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Luís Vinícius Brum da Silva
A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia
Porto Alegre
2009
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Luís Vinícius Brum da Silva
A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia
Dissertação apresentada junto ao Programa
de Pós-Graduação em Letras do centro
Universitário Ritter dos Reis, como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras.
Orientadora
Prof. Dr.
Leny da Silva Gomes
Porto Alegre
2009
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4
RESUMO
A canção regional gaúcha, através de suas múltiplas manifestações, vem se constituindo em
um objeto cultural relevante. Esta dissertação investiga, a partir das linguagens musical e
verbal, imbricadas no gênero canção popular, as contribuições que a construção deste
cancioneiro forneceu à consolidação do arquétipo reconhecido como gaúcho. Para efeito
desse estudo, situamos uma origem: a obra composta por Luiz Carlos Barbosa Lessa desde o
final da década de 40. O autor é um dos responsáveis pela valorização da cultura regional cujo
centro é a figura do homem do campo com suas idiossincrasias. Algumas de suas canções
atingiram reconhecimento tamanho no imaginário do povo sulino que têm sido cantadas
através destes quase sessenta anos nos mais diversos lugares e com as mais variadas
interpretações. Além das canções de Lessa, também a investigação recai sobre outras autorias,
estabelecendo proximidades e distanciamentos entre distintas manifestações artísticas no
sentido de se averiguar os traçados, os estilos, as dicções que construíram e que estão
construindo o cenário desse regionalismo que, já se pode afirmar, está consagrado como
referência de uma cultura localizada. Através do que aqui convencionamos chamar de audição
estética, empreendemos nosso estudo escutando a letra e lendo a melodia.
5
ABSTRACT
The regional gaucho folk music, through its various manifestations, has become an important
cultural artifact. This study investigates, through the musical and verbal languages, interlaced
in the folk music genre, the contributions that the construction of such musical identity gives
to the archetype of the gaucho. For the purposes of this study, we have located an origin: a
single piece of work composed in the late 40’s by Luiz Carlos Barbosa Lessa. The author,
amongst others, is responsible for the valorization of Rio Grande do Sul’s regional culture a
culture centered in the figure of the countryman and his idiosyncrasies. Some of Lessa’s songs
achieved such recognition in the southern imagery that they are still sung in several places
and within diverse interpretations almost sixty years after the first recordings. Besides the
songs of Lessa, this research also addresses other authors, establishing proximities and
distances between different manifestations in order to ascertain the routes, the styles and the
voices that built and are building the gaucho folk genre a genre that is being already
established as a reference of local culture. Through what we call aesthetic hearing, we
conducted our study – hearing the lyrics and reading the melody.
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SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO.....................................................................................................................06
2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA.......................................................16
3.CONSIDERAÇÕES SOBRE A CANÇÃO POPULAR........................................................20
4. ESCUTANDO A LETRA E LENDO A MELODIA...........................................................25
4.1 "Negrinho do pastoreio": uma toada em feitio de oração...................................................28
4.2 "Quero-quero": uma valsa entre a ave e o verbo................................................................43
4.3 "Cantiga de eira”: indo e voltando para o mesmo lugar.....................................................47
4.4 "Entrevero no jacá": onomatopeia e concretismo...............................................................50
4.5 "Carreteiro": alguém cantando dentro da canção...............................................................54
4.6 "Feitiço índio": uma evocação do mundo modal...............................................................58
4.7 "Quando sopra o minuano": a tradição no voo do vento....................................................63
5. ESTABELECENDO DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES.................................................67
5.1 Gildo de Freitas – um improvisador entre a oralidade e a cultura escrita..........................69
5.2 O poder da palavra na roda do canto..................................................................................76
5.3 A anunciação do canto: um problema enunciativo.............................................................80
5.4 Dois guris entre voltar e não partir.....................................................................................84
6. CONCLUSÃO......................................................................................................................88
7. REFERÊNCIAS...................................................................................................................96
8. OBRAS CONSULTADAS..................................................................................................99
9. DISCOGRAFIA.................................................................................................................100
7
1. INTRODUÇÃO
Este estudo investiga do ponto de vista da linguagem (ou das linguagens) de que
maneira a canção popular regional produzida no Rio Grande do Sul, a partir da década de
quarenta, contribui para o processo de construção de identidade do gaúcho. Evidentemente, a
palavra “gaúcho” remete para além de uma mera designação gentílica e, em nossos dias, já
suplantou a designação original “riograndense” e se plasmou no imaginário popular. Até hoje
existem variadas explicações para as origens etimológicas do vocábulo gaúcho. Fala-se em
procedências castelhanas, portuguesas, tupis, árabes, charruas, latinas, inglesas. Algumas
afirmações fantasiosas, outras mais ou menos aceitáveis, mas todas inconclusas.
Os etimologistas ainda não se entenderam a respeito da origem da palavra gaúcho.
E, ao que tudo indica, jamais se entenderão. [...] Nessa velha e surrada pendenga, a
melhor política é a seguida por Augusto Meyer: depois de apontar as principais
versões sobre a etimologia do complicado vocábulo, deu o assunto encerrado, sem
adotar nenhuma (REVERBEL, 2002, p. 5).
A designação gaúcho, nos dias atuais, parece abarcar um significado antropológico de
larga amplitude, um fenômeno de construção de identidade cultural diferenciado num mundo
que tende à fragmentação das culturas pela sua inevitável interpenetração. É identificável que
o senso popular consagra algumas canções como se fossem de pertencimento coletivo, posto
que falam, ou pretendem falar, sobre assuntos que unificam uma determinada comunidade. O
que aqui se estuda é, portanto, como as linguagens musical e literária, irrevogavelmente
tramadas no gênero canção popular, participam desse processo. Pretende-se, ainda, fazer a
verificação de correspondência entre as linguagens literária e musical (encontros,
desencontros e justaposições entre texto e melodia) na canção regional gaúcha, percebendo-
se, nessa relação, se existem elementos estilísticos, semânticos, ou de incidência verbo-
musical que conduzam a uma reunião de caracteres que possam remeter a uma identidade de
possível afirmação ou nulidade.
Nossa base é a obra de Barbosa Lessa, que se encontra no CD Barbosa Lessa 50
anos de música, por seu aspecto inaugural, e trataremos de cotejá-la com outras manifestações
consagradas do gênero através dos tempos no Rio Grande do Sul como a produção musical
oriunda dos festivais nativistas iniciados na década de setenta. Receberá destaque o evento
que em 1971 deflagra o movimento dos festivais gaúchos: Califórnia da Canção Nativa de
Uruguaiana.
8
As primeiras fixações fono-elétricas da obra de Lessa apresentam um grau de
espontaneidade criativa, de uma ingenuidade original que parece lhes conferir uma
determinada condição de acesso ao estudo que se pretende desenvolver. Esse estágio
embrionário da canção regional gaúcha encontra-se (naquele momento mesmo) revestido de
características quase intocadas como se fosse possível dar evidências de algum tipo de
“estado de pureza” composicional. Como não percurso análogo anterior e apenas hoje, um
pouco mais de meio culo adiante, parece ser possível proceder algumas aferições, creio que
se pode falar de alguma “pureza” estética caracterizando o período. Naturalmente, tal
condição é de difícil identificação e nem é do interesse desta análise embrenhar-se por estes
(des)caminhos das origens primeiras de qualquer manifestação cultural. Cultura, sabidamente,
é processo. Estados puros são de impossível percepção em se tratando das recorrentes
interpenetrações e influências que as culturas todas, localizadas ou não, remetem umas sobre
as outras.
Faz-se necessário, ainda que não se tratar aqui especificamente de tal assunto,
considerar algo que nos subsídio para a abordagem da questão da identidade que, como
foi dito, através das linguagens imbricadas no gênero canção, é o objeto desta reflexão. O
da discussão parece estar na aparente incongruência de se cogitar a verificação de um
processo de construção de identidade dentro de uma realidade mundial que tende à dissolução
das identidades. Sendo possível constatar que a natureza nacional (e por abrangência,
necessariamente, a regional também) das culturas cada vez mais está sujeita a
interpenetrações e a influências que trafegam em múltiplas direções e sentidos, será que se
pode ainda falar em identidade em construto num universo de localização tão delimitada
quanto o do regionalismo gaúcho?
Naturalmente a resposta a tal indagação parece estar condicionada a um conteúdo que
pode relativizar determinadas posições. Ainda que se possa constatar processos concretos de
esboroamento de uma identidade fixa qualquer, também são de observação possível alguns
movimentos que tendem à fixação de determinadas manifestações culturais. O paradoxo entre
construção e dissolução das identidades é sistematizado por Stuart Hall (HALL, 2006, p. 69)
em três tópicos que se pode reproduzir:
as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do “pós-moderno global”;
as identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo
reforçadas pela resistência à globalização;
as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades – híbridas
estão tomando seu lugar.
9
No dizer de Hall (citando Benedict Anderson), a identidade nacional (parece-me possível da
mesma forma considerar a regional) é uma comunidade imaginada.
Esta noção de comunidade imaginada parece encontrar ressonância no corpo das
canções sobre as quais adiante nos deteremos. Pode-se constatar a existência de um cenário
musical e verbal que remete a um coletivo que se distingue do nacional e parece demonstrar
tendências de afirmação cultural em suas manifestações.
Podemos ainda refletir, dentro do espectro da canção regional, de que maneira se
estabelece a condição aparentemente antagônica entre a criação ficcional da personagem
gaúcho e sua correspondência na formação histórica do Rio Grande do Sul. Sem querer
adentrar por terrenos alheios, devemos, contudo, situar algumas questões que parecem servir
para a condução mais acurada desta reflexão.
Ao cogitarmos uma construção de identidade, surge inevitavelmente essa relação: no
homem inserido, e que talvez busque se reconhecer, dentro deste cancioneiro, que
características ficcionais e de fenômenos de correspondência histórica nele? Pode algo
estar envolvido a um tempo em ambos os mantos? Pesavento (2006) afirma "a
presentificação do passado não nos remete apenas para o fato evocado, mas navega no tempo
e no espaço, interconectando palavras e imagens, correlacionando sentidos" podemos dizer
também interconectando sons, uma vez que se possa considerar que universos verbais,
pictóricos/imagéticos e sonoros estão envolvidos na produção da canção. Veremos que a obra
em análise remete, invariavelmente, para um éthos que parece definir um grupamento humano
dentro de uma experiência memorial significativa. Através das canções vai sendo composta
uma narrativa que tende a ampliá-las e a uni-las numa corrente de construção de sentido.
Pode-se ouvir a voz dos cantores (distinta da voz subliminar do autor) e se pode igualmente
recortar as vozes co-habitantes dos mundos verbais e sonoros que compõem o espectro das
tessituras humanas envolvidas nas experiências vividas ou relembradas. Podemos, pois, de
alguma forma, indagar se tal construção de identidade, uma vez evidenciada, configura-se
verossímil, considerando assim, por aproximação ou distanciamento, o gaúcho inventado e
sua correspondência histórica real. É fundamental, contudo, que se saliente uma evidência
contundente:
Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento
esquecido de nossos começos e “autenticidade”, pois há sempre algo no meio
[between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois podemos
conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é,
10
quando este é trazido para dentro da linguagem e de embarcamos numa
(interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos
encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias
secularizadas”, como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em
que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós,
buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma.
Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e
contexto que temos... (CHAMBERS, 1990 apud HALL, 2003, p. 27).
Mesmo que Lessa, ao criar suas canções, não tivesse tal consciência, sua obra parece
reconhecer a impossibilidade de volta sensível ao lugar cantado. Cantar, então, é sua posição,
sua localização. A canção é o seu momento e o seu contexto. É sua casa imaginada e concreta.
Essa casa ideal só se torna perceptível pelo movimento da linguagem (das linguagens), da voz
ou das vozes que a situam ou projetam. Voz essa que tanto pode ser do autor, do cantautor, do
cantor ou daquele que, mesmo em silêncio, a reproduz: a voz empírica que pontua a
subjetividade da enunciação. "As emoções suscitadas pelo poeta não pertencem a um passado
remoto. Estão “aqui” vivas e imediatas" (CASSIRER, 1994, p. 241). Quem ouve uma
canção, um texto, contempla uma obra de arte ou um objeto qualquer da realidade, ainda
que de forma silenciosa, estabelece com o objeto contemplado uma relação de contraste e de
resposta contínua pertencente à natureza da enunciação. Somos tocados pelo que nos cerca, e
esse toque nos posiciona diante das coisas. Está aí a evidência de que as pessoas que
compõem o ato enunciativo estabelecem entre si um vínculo inarredável. Evidentemente, a
teoria da enunciação tem sua aplicação voltada para os fenômenos linguísticos, e o gênero
canção, uma vez que provoca uma ampliação dos campos de linguagem, necessita de outras
referências teóricas para o procedimento de análises mais consistentes. Posteriormente trarei
à reflexão deste trabalho alguns pressupostos linguísticos formulados por Émile Benveniste,
bem como considerarei algumas contribuições de Mikhail Bakhtin e de Ernst Cassirer acerca
da filosofia da linguagem.
As teorias enunciativas, apesar de suas eloquências de investigação e método, também
deixam sempre portas abertas para novas investidas. Essa é a natureza da construção do
conhecimento: haverá sempre possibilidade de colocação de mais um tijolo na edificação.
Pode-se afirmar, ainda, que é pelo ato enunciativo que se constrói o homem que, permeado
por suas inquietações interiores, condiciona-se em sua posição social, portanto, ideológica.
Sendo assim, pode-se investigar o papel da canção popular de inspiração rural na construção
arquetípica do gaúcho considerando-se as questões sociais e ideológicas imbricadas, assim
como refletir sobre a subjetividade que orienta o gênero canção, bem como as implicações
perceptíveis nas aproximações e nos distanciamentos entre os suportes de natureza linguística
11
e aqueles de natureza musical que interagem no gênero canção popular. É justamente nessas
proximidades e distâncias que pretendo verificar o quanto é possível perceber um processo de
construção (ou desconstrução) de uma identidade cultural relevante. Será que esta canção
popular, que pretende remeter a uma condição original de uma dada cultura, pode afirmar-se
internamente em suas inquietações e em seus motivos, ou tais aferições apenas sejam
possíveis pelo que se pode observar externamente? Até que ponto são nítidas essas
implicações e imbricações das linguagens envolvidas no gênero neste processo de
identificação?
Cabe ainda salientar que, em função da natureza do objeto, a canção popular regional,
ou seja, sua recente posição histórica, talvez não haja suficiente distanciamento temporal para
que se proceda a uma análise crítica isenta de impressões pessoalizantes
1
. Devemos, pois,
"ultrapassar, por imposição de métodos, as ressonâncias sentimentais com que, menos ou
mais ricamente – quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema (ou na canção) –, recebemos
a obra de arte” (BACHELARD, 2000, p. 7). Junte-se a isso a incipiente investigação sobre o
tema empreendida até hoje, o que acarreta dificuldade de recortar-se um referente teórico que
encerre maior especificidade.
Neste ponto é cabe explicitar que, em função desse meu envolvimento com o cenário
da música regional, deixo de centrar-me num suporte teórico específico. Nos processos de
construção do conhecimento, ou de leitura e interpretação, pode-se criar um deslocamento do
par teoria e prática para o par experiência e sentido. Esta é uma posição defendida pelo
educador Jorge Larrosa Bondía (2002) no artigo Notas sobre a experiência e o saber de
experiência. O autor reflete:
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto ininterrupto, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer
parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar
mais devagar, parar para sentir, [...] suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza.
Chamo neste momento a atenção sobre a questão da experiência principalmente
porque e adiante desenvolverei reflexão sobre a velocidade dos acontecimentos que nos
envolvem no mundo contemporâneo e sua repercussão na qualidade da audição musical é na
minha trajetória como compositor de canções de temática regional e de participante ativo do
1
Ainda que seja difícil, em função do meu envolvimento visceral com a criação de canções de perfil estético
análogo àquelas que comporão esta análise, devo estar atento para não me desviar por caminhos um tanto
domésticos que pouca ou nenhuma contribuição terão para oferecer.
12
movimento dos festivais nativistas desde o início dos anos oitenta que, possivelmente, eu
encontre subsídios que talvez possam suprir a lacuna gerada pela dificuldade de abordar o
nosso objeto pelo crivo estrito do par científico teoria e prática. O conhecimento que me foi
possível construir, através de experiência e da devida atenção com que me defrontei com os
fatos, talvez se constitua em uma base aceitável sobre a qual possam ser apoiadas as
considerações aqui desenvolvidas. Aquilo que Larrosa apregoa como "o saber de experiência,
que se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana” (2002, p. 26).
A obra em foco ultrapassou um cinquentenário desde a composição de sua primeira
canção (1946), a valsa "Quero-quero", gravada ainda em 78 rotações no ano de 1956. A
presente investigação irá incidir justamente sobre o período em que foram efetuadas as
primeiras gravações das canções do compositor. Para tais audições, além de alguns elepês
dispersos, devo centrar-me no CD Barbosa Lessa 50 anos de música lançado no ano de
2001. Constam dessa edição vinte e seis faixas entre canções de sua autoria e danças
folclóricas por ele recolhidas. A totalidade de sua obra conta com cinquenta e duas canções
gravadas desde 1953. Para o presente estudo, foram selecionadas as seguintes: "Negrinho do
Pastoreio", "Quero-quero", "Entrevero no jacá", "Carreteiro", "Feitiço Índio" e "Quando sopra
o Minuano".
A partir da audição dessas primeiras gravações, pretendemos efetivar algumas
comparações entre características composicionais e interpretativas que foram se plasmando ou
se perdendo daqueles primeiros momentos até a atualidade. No transcorrer do trabalho se fará
necessário detectar elementos constituintes das linguagens musical e literária que compõem a
obra. Tais elementos, para um breve exemplo, podem ser, na linguagem musical, o universo
tonal, os coloridos timbrísticos, as nuanças interpretativas, a instrumentação, as cadências
rítmicas; na linguagem literária, o metro, a rima, as figuras de linguagem, o ritmo. Tudo isso
mediado pelas questões enunciativas, sociais, culturais e ideológicas imbricadas no gênero
canção popular.
Feita essa análise, parece necessário também proferir uma aproximação entre este
momento de criação e a atualidade da produção cancionista de perfil regional no Rio Grande
do Sul, fazendo, na medida do possível, uma averiguação que contemple a linha cronológica
que perpassa este ciclo evolutivo. Assim sendo, parece-me possível percorrer um traçado que
conta, ainda que minimamente, do processo de construção (ou desconstrução) identitária
do gaúcho.
Posso, contudo, dizer algo sobre minha experiência como compositor e como
participante do movimento dos festivais nativistas desde o final da década de setenta. Foi nos
13
meados daqueles ‘setenta que seriam dez’ (parodiando uma canção da época)
2
, que tive o
primeiro contato com o universo cancionista que se inspirava num ambiente regional bem
identificado. Claro que já ouvira algo desse regionalismo na voz de alguns como Teixeirinha
ou José Mendes, mas tudo tão de passagem aos meus ouvidos adolescentes que pouca
importância atribuí ou atenção dediquei àquelas sonoridades. Estava mais interessado na
chamada MPB, com suas icônicas referências a Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso.
Contudo, ao escutar as primeiras canções advindas da Califórnia da Canção Nativa de
Uruguaiana, surpreendi-me interessado com aquilo que aos meus ouvidos soava como pura
novidade. E por enveredei, como atento apreciador dessa estética musical que se debruçava
sobre um paisagismo rural que desde a infância me era familiar.
Passaram-se alguns anos até que, em 1980, lá estava eu de violão em punho no palco
do Cine Pampa em Uruguaiana participando da décima edição do festival. Recordo cada
átimo daquele mergulho inaugural: as canções, as pessoas uns reconhecidos, e outros tão
neófitos quanto eu a entrada do teatro, os camarins improvisados que davam para o pátio da
prefeitura. Mas, de tudo mesmo que daquela experiência ficou, dois fatos com certeza foram
marcantes e talvez decisivos para a minha trajetória: a apresentação inesquecível do bardo
argentino Atahualpa Yupanqui e a então nascente dicotomia entre um regionalismo
conservador e “um nativismo de vanguarda”.
3
Tal dicotomia cruzou os anos 80 e chegou vigorosa aos 90. Os festivais nativistas
haviam proliferado. Chegaram a mais de sessenta por ano em praticamente todas as cidades
importantes do estado. Neste momento permito-me abrir parênteses nesta condução do texto
para dizer algo sobre um autor que também marcou sensivelmente minha impressão a respeito
do regionalismo acerca do qual agora empreendo esta análise: o missioneiro Noel Guarany.
Foi pela metade dos anos setenta que ouvi pela primeira vez a música de Noel
Guarany. Tantos anos passados, recordo (ou imagino) tenha sido numa tarde mormacenta de
2
Alusão à canção "Os setenta que serão dez", gravada pelo grupo Utopia liderado pelo hoje consagrado Bebeto
Alves.
3
Nos anos 80, houve um despertar da atenção da juventude urbana pela música de inspiração regional. Uma das
referências dessa nova “onda” foi sem dúvida a dupla dos irmãos Ramil, Kleiton e Kledir. A gurizada misturava
bombacha com nis no cotidiano e, aos domingos, se reunia para um bom chimarrão nas praças e nos parques
das cidades. Naturalmente, esse comportamento desagradou alguns setores do tradicionalismo mais ortodoxo.
Em Porto Alegre, o ponto principal desses encontros era o Parque da Redenção. Casas noturnas especializadas
em apresentações dessa “nova” música eram inauguradas em número significativo. Do contato dos músicos
urbanos com aquele regionalismo tradicional surgiu então um movimento que se convencionou chamar de
“nativismo de vanguarda”, no qual havia uma mistura das mais variadas influências musicais em oposição à
música até então representada pelos artistas mais tradicionais nesta forma de expressão como Teixeirinha,
Irmãos Bertussi e seus seguidores. Até mesmo o gentílico gaúcho foi alvo dessa dicotomia. Os inovadores eram
designados como riograndenses, como se isso fosse menor, e os conservadores, esses sim, seriam os verdadeiros
gaúchos, e isso era uma conferência de valor preponderante.
