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Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello
Professores da pré-escola:
trabalho, saberes e processos de construção de identidade
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Departamento de
Educação da PUC-Rio como parte dos
requisitos parciais para obtenção do título de
Doutor em Educação.
Orientador: Profª Sonia Kramer
Rio de Janeiro
Março de 2006
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212114/CA
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Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello
Professores da pré-escola:
trabalho, saberes e processos de construção de identidade
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Educação do Departamento
de Educação do Centro de Teologia e Ciências
Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Profª Sonia Kramer
Orientadora
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª Isabel Alice Oswald Monteiro Lelis
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profº Leandro Augusto Marques Coelho Konder
Departamento de Educação - PUC-Rio
Profª Maria Teresa de Assunção Freitas
UFJF
Profª Eloísa Acires Candal Rocha
UFSC
Prof. Paulo Fernando C. de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas
Rio de Janeiro, 27 de março de 2006.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0212114/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e
do orientador.
Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello
Graduou-se em Pedagogia na Universidade Santa Úrsula, em
1987. Especializou-se em alfabetização e linguagem na UFJF
(Universidade Federal de Juiz de Fora) em 1993. Concluiu o
Mestrado em Educação, também na UFJF, no ano 2000. É
professora do curso de Pedagogia do Centro de Ensino Superior
de Juiz de Fora e coordenadora pedagógica na Fundação
Educacional Machado Sobrinho (JF/MG). Desenvolve pesquisa
na área de educação infantil e formação de professores.
Ficha catalográfica
Micarello, Hilda Aparecida Linhares da Silva
Professores da pré-escola: trabalho, saberes e
processos de construção de identidade / Hilda Aparecida
Linhares da Silva Micarello ; orientadora: Sonia Kramer.
Rio de Janeiro : PUC-Rio, Departamento de Educação,
006.
212 f. ; 30 cm
de Católica do
io de Janeiro, Departamento de Educação.
Inclui bibliografia.
do Rio de Janeiro. Departamento de
Educação. III. Título.
2
Tese (doutorado) Pontifícia Universida
R
1. Educação Teses. 2. Educação infantil. 3. Trabalho
docente. 4. Identidade docente. 5. Filosofia da linguagem. 6.
Saberes docentes. I. Kramer, Sonia. II. Pontifícia
Universidade Católica
CDD: 370
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Para Renata e Marina, com amor.
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Agradecimentos
Vivo no universo das palavras do outro. E toda minha vida consiste em conduzir-me
nesse universo, em reagir à palavra do outro(...)
(Bakhtin, M. 1997, p. 383)
À Dolores,minha mãe, e a Jorge, meu pai, pelas palavras que ficaram.
À Neli de Oliveira Eugênio, pelas palavras de confiança.
Aos sete professores, sujeitos desta pesquisa, pelas palavras compartilhadas.
Aos colegas do doutorado, em especial Rogério Drago e Maria Tereza Scotton,
pelas palavras que animaram.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-Rio, em
especial à professora Alicia Bonamino, pelas palavras de apoio.
À CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
Aos membros da banca dos exames de qualificação I e II, professores Leandro
Konder e Isabel Alice Lelis, pelas palavras de cumplicidade.
À minha orientadora, professora Sônia Kramer, pelas palavras que iluminaram.
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Resumo
Micarello, Hilda Aparecida Linhares da Silva. Sônia Kramer. Professores
da pré-escola: trabalho,saberes e processos de construção de
identidade. Rio de Janeiro, 2006. 212 p. Tese de Doutorado -
Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
Esta tese tem por objeto a docência e os saberes de professores da pré-
escola. Propõe-se a compreender como os processos de construção e circulação
desses saberes, articulados a aspectos históricos e institucionais, revelam a
construção de identidades de professores da educação infantil. Assumindo que o
saber docente é sempre um saber para o outro, que se explicita nas relações
interpessoais, mediadas pela linguagem, esta tese busca, na voz de professores da
pré-escola, os sentidos dessa profissão, que vem se construindo no paradoxo da
afirmação e da negação e na tensão entre os discursos que historicamente vêm
construindo uma identidade do professor de educação infantil e a percepção
desses profissionais sobre sua docência. As análises desenvolvidas neste estudo se
apóiam no material empírico produzido ao longo de pesquisa de campo, realizada
em três Escolas Municipais de Educação Infantil da rede pública municipal de
Juiz de Fora, e na filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. A partir dessas
análises foi possível compreender os saberes dos professores da educação infantil
amalgamados a partir de alguns saberes de referência, como o saber brincar,
saber narrar e saber acolher. Esses saberes, construídos na vivência do tempo
numa dimensão fenomenológica, não encontram espaços para sua afirmação e
circulação nos contextos institucionais, marcados pela fragmentação do tempo e
das relações interpessoais, o que tem repercussões no modo como esses sujeitos
constroem suas identidades profissionais.
Palavras-chave
Educação infantil - saberes docentes - trabalho docente - identidade
docente - filosofia da linguagem.
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Abstract
Micarello, Hilda Aparecida Linhares da Silva. Sônia Kramer. Pre-school
teachers: work, knowledge and identity process of construction. Rio de
Janeiro, 2006. 212 p. Doutorado thesis - Departamento de Educação,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The object of this thesis is the teaching skills and knowledge that pre-
school teachers have. Its purpose is to understand how the process of construction
and circulation of this knowledge, linked to historic and institutional aspects,
reveals the construction of the Child Education teacher’s identity. Assuming that
the teaching knowledge is always a knowledge towards the other, made explicit in
the interpersonal relationships and mediated by language, this thesis seeks to find,
under the voice of pre-school teachers, the meaning of this profession which has
been and still is built on the paradox of affirmation and denial and on the tension
between the discourses which have historically built an identity for the Child
Education teacher and the perception of these professionals about their teaching
skills. The analyses developed in this study are based on empirical material
produced along with field research, in three municipal schools for Child
Education, all of them part of the Public School System of Juiz de Fora, and on
Mikhail Bakhtin’s language theory. From these analyses, it was possible to
understand the teaching skills that Child Education teachers have gathered from
three reference knowledge facts: knowing how to play, knowing how to share
experiences and knowing how to welcome others. These do not find room for
affirmation and circulation in institutional contexts, marred by time fragmentation
and interpersonal relationships, where teachers act and which are reflected on the
way these characters build their professional identity.
Key-words
Child Education – teaching skills – teaching work – teaching identity –
language philosophy
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Sumário
1. Introdução ............................................................................................ 10
2. Alteridade, subjetividade e a construção do objeto de pesquisa ......... 16
2.1. O que é a linguagem ......................................................................... 16
2.2. Discursos sobre o saber docente ..................................................... 21
2.3. Os saberes de professores da educação infantil como objeto
de pesquisa ..............................................................................................
27
3. A educação infantil no Brasil: puxando fios da história ........................ 33
3.1. “Infantes tuendo pro pátria laboramus” ............................................. 33
3.2. Educação infantil em Juiz de Fora: sua história, seus profissionais . 46
4. Ao encontro do outro: a metodologia e os sujeitos da pesquisa ......... 59
4.1. A construção da metodologia de pesquisa ....................................... 59
4.2. Quem são os sujeitos e por que aderem à pesquisa ........................ 65
5. Educação infantil: um lugar de passagem? ......................................... 83
5.1. Como se aprende a ser professor de crianças pequenas? .............. 83
5.2. Ser profissional da educação infantil “em trânsito” ........................... 102
5.3. História de uma professora narradora .............................................. 121
6. Identidade e conflitos de professores da educação infantil ................. 148
6.1. Ingresso e percurso na carreira ........................................................ 149
6.2. “ Eu me vejo como uma profissional” ................................................ 154
6.3. “Eu estou trabalhando? Não, eu acho que eu estou brincando!” ..... 172
6.4. Estamos sempre aprendendo... ...................................................... 185
7. Considerações finais ............................................................................ 193
8. Referências bibliográficas .................................................................... 200
9. Anexos ................................................................................................. 210
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Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca
foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é direto,
literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer,
ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha
de sentidos segundos, terceiros, quartos, de direções irradiantes
que se vão dividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de
vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando
se põe a projetar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos,
perturbações magnéticas, aflições.
José Saramago(2003, p. 134-135)
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1
Introdução
No pátio da escola, tomado pelo sol da manhã, um animado grupo de
crianças ensaia a quadrilha. À frente delas, puxando a fila, vai a professora,
fazendo par com uma das meninas. A professora é o cavalheiro, que oferece o
braço à pequena dama. É também quem conduz o grupo, marcando os passos
da quadrilha. Outras duas professoras ajudam: organizam as crianças, dançam,
rodopiam. Na manhã fria de junho, a temperatura se eleva no pátio. As
professoras tiram os casacos, sorriem, cantam e dançam ao som da música
caipira enquanto separam brigas dos meninos, atendem aos que querem mudar
de par, incentivam os que não querem dançar. Na manhã de sol, exercem seu
ofício: essa dança do encontro com o outro, do acolhimento, do sorriso. As
professoras da educação infantil, ao conduzir o ensaio da quadrilha, constroem
uma metáfora de sua profissão: são aquelas que dançam junto com as crianças,
representando papéis de menina ou menino, dependendo de quem não tem par,
deixando-se levar pela música animada ao mesmo tempo em que marcam os
ritmos, conduzindo o grupo.
Sentada numa cadeira pequena, num canto do pátio, eu observo o
trabalho das professoras – sim, elas estão trabalhando! – e penso no quanto
esse ofício de ser com o outro é peculiar e como essa peculiaridade tem se
constituído para mim, que também sou professora, uma experiência e, ao
mesmo tempo, uma indagação. Proximidade e afastamento... (Notas de campo
– Escola Verde – junho/2004)
***
Identifico escola com local de prazer. Minhas experiências com e na
escola têm sido, desde quando minha memória alcança, experiências
prazerosas. Talvez por isso, minha opção profissional foi o magistério.
Em 1982, aos dezoito anos, concluí o curso Normal de nível médio numa
escola religiosa onde, naquele mesmo ano, comecei a trabalhar. Pouco mais
velha que meus alunos, comecei a exercer o ofício de professora do ensino
fundamental, em que atuei por dezesseis anos. À época, me animava na escolha
da profissão uma visão um tanto ingênua do que era ser professora que, com o
passar dos anos e a experiência da vida acadêmica no curso de Pedagogia, foi
dando lugar a uma postura de indagação diante dos fins e dos meios de
exercício da docência. A escolha profissional foi, assim, transmutando-se em
esforço de inteligibilidade da própria profissão.
Alguns anos mais tarde, cursando o Mestrado em Educação, elegi a
prática de professores alfabetizadores como objeto de pesquisa. Tal escolha
refletia uma busca de compreensão não apenas da minha própria atuação como
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professora alfabetizadora, como também das professoras com as quais
trabalhava àquela época, como coordenadora pedagógica das redes pública e
privada, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Foi também no curso de
Mestrado em Educação, na Universidade Federal de Juiz de Fora, que vivi
minhas primeiras experiências de pesquisa numa abordagem sócio-histórica,
participando da pesquisa "Práticas sócio-culturais de leitura e escrita de crianças
e adolescentes da cidade de Juiz de Fora, coordenada pela professora Maria
Teresa Assunção Freitas.
Ao mesmo tempo, trabalhando como professora substituta na
Universidade Federal de Juiz de Fora, lecionava a disciplina “Educação Infantil”
para alunos do curso de graduação em Pedagogia e no curso de Especialização
em Educação Infantil.
Desempenhando a função de coordenadora pedagógica, aproximei-me
do segmento da educação infantil no qual, até então, não tinha qualquer
experiência de trabalho. Comecei a estudar temas relativos à infância, às
práticas de educação e cuidado nas instituições de educação infantil e à
formação dos profissionais que atuam nessas instituições. Esse interesse me
trouxe à PUC-Rio, onde na condição de aluna do curso de Doutorado em
Educação, entre outras atividades acadêmicas, cursei a disciplina “Infância,
cultura e contemporaneidade” e participei do grupo de pesquisa “ Formação de
professores da educação infantil do estado do Rio de Janeiro”
1
. Essas duas
experiências foram especialmente importantes na minha formação e para o
amadurecimento das questões que me levaram à construção desta tese.
Ao longo da minha participação na pesquisa "Formação de profissionais
da Educação Infantil no Estado do Rio de Janeiro", coordenada pela professora
Sônia Kramer
2
, um dos dados que despertou meu interesse de modo especial foi
a constatação da lacuna existente na formação inicial dos professores da
educação infantil. Nas entrevistas, realizadas com profissionais responsáveis
pela educação infantil em 54 municípios do Estado do Rio de Janeiro, foi
possível identificar uma referência constante à carência de elementos, na
formação inicial, para orientar as questões relativas à prática. Do mesmo modo
as políticas de formação continuada são fragmentadas, ficando as ações de
formação restritas a eventos isolados. A referida pesquisa constata, ainda, a
1
Tanto a disciplina quanto o grupo de pesquisa sob orientação da professora Sônia Kramer.
2
Os resultados desta pesquisa encontram-se em KRAMER, S. (coordenação) Relatório da
pesquisa Formação de profissionais da educação infantil no Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Ravil, 2001 e em KRAMER, S. (org.) “Profissionais da educação infantil: gestão e
formação”. São Paulo: Ática, 2005.
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reduzida participação das universidades ou faculdades na formação realizada
nos municípios e a ausência de concursos públicos específicos para professores
que atuam na educação infantil (Kramer, 2001).
A precariedade da formação do professor de educação infantil é uma
questão antiga, ligada à própria indefinição de papéis do profissional que junto a
crianças pequenas. Segundo Kishimoto (2002), “desde tempos passados,
acumulam-se os problemas na formação, em decorrência da pouca clareza do
perfil profissional desejado nos cursos de formação propostos. As contradições
aparecem nos cursos amorfos que não respeitam a especificidade da educação
infantil” (Kishimoto, 2002, p. 107).
A pouca clareza com relação ao perfil profissional dos professores da
educação infantil é também uma característica dos próprios documentos oficiais
que deveriam orientar a formação desses profissionais. Em dissertação de
mestrado na qual aborda a especificidade da docência na educação infantil a
partir da análise dos documentos que tratam da formação inicial de professores
para a educação básica, elaborados após a LDB nº 9394/1996 pelo Ministério da
Educação e Cultura
3
, Bonetti (2004) constata que, “nos documentos analisados,
a especificidade da docência na educação infantil fica definida a partir daquilo
que se estabeleceu para o exercício da docência no ensino fundamental, tendo
nesse caso como central em sua atuação o próprio currículo e o ensino de
conteúdo” (Bonetti, 2004, p. 141). Além disso, a autora destaca que as
orientações para a formação do professor de educação infantil encontram-se
diluídas nesses documentos, sendo necessária uma verdadeira “garimpagem”
nos textos para identificá-las.
Entretanto, a despeito das lacunas, seja na formação inicial, seja na
formação continuada ou em serviço e a despeito, ainda, do grande número de
profissionais que não dispõem sequer da formação mínima exigida por lei e que
atuam nas instituições que atendem à criança pequena, a educação infantil tem
uma história e um perfil que seus profissionais têm contribuído para construir. Os
professores da educação infantil, assim como outros profissionais, constroem, no
dia-a-dia das instituições onde atuam, uma prática que se fundamenta em alguns
saberes.
3
Os documentos analisados são o Referencial para a Formação de Professores-1998, Proposta
de Diretrizes para Formação Inicial de Professores de Educação Básica em Curso de Nível
Superior e Parecer do Conselho Nacional de Educação nº 009/2001 (Parecer nº 009/2001).
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Meu convívio com profissionais da educação infantil em seu campo de atuação
profissional e em um dos locus de sua formação inicial (o curso de Pedagogia),
assim como a participação na pesquisa acadêmica, tem mostrado que a prática
desses profissionais junto à criança pequena é orientada por um amálgama de
saberes em que se misturam as experiências anteriores, advindas da vida
privada, familiar, os saberes adquiridos nos cursos de formação e aqueles
advindos da prática, da interação com outros profissionais mais experientes, com
os alunos e suas famílias. Essa percepção encontra respaldo nos estudos
desenvolvidos por autores como Perrenoud (2002), Nóvoa (1995, 1997; 1999;
2000), Tardif (2000; 2002; 2005), entre outros, que têm tomado os saberes
docentes como objeto de pesquisa. Considerando as diversas fontes de onde
emanam os saberes docentes, alguns autores propõem, inclusive, uma tipologia
desses saberes, classificados como: saberes pessoais, saberes provenientes da
formação escolar anterior, saberes provenientes da formação escolar para o
magistério, saberes provenientes dos programas e livros didáticos usados no
trabalho, saberes provenientes da sua própria experiência na profissão, na sala
de aula e na escola (Tardif, 2002).
No que concerne aos professores da educação infantil, seria possível
considerar as mesmas fontes de onde emanam os saberes docentes? No caso
dos professores que lidam com a criança pequena, caberia também uma análise
dos saberes mobilizados por esses profissionais a partir de uma tipologia que
considerasse as peculiaridades do seu trabalho? Em caso afirmativo, que
elementos comporiam essa tipologia? Qual a natureza do trabalho do professor
de educação infantil? Como esses profissionais se percebem? Quais são os
saberes da prática que constroem na rede de interações que estabelecem com
outros professores, com as crianças e suas famílias? Essas e outras indagações
foram se entrelaçando, entrecruzando-se num movimento de busca pela palavra
do outro como possibilidade de produção de sentidos para a experiência de ser
professor de crianças pequenas. O resultado desse processo de busca se
materializa nesta tese, construída na interlocução com professores da educação
infantil que também se sentiram implicados por essas questões e com os autores
com os quais escolhi dialogar. A tese que ora apresento tem o objetivo geral de
compreender o amálgama de saberes que profissionais da educação
infantil mobilizam em suas atividades de docência, considerando os
sentidos que esses profissionais produzem para essa docência e as
condições em que ela se dá. Esse objetivo geral se desdobra em algumas
questões que delineiam o foco do processo de investigação: como os
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professores atuantes na Educação Infantil percebem sua profissão e como a
vêem percebida? Que qualidades reconhecem como necessárias à sua atividade
profissional? Como constroem os saberes da experiência
4
que mobilizam em
sua prática quotidiana? Que papel atribuem às diferentes instâncias de formação
(inicial e continuada) na constituição dos saberes profissionais? Como as redes
de relações tecidas nas instituições onde atuam contribuem na constituição e
circulação desses saberes?
Concordando com Dominicé (1990) quando afirma que "o adulto apenas
retém como saber de referência o que está ligado à sua identidade" (Dominicé,
1999, apud Nóvoa, 2000, p.17), esta pesquisa, ao enfocar os saberes
construídos por professores da educação infantil, busca apreender a construção
de identidades profissionais o que, segundo Nóvoa (2000) "passa sempre por
um processo complexo graças ao qual cada um se apropria do sentido de sua
história pessoal e profissional” (Nóvoa, 2000, p.17). É, portanto, a dinâmica
desse processo de apropriação que apresento no texto desta tese que se divide
em cinco capítulos.
No capítulo 2, discuto brevemente as noções de linguagem e de saber
que fundamentam esta tese e as perspectivas a partir das quais o saber docente
vem sendo abordado pela pesquisa acadêmica.
Apresentar os sujeitos da pesquisa e seus contextos de atuação,
refletindo sobre o processo de adesão desses sujeitos à pesquisa é o objetivo do
capítulo 3.
No capítulo 4, abordo os aspectos macro-contextuais que configuram o
pano de fundo das situações vividas e observadas durante o período de trabalho
de campo. Para isso, discuto as políticas de atendimento à criança pequena no
Brasil, fundamentadas em diferentes concepções de infância, e a constituição
dos profissionais da educação infantil ao longo da história desse atendimento,
destacando como esse processo vem se dando na cidade de Juiz de Fora, onde
a pesquisa de campo que deu origem a esta tese foi realizada.
Os capítulos 5 e 6 são dedicados à abordagem das categorias que tomo
como foco para empreender as análises acerca dos saberes dos professores da
educação infantil. Neles são apresentados e discutidos eventos observados no
período de trabalho de campo, que se entrecruzam às reflexões desenvolvidas
nos capítulos anteriores, relativas a aspectos da história da educação infantil e
4
Refiro-me aqui ao “saber da experiência” a partir da definição que dele faz Tardif (2002), qual
seja “o conjunto de saberes atualizados, adquiridos e necessários no âmbito da prática da
profissão docente e que não provêm das instituições de formação nem dos currículos” (Tardif,
2002, p. 48-49).
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de seus profissionais, assim como a aspectos ligados ao modo como está
organizada a educação infantil na rede pública municipal de ensino de Juiz de
Fora.
Finalmente, sistematizo a tese que se construiu a partir dos diálogos
desenvolvidos ao longo do trabalho de pesquisa e seus fundamentos, apoiada
em algumas conclusões e outras tantas indagações a que este estudo remete.
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2
Alteridade, subjetividade e a construção do objeto de
pesquisa
O presente capítulo tem o objetivo de apresentar e discutir as noções de
linguagem e de saber que fundamentam esta tese. Começo por apresentar a
perspectiva de linguagem que se constituiu a partir dos estudos de Mikhail
Bakhtin e seu Círculo
1
. A seguir, a partir de uma análise de como os saberes
docentes vêm sendo abordados pela pesquisa acadêmica, apresento a
concepção de saber a partir da qual esta pesquisa se desenvolve, localizando o
enfoque dado à questão dos saberes dos professores da educação infantil pelas
pesquisas sobre a educação infantil e seus profissionais.
2.1.
O que é a linguagem?
Segundo Stam (1992), a questão da linguagem se constituiu numa
obsessão do pensamento contemporâneo, ocupando papel central no projeto de
pensadores distintos. Mikhail Bakhtin insere-se nessa tradição contemporânea
de discussões sobre a linguagem construindo uma teoria sobre o papel dos
signos na constituição do sujeito, a “translingüística”
2
No cerne dessa teoria está uma concepção de linguagem como
construção que se dá no plano intersubjetivo, nas relações entre sujeitos
marcadas pelos diferentes lugares que estes ocupam na sociedade. Segundo
Clark e Holquist (1998), o que difere Bakhtin de outros filósofos que se
dedicaram ao tema é a construção de uma filosofia da linguagem que se aplica
às preocupações relativas à vida cotidiana, colocando “a dinâmica social da
prática observável da linguagem como a força especificadora que estrutura as
relações interpessoais no Zwischenwelt, ou ‘mundo na consciência intermédia’”
(Clark e Holquist, 1998, p. 36).
1
Esta concepção de linguagem será retomada e aprofundada ao longo da tese.
2
Filosofia da linguagem que Mikhail Bakhtin denomina metalingüística a qual, diferentemente da
lingüística, trata do fenômeno do discurso em uma perspectiva que o considera na realidade
concreta e viva. Clark e Holquist usam o termo translinguística para fazer referência a essa
filosofia da linguagem por considerarem que o termo meta tornou-se demasiado banal no Ocidente
(Clark e Holquist, 1998).
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Para responder à pergunta “¿Qué es el lenguaje?, Bakhtin (1993)
identifica o surgimento da capacidade humana de comunicar-se, primeiro através
de gestos e mímica e, posteriormente, através de material sonoro, como
decorrente das necessidades de comunicação entre os indivíduos, advindas das
relações de trabalho que se estabeleceram, inicialmente, de forma primitiva,
como eram primitivas as primeiras atividades laborais dos grupamentos
humanos e, posteriormente, de forma cada vez mais elaborada. Servindo à
comunicação humana, a linguagem, enquanto produto da vida social influencia a
vida econômica e sociopolítica e constitui a consciência individual. Enquanto
produto da interação entre os seres humanos, a linguagem sempre se dirige ao
outro (Bakhtin, 1993).
Na produção teórica de Bakhtin, que engloba campos tão diversos quanto
lingüística, psicologia e psicanálise, criação artística, epistemologia, semiótica,
cultura popular na Idade Média e no Renascimento (Kramer, 2002), encontra-se
um permanente esforço de compreensão da tensão dialética que se estabelece
na relação entre o eu e o outro. A origem desse interesse pelo papel do outro na
constituição do sujeito, que atravessa a obra de Bakhtin, tem sido objeto de
estudo de diferentes autores que se debruçam sobre os escritos do pensador
russo, sendo atribuída a diferentes fatores: à sua história de vida, marcada por
uma relação bastante forte com o irmão, Nikolai Bakhtin, que teria sido o
membro da família com o qual Bakhtin mais se identificava e "o 'outro' mais
significativo que Bakhtin jamais encontrou" (Clark e Holquist, 1998, p. 44); à
experiência vivida na cidade de Vilno (ou Vilnius), onde o autor de "Estética da
Criação Verbal" na adolescência, vindo de uma cidade provinciana, teve a
oportunidade de conviver com uma mistura de línguas, classes e grupos étnicos
(ibidem); e, ainda, à sua ligação com a Igreja Ortodoxa Russa, em cuja
celebração da liturgia dominical o crente "sente-se em comunhão com todos os
seres humanos de todos os tempos e de todos os lugares” (Faraco, 1998, p. 19).
Seja qual for a origem, o fato é que
Um traço distintivo da carreira de Bakhtin como pensador é que ele jamais
cessou de perseguir diferentes respostas para o mesmo conjunto de questões.
As várias maneiras em que efetivamente colocou o problema das relações entre
o self e o outro, ou o problema de como a aparência de mesmice emerge da
realidade da diferença apresentam-se com grande diversidade no curso dos
anos. (Clark e Holquist, 1998, p.89)
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No campo dos estudos literários desenvolvidos pelo autor de "Problemas
da Poética de Dostoiévsk", este projeto teórico, que se desenvolve em torno da
relação entre o eu e o outro, revela-se por uma busca de compreensão da
relação que o autor estabelece com seus personagens. É no texto "O autor e o
herói" que Bakhtin desenvolve o princípio da exotopia, um dos conceitos-chave
de sua filosofia e que se fundamenta no que o autor chamará de "excedente de
visão humana" (Bakhtin, 1997-a, p. 43). Tal conceito se refere, segundo Tezza,
"às diferentes formas de relação de uma consciência para outra” (Tezza, 2001,
p.287). Nos estudos desenvolvidos por Bakhtin, esse conceito aparece,
inicialmente, para explicar a relação entre autor e personagem: o autor é aquele
que possui um excedente de visão em relação ao personagem e somente esse
excedente de visão é capaz de dar ao personagem seu acabamento,
completando-o. Mais tarde, no texto "Notas sobre a epistemologia das ciências
humanas", Bakhtin usará tal conceito em seu trabalho de pesquisa. Segundo
Amorim,
na origem do conceito de exotopia está a idéia de dom, de doação: é dando
3
ao
sujeito um outro sentido, uma outra configuração, que o pesquisador, assim
como o artista, dá de seu lugar, isto é, dá aquilo que somente de sua posição, e,
portanto com seus valores, é possível enxergar (Amorim, 2003, p.14).
O excedente de visão é possibilitado pela posição que cada sujeito
ocupa no mundo e que lhe permite, do seu horizonte social, ângulos de visão
peculiares: "o que vejo do outro é justamente o que só o outro vê quando se
trata de mim” (Bakhtin, 1997-a. p.43).
O modo como Bakhtin concebe a relação entre o autor e o herói
evidencia uma concepção de homem e do modo como esse homem vive as
relações sociais. O sujeito é concebido como constituído a partir das relações
que vivencia no plano social, tendo na linguagem o elemento central desse
processo. Para Bakhtin são as palavras que o outro me dirige que me dão a
medida de mim mesmo e do mundo no qual estou inserido. É na tensão entre
palavra própria e palavra alheia que o sujeito se constitui e se percebe como tal.
Dialogismo e exotopia são, portanto, a chave para a constituição do sujeito na
perspectiva de Bakhtin.
No campo dos estudos da linguagem, Bakhtin desenvolve uma crítica às
correntes do pensamento lingüístico de sua época - o subjetivismo idealista e o
objetivismo abstrato.
3
Grifo da autora.
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19
Para o autor, o objetivismo abstrato, ao tomar como realidade da língua o
sistema de normas imutáveis, desconsidera o fato de que para o locutor tal
sistema não importa, uma vez que ele o utiliza com propósitos comunicativos
concretos. Para o locutor o que conta na realidade da língua não é sua forma
fixa, imutável, seu caráter de signo estável, pois o que lhe permite utilizá-la é
justamente seu caráter flexível. Somente quando as formas fixas da língua são
atualizadas no contexto de enunciações concretas, elas passam a ter existência
para os falantes.
Na realidade não são palavras que pronunciamos ou escutamos, mas verdades
ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou um
sentido ideológico ou vivencial (Bakhtin, 1997-b, p. 95).
Concebendo a enunciação como sendo de natureza social, Bakhtin
também contesta as teses do subjetivismo idealista, apontando a grande
limitação dessa orientação do pensamento filosófico-lingüístico, ao tomar a fala
como expressão de um universo interior do qual o componente social é isolado.
Para Bakhtin, é preciso considerar que todo ato de fala se dirige a um
interlocutor, seja ele real ou virtual, esteja ele presente ou distante e tem sua
origem em diálogos anteriores, muitas vezes distantes no tempo e no espaço. A
enunciação é modelada em função desse interlocutor, de seu horizonte social e
histórico, sendo produto da interação social e tendo no meio exterior - o contexto
social e histórico mais amplo - seu centro organizador. O que faz de uma palavra
o que ela é são os vários sentidos que ela pode assumir em contextos diversos e
a apropriação que dela fazem diferentes falantes em situações comunicativas
específicas. Nessas situações, o conteúdo ideológico se manifesta não apenas
no significado das palavras, mas na entonação com a qual elas são proferidas,
no tom avaliativo que lhes emprestam os participantes da situação comunicativa.
Ao defender a necessidade de se buscar a verdadeira realidade da língua
na interação entre os falantes, Bakhtin traz a relação eu/outro para o cerne das
questões relativas aos estudos da linguagem à medida que, para o autor, o
sujeito falante não é um sujeito individual, mas um sujeito social, que constrói o
seu discurso a partir dos discursos que o precederam, evocando os discursos
que lhe responderão. Fundamenta-se nessa idéia o conceito de dialogismo,
desenvolvido por Bakhtin.
Na perspectiva bakhtiniana, o conceito de exotopia liga-se ao conceito de
dialogismo, pois é no acontecimento dialógico que a palavra do outro me
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20
completa. Desenvolvendo as reflexões de Bakhtin e estabelecendo um paralelo
entre o que acontece no mundo dos objetos e no mundo dos signos, Machado
(2001) afirma que, do mesmo modo que o posicionamento em relação a um
objeto define e delimita as referências espaciais que garantem sua relatividade
em relação aos corpos físicos, no mundo dos signos aquilo que está além do
campo de visão potencializa significados.
Quando Bakhtin submete o ato dialógico à lei do posicionamento ele afirma a
existência de um princípio de extraposição orientando os sentidos. Aquilo que é
inacessível ao olhar de uma pessoa é o que preenche o olhar da outra. Logo, na
esfera das relações humanas e da comunicação o excedente da visão é tão
importante quanto aquilo que se oferece explicitamente ao olhar (Machado,
2001, p.227).
O sentido se constrói no encontro/confronto entre diferentes vozes que se
manifestam no ato dialógico e o acesso a ele requer a análise dos enunciados
dos sujeitos e da contrapalavra que tais enunciados suscitam em outros sujeitos.
Essa concepção de linguagem - que é também uma concepção de
sujeito, já que destaca a linguagem como constituidora da subjetividade -
desenvolvida por Mikhail Bakhtin, é o eixo em torno do qual se organizam, nesta
tese, tanto as opções metodológicas quanto a análise das situações observadas
e vividas no trabalho de campo. Essas situações se configuram como elos de
uma corrente de discursos, proferidos em diferentes tempos e espaços, que
constroem uma identidade do professor de educação infantil. Por essa razão, o
diálogo com os professores que participaram da pesquisa é analisado, nesta
tese, em relação aos contextos mais imediatos em que os enunciados são
proferidos e também em diálogo com os textos construídos ao longo da história
das políticas de atendimento à infância e da constituição do magistério como
atividade profissional eminentemente feminina, uma vez que a abordagem da
experiência vivida pelos professores remeteu a contextos mais amplos que
organizam essa experiência. Como o personagem de Ítalo Calvino
4
, o metódico
e divertido Senhor Palomar, que se dá conta da impossibilidade de observar uma
onda isolando-a das que a precederam e das que se sucedem a ela, dei-me
conta da impossibilidade de abordar os saberes dos professores sem uma
referência aos contextos mais amplos em relação aos quais eles se constroem.
4
Palomar é o nome dado por Italo Calvino ao protagonista dos textos reunidos no livro Palomar, do
mesmo autor. Palomar é o nome daquele que por muito tempo foi o maior observatório
astronômico do mundo, razão pela qual Calvino usa esse nome para batizar seu personagem,
sempre atento a tudo que se passa à sua volta, tendo para as coisas mais simples um olhar que
interroga o cotidiano.
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21
A análise dos enunciados proferidos pelos professores na situação de
pesquisa se revelou um processo no qual um texto sempre remetia a outros,
muitas vezes distantes no tempo e no espaço. A palavra dos professores se
apresenta como forma de compreensão responsiva aos discursos de seus pares
e também àqueles discursos que, historicamente, vêm construindo uma
identidade dos professores da educação infantil: o discurso oficial, produzido no
âmbito da legislação educacional e das políticas públicas para a educação
infantil e o discurso científico, produzido no campo acadêmico. Nesse
entrelaçamento de vozes busquei compreender o modo como os professores da
educação infantil têm construído os saberes em que se apóia sua docência,
compreendendo que a própria noção de saber docente vem sendo focalizada, no
campo acadêmico, a partir de diferentes modos de conceber o papel dos
professores frente às realidades educativas.
2.2.
Discursos sobre o saber docente
A relação dos professores com o saber tem sido uma relação
contraditória, que se configura nos discursos sobre a docência e o papel do
professor. Ao mesmo tempo que, no plano discursivo, afirma- se a centralidade
do saber na constituição da docência enquanto profissão, na prática se tem
negado aos docentes a condição de produtores dos saberes que ensinam,
atribuindo-lhes a posição de consumidores de um saber produzido por outros
campos disciplinares (Nóvoa, 1998); à afirmação da existência de um saber
próprio da profissão de ensinar, construído nas interações que os professores
vivem com outros atores do contexto escolar, contrapõe- se o isolamento dos
professores em suas salas de aula, em função da falta de tempos e espaços
destinados aos encontros e trocas entre pares; o reconhecimento da importância
da autonomia dos professores com relação aos saberes que produzem e
ensinam é acompanhado pela implantação de reformas curriculares das quais os
professores não participam senão como implementadores.
5
Essas ambigüidades
e contradições têm adquirido maior visibilidade a partir do desenvolvimento de
pesquisas que têm enfocado os professores, sua formação, seus saberes e sua
5
Essas contradições foram aspectos observados a partir da análise dos dados da pesquisa
“Formação dos professores de educação infantil do Estado do Rio de Janeiro” e são discutidas por
Micarello (2005) e Figueiredo; Micarello e Barbosa (2005).
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22
prática e que revelam um interesse crescente com relação àquilo que acontece
nas salas de aula, na interação desses profissionais com seus pares, com os
alunos e com os contextos institucionais mais amplos nos quais se dá a
docência.
Segundo Nóvoa (2000), a publicação do livro "O professor é uma
pessoa", de Ada Abraham, representa um momento de virada nos estudos que
têm se debruçado sobre a prática docente, pois a partir dele surgem vários
outros trabalhos sobre "a vida dos professores, as carreiras e os percursos
profissionais, as biografias e autobiografias docentes ou o desenvolvimento
profissional dos professores”
6
(Nóvoa, 2000, p.15).
7
Essa nova tendência de
abordagem da prática docente decorre de novas perspectivas de análise dos
problemas enfrentados pela escola e pode ser percebida, também, nas
pesquisas desenvolvidas no Brasil.
Até a década de 1970 os problemas enfrentados pela escola no que diz
respeito à aprendizagem dos alunos - em especial aqueles oriundos das classes
populares - eram atribuídos, de modo geral, às próprias crianças e às suas
famílias - que seriam material e socialmente "carentes". A partir dos anos 1980
passa a haver um deslocamento das discussões sobre o fracasso escolar para
os fatores intra-escolares como promotores de desigualdades de acesso e
permanência das crianças das classes populares na escola (Lelis, 2001). Esse
novo enfoque confere centralidade à figura do professor como agente importante
na criação de condições de apropriação, pelas classes populares, da cultura
erudita. Nesse sentido, passa a se colocar como relevante a análise da relação
do professor com o saber - o saber que ensina e o saber sobre como ensinar -
ao mesmo tempo que se engendra um discurso de culpabilização dos docentes
pelos problemas enfrentados pela escola. É nesse contexto que começam a se
desenvolver, na realidade educacional brasileira, pesquisas que se debruçam
sobre as práticas de formação de professores e as percepções desses
profissionais sobre sua prática. Esses estudos apontam, por um lado, as lacunas
presentes na formação, que dicotomiza as dimensões da teoria e da prática,
6
Grifos do autor.
7
Na literatura internacional é possível destacar, entre outros, trabalhos que discutem: as relações
entre a história de constituição da profissão docente e as tendências para a formação dos
professores (Popkewitz, 1995; Nóvoa 1999); o professor como profissional reflexivo (Gómez,
1995; Schön, 1995; Perrenoud, 2002; Sacristán, 1999); as histórias de vida dos professores e suas
relações com a prática profissional (Nóvoa, 2000; Goodson, 2000; Holly, 2000; Moita, 2000;
Fontura, 2000); os saberes docentes e suas implicações para a prática e a formação dos
professores (Tardif, 2002; 2005); a docência frente às mudanças ocorridas nas relações de
trabalho na sociedade contemporânea (Contreras, 2002; Esteve, 1999; Nóvoa, 2002).
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levando a uma fragmentação dos saberes dos professores e, por outro, a
necessidade de compreender a atuação docente numa dimensão mais ampla,
que envolva os contextos em que se dá essa atuação e as histórias dos sujeitos
envolvidos. É essa tendência que vem ganhando espaço nos estudos sobre os
professores, seus saberes e sua formação.
Segundo Lelis (2001), no Brasil não temos, ainda, uma acumulação de
pesquisas sobre os saberes dos professores
8
. Nesse sentido, são necessários
cuidados, no desenvolvimento desses estudos, para que os mesmos não
venham a privilegiar aspectos da atuação do professor ligados ao micro-contexto
da sala de aula e da instituição sem a devida atenção aos aspectos mais amplos
- ligados à política, à cultura, às questões sociais (id.). Além disso, muitas vezes
as pesquisas que se debruçam sobre os saberes e a formação dos professores
têm se atido muito mais àquilo que os professores deveriam saber e ainda não
sabem - ou, embora sabendo, não praticam - do que àquilo que eles realmente
sabem e fazem, o que, em alguns casos, obscurece os elementos contextuais
implicados na atuação do professor. O foco em competências necessárias, que
tem permeado algumas pesquisas sobre os saberes docentes, leva à
abordagem da atuação dos professores numa perspectiva que, embora enfatize
a relevância de considerar os saberes da experiência como estruturantes da
ação docente, tem relegado esses saberes a uma posição secundária ou
lacunar. Tardif e Lessard (2005) alertam para o fato de que
o primeiro passo a ser dado para analisar o trabalho dos professores é fazer uma
crítica resoluta das visões normativas e moralizantes da docência, que se
interessam antes de tudo pelo que os professores deveriam ou não fazer,
deixando de lado o que eles realmente são e fazem
9
" (Tardif e Lessard, 2005, p.
36).
A consideração daquilo que os professores realmente são e fazem requer
a escuta àquilo que dizem esses sujeitos, o conhecimento de suas histórias de
vida e formação e das condições institucionais em que se dá a prática docente.
O foco na figura dos professores enquanto uma tendência da pesquisa em
educação revela o reconhecimento de que a compreensão daquilo que acontece
8
No Brasil, as pesquisas sobre o professor têm privilegiado aspectos tais como as narrativas dos
professores, suas histórias de vida e formação (Kramer e Jobim e Souza, 1996; Freitas, 1998,
2000); os relatos autobiográficos(Catani, 2003 a; 2003 b); os saberes dos professores, sua
pesquisa e sua formação (Candau, 1997; Lüdke, 1997; 2000, 2001; Lelis, 1997, 2001; Nunes,
2001; Pimenta, 2002) entre outros autores. O “Dossiê: os saberes dos docentes e sua formação”
(Educação e Sociedade, n º 68, Ano XXII, abril/1999) apresenta uma coletânea de artigos de
pesquisadores brasileiros sobre o tema dos saberes docentes.
9
Grifos dos autores.
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24
no espaço da escola, enquanto instituição, e, conseqüentemente, as
possibilidades de mudanças nesse contexto passa, necessariamente, por uma
compreensão dos sentidos que os professores têm produzido para a docência
enquanto atividade profissional. É nesse sentido que Kramer (2002) aponta a
necessidade de que a pesquisa em ciências humanas considere os sujeitos
envolvidos nas práticas que se desenvolvem nas escolas como sujeitos com voz,
que se pronunciam sobre o mundo, rompendo com a perspectiva monológica do
conhecimento que dicotomiza a relação entre sujeito e objeto. A autora destaca
a importância de que os professores sejam concebidos, nas pesquisas que se
debruçam sobre sua prática, como narradores de suas histórias de vida e
formação que, no ato de narrar, ressignificam as dimensões do passado,
presente e futuro, permitindo uma forma de conceber o conhecimento como
construção permanente (Kramer e Jobim e Souza, 1996). Estruturam a docência
as relações que os docentes estabelecem com outros seres humanos, mediadas
pela linguagem, o que imprime características peculiares à prática desses
profissionais e aos saberes que se produzem nessa prática.
Tardif e Gauthier (2001) e Tardif (2002), discutindo os excessos das
pesquisas que enfocam o saber docente, apontam uma polarização de posições
com relação ao tema: de um lado, as pesquisas que tomam o professor como
sujeito epistêmico, como um erudito ou cientista, construindo para ele um perfil
que o define como "mediador do saber", um ator dotado de uma racionalidade
que se funda exclusivamente na cognição, desconsiderando outras dimensões
da docência. Num outro extremo, as pesquisas que se baseiam na concepção
de que tudo (hábitos, intuições, emoções etc) é saber, o que faz com que o
conceito perca seu caráter discriminante, pois "de que adianta falar de saber se
tudo é saber?” (Tardif, 2002, p. 191)
Ainda segundo os autores acima referidos, no âmbito da cultura da
modernidade o saber foi definido a partir de três diferentes topos: a
subjetividade, o julgamento e a argumentação.
A maioria das pesquisas sobre cognição se baseia na primeira
concepção, que enfatiza a subjetividade como lugar do saber: "saber alguma
coisa é possuir uma certeza cognitiva racional”(id., p. 194).
Uma segunda concepção toma o saber como os discursos que afirmam a
veracidade dos fenômenos. Segundo essa concepção, o saber se liga à
capacidade de emitir um julgamento sobre a veracidade de algum fato ou
fenômeno. Nesse sentido, apenas as asserções relativas a fatos podem ser
consideradas verdadeiras ou falsas. Aqueles julgamentos que se referem a
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25
valores ou vivências estariam excluídos da ordem do saber, o que traz limitações
à aplicação dessa noção de saber à reflexão sobre os saberes docentes, uma
vez que esses saberes não se produzem em referência apenas a fatos objetivos,
mas a vivências, em que se manifestam as opções e valores do sujeito que age.
A terceira concepção caracteriza o saber como "a atividade discursiva
que tenta validar, por meio de argumentos e operações discursivas (lógicas,
retóricas, dialéticas, empíricas etc.) e lingüísticas, uma proposição ou uma ação"
(Tardif, 2002. p. 196). Nesse sentido, saber algo é ser capaz de apresentar
argumentos racionais que validem determinadas ações.
De acordo com tal concepção, o saber não se reduz a uma representação
subjetiva, nem a asserções teóricas de base empírica; ele implica sempre outro,
ou seja, uma dimensão social fundamental, na medida em que o saber é
justamente uma construção coletiva de natureza lingüística resultante de
discussões, de intercâmbios discursivos entre seres sociais (Tardif e Gauthier,
2001, p. 194).
Essa perspectiva de abordagem do saber se fundamenta em seu caráter
interacional: o saber se constituiu tendo como referência um contexto social
específico, sendo a linguagem a forma privilegiada de interação entre os
sujeitos.
Ainda sobre a questão do saber, Charlot (2002) afirma:
não há saber senão para um sujeito, não há saber senão organizado de
acordo com relações internas, não há saber senão produzido em uma
'confrontação interpessoal'. Em outras palavras, a idéia de saber implica a de
sujeito, de relação do sujeito com ele mesmo (deve desfazer-se do
dogmatismo subjetivo) de relação do sujeito com os outros (que co-constroem,
controlam, validam, partilham esse saber) (Charlot, 2002, p. 61).
Nessa mesma direção, Nóvoa (1997), ao abordar o saber docente,
destaca:
O saber dos professores - como qualquer outro tipo de saber de intervenção
social - não existe antes de ser dito. A sua formulação depende de um esforço
de explicitação e de comunicação, e é por isso que ele se reconhece,
sobretudo, através do modo como é contado aos outros (Nóvoa, 1997, p. 30).
Embora esta tese não se proponha à abordagem dos saberes docentes
a partir de uma teoria da argumentação, perspectiva a qual se associam as
reflexões sobre os saberes docentes desenvolvidas por Tardif e Gauthier (2001),
segundo os próprios autores, o destaque que fazem ao caráter interacional do
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26
saber, também presente em Charlot e Tardif é um aspecto presente no modo
como os saberes dos professores da educação infantil são abordados neste
estudo.
Assim como em Charlot e Nóvoa, adoto como um fundamento das
análises que empreendo nesta pesquisa o princípio de que é no plano
intersubjetivo que se constitui e define o saber. É no momento em que o
professor busca formas de explicitar esse saber, tornando-o inteligível ao outro,
que o saber ganha materialidade, inclusive para o próprio professor. Como, para
Bakhtin, a linguagem é material e instrumento de si mesma, o saber do professor
é também linguagem, discurso. Portanto, nas relações de alteridade o saber se
constitui e se explicita.
As considerações sobre o caráter intersubjetivo do saber, tendo a
linguagem como instrumento privilegiado de sua constituição, revelam-se
especialmente produtivas para a compreensão dos saberes produzidos na
docência, atividade que se caracteriza pela relação com o outro, mediada pela
linguagem. Apontam, ainda, um caminho para o acesso a esses saberes. Sendo
o saber constituído na relação com o outro, e a linguagem o próprio espaço de
sua constituição, é legítimo afirmar que através da linguagem se torna possível o
acesso a esse saber. Se os saberes se constituem na linguagem, é possível
apreendê-los tomando-a como objeto de análise; se o saber se constitui no
espaço do outro, para o outro, na interação entre os sujeitos pode-se buscar
uma inteligibilidade para esse saber. Apoiando-se nesses princípios, esta tese se
debruça sobre as interações, mediadas pela linguagem, que os professores
estabelecem com as crianças, suas famílias, seus pares e com a figura do
pesquisador, uma vez que sua convivência com os sujeitos da pesquisa o torna
também parte dos contextos que constituem os saberes do sujeito professor.
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27
2.3.
Os saberes de professores da educação infantil enquanto objeto de
pesquisa
Se os estudos acerca dos saberes docentes vêm ganhando destaque nos
meios educacionais, os saberes dos professores que atuam na educação infantil
constituem ainda um campo pouco explorado por esses estudos.
Segundo Vasconcelos (1997), “De todos os professores, os educadores
de infância são aqueles a quem a sociedade reconhece menos poder e,
conseqüentemente, aqueles cujas vozes têm sido menos escutadas”
(Vasconcelos, 1997, p. 33). No Brasil, só recentemente a educação infantil foi
reconhecida como parte da educação básica pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394/96 e tal reconhecimento, dentre outras
conseqüências deu maior visibilidade às questões relativas às políticas de
atendimento à criança pequena e à formação dos profissionais responsáveis
pelas práticas de educação e cuidado que se desenvolvem nas instituições de
educação infantil, intensificando-se a produção de discursos sobre esses
profissionais no campo da pesquisa acadêmica.
Até a década de 1990 a produção científica relacionada à área da
educação infantil esteve mais voltada às questões ligadas às políticas de
atendimento à criança pequena, em função das lutas travadas pelo
reconhecimento da educação infantil como direito das crianças e de suas
famílias. Com a conquista desse reconhecimento pela Constituição de 1988 e
pela LDB de 1996, passa a haver uma maior preocupação com as questões
relativas aos profissionais que atuam nas creches e pré-escolas em função,
dentre outras razões, da precariedade da formação desses profissionais,
especialmente daqueles que trabalham nas creches. Entretanto é ainda reduzido
o número de pesquisas que tomam como foco os professores da educação
infantil e, dentre essas, um número ainda menor discute os saberes docentes a
partir da ótica desses profissionais.
Em pesquisa realizada por André (2000) no CD-ROM ANPEd, 3ª ed.,
com o objetivo de fazer um balanço da pesquisa sobre formação de professores
no Brasil na década de 1990, a autora constata que, de um total de vinte e dois
estudos (dissertações de mestrado e teses de doutorado) que analisam
propostas de formação docente, apenas nove têm como foco a formação para
atuação na educação infantil (André, 2000, p.91).
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28
No banco de teses e dissertações da CAPES
10
, sob o descritor
“educação infantil” encontram-se listadas, no período entre 1987 e 1995, em
torno de trinta e oito dissertações de mestrado e teses de doutorado, sendo que
desse total apenas uma tem como foco o profissional que atua na educação
infantil. No ano de 1996, no qual é promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional nº 9394/96 há uma alteração significativa no número de
trabalhos sobre a educação infantil: vinte e sete apenas naquele ano. Desses,
sete trabalhos tomam como foco o profissional da educação infantil, sendo a
maioria deles dedicados aos profissionais das creches.
A partir do ano de 1996 cresce o número de dissertações e teses sobre a
educação infantil (aproximadamente trinta a cada ano até 2001), sendo que os
trabalhos que tomam como foco os profissionais que atuam no segmento
mantêm-se em torno de seis a cada ano, com exceção dos anos de 1998 (doze
trabalhos) e de 1999 (três trabalhos).
Kramer (2005a), analisando as contribuições da Fundação Carlos
Chagas para a educação infantil, faz um levantamento dos artigos relacionados
ao tema publicados nos Cadernos de Pesquisa. De um total de sessenta e
quatro artigos listados pela autora, apenas cinco tomam como foco os
profissionais que atuam nas creches e pré-escolas.
Além dos artigos publicados nos Cadernos, Kramer (idem) aborda, ainda,
as contribuições dos pesquisadores da Fundação Carlos Chagas para a
educação infantil através da publicação de textos em números especiais dos
Cadernos, da apresentação de trabalhos em eventos de órgãos públicos e da
publicação de livros em editoras de circulação nacional
11
. Destacando a
relevância da abordagem da formação dos profissionais da educação infantil em
artigos e documentos, a autora ressalta haver ainda poucos trabalhos sobre o
tema, indicando a importância de que houvesse uma provocação dessa
demanda pelos Cadernos, caso essa se constituísse como uma de suas
prioridades.
A despeito da ainda pouca representatividade dos estudos que enfocam
os professores que atuam na educação infantil no quadro geral das pesquisas
sobre formação de professores, existem alguns espaços nos quais pesquisas
sobre o tema vêm se desenvolvendo. Sem a pretensão de realizar um
levantamento exaustivo das instituições e/ou núcleos que vêm se dedicando à
10
www.capes.gov.br
11
Dentre esses cumpre destacar, mais recentemente MACHADO, M. L. A.(org.) Encontros e
desencontros em educação infantil. São Paulo: Editora Cortez, 2002.
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29
pesquisa sobre professores da educação infantil, destaco alguns grupos com os
quais estabeleci, nesta tese, um diálogo a partir da apropriação e/ou participação
em trabalhos por eles desenvolvidos.
Na Universidade Federal de Santa Catarina, o Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Educação de 0 a 6 anos (NEE 0 a 6) desde a década de 1990 tem
se dedicado à pesquisa na área de educação infantil, dando ênfase às questões
relativas à formação dos professores. Derivam desse núcleo de pesquisa vários
trabalhos de monografia, dissertações de mestrado e teses de doutorado que
têm enfocado, dentre outros temas ligados à educação infantil, o professor da
educação infantil, apresentando os pontos de vista desses sujeitos acerca de
sua prática.
Esses trabalhos têm como foco os educadores da criança pequena e
buscam compreender aspectos de sua prática a partir da ótica desses
profissionais. Para isso, as estratégias de pesquisa privilegiadas são as histórias
de vida, entrevistas, observação participante, estratégias, enfim, que possibilitam
ao pesquisador apreender as experiências desses profissionais a partir da
perspectiva dos sujeitos da investigação.
Na Universidade de São Paulo funciona desde 2000, sob a coordenação
da professora Tizuko Morchida Kishimoto, a Rede de Pesquisadores Contextos
Integrados de Educação Infantil, da qual participam onze grupos de pesquisa
espalhados pelos estados de Ceará, Minas Gerais
12
e São Paulo. Esses grupos
vêm desenvolvendo pesquisas sobre a formação de professores, sustentadas
por princípios que tomam esses profissionais como protagonistas de sua própria
prática e investem nas possibilidades de reflexão e transformação da prática a
partir do trabalho colaborativo dos profissionais.
Na PUC-Rio o grupo de pesquisa coordenado pela professora Sônia
Kramer tem produzido trabalhos de monografia, dissertações de mestrado e
teses de doutorado que têm abordado as questões relativas aos professores que
trabalham com a criança pequena, dentre os quais cabe destacar, mais
recentemente, as teses produzidas por Corsino (2003), Debortoli (2004) e Drago
(2005) no âmbito da pesquisa “Formação dos profissionais da educação infantil
no Estado do Rio de Janeiro”, desenvolvida no Departamento de Educação da
PUC-Rio no período de 2000 a 2005. Ainda na PUC-Rio o curso de
Especialização em Educação Infantil tem originado trabalhos monográficos sobre
12
Em Juiz de Fora o grupo de pesquisa "Qualidade em Educação Infantil", do qual participei entre
os anos de 2000 e 2005, é coordenado pela professora Léa Stahlschmidt P. Silva. O trabalho
realizado pelo grupo entre 2000 e 2004 deu origem ao livro "Uma experiência de pesquisa,
formação e intervenção em educação infantil" (Silva e Micarello (orgs.), 2005).
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30
as práticas de educação da criança pequena e a formação dos profissionais da
educação infantil
13
.
Analisando os títulos das dissertações de mestrado e teses de doutorado
que se encontram sob o descritor "educação infantil', pesquisados no período
anteriormente mencionado e que enfocam os profissionais que atuam nas
instituições de educação infantil, é possível perceber uma predominância de
trabalhos sobre os profissionais que atuam em creches
14
. As razões para tal
predominância podem ser atribuídas à existência, no contexto das creches, de
diferentes profissionais - com formação, salários, status profissional,
nomenclaturas e jornada de trabalho diferenciados - responsabilizando-se,
respectivamente, por tarefas de educação e cuidado, que são tomadas como
práticas distintas. Um outro fator que configura um especial interesse por esse
segmento é a proximidade entre as atividades que se realizam nas creches e
aquelas próprias à mãe, no espaço privado, o que muitas vezes contribui para
uma indefinição de fronteiras entre trabalho doméstico, identificado com o
gênero feminino, e a atividade profissional.
Entre as pesquisas que focalizam os profissionais que atuam em pré-
escolas, com crianças entre 4 e 6 anos, boa parte discute o modo como esses
profissionais lidam com os saberes disciplinares na docência junto à criança
pequena - percepções sobre o ensino da Matemática, de Artes, da leitura e da
escrita etc. As percepções desses profissionais sobre sua prática e os saberes
que a fundamentam são ainda um campo pouco explorado. Em geral aponta-se
uma identificação das práticas pedagógicas desenvolvidas na pré-escola com
aquelas próprias do ensino fundamental e a atuação do professor como
reprodutor dessas práticas, numa versão adaptada à criança pequena, com o
objetivo de prepará-la para etapas posteriores da escolarização.
Cumpre ainda destacar que as pesquisas sobre profissionais da
educação infantil têm abordado, principalmente, as questões relativas à
formação desses profissionais frente à realidade de reconhecimento da
educação infantil como parte da educação básica e à necessária melhoria da
qualidade do atendimento à criança pequena nas creches e pré-escolas. Nessas
discussões, muitas vezes os profissionais que atuam nessas instituições têm
encontrado pouco espaço para se pronunciarem sobre os saberes que
13
Esses trabalhos encontram-se reunidos no CD-Rom “Educação Infantil”, produzido pelo Curso de
Especialização em Educação Infantil. Ver, também, Kramer (2005-b)
14
A LDB 9394/96 divide a educação infantil em creches, que atendem ás crianças de 0 a 3 anos e
pré-escolas, que atendem às crianças de 4 a 6 anos. Dentre os trabalhos que abordam os
profissionais das creches cabe destacar os de Cerisara (2002) e Silva (2003).
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constroem no enfrentamento cotidiano dos desafios que a docência na educação
infantil lhes impõe.
Rocha (2001b), ao fazer um mapeamento do estado do conhecimento na
área da educação Infantil no Brasil, destaca que na década de 1990 passam a
ganhar espaço estudos que se propõem ao estabelecimento de parâmetros de
qualidade na educação infantil e as pesquisas que enfocam as relações que se
estabelecem no cotidiano das instituições de educação infantil. Nesse contexto,
aumentam os estudos que se voltam aos profissionais da educação infantil e sua
formação. Entretanto, a autora destaca que
(...)os estudos sobre a formação dos profissionais têm antecedido aqueles sobre
a própria definição das particularidades dos profissionais de educação infantil,
tais como as características de sua função e de sua atuação prática, mesmo, de
sua identidade e configuração profissional.
Neste conjunto de trabalhos voltados para a formação, tanto o professor como o
profissional de atuação indireta não têm sido muito considerados como sujeitos
em seu próprio processo de formação. (Rocha, 2001, p.12)
Considerando o que afirma Rocha, é legítimo afirmar a necessidade de
que as particularidades do profissional de educação infantil sejam conhecidas a
partir da perspectiva desses profissionais para que o professor de educação
infantil possa se constituir como sujeito das práticas de formação que a ele se
dirigem.
Aqueles que lidam com a infância (in-fans) permanecem sem voz nas
pesquisas que se debruçam sobre suas práticas. Entretanto, a despeito das
lacunas e limitações da formação inicial e continuada e das polêmicas com
relação ao perfil necessário ou desejado ao profissional de educação infantil, os
professores das pré-escolas constroem sua identidade profissional e os saberes
que mobilizam em sua prática tendo como referência suas experiências
anteriores, acadêmicas e/ou pessoais e nas interações com outros sujeitos. O
conhecimento desses saberes e o reconhecimento dessa identidade profissional
são elementos necessários às reflexões acerca da formação do profissional de
educação infantil.
Tanto no que se refere aos saberes docentes dos profissionais que
atuam nas creches quanto aos daqueles que trabalham nas pré-escolas, esses
profissionais vêm se construindo a partir de determinadas condições sociais e
históricas, tendo como referência a criança pequena com a qual lida o professor.
