiosos e complexos na área da medicina. O ano de 1950 acabou e o sonho do hospital
psiquiátrico não tinha se tornado realidade, deixando o médico decepcionado. Sentimento
compartilhado com muitos outros, quer se preocupassem com um tratamento para os doentes
mentais, ou em retirar do convívio elementos que não se “encaixavam” numa sociedade em
crescimento.
Para entender esta demanda de um hospício para a região, é necessário entender as
mensagens ideológicas que se escondem por trás do discurso. Assim, para falar da instalação de
um Hospital Psiquiátrico na cidade torna-se necessário compreender os motivos encontrados pela
sociedade para justificar a criação do mesmo, conhecer os valores que permeavam esta sociedade
e o imaginário de seus membros. O ideal feminino consiste no estabelecimento de papéis a serem
desempenhados pelas mulheres, como a maternidade e a dedicação ao lar, ou seja, a cristalização
do papel da mulher enquanto formas de ser e agir. Desta forma, os papéis passam a ser vistos
114
DPDOR/ AFGC, Jornal Gazeta do Norte, 11 de junho de 1950, p. 01.
115
Ibidem, p. 01
54
como uma realidade própria, sendo incorporados pelas mulheres, que a eles se submetem. Essa
incorporação é feita sob a forma de crenças e valores, que se tornam intrínsecos à condição
feminina, quando na realidade é produto das sociedades num determinado momento histórico.
Pode-se dizer, portanto, que existia um modelo feminino predominante no pensamento norte-
mineiro da época, um modelo social a ser seguido.
Nas palavras da historiadora Silva,
116
o aumento do número de “loucos” nas primeiras
décadas do século XX relacionava-se ao desenvolvimento das cidades, que a partir de seu
processo de urbanização e industrialização impunham modelos sociais de comportamento.
Segundo a autora, quem não se enquadrasse nos papéis e padrões estabelecidos eram candidatos
ao internamento psiquiátrico, portanto, prostitutas, mendigos, alcoólatras, entre outras categorias,
ganharam o status de “loucos” e passaram a fazer parte da população dos hospícios.
2.5 A Estrada de Ferro e os Loucos do Sertão
Montes Claros começou a crescer desde as primeiras décadas do século XX, recebendo
pessoas vindas da região e de outras áreas em busca de melhores condições de vida, de uma
oportunidade de trabalho, de uma promessa de civilização. De acordo com Silva,
117
passar de
uma civilização rural para uma civilização urbana implica reordenar espaços públicos, o que
exigia ainda criar lugares para “cuidar” de pessoas incapazes ou que ameaçavam a sociedade. Ao
contextualizar a ordenação ou reordenação brasileira, a autora compara a situação do Brasil com
as reformulações feitas na Europa ao passar pelos processos de urbanização e industrialização.
Portanto, a relação que aqui se estabelece entre o processo civilizatório da região norte mineira e
a demanda pela criação de um hospital psiquiátrico que atendesse a região, fundamenta-se nessa
afirmação, entre outras.
116
Nota: Em seu artigo “Colônia do terror”, Mary Cristina Barros e Silva ressalta a idéia de que transgressões sociais
foram consideradas loucura, levando diversas pessoas aos hospitais psiquiátricos. A autora ilustra esta idéia com o
caso de Maria Augusta, mineira de Ritápolis, que ao ser expulsa de casa pelo seu companheiro, em 1978, ficou
vagando pelas ruas por não ter para onde ir ou o que comer, foi recolhida pela polícia e encaminhada ao Hospital
Psiquiátrico de Barbacena, onde ainda residia em 2006. BARROS E SILVA, Mary Cristina. Colônia do terror. In:
Revista Nossa História, Agosto 2006.
117
SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de
Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008.
55
Silva (2008) alega que uma das justificativas para a criação do Hospital Colônia em
Barbacena era a posição estratégica da cidade, que representava um ponto de passagem entre o
Rio de Janeiro e o centro de Minas Gerais, favorecido pelas estradas de rodagem e da estrada de
ferro. Assim também Montes Claros, com a estrada de ferro, passaria a ser ponto de referência ou
de passagem entre as capitais do Sudeste e a Bahia.
A chegada do trem de ferro marcou um período importante para a região, e mais
especificamente, para Montes Claros. A estrada de ferro era considerada um marco do progresso
e do desenvolvimento de uma região. Nas palavras de Simone Narciso Lessa (1993), a
inauguração, em 1º de setembro de 1926, da Linha do Centro da Estrada de Ferro Central do Brasil,
ligando o Rio de Janeiro, Belo Horizonte, o Norte de Minas a Bahia, vem consolidar o terririo
brasileiro, demarcando suas fronteiras internas. A ferrovia significava um processo civilizatório
industrial e urbano. Para a autora, a ferrovia no sertão trazia a promessa de civilização e progresso.
A cidade crescia com o progresso, mas sofria também as suas conseqüências. Ao se
tornar ponto de referência para o comércio, a cidade atraiu pessoas em busca de melhores
condições de vida e trabalho.Como também outros que fugiam da seca e das dificuldades por ela
suscitadas, e na opinião de Lessa “esta linha se constituirá posteriormente num dos principais
corredores migratórios do Brasil facilitando o êxodo dos fugitivos da seca e da pobreza do sertão
para os grandes centros urbanos”.
118
Muitos destes fugitivos acabaram por acomodar-se em Montes Claros, mudando assim o
panorama da cidade, que se tornou um ponto de confluência na região. Segundo Lessa, a história da
estrada de ferro tem pontos comuns em todo sertão brasileiro, relacionando sempre a idéia da
ferrovia ao progresso. Neste período houve um grande aumento demográfico na região e expansão
do mercado para as proximidades, o que conferiu a Montes Claros o status de pólo:
Para seus habitantes, Montes Claros surgiria no horizonte como uma cidade
vitoriosa, na medida que ganhasse a corrida por estes novos mercados, que se
abririam com o prolongamento da ferrovia para o Norte de Minas e a Bahia. A
cidade passaria, assim, na visão destes homens, definitivamente a pólo regional,
"boca do Sertão". Fornecedora de produtos de subsistência, principalmente os
pecuários e o salitre, passaria a ser, também, entrepostos comercial dos artefatos
industriais trazidos pela ferrovia.
119
118
LESSA, Simone Narciso. Trem de ferro: do cosmopolismo ao Sertão. Campinas: IFCH/Unicamp, Dissertação de
Mestrado, 1993.
119
LESSA, Simone Narciso. Trem de ferro: do cosmopolismo ao Sertão. Campinas: IFCH/Unicamp, Dissertação de
Mestrado, 1993.
56
A sociedade montesclarense neste período constituiu-se de forma complexa,
contraditória em seus interesses. Buscando relacionar-se com a modernidade através dessa
ligação com os grandes centros, mas conservando seus costumes e valores, alerta Lessa (1993),
ao apontar o trem de ferro como fator transformador da sociedade, por abrir suas portas para o
mundo cosmopolita. Tudo isso contribuiu para mudar o cenário sócio-econômico da região norte-
mineira, acentuando as relações de poder e as contradições existentes nessa sociedade que
persistiram nas décadas seguintes.
Lembrando Silva,
120
, as ferrovias eram importantes no transporte de “doentes mentais”
de todo o estado para os hospícios. Silva cita uma comparação entre os “trens de doido” com a
“nau dos loucos”, feita por Duarte, ambos encarregados de transportar os loucos para fora do
contexto urbano, excluindo-os do convívio social. Funcionários aposentados da Estrada de Ferro
Central do Brasil, que trabalhavam na região norte mineira, confirmaram em entrevista a existência
de um vagão específico para transportar os loucos para Barbacena. Um dos entrevistados, (E7),
descreve o vagão como “uma gaiola, quarto que carregava os doidos para Barbacena” e lembra-se de
três loucos transportados para Barbacena, pela polícia;
121
E8 afirma que, há mais ou menos 50 anos,
era um vagão de madeira com uma parte reservada aos doentes mentais, homens e mulheres iam
juntos.
122
E9 recorda-se de uma pessoa que teve um surto, desceu na estrada de Montes Claros e foi
encaminhada ao Hospital Santa Catarina após ser encontrada dentro de um rio, no qual faleceu.
123
O trem de ferro, que ligou o Norte de Minas às regiões mais desenvolvidas, trazendo a
promessa de progresso e civilização, também serviu para transportar para fora de seus domínios
aqueles que de alguma forma pudessem impedir seu crescimento. Era no famoso “trem de
doido”, que os loucos da região eram conduzidos para o hospital psiquiátrico, como no conto de
Guimarães Rosa, quando a mãe e a filha de Sorôco são encaminhadas ao Hospital Psiquiátrico.
Neste conto, o autor descreve a triste história de Sorôco, viúvo, que se viu obrigado a se separar
dos seus únicos parentes, pois a mãe e a filha eram loucas. Para interná-las, Sorôco recebeu ajuda
do Estado, que através de um vagão especial no trem de ferro, encaminhava os loucos para
Barbacena. Ao descrever o trem que levava os loucos do sertão, Guimarães Rosa ilustra a triste
120
SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de
Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008
121
(E7) Entrevista 7.
122
(E8) Entrevista 8.
123
(E9) Entrevista 9.
57
sorte de muitas mulheres, que assim como a mãe e a filha de Sorôco, tomaram o trem com
destino ao manicômio: “Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, que mais
vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos
cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos”.
124
O “trem de doido”, expressão usada poeticamente por Guimarães Rosa, e apontado por
diversos autores como o veículo que levava os loucos para os hospitais psiquiátricos, contava
com um vagão específico para transportar estes passageiros, onde os mesmos permaneciam
enjaulados durante a viagem, uma viagem quase sempre sem volta. Assim, como o hospício,
instituição criada pelo poder público para excluir socialmente o louco, o trem de ferro também
serviu ao mesmo propósito: levar a carga insana à cidade dos loucos. No sertão das Gerais, o
mesmo trem, que trazia imigrantes e os loucos das redondezas para Montes Claros, levava outros
loucos para Barbacena. O trem de doido conquistou o seu lugar na história da loucura em Minas
Gerais, e aparece sempre que se fala do tema. Desde o início do Hospital Colônia de Barbacena,
quando a Estrada de Ferro Central do Brasil autorizou uma parada nas imediações do hospício, o
trem de doido ficou famoso. Encontra-se na literatura diversas referências a ele, e diz-se que
havia um desvio na estação através do qual o último vagão era desconectado do restante para
deixar sua carga: loucos embarcados no longínquo norte mineiro.
2.7 O Pensamento Norte-mineiro e a Loucura nos Anos 40 e 50
Passado o momento das ferrovias, a cidade avançou em seu processo de crescimento.
As décadas de 1940 e 1950 foram marcadas pelo movimento desenvolvimentista no Brasil, que
passava por processos de industrialização e urbanização, causando mudanças nas relações sociais
e políticas, afirma Pereira (2002). Todo o país foi marcado pelos avanços nos processos de
industrialização e urbanização. Montes Claros, cidade de maior relevância do norte do estado,
influenciada por este movimento, também apresentava expectativas de crescimento e esperava
ansiosa pelos investimentos do Governo, sem muito sucesso. A cidade recebia pessoas de vários
124
GUIMARÃES, Rosa. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 15.
58
lugares da região, porém, sem possuir uma infra-estrutura que permitisse o seu crescimento
populacional.
Com isso, mais especificamente a partir da década de 1950, houve uma concentração
populacional, o que aumentou o número de pessoas que viviam em condições precárias de
sobrevivência. Os representantes políticos da região idealizavam uma cidade moderna e
desenvolvida, e utilizaram diversas estratégias para angariar o apoio e votos populares que
pudessem garantir o prestígio do governo. Porém, a realidade era bem diferente, e o Norte de
Minas ficou à margem do processo de desenvolvimento. Neste período, conforme afirma
Pereira:
125
“O governo de Juscelino Kubitschek não significou para o Norte de Minas o mesmo
que para outras regiões do Estado. Tomando por base os setores de energia e transportes, verifica-
se que a situação dos mesmos no município permaneceram precaríssimos no período”. Uma
região pobre, excluída da política desenvolvimentista do país, que se via assolada pela seca e pelo
êxodo rural. A cidade inchou com a população vinda em busca de melhores condições de vida.
Instaurou-se um cenário contrastante: de um lado a pobreza, a exclusão, e de outro, espaços de
crescimento e uma elite que se esforçava em tornar Montes Claros uma cidade perfeita.
A população de Montes Claros que crescia, desde as primeiras décadas, com a chegada
do trem de ferro e suas implicações, começou a inchar na década de 40, com a seca do Nordeste
a cidade que se expandia sem um planejamento urbano, de forma desordenada, tornou-se alvo de
um projeto de desenvolvimento idealizado. Este enorme crescimento populacional trouxe consigo
conseqüências como: desemprego, mendicância, violência e miséria. Tornaram-se comuns as
manchetes sobre a mendicância e a loucura na cidade, como as do jornal Diário de Montes
Claros: “Projeto de ordenação da mendicância”, “necessidade urgente da implantação de um
hospital de assistência ao psicopata norte mineiro”, “os doidos indigentes estão invadindo a
cidade. A cada dia chega à estação da Central do Brasil uma nova leva para ser encaminhada a
Barbacena”, “Indivíduo enlouquece de tanto passar fome e se joga do trem” entre outras.