14
domingo, junto a um balcão de bolicho onde se reunia uma gauchada para um jogo de bochas
e uma gurizada estudante em férias de verão. De uma pequena vitrola portátil saiam canções
que falavam de uma paisagem geográfica e humana, que desde então me encantam. Essas
canções, contudo, diluíam-se no meio do burburinho dos jogadores, dos estampidos das
bochas arremetidas umas contra as outras e das conversas adolescentes que se desfiavam com
descompromisso. No meio dessa confusão de sons na tarde interiorana, chama-me a atenção
uma voz vinda da vitrola meio rouca. Afasto-me da roda de amigos e me aproximo do balcão
para melhor ouvir aquela canção: "hoje é domingo, encilhei meu estradeiro, botei água de
cheiro, não me falta “quaje” nada" São os versos iniciais da canção "Destino de Peão" que
está no LP Destino Missioneiro de Noel Guarany lançado em 1973.
Para mim aquele momento foi revelador de uma estética com cheiro de novidade.
Apesar dos verdes anos, nosso grupo (como tantos à época) era apreciador da chamada
música popular brasileira. A canção do Noel era feita de um tecido sonoro em tudo diferente
do que eu estava habituado a ouvir.
Não demorou muito para que o menestrel missioneiro se tornasse uma referência e
fosse arrebanhando multidões de apreciadores de seu canto por onde passasse. A formatação
banquinho e violão eram a mesma da bossa nova, mas o som era outro. Era pontiagudo,
desafiador em sua singeleza e singularidade. A voz fronteiriça parecia ter saído das páginas de
Hernandez. Parecia que Isidoro Cruz e Martin Fierro haviam amalgamado suas vozes dentro
do pampa riograndense, passando a cantar pela boca daquele filho da Bossoroca, nascido Noel
Borges do Canto Fabrício da Silva em 26 de dezembro de 1941 e falecido Noel Guarany em
06 de outubro de 1998.
O Brasil vivia os efeitos do regime de exceção e a censura oficial se fazia sentir
catalogando aquilo que se podia e não se podia ouvir. Noel, como Fierro, sempre cantou
opinando e foi como arauto de uma cultura que ele pretendia defender que se tornou ídolo da
juventude universitária em sua desassombrada ânsia de liberdade. Guarany imortaliza a
canção "Potro sem Dono", de autoria de Paulo Portela Fagundes, tornando-a um hino à
rebeldia. Através do gênero payada, cujo mestre entre nós é sem dúvida o também
missioneiro Jayme Caetano Braun, Noel vai desvelando suas impressões sobre o mundo,
sobre a América Latina, sobre sua concepção de pátria e seu irrestrito respeito à natureza. Do
seu encontro com Don Jayme resulta um dos mais significativos registros daquilo que hoje se
convenciona chamar de música missioneira: o LP Payador, Pampa e Guitarra, lançado em
1976 que conta com a participação de um dos ícones do folclore argentino: o virtuoso
acordeonista Raulito Barboza.
15
Em uma de suas canções, Noel pede licença que vai cantar um missioneiro com
manhas de literato e tino de bom campeiro. Com tais manhas e tino, visita a obra de um dos
maiores poetas gaúchos e lança em 1978 o LP Noel Guarany canta Aureliano de Figueiredo
Pinto uma das marcantes e definitivas contribuições para a música brasileira. Sim, porque
apesar de sua marca eminente e propositalmente regional, ele conquistou a admiração em todo
o país. O produtor Marcus Pereira disse certa feita: "Noel Guarany é um dos maiores cantores,
compositores e guitarristas deste país. no pago dele [...] adoça suas canções com o mate
amargo, hábito do pampa, que também é brasileiro".
Ainda que com maior recorrência Noel seja lembrado por sua rebeldia, por sua
irreprimível ânsia de liberdade e pela ousadia de um cantar que não se curvava a imposições,
creio que o seu lirismo seja tão ou mais contundente dentro de sua obra. Nunca mais me
saíram da cabeça os versos, a voz e o violão daquele "Destino de Peão" que ouvi recostado
num balcão de bolicho de uma perdida tarde de domingo.
Ainda ouço... Um violão ponteia notas limpas, translúcidas como cristais filtrando o
tempo. Prepara com arpejos de harpa guarani o cenário sobre o qual o peão, que trabalhou um
mês inteiro solito num fundão, vai dizer do seu amor. Como Simões inventa Blau, Noel
inventa o peão. Reconhece-lhe até a singularidade linguística e não esconde os “quaje”, os
“ansim”, os “inté”... a maneira como um homem rude que o mundo desde o seu rincão e
sonha em viver melhor junto da prenda que ama para agradecer a Deus por seu destino. Canta
um homem que sabe da lida bruta com potros e aramados, mas que guarda delicadezas para as
horas de precisão.
E ficou-me o Noel Guarany: vigoroso, rude, rebelde e lírico. Barbosa Lessa, na
apresentação do LP Destino Missioneiro, escreveu: "quando lhe mostrei uma cantiga minha
que fala de um gaúcho moço que quer ir para a cidade a fim de 'deixar de ser bagual', Noel
Guarany me confidenciou num tom de voz profundo e com impressionante sinceridade: –"
Dom Lessa, eu acho muito mais importante continuar sendo bagual..." E continuou. E ainda é.
O menestrel missioneiro Noel Guarany – bagual e lírico.
Em meados dos anos 80, tendo ao centro a figura do escritor e poeta Luiz Sérgio Metz
(Sérgio Jacaré), fundamos o grupo Tambo do Bando, que misturava tudo aquilo que eu havia
visto e ouvido. Se Noel era “bagual e lírico”, nossa música era “gaudéria”
4
e “povoeira”
5
. Por
4
Segundo o historiador argentino Ricardo Rodriguez Molas, em seu livro Historia social del gaucho, antes de
haver-se fixado a designação gaúcho, havia registros chamando gaudério alguns habitantes do pampa
sulamericano por volta de 1750.
5
Adjetivações comuns à época que tentavam opor as duas manifestações estéticas em curso: uma proveniente do
universo rural e outra da realidade caótica urbana.
16
esta proposição em unir os dois pólos antagônicos, fomos aclamados como redentores e
execrados como traidores. O Tambo duraria cerca de dez anos pendulando entre a adoração e
o detrato. Hoje, talvez, com a poeira baixada e as ansiedades postas a bom termo, haja
espaço para uma compreensão menos arfante daqueles ferventes episódios, mas isso talvez
mereça um outro espaço de estudo. O certo é que além da minha produção como compositor,
além das minhas participações como intérprete das minhas canções e das canções de tantos,
devem ter sobrado as interrogações que ora faço no sentido de compreender, dentro do que
seja possível, a natureza motivadora desses acontecimentos que pude presenciar ou dentro das
histórias que pude conhecer. Umas narradas por seus protagonistas, e outras através das
pesquisas e do interesse pelo objeto alvo desta investigação. Muito teria a relatar, por certo,
destes momentos todos, mas devo, a bem do desenrolar do trabalho, esquivar-me dessas
memórias e seguir a elaboração da tarefa determinada.
17
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA
“A consciência teórica, prática e estética,
o mundo da linguagem e do conhecimento,
da arte, do direito, e o da moral,
as formas fundamentais
da comunidade e do estado,
todas elas se encontram
originariamente ligadas
à consciência mítico-religiosa.
(CASSIRER, 2006, p. 64)
Para dar conta de explicar e compreender os acontecimentos do mundo, o homem
primitivo constrói respostas de natureza mítica para suas perguntas de ordem concreta ou
abstrata. Pode daí ser depreendido que nesta fase de desenvolvimento a linguagem é tocada de
forma decisiva pelo pensamento primitivo. E, sendo assim, a um mesmo tempo, é
condicionada por ele e o condiciona. um enlace inaugural que possibilita especular-se
acerca de uma matriz primitiva que instaure os mundos mítico e linguístico. Ernst Cassirer,
citando Max Muller, afirma que "a mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à
linguagem, se reconhecemos nesta a forma externa do pensamento"(MULLER apud
CASSIRER, 2006, p. 19). Podemos, apressadamente, entender que tais temas que envolvem
concepções não propostas pela racionalidade própria do mundo da ciência, à qual o senso
comum atribui o peso da responsabilidade de ser a ferramenta humana para encontrar a
verdade, estão um tanto distanciados da nossa realidade neste limiar de terceiro milênio. Basta
porém dedicarmos um olhar que ultrapasse minimamente uma atitude contemplativa e talvez
distraída, para que nos demos conta de que resquícios indeléveis perduram até hoje desta
imbricação original da linguagem e do mito. Ainda citando Max Muller, Cassirer remata um
ponto em sua costura reflexiva afirmando que "mitologia, no mais elevado sentido da palavra,
significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento". (MULLER apud CASSIRER,
2006, p. 19)
Ora, se a linguagem projeta-se sobre o pensamento em um exercício de potência, e se,
naturalmente, a linguagem é o elemento que constitui o homem em sua inteireza e
diferenciação, e sendo, por sua vez, o pensamento a atividade orgânica que nos fundamenta,
parece haver possibilidade afirmativa suficiente na compreensão de que os mitos não são algo
perdido num tempo imemorial da humanidade, mas que estão ainda presentes no cotidiano da
nossa contemporaneidade. "Sonho religioso, miragem filosófica, ideação literária
desgovernada? Não faz mal. Os povos, como os indivíduos, não dispensam os mitos.”
(CESAR, 1977 apud HERNANDEZ, 1980 p. 18).
18
Por essa ligação primordial entre mito e linguagem, o homem empreende sua
fantástica jornada através da qual se empenha em, progressivamente, constituir suas
apreensões universais. É a capacidade simbólica da palavra que permite a referenciação das
coisas, a nominação dos seres e a inter-relação que se estabelece entre o homem e suas
vicissitudes naturais ou não. Palavra é signo. Se recorrermos ao léxico, podemos substituir tal
predicativo por sinal reminiscente, indício, marca, símbolo, elemento de projeção ou
importância, expoente, luminar. Etimologicamente encontramos em sua derivação latina
signum,i a correspondência a sinal, marca distintiva, assinatura. Contudo, existe sempre a
tentação de que sejam perscrutadas as fronteiras iniciais, os primeiros tempos, os alvoreceres
dos acontecimentos, para que, como se fosse possível, se intentasse, de forma talvez
jornalística, apanhar o primitivo ancestral com a palavra primordial prestes a escorrer-lhe da
boca e vazar para a eternidade.
Rousseau, em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas
(1978, p. 164), faz-se a pergunta (e
responde com estilo):
Onde, pois, estará essa origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as
paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a
separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a lera, que
lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível
nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas
para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza
impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis
porque as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e
metódicas.
No capítulo sétimo do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2006)
um flerte com Cassirer em sua referência ao homem pré-histórico que faz uso de uma
mesma palavra para designar várias manifestações. O texto remete a Nicolau Marr
6
É suficiente dizer que a paleontologia linguística contemporânea nos a
possibilidade de aceder, graças às suas investigações, às épocas que as tribos
tinham à sua disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de que
a humanidade tinha consciência.
Partindo de tal asserção, pode-se inferir que o aspecto sonoro da palavra detém
fundamental importância para a construção dos significados, pois podemos especular sobre as
variantes entoativas que talvez contribuíssem para a construção das múltiplas possibilidades
semânticas do vocábulo original. Tendo como parâmetro o texto fundamental da religiosidade
6
Linguista russo.
19
cristã, constatamos que é pela linguagem, pela potência da palavra que Deus empreende sua
inigualável criação. Foi a expressão material da palavra, sua onipotente sonoridade, que
deflagrou o construto divino. Rousseau havia nos alertado para as origens musicais das
línguas. Desta forma, sendo a palavra o instrumento pelo qual se engendrou o mundo sensível,
impõe-se uma interrogação: o mundo primitivo explica pelo mito suas circunstâncias
inerentes, porém se Deus disse faça-se e tudo surgiu, a palavra deflagrou a realidade.
Contudo, o real definido por Kant e referenciado por Cassirer indica a necessidade de uma
elaboração racional da percepção, mediada por leis gerais e ordenada por um contexto de
experiência para que se promova a conceituação do fenômeno realidade. O mundo da ciência
é concebido e se desenvolve com uma atitude densamente racionalista. O poder da razão e a
potência simbólica: tal é a encruzilhada que acossa esta reflexão. A questão deve ser avaliada
levando-se em consideração que neste momento primordial não experiência anterior nem
para a palavra e muito menos para o mito. Retornamos, pois, àquela imbricação original entre
ambos. Um espaço-tempo em que a linguagem pela qual a concepção mítica é revelada
mistura-se incondicionalmente com sua revelação. Deparamo-nos com a circunstância mágica
da palavra.
Tendo presentes as reflexões encontradas no livro Linguagem e Mito, notamos um
aponte para a existência de uma matriz para ambas as manifestações. Essa terra-mãe é a
metáfora. E entenda-se aqui não a figura retórica (e racional) que promove analogias entre
coisas e eventos e que migra a semanticidade em suas incidências, senão como um estado
inaugural no qual a manifestação do nome da coisa é a coisa em si. Portanto, não se trata aqui
de uma parte da linguagem nem de uma função por ela exercida. Novamente Cassirer cita
Max Muller: "O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não
porque não lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes para dar expressão
adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito" (MULLER apud CASSIRER,
2006, p. 103).
A circunstância gica da palavra, o mistério da palavra, esta inesgotável capacidade
de dizer, de apontar, de situar e ao mesmo tempo sonegar, esconder, pluralizar os significados
essa é a situação diante da qual emergimos e naufragamos diariamente. Daquela língua
inaugural recém referida, na qual a palavra única dava conta de todas as expressões, passamos
a uma multiplicidade vocabular praticamente infindável. Digo infindável porque a
sofisticação atingida pelo desenvolvimento das línguas e das linguagens parece ter empurrado
as fronteiras da palavra para um território além, sempre mais além.
20
É isso que ocorre quando as duas linguagens em foco se tocam. Tanto a palavra quanto
a nota musical são ampliadas em suas dimensões semânticas. Evidentemente, se podemos
falar em uma semântica musical no universo da canção popular, devemos a essa troca que se
realiza dentro do nero, no qual letra e melodia imbricam-se de forma inexorável. Sendo
assim, por seu praticamente inesgotável peso semântico, a palavra tende a exercer certo
domínio sobre a nota musical. Tentaremos, dentro do possível, relativizar esse domínio e
perscrutar se realmente ocorre alguma dominação ou se o que existe é um perfeito equilíbrio
entre essas duas linguagens de naturezas distintas que se fundem. A prédica rousseauniana
afirma a natureza musical das línguas "desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm
origem comum" (ROUSSEAU, 1978, p. 186).
21
3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A CANÇÃO POPULAR
A linguagem – a fala – é uma riqueza de múltiplos valores. A
linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus
atos. [...] Para o bem e para o mal, a fala é a marca da
personalidade, da terra natal, da nação, o título de nobreza da
humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão
inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da
terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível
indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é
tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento dessas coisas.
(HJELMSLEV
, 1978, p. 185)
A canção popular presta-se, assim como outras manifestações artísticas, à localização
de um indivíduo dentro de um quadro social definidor de uma interação apta a sugerir
perguntas e a desafiar respostas sobre a construção do modelo de sociedade em que está
inserida. A natureza das vozes, a personalidade enunciadora, o movimento interno e externo
dos discursos, tudo diz de um universo que abarca também a singularidade desse gênero.
A música cantada, na medida em que foi se afastando das regiões agudas habitadas
pelo canto lírico, iniciou em suas manifestações uma nítida aproximação dos recursos sonoros
da fala. No Brasil, desde as primeiras fixações fono-elétricas do começo do século XX, pode-
se perceber que características como potência e virtuosismo, próprios do universo musical
erudito, vão aos poucos dando espaço a outro tipo de interpretação vocal. Temos aí,
provavelmente, o nascimento de um dos formatos mais consagrados da cultura brasileira atual
– a canção popular.
Esse produto cultural, apesar de guardar origens na música e na poesia, conseguiu
fundir tais territórios de maneira tão sentida que não parece ser mais possível isolar os
elementos estruturantes de sua forma. Portanto, o gênero canção adquiriu tal unicidade que
qualquer abordagem sua que não contemple esse caráter unívoco pode ver-se comprometida
em sua possibilidade crítica. Não se trata, pois, nem de poesia musicada, nem de melodia para
acompanhar texto. Não havendo absoluta sintonia entre os dois elementos constituintes, o
gênero perde o melhor de sua expressão estética. Assim não fosse, a questão da produção e da
construção do nosso cancioneiro estaria à disposição de quem juntasse, por exemplo, a poesia
de Drummond, ou de Bandeira, à música de Villa-Lobos, ou de Jobim, e daí extraísse a
canção em seu melhor potencial de encantamento. Sabemos que iniciativas dessa natureza,
não raro, resultam em produções de duvidosa qualidade artística e de raso reconhecimento
popular.
22
Migrando o olhar para um recorte localizado, podemos empreender uma investigação
sobre a canção regional gaúcha que, apesar de sua produção ser relativamente recente
(podemos situar seu início na transição entre as décadas de quarenta e cinquenta), apresenta
um leque de possibilidades analíticas que parece demonstrar algo de relevante para que se
empreenda em sua direção tal jornada investigatória.
Logicamente, um gênero como a canção popular não surge como um evento
surpreendente. É sim parte de um processo, de uma interação, de uma confluência de usos e
emergências.
Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar, de amigos e
conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive, sempre existem enunciados
investidos de autoridade que dão o tom, como as obras de arte, ciência, jornalismo
político, nas quais as pessoas se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. Em
cada época e em todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas
tradições expressas e conservadas em vestes verbalizadas: em obras, enunciados,
sentenças, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 294).
Nesse sentido, autores como Barbosa Lessa começam a esboçar aquilo que hoje é
reconhecido como cancioneiro regional gaúcho
7
. No final dos anos quarenta, (este é um
episódio da história recente do Rio Grande do Sul largamente difundido) um grupo de jovens
interioranos promove, no Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, uma série de atividades
com vistas a resgatar um modus vivendi do universo rural gaúcho que lhes era familiar.
Tratava-se de um movimento de retomada de alguns valores que naquele entender pretendia
conferir algum tipo de unidade cultural ao povo gaúcho. Seria então a afirmação de uma
cultura identificada e identificável. Revivificar usos e costumes até que se mostrou algo
relativamente fácil. Havia experiências individuais dos participantes do grupo que eram
suficientes para atualizar atividades rotineiras do homem do campo. Contudo, na medida em
que surgiram emergências menos tangíveis como as relacionadas ao fazer artístico e às
incursões pelo mundo folclórico, as coisas não correram como águas mansas de regato que cai
no rio.
Um dos entraves que se interpôs aos anseios daquele grupo em seus encontros, cujo
propósito era cultuar as tradições através de uma arte eminentemente regional, foi o pouco
significativo número de canções existentes. Além de algumas peças do folclore como Boi
Barroso e Prenda Minha, pouco havia para se cantar.
7
A terminologia cancioneiro regional gaúcho nesta reflexão refere-se ao conjunto de canções populares (melodia
e texto) produzidas desde a década de quarenta, não se confundindo, pois, com a referência ao cancioneiro
literário consagrado nas primeiras fixações da oralidade nas trovas e quadras populares.
23
Quem não quer, manda, diz o ditado, e quem quer, faz. Tivemos de fazer. Para
saber o que é que o público entenderia como música do Rio Grande, fui tenteando
os ritmos na base da tentativa-e-erro: uma toada (“Negrinho do Pastoreio”), depois
duas milongas (“Milonga do casamento” e “Milonga do bem-querer”), mais tarde
um chamamé (“Balseiros do Rio Uruguai”). Mas por paus e por pedras ia nascendo
um cancioneiro do Rio Grande do Sul!
8
.
Assim escreveu Luiz Carlos Barbosa Lessa sobre sua investida pela senda inaugural da
canção regional. Não havia sequer um ponto cardeal estético ou discursivo que apontasse para
qual caminho seguir naquele alvorecer que ainda não estava anunciado. Meio século depois,
composições de Lessa como "Negrinho do Pastoreio" vivem na alma do povo gaúcho como se
lhes pertencesse desde sempre – parecem ser de domínio público e muitas vezes, sob a
pressão de tal aparência, a autoria é omitida ou esquecida.
Aqui surge uma das interrogações que, parece, de acompanhar esta investigação:
como esta voz, impregnada da visão de mundo de um dado autor, pode se tornar a voz
amplificada de um arquétipo que tende a concentrar a voz de uma coletividade. A
emblemática figura do gaúcho quer o mito da literatura, quer a sua possibilidade concreta
no mundo real em que momento é ela mesma que assume a voz do canto, ou tal figura
possui apenas a voz que lhe é atribuída. Cassirer indica "o primeiro problema que se nos
apresenta na análise da linguagem, da arte, do mito, consiste em perguntar de que maneira um
determinado conteúdo sensível, particular, pode se transformar no portador de uma
significação espiritual universal" (CASSIRER, 2001, p. 43).
Faz-se necessária neste momento uma alusão ao estudioso Luiz Tatit
9
, que em sua
obra O cancionista contribui de maneira indelével para o estudo da composição de canções no
Brasil. Ao abordar o ato composicional, Tatit evidencia
Compor uma canção é procurar uma dicção convincente. É eliminar a fronteira
entre o falar e o cantar. É fazer da continuidade e da articulação um projeto de
sentido. Compor é, ainda, decompor e compor ao mesmo tempo. O cancionista
decompõe a melodia com o texto, mas recompõe o texto com a entoação. (TATIT,
2002, p. 11).
Parece que a caracterização do gênero está intrinsecamente ligada a esses atos de
decomposição e recomposição. Uma determinada melodia em se colando a um determinado
8
LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Nativismo Um fenômeno social gaúcho. L&PM Editores: Porto Alegre, 1985,
p. 66.
9
O paulistano Luiz Tatit é músico, compositor e, em sua atividade com o grupo Rumo, gravou seis CDs com 46
canções de sua autoria. É também professor Titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
24
texto adquire uma textura sonora que não lhe pertencia originalmente. De fato a condição
mais íntima e abstrata da melodia é despida de tessitura concreta. Essa pode ser verificada
no momento em que, fisicamente, uma voz, seja humana ou provinda de algum instrumento
musical, a realiza ou a projeta.