Portanto, numa perspectiva dialógica, para compreender o que sabem e fazem
esses profissionais é necessária a escuta àquilo que eles têm a dizer sobre sua
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32
prática numa articulação entre o texto – os enunciados dos professores – e o
contexto – as condições de enunciação. Essas condições de enunciação estão
referidas ao contexto mais imediato de realização da pesquisa e àqueles mais
amplos, ligados à história da educação infantil e da constituição de seus
profissionais, pois, como afirma Bakhtin,
em toda enunciação, por mais insignificante que seja, renova-se sem cessar
essa síntese dialética viva entre o psíquico e o ideológico, entre a vida interior
e a vida exterior. (...) Sabemos que toda palavra se apresenta como uma
arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam valores sociais de orientação
contraditória. A palavra revela-se, no momento de sua expressão, como
produto da interação viva das forças sociais (Bakhtin, 1997b).
A conseqüência dessa concepção de enunciação é que a escuta àquilo
que dizem os professores sobre seus saberes só é possível a partir da
compreensão do horizonte social desses sujeitos, onde se constroem os valores
que eles trazem para a “arena” que é a palavra. Esse horizonte social, por sua
vez, não é um lugar previamente dado e ocupado pelos sujeitos, mas é processo
de construção que se dá na linguagem, a partir dos discursos que historicamente
vêm construindo uma identidade dos professores da educação infantil em
referência a concepções de infância e do papel das instituições de educação
infantil. Puxando os fios dessa história, que são também fios de discursos sobre
a educação infantil e seus profissionais, construídos no encontro/confronto entre
diferentes sujeitos, em diferentes contextos históricos e sociais, busco
compreender o horizonte social dos sujeitos que fizeram parte desta pesquisa.
Os próximos capítulos empreendem essa busca.
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3
A EDUCAÇÃO INFANTIL E SEUS PROFISSIONAIS:
PUXANDO FIOS DA HISTÓRIA
Compreender é cotejar com outros textos e pensar num contexto novo (no meu contexto,
no contexto contemporâneo, no contexto futuro). Contextos presumidos do futuro: a
sensação de que estou dando um novo passo (de que me movimentei). Etapas da
progressão dialógica da
compreensão
1
; o ponto de partida - o texto dado, para trás - os
contextos passados, para frente - a presunção (e o início) do contexto futuro.
(Mikhail Bakhtin, 1997a, p. 404)
Este capítulo não se propõe a traçar um histórico da educação infantil no
Brasil
2
, mas pretende abordar aspectos relativos a essa história que permitam
colocar em diálogo os textos que vêm sendo produzidos ao longo dela e aqueles
produzidos pelos professores que foram sujeitos da pesquisa, eles próprios
produto e produtores da história. O cotejo desses textos permite presumir
contextos futuros o que, no caso do objeto desta pesquisa, significa dizer que a
compreensão do que dizem os professores acerca de sua docência, à luz da
história de constituição do próprio segmento da educação infantil e de seus
profissionais, pode favorecer uma melhor compreensão do que é importante
considerar com relação à formação desses profissionais. Pretendo, ao retomar
"o texto para trás", construir elementos para uma compreensão do contexto
contemporâneo em que se dá a docência dos professores, sujeitos da pesquisa,
de modo a sugerir possibilidades de futuro.
Um primeiro ponto a considerar é que a docência na educação infantil se
constrói tendo como referência uma concepção de infância e de educação
infantil. Portanto, para compreender o contexto mais imediato em que se dá a
prática dos professores que trabalham com a criança pequena, é necessário
retomar aspectos relativos ao modo como diferentes formas de perceber a
criança têm informado as práticas de educação que a ela se dirigem.
3.1.
“ Infantes tuendo pro patria laboramus”
3
As primeiras iniciativas de atendimento à infância no Brasil são marcadas
por uma perspectiva assistencialista e médico-higienista. Tal perspectiva
1
Grifo do autor.
2
Esse histórico pode ser encontrado em Khulmann Jr. (2001) e Kramer (2003).
3
Lema do Instituto de Proteção e Assistência à Infância, inscrito no vitral do hall de entrada da
nova sede do referido Instituto inaugurado em 1929, no Rio de Janeiro,.
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inspirava-se em movimentos que tiveram início na Europa, na passagem do
século XVIII para o século XIX, no período de transição do feudalismo para o
capitalismo. Arce (2002) faz uma interessante análise desse período. Baseada
nos estudos de Hobsbawm acerca do que o autor denomina “A era das
Revoluções”, a autora mostra como, no período de consolidação da burguesia
enquanto classe hegemônica, no contexto dos ideais da Revolução Francesa e
do novo modo de produção que se estabelecia com a Revolução Industrial, o
discurso de dois educadores pioneiros da educação infantil – Froebel e
Pestalozzi – veio contribuir para a consolidação dos ideais do novo modelo de
sociedade capitalista que então se instaurava. Esses autores, apesar das
diferenças de seu pensamento educacional em vários aspectos, tiveram em
comum a ênfase no papel da família – em especial no papel da mãe – para uma
educação da criança pequena que fosse capaz de cultivar aquilo que o ser
humano teria de melhor, com vistas a formar o indivíduo capaz de se adaptar de
modo produtivo e construtivo à sociedade e de exercer seu papel de trabalhar
para que ela funcionasse de forma harmônica. Outro ponto em comum no
pensamento de Froebel e Pestalozzi é a concepção da criança como ser
essencialmente puro e bom, dotado de potencialidades as quais caberia à
educação fazer despertar e cultivar. A base da pedagogia de ambos os
educadores é a crença numa natureza essencialmente boa do ser humano e na
necessária atuação da educação para que essa essência pudesse se
desenvolver de modo a formar indivíduos socialmente adaptados, aptos a
exercer suas funções para o pleno desenvolvimento da sociedade na qual
estavam inseridos (Arce, 2002).
No Brasil, em fins do século XIX e início do século XX, quando as idéias,
principalmente de Froebel, tiveram papel de destaque nos debates educacionais
e nas práticas de educação da criança pequena, essa perspectiva civilizatória
atendia ao projeto de transformação da sociedade brasileira numa sociedade
moderna, industrializada e urbanizada. Ao atribuir ao atendimento à criança,
desde a mais tenra idade, a solução para os problemas enfrentados pelo país,
tal perspectiva escamoteava as origens desses problemas, que se encontravam
na distribuição desigual da riqueza na sociedade brasileira motivada, entre
outros fatores, por um processo de urbanização desordenado, que impôs a uma
parcela significativa da população condições de vida indignas.
A intervenção junto à infância com o objetivo de higienizá-la para
formação de uma geração na qual estavam depositadas as esperanças de um
futuro prodigioso para o Brasil (Gondra, 2002), revela uma concepção da
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infância como tempo de preparação para a vida adulta, que desconsiderava as
peculiaridades da criança no presente. Além disso, a abordagem das famílias,
com o objetivo de ensinar-lhes a forma adequada de educar seus filhos,
baseava-se numa perspectiva de controle e conformação, tanto da criança
quanto da família, à ordem social vigente
4
.
A mulher será foco privilegiado dos discursos civilizatórios que tiveram o
objetivo de consolidar a burguesia como classe no poder, em fins do século XVIII
e início do século XIX. Naquele período foi atribuída à mulher a tarefa sublime de
criar no ambiente do lar as condições favoráveis à educação dos filhos e à
manutenção da paz e da ordem necessárias ao bom funcionamento da
sociedade que então se organizava, pois
a burguesia, ao ascender ao poder, tornou-se conservadora e abandonou o
materialismo adotado como bandeira de luta durante a revolução [ francesa],
evocando a moral religiosa e trazendo com ela, de maneira muito mais
contundente, todo o movimento de moralização da família e definição de papéis
familiares pregados pela Igreja durante a Idade Média (Arce, 2002, p. 85).
Nessa retomada de ideais conservadores há uma clara separação entre
as esferas pública e privada, sendo o homem identificado com o espaço público,
enquanto provedor - aquele que sai para o trabalho fora do espaço do lar - e a
mulher com o espaço privado, doméstico. Nesse espaço a mulher é concebida
como a principal responsável pela educação da criança, em conseqüência de
características e habilidades que estariam ligadas à sua condição feminina. "(...)
esta mulher/mãe já estaria dotada de tudo o que necessita para a educação das
crianças pelo simples fato de ter nascido mulher e poder gerar a vida" (Arce,
2002, p. 87). Em virtude dessas características da mulher, percebidas como
fundamentais para a educação da criança pequena, educadores como
Pestalozzi e Frobel dedicaram boa parte de seus escritos a instruir as mães
acerca dos cuidados e procedimentos adequados na educação da criança.
A ênfase nos dotes femininos como condição fundamental para o
exercício da tarefa de educar teve repercussões no modo como a docência, de
modo geral, e a docência junto à criança pequena, de modo particular, foram se
construindo como uma profissão.
Discutindo a relação entre mulheres e educação no Brasil, Almeida
(1998) destaca que “como o cuidado com crianças não fugia à maternagem, o
4
Uma análise mais aprofundada sobre a perspectiva de higienização das famílias como estratégia
para construção da sociedade moderna, no século XIX pode ser encontrada em Costa, J.F. Ordem
médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
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magistério representava a continuação de sua missão [da mulher], nos moldes
propostos pelos positivistas e higienistas no século XIX e de acordo com o
imaginário social acerca do papel feminino (Almeida, 1998, p. 37). Diante das
restrições a que se viam submetidas pela sociedade brasileira em fins do século
XIX e início do século XX, as mulheres encontraram, no magistério, uma
alternativa possível para ingresso no espaço público e conquista de alguma
independência. Entretanto, esse ingresso no espaço público não se deu em
igualdade de condições com os homens que ali já se encontravam. Como a
"missão" da mulher na esfera pública está identificada com as tarefas
desempenhadas por ela na esfera privada, para quais seria naturalmente
habilitada, o trabalho da mulher/professora passa a ser identificado com o
caráter de vocação, o que contribui para um esvaziamento do caráter
profissional das funções por ela exercidas (Chamon, 2005).
Segundo Kuhlmann Jr., o modelo da educação oferecida pela mãe, no
âmbito familiar, fundamentou as propostas pedagógicas para educação das
crianças em instituições educacionais no início do século XX. Tais propostas
idealizavam um modelo materno e feminino, o que fazia que a figura do
profissional responsável pelo trabalho com a criança não recebesse destaque
especial. As características pessoais, ligadas a papéis desempenhados pela
mulher no espaço da vida privada são aquelas consideradas necessárias - e
suficientes - para o desempenho das funções de educadora, como se pode
constatar a partir da leitura dos versos ensinados às crianças para serem
cantados na hora da entrada, nos jardins de infância de inspiração frobeliana.
Duas mães eu tenho,
Sei que ambas me têm amor sem fim.
uma lá em casa, hoje deixei,
Outra me espera no Jardim.
E a tanto amor corresponder
Sabe com força o coração.
Amar é ouvir e obedecer,
Amar também é gratidão.
(Zalina Rolim, Versos para a entrada, apud Kuhlmann Jr., 2001, p.113-114)
Estudando a relação entre a constituição histórica do profissional da
educação infantil e "o mito da maternidade, da mulher como rainha do lar, da
educadora nata", Arce (2001) constata a contribuição que os discursos acerca
do papel da mulher na educação da criança pequena dos primeiros teóricos da
educação infantil de maior influência no Brasil - Froebel, Montessori e Rousseau
- tiveram para a construção desse mito. A autora demonstra o modo como o
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ideal feminino de obediência, afetividade, dedicação, doação, esteve associado
às qualidades necessárias à educadora de crianças pequenas, referendando um
discurso relativamente a essas profissionais no qual as qualidades pessoais se
sobrepunham às competências profissionais. O componente de cientificidade da
formação da pessoa que atuava junto às crianças pequenas foi dado pela
apropriação de elementos da psicologia do desenvolvimento.
Cerisara (2002) destaca que a identidade das profissionais que atuam em
creches e pré-escolas tem se constituído fundamentada no trabalho doméstico e
na maternagem, havendo, segundo a autora, uma contaminação das práticas
femininas domésticas na prática profissional das mulheres que trabalham em
instituições de educação infantil. Essa contaminação repercute em conflitos
dessas profissionais com relação aos seus papéis profissionais (Cerisara, 2002).
Os profissionais que atuam nas creches são também os sujeitos de
pesquisa realizada por Nunes (2000) que, analisando as práticas de profissionais
que atuam em creches comunitárias, discute diferentes modelos presentes na
atuação desses profissionais: o modelo da mãe, da faxineira, da professora
(Nunes, 2000).
Se por um lado, como apontam os estudos que têm focalizado as
profissionais que atuam principalmente em creches, a constituição da mulher
enquanto profissional da educação infantil se fez pela afirmação de
características imputadas ao gênero feminino, ligadas ao espaço da vida privada
- a maternidade, os cuidados com o lar e a família -, por outro lado, foi esse
espaço de profissionalização que propiciou a ocupação, pela professora, do
espaço público, o que repercutiu na garantia de uma profissionalização que
proporcionou à mulher a ocupação de um lugar diferenciado na sociedade,
desfrutando de algum poder e relativa liberdade econômica.
A despeito do que a ocupação do espaço público representou para a
mulher em termos de sua profissionalização, nos discursos que se dirigiam às
professoras da educação infantil - revistas, manuais, textos de orientação
didática - parecia haver uma tentativa de negação dessa profissionalização, uma
vez que a ênfase desses materiais se colocava, em geral, nas qualidades da
mãe, no reforço ao mito da educadora nata, que exercia suas atividades
profissionais por amor, vocação e na forma de doação. Além disso, o tom
prescritivo, no gênero instrucional, buscando orientar passo-a-passo as ações
das educadoras, evidencia a pouca autonomia das professoras na realização de
seu trabalho. Tais estratégias de desqualificação do trabalho da professora de
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educação infantil têm atendido a diferentes objetivos, em contextos históricos
diversos.
Analisando a Revista do Jardim de Infância, material publicado em fins do
século XIX cujo objetivo era orientar os professores com relação ao trabalho com
a metodologia idealizada por Froebel para os jardins-de-infância, Kuhlmann Jr.
constata o aspecto de "receituário" da publicação, dirigindo-se à professora
como se fosse uma criança a ser educada pela revista, inclusive na
apresentação gráfica do material. Tal "imagem da mulher como profissional
infantilizada" seria, segundo o autor, uma forma de amenizar "a sensualidade
ameaçadora de sua presença no âmbito público"(Kuhlmann Jr., 2001, p.164).
Segundo Fontana (2000), a preocupação com a feminização do magistério, que
inicialmente recebeu um tratamento estatístico, conduziu a estudos que,
posteriormente, identificaram a feminização à ausência de profissionalismo da
mulher, o que teria como conseqüência uma resistência das professoras às
transformações educacionais.
Evidenciando a ambigüidade dos papéis vividos pela
mulher/mãe/profissional/cidadã, Fontana analisa o trabalho desenvolvido por
Teresa P. do Rio Claro no ano de1982. No referido estudo, a autora constata, ao
entrevistar mulheres trabalhadoras que, a despeito destas acreditarem que
“mulher e política são duas coisas que não devem se misturar”, na prática essas
mesmas mulheres se organizam na reivindicação de creches paras seus filhos,
participando de reuniões políticas com esse fim. Dessa forma, a participação na
política se torna legítima se o objetivo é garantir uma conquista para seus filhos.
O papel da mãe, vivido no espaço privado, é reinterpretado na atuação no
espaço público.
Os estudos que vêm se debruçando sobre a inserção da mulher no
campo da educação levam à constatação de que tal inserção se dá de forma
contraditória, como é contraditória sua posição na sociedade: ao mesmo tempo
em que essa inserção representa a abertura de um novo campo de atuação
profissional, com a entrada no espaço público, as qualidades exigidas para tal
atuação permanecem ligadas a características definidas por questões de gênero,
que evocam os papéis desempenhados pela mulher no espaço privado.
Acrescente-se a isso o fato de o reconhecimento da educação infantil como
direito da criança e de suas famílias constituir-se numa conquista advinda da
organização das mulheres, na qual a participação das professoras teve papel
importante na reivindicação de um atendimento à criança pequena em creches e
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pré-escolas que superasse a perspectiva meramente assistencialista que
marcara esse atendimento por várias décadas no Brasil.
O enfoque assistencialista e compensatório de carências familiares,
fundamentado numa concepção naturalizada de infância que marcou as origens
da educação infantil no Brasil, permaneceu hegemônico por várias décadas.
Nesse período não houve um significativo aumento do atendimento às crianças
de 0 a 6 anos em instituições educacionais, ficando a responsabilidade por tal
atendimento ora imputada ao poder público, ora a cargo da iniciativa privada,
caracterizando uma situação na qual
o governo proclama(va) a sua importância [do atendimento à criança em idade
pré-escolar] e mostra(va) a impossibilidade de resolvê-lo dada as dificuldades
financeiras em que se encontra(va), enquanto imprimia uma tendência
assistencialista e paternalista à proteção da infância brasileira, em que o
atendimento não se constituía em direito, mas em favor (Kramer, 2003, p. 61).
Segundo Kramer (2003), o período que vai da década de 1930 até a
década de 1980 foi marcado, no campo da educação infantil, pela criação e
extinção de diversos órgãos que tinham como objetivo o atendimento à infância.
Esse atendimento assume uma tônica médico-higienizadora, enfocando as
questões relativas à infância numa perspectiva individualista, que tratava os
problemas ligados à criança como advindos da estrutura familiar, sem uma
abordagem das questões sociais mais amplas envolvidas. O caráter de
fragmentação no campo do atendimento à criança brasileira se revela no
deslocamento da ênfase às questões ligadas à saúde para aquelas referentes à
assistência social e, finalmente, para a educação, num movimento em que as
novas tendências não englobam as anteriores A conseqüência desse processo é
uma transferência de responsabilidades de uma área a outra do atendimento –
assistência, saúde e educação. Nesse processo de fragmentação de
responsabilidades, também a criança é fragmentada e deslocada dos problemas
inerentes ao contexto social mais amplo no qual ela está inserida (Kramer,
2003).
A década de 1970 se caracteriza por uma situação na qual o atendimento
pré-escolar, embora considerado importante, não é assumido ainda pelo Estado
como direito, nem tampouco pensado em termos qualitativos. A marca desse
período é o atendimento de baixo custo, oferecido em espaços improvisados e
com pessoal sem a qualificação necessária, baseado numa concepção de
atendimento à infância de caráter compensatório. Rosemberg (2002) destaca
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algumas idéias acerca dos modelos de atendimento à criança pequena em
países subdesenvolvidos que circularam naquele período,
(...)educadores (as) ou professores (as) leigos (as), isto é, não profissionais,
justificando salários reduzidos; espaços improvisados, mesmo quando
especificamente construídos para a EI; improvisação, também, de material
pedagógico, ou sua escassez, como brinquedos, livros, papéis e tinta. A
educação infantil para os países subdesenvolvidos tornou-se a 'rainha da sucata'
(Rosemberg, 2002, p.35).
As políticas de atendimento pautadas na improvisação de recursos e
espaços para o trabalho com a criança pequena sequer consideravam a questão
da formação do profissional que trabalharia com as crianças: "o pessoal seria
recrutado entre 'as pessoas de boa vontade', à base do voluntariado,
reservando-se o pagamento para alguns técnicos necessários à supervisão e
coordenação dos serviços, cujos encargos seriam de maior responsabilidade"
(Kuhlmann Jr, 2000, p. 489). A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n º 4024/61 não faz qualquer menção à formação necessária aos
professores que atuariam no chamado "Pré-Primário", o que leva a crer que
profissionais leigos poderiam atuar nesse segmento (Bonetti, 2004). A ausência
de preocupações com a formação do profissional da educação infantil estaria
ligada ao mito da mulher como educadora nata, que exerce no espaço público
aquelas funções próprias à condição feminina, por ser vocacionada para esse
exercício. Dessa forma a formação, assim como a remuneração configuram-se
como desnecessárias.
Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692/71 também
não há qualquer referência à formação necessária ao professor da educação
infantil. Tal referência só irá aparecer em 1974, na indicação nº 45, do Conselho
Federal de Educação, para que fosse oferecida a habilitação para ensino no pré-
escolar nos cursos de formação de professores - o chamado Adicional ao curso
de Normal de nível médio. Posteriormente, o Parecer CFE nº 1600/75, com base
na indicação nº45, estabeleceu os conteúdos referentes à habilitação para atuar
no pré-escolar que contemplavam o conhecimento das características físicas da
criança pequena "(como coordenação auditiva-motora-visual), condições de
saúde sócio-emocionais (como egocentrismo, gregarismo, frustração,
necessidade de expressão) e mentais (a exploração, a comunicação, a
dificuldade natural de abstrair e de se localizar no tempo e espaço)" (Brasil,/CFE,
1975 apud Bonetti, 2004, p. 38). Os conteúdos previstos para a formação do
professor que atuaria nas pré-escolas evidenciam o caráter compensatório que
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aquelas instituições deveriam ter, de acordo com as políticas de atendimento à
criança pequena das décadas de 1970 e 1980. Evidenciam, ainda, a
subordinação das práticas de educação infantil àquelas próprias do ensino
fundamental.
A despeito dos debates em torno das propostas de educação
compensatória, essas não chegaram a se traduzir em programas que
repercutissem significativamente na educação infantil. O atendimento
permaneceu precário e restrito, motivando movimentos que o reivindicavam,
principalmente para as camadas menos favorecidas da população que menor
acesso tinham a ele. Nesses movimentos as mulheres tiveram um papel
importante.
Os movimentos de mulheres que reivindicavam creches tiveram sua
origem na década de 1970. Naquele período essa reivindicação se dá no
contexto mais amplo de reivindicações das mulheres por uma maior participação
na vida social. A luta em torno das creches reuniu, segundo Rosemberg (1989),
grupos que divergiam entre si com relação ao modo como priorizavam as
questões relativas à gênero. Entretanto, a reivindicação pela creche como um
direito da criança e da família - em especial como um direito da mulher - deu
origem, em 1979, a um movimento mais unitário: o Movimento de Luta por
Creches.
É o crescimento desse movimento, aliado à conjuntura política do país,
que vivia uma campanha eleitoral para prefeito, que possibilitou, na década de
1980, o aumento do número de creches na cidade de São Paulo. Esse processo,
entretanto, foi interrompido na segunda metade da década quando, sob a
alegação de que as creches eram muito onerosas para o poder público, voltaram
ao debate educacional as propostas de atendimento de caráter provisório (como
as creches domiciliares) e o incentivo à participação dos setores privados no
atendimento com a participação indireta do Estado através de convênios. Como
àquela época o Movimento de Luta por Creches não dispunha mais da mesma
organização que o caracterizou no início da década e que possibilitou conquistas
efetivas, houve um retrocesso em termos das conquistas já alcançadas.
Rosemberg destaca que "Apesar das conquistas conseguidas, a mobilização
das mulheres não foi suficiente para romper o círculo da creche: ou seja, de ser
uma instituição provisória, destinada a apenas algumas mães" (Rosemberg,
1989, p. 101).
Entretanto, o movimento de luta por creches, aliado a outros movimentos
da sociedade civil organizada, teve um papel importante na conquista do
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reconhecimento do atendimento em instituições de educação infantil como um
direito das crianças - e não apenas como um favor às famílias - e parte dos
deveres do Estado com a educação. Em fins dos anos 1980, esse
reconhecimento foi expresso pela primeira vez, na realidade brasileira, na
Constituição de 1988. Além disso, o debate em torno do direito da criança
pequena a um atendimento de qualidade em creches e pré-escolas e a crítica a
uma forma de conceber a infância que a toma por suas carências abrem
caminho à construção de uma concepção de infância cidadã, sujeito de direitos,
expressa na Constituição de 1988. Essa conquista repercutiu, na década de
1990, no estabelecimento de dois outros marcos para a construção de uma visão
da criança enquanto sujeito social de direitos e para a consolidação da educação
infantil enquanto direito das crianças e das famílias: o Estatuto da Criança e do
Adolescente (1990) e a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº
9394/96. Nesta última, a Educação Infantil foi reconhecida como primeira etapa
da Educação Básica, sendo definidos níveis de responsabilidade sobre a
educação infantil ministrada em creches e pré-escolas, dentro dos sistemas de
ensino estaduais e municipais enquanto sistemas próprios ou integrados.
Com a promulgação da Constituição de 1988, uma nova equipe assumiu
a Coordenação de Educação Infantil do MEC. Essa equipe elaborou, com a
participação de segmentos sociais que tiveram uma participação ativa nos
debates da Constituinte, o documento Políticas de Educação Infantil (Brasil,
1993). Rosemberg (2002) destaca, entre as diretrizes dessa proposta, duas que,
de acordo com a autora, mais evidenciam a ruptura com o modelo anterior,
sendo elas: "equivalência de creches e pré-escolas, ambas tendo por função
cuidar e educar crianças pequenas como expressão do direito à educação;
formação equivalente para o profissional de creche e pré-escola em nível
secundário e superior"(Rosemberg, 2002. p. 41). Ambas as metas reconheciam
uma identidade própria à educação infantil - a função de cuidar e educar a
criança pequena - e a necessária formação do profissional que atua com a
criança, seja qual for a faixa etária atendida.
Buscando responder às novas demandas com relação à formação dos
profissionais que atuam na educação infantil, o "Encontro Técnico sobre Política
de Formação do Profissional da Educação infantil" reuniu em Belo Horizonte, em
abril de 1994, especialistas das áreas da educação infantil e formação de
professores, convidados pelo MEC. Como fruto desse encontro, construiu-se o
documento "Por uma política de formação do profissional de educação infantil"
(Brasil, 1994), que reuniu textos dos diversos especialistas que participaram do
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encontro e apresentou uma síntese das discussões e conclusões. Nesses textos
discutia-se o perfil necessário ao profissional da educação infantil e o locus da
formação desse profissional.
Nessa publicação Barreto (1994), então coordenadora de educação
infantil da COEDI/MEC, destaca a importância de políticas de formação
específicas para os profissionais de educação infantil, considerando o fato de
que, na realidade brasileira, era ainda irrisória a oferta dessa formação tanto no
nível médio quanto no nível superior. Qual seria, entretanto, o perfil desejado a
esses profissionais e que deveria pautar essas políticas?
No mesmo documento acima referido, Campos (1994), partindo da
realidade de instituições de educação infantil nas quais diferentes profissionais
com diferentes níveis de qualificação, salários e jornada de trabalho
responsabilizam-se pelas atividades de cuidado e educação, destacava a
importância de aliar, no perfil do profissional de educação infantil, as dimensões
do cuidar e do educar, promovendo "um novo tipo de formação, baseada numa
concepção integrada do desenvolvimento e educação infantil, que não
hierarquize atividades de cuidado e educação e não as segmente em espaços,
horários e responsabilidades profissionais diferentes” (Campos, 1994, p.37).
Rosemberg (1994), aponta a necessidade de cursos formais para a
habilitação profissional em educação infantil em detrimento de iniciativas
episódicas de formação. Defende, ainda, a definição de uma grade curricular
mínima, válida para todo o Território Nacional, sugerindo que nessa grade
fossem incluídos conhecimentos sobre "desenvolvimento e crescimento da
criança pequena; observação da criança; trabalho em grupo; planejamento de
atividades e/ou currículo; relações com a família e comunidade; saúde, nutrição,
higiene e segurança; campo profissional, ética profissional e direitos da criança”
(Rosemberg, 1994. p.57).
O documento "Por uma Política de Formação do profissional da
Educação Infantil" teve importante papel no contexto em que foi produzido, por
estabelecer alguns consensos acerca do perfil do profissional e ao currículo da
formação. Além disso, como fruto do encontro que deu origem ao documento, foi
elaborado um documento-síntese com proposições ou recomendações dirigidas
ao MEC que pretendia viabilizar uma política de formação do profissional da
educação infantil. Essas proposições apontavam para a necessidade de
reconhecimento da formação como um direito dos profissionais, assim como a
importância de que tal formação contemplasse as especificidades da educação
infantil e o conhecimento da realidade de seus profissionais, com base em
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44
diagnóstico dos profissionais da educação infantil e das agências formadoras
existentes (Kramer, 1994).
Entretanto, a despeito do avanço que as conquistas das décadas de1980
e 1990 representaram para o campo da educação infantil, as transformações
ocorridas no plano mundial com relação à concepção de Estado e de políticas
sociais hegemônicas vêm colocando novos desafios a serem enfrentados. Se
por um lado houve um avanço no campo teórico, com a construção de uma
concepção de infância que considera as especificidades da criança pequena e
também no campo da legislação, que assegura direitos que visam ao respeito a
essas especificidades; por outro, no campo das políticas de atendimento, a
dispersão e a fragmentação continuaram sendo a marca do tratamento dado às
questões relativas à infância e à educação infantil.
Na década de 1990 a entrada do Banco Mundial entre as organizações
multilaterais na definição de prioridades e estratégias de modelos de política
educacional desenha um novo quadro para a educação infantil. Com uma
política baseada em orientações "técnicas" para a educação, fundamentada
numa concepção economicista, o modelo do Banco Mundial propugna pela
implantação de programas "focalizados" para combate à pobreza -
caracterizados pela delimitação de segmentos especialmente "vulneráveis” -
investindo em "modelos alternativos" que ressuscitam as práticas
assistencialistas do passado recente (Rosemberg, 2002). Além disso, a
prioridade dada ao ensino fundamental como política do Banco Mundial trouxe
como conseqüência a interrupção, durante a administração do presidente
Fernando Henrique Cardoso, da proposta formulada no documento Políticas de
Educação Infantil, sendo retomados os programas "não formais" e de baixo
custo para a população de renda mais baixa (id.).
Com relação à formação de professores, os documentos oficiais que se
seguiram à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 e que
regulamentaram a educação infantil e a formação de seus profissionais,
contemplaram de maneira bastante tímida o necessário reconhecimento das
peculiaridades do profissional que trabalha com a criança pequena.
Bonetti (2004), ao analisar a especificidade da docência na educação
infantil tendo como referência documentos oficiais após a LDB nº 9394/96
5
constata que, embora esses documentos afirmem uma especificidade da
5
Os documentos analisados foram o referencial para Formação de Professores - 1998; a Proposta
de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da educação Básica em curso de nível
Superior/2000 e o Parecer do Conselho Nacional de Educação nº 0009/2001.
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45
docência na educação infantil, tal especificidade é reconhecida como uma
necessária adaptação ao modelo do ensino fundamental, uma vez que a reforma
na formação dos professores da educação básica - entre eles os professores da
educação infantil - que esses documentos propõem implementar é justificada
pelo fraco desempenho das crianças no ensino fundamental. A autora destaca
que os documentos fazem uma redução do papel do professor da educação
infantil a um adaptador das reformas da educação básica para as crianças
pequenas.
O olhar retrospectivo às políticas de atendimento à infância e de
formação dos profissionais que trabalham com a criança pequena revela que
ainda há muito a conquistar no reconhecimento das especificidades da educação
infantil. Kramer (2005a) aponta a dotação de verbas específicas para essa
primeira etapa da educação básica, a formação dos profissionais que nela atuam
e a construção de alternativas curriculares como alguns dos desafios que
cumpre enfrentar para que a educação infantil possa se efetivar como direito da
população de 0 a 6 anos e de suas famílias. Nesse sentido, há ainda um longo
caminho a percorrer para que as conquistas no plano da legislação se traduzam
na melhoria do atendimento à criança pequena.
Segundo Campos (2002), o divórcio entre a legislação e a realidade é
uma situação antiga no Brasil. Esse divórcio se revela, no caso da educação
infantil, em tensões relativas às políticas de atendimento à criança e de formação
dos professores que dificultam a consolidação de uma identidade para a
educação infantil e seus profissionais. Essas tensões têm origem na cisão
histórica entre os objetivos dessa etapa da educação básica - educação para
subordinação X educação para emancipação - e se evidenciam nos discursos e
nas práticas que se dirigem à criança pequena. Além disso, a ausência de
propostas pedagógicas ou curriculares que considerem as especificidades da
criança de 0 a 6 anos, assim como a ausência de políticas de formação dos
profissionais que atuam na área repercutem na construção de uma identidade
fragmentada da educação infantil e de seus profissionais, representando
desafios a serem enfrentados na formação dos docentes.
Como a breve análise que empreendi neste item buscou evidenciar, os
discursos oficiais com relação às funções da educação infantil, assim como as
políticas de atendimento têm se caracterizado pela dispersão, pela fragmentação
e pela oscilação entre o não reconhecimento do valor educativo da educação
infantil e o reconhecimento de sua relevância tendo como referência o ensino
fundamental. Do mesmo modo, no que se refere aos profissionais que trabalham
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46
com a criança pequena os discursos se alternam em apontá-los como
naturalmente vocacionados a desempenharem as funções de educadores – no
caso, educadoras, visto que a mulher tem sido o alvo preferencial desses
discursos – e em destacar a formação necessária ao desempenho de suas
funções profissionais sem, no entanto, assegurar condições para que essa
formação aconteça. Também não existe uma clareza com relação aos rumos
que essa formação deve tomar, visto que nos documentos oficiais a ênfase se
coloca numa subordinação do trabalho na educação infantil àquele realizado no
ensino fundamental.
A fragmentação das políticas de atendimento entre as áreas da educação
e da assistência, a ausência de propostas curriculares para a educação infantil e
a formação dos profissionais, que não responde às exigências do trabalho com a
criança pequena, são características também presentes na cidade de Juiz de
Fora, onde a pesquisa que deu origem a esta tese foi realizada, assumindo,
naquele contexto, características peculiares.
3.2.
A educação infantil em Juiz de Fora, sua história, seus profissionais
Juiz de Fora! Juiz de Fora!
Tu tão dentro deste Brasil!
Tão docemente provinciana...
Primeiro sorriso de Minas Gerais!
Manuel Bandeira
Juiz de Fora é uma cidade de aproximadamente 500.000 habitantes,
localizada no Estado de Minas Gerais. Nascida em decorrência da abertura de
novos caminhos que ligavam a região das Minas Gerais aos portos do Rio de
Janeiro, Juiz de Fora teve seu período de maior desenvolvimento com o ciclo do
café. Segundo Lopes e Valente (2000), o acúmulo de capitais proveniente do
café criou condições favoráveis à implantação, na cidade, de indústrias e ao
crescimento do comércio, com um desenvolvimento acentuado também nas
áreas de saúde e educação. Data deste período a instalação do Jardim da
Infância Mariano Procópio, o primeiro da cidade, inaugurado em 7 de junho de
1925.
O desenvolvimento alcançado pela cidade até a década de 1930 sofreu
um progressivo declínio a partir daquele período, atribuído, entre outros fatores,
à dependência da cidade em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo e a uma não
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47
diversificação da indústria local, que se manteve limitada à indústria de fiação e
tecelagem. A economia da cidade obteve algum desenvolvimento na década de
1970, com o desenvolvimento da indústria mecânica e a implantação de projetos
como da Companhia Paraibuna de Metais e da Siderúrgica Mendes Júnior S/A.
(Lemos, 2004).
A década de 1960 marca um desenvolvimento do setor educacional, com
a criação da Secretaria Municipal de Educação e a construção de escolas na
cidade. Em 1975 é firmado um convênio entre a Prefeitura da cidade e a Legião
Brasileira de Assistência – LBA
6
, para execução do Projeto Especial de
Promoção do Pré-escolar (PEPPE). O projeto tinha como objetivo o atendimento
a crianças carentes e suas famílias, estando em consonância com a as
orientações do MEC contidas no II Plano Setorial de Educação e Cultura –
PSEC. O domínio da Secretaria do Trabalho e Ação Social de Minas e da
Secretaria Municipal do trabalho e Bem-estar Social à frente do Projeto evidencia
a concepção assistencialista que dominava as ações previstas. Entretanto, a
despeito de seu caráter assistencial, o PEPPE tinha uma orientação com relação
ao trabalho pedagógico a ser desenvolvido com as crianças fundamentada nos
pressupostos teóricos de Maria Montessori, razão pela qual foi oferecido aos
professores que atuavam no Projeto um curso sobre o método montessoriano de
trabalho com a criança pequena (Lemos, 2004).
Caracteriza a década de 1980 um período de ampliação do atendimento
às crianças em idade pré-escolar na cidade a partir de políticas calcadas numa
visão compensatória da pré-escola. Os altos índices de repetência constatados
nas séries iniciais do ensino fundamental – então primário – levaram ao
surgimento, em 1982, das Escolas Municipais de Educação infantil (EMEIs). As
EMEIs foram construídas na cidade de Juiz de Fora com verbas do Programa
Cidade Porte Médio – CNDU/BIRD/COM – como parte do PROPRE (Programa
do Pré-escolar). Ainda segundo Lemos (2004), o PROPRE estava dividido em
dois sub-programas: o programa de Ensino Pré-escolar, cujo foco principal se
colocava na assistência global à criança (educação, nutrição, saúde e
assistência social), com vistas a um melhor desempenho em sua vida escolar
futura a partir da construção e aparelhamento de unidades de pré-escolar em
6
A LBA foi criada em 1942, com apoio da Federação das Associações Comerciais e da
Confederação Nacional das indústrias com o objetivo de “congregar os brasileiros de boa vontade
e promover, por todas as formas, serviços de assistência social, prestados diretamente ou em
colaboração com o poder público e as instituições privadas, tendo em vista principalmente:
proteger a maternidade e a infância, dando ênfase especial ao amparo total á família do
convocado” (Brasil, LBA 30 anos, 1972 apud Kramer, 2003)
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48
bairros de baixa renda e o PAPPE, cujo objetivo era dar continuidade às formas
de atendimento já existentes.
A despeito das expectativas que se colocavam com relação a um melhor
desempenho em etapas posteriores de escolarização das crianças que
freqüentaram os programas de atendimento pré-escolar, uma avaliação
realizada cinco anos e seis meses após o início do Programa não constatou um
melhor rendimento, na 1ª série, dos alunos que haviam freqüentado a pré-escola
municipal.
É possível identificar, na história da educação infantil em Juiz de Fora, as
tendências marcantes nos diferentes períodos da história da educação infantil no
Brasil, com especial destaque para a ênfase na educação compensatória que
fundamentou a criação das EMEIs (Escolas Municipais de Educação Infantil),
instituições que ainda hoje funcionam e onde trabalhavam os professores que
participaram da pesquisa que deu origem a esta tese.
A rede pública municipal de ensino atendia, em fins do ano de 2003, a
cerca de 51.000 alunos, distribuídos em sessenta escolas urbanas, oito escolas
rurais e trinta e duas escolas de educação infantil e conveniadas, contando com
3.500 profissionais entre professores, especialistas em educação e
operacionais.
7
No período em que desenvolvi a pesquisa de campo, as EMEIs estavam
sob a administração da Gerência de Educação Básica uma vez que, em 2001,
em conseqüência da modificação da estrutura organizacional da Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora, a Secretaria Municipal de Educação foi extinta,
criando-se uma nova estrutura, ligada à Diretoria de Política Social, denominada
Gerência de Educação Básica – GEB. Com a mudança, os recursos financeiros
para funcionamento da educação pública municipal passaram a ser
administrados pela Diretoria de Política Social, o que acarretou uma sensível
perda de autonomia da Gerência de Educação Básica. Em 2005, com a
mudança no governo municipal, a Gerência de Educação Básica voltou a se
estruturar como Secretaria de Educação de Juiz de Fora, passando à sua
responsabilidade os recursos a serem gastos na educação.
A estrutura administrativa da GEB era composta por uma Gerência de
Educação Básica, uma Diretoria de Gerência, uma Assessoria Técnica de
Gerência e quatro departamentos: Departamento de Ensino Fundamental,
7
Dados obtidos no documento “A escola Pública Municipal em Juiz de Fora – a educação na
construção do espaço público e democrático (Linhas das ações pedagógicas da GEB) Ano XI -
Outubro/2003.”
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49
Departamento de Políticas Pedagógicas e Formação, Departamento de
Educação Infantil e Departamento de Atenção Integral à Criança e ao
Adolescente.
Segundo o documento “A escola Pública Municipal em Juiz de Fora”, o
Departamento de Educação Infantil estava “centrado no desenvolvimento da
educação escolar para todas as crianças de 0 a 6 anos de idade (DPS/GEB, p.
52)”.
Contraditoriamente a essa afirmação, as crianças de 0 a 3 anos são
atendidas em creches que se encontram sob a responsabilidade da Gerência de
Políticas Sociais. No município existem dois modelos de creches que se
diferenciam em vários aspectos. As creches comunitárias funcionam em prédios
construídos pela Prefeitura para esse fim. São administradas com recursos
públicos, cabendo à AMAC
8
a gestão dessas instituições. As verbas da AMAC
advêm da Secretaria da Assistência Social. Cabe também à AMAC a seleção de
pessoal que atua nessas instituições. Os profissionais que trabalham nas
creches têm níveis de qualificação diferenciados. A resolução nº 002/2001 do
Conselho Municipal de Educação prevê que “para os demais profissionais não
docentes que atuam nas Instituições de Educação Infantil será exigida a
escolaridade mínima no nível de ensino médio admitindo-se como mínimo o
ensino fundamental”. Os “profissionais não docentes” a que se refere a
resolução são denominados berçaristas (aqueles que trabalham com os bebês)
e recreadores (que se responsabilizam pelas crianças maiores). Esses
profissionais trabalham em regime celetista
9
, cumprem jornada de trabalho de
oito horas diárias e recebem salários em média 50% abaixo daqueles recebidos
pelos professores da rede pública municipal, que têm, no mínimo, formação de
nível médio, na modalidade Normal. A resolução nº 002/2001 estabelece, ainda,
a possibilidade de que o/a Secretário/a de Educação autorize a atuação de
profissionais com a escolaridade da 4
a
série do ensino fundamental nas creches,
desde que maiores de 18 anos e assumindo compromisso escrito de concluírem
o ensino fundamental.
Além das creches comunitárias, existem as creches cooperadas,
organizadas pelas comunidades nas quais há demanda por vagas que não foi
atendida pelas creches comunitárias. As creches cooperadas recebem verba da
Prefeitura (R$80,00/mês por criança) e são administradas pela própria
comunidade, que cuida também da seleção dos profissionais que nelas atuarão
8
Associação Municipal de Apoio à Creche.
9
São regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas.
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50
(em geral, as pessoas da própria comunidade). Muitas creches cooperadas
funcionam em espaços precários e com estrutura física e de pessoal também
precária. Cabe destacar o baixo nível de formação dos profissionais que atuam
nas creches, situação que também se repete em outros municípios, como
destacam as pesquisas que vêm se dedicando ao tema
10
. Tal situação é
especialmente preocupante nas creches cooperadas, nas quais os profissionais
são selecionados entre pessoas da comunidade a partir de critérios que nem
sempre privilegiam o nível de formação desses profissionais.
As crianças de 4 a 6 anos são atendidas nas Escolas Municipais de
Educação Infantil – EMEIS –, em Escolas Conveniadas e em escolas de ensino
fundamental que possuem turmas de educação infantil.
As Escolas Municipais de Educação Infantil atendem exclusivamente às
crianças de 4 a 6 anos. São administradas pela Prefeitura Municipal de Juiz de
Fora e estão sujeitas ao Regimento da Rede Pública Municipal de Ensino. Os
professores são admitidos por contrato de trabalho temporário ou através de
concurso público de provas e títulos.
As escolas conveniadas são instituições de cunho filantrópico. A
Prefeitura procede à cessão dos profissionais que atuam nessas instituições,
como professores, coordenadores pedagógicos, cantineiros, além de fornecer a
merenda. Embora nessas instituições o trabalho pedagógico siga as mesmas
orientações das escolas da rede pública municipal de ensino, uma vez que os
professores e coordenadores pedagógicos pertencem àquela rede, elas
apresentam peculiaridades que estabelecem alguns paradoxos com relação ao
caráter público dessas instituições. Sendo instituições administradas por ordens
religiosas, as escolas conveniadas desenvolvem práticas tais como orações nos
horários de entrada e merenda e a comemoração de festas religiosas como, por
exemplo, a festa da Coroação de Nossa Senhora, que acontece no mês de
maio. Esse foi um aspecto que pude observar durante o período de trabalho de
campo, visto que uma professora participante da pesquisa trabalhava numa
escola conveniada, que denominei “Escola Azul”. Nessa escola tive a
oportunidade de observar práticas de oração e canto de músicas religiosas à
hora da entrada que algumas vezes se estendiam por até 20 minutos da rotina
diária, além de comemorações das festas de Coroação de Nossa Senhora e da
Páscoa.
10
Sobre a questão dos profissionais que atuam nas creches os trabalhos de Cerisara (2002); Silva
(2002; 2003); Sanches (2003).
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51
Como as escolas da rede pública municipal de educação não possuem
espaço físico suficiente para atender à demanda por vagas para as crianças de 4
a 6 anos, em algumas creches comunitárias existem salas que atendem a essa
faixa etária. Nessa situação, as crianças ocupam o espaço físico das creches –
que funcionam com verbas da Secretaria de Assistência Social - mas os
profissionais que atuam nessas turmas são professores cedidos pela rede
pública municipal de ensino, o que, segundo depoimento de uma das
responsáveis pela educação infantil da Secretaria de Educação de Juiz de Fora,
causa conflitos. Esses conflitos têm origem no fato de profissionais que
desempenham funções semelhantes, dentro de uma mesma instituição,
possuírem regime de trabalho e salário diferenciados. Tal situação, discutida por
Campos (1994) como um dado relevante para se pensar o perfil do profissional
de educação infantil, gera discriminação tanto em relação às crianças quanto em
relação às professoras que com elas trabalham. Ainda segundo uma das
responsáveis pela educação infantil na Secretaria de Educação de Juiz de Fora,
existe projeto de construção de novas salas de educação infantil em escolas
municipais e de construção de Centros Municipais de Educação Infantil nos
bairros onde a demanda por vagas é maior.
A despeito da indicação, no âmbito da legislação federal, de que as
creches sejam integradas aos sistemas municipais de ensino, em Juiz de Fora
tal integração esbarra em questões de ordem histórica e política. Como
destacado no início desse tópico, o atendimento à criança pequena esteve
ligado, inicialmente, às políticas da Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social.
Além disso, a integração das creches à Secretaria de Educação implica repasse
de verbas da área da assistência para a da educação. Aliada à questão de
ordem econômica, há também a questão política, uma vez que as vagas em
creches se constituem em importante instrumento de barganha em campanhas
eleitorais. Dessa forma, a integração das creches ao sistema municipal de
ensino implicaria não apenas repasse de verbas como também um
deslocamento de poder político da Secretaria de Assistência Social para a
Secretaria de Educação. Ainda segundo o depoimento de uma das responsáveis
pela gestão da educação infantil da Secretaria de Educação de Juiz de Fora, a
integração das creches é ainda um objetivo longe de ser alcançado, pelas
razões expostas anteriormente.
A interferência de fatores ligados à política partidária na gestão das
creches públicas também foi um dado da pesquisa “Formação dos profissionais
da educação infantil do Estado Do Rio de Janeiro”. Na referida pesquisa foi
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52
apontada, em respostas aos questionários distribuídos a municípios do estado, a
interferência dos partidos políticos na nomeação dos diretores de creches e pré-
escolas (Corsino, Nunes e Kramer, 2003).
Com relação às propostas curriculares para a educação infantil, não
existe uma orientação formalizada por parte da Secretaria Municipal de
Educação, cabendo a cada instituição a construção de sua Proposta Pedagógica
a qual é encaminhada à Secretaria de Educação para aprovação.
Em linhas gerais, essas características evidenciam que a educação
infantil na rede pública municipal apresenta uma identidade fragmentada, que se
define, basicamente, a partir da capacidade das instituições e dos profissionais
que nelas atuam de delinearem suas linhas de ação para o trabalho junto à
criança pequena. Entendendo, assim como Kramer (2001), que um currículo ou
proposta pedagógica se estrutura a partir de bases teóricas e de diretrizes
práticas aliadas a condições técnicas que viabilizem sua concretização, cabe
indagar sobre as possibilidades que as instituições têm de definir propostas de
trabalho consistentes num contexto onde as condições para a implantação
dessas propostas são precárias. Ainda segundo Kramer (2001), a escola, a pré-
escola ou a creche devem ser as unidades-alvo das ações da secretarias de
educação. Essas ações deveriam se voltar para a criação de condições para que
as instituições delineiem, de forma consistente, a partir da discussão com os
diversos atores nelas envolvidos, suas propostas de trabalho. Essas condições
estariam ligadas à destinação de recursos e ao fornecimento de dados e
diretrizes que possam orientar o trabalho nas creches, pré-escolas e escolas que
atendem à educação infantil. No caso da rede pública municipal de Juiz de Fora,
os recursos encontram-se divididos entre as áreas da assistência e da
educação, sendo que as prioridades dessas duas áreas nem sempre são
coincidentes. Quanto à formulação de uma proposta curricular para a educação
infantil que sirva de referência às escolas da rede, sua definição é um projeto
que a Gerência de Educação Básica (hoje Secretaria de Educação de Juiz de
Fora) ainda não havia concretizado até a data em que esta pesquisa foi
encerrada.
Quanto aos professores que atuam na educação infantil na rede pública
municipal de Juiz de Fora, aqueles que trabalham com as crianças de 4 a 6 anos
são admitidos de duas formas: há professores efetivos, aprovados em concurso
público, e professores contratados, sendo que alguns que se enquadram nessa
última categoria foram aprovados em concurso público, mas ainda não foram
efetivados. Os professores efetivos têm lotação garantida numa mesma escola,
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53
enquanto os contratados podem mudar de escola durante o ano letivo (por
exemplo, quando estão substituindo professores licenciados), ao término do ano
letivo, quando têm os seus contratos renovados ou ainda assumir a função de
“eventual”, que é o professor enviado às escolas para suprir faltas eventuais de
outros professores. Não há concurso específico para a educação infantil
11
. Os
professores escolhem a escola onde vão trabalhar, no caso dos efetivos,
segundo a ordem de classificação no concurso público, dependendo das vagas
disponíveis. No caso dos contratados também é feita uma classificação a partir
de uma avaliação do currículo dos professores e de avaliações feitas pelo (s)
diretor (es) da (s) escola (s) por onde o professor passou no decorrer do ano. A
partir de um esquema classificatório, decorrente dessas avaliações, os
professores são, então, encaminhados às escolas onde há vagas.
A inexistência de um processo de seleção específico para os professores
que atuam na educação infantil é uma situação comum em diferentes redes
municipais e/ou estaduais de ensino (Kramer, 2001). A conseqüência desse fato
é que muitos professores com formação para atuação nas séries iniciais do
ensino fundamental passam a atuar na educação infantil, pela contingência de
existência de vagas disponíveis apenas nessa etapa da educação básica. Sendo
assim, esses profissionais podem ter ou não experiências anteriores na
educação infantil, fato que torna a docência um espaço privilegiado de formação
dos profissionais. Além disso, atuar na educação infantil não é necessariamente
uma opção dos profissionais, mas, na maioria dos casos, uma contingência.
Se por um lado não existem concursos específicos para professores de
educação infantil, por outro também existe uma lacuna no que diz respeito à
formação desses profissionais. Em Juiz de Fora, especificamente, apenas uma
instituição pública estadual oferece o curso de formação de professores de nível
médio. A formação a nível superior nos cursos de Pedagogia é oferecida por três
faculdades, entre elas uma universidade pública – a Universidade Federal de
Juiz de Fora (UFJF) - sendo que nenhuma delas oferece a habilitação em
educação infantil. Mais recentemente duas instituições de ensino superior da
cidade passaram a oferecer o curso Normal Superior com habilitação em
educação infantil. À época em que se realizou a pesquisa de campo que deu
origem a esta tese as primeiras turmas ainda não haviam concluído o curso.
No nível da Pós-graduação, a UFJF oferece o Curso de Especialização
em Arte Educação Infantil e o Curso de Especialização em Educação Infantil.
11
Este foi um aspecto destacado também na pesquisa “Formação de professores da educação
infantil no estado do Rio de Janeiro” (Kramer, 2001)
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54
Segundo Silva (2005), os cursos de especialização acabam exercendo a função
da formação inicial para aqueles profissionais que não tiveram, no ensino médio
ou mesmo nos cursos de graduação, qualquer orientação específica para o
trabalho com a criança pequena, com “prejuízo da consecução dos seus
objetivos [dos cursos de Pós-graduação] de aprofundamento nas questões que
se referem à educação infantil” (Silva, 2005, p. 27). Essa parece ser a situação
dos professores que atuam na educação infantil na cidade de Juiz de Fora,
considerando a inexistência de cursos de graduação que possuam a habilitação
em educação infantil.
A rede pública municipal de ensino possui um plano de cargos e salários
que estabelece uma progressão na carreira (com aumento salarial) para os
professores que possuem cursos de graduação, especialização, mestrado e
doutorado. Além disso, os professores efetivos há pelo menos dois anos podem
obter licença remunerada por um período de dezoito meses (mestrado) a até
dois anos (doutorado) para estudos de pós-graduação.
Quanto ao regime de trabalho, os professores da rede pública municipal
de ensino têm carga horária semanal de trabalho de 20 horas, sendo que 18
horas/aula (que equivalem a 15 horas/relógio) devem ser cumpridas em trabalho
efetivo na escola e as demais (5 horas/relógio) são destinadas a “atividades
docentes extra-classe”, que não necessariamente devem ser realizadas na
escola.
12
Quais seriam as atividades docentes extra-classe às quais se refere o
texto legal? É possível interpretá-las como atividades ligadas ao trabalho
desenvolvido pelo professor em sala de aula que extrapolam o período em que o
docente está na classe, com os alunos. Seriam as atividades de planejamento
de aulas, elaboração e correção de materiais de trabalho, estudo, reuniões com
demais professores etc.? Como não existe, no texto legal, nenhum
esclarecimento quanto à natureza das “atividades docentes extra-classe”, há
várias interpretações possíveis.
A lei nº 09732/200 foi uma conquista de um movimento grevista dos
Professores da rede Municipal de Juiz de Fora, ocorrido em 2000. Naquele
movimento, embora os professores não tenham conquistado ganhos financeiros
reais, a negociação da “Lei das 15 horas” , como passou a ser chamada pelos
12
Essa jornada de trabalho foi estabelecida com a lei municipal nº 09732/2000 que prevê, em seu
Art. 2 º que “O Professor regente terá 18 (dezoito) horas/aula de regência, ficando as horas
restantes da jornada destinadas ao exercício de atividades docentes extra-classe, não sendo estas
atividades, obrigatoriamente, exercidas na escola” (PJF, 2000).
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55
professores
13
, representou um avanço em termos do reconhecimento do direito
do professor a ter, em sua carga de trabalho semanal remunerada, o direito a um
tempo destinado à realização de atividades diversas, ligadas às suas atividades
de docência. Entretanto, uma vez que o texto da lei estabelece que as horas
destinadas a “atividades docentes extra-classe” não precisam ser,
necessariamente, cumpridas na escola, criaram-se situações diferenciadas. Em
algumas instituições os professores cumprem uma jornada de quatro dias de
trabalho na semana, sendo que as cinco horas de “atividades docentes extra-
classe” são transformadas numa folga semanal; em outras escolas, as cinco
horas são subtraídas da jornada diária do professor em dias alternados. Como
não houve alteração na carga horária semanal das crianças, nos dias ou
horários em que os professores não estão realizando suas atividades de regente
trabalham outros professores que desenvolvem projetos junto aos alunos. Os
projetos são diferenciados em cada instituição e definidos na sua proposta
pedagógica.
A idéia de destinar um tempo da jornada de trabalho semanal do
professor a atividades fora da sala de aula tem sido abraçada também em outros
países. Experiências realizadas no Canadá e na Grã-Bretanha são abordadas
por Hargreaves (1998). Esse autor realizou um estudo em 12 escolas na
província de Ontário, Canadá, onde os professores dispunham de até 120
minutos semanais para atividades de "preparação, planificação e outras
atividades de apoio", no qual analisa as percepções dos docentes acerca desse
tempo. Diferentemente da realidade das escolas de Juiz de Fora, no contexto
pesquisado por Hargreaves o tempo de preparação é cumprido pelos
professores na escola. Naquele contexto, a reivindicação dos professores é para
que possam usar o tempo de preparação com maior liberdade, pois, em algumas
escolas, há uma obrigatoriedade de que os docentes utilizem esses 120 minutos
em reuniões com colegas professores para planejamento em conjunto.
No caso de Juiz de Fora, foi possível perceber que, paradoxalmente, a
conquista de um tempo remunerado para o desenvolvimento de atividades que
deveriam permitir a melhoria da qualidade da formação e do trabalho do
professor acabou por criar uma impossibilidade de encontros mais freqüentes
entre os profissionais de uma mesma instituição, uma vez que, em geral, os
professores entendem que comparecer à instituição nos horários destinados a
atividades docentes extra-classe – que a lei estabelece que não
13
Isso porque as 18 horas semanais de 50 minutos previstas na Lei são, na verdade, 15
horas/relógio semanais.
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necessariamente devam ser cumpridos na escola - seria abrir mão de um direito
adquirido. Esse aspecto foi bastante discutido pelos professores durante o
trabalho de campo da pesquisa que deu origem a esta tese e merecerá uma
análise mais aprofundada nos capítulos subseqüentes, uma vez que tem
conseqüências diretas nas interações que os professores estabelecem com seus
pares e com as crianças, em virtude do modo como se organiza o tempo de
trabalho com elas.
Na análise empreendida por Hargreaves sobre as percepções dos
professores com relação ao tempo de preparação, o autor destaca quatro
dimensões presentes na vivência do tempo nas escolas: o tempo técnico-
racional, o tempo micropolítico, o tempo fenomenológico e o tempo sociopolítico.
O tempo técnico-racional é aquele manipulado pelos gestores para
alcance dos fins a que se propõe a instituição e na mobilização dos meios para
alcançá-los. Nesse sentido, sua utilização se orienta por uma lógica da
produtividade.
O tempo micropolítico comporta uma dimensão valorativa, em termos dos
papéis que os sujeitos desempenham na organização escolar e do poder que
esses papéis lhes conferem. Segundo Hargreaves, quanto maior o poder de que
desfrutam os atores do contexto escolar, menor é o tempo que passam dentro
das salas de aula. Na realidade investigada pelo autor, os professores que
trabalhavam no ensino secundário dispunham de mais tempo fora da sala de
aula que os professores do nível elementar (estes últimos eram, em geral,
professoras). Ainda segundo o autor, essas diferenças espelhavam diferenças
historicamente construídas, que conferem um maior prestígio a um determinado
segmento educacional em que os homens constituem maioria. Nesse sentido, a
luta por maior tempo fora da sala de aula pode ser também uma luta por poder
que "tem a ver com questões fundamentais relativas à paridade e ao status no
interior da profissão” (Hargreaves, id., p. 110).
A despeito das diferenças entre o contexto no qual se deu a pesquisa
realizada por Hargreaves e o contexto da cidade de Juiz de Fora, nesta última a
conquista das 5 horas de atividades docentes extra-classe pelos professores da
educação infantil e da primeira etapa do ensino fundamental (1
ª
à 4
ª
série) foi
fruto do atendimento a uma reivindicação pela equiparação desses docentes aos
professores que atuam no segmento de 5
ª
à 8ª série. Embora devessem cumprir
uma carga horária semanal de 18 horas nas escolas, esses professores muitas
vezes cumpriam apenas 15 horas, obtendo, dessa forma, uma folga semanal.