Os acontecimentos políticos da década de 60 possibilitam uma compreensão da
assistência psiquiátrica no país nas últimas décadas do século XX. A fase desenvolvimentista do
governo Juscelino Kubitscheck contagiou o país, e mesmo assim os hospitais psiquiátricos
recebiam cada vez mais pacientes. Aumentava a cada dia o número de hospitais psiquiátricos no
125
PEREIRA FIORIN apud PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados do século
XX. Montes Claros: Ed. Unimontes, 2002, p. 41
59
Brasil, em 1961, era 54 públicos e 81privados, além de 17 ambulatórios de psiquiatria, afirma
Costa, baseado em dados do Ministério da Saúde. Em sua opinião, três fatores contribuíram para
isso: o aumento da população, a distribuição da renda nacional e, o modelo preventivista e
“sua caça aos suspeitos.” A assistência à saúde adotou uma política de privatização a partir de
1964 e criou o INPS em 1966, o que incentivou o surgimento das clínicas de repouso, e
consequentemente, o internamento de pessoas. Costa sugere que havia uma caça seletiva a estes
pacientes, uma vez que, pessoas que tivessem embriagadas em lugares púbicos eram levadas para
internação diagnosticados como portadores de psicose alcoólica, porém, era pré-requisito ter a
carteira do INPS. Como os que tinham direito ao INPS tinham que ser funcionários registrados
com carteira de trabalho, conclui-se que eram pessoas produtivas e socialmente inseridas.
126
Voltando a Montes Claros, Pereira (2002) afirma que apenas na segunda metade da
década de 60 é que apareceram os efeitos da intervenção do Estado como promotor da
industrialização, a partir da viabilização da infra-estrutura energética e de transportes e os
incentivos fiscais da SUDENE para grandes investimentos industriais. Com o empreendimento
da SUDENE, Montes Claros e região atraíram indústrias, através de incentivos fiscais e linhas de
crédito, o que legou a Montes Claros o termo “cemitério das indústrias”, uma vez que essa
iniciativa não trouxe o resultado esperado, pois o investimento não se relacionava à história
agropastoril da região. Segundo o autor, “a cidade de Montes Claros foi centro de mobilização
das elites regionais em um esforço conjunto para atraírem os investimentos do Estado e se
inserirem na política desenvolvimentista”.
127
Assim, o discurso desenvolvimentista foi
assimilado e reproduzido pela imprensa local. O governo de JK voltou-se para a questão
industrial, privilegiando o desenvolvimento da energia e transportes, marginalizando o Norte de
Minas: “esta região, como todo o Nordeste, viria a ser contemplada com uma meta especial: a
operação Nordeste. Nesse sentido, a criação da SUDENE (1959) e a inclusão do Norte de Minas
em sua área de atuação transformaram-se na última esperança para a região”.
128
Para Celestino, a SUDENE representa um divisor de águas na história de Montes
Claros. Sendo importante para se pensar a questão da loucura na região, pois demarca o processo
de industrialização e modernização, o que consequentemente resulta numa nova percepção
126
COSTA, Augusto César de Farias. Direito, Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica. In:
www.saudepublica.bvs.br/itd/legis/curso. Acesso em 22 de fevereiro de 2009 às 18:19h.
127
PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados do século XX. Montes Claros: Ed.
Unimontes, 2002, p. 39.
128
Ibidem, p. 73
60
urbana pela elite, “entretanto é fundamental ressaltarmos que na década de 50, quando surge a
necessidade do hospital, a região norte mineira ficou às margens do surto de industrialização
nacional”.
129
A autora segue afirmando que a partir da década seguinte é que a cidade sofreu
modificações estruturais como reflexo desta industrialização. Portanto, é possível concluir que
uma relação entre o processo de industrialização e a demanda de criação dos hospícios, assim
como aconteceu em outras regiões , como afirma Silva (2006) ao falar de Barbacena.
Havia uma preocupação com o espaço urbano, e a “invasão” de pessoas que buscavam
melhores condições de vida acabou por criar uma imagem indesejada para Montes Claros:
mendigos, desempregados e loucos de todo tipo que circulavam pela cidade, causando
desconforto e incômodo para os moradores. Diversas eram as manchetes dos jornais da época
sobre esta questão, como a “Campanha contra a mendicância”,
130
a matéria divulgava uma
campanha empreendida pelas Damas de Caridade, buscando arrecadar verba para construção de
um abrigo para os necessitados. A cidade teve um imenso crescimento populacional na década de
50, o que aumentou também seus problemas sociais, e a década de 60 acentuou o interesse pela
criação do hospital psiquiátrico como forma de resolver ”grandes problemas” da região. As
notícias na imprensa local demonstravam o movimento pró-hospital psiquiátrico. O Diário de
Montes Claros anunciou: “Volta à baila os problemas de loucos na cidade”, e prosseguiu falando
do empenho do Deputado Teófilo Pires em resolver a situação. Quando o mesmo exigiu das
autoridades competentes a conclusão do Hospital Neuropsiquiátrico de Montes Claros, iniciado
em 1951
.
131
No sertão, a loucura virou caso de polícia. Diversos eram os relatos sobre loucos
levados para a delegacia, uma vez que não havia um lugar “específico para eles”:
Polícia novamente em apuros: Loucos”, que traz em seguida o texto “a polícia se
vê às voltas novamente com o problema dos loucos que continuam infestando as
ruas das cidades e pondo em risco a segurança pública. No mês passado a
Delegacia de Polícia transferiu 25 loucos da Cadeia Pública para o Hospital
Colônia de Barbacena, mas nos primeiros dias deste mês teve que recolher mais
10 débeis mentais que estavam causando transtornos à população (...) o delegado
Vasco Gontijo Lacerda disse esta manhã que não sabe o que fazer para
129
CELESTINO, Kesia Tavares. Loucos do sertão: uma abordagem da percepção da loucura no Norte de Minas
Gerais nas décadas de 1950-1980. Monografia – Unimontes – Montes Claros, 2007
130
Gazeta do Norte, 16 de fevereiro de 1950.
131
Diário de Montes Claros, 22 de agosto de 1968.
61
solucionar o problema. Loucos de outras cidades são trazidos para cá, e aqui
largados nas ruas, onde fazem das suas e é necessário a intervenção da polícia.
132
Um mês depois, o mesmo jornal
133
noticiou a remessa de mais dezoito loucos para
Barbacena. Indigentes, que perambulavam pela cidade, infestando as ruas e pondo em risco a
segurança pública, entre eles dez homens e oito mulheres. Na reportagem “Os loucos de cada
dia”,
134
do Jornal do Norte em 1966, João Carlos de Queiroz afirmava que a cidade continuava
infestada de loucos, que acabariam atrás das grades de uma delegacia ou nos tanques da FAMED
- Faculdade de Medicina de Montes Claros (esta notícia remete a uma situação conhecida no
Hospital Colônia de Barbacena, onde os cadáveres eram vendidos aos laboratórios das faculdades
de medicina). O autor prosseguiu, pontuando o risco que a população sofria com as agressões
destes loucos que haviam feito de Montes Claros seu quartel-general, causando constrangimentos
ao aparecerem nus no centro da cidade. O autor apresentou ainda o dilema da convivência diária
da população sadia como seus semelhantes anormais, inferindo que o louco inofensivo poderia se
transformar num assassino. Isso traz um outro questionamento: eram estes “loucos”, apenas
transgressores das normas ou realmente apresentavam um perigo à sociedade?
Com tantos loucos encaminhados à Barbacena, tornou-se comum ver nos jornais nota
de óbitos ocorridos durante as internações, como “Louca morreu em Barbacena”,
135
que dizia do
comunicado à delegacia local do falecimento da louca J.Bde Montes Claros. Ou ainda, “Mais
dois que morreram em Barbacena”, telegrama que informava ao delegado a morte de dois
indigentes que estavam internados, nos dias 15 e 16 de janeiro de 63, e no dia 31 do mesmo mês
“morreu mais um louco em Barbacena”.
136
Frente a esta situação, não é de se admirar as
condições em que os pacientes eram conduzidos ao hospício, conforme relatado pelo Deputado
Teófilo Pires no jornal Diário de Montes Claros,
137
sobre as cenas desumanas e chocantes dos
loucos jogados no vagão gaiola do trem quando eram encaminhados a Belo Horizonte ou
Barbacena, que recebiam os doentes de toda região. Ainda em 1963, sob título “Vagão para
condução de loucos”,
138
o Diário de Montes Claros noticiava uma solicitação feita à Central do
132
Diário de Montes Claros, 07 de novembro de 1968.
133
Diário de Montes Claros, 03 de dezembro de 1968.
134
Jornal do Norte, 19 e 20 de abril de 1966.
135
Diário de Montes Claros, 24 de janeiro de 1963.
136
Diário de Montes Claros, 31 de janeiro de 1963.
137
Diário de Montes Claros, 12 de maio de 1967.
138
Diário de Montes Claros, 24 de outubro de 1963.
62
Brasil pela Delegacia local, de um vagão especial para condução de loucos, em função do
crescente número de doentes mentais pelas ruas da cidade. Solicitação provavelmente aceita, uma
vez que no ano seguinte, o mesmo jornal noticiou que mais dez loucos foram encaminhados para
Barbacena em vagão especial.
139
A loucura permaneceu como jurisprudência da polícia durante décadas, o que se pode
confirmar na reportagem do Jornal do Norte:
A cidade bonita e gostosa não tem nenhuma iniciativa na área social capaz de
resolver o problema dos doidos que a invadiram. A municipalidade encara como
algo normal a presença deles pelas ruas centrais, ameaçando pessoas e o
patrimônio alheio. Quando muito, doido e indigente tem sido casos de polícia
que é a PM quem acode quando solicitada para conter a fúria ou o desrespeito
de alguns deles. Como não podem ser mantidos presos, porque a cadeia é lugar
de marginais e não de doentes mentais (e se fosse não teria espaço par todos)
logo estão de volta as ruas.
140
Na década de 80, a situação dos loucos ainda era problema que preocupava, e segundo
o Jornal do Norte,
141
houve uma tentativa por parte do vereador José Gonçalves de firmar
convênio com o Hospital Galba Veloso em Belo Horizonte e o Hospital de Barbacena para
encaminhar os loucos indigentes. Em 1988, este jornal falou ainda das dificuldades de internação,
porque o Hospital Prontomente (antigo Hospital Santa Catarina) só internava pelo convênio INPS
ou pelo Funrural, além dos pacientes particulares. O jornal refere-se também ao Hospital
Clemente Faria (hoje Hospital Universitário Clemente Faria), onde havia lista de espera para
internos devido ao pequeno número de leitos: 10 masculinos e 10 femininos.
2.7 Casa de Saúde Santa Catarina X Hospital Fantasma
Além dos hospitais psiquiátricos de Barbacena e Oliveira, outras instituições foram
criadas no estado, visando atender a demanda que não era absorvida por eles. Moretzsohn, em
seu livro História da Psiquiatria Mineira, apresenta um histórico da atuação psiquiátrica no
estado e enumera os hospitais, fazendo um breve relato de cada um deles. Sobre Montes Claros, o
139
Diário de Montes Claros, 20 de setembro de 1964.
140
Jornal do Norte, 26 de maio de 1988, p. 4.
141
Jornal do Norte, 16 de fevereiro de 1982.
63
autor comenta a primeira iniciativa de criação do hospital pelo estado e como ele tornou-se um
hospital particular:
Em 1952, o psiquiatra Áflio Mendes de Aguiar, escrevia na revista “Acaiaca”,
de Belo Horizonte: “Tendo em vista a situação aflitiva da assistência psiquiátrica
em Minas, devido ao número insuficiente de leitos ou hospitais especializados, o
Sr. Governador do Estado achou por bem, em cooperação com o S.N.D.M.
construir um hospital regional com sede em Montes Claros...Haverá assistência
local imediata para uma população de 800.000 habitantes que povoa o norte de
Minas, vindo a resolver um dos mais angustiosos problemas do sertão mineiro e
ter-se-á o desafogamento da Colônia de Barbacena e do já famoso Raul Soares.
Contra com a capacidade de 500 leitos e atenderá adultos de ambos os sexos e
possibilidade de futura ampliação para 1.500 doentes. Está em plena construção
esta arrojada obra...Foi esmorecendo pouco até que parou; o dinheiro acabou...O
Estado não forneceu mais dinheiro...A Prefeitura também não e o resto foi tudo
que vimos pouco tempo ruínas de um hospital em construção. O mato tomou
conta.”
142
Segundo Moretzsohn, após desiludir-se com a paralisação da obra do governo, o
médico psiquiatra mineiro, Dr. Áflio Mendes de Aguiar, que já exercia a medicina na região,
decidiu criar um hospital psiquiátrico particular em Montes Claros, buscando apoio para o feito.
Fundou em 1954 a Casa de Saúde Santa Catarina, primeiro hospital psiquiátrico da região norte
do estado, que funcionou durante muito tempo. Seu nome foi mudado para Prontomente - Clínica
Psiquiátrica de Repouso, pelos psiquiatras que assumiram a instituição após afastamento do Dr.
Áflio. O Hospital Prontomente foi criado em 1976, de acordo com notícias da imprensa local,
porém, a data de abertura da empresa, conforme consta no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica,
na Receita Federal, é 30 de dezembro de 1974.