Esse movimento a princípio parece arremeter para uma dissolução textual mais ou
menos evidente – como se fosse criada uma zona de atrito entre as linguagens que se
sobrepõem. Contudo, quando assume condições distantes da fala pela entoação, pelo ato
concreto do canto, pela produção desse gesto vocal, o texto ressurge pleno de suas
possibilidades estéticas e semânticas configurado na concretude do gênero canção. Deste
modo, a linguagem musical está irreversivelmente decomposta. A decomposição melódica
atrela-se, deste modo, à duração que a melodia empresta ao texto, e é dessa permanência que
o texto retira a recomposição de seu potencial.
que dimensionar, ainda, aquilo que Tatit identifica como dicção composicional.
Seu estudo localiza aspectos pertinentes à empresa individual de determinados cancionistas
que acabam criando, por suas genialidades, uma personalidade, um local, uma transparência
que os identifica. Esse é um dos desdobramentos da abordagem que se pretende fazer adiante
no que diz respeito à verificação de tal dicção na obra de Barbosa Lessa e sua possível
contribuição ou influência sobre a produção de canções de estética regional no Rio Grande do
Sul.
Ainda podemos situar algumas noções mais ou menos plasmadas que caracterizam o
ato composicional. Existem cenários sonoros que contribuem para determinadas construções.
Normalmente, estruturas que utilizam escalas em modo maior tendem a ser mais esfuziantes,
enquanto que aquelas tecidas em modo menor parecem se estabilizar em aparências
introspectivas. Essa situação não chega a configurar-se numa fixidez regulamentar, mas pode-
se dizer que sua localização é um tanto recorrente. Poderíamos metaforicamente falar em luz e
sombra. O modo maior, aparentemente, sugere construções de maior luminosidade, e o modo
menor tende a algum sombreamento. Do ponto de vista teórico, sabe-se que uma escala
consiste em uma série de sete notas que por sua disposição caracteriza um determinado campo
harmônico. A partir da Idade Média, os músicos acabaram por consagrar o uso de duas
escalas: a maior, ou primitiva, cuja nota inicial é dó, baseia-se no modelo intervalar de tom
tom – semitom tom tom tom semitom (dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, ); a menor origina-se
da primeira e tem seu início marcado pela nota lá, e a sequência de seus intervalos tem por
base o modelo tom – semitom – tom – tom – semitom – tom – tom (lá, si, dó, ré, mi, fá sol, lá).
25
O caráter mais ou menos luminoso ou sombrio das construções sonoras possíveis a partir de
tais estruturas reside justamente nessa mobilidade entre os tons e os semitons em cada escala.
Pode-se depreender dque as variáveis de sentido que organizam uma determinada
canção estão vinculadas a escolhas realizadas dentro de um espectro de ferramentas que estão
à disposição daquele que compõe. Analogamente, o texto de uma canção (e evidentemente
qualquer texto) também é construído a partir de escolhas semelhantes. Parece ser possível
afirmar que o domínio de uma determinada técnica sobrepõe-se a questões íntimas
comumente reconhecidas, tais como: estados emocionais, inspirações, etc. Logicamente,
existe um momento deflagrador do ato criativo. Esse pode estar atrelado a uma série de
acontecimentos de ordens variadas. Contudo, não haveria aqui espaço para aprofundamentos,
neste sentido, posto que tal investida inevitavelmente enveredaria pelos rumos da Filosofia, da
Psicologia, da Teoria Literária.
26
4. ESCUTANDO A LETRA E LENDO A MELODIA
Para que se atinja um estágio de leitura que ultrapasse a atitude meramente
contemplativa, é necessário que o leitor esteja atento aos diversos caminhos que percorrem o
texto. As questões formais concorrem para a significação temática. Uma leitura estética deve
estar liberta da ditadura do enredo. A funcionalidade de uma casa pode ser concebida e
demonstrada levando-se em conta os aspectos fundantes de suas estruturas. O conceito de
habitação depende dessas fundações. Em um ambiente-casa chamado leitura, ou no nosso
caso chamado audição, ainda que a interação entre o suporte texto e o leitor tenha implicações
distintas daquelas que existe entre a canção e seu ouvinte, também devem ser contemplados
seus alicerces, suas ferragens e suas vigas de sustentação. Sem esse arcabouço estrutural, as
questões funcionais hão de ficar comprometidas. Portanto, se elementos como assonâncias,
aliterações, rima e ritmo, uma vez percebidos e devidamente decodificados pela proficiência
do leitor, indicam trajetórias de compreensão e descortino da leitura poética, sentimos ser
procedente construção análoga para que se empreenda aquilo que poderíamos chamar de
audição estética, quando o objeto a ser perscrutado é a canção popular. Sendo assim, além das
ocorrências linguísticas imbricadas na caracterização do gênero, as ocorrências musicais
devem ser percebidas com o mesmo aguçamento dos sentidos para uma melhor fruição do
prazer estético que a canção produz.
Estar-se atento a tais sinais sonoros e códigos musicais não significa que o ouvinte
necessite embrenhar-se pelos intricados caminhos da linguagem musical e de suas teorias. A
audição estética está ligada à percepção dos elementos significativos da melodia, da
instrumentação e dos arranjos instrumentais e vocais que, aliados ao texto e a suas
implicações linguísticas, formam o universo integral da obra que é responsável pelo potencial
de entendimento e pela produção de sentido que ela carrega. Se uma canção é apresentada
pela concepção de uma orquestra, outra pela singularidade de um conjunto melódico e uma
outra ainda pela singeleza de um piano ou um violão acompanhando a interpretação vocal,
parece-me evidente que tais cenários acústicos concorram, cada um ligado à sua natureza
intrínseca, para que as possibilidades de intelecção da obra estejam à disposição do ouvinte.
Esse indivíduo estará potencializando sua capacidade estética de ouvir na medida em que
souber distinguir os variados cenários sonoros e conferir-lhes valor significativo.
Mesmo que isto não se constitua numa regra fixa, é pouco provável que a rebeldia e a
agressividade própria do gênero rock sejam atingidas menos pelas distorções das guitarras
27
elétricas do que pelas evoluções acústicas de um oboé ou de um violino. E se o texto cantado
pretender atingir algo que diga mais ao espírito do que ao gesto, ainda que o canto seja a
presença corpórea da manifestação musical, podemos inverter a situação acima sem prejuízo
do fio que conduz o raciocínio.
Na canção, para que um texto de caráter melancólico, sombrio, triste, matizado por
cores neutras atinja com maior eficácia suas possibilidades, é facilmente observável que os
elementos que remetem a tais características no aspecto linguístico deverão ser encontrados
também em sua linguagem musical. Assim como textos de personalidade diversa também
estão constituídos por essas indissociáveis analogias. Podemos assim supor a possibilidade de
existência de uma semântica sonora. As tessituras, os timbres, os silêncios e as permanências
podem produzir sentido como as palavras, ainda que tais elementos em si mesmos não
estejam sob a dominação do significado. Contudo, essas implicações semânticas devem ser
construídas, como de resto ocorre na língua, no momento em que acontecem e por isso
funcionam. Não há um dicionário relacionando os possíveis significados das ocorrências
sonoras. Mesmo nas questões de significação do vocabulário, os dicionários são indicativos e
não respostas prontas. Perceber esses acontecimentos e fazê-los significar é a tarefa que o
leitor-ouvinte deve empreender quando se depara com a canção. Dessa atitude resultará a
fruição potencializada e esteticamente prazerosa desta arte.
O filósofo alemão Theodor Adorno (1996), em sua investigação sobre as questões que
envolvem a música e a audição a partir da eclosão da indústria fonográfica mundial, aponta
para algumas características que a modernidade confere aos ouvintes. Entre a numerada de
características construída por Adorno, encontramos o que ele chama de ouvinte motorista,
qual seja, aquele indivíduo que ouve música guiando seu automóvel. Esse cidadão exerce sua
audição de modo absolutamente passivo. Não pode desviar a atenção do trânsito e, sendo
assim, é servo de uma audição superficial e ineficaz pela falta de possibilidade de
posicionamento crítico que é imposta pela situação.
A metáfora criada pelo membro da Escola de Frankfurt neste ensaio publicado em
1938 parece manter-se de alguma forma presente na atualidade. Somos todos, talvez, (e não
entro no mérito causal da constatação) ouvintes-motoristas, incapazes de irmos alguns palmos
adiante da percepção imediata e sempre nebulosa dos objetos que nos cercam. Assim,
proliferam os depoimentos que dão conta da invariável dificuldade de interpretação que surge
à medida que nos deparamos com os diversos gêneros discursivos que nos surpreendem
cotidianamente.
28
Ora, se estamos dirigindo nosso automóvel com a atenção requerida pela importância
da situação, não é lícito imaginar que se consiga, ao mesmo tempo, termos nossa capacidade
perceptiva integralmente voltada para outros focos. Ressalte-se que tudo indica que tal
situação tenha ocorrência intermitente, ou seja, mesmo quando estamos ouvindo música
mantemos nossa atitude de compenetrados motoristas. Parece-me que nesta altura o dedo foi
posto na ferida, e a dor irrompeu. A qualidade da audição ou da leitura a possibilidade
estética desses empreendimentos está relacionada com o grau de comprometimento que o
leitor-ouvinte entrega-se a tais tarefas. Portanto, aquele que insistir numa audição sendo
motorista não conseguirá sequer aproximar-se dos endereços possíveis de serem encontrados
na canção ou em qualquer outro suporte de discurso, artístico ou não.
29
4.1 "NEGRINHO DO PASTOREIO": UMA TOADA EM FEITIO DE ORAÇÃO
De uma crônica de Henrique Pongetti, publicada no Rio em 1956,
extraímos o seguinte trecho: “Musicalmente este país é
impressionante de opulento. Mas para se ver como é desconhecida
essa opulência, o caso do folclore gaúcho: o Rio Grande do Sul se
instalou durante 20 anos nesta metrópole de sambistas, e por aqui os
donatários cantaram o fiz a cama na varanda”, “prenda minha” e
outras cantiguinhas convencionais; [...] E seguem-se considerações
sobre o súbito surgimento do Rio Grande do Sul no cenário da música
regional brasileira, surpreendendo o público de todo o país com a
beleza de seu cancioneiro.
A Barbosa Lessa, como autor, e ao Conjunto Farroupilha, como
intérprete, deve-se, em maior parte, o impulso inicial que culminou
com essa nova realidade. O primeiro passo para o revigoramento da
música regional gaúcha dando-lhe novos temas e roupagens novas
foi a gravação do long-playing “Gaúcho”, disco de estréia do
Conjunto Farroupilha, no qual figuravam (das 8 canções gravadas) 7
composições de Barbosa Lessa, dentre as quais “Negrinho do
Pastoreio (o famoso prefixo do Conjunto Farroupilha), hoje
reconhecida como uma das canções mais populares e representativas
do Rio Grande do Sul.
10
A canção "Negrinho do Pastoreio" surge em 1950, como característica do programa
Querência da Rádio Farroupilha, cantada pelo conjunto vocal da emissora o Conjunto
Farroupilha e é lançada em disco em 1953 por Discos Rádio no primeiro LP do referido grupo
musical. Sem dúvida é, dentre as canções compostas por Lessa, a de maior reconhecimento
popular. E é singular a condição deste reconhecimento, posto que é tamanha a identificação
da população com seus versos e com sua melodia que, não raro, sua autoria é esquecida,
sendo sua construção atribuída a uma manifestação de domínio público. Alguns estudiosos do
folclore, talvez de forma um tanto precipitada, falam de processo de folclorização, no qual
lentamente vai se construindo um apagamento da autoria que acabará por inserir a obra no
"conjunto
de costumes, lendas, provérbios, manifestações artísticas em geral, preservado, através da
tradição oral, por um povo ou grupo populacional".
11
Conta-se inclusive que, numa apresentação
festiva no colégio em que sua filha estudava em Porto Alegre, uma professora teria anunciado
a canção que seria interpretada por um grupo de alunos como se fosse de autor desconhecido.
Lessa estava na primeira fila da plateia. Deve ter sentido algum constrangimento, mas
também algum orgulho por constatar o tamanho do reconhecimento popular para com a sua
10
Excerto da apresentação assinada pelos editores do livro Cancioneiro do Rio Grande, que reúne textos e
partitura de canções de Barbosa Lessa. Publicação de SERESTA edições musicais – 1963.
11
Entrada 1 para o verbete folclore no Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. 5a
Novembro 2002.
30
composição. Ainda que a situação remeta para algo contraditório, levando-se em consideração
o tanto de vaidade que possa existir em tais situações. Lessa nutria admiração reverencial pela
sabedoria popular. No livro Nativismo um fenômeno social gaúcho, (MORIN apud LESSA,
2008, p. 107) é citado o francês Edgar Morin
Tudo parece opor a cultura dos cultos à cultura de massa: qualidade à quantidade,
criação à produção, espiritualidade ao materialismo, estética à mercadoria,
elegância à grosseria, saber à ignorância. Mas antes de perguntarmos se a cultura de
massa é na realidade como o o culto, é preciso nos perguntarmos se os valores
da ‘alta cultura’ não são dogmáticos, formais, mitificados.
Não podemos esquecer que o momento que circunstancia a criação do cancionista está
comprometido com o resgate de alguns elementos culturais que em sua visão eram relevantes.
No mesmo livro, no capítulo "A invenção das tradições" (LESSA, 2008, p. 68), (alusão
explícita à obra homônima dos historiadores Eric Hobsbawn e Terence Ranger) a partir de
uma afirmação lá encontrada, Lessa pondera "adaptando para o nosso caso: se um peão de
estância de Soledade sente necessidade de desfilar bem pilchado no dia 20 de setembro, pouco
adianta um teórico fazê-lo compreender que isto seja bom, bonito, feio, atrasado, cívico, lindo
ou reacionário..."
Mesmo que Barbosa Lessa não tivesse consciência dessas possibilidades
(reconhecimento público, permanência da obra), e como artista por certo não a tinha, é no
mínimo inquietante que se inspirar na lenda magistralmente contada por João Simões
Lopes Neto para arquitetar sua canção referencial. E não o faz como uma mera transposição
da narrativa prosaica para uma estrutura versificada/musicada. O autor reinventa, recria,
coloca-se dentro do universo da lenda. Para um melhor acompanhamento, vamos ao texto
e
bom seria que pudéssemos também aqui possibilitar ao leitor a audição, lacuna intransponível
que se pretende preencher pelo esforço de uma análise minimamente bem conduzida.
NEGRINHO DO PASTOREIO
1 Negrinho do Pastoreio,
2 Acendo esta vela pra ti
3 E peço que me devolvas
4 A querência que eu perdi.
5 Negrinho do Pastoreio,
6 Traze a mim o meu rincão,
7 Eu te acendo esta velinha,
8 Nela está meu coração
9 Quero rever o meu pago
10 Coloreado de pitanga.
11 Quero ver a gauchinha
31
12 A brincar na água da sanga.
13 Quero trotear nas coxilhas
14 Respirando a liberdade
15 Que eu perdi naquele dia
16 Que me embretei na cidade.
17 Negrinho do Pastoreio,
18 Traze a mim o meu rincão,
19 A velinha está queimando,
20 Aquecendo a tradição.
A primeira impressão que se assoma desde os acordes iniciais já surpreende por
subverter um padrão estético que recentemente tem se consolidado como marca de
autenticidade ou selo de identidade da música regional gaúcha produzida nos últimos anos.
Não se ouvem solos de acordeão acompanhados de harmonia conduzida ao violão, nem o
ritmo é esfuziante como aqueles que convidam de imediato à dança. O que irrompe
desenhando alguns motivos da melodia ora em modo maior, ora em modo menor, é um naipe
de cordas de orquestra como seus altos violinos que fluem sobre suave base harmônica de
violas e cellos e o ritmo de discretíssima percussão. Mais parece estar sendo criado um
ambiente sonoro sobre o qual irá se desenvolver um western hollywoodiano dos anos
cinquenta com aquelas conduções magistrais de Enio Morricone. Contudo, basta iniciar o
canto para que o ouvinte veja mergulhada sua percepção em águas muito distintas daquelas do
hemisfério norte (ainda que se possa encontrar traços antropológicos semelhantes entre a
figura do gaúcho e a do cowboy, mas isso é pano para a costura de outras mangas).
A quadra de vozes, duas masculinas e duas femininas, que se abre dando o caráter
quase litúrgico da canção, parece pertencer ao apelo oratório que o negrinho escravo faz a sua
divina madrinha para encontrar a tropilha de baios que escapara dos seus cuidados pelas mãos
malevas do filho do estancieiro.
12
O suspiro pranteado do escravo soou como música,
escreveu Simões. Aqui na canção, parece que a música quer voltar a ser pranto, ainda que
suspiro, quase sussurro. É uma oração para que se finde um desgarre. E o que foi perdido
parece ser maior que uma tropilha, perdeu-se um lugar, e quem perde um lugar está
despertencido e agoniza em seu não-estar como agonizou o negrinho sobre o formigueiro
fervente.
uma busca de iluminação na vela, na fruta vermelha, na água. também
afirmação da criação pelos quatro elementos vitais: fogo (vela), terra (pago, querência,
rincão, coxilhas), ar (respirando a liberdade) e água (sanga). Tudo alinhado pela sua suposta
12
"O Negrinho chamou pela Virgem, sua madrinha e Senhora Nossa, deu um suspiro triste, que chorou no ar
como uma música, e pareceu que morreu..." (NETO, 2003. p. 450).
32
antítese: a cidade. O estar na cidade é resultante de um embretar-se, e sendo assim, ali se está,
voluntária ou involuntariamente, contrariado. Contudo, a canção não desfaz o mundo urbano
para afirmar o mundo perdido. A afirmação do lugar de pertencimento se dá pela descrição da
paisagem, pela natureza bucólica das ações, pelo ofertar-se de um coração na chama que
aquece uma tradição para, em troca, ter devolvida a querência
o que rasamente pode ser lido
como aquilo que se quer, mas o canto, em seu caráter reverencial, assevera que se necessita.
A seguir apresento um diagrama para que melhor se possa acompanhar os desenhos
melódicos do canto. Tal modelo baseia-se naquele encontrado na obra já citada O Cancionista
de Luiz Tatit
13
e pretende demonstrar as oscilações intervalares que constroem os fraseados da
melodia do canto. As sílabas estão dispostas na grade de maneira semelhante à notação
musical grafada em uma partitura, ou seja, debaixo para cima vão sendo dispostas
representando a trajetória que se do grave ao agudo. Sílabas nos degraus mais baixos
correspondem a notas graves e, na medida em que os degraus vão subindo, as notas vão se
tornando mais agudas. Cabe acrescentar que o modelo deste gráfico também está vinculado
aos exemplos utilizados nas classes de iniciação musical, nas quais era apresentada uma
pequena escada onde estavam dispostas as notas de acordo com a sua localização na escala.
Ressalta-se que tal modelo abarca meramente a natureza de altura da nota musical, não
contemplando a sua duração. Não se trata, pois, de uma tentativa de suplantar a capacidade de
notação que possui a partitura. Essa sim conta simultaneamente das duas situações. Na
análise das canções subsequentes, para não tornar esta leitura um tanto enfadonha por
repetitiva, não creio ser necessário recorrer à amostra de diagramação análoga. Apenas fiz
questão de apresentá-la neste momento para a visualização de um caminho analítico possível,
que possa contribuir para uma melhor apreciação das várias possibilidades interpretativas das
ocorrências textuais e musicais.
13
Saliento que o uso desta diagramação não remete este estudo às mesmas preocupações e ditames teóricos
desenvolvidos na obra O cancionista. Trata-se apenas de uma maneira de ilustrar a análise, não tendo pretensões
de enveredar pelos rumos da semiótica encontrados na obra de Luiz Tatit, não usando-a, portanto, como
referência teórica.
33
gri nho do to
pas rei
o
ne
ve
cen do es ta la
ti
pra
a
Pode-se perceber um salto da primeira para a segunda nota/sílaba do canto nos dois
primeiros versos. Em seguida o fraseado se estabiliza numa região mediana. Durante toda a
primeira parte da canção, o desenho melódico se sem grande aclives ou descidas bruscas,
ressalvando-se esse salto inaugural. Parece possível inferir que a distância sonora percorrida
entre as duas primeiras notas pretende dar conta da elevação que se busca quando se quer
atingir um interlocutor diáfano como ocorre em preces nas quais a intervenção de alguma
ordem divina pode ser a solução para impasses de natureza terrena. No caso, o negrinho
evocado parece ocupar este lugar santificado ou possuir o condão da interveniência divina. Na
primeira frase, o canto se estabiliza num movimento descendente. E pastoreio é uma atividade
terrena. Pelo que se disse, o negrinho está no alto e por isso, talvez, a cristalização de tal
contraste.
34
pe ço que de
me vol
vas
e
di
que/eu
per
rên cia
a que
Novamente, nas duas ideias verbo-musicais dispostas acima, percebe-se a recorrência
do que estava à mostra anteriormente. No primeiro quadro, uma estabilização que desce, e
no segundo, nova elevação tentando dar conta do caráter diáfano da perda a querência que
eu perdi.
gri nho
do to
pas
rei
o
ne
35
cão
rin
meu
tra o
ze/a
mim
O que se repete com serenidade suplicante traze a mim o meu rincão, quando a frase é
aberta em uníssono pelas vozes masculinas, para depois o quarteto harmonizar-se em quatro
percursos paralelos de trajetória ascendente. Ainda que a vela acesa seja o instrumento através
do qual se quer atingir a transcendência, talvez, devido a sua concretude, se possa dizer que a
solução do primeiro trecho abaixo seja com a última nota/sílaba em trajeto descendente.