Essa situação foi sendo, ao longo dos anos, naturalizada na rede pública
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municipal, o que levou a pressões, pelos demais professores, por uma igualdade
de condições. Portanto, desde as suas origens o tempo para as atividades
docentes extra-classe esteve vinculado, no contexto da rede pública municipal
de ensino da cidade de Juiz de Fora, à idéia de não estar na escola durante este
tempo, ou de folga semanal.
O tempo fenomenológico diz respeito à vivência subjetiva do tempo pelos
sujeitos, que muitas vezes pode estar em desacordo com a perspectiva do
tempo imposta pelas condições de trabalho. A vivência do tempo pelos sujeitos
se dá em função de seus projetos pessoais, de suas preocupações e interesses,
que muitas vezes estão em oposição aos projetos e interesses das
organizações. Citando o antropólogo Edward Hall, Hargreaves (1994) faz
referência às concepções monocrônicas (fazer uma coisa de cada vez, numa
progressão linear) e policrônicas (fazer várias coisas ao mesmo tempo, num
processo de combinação) do tempo.
Para Hargreaves, especialmente os professores do ensino elementar, em
sua maioria mulheres, vivem o tempo numa perspectiva policrônica, pois, para
eles (especialmente para elas) as pessoas com as quais convivem em seus
ambientes de trabalho e os compromissos que assumem com elas têm um papel
mais importante do que o prazo a cumprir. Em contrapartida, para a
administração das instituições, o tempo é vivido numa perspectiva monocrônica.
Dessa diferença de perspectivas com relação à vivência do tempo de trabalho
advêm vários conflitos para os docentes. Citando Hall, Hargreaves destaca que
"na nossa cultura, praticamente tudo trabalha a favor de (e recompensa) uma
visão monocrônica do mundo. Mas o aspecto anti-humano do M[onocrónico] é
alienante, especialmente para as mulheres”(Hall apud Hargreaves, id., p. 115).
Finalmente o tempo sociopolítico diz respeito ao fato de que a definição
de como o tempo é ou será vivido nas organizações se faz por aqueles que
detêm o poder dentro dessas organizações. É dessa definição que, em última
instância, dependem os ritmos em que o tempo é vivido e em que o trabalho se
realiza, o que estabelece os comportamentos desejáveis aos sujeitos e aqueles
que devem ser coibidos.
Essas diferentes dimensões do tempo se revelaram importantes na
compreensão das situações vividas pelos professores, sujeitos dessa pesquisa,
em seus contextos de trabalho e suas implicações para a construção dos
saberes docentes serão retomadas ao longo dos capítulos 5 e 6 da tese.
Pelo descrito até aqui, é possível sintetizar algumas características do
atendimento à criança pequena na rede pública municipal de Juiz de Fora: o
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atendimento dividido entre as áreas da assistência e da educação; dificuldades
para atender à demanda; diversidade de situações funcionais entre os
profissionais que trabalham com a criança pequena; precariedade na formação
desses profissionais, seja por não apresentarem uma escolaridade mínima, seja
pela ausência de cursos com habilitação específica para atuação com as
crianças de 0 a 6 anos; ausência de orientações curriculares para o trabalho com
a criança pequena por parte da Secretaria de Educação; rotatividade dos
profissionais nas escolas.
Considerando o contexto de organização da educação infantil na rede
pública municipal de ensino de Juiz de Fora busquei, nesta tese, ir ao encontro
da palavra dos professores que, dentro das instituições onde atuam, têm
construído uma identidade para o trabalho junto à criança pequena e também a
própria identidade do profissional de educação infantil do município. Meu objetivo
era compreender como esses professores constroem os saberes que
fundamentam sua atividade de docência em referência ao contexto mais amplo
em que essa atividade se dá, buscando compreender como, num contexto de
indefinições e fragmentação, os profissionais definem os rumos de seu trabalho.
Considerando a palavra um instrumento da consciência que acompanha toda
criação ideológica (Bakhtin, 1997b), minha busca pela experiência dos
professores de educação infantil se deu a partir da palavra desses sujeitos.
Indo ao encontro da palavra alheia, meu caminho de pesquisadora se
entrecruzou com os caminhos de sete professores de três Escolas Municipais de
Educação Infantil com características distintas. As histórias pessoais e
profissionais desses sujeitos revelaram muitas peculiaridades e alguns pontos de
tangência. Em comum a todos eles, a vontade de dizer sobre seu fazer, de
partilhar sua experiência de ser professor de educação infantil, em alguns casos
na perspectiva de uma carreira já consolidada por muitos anos de prática. Em
outros, na dúvida de uma inserção contingente, porém esperançosa, no campo
da educação da criança pequena. São esses sujeitos e seus contextos de
trabalho que apresento a seguir.
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4
AO ENCONTRO DO OUTRO: A METODOLOGIA E OS SUJEITOS
DA PESQUISA
Não há trabalho de campo que não vise a um encontro com um outro, que não busque um
interlocutor.
Marília Amorim (2004, p.16)
Para além da orelha existe um som,
à extremidade do olhar um aspecto,
às pontas dos dedos um objeto
– é para lá que eu vou.
Clarice Lispector (1980, p.95)
Neste capítulo reflito sobre o processo de construção da metodologia utilizada
na pesquisa e as repercussões dessa metodologia para os dados construídos ao
longo do trabalho de campo. Além disso, apresento os sujeitos da pesquisa e seus
contextos de trabalho, analisando as razões que os levaram a oferecer sua
contrapalavra no diálogo proposto neste estudo.
4.1.
A construção da metodologia de pesquisa
Um dos pressupostos teóricos desta tese, que encontramos desenvolvido na
perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, é o de que o conhecimento
e a própria subjetividade se constroem no plano interpessoal, sendo internalizados e
passando a constituir o plano intrapessoal. Esse pressuposto está desenvolvido na
abordagem que Vygotsky (1991a, 1991b) faz da constituição das funções mentais
superiores, que são aquelas funções tipicamente humanas. Para Vygotsky a relação
do sujeito com o mundo não é uma relação direta, mas mediada por instrumentos, que
orientam a ação humana externamente e por signos, que a orientam internamente. A
centralidade atribuída à linguagem como mediadora da constituição social da
consciência humana é um ponto em comum entre os postulados teóricos de Vygotsky
e Bakhtin. Para ambos os autores o sujeito se constitui imerso no social. Ao analisar o
conceito de mediação em Vygotsky, Freitas (1998) destaca:
Nós agimos à luz de uma leitura da realidade que fornece ao nosso comportamento
uma resposta apropriada para perceber a situação. Essa posição coloca a semiótica
no âmago da relação entre o sujeito psicológico e a realidade: o mundo é um
ambiente visto com significado e a trajetória do comportamento do sujeito é
determinada pela significação que este sujeito tem do mundo. O sujeito age e a sua
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ação é descrita através de palavras que dão significado à ação, à luz da
interpretação subjetiva da situação (Freitas, 1998, p. 28).
Portanto, a ação humana se estrutura tendo como referência uma
interpretação que o sujeito faz do contexto social mais amplo em que essa ação se
desenvolve.
No caso dos saberes mobilizados pelos professores nas atividades de
docência, estes vão se constituindo durante toda a vida, em diferentes momentos da
história pessoal e profissional desses sujeitos, atravessados pelos processos de
formação. Quando atuam em seus contextos de trabalho, as ações dos professores e
aquilo que as determinam deriva de experiências vividas no plano intersubjetivo e que
são internalizadas pelo sujeito. Considerando que, para Vygotsky, a internalização é
uma reconstrução interna de uma atividade externa (Vygotsky, 1991 a, p. 63), e que
esse processo de reconstrução envolve sempre uma atividade interpessoal, o outro é
um parceiro constante do eu em seu processo de desenvolvimento e em suas
diferentes formas de apropriação do mundo. Por essa razão, no processo de
construção da metodologia da pesquisa que deu origem a esta tese busquei
considerar alguns princípios que permitissem uma coerência entre o objeto de
pesquisa e a forma de abordá-lo, de modo que a metodologia:
possibilitasse a abordagem dos saberes docentes enquanto um processo que
ocorre no plano social e histórico, nas interações que o professor estabelece com as
crianças, com os objetos do conhecimento, com seus pares etc, e que são
internalizadas pelo sujeito;
privilegiasse a compreensão dos fenômenos e de suas relações, em
detrimento do estabelecimento de relações de causa-efeito;
permitisse a interpretação das questões relativas à prática dos professores e à
sua formação a partir da ótica dos sujeitos envolvidos, favorecendo a apreensão dos
sentidos que estão sendo produzidos para esses fenômenos no plano intersubjetivo.
Em função dessas exigências da natureza do objeto de estudo, a pesquisa
interpretativa se mostrou um caminho profícuo para a consecução dos objetivos
propostos, uma vez que nessa modalidade de pesquisa a ênfase se coloca na
compreensão em profundidade de um contexto específico sob a ótica dos atores
desse contexto. Neste estudo, privilegio a ótica dos professores, sujeitos da pesquisa,
e sua participação ativa no processo de investigação, sem me furtar à tarefa de
interpretação própria ao pesquisador.
A revisão bibliográfica esteve presente em todas as etapas do trabalho de
pesquisa, subsidiando a definição das estratégias de investigação, as análises ao
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longo do trabalho de campo e posteriormente a ele. Foram três as estratégias de
investigação adotadas, além da revisão bibliográfica: observação participante da
prática de professores da educação infantil nas escolas nas quais os professores
atuavam; entrevistas individuais com os professores e reuniões para discussão da
prática dos participantes da pesquisa.
As observações tiveram duração aproximada de dois meses na turma de cada
um dos sete professores que participaram da pesquisa e foram registradas em notas
de campo. Segundo Freitas (2003),
a observação, numa pesquisa com abordagem sócio-histórica se constitui (...) em um
encontro de muitas vozes: ao se observar um evento, depara-se com diferentes
discursos verbais, gestuais e expressivos. São discursos que refletem e refratam a
realidade da qual fazem parte construindo uma verdadeira tessitura da vida social
(Freitas, 2003, p. 33).
Nessa perspectiva o observador - que, para Bakhtin “não se situa em parte
alguma fora do mundo observado, e sua observação é parte integrante do objeto
observado” (Bakhtin, 1997a, p.355) - é partícipe dos eventos que observa. Como parte
integrante da realidade que produz no campo de pesquisa, sua voz se encontra com
as vozes dos sujeitos, produzindo novos sentidos para as experiências vividas.
Durante o período de observação, uma das atividades desenvolvidas pelo
professor e escolhida por ele foi registrada em vídeo. As reflexões de Jobim e Souza
sobre o uso do vídeo na pesquisa em Ciências Humanas podem ajudar a explicitar o
papel que esse instrumento tecnológico desempenhou neste estudo. A autora afirma:
(...)
o uso da videogravação em pesquisa acadêmica não se caracteriza somente
como um rico instrumento de coleta de dados, mas operacionaliza a condição na
qual o pesquisador e sujeitos envolvidos poderão ter possibilidades efetivas de
construir conhecimentos sobre as práticas sociais e as representações tecidas nas
interações com o cotidiano, expressas na linguagem audiovisual. Podemos com isso
refletir sobre o estranhamento que o uso do vídeo permite;um estranhamento que se
refere ao distanciamento em relação ao que, na esfera do cotidiano, se torna hábito,
uma conduta que não é julgada pelo pensamento reflexivo (Jobim e Souza, 2003,
p.91).
No âmbito desta pesquisa, usar a videogravação como estratégia metodológica
provocou um movimento de estranhamento dos sujeitos com relação à sua prática que
motivou e favoreceu a reflexão compartilhada entre os professores sobre essa prática.
Nesse movimento de estranhamento, busquei compreender o processo de
constituição de saberes que os professores mobilizam em suas atividades de docência
pelo confronto de posições e percepções manifestas pelos sujeitos da pesquisa.
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62
Além das observações, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com
cada um dos professores participantes, nas quais a história profissional dos docentes
foi enfocada. Essas entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente,
transcritas. Nelas, a partir de uma questão geral, formulada pela pesquisadora,
desenvolvia-se um diálogo com os sujeitos no qual eram abordados aspectos relativos
à experiência profissional do professor que, muitas vezes, entrecruzavam-se a
aspectos da vida pessoal.
Finalmente, a terceira estratégia metodológica adotada na pesquisa teve o
objetivo de promover a discussão sobre a prática de cada um dos professores entre
todos os participantes do estudo. Para isso as gravações em vídeo, feitas durante o
período de observação, foram utilizadas em reuniões com o grupo de professores
participantes do estudo como um deflagrador de discussões sobre a docência na
educação infantil. Esse procedimento metodológico inspira-se na estratégia do grupo
focal, como meio de proporcionar o diálogo entre os sujeitos da pesquisa e desses
com sua prática, motivando a reflexão a partir do movimento de estranhamento dos
professores diante dessa prática.
A origem do termo grupo é o latim gruppo, que designa vários indivíduos, oriundos
do campo das belas artes (pintores, escultores), formando um só sujeito. É possível
estabelecer uma relação entre a estratégia do grupo focal e os pressupostos teóricos
de Mikhail Bakhtin no que se refere à filosofia da linguagem, uma vez que, para
Bakhtin, a consciência individual se constitui no plano social, portanto, indivíduo e
grupo se constituem numa relação de reciprocidade na qual tanto o grupo se forma
pelas contribuições dos indivíduos que o integram, quanto os indivíduos constroem
sua subjetividade a partir daquilo que vivenciam no plano social.
A aplicação dos grupos focais em pesquisas mercadológicas data dos anos de
1950, mas sua utilização em pesquisas acadêmicas vem sendo explorada a partir dos
anos 1980. O método do grupo focal oferece "vantagens estratégicas que possibilitam
obter informação sobre percepções, sentimentos e atitudes do ponto de vista dos
interessados, possibilitando respostas abertas, sem limitações de escolha”
(Abramovay, 1999). Nos grupos focais "os entrevistados falam, dividem opiniões,
discutem, trazendo à tona os fatores críticos de determinada problemática, que
dificilmente aparecem tanto nos questionários fechados como nas entrevistas
individuais abertas” (idem). O grupo focal, enquanto situação peculiar de produção de
linguagem, permite o acesso aos sentidos que os sujeitos produzem para suas
experiências a partir da ótica desses sujeitos.
Na apropriação feita da metodologia do grupo focal nesta tese, a interação
entre os participantes, durante as reuniões com o grupo de professores, permitiu não
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apenas a emergência de impressões, opiniões e sentimentos entre os docentes, como
também o confronto entre diferentes perspectivas. Nesse sentido, o diálogo que se
estabeleceu entre os participantes da pesquisa configurou-se como uma situação
peculiar de produção de linguagem, num contexto no qual cada participante teve nos
demais um excedente de visão que complementou e interferiu em suas próprias
formas de significar a realidade.
Nesse sentido, a metodologia adotada se inspirou na dinâmica do grupo focal
como meio de provocar o diálogo entre os sujeitos da pesquisa e desses com sua
prática, mas posso afirmar que houve uma apropriação bakhtiniana da metodologia,
pois, para além da emergência de diferentes opiniões e pontos de vista sobre um
determinado assunto, cada um dos encontros com o grupo de professores se
constituiu numa situação de produção de linguagem da qual emergiram temas ligados
à atividade profissional dos sujeitos ressignificados pelo olhar de seus pares.
Considerando que os saberes mobilizados pelos professores se constroem nas
relações com o outro, que se dão em tempos e espaços definidos que, por sua vez,
remetem a outros tempos e espaços, em cada reunião do grupo de professores
estiveram em foco diferentes temas em relação aos quais os enunciados dos
professores foram analisados numa perspectiva dialógica.
Os procedimentos metodológicos da pesquisa foram construídos com o
objetivo de proporcionar não apenas o registro da ação dos sujeitos no seu campo de
trabalho, como também a reflexão sobre a ação, mediada pelo olhar de outros
professores, num momento posterior.
De acordo com Bakhtin, a reflexão individual do sujeito sobre sua ação pode
captar apenas parcialmente a essência dos fatos, uma vez que a percepção de si
mesmo só acontece de forma plena a partir do olhar do outro.
Por mais perto de mim que possa estar esse outro, sempre verei e saberei algo que ele
próprio, na posição que ocupa, e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode
ver (...), toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação
em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele(Bakhtin, 1997a,
p.43).
No momento em que age, a reflexão pelo sujeito sobre sua ação só é possível
parcialmente, uma vez que este sujeito está envolvido em seu fazer, buscando
alternativas para estruturá-lo em função das demandas da situação imediata.
Minha consciência atuante só formula perguntas deste tipo: por quê? como? está
errado/está certo? útil/inútil? oportuno/inoportuno? eficaz/ineficaz? Ela nunca formula
perguntas tais como: quem sou? o que sou? como sou? O que me determina não
entra, para mim, na motivação do ato.”(Bakhtin, 1997a, p.154)
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Portanto, é necessário que a reflexão sobre a ação se dê num movimento de
afastamento que possibilite retomar o acontecido, construindo um olhar capaz de
captar os sentidos que os sujeitos produzem para suas ações.
A reflexão sobre a ação, que tem lugar em momento posterior à ação, permite
retomar o vivido com um olhar capaz de produzir novos sentidos para o
acontecimento, razão pela qual a metodologia adotada na pesquisa buscou
contemplar uma forma de registro da prática docente - a filmagem - que permitisse que
ela fosse retomada e refletida pelos professores.
Considerando que o sentido se constrói no encontro/confronto entre diferentes
vozes que se manifestam no ato dialógico, a compreensão dos sentidos que os
sujeitos produzem para suas experiências requer a análise contextualizada dos
enunciados produzidos e da contrapalavra que tais enunciados suscitam em outros
sujeitos. O termo “sentido” é usado aqui numa acepção bakhtiniana. Bakhtin
estabelece uma diferenciação entre significado e sentido. A significação se constitui
nos elementos repetíveis, reiteráveis do discurso. O sentido – que Bakhtin denomina
tema (unidade temática) – é individual, não reiterável e expressa uma determinada
situação histórica concreta que deu origem à enunciação. A significação se atualiza no
tema, sem o qual ela perde sua capacidade de significar. É o tema que, ao atualizar o
potencial de significação da palavra, encarna-a numa situação concreta, real, na qual
essa palavra adquire um sentido (Bakhtin, 1997b). Portanto, a análise da enunciação
pode se dar a partir de uma abordagem da palavra no sistema da língua, atendo-se ao
que Bakhtin denomina um estágio inferior, o da significação, ou a partir de uma
abordagem da significação contextual, em condições concretas de enunciação,
orientando-se em direção a um estágio superior, o tema (Idem). É a partir dessa
segunda abordagem que, nesta tese, são analisados os enunciados proferidos pelos
professores nas diferentes situações de interação vivenciadas ao longo da pesquisa.
Os enunciados transcritos nos capítulos 5 e 6 desta tese foram selecionados a
partir do estabelecimento de um diálogo entre textos, no qual cada enunciado pode ser
lido como contrapalavra, como forma de compreensão responsiva a outros
enunciados, muitas vezes distantes no tempo e no espaço.
Para explicitar as condições concretas em que os enunciados são proferidos, é
necessário conhecer os sujeitos que enunciam e seus contextos de atuação, que
contribuem para a construção do horizonte social desses sujeitos.
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4.2.
Quem são os sujeitos e por que aderem à pesquisa
Do encontro e de seu fracasso, do diálogo e do equívoco se tece a produção de
conhecimentos em Ciências Humanas. Conhecimento que se constrói portanto no paradoxo e
na vertigem, pois sua possibilidade é alternativamente negada e afirmada.
Marília Amorim (2004, p. 32)
A perspectiva epistemológica que fundamenta esta tese tem nas relações de
alteridade construídas na linguagem o cerne dos processos de produção de
conhecimentos. Tais relações se estabelecem tendo como referência diferentes
lugares que os indivíduos ocupam na sociedade, em momentos diversos de sua
história pessoal e profissional e de onde proferem seus enunciados
1
. Esses lugares
definem um ângulo de visão possível a cada sujeito, num momento específico de sua
caminhada pessoal e profissional, sendo que é desse ângulo que seu excedente de
visão complementa e dá acabamento ao outro.
Discutindo a concepção de dialogismo de Mikhail Bakhtin, Machado (2001)
destaca que o autor “concebeu o ato dialógico como um evento que acontece na
unidade espaço-tempo da comunicação social interativa, sendo por ela determinado”
(Machado, 2001, p. 225). O que se diz é determinado pelo lugar de onde se diz.
Entretanto esse lugar não pode ser compreendido apenas em referência ao lugar ou
momento em que se dá a enunciação, mas, numa perspectiva mais ampla, como o
lugar que cada indivíduo ocupa na sociedade, pois o conceito de dialogismo de
Bakhtin não se confunde com o diálogo face-a-face, mas compreende uma relação
entre discursos, em diferentes tempos e espaços.
Na introdução desta tese, ao abordar como construí o objeto de pesquisa a
partir de minha trajetória pessoal e profissional, busquei explicitar meu horizonte social
e o que dele trago para o processo de construção de conhecimentos que é a pesquisa.
Entretanto, pesquisar com o outro, tomando-o como sujeito desse processo, implica
assumir que os sujeitos da pesquisa se expressam sobre o mundo a partir de seus
horizontes sociais, de onde advêm experiências, expectativas, desejos. Compreender
o que levou os professores a se sentirem implicados pela pesquisa e nela
permanecerem, investindo seu tempo e seu desejo num momento específico de suas
trajetórias pessoais e profissionais é uma questão relevante para explicitar o lugar de
onde esses professores ofereceram sua contrapalavra no processo da pesquisa.
1
Para Bakhtin o enunciado é a unidade real da comunicação verbal e comporta não apenas o conteúdo
semântico das palavras, mas a situação em que são proferidas. (Bakhtin, 1997a), Numa perspectiva
bakhtiniana, o enunciado só pode ser compreendido em referência à situação extraverbal, da vida. (Brait
e Melo, 2005)
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Segundo Bakhtin, a palavra se dirige. Para compreender a palavra é
necessário compreender a quem ela se dirige. Se por um lado o pesquisador, ao
definir o perfil dos sujeitos, escolhe a quem sua palavra se dirigirá no decorrer do
processo da pesquisa, por outro os sujeitos, ao aderirem à pesquisa, também
escolhem o pesquisador como um outro a quem dirigirão sua palavra.
No caso desta pesquisa, os sujeitos participantes foram sete professores e
uma auxiliar de pesquisa, que tinha a função de registrar aspectos dos encontros que
poderiam escapar à pesquisadora, uma vez que a função desta última era dinamizar
as reuniões. A auxiliar de pesquisa, também ela professora da educação infantil,
revelou-se especialmente importante como elemento de triangulação dos dados,
constituindo-se numa interlocutora com a qual foi possível compartilhar impressões
sobre vários aspectos dos acontecimentos discursivos.
A seleção dos professores baseou-se no interesse e disponibilidade dos
docentes. Foram distribuídas em torno de cinqüenta e cinco cartas-convite (Anexo 1) a
professores da rede pública municipal de ensino que atuavam em EMEIs
2
(Escolas
Municipais de Educação Infantil) da cidade de Juiz de Fora.
Nas EMEIs são atendidas crianças entre 4 e 6 anos. Os professores que
trabalham nessas instituições podem ter ou não experiências anteriores na educação
infantil e/ou cursos específicos para atuar na área, o que faz da própria escola um
espaço de formação para aqueles que não têm uma experiência anterior na educação
infantil, como pode ser constatado a partir do depoimento de alguns professores
participantes da pesquisa, transcritos a seguir
3
.
Eu não tinha experiência nenhuma, nem de 1
a
. a 4 ª e de educação infantil
muito menos. (...) As próprias crianças me ajudaram. Tinha uma aluninha que
ela era muito esperta. E ela começava a falar assim: “E agora vamos fazer a
rodinha?” (...) Ela dava dicas e eu pescava rapidinho. (...) Ela me ajudou
muito.(Angélica – entrevista individual em 19/05/2004)
***
Estamos na sala de atividades e converso com Frany sobre o professor que
acaba de chegar à escola. Ela diz que está com pena dele, porque ele está
meio ‘ perdido’. Diz saber bem o que é isso, pois quando começou na
educação infantil quem a ajudou foi uma professora que já se aposentou (sobre
a qual ela já falara anteriormente). Sobre o rapaz, Frany afirma que ele pode
contar com ela para o que for preciso e que o está orientando com relação à
rotina da instituição. (Notas de campo da Escola Amarela – 07/06/2004)
2
A história da constituição dessas instituições na cidade de Juiz de Fora foi abordada no capítulo III desta
tese.
3
Ao longo da tese, os nomes dados aos professores e às escolas são fictícios, para resguardar as
identidades dos profissionais e das instituições onde trabalham. No caso de professores aos quais é feita
alguma referência, mas que não participaram da pesquisa enquanto sujeitos é utilizada apenas a letra
inicial do nome.
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67
Essas e outras histórias de chegada, sobrevivência e permanência na profissão
foram sendo narradas pelos professores que participaram da pesquisa e que se
dispuseram a compartilhar com a pesquisadora e também com outros docentes suas
experiências de vida e trabalho. Professores e pesquisadora acabaram estabelecendo
laços atados pelos fios dos discursos que foram sendo tecidos nas observações, nas
entrevistas e nos encontros com o grupo de professores. Entretanto o processo de
constituição desse grupo não se deu sem angústias e ansiedades.
O contato com os professores que participaram da pesquisa foi feito, em alguns
casos, diretamente pela pesquisadora mediante autorização prévia da Gerência de
Educação Básica de Juiz de Fora (GEB) e, em outros, as cartas-convite foram
entregues ao coordenador pedagógico da instituição de educação infantil, que se
encarregou de repassá-las aos professores.
Num estudo no qual o objetivo é a imersão na experiência do outro, buscando
captá-la nos termos desse outro que se oferece como sujeito, mas também como
objeto do olhar do pesquisador, a adesão é fundamental. Apenas quando os sujeitos
se sentem implicados com a pesquisa, instigados pelas questões que movem a
investigação, cúmplices do objeto de pesquisa construído pelo pesquisador, é possível
levar a termo as intenções iniciais. É essa cumplicidade entre os sujeitos e o objeto de
pesquisa que o pesquisador tenta estabelecer quando de sua entrada no campo de
investigação. O campo é o território do outro, do qual o pesquisador tenta se apropriar.
Entretanto, essa apropriação deve ser consentida, um modo de se apropriar que não
exproprie o outro de seu saber, de suas experiências, mas que busque a partilha.
Houve preocupação inicial em expor aos professores as etapas do trabalho de
pesquisa, que exigiria a adesão do grupo por um período relativamente longo de
tempo, considerando-se que, além da observação dos professores nas escolas,
estavam previstas uma entrevista e a presença dos mesmos nos encontros com os
demais participantes, o que exigiria deslocamentos e disponibilidade de horários.
Aos professores que participaram da pesquisa foi oferecida uma declaração de
participação em estágio de convivência interdisciplinar, emitido pelo Núcleo de
Educação para as Ciências UFJF
4
(Anexo 2). Entretanto, para além do interesse em
receber esse certificado, a convivência com os professores mostrou que os estes
aderiram à pesquisa também por razões de ordem pessoal e/ou profissional. A
diversidade de histórias e trajetórias enriqueceu não apenas a pesquisa, mas a própria
4
O Estágio de Convivência Interdisciplinar é uma iniciativa do Núcleo de Educação para as Ciências –
NEC - que funciona na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem por
objetivo favorecer a professores que atuam em diferentes segmentos a possibilidade de encontros para
troca de experiências e conhecimentos.
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convivência do grupo. O quadro a seguir tem o objetivo de oferecer um retrato dessa
diversidade, que será explorada nos capítulos posteriores da tese.
Quadro 1 – Perfil dos professores, sujeitos da pesquisa
Profes. Ida
de
Formação Situação
funcional
Tempo
magistério
Escola Tempo de
serviço na
escola
Angélica 45 Curso normal de nível
médio; graduada em
Pedagogia; especialista em
Psicopedagogia.
Professora
efetiva
21 anos Escola
Azul
8 anos
Frany 40
anos
Curso normal de nível
médio; acadêmica do
Curso Normal Superior.
Professora
efetiva
17 anos Escola
Amarela
13 anos
Rosa 39
anos
Curso normal de nível
médio; graduada em
Letras; graduada em
Pedagogia; especialista em
educação infantil.
Professora
efetiva
15 anos Escola
Amarela
12 anos
Sueli 39
anos
Curso normal de nível
médio; graduada em
Pedagogia; especialista em
Psicopedagogia.
Professora
efetiva
16 anos Escola
Amarela
14 anos
Lucas 28
anos
Graduado em Pedagogia
(com habilitação para
Magistério).
Professor
contratado
6 meses Escola
Amarela
Chegando à
escola
Geisa 33
anos
Complementação em
Magistério ; graduanda em
Pedagogia.
Professora
contratada
10 anos Escola
Verde
1 ano
(incompleto)
Patrícia 27
anos
Curso normal de nível
médio; graduada em
Pedagogia; especialista em
Arte Educação Infantil
Professora
contratada (1
ª matrícula);
Professora
efetiva ( 2
a
.
matrícula)
8 anos Escola
Verde
1 ano
(incompleto)
Fonte: entrevistas individuais com os professores que participaram da pesquisa.
Como é possível observar, os professores que participaram da pesquisa
compõem dois grupos com características peculiares. Um primeiro grupo é aquele
formado pelas professoras que têm em torno de 40 anos, exercem o magistério há
mais de 15 e estão há pelo menos 10 anos na mesma escola. Num segundo grupo, os
professores que têm em torno de 25 anos, exercem a profissão há menos de 5 e têm
um ano ou menos de trabalho na mesma escola. As repercussões que essa
diversidade de trajetórias tem no modo como os professores percebem e vivem a
docência serão exploradas nas análises desenvolvidas ao longo da tese. Por ora,
cumpre apresentar os docentes e seus contextos de trabalho.
A primeira professora a aceitar ao convite para participar da pesquisa foi
Angélica, com quem fiz contato por intermédio de um amigo em comum. O interesse
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69
manifesto pela professora como justificativa para estar na pesquisa era ter um espaço
de interlocução com pessoas do meio acadêmico, com vistas a dar prosseguimento a
seus estudos, possivelmente num curso de Pós-graduação.
Em nosso primeiro encontro Angélica falou bastante sobre sua formação, sua
vida profissional e até sobre alguns aspectos da sua vida privada. Falou bastante
sobre a turma que ficaria sob sua responsabilidade naquele ano, descrevendo as
características das crianças, sua ansiedade por ainda não estar definido se ela
trabalharia pela manhã ou à tarde, o que me fez refletir que talvez ela desejasse,
também, uma interlocutora com a qual pudesse compartilhar aspectos ligados à sua
atuação junto às crianças.
As observações na turma de Angélica tiveram início após uma visita feita por
mim à escola onde a professora trabalhava, quando obtive permissão da diretora para
realização do trabalho de pesquisa naquela instituição.
A Escola Azul é uma instituição de educação infantil conveniada ao sistema
municipal de ensino, localizada em um prédio no centro da cidade. Pertencente a uma
ordem religiosa, a escola é administrada por irmãs de caridade mas os professores e
coordenador pedagógico da instituição são cedidos pela Prefeitura.
No primeiro andar da escola estão localizados um refeitório, que é também um
salão de festas com um palco para apresentações, um pátio com brinquedos de ferro
(balanço, gangorra, gira-gira e escorrega) e as salas destinadas às crianças de três
anos. No andar superior estão a sala de professores (que funciona também como sala
de vídeo), a sala da direção, uma secretaria, banheiros para os pequenos, um pátio
coberto onde as crianças de 4 a 6 anos são reunidas no horário de entrada para rezar
e cantar e as salas de atividades. Estas últimas são equipadas com mesas e cadeiras
em tamanho adaptado à altura das crianças, armário de ferro para guarda do material
de uso diário, mesa e cadeira para a professora. Além do mobiliário há murais nas
paredes e um quadro de giz colocado à altura de uma pessoa adulta. Janela e porta
das salas se comunicam com o corredor que dá acesso ao pátio. Para compensar a
ventilação precária do ambiente, há um ventilador em cada sala que recebe, em
média, 25 crianças. Há pouco espaço para a circulação de pessoas no ambiente. Para
lanchar e brincar, as crianças são conduzidas ao primeiro andar, sob o controle severo
de uma irmã de caridade que as adverte sobre a necessidade de descerem devagar e
tomarem cuidado com a escada.
No início do período de observação, Angélica parecia bastante ansiosa com a
minha presença, entretanto com o passar dos dias a ansiedade da professora foi
diminuindo, dando lugar a uma relação de troca entre nós: em várias ocasiões
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70
Angélica telefonava para minha casa para conversarmos sobre alguma criança ou
para falar sobre seus problemas na instituição.
Quando já estava realizando as observações na turma de Angélica, recebi
resposta positiva de algumas professoras de uma segunda EMEI. Nessa escola, que
chamarei Escola Amarela, três professoras aderiram à pesquisa: Frany, Rosa e Sueli.
A Escola Amarela, que pertenceu à rede estadual de ensino, foi incorporada à
rede municipal em 1997. Está localizada num bairro de classe média da cidade, num
prédio de dois andares. No andar térreo encontram-se: uma secretaria (também
utilizada como sala de professores); uma sala para a direção e coordenação; um salão
onde alguns brinquedos, fantasias e material utilizado em aulas de educação física
são guardados e onde acontecem aulas de música; um refeitório, uma cozinha e uma
copa, onde os professores se reúnem para lanchar. Na área externa há um pátio
descoberto, com um escorregador de ferro e uma pequena área protegida por uma
cobertura de telhas. Numa espécie de subsolo está localizado um auditório com palco
e, aproximadamente, 150 cadeiras. No segundo andar, ligado ao térreo por uma
escada, estão quatro salas de atividades bastante amplas, uma sala que funciona
como biblioteca e sala de vídeo, um banheiro utilizado por professores e crianças,
além de bebedouros. As salas de atividades dispõem de mesas e cadeiras de madeira
adaptadas ao tamanho das crianças, mesa e cadeira para o professor, armário para
guarda do material de uso diário, quadro de giz em altura proporcional à altura dos
adultos e murais pelas paredes. A iluminação e a ventilação se fazem através de
basculantes que dão para a rua.
Iniciei o trabalho de campo na Escola Amarela nas turmas de Frany e de Rosa.
A primeira trabalhava com um grupo de 17 crianças com idades em torno dos 4 anos.
Frany era professora da rede pública municipal há 12 anos quando decidiu voltar a
estudar, motivada pela indicação da LDB nº 9394/96 de que os professores da
educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental tivessem a formação de nível
superior. À época da pesquisa, a professora cursava o 4 º período do Curso Normal
Superior numa Faculdade privada da cidade de Juiz de Fora. Quando nos
conhecemos, Frany mencionou o fato de ter voltado a estudar como uma razão para
ter aceito participar da pesquisa: queria continuar aprendendo. Durante o período de
trabalho de campo, conversamos algumas vezes sobre as leituras que Frany estava
fazendo na faculdade, sendo que numa oportunidade ela trouxe um livro sobre o qual
preparava um seminário para que eu visse: “Como encantar alunos da matrícula ao
diploma”. Parecia especialmente importante para a professora compartilhar com
alguém um período de mudanças em sua trajetória pessoal e profissional, motivadas
pelo ingresso no curso superior.
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71
A professora Rosa concordou em me receber em sua turma onde trabalhava
com nove crianças com idades em torno de 4 anos sem falar muito sobre suas razões
para isso. Após algum tempo de trabalho de campo, a professora me questionou com
relação aos objetivos da pesquisa que eu estava desenvolvendo. Diante do
esclarecimento de que a pesquisa tinha por objetivo compreender os saberes que os
professores da educação infantil constroem na interação com outros professores, com
as crianças e suas famílias, a professora solicitou:
(...)então põe aí na sua pesquisa: o que falta é isso, essa troca entre os
professores, de se reunirem. Trabalhando 15 horas semanais isso acabou,
antes tinha.(Notas de campo, Escola Amarela, 10/05/2004).
Essa intervenção de Rosa, assim como a relação que estabelecemos durante o
período de trabalho de campo, levou-me a levantar a hipótese de que talvez sua
adesão à pesquisa se devesse ao desejo de ter alguém com quem compartilhar suas
experiências profissionais, já que essa dificuldade de troca entre os professores,
apontada no enunciado transcrito anteriormente, revelou-se como um aspecto que a
professora considerava fonte de conflitos na escola e sobre o qual conversamos
diversas vezes.
Quanto à Sueli, travávamos no pátio conversas acerca de aspectos da vida
privada e profissional nas quais, muitas vezes, a professora se emocionava. Na sala
de atividades, enquanto as 25 crianças com idades em torno dos seis anos
trabalhavam, Sueli puxava sua cadeira para o lado da minha e conversava sobre seu
percurso no magistério, o idealismo dos primeiros tempos, o fato de sentir-se
“endurecida” pelos embates e desilusões vividos ao longo dos anos:
Sueli senta-se à mesa onde estou, à frente da sala. Ela organiza um mural e
começamos a conversar. A professora fala de seu idealismo nos primeiros
anos de profissão, do desejo de mudar o mundo e do fato de hoje se
considerar mais “endurecida”. (...) Conversamos sobre a empolgação com a
profissão que, segundo Sueli, é sempre maior quando se começa, “cheia de
gás”. Depois, aos poucos, a desvalorização, os baixos salários, tudo isso vai
arrefecendo os ânimos. (Notas de campo, Escola Amarela, 16/06/2004)
Pelo trecho das notas de campo transcrito acima, é possível perceber que Sueli
parecia estar atravessando um momento especialmente delicado de sua vida
profissional. Considerando esse fato, a participação na pesquisa pode ter
representado, para a professora, um espaço de reflexão sobre sua trajetória
profissional. Durante nossa convivência, Sueli mostrou-se uma parceira interessada
pelo trabalho, preocupada com os prazos que eu tinha que cumprir, com os
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72
desdobramentos que o estudo poderia ter, com os próximos passos do trabalho. Seu
comprometimento me estimulava no decorrer do trabalho de campo.
Depois de alguns meses na Escola Amarela, um imprevisto trouxe à pesquisa
um quarto sujeito. Rosa ausentou-se da escola em função de uma licença médica e,
depois da passagem de duas professoras eventuais
5
por sua turma, um terceiro
professor chegou para assumir o trabalho até o final do ano letivo.
Lucas chegou à Escola Amarela queixando-se da falta de sensibilidade dos
responsáveis pela GEB (Gerência de Educação Básica) por enviarem um homem para
trabalhar com crianças de quatro anos. Embora inseguro – e talvez por isso mesmo –
concordou que eu o observasse, como descrevo na nota de campo transcrita a seguir:
Pergunto a Lucas se aceitaria fazer parte da pesquisa e ele diz que sim, que
posso observar o que quiser em sua sala. Diz, ainda, que se eu puder ajudar, é
bom. Fico feliz, mas ele parece não estar...(Notas de Campo, Escola Amarela,
07/06/2004)
Minha impressão era a de que Lucas, ao concordar em participar da pesquisa,
tinha uma expectativa de que eu pudesse auxiliá-lo de alguma forma no enfrentamento
da situação profissional peculiar na qual ele se encontrava: um homem, sem qualquer
experiência de trabalho anterior com crianças pequenas, diante do desafio de se
iniciar numa atividade profissional tradicionalmente realizada por mulheres.
A quase exclusividade de mulheres atuando na educação infantil acaba por
fazer com que essa situação seja naturalizada, mesmo quando questionamos a
hegemonia feminina nesse campo. Ao entregar a carta-convite para participação na
pesquisa a Lucas, percebi que ela se dirigia “à professora” o que, além de me causar
um certo embaraço diante do professor, evidenciou que os preconceitos do
pesquisador, seus presumidos e pressupostos, muitas vezes resistem à reflexão
teórica e só se revelam plenamente quando confrontados à empiria. É também no
confronto com as situações cotidianas que vai se delineando a adesão dos sujeitos à
pesquisa, definida pelo tipo de relação que se estabelece entre eles e o pesquisador.
Na Escola Amarela, os professores me tratavam por “estagiária”, fazendo
referência ao meu trabalho como “o estágio”, embora desde o início eu tenha dito a
eles o que estava fazendo e os objetivos da pesquisa. Analisando o papel do
pesquisador no espaço da escola, Carvalho (2003) alerta para o fato de que o aspecto
de hierarquização presente nas relações que têm lugar nesse contexto, onde os
adultos têm papéis bem delimitados, estabelece uma situação delicada para o
5
Os professores eventuais são profissionais contratados pela Prefeitura para suprir a falta de professores
por motivos diversos: faltas eventuais, licenças eventuais, férias-prêmio etc.
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pesquisador, que influencia os dados produzidos durante a pesquisa. No caso dos
professores da Escola Amarela, o fato de me tratarem por estagiária parece ter criado
uma situação de maior simetria em relação aos professores, evidenciando uma visão
do pesquisador como alguém que está na escola para aprender com a experiência dos
professores, aspecto que procurei destacar, em função da própria natureza do objeto
de estudo. Entretanto, a despeito dessa aparente simetria, em algumas ocasiões os
professores me questionavam, como se eu pudesse emitir um julgamento legítimo
sobre determinadas situações. Essa ambigüidade de posições – ser ao mesmo tempo
alguém que deseja aprender com a experiência do outro, mas que é reconhecida
como possuidora de um saber “autorizado” com relação a essa experiência - foi um
desafio a ser enfrentado ao longo da pesquisa e parte do processo de negociação da
minha presença no campo, que não se encerra quando se obtém autorização para a
realização do estudo, mas estende-se por todo o tempo de realização pesquisa. Além
disso, ser identificada como alguém que tem um conhecimento legitimado sobre as
situações observadas estabelece uma diferença de horizontes sociais que, sendo
reconhecida pelos professores, define determinadas condições para as interações
entre estes e a pesquisadora que precisam ser consideradas na análise dos dados
produzidos durante a pesquisa.
Depois de alguns dias na Escola Amarela, duas professoras de outra EMEI – a
Escola Verde - aderiram à pesquisa: Patrícia, que havia sido minha aluna no curso de
Pedagogia, e Geisa, que só fui conhecer alguns meses depois, quando terminei o
trabalho de campo na turma de Angélica.
Ocupando uma área do campus da UFJF, a Escola Verde é uma construção
térrea, circundada por árvores e gramado bem cuidado, que atende a crianças entre 4
e 6 anos nos turnos matutino e vespertino. A estrutura física da escola é composta por
cozinha, refeitório (que é também uma área interna onde acontecem apresentações
das crianças), seis salas de atividades, secretaria, sala da direção e sala e banheiro
de professores. O recreio e as atividades de educação física acontecem num pátio
externo, descoberto, com algumas árvores e um parquinho de areia com brinquedos
de ferro. As salas de aula possuem mesas e cadeiras adaptadas ao tamanho das
crianças, mesa e cadeira para o professor, armários para o material de uso diário, dois
quadros de giz fixados à altura dos pequenos, murais, uma estante de livros de
histórias e um aparelho de som. Na Escola Verde, comecei o trabalho de observação
com Patrícia.
Acredito que Patrícia tenha aceitado participar da pesquisa por haver um laço
anterior entre nós, já que fora sua professora na graduação em Pedagogia, e também
por seu interesse em ter uma familiaridade maior com a atividade de pesquisa,
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74
motivado pela intenção de prosseguir seus estudos no curso de mestrado da UFJF. À
época da pesquisa, Patrícia atuava como professora do Projeto
6
, trabalhando com
todas as crianças da escola, já que tratava-se professora efetiva e possuía, ainda, um
contrato de trabalho com a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.
Quanto à Geisa, segundo a diretora da Escola Verde, tratava-se de uma
pessoa muito interessada em aprender, tanto que, à época, estava fazendo a última
etapa de uma formação de professores na Pedagogia Waldorf.
7
Conhecemo-nos
quando eu já estava realizando o trabalho de observação na turma de Patrícia e, ao
sermos apresentadas, Geisa recebeu-me com um forte abraço, como se já nos
conhecêssemos há mais tempo. Essa acolhida calorosa me surpreendeu, despertando
uma curiosidade ainda maior com relação ao trabalho da professora, que algumas
pessoas da escola já haviam definido como diferente daquele realizado nas demais
turmas.
Geisa trabalhava com crianças de seis anos, no turno da tarde e sua sala, na
qual Patrícia também trabalhava como professora do Projeto, era organizada de forma
bastante peculiar: brinquedos artesanais, bonecas de pano, uma pequena casa de
bonecas montada sob uma tenda de pano e com utensílios rústicos de madeira, panos
coloridos, cartazes confeccionados com giz de cera...
Quanto à professora, afirmava haver muitos aspectos do trabalho com as
crianças que gostaria de compartilhar com alguém, o que a motivou a aceitar o convite
para participar da pesquisa.
Alguns meses mais tarde, quando a entrevistei em sua casa, já no fim de nossa
conversa, Geisa me perguntou se eu gostaria de ter seu caderno de planejamento do
ano letivo que havia terminado. Diante de minha resposta afirmativa, trouxe um
caderno meio amarelado, com um desenho feito a giz de cera como capa. Ao abri-lo,
já em casa, descobri que Geisa havia confiado a mim um caderno de registros que
mantinha desde 1998, onde se encontravam não apenas seus planos de trabalho, mas
reflexões sobre a prática profissional, além de aspectos de sua vida pessoal.
A despeito da diversidade de histórias pessoais e profissionais, dos diferentes
contextos em que atuavam, o desejo de compartilhar um saber sobre sua prática
parece ter movido os professores a aderirem à pesquisa. Seja por estarem iniciando
na profissão, como no caso de Lucas, e precisarem de algum apoio para enfrentar os
6
Os “professores do Projeto” trabalham complementando a carga horária de 15 horas semanais,
instituída pela Lei Municipal n º 9732/00, dos professores regentes de turma, tanto na educação infantil
quanto nas séries iniciais ensino fundamental. A situação dos professores de Projeto e as repercussões,
para a educação infantil, da lei nº 9732/00 serão analisadas no capítulo 5 desta tese.
7
A Pedagogia Waldorf foi idealizada por Rudolph Steiner e baseia-se nos princípios da filosofia
antroposófica, também criada por ele. Sobre esses princípios discorreremos de forma mais detalhada no
capítulo dedicado à análise da prática dos professores, sujeitos da pesquisa.
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desafios da docência junto à criança pequena; ou justamente por estarem nela há
muitos anos, como no caso de Sueli e Rosa, buscando talvez compreender o sentido
de sua própria trajetória na profissão; ou ainda por estarem vivendo um momento de
mudança na trajetória profissional, como nos casos de Geisa, Patrícia e Frany, o que
se revelou, tanto no decorrer do trabalho de observação nas escolas quanto nos
encontros com o grupo de professores, que aconteceram após o período de
observação foi uma busca dos sujeitos pela palavra do outro. Os professores parecem
se sentir isolados no espaço de suas salas de aula, razão pela qual a presença do
pesquisador é uma possibilidade de compartilhar experiências vividas de forma muito
solitária, uma oportunidade de diálogo. Esse diálogo se ampliou nos encontros entre
os professores, em que a possibilidade de troca entre os colegas pareceu encantar os
docentes. Aspectos ligados às condições de trabalho vividas nas escolas, à relação
com as crianças e suas famílias, à trajetória profissional de cada um dos professores
foram compartilhados pelo grupo e ressignificados.
Os encontros com o grupo de
professores participantes da pesquisa para discussão de suas práticas revelaram-se
momentos em que a relação alteritária esteve em foco, tanto quanto os saberes
mobilizados pelos professores em sua prática cotidiana.
Nesses encontros a pesquisadora se constituiu no outro, o “estrangeiro”
(Amorim, 2004) que vem em busca da palavra dos sujeitos, mas que também oferece
sua contrapalavra. Do mesmo modo, cada um dos sujeitos participantes foi um outro
que, de seu lugar, ofereceu sua palavra, seu excedente de visão sobre a experiência
alheia, embora pesquisador e sujeitos ocupem lugares distintos no processo de
construção de conhecimentos que é a pesquisa. O objetivo do pesquisador é conhecer
a experiência do outro em seus próprios termos. Entretanto, a partir do momento que
se estabelece uma relação entre ele e os sujeitos, essa relação passa a ser parte
integrante das experiências vividas por ambos.
Ao todo foram realizados sete encontros do grupo de professores na Escola
Amarela, onde a maior parte dos professores que participaram da pesquisa (quatro)
trabalhava. Os encontros se deram numa sala equipada com vídeo, disponibilizada
pela diretora da escola. O local foi escolhido por razões de ordem prática: a idéia
inicial era realizar tais encontros numa sala da Faculdade de Educação da
Universidade Federal de Juiz de Fora, o que se revelou inviável em função da
localização do campus da Universidade, afastado do centro da cidade. Para que todos
os professores pudessem estar presentes às reuniões, elaborei, em comum acordo
com a coordenação pedagógica das escolas em que atuavam os docentes, um projeto
de trabalho com artistas da cidade. Esses profissionais desenvolveram com as
crianças atividades culturais (teatro, música, dança, modelagem) nos horários em que
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os professores participavam dos encontros da pesquisa. Tais atividades estavam
ligadas a projetos de trabalho desenvolvidos pelas escolas à época.
Os encontros com o grupo de professores foram momentos de trocas intensas
entre os docentes e entre esses e a pesquisadora. O objetivo desses encontros era o
de provocar situações em que os professores pudessem se pronunciar sobre sua
prática profissional, partilhando suas reflexões entre pares. O desafio do pesquisador
em Ciências Humanas, que está diante de um objeto de pesquisa que é, ao mesmo
tempo, um sujeito que fala, que se pronuncia em relação ao mundo, é o de trazer para
o texto de pesquisa a voz desse sujeito de maneira contextualizada, oferecendo ao
leitor a possibilidade de reconstruir, com a maior aproximação possível, a situação em
que cada enunciado foi proferido e o que ela revela sobre a posição dos sujeitos. É
necessário considerar, ainda, os processos de produção de sentidos envolvidos nas
relações de alteridade que se estabelecem entre o pesquisador e os sujeitos e entre
estes nas diversas situações compartilhadas. O pesquisador tem acesso a alguns
momentos da experiência vivida pelos sujeitos e é sobre esses momentos que
construirá suas interpretações.
Considerando o objetivo inicial do estudo - compreender o amálgama
constituído pelos saberes que os professores constroem em sua prática cotidiana – é
necessário considerar que a interação com a pesquisadora e entre os professores
participantes do grupo revelou-se ela própria um espaço de construção de saberes.
Esse aspecto é abordado por Freitas (2003) quando destaca que, numa pesquisa com
abordagem sócio-histórica, a situação de campo é “uma esfera social de circulação de
discursos e os textos que dela emergem [constituem-se] como um lugar específico de
produção do conhecimento que se estrutura em torno do eixo da alteridade (Freitas,
2003, p. 32). Ao discutirem a sua prática cotidiana, observando-se no vídeo e
partilhando suas impressões com a pesquisadora e entre pares, os professores
viveram um processo de ressignificação dessa prática, produzindo novos sentidos
para a condição de ser professor da educação infantil.
Perceber-se pelo olhar do outro, encontrar na palavra alheia novos significados
para as próprias experiências, lutar com e contra a palavra do outro para fazer ouvir
sua própria palavra, oferecer a contrapalavra à palavra ouvida... Tais movimentos
realizaram, no âmbito desse estudo, a tríade que Bakhtin define como sendo o eu para
mim; o eu para o outro; o outro para mim. Foi essa tríade que permitiu que a tensão
entre diferentes ângulos de visão construísse percepções sobre o que sabem aqueles
que fazem a educação infantil no espaço da escola pública municipal de Juiz de Fora,
sobre o que é ser profissional da educação infantil nesse contexto.
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77
Os dados produzidos ao longo do trabalho de campo desta pesquisa se
apresentam na forma de textos: textos construídos no diário de campo que registra as
observações realizadas nas escolas e as reflexões da pesquisadora e dos sujeitos
acerca dos eventos observados; os textos produzidos pela pesquisadora e pelos
professores nas entrevistas individuais e os textos construídos pelo grupo de
professores nas reuniões em que foram discutidas as gravações em vídeo das
atividades por eles desenvolvidas. O processo de análise teve que enfrentar o desafio
de produzir sentido para o vivido e o dito, assim como na escrita se coloca o desafio
de apresentar o que se criou no processo de pesquisa de forma inteligível.
Nas notas de campo, transcrições de áudio e descrições de vídeo, os
enunciados dos professores aparecem numa forma bastante próxima ao gênero
primário do discurso, a comunicação oral. Entretanto, quando o pesquisador se
apropria desses enunciados, buscando produzir um conhecimento sobre eles e
comunicar esse conhecimento no texto científico, há uma passagem do gênero
primário ao secundário que traz algumas implicações para a natureza do
conhecimento produzido.
Bakhtin aborda os gêneros do discurso como os tipos relativamente estáveis de
enunciados produzidos nas diferentes esferas de utilização da língua (Bakhtin, 1997a).
Os gêneros primários seriam aqueles mais simples, próprios da comunicação
cotidiana e os gêneros secundários os mais complexos, “porque são elaborações da
comunicação cultural organizada em sistemas específicos como a ciência, a arte, a
política” (Machado, 2005, p. 155). Os gêneros secundários se formam a partir dos
gêneros primários, os quais eles absorvem e transmutam. Nesse processo, os
gêneros primários tornam-se componentes dos secundários, entretanto “perdem sua
relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios”
(Bakhtin, 1997a, p.281). Compreender o modo como os gêneros primários e
secundários se relacionam seria, portanto, uma condição necessária para a análise da
natureza do enunciado e as relações entre língua, ideologia e visões de mundo
(Bakhtin, 1997a).
No texto de pesquisa, a passagem do gênero primário – próprio da
comunicação que se estabelece entre pesquisador e sujeitos ou entre os sujeitos e as
pessoas com quem se relacionam nas situações observadas pelo pesquisador – para
o gênero secundário implica uma forma de apreensão do discurso dos sujeitos pelo
pesquisador que é uma forma de resposta a esses discursos. Essa resposta se dá a
partir dos julgamentos do pesquisador, que se fundamentam em seus pressupostos,
em suas crenças e valores, o que implica desafios éticos que o pesquisador deve
enfrentar ao construir o texto de pesquisa. Para Bakhtin, “compreender sem julgar é
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impossível. As duas operações são inseparáveis: são simultâneas e constituem um
ato total” (Bakhtin, 1997a, p. 382). Essa afirmação torna impossível qualquer ilusão de
neutralidade ou objetividade ascética por parte do pesquisador, que está diretamente
implicado no conhecimento que produz sobre as experiências do sujeito, restando-lhe
assumir essa condição. Entretanto, é preciso compreender esse julgamento como ato
de responsividade, que cria algo novo, diferente da situação de campo: “na passagem
da situação de campo para a situação de escrita, não há apenas transcrição de
resultados, mas também descoberta e invenção” (Amorim, 2003, p. 77).
O processo de “descoberta e invenção” que se configurou na análise dos textos
produzidos ao longo do trabalho de campo se apoiou no conceito de dialogia de
Mikhail Bakhtin: diálogo entre textos. Portanto, a análise dos enunciados proferidos
pelos professores e transcritos pela pesquisadora buscou colocar em diálogo os
diferentes temas que emergem desses enunciados com os aspectos históricos e
políticos discutidos nos capítulos anteriores da tese. É esse diálogo que apresento nos
capítulos 5 e 6 enfocando, em cada tópico, alguns interlocutores em especial (alguns
dos professores participantes da pesquisa), que evocam outros interlocutores dos
acontecimentos discursivos. Para efeito de análise, os professores estão agrupados
segundo alguns pontos de convergência no que se refere ao estágio da carreira no
qual se encontram. Isso porque a análise dos dados da pesquisa revelou ser o
percurso na carreira um fator relevante para definição do modo como os professores
mobilizam determinados saberes em suas atividades de docência.
Na organização dos professores a partir de suas trajetórias profissionais,
busquei apoio em alguns autores que analisam o ciclo de vida profissional dos
professores a partir do foco na carreira. Foram de especial importância Michaël
Huberman (2000), analisando os ciclos de vida profissional de professores do ensino
secundário, e Lilian Katz, (apud Oliveira-Formosinho, s/d), em seu estudo sobre os
estádios de desenvolvimento dos educadores de infância.
Ambos os autores, ao abordarem as etapas pelas quais passam os professores
em suas carreiras, oferecem parâmetros para a compreensão de processos mais
diversificados, que envolvem uma mescla de aspectos da vida profissional e pessoal,
o que estabelece diferenças nos percursos da carreira. A análise das histórias e
trajetórias dos professores que participaram da pesquisa revela que há aspectos
dessas trajetórias que podem ser melhor compreendidos em referência a
características comuns a alguns professores em determinadas etapas de sua trajetória
profissional. Portanto, cumpre destacar quais seriam esses aspectos e como os
professores que foram sujeitos desta pesquisa se colocam em relação a eles.
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Huberman (2000) analisa os estudos sobre as trajetórias profissionais dos
professores do ensino secundário, estabelecendo alguns estádios dessas trajetórias.
No primeiro desses estádios - a entrada na carreira - haveria uma conjunção de dois
aspectos na experiência profissional dos professores: a sobrevivência (diante do
choque com a realidade das escolas) e a descoberta (o entusiasmo diante da nova
situação).
O segundo estádio, denominado fase de estabilização, caracteriza- se pelo
caráter de comprometimento do professor com a carreira que escolheu e por um
sentimento de competência com relação à sua docência.
Na fase da diversificação os professores se permitem uma maior flexibilidade
em seus procedimentos e a experimentação de novas alternativas de trabalho,
questionando-se sobre os fins de sua atividade profissional.
A fase de distanciamento afetivo refletiria um estado de espírito dos
professores em que há uma reflexão mais objetiva dos mesmos acerca de suas
funções e atribuições em relação aos alunos, encarando com serenidade as situações
de sala de aula.
Na fase de conservantismo e lamentações os professores, queixam-se dos
comportamentos dos alunos e da pouca efetividade das mudanças em termos
educacionais e, na fase de desinvestimento haveria um recuo e um processo de
interiorização, principalmente no fim da carreira profissional (Huberman, 2000).
Com relação aos professores de educação infantil, Oliveira-Formosinho (s/d),
com apoio em Katz (1977, 1995 apud Oliveira-Formosinho, s/d), apresenta quatro
estádios de desenvolvimento desses profissionais com pontos em comum com a
classificação de Huberman: sobrevivência, consolidação, renovação e maturidade.
Em cada um desses estádios os professores teriam alguns desafios em termos de sua
relação com a carreira e necessidades de formação diferenciadas.
Na classificação feita por Katz e apresentada por Oliveira-Formosinho (s/d), o
primeiro estádio vivido pelos professores em suas carreiras seria o de sobrevivência.
Nele a maior preocupação dos professores seria fazer frente aos desafios que o
"choque com a realidade" traz em termos das responsabilidades com as crianças e
suas famílias. O sentimento de falta de preparação para desenvolver seu trabalho faz
com que os professores busquem, nessa fase, apoio em seu contexto mais imediato
de trabalho, nos supervisores e em seus pares.
No estádio de consolidação os professores tendem a ter o foco de suas
preocupações centrado em algumas crianças e situações em particular e nos
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problemas apresentados por estas, uma vez que os profissionais já venceram o
desafio de sobreviver na carreira. Essas preocupações mais específicas levam o
professor a buscar apoio para sua formação no diálogo com outros profissionais sobre
questões práticas.