143
O artigo escrito pelo psiquiatra mineiro na Revista Acaiaca é citado também pelo
memorialista Hermes de Paula, em sua obra Em Montes Claros a medicina dos médicos e a
outra”, que acrescenta alguns dados sobre o projeto do “Hospital Fantasma”, como a confiança de
Áflio no apoio do Governo Mineiro a obra iniciada, além dos Governos Federal e Municipal. O
autor comenta que essa segurança se devia ao fato de que o então Secretário de Saúde, Dr. Mário
Hugo Ladeira, havia entregado Cr$ 800.000,00 (oitocentos mil cruzeiros) para o início da obra
que estava orçada em Cr$ 5.000.000,00 (cinco milhões de cruzeiros). Porém, com o emprego da
verba em outras obras municipais, o dinheiro acabou, e não houve mais investimento dos
142
Áflio Mendes de Aguiar (apud MORETZSOHN, Joaquim Affonso. História da psiquiatria mineira. Belo
Horizonte: Coopmed Editora, 1989, p. 179).
143
www.receita.fazenda.gov.br/PessoaJuridica/CNPJ
64
governos. Esta afirmação encontra eco na reportagem intitulada “O encantado hospital”, do
Jornal Diário de Montes Claros, em 22/09/65, que questionava desvio de verbas para a
construção do hospital.
Decepcionado com o fracasso do Hospital-Colônia Neuropsiquiátrico, “Aflio Mendes
não desanimou; queria dotar Montes Claros de um nosocômio, para atender os perturbados da
mente, aqui mesmo, com o conforto da presença da família”, afirma Paula.
144
Buscou auxílio do
Sr. Genuíno de Quadros e fundou a Casa de Saúde Santa Catarina, situada na rua de mesmo
nome, prestando serviços psiquiátricos à cidade e região. Hermes de Paula aponta duas vantagens
da iniciativa do médico: ele ficar rico dotando a cidade de assistência neuropsicológica e a
Prefeitura ter recebido de volta o terreno destinado ao hospital.
145
Ao discutir os motivos para a criação de um hospital psiquiátrico em Montes Claros,
Celestino retoma a relação entre o processo de industrialização e ordenamento apresentada por
Cunha e Machado (capítulo I):
Entende-se que quando Áflio Mendes defende a idéia de progresso e da
necessidade vital da sanidade mental nos indivíduos, o significa que tenha
surgido efetivamente no seio da sociedade uma necessidade de ordenar loucos
advinda da lógica mesma da modernização e industrialização ( e aqui se refere a
todo o espaço temporal delimitado). O fato de ele pensar asilo como progresso
não significa que de fato asilo surge como exigência natural do progresso mas
acusa antes o indício de uma percepção da loucura segundo a qual esta
atravancava a idéia de progresso e precisava ser dominada e aquietada em algum
canto que não o convívio da cidade que tenta se modernizar. O psiquiatra
perceberia a loucura desta forma o que não quer dizer necessariamente que sua
percepção tenha sido engendrada por um contexto que a justificaria
plenamente.
146
As notícias dos jornais da época inferem que o contingente de loucos nas ruas de
Montes Claros aumentava dia a dia. Portanto, o que fazer com eles? Num novo modelo de
sociedade, cuja imagem deveria passar a idéia de progresso e beleza, a presença do louco
vagando pela cidade contrastava com as transformações propostas. Assim, a criação de um
hospital psiquiátrico deveria vir ao encontro do desejo daqueles que se esforçavam por uma
144
PAULA, Hermes de. Em Montes Claros – a medicina dos médicos e a outra. Montes Claros: Imprensa
Universitária, 1982, p.247.
145
Nota: Hermes de Paula elogia os relevantes serviços prestados pelo psiquiatra, dedicando um espaço do seu livro
para uma pequena biografia sobre o mesmo.
146
CELESTINO, Kesia Tavares. Loucos do sertão: uma abordagem da percepção da loucura no Norte de Minas
Gerais nas décadas de 1950-1980. Monografia – Unimontes – Montes Claros, 2007, p. 43
65
Montes Claros moderna e progressista. Porém, a criação do hospital psiquiátrico em 1964 não foi
tão aplaudida ou comemorada, de acordo com Celestino:
E qual não é a surpresa quando na edição do dia 26 de novembro (...) o jornal
anuncia sem nenhum alarde, quase com uma nota a inauguração do hospital
Santa Catarina, primeira instituição psiquiátrica da região. De acordo com a
edição trata-se de iniciativa particular do Dr. Áflio Mendes já que a iniciativa
governamental nesse campo nunca pode ser concretizada nesta região. (...)
Como explicar que após 20 anos louvando a necessidade de uma instituição
psiquiátrica regional, seja criada a primeira instituição de atenção as doenças
nervosas e o jornal não lhe tenha dedicado mais que algumas linhas?
147
Na opinião da autora, o motivo do silêncio deve-se ao fato de que a Casa de Saúde
Santa Catarina era uma instituição privada, não contemplaria a “plebe insana”, ou seja, os pobres
e indigentes enlouquecidos que eram encaminhados ao hospital de Barbacena.
Em 1976, o Dr. Áflio Mendes afastou-se da psiquiatria, e o Hospital Santa Catarina
ficou sob os cuidados de uma equipe de médicos locais, passando a chamar-se Prontomente,
conforme nota do Diário de Montes Claros: “Atendimento de urgência psiquiátrica, alcoolismo,
doenças nervosas, clinica de repouso, assistência durante vinte e quatro horas pela nova equipe
médica. Antiga casa de saúde Santa Catarina”.
148
Existente ainda hoje, a Organização Hospitalar
Psiquiátrica Limitada, cujo nome fantasia é Clinica Psiquiátrica e de Repouso Prontomente,
atende pacientes de Montes Claros e região.
2.8 Hospital Universitário Clemente de Faria – Referência em Tratamento Mental.
Na década de 60, o então Hospital Regional Clemente Faria, especializado em
Tisiologia, tornou-se Hospital Geral, atendendo diversas especialidades, inclusive pacientes
psiquiátricos, passando a ser uma referência nesta área. O Hospital Regional Clemente Faria, nos
anos 70, tinha grande abrangência, atendendo pacientes de Montes Claros e toda a região norte
mineira. Mais tarde, em 1990, este hospital foi cedido à Universidade Estadual de Montes Claros
147
CELESTINO, Kesia Tavares. Loucos do sertão: uma abordagem da percepção da loucura no Norte de Minas
Gerais nas décadas de 1950-1980. Monografia – Unimontes – Montes Claros, 2007, p. 45
148
Diário de Montes Claros, 26 de maio de 1988.
66
Unimontes, passando a ser denominado Hospital Universitário Clemente Faria. Em 2003, foi
apresentado um projeto para criação da residência em Psiquiatria, que atenderia de forma mais
abrangente e humanizada os portadores de sofrimento mental.
149
O início das atividades da psiquiatria no Hospital Regional Clemente Faria foi marcado
por um diferencial: havia apenas uma ala, que recebia pacientes de ambos os sexos, de todas as
idades. Na opinião de um profissional de Saúde Mental dessa instituição, (E1)
150
esta era uma
atitude ousada e inovadora, pois nem mesmo os hospitais psiquiátricos de Belo Horizonte, como
o Raul Soares ou o Hospital Colônia de Barbacena – Barbacena-MG - funcionavam nesse
modelo. Para ele, a história deste hospital é sui generis. A princípio o hospital internava apenas
pacientes com hanseníase, depois passou a internar os tuberculosos e os pacientes psicóticos, para
os quais era referência. Uma instituição que funcionava despida de qualquer tipo de preconceito,
primeira no estado a ter ala feminina e masculina acopladas, afirma o entrevistado. O hospital
pertencia a FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais), e sua equipe psiquiátrica
chegou a ganhar alguns prêmios, quando a FHEMIG escolhia as melhores equipes. Segundo E1,
o Hospital nunca deixou de ser uma referência em tratamento psiquiátrico, apesar de ter tido
alguns momentos difíceis, quando tentaram juntar um hospital psiquiátrico a um hospital geral,
impedindo que se internasse todo tipo de paciente, todas as patologias. Com a residência médica
e o projeto de uma ala psiquiátrica para o hospital geral, o Hospital Universitário poderá internar
novamente os pacientes psiquiátricos. Hoje, o Hospital Universitário “Clemente de Faria é um
hospital público - administrado exclusivamente com recursos do SUS”. É um hospital-escola,
atende toda a população do Norte de Minas, Vale do Jequitinhonha e até do Sul da Bahia.
149
MONTES CLAROS. Universidade Estadual de Montes Claros. Projeto Assistencial da Equipe Interdisciplinar de
Assistência Psiquiátrica e Saúde Mental do Hospital Universitário Clemente Faria, 2003.
150
(E1 – Entrevistado 1)
67
CAPÍTULO III: MULHERES E LOUCURA NO SERTÃO NORTE MINEIRO
“O papel feminino, moldado às suas funções no lar e na família, completa aí
seu contorno: se no domínio do sexo e da maternidade as imagens médicas
remetem-na à instância de “natureza”, dela é exigido que se torne “razão” na
organização da família, cúmplice da medicina e fiel executora de suas
prescrições”.
Maria Clementina Pereira Cunha – O espelho do mundo
3.1 Gênero sem Razão
A transgressão de normas e padrões de comportamento de uma sociedade implica em
punição àqueles que as cometem, resultando em tensões e definindo as próprias relações sociais.
A sociedade republicana foi influenciada pelo discurso do positivismo, que pretendia uma
complementaridade biológica, mental e social entre homens e mulheres, enfatizando o caráter
superior do homem e a afetividade da mulher ligada ao instinto maternal.
151
Destarte, esse
discurso determinou o papel feminino vigente na sociedade brasileira durante grande parte do
século XX, onde o dever da mulher era procriar, criar, educar, cuidar da casa e do marido. Outra
função seria educar seus filhos e os filhos de outras mulheres, função esta que possibilitaria às
mulheres solteiras a realização do papel de es-educadoras. Segundo Caleiro,
152
ajustar ou
adequar o comportamento das mulheres ao modelo desejado pela nova ordem era um dos
objetivos da classe dominante.
Sobre a história das mulheres, Del Priori argumenta que esta história não é delas,
mas também da família, da criança, do trabalho (...). A autora destaca ainda que é “a história do
seu corpo, da sua sexualidade, da violência que sofreram e que praticaram, da sua loucura, dos
seus amores e dos seus sentimentos.”
153
As mulheres deveriam portanto, contemplar o modelo
feminino burguês que preconizava: “o desconhecimento do corpo e da própria sexualidade, a
imposição do tabu da virgindade como símbolo da honra e a imposição da maternidade como
151
CALEIRO, Regina Célia Lima.. História e Crime: quando a mulher é a ré. Franca 1890-1940. Montes Claros: Ed.
Unimontes, 2002.
152
Ibidem.
153
DEL PRIORI, Mary. A História das mulheres. São Paulo: Contexto, 1997.
68
uma determinante biológica”.
154
O ideal feminino era um estereótipo, um código de postura, um
código cultural que impunha seus valores. As mulheres que não se adequaram e ousaram desafiar
as normas, foram julgadas, e como punição, muitas foram encaminhadas aos manicômios e
hospitais psiquiátricos. Nestas instituições eram reproduzidas as mesmas normas de hierarquia
social e diferenciações no tratamento de acordo com o gênero. Como ilustração, basta relembrar a
laborterapia no Hospital Colônia de Barbacena, no qual os homens iam para os trabalhos na terra,
enquanto as mulheres faziam tarefas na cozinha. Vale lembrar que a laborterapia era um método
de tratamento aplicado aos pacientes não pagantes e/ou indigentes. A inversão dos papéis, a
negação dos valores burgueses rendera às mulheres a condição de loucas, podendo ser chamadas,
portanto, de gênero sem razão.
A história das mulheres do Norte de Minas contempla os mesmos parâmetros da
história das mulheres em geral. Ao apresentar a visão dos memorialistas sobre as mulheres de
Montes Claros, Carvalho contextualiza a representação social feminina da cidade no século XX,
o ideal de mulher que permeava o imaginário coletivo de sua população. “Escrever sobre a
história das mulheres em Montes Claros é falar sobre a história política e, portanto, da elite em
Montes Claros”,
155
delimita a autora, destacando as diferenças sociais e raciais como pontos
determinantes na concepção que se tinha das mulheres, conforme ilustra com um fragmento do
texto de João Valle Maurício:
Montesclarenses com fama de valentes, bravos e matadores. Guerreiros na
política. Unidos nas famílias. Brigas por barra de saia, a barra de rio e barra de
serra. (...) As mulheres santas senhoras, enormes na bondade, no trabalho, na
dedicação e na dignidade, Bobalhonas, dirão as feministas. Só sei que elas foram
a família.
156
Em outras palavras, as mulheres são submissas aos maridos e dedicadas ao lar,
seguindo o modelo de mulher arraigado no contexto social. Este papel feminino é realçado por
outros memorialistas locais, como Vianna
157
, que se refere às mulheres como mães, esposas e
donas de casa, impecáveis em educação e conduta moral. Carvalho destaca ainda a prática
religiosa das mulheres e sua ligação com a Igreja, numa cidade onde predominava a religião
154
CALEIRO, Regina Célia Lima.. História e Crime: quando a mulher é a ré. Franca 1890-1940. Montes Claros: Ed.
Unimontes, 2002, p. 38.
155
CARVALHO, Grace Kelly Souto de. As mulheres de Montes Claros na visão dos memorialistas. 2007, p. 65
156
MAURÍCIO citado por CARVALHO, 2007, p. 31.
157
VIANNA citado por CARVALHO, 2007, p. 32
69
católica, no dizer de Hermes de Paula. Percebe-se, portanto, o predomínio dos valores morais
implicados na religiosidade, quando a autora afirma que a vida religiosa vai subsidiar a vida
social de Montes Claros, tornando-a mais pacífica e harmônica
. E “quanto ao caráter das mulheres
fortifica ainda mais a representação de pureza e o comprometimento delas com as tradições e com a
moral, enfim, com os papéis que os padres, os esposos, os filhos, as famílias esperavam que elas
desempenhassem diante da sociedade”.