Deve-se fazer uma distinção entre as significações vela e velinha. Por essa diferenciação,
talvez possamos compreender a natureza deste movimento em declive quando, conforme
dissemos pouco, o tema remete para um instrumento para alcançar transcendência. A
palavra é apresentada no diminutivo. Essa condição lhe confere algo de afetivo, de ligação
próxima, íntima mesmo. O objeto, pois, está ao alcance daquele devoto, mesmo que seja
através dele que se procure a elevação. E por essa proximidade pode se explicar a solução
musical descendente. O coração vai na chama da vela. E a chama é o elemento que
transcende. Parece dissolver-se em sua dança, mas se mantém em luz e em calor diante de
prece tão sentida.
cen do es
te/a ta li
eu ve
nha
36
ne la/es
meu
co
ra
ção
Chama também a atenção que a voz solo do arranjo é feminina. E isso é recorrente na
obra de Barbosa Lessa. Inúmeras intérpretes brasileiras lançaram suas composições. Umas
quase esquecidas como Lueli Figueiró
14
que gravou a primeira canção composta por Lessa: a
valsa "Quero-quero" (que será analisada adiante) composta em 1946, quando o autor tinha
apenas 17 anos, e gravada em 1956 em disco de 78 rotações; e outras ainda em plena
atividade como Inezita Barroso
15
que apresenta semanalmente o programa Viola minha Viola
pela TV Cultura de São Paulo. Chama a atenção porque nestes mais de sessenta anos de
música regional no Rio Grande do Sul, desde Pedro Raimundo, passando por Teixeirinha e
Gildo de Freitas e chegando a Gaúcho da Fronteira e Luiz Carlos Borges – citando apenas uns
poucos nota-se a esmagadora preponderância de interpretes masculinos. Note-se que
também são raras as compositoras, ainda hoje, no regionalismo gaúcho. Digo isso, pois, na
coletânea que serve de base para este estudo encontra-se um número significativo de cantoras.
Além das já citadas, temos: Iná e Estrela D’alva (do Conjunto Farroupilha), Stelinha Egg,
Ana Silva (da dupla Cascatinha e Inhana), Carla Diniz e Fátima Gimenez (do Grupo
Tempero).
14
Segundo o Dicionário Cravo Albin: Iniciou a carreira no princípio da década de 1950 e integrou o elenco da
Rádio Gaúcha e foi considerada como uma das melhores intérpretes do sul do país.
15
Também pelo Dicionário Cravo Albin: Cantora. Instrumentista. Arranjadora. Folclorista. Atriz. Começou a
cantar aos sete anos de idade. Aos nove, já admirava o poeta modernista Mário de Andrade, que morava ao lado
de sua casa à Rua Lopes Chaves na Barra Funda, em o Paulo, a quem esperava passar todo dia enquanto
brincava de patins. Aos 11 anos, começou a estudar piano. Fez o curso de Biblioteconomia. De 1982 a 1996,
lecionou Folclore na Universidade de Mogi das Cruzes. A partir de 1983, começou a lecionar na Faculdade
Capital de São Paulo.
37
Como já foi dito a canção "Negrinho do Pastoreio" é uma oração. E a súplica mais
contundente desse canto talvez esteja justamente na abertura da segunda estrofe, quando a
soprano reza quase que de forma gregoriana:
pa go
o meu
re ver
ro
que
co lo
rea do
de pi
tan ga
O fraseado musical do primeiro verso é ascendente. Parece buscar a elevação divina,
o éden perdido. O pago está no alto, além do plano terreno. Além do humano, talvez. Logo,
contudo, a melodia faz desenho reverso, volta sobre si mesma como se constatasse a
impossibilidade daquela escalada do devaneio recém proposta. Esse jogo, essa tensão de
pergunta e resposta parece ser recorrente nas construções cancionistas, pode-se perceber
ocorrência análoga em narrativas prosaicas e em poesia, quando os elementos estruturais
situam-se em permanente diálogo e desafio para a devida produção de sentido. E a resposta
das quatro vozes harmonizadas em quatro trajetórias paralelas distintas refaz o mesmo
percurso do desenho da solista.
38
chi nha
ga u
ver a
ro
que
brin
can
do na/a
gua da
san ga
Ao que as vozes masculinas logo sublinham com suavidade de forma uníssona.
Constatação também recorrente no arranjo vocal. Quando a intenção é a de explicitar algo
tocado por uma tranquilidade (bucólica tranquilidade como aqui está posto), parece que as
vozes masculinas (por mais graves, talvez) e ainda com desenho em descida constroem de
forma mais eloquente o sentido pretendido.
que ro tro tear
nas
co
xi lhas
39
do/a
li da
ran ber
pi de
res
Para mais uma vez o naipe completo das vozes possa arrematar, como se o desfecho
que remete à sensação de que se está irremediavelmente à mercê da prisão urbana seja algo
comungado por homens e mulheres. Todos pranteiam, pois, a querência perdida.
di a
que le
di na
per
que/eu
que me/em
bre tei
na ci
da de
40
Apesar da alusão a cavalgar em liberdade remeter para uma paisagem de revoluções
como as que povoam as páginas históricas do Rio Grande do Sul, o tom desta alusão não
tende ao épico ou a grandiloquência. Como tentaremos demonstrar no desenrolar da análise,
pode-se adiantar que uma das singularidades do compositor Barbosa Lessa, que como se
disse é um dos criadores do movimento tradicionalista, talvez seja a de apresentar em sua obra
de cancionista um gaúcho humanizado, distanciando-se da figura estereotipada que pode ser
encontrada em tantas distorcidas narrativas épicas. Portanto, o arquétipo não se torna
estereótipo. Aquele que canta, o faz pedindo um mate, observando a natureza, contando
causos, convidando para dançar, resenhando uma existência difícil. Fala de bois, de carretas,
de amores, de deuses, de índios, de trabalho e de bem querer.
De volta à canção, a indagação sobre o fascínio que exerce aquele lugar perdido a
querência, que se pede seja devolvida na prece ao negrinho – continua rondando a análise.
Pode-se demonstrar as primitividades imaginárias mesmo a respeito desse ser
sólido na memória que é a casa natal.
Por exemplo, na sua própria casa, na sala familiar, um sonhador de refúgio sonha
com sua cabana, com o ninho, com os cantos onde gostaria de se encolher como um
animal em sua toca. Vive assim em um além das imagens humanas
(BACHELARD, 1993, p. 47).
Parece plausível reconhecer que a querência perdida está instalada na concretude da
memória deste autor/sonhador. Sendo assim, os locais que se anseia rever, revisitar, tocar,
situam-se num além inesgotável. Algo entre o sensível e o insondável. Algo que se cristaliza
mais no devaneio que no pensamento. E talvez seja por seu devaneio que o artista convide o
seu ouvinte/observador a empreender viagem conjunta. Ainda citando Bachelard, "os centros
de devaneio bem determinados são meios de comunicação entre os homens de sonho com a
mesma segurança que os conceitos bem definidos são meios de comunicação entre os homens
de pensamento" (BACHELARD, 1993, p. 56).
Lessa, nesse aspecto, é um homem de devaneio. Talvez o artista possa atingir a
plenitude de seu engenho por estar sempre atento a sua própria capacidade de devanear, de
deixar-se conduzir pela imaginação. Essa é a quase levitação que se impõe quando se instala o
instante, o átimo, a fagulha criativa. Aquele "instante que de tão fugidio não é mais"
(LISPECTOR, 1998, p. 9). A epifania, o advento, o ato inaugural que sempre está presente,
ainda que inescrutável, na criação artística. se falou que neste ato o indivíduo é tomado por
41
uma clarividência sonambúlica
16
; ou que a sensação que aflora neste momento é a de estar-se
submerso e consciente em uma sala que acabou de ser invadida por calmas águas.
17
Retornando à canção, logo após as quatro vozes se harmonizarem em tessituras
distintas para a consagração da perda referendada em "que eu perdi naquele dia em que me
embretei na cidade", é pela orquestração que se a retomada do tema central da melodia.
Essa retomada parece querer sublinhar a potência do rogo. Rezam nas alturas os violinos
sobre a primeira parte melódica que corresponde ao canto. É um solo evocativo, reverencial,
genuflexo, que se alteia e oscila e retorna como se desenhasse as circunvoluções da chama
acendida em prece ao negrinho. E por fim serena pedindo de volta a querência perdida. E
assim novamente as vozes ressurgem. Agora parecem mais suplicantes. A querência virou
rincão. A vela está aquecendo algo intangível, algo que permanece pela memória, por essa
concretude vaga de que é feita a imaginação. Ainda uma vez Bachelard, "o ser reina numa
espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece
que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens
essenciais" (BACHELARD, 1993, p. 27).
Na canção, os bens essenciais estão ao abrigo de uma casa invisível, mas sensível, que
o poeta nomeia como tradição. Registre-se que tal palavra tem origem latina, significando
ação de dar, transmitir, entregar, passar a outro. Neste ponto, talvez possamos afirmar que no
canto exista um subliminar desejo de permanência do sujeito. A chama que aquece a tradição
serve de luz também para que as experiências de devaneio do indivíduo prossigam depois
dele. O coração que se ofertou na vela acesa guarda a pulsação do eterno que se faz
humanamente possível pela transcendência. Não sendo assim, portanto, a querência torna-se a
maior perda. O que se esvai, de forma possivelmente irreconciliável, é aquele que cria, e sua
imperceptível dissolução está inexoravelmente instalada no instante mínimo da deflagração
criativa. E com ele se vai quem canta, se vai quem ouve e também, por certo, quem se põe a
refletir tentando acender algumas luzes no interior desta cabana, ou casa, ou útero, ou
eternidade. Talvez reste mesmo deixar-se levar por aquelas coxilhas respirando uma
liberdade primordial que não virá, cantando desde um lugar que não se quer estar, desejando
sempre estar nalgum não-lugar onde seja possível encontrar-se consigo mesmo. E seguir
16
WAGNER, Richard. Beethoven. Porto Alegre: L&PM, 1987, p.22. O autor cita o filósofo Schopenhauer que
em reflexão sobre o momento criativo sugere haver um estado de vigília que escapa à consciência cerebral
deflagrando a ocorrência de um sonho alegórico.
17
O compositor norte-americano Tom Waits certa feita construiu essa metáfora para explicar a sensação que o
tomava quando do momento em que compunha.
42
acendendo promessas a um negrinho que depois de morto consegue em paz pastorear sua
tropilha de baios, e ainda assim, sempre ao abrigo do manto de sua santa madrinha.
gri nho do to
pas rei
o
ne
cão
rin
meu
tra o
ze/a
mim
li nha es
ve man
a quei
do
43
a que
cen do/a
tra
di
ção
O quarteto final é análogo ao quarteto composto pelos versos 5,6,7 e 8 da canção.
Existe apenas uma variação em relação ao texto. aqui a evidência da vela que então
queima, e a reverência a uma tradição que se fixa. Tanto como pretensão de permanência
quanto como no desenho consolidado pelas vozes em harmonia.
"Negrinho do Pastoreio" é uma canção quase litúrgica. Talvez pela inigualável
singularidade, conseguiu atingir de forma tão contundente o gosto popular e plasmar-se neste
imaginário, que é quase uma casa para gaúchos, mundo a fora.
44
4.2 "QUERO-QUERO": UMA VALSA ENTRE A AVE E O VERBO
A valsa "Quero-quero" data de 1946. É a primeira composição de Barbosa Lessa, que
tinha na época 17 anos. Nesta análise tratamos da sua primeira gravação feita pela gaúcha
Lueli Figueiró em 78 rotações para a gravadora Continental no ano de 1956 e conta com o
acompanhamento de Rafael Puglielli e sua orquestra.
Quero-quero, Quero-quero,
Quero-quero gritou lá em cima,
Quero-quero quando grita
É por que alguém se aproxima
Quero-quero no meio da noite
Gritou por que viu alguém se aproximar
Eu também na noite da vida
Enxerguei esta luz que vem do teu olhar
E agora, gauchinho,
Eu grito com todo o fervor
Quero-quero, quero-quero,
Quero-quero teu amor
Mesmo que não ocorra com a intensidade semelhante a que acontece com a toada
"Negrinho do Pastoreio", nesta canção também há, vez por outra, o apagamento da autoria.
Na minha geração, nas aulas de canto e nas apresentações escolares, "Quero-quero" tinha
presença constante e, se bem me recordo, muito raramente, havia a declinação do nome do
autor.
A introdução instrumental é conduzida por violinos que dialogam com um acordeom,
que desenha o fraseado conjuntamente com as cordas e responde isoladamente aos motivos
que são apresentados até que a solista vocal assuma a exposição do canto. Essas respostas do
acordeom criam o ambiente rítmico sobre o qual a voz da intérprete vai se desenrolar. A
melodia é simples e se desenvolve sobre uma escala maior oscilando entre o terceiro e o
segundo graus sobre uma harmonia basicamente alternada entre tônica e dominante. Essa
característica é recorrente em construções oriundas da espontaneidade das criações populares,
provavelmente, em função da natureza empírica que orienta tal engenho.
A nota inicial do canto se repete nos primeiros compassos, dando a sensação que se
pretende fixar os contornos da ave que é descrita. A primeira elevação de intervalo incide
justamente sobre a expressão gritou, mais especificamente sobre a sua sílaba tônica. A
sensação desencadeada parece ser a de que o ouvinte, por meio desta elevação intervalar, é
transportado para perto da cena, um lugar próximo ao do observador/cantor. Em seguida, no
45
terceiro verso, o desenho faz trajeto descendente, mudando o foco que anteriormente estava
no pássaro para trazer à paisagem da canção aquela aproximação de alguém que pode haver
provocado a reação do grito. Nessa parte inicial da letra, no primeiro quarteto, a melodia é
entrecortada, não flui, não se alonga. Pássaro, grito e aproximação parecem prender o
desenvolvimento do fraseado, assegurando que o foco expositivo fique aí fixado.
Quero-quero, Quero-quero,
Quero-quero gritou lá em cima,
Quero-quero quando grita
É por que alguém se aproxima
Contudo, a métrica encontrada na segunda quadra “solta as rédeas” da condução e
transforma o cenário. Agora a melodia ganha contornos de fluidez. Ela quase se estabiliza
num verso de nove sílabas e a seguir se projeta descendentemente num hendecassílabo. Nas
duas construções seguintes, a composição parece repetir o movimento anterior. Note-se,
porém, que no terceiro verso da estrofe o quadro de impressão estável está sobre oito sílabas,
e o trajeto descendente mantém-se por doze divisões silábicas. Numa rasa aritmética podemos
perceber que, agrupando o texto em apenas dois sticos, chegaremos a uma construção de
dois versos bárbaros de vinte sílabas. Apenas de se evidenciar que essa observação a
respeito da métrica refere-se meramente a questões textuais. A palavra cantada, por sua
inesgotável capacidade de permanecer e sucumbir, assume, invariavelmente, durações
distintas daquelas encontradas nos manuais de versificação.
O caráter, entretanto, picotado dos compassos iniciais não desaparece totalmente neste
segundo momento da composição. O canto é sublinhado por ataques curtos das cordas e do
acordeom. Aquele que teve a oportunidade de observar a ave cinzenta de esporão vermelho
no encontro das asas, por certo, pode notar que em momentos nos quais sua atenção não
está sendo chamada, o seu deslocamento pelo campo é lento e picotado; por vezes para, mas
em seguida arremete mais algumas passadas curtas e firmes. É justamente fazendo analogia a
esse andar pausado do quero-quero que a orquestra se mantém em contraste ao alongamento
do canto. E desta disparidade é que surge o encantamento de uma construção que às vezes
parece tender ao óbvio poético e musical. Podemos também inferir que tal tensão do ritmo
está construindo analogia com condição de vigilante, de sentinela dos campos, de sentidos em
vigília que a ave possui. O espaço sonoro assim disposto mantém em alerta o espírito ouvinte.
E é nessa condição que surge o traço luminar do quero-quero. Em vigília análoga à do pássaro
a voz que canta revela ter encontrado o olhar do amor.
46
Quero-quero no meio da noite
Gritou por que viu alguém se aproximar
Eu também na noite da vida
Enxerguei esta luz que vem do teu olhar
Para o arremate desta primeira exposição, o canto retoma a forma entrecortada da
parte inicial da canção. Essa segmentação remete ao êxtase de uma revelação. A voz
apaixonada que canta está agora misturada ao grito denunciante do pássaro. E percebamos
que querer e amar são verbos que em dado momento possuem carga semântica muito
próxima. E quando se quer em dobro, como grita a alada sentinela, talvez se esteja muito
próximo de enxergar esta luz que vem de um olhar.
Apenas como curiosidade, comento sobre uma divergência encontrada entre o texto
impresso no encarte da publicação que serve de base para a análise em curso e a palavra
efetivamente cantada na gravação. Na última estrofe, de acordo com a impressão, presumo
que em função da autoria da canção ser masculina, está grafada a expressão gauchinha. Como
foi dito, a interpretação é feminina e, sendo assim, a expressão gravada é gauchinho.
Naturalmente, existe a possibilidade das duas formas. Essa questão de gênero parece neste
caso ser de fácil acomodação. Contudo, considerando-se a época em que a gravação foi
efetuada (meados dos anos 50), é no mínimo curioso que quem assuma a voz de um discurso
tão amorosamente atirado seja uma figura feminina. Digo isso, porque ainda hoje, em
algumas situações bem localizadas, pode-se presenciar vozes femininas cantando esta mesma
canção optando pelo gênero do autor.
E agora, gauchinho,
Eu grito com todo o fervor
Quero-quero, quero-quero,
Quero-quero teu amor
A canção parece ter esgotado suas possibilidades. As nuances instrumentais fluíram
e refluíram suas evoluções. O texto já foi cantado em sua íntegra. Quando tudo parece remeter
para o acorde final, na elevação quase ao limite da voz soprano, num movimento rápido de
poucas notas, as cordas encaminham uma modulação de meio tom que em tudo confere novo
colorido àquelas sonoridades até ali desenvolvidas.
Com esta elevação do campo harmônico, surge um coro de vozes masculinas para
estabelecer contraponto com a interpretação feminina. Como se o fraseado de tal intermezzo
colocasse frente a frente o casal apaixonado.
47
O coro expõe novamente a parte inicial do canto e a repete. O arrebatamento com que
é finalizada a interpretação da primeira parte agora é substituído por algo de suavidade, como
se aquele estado de alerta anterior tivesse diminuído a ansiedade. Quando a cantora retoma o
solo, tudo flui com notado enlevo. Já não há, no acompanhamento da segunda quadra do
texto, aquela segmentação do início. Agora a canção parece ter atingido uma ambientação
sublime. O quero-quero freou seu passo desconfiado e apenas contempla, talvez em desacordo
com sua natureza aflita. Parece que agora sim a ave foi transformada no canto. E o que
ressurge de tal mudança é um verbo em repetição. O grito virou um querer dobrado.
Ao encaminhar para o final, diante da constatação proposta pela expressão e agora, o
coro masculino interage com a intérprete pontuando, sublinhando junto com o instrumental a
evolução da cantora. Para finalizar, como se tal encontro evidenciasse a congruência daqueles
olhares, as vozes masculinas somam-se à voz solista e arrebatadamente ascendem no canto
que afirma e repete quero-quero teu amor, concluindo ascendentemente vozes e orquestra
sobre a nota tônica na oitava superior da escala maior. Como se o quadro sonoro fosse uma
apoteótica celebração do encontro.
48
4.3 "CANTIGA DE EIRA": INDO E VOLTANDO PARA O MESMO LUGAR
No encarte da publicação que é referência para esta análise, para cada título a
designação do gênero musical ao qual pertence a canção. Tal nero, que não raro é
confundido com ritmo
18
, pode ser valsa, rancheira, chotes, milonga. Contudo, a canção
"Cantiga de Eira" está designada como sendo do gênero canto de trabalho
19
. Na atualidade da
produção musical regionalista praticamente não se registram ocorrências semelhantes, ainda
que muitos dos alicerces da música popular brasileira repousem sobre essas primitivas formas
de expressão cantada.
A interpretação é de Stelinha Egg
20
e a gravação original data de 1957 pela gravadora
Odeon. Já na abertura, o arranjo musical prepara a dinâmica de rotação sonora sobre a qual se
dará o desenvolvimento da canção: uma instrumentação percussiva procura imitar batidas de
cascos e o sibilado da palha do feijão ao quebrar-se. Esta percussão acompanhará o
instrumental e as vozes até o desfecho da canção por vezes bem saliente, por vezes quase
escondida, mas perceptível. A explicação está no próprio texto: A eira é um curral pequeno
redondo. Local onde os cavalos são postos em movimento circular contínuo para o debulho da
colheita do feijão. Esse método rudimentar ainda pode ser encontrado, mesmo que não seja
frequente, no interior do estado em pequenas propriedades de economia familiar.
Talvez seja, sob uma ótica muito pessoal, umas das mais instigantes composições de
Barbosa Lessa. A adequação das sonoridades instrumentais e vocais com a musicalidade das
palavras se iguala a raros momentos da produção cancionista brasileira. Cada supressão de
consoante final, cada omissão de plural, cada variação fonética que a princípio parecem
apenas querer dar evidência a um linguajar matuto ou caboclo ou ainda rural, faz muito mais
que isso: cria uma sonoridade e uma rítmica que, sendo isto possível, faz saltar aos ouvidos as
cores que constituem a cena cantada. É em tal circunstância que a batê casco, dibuiando as
casca, vortando, êra, sem pará, té cansá são construções absolutamente imprescindíveis para
a constituição de um sentido que de forma outra seguramente não seria possível. Vamos ao
texto em sua íntegra:
18
O ritmo musical pode ser binário, ternário ou quaternário, simples ou composto.
19
Canção de trabalho é tipicamente uma canção rítmica sem acompanhamento instrumental cantada por pessoas
enquanto trabalham numa tarefa física muitas vezes repetitiva.
20
Sua carreira profissional se iniciou na Rádio Clube Paranaense, em Curitiba (PR). Venceu um concurso de
melhor intérprete do folclore brasileiro e foi contratada a partir daí pela Rádio Tupi de São Paulo, para onde
transferiu-se logo depois. Na capital paulista trabalhou nas Rádios São Paulo e Cultura. No início dos anos 1940,
transferiu-se para a Rádio Tupi do Rio de Janeiro, onde se apresentou ao lado de Dorival Caymmi e Sílvio
Caldas. Em 1960, gravou na Odeon cantando com o Trio Irakitan a limpa-banco "Entrevero no jacá", de Barbosa
Lessa e Danilo Vital. Dedicou-se ao estudo e à pesquisa do folclore brasileiro.