O estádio de renovação é marcado por um desejo de mudanças
fundamentadas numa reflexão sobre as aquisições já feitas em termos da carreira, por
uma busca de novas formas de conduzir suas atividades, fugindo das rotinas e
buscando entre pares um espaço para discussão e reflexão sobre questões da prática.
Finalmente, no estádio da maturidade o professor se percebe como um
profissional confiante em suas competências, colocando-se, com base em suas
experiências, questões com relação à sua atuação profissional no contexto mais
amplo da sociedade em que está inserido.
Embora a autora estabeleça alguns marcos temporais para a definição de cada
um desses estádios, minha experiência com os professores que participaram da
pesquisa evidenciou que as condições institucionais contribuem para que alguns
estádios sejam vivenciados por mais tempo pelos professores, assim como para que
outros levem mais tempo para serem alcançados. Essa constatação converge para o
que afirma a própria autora quando destaca que esses estádios não são vividos de
forma linear, mas fatores contextuais podem favorecer um retorno a estádios
anteriormente vividos, assim como progressão a estádios posteriores. Enfim, o que
considero produtivo nas classificações feitas por Katz e Huberman, e que tomo como
referência para a apresentação que faço dos professores que participaram da
pesquisa, é a possibilidade de compreender a trajetória profissional como uma
construção que se dá em função de determinadas condições institucionais e no
decorrer da qual diferentes saberes são mobilizados pelos professores como
decorrência da necessidade de responder a desafios específicos.
No caso dos professores que participaram da pesquisa que deu origem a esta
tese, embora não houvesse uma intenção inicial de selecioná-los a partir de critérios
pré-definidos tais como o tempo de trabalho na educação infantil, a análise das
trajetórias dos docentes que aderiram à pesquisa permitiu identificar dois grupos de
professores com características semelhantes em termos de suas trajetórias
profissionais.
Num primeiro grupo, formado por Lucas, Patrícia e Geisa, embora o tempo de
magistério dos docentes varie de seis meses, no caso de Lucas; há dez anos, no caso
de Geisa, os professores apresentam em comum o fato de que ainda não alcançaram
uma estabilidade na carreira. Mesmo as professoras que têm mais tempo de
magistério têm vivido mudanças constantes em suas atividades profissionais – de
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81
espaços de atuação, de escolas, de faixas etárias com as quais trabalham. Portanto,
para esses três professores o desafio da sobrevivência na carreira ainda mobiliza boa
parte de suas preocupações e ações, uma vez que a educação infantil, para eles,
ainda não pode ser pensada em termos de uma carreira: ela é, ainda, um lugar de
passagem.
Um segundo grupo seria aquele formado pelas professoras que já têm uma
trajetória consolidada na educação infantil e também nas escolas onde trabalham.
Nesse grupo estão Angélica, Sueli, Frany e Rosa. Para essas professoras, que já
conquistaram uma estabilidade profissional, os desafios da carreira se colocam em
termos de avaliar as opções feitas, encontrar meios para lidar com algumas
decepções, frustrações e expectativas com relação àquilo que podem ainda construir
em termos de novas alternativas de trabalho, ou mesmo de carreira, fugindo à
acomodação. Para essas professoras a educação infantil é um lugar conquistado.
Fugindo à perspectiva de enquadrar os professores em esquemas rígidos de
análise, que subtrairiam das experiências vividas por e com esses profissionais a sua
riqueza, essa forma de apresentar as análises desenvolvidas considera características
comuns a esses profissionais que emergiram dos dados produzidos no campo de
pesquisa e que têm repercussões no modo como os professores interagem com as
crianças e também com seus pares, o que repercute nos saberes produzidos por
esses profissionais. Portanto, os estádios anteriormente abordados não serão
tomados como marcos temporais rígidos, mas como quadros de referência que darão
suporte a algumas análises a serem empreendidas nos capítulos que se seguem.
Pião
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino
que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a roda, o filósofo o
perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o
maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião
enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao
chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer
insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento
do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia
antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então
tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rolando. E sempre que se
realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia
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conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto
corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido
pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele então não
havia escutado e agora de repente entrava em seus ouvidos – afugentava-o dali e ele
cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.
(Cinco minicontos de Kafka In: http://www.tanto.com.br/kafka.htm , acesso em 01/01/2006)
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5
EDUCAÇÃO INFANTIL: UM LUGAR DE PASSAGEM?
Neste capítulo apresento e discuto as experiências dos professores
Lucas, Patrícia e Geisa, com base nas observações feitas em suas salas de
atividades, nas entrevistas individuais e encontros do grupo de professores e,
ainda, no caso de Geisa, a partir de um caderno de registros da professora, ao
qual já fiz referência no capítulo anterior. Os enunciados desses três sujeitos
evocam os enunciados dos demais participantes da pesquisa com relação aos
temas que emergem das situações vividas pelos três professores. A despeito
das peculiaridades das histórias pessoais e profissionais de cada um dos
docentes, é possível identificar, no momento de suas trajetórias profissionais em
que participaram da pesquisa, características do estádio de sobrevivência. No
caso de Lucas, claramente tentando sobreviver a seus primeiros seis meses no
magistério; nos casos de Patrícia e Geisa, embora já tenham alguns anos de
magistério, o que lhes permite alguma superação das angústias iniciais, as
mudanças constantes de escola e série implicam a permanência de
características próprias aos profissionais ingressantes na carreira. Em todos os
três casos, a diversidade de trajetórias, assim como os pontos de tangência
entre as mesmas, trazem implicações no modo como os professores constroem
seus saberes.
5.1
Como se aprende a ser professor de crianças pequenas?
"(...) o sujeito da experiência é aquele que sabe enfrentar o outro enquanto que outro e
está disposto a perder o pé e se deixar tombar e arrastar por aquele que lhe vai ao
encontro: o sujeito da experiência está disposto a se transformar numa direção
desconhecida.
(Larrosa, J., 1999, p197)
Um ano espetacular. Assim Lucas define o período em que trabalhou na
Escola Amarela, com crianças de quatro e cinco anos. Quando chegou à escola,
o professor tinha seis meses de trabalho no magistério e algumas experiências
bem diversificadas: já havia trabalhado numa creche – "Na creche Cerâmica eu
dei aula duas semanas" – e com turmas de 2 ª e 3 ª séries numa outra escola.
Além disso, à noite Lucas trabalhava na Educação de Jovens e Adultos, numa
instituição de ensino da rede particular da cidade.
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84
Formado em Pedagogia, na habilitação supervisão escolar, o professor
explicou sua opção pela educação:
Fiz opção pela educação porque eu acredito que é por ela que a gente vai ter
uma melhor população, pessoas mais aptas a um emprego, mais informadas,
que possam cobrar mais como cidadãos. E gosto. (Entrevista com Lucas, agosto
de 2005)
Como o curso de Pedagogia o habilitava a exercer as atividades de
supervisão escolar, mas não permitia que ministrasse aulas no ensino
fundamental, Lucas cursou algumas disciplinas de complementação pedagógica
para estar habilitado a lecionar na educação infantil e no ensino fundamental.
Contratado pela Prefeitura, Lucas se classificou como um professor eventual
desde sempre. Foi essa condição que trouxe Lucas à Escola Amarela e,
conseqüentemente, à educação infantil. Para o professor, o trabalho com os
pequenos não foi uma opção, mas uma contingência de sua condição funcional.
Ao longo da curta trajetória profissional de seis meses, com passagem
por diferentes instituições, trabalhando com diversas faixas etárias, Lucas veio
encontrar-se, na Escola Amarela, com um grupo de crianças que também tivera
uma trajetória acidentada ao longo do primeiro semestre do ano de 2004. A
professora que havia começado a trabalhar com o grupo – Rosa, também ela
sujeito desta pesquisa – afastou-se da escola em virtude de uma licença médica.
Duas outras professoras eventuais já haviam assumido a turma até a chegada
de Lucas que nela permaneceu por aproximadamente um mês. No segundo
semestre de 2004, quando voltei à escola para dar prosseguimento ao trabalho
de campo, após as férias de julho, mudanças haviam acontecido: Sueli fora
transferida para a turma de Lucas, que assumiu uma turma de crianças de 5
anos. A professora dessa turma, por sua vez, assumiu a turma que antes era de
Sueli.
Mesmo sem considerar as mudanças que ainda aconteceriam em suas
trajetórias, quando Lucas chegou à Escola Amarela ele e as crianças tinham em
comum as trocas constantes ao longo do ano letivo, o que parecia gerar
insegurança no professor, que afirma: Eu não estava preparado.
Com relação às crianças, receberam o professor com curiosidade e
euforia. Acostumadas a uma rotina que envolvia, entre outras medidas
disciplinares, fazer filas para ir ao banheiro todas juntas, para ir ao refeitório,
para voltar à sala depois do recreio, os pequenos se viram, de repente, com
maior liberdade, em função do próprio desconhecimento, pelo professor, dessas
rotinas.
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85
As saídas para o banheiro e para o recreio se tornaram, em alguns dias,
um espetáculo divertido, como registrei na nota de campo que transcrevo a
seguir:
Subi as escadas com Frany, que ia conduzindo sua turma, andando de costas
para ficar de frente para as crianças. A professora ia cantando uma das músicas
que marcavam as rotinas em sua sala: “O parquinho terminou/ estou cansada de
brincar/ o silêncio bem gostoso/ eu agora vou fazer”. Quando chegamos à sala
de atividades, ouvi a turma de Lucas se aproximando. As crianças vinham
correndo na frente e o professor advertia: "Tem que ir ao banheiro e beber
água!"
Frany olhou para mim e comentou: "eles [as crianças] estão adorando a
bagunça!" (Notas de campo, 7/06/2004)
Estavam. As crianças pareciam estar adorando a súbita liberdade. Se por
um lado chegar sem conhecer nada, como diz Lucas, trazia insegurança e uma
certa sensação de desamparo, por outro o não saber criava possibilidades de
fazer diferente, rompendo com práticas já instituídas simplesmente por
desconhecê-las. O fato de não ter sido ainda exposto às rotinas e práticas da
instituição permitia ao professor uma transgressão involuntária de regras. Talvez
porque houvesse apenas oito crianças na turma, inicialmente o professor não viu
qualquer necessidade de fazer fila ao se locomover pela escola com o grupo.
Nos primeiros dias de Lucas na escola, os pequenos seguiam pelos corredores à
sua volta, alguns agarrados às suas pernas ou segurando suas mãos e braços,
ao contrário da disposição que adotavam anteriormente, em fila, um atrás do
outro. Na sala de atividades Lucas parecia não se importar com o barulho das
crianças e nem que elas se comunicassem umas com as outras mais livremente
durante as atividades, o que antes não acontecia com freqüência. Como
conseqüência, algumas crianças mais tímidas, cujas vozes eu não havia ouvido
mesmo já tendo feito observações na turma quando ela ainda estava sob a
responsabilidade de Rosa, passaram a falar mais.
Também no horário da brincadeira livre aconteceram mudanças. Antes
da chegada de Lucas as crianças brincavam em suas mesas com os brinquedos
distribuídos pela professora. Com o novo professor as crianças andavam pela
sala, riam, falavam alto e desfrutavam de maior liberdade para a criação de
novos enredos para as brincadeiras. Isso não parecia incomodar o professor,
mas se diferenciava dos comportamentos observados em outras turmas. Na sala
de atividades, as mudanças pareciam registradas num calendário, que durante
semanas permaneceu marcando a data anterior à chegada de Lucas à turma.
Diariamente eu olhava o calendário e sorria diante do tempo colocado em
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86
suspenso que ele, agora, marcava. Além do sentido implícito do calendário que
ficou esquecido, também havia a questão explícita do desconhecimento do
professor com relação às rotinas que estruturavam o trabalho na sala de
atividades e que eu havia observado quando Rosa era professora da turma: a
chegada, a distribuição dos crachás depois do tempo destinado à brincadeira
livre, quando as crianças brincavam em suas mesas, a atualização dos cartazes
que marcam “como está o tempo”, “ajudante do dia”, “quantos somos” e
“calendário”. Entretanto, embora menos organizadas, as crianças pareciam mais
livres para se expressar.
A inexperiência de Lucas com relação à organização das rotinas na
educação infantil se revelava também em dúvidas do professor com relação a
questões tais como: "Será que eu posso dar uma atividade com guache sem
colocar avental?" ou "É preciso colar este dever no caderno? Como vou colar?"
Diante desse "não saber", Lucas foi criando suas próprias alternativas, dentro
dos limites estabelecidos pela instituição, muitas vezes mais rígidos que os do
próprio professor, como é possível perceber a partir da situação relatada a
seguir:
Certa manhã, a diretora da escola Amarela chegou à sala de Lucas para dar um
recado. As crianças brincavam pela sala, imitando cães e gatos. Enquanto o
professor se dirigiu à porta para atender à diretora, o barulho dos miados e
latidos das crianças foi aumentando, tornando-se ensurdecedor. Incomodada
com a situação, a diretora se dirigiu às crianças: "Eu estou conversando com o
Lucas. Isso é muita falta de educação! Quem está miando, está miando alto
demais!”
Lucas, que a princípio não parecia incomodado com a situação, voltou-se para
as crianças e disse: “Olha aí pessoal! Olha a C. aí...”
As crianças pararam, olharam para o professor e retomaram a brincadeira,
miando mais baixo por alguns segundos, até que o barulho aumentou
novamente. (Notas de campo, Escola Amarela, 24/06/2004)
Essa situação, como outras vividas pelo professor e pelas crianças,
evidencia o papel que o contexto de trabalho tem na construção, pelos
professores, de sua docência e de sua própria identidade enquanto docentes. Os
estudos que tratam da entrada na carreira de professor definem esse período
como aquele em que o docente explora, a partir dos parâmetros impostos pela
instituição, suas possibilidades de atuação (Hubermann, 2000). Esses
parâmetros algumas vezes encontram-se explícitos em documentos da escola,
como o Regimento Escolar e a Proposta Pedagógica, ou estão implícitos nos
comportamentos e atitudes permitidos ou coibidos pela instituição, na pessoa do
diretor, coordenador ou mesmo dos próprios professores, alunos e familiares,
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87
como foi possível perceber no evento relatado anteriormente. Em função dos
limites mais ou menos explícitos, impostos pela instituição, com o passar dos
dias Lucas passou a organizar as crianças em filas e a se preocupar mais com o
barulho que elas faziam. As regras da instituição foram se dando a conhecer ao
professor em situações como a descrita anteriormente e, aos poucos, Lucas foi
construindo suas respostas, mais ou menos adaptativas, a elas. Essas formas
de adaptação às expectativas que se colocavam à sua atuação profissional,
foram permitindo que o professor lidasse com as tensões iniciais. No primeiro dia
em que o encontrei na Escola Amarela o professor comentou:
É mesmo uma falta de sensibilidade do pessoal da GEB
39
. Sei lá, eu acho que
com essa idade tem que ser mesmo mulher. Quatro anos!... Você não acha?
(Conversa com Lucas, Escola Amarela, 7/06/2004)
Lucas parecia insatisfeito com o fato de ter sido enviado a uma instituição
de educação infantil para trabalhar com crianças de uma faixa etária com a qual
ele não tinha qualquer experiência. Além disso, existe a idéia amplamente
difundida, inclusive pelo próprio discurso pedagógico, como abordado no
capítulo 3 desta tese, de que as qualidades necessárias para trabalhar com a
criança pequena seriam próprias à condição feminina, sendo a educação infantil
um campo em que as profissionais são, em geral, mulheres. Alguns meses
depois do nosso primeiro encontro, Lucas analisou sua condição de professor da
educação infantil:
Eu, no papel de homem na educação infantil, a cabeça da gente fica, às vezes,
rejeitando um pouco (...) As pessoas não aceitam. O nosso país é muito
conservador. E eu vejo cada vez mais isso. Não é o ensino, não. É a visão das
pessoas. Tentam passar uma imagem muito liberal, mas no fundo não é. É
conservador. (Entrevista com Lucas, agosto de 2005)
Nesse enunciado, ao assumir sua rejeição inicial à condição de professor
de educação infantil como decorrente de uma não aceitação dessa condição
pela sociedade, Lucas revela que a percepção que temos de nós mesmos como
profissionais e também como pessoas é uma construção social e não individual.
Os estereótipos ligados aos papéis e atitudes próprios a homens e mulheres são
internalizados a partir dos discursos que prescrevem as atitudes esperadas e /ou
desejáveis aos gêneros masculino e feminino. Esses discursos se estruturam a
partir de situações da vida cotidiana e constroem aquilo que Bakhtin (1997-b,
p.37) denomina ideologia do cotidiano que, por sua vez, dá origem aos sistemas
39
Gerência de Educação Básica.
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88
ideológicos estruturados como a moral, a religião etc. A ideologia do cotidiano se
constitui a partir das situações banais, do dia-a-dia, como aquela que pude
observar na sala de Lucas e que descrevo a seguir:
Lucas dirigiu-se ao quadro para escrever o número 10, que as crianças deveriam
copiar. Fez isso usando um giz de cor rosa, ao que um menino observou:
- Ih! Rosa!
Lucas retrucou:
- É, rosa. Rosa é bonitinho. Vamos copiar o número 10 e depois vamos recortar
os produtos da propaganda que eu vou dar. (Notas de campo, Escola Amarela,
23/08/2004)
O tom de deboche do comentário feito pelo menino aparentemente se
deve ao fato do professor, sendo homem, escolher o giz de cor rosa,
considerada feminina, para escrever no quadro. No deboche havia também uma
provocação que tinha o objetivo de verificar como o professor se posicionava
com relação ao tema. Ao ignorar a provocação do menino, Lucas rejeitou o
estereótipo de que rosa seria "cor de mulher", embora não tenha discutido isso
de forma mais explícita com as crianças.
Refletindo sobre a ocupação de um espaço público pelas mulheres a
partir de sua inserção no magistério, Louro (2002) destaca:
Discursos carregados de sentido sobre os gêneros explicaram (e explicam) como
mulheres e homens constituíram (e constituem) suas subjetividades, e é também
no interior e em referência a tais discursos que elas e eles constroem suas
práticas sociais, assumindo, transformando ou rejeitando as representações que
lhes são propostas (Louro, 2002, p. 478).
A rejeição de Lucas ao estereótipo de que rosa é uma cor para mulheres,
assim como sua própria presença num campo de atuação profissional
majoritariamente feminino, pode favorecer às crianças uma reflexão sobre
questões de gênero a partir de novas perspectivas. Nesse sentido, a presença
de um homem na educação infantil tensiona os discursos que, historicamente,
atribuíram às mulheres a primazia nesse campo. No caso de Lucas, durante sua
curta permanência na Escola Amarela o professor foi construindo formas
próprias de lidar com as crianças. Essas formas não fugiam à perspectiva do
cuidado e afetividade necessários à atuação junto aos pequenos, mas se
revestiam de peculiaridades. Observando o professor no horário do recreio, foi
possível perceber atitudes que revelavam esse cuidado e afetividade, tais como
se abaixar para amarrar o tênis de uma criança, verificar as bordas do
escorregador para assegurar-se de que o brinquedo era seguro, abaixar-se e
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abrir os braços para receber o abraço de uma criança; acolher e consolar uma
menina que se queixava de dor de barriga... Essas atitudes, entre outras,
evidenciavam carinho, cuidado, atenção com os pequenos e não
necessariamente se identificavam com a condição feminina, mas decorriam das
necessidades e manifestações afetivas das próprias crianças.
Em algumas situações, Lucas simulava estar muito zangado, falando
sério e franzindo a testa. A princípio as crianças tinham receio, acreditando que
o professor estivesse mesmo zangado. Depois de um certo tempo, entenderam
que era uma brincadeira e sorriam, como na situação descrita a seguir.
Lucas pegou uma caixa de lápis de cor sobre sua mesa, voltou-se para as
crianças com cara séria, olhar grave e perguntou:
- Quem colocou estes lápis de cor aqui?
Uma das crianças respondeu:
- É seu!
- É meu?
- É.
-Quem que colorir o lobisomem?
As crianças gritam em coro
- Eu!!! (Notas de campo, Escola Amarela, 27/08/2004)
Essa e outras situações revelam um modo próprio de tratar as crianças,
que tem a ver com as características pessoais do professor que, logicamente,
definem-se em relação, entre outros fatores, à sua condição de homem, o que
implica uma forma peculiar de lidar com questões quotidianas.
Ao dirigir-se aos pequenos Lucas fazia referência a si mesmo como "o
professor" e às crianças como "os alunos" com enunciados do tipo: "Vamos ouvir
o que o professor vai falar?" ou "Os alunos da Escola Amarela vão ensaiar
hoje?" A referência às crianças como alunos, embora questionável pela
identificação que estabelece da educação infantil com práticas do ensino
fundamental que desconsideram as peculiaridades da criança pequena, era
comum aos demais professores da escola. Quanto ao tratamento "o professor",
este não era usual entre os docentes da escola que, por isso, ao se referirem a
Lucas, tratavam-no por "tio Lucas", como é possível perceber no evento que
relato a seguir:
Lucas chegou com as crianças ao refeitório onde já estava a turma da
professora E. A professora acolheu a turma de Lucas e rezou com todas as
crianças, embora o próprio Lucas nunca reze, convidando sempre uma criança a
fazer isso. O professor também não costuma recitar os versos que se sucedem à
oração (“A tia (dizem o nome da professora)... me ensinou com versos/ quando
eu como eu não converso”.) Neste dia, entretanto, quando as crianças
terminaram a oração, a professora E. puxou o coro: “ o tio Lucas me ensinou
com versos/ quando eu como eu não converso.” (Notas de campo, Escola
Amarela, 27/08/2004)
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Nesse evento é possível observar que o discurso e a prática da
professora E. contribuíam para a construção de uma identidade do professor
Lucas que ele próprio rejeitava: a identidade de “tio” que, de certa forma,
controla o grupo a partir do exercício de determinadas funções – no caso, a
tarefa de conduzir a oração.
Identificar-se como “o professor”, e não como “tio”, foi uma questão
discutida no encontro com o grupo de professores no dia em que foi apresentada
a filmagem realizada na sala de Lucas, a partir de uma provocação que fiz ao
professor.
Pesquisadora: - E essa questão de você se referir a você como “o professor?”
Como é isso para você?
Lucas: - Isso eu acho que de repente foi um excesso de rigidez da minha parte.
Mas a C (diretora da escola) já conversou comigo sobre isso. (Reunião com o
grupo de professores, 25/10/2004)
É interessante perceber que Lucas parece fazer uma autocrítica com
relação ao fato de não se identificar junto às crianças do modo como
normalmente as professoras o fazem. Talvez isso fosse decorrência da própria
situação de enunciação, na qual ele era o único professor entre professoras que,
em geral, são tratadas por “tias” e também porque, naquele momento, a diretora
da escola, C., estava presente na sala. De qualquer forma, houve uma pressão
institucional, manifesta tanto na conversa da diretora quanto em situações
cotidianas, como aquela relatada anteriormente, na qual a professora se referia a
Lucas como “tio Lucas”, para que o professor modificasse seu modo de agir com
relação a essa questão. Outra professora do grupo, Angélica, pronunciou-se
sobre o fato, apoiando a atitude do professor:
Engraçado, isso foi uma coisa que eu sempre quis: ser chamada de professora,
mas nunca consegui. As crianças acabam sempre me chamando de tia, acho
que por causa daquela coisa maternal, da mulher. (Reunião com o grupo de
professores, 25/10/2004)
A experiência de Lucas fez com que Angélica refletisse sobre sua própria
experiência, questionando, de certa forma, a correlação de forças em que se
constrói sua identidade profissional: seu desejo de marcar uma posição com
relação à sua identidade profissional x uma posição previamente marcada para
ela como professora. Tal posição tem a ver com a identificação da atuação do
profissional que lida com a criança pequena com práticas de maternagem, com o
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espaço doméstico, já referida no capítulo 3 desta tese. Reforçando essa idéia, a
contrapalavra de Angélica mostra que ser tratada de uma determinada forma
pelas crianças não passa apenas por uma questão de maior ou menor rigidez
dos professores, mas tem a ver com o modo como se constroem, em contextos
institucionais específicos, as identidades desses profissionais. Revela, ainda,
que a despeito do desejo do professor, essa não é uma escolha pessoal, pois a
esse desejo se opõem as práticas já institucionalizadas pelos discursos que
atravessam essas práticas. A identidade profissional não se constrói, portanto,
tendo como referência opções individuais dos sujeitos, mas é tecida a partir dos
discursos sobre esses sujeitos e os papéis que historicamente são a eles
atribuídos. No caso do professor da pré-escola, esses discursos construíram
para ele um perfil que mescla à atuação no espaço público aspectos da esfera
privada, da família, como é o caso da identificação com a tia. Esse perfil muitas
vezes se choca com a imagem do profissional, seja ele homem ou mulher, cujo
reconhecimento como tal, pela sociedade, fundamenta-se na posse de
determinados conhecimentos e habilidades próprios à profissão e mobilizados na
atuação na esfera pública. O tipo de trabalho que se realiza na educação infantil,
cuja identidade se define pela integração dos aspectos de educação e cuidado
nas práticas que se dirigem à criança pequena, contribui para a idéia de que não
é necessária uma formação específica ou a posse de conhecimentos
especializados para a realização desse trabalho. Entretanto, reconhecer as
necessidades manifestas pelas crianças e orientar as ações pedagógicas de
modo a atendê-las através de uma prática intencional só é possível quando o
profissional dispõe de uma formação adequada, seja ele homem ou mulher.
Sobre sua formação acadêmica, Lucas reflete:
Eu fui preparado para supervisionar. Você tem uma visão técnica de coisas
como calendário, quadro informativo, legislação educacional... E quando você vê
que você tem que dar conta... (...) Às vezes você fica inseguro: será que eu
estou fazendo certo? Será que eu estou dando aula de maneira coerente com o
que eu aprendi? (Entrevista com Lucas, agosto/2005)
Segundo Lucas, a formação em supervisão escolar não deu a ele muitos
elementos para enfrentar os desafios de trabalhar com crianças na educação
infantil. A própria referência ao fato de "dar aulas" aos pequenos evidencia
pouca familiaridade com as peculiaridades do trabalho com a criança pequena,
no qual o foco se coloca em práticas integradas de educação e cuidado
diferentes das práticas de ensino efetivadas no modelo de aulas ministradas no
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ensino fundamental e médio. As lembranças de Lucas com relação a disciplinas
que tenham enfocado as questões relativas à criança pequena atêm-se àquelas
da área da Psicologia.
Não sei o nome... Psicologia I, II, III... tem do adolescente, da criança. Tem as
fases do desenvolvimento. Discute, mas é uma coisa muito distante. (Entrevista
com Lucas, agosto/2005)
Uma decorrência da ausência de modelos curriculares para a educação
infantil e de formação específica para os profissionais que atuam no segmento é
que a Psicologia do desenvolvimento tem sido o campo privilegiado para
informar as práticas de trabalho com a criança pequena. Rocha (2001b) destaca
que, mesmo os modelos pedagógicos decorrentes das idéias dos teóricos
pioneiros da educação infantil como Montessori, Decroly e Froebel, tiveram
como característica uma intervenção pedagógica marcada pela padronização,
dando origem a práticas de padronização da criança pequena. O foco no
desenvolvimento infantil como uma seqüência de etapas a serem alcançadas e
vencidas obscurece uma compreensão mais ampla, pelo professor, da criança
como sujeito inserido numa cultura que ela produz e na qual ela é produzida.
Isso tem repercussões no modo como o professor que lida com a criança
pequena estrutura seu trabalho, aspecto que se revelou a partir da observação
da prática de Lucas. Durante o período de observação, o professor desenvolveu
com as crianças atividades de pintura, colagem de bolinhas de papel crepom
sobre desenhos, dobradura, escrita de numerais, recorte e colagem, atividades
para colorir, alusivas a datas comemorativas, entre outras. Lucas afirma
considerar as atividades de coordenação motora importantes para as crianças e
explica o que entende por esse tipo de atividade:
É isso: o barbante, colocar para recortar, para mexer com o papel, pra bater
pauzinhos, descobrir os sons. Você não precisa criar uma coisa fantástica. Você
pode fazer com o que está perto, que muitas vezes a criança não está
acostumada com aquilo. Muitas vezes a criança escuta uma música em casa
mas não pode mexer naquilo, não pode pegar, não pode fazer bagunça. E foi
isso que eu vi na festa de fim de ano, que nunca passou pela minha cabeça que
crianças de 4, 5 anos pudessem fazer aquelas coisas: virar cambalhotas, dar
piruetas, dançar como bailarina na ponta dos pés, no tempo da música... (...) A
festa de fim de ano foi um desfecho muito emocionante.(Entrevista com Lucas,
agosto/2005)
Na explicação que dá sobre o que considera ser importante para as
crianças, Lucas evidencia objetivos muito mais amplos do que simplesmente um
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trabalho de coordenação motora. O que o professor parece valorizar são as
experiências da criança, suas possibilidades de se expressar e conhecer o
mundo que a rodeia. Essa percepção com relação aos interesses e
necessidades da criança é bem mais abrangente do que algumas das atividades
que o professor desenvolvia em sua sala. Em função da formação inicial, que
não contemplou satisfatoriamente as peculiaridades do trabalho com a criança
pequena, e da experiência profissional restrita, Lucas foi construindo suas
alternativas de trabalho experimentando atividades que lhe eram indicadas pelas
colegas professoras como adequadas e a partir das poucas orientações
oferecidas pela escola.
Na primeira semana de trabalho de Lucas, a coordenadora pedagógica
da Escola Amarela entregou ao professor, no horário do café, quando estávamos
reunidos na copa, duas folhas de papel ofício manuscritas. Segundo ela, aqueles
eram “os conteúdos” que o professor deveria trabalhar com as crianças. As
aspas na expressão “os conteúdos” foram uma observação da própria
coordenadora:
Esses são os conteúdos entre aspas, porque na educação infantil a gente
sempre vai e volta nos conteúdos. Tudo deve ser trabalhado no concreto,
sempre que possível.
Lucas pegou as folhas, olhou-as e agradeceu, destacando que precisaria de
toda ajuda possível. (Registro de conversa no refeitório, 07/06/2004)
As explicações da coordenadora, bastante vagas, talvez em decorrência
da ausência de uma proposta curricular que desse base à definição de metas e
objetivos para o trabalho com a criança pequena, não contribuíram muito para
oferecer a Lucas uma orientação mais segura. Como abordado no tópico de
apresentação da educação infantil em Juiz de Fora, no capítulo 3 desta tese, a
rede pública municipal de ensino não dispunha, à época em que se realizou a
pesquisa, de uma proposta curricular formalizada para a educação infantil.
A ausência, em muitos municípios, de propostas pedagógicas ou
curriculares para a educação infantil é uma decorrência da própria história do
atendimento à criança pequena. Inicialmente identificado unicamente com a
guarda e a prestação de cuidados de higiene e saúde, o modelo de educação
das instituições se identificava com a formação de hábitos, na perspectiva de
uma educação para a submissão. Nesse sentido, as rotinas e a própria disciplina
seriam educativas.
Posteriormente, os discursos que apregoavam a educação infantil como
redentora dos problemas da escola de ensino fundamental (então 1 º grau) não
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se traduziram em propostas efetivas de trabalho que considerassem as
especificidades das crianças pequenas. A conseqüência dessa história de
atendimento é que existem, hoje, "divergentes concepções sobre o modelo
pedagógico que deve ser adotado nas creches e pré-escolas” (Campos, 2002, p.
xiii) que oscilam entre a negação de um caráter pedagógico a essas práticas,
pois, segundo essa posição o caráter pedagógico impediria uma consideração
dos reais interesses da criança, até aquelas posturas que identificam o caráter
pedagógico das instituições de educação infantil com as práticas desenvolvidas
no ensino fundamental, numa versão adaptada das mesmas.
No caso de Juiz de Fora, o fim do programa que, na década de 1980
fundamentava-se nos pressupostos teóricos de Maria Montessori, não foi
acompanhado de outro tipo de orientação específica para o trabalho na
educação infantil. Uma consulta ao Programa de Educação Infantil da Secretaria
Municipal de Educação (1996) revela que o documento se organiza a partir da
listagem de conteúdos e metodologias de trabalho para as diferentes áreas do
conhecimento - Estudos Sociais, Ciências, Educação Artística, Música, Língua
Portuguesa, Matemática, Língua Portuguesa e Educação Física. Os consultores
que colaboraram na elaboração do Programa são professores licenciados em
diferentes disciplinas e que atuavam, à época, em escolas de ensino
fundamental e médio (antigos 1 º e 2
o
. graus). A análise do documento revela
que, embora haja uma preocupação em destacar peculiaridades do trabalho com
a criança pequena como, por exemplo, o desenvolvimento da autonomia e a
importância do jogo e da brincadeira, as orientações ao professor se apresentam
na forma de uma listagem de conteúdos previamente estabelecidos (por
exemplo, em Ciências, “O ser humano”; “Animais”, “Vegetais”, “O mundo que
nos cerca”).
A esse aspecto de fragmentação da proposta de trabalho com a criança,
aliam-se as mudanças sucessivas nas orientações oficiais. Sueli, uma das
professoras participantes da pesquisa, lembrou seu percurso como profissional
marcado por rupturas, descontinuidades e sobreposições de orientações que, na
verdade, desorientam. Trabalhando há vinte e um anos na rede pública
municipal, todos eles dedicados ao trabalho na educação infantil, Sueli fez uma
crítica contundente à falta de continuidade das orientações oficiais com relação a
este trabalho.
Nas escolas que eu passei sempre foi assim: o ano é picado. O ano de 2000 não
tem nada a ver com 1999. Eu acho que isso dificulta. Às vezes você está dando
coisa repetida, às vezes você poderia estar avançando muito mais. (...)E acho
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que também são as mudanças políticas. Eu já peguei na Prefeitura vários
métodos: já peguei o fônico, o construtivismo... e tinha o PAI, PAPPE? Que tinha
material montessoriano. Já fui para São Paulo, para o Instituto Montessori fazer
curso. Agora é uma miscelânea de coisas: o silábico... não tem aquela
continuidade. (Entrevista com Sueli, 10/08/2005)
No enunciado de Sueli, as orientações às quais ela já esteve submetida
ao longo de sua história de professora da educação infantil da rede pública
municipal de ensino são lembradas tendo como referência diferentes métodos de
alfabetização (fônico, silábico). O construtivismo também aparece como
referência, embora não seja possível compreender se a professora fala de uma
proposta mais ampla de trabalho com a criança ou se faz referência a um
enfoque mais restrito, voltado à construção da linguagem escrita. A professora
destaca a fragmentação e a descontinuidade das orientações advindas das
políticas públicas de formação dos professores e de orientação do trabalho
pedagógico. Esse caráter fragmentário obriga o professor a adotar novas
perspectivas de trabalho a cada mudança nas orientações oficiais, dificultando a
consolidação dos saberes que esses profissionais vão construindo ao longo da
trajetória profissional. Por estarem sempre recomeçando, as possibilidades de
avaliar os resultados do trabalho realizado redirecionando-o a partir de uma
seleção dos procedimentos considerados mais adequados, ficam limitadas. Face
à desorientação oficial, a escola se constitui no espaço privilegiado onde essas
orientações são buscadas e os pares, os formadores mais próximos. Entre os
colegas de trabalho são buscadas alternativas, a partir da troca de atividades,
sugestões sobre procedimentos para lidar com questões como disciplina,
relacionamento com as famílias, entre outras. Sueli destaca:
Eu nunca tive dificuldade de trabalhar. Eu gosto bem de trocar. Não gosto só de dar,
não. Eu também peço, porque tem professoras que são folgadas, querem que você
carregue nas costas (...) Tem uma professora, eu fui professora da filha dela, ela
falou: “nossa, eu estou desesperada!” Eu falei: “pode mandar uns [alunos] lá para a
minha sala para te dar uma aliviada, porque você tem que se estruturar.” (...) Eu já
peguei o segundo período sozinha aqui na escola, você não tem com quem trocar
uma idéia. (...) eu troco muito com a R. do 3
o
. período. Ela está sempre me dando
bilhetinho, cartãozinho, CD... eu acho muito enriquecedora e necessária essa troca.
(Entrevista com Sueli, 10/08/2005)
Essa rede de trocas, a que se refere Sueli, tem algumas regras implícitas,
como a professora deixa transparecer. Para ser ajudado, é preciso também
ajudar, portanto é preciso ser aceito nesse circuito de trocas. No caso de Lucas
parece ter havido essa aceitação. Ele próprio reconheceu que a ajuda das
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demais professoras foi essencial para sua “sobrevivência” na função de
professor de educação infantil.
Olha, a parte que você chega e não conhece nada, profissionalmente elas me
ajudaram muito com atividades, sugestões. Mas eu nuca fiz igual e acho que é
impossível fazer igual. Eu com a professora E., principalmente a professora E.
e a Frany, também do 1 º período, muito ‘jóia’, não guarda nada, gosta de
passar. Eu ficava feliz quando alguém me pedia uma sugestão. (Entrevista
com Lucas, agosto de2005)
Discutindo a formação contínua dos professores, Nóvoa (2002) destaca
que “A troca de experiências e a partilha de saberes consolidam espaços de
formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar
simultaneamente, o papel de formador e de formando” (Nóvoa, 2002, p. 39).
Entretanto, a despeito do caráter formador da relação entre pares, o mesmo
autor afirma que “A organização das escolas parece desencorajar um
conhecimento profissional partilhado dos professores, dificultando o investimento
das experiências significativas nos percursos de formação e sua formulação
teórica” (Id.Ibidem). No caso de Lucas é possível perceber que tanto sua
trajetória profissional – que mesmo bastante curta é marcada pela passagem por
várias escolas – quanto a própria organização da escola na qual o professor
trabalhava à época da realização da pesquisa, não favoreceram um tempo de
encontro entre os pares que permitisse uma reflexão partilhada sobre a prática,
conduzindo a uma formulação teórica dessa prática. É importante lembrar, aqui,
as palavras de Rosa que, embora já transcritas no capítulo 3 desta tese,
merecem ser repetidas “o que falta é isso, essa troca entre os professores, de se
reunirem. Trabalhando 15 horas semanais isso acabou, antes tinha (Notas de
campo, Escola Amarela, 10/05/2004). Evidenciando a falta de oportunidades de
encontro entre os professores da escola, Rosa aponta uma questão que diz
respeito à organização de outras escolas da rede municipal de ensino de Juiz de
Fora, que é a dificuldade de administrar o tempo destinado às ”atividades
docentes extra-classe”, previstas na lei municipal nº 09732/2000. Juntando-se a
esses fatores a precariedade da formação inicial do professor de educação
infantil, o resultado são práticas que se organizam a partir de atividades com um
fim em si mesmas, na maioria das vezes descontextualizadas e pontuais,
trocadas entre os docentes, como foi possível perceber ao longo do período de
observação nas escolas.
Como Lucas destacou, a despeito do apoio oferecido pelas colegas de
trabalho, há sempre um processo de recriação nessa troca de atividades,
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orientado pelas crenças e opções do professor com relação ao que ele julga
melhor, mais produtivo ou mais adequado à situação, como é possível perceber
no evento relatado a seguir:
Lucas havia pedido que as crianças guardassem os brinquedos quando chegou
uma criança de outra turma trazendo um material para o professor. O professor
pediu que eu ficasse com a turma alguns segundos enquanto ele iria saber do
que se tratava. Saiu da sala e voltou logo depois dizendo:
_ Pessoal, vamos fazer uma atividade aqui. Já mudou tudo. (olha para mim e
reafirma: mudou tudo.) É que 10 horas nós vamos ver o filme “Procurando
Nemo” e vamos fazer esta pulseira.
Lucas me explicou que a pulseira deveria ser um dedoche
40
, mas ficou muito
grande e virou uma pulseira.
-Para assistir ao filme tem que ir com a pulseirinha. (Notas de campo,
27/08/2004)
Na situação descrita, Lucas reinterpreta a atividade sugerida pela colega
porque, segundo ele, o dedoche ficou muito grande, mas faz isso buscando um
sentido para a atividade no contexto da rotina repentinamente modificada, como
é possível perceber quando o professor diz “já mudou tudo”: a pulseirinha seria
como um ingresso para entrar no cinema. Entretanto, a despeito da criatividade
do professor frente à situação, fica evidente que essa criatividade tem como
objetivo oferecer uma alternativa para uma situação pontual, que não está
inserida num projeto de formação mais amplo das crianças nem do próprio
profissional. A rotina é, de certa forma, improvisada, com mudanças repentinas.
O trabalho realizado responde a demandas imediatas, que se traduzem em
atividades com um fim em si mesmas, como a atividade de dobradura, filmada
na turma de Lucas e apresentada numa das reuniões com o grupo de
professores participantes da pesquisa.
A turma com a qual Lucas trabalhava na Escola Amarela era a mesma
turma que já havia estado sob a responsabilidade de Rosa e que, no segundo
semestre, passou a estar sob a responsabilidade de Sueli. Quando a filmagem
do trabalho de Lucas foi apresentada, o grupo de professores já havia assistido
àquela feita na mesma turma quando sob a responsabilidade de Rosa. Na
filmagem o professor aparece orientando as crianças na confecção de um
cachorrinho de dobradura. Nela o professor mostrou primeiro seu próprio
cachorrinho, já pronto, e depois foi mostrando às crianças como a atividade
devia ser feita, passo a passo. Na fita Lucas parecia entusiasmado, incentivando
40
O dedoche é um fantoche para ser colocado em um dos dedos da mão.
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as crianças, elogiando seus sucessos e estas, por sua vez, também pareciam
envolvidas.
Terminada a projeção do vídeo, perguntei ao professor como ele se
sentia com relação ao que havia observado, ao que ele respondeu: Eu acho que
foi direitinho.
Esse enunciado parece refletir a preocupação de Lucas com relação a
um julgamento do seu trabalho, tanto por mim como pelas professoras, todas
elas mais experientes que o professor.
Perguntei, ainda, por que Lucas havia escolhido a dobradura. O professor
justificou a escolha por ser aquela atividade, segundo ele, ideal para trabalhar o
controle motor, a atenção, a imaginação. Diante da resposta do professor,
questionei como ele chegara à conclusão de que aquela atividade poderia servir
a esses objetivos, ao que ele respondeu que "foi perguntando aos outros,
pedindo ajuda às colegas". Lucas destacou, ainda, que inicialmente imaginara
que as crianças fossem ter muitas dificuldades na realização da atividade e que
ficou surpreso com a autonomia delas.
A referência de Lucas ao fato de ter aprendido sobre os objetivos da
atividade com outras colegas provocou a contrapalavra de algumas professoras
do grupo, que também apontaram a importância que a interação com colegas de
trabalho tem e teve na sua aprendizagem da docência. Rosa, a professora que
havia trabalhado com o mesmo grupo de crianças antes de Lucas, pergunta se
pode dizer uma coisa:
Eu fui vendo o Lucas na fita e fui me reciclando. Eu vi como foi importante ele ter
deixado o desenho livre, isso foi desenvolvendo a imaginação das crianças... Eu
venho pensando muito sobre essa questão do desenho livre, porque minha filha
está sendo alfabetizada numa escola que usa o método natural e lá eles dão
muita ênfase ao desenho. Outro dia minha filha fez um desenho e pediu a ajuda
da irmã para escrever “obra de arte da L.” (...) então o desenho livre é realmente
importante. (Reunião com o grupo de professores, 25/10/2004)
Para compreender o enunciado de Rosa, é importante contextualizá-lo.
Algumas semanas antes de assistirmos à filmagem do trabalho de Lucas,
havíamos assistido a uma atividade realizada por Rosa na qual a professora
também havia feito uma dobradura (de flor) com o mesmo grupo de crianças.
Naquela situação a professora, em alguns momentos, foi diretiva com relação
àquilo que as crianças deveriam fazer durante a atividade, abrindo poucos
espaços para uma produção mais independente dos pequenos. Apesar de
comentar o trabalho de Lucas fazendo referência à escola onde sua filha estuda,
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e não ao seu próprio trabalho, o tema do enunciado de Rosa é sua própria
prática, sobre a qual ela reflete, uma vez que inicia seu enunciado com a
expressão “eu fui me reciclando”. Ao observar Lucas, Rosa vai refletindo sobre
sua prática como professora e as repercussões dela no desenvolvimento das
crianças. Nesse momento, quando uma atividade que a princípio se esgota em si
mesma - uma vez que a proposta da dobradura não estava ligada a nenhuma
outra que a antecedesse nem se desdobrou em outras atividades posteriores - é
discutida pelos professores, o processo de reflexão vai dando a ela novos
contornos. É no momento em que a prática é refletida com o outro que um saber
sobre a profissão vai também se construindo, à medida que se buscam
argumentos para validar as ações. Esse movimento aponta as possibilidades de
produção de teoria a partir da prática e o caminho necessário a essa produção,
que seria o de “pensar os professores enquanto coletivo” (Nóvoa, 2002, p. 45).
No caso dos professores observados nesta pesquisa, foi possível
perceber que esse coletivo, que informa as práticas realizadas pelos
professores, é formado pelos colegas de profissão, mas também pela própria
criança. Na relação com o professor, a criança é o outro que, quando enfrentado
como outro, com todas as suas peculiaridades, indica os caminhos a serem
percorridos pelo docente para dela se aproximar.
Lucas, a princípio, teve dificuldades em encontrar o modo mais eficaz de
se conduzir como professor de educação infantil, em função de sua
inexperiência com crianças pequenas. Entretanto as próprias crianças foram
sinalizando a forma pela qual seria possível chegar até elas e Lucas parece ter
sido sensível a esses sinais.
Logo nos primeiros dias de observação na sala de atividades de Lucas,
uma situação evidenciou a pouca experiência do professor no trato com os
pequenos:
As crianças brincavam na sala de atividades. Os meninos faziam construções
com blocos. Um deles veio me mostrar um dos blocos de construção e disse que
era um “anel mágico”. As meninas, por sua vez, vieram me mostrar os “bebês”,
que na realidade eram bichinhos de pelúcia, que embalavam ao colo. Lucas, que
estava arrumando folhas em sua mesa perguntou: "- Tem neném aí?" As
meninas levaram os “bebês” para que ele visse. Ele olhou os bichinhos no colo
delas e afirmou:"- Mas isso é um coala, não é?" As meninas responderam que
era um bebê e o professor reiterou:" - É um coala sim!" (Notas de campo,
24/06/2004)
Nesse evento, o professor revela uma inabilidade em lidar com a situação
imaginária criada pelas crianças. Enquanto elas, no brinquedo, trabalham no
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100
plano da fantasia, imaginando que os bichinhos de pelúcia são bebês, Lucas se
mantém preso ao real: são coalas e não bebês que as meninas embalam. O
professor parece desconhecer, ou pelo menos ter dificuldade de lidar, com o fato
de que a criação de situações imaginárias é uma forma de expressão da criança,
sendo esta uma peculiaridade do pensamento infantil e uma fonte importante de
aprendizagens. Entretanto, a convivência com os pequenos parece ter
desenvolvido no professor a capacidade de se despregar do real e exercitar a
imaginação criativa. Algumas semanas depois, ao realizar com a turma uma
atividade de dobradura - aquela escolhida pelo professor para ser registrada em
vídeo e, posteriormente, discutida no grupo de professores que fizeram parte da
pesquisa - na qual as crianças deveriam criar um cachorrinho, Lucas mostra a
dobradura que ele próprio fez, inventa um nome para o bichinho (Pit) e incentiva
as crianças a realizarem a atividade afirmando:
O Pit está muito sozinho, ele quer amiguinhos para brincar com ele. Vamos fazer
amiguinhos para o Pit? (Notas de campo, 28/06/2004)
Além de aprender a usar a imaginação criativa para se aproximar dos
pequenos, Lucas foi aprendendo também a brincar com as crianças a partir do
momento em que passou a percebê-las em suas singularidades, como é
possível perceber na situação transcrita a seguir:
Cheguei à sala onde três meninos brincavam com blocos de encaixar (de
madeira e de plástico) numa das mesas. Logo depois chegou R., uma das
meninas. Lucas comentou comigo: "- Ela é bonitinha, não é?" Concordei com um
movimento de cabeça. Lucas elogiou a calça comprida de R., bastante colorida.
Isso fez com que os outros meninos começassem a comentar sobre suas roupas
também. Eles falavam com desenvoltura e Lucas participava da conversa
animado, fazendo perguntas e respondendo às perguntas das crianças.(...)
Lucas se aproximou da mesa onde estava R. e começou uma construção com
blocos de plástico. Depois, foi até à mesa onde estavam os meninos e começou
a fazer uma enorme torre com blocos de madeira. Todos ficaram atentos, na
expectativa, a cada nova peça colocada, de que a torre caísse.(...)
As demais crianças do grupo chegaram e as brincadeiras continuaram: imitaram
animais, correram em torno da mesa, construíram armas de brinquedo para
matar um dragão, fizeram um trem, uma cidade, um circuito. Começaram a falar
sobre o que o trem carregava em seus vagões. Lucas participava da conversa:
- O que o trem pode carregar?
- Lixo!
Só isso?
Olhei para o calendário: está atualizado até o dia de ontem. (Notas de campo,
Escola Amarela, 18/06/2004)
A situação descrita acima, ocorrida já no fim do primeiro semestre letivo,
mostra o professor em interação com as crianças. Nessa interação, ele se coloca
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101
como parceiro das brincadeiras, deixando-se guiar por aquilo que as crianças
sinalizam em termos de seus interesses e de sua forma própria de lidar com a
realidade. No momento em que essa interação se dá, Lucas mobiliza seu saber
brincar como forma de aproximação com os pequenos. Não se trata de saber
propor uma brincadeira, ou saber conduzir uma brincadeira com objetivos
pedagógicos pré-definidos. Trata-se de brincar junto, de se envolver
genuinamente nos enredos que os pequenos criam e, nessa relação do adulto
que brinca com a criança que brinca, viver situações de aprendizagem para
ambas as partes: a criança aprende sobre ela mesma, a se pronunciar sobre
aquilo que vive e o adulto aprende como se conduzir no mundo dos pequenos
para chegar até eles, um mundo que ele, adulto, também já habitou, mas cuja
memória muitas vezes se perdeu.
Retornando ao ponto onde iniciamos a análise da experiência de Lucas
na educação infantil, seria possível afirmar que o professor classifica o ano em
que essa experiência foi vivida como “um ano espetacular” pelas possibilidades
de aprendizagem que o professor tivera ao longo desse ano. Essas
aprendizagens tiveram como fonte as relações com o outro - os colegas de
trabalho, as crianças - mediadas pelo (s) contexto (s) no qual o professor
realizou seu trabalho e foram importantes para que o professor sobrevivesse
aos primeiros tempos na profissão. Entretanto, poderíamos nos indagar se essas
aprendizagens se traduziram em saberes que Lucas poderá mobilizar ao longo
de sua trajetória profissional, ou se ficaram restritas à condição de vivências
mais ou menos prazerosas. Inclusive porque a trajetória de Lucas como
professor de educação infantil, no momento, foi interrompida. Em virtude de sua
condição de professor contratado, no ano de 2005 não houve a possibilidade de
Lucas assumir um novo contrato. Atualmente o professor realiza um trabalho
burocrático na Secretaria de Educação de Juiz de Fora, embora afirme:
Assim que a Prefeitura me chamar e eu for efetivado com certeza vou dar aulas,
porque gosto.(Entrevista com Lucas, agosto/2005)
Como a experiência de Lucas pode contribuir para uma compreensão
dos saberes mobilizados pelos professores da pré-escola? O que faz com que
as situações vividas possam se traduzir em experiências e o professor em
sujeito da experiência? Em que condições o vivido é incorporado como uma
experiência e transformado num saber sobre algo? A partir da análise da
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102
trajetória de Patrícia como profissional da educação infantil é possível refletir
sobre essas questões.
5.2
Ser professor de educação infantil “em trânsito”
Patrícia chega empurrando seu carrinho. É um carrinho de supermercado, conseguido
como doação para a escola. A professora revestiu o carrinho com uma capa de tecido
amarelo estampado com corações vermelhos. Dentro do carrinho vão os materiais de
trabalho da professora: tesouras, cola, papéis coloridos, livros de história, o que estiver
sendo trabalhado com as crianças no momento. Patrícia, empurrando seu carrinho pelos
corredores da escola, é uma professora literalmente "em trânsito".
(Notas de campo - Escola Verde - 27/05/2004)
Patrícia tinha 27 anos à época em que observei seu trabalho e estava
desde os 19 no Magistério. Segundo Patrícia, a escolha da profissão foi
influenciada pela mãe e pela madrinha, também professoras. Entretanto,
esclarece que ser professora não é uma profissão muito valorizada em sua
família e que o pai desejava que ela fizesse a Faculdade de Veterinária:
Porque além do magistério eu tinha vontade de cuidar de bichos. Então ele
falava: faz Veterinária! Só que Veterinária não tem em Juiz de Fora, eu teria que
sair da cidade. Fiquei com medo de morar sozinha, longe da minha mãe... Aí eu
preferi continuar na idéia do magistério mesmo. (Entrevista com Patrícia -
outubro de 2004)
Por uma “opção contingente”, uma vez que não há faculdade de
Veterinária na cidade, Patrícia escolheu o Magistério. Seu percurso como
professora é marcado pela passagem por diversas escolas e por diferentes
séries. No início da carreira, antes de fazer o concurso para o magistério público
municipal, teve uma experiência de trabalho com bebês, numa creche particular
que atendia a crianças de classe média, onde atuava como "estagiária".
Eu fiz estágio, mas na verdade não assumi a função de estagiária porque era só
eu para tomar conta de quatro nenéns: dois de quatro meses, um de seis e outro
de oito meses. Passava cada aperto...(Entrevista com Patrícia - outubro de 2004)
A experiência na creche representou o ingresso da professora na
educação infantil. Como foi vivido esse ingresso? A formação recebida na escola
Normal contribuiu para que ela enfrentasse os desafios do início da vida
profissional?
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103
(...) Eu fiquei até doida lá. A moça que me ajudava só chegava às 10h:30min, até
lá eu ficava sozinha com as crianças. No começo eu falei para minha mãe e ela
falou assim: 'pega sua boneca que eu vou te ensinar.' Eu comprei fralda e ela me
ensinava a trocar fralda na boneca e eu fui aprendendo assim. (Entrevista com
Patrícia - outubro de 2004)
O ingresso de Patrícia na educação infantil representa uma situação
exemplar do modo como muitas outras professoras iniciam a docência nessa
etapa da educação básica. Começando pela creche, com salário e status de
estagiária, porém enfrentando os desafios do profissional formado, com
responsabilidades incompatíveis com o salário e com pouca - ou nenhuma -
orientação para desempenhar suas tarefas. Na ausência de subsídios advindos
da formação inicial, as professoras, em geral, lançam mão das experiências
vividas no âmbito da vida privada, como mães. No caso de Patrícia, ainda
bastante jovem e sem filhos, a experiência de menina que brinca de boneca.
Mas foi uma experiência ótima. Quando a AMAC
41
me ofereceu um cargo para
trabalhar como recreadora - o cargo é recreadora, mas você acaba sendo
berçarista - eu preferi não pegar. É muita responsabilidade. Tem que ser alguém
com mais experiência. (Entrevista com Patrícia - outubro de 2004)
O enunciado de Patrícia revela a situação comum entre os profissionais
de creche, em que a falta de uma definição clara de atribuições e
responsabilidades gera diferentes denominações para um mesmo profissional:
berçarista, recreadora, pajem etc. Embora faça uma avaliação positiva da
experiência, a professora optou por não permanecer na creche, reconhecendo-
se inexperiente para a responsabilidade do cargo. Patrícia foi, então, buscar um
outro norte para sua vida profissional. Depois de fazer o Vestibular para
Pedagogia e começar o curso na Universidade Federal de Juiz de Fora,
ingressou no magistério público municipal através de concurso público,
inicialmente como contratada, aguardando chegar sua vez de ser chamada para
efetivação. Começou, aí, a história de "profissional em trânsito" de Patrícia.
No primeiro ano eu trabalhei no Borboleta
42
, numa salinha da Prefeitura dentro
do Estado
43
.(...) Lá eu fiquei um ano. Com contrato, a cada ano eles vão
mudando o professor de lugar, eles não deixam no mesmo lugar. No outro ano
não tinha mais vaga lá, eu fui para Vila Olavo Costa. (...) Aí teve uma turma de
efetivação, fui para Vila Ideal. Lá não tinha educação infantil, peguei 1ª série. (...)
No outro ano fui para Santos
Dumont, aí eu fui efetivada. Não tinha também pré,
eu ficava numa tristeza danada.(...) Como eu já era efetivada, peguei um
41
Associação Municipal de Apoio às Creches.
42
Bairro da cidade de Juiz de Fora.
43
Refere-se a turmas de educação infantil que funcionam com professores da Prefeitura em
escolas estaduais
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104
segundo cargo.
44
Nesse novo cargo comecei como eventual, rodei muita escola
da Prefeitura. Terminou o ano em Santos Dumont, fiquei sabendo que tinha vaga
aqui nessa escola (a Escola Verde), pedi transferência e peguei o 3º período.
Não consegui pegar duas salas [estar na condição de professora regente]
nenhum ano. Todo ano era só como eventual no segundo cargo. (Entrevista com
Patrícia - outubro de 2004)
Assim como Lucas, Patrícia também teve uma trajetória no magistério
caracterizada pela passagem por diferentes escolas. Ao longo de 8 anos,
trabalhou em uma escola por ano (sem computar as escolas por onde passou no
cargo de professora eventual), contingência da condição de professora
contratada, que não tem a possibilidade de escolher a escola nem o segmento
onde vai atuar. Mesmo preferindo trabalhar com educação infantil, Patrícia
esteve também em turmas do ensino fundamental, atuando em classes de
alfabetização. Esse período da vida profissional representou, para a professora,
um novo desafio.
Porque eu achei que no curso de Magistério eu tivesse aprendido como
alfabetizar uma criança, mas eu vi que não tinha aprendido coisa nenhuma. Aí
eu comecei a estudar sobre métodos de alfabetização, ali é que eu fui criar
minha maneira de alfabetizar. (Entrevista com Patrícia - outubro de 2004)
Diferentemente do que aconteceu quando começou no trabalho na
creche, em que o auxílio para enfrentar os desafios profissionais fora buscado na
experiência da vida privada, com a mãe e as bonecas, diante da turma de 1ª
série do ensino fundamental, Patrícia buscou fundamentação no estudo das
questões relativas à alfabetização, pesquisando sobre os métodos para criar sua
própria forma de alfabetizar. Em comum com a situação enfrentada quando
iniciou o trabalho com os bebês, a constatação de que a formação inicial não
havia dado subsídios para enfrentar a vida profissional. A experiência de Patrícia
parece apontar a identificação do trabalho com a criança pequena com o espaço
da vida privada, onde a professora buscou os elementos orientadores da
atuação profissional, em contraposição ao trabalho como alfabetizadora, para o
qual a professora buscou subsídios no estudo da teoria.
A volta de Patrícia ao campo da educação infantil se deu a partir do
ingresso na Escola Verde onde, já efetivada, poria fim, pelo menos em parte, à
condição de "professora em trânsito". Entretanto, a possibilidade de ficar
trabalhando na mesma escola nos dois turnos acabou criando uma outra
44
Um novo contrato, para trabalhar mais 20 horas.