158
Pensando desse modo a condição feminina na região norte mineira em meados do
século XX, conclui-se que os papéis femininos idealizados eram os mesmos que vigoravam em
todo o país, e as mulheres que os transgrediam eram discriminadas. O preconceito predominava e
os comportamentos “inadequados”, fora de uma ordem estabelecida, eram considerados
“desviantes”. Desta forma, muitas mulheres foram encaminhadas a tratamentos e internações
psiquiátricas, por desejarem uma vida diferente, mais livre, ou por não concordarem com suas
famílias, ousando rebelar-se. A moral permeava as relações entre as pessoas e também as
relações de gênero. Moral burguesa, conservadora. Isso se confirma nas palavras de um
profissional de saúde mental (E2), ao relatar o cotidiano de jovens mulheres internadas em um
hospital psiquiátrico por seus comportamentos, quando falavam muito, respondiam ao que lhes
era dito, ou ainda “não concordavam muito com o que as famílias queriam que elas fizessem (...)
isto era considerado ‘desvio’ falar alto, querer sair à noite, querer ter amigos, ter uma vida
sexual mais livre... e elas perdiam a paciência com muita facilidade”.
159
3.2 Transgressões Femininas ou Comportamentos Desviantes
Diversos são os exemplos encontrados na literatura que confirmam as internações por
transgressões às normas sociais. Carrara
160
compreende a loucura como forma que a sociedade
encontra para garantir o controle, e impedir comportamentos transgressores de normas, valores e
158
CARVALHO, Grace Kelly Souto de. As mulheres de Montes Claros na visão dos memorialistas. 2007
159
E2 – Entrevista 2
160
CARRARA apud SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital
Colônia de Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008
70
regras. Goffman
161
relata a situação em que uma jovem rebelde ia para o manicômio porque
estava fora de controle e tendia a ter um companheiro inadequado.
O que pretendemos discutir é que os motivos para a internação eram diversos, e
estavam ligados não apenas a doença mental. Qualquer pessoa podia ser internada, nas diversas
instituições psiquiátricas, pela família e até mesmo pela polícia, no caso de indigentes. Bastava
um sujeito apresentar algum sintoma de desequilíbrio para que qualquer pessoa tivesse o direito
de interná-lo, como indigente ou contribuinte, lembra Magro Filho.
162
Percepção compartilhada
por Goffman
163
, quando alega que aquele que causasse qualquer tipo de perturbação, fosse de
ordem familiar ou social, seria submetido à ação psiquiátrica, de forma legitimada pela própria
sociedade.
Ao ser indagado se havia mulheres que não apresentavam sintomas de doença mental
em instituições psiquiátricas, E2 responde que conheceu vários casos de mulheres internadas por
comportamentos considerados desviantes, “como uso de droga, por querer ter uma vida mais
independente e por questões financeiras também. Mulheres que talvez não tivessem uma
patologia grave, talvez mais independentes ou histéricas, que tinham uma renda e alguém queria
tomar conta desta renda”.
164
Com relação a questão financeira, o entrevistado relata que tanto em
hospitais psiquiátricos como em serviços substitutivos
165
, era comum famílias que procuravam o
serviço para internar um de seus familiares, alegando insanidade, doença mental. E2 se recorda
de um caso, onde a mulher que foi internada, na verdade, apresentava apenas um comportamento
mais metódico que a maioria das pessoas. Ela dizia não querer ser incomodada em sua casa
depois das 20 horas, que já tinha trabalhado muito. As pessoas não aceitavam seu comportamento
e sua recusa em sair de casa, afirmando que ela era louca, que não queria sair, não queria ter
amigos, ao que ela respondia que não saia porque não gostava. Alguns dos profissionais que
acompanharam este caso conseguiram perceber que ela estava lúcida, sabia onde estava, via o
que estava acontecendo na família, e que não deveria estar naquele lugar, registrando estas
observações no prontuário da paciente, sensibilizando outros profissionais.
161
GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
162
MAGRO FILHO, J. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo Horizonte: COOPMED/Editora
UFMG, 1992.
163
GOFFMAN, E. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
164
E2 – Entrevista 2
165
Nota: Serviços substitutivos são os serviços de Saúde Mental criados a partir da Reforma Psiquiátrica para atender
o portador de sofrimento mental, como os CAPS – Centro de Atenção Psicossocial.
71
Este caso ocorrido em Montes Claros repete a história de muitas mulheres internadas
em outras instituições psiquiátricas, como acontecia no Juquery, conforme registrou Cunha,
166
cujas causas para as internações eram fundadas em desobediência às regras de comportamento, à
negação de uma imagem ideal de mulher. Para as mulheres, a desrazão estava associada às
questões de cunho moral, à sexualidade e à própria independência.
Paula
167
apresenta um conto escrito pelo Dr. Áflio Mendes, chamado Odisséia de uma
Libélula, sobre uma moça muito bonita e atraente, que se tornara irrequieta, frequentadora de
festas, desenvolvendo hábitos noturnos e entregando-se aos prazeres mundanos. O conto diz
ainda que ela foi levada pela mãe ao psiquiatra, e a partir de diversos exames, este acabou
descobrindo um tumor na hipófise, que justificava a conduta “inadequada” da moça. Ao ser
operada, para remoção do tumor, a moça não resistiu, vindo a falecer, mas de certa forma,
evitando um constrangimento maior para a mãe, que provavelmente nunca soube que a filha
estava grávida de quatro meses. Este conto aponta vários aspectos a serem considerados, como o
tumor na hipófise, glândula responsável pela produção dos hormônios, que vão comandar o corpo
e a mente. Assim, o saber médico diagnosticou a causa da conduta da moça, reduzindo a sua
subjetividade aos sintomas de uma patologia que pudesse justificar os seus comportamentos.
Santos,
168
ao comentar o mesmo conto, ressalta as características femininas entendidas pela
sociedade como fuga do ideal construído, acrescentando que possivelmente esses mesmos
comportamentos, num homem, não seriam condenados. Quanto ao autor do conto, percebe-se que
a visão do psiquiatra correspondia ao pensamento preconceituoso da sociedade. As entrevistas
contribuem para confirmar a hipótese de que o pensamento médico incluía um julgamento de
valores morais no que diz respeito às mulheres.
E2
169
afirmou ainda que várias mulheres, muito jovens, de Montes Claros e região, foram
internadas por essas “transgressões”, e ao serem atendidas diziam não saber que seriam
internadas, que tinham aula, tinham que fazer alguma coisa, que foram deixadas ali para se
consultarem, enquanto os responsáveis tinham saído para lhes comprar algo.
166
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do MundoJuquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
167
PAULA, Hermes de. Em Montes Claros – a medicina dos médicos e a outra. Montes Claros: Imprensa
Universitária, 1982.
168
SANTOS, Jecely Pereira dos. Loucura Puerperal: Relatos e Representações de mulheres loucas e infanticídios,
no Norte de Minas, na segunda metade do século XX: 1950 a 1980. Monografia UNIMONTES, Montes Claros,
2008.
169
(E2) Entrevista 2.
72
Outro entrevistado (E4)
170
relatou casos de idosos internados no hospital porque a
família não suportava lidar com eles, com os comportamentos que apresentavam desencadeados
muitas vezes por uma esclerose. A partir dos exemplos apresentados pelos entrevistados, baseado
ainda nos autores citados, é legítimo inferir que provavelmente todo comportamento que não
atendesse ao que se esperava, independente da idade ou do gênero, era considerado: desviante ou
indesejado, e os hospitais psiquiátricos tornaram-se depósito de desajustados. Durante a
entrevista, chamou a atenção a pontuação, feita por E, sobre o número de professoras internadas
para tratamento psiquiátrico: “nunca vi tanta professora. Eu acredito que a mente que enfraquecia
(...) mas vinham ruim mesmo, ruim, ruim. Umas casadas, outras solteiras, novas, ficavam um
tempo e saíam, sendo então tratadas como externas”.
171
É provável que algumas delas tenham
sido internadas também por motivos financeiros, pois durante o tratamento médico as
professoras, que eram funcionárias públicas, continuavam recebendo seus salários, ao quais
possivelmente, eram administrados por alguém que poderia ter outros interesses.
Diversos eram os motivos das internações, nem sempre necessárias. Neste sentido,
Silva
172
descreve uma internação no Hospital Colônia de Barbacena em 1944, onde um assistente
social havia escrito no prontuário que o único sintoma apresentado pela paciente era de perda de
contatos externos. O relato da autora infere ainda que a decisão de internação partira de
segmentos não-médicos da sociedade, como polícia ou família, que indevidamente diagnosticara
o paciente como doente mental, e ilustra sua fala ao comentar que, em sua pesquisa no Hospital
Colônia de Barbacena, se deparou com vários prontuários onde o campo diagnóstico estava em
branco. Insinua-se assim que o manicômio não se preocupava em internar apenas quem
necessitasse de tratamento psiquiátrico, funcionando como um mecanismo na indústria da
loucura.
No conto “Eu vim telefonar”,
173
Gabriel Garcia Márquez contextualiza a situação
de uma mulher que acaba internada num hospital psiquiátrico por engano, quando na verdade só
procurava um lugar que tivesse um telefone. A personagem do conto, Maria de la Luz Cervantes,
é uma atriz mexicana que viajava para Barcelona, quando tem um problema com seu carro. Pede
170
(E4) Entrevista 4.
171
E4 – Entrevista 4.
172
SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de
Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008
173
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. vim telefonar. In: MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Doze contos peregrinos. Trad.
Eric Nepomuceno. 3.ed. Rio de Janeiro. Record, 1995.
73
ajuda aos automóveis que passam, e recebe auxílio de um motorista de ônibus. Maria diz que
só precisa de um telefone para ligar para o marido, e embarca, sem saber, num ônibus que levava
mulheres para um hospital psiquiátrico. É possível estabelecer uma analogia entre o ônibus que
levava as loucas para Barcelona com o trem de doido, que levava os loucos para Barbacena. Ao
chegar ao manicômio, Maria, é confundida com uma paciente recém-chegada, e acaba sendo
internada. Maria insiste dizendo “só vim telefonar”, porém, sua palavra não tem valor e seu
discurso tem valor de sintoma, comenta Naffah Neto.
174
O autor cita esse conto como uma bela
descrição literária do estigma da loucura, mas assegura que o mesmo poderia muito bem ser o
relato de um caso acontecido, aqui mesmo no Brasil, devido a sua semelhança com diversas
situações reais. Maria acaba por enlouquecer, ratificando assim a marca da doença.
3.3 O Tratamento Manicomial
Uma internação é seguida de muitas perdas, muito sofrimento para qualquer paciente,
“ao ter que se submeter a uma instituição psiquiátrica, o indivíduo perde suas roupas, seu quarto,
seu espaço, tudo o que possibilita a delimitação do eu, lugar a objetos padronizados e de uso
comum,” ressalta Silva.
175
E2 parece compartilhar desta percepção, quando diz que o hospital
psiquiátrico era uma alternativa muito cruel para qualquer um, mas no caso das mulheres, era
pior. Elas ficavam muito desumanizadas, perdiam sua identidade, eram privadas de seus
pertences, como roupas, roupas íntimas, absorvente, pente, escova de dente. Quando uma nova
paciente aparecia com um pente, logo muitas outras tomavam dela. Estraçalhavam-se por causa
de um simples pente, objeto essencial no mundo feminino; toda mulher gosta de pentear o cabelo,
e tirar-lhe o pente é uma violência.
Silva,
176
ao tratar do Hospital Colônia de Barbacena, também faz referência à perda de
identidade, e pontua que havia uma tentativa de resistência e resgate de uma individualidade por
174
NAFFAH NETO, Alfredo. O Estigma da loucura e a perda da autonomia. Revista Bioética, Vol. 6, Nº. 1, 1998.
175
SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de
Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008, p. 36
176
Ibidem, 2008,
74
parte de alguns internos, o que era representado por um lenço amarrado na cabeça ou uma caneca
pendurada num embornal.
Várias mulheres que estiveram internadas não eram loucas, não eram delirantes, não
eram agressivas, afirma E2. E muitas delas foram violentadas sexualmente dentro do hospital,
sem que se pudesse fazer nada, nem denunciar e nem mesmo registrar o fato. Como era ela uma
doente mental, se dizia que estava inventando coisas. Daí a afirmação de que a internação era um
ato de violência. Era comum os profissionais chegarem ao hospital e encontrarem morto um
paciente que um dia antes estava “normal” (como uma pessoa num surto psicótico poderia estar,
agitado, cantando, dançando, falando muito, pedindo a atenção). E ninguém podia fazer nada,
acrescenta: “isso era muito doloroso, sabe, e nós que trabalhamos em hospitais psiquiátricos
vivíamos isto com muita freqüência, sem poder dizer nada, sabe, sem poder olhar e saber o que
aconteceu, você não podia falar nada”.
177
Para elucidar as situações de violência dentro de um manicômio, relata o caso de uma
mulher que era internada frequentemente, e descreve o estado de total abandono, descuido e maus
tratos que apresentava ao chegar:
Ela quando chegava, estava com uma pele horrível, descamando, e a pele dela
era muito branquinha, tinha piolho... parece exagero, mas não é, quando a gente
passava o pente no cabelo, saia assim bolos de piolho. Como que aquela pessoa
conseguia passar um dia com aquele tanto de piolho beliscando a cabeça dela. E
ela chegava lá no hospital e não recebia nenhum tratamento mais carinhoso,
sabe, raspavam a cabeça dela, passavam um banho gelado, e ela ficava dias ali,
parecendo que estava... assim, eu não sei, como se tivesse tirado sua pele e você
ficasse exposta ao ar livre, sabe, que o ar te fazia tremer...era isso.