49
Bota os “matungo a batê casco”
“Dibuiando as casca” do feijão na êra
Bota os “matungo a batê casco”
“Dibuiando as casca” do feijão na êra
A eira é um curral pequeno redondo
Por isso os “matungo” arrodeando
Vão indo e “vortando” pro mesmo lugar
Escuta o barulho “dos casco”
Descascando “as casca” do feijão na eira
Escuta o barulho “dos casco”
Descascando “as casca” do feijão na eira
Eu pego do ancinho, carrego “co’a paia”
Em riba do chão ficando,
Preteando só os “grão” de feijão
Os “cavalo encerrado” no meio da eira
São “tudo amuntado e obrigado” a trotear sem parar
(sem pará sem pará sem pará)
(té cansá té cansá té cansá)
Mas por mais que eles marchem no trote
Troteando vão sempre “vortando
E cruzando no mesmo lugar
(sem pará sem pará sem pará)
(té cansá té cansá té cansá)
(escuta os cascos descascando as cascas)
Falamos a pouco em movimento rotatório. Para que tal característica, própria daquele
fazer, ganhe em evidência e em convencimento, a canção em sua construção sonora parece
também andar em círculos. Os cavalos na eira arrodeiam e voltam sempre ao mesmo local
empilhando, sobrepondo seus rastros numa rota interminável. As repetições, as aliterações, os
gerúndios são fios que, junto com elementos musicais como a insistência em uma mesma
nota, o acompanhamento praticamente recaindo sempre sobre o mesmo acorde, são tecidos,
são trançados meticulosa e eficazmente para criar a sensação e o sentido do círculo. um
único momento (que também se de forma repetida) no qual uma escala mais longa é
desenvolvida. No trecho os cavalo encerrado no meio de era..., o canto parece que vai
desprender-se de seu centro imutável para encontrar solução em alguma outra possibilidade.
Até a cronologia do desenrolar dos intervalos que, saindo da nota tônica da escala, saltando
em seguida para a terça maior, e logo para a quinta e adiante para a sétima menor, induz ao
ouvido afoito que a harmonia terá solução num ambiente além do circular. A impressão
desavisada é de que aquele movimento recorrente que marcou a canção até ali será
inexoravelmente rompido. Essa impressão advém do fato do intervalo de sétima menor no
50
mais das vezes encaminhar para uma solução musical que tende a se estabilizar num acorde
de quarto grau de uma cadência harmônica. Tentando exemplificar, na escala maior natural
cuja referência é a nota dó, teríamos, grosso modo, a seguinte progressão harmônica (ou de
acompanhamento): dó/ com sétima/fá. Absolutamente, não é o que ocorre na canção em
foco. Quando o canto atinge o sétimo intervalo da escala, ao invés de se estabilizar, a
progressão continua ainda até o nono intervalo, para somente empreender retorno. Essa
volta descendente haverá de ser solucionada justamente sobre a nota tônica, que mais uma vez
assume o encaminhamento do discurso. Como os cascos dos cavalos dentro da eira, a melodia
fez, com este seu ousado movimento, o mesmo percurso cíclico que os elementos todos da
construção litero-musical haviam percorrido desde o início, mesmo antes do canto, quando da
apresentação sonora dessa "Cantiga de Eira".
Novamente a voz da solista está acompanhada por um coro de vozes masculinas. A
voz feminina expõe os motivos do texto e da melodia, e o coro os repete, reafirmando sempre
essa pretensa intenção de manter em evidência o estafante périplo desta jornada de regular
circularidade. Para arrematar, no final da repetição total da canção, que é mais um sinal de
reforço desta impressão de regularidade quase imutável da canção (e das atividades rotineiras
de trabalho análogo àquele que está sendo realizado), num primeiro momento semiescondido,
para em seguida ser uma espécie de reticência, pois, naturalmente, um ambiente destes tende a
perdurar, o coro masculino esvai-se junto com a canção reforçando de forma onomatopaica
escuta os cascos descascando as cascas. A aliteração que constrói a sentença e a recorrência
da mesma nota musical no canto – que é a nota inicial – confere ao canto como que a projeção
da imagem cantada, parece que o pictórico nos é dado pela confluência das linguagens. E a
sensação que agora já domina a audição é a de que a canção que se iniciou insinuando algo de
circularidade se finda com os cascos em círculos. E sendo assim, os ouvidos agora também
parecem ouvir em trajetória circular cheia de sibilados que se quebram como palhas de feijão
e se reafirmam como rondas repisadas.
51
4.4 "ENTREVERO NO JACÁ": ONOMATOPEIA E CONCRETISMO
Esta canção é um dos raros momentos em que se encontra um parceiro assinando a
autoria junto de Barbosa Lessa. Trata-se de Danilo Vital de Castro, um dos integrantes do
Conjunto Farroupilha, formação que talvez seja a principal intérprete das canções criadas por
Lessa.
Singularmente, estamos diante de uma marchinha, gênero largamente difundido na
música brasileira, principalmente nas produções da Atlântida Cinematográfica
21
e muito
vinculado aos bailes de carnaval da época. Essa primeira gravação é de 1958, e a canção foi
composta para integrar a trilha sonora do filme Cara de Fogo do diretor Galileu Garcia
22
. Tal
singularidade deve-se ao fato de que, atualmente, pouco se encontra do gênero nas canções
produzidas dentro desse espectro regional.
E a surpresa torna-se ainda maior, quando na introdução instrumental da canção,
não se ouvem os instrumentos que foram consagrados como aqueles que personalizam a
musicalidade regional gaúcha: o violão e a gaita. Desenvolvendo uma melodia ligeira surge
um naipe de sopros acompanhado por harmonização ao piano e por um ritmo sustentado pelos
pratos frenéticos da bateria, com uma tímida acordeona respondendo aos fraseados do solo. A
sonoridade que se instala lembra em muito a das festas em comunidades de origem
germânicas com suas tradicionais bandinhas constituídas em sua base de instrumentos de
sopro.
Iniciado o canto, mais uma vez uma quadra de vozes assume o texto da canção. E a
linguagem, por sua construção distinta daquela referendada pela norma culta, parece indicar
que aqueles que cantam o fazem a partir de um lugar onde algumas variações linguísticas são
constituintes de uma personalidade identificável como a de uma personagem do universo
rural. Vejamos a parte inaugural do texto:
Vô mandá fazê um jacá
Pra prendê mi’a criação
Mas eu vou misturaiá
21
Grande empresa nacional de produção cinematográfica com marcada atividade nas décadas de 40 até o início
dos anos 60.
22
Galileu Garcia iniciou sua carreira profissional na imprensa, como comentarista e crítico, e em seguida entrou
no setor de publicidade da Vera Cruz, participando dos lançamentos dos filmes Terra é Sempre Terra e Ângela.
Participou da realização dos filmes Sai da Frente, O Cangaceiro, Floradas na Serra, Na Senda do Crime, São
Paulo em Festa, O Sobrado, O Gato da Madame, Paixão de Gaúcho e Osso, Amor e Papagaios.
Foi autor do longa Cara de Fogo, tendo realizado também o roteiro do filme, e do argumento e roteiro de As
Aventuras de Pedro Malasartes, de Amacio Mazzaropi.
52
As galinha co’os leitão
Pego aqui mas vendo ali
Caço cá, caço acolá
Mas qualquer caça que eu cace
Vô bota no meu jacá
Preliminarmente creio ser necessária uma explicação sobre o significado da palavra
jacá. Trata-se, segundo Houaiss (2001, p. 1665), de um cesto trançado de taquara ou cipó
usado no transporte de cargas, sobretudo preso ao lombo de animais, proveniente do
tupi
aya'ka 'cesto feito de taquara'.
Há, nesse primeiro trecho, uma insistência sobre a tonicidade oxítona das palavras.
Para isso se recorre à supressão do fonema final dos vocábulos dando forma a este linguajar
próprio das culturas cuja sabedoria não provém dos ditames mais próximos da erudição.
Contudo, são construções frequentemente encontradas na linguagem falada. As indicações de
plural estão explícitas na flexão dos artigos, sendo assim parece que o falante dispensa a
devida concordância. Quanto ao encadeamento das rimas, na primeira quadra o primeiro
verso vincula-se ao terceiro, e o segundo, ao quarto constituindo assim pares de rimas
perfeitas ou consoantes. Na segunda quadra, no primeiro e no terceiro verso a presença de
rima assonante ou imperfeita, de ocorrência interna. As questões rítmicas estão assim
ressaltadas pelas aliterações, consonâncias e assonâncias ocorrentes. Mas, para manter aquela
rima em a proposta pela palavra jacá, os cantadores, no terceiro verso da primeira estrofe,
entoam um misturaiá. Essa situação remete para algumas possibilidades que soam bem
interessantes.
Na abordagem da introdução musical, faltou mencionar o caráter um tanto caótico
daquele arranjo. Esse caos não é referido pela desorganização de tais sonoridades, e sim pela
velocidade da melodia executada pelos sopros e pela intermitência com que os pratos
conduzem o ambiente percussivo. Mesmo que uma análise da escritura musical deixe evidente
a ordenação gica dos compassos da introdução, a impressão auditiva que se é de algo
desordenado, sem simetria, um cenário que vai se compondo aleatoriamente, sem uma
preocupação organizacional evidente. A expressão que sintetiza essa entropia é justamente
misturaiá. Seria uma forma de dizer “misturar lá” (no jacá)? Talvez. Ou ainda algo como
“misturarei”, um futuro do presente que, apesar de estritamente correto, por certo seria
responsável por uma dissonância muito inapropriada, mesmo que isoladamente a expressão
criada esteja propensa a representar um caráter dissonante. Contudo o efeito sonoro está em
53
justa adequação com a estrutura litero-musical proposta. Tal confusão é explicitada na quadra
a seguir
Tem jacutinga
Tem jacu
Jacaré em jacá
Tudo a gritá
Imagine-se um cesto trançado onde se encontram a um tempo galinhas, leitões,
jacutingas, jacus, jacarés: pode-se inferir de tal quadro, minimamente, uma confusão – de sons
e de desconforto, pois estão todos a gritar. Aquele misturaiá é gerador de barulho. Essa
junção se clarifica na conclusão do texto:
A galinha: “corocó”
Saracura: “treis-pot!”
E o peru faz “glu-glu-glu
Gulugulugu, gu-lot-lot”
A porca: “quem-quem”
O leitão: “quim-quim”
E a perdiz “pirimpimpim
Biribiribim, pirimpimpim”.
Surgem então essas expressões onomatopaicas que encaminham o arremate e o sentido
de toda a construção. E é curioso que esse fechamento não traga uma conclusão cronológica
em termos de sequência narrativa para o texto tratando de um desfecho para aquelas ações
apresentadas. O que parece ficar referendado de forma evidenciada e talvez irretorquível é o
conteúdo caótico de tudo o que foi cantado. Os versos finais dos dois quartetos são
sonoridades cujas propriedades semânticas estão, a princípio, apenas vinculadas às vozes do
peru e da perdiz. Todavia, diante da condução expositiva da canção, acabam ganhando em
vigor de sentido, uma vez que dão conta daquela situação anárquica desencadeada por aquele
misturaiá.
Como o texto expõe nos versos inaugurais, a voz que canta é a de alguém que vai
vender sua criação e suas conquistas de caça. Essa situação, o cenário descrito, que é por onde
a personagem transita dentro da canção, o estado de leveza de que aquele espírito vai tomado,
tudo parece estar muito bem sintetizado no momento intervalar do canto. A melodia é
assumida, dentro do arranjo instrumental, pelo assovio alegre (talvez da própria personagem)
que se soma aos sopros e à insistência quase ensurdecedora da percussão através dos pratos
54
que pulsam em todos os tempos de cada compasso da parte instrumental, sem respiros ou
silêncios.
A canção é exposta por duas vezes, praticamente, sem variação entre as abordagens.
Porém para o encaminhamento final ainda uma ocorrência a ser considerada. Cria-se um
jogo de pergunta e resposta entre as vozes dos cantores e os instrumentos. Aquelas expressões
onomatopaicas que definem, na canção, os animais que até o momento eram dadas também
pelo canto, agora passam a ser expressas pelo instrumental. Deste modo: o coro parece
desafiar
a galinha e a resposta, a onomatopeia, o corocó surge através do trompete;
seguindo saracura e o treis-pot é cantado pela gaita; e segue a gaita em gulugulugu, gu-
lot-lot, como se fosse o peru; e no quarteto final, pela a porca “fala” o tompete com um efeito
tremolo; pelo leitão e pela perdiz o arremate é do acordeom. Para concluir, a sonoridade
alegre e frenética da “bandinha” repete os compassos expostos e coloca o ponto final. O
texto e a música assim estão justapostos um necessário ao outro irremediavelmente.
55
4.5 "CARRETEIRO": ALGUÉM CANTANDO DENTRO DA CANÇÃO
um trecho de uma cena descrita no primeiro volume da Trilogia do gaúcho a pé
o romance Sem rumo de Cyro Martins (1977, p. 88)
que diz
[...]o ringido agudo e cansativo das rodas nos repechos, suportou o
fastio daquela pasmaceira, aprendeu a ter paciência, até que se
acostumou a andar devagar, a não ouvir as rodas rechinantes e até a
distrair-se guindo os bois.
Esse é o ambiente da canção "Carreteiro". Um acorde de guitarra muito próximo
daquela sonoridade que acompanha as danças havaianas
23
imortalizadas no cinema norte
americano, com aquelas belas e sensuais nativas movendo as cinturas elásticas e
serpenteantes, dialoga com as vozes masculinas, o acordeom e em seguida com as vozes
femininas. É um acorde agudo que se distorce enquanto se alonga, parecendo o girar
lamuriento das rodas da carreta. A gaita responde também aguda, num rechino pasmacento.
Assim se configura a voz múltipla de um narrador-observador que canta a cena descortinada
diante de seus olhos.
1Ê boi, ê boi,
2 Utcha-lo vida braba
3 Oi, colorado boi
4 A carreta vai gemendo
5 Sempre andando sem parar
6 Carreteiro vai cantando
7 Não te pressa de chegar
Neste início do canto tudo é arrastado, é choroso. As vozes languidamente vão
desfiando as notas e as sílabas pausada e escorridamente. Parece que a falta de pressa do
carreteiro observado é sua prisão inexpugnável. A impressão que se assoma é a de que o
próprio canto está em si mesmo aprisionado.
Na abertura uma insistência na nota tônica que repousa descendentemente sobre a
sétima menor, num intervalo de tom inteiro. Em seguida a melodia insiste sobre o quinto grau
23
Houve uma época em que o Havaí foi assolado por uma terrível doença dizem que foi uma peste muitos
perderam os dedos das mãos. Um grande instrumentista de violão foi acometido por essa doença, ficando sem os
dedos da mão esquerda. Foi aí que improvisou uma maneira própria de tocar, mesmo com a deficiência física:
virando o violão, colocou-o nas pernas, e com o auxílio de um copo de vidro e uma ferramenta de ferro redonda,
deslizava-os por sobre as cordas do violão. Surgia, assim, um novo som no mundo, diferente e muito agradável,
maravilhoso mesmo. Uma melodia nunca antes ouvida. Com esse novo sistema, inventaram a primeira guitarra,
feita de bambu e cordas de nervo de boi.
56
da escala por seis compassos até achar solução sobre o terceiro grau. O que se move é a
harmonia. Essa construção é que cria a impressão lenta do movimento. Isso compõe a
estrutura dos três primeiros versos. No verso quatro o fraseado musical oscila um semitom
acima, passa pelo sétimo grau menor e retorna ao quinto. Repete-se de forma análoga nos
versos cinco e seis. E no sétimo encontra solução na nota tônica ascendente. Trata-se de uma
estrutura dotada de certa sofisticação. um contínuo que geme, que anda e que canta. Se
pudéssemos emprestar a ação alguma cor, certamente esta seria algo em torno do cinzento, do
esmaecido, taciturno e sombrio.
Eis que, inesperadamente, essa coloração é incendiada de luz. O carreteiro, que era até
então observado e descrito quase que num movimento letárgico, assume a condução do canto
e transforma estrada, carreta e bois. E seu canto é espontâneo. Aquele ar sofisticado e
circunspecto ficou para trás. Ainda que o texto diga de despedida e de lágrima, a melodia é
leve, quase alegre. Não insiste mais em nota única, senão que desfila a escala para cima e para
baixo com durações curtas, propiciando um ritmo que vai desmanchar a dinâmica rechinante
da carreta. Apesar da indicação do encarte em análise informar que a canção, do ponto de
vista do gênero musical, trata-se de uma toada
e nas partes em que o coro conduz a narração
isso é verdadeiro no trecho abaixo, no qual é o próprio carreteiro que canta, por essa
dinâmica diversa, o gênero é o xote
24
que originariamente é uma dança. A carreta continua
lenta, os bois quase em fadiga seguem sempre andando sem parar, mas o cantador em suas
relembranças parece ir com o espírito em baile.
8 Quando eu vim da minha terra
9 Muita morena chorou
10Eu também fiquei chorando
11Meu coração relinchando
12Por uma que lá ficou
Como podemos perceber, a estrofação do texto vem sendo acrescida no número de
versos: a primeira estrofe é um terceto, a seguir temos um quarteto e em seguida – no canto do
carreteiro a composição é de cinco versos. Naturalmente, essa crescente é responsável pela
condução da migração musico-cênica da canção.
No quarteto que se segue, novamente o coro retoma o desenvolvimento do canto. Está
de volta a estrutura estrófica de quatro versos, e a melodia desenrola-se de mesma maneira
descrita acima nos versos quatro, cinco, seis e sete.
24
Schotisch: dança de salão, originária provavelmente da Alemanha, absorvida pelos regionalismos do Nordeste
e do Rio Grande do Sul.
57
13Pelas voltas do caminho
14As carretas lá se vão
15Carreteiro vai cantando
16A toada do rincão
Quando o canto volta à voz do carreteiro, o gênero mais uma vez é o xote, mas, para
dar conta de uma mudança temporal na paisagem, a melodia adquire desenho distinto daquele
que se mostrava no quinteto anterior. Com o cair da tarde aquela uma que ficou volta a
rondar o pensamento divagante com cantador que conduz a carreta sonolenta. E agora a
lembrança feminina que num momento antes era de alguém que tinha ficado à distância e o
havia deixado chorando com o coração relinchando, agora parece estar próxima mesmo
que na lembrança tão próxima que talvez pudesse ouvir os rogos do seu desejo. Em duas
estruturas idênticas do ponto de vista do gênero e da construção melódica e com a abertura
das duas quadras também iguais, o carreteiro parece sentir que o sol se pondo pode renovar
alguns sentimentos que num horizonte provável ele pede que se concretizem. Cabe salientar
que introduz este novo momento sonoro o acordeom expondo aquele motivo que se tornou
referencial nos desafios de trova quando o instrumento arremata o improviso de um desafiante
e ao mesmo tempo serve de introdução para a intervenção do outro trovador.
17Lá se vai o sol entrando
18Redondo como um botão
19Morena me dá um abraço
20Que eu te dou meu coração
21Lá se vai o sol entrando
22Redondo como um vintém
23Morena me dá um beijinho
24Que eu não conto pra ninguém
Encaminhando para o encerramento, mais uma vez o coro assume o canto. E o faz no
dístico que se segue repetindo a ocorrência melódica dos versos três e quatro.
25Oi, cruzando sempre estrada
26Oi, pintassilgo boi...
E assim se vão cantando os que observam e relatam a saga do condutor dos bois, e
assim também se vai ele mesmo, o carreteiro, cantando dentro da canção. As carretas andaram
tanto, gemeram tanto sem parar, que sumiram. E longe vai, na poeira do tempo, esse remoto
58
que relativa a duração das coisas, no qual um abraço poderia ganhar um coração, e um beijo
havia de ser guardado em segredo pelos enamorados. Tempo do boi, tempo que foi.
59
4.6 "FEITIÇO ÍNDIO"
UMA EVOCAÇÃO DO MUNDO MODAL
Nesta canção de inspiração modal, qual seja este universo sonoro cuja construção se
apoia sobre uma única escala, no caso a escala maior, sem o acréscimo ou o empréstimo de
intervalos tonais ou semitonais estranhos ao da escala natural, parece ser a intenção cantada a
de se retornar musicalmente ao mundo missioneiro anterior ao das reduções jesuíticas, na
tentativa de um reencontro com as origens de uma cultura guarani primordial. A voz que
canta, feminina voz novamente, como já discorremos em capítulos atrás, evoca o deus índio à
guisa de ser ouvida e assim restabelecer o contato com a criação perdida no tempo.
Nosso foco está sobre a composição "Feitiço Índio", catalogada como sendo do gênero
missioneira, algo muito próximo dos ritmos binários compostos da música folclórica
paraguaia, como as polcas e as galopas. Estamos analisando a gravação extraída do 78
rotações da paulista Ana Silva
25
, para a gravadora Discos Todamérica em 1957. Trata-se da
primeira gravação dessa canção que integrou a trilha sonora do filme Paixão de Gaúcho
26
.
Estamos diante, é possível, de uma busca de raízes, de primórdios originários. De
difícil percurso essa busca? Provavelmente, tão ou mais do que a própria trajetória humana
que nos trouxe à atualidade. Já se disse que muito fundo o poço do passado" (MANN,
1947, p. 13). Contudo, examinando algumas situações muito peculiares, e que são, já me
parece, evidentes neste estudo, é possível que num recuo breve se possa atingir um tempo-
espaço que nos ofereça algum suporte mais ou menos sensível, encaminhando deste modo a
algumas elucidações e, por certo, outras tantas nebulosidades que perenemente rodam nossos
estudos.