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situação "de passagem" para Patrícia.
No fim do ano passado a N. (diretora da escola) me falou: "a gente não tem
professora para ficar no Projeto. Você não está a fim de pegar?" Aí eu falei:
mas é a minha salinha, né? Meus aluninhos... (Entrevista com Patrícia - outubro
de 2004)
O Projeto a que a professora se refere tem uma história nas escolas da
rede municipal de Juiz de Fora, abordada no capítulo 3 desta tese, que se inicia
com a lei municipal que prevê quinze horas de trabalho efetivo com os alunos
em sala de aula e cinco horas destinadas a “atividades docentes extra-classe",
que podem ser cumpridas ou não na escola. Esse novo regime de trabalho
exigiu adequação das instituições, que deveriam estruturar projetos de trabalho a
serem desenvolvidos com os alunos nas cinco horas em que os professores
responsáveis pelas turmas estariam envolvidos nas “atividades docentes extra-
classe". Assim, cada escola elabora seus projetos de trabalho a partir das
necessidades que identifica como prioritárias e que são explicitadas no Projeto
Pedagógico da instituição. Em algumas escolas o foco é colocado no trabalho
com uma língua estrangeira, em outras o trabalho com música, artes etc. O
modo como os projetos são desenvolvidos também pode variar: em algumas
instituições os professores responsáveis pelos projetos trabalham em várias
turmas num mesmo dia e o professor responsável pela turma tem alguns tempos
de liberação, podendo chegar à escola mais tarde, sair mais cedo, ou ter tempos
livres no meio do horário; em outras, a cada dia os professores responsáveis
pelo Projeto se ocupam de uma turma, ficando o professor regente dispensado
do comparecimento à escola. Essa forma de estruturação do trabalho
pedagógico, que a princípio deveria favorecer a criação de espaços de formação
e encontro do corpo docente pela liberação para as “atividades docentes extra-
classe”, na prática tem apresentado problemas, apontados pelos próprios
professores.
Patrícia atende a todas as turmas do 2º e 3º períodos (trabalha com
crianças de 5 e 6 anos), desenvolvendo atividades de contação de histórias,
dramatizações, música, pintura, recorte e colagem. Portanto, enquanto
professora do Projeto, a condição de “professora em trânsito” hoje se constitui
como a característica principal de sua atuação profissional. Quais as
repercussões dessa trajetória, marcada pela passagem por diferentes
instituições e, dentro de uma mesma instituição, por diferentes turmas, na
constituição de uma identidade pelos professores de educação infantil? Que
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papel essa situação precária desempenha na constituição dos saberes
profissionais pela professora?
Baseando-se em estudo desenvolvido por Mukamurera (1999, apud
Tardif, 2002), Tardif (2002) chama “situação precária” àquela dos professores
que ainda não conseguiram alcançar uma situação estável na carreira, vivendo-a
de maneira instável, sujeitos a freqüentes mudanças de natureza diversa (turma,
escola etc.). As dificuldades vividas por professores em situação precária são
várias. Esses professores sentem-se frustrados por não conseguirem viver uma
relação mais estável com os mesmos alunos. Além disso, os professores em
situação precária se encontram em constante recomeço no que diz respeito à
preparação das aulas e à adequação de sua prática aos programas, o que exige
deles um grande investimento de energia e tempo para cumprirem suas tarefas.
Como estão sempre recomeçando nas diferentes escolas por onde passam,
encontram-se, por conseguinte, numa posição em que se vêem
permanentemente na contingência de provar sua competência.
Em suma, os professores em situação precária, como definidos por
Tardif, ou “em trânsito” , como me refiro à Patrícia neste trabalho, estão sob
permanente pressão psicológica, experimentando sentimentos de frustração e
sendo mais exigidos em termos de investimento na profissão que os professores
que gozam de maior estabilidade. Nesse sentido, embora há oito anos no
magistério, Patrícia ainda não conquistou uma estabilidade nos termos definidos
por Huberman: "Num dado momento as pessoas 'passam a ser' professores,
quer a seus olhos, quer aos olhos dos outros" (Huberman 2000, p. 40).
A condição de Patrícia de professora do Projeto trouxe as questões
relativas a esse lugar de passagem como eixo da discussão na reunião com o
grupo de professores na qual se discutiu a prática da professora em questão.
Logo no início da reunião, quando foi solicitada pela pesquisadora a se
apresentar ao grupo, a professora fez referência ao fato de ser "professora do
Projeto", o que denota a centralidade que Patrícia atribuía a essa condição na
constituição de sua identidade profissional, pelo menos naquele momento de sua
vida na Escola Verde.
Bom, meu nome é Patrícia. Trabalho na educação infantil, na Escola Verde,
junto com a Geisa. Só que eu
dou aula
45
no Projeto.(Reunião com o grupo de
professores, 21/10/2004)
45
Grifos meus.
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De imediato a referência de Patrícia a dar aula no Projeto mobilizou o
grupo, que tomou esse dado como objeto de discussão, mesmo antes da
projeção da filmagem da prática da professora. Rosa imediatamente perguntou:
- Como é o Projeto lá? [referia- se à escola onde Patrícia trabalha]
- É... a gente dá os conteúdos
que tem na grade curricular, só que de uma
maneira mais lúdica, com teatrinho, música, conta uma história, então dentro da
arte a gente desenvolve, mas em cima do
conteúdo que a escola fixou para cada
período. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004)
O esclarecimento de Patrícia provocou a contrapalavra de outras
professoras do grupo que também já atuaram no Projeto, motivando, ainda,
algumas perguntas sobre como este era desenvolvido na escola, até que
convidei o grupo a conhecer um pouco mais o trabalho da professora a partir da
projeção da fita de vídeo.
Na situação filmada, Patrícia aparecia desenvolvendo com um grupo de
crianças de 5 e 6 anos uma dramatização ligada às comemorações do dia do
Índio. As crianças cantavam uma música que narrava o encontro de um valente
indiozinho com um leão feroz e sua luta para dominar o animal. A história era
dramatizada pelas crianças, que usavam máscaras feitas pela professora. A
dramatização foi repetida diversas vezes, com diferentes grupos de crianças. Ao
contrário do que acontecia na música, na dramatização a criança que
representava o indiozinho era sempre dominada pelo leão, exceto na última
apresentação onde, finalmente, o índio dominou o leão com grande algazarra da
platéia que, inclusive, gritava alguns palavrões. Durante a projeção do vídeo
Patrícia cantarolava a música que servia de base à apresentação das crianças,
sorrindo, enquanto as professoras observavam o vídeo e também sorriam,
fazendo comentários entre si e com Patrícia.
Terminada a apresentação do vídeo, a professora sorriu, envergonhada
(cobriu o rosto com as mãos). Aparentemente estava satisfeita com o que vira.
Sugeri, então, que Patrícia falasse um pouco sobre suas impressões acerca de
seu trabalho e a professora começou a relatar como o percebia:
O Projeto-Faz-de-Conta, como eu falei, a gente vai trabalhando os conteúdos.
Às vezes, na conversa com as professoras, a gente procura trocar, ver o que
elas vão fazer para a gente não fazer a mesma coisa. O meu trabalho não
impede que elas façam a mesma coisa. Eu gosto de perguntar antes o que elas
vão fazer para não ficar repetindo, não cansar as crianças. (Reunião com o
grupo de professores, 21/10/2004)
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As professoras foram fazendo perguntas à Patrícia: como fazia para
adequar as atividades às diferentes faixas etárias, já que trabalhava com
crianças de 5 e 6 anos? Como definia os temas a serem trabalhados? Com
quantas turmas trabalhava?
Respondendo às colegas, Patrícia foi desenvolvendo um processo de
reflexão sobre sua prática, do qual foram emergindo descobertas, contradições e
uma consciência de sua situação na escola. Nesse processo estiveram em jogo
relações alteritárias, em que os professores, a partir de seu horizonte social,
marcado por suas experiências de vida e profissionais, ofereciam diferentes
ângulos de visão para as questões que iam sendo levantadas. A principal delas
dizia respeito à condição de professora do Projeto em que Patrícia se
encontrava. Ela abordou as dificuldades de seu trabalho, entre elas os
problemas de disciplina entre as crianças, um aspecto identificado durante o
período de observação da prática da professora, como descrevo a seguir .
As crianças estavam especialmente agitadas hoje: batiam os pés no chão,
brigavam, gritavam... Pareciam testar a capacidade da professora em suportar a
algazarra, mas Patrícia buscava manter a calma, tentando contornar a situação.
Finalmente a professora disse: “chega de falta de educação”. Trocou alguns
alunos de lugar e a situação se acalmou um pouco. (...)
A professora começou a contar uma história, mas uma criança caiu da cadeira e
o grupo se desarticulou outra vez. (...) A indisciplina chegou a tal ponto que
Patrícia chamou a secretária da escola para retirar da sala 4 meninos e levá-los
para uma conversa na secretaria. (Notas de campo – Escola Verde –
18/05/2004)
Os problemas em manter a atenção e o envolvimento das crianças,
vividos não apenas por Patrícia como também por outras professoras da Escola
Verde, motivaram uma solicitação por parte dessas últimas para que Patrícia
fizesse um trabalho voltado a aspectos atitudinais, como explica a professora.
Então elas falaram: "você então não trabalha os conteúdos do folclore, porque
isso acaba trabalhando o ano inteiro, e pega mais os sentimentos
46
. 'Bola' uma
coisa interessante e dá”.Aí, assim eu fiz: contei uma lenda ou outra em agosto e
fiquei mais por conta dos sentimentos, para ver se eles [as crianças] davam uma
melhorada. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004)
A fala de Patrícia expõe uma das principais contradições presentes no
modo como o modelo dos projetos vem sendo desenvolvido não apenas na
escola onde a professora atua, como será possível perceber a partir das falas de
outros professores do grupo. Tal fato decorre da fragmentação do tempo,
46
Grifo meu.
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imposta pelo modo como as cinco horas para "atividades docentes extra-classe"
vem sendo administrada nas escolas da rede pública municipal, uma
fragmentação das relações entre os docentes e entre esses e as crianças.
Os projetos são desenvolvidos por professores de áreas específicas
(música, artes plásticas, língua estrangeira etc), definidas no projeto pedagógico
de cada instituição. Em algumas escolas, inclusive em turmas de educação
infantil, esses professores trabalham em horários alternados, ao longo da
semana, ficando o professor regente, nesses horários, liberado para as
atividades docentes extra-classe. Nesse caso os professores regentes,
dependendo de seus horários de liberação, podem sair mais cedo em alguns
dias, chegar mais tarde em outros, ou ter horários livres no meio de seu dia
letivo. Em outras escolas os tempos destinados às atividades docentes extra-
classe de cada professor são concentrados num único dia da semana, no qual
as crianças têm, por exemplo, atividades de música, inglês e educação física. As
cinco horas para atividades docentes extra-classe do professor regente ficam
concentradas nesse dia no qual, em geral, ele fica dispensado de comparecer à
escola.
Como os professores responsáveis pelo Projeto não têm muitas
oportunidades de encontro com os professores regentes, a idéia do Projeto
enquanto eixo articulador do trabalho pedagógico é substituída pela
fragmentação dos tempos dos professores na escola, da qual decorre, entre
outras conseqüências, um tipo de trabalho marcado pela separação entre
aspectos cognitivos, afetivos, estético-culturais, como é possível perceber no
relato de Patrícia. Nele a abordagem do folclore, por exemplo, é vista como algo
distinto do trabalho com os sentimentos. No caso da educação infantil, o modelo
de aulas ministradas por um mesmo professor em diferentes turmas e em
horários pré-estabelecidos e fragmentados mostra uma reprodução, na
educação infantil, da estrutura de organização do tempo adotada na segunda
etapa do ensino fundamental e também no ensino médio. A adoção desse
modelo ignora várias peculiaridades da criança pequena: o fato de que ela
necessita de tempo para envolver-se nas atividades propostas; a importância da
referência do adulto para sua segurança e o desenvolvimento de sua autonomia;
a forma global com a criança se desenvolve, entre outras questões. Além disso,
essa perspectiva de tempo fragmentada, característica da dimensão técnico-
racional abordada no capítulo 3 desta tese, confronta-se com a dimensão do
tempo tal como vivida pelos professores, que seria a dimensão fenomenológica.
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Essa diferença entre as dimensões de vivência do tempo apareceu no
relato de Geisa, outra professora participante da pesquisa e que trabalhava na
Escola Verde, com Patrícia. Geisa refletia sobre os problemas que percebia no
modo como o projeto vinha sendo desenvolvido naquela escola. Suas reflexões
apareceram tanto na entrevista que realizei com ela quanto em registros
reflexivos, realizados pela professora num caderno ao qual tive acesso:
Tinha essa questão do tempo, aquelas coisas muito picadas, aquelas merendas
cada dia num horário diferente, que era uma coisa muito louca para as crianças.
E a gente não podia fazer um trabalho tão continuado, porque no meio do
trabalho entrava a aula da Patrícia. (...)Acho que a gente não tinha uma hora e
meia juntos [a professora e as crianças], sem nenhuma interrupção. Eu ficava
muito perturbada, a minha personalidade. Acho que precisava de um tempo
contínuo com eles [com as crianças]. (Entrevista com Geisa, 2005)
A questão do ritmo e da rotina fixa, tão importante para as crianças pequenas,
não está sendo possível de se estabelecer por causa dos diversos horários dos
professores. Assim, temos que procurar o máximo de estabilidade no dia-a-dia,
para que as crianças fiquem mais tranqüilas e mais confiantes. (Caderno de
registros de Geisa, de fevereiro/março de 2004)
É possível perceber que a professora reconhece a importância de rotinas
estáveis para a criança pequena e que o fato de não haver a possibilidade do
estabelecimento dessas rotinas, em função da organização do tempo dos
professores na escola, é um dado que repercute não apenas em seu trabalho
com as crianças, como também em sua própria personalidade, pela insatisfação
da professora com os resultados de seu trabalho.
Como a professora Geisa reconhece, o modo como o tempo dos
professores era organizado na Escola Verde não permitia um trabalho que
tivesse continuidade. Na ausência de uma proposta mais articulada, elaborada a
partir das reflexões dos professores e considerando as reais necessidades da
criança, o foco do trabalho recaía em conteúdos tomados isoladamente, aspecto
também abordado na análise da experiência de Lucas na educação infantil.
Nessa situação, a prática do professor também se fraciona, o que faz com que,
muitas vezes, o docente sinta-se perdido, como a própria Patrícia destaca em
sua entrevista:
Eu estava me perdendo, toda hora eu tinha que olhar lá para não me perder
durante o ano. Aí eu comecei a fazer os Projetos de acordo com os conteúdos
que estão sendo trabalhados e escrever tudo o que eu posso trabalhar dentro
daquele tema ali, aí eu não me perco.(Entrevista com Patrícia, outubro de 2004)
O enunciado de Patrícia evidencia a desorientação em que a professora
se encontrava em função do modo como vivia o tempo do seu trabalho,
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passando por várias turmas. Esse sentimento de desorientação tinha
repercussões no desenvolvimento das crianças, assim como na construção dos
saberes da experiência pela professora. Quais seriam essas repercussões? Num
contexto de passagens por diversas escolas e turmas em períodos relativamente
curtos de tempo, como poderíamos compreender a noção de experiência?
De acordo com Tardif (2002), a experiência com os pares e a prática
cotidiana da docência seriam fontes das quais emanam os saberes da
experiência que seriam, por sua vez, uma modalidade de saber ao lado de
outras (saberes pessoais, saberes profissionais, saberes advindos da formação
escolar e saberes provenientes dos programas e livros didáticos). Ainda segundo
o autor, os saberes da experiência seriam amplamente valorizados pelos
professores enquanto instrumentos capazes de auxiliá-los nos desafios que a
prática profissional impõe quotidianamente. Os saberes da experiência não
seriam, entretanto, decorrentes de uma construção individual dos professores.
Em tese de doutorado na qual analisa as condições de produção e
circulação dos saberes da experiência de professores das séries iniciais,
tomando como referencial teórico o conceito de habitus de Bourdieu, Nunes
(2004) destaca a importância dos contextos institucionais na produção e
circulação desses saberes. Uma condição para essa circulação seria, ainda, a
reflexividade dos professores, que cria possibilidades de ver de outra forma as
situações vivenciadas e criar novas formas de agir. Essa reflexividade não se dá
no isolamento, mas está condicionada à possibilidade de trocas entre os sujeitos
que partilham dos mesmos problemas e desafios no cotidiano das instituições.
Nos casos de Patrícia e de Lucas, a passagem por diversas escolas e,
dentro de uma mesma escola, por diversas turmas num curto período do tempo,
além da ausência de uma definição mais clara com relação aos objetivos do
trabalho com a criança pequena, fazia com que a experiência desses
professores ficasse restrita a uma busca de alternativas para situações
imediatas. A experiência ficava reduzida à condição de vivência, pois a falta de
condições institucionais para uma reflexividade com relação a essa experiência a
mantinha na condição de resposta aos desafios do momento, do tempo presente
em que ela se esgotava. Poderíamos, então, tentar compreender a experiência
profissional desses professores tendo como referência a relação que eles
estabelecem, através da sua atividade docente, com sua própria história
enquanto profissionais da educação infantil, com apoio no conceito de
experiência tal como formulado por Walter Benjamin.
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Segundo Gagnebin (1994), o conceito de experiência é um conceito
central na filosofia de Walter Benjamin, intelectual alemão que viveu entre 1892
e 1940. Ao empreender uma crítica à sociedade moderna, Benjamin aponta o
enfraquecimento da experiência ("Erfahrung"), relacionando-a a outro conceito, o
de experiência vivida ("Erlebnis"), que seria própria ao indivíduo solitário
(Gagnebin, id.). Para Benjamin, a perda da capacidade de narrar suas
experiências, de modo a transmiti-las como um legado às gerações futuras, seria
uma conseqüência do isolamento em que vive o homem moderno.
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser
contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser
transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por
um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando
sua experiência? (Benjamin, 1994, p. 114)
Ainda segundo Gagnebin, para Benjamin, entre outras condições, a
realização plena da experiência requer uma relação com o tempo que permita
"uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra
unificadora” (Gagnebin, id., p. 11). Esse tempo seria característico do processo
de produção num ritmo artesanal, ausente na perspectiva do trabalho em cadeia,
próprio do modo de produção capitalista. Transpondo essas reflexões para a
análise dos ritmos de trabalho dos professores que participaram da pesquisa,
poderíamos afirmar que, num contexto em que esses profissionais estão sempre
de passagem pelas escolas e/ou turmas, eles não se constituem artesãos de
suas práticas, mas as executam na perspectiva do trabalho em série, do qual o
carrinho que Patrícia empurra pelos corredores da escola é uma metáfora. Não
há tempo para que o professor se relacione de forma mais próxima com seus
pares e nem mesmo com as crianças. Passando de escola em escola, de sala
em sala, em intervalos de tempo fracionados, o professor é o operário da linha
de montagem, que não consegue visualizar seu trabalho como um todo. Nesse
contexto, o trabalho fica reduzido à vivência de situações que não se traduzem
em experiência, no sentido que Walter Benjamin dá ao termo. A fragmentação
do tempo conduz à fragmentação dos sujeitos, que não vivem uma relação com
os saberes que produzem numa perspectiva integradora, mas sim a partir da
lógica da fragmentação, em que os professores são executores de práticas que
não se consolidam num corpo de saberes que lhes permitam uma maior
autonomia e segurança no exercício da docência.
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Assim como o trabalho do professor, seus saberes e suas relações
também se fragmentam no espaço da instituição, como é possível perceber no
enunciado de Patrícia.
No Projeto eu me aproximei mais da diretora e da supervisora, até
porque a gente está sempre trocando idéias, mas me distanciei mais das
professoras. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004))
Patrícia declara estar mais próxima da diretora e da supervisora, suas
interlocutoras mais constantes, mas, em contrapartida, reconhece-se distante
das professoras, com as quais afirma nunca conseguir se reunir. As
conseqüências desse processo de fragmentação são sentidas tanto no
comportamento das crianças, manifestando-se na agitação ou indisciplina,
quanto na avaliação que a professora faz de sua atuação profissional. Ao falar
do projeto de trabalho com os sentimentos, que vem desenvolvendo há alguns
meses, Patrícia avaliou:
Eu fui estendendo isso até agora, mas o resultado é mínimo, porque eles não
levam muito a sério... Você começa a conversar e eles dizem: "Ih!!!" (Reunião
com o grupo de professores, 21/10/2004)
No grupo, essa situação foi refletida também por outros professores que
já viveram a experiência de trabalho no Projeto.
Rosa: - Eu já trabalhei no Projeto igual a você. Eu também tentava me
aproximar mais da direção e da supervisão para fazer coisas diferentes do que
a professora fazia. Eu fazia em todas as turmas a mesma atividade, mas tinha
uma turma de 3 º período que eu não conseguia. Eu saí no final do ano sem
perceber muitos resultados. Eu estou lembrando... (Reunião com o grupo de
professores, 21/10/2004 )
A fala de Rosa é uma contrapalavra à Patrícia marcada pela
identificação, ao partilhar com a professora uma inquietação que também já fora
sua quando esteve no lugar que Patrícia àquela época ocupava. Mostra que
sabe como a colega se sente. Angélica, outra professora do grupo, ofereceu
também sua contrapalavra que, entretanto, não buscava apenas uma
identificação com o problema, mas tensionava-o, colocando-o em situação
crítica.
Angélica: - O Projeto seria a melhor coisa da escola, mas há esse problema: os
professores não têm tempo para se encontrar e discutir... Discutir a importância,
o crescimento da sala... Tinha que ter pelo menos uma vez por semana para os
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professores discutirem. Uma vez por semana ou pelo menos de quinze em
quinze dias fazer uma avaliação para melhorar. (Reunião com o grupo de
professores, 21/10/2004 )
Enquanto falava, Angélica olhava para Sueli, outra professora, como que
em busca de aprovação. Rosa e C., as únicas do grupo, fora eu mesma, que
naquele momento não estavam trabalhando com turmas de educação infantil - a
primeira porque está licenciada e a segunda por ser diretora de escola -
abaixaram a cabeça.
Para entender o alcance das palavras de Angélica e o que elas
representam na situação, é necessário recuperar o contexto em que são
proferidas. Os projetos poderiam ser uma alternativa para que os professores
tivessem, dentro de sua carga horária semanal de trabalho, tempo destinado a
encontros, planejamento, estudo. Entretanto, os diretores e coordenadores
pedagógicos encontram grandes dificuldades em promover esses momentos,
pois existe uma compreensão, por parte de alguns professores, de que não
precisam - ou devem - estar na escola nas cinco horas em que não estão
trabalhando com as crianças. Em algumas escolas, inclusive, essas horas foram
transformadas em uma folga semanal, como é o caso da escola em que
Angélica trabalha. Portanto, o enunciado de Angélica tocou num problema que
afetava tanto os professores quanto os gestores de forma delicada, pois, ao
mesmo tempo em que ter garantidas cinco horas para atividades extra-classe
remuneradas representa uma conquista dos professores, a efetivação dessa
conquista sem a perda da qualidade do trabalho desenvolvido nas escolas é,
ainda, um desafio aos gestores e professores.
Se a palavra de Rosa manifestava uma identificação com o problema,
porque proferida, aparentemente, do mesmo lugar ocupado por Patrícia - o lugar
de professora - a palavra de Angélica, ao contrário, buscava um outro ângulo de
visão que lhe permitisse compreender esse problema para além das impressões
advindas da prática em sala de aula. As questões que envolvem o trabalho com
o Projeto na escola voltaram em outro momento da conversa, motivadas por
uma pergunta que fiz à Patrícia.
Você está trabalhando no Projeto pela primeira vez este ano. Como você avalia
essa experiência?
(Patrícia passa as mãos pelos cabelos repetidas vezes) A avaliação tem pontos
positivos e negativos, mas eu acho que os negativos estão pesando mais. O
positivo é o seguinte (volta-se para o grupo): você faz o seu planejamento e dá
ele a semana inteira. (...)E o outro positivo também é o contato com a diretora,
que quando eu estava na sala de aula eu, pelo menos, quase não tinha muito
contato. Era só aquilo "oi", "tchau" e acabou, porque a correria da sala de aula
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não te dá muito tempo de ficar conversando. E elas também não procuram.
Então você vai vivendo sua vida na sala de aula... Agora o negativo é você não
ter a sua turminha. Então eles não encaram você como uma profissional (bate
com as duas mãos no peito). (...) E eu me apego muito às turmas, por isso estou
sentindo muita falta. E... sei lá, eu não estou gostando desse negócio de entra e
sai das turmas (mexe no cabelo muitas vezes, olha para as pontas da mexa de
cabelo que está em sua mão).(Reunião com o grupo de professores,
21/10/2004)
O enunciado de Patrícia confronta duas situações profissionais
diferentes: ser professora responsável pela turma e ser professora do Projeto.
Em ambas as situações, o professor parece solitário em seu trabalho. Na
primeira, porque não sobra tempo para as trocas entre pares, que poderiam
favorecer uma maior reflexividade do professor com relação ao seu trabalho, na
segunda porque perde suas referências como profissional, advindas de uma
relação mais estável com as crianças. Depreende-se desse enunciado que, se
por um lado uma relação mais estável com as crianças é condição para a
definição de uma identidade pela professora, por outro a relação entre pares
também desempenha um papel importante nessa definição, por possibilitar viver
a profissão numa dimensão mais ampla que a vivência da sala de aula.
O relacionamento mais próximo com a diretora e com a coordenadora
pedagógica parecem proporcionar à professora um espaço para trocas.
Entretanto, na avaliação de Patrícia o que parece ser negativo na experiência
como professora do Projeto, que passa por diversas turmas, mas não fica em
nenhuma, é justamente a impossibilidade de criar vínculos afetivos mais estáveis
com as crianças. Ela, inclusive, aponta essa impossibilidade como a causa do
não reconhecimento, por parte das crianças, de sua condição de profissional.
Esse componente afetivo emerge como definidor do modo como Patrícia se
percebe como profissional da educação infantil, tendo sido apontado por ela,
inclusive, como um dos fatores que a levaram à escolha da profissão.
Eu achava legal [a profissão de professora] porque as crianças davam
bilhetinhos para elas [para a tia e a mãe, que também eram professoras]. Eu
achava aquilo bonito, dava valor para aquilo. (Reunião com o grupo de
professores, 21/10/2004)
É possível compreender o sentimento de frustração da professora diante
da impossibilidade de viver um aspecto que considera determinante de sua
condição profissional, que é o contato com a criança numa situação mais
duradoura. Nesse sentido, as diferentes perspectivas de vivência do tempo da
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instituição e da professora se constituem num impedimento para o
reconhecimento de uma identidade profissional pela docente.
A partir da situação de diálogo com os outros professores participantes
da pesquisa, Patrícia foi construindo uma compreensão mais elaborada dos
problemas envolvidos na sua relação com as crianças, relativizando suas
responsabilidades em situações como, por exemplo, a indisciplina. Do mesmo
modo, outros professores, que não estavam trabalhando com o Projeto, mas que
já tinham trabalhado ou sofrem as conseqüências desse trabalho em sua prática,
foram se posicionando e refletindo.
Sueli: - Aqui na escola, quando precisa, eu substituo professores. Eu noto isso
que você fala, da gente entrar na sala... e a gente não é o referencial das
crianças. Eu observo isso.
Rosa: - Você acha que essa questão do horário, ter mais ou menos tempo (...)
eu estou questionando se é melhor ou pior.
Geisa: - Às vezes eu saio da sala e eles (as crianças) não querem ficar (para a
aula com a professora do Projeto). Não é por causa da professora, que eles
adoram, mas é porque há uma quebra....
Angélica: - Quando eu trabalhei no Projeto, para mim ficou um grande
questionamento, que é a questão de quebrar. Eu percebo que não dá tempo de
fazer o que você quer, nós trabalhamos menos com a criança.
Pesquisadora: - Essa coisa do envolvimento que a Geisa falou é importante,
porque a criança precisa de um tempo para se envolver numa atividade.
Geisa: - Aí, muitas vezes não dá nem tempo porque você faz “zup!”(faz um gesto
no ar de quem puxa um fio para cima) (Reunião com o grupo de professores,
21/10/2004)
A partir dessas e de outras reflexões os professores, embora limitados
pelas condições institucionais, começaram a aventar alternativas que pudessem
minimizar os problemas inerentes à estrutura do trabalho com os Projetos:
aumento da carga horária, maior integração entre os professores do Projeto e os
demais professores e até mesmo um repensar a proposta do Projeto a partir de
propostas que foram desenvolvidas nas escolas onde os docentes trabalham ou
já trabalharam.
Angélica: - Essa questão do horário tem que ser muito bem estudada, porque
quando eu trabalhei de manhã dava tempo. A gente fazia debates, saíam coisas
superinteressantes.
Rosa: Eu acho que se o Projeto estiver integrado, Educação Física, Artes, com o
professor, eu acho que o Projeto funciona muito bem. Quando eu trabalhei eu
achava muito cansativo. Acho que passei a ter problemas nas minhas cordas
vocais por causa do Projeto. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004 )
Diferentes ângulos de visão sobre o mesmo problema vão deslocando o
foco inicial – a experiência de Patrícia – para a experiência de ser professor de
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117
crianças pequenas na rede municipal de Juiz de Fora. Enquanto análise de uma
experiência particular, o foco na prática de Patrícia produz um discurso em que a
frustração, o sentimento de fracasso e a insatisfação são a tônica. Enquanto
experiência partilhada entre pares, o contextual emerge do particular e dá origem
a um movimento de trocas e busca de alternativas. Nesse sentido, a reunião do
grupo de professores, enquanto acontecimento discursivo, configura-se num
momento de produção de saberes sobre a profissão. Um espaço de encontro e
confronto de vozes onde se constrói um modo de perceber-se enquanto
professor de crianças pequenas num determinado contexto, num momento
histórico específico, a partir de determinadas concepções de infância.
Entre os professores, o discurso que enfatiza as qualidades do contato
com a criança como uma das coisas boas de ser professor da educação infantil
muitas vezes parte de uma visão idealizada da infância, que a reveste de
inocência e pureza e fundamenta opções por determinadas metodologias de
trabalho. Na reunião do grupo de professores onde se discutiu a prática de
Patrícia, perguntei aos professores o que chamara atenção na atividade
desenvolvida pela professora. Após um silêncio de alguns segundos, Sueli
tomou a palavra:
Eu penso que a dramatização na educação infantil é tudo. Eles (as crianças)
amam dramatizar. Eu canto uma música ... o Igor (refere-se a um de seus
alunos) então gosta muito. O Igor, o momento que ele mais gosta da aula é a
hora da rodinha. Ele olha para mim e (bate palmas, imitando o menino). Eu não
posso ficar sem fazer a rodinha por causa dele... e eles vivem aquilo. O leão
viveu o leão mesmo (refere-se agora à apresentação de Patrícia), o herói valente
era valente mesmo, eles incorporam os personagens. Eu acho isso a coisa mais
linda da pré-escola: música, dramatização, eu acho que esse é que é o foco da
educação infantil, eles adoram... você começa a contar uma história, o olho
brilha. É muito bonitinho. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004 )
Apresentando-se aparentemente como uma resposta à pergunta que fiz,
a fala de Sueli parece mais um diálogo com sua própria experiência no intuito de
melhor compreendê-la, o que se confirma quando a professora começa a falar
de sua prática. As palavras proferidas pela professora parecem se dirigir àquele
que Bakhtin chama de superdestinatário, ou um terceiro interlocutor do diálogo.
“Todo diálogo se desenrola como se fosse presenciado por um terceiro, invisível,
dotado de uma compreensão responsiva e que se situa acima de todos os
participantes do diálogo (os parceiros)” (Bakhtin, 1997a, p. 356). Isso acontece
porque, ainda segundo Bakhtin, toda palavra busca sempre uma compreensão,
uma responsividade que nem sempre se encontra no outro imediato do diálogo.
“A palavra quer ser ouvida, compreendida, respondida e quer, por sua vez,
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118
responder à resposta, e assim ad infinitum”.(Bakhtin, id. p. 357) A entonação de
voz e as palavras escolhidas por Sueli, na primeira frase, indicam um gênero do
discurso que anuncia uma explanação sobre a importância da dramatização na
educação infantil. Entretanto, já na segunda frase há uma mudança de gênero
para o relato de experiência. Sueli parte de uma constatação que parece advir
de sua prática como professora, fruto de um conhecimento sobre a profissão: 'eu
penso que a dramatização na educação infantil é tudo'. Diante dessa afirmação
categórica, começa a buscar as justificativas para sua forma de pensar. Esse
enunciado revela a construção, por Sueli, de uma teoria pessoal sobre o papel
da dramatização na educação infantil. Essa teoria está fundamentada em suas
experiências e se constitui numa parte significativa de seu conhecimento
profissional (Nóvoa, 2002).Tais justificativas baseiam-se em argumentos de
ordem emocional, a começar pelo relato sobre a experiência com Igor, um
menino com problemas motores e mentais. Expressões como: 'a coisa mais
linda'; 'o olho brilha,' é muito bonitinho', dão um tom fortemente afetivo aos
argumentos de Sueli, ao mesmo tempo em que enfatizam qualidades da criança
que a apresentam identificada com beleza, pureza, inocência.
O discurso de Patrícia, que aparece como uma contrapalavra ao que
disse Sueli, chama a atenção para o fato de que a experiência com as crianças
nem sempre se reveste apenas de beleza e prazer, mas também pode trazer
situações que frustram as expectativas do professor, forçando-o a rever suas
intenções iniciais diante das respostas que as crianças dão às situações
propostas:
Quando eu planejei a atividade [a dramatização apresentada no vídeo], escrevi
no meu caderno, eu pensei que ia ser de um jeito... e aí na hora... Eu achei que
o índio ia realmente agarrar o leão, e que a criançada ia assistir quietinha... e aí
na hora que foi acontecer... Nem sempre é do jeito que você planejou. Você tem
que deixar a criança ir no ritmo dela. E a platéia gritava muito "porrada, porrada!"
Então assim, você tem que aceitar. Você tem que respeitar os atores e a platéia.
(Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004 )
Enquanto Sueli descreve uma experiência que parece ter sido prazerosa
pela resposta positiva da criança à sua proposta, Patrícia lembra das crianças
que gritavam "porrada!" durante a dramatização, frustrando suas expectativas
iniciais. Não há uma oposição aberta, explícita às idéias de Sueli, mas há a
oposição implícita. É como se ela dissesse: eu também pensei que fosse ser
assim tão lindinho, mas as crianças gritavam: porrada!
A especificidade da profissionalidade dos educadores que lidam com a
criança pequena deriva das características da criança, entre as quais se destaca
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119
a necessária atenção privilegiada a aspectos emocionais ou socioemocionais
enquanto constituintes de uma base ou condição necessária para os progressos
no desenvolvimento infantil (Formosinho, 2002). O privilégio dos aspectos
emocionais parece ser justamente o que leva os professores a darem um tom
afetivo ao seu discurso quando se referem às crianças. Entretanto é importante
lembrar que existem diferentes percepções acerca das características próprias
às crianças, que derivam das experiências vividas pelos professores. É esse fato
que parece estar em jogo nos enunciados de Patrícia e Sueli: diferentes modos
de perceber a criança ou o confronto entre uma visão idílica da infância
(baseada na experiência com Igor, vivida por Sueli) e outra mais realista
(construída na experiência de Patrícia com as crianças que xingam), numa
situação profissional na qual ela própria reconhece a dificuldade de estabelecer
vínculos mais perenes com os pequenos. Portanto, as condições de exercício da
profissão repercutem no modo como os professores percebem e se relacionam
com as crianças e, conseqüentemente, no modo como constroem sua identidade
profissional e os saberes que mobilizam para atuar junto a essas crianças.
No grupo de professores que fizeram parte da pesquisa, situações em
que se colocavam em confronto as percepções que os docentes traziam de seus
lugares de trabalho, de suas histórias na profissão que foram construindo suas
percepções do que é ser professor de crianças pequenas, evidenciaram-se nos
discursos que tensionavam diferentes formas de perceber-se professor da pré-
escola, contribuindo para a construção da identidade desse profissional.
Enquanto acontecimento discursivo, os encontros do grupo de
professores permitiram a emergência desses diferentes horizontes sociais de
onde enunciavam os sujeitos e a partir dos quais significavam as experiências
vividas na educação infantil. No confronto entre o diferente, constrói-se a
identidade. Permitiram, ainda, não apenas a emergência de saberes da
experiência, como também um processo de construção de novos saberes no
confronto com a experiência alheia.
O processo de reflexão entre pares sobre as experiências de trabalho
parece ter representado um momento importante para os professores.
Rosa: - Olha que coisa enriquecedora para nós essa troca com outras escolas,
quanta coisa a gente já aprendeu...
Sueli: - Eu também acho. (Reunião com o grupo de professores, 21/10/2004 )
O que esses enunciados parecem apontar é que, ao discutirem sua
prática no grupo, os professores puderam se constituir enquanto narradores -
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120
contando suas histórias, oferecendo um conselho na forma de sugestão,
intercambiando suas experiências. O entrecruzamento das falas dos professores
durante o encontro em que se discutiu a prática de Patrícia, no qual a narrativa
da professora foi suscitando outras, remete àquilo que diz Benjamin sobre o
caráter formador da narrativa:
Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa
utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão
prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, um
narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se dar 'dar conselhos'
parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser
comunicáveis. Em conseqüência, não podemos dar conselhos nem a nós
mesmos nem aos outros. Aconselhar é menos responder a uma pergunta que
fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada
(Benjamin, 1994, p. 200).
Talvez por reconhecerem esse valor formador da narrativa, no dia em
que se discutiu a prática de Patrícia, como em outros encontros do grupo,
mesmo depois que a pesquisadora anunciou o fim do tempo destinado ao
encontro, os professores permaneceram em seus lugares, conversando em
duplas ou trios, trocando materiais.
Ninguém se levanta do lugar, embora o tempo já tenha se esgotado e a
pesquisadora se despedido. As conversas são cruzadas, com várias duplas
conversando em paralelo. É como se uma imensa teia de enunciados fosse
sendo tecida na sala, de modo que, nesse momento, é impossível separar os
fios desses discursos.(Nota de campo, 2º encontro do grupo de professores).
Colocando em diálogo a análise do percurso de Patrícia como
profissional da educação infantil e aquela desenvolvida com relação ao percurso
de Lucas na mesma atividade profissional, retomo aquelas questões abordadas
ao término do tópico no qual realizei a análise das situações vividas e
observadas com aquele professor: O que faz com que as situações vividas
possam se traduzir em experiências? Em que condições o vivido é incorporado
como uma experiência e transformado num saber sobre algo? Sem a pretensão
de oferecer respostas a essas questões, seria possível afirmar a importância de
que os professores se constituam em narradores de suas vivências para que
elas possam se traduzir em saberes. Entretanto, considerando as limitações
impostas pelos contextos institucionais em que se dá a prática desses
profissionais, quais as possibilidades de constituição dos professores da
educação infantil enquanto narradores? Seriam esses profissionais narradores
por excelência, em função do modo como a criança pequena conhece e aprende
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121
sobre o mundo a partir da fantasia e da imaginação? A análise da trajetória
profissional de Geisa e de sua prática como professora de educação infantil
pode ajudar a avançar nessa reflexão.
5.3
História de uma professora narradora
Madeira sobre madeira
Faremos uma fogueira
No céu brilham as estrelas
Na terra brilhamos nós(...)
(Canto para a roda de São João, caderno de registros da professora Geisa)
Geisa tinha 33 anos e estava há 10 no magistério à época da pesquisa. A
despeito do tempo de formação, as experiências profissionais da professora
estiveram mais voltadas à atuação em espaços de educação não formal, sendo
que seu trabalho na rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora teve início
no ano de 2004. Portanto, quando participou da pesquisa, a trajetória na carreira
de professora da educação infantil era ainda curta para a professora.
Geisa decidiu ser professora quando estava no 7º período da Faculdade
de Jornalismo e descreveu como fez essa opção:
Eu fui levando [o curso de jornalismo] até o 7º período. Foi quando fui para
Visconde de Mauá.(...) Fiquei apaixonada pelo lugar, queria morar lá. Então
fiquei pensando:´Para eu morar em Visconde de Mauá, o que é que eu posso
fazer para trabalhar lá?´Aí eu vi uma escola. Eu nunca tinha pensado em ser
professora na minha vida. Nunca, nunca, nunca. Meu objetivo foi esse: ´Vou
fazer alguma coisa de Normal para poder mudar para Visconde de
Mauá'.(Entrevista com Geisa, março de 2005)
Para Geisa a opção pelo magistério foi, como podemos perceber a partir
de seu relato, circunstancial. Motivada pelo desejo de viver em Visconde de
Mauá a professora fez uma complementação pedagógica num curso de um ano
para poder dar aulas. Segundo afirma, o curso foi péssimo, não trouxe qualquer
contribuição para sua vida profissional. Entretanto, após tê-lo concluído, a
professora estava lecionando na escola multisseriada do Vale do Pavão, uma
comunidade de Visconde de Mauá. Na mesma época Geisa conheceu os
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122
princípios da Pedagogia Waldorf
47
por intermédio de uma amiga psicóloga a
quem a família a havia encaminhado, suspeitando da “loucura” que fora
abandonar o curso de jornalismo no 7
o
período e mudar para uma comunidade
na qual ela morava “numa casinha no meio do mato, sem luz, sem nada e era
bem feliz lá.”(Entrevista com Geisa, março de 2005)
Fig. 1: Desenho em giz de cera – Ilustração que compõe parte da capa do caderno
de registros da professora Geisa.
A despeito da motivação inicial – mudar para Visconde de Mauá – Geisa
reconheceu que havia outros motivos para sua opção pelo magistério:
Não foi só assim para mudar para Mauá. Gostava das crianças pra caramba,
fazia teatro com elas e tal”. (Entrevista com Geisa, março de 2005)
47
A Pedagogia Waldorf fundamenta-se nos princípios da Filosofia Antroposófica de Rudolf Steiner.
Concebe o homem como uma “unidade harmônica físico-anímico-espiritual” e toda a prática
educativa se orienta a partir dessa concepção. Uma característica da Pedagogia Waldorf é a
ênfase numa harmonia entre aspectos científicos, estético-artísticos e uma atitude de respeito e
admiração diante do mundo no processo de ensino.
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123
Depois de algum tempo em Visconde de Mauá, a professora começou a
sentir a necessidade de voltar a estudar e, ao mesmo tempo, a escolinha onde
trabalhava fechou. Geisa interpretou o fechamento da escola como “um sinal” de
que era hora de alçar outros vôos. Aliás, ao falar de sua história, Geisa algumas
vezes usa a expressão “parece que foi um sinal” para fazer referência a
acontecimentos marcantes. Aparentemente a professora lê esses “sinais” como
um convite para ir adiante, buscar novos rumos e também a realização
profissional, que parece estar ligada à busca de uma coerência entre suas
crenças e ações. Depois de fechada a escola na qual trabalhava, Geisa foi para
o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar numa escola de elite que adotava os
princípios da Pedagogia Waldorf. Entretanto, apesar do interesse pelo tipo de
trabalho realizado na escola, a professora estava insatisfeita com o alcance
social deste trabalho:
Fui entrando muito em crise com a educação da Pedagogia Waldorf, achando
que era uma escola muito de elite, poucas crianças. (Entrevista com Geisa,
março de 2005)
Buscando alternativas para a realização de um trabalho pedagógico que
contemplasse suas preocupações sociais, Geisa aproximou-se de uma tia que, à
época, era professora universitária e trabalhava com base nos princípios da
psicologia sócio-histórica de Vygotsky. Desse encontro com a tia professora
nasceu o envolvimento com a educação popular no município de São João do
Meriti, no Rio de Janeiro, no CAC (Centro de Ação Cidadania). Foi também no
Rio de Janeiro que Geisa fundou, juntamente com outros amigos artistas, o
“Núcleo de Cultura Popular Céu na Terra” que, segundo a professora, existe até
hoje:
A gente começou como uma história de fazer um trabalho de “Bumba meu boi”,
mas depois tinha um amigo nosso que era antropólogo, aí nós começamos a
trabalhar outras coisas também: a folia, o congado, pastoreio. A gente começou
a pesquisar muito isso. Começamos esse trabalho que é um trabalho de
educação também, que a gente fazia muito essa coisa de ir às escolas, explicar,
falar da importância da cultura popular, apresentar os autos. (Entrevista com
Geisa, março de 2005)
Depois de algum tempo no Rio de Janeiro, Geisa voltou para Minas
Gerais para trabalhar num sítio, na cidade de Santos Dumont, interior do Estado,
onde fazia um trabalho educativo com aproximadamente 30 crianças:
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124
Fizemos um trabalho muito assim... tateando. Nós dois [a professora e seu
companheiro, também professor]. Éramos nós dois e a sala. A gente procurando
ver como misturava as coisas: algumas coisas da Pedagogia Waldorf que a
gente achava legal, muito também das propostas que eu tinha visto no CAC. E
levamos a turma até o final do ano. Só que teve um problema com o dono do
sítio porque a gente trabalhava muito a questão do boi. A gente ficou muito
envolvido com o auto do boi, começamos a trabalhar muito isso com as crianças.
Nós fizemos um auto, confeccionamos os bois. E todo o trabalho – alfabetização,
matemática – tudo foi gerando muito em cima disso.(...) E os pais começaram a
achar que aquilo era um culto. (...) Fizemos reuniões com os pais, explicamos,
eles entenderam. Mas o dono do sítio não. (Entrevista com Geisa, março de
2005)
Sobre esse período, destaco um trecho dos registros que se encontram
no caderno de Geisa:
"Primavera, enfim as flores. Foi quando nos casamos na floresta. Dia tão feliz! E
na escola também muita festa, lá dançamos o "Boi da estrela na testa". Fizemos
a peça e as crianças adoraram. Todas estavam muito envolvidas, afinal
tínhamos (estamos ainda) trabalhando muito em cima do tema e as crianças
parecem não se cansar de ouvir novas notícias do Pinico branco, do patrão... Até
hoje eles cantam felizes da vida "Xem xem xem xeremama, óia o caboco da véia
fumana". Teve também o livro escrito por eles mesmos, escrito e ilustrado! Muito
bacana! (...)"(Caderno de registros de Geisa, setembro
48
)
A despeito do entusiasmo com o trabalho, perceptível no registro da
professora, a permanência no sítio foi se tornando problemática pela
incompreensão do proprietário com relação ao tipo de trabalho realizado pelos
professores, como a própria Geisa destaca em sua entrevista. Nessa mesma
época foram aparecendo mais propostas de trabalho com o grupo “Céu na
Terra”, no Rio de Janeiro, o que fez que a professora voltasse àquela cidade,
onde começou a cursar a faculdade de Pedagogia na UERJ.
E aí a gente começou a trabalhar no CEDAC também, nas comunidades no
morro de São Carlos e em Santa Tereza, no Morro dos Prazeres. Eu e o G.
[companheiro de Geisa], dando oficinas e trabalhando com cultura popular, junto
com leitura e formação de educadores nas escolas dos morros. (Entrevista com
Geisa, março de 2005)
Aproximadamente dois anos depois, um novo “sinal” trouxe Geisa de
volta a Minas: a morte do pai.
Meu pai morreu em Santos Dumont, de repente, assim, do nada, jogando vôlei
na quadra...Minha mãe ficou sozinha aqui com minha irmã e eu achei que
também tinha que vir. E aí a gente veio de novo! (Entrevista com Geisa, março
de 2005)
48
Não há referência ao ano.
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125
Voltando à cidade de Santos Dumont, Geisa fez vestibular para o curso
de Pedagogia na UFJF e concurso público para professora da Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora. Tendo sido aprovada em ambos os concursos, foi
trabalhar na Escola Verde, onde nos conhecemos.
A cultura popular e os princípios da pedagogia Waldorf parecem ser duas
referências fortes tanto na vida quanto na prática profissional de Geisa. Essas
referências têm a ver, também, com a história pessoal da professora, na qual
estão presentes a figura da mãe, artista plástica, e de uma bisavó que contava
histórias. A experiência com a “bisa” foi relatada por Geisa num dos encontros
com o grupo de professores que participaram da pesquisa:
Depois do almoço eu ia para o quarto da bisa e ela contava. Ela contava muito
bem: ela pegava as coisas dela de costura (Geisa começa a fazer no ar
movimentos de espalhar pequenos objetos sobre uma mesa imaginária) e
cada objeto era um personagem. Por exemplo, o dedal era um príncipe... uma
mesa de vidro, ela falava: “então o príncipe subiu na montanha de cristal”. E
ele subia (reproduz os movimentos de um príncipe que sobe uma montanha,
fazendo com a boca o barulho do dedal-príncipe imaginário sobre a mesa de
vidro-montanha. Os demais professores já foram capturados pela narrativa da
bisa, distante no tempo, presente nos gestos de Geisa.) E as histórias que ela
me contou são muito lindas. Então, assim, a experiência de contar foi muito
com ela. (Reunião do grupo de professores, dia 28/10/2004)
A reação que observei entre os professores no dia em que Geisa falou ao
grupo sobre a influência de sua bisavó em sua formação como contadora de
histórias foi bastante semelhante àquela que pude observar entre as crianças da
turma da professora quando a mesma, numa roda, contava histórias.
O momento da história na sala de Geisa era precedido por um ritual:
As crianças estavam sentadas num círculo formado no meio da sala. Geisa
apagou as luzes e algumas crianças começaram a cantar a música que anuncia
o início da história: "Era uma vez/ a história já vai começar/ fiquem bem
quietinhos/ para a história escutar”. Geisa passeava pelo círculo, acariciando os
rostos das crianças. Algumas ainda estavam agitadas pelo término do recreio.
Ao completar o círculo, Geisa acendeu a vela, colocada num castiçal em forma
de anjo na mesa da época e começou: "Era uma vez, há muito tempo atrás...."
(Notas de campo, Escola Verde, 17/06/2004)
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126
Fig. 2: Desenho com giz de cera. Ilustração que abre os meses de fevereiro
e março – Caderno de registros da professora Geisa.
As crianças permaneciam de olhos atentos, respiração suspensa e uma
expressão de quem está viajando pelo mundo da fantasia, do encantamento. A
própria narradora parecia se transportar para esse mundo. A capacidade de
envolver as crianças na narrativa de contos de fadas, trazendo um clima de
enlevo e encantamento para a turma foi, entre outros aspectos, uma
peculiaridade do trabalho da professora que pude observar na Escola Verde.
Nesse sentido, o saber narrar se revelou uma referência a partir da qual a
professora estruturava sua prática profissional.
O relato de Geisa sobre sua história profissional, as observações que fiz
em sua sala, as anotações da professora em seu caderno de registros, ao qual
tive acesso por oferecimento dela própria e as discussões no grupo de
professores me permitiram perceber que o desejo de proporcionar às crianças
um espaço para o exercício da imaginação criativa e o contato com elas mesmas
a partir do reconhecimento de suas identidades culturais esteve no centro do
trabalho de Geisa como professora da pré-escola. Esse objetivo se revela em
vários momentos registrados em seu caderno:
“Cada vez mais tenho percebido como este tempo do brincar livre é importante
e precioso para os pequenos. É o tempo de ser outra coisa, de inventar, de
voar na fantasia, de ser gigante, índio ou princesa, de sentir o sol e o vento
frio, de fazer escolhas, de escolher os mais queridos para estar junto, de
conhecer melhor quem se gosta tanto. É o espaço privilegiado para o encontro
e para o conflito, as brigas (que eu penso serem situações preciosas para a
transformação, para estar construindo o sentido da percepção do outro e de
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127
cada um como indivíduo e como companheiro)”. (Caderno de registros de
Geisa, abril/maio de 2004)
***
“Nestes tempos contei a história ‘As moedas estrela’, que tocou
profundamente as crianças, principalmente a Laura que se emocionou
bastante. (As histórias de Grimm são mesmo tesouros!)” (Caderno de
registros de Geisa, abril/maio)
***
“O brincar livre vem se transformando a cada dia. É tão bom ver como eles [as
crianças] estão brincando gostoso, com a fantasia cada vez mais forte e
presente. São vários episódios a serem registrados porque belos e de muito
significado. Teve o ‘bubu’, o nosso bicho da seda que saiu da toca e depois
voltou misteriosamente(...) Houve também o Jonas empurrando o carrinho de
bebê por horas a fio no recreio, como que imitando a mãe com a irmãzinha
pequena. Foi comovente a carinha dele tão entregue nesta atividade, tão em
busca de compreender e penetrar no mundo que o rodeia.” (Caderno de
registros de Geisa , 10 de maio de 2004 em diante)
***
“J. está numa fase que não brinca, que não consegue mais fazer de conta,
parece desanimada. O que fazer com ela? Talvez tricô de dedo, trabalhos
manuais e contar histórias menos repetidas vezes. Depois dos desenhos
fizemos a roda que não foi tão boa assim. Fui dura novamente e acho que
exigi muito deles, ou não... (...) Fomos para a sala e a menina da lanterna
[personagem de uma história] fomos todos nós. Foi bem bonito de ver a luz na
carinha das crianças e elas também gostaram. Mas ao fim deste pequeno
momento mágico, a dispersão novamente. Como mantê-los por mais tempo
envoltos na atmosfera? É a grande questão que devo perseguir”.(Caderno de
registros de Geisa- fim do 1 º semestre de 2004)
A professora não é apenas uma narradora que conta histórias às
crianças, mas é também uma narradora de sua própria prática. Geisa expressa,
nas reflexões registradas em seu caderno e também no seu trabalho, que pude
observar por alguns meses, uma preocupação em tomar as crianças como
referência para o desenvolvimento de suas ações, ouvindo também as narrativas
dos pequenos, compartilhando suas experiências.
O caderno de registros da professora foi um material bastante rico para a
compreensão do trabalho por ela desenvolvido. Como destaquei no capítulo 3
desta tese, no caderno encontram-se registrados aspectos da vida pessoal e
profissional de Geisa desde o ano de 1998 e que revelam um processo de
reflexão a partir do qual, a partir daquilo que as crianças vão sinalizando como
suas necessidades e interesses, a professora vai orientando seu trabalho:
“Da roda das bonecas veio todo o movimento para este tempo, dando
oportunidade para o trabalho da questão racial permanecer mais tempo conosco,
de modo mais sistemático, não sei ainda como vai ser e que rumo vai tomar.
Que as crianças mostrem o caminho!” (Caderno de registros de Geisa, 10 de
maio em diante)
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128
O caderno de registros não é um diário, uma vez que não há uma
periodicidade nos registros que nele se apresentam, embora o gênero textual se
aproxime do relato autobiográfico, entrecruzando aspectos da vida profissional e
pessoal. Também não é um caderno de planos, embora apareçam registradas
as intenções de trabalho da professora e as justificativas para a escolha de
determinados projetos, sempre pautadas pelos interesses manifestos pelas
crianças. Pessoalmente, li o caderno de Geisa como uma narrativa na qual o
tempo é marcado pelas estações do ano e os humores que elas evocam:
"É verão, ainda que não pareça. Muita chuva, dias frios e poucos dias azuis”.;
"Entrou o outono, as folhas caem com o vento e as borboletas desabrocham por
toda parte. As chuvas vão-se indo e os dias são claros, dourados de sol”.; "Então
terminamos agosto. O frio também terminou e o sol tem estado sempre conosco.
Dias de muito azul, e é tão bom que seja assim..." (Extratos do caderno de
registros de Geisa)
Não existem referências explícitas às mudanças de escola, só
perceptíveis através da leitura do caderno entrecruzada às informações sobre a
trajetória profissional da professora que obtive quando a entrevistei. As estações
do ano se sucedem na vida da professora, trazendo novas experiências de
trabalho com os pequenos sobre as quais ela reflete à luz de sua sensibilidade e
dos aportes teóricos nos quais sustenta suas opções profissionais. O tempo é
vivido, por Geisa, numa dimensão fenomenológica, como define Hargreaves
(1998), em que as referências de sua passagem se encontram nos próprios
sujeitos, no modo como vivem as estações do ano, nas sensações que o sol ou
a chuva despertam. Para cada uma das crianças da sala há comentários a cada
estação do ano como, por exemplo, no outono:
“ V. está serenando, já canta bonito sem gritar ou fazer vozes estranhas (...). L.
voltou da febre mais tranqüilo; G. se solta mais a cada dia e também L. que já dá
até sorrisos; J.P. tem mostrado ter muita fantasia e isso é ótimo. No momento
ele é o dono do castelo do gigante.(...)"(Caderno de Registros de Geisa,
abril/maio)
Os comentários sobre as crianças, frutos da observação da professora,
suscitam propostas de intervenção:
“Preciso rever algumas condutas para que as crianças encontrem uma prática
mais significativa, que lhes toque mais o coração. Muitas idéias precisam ser
organizadas”. (Caderno de registros de Geisa, fim do semestre)
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Aparecem referências aos princípios da Pedagogia Waldorf e indicações
que a professora faz a si mesma de livros a serem consultados como guias para
o trabalho - "Para as férias preciso consultar ‘A criança e o número’, ‘A fome com
a vontade de comer’ e o maravilhoso livro da Madalena Freire” - além de
referências a títulos de literatura infantil e contos de fadas. Esses aportes
teóricos se constituem em fontes onde a professora busca elementos para
atender às necessidades percebidas nas crianças.
O caderno de registros de Geisa é um instrumento de avaliação das
crianças e do trabalho da professora, o que condiz com a indicação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil de que na educação
infantil a avaliação deva se dar "através do acompanhamento e dos registros de
etapas alcançadas nos cuidados e na educação para crianças de 0 a 6
anos"(Brasil, CNE/CEB, 1998, p. 18). Mas é também o fio de Ariadne, que Geisa
vai desenrolando ao longo de sua trajetória profissional e que impede que ela se
perca no labirinto das mudanças de rumo, estabelecendo uma continuidade
entre os diferentes enredos que atravessam a vida profissional e pessoal da
professora. Nele, junto com reflexões acerca do trabalho realizado com as
crianças e do planejamento de novas atividades, estão histórias e letras de
músicas, algumas do folclore popular, outras criadas pela própria professora.
Pé de Coração
Era uma vez
Há muito tempo atrás
Uma cidade pequenina
Lá no alto das colinas
Onde todas as pessoas, bichos, coisas
Eram felizes
Felizes de viver!
(...)
(Caderno de Registros de Geisa, sem referência de data)
Algumas páginas trazem ilustrações, feitas com giz de cera, para uma
história que não tem começo nem fim. Embora os registros sejam mantidos por
Geisa há seis anos, neles o tempo cronológico desaparece e as reflexões
desenvolvidas pela professora no passado se entrecruzam àquelas realizadas
no presente, como partes de uma mesma narrativa que aponta sempre para o
futuro: a próxima estação do ano e o que ela poderá trazer em termos de
surpresas e encantamentos com as crianças. A narrativa que Geisa desenvolve
em seu caderno parece recuperar uma dimensão ancestral da arte de narrar,
sobre a qual Benjamin (1994) reflete:
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130
A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão - no campo, no
mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de
comunicação. Ela não está interessada em transmitir o "puro em si" da coisa
narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do
narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca
do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (Benjamin, 1994, p.205)
Os relatos de Geisa não informam sobre as crianças ou sobre os
objetivos do trabalho, mas antes trazem os pequenos e o que com eles se
realiza, embebidos pelo olhar da professora, pelas crenças e desejos que
movem suas ações. Esses relatos trazem a experiência que revela saberes
construídos do desejo de compreender as crianças e suas necessidades e de se
colocar em relação com elas. Trazem também as dúvidas e angústias diante do
não saber, dos desafios que os comportamentos e atitudes apresentados pelos
pequenos representam:
Fig.3- Desenho com giz de cera – Ilustração que abre o mês de setembro –
Caderno de Registros da professora Geisa.