178
Essa mulher, durante os atendimentos, começou a desenhar, fazendo desenhos bem
pequenos numa folha, uma composição, que impressionou muito o entrevistado, por tanta
sensibilidade em meio à violência, ao abandono e ao sofrimento.
Outro exemplo de como os pacientes chegavam aos hospitais necessitando de cuidados
básicos é fornecido por E4,
179
quando relata que os pacientes chegavam parecendo bichos, sem
tomar banho, sem trocar a roupa, cabelos sujos e cheios de piolhos, unhas grandes, barba
crescida. Estas características apresentadas pelo entrevistado sugerem uma dificuldade da própria
177
(E2).Entrevista 2.
178
Ibidem.
179
(E4).Entrevista 4.
75
família em lidar com estas pessoas, que preferiam abandonar, ou melhor, pagar para que alguém
pudesse cuidar. Segundo o entrevistado, em muitos casos a família preferia pagar para que essas
pessoas fossem pensionistas do hospital, mesmo que não apresentassem mais sintomas da doença
ou tivessem se restabelecido.
O “tratamento” oferecido pelos hospitais aos internos refletia a intolerância da
sociedade aos loucos ou desajustados. Eles não tinham espaço para falar, perdiam sua identidade,
eram submetidos a formas desumanas de tratamento, maus tratos. O manicômio representava o
lugar de exclusão social da loucura. As técnicas utilizadas como terapêuticas, apenas reforçavam
o descaso ao louco, pois estes procedimentos na verdade impossibilitavam a sua recuperação. O
tratamento utilizava métodos como eletro choques, choques fisiológicos, camisas de força,
soroterapia, excesso de psicofármacos, banhos gelados, entre outros.
E4 descreve a aplicação destes métodos durante sua atuação em hospital psiquiátrico,
relatando que se fazia sonoterapia em pacientes com depressão (hoje conhecida como stress), e
explica o método como sendo um tratamento onde o paciente tinha o sono induzido por um
tranqüilizante colocado no soro, até ele melhorar. Deixava o paciente dormir a vida inteira,
afirma. O entrevistado descreve também o procedimento do choque elétrico, o qual, na maioria
das vezes, era aplicado por ele: “a voltagem de 110/80 não tem amnésia, se aumentar o grau tem
que dar injeção na veia de Tionembutal para dormir, abrir a boca e colocar um pano na boca”.
Pontua que não havia mortes no hospital por choques elétricos, porém, ele deixava certa amnésia,
alguns pacientes saiam rápido dela, outros demoravam mais. Costumava usar a ludo terapia,
colocando o paciente para brincar, proporcionando um entretenimento ou trabalho para que ele
não parasse e pudesse sair daquela fase, alega E4. E tinha ainda o choque por insulina
180
: “às 5
horas da manhã eu estava aplicando insulina neste povão todo, a insulina era para queimar a
glicose todinha no organismo. Quando o paciente entrava em crise de choque, era em coma ou
pré-coma, tinha que dar glicose na veia.” E4 relata que quando a glicose entrava no organismo, os
pacientes suavam, transpiravam aquela glicose que estava sendo queimada com a insulina, o que
fazia o paciente sair da crise.
180
Nota: Em 1930, um jovem neurologista e neuropsiquiatra polonês chamado Manfred J. Sakel. anunciou a
descoberta do uso de insulina no tratamento da doença mental. Tratava-se de uma terapia por choque ou terapia
insulínica. O excesso natural ou artificial de insulina causa hipoglicemia, o qual leva ao coma e convulsões, devido
ao déficit de glicose nas células cerebrais. O coma por insulina requeria cinco a nove horas de hospitalização e um
seguimento mais trabalhoso, mas ela era facilmente controlada e terminada com injeções de adrenalina e glicose.
Renato M.E. Sabbatini, PhD, In:
http://mortesubita.org/psico/textos/a-historia-da-terapia-por-choque-em-psiquiatria
76
A eletroconvulsoterapia (choque elétrico, como é popularmente conhecido), o choque
insulínico, assim como as outras formas de tratamento citadas anteriormente, foi usado de forma
indiscriminada em hospitais psiquiátricos. Os choques elétricos, por exemplo, eram muito
associadas a castigos físicos e controle disciplinar, porém sua utilização pode deixar graves
seqüelas, físicas e emocionais. Hoje se sabe que o tratamento é inadequado e ineficiente, motivo
pelo qual foi abolido na rede pública de Saúde Mental, na década de 80. Porém, alguns
profissionais insistem em aplicá-lo, apresentando-o sob o nome sonoterapia, pelo fato de que o
paciente dorme durante sua aplicação. A eletroconvulsoterapia é um dos métodos de tratamento
mental mais combatido, tanto por profissionais quanto por usuários da saúde mental, considerado
uma forma de tortura.
3.4 O Feminino e o Masculino no Espaço Manicomial
O Hospital Colônia de Barbacena começou a internar mulheres em 1904, um ano após
sua inauguração, chegando a contar com 2.600 mulheres e 1.600 homens na segunda metade do
século XX,
181
número superior a sua capacidade. Em 1934, o Hospital de Oliveira tornou-se
exclusivo para mulheres, variando o número de mulheres internadas. Um aspecto interessante
ressaltado por Silva
182
em sua pesquisa no Hospital Colônia é sobre o estado civil dos pacientes,
predominando as mulheres solteiras, aspecto que relaciona ao fato de que o casamento era
entendido como uma instituição mantenedora da ordem, diferenciando o estado mental das
pessoas. Outro fator que ajuda a compreender a diferença de padrões culturais entre homens e
mulheres é o maior índice de alcoolismo nos registros masculinos. Segundo a autora, os
transtornos de humor são mais comuns em mulheres que em homens, o que entende estar
relacionado aos padrões culturais e morais do início do século XX.
Voltando ao contexto do Norte de Minas, E2 alega que o número de homens e
mulheres internos era equivalente, pois costumava precisar de casais em atividades desenvolvidas
181
Revista O Cruzeiro, 1961 (apud MAGRO FILHO, J. A tradição da loucura. Minas Gerais - 1870-1964. Belo
Horizonte: COOPMED/Editora UFMG, 1992.)
182
SILVA, Mary Cristina Barros e. Repensando os porões da loucura: um estudo sobre o Hospital Colônia de
Barbacena. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, 2008
77
no hospital, e sempre era para o par. Porém, as mulheres eram mais barulhentas e os homens mais
violentos; “as mulheres pintavam mais, elas tiravam a roupa, elas rasgavam os lençóis, elas
aprontavam mais escândalos, assim. E os homens às vezes eram casos assim, hoje não pode mais
ser dito, mas eram casos de agressões graves a outros”.
183
Sobre o Hospital Santa Catarina, E7 relata que maioria das pessoas atendidas era de
outras cidades, e que havia muito mais mulheres do que homens. A faixa etária dos homens era
de 50 anos e das mulheres, mais comum com 45 anos, embora tivesse muitas jovens. Sobre os
pacientes, comenta “tinha jovem que era preciso eles colocarem num quarto mais seguro.Tinha
dia que eles ficavam muito agitados, mas também tinha dias que eles estavam assim, bem na
deles, assim caladão, às vezes até babando”.
184
E4 alega que o hospital recebia pacientes
homens, mulheres, mulheres grávidas, crianças, “a criança também adoecia, nascia nervosa e
continuava até descobrir... elas não recebiam eletro choque, eram gotinhas de medicação.” Pontua
ainda que muitos velhos eram internados pelas famílias, que não os suportavam mais por causa
da esclerose: “eles chegavam nervosos, a família abandonava. Não abandonava propriamente
porque pagava o hospital para a gente olhar”.
185
Um caso de criança internada nesta mesma instituição foi relatado por E7. Tratava-se
de uma menina que foi internada por volta dos 10 anos de idade, e que segundo o entrevistado,
não apresentava nenhum sintoma de doença mental, mas sim um crescimento exagerado que lhe
garantia quase dois metros de altura antes mesmo de entrar na adolescência:
Dr. Áflio tratava pessoas que tinham outros tipos de doença, igual uma menina
lá, de 15 anos, que media 2 metros, acho que não desenvolveu o cérebro. Ele
tratava esta menina, internada lá a vida toda. Dr., Áflio tratava esta menina como
filha, a família dela era de Belo Horizonte. Ela era uma criança, gostava de
brincar de boneca. Ela não apresenta muita coisa, acho que era possível viver
junto com a família.
186
Os dados relatados pelo entrevistado permitem levantar a hipótese que esta menina
estava fora dos padrões estéticos (media dois metros de altura), mas sem uma maturidade que
acompanhasse o desenvolvimento do corpo. Ainda brincava de boneca, quando as meninas de sua
183
(E2) Entrevista 2.
184
(E7) Entrevista 7.
185
(E4) Entrevista 4.
186
(E7) Entrevista 7.
78
idade já tinham outros interesses, agindo como criança. Pelo depoimento de E7, parece-nos que a
criança, mesmo estando fora do padrão físico, não apresentava dificuldades na convivência
social. É provável que a família tivesse dificuldade de lidar com a diferença que ela apresentava.
3.5 Loucura Feminina: Sintomas e Diagnósticos
Um dos questionamentos feitos aos funcionários e ex-funcionários durante as
entrevistas foi sobre os sintomas apresentados e diagnósticos mais comuns destas mulheres. Entre
as patologias mencionadas, aparece muito frequentemente as esquizofrenias e psicoses, porém,
alguns entrevistados asseguram que várias mulheres foram internadas sem apresentar sintoma ou
um quadro de doença mental. As patologias citadas pelos entrevistados: “esquizofrenias
paranóides e as efetivas, e secundariamente, o alcoolismo e as substâncias psicotrópicas” (E1);
“Esquizofrenia, principalmente” (E2); “psicoses e neuroses” (E3); “alcoolismo, esclerose (...)
esquizofrenia, agitação psicomotora, PMD” (E4); “não era totalmente pessoas com problema
mental (...) pessoas com depressão, pessoas às vezes desiludida” (E5); “Pessoas com depressão,
desiludidas, mulheres com alcoolismo. Não era louco ou pessoas com problemas mentais.”
(E7).
Quanto aos sintomas, os relatos são de mulheres nervosas, tristes, moças rebeldes,
desobedientes, mulheres grávidas. É muito provável que algumas mulheres grávidas foram
internadas pelas famílias como forma de esconder uma gravidez indesejada. Essa insinuação
aparece na fala de um entrevistado, ao responder sobre o motivo da internação das mulheres
grávidas:
Tinha muito, muito mesmo. Eram internadas porque dava na gravidez o que eles
falavam... resguardo quebrado. Não isto não, de quebra. Era depressão
puerperal, era a família que levava estas mulheres. Se fizesse o eletro... elas não
eram boas, meio atrevidas. Além da gravidez, o parto, porque se fazia parto no
convento, eu fui freira, eu fazia parto muito bem. Naquela época eles não
colocavam os médicos para fazer parto. As freiras é que faziam, ou então
enfermeira formada.
187
187
( E4). Entrevista 4.
79
A afirmação feita por E4 sobre os partos feitos no hospital psiquiátrico e até mesmo no
convento sugere que muitas mulheres grávidas eram levadas para terem, o filho em segredo,
longe dos olhares curiosos ou preconceituosos da sociedade. O grande número de grávidas
internadas em hospitais psiquiátricos, informação presente no relato de outro entrevistado (E5),
188
desperta a suspeita de uma gravidez indesejada ou inadequada.
Outro caso interessante é lembrado por E1,
189
de uma paciente internada no hospital
psiquiátrico por ter tentado abortar a criança que esperava. O entrevistado alega que essa mulher
permaneceu no hospital por dois dias, mas aparentemente não apresentava nenhuma patologia.
Porém, em sua opinião, uma mulher que tenta matar o filho certamente tem algum distúrbio,
mesmo que não seja uma psicose. Como o tempo de internação foi limitado, não foi possível
fazer um diagnóstico referencial.
3.6 Crime e Loucura
Sobre a criminalidade feminina, Caleiro
190
assevera que a preocupação da elite em
instituir a nova ordem urbana levou instituições como família e escola a divulgar a ideologia
masculina, fiscalizando os comportamentos femininos, julgando e condenando os que
consideravam inadequados. Pode-se verificar que, no contexto criminal, a mulher aparece mais
como vítima do que como ré, mas em ambos os casos, são julgadas muito mais pela sua conduta
moral.
A análise de alguns processos-crime da Comarca de Montes Claros na segunda metade
do século XX permitiu entender melhor a relação entre loucura e crime, e o tratamento dado aos
casos de crime cometidos por mulheres, pois as fontes confirmam o juízo de valor pertinente à
época. Alguns pontos devem ser ressaltados em relação aos crimes cometidos por mulheres. Dos
dez casos pesquisados (de Montes Claros e outras cidades da região), sete foram cometidos
contra os próprios filhos (infanticídio ou homicídio); dois contra adultos, e um cometido por uma
empregada doméstica contra o filho de sua patroa, de um ano de idade. Em todos os casos, o
188
(E5). Entrevista 5
189
(E1) Entrevista 1
190
CALEIRO, Regina Célia Lima.. História e Crime: quando a mulher é a ré. Franca 1890-1940. Montes Claros: Ed.