Podem assim existir origens provisórias, que praticamente e de fato
formam os primórdios da tradição particular mantida por uma dada
comunidade, por um povo ou por uma comunhão de crença; e a
memória, embora suficientemente inteirada de que na realidade não
foram sondadas as profundezas, pode, contudo, do ponto de vista
nacional, conformar-se com aqueles primórdios e, pessoal e
historicamente falando, vir a descansar aí. (MANN, 1947, p. 13)
Deste modo se pode situar à época em que este solo riograndense ainda não havia sido
tocado, senão pelos povos indígenas, o ponto de origem, mesmo que provisório, desta
comunidade cultural que o autor das canções ora visitadas vem nos possibilitando fazer um
25
Nome de batismo da cantora que se consagrou na dupla Cascatinha e Inhana.
26
Filme de Walter George Durst baseado no romance O Gaúcho de José de Alencar, estrelado por Alberto
Ruschell, com música de Barbosa Lessa e Paixão Cortes e levado às telas em 1957.
60
traçado, ainda que tênue, do perfil. Cumpre talvez esclarecer que, apesar da indicação do
gênero da canção remeter para a saga jesuítica, a sonoridade do canto e dos arranjos está
identificada como um momento histórico distinto daquele em que se situa à evocação lírica. O
ambiente musical daquele mundo instruído pelo pensamento mítico dificilmente seria análogo
ao da canção. Inclusive, apenas como sucinta ilustração, a cena do filme recém citado em que
a canção é apresentada em nada lembra algum evocar ritualístico guarani: está uma moça a
cantar sob a janela de um bolicho ou armazém, acompanhando-se ao violão enquanto entre os
homens corre solto um carteado com apostas que acabarão por gerar rusgas e ranger de
dentes. A cena não carrega, pois, algum sentido evocatório ou mítico. O canto orna um
embate mera e terrivelmente mundano. E aí está a primeira estrofe da canção:
1Vou chamar Tupã
2Pra ouvir mi’a voz guarani
3Tupã, deus da campina
4E da tribo em que eu nasci
5Tupã, vem me ouvir
Um violão arpeja sobre a escala natural criando sonoridade próxima à de uma harpa
27
paraguaia. As notas que compõem esse arpejado bailam em recorrência sobre o primeiro, o
terceiro grau maior e o quinto grau da escala (tríade que forma um acorde natural em modo
maior). A harmonia está estabilizada sobre o acorde tônico na introdução e permanece assim
durante os versos um e dois do canto. A melodia do canto, nesse trecho, parte da nota tônica
oitavada, salta para a quinta em movimento descendente, oscila entre o quinto e o sexto graus,
passa pelo terceiro e se estabiliza uma oitava abaixo da nota inicial. A seguir a harmonia
progride para o acorde do quarto grau e a melodia transita pelo arpejo da tríade principal
desse acorde, iniciando no terceiro grau maior oitavado da escala, voltando ao quinto,
passando pela tônica e novamente indo à terça maior em movimento recorrente. No verso
cinco, com nova progressão harmônica incidindo sobre o acorde do quinto grau, também
nomeado como acorde da dominante, a melodia cantada faz percurso descendente pelo arpejo
do acorde tônico e repousa nota principal da escala. Cabe salientar que tal situação, na qual
ocorrem, nas escalas maiores, progressões harmônicas análogas é recorrentemente encontrada
na música popular, principalmente na construção de canções, cuja espontaneidade criativa
suplanta alguma sofisticação de engenho. Voltemos ao texto, e novamente cabe lamentar que
27
Note-se que a harpa é um instrumento que remonta a uma antiguidade remotíssima e junto com a flauta é um
dos instrumentos mais antigos que se conhece.
61
essa análise não possa aqui neste mesmo suporte estar acompanhada da possibilidade da
audição.
9Eu quisera tornar a ser
10Aquele ser que vivia
11No sertão guarani
12Eu quisera ter novamente
13O poder da serpente
14Boiguassu e Boichiri
Quando se deseja voltar a ser algo ou alguém, pressupõe-se de imediato que tal coisa
ou ser possua a existência anterior. E se essa entidade fosse dotada de algum poder, como
exprimem os versos cantados acima dispostos, seguramente estamos diante de uma visão de
mundo um tanto distante da nossa pretensa e arrogante racionalidade. Quem era, então, esse
ser que vivia no sertão guarani, que empoderamento era esse das serpentes. Logo, pode-se
perceber que se está diante de uma cristalização do pensamento mítico. Daí a tal fundura do
poço recém mencionada. Ou a sua infinitude.
"O logos e o mythos são duas instâncias da linguagem. O primeiro, sendo um
raciocínio, procura convencer, acarretando no ouvinte a necessidade de julgar" (BRANDÃO,
2002, p. 13). o mito "não possui outro fim senão a si próprio. Acredita-se nele ou não, por
um ato de fé, se o mesmo parece 'belo' ou verossímil, ou simplesmente porque se deseja dar-
lhe crédito"(BRANDÃO, 2002, p. 14). Se pela racionalidade separamos o ser e o significado,
no pensamento mítico nomear o ser é declinar a sua significação. Existência e significação
coabitam a palavra mítica. Adiante retomarei a questão do pensamento mítico em outra
análise que intenta complementar esta que ora empreendo. Temos que, contudo, nos determos
um instante sobre alguns simbolismos evidentes no trecho acima, que parecem apontar a
aspectos importantes para essa abordagem. Depois desta rápida digressão, voltemos aos
guaranis e às serpentes.
A cultura guaranítica, como de resto as culturas centradas em universos mitológicos,
explica a origem do cosmo a partir do seu lugar, do seu habitat. Para os guaranis,
No coração de um Nada tenebroso percorrido pelos ventos, surgiu, sem ser gerado,
o deus gerador das coisas em sua totalidade, Ñamandu. As palavras que descrevem
a emergência dessa figura central do panteão guarani, pai dos primeiros deuses, pai
dos últimos homens, dizem o momento inaugural da história do mundo, afirma
divinos a origem e o destino dos seres destinados à humanidade, compõem o texto
fundador do pensamento mais orgulhoso. Promessa de êxtase para quem as ouve:
não é sem estremecimentos que os índios guarani põem-se à escuta de seus sábios,
62
quando as Belas Palavras lembram uma vez mais aos mortais que eles são os eleitos
divinos.
(CLASTRES,
1990, p. 21)
Naturalmente, é sabido que essa civilização espalhou-se por largas regiões do
continente sulamericano, incluindo-se o território gaúcho. Pela breve exposição acima se pode
perceber como se estabelece a relação entre as forças criadoras sob a ótica da cultura guarani.
E é o mesmo Tupã criador de tudo sobre a face da Terra que é evocado, que é chamado a
ouvir as angústias cantadas. E o canto assim parece demonstrar um desejo incontido de
retorno à criação do planeta, das estrelas e dos homens. Em um de seus livros, Lessa (1997, p.
9-18) narra com estilo inspirado o passo a passo desse surgimento. E podemos encontrar,
no capítulo nono que fala sobre tradição, dois mandamentos que parecem de oportuno citar:
Não terás chefe ou senhor, pois a única força dos humanos se afirma no Kayuá.
E enquanto a Palavra estiver concorde com esta Tradição, a ordem se sucederá de
geração em geração com a mesma e constante identidade.
A voz cantadora chama o deus para lhe ouvir. É a palavra, portanto, o seu elo, sua
ligação com o divino. E mais, é por ela que se garante o caráter hereditário da identidade do
povo. Dessa forma, quando, após rogar atenção ao deus, a canção invoca os poderes das
serpentes, está exercitando justo o mandamento exposto. Boiguaçu ou mboi-guaçu e boichiri
ou mboi-cininga
28
, a sucuri e a cascavel estão, respectivamente, pelo seu tamanho e pelo
seu guizo. Uma pelo seu gigantismo, pelo seu poder de engolir a luz do mundo, como nos
conta Simões; a outra pelo sibilo de seu anel caudal – um resquício de cada uma das trocas de
pele ocorridas durante a sua vida, uma prova, pois, de sua eterna transformação em si mesma
que a um tempo ameaça e serve de proteção. O poder desejado pelo canto é
necessariamente este, que talvez o que vem atormentando desde sempre a nossa demasiada
humanidade transcender a natureza humana, sabê-la desde a sua imperscrutável
primordialidade.
15Vou pedir então
16Pra Inhangá
17Possa eu te enfeitiçar
18Que em três luas se destrua
19Teu amor
28
Em guarani, mboya significa cobra; (gu) asu é grande; si’niniga quer dizer retinir.
63
Aqui a canção se encaminha para o final. O tom evocatório permanece e é agora
endereçado a outra instância mítica, Anhangá ou Inhangá o deus da caça e dos campos. E
ainda expõe o motivo desse rogo cantante: destruir pela força do feitiço um amor que
aparentemente incomoda.
A melodia sofre pequena variação, mas continua sobre o mesmo colorido timbrístico
desde o começo. Se no início a voz cantava numa região mediana da escala, agora, na nota
final, a elevação tende ao limite do registro da soprano. Uma tentativa de, por essa ascensão,
cristalizar com a concessão das forças divinas a transcendência e o feitiço. E essa subida, por
tão íngreme, talvez não pudesse se assentar sobre outra palavra que não fosse amor, que é
essa dimensão elevada e inefável e ao mesmo tempo sensível e essencial da condição humana.
64
4.7 "QUANDO SOPRA O MINUANO": A TRADIÇÃO NO VOO DO VENTO
Alguns fenômenos da natureza exercem ainda hoje fascínio importante à observação
humana. Pôres-de-sol, encontro de águas, luz do sol refratada em gotas de chuva: tudo é alvo
de admiração, de embevecimento, de narrativas lendárias. O vento minuano, movimento de ar
característico da paisagem mais ao sul do continente americano, gelado por sua origem polar,
é um desses fenômenos largamente visitados seja em narrativas de ficção literária, seja em
canções populares. Poderíamos citar num relance de memória um punhado de tais ocorrências
cancionistas. Autores como Teixeirinha, Luiz Carlos Borges, Telmo de Lima Freitas, citando
somente alguns poucos, se valeram do minuano para construírem canções que hoje fazem
parte consagrada deste cancioneiro regional.
Tratamos aqui da canção "Quando sopra o Minuano", conhecida também como
"Levanta Gaúcho!", assinada em letra e música por Barbosa Lessa, possuindo inúmeras
gravações. Contudo, valho-me para essa análise da interpretação de Chico Raymundo, um dos
integrantes do grupo Titulares do Ritmo
29
em gravação de 1962.
Duas indagações de imediato me saltam pela leitura do título da canção: o vento tem o
nome de uma das tribos indígenas, habitantes de Rio Grande do Sul à época do
descobrimento, que mais legaram hábitos à cultura gaúcha cite-se o chimarrão, para que
fiquemos num exemplo apenas; e a grafia do nome do vento será sempre na canção com a
inicial maiúscula, o que parece remeter para algo de personificação o evento natural
torna-se um ente do fenômeno eólico. Por sua trajetória em rota a sudoeste desde a cordilheira
dos Andes, passando pelo território que era habitado pelos índios minuanos, o vento foi assim
batizado. Mas, se investigarmos, ainda que tenuemente, essa nação indígena, veremos tratar-
se de povo aguerrido, afeito às lides com o gado vacum (dominavam o uso do laço e das
boleadeiras) e formado por hábeis cavaleiros, tanto para a guerra como para o trabalho. Essa
bravura está retratada na canção. Parece haver o índio se transformado em vento.
Na introdução, além de um coro que reproduz o mesmo desenho melódico, ouve-se o
solo de um instrumento um tanto exótico, mas que para o intento do arranjo mostra-se
absolutamente concordante. Trata-se de um serrote
30
tangido por um arco de violino. O
29
Grupo vocal e instrumental, cujos componentes eram todos cegos. O conjunto, um sexteto, foi organizado em
1941, quando seus futuros componentes se conheceram no Instituto São Rafael em Belo Horizonte, MG, para
cegos, onde cursavam o ginásio. Ficaram famosos pelas harmonizações e vocalizações requintadas que
elaboravam. Fonte: DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA.
30
O Serrote Musical é um instrumento difundido em diversos países, como: França; Alemanha, Bavária;
Estados Unidos, Califórnia; Suíça, Tirol e Rússia, onde faz parte de grandes concertos sinfônicos de música
65
funcionamento dessa execução se da seguinte forma: na medida em que a lâmina da
ferramenta vai sendo vergada, o roçar do arco produz a nota desejada. E essa sonoridade em
tudo aproxima o ouvinte de uma sensação de que um vento assobiando por uma fresta
qualquer – fria sensação poderia se acrescentar.
Minuano ta soprando, assobiando
Nesta noite tropereando
Seus fantasmas tropereando
E as almas vão passando
Cavalgando redomões
Fantasmas do passado
No tropel das tradições
A canção se assenta em tom menor, e nessa primeira estrofe a melodia parte de uma
recorrência ascendente do quinto grau para a nota tônica da escala, para logo após percorre-la
ainda em ascendência até achar solução na mesma tonalidade em modo maior possibilitando a
explosão do estribilho em nítido matiz convocatório. A condução rítmica da composição,
metaforicamente, poder-se-ia dizer é a de um tropel, de um galope que se insinua e que se
põe, irreversivelmente, em avançada. Note-se que o vento, que surge sem prévia apresentação
desempenha ações que são de natureza humana. Aí, pois, a personificação a pouco referida. O
Minuano, maiusculamente, sopra, assobia, tropeia, cavalga. Vem repassando uma tradição, e
vem revisitando fantasmas. Coisas que eram. Coisas que ficaram para trás num passado cuja
revivecência parece ser fundamental no sentido de projetar o aludido padrão cultural ao
futuro. Toda a sonoridade até aqui desenvolvida, ainda que contida, ainda que esse tropel
venha, embora avançando, sendo refreado por uma condução de “rédea curta”, vem
preparando como numa clarinada o ambiente quase que catártico do refrão. O conclame
parece beirar o transe.
Levanta, gaúcho!
Todos precisam andar!
Minuano ta chamando
E o Rio Grande precisa escutar
Mais uma vez é possível investigar, talvez, a presença do pensamento mítico como
orientação da produção litero-musical. Pronunciar a palavra que nomeia o vento parece ter o
condão de dotar o homem de força transcendente. A imagem do vento associada à intrínseca
folclórica desses países. Ver mais em: A arte de tocar serrote musical de Antônio Frizon, Editora Martins
Livreiro.
66
imagem da nação indígena, da qual o nome se origina, cria a configuração de um arquétipo
delineável.
Os pais ensinam aos filhos como é a vida, relatando-lhes as experiências pelas quais
passaram. Os mitos fazem a mesma coisa num sentido muito mais amplo, pois
delineiam padrões para a caminhada existencial através da dimensão imaginária
(BRANDÃO, 2002, p. 9).
Ouvir o vento, desse modo, é colocar-se à disposição para inventariar as experiências
antepassadas, o acúmulo de conhecimentos que as gerações remotas legaram e que o galope
eólico tem a força de atualizar. E está a tradição, que como se disse, do ponto de vista
etimológico, significa transmissão. O minuano na canção é, pois, o veículo que transporta
a herança tradicional. Por isso, talvez, o tom convocatório do estribilho. O imperativo levanta
é uma exortação contra uma atitude passiva, é um conclame a que se deliberadamente ao
encontro – via vento – de uma identidade cultural de contorno reconhecível. No trecho
adiante, essa convocação transforma-se num convite. Tal abrandamento pode estar
relacionado com a situação de não mais haver necessidade de ordem, posto que o alerta que se
fazia premente já haver soado na primeira parte da canção e explodido em seu refrão.
Venham comigo voar com o Minuano
Na galopada dessas almas pelo-duro
Neste tropel em que se unem gerações
E onde as velhas tradições
Dão o rumo do futuro
E o Minuano vai correndo doidamente
E o próprio frio aquece o coração da gente
O coração todo se abre e se expande
Pra que entre em nosso sangue
Próprio sangue do Rio Grande
Agora, em tom convidativo, o cantor tenta convencer o ouvinte da natureza procedente
e razoável de seu canto-convocação-convite. Há que se empreender viagem na garupa do
minuano para saber dos desígnios da tradição do povo gaúcho. É uma viagem de retorno,
pois, e para isso se deve voar com o Minuano. uma galopada de almas unidas nesta
empreitada, gerações emaranhadas a buscar no antigo o caminho para o atual, numa
reverência à sabedoria coletiva, pois
[...] os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos
do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o
consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras-de-arte, o
67
conhecimento científico, [...] que formam a identidade cultural (BRANDÃO, 2002,
p. 9)..
Naturalmente, a eleição do vento para ser o portador de tais relevantes revelações
sobre o trajeto de formação desta cultura é uma arbitrária escolha do autor, ou apoie-se nessa
permanência de átimos do pensamento mítico sobre o qual não cabem maiores perguntas, pois
é tida a percepção de que o mero evento natural quando cantado vê-se transposto a uma
categoria ampliada de suas realidades sensíveis. O minuano, que passou pelos índios a
origem provisória –, cruzou com a chegada do branco europeu e demos por óbvio que na
Europa estejam outras tantas origens também provisórias –, ainda que na canção isso não seja
tangível, possui a condição atemporal e imemorial de ser o agente resgatador do saber
nutriente dessa cultura que a canção pretende, talvez acima do resto afirmar como verdadeira
e fundamental.
A melodia desse trecho final parece alada em relação ao caráter trunco do tropel
inicial, mas perceba-se que a impressão do galope perpassa a íntegra do arranjo musical. O
esmaecimento de sua sensação deve-se, justamente, ao “voo melódico” que conforma as duas
últimas estrofes. O canto adquire um matiz coloquial. É uma proposição dialogal, e
evidentemente, diálogos prescindem, no mais das vezes, de tonalidades imperativas. Ordens
podem inviabilizar o processo coloquial. Nesse sentido, a voz que canta, aqui se torna branda,
procura se fazer próxima do ouvinte, talvez na tentativa mera do convencimento ou para criar
uma atmosfera de cumplicidade entre o cantar e o ouvir. Por conta desse colorido musical
pode-se dizer que a composição atinge um mais elevado grau de sofisticação, ainda que, no
campo harmônico, não haja acréscimo tão significativo, a não ser pela retomada, em meio à
penúltima estrofe, da tonalidade menor que se dá em neste tropel em que se unem gerações.
Tal retomada, mesmo que num primeiro momento nos levasse a concluir que se
estivesse voltando ao ambiente inicial da canção, é totalmente distinta. Aqui a exposição
pretende-se reflexiva. o as velhas tradições projetadas pelo vento que se dão a conhecer. É
o passado que pelo presente aponta o futuro. E se disse que tanto o passado quanto o futuro
estão mais ligados ao mito do que o presente. Neste ponto, a correria do vento é doida, o frio
aquece, o coração abre-se, tudo para afirmar uma consanguinidade que é signatária da
referendada identidade cultural.
68
5. ESTABELECENDO DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES
Uma vez apresentada essa análise de canções selecionadas da obra de Barbosa Lessa,
cabe neste momento da reflexão o encaminhamento de algumas possibilidades comparativas
que me parecem pertinentes. Como já dissemos, é aceitável situar a composição de Lessa num
estágio inaugural da produção de canções populares de inspiração rural no Rio Grande do Sul.
Entretanto, podemos agora estabelecer alguns pontos de contato ou de contraste com a obra de
alguns autores também reconhecidos no cenário cancionista regional gaúcho.
E, num primeiro momento, remeto o foco analítico para um autor que aparentemente
está situado numa distância larga em relação ao compositor de Negrinho do Pastoreio. Refiro-
me a Gildo de Freitas. Aquele que reconhece a própria fragilidade intelectual, e de modo
irônico, talvez, posiciona-se diante de uma sociedade letrada com o tirocínio e a argúcia
daquele que conhece as armas todas e assim se atira aos duelos. Para, quem sabe, a
estupefação de compreensões afoitas e superficiais.
Logo em seguida, trato da canção Roda-Canto, de autoria do são-borjense Mário
Barbará e do porto-alegrense Apparício Silva Rillo. E temos uma obra muito mais próxima
das características encontradas em Barbosa Lessa. O viés da análise está ancorado nas
questões do mito e da metáfora. E digo da proximidade com Lessa por tratar-se de uma
elaboração bem mais intrincada do que aquela que se evidencia no trovador Gildo. A
construção simbólica do texto de Silva Rillo é sofisticada, e as soluções musicais encontradas
por Barbará estão em singular sintonia com a poética proposta.
Adiante, busco aludir algumas questões sobre aspectos da teoria da enunciação,
recorrendo à canção "Enlutado". Tal escolha é motivada pela evidente exposição do sujeito
que toma a voz discursiva cantando. O eu diz de si mesmo. E as nuances musicais parecem
reconhecer o potencial do discurso e o reforçam de maneira comprometida. Se em Lessa o
"Quero-quero" é sentinela e ainda que no escuro da noite antevê a luz nascente de um amor,
em "Enlutado", a ave releva um mundo sombrio, epilogal, de cores esmaecidas. Contudo, o
centro da investigação está calcado sobre as aptidões enunciativas do texto literário com sua
possível correspondência na linguagem musical.
E antes de remeter às considerações finais do presente estudo, visito ainda mais duas
canções, escolhidas por suas temáticas que a um primeiro olhar podem parecer antagônicas.
São elas "Guri" e "Rio de Infância". Os dois indivíduos protagonistas comungam périplos que
se identificam entre si. O segundo não pode permanecer na terra natal junto dos seus e,
premido por circunstâncias desfavoráveis, vai-se embora pelo caminho do rio. E agora canta
69
querendo voltar. O primeiro, como que intuindo a triste saga do outro, recusa-se a partir. E
canta para ser igual ao pai e permanecer naquele lugar. O lugar eleito para ser o seu lugar.
refletimos, anteriormente, guiados por Gaston Bachelard, sobre este cus depositário dos
bens essenciais para a vida humana. São duas crianças (ainda que um seja adulto) que
parecem, mesmo à distância, saber das angústias pelas quais ambos são atravessados.
No aspecto musical, os dois ambientes sonoros que dão movimento às duas cenas,
também parecem pertencer a uma mesma natureza. São canções lentas, circunspectas,
reflexivas. Fluem à mercê da angústia narrativa. E se um momento de catarse, pode-se,
talvez, identificá-lo em "Guri" quando, após brusca modulação tonal conduzida pela gaita
diatônica (gaita-de-botão), o canto explode quero gaita de oito baixos, pra ver o ronco que
sai; em "Rio de Infância", semelhante constatação pode ser verificada em um dia fugi com
elas cansado de ser guri, numa balsa rio afora fui embora e me perdi. Essas questões serão
ampliadas nas considerações adiante.