"Quando entrar setembro, e a boa nova andar nos campos”.Enfim chegou o
tempo de flores, e o gigante do inverno se foi embora levando o frio nas suas
botas pesadas para ceder lugar à doce rainha da primavera, que vem chegando
na sua carruagem de flores, puxada por borboletas douradas. Na escola muita
agitação, as crianças estão mais excitadas que nunca. Um pouco por causa do
desabrochar da primavera que já convida mesmo à expansão. Mas mais ainda
pela falta de ritmo que a escola impõe. Algumas estão mesmo agressivas, como
o V. que vem passando por momentos muito difíceis. Ele teve uma manhã aqui
em casa e foi muito gostoso! É um menino doce e que tem um forte poder de
conquistar as pessoas, é muito carismático. Mas precisa muito direcionar as
suas energias. Peço muito ao anjo dele que me ajude e a todos que estão
envolvidos na busca dele a tornar mais calmo e feliz. Quando esteve aqui
comigo pude ver que ainda pouco conquistou na escrita e nos números e chego
a pensar se existe um comprometimento na parte cognitiva. Será? Ou será só
desinteresse? É preciso estar muito atenta. Mas ontem, primeiro dia da
primavera, ele esteve tranqüilo, mas vejo como ele luta para conquistar a
serenidade e não aprontar.”(Caderno de registros de Geisa, setembro/2004)”.
Ao refletir sobre a situação de V., Geisa se questiona sobre as razões do
comportamento do menino, levanta hipóteses e aposta no desejo de mudança
que o próprio V. manifesta. Guiada pelo caminho que as crianças sinalizam,
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131
Geisa vai desenvolvendo o seu trabalho que, apesar da imprevisibilidade das
situações surgidas no grupo, tem uma intencionalidade bastante clara, que se
fundamenta na importância que a professora dá à criação de possibilidades para
que os pequenos se expressem através de múltiplas linguagens e, de forma
privilegiada, pela linguagem do brinquedo, da fantasia, como é possível perceber
a partir de alguns trechos de notas de campo, transcritos a seguir:
As crianças iam sair para o recreio. Antes de saírem da sala, Geisa avisou que
há um gigante espreitando lá fora, que ao menor ruído poderia sair de seu
castelo e aparecer, por isso todos teriam que passar para o pátio
silenciosamente, para não acordar o gigante. Geisa sempre usava este
estratagema para que as crianças saíssem menos ruidosas, mas quase nunca
funcionava.
***
Início do horário do recreio na turma de Geisa. A área externa favorece a
criação de diferentes enredos pelas crianças. Há bancos de cimento, grama, um
barranco onde uma árvore com raízes aparentes convida à escalada.
degraus onde as meninas montam casinhas de boneca.
No pátio rapidamente as crianças se dividem em grupos, que se envolvem em
diferentes brincadeiras: casinha, pular corda, escalar um morro, trabalhar na
"obra", escavando o chão com diferentes instrumentos, dirigir um carro utilizando
como volante a tampa de uma vasilha, bolinhas de gude... A professora participa
alternadamente dos diferentes enredos.
Meninos chegam gritando à mesa onde algumas meninas desenham, imitando,
aos gritos, uma sirene de polícia. As meninas gritam pela professora,
denunciando os colegas que estão atrapalhando a brincadeira. Geisa intervém:
- O carro de polícia tem um botão para fazer a sirene tocar mais baixo...
Os meninos "acionam o botão" e vão para um outro lado do pátio.
(Notas de campo, 16/06/2004)
Na Escola Verde Geisa encontrou um espaço físico propício para a
realização de um trabalho que enfatizava o valor e a importância da brincadeira
no desenvolvimento infantil. Com uma área externa privilegiada, a escola oferece
boas condições para que as crianças se exercitem em brincadeiras variadas.
Além disso, a professora obteve junto à coordenação uma autorização para
estender o horário de recreio de sua turma, que tem o dobro da duração das
demais turmas da escola.
A ênfase na ludicidade e na fantasia como formas privilegiadas de
relação da criança com o mundo que a cerca é um dos princípios da filosofia
antroposófica, expresso por Steiner.
Se quisermos educar o homem para a compreensão do espiritual, devemos
propiciar-lhe o mais tardiamente possível o chamado elemento espiritual externo
em sua forma intelectualista. Embora justamente em nossa civilização seja
sumamente necessário que o homem se torne plenamente lúcido da vida
madura, devemos deixar que a criança permaneça o mais longamente possível
naquela agradável e sonhadora vivência na qual ela cresce em direção à vida - o
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mais demoradamente na imaginação, na atividade pictórica, na ausência de
intelectualidade. Se fortalecermos seu organismo no aspecto não intelectual, ela
crescerá de maneira correta para o intelectualismo necessário na atual
civilização (Steiner, 1996, p.28)
49
Essa centralidade da atividade lúdica como forma de propiciar um
encontro da criança com sua própria espiritualidade e também como forma
privilegiada de contato dos pequenos com o mundo adulto foi outro aspecto que
chamou minha atenção, de modo especial, no período em que observei a
professora Geisa na Escola Verde.
Quando iniciei o trabalho de observação na sala da professora, demorei
algum tempo até compreender os significados que se construíam no grupo de
crianças, sob sua orientação. Em muitos aspectos a turma se diferenciava das
demais turmas da escola, a começar pelas rotinas. Diariamente – ou sempre que
a organização do tempo na escola permitia – Geisa realizava uma roda com as
crianças. Nessa roda cantavam-se músicas da cultura popular, ligadas ao tema
que estava sendo desenvolvido pelo grupo ou canções criadas pela própria
professora. Nessa roda também era contada uma mesma história, com as
mesmas palavras, por até duas semanas consecutivas. Depois fui informada
pela professora que a repetição tinha a função de fazer com que as crianças se
apropriassem da história e fossem adquirindo um vocabulário mais rico pois,
para a Pedagogia Waldorf, a imitação é a grande força que a criança nos
primeiros 7 anos de vida (1
o
setênio) tem disponível para a aprendizagem.
Para acalmar as crianças, Geisa dedilhava o cântele, um instrumento de
cordas, enquanto passeava entre elas esperando que se tranqüilizassem ou,
como dizia a professora, que “estrelas brilhassem” para as crianças. Antes das
refeições havia uma oração de agradecimento que na verdade era um cântico de
louvor às dádivas da terra e do trabalho do homem. Nem sempre Geisa
conseguia o “clima” necessário à oração, mas nunca deixava de fazê-la.
Na entrevista, questionei a professora sobre o porquê realizar um
trabalho com base nos princípios da Pedagogia Waldorf numa escola da rede
pública, uma vez que a própria professora havia expressado sua angústia diante
do caráter elitista desse trabalho, que exigia uma estrutura e materiais bastante
caros.
Uma vez eu fui a um congresso em São Paulo e lá eu conheci o Tião que era um
cara que estava começando uma escola pública lá em Friburgo, o Vale da Luz.
49
O livro referido foi indicado pela professora Geisa para que eu pudesse conhecer os princípios
gerais da Pedagogia Waldorf, que ela adotava em sua prática.
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133
Nessa escola, que vai até o oitavo ano, as crianças são aquelas rechaçadas de
outras escolas. É uma escola linda! E eu falei: "se tivesse uma formação em
Pedagogia Waldorf no Vale da Luz eu faria”.E o Tião é uma pessoa tão
empreendedora (...) ele conseguiu fazer isso. (...) Aí eu fui fazer a formação lá e
eu vi que dava, sabe Hilda, sem usar aqueles materiais absurdos, com outros
materiais, outras opções. E aí eu fiquei apaixonada e falei: Nossa, é possível
fazer uma coisa assim na escola pública. (Entrevista com Geisa, 2005)
Motivada pela experiência no Vale da Luz, ao chegar à Escola Verde
Geisa procurou pela coordenadora e negociou com ela a possibilidade de
realizar um trabalho inspirado em princípios da Pedagogia Waldorf na escola.
Expliquei para a coordenadora que não era a Pedagogia Waldorf pura, mas sim
algumas coisas dessa pedagogia, assim como o modo de compreender a
criança da Pedagogia Waldorf, que eu acho bacana.(...) Então tinha algumas
coisas que eu queria, como a questão da história e da brincadeira, mas sem
deixar de levar em conta os trabalhos cognitivos das crianças. Aí ela [a
coordenadora] aceitou, porque na escola não tinha uma proposta bem definida
de trabalho. Cada um fazia meio o que queria. Tinha aquelas coisas de estar
participando de uma vida escolar, que era o hino, os trabalhos da Sexta Cultural.
Você estando nesse movimento da escola, tudo bem. Não tinha nenhuma
proposta. (Entrevista com Geisa, 2005)
Justamente pelo fato de a escola não apresentar uma linha de trabalho
definida, as atividades que nela se desenvolviam tomavam enfoques bastante
diferenciados, o que causava conflitos a Geisa:
Eu acho que faltava uma identidade para o trabalho. Eu me lembro que uma vez,
numa reunião, eu até defendi "Ô gente, não vamos botar Xuxa, né?" Eu falava
muito essas coisas e a coordenadora me apoiava, mas o grupo da escola não. A
coordenadora falava “É mesmo, já tem a questão da indústria de
entretenimento...", mas logo depois as pessoas já estavam discutindo qual era a
faixa do CD da Eliana
50
que iam usar na próxima apresentação. Eu sofria muito,
Hilda. (Entrevista com Geisa, 2005)
O fato de desenvolver um tipo de trabalho tão peculiar num contexto onde
não havia uma proposta curricular definida trazia alguns problemas à Geisa, uma
vez que as prioridades da escola e da professora divergiam. Muitas vezes as
perspectivas de trabalho da professora e da instituição se chocavam, como pude
constatar a partir de situações ocorridas durante o período de observação, uma
das quais relato a seguir:
Eram 16horas e 20 minutos. Voltamos à sala depois do horário destinado ao
recreio que, na turma de Geisa, durava entre 40 e 45 minutos. A professora
escureceu o ambiente da sala e cantava baixinho, enquanto retirava do armário
uma lanterna oval, feita de papel marché verde claro e com uma alça de
50
Xuxa e Eliana são apresentadoras de programas infantis que gravaram Cds com músicas
voltadas ao público infantil.
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134
barbante. As crianças, que chegavam do recreio agitadas, pareciam mais
tranqüilas. Geisa acendeu uma vela colocada no castiçal de anjo que está sobre
a mesa da época e cantou: "A chama chama a L." (uma das crianças da sala). L.
então acendeu outra vela, que se encontrava dentro da lanterna de papel
marché. As crianças cantaram: "Eu achei a minha estrela/ a minha estrela eu
achei...”
Geisa começou a contar uma história que falava de uma menina com
uma lanterna. A lanterna que ela carregava se apagou, a menina foi até o Sol em
busca de luz e ele reacendeu sua lanterna. A menina, então, foi levando luz por
onde passava. Durante a história, K., cansado das brincadeiras no pátio, deixou-
se levar pela narrativa, abraçado a uma boneca. As demais crianças ouviam a
história, algumas com a cabeça apoiada no ombro do colega, outras de mãos
dadas, outras, ainda, se remexendo nas cadeiras. A lanterna que Geisa retirou
do armário passou por todas as crianças, sentadas em roda, no início e no fim
da história.
Logo no início da história a diretora da escola entrou na sala e falou algo
no ouvido da professora, que fez um sinal afirmativo com a cabeça. A diretora
saiu da sala e, quando a história terminou, retornou, desta vez com as crianças
de outra turma, vestidas de coletores de lixo e avisou que a turma de outra
professora faria uma apresentação. Geisa rapidamente entregou os trabalhos
que as crianças deveriam levar para casa naquele dia enquanto a diretora e as
crianças da outra turma esperavam. A diretora pediu para acender as luzes, mas
não esperou ser atendida, apertando o interruptor. A apresentação teve início.
As crianças da turma visitante (invasora?) cantaram um "rap" que tinha como
refrão "lugar de lixo é na lata do lixo" (em alguns momentos só a diretora e a
outra professora cantavam). Quando a apresentação terminou, eu, Geisa e
algumas crianças batemos palmas. As mães já estavam chegando para buscar
seus filhos. O dia acabou. Eu fiquei meio zonza com a mudança repentina de
"clima". (Notas de campo, Escola Verde, 22/06/2004)
O momento da história era bastante valorizado por Geisa em sua rotina e
para vivê-lo a professora criava um ambiente e um clima de enlevo, que
possibilitassem às crianças um mergulho na narrativa. No dia em que se deu a
situação relatada, em especial, o clima era reforçado pela lanterna acesa na sala
escura, passando pelas mãos das crianças, e pela própria história: uma menina
que distribui luz por onde passa, remetendo à luz que cada pessoa tem e à
capacidade de transmitir essa luz a outras pessoas. Esse clima foi subitamente
quebrado pela apresentação da turma "visitante" sobre o lixo, forçando as
crianças a uma saída abrupta da fantasia e encantamento, que elas poderiam ter
levado consigo para suas casas, para entrarem na realidade das questões
práticas. Nesse contexto, o saber narrar, fundamento da prática da professora,
não encontrou espaço para sua afirmação, mas, antes, foi negado.
A despeito da liberdade de estender o horário do recreio da turma e de
realizar as atividades nas quais acreditava, Geisa sofria por ter que participar de
situações com as quais não concordava, uma vez que tinha algumas convicções
com relação aos objetivos que pretendia alcançar com seu trabalho. O evento da
apresentação do rap, relatado anteriormente, descreve uma situação
paradigmática desse conflito, pois nela os valores da escola, representados na
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figura da diretora que acompanha as crianças e solicita um espaço para que elas
se apresentem na turma de Geisa confrontaram-se com os da professora, que
havia criado todo um clima de enlevo e fantasia que foi quebrado com a
presença dos visitantes.
Enquanto o grupo de professores da Escola Verde não via qualquer
problema em utilizar as músicas que a mídia veicula, aderindo, de certa forma, à
cultura de massa e trazendo-a para a escola como forma de envolver as
crianças, Geisa via justamente a escola como um espaço de resistência à
massificação, adotando com o grupo com o qual trabalhava práticas que
buscavam resgatar o valor da cultura local e dos objetos artesanais.
Os brinquedos da sala de Geisa eram feitos, em geral, de madeira, argila
ou tecido. No caderno da professora se encontra o relato do período em que
panelas de argila foram confeccionadas pelo grupo no mês de abril, no qual têm
lugar as comemorações do Dia do Índio:
As crianças começam a entrar num ritmo mais harmonioso, apesar de ainda
estarem um pouco agitadas. Estamos fazendo a roda rítmica dos índios e foi
impressionante - tem sido - como as crianças se identificaram com este ritmo. A
Áurea tinha razão ao dizer que os membros, principalmente as pernas, devem
ser bem explorados nesta idade. E com que alegria elas navegam no grande rio
cantando e como descansam tranqüilos os valentes após a luta: Foi na terra de
Tupã/Índios guerreiros eu vi/Um se chama flecha ligeira/ E o outro Touro
Sentado, sim(...)
Além da roda fizemos panelas de argila, como fazem os povos indígenas.
Amassamos a terra, modelando, dando formas acolhedoras de panelas, as
crianças ficaram mais tranqüilas e também muito contentes com o resultado do
trabalho! (Caderno de registros de Geisa, abril/maio)
Assim como os outros enredos que observei na sala de Geisa, os
brinquedos tinham um sentido mais profundo e estavam a ligados e experiências
simbólicas, ricas em significados culturais que eram vivenciados pelas crianças.
Observando as panelas de barro já prontas num canto da sala, onde elas
ficavam sob uma tenda de pano e sobre um fogão improvisado, mais uma vez fui
transportada a Walter Benjamin, quando o autor reflete sobre as diferentes
perspectivas que o brinquedo assume para a criança e para o adulto:
(...) ninguém é mais casto em relação aos materiais do que as crianças: um
simples pedacinho de madeira, uma pinha ou uma pedrinha reúnem na solidez,
no monolitismo de sua matéria, uma exuberância das mais diferentes figuras. E
ao imaginar para as crianças bonecas de bétula ou de palha, um berço de vidro
ou navios de estanho, os adultos estão na verdade interpretando a seu modo a
sensibilidade infantil. Madeira, ossos, tecidos, argila, representam nesse
microcosmo os materiais mais importantes, e todos eles já eram utilizados em
tempos patriarcais, quando o brinquedo era ainda a peça do processo de
produção que ligava pais e filhos (Benjamin, 2002, p. 92).
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136
Conversando com Geisa, descobri que ela já havia lido um texto de
Walter Benjamin sobre o brinquedo e que havia apreciado suas reflexões. Além
de uma referência ao contato com os materiais da natureza, princípio da
pedagogia Waldorf, os brinquedos artesanais na sala de Geisa eram também um
elo com a cultura local, pois se misturavam a eles favas, sementes e objetos
alusivos a comemorações ligadas à cultura local dispostos na “mesa da época”.
A mesa da época era uma outra peculiaridade da turma de Geisa.
Quando cheguei, a mesa me pareceu uma espécie de altar, organizado com
panos coloridos e pequenas bonecas negras dispostas num círculo feito com um
colar de contas. A professora explicou que as bonecas eram as abayomi
51
, feitas
por uma cooperativa de mulheres negras do Rio de Janeiro. A mesa da época foi
organizada em função de um trabalho de valorização da cultura negra que vinha
sendo desenvolvido pela professora e que se estruturou em torno da confecção
de uma boneca de pano. Esse foi o primeiro trabalho de Geisa que tive a
oportunidade de acompanhar. Fui capturada por sua singeleza e profundidade,
por isso resolvi filmar o mural ao qual ele deu origem e foi esta a filmagem
exibida no dia em que discutimos, no grupo de professores, a prática da Geisa.
Escolhi essa atividade porque a achei absolutamente diferente de tudo o que eu
havia observado em outras turmas de educação infantil e porque acreditei que
ela representava, de forma condensada, o que era o trabalho desenvolvido com
as crianças pela professora.
No dia da reunião com os professores que fizeram parte da pesquisa na
qual a filmagem do trabalho realizado por Geisa seria exibida eu tinha grandes
expectativas com relação às discussões que aquele trabalho poderia suscitar
entre os docentes. Esperava que fossem feitas muitas perguntas à professora e
que houvesse um grande interesse com relação ao modo como ela realizava seu
trabalho, pela beleza que eu havia identificado nele e pelo modo original e
sensível de lidar com uma questão delicada como o preconceito racial. Minhas
expectativas iniciais não se confirmaram, entretanto as razões que fizeram com
que elas se frustrassem acabaram se constituindo como um dado relevante da
pesquisa.
51
Boneca negra, confeccionada com nós, sem o uso de cola ou costura.
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O encontro entre os professores teve início com Geisa explicando os
motivos que a levaram a desenvolver o projeto “Boneca Negra de Pano”
52
:
Foi assim: na minha sala começou a haver, desde o início do ano, um
preconceito com relação a uma criança. Na minha sala há muitas crianças
negras, mas eles caíram na pele de uma. Chamavam de carvão, isolavam a
menina. E isso ficava na minha cabeça: como é que eu poderia fazer alguma
coisa sem ser muito direta, do tipo “é feio fazer isso”? E aí fiquei pensando
também sobre essa coisa da escola, embora receba muitas crianças negras -
não é só essa escola, mas todas as escolas - e não tem muito a presença da
figura negra nos cartazes, nas histórias... Eu já estava querendo fazer uma
boneca com eles, aí pensei deles fazerem uma boneca negra. E aí a gente
começou este processo e as coisas foram vindo. (...) E aí começou toda uma
discussão e naquele espaço a gente começou a confeccionar a boneca. Com um
monte de lã suja, aquela lã cheia de caroços e tingimos a malha, fomos fazendo
a boneca. E durante o processo de fazer a boneca a gente conversava muito. As
crianças traziam muitas questões, relativas à beleza mesmo, dos cabelos... (...)
E na época uma menina negra da sala fez umas tranças enormes. Aí que me
veio a idéia de fazer a Rapunzel. (Reunião do grupo de professores, 04/10/2004)
O Projeto Boneca de Pano também está registrado no caderno de Geisa.
Fig.4- Desenho com giz de cera – Ilustração que abre os registros do projeto
Boneca de – Caderno de Registros da professora Geisa.
Como objetivo geral do projeto, a professora destaca:
“(...) trabalhar a questão da identidade da criança negra através de vivências e
experiências simbólicas, que necessariamente não passem por uma forma
racional, verbal de discussão” (Caderno de registros de Geisa, 10 de maio em
diante).
No decorrer do projeto a professora esperava que a valorização dos
elementos da cultura negra reforçasse a identidade cultural das crianças
muitas delas negras ou afro-descendentes – levando a uma superação da
situação de exclusão em que se encontrava a menina à qual a professora fizera
52
Este foi um projeto planejado e desenvolvido pela professora Geisa e que não tem qualquer
relação com o trabalho com Projetos, desenvolvido nas escolas da rede pública municipal de
ensino.
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referência em seu depoimento. Essa era a explicação para a “mesa da época” e
para outras atividades decorrentes do Projeto tais como a história da Rapunzel
Negra – uma adaptação da história de Rapunzel que Geisa fez para a turma,
inspirada numa outra menina negra da sala que colocou um “aplic” de trancinhas
até a altura dos quadris.
Rapunzel
Rapunzel era a criança mais linda debaixo do sol. Tinha a pele negra como a
noite cheia de estrelas e os cabelos enroladinhos, tão longos que suas tranças
se espalhavam pelo chão. (Trecho da história "Rapunzel". Caderno de registros
de Geisa.)
Conversando com os outros professores que participaram da pesquisa,
Geisa avalia que a história não alcançou os objetivos que ela havia previsto:
Na história, a Rapunzel não era loira, era negra, tinha os cabelos negros. Mas
isso é uma coisa tão forte no imaginário das crianças que a Rapunzel nunca foi
negra para eles. Não deu. Isso foi uma coisa que eu vi que não chegou.(Reunião
do grupo de professores, 04/10/2004)
Além da história, houve também a interpretação de uma cantiga de ninar
africana pelas crianças.
Alunde, alunde
Alundê aluiá
Alunde aluia
Aluiaa iaiacucô
Ai ai ai alunde
(Acalanto africano, Caderno de registros de Geisa)
Sobre a origem do acalanto, Geisa explica:
A música é porque nos navios negreiros vinham muitas crianças e as que
chegavam vivas, quando chegavam, as mulheres passavam de mão em mão
cantando essa música, para louvar pelas crianças que chegaram vivas,
resistindo à viagem. Isso faz parte da cultura deles mesmo. Acho importante a
gente estar trazendo, procurando, esses elementos da cultura dos negros.
(Reunião do grupo de professores, 04/10/2004)
No mural confeccionando pela professora, ao término da atividade, foram
colocados, além da boneca de pano, os desenhos produzidos pelas crianças
para o conto de Rapunzel e a letra do acalanto africano.
Os professores que participaram da pesquisa assistiram ao vídeo que
mostrava o trabalho de Geisa e, a partir dele, a questão do preconceito racial foi
discutida de forma bastante acalorada, com manifestações de diversas posições.
Angélica relatou sentir essa questão do preconceito entre as crianças,
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139
destacando, inclusive, que uma das crianças negras com as quais trabalha
deixou de freqüentar a escola e que, muitas vezes, as famílias de crianças
negras têm uma posição subserviente com relação à escola, comportando-se
como se a freqüência à instituição fosse um favor e não um direito. Alguns
professores, principalmente os da Escola Amarela, afirmaram não perceber esse
tipo de preconceito entre as crianças com as quais trabalham, e que lidavam de
uma forma natural com a questão quando ela aparecia. Entretanto, mesmo
afirmando não viver o problema do preconceito com as crianças, os professores
relataram algumas situações nas quais ele se revelava:
Lucas: [Falando sobre as comemorações na escola, quando as crianças fazem
apresentações para as famílias] Às vezes numa situação em que você nem está
raciocinando, você separa uns assim, aí vem aquela história: esses alunos são
negros. Então se você não coloca, aí a mãe já pensa que é preconceito. E você
está ali, sem maldade.
Frany: e às vezes o próprio pai e a mãe têm preconceito. Acham que por ser
preto a professora está excluindo. Isso a criança traz de casa, vem do adulto.
Sueli: eu estava pensando isso aqui. Que eu não tenho nenhum aluno negro. Aí
eu lembrei que tenho o Igor e o Maiquel (Maiquel Douglas
53
). Talvez porque pra
mim isso seja uma coisa tão resolvida, por isso talvez eu não tenha percebido.
(Reunião com o grupo de professores, 4/10/2004)
Nas falas dos professores aparece um deslocamento da questão da
identidade da criança negra e de sua família na escola para posições de ordem
pessoal. Sueli, inclusive, parece não perceber nenhuma contradição no fato de
um de seus alunos, que é negro, se chamar Maiquel Douglas
54
e o que isso tem
a ver com a percepção que essa criança está construindo de si mesma enquanto
negra. Ao abordar a linguagem como forma de interação entre os falantes,
Bakhtin (1997b) destaca que, para compreender a interação, é necessário
considerar o horizonte social dos falantes "que determina a criação ideológica do
grupo social e da época a que pertencemos, um horizonte contemporâneo da
nossa literatura, da nossa ciência, da nossa moral, do nosso direito" (Bakhtin,
1997b, p. 112). No caso do grupo de professores, a abordagem que Geisa faz da
identidade racial da criança negra na escola se dá a partir do horizonte social da
professora, em que a experiência com a cultura popular permite uma visão da
questão que se manifesta em seus enunciados, mas não é acessível aos demais
professores nos termos em que Geisa a concebe, por não compartilharem desse
mesmo horizonte social. Por essa razão, as discussões no grupo acabaram
53
Neste caso foi usado o nome verdadeiro da criança, pela relevância que esse dado tem para a
questão em foco. Como os nomes da escola e da professora são fictícios, concluí que o uso do
nome verdadeiro da criança não implicaria uma identificação da mesma.
54
O nome da criança está grafado tal como consta dos registros da escola.
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140
girando em torno da não aceitação, por parte dos negros, de sua própria
identidade. Questões como negros que humilham outros negros quando estão
numa situação de poder; jogadores de futebol famosos, ricos e negros que
escolhem mulheres loiras para se casar; o preconceito existente nas próprias
famílias dos professores, entre outras, foram deslocando o foco da discussão da
questão da identidade da criança e do papel da escola no trabalho com essa
identidade, para uma análise parcial da questão do preconceito, fundamentada
em fatos isolados, que colocam no próprio negro a rejeição de sua identidade. O
papel da escola no processo de construção da identidade da criança negra ou
afrodescendente não foi tema de reflexão do grupo e o trabalho realizado por
Geisa foi abordado como uma ação pontual, para resolver um problema visto
como específico do grupo de crianças com o qual a professora trabalhava.
Do modo como Geisa encara o problema do preconceito contra a criança
negra na escola, a partir de suas experiências de trabalho com a cultura popular,
essa é uma questão de construção de identidade e, nesse sentido, a escola
pode ter um papel importante ao valorizar a cultura negra. Já pela forma como o
problema foi visto pelos demais professores, essa é uma questão de aceitação
ou não de sua raça pelos indivíduos e de uma luta dos negros, individualmente,
para mostrar que têm valor, o que revela uma percepção parcial da questão,
colocando-a como uma questão do sujeito, e não da coletividade na qual ele
está inserido. A posição de Rosa exemplifica esse fato:
Rosa argumentou que também há negros de sucesso, como a Glória Maria (a
repórter da TV Globo) e afirmou:
Rosa: - Eu acho que o negro que chega lá também tem que mostrar que o negro
também tem condições de chegar. Não é o caso que você falou [dirige-se à
Angélica que havia relato um episódio do qual havia tomado conhecimento em
que um policial negro havia humilhado uma outra pessoa, também negra] do
policial negro que quer se impor. Não é assim também, tem que ser natural. Eu
acho que pode chegar. Eu acho que tem que valorizar essas pessoas que
aparecem, mostrar que pode chegar. (Reunião com o grupo de professores,
4/10/2004)
A análise de Rosa, fundamentada nas visões que a mídia veicula acerca
do que é ter sucesso em nossa sociedade, não permite avançar para uma
percepção do papel que a escola pode desempenhar na construção da
identidade da criança negra, mesmo quando não existe uma situação explícita
na qual o preconceito se revela.
O significado da posição de Rosa pode ser melhor compreendido tendo
como referência o que afirma Konder (2004) ao abordar a dialética numa
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141
perspectiva hegeliana: "se não enxergarmos o todo podemos atribuir um valor
exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a
compreensão de uma verdade mais geral (Konder, 2004, p. 37). Esse parece ser
o caso dos professores que, atendo-se à uma análise da questão do preconceito
racial que enfoca situações isoladas de sucesso ou fracasso, desconsideram o
papel que a escola tem, enquanto instituição imersa numa sociedade excludente,
que historicamente tem relegado o negro a uma posição subalterna, na
construção de uma identidade pelas crianças negras. Conseqüentemente, não
existe uma possibilidade de chegar à essência das situações que engendram o
preconceito, pois “para nós podermos ir além das aparências e penetrar na
essência dos fenômenos precisamos realizar operações de síntese e de análise
que esclareçam não só a dimensão imediata como também, e sobretudo, a
dimensão mediata delas” (Konder, id., p.47).
No dia em que discutimos a prática de Geisa, como em outras reuniões
com o grupo de professores, a análise das situações vividas pelos docentes em
suas atividades profissionais ateve-se à aparência dos fenômenos, a despeito do
foco que a professora buscou imprimir ao projeto “Boneca Negra de Pano”. Essa
dificuldade em perceber as mediações envolvidas nas situações com que lidam
diariamente nas escolas – a postura das famílias diante das crianças, a rejeição
das crianças frente a algumas propostas de trabalho, a organização do tempo na
instituição, entre outras questões – tem implicações no modo como esses
profissionais constroem os saberes que fundamentam sua atuação profissional.
Esses saberes, como buscamos pontuar ao longo das análises, são, em geral,
mobilizados para responder a demandas imediatas sem que, necessariamente,
os professores cheguem a uma compreensão mais aprofundada das origens
dessas demandas. São, portanto, saberes pontuais, que não adquirem maior
estruturação. Caracterizam-se, como aponta Tardif (2002), pelo sincretismo e
têm como fundamento as próprias experiências vividas pelos professores, tanto
no plano profissional quanto no plano pessoal:”Valores,normas, tradições,
experiência vivida são elementos e critérios a partir dos quais o professor emite
juízos profissionais” (Tardif, 2002, p. 66). Esses juízos se constroem a partir dos
discursos veiculados por diferentes instâncias da sociedade nas quais os
professores circulam e se materializam na palavra do professor, enquanto signo
ideológico que reflete e refrata a realidade (Bakhtin, 1997b). Isso pode ajudar a
compreender as diferentes perspectivas de Geisa e dos demais professores. No
caso da professora, o olhar sobre a questão da criança negra na escola está
fundamentado em experiências vividas anteriormente e que permitem a ela não
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142
apenas uma percepção diferenciada do problema, como o conhecimento das
fontes – cooperativa das mulheres negras, por exemplo – onde pode buscar
elementos para subsidiar seu trabalho.
Essa diferença de perspectivas parece indicar, ainda, o papel que a
formação do professor – não apenas a formação acadêmica, inicial, mas a
própria formação cultural - tem no modo como esse profissional percebe o
sujeito criança, inserido num contexto sócio-cultural mais amplo, e de seu papel
junto a essa criança. Em determinado momento da reunião do grupo, tentei
estabelecer uma relação entre o trabalho de Geisa, que enfocava a questão da
identidade a partir de uma vivência simbólica dessa identidade no grupo, com o
trabalho realizado por Patrícia com relação aos sentimentos, que já havia sido
discutido anteriormente pelo grupo de professores participantes da pesquisa.
Diferentemente do trabalho de Geisa, que se fundamenta em vivências
simbólicas, o trabalho de Patrícia estava mais voltado para uma formação de
hábitos, fundamentado num discurso moralizante sobre os sentimentos
considerados positivos – solidariedade, amizade, paz. Considerando que a
professora Patrícia havia mostrado, no dia em que discutimos seu trabalho, uma
insatisfação com seus resultados, perguntei como ela percebia os diferentes
enfoques dos dois trabalhos.
Patrícia: Em algumas salas deu resultado. Eu me lembrei de uma professora que
chegou para mim e falou: ”olha, deu resultado sim”. Agora as salas que estão
mais... são as salas que estão custando mais aceitar essa coisa do carinho. (...)
Eu coloco a música e chego para fazer um cafuné neles, tem criança que está
assim com o sentimento muito duro. Então eu acho que assim, bem ou mal,
alguma coisa mudou, deu algum resultado. Mas tem que insistir, durante anos,
para lá no futuro alguma coisa mudar. (Reunião com o grupo de professores,
4/10/2004)
Respondendo à minha provocação, Patrícia revela a dificuldade de
perceber resultados num tipo de trabalho que enfoca as manifestações das
crianças sem, na verdade, abordar as causas dessas manifestações. Entretanto
essa dificuldade é atribuída a uma resistência das próprias crianças. Embora
reflita sobre o problema, Patrícia não parece chegar a uma síntese mais ampla
com relação ao mesmo, ficando presa a perspectivas parciais, como é parcial
seu contato com as crianças e com os demais professores que trabalham com
elas, uma vez que, na condição de professora do Projeto, Patrícia transita por
várias turmas e tem poucas oportunidades de troca com os demais professores
da escola.
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143
Como foi possível perceber nas análises desenvolvidas até aqui, nas
escolas onde atuam os professores que participaram da pesquisa não há uma
proposta de trabalho com a criança pequena que envolva a instituição como um
todo. O próprio trabalho da professora Geisa não teve maiores repercussões nas
outras turmas da escola onde ela trabalha.
De acordo com Geisa, a falta de uma proposta de trabalho mais clara,
fundamentada numa concepção de infância e de educação infantil, que
nascesse da discussão com o grupo, acabava favorecendo atuações isoladas e
pontuais dos professores, muitas vezes contrastantes. É preciso lembrar que,
como afirma Kramer (2003) “todo projeto político-pedagógico é
fundamentalmente um trabalho de opção, de decisão política, a que se
subordinam objetivos, estratégias e recursos. Optar pelo caminho a seguir
implica reconhecer as possibilidades e os limites das opções” (idem, p. 53).
Entretanto é preciso lembrar também que optar só é possível a partir de uma
reflexão sobre a prática, elevando a prática à condição de práxis, que chama a
consciência para o problema; é a prática que necessita da teoria para justificá-la.
Entretanto, essa consciência não pode ser concebida como produto da reflexão
individual, que os sujeitos constroem no isolamento. Ela é, antes de tudo, uma
consciência social, que se estrutura a partir de determinadas condições
históricas. Cumpre destacar, então, o papel da reflexão partilhada no processo
de construção de saberes pelos professores da educação infantil e as condições
criadas, a nível institucional, para que essa reflexão se dê. Em que situações os
professores se encontram nas escolas? Como compartilham suas experiências?
Que tipo de mediação está envolvida nesse compartilhar?
As análises que desenvolvi até aqui parecem apontar o caráter de
fragmentação do trabalho desenvolvido pelos professores que participaram da
pesquisa, fragmentação esta que se revela em diversos níveis. No nível mais
amplo das políticas de atendimento à criança pequena, a fragmentação se revela
na divisão de responsabilidades pelo atendimento: as creches sob a
responsabilidade da Assistência Social e as pré-escolas sob a responsabilidade
da Educação. Além disso, as formas de ingresso na carreira dos professores
municipais também são fragmentadas: professores contratados, que mudam de
escolas a cada ano, professores eventuais que, como o próprio nome indica,
estão eventualmente nas escolas; professores do Projeto, que transitam pelas
diferentes turmas da escola, em tempos partidos. Nas escolas, a fragmentação
do tempo parece conduzir a uma fragmentação da própria criança, como destaca
a professora Geisa:
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144
Era uma coisa muito sofrida para as crianças. Entrava a Patrícia, eu tinha que
sair, às vezes a gente tinha que parar o que estava fazendo. Eu dizia para as
crianças: “ depois a gente vai continuar!” E não sabia quando ia ser. No dia
seguinte, tinha essa coisa de não começar com as crianças. O professor não
recebia as crianças na porta e às vezes, o próprio professor recebendo a
criança, ela fica segura. Não era assim: a cada dia era um professor. (...) Eu só
recebia as crianças dois dias e elas perdiam o referencial. (...) Elas ficavam
muito desorientadas. (Entrevista com Geisa, 2005)
Havia uma clara oposição entre a dimensão do tempo vivida por Geisa,
uma dimensão fenomenológica, o tempo estendido da narrativa que perdura, e a
dimensão técnico-racional do tempo como organizado pela escola, onde as
atividades se sucedem sem grande significado para os sujeitos. Enquanto para a
professora a vivência dos diferentes ritmos que as crianças imprimiam ao
trabalho era essencial, na escola como um todo a lógica da organização do
tempo era a da fragmentação, onde a quantidade de vivências se sobrepunha à
qualidade das experiências. Em função desse descompasso, Geisa avalia o final
do primeiro semestre do ano letivo da seguinte forma:
Fig.5- Desenho com giz de cera – Ilustração para o último registro do ano de 2004
– Caderno de Registros da professora Geisa.
Fim do semestre:
(...) Último encontro. As crianças muito agitadas, mas cantamos felizes as
nossas músicas, foi bom. Depois a apresentação do Barangandão. Seria tão
melhor se estivessem só mesmo brincando! Depois voltamos para a sala, tudo
meio caótico, sem uma programão organizada. Então desenhamos, desenhos
lindos que foram. Eu um pouco fora do centro, já que não havia um programa, e
por vezes fui dura com as crianças, talvez não precisasse ter sido. Sinto muito
que ainda falta a veneração e o encantamento nos olhos das crianças, mas
como fazer? Como trazer o sonho pra elas, como povoar a imaginação com
imagens preciosas? (...) Depois dos desenhos fizemos a roda, que não foi tão
boa assim. Fui dura novamente e acho que exigi muito deles, ou não... Fizemos
a oração do alimento e foi bonita, houve a calma necessária e as crianças
puderam sentir um pouco. Fomos para a festa e sempre aquelas coisas que,
para mim, não são importantes para as crianças. Muito barulho, pouco
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145
envolvimento. Depois cachorro-quente e guaraná e aí elas brincaram um pouco.
Fomos para a sala e a menina da lanterna fomos todos nós. Foi bem bonito de
ver a luz na carinha das crianças e elas também gostaram. Mas ao fim deste
pequeno momento mágico, a dispersão novamente. Como mantê-los envoltos
por mais tempo na atmosfera? É a grande questão que devo perseguir. Acho
que hoje foi muito pela minha própria falta de estar inteira em cada gesto e nos
meus sentimentos. Mas tudo há de melhorar pros tempos que hão de vir. E que
assim seja. (Caderno de Registros de Geisa, fim do semestre)
Avaliando o dia em que se encerram as atividades do semestre, Geisa
mostra sua insatisfação com a qualidade de seu trabalho, em função de sua
dificuldade em lidar com a sucessão de atividades promovidas na escola sem
um planejamento prévio. As atividades têm um fim em si mesmas, fugindo à
perspectiva de trabalho da professora e aos objetivos perseguidos por ela, de
cultivar nas crianças uma atitude de "veneração e encantamento", só possível na
vivência de um tempo estendido, em que haja a possibilidade de saborear as
situações, desfrutando plenamente da saudável inutilidade do brinquedo. No
caso de Geisa, embora a criança seja a informante dos rumos do trabalho
realizado pela professora, a falta de uma interlocução entre pares na escola
onde trabalhava parece ter sido um impedimento para que a professora se
sentisse satisfeita com os resultados de seu trabalho, que se fundamenta na arte
de narrar.
Para a professora, a condição de "estar inteira em cada gesto" é
essencial para encontrar o centro na realização de seu trabalho. Entretanto, essa
condição é dificultada por fatores institucionais, pois, embora a escola não tenha
uma linha de ação mais articulada, existe uma proposta curricular em andamento
na instituição, ainda que as ações muitas vezes careçam de uma
intencionalidade.
No início do ano de 2005, quando foi efetivada como professora da rede
pública municipal de ensino, Geisa optou por trabalhar em uma outra escola, na
qual encontrou uma maior identificação com seus objetivos:
Lá eu vejo que há uma identidade. Eles sabem o que é a criança e o que eles
pretendem. Eles têm essa questão de trabalhar o aspecto antropológico das
crianças, de identidade, de consciência delas, quem elas são. Isso é muito forte.
Então você tem uma linha de trabalho. É a primeira vez que eu estou tendo uma
orientação boa. Trocar com a A. (diretora da escola onde Geisa está trabalhando
atualmente) está sendo assim... Nossa! Parece que eu estou fazendo um curso.
(Entrevista com Geisa, 2005)
Na escola onde trabalha atualmente Geisa é responsável por uma turma
de crianças de 7 anos, do ensino fundamental, o que, segundo a professora, tem
se constituído num novo desafio para quem sempre pensou em trabalhar com
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146
os pequenos. Portanto, pelo menos por enquanto, a trajetória de Geisa como
professora da pré-escola foi interrompida.
As trajetórias de Lucas e Geisa, a despeito das muitas peculiaridades,
convergem para o fato de que a educação infantil foi um lugar de passagem,
mais ou menos desejado pelos professores, mas, ainda assim, um lugar por
onde passaram num determinado momento de suas trajetórias profissionais.
Ambos afirmam ter aprendido nesse lugar, mas, em função da própria dinâmica
de organização da rede pública municipal de ensino, não permaneceram por
mais tempo nele.
No caso de Lucas, talvez não tenha havido tempo suficiente para
consolidar ou mesmo validar os saberes construídos nesse processo de
aprendizagem de ser professor de crianças pequenas, entre eles, o saber
brincar, de modo que os saberes construídos se traduzissem numa prática mais
consistente, que permitisse a afirmação de uma identidade de professor de
educação infantil. Nesse caso, talvez a passagem pela educação infantil tenha
se constituído apenas como uma etapa a ser vencida para dar um outro rumo à
carreira.
Para Geisa, as dificuldades de compartilhar perspectivas de trabalho na
instituição em que atuava parece ter contribuído para que a professora se
transferisse para outra escola, na qual não houve a possibilidade de permanecer
na educação infantil pela inexistência de vagas naquele segmento, mas onde
encontrou a possibilidade de mobilizar o seu saber narrar.
Para Patrícia, hoje trabalhando com uma turma de 3
o
período na Escola
Verde, a situação de professora em trânsito parece ter sido superada. A
professora se diz satisfeita, pois, no ano de 2005, conseguiu novamente a sua
“salinha”. Nesse caso, é como se Patrícia conquistasse a consolidação de uma
identidade de professora da pré-escola e uma maior estabilidade na carreira, não
apenas em termos funcionais, mas, principalmente, em função de uma relação
mais estável com as crianças, sendo, para elas, uma referência.
Com as experiências dos professores Lucas, Patrícia e Geisa foi possível
compreender que, no estágio de sobrevivência na carreira de professor da pré-
escola, se por um lado existe uma dificuldade em consolidar alguns saberes em
função das mudanças freqüentes, por outro há uma disponibilidade ao novo, à
criação de alternativas para chegar à criança que, nesse estágio, tem um papel
importante na construção dos saberes profissionais pelo professor. Nas
experiências desses professores destaca-se, ainda, o papel formador dos
contextos institucionais e o os pares como os formadores mais próximos,
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147
enquanto aqueles que validam ou valorizam determinadas experiências em
detrimento de outras.
Finalmente, as experiências desses professores mostram a condição de
professor da pré-escola vivida como situação de passagem, sem garantias de
uma consolidação em termos de carreira, o que traz implicações para o
investimento desses profissionais em sua formação e na criação de condições
de reflexividade sobre os saberes da prática. Como essa mesma condição é
vivida por profissionais que já conquistaram uma estabilidade como professores
da pré-escola? É tentando compreender essa questão que, no capítulo a seguir,
busco a palavra de outras quatro professoras participantes da pesquisa.
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6
Identidade e conflitos do professor de educação infantil
Neste capítulo apresento e discuto as experiências das professoras que
apresentam uma trajetória já consolidada na educação infantil e que vivem a
carreira numa perspectiva mais estável. Essas professoras trabalham há vários
anos com crianças pequenas e são efetivas na rede pública municipal, atuando
numa mesma escola também há vários anos.
A consolidação de uma posição na carreira confere a essas profissionais
um sentimento de pertencimento à condição de professora da educação infantil,
do qual decorre um sentido de responsabilidade com relação a essa posição.
Essas seriam características da fase de estabilização (Huberman, 2000) ou de
maturidade (Katz apud Oliveira-Formosinho, s/d) na carreira que têm em comum
o sentimento de competência do profissional com relação ao seu trabalho e o
sentimento de pertencimento a um grupo profissional. Isso estabelece um
diferencial entre as docentes que serão abordadas neste capítulo e os
professores enfocados no capítulo anterior desta tese. Estes últimos, embora
afirmem um gosto ou predileção pela educação infantil, não manifestam esse
sentimento de pertencimento ao grupo dos professores da educação infantil,
mas antes se definem como professores em situação transitória (ou “em
trânsito”, como defini).
Deriva do sentido de pertencimento a um grupo profissional, manifesto
pelas professoras Sueli, Rosa, Frany e Angélica, um sentimento de
responsabilidade tanto com relação aos alunos quanto com relação às
instituições nas quais atuam, o que traz implicações no modo como essas
profissionais assumem sua condição de professoras da educação infantil,
constroem os saberes profissionais e vivem suas condições de trabalho. Ao
mesmo tempo em que as professoras demonstram uma maior segurança com
relação à sua atuação junto aos pequenos, pois os anos de experiência
possibilitaram validar alguns saberes e ações em detrimento de outros, revelam
que essas opções não se fazem sem conflitos e questionamentos, tanto com
relação a seus próprios procedimentos quanto com relação às condições
institucionais em que realizam seu trabalho.
Para Bakhtin, o mundo não chega à nossa consciência sem mediação.
Nos encontros com o grupo de professores, nos quais foram apresentadas e
discutidas as filmagens realizadas nas turmas das docentes, os sentimentos
dessas profissionais com relação a seu trabalho foram emergindo e
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149
confrontando-se com o olhar do outro, colega de profissão, possibilitando uma
ressignificação da prática num movimento de passagem do nível do sensível
para o nível do inteligível. O excedente de visão dos colegas de profissão, com
diferentes histórias e trajetórias pessoais e profissionais, ofereceu às professoras
a possibilidade de produção de novos sentidos para a prática, revelando a
dialética entre permanência e mudança em que se constroem e se consolidam o
trabalho e os saberes dessas profissionais. É esse movimento que busco
analisar nos itens que se seguem.
6.1.
Ingresso na profissão e percursos na carreira
As professoras Frany, Rosa, Angélica e Sueli, que tomo como referência
para as análises desenvolvidas neste capítulo, apresentam alguns traços em
comum em suas trajetórias profissionais. Todas elas se encontram numa faixa
etária entre 40 e 45 anos, têm, como formação inicial, o curso Normal de nível
médio e ingressaram na rede pública municipal de ensino na década de 1980.
Sobre o Normal de nível médio, algumas das professoras desse grupo
destacam a importância do curso em sua formação:
Eu sempre tive muita identificação com as matérias do curso Normal. Eu tirava
10 em Didática... eram as matérias que eu gostava muito. Talvez o curso
superior tenha me dado mais maturidade para eu saber o que pesquisar, umas
novidades... (Entrevista com Sueli, 10/08/2005)
***
Eu acho que o curso Normal teve um papel decisivo na minha formação. Era um
curso muito bom mesmo, havia seleção para entrar na Escola Normal. As alunas
tinham que estudar mesmo, os professores exigiam. A gente tinha aula de
manhã e à tarde. Eu me lembro das aulas de puericultura, que eram aqui, acho
que era um convento, ali perto da Escola Normal. Eram as irmãs que davam:
falava sobre a gestação, sobre o desenvolvimento do bebê... muito bom mesmo.
(Entrevista com Rosa, agosto de 2005)
O destaque ao curso Normal de nível médio como uma instância
significativa de formação foi um ponto em comum nos relatos das professoras
que participaram da pesquisa que fizeram aquele curso. Dos sete professores
que constituíram o grupo, apenas dois não cursaram o Normal de nível médio
(Lucas e Geisa). As cinco professoras que cursaram o Normal de nível médio,
seguido de algum curso superior (Pedagogia, Letras ou Normal Superior)
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150
apontam a formação de nível médio como especialmente importante para
subsidiar a atuação na educação infantil, embora reconheçam a insuficiência
dessa formação, destacando a prática profissional como verdadeiro espaço de
aprendizagem da profissão.
Esse destaque ao curso Normal pode estar relacionado a um certo status
conferido aos alunos do Instituto de Educação de Juiz de Fora em décadas
passadas. Àquele instituto era atribuída a característica de possuir bons e
severos professores e um ensino de qualidade. Algumas professoras
participantes da pesquisa, como Frany, Rosa e Patrícia fizeram questão de
destacar em suas entrevistas que havia concurso para admissão naquela
instituição. Esse dado converge para o que aponta Lelis (1997), ao analisar um
sentimento de “reverência” dos professores pela escola normal, identificando-a
como uma instituição de excelência. Para aquela autora, tal sentimento pode
estar relacionado à possibilidade de mudança de posição social que a escola
normal representava para alunas que dispunham de um capital econômico mais
baixo, por ser aquela instituição identificada com um ensino de qualidade.
Outro ponto em comum entre as docentes é o fato de trabalharem
vários anos (entre oito e dezesseis anos) numa mesma escola.
As razões para o ingresso na carreira dessas profissionais são bastante
semelhantes. Todas elas fizeram a opção pelo magistério numa época em que
esse era o destino mais ou menos natural das mulheres, em especial daquelas
que, além de uma carreira profissional, desejavam também o casamento e a
maternidade.
Em suas entrevistas, as professoras falam sobre o ingresso na carreira:
Rosa: - Meus pais me levaram para fazer o curso Normal porque era o natural
para as moças da minha época, mas depois eu gostei da profissão e fiquei.
(Entrevista com Rosa, agosto de 2005)
Frany, irmã de Rosa, corrobora essa opinião:
Frany: - na minha época a gente fazia era o Normal mesmo. (Entrevista com
Frany, junho de 2004)
***
Eu pensava, a princípio, em fazer outro curso. Só que na época minha
oportunidade era fazer magistério, porque onde eu pensava estudar tinha o
curso de magistério. Aí eu comecei o curso e gostei. (Entrevista com Angélica,
19/05/2004)
***
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151
Desde pequena eu já acompanhava minha mãe que era professora, sempre ia
para a aula com ela.(...) Então já estava bem incorporado em mim. Eu sempre
gostei muito de lidar com criança. (Entrevista com Sueli – 10/08/2005)
Dos depoimentos das professoras é possível depreender que, para elas,
o magistério foi, de certo modo, uma opção contingente num determinado
contexto histórico-cultural no qual esta era não apenas uma opção possível, mas
uma conseqüência natural de ser mulher. Esse caráter contigente da opção pelo
magistério é um dado que emerge também em outros estudos que têm
focalizado o magistério
1
. Entretanto, a despeito da contingência inicial, ser
professora se incorporou ao modo de ser de cada uma, como afirma Sueli.
Para alcançar os sentidos que Sueli confere à sua opção pelo magistério,
busco o significado da palavra "incorporar" pois, numa perspectiva bakhtiniana,
"a palavra é sua história" (Cereja, 2005, p. 203), ou seja, traz consigo uma
memória das utilizações que, ao longo da história, dela se fizeram.
No dicionário Aurélio, encontramos, entre outros significados de
incorporar: “1- Dar forma corpórea. (...); 8- Unir, reunir, juntar, em um só corpo
ou um só todo.” Considerando a atualização que Sueli faz da palavra
"incorporar" em seu enunciado, numa situação de entrevista na qual é abordada
sua opção pelo magistério, é possível compreender o uso do termo incorporar
para definir a profissão como um aspecto da vida que envolve o sujeito como um
todo, não apenas numa dimensão racional ou técnica, mas também numa
dimensão emocional, afetiva.
Gostar de crianças, ter uma paixão pela profissão, demonstrar afeto e
cuidado com os pequenos foi também um dado recorrente nas percepções
dessas profissionais do que é ser professora de educação infantil e nas razões
para se manterem na profissão, como é possível perceber no enunciado de Sueli
e também no que afirma Angélica:
Hoje eu amo minha profissão, amo minha profissão. Eu gosto muito de trabalhar
com crianças. Gosto muito de adolescentes também, mas eu acho que a criança
tem uma necessidade muito grande de nossa presença como orientador. (...) A
afetividade é a prioridade. Porque você tem que ter muito amor... Amor, não!
Carinho. Tem que ter muito carinho com as crianças. (Entrevista com Angélica,
19/05/2004)
Embora aponte o carinho e gostar de crianças como importantes, a
professora destaca também o valor da formação acadêmica para a orientação de
sua prática:
1
Podemos citar Lelis (1996; 1997), Chamon (2005); Almeida (1998); Louro (2002), entre outros.
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152
Eu acho que se eu não tivesse um curso superior, eu seria menos
questionadora.(...) Eu acho que hoje, se eu não tivesse uma formação teórica, eu
não saberia lidar com os problemas, eu estaria errando muito, Porque cada dia é
uma situação nova para mim (...) Porque às vezes eu me questiono: será que eu
estou fazendo direito? Será que eu estou trabalhando? (Entrevista com Angélica,
19/05/2004)
***
Talvez o curso superior tenha me dado mais maturidade para saber o que
pesquisar, umas novidades... (Entrevista com Sueli, 10/08/2005)
***
Nos depoimentos de Angélica e Sueli a formação acadêmica aparece
como importante, por possibilitar autonomia e reflexividade no exercício da
docência.
Para Frany, que à época da pesquisa cursava o Normal Superior após
vários anos sem estudar, a formação acadêmica se mostrou, inclusive, uma
referência fundamental no processo de construção de uma identidade
profissional pela professora, naquele momento de sua carreira. Em várias
oportunidades, ao longo de nossa convivência, a professora destacou a
importância do curso superior pela possibilidade que abre de questionar a prática
e as mudanças que a freqüência a esse curso trouxe tanto à sua atuação como
professora, quanto às suas características pessoais, em termos de sentir-se
mais segura e confiante.
Embora os professores busquem alternativas para dar conta das
situações práticas que se apresentam em seu cotidiano, os enunciados de
Angélica, Sueli e Frany contribuem para relativizar a idéia, muitas vezes
presente em estudos que abordam a relação dos professores com o saber, de
que os professores sejam resistentes à teoria, ou não reconheçam nela um
valor. Esse reconhecimento aparece nos enunciados das professoras, embora o
valor da teoria se ligue à sua capacidade de responder à prática
2
.
Para as professoras que já possuem uma carreira estável na educação
infantil, aparecem como fontes de satisfação profissional, por um lado, o
reconhecimento do valor desse trabalho pelas crianças e pelas famílias e, por
outro, a possibilidade de perceber o desenvolvimento alcançado pelas crianças.
É inclusive por considerarem que com a criança pequena os frutos do trabalho
da professora são mais evidentes, que as docentes afirmam sua preferência por
trabalhar com os pequenos e, entre as diferentes faixas etárias, com o 3º
2
Sobre as percepções as relações entre teoria e prática na formação dos profissionais da
educação infantil ver MICARELLO, H. Formação de profissionais da educação infantil: "sair da
teoria e entrar na prática"? In: KRAMER, S. (org.) Profissionais da educação infantil: gestão e
formação. São Paulo: Ática, 2005, p. 140-155.
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153
período (crianças de 6 anos, na etapa em que, em geral, se espera que as
crianças sejam alfabetizadas).
Eu me identifico muito mais com o 3º período, que agora é a Fase 1. Eu acho
que a gente tem uma resposta do trabalho melhor, a gente vê nosso
investimento... a criança começa a ler. Mesmo que não seja obrigatório, como
aqui não é, mas a maioria sai alfabetizada. E é muito gostoso, muito prazeroso.
A descoberta da escrita para eles... é tudo muito legal, todo dia tem uma
novidade. Então eu gosto mais. (Entrevista com Sueli – 10/08/2005)
Perceber, no desenvolvimento das crianças ou em aprendizagens por
elas realizadas, os resultados do investimento feito com seu trabalho parece ser
uma fonte importante de satisfação profissional para as docentes que já
consolidaram uma posição na carreira de professoras da educação infantil. É no
intuito de alcançar essa satisfação que as docentes desenvolvem diferentes
estilos de conduzir seu trabalho e também se colocam alguns conflitos com
relação à pertinência ou adequação do mesmo. Esses conflitos emergiram e
foram refletidos por elas nas reuniões com o grupo de professores, evidenciando
o papel das relações de alteridade na constituição da identidade.
Nos tópicos que se seguem, focalizo a experiência de cada uma dessas
professoras, para compreender os saberes que mobilizam em suas atividades de
docência e como esses saberes foram significados a partir das reuniões com os
demais professores. Nos casos de Frany e Rosa, ao contrário das análises
empreendidas com os demais professores, abordarei as práticas das duas
docentes num mesmo tópico, pois, além de haver uma convergência entre os
estilos pedagógicos de ambas, observei a prática de Rosa por pouco tempo, em
virtude de sua ausência da escola por motivo de licença média. Embora as
observações na turma de Rosa tenham sido poucas, essa professora teve uma
participação bastante efetiva nas reuniões com o grupo de professores, que
ocorreram quando ela já havia retornado à escola. Suas intervenções naquelas
reuniões aparecem em vários momentos dos capítulos 5 e 6 da tese. A partir
dessas intervenções, do diálogo que elas estabelecem com os enunciados dos
demais professores, foi possível apreender elementos significativos acerca das
percepções dos docentes sobre a condição de professor da educação infantil.
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154
6.2.
“Eu me vejo como uma profissional”
Dizer é dizer-se.
(Sobral, A., 2005, p.11)
Quando comecei as observações com a professora Sueli, no primeiro
semestre letivo, ela trabalhava com um grupo de 25 crianças na faixa etária dos
6 anos (3
º
período, àquela época
3
). Segundo Sueli, esta é a faixa etária com a
qual ela mais gosta de trabalhar, como destacado no tópico anterior.