Unimontes, 2002
80
crime foi cometido sem uso de arma de fogo, mas com utensílios de uso cotidiano como tesoura,
machado, panos, etc. Isso sugere, portanto, que essas mulheres não haviam planejado o crime,
não demonstrando uma intenção prévia de matar. Com exceção de um caso onde a autora do
crime era uma professora, nos outros casos as mulheres apresentavam baixo nível social e baixa
escolaridade. Percebe-se uma preocupação de adequação aos conceitos impostos pela sociedade,
aos papéis estabelecidos, ao ideal feminino.
Outro ponto a ser ressaltado é que em todos os casos aparece um componente moral
muito forte, que pode inclusive preceder um surto. Em três casos, os crimes foram cometidos por
mulheres “solteiras”, com uma gravidez indesejada. Nestes crimes de infanticídio, era
“necessário” esconder a “vergonha” ou a “desonra”. Havia o medo da desmoralização, e a
gravidez era uma vergonha, atentado aos bons costumes e à família. Dois crimes foram
cometidos por mulheres em uma situação familiar desajustada, onde o marido ou companheiro
“desconfiava” da paternidade.
Os valores morais e sociais eram muito rígidos, e no que tange às mulheres, estava
implícito um código de postura. Havia um modelo feminino a ser seguido, e o comportamento
esperado das mulheres estava contemplado nesse código, como a própria maternidade,
considerada inerente à mulher. Portanto, o crime de infanticídio e até mesmo o de homicídio de
crianças era associado à loucura, pela “impossibilidade” de se pensar que uma mulher poderia
matar uma criança em seu juízo perfeito. Assim, ao ser julgada como “louca”, o crime cometido
era de certa forma justificado, e a mulher seria encaminhada ao manicômio devido a sua
inimputabilidade
191
, ou seja, por ser uma doente mental, considerava-se que ela não tinha
consciência do crime cometido, não poderia cumprir pena em uma cadeia ou penitenciária.
O conceito de doença mental utilizada pelo Código Penal Brasileiro diz respeito a uma
alteração patológica, mais ou menos prolongada, das funções psíquicas, a qual impede a
191
Nota: Inimputabilidade conforme o artigo 26 do Código Penal Brasileiro: É inimputável todo indivíduo que, em
virtude de doença mental, de desenvolvimento incompleto ou retardado ou por embriagues completa e fortuita, era,
ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se
de acordo com tal entendimento. Porém, ao sujeito inimputável, nos termos do art. 26, aplica-se medida de segurança
(CPB, art. 97), sob as formas de internação compulsória e de tratamento ambulatorial.
Internação
: se o fato corresponder a crime punido com a pena de reclusão aos imputáveis. A internação será
estabelecida pelo juiz, em período de um a três anos, perdurando enquanto não se verificar mediante perícia, a
cessação de periculosidade ou de perigosidade. Tratamento ambulatorial
: se o fato corresponder a crime punido com
pena de detenção – período tratamento um a três anos.
81
adaptação do indivíduo às normas do meio ambiente, com perigo ou prejuízo para si próprio e
para a sociedade.
192
Assim sendo:
É isento de pena quem pratica fato que a lei define como delito sendo
inimputável, pois, em tal circunstância não se configura crime, nem se
caracteriza seu ato enquanto tal. Esse sujeito não responderá pelo seu ato
frente ao juiz que o absolve, materialmente, e não sofrerá nenhuma
apenação.
193
Até os dias de hoje, para se detectar a inimputabilidade, são feitos exames psiquiátricos
e psicológicos que definirão o futuro da pessoa diante da justiça. Será então aplicada medida de
segurança, e no caso das mulheres da região, era a internação em manicômio judiciário. Embora a
medida de segurança tenha um prazo determinado por lei, muitas vezes acaba transformando-se
em uma prisão perpétua, pois são vários os casos de pacientes que terminaram seus dias num
manicômio judiciário. Os motivos mais comuns são: a família não os aceita de volta, não tem
família, a própria sociedade não permite a sua reinserção. Se o louco que não praticou nenhum
crime já é alvo de segregação, pode-se imaginar aquele que além de transgredir as normas
sociais, transgrediu ainda a leis jurídicas.
3.7 Processos-crime
Dentre os crimes pesquisados, chamou a atenção o desfecho de um crime acontecido
em 1973, cometido por T.R.S, solteira, professora, que enforcou o filho recém-nascido e colocou-
o dentro de uma mala. Frente a acusação de ter matado o filho, T.R.S. se defende, alegando que a
criança havia nascido morta.
194
A leitura do processo permite tecer algumas considerações sobre
a percepção dos valores sociais vigentes.
T.R.S. vivia com o pai e a e, uma boa família, e não tinha maus antecedentes
biológicos. Porém, foi enganada pelo namorado, que depois de algumas relações sexuais, fugira
192
Hungria apud SENRA, Ana Heloísa. Inimputabilidade: conseqüências clínicas sobre o sujeito psicótico. São
Paulo: Annablume, Belo Horizonte: FUMEC, 2004
193
SENRA, Ana Heloísa. Inimputabilidade: conseqüências clínicas sobre o sujeito psicótico. São Paulo: Annablume,
Belo Horizonte: FUMEC, 2004, p. 43.
194
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal, Nº. 5727, Montes Claros, 1973.
82
do compromisso. T.R.S. havia escondido a gravidez da família, alegando que estava com “barriga
d’água”. Começou a passar mal e a mãe foi chamar um farmacêutico. Quando chegaram, T.R.S.
estava saindo do quarto, com a barriga menor, dizendo ter vomitado a “água”. O farmacêutico
desconfiado, entrou no quarto e ao ver sangue, avisou o delegado da possível “gravidez”. A
polícia levou junto um médico, que confirmou o fato. Ao ser interrogada, T.R.S. buscou o corpo
da criança e entregou ao delegado, que a levou presa, suspeita de ter cometido o crime.
Os dados apresentados no processo sobre a conduta de T.R.S são relevantes para a
análise do caso por parte da justiça, conforme relatado no processo pelo Promotor de Justiça:
T.R.S, pessoa sem maiores recursos, sem grande destreza intelectual, talvez
simplória, vivia junto aos seus, com naturalidade, placidamente. Que, todavia,
tinha ela também o seu namorado, no caso, D.PM E em meio ao namoro,
também certas liberdades que se sucediam e aumentavam, por certo (...) E deste
partindo promessa de casamento, por certo, ai mais se entusiasmou, entregando-
se ao seu namorado, passando-se daí a ser presa fácil com quem mantinha e
deseja idílio.
195
As palavras do Promotor vem justificar a conduta considerada inadequada de T.R.S:
D.P.M.. fugira ao compromisso. (...) a desiludida e bisonha moça , mais perturbada se tornara, e
aliado ao seu estado de gravidez, com seus efeitos...” Percebe-se um certo juízo de valor por
parte do Promotor ao descrever a situação: em virtude de encontros e desencontros, dádivas,
liberdades, delícias e conjunções carnais (...) advinde-se-lhe a gravidez, cujos sintomas ela
escondia (...) Causava-lhe vergonha o fato”.
196
A gravidez de uma moça solteira era considerado
uma vergonha para a família perante a sociedade, principalmente se o casamento não
acontecesse. Santos compartilha esta opinião na sua análise deste mesmo caso:
D.P.M.. fugira ao compromisso, a promessa já não tinha mais validade alguma.
Se o erro fosse reparado, mesmo que a sociedade soubesse que ela ficara grávida
antes de se casar, depois do mesmo, ninguém mais se lembraria, ela teria uma
vida normal e o seu filho nasceria em uma família higiênica e disciplinada, bem
aos moldes burgueses. Contudo, não foi o que aconteceu, e a desilusão sofrida
por T.R.S., segundo o promotor, acarretara sérias conseqüências, fazendo com
que ela assassinasse seu filho.
197
195
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal, Nº. 5727, Montes Claros, 1973.
196
Ibidem.
197
SANTOS, Jecely Pereira dos. Loucura Puerperal: Relatos e Representações de mulheres loucas e infanticídios,
no Norte de Minas, na segunda metade do século XX: 1950 a 1980.Monografia UNIMONTES, Montes Claros,
2008, p. 50.
83
Conforme relatado no processo, T.R.S. apresentava até então uma conduta socialmente
aceita como boa, tinha uma profissão e referências familiares, portanto, seu estado mental não foi
questionado. Consta no processo que T.R.S.chegara a alegar para a mãe que a criança não tinha
pai, pois jamais tinha sido tocada por um homem. Quanto a esta afirmação, Santos pontua que
“está bem explícita a vergonha que era para uma mulher solteira ter um filho sem se casar, a
ponto de ter que inventar uma história que a defendesse de ser tratada como uma qualquer por
uma sociedade com valores tão ligados à moral.”
198
O crime cometido por T.R.S. também encontra justificativa nas páginas do processo,
através das palavras do médico Fernando de Magalhães: “Nas parturientes, baixa comumente a
lucidez como sintoma de preterição do pudor. E os atentados contra a vida do recém-nascido
aparecem no curso da melancolia e da demência.”
199
O estado puerperal foi utilizado para
justificar muitos atos e até mesmo crimes cometidos por mulheres, até porque era inconcebível
que uma mãe pudesse cometer qualquer ato agressivo ou mesmo causar a morte ao filho. A
justiça entendeu que seu ato se justificava pelo seu estado puerperal, e a indiciada foi absolvida.
Segundo Santos, “o fato dela nunca ter assumido o delito pode ter contribuído para o parecer
favorável na sentença”.
200
A autora comenta ainda que a repressão feminina e o ideal de mulher
que permeava o pensamento montesclarense era o mesmo do restante do país. A honra da mulher
deveria ser preservada. E que apenas a demência poderia justificar o assassinato de uma criança.
Isso nos leva a uma questão: Porque não é discutida a possibilidade da mulher ser má?
De apenas pretender livrar-se do fruto de uma gravidez indesejada? Os crimes de infanticídio e
até mesmo o de homicídio de crianças eram frequentemente associados à loucura, pela
“impossibilidade” de se pensar que uma mulher poderia “matar” uma criança em seu juízo
perfeito.
O tratamento dado a cada caso, a cada crime, era diferenciado, pois nem todas as
mulheres foram consideradas loucas por terem matado seus filhos. Quando se tratava de lavar a
honra, o entendimento é que as mães solteiras haviam tido uma confusão de idéias passageira.
198
SANTOS, Jecely Pereira dos. Loucura Puerperal: Relatos e Representações de mulheres loucas e infanticídios,
no Norte de Minas, na segunda metade do século XX: 1950 a 1980.Monografia UNIMONTES, Montes Claros,
2008, p. 52
199
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal, Nº. 5727, Montes Claros, 1973.
200
SANTOS, Jecely Pereira dos. Loucura Puerperal: Relatos e Representações de mulheres loucas e infanticídios,
no Norte de Minas, na segunda metade do século XX: 1950 a 1980.Monografia UNIMONTES, Montes Claros,
2008, p. 50
84
Mas aqui também é possível levantar outro ponto, pois o crime de T.R.S. foi analisado de forma
diferente do caso de A.M.F.M., 20 anos, doméstica, que cometeu o crime de infanticídio neste
mesmo ano, e foi encaminhada ao Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz. Ela foi acusada
de matar o filho recém-nascido com uma tesoura, e jogá-lo no mato. De acordo com o processo,
após ter dado luz à criança, A.M.F.M. foi vista pela patroa saindo do mato com a roupa suja de
sangue. Confessou que tinha tido um filho que nasceu morto. Desconfiada, a patroa chamou a
polícia, que a interrogou. Os peritos concluíram que A.M.F.M. tinha agido assim por estar no
período pós-parto ou estado puerperal, caracterizado pela perda do contato com a realidade pela
mulher logo após o nascimento da criança.
201
É possível perceber um componente social e moral nesse caso, pois a indiciada era
doméstica, pertencendo portanto ao extrato inferior da sociedade, sem instrução, diferentemente
de T.R.S., que mesmo sendo referida pelo promotor como uma pessoa simplória e sem grande
destreza intelectual, era uma professora e tinha boas referências familiares. Estes componentes
influenciaram tanto a justiça quanto a medicina, conforme foi percebido em diversas situações.
Mesmo tratando-se de casos parecidos, a análise deles fora muito diferente, demonstrando que
em Montes Claros juízes e promotores compartilhavam a visão de um modelo feminino burguês.
Na opinião dos juristas, apenas as mulheres que tinham filhos fora de um casamento estavam
sujeitas a passar pelo estado puerperal, tendo seu comportamento por ele alterado. Assim, como
A.M.F.M. era solteira, estava sozinha, abandonada pelo namorado, era natural que ficasse
perturbada, conforme consta no processo: “mães solteiras, em sua maioria abandonadas à própria
sorte pela família, amantes (...) Fazem parte da escória da sociedade. Após voltar ao seu estado
normal demonstram arrependimento pelo fato cometido”.
202
Esta afirmação merece algumas
considerações. A depressão pós-parto (ou estado puerperal) é uma patologia severa, que pode
começar logo após a gravidez e durar até dois anos. Ela não escolhe “sua vítima” de acordo com
o estado civil. É um tema bastante complexo. As mudanças psicológicas e físicas de uma
gravidez, o parto e a própria idéia da maternidade podem causar alterações que interferem no
estado emocional das mulheres, podendo desencadear crises emocionais e alteração de
comportamentos, independente de idade, nível sócio-econômico ou estado civil. A falta de
201
Nota: o estado puerperal ou psicose puerperal é desencadeada pelo parto, assemelhando-se à uma psicose de curta
duração. Segundo Kaplan e Sadock (1993) é uma síndrome que se caracteriza por depressão e delírios onde persiste
o desejo de ferir ou matar a criança, representando perigo real. Para alguns autores, a psicose puerperal relaciona-se a
dificuldade de ser mãe. FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. São Paulo: Atlas, 2009.