70
5.1 GILDO DE FREITAS UM IMPROVISADOR ENTRE A ORALIDADE E A
CULTURA ESCRITA
Levando-se em consideração que o momento histórico final dos anos 40 pode ser
tomado como o marco zero da existência deste cancioneiro regional, uma abordagem
meramente quantitativa por certo haverá de causar espanto. Se tomarmos apenas o movimento
dos festivais nativistas deflagrado pela Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana no início
dos anos setenta, podemos numa rasa aritmética constatar que em pouco mais de trinta anos,
relacionando somente as canções que foram registradas fonograficamente em cada edição
anual dos quase cinquenta festivais que se realizam desde aquele momento, chega-se a um
número que se eleva à praticamente cinco mil canções. Isso, contando apenas com a produção
oriunda do formato festival, descartando uma enorme leva de canções produzidas
paralelamente. Para um rápido exemplo, podemos citar o caso do consagrado artista popular
Vitor Mateus Teixeira, o Teixeirinha, que gravou cerca de setecentas canções de sua autoria.
Pode-se, rapidamente perceber que a constatação de Lessa, no final dos anos quarenta, de que
não havia canções para cantar, em pouco mais de meio século, é suplantada pela existência de
um cancioneiro regional, pelo menos do ponto de vista da quantidade, absolutamente
significativo.
Além disso, a maioria das pesquisas até hoje efetuadas conta de uma abordagem
sócio-histórica da constituição desse universo de canções. As investidas por uma análise mais
detida de questões atinentes à linguagem são ainda tímidas. Essa constatação já parece ser
razoável para justificar a motivação deste empreendimento.
Cabe salientar ainda que o grau de elaboração da linguagem lítero-musical na obra de
Barbosa Lessa é elevado. Tanto no aspecto linguístico quanto no musical os elementos
tendem a um padrão culto de proferimento e de construção sígnica e sintático-semântica.
Mesmo que possa parecer uma digressão um tanto distanciadora do propósito desta reflexão,
devo, para dar conta ao menos de situar alguns pólos distintos, empreender, ainda que
rapidamente, um arrazoado que contemple um outro modus faciendi também encontrado no
cancioneiro em foco, que a um primeiro momento pode parecer antagônico àquele
desenvolvido por Lessa e que, contudo, adiante haveremos de proceder às analogias possíveis.
Falo do modelo consagrado por Gildo de Freitas, entre outros.
Nascido Leovegildo José, imortalizou-se como Gildo de Freitas. Sua obra é de uma
singularidade, de uma inventiva, de uma profundidade inacreditáveis quando posta em
confronto com o seu nível de escolaridade. Gildo é uma personagem que parece ter saído de
71
algum romance do realismo maravilhoso. Alejo Carpentier, no prefácio do seu livro O reino
deste mundo, interroga: "Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da
Realidade Maravilhosa?" Vejamos um pouco da biografia desse artista repleta de episódios
surpreendentes.
Aos doze anos foge da casa paterna. Aos dezoito, é dado como desertor por não
apresentar-se ao exército. No mesmo ano, envolve-se na primeira briga, na qual é morto um
jovem amigo. Preso pela primeira vez, começa desenvolver verdadeiro ódio da polícia.
Contratempos com a polícia serão recorrentes em sua vida. Casa-se. Os dois primeiros filhos
morrem ainda pequenos. Já trovador afamado em todo o Rio Grande de Sul, desaparece de
casa, em Canoas, na região metropolitana, e reaparece inexplicavelmente na fronteira oeste do
estado. É obrigado a passar uma longa temporada em Alegrete por conta de uma paralisia nas
pernas. Conhece Getúlio Vargas. Viaja ao Rio de Janeiro. Torna-se celebridade nos
programas radiofônicos da capital gaúcha, quando, propositalmente, cria uma “desavença”
com outro fenômeno da música regional: Teixeirinha. Entre 1961 e 1962, com o declínio dos
programas de rádio, resolve largar a cantoria e criar porcos. No ano seguinte, viaja para São
Paulo e grava seu primeiro disco. Em 1964 é investigado por suas ligações com o trabalhismo.
A “briga” com Teixeirinha chega ao auge nos anos setenta. O sucesso popular é crescente.
Grava o último disco em 1982. Nascido em 19 de junho de 1919, morre em 4 de dezembro de
1983. Uma lei estadual declara esse o dia do Poeta Repentista Gaúcho.
Note-se que em nenhum momento desse trajeto biográfico consta alguma alusão que
indique que Gildo de Freitas tenha frequentado escola regular. Seus biógrafos tangenciam o
tema: a viúva parece registrar o fato de que o artista teria estudado até os oito anos. Podemos
concluir que, se Gildo realmente frequentou a escola, isso não durou mais do que um ano. Em
sua obra, ele nos dará indícios da veracidade de tal conclusão.
É evidente ainda nos dias de hoje, e talvez isso fosse mais acentuado em décadas
passadas, que a diferença entre níveis de escolaridade abre distâncias de difícil percurso no
processo de construção social dos indivíduos. Considere-se ainda que tal distanciamento não
raro acaba por desenvolver uma série de preconceitos que procura rebaixar a capacidade
intelectual dos menos escolarizados. Daí pode-se depreender que uma pessoa com baixo grau
de escolaridade venha sentir-se diminuída em seu meio. Evidentemente estou tratando de um
espaço social urbano da atualidade, portanto com níveis significativos de letramento, fruto dos
avanços da ciência e da tecnologia que caracterizam as modernas sociedades industriais
31
.
31
TFOUNI. Leda Verdiani. Letramento e alfabetização. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1997. (o letramento focaliza os
aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade.)
72
A pergunta que neste momento ronda essa reflexão é o fato de que o parágrafo anterior
talvez não encontre elo com a figura emblemática do trovador gauchesco que até instantes
atrás era o centro do assunto. Devo então estabelecer as ligações que parecem estar ausentes.
E vou direto à manifestação do próprio Gildo de Freitas em uma de suas mais famosas
canções: Eu reconheço que sou um grosso. Todo o texto é orientado por um tom confessional
pouco comum em pessoas que sofrem discriminação social em função do nível escolar e por
isso evitam assumir publicamente sua condição.
Desassombradamente, Gildo desfere com sua voz metalicamente incomum:
Me chamam de grosso
Eu não tiro a razão
Eu reconheço a minha grossura
Mas sei tratar a qualquer cidadão
Até representa que eu tenho cultura
O reconhecimento declarado pelo cantor nos três primeiros versos poderia levar a uma
conclusão de que o indivíduo está confinado e resignado à sua condição de inferioridade.
Parece-me claro que o binômio pejorativo grosso/grossura remete para algo como falta de
conhecimento, pouco estudo, despreparo intelectual, cidadão menor, etc. E por oposição
pode-se inferir a existência de alguém fino e de uma condição de finura que parecem ser o
alvo do enunciado inaugural da canção. Num primeiro momento o cantador concorda com a
adjetivação. entra a minúscula expressão mas que possui o condão de alterar as rotas
discursivas. E a contradição que se estabelece desacomoda um tanto aquelas posturas que
sempre têm respostas prontas para tudo. Como pode alguém com tão pouco “estudo” arrogar-
se a um patamar de eficiente circulação social ao tratar bem qualquer cidadão e afrontar o seu
em torno que se pretende o centro da cultura quando diz que até representa que eu tenho
cultura? De onde vem tal capacidade mimética? Seria o cantador um dissimulado?
O linguajar de uma personagem deve, para garantir verossimilhança à narrativa, soar
como algo inerente à personalidade e à constituição intrínseca do indivíduo que enuncia. Para
fugir das armadilhas da inautenticidade, Simões Lopes Neto voz a Blau Nunes, o
vaqueano, que narra seus causos com a linguagem própria do homem do campo. E Blau é um
campeiro experiente. No caso do trovador Gildo de Freitas não situação análoga. Gildo
voz a Gildo. Gildo é um cantautor. Como o Martin Fierro, de José Hernandez, canta
opinando. A diferenciação entre autor/criador e autor/homem destacada por Bakhtin (2003)
parece não valer para as investidas reflexivas, argutas e musicais deste cantor regionalista.
Logicamente tal pretensa circunstância não invalida a fundamental reflexão bakhtiniana.
73
Gildo canta pela consciência de Gildo. uma simbiose entre criador e homem. E é o tom
confessional da narrativa cantada que evidencia esse caráter simbiótico. A consciência
afirmativa de si mesmo se estabelece por uma alteridade nítida desde o primeiro verso da
canção: me chamam de grosso.
O cantador reconhece quem o nomeia, ou melhor, quem o adjetiva. E situa-se com
eloquência dentro deste confronto. O próprio título da canção remete para essa tomada de
posição: Eu reconheço que sou um grosso. Diante de uma sociedade alfabetizada, letrada e
culta, coloca-se alguém despossuído de tais “qualidades” que, ao invés de refluir-se ou
envergonhar-se da situação, enfrenta-a com destemor e inteligência afiada.
Continuemos ouvindo o trovador:
Eu aprendi na escola do mundo
Não fui falquejado em bancos colegiais
Eu não tive tempo de ser vagabundo
Porque quem trabalha vergonha não faz
Eu trabalhava, ajudava meus pais
Sempre levei a vida de peão
Porque no tempo em que eu era rapaz
Qualquer serviço era uma diversão
Lidava no campo cantando com os bichos
Pois pra cantar eu trouxe vocação
Por isso até hoje eu trouxe por capricho
De conservar as nossas tradições.
Aqui Gildo, em seu canto-confissão, deixa clara a questão de seu nível de escolaridade
ao ostentar que não foi falquejado em bancos colegiais e que seu aprendizado se deu na
escola do mundo. Ainda que essas designações remetam a um lugar comum desgastado,
parece que na voz rasgada do troveiro ganham em inventiva e profundidade. Gildo é veraz.
Seu canto é faca amolada desfiando tentos de uma fina lonca que vai sendo trançada com
maestria pela rudeza incondicional de sua compreensão translúcida da vida
32
. Tal
entendimento perpassa uma ética e uma valoração do trabalho, um tácito reconhecimento
vocacional e o brandir de uma bandeira de luta evidente identificada com algo que concebe
como tradição
33
.
32
Em "Ensaio sobre o homem", Cassirer recorre a Goethe: "não permitais que a doutrina efeminada do moderno
traficante de beleza vos torne delicados demais para desfrutar uma rudeza significativa, para que no fim vosso
sentimento enfraquecido não seja capaz de suportar nada além da suavidade sem sentido". (GOETHE apud
CASSIRER, 2005, p. 230).
33
Segundo Houaiss, o vocábulo tradição, etimologicamente remete ao latim traditìo,ónis ação de dar, entrega,
traição; figuradamente: transmissão, tradição, ensino. É paradoxal que ensino esteja imbricado na bandeira
empunhada por Gildo de Freitas: terá um iletrado condições de aludir tais questões? O trovador deixa explícito
que a resposta é afirmativa.
74
Gildo de Freitas é um trovador. Essa afirmação é recorrente nesta reflexão. Cabe,
contudo, uma breve digressão quanto à significação deste predicativo. Numa explicação
popular e direta (situada dentro da cultura regional gaúcha), trovador é aquele que canta de
maneira improvisada. É o repentista nordestino, o payador uruguaio ou argentino ou gaúcho
34
.
Depreende-se daí que o fazer desse artista da palavra pertence ao mundo da oralidade. Como,
pois, consegue Gildo inserir-se e mover-se com desenvoltura num mundo em que a cultura
escrita é preponderante?
Apesar de suas poucas “letras”, o improvisador regionalista demonstra ser capaz de
fazer a leitura do universo ao seu redor com uma capacidade de compreensão e de elaboração
crítica de singular qualidade. Recorrendo uma vez mais às palavras cantadas temos: “pra
cantar eu trouxe vocação”. Provavelmente, Gildo tenha trazido vocação para algo além de
cantar. Sua vivência de guri campeiro, de família pobre, de ter contribuído para aguçar-lhe
os sentidos e proporcionar uma visão clara de sua condição social. E a partir desse
reconhecimento possibilitar-lhe a condição de assumir-se diante de seus pares e de seus
díspares como se fosse um arauto daquelas desigualdades.
A fixação tipográfica e fonográfica dos improvisos do cantador é que transporta Gildo
da oralidade para a cultura escrita. Não é ele que escreve, ou melhor, não é ele que produz o
ato mero da escrita. Contudo, cada palavra ou nota musical fixada é fruto de sua inventiva. É
irretorquível sua infinita capacidade de ser o autor de sua experiência. Seu relato é em
primeira pessoa, porque seu conhecimento provém do que provou. Sabe-se que o canto é uma
potenciação da fala (TATIT, 2002). E é pela canção, aqui tomada como um gênero discursivo,
que Gildo de Freitas situa-se no mundo letrado que pretensamente poderia ser-lhe opressor e
tentar silenciá-lo.
Além do reconhecimento de sua condição, o rude poeta detecta também as mazelas da
sociedade que lhe chama de grosso. Certo de que a tradição possui a resposta perfeita para o
caos da modernidade, o trovador incita a plateia com seu testemunho:
Eu aprendi a dançar nos domingos
Sentindo o cheiro do pó do galpão
34
Diz o pesquisador Paulo de Freitas Mendonça: "Pajada é a denominação de uma das formas de improviso
desenvolvidas no extremo sul da América Latina. É a cantiga regional instantânea que surge no ciclo do gado por
meio do andejo que cruza os campos em período de disputa de território entre Espanha, Portugal e as nações
aborígines.[...] O pajador contemporâneo do Rio Grande do Sul está inserido no contexto cultural dos
movimentos tradicionalista e nativista.[...] O trovador canta sua poesia oral em sextilha (ABCBDB),
acompanhado de acordeão. O pajador improvisa no estilo recitado, por meio de estrofe da décima espinela
(ABBAACCDDC), com acompanhamento de violão, por um músico de apoio, geralmente em ritmo de milonga.
In: Na ponta do verso: Poesia de improviso no Brasil. / Alexandre Pimentel e Joana Corrêa (organizadores). Rio
de Janeiro: Associação Cultual Caburé, 2008, p. 134.
75
Pedia licença, apeava do pingo
E dizia adeus assim de mão em mão
E quem conhece meu sistema antigo
Reclamem por carta se eu estou mentindo
São documentos que eu trago comigo
Porque o respeito eu acho muito lindo
No final da estrofe é evidente a presença influente da cultura escrita na sociedade a
qual Gildo se dirige. As manifestações de contrariedade, diante daquilo que ele afirma, devem
ser expressas por escrito, e ainda que a gestualidade evocada guarde algo de abstrato, no
sentido da significação de cada ato, é ela referenciada como documentos que eu trago comigo.
A canção segue demonstrando contundente crítica social:
Minha sociedade é o meu CTG
Porque lá existe dignidade
Eu não se confunde eu explico porque
Os trajes das moças não são à vontade
E se por acaso um perverso sujeito
Querer fazer usos e abusos de agora
Já entra o machismo impondo respeito
E arranca o perverso em seguida pra fora
Nessa passagem Gildo propõe uma organização social, o CTG, que seria uma espécie
de guardião dos costumes numa era de falência da moral. Sem entrar num cotejo ideológico
com as afirmações do canto (machismo parece ser algo positivo na ótica do cantor), é
perceptível que a enunciação toda provém de um centro de valores identificado. Dignidade,
recato e respeito são norteadores da conduta recomendada. E o elogio ao Centro de Tradições
continua no arremate da canção numa convocação contundente:
Ó mocidade associem com a gente
Vá no CTG e leve um documento
Vão ver de perto que dança decente
E que sociedade de bons casamentos
Vá ver a pureza vá ver a alegria
Vá ver o respeito desta sociedade
Vá ver o encanto das belas gurias
Que possam gerar uma felicidade
Por certo o mundo tradicionalista não possui o condão de transformar a fragilidade
humana numa experiência de perfeito e equilibrado convívio, mas não cabe nesta reflexão um
posicionamento sobre os acertos ou os equívocos do tradicionalismo associativo. Interessou-
me desde o início a verve afirmativa do autor dos versos em análise. Há um refrão na canção
de Gildo que é de difícil abordagem. Não vem acompanhado de um texto, portanto, o império
76
da palavra não está explicitado com sua arrasadora carga semântica. Trata-se de um simples e
ingênuo “larará” que costura os vazios entre uma e outra estrofe. Indago-me se não existe
neste espectro formal algo como um deboche, uma ironia pela qual Gildo de Freitas reafirma-
se diante daqueles que o diminuem ecoando um “blá blá blá” que poderia ser a voz da
hipocrisia social que prejulga e condena os aparentemente menos capazes por um crime que
jamais foi cometido a não ser pelas circunstâncias que mantém as elites no poder. Pode Gildo
de Freitas jamais ter aprendido formalmente a norma culta da língua materna. Diga-se algo de
sua incipiente alfabetização. Não como, contudo, não reconhecer que nada disso interferiu
de maneira decisiva para que ele não pudesse construir o legado magistral de sua obra.
Iletrado e analfabeto, talvez, mas sábio e brilhante artista da palavra musicada. Leovegildo
José de Freitas, o Gildo, poeta repentista gaúcho. O Gildo de Freitas das letras iluminadas e
inapagáveis.
Como foi dito anteriormente, tratamos aqui da canção como um gênero unívoco, ou
seja, uma unidade de sentido formada a partir do encontro entre duas linguagens distintas.
Ainda assim, pode-se dizer algo a respeito da música em Gildo de Freitas (claro que sempre
levando em conta a referida unidade). No canto do trovador, a melodia tem a função de ser
um facilitador mnemônico, um apoio métrico e rítmico para a estruturação do verso. que
ser, portanto, a melodia, de construção simples, sem evoluções que comprometam a fluência
do canto. Sua apreensão deve ser imediata, embora, diferentemente da fala, a mensagem
entregue por aquele que canta perdure. Gildo canta de forma que seus versos sejam retidos
imediatamente por seus ouvintes. Uma de suas composições de maior sucesso popular é sem
dúvida "Definição do grito", cuja melodia ensejou a criação de um estilo de trova gauchesca
largamente difundido na atualidade nas demonstrações e nos concursos realizados dentro do
universo tradicionalista o estilo Gildo de Freitas, que compõe com outros como a trova de
martelo e a pajada o conjunto das formas de improviso existentes.
77
5.2 O PODER DA PALAVRA NA RODA DO CANTO
Estabelecendo um contraponto entre o texto aparentemente “iletrado” do trovador,
apresento a seguir interpretação sobre uma canção que parece estar mais próxima da obra
composicional de Lessa por sua estrutura poética, pelo seu encadeamento rítmico-melódico e
pela concepção dos arranjos musicais. Trata-se de "Roda Canto" de autoria de Mário Barbará
e de Apparício Silva Rillo.
A interpretação que se segue tem seu foco naquilo que ainda se pode constatar, ou não,
da presença de resquícios da palavra mítica e da metáfora primordial num suporte músico-
literário da atualidade. Eis o texto de "Roda Canto”
35
.
Meu canto
Chega de longe
Vem na garupa do vento
Vem no vento vem
Da furna funda do tempo
Veio do grito da bugra
Amando o primeiro branco
Sangue, Sol,
Sêmen, Semente
Foi flete
Foi lança e laço
Foi guerra
E foi pastoreio
Foi berço
Foi cancha e campa
Foi rumo, rancho e razão
Meu canto
Chega de longe
Foi destino
E foi estrada
Estrada foi
Por onde cruzava o boi
Foi massa
Cambota e raio
Alvoradas e sol-pôr
Roda, rodado, rodando...
Fazendo das sesmarias
Trilho aberto e campo em flor
Meu canto
Chega de longe
Do pai,
Do pai de meu pai
Sangue, Sol,
35
Vencedora do troféu Calhandra de Ouro na 5º Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana em 1975.
78
Sêmen, Semente
Há, no primeiro verso, a delimitação do tema que será desenvolvido. A estrofe
inicial situa o lugar de origem do canto. De imediato se evidencia a questão temporal como
demarcatória da narração: o canto vem da furna funda do tempo. Onde fica tal caverna? Que
voz é capaz de atualizá-la? Quando ecoou tal grito de amor? Todas essas questões são
respondidas pelo próprio canto.
A canção é introduzida por um violão quase que percutido, principalmente pelas notas
mais graves do acompanhamento. Os arpejos são singelos, e o modo menor apresenta uma
atmosfera reflexiva que antecede a palavra. Está delineada semioticamente a possibilidade
investigativa que o canto de corroborar logo adiante. A vocalização das primeiras palavras
é estendida principalmente na duração das primeiras sílabas das palavras “longe” e “vento”.
Podemos pensar que é uma tal distância imemorial que amplia a primeira, e a segunda é a
atualização da anterior e por isso dura. Uma voz que volta no tempo para buscar-se e que
retorna irreversivelmente colhida por uma evidência metafórica. Estou tentado afirmar que
existe algo a estreitar nesta ligação um tanto do caráter mitológico que, como se pôde
demonstrar anteriormente, mistura-se num determinado momento com as elaborações da
linguagem. Porém, para que não haja um atilamento precipitado, sigamos ouvindo rodar o
canto.
Conclusa a primeira estrofe, as cordas tímidas da introdução irrompem como se
tambores fossem. Quatro palavras batem no couro esticado da canção: sangue, sol, sêmen,
semente. Cada uma parece evocar a onisciência perdida da palavra, e o ritmo iguala-se ao
daquele selvagem que, percutindo em troncos secos de árvores caídas, busca fazer-se ouvir e
inadvertidamente inaugura a poesia. Assim cantado, sangue é mais do que sangue, sol é mais
do que sol, e o binômio sêmen/semente ultrapassa a condição de meros elementos genéticos.
Assim alinhados, sangue, sêmen e semente parecem adquirir grandeza sublime neste
emparelhamento com Sol. É notório que os fenômenos da natureza, a existência dos astros e a
contemplação desses cenários pelo homem têm lugar preponderante na compreensão mítica e
na sua correspondente manifestação pela linguagem. O Sol, a Lua, as Estrelas, o Firmamento,
para o pensamento mítico, são divindades primordiais, pelas quais transitam os desígnios da
criação.