Com a turma do 3º período, as atividades desenvolvidas pela professora
eram direcionadas principalmente ao objetivo da alfabetização. A rotina da turma
era variada pois, em função do esquema de 15 horas semanais dos professores
regentes, a cada dia da semana as crianças desenvolviam atividades com outros
profissionais (professora de literatura e música, responsável pelo Projeto e
professora de educação física). Em geral, após um horário destinado à
brincadeira na própria sala, Sueli realizava atividades de leitura e/ou escrita,
baseadas no método silábico de alfabetização. Para a realização dessas
atividades a professora solicitava a atenção das crianças e que trabalhassem em
silêncio, embora em alguns momentos incentivasse a colaboração entre pares
na execução de algumas tarefas,como no evento relatado a seguir:
Sueli pediu que as crianças realizassem uma atividade: uma folha mimeografada
com desenhos para escreverem os nomes das figuras (há uma figura para cada
letra do alfabeto). Orientou as crianças a escreverem as palavras como
soubessem, pensando em cada parte da palavra para saber como escrevê-la e a
tentar fazer sem copiar, consultando o colega se houvesse dúvida quanto a
alguma palavra. (...) A professora foi passando pelas mesas, auxiliando às
crianças com dificuldades. Autorizou àqueles que já haviam terminado a auxiliar
os colegas com dificuldade: “ Não é para falar para o colega, senão ele também
não vai aprender. É para ir falando a palavra e pedir para o colega pensar”
(Notas de campo, Escola Amarela, 09/05/2004)
Na situação descrita, a professora faz a mediação junto às crianças,
auxiliando àquelas com dificuldades e, ao mesmo tempo, incentiva a mediação
entre pares. Segundo a professora, seu estilo de trabalho era "conservador":
Eu sou conservadora. Porque eu acredito no b-a/ba, eu acredito na disciplina, eu
acredito que você tem que ter uma coisa sistemática... porque quando surgiu o
construtivismo virou-se as mesas de pernas para
o ar, a criança pode escrever
no chão, na parede. Então eu acho que não se estruturou o profissional e
3
A denominação “Fase 1” passou a ser adotada pelas escolas públicas municipais para fazer
referência ao 3 º período após a implementação do ensino fundamental de 9 anos na rede
municipal de ensino.
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155
aplicou-se. E teve gente que interpretou o construtivismo como bagunça,
baderna. E virou uma bagunça. Eu não consigo, eu sou
mais metódica, eu acho
que eu tenho um resultado bom. Não sou a favor da palmatória, não sou a favor
de ajoelhar no milho. Mas acho que você tem que ter uma organização para sua
aula render, para que você consiga passar a coisa. Você não está ali só tomando
conta, você não é babá. Você é um profissional. Eu, pelo menos, me vejo como
profissional. Então eu sou conservadora nesta parte. (Entrevista com Sueli –
10/08/2005)
Analisando seu estilo de trabalho Sueli, ao falar do construtivismo, lança
uma crítica à imposição de novos métodos sem uma reflexão pelos docentes
sobre sua validade ou pertinência. Como destaquei no capítulo 2 desta tese,
muitos estudos que têm se dedicado à análise da relação dos professores com
os saberes que ensinam e com o saber de como ensinar, principalmente nas
décadas de 1970 e 1980 engendraram um discurso de culpabilização dos
docentes pelo fracasso escolar, acusando-os, dentre outras coisas, de serem
resistentes à mudança. Tal resistência era atribuída, em certo sentido, a uma
falta de profissionalismo, derivada da estreita relação entre as funções
domésticas, próprias à atuação no espaço privado, e atribuídas historicamente
às mulheres. Ser conservador, nessa perspectiva seria um defeito, um
impedimento a que esses profissionais fizessem frente aos novos papéis que
lhes eram exigidos pela sociedade contemporânea. Entretanto, do modo como
Sueli estrutura seu discurso, o fato de ser conservadora, como ela própria se
define, não tem uma conotação negativa, no sentido de mostrar-se resistente às
mudanças, mas revela a adesão a um conjunto de crenças e valores que se
mantém, a despeito das mudanças nas orientações oficiais. Nesse sentido, ser
conservadora é uma forma de preservar uma identidade, construída nos anos de
exercício de profissão, num movimento de invenção e re-invenção dessa prática.
A afirmação e reafirmação de suas crenças é uma forma de compreensão
responsiva aos discursos de culpabilização dos docentes por seu
conservadorismo. Ao se definir como conservadora, justificando os motivos para
tal, a professora se afirma como sujeito de sua prática, o que nos remete ao
conceito de práxis, como formulado por Karl Marx. Apontando o conceito de
práxis como um dos conceitos fundamentais da filosofia de Marx, Konder (2001)
afirma:
O homem é sujeito da práxis, existe se inventando a si mesmo, num movimento
incessante, sempre condicionado - necessariamente - pela situação em que se
encontra no ponto de partida; mas sempre capaz de tomar iniciativas e projetar
sua ação, impondo - até certo ponto livremente - limites ao condicionamento
necessário. (Konder, 2001, p. 17)
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156
O processo de reivenção de si mesmo pela práxis confere ao homem a
qualidade de sujeito responsável pelos seus atos e, ao mesmo tempo, um sujeito
que responde, através desses atos, aos atos de outros sujeitos humanos. As
crenças e valores que os professores abraçam e defendem no exercício de sua
profissão se constroem na interação com o outro, em condições sociais e
históricas específicas.
A prática do professor se dá na relação com outros sujeitos humanos.
Essas relações envolvem escolhas, uma vez que o docente se confronta com
novas situações a todo momento. Isso exige uma reivenção da prática, embora
alguns valores se mantenham, ou se conservem. À luz do conceito de práxis é
possível compreender que Sueli fala de uma forma de se colocar frente à
profissão, com os valores, crenças e opções pessoais
, numa dialética entre
permanência e mudança, fazendo uma seleção daqueles procedimentos que
considera válidos para fazer frente às novas situações, mas buscando manter
uma coerência com seus princípios. Nesse sentido, resistir aos discursos que
colocam o professor na contingência de uma adesão irrefletida a novas
metodologias de trabalho, sobre as quais ele não tem uma reflexão crítica, é
uma forma de destituir o profissional de sua capacidade de reinvenção da
própria docência.
Ainda analisando como a professora define seu modo de trabalhar, é
possível perceber que, para Sueli, a identidade profissional parece estar
vinculada, em certo sentido, à competência para transmitir algo às crianças - (...)
você tem que ter uma organização para a aula render, para que você consiga
passar a coisa. Nas palavras da professora, é essa capacidade de "passar a
coisa" que estabelece um diferencial entre a professora e a babá, que apenas
cuida. Portanto, podemos compreender o enunciado de Sueli também como uma
forma de compreensão responsiva àqueles discursos que enfocam a identidade
do profissional que trabalha com a criança pequena tendo como referência
exclusivamente qualidades como amor, vocação, carinho, cuidado, que buscam
nas qualidades femininas, ligadas ao espaço privado, o fundamento para a
docência na educação infantil. Para Sueli, definir a profissionalidade do professor
da educação infantil em referência à possibilidade de transmitir algum
conhecimento à criança e ao domínio de um método para proceder a essa
transmissão é uma forma de se contrapor à idéia de ser apenas cuidadora -
Você não está ali só tomando conta, você não é babá. Você é um profissional
para afirmar a idéia de profissionalismo.
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A professora afirma esse profissionalismo utilizando termos ligados a
práticas do ensino fundamental, quando fala de fazer render a “aula” ou de
“passar o conteúdo”. Para Bakhtin, o enunciado reflete as condições específicas
e as finalidades de cada uma das esferas da vida social. São essas condições
específicas que dão origem aos diferentes gêneros do discurso próprios a essas
esferas (Bakhtin, 1997a). No caso do enunciado de Sueli, - e também para
outros professores que utilizam termos semelhantes como, por exemplo, no caso
de Lucas, que falou em “dar aula” na creche - a esfera da vida social da qual
emanam os termos por eles utilizados é aquela própria ao trabalho na escola de
ensino fundamental. Portanto, é possível perceber que a professora define as
características de sua atuação profissional a partir de uma identificação dessas
características com aquelas próprias à atuação do profissional do ensino
fundamental. Tal identificação pode ser compreendida pela ausência de uma
maior clareza com relação à especificidade do trabalho com a criança pequena
que, historicamente, vem sendo compreendido a partir de perspectivas que
dicotomizam as dimensões do cuidado e da educação, sendo a dimensão do
cuidado identificada com práticas ligadas à vida privada e, por isso, não
profissionais.
Contudo, para a professora, negar uma identidade que se define apenas
pelo cuidado não significa excluir essa dimensão enquanto expressão de um
comprometimento com o outro que é importante na prática do profissional que
atua junto à criança pequena. Como a própria professora destaca, sentir-se
responsável pelas crianças com as quais trabalha tem sido, ao longo de sua
trajetória profissional, fonte de preocupações, como é perceptível no evento que
apresento a seguir:
Enquanto as crianças produziam um texto solicitado pela professora, Sueli
sentou-se ao meu lado e começamos a conversar. A professora falou de seu
idealismo nos primeiros anos de trabalho e de seu envolvimento com os alunos.
Disse que achava que podia mudar o mundo e que, inclusive, convenceu os pais
a adotarem uma menina que fora sua aluna e que, hoje, mora com ela, sendo
tratada como irmã. (Notas de campo, 16/06/2004)
No depoimento de Sueli o idealismo dos primeiros anos de profissão está
relacionado a uma crença na possibilidade de mudar as condições de vida dos
alunos. Essa crença levou a professora, inclusive, a solicitar à família a adoção
de uma de suas alunas, o que representa uma situação extrema na qual um
aspecto da vida profissional é efetivamente transportado para o plano da vida
pessoal. Embora afirme que atualmente está muito mais "endurecida" com
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158
relação a essas questões, não se envolvendo tão intensamente com os
problemas das crianças, a observação da prática de Sueli mostrou que esse é
ainda um aspecto bastante significativo de sua profissionalidade.
Foi justamente por sentir-se envolvida com o problema de uma criança
em especial que Sueli foi transferida para outra turma no segundo semestre de
2004.
No capítulo 5 desta tese foram feitas algumas alusões à presença, na
Escola Amarela, de um menino com paralisia cerebral, a quem chamei de Igor. O
menino foi matriculado na turma do 1º período, e sua chegada coincidiu com a
saída da professora Rosa da turma por motivo de licença médica. Ainda no
período de adaptação de Igor à escola, houve uma aproximação entre ele e
Sueli, embora o menino não estivesse na turma daquela professora.
Rapidamente Igor aprendeu a pronunciar o nome de Sueli, sorrindo quando ela
se aproximava e dando sinais de apreciar sua companhia.
Para Lucas, ainda bastante inexperiente no magistério e professor
responsável pela turma da qual Igor fazia parte, trabalhar com o menino, que
não andava e praticamente não falava, constituía-se num desafio a mais a ser
enfrentado. Muitas vezes o professor ficava em dúvida quanto ao procedimento
mais adequado a adotar, como no evento que descrevo a seguir.
Igor chegou à sala de atividades no colo da avó. A cadeira de rodas na qual ele
vem para a escola foi deixada no andar térreo e a avó subiu as escadas com o
menino no colo. Na sala há uma outra cadeira de rodas, que fica
permanentemente naquele ambiente em virtude das dificuldades para subir e
descer as escadas com a cadeira. Lucas foi até à porta para receber o menino.
Passou as mãos pelas costas dele num carinho, enquanto conversava com a
avó. Em seguida, trouxe a cadeira de rodas que fica na sala e a avó sentou o
menino, que se debateu um pouco, parecendo protestar e emitindo alguns sons
ininteligíveis. A avó se despediu do professor e saiu. Lucas olhou para mim e
perguntou: - E agora, que atividade eu vou dar para ele? (Notas de campo,
Escola Amarela, 16/05/2005)
A pergunta de Lucas demonstra certo desamparo diante da situação.
Esse desamparo se manifestou em outras situações, nas quais, muitas vezes,
Igor ficava excluído das atividades por uma dificuldade de se avaliar até que
ponto ele efetivamente poderia participar delas. Cabe aí um questionamento com
relação ao apoio oferecido ao professor, pela instituição, para receber essa
criança, com tantas peculiaridades, em seu grupo, sendo ainda tão inexperiente.
Na ausência de uma política de inclusão, ou pelo menos de mecanismos
de apoio mais efetivos ao professor que pudessem dar a Lucas melhores
condições para trabalhar com Igor em seu grupo, a solução encontrada pela
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159
escola foi fazer uma mudança nas turmas no segundo semestre, transferindo a
professora Sueli para o 1º período.
Segundo Sueli, ela própria solicitou essa transferência, pois muitas vezes
ficava pensando no menino e no que poderia fazer por ele. A passagem de Sueli
da turma do 3
º
período para a do 1
º
foi motivada por um sentimento de
comprometimento com Igor que, ao longo da convivência da professora com o
menino, foi se definindo por um propósito de ajudá-lo a andar.
Quando Sueli assumiu a turma de Igor, uma estagiária do curso de
Pedagogia foi enviada pela Gerência de Educação Básica para auxiliar a
professora. Através de um fisioterapeuta, amigo dessa estagiária, Sueli e a
professora de educação física, que também trabalhava com a turma, receberam
algumas orientações sobre como estimular o menino. Além da estagiária,
nenhum outro tipo de apoio ou orientação foi dado à professora, exceto por
alguns cursos alusivos ao trabalho com crianças deficientes oferecidos pela
GEB. Mesmo a procura pela orientação de um fisioterapeuta foi uma iniciativa da
própria professora e se deu informalmente, como um favor prestado à professora
e à estagiária pelo fisioterapeuta.
Podemos afirmar que, na situação em que Igor se encontrava, Sueli
talvez tenha se encantado com a possibilidade de contribuir de forma efetiva
com o desenvolvimento de uma criança que se apresentava numa situação de
bastante fragilidade e dependência. Essa postura da professora evidencia o
caráter relacional da docência e o modo como a dimensão da interação com o
outro - que nesse caso é um ser que necessita especialmente de cuidados -
mobiliza o docente para além de uma competência técnica para lidar com as
situações cotidianas, estendendo-se a uma dimensão ética e emocional, da qual
decorre um forte sentimento de comprometimento com o outro. Nesse sentido, é
possível perceber que uma modalidade de saber importante na constituição da
identidade dos profissionais que trabalham com a criança pequena é o saber
acolher.
No dicionário Aurélio, o verbo acolher tem, entre outras definições: "1.Dar
acolhida ou agasalho a; hospedar. 2.Dar acolhida a; receber. 3.Atender,
receber.(...)" Os sentidos desse verbo parecem se aplicar bem à definição do
saber ser sensível às necessidades do outro, recebendo-as e atendendo-as, o
que se mostrou, ao longo do trabalho de pesquisa como uma característica
importante dos professores da educação infantil. Esse saber acolher se define
pela sensibilidade às necessidades do outro, sejam elas de natureza física,
emocional ou cognitiva e pela capacidade de responder a elas. Portanto, saber
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acolher, embora exija um envolvimento afetivo do profissional, requer também
formação para identificar as necessidades das crianças e para desenvolver
práticas que, intencionalmente, busquem atender a essas necessidades. Isso
coloca em evidência o fato de que o saber dos professores é sempre um saber
para o outro, que se constitui e se explicita nas relações interpessoais. O produto
do trabalho do professor não é visível senão no outro, naquilo que ele manifesta
em seu comportamento ou na qualidade de sua relação com o mundo e com os
objetos do conhecimento.
Hargreaves (1998) destaca que o empenho no cuidado com o outro é
uma característica marcante entre os professores de crianças pequenas,
constituindo-se numa fonte de satisfação emocional. O autor destaca: "A vida e o
trabalho de muitos desses professores são sustentados por princípios de calor
humano, de amor e de auto-estima, muito mais do que por princípios de
aprendizagem cognitiva e de eficácia na instrução” (Hargreaves, 1998, p. 164).
No caso de Sueli, se por um lado poder ensinar algo às crianças parece
ser uma fonte de satisfação profissional para a professora, perceptível na
justificativa que ela dá para sua predileção por trabalhar com o 3º período, por
outro, estabelecer laços afetivos mais estáveis com as crianças também parece
ser um motivo de satisfação:
Eu busco, eu quero que meu trabalho seja reconhecido, eu quero um resultado
do meu trabalho. Adoro quando eu passo na rua e encontro um aluno que foi
meu e diz que foi bom aquele início, que não me esqueceu como eu não o
esqueci. Fico triste quando alguém que foi meu aluno passa por mim e nem me
cumprimenta. (Entrevista com Sueli – 10/08/2005)
As palavras de Sueli demonstram que, embora a professora perceba sua
identidade profissional para além de uma perspectiva exclusivamente ligada às
atividades de cuidado, o componente relacional também é importante para que
ela construa uma percepção de si mesma enquanto profissional e para que
possa sentir-se gratificada no exercício da profissão
4
. Esse sentimento de
gratificação advém de um comprometimento com o outro como condição de
acabamento de si mesmo.
Na perspectiva dialógica de Bakhtin, o sujeito é concebido nas
dimensões de um eu para-si e também de um eu para-o-outro. No plano do eu
4
Esse dado converge para a constatação de Lelis (1996) de que entre as professoras
entrevistadas em seu trabalho de pesquisa há uma centralidade do compromisso com os alunos
na postura profissional, em decorrência de necessidades próprias ao trabalho pedagógico e não
apenas como reflexo do trabalho doméstico no exercício profissional.
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para-si se constitui a identidade do sujeito, sendo o plano do eu para-o-outro
responsável pela inserção da identidade desse sujeito numa dimensão
relacional, que lhe dá sentido (Sobral, 2005). Essa inserção no plano relacional
implica uma posição de responsividade do sujeito com relação a suas ações, ou
numa "responsibilidade" do sujeito, como propõe Sobral, traduzindo o termo
russo otvetstvennost, união de responsabilidade (responder pelos próprios atos)
e responsividade (responder a alguém ou alguma coisa) (Sobral, 2005).
Responsibilidade definiria, portanto, o modo como o sujeito assume, em seus
atos, um compromisso ético com o seu agir. A noção de sujeito, proposta por
Bakhtin e seu Círculo, requer que se tome os atos dos sujeitos em referência aos
elementos sociais e históricos que configuram o contexto mais amplo em que se
dá a ação, em referência aos vários discursos que dão sentido a esses atos. Ao
agir o sujeito assume compromissos éticos pelos quais ele responde a si mesmo
e aos outros. É justamente da assunção desses compromissos, que muitas
vezes exigem um forte investimento emocional por parte dos professores, que
derivam sentimentos ambíguos.
Embora a dimensão do cuidado com o outro seja, para os professores,
uma fonte de satisfação profissional, ela pode ser, também, uma fonte de
sentimentos de frustração e de culpa, quando esses profissionais não
conseguem oferecer esse cuidado tanto quanto ele seria necessário, seja por
limitações pessoais ou institucionais (Hargreaves, 1998). Além disso, o saber
cuidar, que está implícito no ato de acolher, tem sido relegado a uma posição de
inferioridade em relação a outros saberes, por ser identificado como um saber
tipicamente feminino. Por essa razão, muitas vezes os professores consideram
que assumir a dimensão do cuidado como inerente às suas atividades de
docência seria negar o caráter profissional dessa atividade.
Refletindo sobre a dimensão do cuidado na formação e na prática de
profissionais da educação infantil, Tiriba (2005) interroga: “Em que medida (num
contexto de relações capitalistas de produção) as análises fundadas unicamente
no paradigma do trabalho têm contribuído para limitar a compreensão do
significado, do lugar, do papel do afeto, do amor, da paixão na profissão de
educar crianças? (Tiriba, 2005, p. 77) A autora destaca, ainda, a importância de
”valorizar a experiência feminina, desconstruindo elementos de subordinação
patriarcal sem jogar fora o saber que é fruto de seu modo histórico de pensar-
sentir-fazer “(idem, 2005, p.78) na formação do profissional que lida com a
criança pequena. É justamente esse “modo histórico de pensar-sentir-fazer” que
está envolvido no saber acolher (que é também um saber cuidar) que muitas
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vezes é negado pelo professor, já que, na lógica da sociedade capitalista, tais
saberes teriam um valor menor, ou não seriam características necessárias a um
profissional.
Considerando a dimensão emocional envolvida na atividade de cuidado,
a possibilidade dos docentes de mobilizarem o seu saber acolher se liga, de
forma estreita, à história pessoal e profissional do sujeito professor. Esse
aspecto pareceu bastante relevante no dia em que, na reunião com o grupo de
professores, foi discutida a filmagem realizada na sala de Sueli.
A videogravação feita na turma de Sueli mostra a professora realizando
atividades diversas com as crianças: entrega dos crachás com nomes; marcação
do tempo, pelas crianças, no cartaz da "janelinha do tempo"; dramatização de
músicas; atividades para colorir. No primeiro momento da filmagem, as crianças
e a professora estão sentadas em círculo. A estagiária também está no círculo e
mantém Igor sentado entre suas pernas cruzadas, apoiando a cabeça do menino
para que ele possa observar os colegas e ajudando-o a realizar alguns
movimentos para acompanhar o grupo em suas gesticulações. Num segundo
momento, quando as crianças colorem um desenho, Sueli aparece junto de Igor,
já sentado em sua cadeira de rodas, estimulando-o a realizar a tarefa e
auxiliando-o a alcançar os materiais e manter os lápis entre os dedos, ficando a
estagiária encarregada de apoiar as demais crianças quando elas solicitam ( são
ao todo 8 crianças na turma).
No dia marcado para apresentação da filmagem realizada na turma de
Sueli, ela chegou quando a reunião com o grupo de professores já estava se
encerrando. A despeito de sua ausência inicial, optei por dar início à reunião,
considerando sua ausência naquele momento também como um dado de
pesquisa. De fato, ao chegar, Sueli desculpou-se pelo atraso, esclarecendo que
talvez seu "esquecimento" tenha sido uma forma de evitar uma situação com a
qual tem dificuldade de lidar, que é ver-se no vídeo, segundo ela, por timidez.
Para além de uma possível timidez, pode-se inferir que talvez o "esquecimento"
de Sueli se deva a uma dificuldade em lidar com o fato de ver sua prática
exposta e analisada pelos pares, embora ela tenha se disposto a partilhar essa
prática ao autorizar a filmagem em sua turma tendo, inclusive, solicitado,
algumas vezes, que a fizesse.
A exibição do vídeo pareceu mobilizar bastante os professores
participantes da pesquisa, provocando comentários, sorrisos e perguntas.
Terminada a exibição, perguntei aos professores presentes se eles haviam
vivido alguma experiência semelhante àquela. Rosa começou as discussões,
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relatando sua experiência quando estava grávida e recebera em sua turma uma
menina com problemas mentais. Segundo a professora, fora muito difícil lidar
com a situação, pois, além de haver muitas crianças em sala, a menina em
questão era muito agitada e batia nas outras crianças:
Rosa: - porque ali (na filmagem da turma de Sueli) são seis, sete crianças. Mas
quando eu tinha essa menina na turma eram vinte e cinco. Então, eu não poderia
dar atenção para os outros. Tem que haver uma estagiária para estar
acompanhando, porque senão você esquece os outros. Tem que ter esse
cuidado. (Reunião do grupo de professores, 08/11/2004)
Outros professores foram se pronunciando com relação à situação.
Angélica afirmou achar a idéia da inclusão muito boa, mas argumentou que não
se pode apenas colocar as crianças nas salas, é necessário oferecer suporte ao
professor.
Alguns professores que trabalhavam na Escola Amarela, junto com Sueli,
lembraram que, ao chegar à escola, Igor não falava e que agora falava bastante,
mas destacaram que sem o apoio da estagiária seria difícil.
A professora Patrícia apontou a boa aceitação das outras crianças com
relação a Igor e o modo como Sueli e a estagiária dividiam suas atenções com
todo o grupo. Geisa afirmou que nunca tivera uma experiência deste tipo,
dizendo-se impressionada com a habilidade de Sueli de lidar com as situações.
Nesse momento, Rosa voltou a se pronunciar, agora mais incisiva,
interrompendo a fala de Geisa:
Rosa: - É muito difícil... porque quando a gente tem uma sala - estou te falando
porque eu tive, dois anos - as crianças cobram muito: "tia, ela rasgou o meu
trabalho!..." É o que eu estou falando, a realidade da Sueli é bem diferente,
porque ela tem uma estagiária, uma sala pequena. Eu sou até meio radical neste
sentido, mas olhando o Igor ali , a gente vê como ele está se desenvolvendo, a
gente vê que ele fala.. Eu acho é que a gente não tem é muita estrutura para
isso nas escolas. Tinha que ter uma psicóloga aqui acompanhando, uma
fisioterapeuta, uma fonoaudióloga porque a gente tem que ter cuidado porque é
uma lei, isso é certo, a gente tem que aceitar a criança na escola, mas a gente
tem que ter um certo cuidado porque a gente tem que olhar o lado do professor.
O lado das crianças também. A Sueli está ali, ela divide o tempo. Tem que ter
esse cuidado para não ter tanta atenção com os deficientes em detrimento dos
demais. (Reunião do grupo de professores, 08/11/2004)
No encontro/confronto das percepções de Geisa e Rosa é possível
apreender alguns elementos importantes para compreender como os
professores constroem a sua prática numa dialética entre afirmação e negação
dos discursos que lhes imputam algumas responsabilidades e funções.
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Enquanto o enunciado de Geisa é marcado pela positividade - ela percebe no
trabalho de Sueli uma possibilidade de inclusão da criança deficiente em turmas
regulares - a contrapalavra de Rosa a esse enunciado relativiza essa
possibilidade. Para melhor compreender esses enunciados, é necessário
compreender o horizonte social dos sujeitos que enunciam. As experiências
anteriores de Rosa fazem com que ela seja mais céptica (ou mais cautelosa)
com relação à perspectiva da inclusão. Ela própria já tivera uma experiência que,
aparentemente, não fora tão positiva, não apenas por haver mais crianças na
turma, mas também, e talvez principalmente, por estar grávida àquela época, o
que implica fatores emocionais que devem ser considerados. Geisa, talvez por
nunca ter vivido experiências dessa natureza, mostra-se mais entusiasmada com
o trabalho de Sueli. Entretanto, ao mesmo tempo em que reafirma sua posição
"cautelosa", às vezes meio radical, como ela mesma afirma, com relação à
inclusão, Rosa relativiza esse radicalismo, ao ver a prática de Sueli. Nesse
sentido, observar a prática do outro e refletir sobre ela entre pares é um meio de
se refletir sobre a própria atuação.
Rosa faz questão de frisar que a prática de Sueli se dá num contexto
diferente daquele em que se deu sua própria atuação quando lidava com uma
criança com deficiências: Sueli tem uma estagiária na turma e a turma é muito
pequena (8 crianças). Ao fazer referência à necessidade de olhar o lado do
professor também, Rosa manifesta o receio de que a inclusão de crianças
deficientes se torne uma panacéia que não atende às necessidades dessas
crianças, colaborando apenas para uma intensificação do trabalho do professor
(que deve ser também psicólogo, fonoaudiólogo, fisioterapeuta etc.) A
advertência de que é preciso ter cuidado parece representar uma interrogação: o
que se espera do professor na atuação junto a essas crianças? É essa pergunta
que, aparentemente, Rosa não conseguiu ainda responder, mesmo porque ela
também não se coloca com clareza nos discursos que defendem a inclusão e
que chegam até os professores.
Outros professores se pronunciam sobre situações semelhantes, vividas
por eles, em que se sentiram limitados em suas possibilidades de atuação. Frany
relata uma experiência com uma aluna deficiente a qual tratou "com todo o
cuidado", como ela mesma diz, e sua preocupação quando a menina foi para
uma escola maior, em saber se lá ela seria tratada com o mesmo cuidado;
Angélica fala de seu susto quando teve que pegar ao colo um menino com os
membros atrofiados:
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Angélica: - Sabe quando você pega um embrulho, um negócio que você não
sabe bem o que fazer... Eu disse: "Nossa!" Você vê aquela coisinha assim, sem
braços, sem pernas... choca. Depois eu pensei: "gente, não tem nada a ver!"
Mas eu fiquei chocada num primeiro momento. E eu acho que num primeiro
momento todo mundo tem essa reação. Estou sendo o mais sincera possível!
Depois de tantos anos você, quando pega uma pessoa assim, que não tem
braços... é estranho, sabe? Depois você se acostuma, pega no colo... (Reunião
com o grupo de professores, 08/11/2004)
O enunciado de Angélica remete a um outro, proferido por Sueli em sua
entrevista, quando ela afirma que a condição de professora estava bem
incorporada à sua pessoa quando fez a opção profissional. Incorporar:“1- Dar
forma corpórea. (...); 8- Unir, reunir, juntar, em um só corpo ou um só todo.” O
diálogo entre esses enunciados retrata a profissão vivida numa dimensão
corpórea, em que a relação com o outro muitas vezes envolve, também, um
contato com o corpo do outro, no qual o estranhamento diante da diferença é
sensível na dimensão da união do próprio corpo ao corpo do outro. O saber
acolher mobilizado pelo professor de educação infantil é, nesse sentido, um
saber acolher também o corpo do outro, muitas vezes frágil, diferente, deficiente.
Isso exige, sim, como afirma Rosa, um cuidado com o professor, que precisa
também ser acolhido diante de todo o estranhamento e mobilização emocional
que acolher o outro enquanto diferente pode provocar.
Durante o período em que observei a turma de Sueli, essa dimensão do
acolhimento ao corpo do outro como requisito para acolher o outro como sujeito
esteve bastante presente, como é possível perceber no fragmento que apresento
a seguir:
Era hora da merenda. Sueli dirigiu-se a Igor e segurou-o pela mão:
- Firma as perninhas, vamos ficar em pé, força!
Ele sorriu. Esforçou-se e ficou de pé. Tentou apoiar o peso do corpo na
professora. Ela insistiu para que ele tentasse dar alguns passos. De pé, ela
passou os braços do menino em torno de sua cintura . As pernas dele ficaram
entre as dela. Movendo alternadamente os pés, a professora impulsionava os
pés do menino, ensinando-o como andar. Ele sorriu, o contato parecia ser
prazeroso. Finalmente, deu dois passos sem a ajuda dos pés da professora. Ela
o parabenizou sorridente, pegou-o ao colo e ele abriu um enorme sorriso. Ela
beijou seu rosto e os dois se olharam bem nos olhos, com ternura. Os meus
olhos ficaram marejados. Igor estava muito diferente de quando chegou à escola
há alguns meses. (Notas de campo, Escola Amarela, 31/08/2004)
Mais uma vez, é preciso buscar a memória das palavras para extrair
delas suas possibilidades de sentido. Na origem etimológica do verbo "acolher”,
encontramos o verbo latino accolligere que significa "colher". Essa memória da
palavra traz consigo a possibilidade de compreender a acolhida ao outro como
um movimento no qual aquele que acolhe também espera ou deseja colher os
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166
frutos dessa acolhida. No caso da relação entre Sueli e Igor, a troca de olhares e
afeto entre ambos representa muito bem esse movimento de acolher o outro e
colher junto ao outro. Ao mesmo tempo em que acolhe o outro, o professor
busca, nesse outro, colher os elementos com os quais constrói sua própria
imagem enquanto profissional.
Experiências como essas, vividas pelos professores em seu cotidiano,
principalmente por aqueles que trabalham com a criança pequena, evocam o
contato e a afetividade não como características do trabalho feminino, como
historicamente ele vem sendo concebido, mas como peculiaridade da atuação
profissional junto a seres humanos que, por sua situação de fragilidade,
mobilizam o professor para além de uma competência técnica, numa dimensão
emocional (e, por que não, emocionante!) e ética. É o que também constata
Carvalho (1999) em pesquisa na qual busca compreender as práticas de cuidado
desenvolvidas por professores das séries iniciais do ensino fundamental. A
autora afirma que “as práticas de ‘cuidado’ exigiam dos professores uma alta
dose de disponibilidade emocional”. (Carvalho, 1999, p. 234) Além disso, a
autora observa uma ênfase nas práticas de ‘cuidado’ desenvolvidas por alguns
professores que participaram da pesquisa por ela realizada não significava uma
desconsideração das dimensões intelectuais envolvidas no trabalho do professor
ou da professora. Pelo contrário, naquele estudo os professores mais
comprometidos com uma atenção aos aspectos afetivos se mostravam também
melhor preparados tecnicamente para as atividades de ensino e mais envolvidos
com a aprendizagem de seus alunos. Carvalho (idem) pondera, entretanto, que
pela falta de um vocabulário disponível para falar daquelas dimensões do
trabalho docente que vão além da abordagem do trabalho intelectual, muitas
vezes os termos associados à dimensão relacional da docência eram associados
à vida familiar e à maternagem. Tal associação, segundo a autora, corrobora
para uma desqualificação das práticas profissionais dos professores ligadas
àquilo que defino, nesta tese, como o saber acolher em sua dimensão afetiva,
emocional e corporal.
Embora muitas vezes identificada como uma atitude não-profissional ou
pouco profissional, a emoção esteve presente no relato de outros professores
que viveram situações semelhantes àquela vivida por Sueli com Igor. Em outro
momento da reunião, Geisa fala de uma experiência que acompanhou em uma
escola onde esteve na qualidade de visitante.
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167
Geisa: (vai falando e gesticulando bastante) - Eu nunca trabalhei com uma
criança com este tipo de dificuldade, mas eu tive uma experiência. Eu fui visitar
uma escola muito legal. A escola que eu fui visitar era assim: era uma escola que
ficava num lugar alto, ela tinha muitas escadarias e passava um rio dentro da
escola. Era num terreno muito acidentado. Na hora do recreio, por exemplo,
tinha que passar pelo riachinho para chegar lá no pátio do recreio. E nessa
escola tinha um menino, que estava numa cadeira de rodas e não tinha os
movimentos nem dos braços nem das pernas, ele foi estudar nessa escola e aí
deu origem a um movimento muito bacana. Ele não podia ir para o recreio,
naquele terreno tão acidentado. E aí toda a escola, num movimento que partiu
das crianças, eles começaram... naquela escola, todo terceiro ano faz um projeto
para a escola. E o projeto deste terceiro ano foi fazer uma ponte para o menino
poder ir para o recreio. O menino participava também do projeto...
(...) Quando teve a inauguração da ponte foi muito legal, ele foi o primeiro a
passar, passaram com ele na cadeira, correndo. Eu achei importante porque
tanto ele teve contato – o que é muito importante - com as crianças que têm um
desenvolvimento mais normal quanto as crianças exercitaram esse lado social,
esse olhar sobre a necessidade do outro. Eu acho que você (dirigindo-se à
Rosa) tem razão, que tem que ter mais profissionais atuando junto, mas tem que
estar na escola junto com as outras crianças.
Rosa:- Não, eu sei, mas não é o dia a dia (desencosta da cadeira, coloca o
cabelo para trás da orelha, parece irritada) para descer lá para baixo, não é C.?
(pede uma espécie de apoio à C.) A gente com 25 alunos, uma sala cheia de
crianças, com o Igor ali, você tem que carregar, tem que trocar, não é fácil
(enfatiza bem essas últimas palavras). Vamos colocar a mão na consciência, não
é, não é (nenhum dos outros professores se pronuncia, todos olham para Rosa).
A gente tem que ter um aparato muito grande para receber essas crianças e a
gente não tem. Não é que a escola não seja aberta. É aberta, mas a gente não
pode ser tão aberta e colocar como se isso fosse muito fácil, não é muito fácil.
Isso é muito difícil. (Reunião com o grupo de professores, 08/11/2004)
Geisa começou relatando uma experiência que, para ela, fora bastante
positiva e destacou, no final de sua fala, a importância da convivência da criança
deficiente em turmas regulares pelos ganhos que essa convivência pode trazer
para todos os envolvidos. Para Geisa, a inclusão se coloca como possibilidade.
Em contraposição, na fala de Rosa aparece o conflito que se coloca para a
escola, e especialmente para os professores, com a inclusão de crianças com
deficiências em turmas regulares. Essas crianças exigem maiores cuidados e
maior empenho do professor para atingi-las, planejamentos diferenciados e uma
mudança no ritmo de trabalho que muitas vezes é difícil para o professor aceitar.
Isso sem falar na adequação do espaço físico às limitações que essas crianças
possam apresentar. A resistência de Rosa pode advir de um certo preconceito
com relação à idéia da inclusão, mas também pode ser lida como uma
resistência a um acúmulo ou intensificação de tarefas que a presença da criança
com algum tipo de deficiência na escola exige do professor sem uma
contrapartida em termos de um comprometimento da instituição com esse
processo, ao ignorar aspectos como a adequação física das escolas (é bom
lembrar que a Escola Amarela tem uma escadaria que liga o refeitório e o pátio
às salas de atividades) e o necessário envolvimento de outros profissionais no
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168
atendimento às crianças. A inclusão parece depender apenas da boa-vontade ou
aceitação do professor, eximindo-se o poder público e a instituição de
investimentos ou do necessário apoio aos profissionais.
Hargreaves (1998), aponta a intensificação do trabalho dos professores
como um dos paradoxos que se colocam aos docentes no contexto da pós-
modernidade. A inclusão de alunos com deficiências em classes regulares é
apontada pelo autor como um dos fatores que levam a esse processo de
intensificação, que requer uma série de adaptações ao nível dos programas de
ensino e um apoio especializado ao qual nem sempre os docentes têm acesso.
O fato de não disporem de apoio institucional adequado, aliado ao
sentimento de não poderem acolher os alunos como deveriam, leva os
professores, muitas vezes, a desenvolver sentimentos de rejeição à idéia da
inclusão ou, num extremo oposto, a responsabilizarem-se de forma pessoal com
relação a esse processo, vivendo sentimentos de culpa e fracasso quando ele
não se dá de forma satisfatória. Os casos de Rosa e Sueli parecem representar
os pólos opostos dessa situação. Se por um lado Rosa se mostra resistente à
idéia da inclusão, ponderando sobre os problemas que ela pode trazer, por outro
Sueli se sente envolvida com a causa de Igor de modo pessoal, empenhando-se
com relação ao desenvolvimento do menino e acompanhando a turma no ano
seguinte:
Esse ano ele foi para o 2º período e eu pedi para acompanhar a turma por causa
dele. Apesar de que criar muita intimidade não é bom, eu acho que eu fiquei só
meio ano com ele e o que eu fiz por ele já foi bastante. Eu vejo ele hoje, está
muito bem, é outra criança. Eu visto a camisa dessas crianças mesmo, eu quero
que eles sejam normais, dentro do possível para elas. (Entrevista com Sueli –
10/08/2005)
Ao analisarmos as posições de Rosa e Sueli, identificamos diferentes
possibilidades de assumir uma posição de responsibilidade (responder pelos
próprios atos e responder a alguém) diante de uma situação. Acompanhar o
trabalho de Sueli permitiu compreender que "vestir a camisa" de crianças como
Igor requer um grande investimento emocional. A capacidade de fazer esse
investimento, de ser responsível às necessidades do outro, tem a ver com a
história de cada sujeito.
No caso do professor da educação infantil, acolher a criança com
deficiências exige dele a capacidade de mobilizar permanentemente sua
capacidade de saber acolher o outro em todos os sentidos, principalmente
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169
porque ao acolher a criança com deficiência o professor precisa também estar
atento ao modo como acolhe as demais crianças, como pondera Rosa.
A atuação de Sueli no 1º período manteve algumas características do
modo como ela já conduzia seu trabalho no 3º período. Ela própria destaca
essas características como próprias de seu modo de ser professora de crianças
pequenas: acha importante a disciplina e a organização das crianças, como
condições para sua própria organização como professora. Observando o
trabalho de Sueli na turma, pude perceber que muitas vezes essa necessidade
de manter o controle das situações inibia a iniciativa das crianças e suas
possibilidades de construção de maior autonomia. A própria professora
reconhece isso e afirma se esforçar para mudar, destacando, inclusive, sua
admiração por uma colega, também professora de educação infantil, que tem
postura bastante diferente da sua.
A sala da R. era a sala da bagunça. Você chegava na sala da R. não tinha uma
criança sentada, mas todos eram felizes. Ela fazia gelo e punha na boquinha de
todo mundo, fazia receita na sala e todos experimentavam. Eu pensava: essa é a
verdadeira professora! E a gente ficava lá: fila! Eu vivo muito esse drama, porque
eu me identifico muito com essa liberdade, mas eu não consigo ser assim.
Quando eu vejo já baixou o general mesmo... e aí eu tento voltar, mas eu já
acho que a gente tem que procurar tratar, eu já melhorei muito.(Reunião com o
grupo de professores - 18/11/2004)
O depoimento de Sueli é bastante importante para compreendermos o
modo como o olhar do outro pode oferecer ao sujeito uma medida de si mesmo.
Observando a prática de R., Sueli desenvolve uma reflexão crítica sobre sua
própria atuação, embora tal reflexão não seja suficiente para modificar essa
atuação: “eu não consigo ser assim". Isso parece reforçar a importância da
interação entre pares como espaço privilegiado de formação do profissional e
desmistificar muitos dos argumentos que atribuem a uma não reflexividade por
parte do professor as suas resistências à mudança. Mudar parece não depender
apenas de um reconhecimento do que seria necessário incorporar à prática, mas
requer o rompimento com determinados valores e crenças que vão se
construindo ao longo das histórias pessoais e profissionais dos sujeitos. É
importante lembrar o que a própria Sueli afirma em sua entrevista: "eu acredito
no b-a/ba, eu acredito na disciplina, eu acredito que você tem que ter uma coisa
sistemática..." Embora reconheça que na sala de R. "todos eram felizes", Sueli
não consegue adotar as mesmas atitudes da colega porque, de certa forma, elas
se chocam com suas próprias crenças. Nesse sentido, optar conscientemente
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170
por não mudar pode trazer mais angústia e sofrimento do que mudar unicamente
para aderir a um modismo: "Eu vivo muito esse drama”.
O drama vivido por Sueli parece estar relacionado, em certo sentido, ao
confronto entre suas percepções acerca de qual seria o papel do professor de
educação infantil e as demandas que se colocam a esse profissional pela
sociedade, de modo geral. Numa sociedade organizada a partir da lógica da
produtividade, os saberes próprios à dimensão humana envolvida nas relações
pedagógicas, especialmente nas relações com a criança pequena, não são
valorizados.
Os conflitos, vividos pela professora, foram abordados por ela em sua
entrevista e também na última reunião com o grupo de professores, na qual
discutimos a prática de Angélica. Naquela oportunidade, Sueli falou:
(...) os pais exigem a questão da alfabetização e eu também entro no sistema.
Aí, quando eu vejo a fantasia da criança, eu penso: "Nossa, eu estou ficando
endurecida". Porque eu acho que isso endurece. Aí eu tento voltar, mas sou
cobrada. (...) Eu penso que a humanidade endureceu e que a gente está dentro
dela. Eu valorizo a fantasia, mas eu tenho uma postura enérgica no terceiro
período, que eles têm que se alfabetizar, eu fico preocupada se eu não
alfabetizo. Aí quando eu vejo a criança com orelhinhas de coelho e o quanto ela
vibra, mesmo já tendo seis anos, de estar com aquela orelhinha, eu penso:
"quanto eu tirei dele!" Mas é difícil, eu sinto essa dificuldade. (Reunião com o
grupo de professores, 18/11/2005)
Sueli aponta um dos principais paradoxos da educação infantil.
Reconhecer que o valor do trabalho com a criança pequena se encontra
justamente em sua gratuidade - que não se confunde com espontaneísmo -, no
espaço oferecido à livre expressão da fantasia e da brincadeira, significa assumir
a necessária "inutilidade" das práticas que se dirigem à criança pequena no
contexto de uma sociedade que não cultiva aquilo a que não se pode atribuir um
valor de mercado. Portanto, o tempo dedicado à fantasia, à brincadeira, muitas
vezes é visto, pelo professor, como um tempo roubado à atividade séria e
necessária: a alfabetização. Do mesmo modo, muitas vezes os docentes
percebem que o acolhimento às necessidades emocionais e físicas da criança
se opõe à idéia de profissionalismo. Essa percepção traz sentimentos de culpa
quando o professor identifica uma maior atenção aos aspectos emocionais
afetivos ou mesmo lúdicos do trabalho com a criança pequena a uma omissão
com relação à transmissão à criança de um conhecimento que lhe será cobrado.
A identidade do profissional da educação infantil se constrói, portanto, a
partir de sua capacidade de ser responsível a determinados discursos que lhe
imputam algumas atribuições. Segundo Sobral (2005) "o ato responsível
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171
envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unindo-os, a valoração/avaliação do
agente com respeito a seu próprio ato, vinculada com o pensamento participativo
(uchastnoye myshlenie)”.(Sobral, 2005, p. 21) No caso de Sueli, o conflito está
em atender, com sua prática, àquilo que ela julga importante (a fantasia, a
imaginação) ou àquilo pelo que se sente cobrada (a alfabetização).
Discutindo as emoções envolvidas na tarefa de ensinar, Hargreaves
(1998) chama a atenção para o fato de que, enquanto a pesquisa acadêmica
muitas vezes tenta analisar a docência a partir de construtos teóricos
previamente definidos, nos quais busca enquadrar as percepções dos
professores acerca de seu trabalho, estes últimos falam das dimensões
emocionais desse mesmo trabalho, dentre elas, a culpa. Essa culpa pode ser
depressiva, quando o profissional sente que, de alguma forma, falhou em suas
responsabilidades para com o outro, ou persecutória, quando sente não ter sido
capaz de fazer frente às exigências que lhe são colocadas em termos da
prestação de contas com relação a suas tarefas. O conflito vivido por Sueli
parece se relacionar a ambas as dimensões da culpa: por um lado, vive a culpa
depressiva, ao sentir que falha com as crianças por não atender às suas
necessidades de tempo e espaço para a fantasia; por outro, sofre com a culpa
persecutória, ao pensar que o atendimento a essas necessidades das crianças
possa representar a não realização de uma tarefa pela qual será cobrada: a
alfabetização.
Ainda segundo Hargreaves, a natureza aberta do ensino, enquanto uma
atividade para a qual não existe um consenso acerca dos padrões de exigência
técnica para a atuação dos profissionais, é um dos fatores que faz com que o
sentimento de culpa esteja tão presente nas vivências dos professores. No caso
dos profissionais que atuam na educação infantil, essa natureza aberta se
apresenta de forma mais contundente, por ser essa uma categoria profissional
"em vias de formação" (Kramer, 2005, p.9), que tem se estruturado ainda muito
pautada pelas exigências feitas aos profissionais do ensino fundamental.
Entretanto, a despeito das angústias e conflitos vividos pelos profissionais
no percurso de tornar-se professor da educação infantil, esse processo revela as
possibilidades que os sujeitos têm de fazer suas opções dentro das limitações
que lhe são impostas por suas condições de trabalho.
Com a experiência de Sueli é possível aprender que o saber acolher o
outro, enquanto um saber mobilizado pelo professor da educação infantil, é
também um saber acolher a si mesmo, reconhecendo os limites e possibilidades
que se colocam à sua atividade profissional. Entretanto, acolher as necessidades
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172
que se percebe na criança pequena, atendendo-as, muitas vezes requer que o
professor se coloque em oposição às regras ou limitações impostas pelos
contextos institucionais onde atua, o que traz conflitos ao profissional com
relação à pertinência ou validade de suas ações. Esses conflitos apareceram na
análise da experiência de Angélica, que discuto a seguir.
6.3.
“Eu estou trabalhando? Não, eu acho que eu estou brincando!”
Angélica trabalha há oito anos na Escola Azul, onde a observei. A Escola
Azul é uma escola conveniada
5
à Prefeitura Municipal de Juiz de Fora e Angélica
professora efetiva da rede municipal de ensino.
Ao longo do nosso período de convivência na Escola Azul, e mesmo
após o término do trabalho de campo, alguma vezes Angélica me telefonava
para conversar sobre questões relativas à turma de crianças do 1 º período
(crianças de 4 anos) com a qual trabalhava na Escola Azul, expondo seus
questionamentos com relação àquele trabalho. Esses questionamentos
derivavam, em grande parte, de divergências da professora com relação às
regras que vigoravam na instituição onde a docente atuava à época da pesquisa.
A Escola Azul é uma instituição administrada por irmãs de caridade da
ordem das vicentinas, sendo a direção da escola exercida por uma freira,
embora a Prefeitura forneça a merenda, os professores e coordenadores
pedagógicos.
Durante o período em que realizei observações na turma de Angélica,
pude perceber uma certa rigidez nas normas disciplinares impostas pela
instituição, assim como a realização de práticas de oração e cânticos religiosos
com as crianças, advindo dessa situação muitas das divergências de perspectiva
entre as crenças da professora e as orientações da instituição.
As práticas religiosas aconteciam tanto no dia-a-dia da instituição,
incorporadas à rotina, quanto nas festas que se realizavam na escola. Durante o
tempo em que estive na escola (7 de abril a 15 de maio de 2004) pude
acompanhar a preparação e/ou realização das seguintes festas: Páscoa,
Coroação de Nossa Senhora, Dia das Mães e Dia do Índio. Pelo que pude
5
A situação das escolas conveniadas foi discutida no capítulo 3 desta tese.
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173
observar, na Escola Azul o trabalho com os pequenos se organizava em torno
desse calendário de efemérides, que direcionava o trabalho da professora.
Essa forma de estruturação do trabalho pedagógico imprimia não apenas
um caráter esporádico, episódico às atividades realizadas com as crianças,
como também uma fragmentação do trabalho da professora, como é possível
perceber no evento que relato a seguir:
Angélica começou suas atividades com a turma perguntando às crianças quem
faltou hoje. Ela contou as crianças e disse que faltaram duas. As crianças
tentaram saber quem faltou, constataram a ausência de um colega mas não
conseguiram saber quem era o outro ausente. Um menino resolveu contar os
colegas, e fez isso rapidamente. Aproveitando o ensejo, a professora propôs:
"vamos contar juntos?” Começou, então, a contar as crianças, colocando a mão
sobre a cabeça de cada uma enquanto contava. De repente uma funcionária da
escola entrou na sala e disse: "- Angélica, vamos ensaiar? Hoje só tenho tempo
até as 13:50h!" Logo em seguida a coordenadora pedagógica entrou também na
sala e, percebendo um conflito entre duas crianças, se abaixou e começou a
resolver a questão com um dos meninos. A professora ficou meio atordoada com
a chegada das visitantes. A coordenadora se posicionou à frente da sala e
começou a conversar com as crianças sobre as máscaras confeccionadas pela
professora para a apresentação, elogiando-as. Enquanto isso, a primeira
visitante se aproximou da mesa da professora e começou a olhar alguns CDs
que ali estavam. Terminada a conversa da coordenadora com as crianças,
Angélica reuniu os pequenos e saíram para o ensaio. (Notas de campo,
07/04/2004)
A chegada das visitantes à sala interrompeu um momento importante da
interação da professora com seu grupo, que posteriormente não foi retomado.
Foi perceptível a desorientação da professora diante da situação, sem saber ao
certo como proceder, mas, ao mesmo tempo, sem muitas opções de escolha.
Situações como essa se repetiram em outros momentos do trabalho de campo,
nos quais ou as atividades eram interrompidas para os ensaios ou as crianças
passavam um longo tempo aguardando a hora de ensaiar ou de se apresentar,
sem nenhuma atividade. Esse tempo de espera irritava as crianças, deixando-as
agitadas e cansadas, como no dia em que apresentaram a representação teatral
para a qual ensaiaram no evento relatado anteriormente. Nesse dia as crianças
esperaram por uma hora e trinta minutos para que a apresentação aos pais
tivesse início. Durante esse tempo, ensaiaram uma última vez e ficaram
aguardando, agitadas, a hora de início da atividades, às vezes batendo umas
nas outras. A agitação dos pequenos pode ser compreendida se considerarmos
o espaço reduzido da sala de atividades, a ociosidade e a quebra da rotina. Essa
agitação acabava se tornando angustiante para a professora, principalmente
porque as normas disciplinares da escola exigiam das crianças organização e
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174
contenção dos movimentos, havendo sanções aos que transgredissem essas
regras. Nesse mesmo dia um dos meninos da turma de Angélica foi advertido de
forma ríspida por uma das irmãs, que segurou o menino pelo braço enquanto ele
tentava se desvencilhar, esperneando e gritando.
Situações como essa eram, para Angélica, não apenas fonte de
constrangimentos, como também de frustrações, por irem de encontro com o
que a professora acreditava ser bom para as crianças. Essa insatisfação da
professora é expressa em sua entrevista:
São muitas coisas que eu gosto no trabalho na educação infantil, nem dá para
enumerar. Agora, eu gosto que a criança seja sempre tratada bem. Porque ‘as
vezes você acha: “ Ah, a criança está indisciplinada ou está uma bagunça a
sala”. Mas eu gosto que as crianças sejam felizes Para mim,meus alunos têm
que ser felizes, sentir prazer de ir para a escola. (...) Eu não gosto de tolher essa
liberdade da criança. Aquele regime militar, aquela coisa da criança em fila...
para mim isso é o caos. Aquela disciplina rigorosa, sempre tudo direcionado,
controlado... Eu não gosto muito. (Entrevista com Angélica, 19/05/2004)
Assim como no caso de Sueli, com a questão da alfabetização, também
no caso de Angélica existe um conflito entre fazer o que considera necessário e
aquilo que é possível ou permitido em função dos constrangimentos
institucionais. No cotidiano Angélica buscava construir uma relação de
proximidade com as crianças, oferecendo alguma liberdade na realização das
atividades, mas isso era possível apenas parcialmente, em função dos limites
institucionais, como é possível perceber na situação que descrevo a seguir:
A professora deu às crianças uma folha mimeografada com o desenho de um
coelho para que colorissem com tinta guache. As crianças pareciam deliciadas:
mergulhavam o dedo indicador na tinta colorida, espalhando-a em seguida sobre
o desenho. A., um dos meninos, parecia em êxtase. A professora advertiu que
deveria pintar dentro do limite, e não fora dele, mas o menino parecia
preocupado unicamente em desfrutar da sensação da tinta sobre as mãos. (...)
Angélica sentou-se ao meu lado e começou a conversar. Disse que acha
importante dar liberdade às crianças e que muitas vezes há uma rigidez na
escola, cobrando obediência e uniformidade. Diz, ainda, que ela própria não
gosta dessa rigidez, pois acha importante dar liberdade às crianças. (...)A.
aproveita que estamos conversando e se delicia na tinta. Angélica se deu conta
da situação e pede que ele vá lavar as mãos, recolhendo o desenho. P., outro
menino da turma, fez um belo trabalho, mantendo-se envolvido durante a
atividade. V., também se dedicou, fazendo pintinhas coloridas sobre o desenho.
Terminada a atividade as crianças saíram apressadas em direção ao corredor
lavar as mãos no banheiro. Angélica saiu correndo atrás dos pequenos,
exclamando: - A irmã vai ter um troço! (Notas de campo, Escola Azul,
14/04/2004)
Na situação descrita acima é possível compreender que embora a
professora considere a liberdade importante para o desenvolvimento das
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175
crianças, não consegue vivê-la tanto quanto gostaria, já que existe o receio de
como atitudes mais expansivas dos pequenos serão encaradas pela direção da
escola. Por essa razão, muitas vezes eram exigidas das crianças atitudes de
contenção dos movimentos e períodos relativamente longos de espera para
fazerem juntos as mesmas atividades, evitando a algazarra. Nas festas, que
aconteciam na escola com bastante freqüência, quando a rotina se alterava e os
tempos de espera muitas vezes eram maiores e mais cansativos para os
pequenos, a tensão da professora aumentava, uma vez que a agitação das
crianças também era maior.
A questão das festas foi tema da filmagem realizada na turma do 1º
período (crianças de 4 anos) com a qual Angélica trabalhava. A seu pedido,
filmei a festa do dia do Índio na escola tendo sido esta a filmagem discutida no
último encontro com o grupo de professores. Não apenas na Escola Azul, mas
também nas demais escolas onde realizei a pesquisa, as festas e/ou “auditórios”,
como chamados em algumas instituições, e principalmente os ensaios para
esses eventos, ocupavam um tempo significativo da rotina escolar. Na Escola
Azul, diferentemente das outras duas escolas observadas, havia uma conotação
religiosa nas comemorações, como por exemplo, na festa da Coroação de
Nossa Senhora, em que todas as turmas, uma a cada dia, conduziam a
cerimônia de coroação. Esse tema foi objeto de discussões entre os professores
na reunião do grupo.
A filmagem realizada na turma de Angélica mostrava, inicialmente, o
momento de preparação para a festa, ainda na sala de atividades. As crianças
cantavam uma música sobre o índio ("Brincar de Índio", da Xuxa). Antes das
crianças se dirigirem ao pátio para se apresentarem e assistirem à apresentação
das outras turmas, elas visitaram uma exposição de trabalhos sobre o tema do
Dia do Índio: desenhos coloridos por elas, maquetes com as habitações dos
índios, girinos num pote d'água (Angélica trouxe os girinos de seu sítio), entre
outros trabalhos. Num segundo momento, as crianças apareciam se
apresentando no pátio (cantam uma música ensaiada com a professora
(Biribi/biribi/biribi/ o índio é tupi/ Biribi/biribi/biribi/ seu nome é Peri.) e, finalmente,
apareciam sentadas no pátio, lanchando pipoca, mandioca, batata doce e sucos
de caju e goiaba. Essa atividade foi restrita às crianças e professores, os pais
não foram convidados.
Quando terminou a projeção da fita, perguntei aos professores: como
vocês vêem essa questão da festa na escola? Qual o papel desse tipo de
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176
atividade no desenvolvimento das crianças? A primeira a se pronunciar sobre a
questão foi Frany:
Franny: Eu acho muito interessante, eu acho que ali há uma integração de todas
as crianças. A educação infantil precisa muito disso e a gente está deixando isso
muito de lado. A criança ali ela se solta. (...)Então aquela criança que é mais
tímida ela se solta ali na hora, ela se realiza, então eu acho que isso faz muita
falta na educação infantil. A gente pode fazer só da escola, não é preciso ser
para os pais, mas acho que tem que ter. (Reunião com o grupo de professores,
17/11/2004)
Outros professores corroboraram essa percepção de Frany, em
diferentes momentos do encontro:
Lucas: - Eu acho importante porque é um momento para realmente liberar,
trabalhar o corpo, experimentar novos movimentos, trabalhar o ritmo. Eu acho
ótimo. (Reunião com o grupo de professores, 18/11/2004)
***
Sueli: - Eu tenho uma opinião bem pessoal com relação a isso. Eu acho que a
educação infantil é fantasia (...) Eu penso que o auditório na educação infantil, a
dramatização, é fundamental. Eu me sinto muito em falta nessa parte, porque a
gente vai simplificando, vai entrando num contexto que tem que alfabetizar, vai
massacrando mais a infância. (Reunião com o grupo de professores,
18/11/2004)
Alguns elementos se destacam nas falas desses professores. Chama a
atenção o uso, por Lucas, do verbo "trabalhar" para fazer referência às
habilidades que, na sua opinião, as crianças desenvolvem nas atividades. Tal
uso marca uma posição de que o professor realmente está "trabalhando" algo
com as crianças, mesmo quando está dançando com elas no pátio, por exemplo.
Em tese de doutorado na qual analisa discursos e práticas de
profissionais que atuam em creches municipais de Belo Horizonte, Debortoli
(2005) constata uma tendência das professoras da creche a definirem a
brincadeira como “coisa séria”. O autor analisa essa tendência como uma
tentativa de legitimar a atividade de brincar a partir de referências do que o
adulto considera importante, como o trabalho e a ciência.
(...) As professoras demonstram reconhecer a importância das brincadeiras
apenas pelos conhecimentos, na hierarquia escolar considerados mais
importantes, que são capazes de agregar. Isso resulta em um reconhecimento
da brincadeira de uma forma inferiorizada em relação a outras possibilidades de
expressão da linguagem. Reproduz um olhar adultizado sobre o conhecimento,
restringindo as possibilidades de ressignificação e produção cultural.” (Debortoli,
2005, p. 83).