202
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal, Nº. 5732, Montes Claros, 1973
85
suporte social pode ser um fator de risco, mas não se pode dizer que o puerpério acomete apenas
mulheres que não tem um relacionamento conjugal estável.
Com tudo isso, A.M.F.M .foi morar com os pais durante o andamento do processo, e
ao ser encontrada pela Justiça, alegou não se lembrar de nada. Os peritos concluíram então que
ela não estava no seu perfeito estado mental, e a pedido dos psiquiatras, A.M.F.M. foi
encaminhada pelo Prefeito da cidade na época, Dr. Moacir Lopes, ao Manicômio Judiciário Jorge
Vaz, em 28/05/73. Entende-se que “não se lembrar” do que aconteceu levou os peritos a uma
outra interpretação: A.M.F.M. não agiu em função do estado puerperal (temporariamente
confusa, desequilibrada), e nem em defesa da honra. O diagnóstico de A.M.F.M. foi de loucura,
conforme dados da carta que consta no processo:
Solicito-vos a especial fineza que seja internada em um hospital apropriado pela
Assistência Social deste município a senhora A.M.F.M, que no dia 15 do mês
passado deu à luz a uma criança e após o parto a assassinou com uma tesoura
(...), outrossim, informo-vos que a indiciada apresenta sintomas de debilidade
mental, sendo dispensada desta delegacia, não teve condições de regressar ao
seu lar
.
203
Mais uma vez o ideal feminino prevalece, e o que se espera de uma mulher é que ela
tenha introjetado esta imagem. A maternidade simboliza o universo feminino, e toda mulher deve
desejar ser mãe, cuidar e amar o seu filho. Vale ressaltar que o mito do amor materno foi
socialmente construído, incentivado pelos partidários do divórcio, que buscavam garantir direitos
às mulheres, reforçando a idéia de maternidade como condição feminina
204
. Assim surgiu um
pseudo-matriarcalismo, para o qual muitas mulheres contribuíram ao representar estes papéis,
embora algumas tenham negado tal ideal através de seus comportamentos. O crime de
infanticídio, por exemplo, rompe com a expectativa social do papel feminino, ressalta Caleiro,
assim como outros delitos femininos que denunciavam o negativo da ordem. Este tipo de
comportamento “representou juridicamente a subversão das leis, além das expectativas sociais e a
subversão da ordem instituída pelo Código Penal”.
205
O infanticídio, em casos como estes dois
últimos, revela que os valores vigentes na sociedade estavam arraigados em seus membros,
203
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal, Nº. 5732, Montes Claros, 1973
204
BARROS, Fernanda Otoni de . Do Direito ao Pai: a paternidade no tribunal e na vida.. 2.ed. – Belo Horizonte:
Del Rey, 2005.
205
CALEIRO, Regina Célia Lima.. História e Crime: quando a mulher é a ré. Franca 1890-1940. Montes Claros: Ed.
Unimontes, 2002, p
86
provocando o medo da reação dos pais e do julgamento da sociedade pela ilicitude dos
relacionamentos
ou a vivência pecaminosa da sexualidade, sugere a
autora. Casos assim foram julgados como loucura puerperal. Pelo pensamento médico da época, a
maternidade era uma forma de se curar ou prevenir problemas psíquicos relacionados à
sexualidade, porém a gravidez e o parto poderiam ser desencadeadores desses distúrbios, aponta
Magali Engel. A atenção dos alienistas para a loucura puerperal estava voltada para a capacidade
física ou moral apresentada pela mulher no momento da maternidade. A autora comenta ainda
que as mulheres enlouqueciam quando exerciam de forma inadequada a sua sexualidade, o que
permite dizer do componente moral implícito no julgamento delas.
206
Das mulheres se esperava submissão e obediência aos padrões de comportamento
estabelecidos. A sexualidade poderia ser vivenciada no contexto do casamento, e mesmo
assim, havia certas limitações. Como a mulher foi ensinada a obedecer, ser submissa e não ter
vontade própria, manifestar seus desejos, sentir prazer significava apresentar sintomas de
desequilíbrio ou loucura. Em várias situações esse comportamento era entendido até mesmo
como manifestações demoníacas, bruxaria, estar possuída. Sob a influência do pensamento
lombrosiano, considerava-se que as mulheres muito eróticas, de personalidade forte e inteligência
acentuada, eram desprovidas do ”instinto materno”, negando assim uma característica feminina
inata. Representavam então as criminosas natas, prostitutas e loucas, que deveriam ser retiradas
da sociedade, passando a compor o contingente dos hospícios ou dos manicômios judiciários, diz
Rachel Soihet.
207
Outro crime cometido na cidade foi o de E.R.R., que na década de 80 matou sua filha
de dois anos. Conforme dados do processo, a criança foi asfixiada por compressão extrínseca do
pescoço com as mãos esganadura. No depoimento, o sogro de E.R.R. contou que ela
apresentava problemas mentais, tendo sido internada algumas vezes no hospital psiquiátrico da
cidade. A ré alegou que o marido brigava com ela, e que desde a gestação da menina ele dizia que
não era o pai da criança. Relatou ainda que na véspera bateu no filho porque ele não gostava de
levantar cedo e o tinha trancado fora de casa, e o marido abriu o portão para ele entrar. No dia
seguinte, (dia do crime), deu banho na filha, deu-lhe uma sopa porque o marido não havia levado
206
ENGEL, Magali. Psiquiatria e feminilidade. In: DEL PRIORI, Mary. A História das mulheres. São Paulo:
Contexto, 1997.
207
SOIHET, Raquel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: DEL PRIORI, Mary. A História das
mulheres. São Paulo: Contexto, 1997.
87
o leite para ela. Que sentia pena da menina por causa dos comentários dela não ser filha de seu
marido, e que “teve medo de que ela, ao crescer, não arranjasse casamento devido aos falatórios e
assim ficasse a sofrer pelas ruas, na qualidade de pauta...”
208
Assim resolveu eliminar a vida da
filha, apertando-lhe o pescoço com as duas mãos. Após soltar, viu que a mesma ainda estava
viva, apertou-lhe o pescoço novamente. Depois a levou para a calçada, e tentou acender uma
vela.
E.R.R. foi encaminhada ao Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz para Exame de
Sanidade Mental, e o diagnóstico foi Epilepsia com Transtornos Psiquiátricos. Em dezembro de
2001, o laudo alegava cessação de periculosidade, devendo a paciente continuar com tratamento
ambulatorial e em uso de psicofármacos, sob os cuidados da família. Com a cessação da
periculosidade, o Juiz autoriza a desinternação em abril de 2002 e a paciente retorna ao Norte de
Minas. No final deste mesmo ano, a paciente é acolhida num Centro de Atenção Psicossocial,
onde é acompanhada até o presente momento.
Conforme dados do serviço de saúde mental onde a paciente é acompanhada, ela
passou por várias internações antes da data do crime, e algumas vezes após o cumprimento da
medida de segurança. No hospital psiquiátrico onde a mesma esteve internada, não consta
nenhum registro da paciente, e conforme informação de E1, profissional da instituição, vários
arquivos teriam desaparecido algum tempo. O entrevistado lembrou-se da paciente, relatando
alguns dados sobre a mesma: “lembro da situação dela, ela delirava bastante, tinha história de ter,
eu não me lembro bem, mas tinha história de ter matado um filho, ela ficou em Barbacena muito
tempo e veio para cá. Mas quando ela chegou aqui, ela tinha uma psicose residual”.
209
Sobre o
seu comportamento, relata que era muito desvitalizada, apática, não apresentando nenhuma
demanda por nada, e que o que marcava muito era o seu isolamento.
Foram entrevistas outros profissionais que atenderam ou acompanharam a paciente
E.R.R. Um deles (E6) relatou que a paciente não gosta de falar sobre o crime, tornando-se
evasiva, perdida no seu mundo. Mencionou ainda perceber a rejeição da família com ela, e que
foi com grande dificuldade que aceitou que ela ficasse com eles, sem internação. “Parece que eles
têm medo dela, deixam-na num quarto isolado, não permitindo que ela fique junto à mãe. Ela
208
Prontuário 4785. Arquivo do Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz.
209
(E1) Entrevista 1.
88
percebe isto, sente solidão, rejeitada, sem contato com a mãe, que vai vê-la quando os outros
filhos não estão”.
210
Embora os prontuários consultados de E.R.R. apresentem um diagnóstico de transtorno
mental, não se pode negar o fato de que o comentário sobre sua conduta e a desconfiança do
marido sobre a paternidade da filha possam ter causado ou contribuído para o desequilíbrio
emocional ou alterações psíquicas. Numa sociedade onde prevalece um modelo feminino a ser
seguido, que estabelece algumas normas de conduta como a fidelidade conjugal, parece bastante
ameaçadora a possibilidade de uma traição por parte da mulher, ainda mais tendo um filho como
fruto deste desvio. Esta suposição não descarta a patologia, ao contrário, uma situação traumática
pode contribuir para o aparecimento do surto.
Outros casos
211
como de E.R.R., acontecidos na região norte mineira, foram também
encaminhados para os manicômios judiciários. Já as indiciadas A.B.S. e L.S. tiveram um destino
diferente, foram encaminhadas a um hospital psiquiátrico comum.
A.B.S, empregada doméstica, 22 anos, matou o filho de sua patroa, J.G., de um ano, no
dia 17/03/59, enforcando-o e jogando-o dentro da fossa do quintal. A morte da criança, a
princípio, pareceu a todos um acidente (havia caído na fossa), porém, o comportamento estranho
de A.B.S à partir daquele momento despertou suspeitas. Ao ser questionada pelo patrão, ela
confessou o crime, inclusive para a polícia, alegando ter ficado com raiva da patroa, que segundo
ela a tratava mal, mas que não sabia por que tinha feito aquilo. Foi solicitado um exame
psiquiátrico para verificar demência. Este exame foi feito pelo Dr. Áflio Mendes de Aguiar,
psiquiatra renomado no Norte de Minas. Foram analisados os antecedentes biológicos da
indiciada, pois a patroa havia afirmado que A.B.S era filha de um criminoso, e que a própria
tinha sido presa por tentar dar um golpe de facão no pai que tentara abusar sexualmente dela. A
conclusão do médico é que A.B.S. fazia parte de uma família de degenerados, e que também
tinha tido relação sexual, da qual resultara um filho. Mesmo sem encontrar um “quadro
210
( E6) Entrevista 6.
211
Nota: Processos pesquisados no Hospital Psiquiátrico e Judiciário Jorge Vaz, em Barbacena, onde as pacientes
judiciárias são procedentes da região norte mineira: Prontuários 4089/89 e 43/07/90; Prontuários 3570/84, 4195/89 e
4225/89; Prontuários 3757/85 e 3904/86; Prontuário 191794 .
89
nosológico” que justificasse o crime, o psiquiatra concluiu que a indiciada era “doente mental”,
pois uma pessoa normal não mataria uma criança. A.B.S foi encaminhada a um Hospital
Psiquiátrico, uma vez que o Manicômio Judiciário não tinha vagas.
L.S., com 46 anos, em 01/01/53 matou seu filho de nove anos, cortando-lhe a cabeça com
um machado. Foi encontrada sentada perto do fogo, com o machado na mão, e alegou ao marido
que São Sebastião tinha lhe pedido a cabeça do filho. Foi indiciada pelo crime e a Promotoria
solicitou exame psiquiátrico em Barbacena. Ao investigar os antecedentes biológicos de L.S. os
peritos apontaram “maus antecedentes”, pois um irmão, o J.S., havia enlouquecido e matado o
pai, uma cunhada e dois filhos, foi preso e faleceu louco. Alegaram ainda que L.S. tinha outro
irmão louco, P.S., mas que trabalhava e podia conviver na sociedade. Pelo diagnóstico de L.S.
percebe-se a importância atribuída a duas teorias: a da hereditariedade e a da degenerescência,
conforme conclusão do perito:
L.S. é psicopata, pelas perturbações da ideação ou alucinações concretizadas nas
visões freqüentes, que diz lhe terem aparecido e nas transformações de sua
personalidade, mais do que uma criminosa, uma doente mental, psicose que
um exame especializado poderá concretizar que está a corroborar a história
pregressa de sua família, onde se registra o assassinato do pai pelo próprio filho,
irmão de L.S.
212
L.S. foi encaminhada para Barbacena (ou Raul Soares) em 26/02/54. Para os peritos,
L.S. era inimputável, ou seja, não tinha consciência do caráter ilícito de seus atos no momento do
crime. O fato de L.S. ter antecedentes criminais fornece elementos para sua própria condenação.
Esses dois casos mostram que a influência das teorias da degenerescência e da
hereditariedade ainda se fazia presente na sociedade e na justiça. Ao sugerir que a descendência
predispõe ao crime, os peritos acabam por se aproximar da teoria lombrosiana, que entende que
as características dos genes vão determinar o comportamento agressivo do sujeito. Ao
responsabilizar a hereditariedade, a teoria da degenerescência confere grande importância à
família, tornando-a objeto de estudo e de intervenção, justificando assim a canalização de
esforços do alienismo, da medicina mental, polícia, engenharia e outras instituições na construção
de uma cidade higienizada, afirma Cunha.