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177
O autor destaca, ainda, que essa forma de encarar a brincadeira
privilegia seu potencial de subsidiar outras aprendizagens, relegando as
dimensões próprias a essa atividade a um segundo plano, ou mesmo ignorando
essas dimensões.
No tocante às festas promovidas na escola, Debortoli (idem) constata que
não há uma apropriação das potencialidades que poderiam oferecer pelo caráter
pontual desses eventos, marcados pela mecanização dos gestos das crianças e
pelas reduzidas possibilidades estéticas, uma vez que são organizados tendo
como referência temas e situações exploradas pela mídia.
No caso dos professores que participaram da pesquisa que realizei,
embora Frany destaque a importância das festas pela possibilidade de as
crianças se soltarem, o que pude observar nas escolas, de modo geral, é que as
crianças tinham uma participação restrita nas apresentações, apenas como
executoras das coreografias ou dramatizações planejadas e orientadas pelas
professoras. Algumas crianças, inclusive, mostravam-se bastante constrangidas
e resistentes e as professoras, algumas vezes, ficavam tensas quando as
coreografias não saíam como planejado. Como geralmente havia uma
preocupação em apresentar algo que pudesse agradar aos pais, perdia-se a
naturalidade da situação. Talvez por isso, Frany argumentou que as festas
poderiam envolver apenas a escola, sem que necessariamente se convidassem
as famílias para assistir. Geisa concordou com esse ponto de vista, destacando
que as crianças com as quais trabalha preferem organizar apresentações
apenas dentro da sala, para elas mesmas, quando podem viver a situação mais
livremente, como uma brincadeira.
Realmente as tensões que envolvem a preparação das festas nas quais
há apresentações aos pais fazem com que os ensaios muitas vezes deixem as
crianças cansadas, irritadas, entediadas. Talvez porque nessas situações elas
sejam mais objeto que sujeito das representações teatrais que apresentam às
famílias. Alguns episódios alusivos a esses ensaios podem ajudar a
compreender o papel que eles têm para as crianças e professores:
A diretora chegou para buscar as crianças para o ensaio da quadrilha e advertiu
quanto ao comportamento. No pátio as professoras incentivam as crianças a
dançar com seus pares. Patrícia conversou com os meninos, tentando convence-
los. Quatro deles resistiam, não queriam fazer par com as meninas. Um dos
quatro meninos decidiu aceitar dançar com G., mas depois desistiu e G. chorou.
Patrícia se prontificou a dançar com ela. M. ficou por último, sem par. Havia um
menino com autorização para dançar, mas não queria fazer par com M. A
menina ficou em silêncio, esperando uma decisão. Patrícia conseguiu convencer
o menino a dançar com a ajuda da coordenadora. A coordenadora conversou
comigo sobre a resistência que alguns têm com relação a participar da dança,
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178
achando que vão ter que casar com seus pares. As professoras ensaiavam as
crianças, ao mesmo tempo em que trocavam idéias entre si sobre o que seria
melhor fazer.(...) Alguns meninos que não queriam dançar agora se divertiam,
riam e brincavam. G. agora parecia feliz na roda da quadrilha. (Notas de campo,
Escola Verde, 21/05/2004)
***
As crianças estavam no auditório que fica numa espécie de subsolo do prédio,
ensaiando para a comemoração do dia das mães. As professoras levaram as
crianças para o palco. A princípio a comemoração seria ao ar livre, mas a chuva
que começou hoje forçou a uma mudança de planos. As professoras
conversavam entre si sobre a organização da festa: as bolas de gás sairão da
caixa? As crianças ficarão de pé ou sentadas? Quem dirá as frases principais?
Quem abrirá a caixa? Os pais tentarão pegar as bolas que sairão da caixa? Uma
das professoras alertou para a necessidade de variar as crianças que fariam
coisas de destaque, para que não ficasse muito centralizado em algumas poucas
crianças. Enquanto isso, as crianças aguardavam que uma segunda professora
as organizasse no palco onde elas foram colocadas em três posições diferentes:
um grupo sentado no chão, outro grupo sentado em cadeiras e um último grupo
de pé. Durante o ensaio da música quatro professoras ficavam à frente das
crianças, fazendo os gestos que os pequenos deveriam reproduzir. Quando
acabou a música, as professoras combinaram as modificações que deveriam
fazer. Estavam eufóricas, falavam juntas. Fiquei zonza, sem conseguir anotar
mais nada. (Notas de campo, Escola Amarela, 26/05/2004)
***
A turma de Sueli estava reunida no salão que antecede o refeitório para ensaiar.
Às 8 horas as crianças estavam um pouco desanimadas. A apresentação será
de uma música de festa junina. Sueli incentivava as crianças a dançar: “ -
Rebola! Vamos mexer o corinho!” A professora dançava junto com as crianças.
Ela própria rebolava, comandando o ensaio, falando a marcação dos passos.
Repreendia os que erravam, parecia animada com o resultado. Ao término do
ensaio, elogiou as crianças, dizendo que gostou muito e me perguntou se estava
bem ensaiadinho. Eu disse que sim e realmente era verdade. Embora já
estivesse rouca, Sueli resolveu ensaiar mais uma vez. Agora as crianças
estavam mais animadas. Na hora do “caracol”, houve uma dificuldade em
executar o passo e Sueli pediu ajuda à professora de educação física que veio e
resolveu a questão. (Notas de campo, Escola Amarela, 26/05/2004)
Vários outros relatos poderiam se incorporar a esses, pois realmente as
festas tinham um papel importante na rotina das escolas de educação infantil
observadas. Do modo como vivi e narrei essas situações, das quais participei
com as crianças e professoras, foi possível perceber algumas de suas
dimensões na vida das escolas.
Confrontando o que dizem os professores sobre a importância das
comemorações para que as crianças possam se soltar, é possível perceber que
talvez o professor se solte muito mais que as crianças nessas ocasiões. As
professoras se envolviam intensamente na preparação das festas,
preocupavam-se em apresentar um produto interessante do trabalho aos pais.
Entretanto, essa preocupação com o produto da atividade muitas vezes impedia
uma participação mais efetiva das crianças, principalmente nas etapas de
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179
organização e planejamento das festas. Mesmo o modo como as crianças
deveriam se movimentar no palco, as ações que deveriam realizar, o modo como
deveriam se expressar... tudo isso era decidido pelas docentes, enquanto as
crianças esperavam, observavam e repetiam. Conseqüentemente os ganhos
dessas atividades para o desenvolvimento das crianças eram limitados e várias
outras dimensões que elas poderiam comportar (a expressividade, a imaginação
criativa, a capacidade de organização, a habilidade para planejar e avaliar os
resultados do que foi realizado etc) eram pouco exploradas com os pequenos.
Do modo como vivi essas ocasiões, em interação com as crianças e professoras,
pude observar que as docentes ficavam efetivamente envolvidas nelas, mas as
crianças nem sempre.
Esse aspecto do envolvimento das professoras nas apresentações foi
levantado por Patrícia, na reunião com o grupo de professores em que
discutimos a filmagem realizada na turma de Angélica.
Patrícia: - É importante também porque a gente também troca experiências com
outros profissionais da escola.(...) A gente não tem tempo de conversar com a
professora, mas numa festa você vê “Olha, que interessante, quanta coisa a
gente pode fazer..." Lá na escola a gente tem um bom espaço para esse tipo de
atividade. Às vezes chama a família, mas às vezes não. (Reunião com o grupo
de professores, 18/11/2004)
Patrícia chama a atenção para o fato de que as festas são um momento
em que realmente os profissionais da escola se reúnem para planejar o que
fazer, o que dá ensejo a trocas bastante intensas, embora também haja conflitos
e disputas. Se analisarmos esse envolvimento dos professores nas festas,
confrontando-o àquilo que falam sobre seus conflitos na educação infantil, seria
possível pensar que talvez os ensaios e apresentações sejam momentos em que
os professores possam exercitar sua própria imaginação e fantasia numa
situação que tem uma “utilidade” aos olhos dos outros: apresentar um trabalho
aos pais. Também é possível compreender a preocupação dos docentes de que
tudo dê certo, uma vez que uma apresentação bonita pode mostrar aos pais que
o professor realmente “trabalhou”.
A indefinição sobre estar “trabalhando ou brincando”, expressa no
enunciado de Angélica que abre esse item, põe em evidência um conflito do
professor que trabalha com crianças pequenas já abordado no primeiro tópico
deste capítulo: a gratuidade das práticas que se dirigem à criança pequena, no
sentido da impossibilidade de mensurar o valor de uma brincadeira de faz-de-
conta, por exemplo, faz com que os professores se questionem acerca da
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180
relevância ou validade do trabalho que estão realizando, ou sobre se realmente
estão trabalhando ou brincando. Talvez a dificuldade dos professores em
reconhecer uma relevância ou importância do brincar tendo como referência a
necessária gratuidade e descompromisso dessa prática para as crianças se ligue
a uma percepção dos docentes de que isso esvaziaria sua atuação de seu
caráter profissional. Tal caráter estaria ligado ao trabalho com os conteúdos e à
possibilidade de verificar a apreensão desses conteúdos pelas crianças.
Angélica fala sobre isso em sua entrevista. Segundo a professora, depois de
trabalhar há alguns anos no 3º período (crianças de 6 anos), ela passou a
trabalhar com o 1
o
(crianças de 4 anos) e isso foi difícil para ela:
Eu percebi que as crianças do 3º período são mais independentes. E hoje há
uma cobrança dos pais com relação à alfabetização, então você trabalha. Você
trabalha prontidão para a alfabetização e eles são mais rápidos. Já no 1º período
é tudo muito lento, muito devagarzinho. E você começa a trabalhar na sala de
aula e fala assim: “Gente, eu estou trabalhando? Será que estou trabalhando?
Não, eu acho que eu estou brincando!” Quando eu penso, eu questiono isso.
Está na hora de trabalhar o nome da criança, começar a trabalhar mesmo essa
parte da alfabetização propriamente dita? Não, não é hora! Então vamos
trabalhar na massinha, vamos fazer modelagem, vamos fazer outra coisa. Então
você fica assim toda hora (Entrevista com Angélica, 19/05/2004)
O que Angélica parece discutir é uma diferença de perspectivas com
relação ao tempo do trabalho do professor: uma perspectiva do tempo
abreviado, em que o desenvolvimento pode ser comprovado rapidamente; outra
perspectiva de tempo estendido, em que o investimento que se faz não pode ser
mensurado de forma imediata, requer uma paciência e uma gratuidade das
ações que o professor sente necessárias, mas teme ser cobrado e concebido
como não profissional, por não ter um produto a apresentar. Isso mostra que
quanto menor a criança com a qual o professor lida, menos profissional ele se
percebe, ou, pelo menos, menos profissional ele se vê percebido pelos outros.
Aparece, ainda, uma oposição entre um tempo de trabalhar, que seria o tempo
do ensino, e o tempo de brincar, que deveria ser preenchido com algumas
atividades enquanto se aguarda o tempo de trabalhar.
Portanto, a questão das festas parece se ligar a outras, já trazidas ao
longo de capítulos anteriores desta tese. Essa questão remete à perspectiva de
como o tempo é vivido pelo professor, especialmente aquele que trabalha com a
criança pequena, em contraposição ao modo como esse tempo é vivido na
sociedade contemporânea, de modo geral, e na perspectiva da administração
das escolas, de modo particular.
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181
Analisando as características da sociedade moderna e suas implicações
na vida dos sujeitos individuais, Konder (2000), destaca: “os sujeitos individuais
se sentem postos numa arena que os obriga a enfrentar, na luta pela vida,
exigências contraditórias” (Konder, 2000, p. 28). Essas exigências contrapõem
os valores proclamados pelos ideais humanistas, defendidos ao longo do século
XIX, em especial com o advento da Revolução Francesa, à impossibilidade de
vivê-los na sociedade contemporânea, na qual as desigualdades e o
individualismo são acirrados.
No plano educacional, mais especificamente no plano das mudanças no
mundo profissional dos professores, as exigências de flexibilidade e
produtividade que se colocam aos docentes contribuem para uma alienação
destes com relação ao seu trabalho. A questão da fragmentação do tempo e das
relações no espaço da escola, abordada no capítulo 5 desta tese, é uma das
dimensões desse processo de alienação.
Segundo Hargreaves
O tempo é uma dimensão fundamental através da qual o seu trabalho [dos
professores] é construído e interpretado não só por eles próprios, mas também,
pelos seus colegas, administradores e supervisores. Para o professor, o tempo
não é apenas um constrangimento objectivo e opressivo: é também um
horizonte, subjectivamente definido, de possibilidade e de limitação.(Hargreaves,
1998, p.105)
Enquanto, na perspectiva da instituição, a validade da vivência do tempo
é medida em termos dos resultados esperados (no caso da educação infantil,
alfabetizar a criança) que devem ser alcançados no menor tempo possível, na
perspectiva dos professores as pessoas com as quais convivem têm mais
importância do que os prazos. Essa parece ser uma questão que perpassa
muitos conflitos apontados pelos professores da educação infantil, sujeitos da
pesquisa que deu origem a esta tese. Subjacente ao conflito entre investir na
alfabetização ou na fantasia; entre estar brincando ou estar trabalhando, está o
conflito entre, no cotidiano da escola de educação infantil, viver o tempo da
criança, numa dimensão fenomenológica, ou o tempo da escola enquanto
instituição, numa dimensão técnico-racional; atender ao objetivo da
produtividade e da eficácia ou ao objetivo da vivência infantil, ou vivência da
infância. É justamente a vivência do tempo numa dimensão fenomenológica, em
que seriam possíveis experiências mais significativas com as crianças,
orientadas pelos interesses e necessidades que elas manifestam, que permite
ao professor mobilizar alguns saberes que, ao longo deste trabalho de pesquisa,
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182
mostraram-se importantes para os professores da educação infantil: saber
brincar, saber narrar, saber acolher.
Mesmo quando a idéia seria envolver as crianças em práticas artístico-
culturais, essa dimensão fica submetida aos interesses da escola - mostrar
algum trabalho aos pais ou, no caso da Escola Azul, realizar práticas de
"catequese", nas festas religiosas - perdendo-se a possibilidade de que esses
momentos pudessem ser mais prazerosos ou significativos para os pequenos.
Essa parece ser também uma preocupação de Angélica, quando afirma:
Angélica: -Eu acho assim, lá onde eu trabalho tem bastante festa, tem bastante
culminância. Então eu não sei se é bom... Acho que precisava ser melhor
dosado, porque aquele conteúdo prático deixa a desejar com a criança, porque
você fica muito envolvida naquela parte artístico -cultural, que acho até que na
educação infantil é mais importante para a criança que o conteúdo prático, mas
ao mesmo tempo, aquele conteúdo prático deixa a desejar, e aí os pais também
gostam de festa, mas eles querem trabalhos, eles querem ver trabalhos mesmo
do dia-a-dia, dever de casa... então a gente fica quase doida com isso tudo... (...)
Eu, como trabalho em escola religiosa, agora estão fazendo a novena com as
crianças. É um trabalho... não é uma novena, é uma coisa assim mais
ecumênica, mas não deixa de falar em Nossa Senhora. E outras pessoas que
têm outras religiões? (Reunião com o grupo de professores, 17/11/2004.)
De forma sutil Angélica se refere a uma questão que pareceu incomodá-
la durante o período em que realizei observações em sua turma: o tempo
destinado às manifestações religiosas (que Angélica define como ecumênicas,
mas que estão voltadas a princípios da religião católica, como o culto à Nossa
Senhora) na escola onde ela trabalhava. Quando fala de "conteúdos práticos",
aparentemente a professora está se referindo às atividades planejadas com uma
intencionalidade educativa. O conteúdo artístico-cultural, ao qual ela se refere,
na verdade é muito mais um conteúdo evangelizador, moral ou moralizante, pois,
durante o período em que realizei as observações na escola, as festas às quais
assisti foram a Páscoa, a Coroação da Nossa Senhora e o Dia do Índio (só esta
última sem um enfoque religioso). O que parecia incomodar Angélica era a
prioridade dada a uma dimensão catequética do trabalho com as crianças, em
detrimento de uma dimensão educacional ou artístico-cultural. Essa é uma
contradição das escolas conveniadas à qual já fiz referência ao abordar suas
características : são escolas mantidas pelo poder público, mas, ao mesmo
tempo, administradas por religiosas, o que empresta a elas características de
instituições confessionais.
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183
As atividades catequéticas acabavam invadindo o tempo da professora
com a criança e, muitas vezes, chocando-se com a perspectiva de trabalho da
docente junto aos pequenos.
Sobre essa questão os professores discutiram no grupo tomando como
referência, a princípio, suas experiências pessoais:
Rosa: na minha família eu tenho dois sobrinhos que os pais não são católicos.
Um estuda no Santa Catarina e o outro no Estela
6
. A que estuda no Estela, a
mãe não é católica e os filhos estudam no Estela e fizeram Primeira Comunhão.
(Reunião com o grupo de professores, 17/11/2004.)
***
Frany: Igual o meu menino, que eu vou matricular no Granbery. A mãe de um
coleguinha dele falou para mim: "você vai por lá? É Metodista”.Eu pensei: gente,
não tem nada a ver. Eu sou católica, mas não tem nada a ver a escola ser
Metodista. Se ficar, mas forem boas palavras para ele, não tem nada a ver, eu
não vou me influenciar por causa disso. (Reunião com o grupo de professores,
17/11/2004)
As professoras que deram depoimentos ligados a experiências de sua
vida pessoal pareciam não ver qualquer problema na escola manifestar uma
orientação religiosa. Entretanto, essas professoras relataram situações vividas
na escola particular. No contexto da escola pública essa questão envolve outras
nuanças, pois práticas religiosas ligadas a um credo específico chocam-se com
a liberdade de credo das crianças e suas famílias. Alguns professores alertaram
para essa questão, instigados por uma pergunta que fiz ao grupo:
Pesquisadora : Na escola vocês já tiveram algum problema de alguma mãe falar,
por exemplo: "eu não gostaria que meu filho fizesse a oração na hora das
refeições"?
Sueli: eu já tive uma experiência que foi muito desagradável, foi até num
auditório. Eu não sei se ela [a mãe de uma criança] era Metodista, não sei de
que religião ela era. Ela fez questão que o menino participasse da apresentação,
mas sem a touca do Papai Noel. Isso teve uma repercussão, porque todos
acharam que a professora tivesse esquecido de pôr a touca no menino, então
isso foi muito desagradável, porque pareceu que a gente falhou com aquela
criança, que queria estar muito ali, participando com a touquinha... mas a religião
deles não permitia, mas a mãe não queria que tirasse criança... porque a gente
tinha sugerido: "quando entrar a música do Natal, a gente tira e coloca para o
lado. (...)como também já tive um aluno crente que mãe na hora da quadrilha
falou assim: eu sou contra, mas ela bateu o pé que ela vai dançar e a gente vai
deixar, então eu achei legal, porque eles eram terminantemente contra. (Reunião
com o grupo de professores, 17/11/2004)
6
Ambas são escolas religiosas da cidade onde a pesquisa foi realizada .
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184
O tema foi discutido pelos professores e Geisa relatou uma atividade que
deixou de fazer porque achou que poderia ser considerada como uma procissão,
prática ligada à religião católica, o que poderia ser problemático na comunidade
onde trabalha, na qual há muitos evangélicos.
Inicialmente os professores analisaram a questão da relação da escola
com a religião das famílias das crianças, tomando como referência suas
experiências pessoais, vividas no âmbito familiar. Nesse sentido, parecia não
haver nenhum problema em pertencer a uma religião e conviver com as práticas
de doutrinação desenvolvidas pela escola a partir dos preceitos de um outro
credo religioso, como parecem indicar os depoimentos de Frany e Rosa.
Entretanto, minha contrapalavra, ao perguntar se os docentes já tiveram
problemas com essa questão na escola, provocou o relato de outras
experiências, como as de Sueli e Geisa.
No relato de Sueli aparecem duas percepções diferentes da professora
com relação a situações em que familiares das crianças se pronunciaram com
relação à questão das festas. Na primeira situação, que Sueli define como
desagradável, uma mãe, a despeito dos argumentos das professoras, não
permite que o filho se apresente vestido com a touca de Papai Noel. Na outra
situação a mãe que, embora sendo terminantemente contra, cede aos apelos da
filha e permite que ela dance a quadrilha. A postura da mãe, nesta segunda
situação, é avaliada como “legal” pela professora. Parece haver uma tendência
da professora a considerar a oposição dos pais à participação de algumas
crianças em festas de cunho religioso como um radicalismo. Outras professoras,
como Rosa, parecem ter também essa percepção:
Rosa: (...)é igual a Sueli falou: criança é só fantasia, então a gente tem que
valorizar essa fantasia deles, igual a mãe da igreja, que é Evangélica e que não
deixa a filha participar... se a criança estiver no momento dela, ela vai querer
participar, a gente é que coloca esse caráter de seriedade. Acho que as festas
são para isso, para a alegria, para a participação. Às vezes a gente até estressa
a criança para a apresentação, igual a Geisa está falando, mas, gente, tudo que
a criança faz é bonito! (Reunião com o grupo de professores, 17/11/2004)
Rosa apresenta em sua fala uma criança idealizada, "só fantasia", na
qual o sujeito criança é descolado do contexto sócio-histórico-cultural o qual ele
produz e no qual é produzido. Nesse sentido, todas as práticas desenvolvidas
pela escola parecem válidas, positivas, se a criança gosta (ou parece gostar).
Não existe uma reflexão sobre o papel da escola nessa construção do gosto pela
criança, não se discute o consumo de alguns produtos culturais em detrimento
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de outros (a criança só pode gostar do que conhece) e do papel que a escola
tem nesse processo. Era justamente esta a questão que Geisa buscava, sem
sucesso, discutir na Escola Verde, como discutido no capítulo 5 desta tese.
Numa concepção idealizada de infância - só fantasia, só pureza - as práticas que
a escola de educação infantil desenvolve são vistas como inofensivas, também
ingênuas, porque "tudo que a criança faz é bonito" (tudo?). Essas imagens se
chocam com os dados de realidade: crianças que brigam, que xingam, que não
gostam de se apresentar nas festas ou que às vezes até choram nas
apresentações, crianças com deficiências...
Nesse sentido, quando o professor é mais experiente, trabalhando há
mais tempo numa mesma instituição, ele vive mais intensamente o conflito entre
atender às expectativas dessa instituição ou deixar-se guiar pelo que sinalizam
as crianças. No caso particular de Angélica, as discordâncias com relação às
práticas da escola podem ter sido um fator que contribui para que, ao término do
ano de 2005, a professora solicitasse sua transferência para outra instituição, na
qual foi trabalhar na biblioteca.
A questão parece se colocar no papel que a criança desempenha nas
práticas que a ela se dirigem. As crianças são sujeitos ou objeto dessas
práticas? Conseqüentemente, a quais expectativas o professor de educação
infantil deve atender: às das crianças, por fantasia, liberdade, brincadeira; ou às
da escola, por alfabetização? Na dialética entre esses dois pólos, muitas vezes
dicotômicos, constrói-se o trabalho e se tece a identidade dos professores de
educação infantil.
6.4
Estamos sempre aprendendo
Depois de 13 anos de trabalho na educação infantil, Frany voltou a
estudar. Quando participou da pesquisa, cursava o 4
o
período do Curso Normal
Superior numa instituição da cidade. O fato de estar estudando parecia
especialmente importante para Frany naquele momento de sua trajetória
profissional. Foi possível perceber isso em várias situações, tanto do período de
observação na turma da professora, quanto nas reuniões com o grupo de
professores. Na primeira reunião com os professores, quando estes se
apresentaram, Frany se identificou:
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186
Meu nome é Frany. Trabalho há treze anos na educação infantil. Para mim está
sendo uma experiência maravilhosa estar aqui no grupo, ainda mais que eu
estou estudando, né? Foi uma oportunidade muito grande, que eu acho que esta
vai ser uma experiência muito rica. Até vai ter um curso de contos de fadas , dois
dias: um dia vai ser no Santa Catarina e quem quiser é quinze reais. A inscrição
é no Santa Catarina. Um dia você paga: este no Santa Catarina. Na outra quinta-
feira é grátis.
Angélica se interessou e começou a pedir mais informações sobre o curso. Frany
vai dando os detalhes. Outros professores também fizeram algumas perguntas.
(Reunião com o grupo de professores, 18/10/2004)
O fato de estar estudando parece demarcar o modo como a professora
se coloca frente ao grupo, divulgando, inclusive, um curso aos colegas. Frany
destaca o papel que a formação está desempenhando num processo de
ressignificação de sua prática que tem contribuído, segundo a professora, para
que essa prática seja menos “tradicional”, nas suas próprias palavras. Na
reunião com o grupo de professores, na qual discutimos a filmagem que realizei
na turma da professora, esse fato foi destacado por ela.
Na filmagem a professora aparecia, inicialmente, realizando uma
atividade de rotina: a entrega dos crachás com os nomes das crianças, em que
ela apresentava os crachás para que as crianças reconhecessem seus nomes.
Em seguida, Frany aparecia contando uma história “A boca do sapo”, de Mary e
Eliardo França. Após a história, a professora propôs às crianças uma
dramatização, em que os pequenos representaram os papéis dos personagens
da história. A professora ia dizendo as falas dos personagens para que as
crianças as repetissem, reproduzindo as ações dos personagens na história.
Após a dramatização, que se repetiu algumas vezes para que todas as crianças
pudessem participar, Frany trouxe para a sala a gravura de um grande sapo
colado num compensado de madeira, com um círculo vazado no lugar da boca.
O sapo foi usado para a realização de um jogo no qual as crianças deviam
acertar uma bola na boca do sapo. As crianças alternavam-se nas tentativas de
acertar a bola na boca do sapo. Finalmente, a professora orientou as crianças na
realização de uma atividade de dobradura no jornal, na qual deveriam formar um
sapo. As crianças e a própria professora encontraram dificuldades para fazer a
dobradura.
Terminada a apresentação do vídeo, perguntei à professora como ela se
sentiu ao se ver, ao que ela respondeu:
Apanhei da dobradura do sapo. Custei a fazer porque a dobradura é só da
cabeça. Fiquei pensando: “gente, como é que vou fazer essa dobradura?”
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Aquela dificuldade toda... mas a gente erra e vai aprendendo. A gente vai
amadurecendo. A gente vai vendo e vai crescendo. Eu acho que a cada dia mais
a gente vai crescendo. Eu estou aprendendo, eu acho que eu ainda não sei
muita coisa, da minha prática para trás, como ela era. Hoje eu já mudei muito. Eu
vejo que eu já mudei muito. Eu acho assim, eu fui estudar e estou tendo uma
visão maior. Eu era assim, meio tradicional... mas você vai estudando e você vai
vendo que realmente a sua prática tem que mudar, que as crianças hoje te
exigem isso, te pedem essa mudança. Não é mais aquilo que você tem que
trazer tudo pronto. Ali eu ajudei, né (refere-se ao trabalho de dobradura feito
pelas crianças) não foi igual ao Lucas que os meninos dele foram fazendo. Eu
tive que ajudar porque muitos meninos ali não conseguiam dobrar. (Reunião com
o grupo de professores, 28/10/2005)
Frany faz questão de destacar o papel que o estudo está tendo num
processo de reflexão e mudança da prática. A condição de professora-estudante
mais uma vez aparece como uma dimensão importante da identidade
profissional dessa docente. Isso chama atenção para o fato de que a identidade
profissional não é uma marca que se imprime ao sujeito e que vai determinar
suas escolhas ou modos de agir em quaisquer circunstâncias. A identidade,
enquanto construção que se dá no plano das relações interpessoais, sociais e
historicamente datadas, apresenta-se de diferentes maneiras em diferentes
percursos da carreira.
Nos casos de Lucas e Patrícia, à época em que se realizou a pesquisa, a
condição de professor "em trânsito" parecia ser a determinante na construção
dessa identidade. Nesse sentido, para aqueles docentes os questionamentos
acerca dos rumos que a carreira iria tomar, da possibilidade ou não de
permanecer na educação infantil e em quais condições se apresentavam
importantes para os professores; no caso de Geisa, tais questionamentos se
davam em função de estar realizando, numa escola da rede pública municipal de
ensino, uma experiência de trabalho a partir de princípios filosóficos - a
Pedagogia Waldorf - bastante diversos daqueles adotados nas escolas da rede.
Para Frany, perceber-se como "aprendente" após 13 anos de exercício
da profissão era um dado de identidade importante naquele momento de sua
carreira. Isso fez com que ela, em vários momentos das reuniões com o grupo
de professores, realizasse uma autocrítica com relação às posturas que
professoras que, assim como ela, foram formadas dentro dos parâmetros da
escola tradicional. Esses questionamentos eram compartilhados também por
Rosa e Sueli.
É possível perceber o papel que a observação da prática de Lucas teve
para uma ressignificação pela professora de sua própria prática, quando ela
destaca: não foi igual ao Lucas, que os meninos dele foram fazendo. Eu tive que
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ajudar, porque muitos meninos ali não conseguiam dobrar. Embora ninguém no
grupo tenha feito qualquer comparação entre a atividade realizada por Frany
com as crianças e aquela realizada por Lucas (que os professores conheceram
na semana anterior, quando a filmagem realizada na turma daquele professor foi
apresentada), a professora se deu conta de que as crianças orientadas por
Lucas pareceram mais autônomas que as crianças de sua turma. Portanto, não
apenas a formação acadêmica, mas também a interação entre pares parece
representar fonte importante de saberes para a professora.
Na reflexão que faz sobre sua prática, Frany a define como "meio
tradicional", pelo fato de trazer muitas coisas prontas para as crianças. Durante o
tempo em que observei o trabalho de Frany em sua turma, na qual a professora
trabalha com dezessete crianças na faixa etária dos 4 anos, tive a oportunidade
de acompanhar algumas atividades realizadas pela professora com os
pequenos. Essas atividades eram realizadas também na turma de Rosa, uma
vez que as professoras trabalhavam com a mesma faixa etária e trocavam
muitas atividades entre si.
A turma tinha uma rotina que se repetia de forma mais ou menos estável
todos os dias: brincadeira com jogos de montar, com as crianças sentadas em
grupos de quatro em suas mesinhas na chegada; distribuição dos crachás com
nomes; atualização dos cartazes de calendário, "quantos somos" e "janelinha do
tempo". Além das atividades de rotina, outras foram desenvolvidas em torno do
trabalho com a cor amarela, com os números (1 e 2) e da comemoração do Dia
das Mães e, posteriormente, festa junina.
Realmente era perceptível que, nessas atividades, o foco se colocava na
figura do professor, como a própria Frany reconhece, no sentido de que os
objetivos definidos para o trabalho muitas vezes desconsideravam as
aprendizagens que as crianças efetivamente demonstravam. A prática de
ensinar as cores uma por vez, por exemplo, contrapunha-se ao fato de que a
maioria das crianças já conhecia todas as cores, como é possível perceber pela
análise dos eventos que apresento a seguir:
Frany estava "trabalhando" com a cor amarela. Deu uma folha para as crianças
colorirem uma banana com aquela cor. Enquanto a professora distribui os
materiais para que as crianças coloram, um menino pega uma caixinha com
potes de tinta guache e enumera as cores dos potes: branco, verde, azul,
vermelho. (Notas de campo, Escola Amarela, 26/04/004)
***
Rosa contou uma história - "A florzinha feliz". A propósito dessa história, as
crianças começaram a falar as cores das flores. Rosa repetiu as cores que as
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189
crianças falavam e destacou, com relação àquelas cores que ainda não foram
"trabalhadas" na escola:
_ Nós ainda não aprendemos, mas vocês conhecem. (Notas de campo, Escola
Amarela, 20/05/2004)
***
Frany estava trabalhando com as crianças os números. Ela reuniu o grupo numa
rodinha e conversou:
- Ontem nós começamos a aprender a contar. Que quantidade vocês contaram
ontem?
- Um! - as crianças responderam. Um dos meninos disse que aprenderiam a
contar até cinco. A professora confirmou, esclarecendo que no 2º período vão
aprender o resto.
- Agora nós vamos trabalhar com esta quantidade: um! - disse a professora - Eu
sei que muitos já sabem contar , mas nós vamos começar com essa quantidade
depois vai aumentando, sempre mais um. Vai aumentando a quantidade e o
número. (Notas de campo, Escola Amarela, 13/05/2004)
Nos eventos relatados - dois deles acontecidos na turma de Frany e um
na turma de Rosa -, o reconhecimento pelas professoras de que aquilo que
pretendiam ensinar às crianças já era conhecido por elas não alterou a
seqüência previamente definida para o trabalho: as cores foram "trabalhadas"
uma por vez, assim como os números, prevendo-se, em cada período, um limite
de contagem - no caso do 1º período, até cinco. Entretanto, no dia-a-dia, tanto
as crianças conviviam com diversas cores, nomeando-as, quanto contavam
quantidades bem superiores àquelas previamente estipuladas - como, por
exemplo, quando contavam quantas crianças compareceram ou faltaram à
escola.
Os professores pareciam seguir o planejamento a despeito da pertinência
ou relevância do que nele estava previsto às crianças, talvez porque se apoiar
numa seqüência de atividades daria um sentido de se estar efetivamente
"trabalhando" algum tipo de conteúdo: as cores, os números, as letras etc.
Mesmo em situações em que a fruição das atividades deveria ser o objetivo
principal, os professores justificavam a relevância daqueles momentos a partir da
referência a determinadas habilidades que estariam sendo "trabalhadas".
Quando, no grupo de professores, discutiu-se a filmagem realizada na
turma de Frany, na qual ela aparece contando uma história às crianças, essa
atividade também foi abordada em termos de um "trabalho" realizado com os
pequenos:
Frany: - Eu gosto também da ginástica historiada. (...) porque geralmente quando
eu saio às nove e meia eu gosto de dar porque trabalha mais o corpo, a
coordenação motora, o esquema corporal, trabalha com o corpo todo. Então é
uma coisa que eles gostam. (Reunião com o grupo de professores, 28/10/2004)
***
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190
Sueli: - (falando sobre contar histórias às crianças) Eu gosto do interesse deles.
Porque você conta um dia com fantoches, um dia dramatizando, um dia
sentada... e eles sempre prestam atenção. Qualquer período: 1º, 2º, 3º . Aí você
faz um paralelo. Eu contei um dia "A foca distraída e perguntei: "quem sabe o
que é distraída?”Primeiro eles não sabiam, aí eu expliquei a palavra. (...) E tem
sempre o moral da história. (...) Eu sempre procuro trazer o moral da história
para a situação que eu estou vendo ali na turma: se é muito agitado, vai para o
agitado; se é muito agressivo, vai para o agressivo. (Reunião com o grupo de
professores, 28/10/2004)
Reconhecendo que as crianças apreciam ouvir histórias, as professoras
buscam deixar claro, também, que contá-las aos pequenos se faz com uma
intenção previamente definida, que dá o sentido de trabalho a essa atividade:
trabalhar o corpo, os movimentos, beneficiar-se de um ensinamento moral. O
saber narrar do professor, que emergiu como um saber importante mobilizado na
prática do docente que trabalha com a criança pequena a partir da análise da
experiência de Geisa, aparece, nos depoimentos dos profesores, submetido a
uma perspectiva utilitária: é preciso que ouvir a história ou dela participar traga
alguma aprendizagem às crianças. Muitos docentes revelam suas dificuldades
de viver a narrativa da história unicamente como fonte de fruição e tentam, no
grupo, compreender a origem dessa dificuldade:
Rosa: - Acho que isso tem a ver com a nossa formação também, porque
antigamente a gente não tinha tanto essa liberdade dos professores fazerem isso
com a gente. Era a coisa de sentar e passar o conteúdo, e a gente carrega essa
dificuldade de dar essa liberdade para os nossos alunos. Porque a escola era
assim, tradicional. Olho só, eu não me lembro nunca de, na escola, ter
participado de alguma história. Eu me lembro de estar ali sentada, o professor
dando a aula daquele conteúdo. (Reunião com o grupo de professores,
28/10/2004)
Maria (a auxiliar de pesquisa): - Eu estou me lembrando que quando eu estava
no 3º período a professora contou a história da Chapeuzinho Vermelho e depois
perguntou se alguém mais queria recontar a história. Como ninguém contou, por
timidez ou outro motivo, sei lá, ela falou: "nunca mais eu conto história!"(risos
dos professores).(Reunião com o grupo de professores, 28/10/2004)
As professoras relataram suas experiências como alunas e a ausência do
elemento mediador de sua relação com a narrativa enquanto fonte de fruição no
ambiente escolar. Essa rememoração motiva outros professores a lembrarem
suas experiências também na vida privada. Patrícia fala do avô, que sabia criar
enredos fantasiosos e envolvia os netos; Lucas fala da experiência com o pai,
que contava histórias também; Geisa fala da bisavó, que contava e encantava
com suas histórias, como já relatado no tópico 5.3 desta tese. Motivada pela fala
de Geisa, Frany recorda, emocionada:
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Frany: Isso que ela fala, eu estou lembrando da minha mãe. Porque com a gente
(as filhas, no caso ela e Rosa, pois são irmãs) ela não tinha tempo de contar
histórias. Com os netos ela tem. Eu vejo meu filho, ele fala: "ó vó, vou dormir aí,
você me conta uma história?" E ela conta. Acho que avó tem aquele tempo... e
mãe não tem. Igual a minha mãe, para mim não contou, não tinha aquele tempo,
como tem com os netos hoje: ela deita e conta. Ela teve isso (refere-se à Geisa.
Frany está com os olhos marejados, visivelmente emocionada.) .(Reunião com o
grupo de professores, 28/10/2004)
A relação dos professores com a leitura e a escrita foi objeto da pesquisa
"Leitura e escrita de professores" desenvolvida na PUC-Rio, sob coordenação da
professora Sônia Kramer e também na UFJF, sob coordenação da professora
Maria Tereza Assunção Freitas
7
. Naquele estudo, foi apontado o papel que a
escola teve não formação das docentes, sujeitos da pesquisa, como
leitoras/escritoras, muitas vezes contribuindo para um afastamento das docentes
com relação a essas práticas. Os elementos que mediaram uma relação mais
profunda das professoras com a leitura e a escrita, quando ela existia, estiveram
presentes justamente no âmbito familiar. Esse dado aparece também nos
enunciados das professoras, transcritos acima. Além de evidenciar o papel que
escola e família tiveram na construção, pelas docentes, de seu saber narrar,
esses enunciados mostram, também, o modo como no confronto entre palavra
própria e palavra alheia os professores vão produzindo novos sentidos para esse
saber narrar e para seu processo de construção na trajetória pessoal e
profissional. Isso remete ao que afirma Bakhtin: "O texto só vive em contato com
outro texto (contexto). Somente em seu ponto de contato é que surge a luz que
aclara para trás e para a frente, fazendo que o texto participe de um diálogo
(Bakhtin, 1997a, p. 404). O movimento dialógico que põe em contato as falas
dos professores, suas experiências passadas e presentes, dá vitalidade aos
textos produzidos pelos docentes, permitindo ir além do significado desses
textos e penetra-lhes o sentido, do modo como esse sentido se produz na
situação de pesquisa.
No caso do tema que se discutia neste encontro, no diálogo com a
experiência dos pares, em especial com a experiência de Geisa enquanto
professora/narradora, foram surgindo novos sentidos para o saber narrar dos
docentes. Na experiência de Geisa como, analisada no item 5.3 desta tese, a
relação com as histórias é uma relação de fruição, cujo objetivo é o prazer do
texto e não, necessariamente, o trabalho com o texto ou a partir dele. No diálogo
com essa experiência os professores vão se dando conta de que, em suas
7
Os resultados desta pesquisa encontram-se publicados em Kramer e Jobim e Souza (1996);
Freitas (1998; 2000); Freitas e Costa (2002).
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histórias pessoais, não a viveram, seja pela formação que tiveram, na escola
"tradicional" como Rosa destaca, seja pelas condições familiares, como Frany
reflete.
O diálogo entre as experiências dos docentes parece apontar a
importância da formação cultural para que estes possam reconhecer a validade
ou pertinência de algumas práticas que realizam com os pequenos, não apenas
na perspectiva de uma racionalidade instrumental, mas na perspectiva de
vivências significativas para a criança. Nesse sentido, o trabalho do professor de
educação infantil pode ser compreendido não apenas em função de
determinados conteúdos a serem "trabalhados" com os pequenos, mas em
termos de situações vividas com eles que se tornam educativas quando são
significativas para as próprias crianças. Saber brincar, saber narrar, saber
acolher, saberes que não podem ser mensurados em termos quantitativos e que
se mostraram estruturantes da prática do professor de educação infantil, não se
apresentam como opostos à idéia do profissionalismo, mas, pelo contrário, são
uma especificidade do profissional que trabalha com a criança pequena.
A interação entre pares, que a situação de pesquisa proporcionou e cuja
falta os professores apontam como um problema das escolas, em função da
fragmentação do tempo e das relações dentro da instituição, mostrou-se uma
possibilidade de reflexão sobre a prática. Nesse processo de reflexão os
professores puderam validar saberes que estruturam a prática, muitas vezes
encarados pelos docentes, em função dos discursos que instituem um perfil
profissional necessário ou desjável, como opostos à idéia de ser profissional.
Talvez por isso, no encontro com o grupo de professores, no qual se discutiu a
filmagem realizada na turma de Frany, Sueli perguntou, referindo-se ao
andamento da pesquisa:
E depois que terminar isso? (Faz referência às reuniões com o grupo de
professores)
Esclareço que depois que terminarem os encontros deverei me dedicar à análise
dos dados produzidos ao longo do trabalho de campo para escrever a tese. Sueli
sugeriu:
- De repente a gente podia voltar a se encontrar de novo. A gente adora.(Reunião
com o grupo de professores, 28/10/2004)
Talvez, para Sueli, voltar a se encontrar seja uma forma de continuar a
refletir sobre sua condição de profissional da educação infantil com outros
profissionais que compartilham com ela dos desafios impostos por essa
condição construindo, a partir da palavra desses outros sujeitos, condições para
a compreensão de sua própria palavra.
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7
Considerações Finais
Esta tese, ao buscar nas vozes dos professores de educação infantil a
compreensão de seus saberes, focalizou esses sujeitos enquanto autores de sua
prática pedagógica. Fazendo a opção pela arquitetônica bakhtiniana como
metodologia de estudo, procurei analisar os atos e discursos dos sujeitos em sua
historicidade, que envolve as relações de alteridade e os compromissos éticos
assumidos pelos sujeitos nas suas ações. A metodologia de estudo, ao
promover a discussão entre pares da prática dos professores, parece ter
provocado um movimento exotópico, em que cada um dos docentes, a partir de
seu horizonte social, ofereceu sua contrapalavra como condição de acabamento
do outro, colega de profissão. Esse movimento oportunizou a ressignificação de
situações e experiências vividas pelos professores no plano individual e a
produção de sentidos através de um mergulho em profundidade nas próprias
palavras e nas palavras alheias. Situações vividas pelos professores no plano
individual, muitas vezes como fontes de frustração ou a partir de uma ótica de
culpabilização dos docentes, ao serem discutidas no grupo de professores,
adquiriram novos sentidos. Posturas que, analisadas de um ponto de vista do
sujeito individual, poderiam ser compreendidas como expressão de preconceitos
ou tradicionalismo, quando colocadas em diálogo com a experiência alheia,
revelaram-se produto de uma reflexividade sobre as condições de trabalho dos
professores.
Do mergulho na experiência partilhada entre os docentes emergiram
saberes de professores da pré-escola em seu processo de construção e
inacabamento, na tensão entre palavra própria e palavra alheia, entre as
percepções dos docentes sobre sua profissionalidade e os discursos que
instituem uma posição socialmente construída para esses profissionais. Ser
identificado ou identificada como tio / tia e se identificar como professor /
professora; reconhecer no afeto e no afago fontes de satisfação pessoal e
profissional e negar uma identificação com a babá; afirmar a opção pelo
magistério como uma carreira possível às mulheres de uma época, mas destacar
a importância de estar sempre aprendendo. Essas aparentes contradições
permitem perceber uma profissão que se constrói na convergência entre as
dimensões do público e do privado, razão pela qual a identidade profissional é
marcada por elementos de ambas as dimensões que não se contrapõem, mas
decorrem das exigências do trabalho com a criança pequena.
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Colocando em diálogo a prática observada dos professores, sujeitos da
pesquisa, as condições histórico-sociais em que essa prática se dá, os
enunciados proferidos nas situações em que discutiram sua prática profissional
com seus pares e com a pesquisadora e os autores que fundamentaram as
análises empreendidas ao longo da pesquisa, retorno ao objetivo que me
conduziu à busca pela palavra dos docentes: compreender o amálgama de
saberes que professores da pré-escola mobilizam em suas atividades de
docência, a partir da compreensão dos sentidos que para elas produzem e
das condições em que elas se dão. Do diálogo entre textos, que se constituiu
o processo de pesquisa, emergem algumas possibilidades de abordagem desse
objetivo, sobre as quais discorro a seguir.
Os saberes dos professores da pré-escola que foram sujeitos dessa
pesquisa advêm de fontes variadas: das experiências pessoais, da formação
inicial para o magistério, da interação com os pares, com as crianças, com as
famílias. Esses vários saberes se amalgamam a partir de alguns saberes que
têm como referência a criança e suas peculiaridades, como o saber brincar, o
saber narrar e o saber acolher. Tais saberes são construídos em relação ao
outro, nesse caso, a criança, e na vivência do tempo numa perspectiva
fenomenológica, em que os compromissos éticos que os sujeitos assumem na
relação com outros sujeitos orientam as ações. Esses compromissos éticos, ao
mesmo tempo em que definem a atuação docente, constituem fontes de
conflitos, ou "dramas", como afirmam alguns professores. A origem desses
conflitos se encontra nas diferentes demandas que se colocam aos docentes e
às quais eles buscam ser responsíveis: aquelas advindas da relação com as
crianças e suas famílias e as que têm origem nas condições institucionais em
que se dá a prática docente. Em momentos distintos da carreira, os professores
dispõem de diferentes condições de responsibilidade a essas demandas,
decorrentes de suas histórias pessoais e profissionais.
Entre os professores que estão na educação infantil em trânsito, ou em
situação precária, os saberes da experiência mobilizados no cotidiano com a
criança pequena, em função da própria situação instável desses docentes, tanto
na carreira quanto na própria escola, e em função, ainda, da fragmentação do
tempo de trabalho na instituição, mantém-se na condição de vivências mais ou
menos prazerosas, mas não se constituem num corpo mais estável de
conhecimentos, ou em experiências. Além disso, a ausência de encontros entre
os profissionais que trabalham na escola, muitas vezes com o mesmo grupo de
crianças, impede a partilha e a circulação dos saberes profissionais. Esses
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195
fatores contribuem para que a condição de sujeitos da experiência, que poderia
favorecer a consolidação dos saberes profissionais, seja negada aos docentes,
uma vez que a experiência fica reduzida à condição de vivências.
Quanto aos docentes que já consolidaram uma posição enquanto
professores da educação infantil, as pressões institucionais se mostraram fontes
de conflito entre atender às demandas que percebem como decorrentes das
necessidades das crianças e àquelas impostas pelas limitações institucionais.
Especialmente para esses professores - mas também para aqueles iniciantes na
carreira - a dimensão fenomenológica do tempo, tal como vivida pelo professor
que trabalha com a criança pequena, contrapõe-se à dimensão técnico-racional
pela qual se organiza a escola. Enquanto atender às necessidades da criança
exige uma gratuidade das ações e um tempo estendido no qual seja possível,
por exemplo, desfrutar de uma brincadeira com os pequenos brincando junto, as
condições de trabalho dos professores impõem uma vivência fragmentada do
tempo, da qual decorre uma fragmentação das relações e dos saberes e uma
lógica da produtividade que inviabiliza essa gratuidade das ações.
A vivência do tempo numa dimensão técnico-racional, própria da lógica
escolar, não favorece a construção - e muito menos a circulação - daqueles
saberes que se revelaram, no processo de pesquisa, as bases da atuação do
professor que trabalha com a criança pequena. Os contatos com as crianças em
intervalos de tempo entrecortados por outras atividades, em que a lógica da
produtividade se coloca como condição necessária para fazer frente às pressões
especialmente com relação à alfabetização, dentre outros fatores, contribuem
para a negação dos saberes próprios ao professor que trabalha com a criança
pequena. A percepção por esses profissionais de que tais saberes não são
legitimados ou valorizados enquanto saberes profissionais conduz, muitas vezes,
a uma negação dos mesmos, e à busca de afirmação de uma identidade
profissional para o professor da pré-escola pautada na transmissão de
conteúdos escolares, nos moldes do trabalho desenvolvido no ensino
fundamental. Desse fato decorre que os professores da pré-escola, participantes
desta pesquisa, percebem sua profissão numa dialética entre afirmação e
negação da dimensão do cuidado, inerente ao saber acolher, embora
reconheçam essa dimensão como inerente à sua atividade profissional e fonte
de realização pessoal e profissional. Afirmar tal dimensão seria, de certa forma,
reforçar os argumentos que historicamente têm negado ao professor,
especialmente àquele que lida com a criança pequena, um estatuto de
profissionalidade, em decorrência de uma identificação das práticas de cuidado
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com a dimensão privada e com práticas de maternagem. Conseqüentemente ao
mesmo tempo que reconhecem a necessidade e importância de qualidades tais
como o carinho e a disponibilidade ao outro para sua atuação profissional, os
professores buscam afirmar sua identidade em referência à transmissão de
conteúdos às crianças, às quais se referem, muitas vezes, como “alunos”.
Quanto à formação inicial, os docentes reconhecem a precariedade da
formação acadêmica para responder aos desafios da prática cotidiana, embora
admitam a importância dessa formação por oferecer condições de reflexividade
sobre a prática. A interação entre pares se apresenta como um espaço de
formação significativo para os professores, valorizado por eles. Entretanto, a
forma de organização do tempo dos professores nas escolas, decorrente, dentre
outros fatores, do modo como as horas destinadas às atividades docentes extra-
classe vêm sendo administradas nas escola pesquisadas, não favorece
situações de encontro entre os professores, o que se reflete na fragmentação
das relações interpessoais na escola e numa conseqüente fragmentação dos
saberes docentes. As trocas entre pares se reduzem à partilha de atividades
pontuais, não havendo condições favoráveis a uma maior reflexividade sobre a
prática.
A possibilidade de refletir sobre a prática se mostrou bastante importante
para os professores, perceptível, por exemplo, na adesão dos docentes ao
processo de pesquisa para o qual disponibilizaram, muitas vezes, horários fora
de seu tempo de trabalho nas escolas. Durante as reuniões em que se discutiu a
prática dos docentes foi possível perceber o papel formador que a discussão
entre pares pode desempenhar. Perceber-se pelo olhar da câmera, além de pelo
olhar do outro e colocar em diálogo sua própria prática e a prática do colega de
profissão, algumas vezes atuando com o mesmo grupo de crianças, evidenciou-
se como uma possibilidade de reflexividade para os docentes, apontando
possibilidades de fazer diferente, ou reforçando crenças e valores.
Decorre das considerações feitas até aqui a constatação de que os
professores da pré-escola constroem seus saberes profissionais nas relações
que estabelecem com a criança, sujeito de sua prática profissional, e com os
adultos, os pares. São relações que se dão em contextos institucionais
específicos, e só em referência a esses contextos podem ser compreendidas.
Nesse sentido, é ingênuo pretender que os docentes orientem suas ações a
partir de determinada concepção de infância e de educação infantil, se tal
concepção não fundamenta a própria organização de atendimento à criança
pequena. A organização dos espaços nas escolas pesquisadas, muitas vezes
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inadequados ao trabalho com a criança pequena; a organização do tempo; a
fragmentação das relações interpessoais na escola; a instabilidade na carreira -
ou mesmo a ausência de uma perspectiva de carreira para o profissional da
educação infantil -; a formação inicial insuficiente; a ausência de propostas
curriculares específicas para a educação infantil que pudessem fundamentar as
propostas pedagógicas das instituições de educação infantil públicas municipais;
a falta de clareza com relação à concepção de infância e de educação infantil
que deveria fundamentar essas propostas se mostraram dados relevantes nesta
pesquisa, que aponta para as dificuldades de afirmação de uma identidade
própria ao professor da pré-escola num contexto em que esses profissionais não
percebem uma legitimação de seus saberes profissionais. Esses dados parecem
apontar para o fato de que muitas vezes os professores da pré-escola
desenvolvem práticas que se confundem com aquelas realizadas na escola de
ensino fundamental não apenas por conceberem a educação infantil como
preparatória àquela etapa da educação básica, mas também – e talvez
principalmente -, pela ausência, nos contextos onde são formados e também
onde atuam, de referências próprias ao campo da educação da criança pequena
em que possam pautar suas ações. Por essa razão, torna-se importante refletir
sobre como vem se organizando a educação infantil nos sistemas de ensino.
No que diz respeito à rede pública municipal de ensino de Juiz de Fora
cumpre destacar a importância de uma reflexão acerca de alguns aspectos,
quais sejam:
as formas de organização do tempo de crianças e adultos no contexto
das EMEIs (Escolas Municipais de Educação Infantil) e nas escolas
que recebem turmas de educação infantil. Os dados produzidos pela
pesquisa apontam para a importância de uma reflexão, junto aos
professores, gestores e sindicatos sobre o modo como vem se
organizando, nas escolas, o tempo para as atividades docentes extra-
classe. Tal reflexão tornaria possível que esse tempo, conquista de
uma categoria profissional que historicamente vem lutando por
reconhecimento e por melhores condições de trabalho, pudesse
traduzir-se em ganhos na formação dos docentes e,
consequentemente, em ganhos para a qualidade do trabalho que se
realiza com as crianças.;
os critérios e meios de lotação dos professores contratados nas
escolas, de modo a criar possibilidades de um maior tempo de
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permanência dos profissionais nas instituições, favorecendo a
consolidação de saberes profissionais pelos docentes;
o modo como a especificidade da atuação com a criança pequena
pode ser contemplada nos processos de seleção e lotação dos
professores nas escolas;
os espaços das instituições que atendem à criança pequena
enquanto fatores de aprendizagem, tanto para a criança quanto para
o adulto que trabalha com a criança, uma vez que esses espaços e o
modo como se organizam podem favorecer, sugerir ou inviabilizar
determinadas práticas.
Com relação à formação dos professores, cumpre indagar sobre que tipo
de formação pode favorecer a criação de condições para que os docentes
reflitam acerca da especificidade do trabalho com a criança pequena, de modo a
que os professores possam ser protagonistas das propostas curriculares para a
educação infantil que fundamentam as Propostas Pedagógicas das escolas.
Considerando o protagonismo dos professores como condição para o
protagonismo da criança nas práticas que a ela se dirigem, os dados produzidos
nesta pesquisa indicam a importância de uma formação que favoreça ao
professor da educação infantil constituir-se como narrador de sua prática, aquele
que recupera uma experiência ancestral e oferece-a às novas gerações. Nesse
sentido, as dimensões ética e estética se constituem focos de especial atenção
nos processos formativos. Como, ao formar-se, o professor pode aprender a
brincar e a reconhecer a acolhida ao outro como componentes importantes de
sua profissionalidade e não como uma contraposição a ela?
Finalmente cumpre destacar que há muito que aprender com a
experiência de professores da pré-escola que, no cotidiano das instituições, vão
construindo essa atividade profissional. T~em a ensinar o professor que não
opta por estar na educação infantil, mas aprende a brincar; a professora que
empurra seu carrinho colorido pelos corredores da escola, buscando seu lugar; a
professora-narradora, que conta, encanta e ensina; aquela que acolhe e colhe
no outro os sentidos da profissão; a que, experiente, descobre-se aprendendo;
com a professora que questiona se aquilo que faz é trabalho ou brincadeira; com
a que pondera, aceita e rejeita o que se espera e exige do profissional...
Certamente esses sujeitos disseram muito mais do que pude ouvir e do que
pude, nos limites do texto de um trabalho acadêmico, dizer. Entretanto, “não
posso analisar o lugar de onde falo; será sempre um outro, que virá depois de
mim, que poderá apontar os silêncios naquilo que digo”.(Amorim, 2002, p.116)
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Os silêncios naquilo que digo nesta tese evocam, também eles, uma
contrapalavra. Esses silêncios apontam a relevância de pesquisas que, tomando
como objeto práticas de educação infantil, elejam os professores e também a
criança pequena como sujeitos dessas práticas, voltando-se aos sentidos que
para elas produzem esses sujeitos, constituindo-se, assim, uma esfera de
produção de discursos sobre a docência junto à criança pequena que considere
as peculiaridades dessa atividade profissional.
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210
Anexos
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211
Anexo 1 - CARTA-CONVITE
Juiz de Fora, março de 2004.
Prezada professora,
Esta carta tem o objetivo de convidá-la a participar da pesquisa “O que sabem os
que fazem: saberes de professores da educação infantil e construção de
identidades”, que venho desenvolvendo com vistas á elaboração de minha tese
de doutorado. O objetivo da referida pesquisa é compreender os saberes que
professores da educação infantil constroem no seu cotidiano, a partir das
interações que vivem com colegas de profissão, alunos e pais.
Para o alcance do referido objetivo, a participação na pesquisa envolve:
a) receber, durante o primeiro semestre de 2004, a pesquisadora em sua
sala de aula, na qual serão filmadas atividades que você, professora,
escolher;
b) participar, durante o segundo semestre, de reuniões com as demais
professoras que estão participando da pesquisa para conversarmos
sobre os momentos gravados em vídeo.
Os professores que forem aceitos como sujeitos da pesquisa receberão uma
declaração de participação em “Estágio de convivência interdisciplinar”, de
100horas, um programa que vem sendo desenvolvido pelo NEC (Núcleo de
Educação para as Ciências) da Universidade Federal de Juiz de Fora e que
poderá contar pontos em concursos públicos, assim como favorecer aos
professores sua inserção em cursos de graduação ou pós-graduação
(especialização ou mestrado). Além disso, a participação na pesquisa
oferecerá a possibilidade de reflexão sobre a prática pedagógica,
contribuindo para a divulgação dos saberes que os professores constroem
no seu dia-a-dia.
Serão selecionados 10 (dez) professores que estejam, no momento, atuando
em turmas de educação infantil em escolas da rede pública municipal de
ensino.
Os interessados deverão fazer contato com Hilda Micarello, através dos
telefones 3234-9992 (manhã) 0u 3215-2597 (tarde).
Atenciosamente,
Hilda Aparecida Linhares da Silva Micarello
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212
Anexo 2- DECLARAÇÃO
DECLARAÇÃO
Declaro para os devidos fins e efeitos que participou do estágio interdisciplinar
“O que sabem os que fazem: saberes de professores da educação infantil e
processos de construção de identidade” realizado pelo Núcleo de Educação em
Ciência, Matemática e Tecnologia, na Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Juiz de Fora, com carga horária de 100 horas.
É o que cumpre declarar.
Juiz de Fora, 26 de agosto de 2005.
Sônia Maria Clareto
Coordenadora do NEC
Núcleo de Educação em Ciência, Matemática e Tecnologia – NEC
Juiz de Fora – Minas Gerais – CEP 36036-450
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