213
Essa concepção ignora a subjetividade, negando a
212
DPDOR/ AFGC, Processo Criminal s/n – Caixa 53 – 1954.
213
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do MundoJuquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
90
possibilidade de escolha do sujeito, ao inferir que existe o criminoso nato, sendo portanto
predestinado ao crime. Despreza o meio social, e os determinantes que podem influenciar a
conduta do sujeito. A conclusão do perito pressupõe um julgamento moral.
Pod
e-se concluir, a partir das leituras dos processos-crime e prontuários das pacientes
judiciárias, que independentemente do diagnóstico psiquiátrico, os crimes apontam para um forte
componente moral. Sobre as mulheres pesava uma quantidade maior de expectativa, portanto,
eram mais violentamente submetidas às regras, sem um espaço onde pudessem expressar seus
sentimentos e desejos. Possivelmente, num momento em que não suportaram mais esta condição
e transgrediram as normas, foram punidas de forma diferente. No lugar da prisão, o manicômio,
que também era uma forma de mostrar a fragilidade e desrazão do gênero homens cometiam
crimes, mulheres enlouqueciam.
91
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os esforços de desconstrução da idéia de desenvolvimento como exploração e
manipulação em função do capital, não se sustentam. A desclassificação do louco traz de volta
velhos paradigmas acerca da loucura. As diversas instituições criadas pelo poder público, como
hospitais psiquiátricos, manicômios judiciários, asilos e até mesmo o trem de doido tinham o
objetivo de excluir socialmente o louco, para que ele não atrapalhasse o sonho de
civilidade. Os
internos de instituições psiquiátricas tornaram-se objeto de lucro, artigo de comércio, alimentando a
indústria da loucura. Destarte, a psiquiatria e a medicina mental ou higiênica utilizaram seu saber para
validar e justificar a tutela dos loucos pelo Estado, que passou a administrar socialmente a loucura.
Lembrando Foucault, o maior problema é que a psiquiatria tornou-se uma disciplina moral. Cabe,
portanto, no intuito de fomentar novas discussões, perguntar por que a loucura representa uma
aversão à moral.
Muitos autores se debruçaram sobre a história, e constataram que o lugar reservado à
loucura, independente dos sintomas manifestados, sempre foi um espaço de exclusão e
segregação. Desde os séculos anteriores, as famílias que tinham posses escondiam seus doentes,
privando-os do convívio social. Permaneciam fechados nos quartos, e se eram agressivos ou
violentos, podiam ser amarrados e até mesmo amordaçados.
A atuação da psiquiatria foi influenciada por diversas tendências, tais como: a
definição de loucura para Pinel, que relacionava a loucura à razão; a medicina alienista que
atribuía à manifestação das patologias mentais à existência de afecção, originada
fisiologicamente; e a tendência de monomania, proposta por Esquirol, que relacionava a loucura
aos desvios sociais e comportamentais. Frente à possibilidade de intervenção social da medicina,
um novo tipo de loucura é apontado pelo alienismo, cujos personagens incluem os degenerados,
para os quais a psiquiatria cria um aparato institucional, visando uma regeneração moral.
Considerados nocivos à sociedade, capazes de contaminar os demais pela sua rebeldia,
extravagância e insubmissão, necessitam do olhar clínico capaz de justificar cientificamente a
necessidade de sua exclusão. O alienismo, ao mesmo tempo em que apontava comportamentos e
condutas que geravam vergonha e embaraço para as famílias, apresentava a solução para os
problemas, à medida que internava os loucos, desresponsabilizando os parentes, livrando-os dos
inconvenientes. O hospício surgiu então, com o objetivo de disciplinar, destinado principalmente
92
aos degenerados, aos que apresentavam comportamento desviante, embora a internação de loucos
comuns justificasse a sua criação. Uma instituição que, oficialmente deveria oferecer tratamento
à loucura, transformou-se em local de exclusão e correção de condutas indesejadas.
Entre os desajustados, as mulheres tornaram-se as vítimas mais freqüentes desta
disciplina moral que a psiquiatria representava. Ao adotar o modelo imposto para ideal feminino,
a mulher vestiu trajes que, por vezes, acreditou terem sido feitos para si; mas que em outras
situações, fizeram-na sentir-se impostora, usuária de roupas que não lhe pertencia. Ao tentar
desvencilhar-se de tais trajes, negar esses valores e fazer as próprias escolhas, foi rotulada de
louca e segregada aos manicômios. No dizer de Naffah Neto, o louco foi transformado num
fantoche manipulado pelo poder/saber médico. Para o autor, essa psiquiatria aproxima-se mais da
política do que medicina, “e da política reacionária, que funciona como leão de chácara das
classes e culturas dominantes para a manutenção do status quo”.
214
Pode-se dizer que a mulher se
tornou esse fantoche, teve seu corpo esquadrinhado pela medicina, sua conduta orientada pelos
padrões morais, e seus desvios condenados pela psiquiatria, com o apoio e reconhecimento do
Estado.
Pensar a lógica da exclusão no Brasil, pressupõe a compreensão dos caminhos e
mecanismos utilizados para alcançar a “evolução” ou o “progresso” para chegar a tão sonhada
modernidade. Partindo de definições e conceitos de desenvolvimento social como análogo ao
desenvolvimento econômico ou à produção capitalista, é possível concluir que, aquilo se tenha
colocado no caminho da modernização, deveria ser afastado, retirado do caminho. Entendendo o
louco como aquele que se opunha ao processo, que não se encaixava numa sociedade capitalista,
nem se adaptava ao trabalho de produção, por isso foi excluído. Nesta perspectiva, entendemos
que a mesma lógica foi usada com as mulheres, que tinham um papel a representar na sociedade
em desenvolvimento, porém, papel que a restringia a esfera doméstica. A negação da imagem de
mulher submissa e resignada tão fortemente construída pela medicina, pelo Estado e pela própria
sociedade, levou as mulheres à condição de insanas, transitando entre a santidade e a loucura.
O desenvolvimento deveria basear-se na vontade e nos saberes dos indivíduos e dos
grupos, e os loucos constituem esses grupos socais. Porém, os mais eternos excluídos da
sociedade ocidental ameaçavam a preservação da integridade e dos valores sociais, perturbavam a
ordem pública. Por não contribuírem com seu trabalho, foram culpabilizados como peso inútil à
214
NAFFAH NETO, Alfredo. O Estigma da loucura e a perda da autonomia. Revista Bioética, Vol. 6, Nº. 1, 1998.
93
sociedade. Encarcerar o louco é impossibilitar a manifestação de sua subjetividade. Até que ponto
é aceitável as questões postas pela neutralidade científica num mundo tão desigual quanto o
nosso? A luta antimanicomial - movimento pela reforma psiquiátrica em busca de resgatar a
cidadania e garantir os direitos do louco – é uma resposta de profissionais das ciências à
segregação da loucura.
Passando por um período crítico no século XX, o tratamento manicomial começa a ser
questionado: alguns profissionais da saúde mental tentam resgatar o caráter reflexivo e crítico da
ciência, e tomando como modelo a Reforma Psiquiátrica, na Itália, lutam para garantir a
cidadania e identidade ao louco negativizada historicamente pela psiquiatria e pelo Estado. Nos
anos 70, criticando o modelo manicomial como forma de torturar e excluir, as condições
subumanas de vida dos pacientes e os efeitos da institucionalização como concepção excludente
da loucura, organizam um movimento por uma sociedade sem manicômios. As articulações
políticas e sociais iniciada nos anos 70 em prol de um tratamento digno na saúde mental vêm
abalar a idéia de confronto entre razão e desrazão, e se fortalece nos anos seguintes. Já no início
do século XXI, a proposta de uma Reforma Psiquiátrica que redireciona o modelo assistencial em
saúde mental é legitimada pela Lei 10216 de seis de abril de 2001, a Lei Paulo Delgado.
O estudo permitiu constatar as hipóteses levantadas: as mulheres foram consideradas
loucas por algum distúrbio mental e por não se enquadrarem nos padrões de comportamento
estabelecidos, pois dos casos analisados, alguns apresentavam uma patologia e outros questões
relacionadas a condutas inadequadas ou transgressões sociais. Podemos concluir que não é
possível dissociar os aspectos morais das patologias mentais, e que ainda hoje, a sociedade,
apesar de ter evoluído, não conta de nem de uma coisa nem de outra, apesar de existirem
tantas leis que apresentam novas perspectivas de tratamento ao doente mental, que propõem a
inclusão social do louco, quanto outras que garantem a liberdade de escolha da mulher e o seu
direito de exercer sua subjetividade. Mas, apesar disto, a mesma sociedade que propões essas leis,
também segrega e não conta de conviver com as diferenças. As relações de gênero ainda são
complexas.
É possível, portanto, pensar o desenvolvimento social e a evolução a partir da
aceitação da diversidade. Na perspectiva do desenvolvimento social, uma sociedade é tanto maior
e mais desenvolvida quanto maior for a sua capacidade de respeitar a diversidade, e fazendo um
94
recorte a partir do tema proposto, quanto mais avançada for a sua compreensão e manejo do
louco e da loucura.
95
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98
APÊNDICE
A) Entrevista semi-estruturada
1 – Nome e idade.
2 – Profissão atual.
3 – Possui vínculo atual com alguma instituição psiquiátrica?
4 – Em caso negativo: Já teve vínculo com alguma instituição psiquiátrica? Por quanto tempo?
5 - Se positivo, quais as atividades desenvolvidas na instituição?
6 – Como era o tratamento destinado aos doentes mentais?
7 – Você teve contato cm mulheres internadas nesta instituição?
8 – Você sabe quais eram os motivos das internações?
9 – Quais eram os transtornos mentais mais comuns nos diagnósticos?
10 - Conheceu ou teve notícia de algum caso onde a interna não apresentava sintomas de doença
mental?
99
B) Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Título da pesquisa: A Psiquiatria e o Ordenamento Social na Região Norte Mineira
Instituição promotora: Unimontes Universidade Estadual de Montes Claros
Patrocinador: Não se aplica.
Coordenadora da pesquisa: Jacqueline Simone de Almeida Machado
Orientadora da pesquisa: Regina Célia Lima Caleiro
Atenção:
Antes de aceitar participar desta pesquisa, é importante que você leia e compreenda a seguinte
explicação sobre os procedimentos propostos. Esta declaração descreve o objetivo,
metodologia/procedimentos, benefícios, riscos, desconfortos e precauções do estudo. Também
descreve os procedimentos alternativos que estão disponíveis a você e o seu direito de sair do
estudo a qualquer momento. Nenhuma garantia ou promessa pode ser feita sobre os resultados do
estudo.
1- Objetivo: Coletar dados e informações sobre as internações de mulheres em hospitais
psiquiátricos e conhecer a percepção que os funcionários destes hospitais e familiares das
internas têm sobre a loucura e as justificativas para a hospitalização.
2- Metodologia/procedimentos: A pesquisa será qualitativa, utilizaremos análise de documento
e entrevista semi-estruturada.
3- Justificativa: Diversos autores tem se debruçado sobre a história da loucura no Brasil, porém
poucas referências à região Norte de Minas Gerais. Especificamente acerca da loucura
feminina, do pensamento médico, dos tratamentos que elas receberam, não conhecemos
nenhum trabalho acadêmico. Portanto, entendemos que esta pesquisa trará uma contribuição a
respeito do tema.
4- Benefícios: Contribuir para a discussão sobre a loucura feminina no Norte de Minas, no
século XX.
5- Desconfortos e riscos – Não se aplica.
6- Danos – Não se aplica.
7- Metodologia/procedimentos alternativos disponíveis: Não se aplica.
8- Confidencialidade das informações: Todos os participantes terão suas identidades
preservadas e os dados coletados serão utilizados somente na pesquisa.
9- Compensação/indenização: o se aplica.
10- Outras informações pertinentes: não se aplica.
11- Consentimento:
Li e entendi as informações precedentes. Tive oportunidade de fazer perguntas e todas as
minhas dúvidas foram respondidas a contento. Este formulário está sendo assinado
voluntariamente por mim, indicando meu consentimento para participar nesta pesquisa, até que
eu decida o contrário. Receberei uma cópia assinada deste consentimento.
_______________________ _____________________________ ___________
Nome do participante Assinatura do participante Data
Jacqueline Simone de A Machado _____________________________ ___________
Nome Coordenador da pesquisa Assinatura coordenador da pesquisa Data
100
C) RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
ENTREVISTA 1 (E1):
Profissional de Saúde Mental, Área Psicologia, 50 anos.
ENTREVISTA 2 (E2):
Profissional de Saúde Mental, Área Psicologia, 46 anos.
ENTREVISTA 3 (E3):
Profissional de Saúde Mental, Área Psicologia, 45 anos.
ENTREVISTA 4 (E4):
Auxiliar de Enfermagem, atuação em instituição psiquiátrica, 77 anos.
ENTREVISTA 5 (E5):
Costureira trabalhou em instituição psiquiátrica, 70 anos.
ENTREVISTA 6 (E6):
Profissional de Saúde Mental, Área Psicologia – 52 anos.
ENTREVISTA 7 (E7)
Funcionário aposentado da Estrada de Ferro Central do Brasil – 67 anos
ENTREVISTA 8 (E8)
Funcionário aposentado da Estrada de Ferro Central do Brasil –56 anos
ENTREVISTA 9 (E9) –
Funcionário aposentado da Estrada de Ferro Central do Brasil –53 anos
101
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