A aliteração e as alternâncias sonoras das vogais, que ora são nasais, ora abertas, ora
de reduzida intensidade e repetidas, concorrem para o vigor do caráter evocativo da sentença.
"Assim, com as sílabas nascem as cadências e os sons: a paixão faz falarem todos os órgãos e
79
à voz todo o seu brilho; desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum".
(ROUSSEAU, 1978, p. 186) Neste momento é possível afirmar que as inquietações do nosso
cantor, da arquipotência de sua fala, se não a são concretamente, vão-se arrebatadas no
encalço da metáfora original. Sua evocação tem algo de genuflexório e oracular. O refrão traz
indicações catárticas: quatro palavras retumbantes dispostas em quatro compassos
quaternários procurando a quadra espaço-temporal de sua significação plena. Sabe-se que
simbolicamente a grandeza quatro carrega em si o aspecto de concretude, de afirmação da
existência sensível. O quatro simboliza [...] a totalidade do criado e do revelado.
(CHEVALIER, 2002, p. 759)
A canção prossegue trançando agora elementos mais vinculados a uma linguagem
metafórica propositada que liga o canto a componentes variados constituintes da paisagem
rural. Um primeiro conjunto ligado a atividades brutais como a doma e as guerras: cavalo,
laço, lança e guerra. Num segundo momento, esse discorrer alinha elementos um tanto mais
contemplativos como pastoreio, berço, cancha e campa (há nesse quarteto uma tida ordem
cronológica que remete à vida e à morte). E a estrofe é cerrada com angústias existenciais:
rumo, rancho e razão. Esta racionalidade que o canto também representa parece dizer da
momentânea intencionalidade da metáfora. Note-se que uma correspondência descritiva no
cenário musical com a modulação tonal que serve de condução para a melodia.
um prolongamento narrativo permeado por estrada, destino e carreta, que propõe
condições de viagem e que vai desaguar num imanente simbólico irretorquível: roda, rodado,
rodando. São retomados neste momento os tambores nas alusões percussivas do violão. O
ambiente musical é novamente ritualístico e evocativo. "A roda participa da perfeição
sugerida pelo círculo, mas com uma certa valência de imperfeição, porque ela se refere ao
modo do vir a ser, da criação contínua, portanto da contingência e do perecível. Simboliza os
ciclos, os reinícios, as renovações"(CHEVALIER, 2002, p. 783). está mais uma evidência
do mito: o seu caráter recorrente. Tal recorrência é cantada num crescendo de intensidade
como se a canção tocada por este rodar fosse aos poucos não cabendo mais em si mesma. Mas
logo a harmonia desfecha um abrandamento, que assevera a circular pretensão do canto. Aqui
surge a referência à roda do tempo com se fosse o altar frente ao qual a canção profere suas
fundas orações até entregar-se a uma calma contemplação da sesmaria, trilho aberto e campo
em flor.
Quando a paisagem sonora parece haver adquirido uma aura de íntimo recolhimento,
quase roçando o silêncio, a voz debruça-se sobre si mesmo como se estivesse novamente no
ponto inicial da canção que se retoma: meu canto chega de longe. Contudo, o que irrompe
80
dessa falsa monotonia é um arranco verbal que procura o marco original da criação. Do pai,
do pai, de meu pai... A nota que sustenta a palavra pai parece pretender a duração eterna. É
quase um uivo, uma dilaceração do espírito querendo religar-se ao Pai criador. Após uma
breve suspensão, que insinua que a catarse pede vaga para uma respiração que não ofegue,
novamente a percussão ritual recorta o tecido da canção. Tudo está dito, e o que vai esvaindo
é a repetição daquelas possíveis divindades sangue, sol, sêmen, semente, enquanto roda,
rodado, rodando encaminham-se para o terreno inaudível que talvez pertença aos fundões da
eternidade.
Poderíamos nos perguntar se os autores da canção de alguma forma contemplaram tais
desdobramentos antes ou depois do ato criativo. A resposta tanto poderia ser afirmativa
quanto negativa, mas o mudaria o caráter inócuo da indagação. O importante não reside no
aspecto intencional ou no lampejo casual da criação. O que nos parece relevante é a
possibilidade residual das origens míticas ainda poder ser identificada com alguma
naturalidade nestas construções contemporâneas.
Cassirer inicia sua reflexão remetendo ao Fedro platônico no qual Sócrates afirma o
se ater às explicações mitológicas por estar mais interessado em investigar sua própria
condição: "parece-me absurdo que, enquanto continue ignorando-me, possa ocupar-me de
coisas estranhas" (CASSIRER, 2006, p. 16) Esta também é a inquietação da voz que persegue
o seu canto desde remotos imemoriais na composição de Barbará e Silva Rillo. Mesmo que,
como procurei demonstrar, existam resquícios primordiais do mito e da linguagem na
narrativa músico-literária, parece ser também evidente a preocupação existencial que norteia
as reflexões do nosso cantor.
Pode causar a princípio alguma estranheza o fato de que um filósofo neokantiano
como Ernst Cassirer, um racionalista, enverede suas inquietações filosóficas por estes
sinuosos caminhos nos quais o mito e a linguagem confundem-se e tentam elucidar-se
mutuamente. Ainda assim, parece ser possível e compreensível afirmar que a razão, com toda
a eficácia que emprestou à história do pensamento e à construção sistemática do
conhecimento humano, por vezes ainda se depara com questões que escapam de seu escopo.
Tratar de construções míticas através de método racional, por paradoxal que possa parecer, é
com certeza a única forma que temos de aprofundar conhecimento para que se encontre a
mínima resposta, que é sempre a resposta que se pode alcançar. Sabendo que o melhor dos
lugares é o lugar possível, a humanidade mediada por tal condição constrói seu caminho.
81
5.3 A ANUNCIAÇÃO DO CANTO: UM PROBLEMA ENUNCIATIVO
no gênero canção popular um movimento enunciativo que transforma a voz que
fala em voz que canta. Tatit cita Mário de Andrade:
Como o arco que vibra tanto para lançar longe a flecha como para lançar perto o
som: a voz humana tanto vibra para lançar perto a palavra como para lançar longe o
som musical. E quando a palavra falada quer atingir longe, no grito, no apelo e na
declamação, ela se aproxima caracteristicamente do canto e vai deixando aos
poucos de ser instrumento oral para se tornar instrumento musical.
Tal movimento enunciativo, ainda que esteja vinculado a essa migração semântica
entre diferentes suportes de linguagem (musical e verbal), pode ser investigada sob a ótica da
enunciação proposta por Benveniste (1988). Segundo essa compreensão, existem posições
determinadas num ato enunciativo que são ocupadas de acordo com a fluência da enunciação.
Basicamente existe sempre um eu que estabelece o discurso em relação a um tu. Essas
posições alternam-se durante a construção discursiva, de modo que sempre haverá um sujeito
enunciando de um determinado lugar social e interagindo socialmente segundo mediações
ideológicas manifestas.
Tomemos por base o texto da canção "Enlutado" de autoria de Nelson Pessano de
Souza e Luiz Sérgio Metz
36
:
Eu, sovada boleadeira,
Tranço pernas assoviando
Costuro com fios lonqueados
As frestas dos alambrados
Por onde foge a existência
Tenho por lamparina
Meio pavio piscando
Na madrugada boieira
Noite fria lá vou eu pelos rincões,
Gira o rebolo de penas
Dos noturnos corujões,
Quero-quero campaneia,
Suas asas no vento escuto,
Ele custa a me avistar
Pois andou sempre de luto.
Que me restou
Foi a faca, o aço puro,
Língua negra na cintura
Olhos acesos no escuro.
Quem por mim quiser chamar,
36
Canção gravada por Luiz Carlos Borges no LP Tropa de Osso (1980).
82
Não force sua voz nos ventos,
Venho mangueando a desgraça,
E a fúria prendi nos tentos.
A questão da subjetividade da enunciação está declarada já no primeiro verso e remete
para uma tipificação humana singular e identificável. A pessoa a quem se destina a mensagem
também é possivelmente encontrada num grupo determinado que reconheça nas construções
lexicais empregadas a natureza e a procedência deste eu-lírico que se anuncia como sovada
boleadeira.
Benveniste afirma que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui
como sujeito; porque a linguagem fundamenta, na realidade, na sua realidade, que é a do
ser, o conceito de “ego”. Sendo assim, aquele que se anuncia cantando só pode reconhecer-se
porque se diz. É este movimento enunciativo de quem afirma eu que torna explícito o sujeito
que se revela para o tu possível e para si mesmo é de nítido perceber a existência de um
“eu” e um “tu” em intermitente diálogo interno nas instâncias constituintes do "eu". É dizendo
quem é que o enunciador assume sua subjetividade. Nesta linha, este “eu” se reconhece
através do estabelecimento de um contraste revelador em relação a um outro projetado ou
concreto. Ainda, esse eu” diz de alguém, do seu entorno, de saberes e fazeres que o
condicionam e o identificam. Este terceiro lugar da enunciação, ele, Benveniste relaciona
como sendo uma não pessoa. Esse “ele” participa do discurso pela referência pronunciada
pelo “eu” ou pelo “tu”. Contudo, podemos relativizar um tanto essa mera participação, uma
vez que esse “ele” condiciona o ato enunciativo na medida em que sua referência indica as
vicissitudes reveladoras do “eu” e do “tu” que possuem propriedades intercambiantes e dão
fluência ao discurso. O “ele” não assume voz, mas demarca as vozes de forma decisiva. No
caso da canção em análise, nem boleadeira, nem quero-quero, nem qualquer outro elemento
alegórico ou paisagístico intervêm explicitamente na enunciação, mas ali estão,
geograficamente postos, para que as compreensões e as tensões do texto sejam reveladas e
resolvidas pelas duas pessoas que efetivamente se enunciam. Ainda que não exista um “tu”
manifesto na canção, penso que a natural presença de um ouvinte ideal possa assumir tal
lacuna.
As escolhas lexicais (no nosso caso tais escolhas também estão vinculadas àquelas de
natureza musical: referências tonais, campos harmônicos, escalas, etc.) colaboram para a
identificação do lugar social e, portanto, da natureza ideológica, da enunciação. Para Bakhtin
(2006), a relação interna do discurso é mediada e condicionada pela interação. Os
constituintes da enunciação são pressionados constantemente por essa inerente interferência
83
da ideologia e das relações sociais. E o elemento sígnico, a unidade que comporta a instância
basilar dessa condição, é a palavra. Parece-me considerável, por extensão, compreender que a
palavra cantada também pode ser inserida nessa condição, mesmo que o encontro das
linguagens (verbal e musical) suscite permeações de caráter semiótico pelas quais não
enveredaremos para que não haja afastamento do objeto a ser aqui analisado.
Voltando à nossa canção, parece evidente que o sujeito enunciador profere a partir de
uma circunstância existencial que o delimita. O termo sovada boleadeira carrega, do ponto de
vista semântico, algo que o aproxima da própria linguagem. Senão, vejamos: sovado é algo
muito manuseado, algo que está em constância de uso e por isso, apesar da aparência
(enganosa) rota, de maneira alguma perdeu sua imperiosa eficácia; boleadeira é um primitivo
artefato de captura animal, comum na lida rural (e brutal) dos primeiros tempos de
organização social do Rio Grande do Sul, quando da formação dos primeiros rebanhos e
tropilhas. Metaforicamente, podemos afirmar que a língua em uso, sobre a qual incidem as
preocupações de Bakhtin e Benveniste, ainda que não seja um instrumento, pois, como afirma
o francês, não é construto humano, senão a própria condição de nossa existência social,
guarda semelhança funcional com a alegoria da canção por sua capacidade de arremesso, de
voo, de captura e de sua incondicional possibilidade de uso.
Como vimos, toda a enunciação é possível por seu caráter subjetivo, pelo
intercâmbio entre o "eu" e o "tu" que afirmam essa subjetividade e pelas condicionantes
inerentes à terceira pessoa, 'ele", que determina os objetos referenciais expostos no discurso.
Da subjetividade arrazoada por Benveniste também se ocupa Bakhtin. O russo, no entanto,
percebe uma dicotomia entre o psíquico e o ideológico: "o signo ideológico tem vida na
medida em que ele se realiza no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do
suporte ideológico"(BAKHTIN, 2006, p. 65).
Para não perdermos de vista o nosso exemplo: na voz que canta existem dois
momentos possíveis de serem percebidos como constituintes do universo enunciativo da
canção. O primeiro se encontra na inquietação existencial interior que leva o indivíduo a
elaborar a reflexão que, quando do seu proferimento, transforma a voz interior em voz
cantante e, portanto audível para outros. A exteriorização dessa voz faz migrar, na concepção
bakhtiniana, o signo interior para a condição de signo ideológico. Contudo, devemos salientar
que tais territórios não carregam em si pureza integral. Há entre eles irredutíveis intersecções.
O tom confessional do canto admite uma condição humana semelhante à sovada
boleadeira que no seu périplo existencial, no girar de suas três pernas de couro e seus pés de
pedras redondas, pretende costurar as frestas das cercas por onde sempre haverá de esvair-se a
84
existência. uma lamparina a meio pavio, uma madrugada, passarões noturnos e quero-
queros por testemunhas que, apesar de seus evidentes mutismos, dialogam e dão sentido aos
pensamentos do cantor. Luto e eternidade tensionam a reflexão. Não conclusão, a canção
finda de forma suspensiva como num aponte ao caráter insolúvel de tais proposições
antagônicas. Nas cores da ave símbolo do Rio Grande do Sul, existe gradual matiz que aponta
para o enlutamento, esse permanente elemento que nos permeia a vida e nos conduz
inexoravelmente ao fim.
A melodia do canto desenvolve-se em dois momentos sobre os quais é necessário nos
determos, ainda que rapidamente. Cabe, no entanto, antes de enveredarmos pela seara
musical, dizer algo que situe diferença entre a enunciação linguística, proposta por um falante
qualquer, e a perspectiva literária condizente à manifestação de um eu-lírico. Nessa segunda
situação, não se estabelece a possibilidade da interlocução. Uma resposta, uma impressão
inferida de leitura poética ou de audição cancionista, para ficarmos apenas no aspecto que
interessa a esta análise, não conduz a um diálogo concreto com aquele ser abstrato que é a voz
do poema ou da canção. Mas, voltemos ao "Enlutado".
Dissemos que, do ponto de vista melódico, existem dois momentos perceptíveis. O
primeiro, composto sobre notas longas e acompanhamento vagaroso, trata da apresentação do
sujeito cantante, o eu-lírico da canção. Esse ambiente sonoro é apropriado à natureza quase
que prostrada da apresentação daquele que tenta cerzir as frestas que dão escape à existência.
A cerzidura diz da impossibilidade de se por estancamento ao jorro vital que o tempo esgota.
No segundo momento um arroubo rítmico que parece fazer analogia ao bater de
asas e à prontidão quase épica de quem está posto em vigia. Aquele que se apresentou como a
perceber a vida que foge, agora diz como isso se lhe ocorre: noite fria lá vou eu pelos rincões.
Por andar no mundo é que se vai embora do mundo. Como o quero-quero da canção parece
que nascemos todos indisfarçavelmente enlutados. O rebolo da vida girando, enquanto nos
amola, gradualmente nos faz perder a capacidade do corte: como uma sovada boleadeira
trançando pernas no ar de um tempo no qual já não há mais nada a bolear.
85
5.4 DOIS GURIS ENTRE VOLTAR E NÃO PARTIR
Para ampliar, ainda que sucintamente, o que está sendo demonstrado, proponho
reflexão sobre outras duas canções regionais, por sua condição aparentemente antitética, mas
ao mesmo tempo congruente, como há que se ver adiante, de grande reconhecimento popular:
Guri
37
, de autoria de Júlio Machado da Silva Filho e de João Batista Machado, e Rio de
Infância
38
, autoria de Apparício Silva Rillo. De imediato apresento os textos:
GURI
Das roupas velhas do pai queria que a mãe fizesse
Uma mala de garupa e uma bombacha e me desse
Queria boinas e alpargatas e um cachorro companheiro
Pra me ajudar a botar as vacas no meu petiço sogueiro
Hei de ter uma tabuada e o meu livro "Queres Ler”.
Vou aprender a fazer contas e algum bilhete escrever
Pra que a filha do seu Bento saiba que ela é meu bem querer
E se não for por escrito eu não me animo a dizer
Quero gaita de oito baixos pra ver o ronco que sai
Botas feitio do Alegrete e esporas do Ibirocai
Lenço vermelho e guaiaca compradas lá no Uruguai
Pra que digam quando eu passe sai igualzito ao pai
E se Deus não achar muito tanta coisa que eu pedi
Não deixe que eu me separe deste rancho onde nasci
Nem me desperte tão cedo do meu sonho de guri
E de lambuja permita que eu nunca saia daqui
RIO DE INFÂNCIA
Minha mãe foi lavadeira
E meu pai foi pescador
Eu cresci ao lado deles
Nas barrancas do Uruguai
Vendo as águas caminhando
Ano vem e ano vai
Um dia fugi com elas
Cansado de ser guri
Numa balsa rio a fora
Fui embora e me perdi
Velho rio de minha infância
Temos destinos iguais
Tuas águas e meus sonhos
Passando não voltam mais
37
Canção vencedora da 1Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, 1983.
38
OS ANGUERAS - LP Cantos de pampa e de rio, 1975.
86
Como é fácil ir embora
Como é difícil voltar
Quero ser guri de novo
Não consigo me encontrar
Aparentemente, os sujeitos que se enunciam nas duas canções proferem de universos
distintos: uma criança que não quer sair do seu mundo da infância e um adulto que aspira
voltar ao seu lugar infantil. Entre o não ir embora e o retorno, algumas constatações, outras
aproximações e, certamente, distâncias compõem a senda narrativa que é orientada por
elementos simbólicos perceptíveis. Parece possível aferir que um processo de identificação
em ambas as afirmações existenciais em análise. Outra constatação evidente é a presença do
terno edípico como primeira referência, como algo que determina o desenrolar discursivo.
Duas passagens instauram o sujeito cantor: na primeira, o indivíduo manifesta o desejo de que
a mãe lhe faça roupas novas a partir das velhas vestes paternas; na segunda, a referência que
localiza o eu-lírico é minha mãe foi lavadeira e o meu pai foi pescador. É nítida a
anterioridade materna nestas relações familiares.
Na canção Guri, a figura paterna é configurada pela presença da mãe, como se a essa
coubesse a autorização para tal apresentação. Os elementos simbólicos presentes pertencem
ao mundo masculino, mas é a figura materna, por sua relação paterna anterior e individual,
quem os estabelece e quem os apresenta. Tais objetos sígnicos fazem parte de um universo
singular e são deflagradores de todo o processo identificatório que os versos da canção
pretendem abarcar. Esse fenômeno "identificação é o processo psicológico pelo qual um
sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou
parcialmente, segundo o modelo desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por
uma série de identificações" (LAPLANCHE, 1992, p 226).
Um menino, talvez com seus sete ou oito anos (pensa em ir para a escola aprender a
escrever e ler), pede à mãe que das roupas velhas do pai lhe faça roupas novas. Vemos que
algo do pai, mesmo velho, se impõe que permaneça no menino, de outra forma renovado. É
sua roupa, sua pele, aquilo que lhe contorno, algo que permanece o mesmo da geração
anterior, mas que no menino ganha outra vida. Algo que a um tempo os iguale na
diferença.
Com a mesma-e-outra vestimenta, esse menino sai para o mundo social, indo buscar
em seguida a instituição dos saberes. É preciso ler os signos sociais que se mostram a ele.
Também ele necessita estar evidente nesse mesmo contingente social, dizendo de que lugar
provém, pois nas roupas que usa estão as roupas do pai e, portanto, sua história. É também
87
preciso aprender por onde deixar suas marcas nesse social, aprender a es(ins)crever-se no
mundo. E "se não for por escrito, eu não me animo a dizer..." Um leve movimento, e a canção
nos diz da escrita de um poeta. Um efeito se produz aí: aquele que vem escrevendo sobre um
menino e seus desejos (os do menino-poeta) marca a certa altura que não saberia fazê-lo de
outro modo que não o da escrita numa sociedade letrada é nítido o empoderamento da
escrita sobre a oralidade. Assim este homem se fez poeta. A poesia é sua saída para marcar e
ser marcado pelos efeitos da escritura, naquilo que lhe subjetiva.
Note-se que a permanência da figura paterna passa por um processo destrutivo. Ainda
que as roupas do pai sejam velhas talvez alegoricamente descartáveis é justamente essa
condição que possibilita que delas sejam feitas novas roupas para que o menino possa
individuar-se assumindo sua subjetividade perante o mundo social que o cerca e do qual não
pretende sair. Já fui tentado a pensar neste menino como uma figura pateticamente idealizada
por um pai (poeta?) reacionário que sonha para seu filho uma vida sem desafios, sem
novidades, bucolicamente previsível. A expressão saiu igualzito ao pai pode levar a esse
entendimento, contudo a questão parece não se esgotar em tal certeza. Certezas não raras
vezes nos levam a equívocos.
Winnicott (1975), quando trata de relacionamentos por identificações, discorre sobre a
necessidade de destruição do objeto pelo sujeito para que o sujeito consiga relacionar-se com
o objeto. O destruído sobrevive e o destruidor pode então usá-lo. Assim, a destruição do pai
na canção se dá pela reinvenção da sua indumentária. E é instigante a constatação da metáfora
criada pelos novos objetos que o menino deseja que a mãe confeccione: uma bombacha e uma
mala de garupa. Vestir a bombacha que de alguma forma foi do pai é tomar o seu lugar
(destruir), ainda que ela já não seja a mesma que o pai usava. Mala de garupa é um objeto
para transportar coisas. Algo que se usa para fazer travessias. Neste sentido a alegoria talvez
indique que o menino necessita levar consigo o pai, embora seja imperioso destruí-lo. Sair
igualzito ao pai é assim uma forma de sê-lo e de ser um outro. E a diferenciação instaura um
novo indivíduo, uma subjetividade.
Os outros elementos alegóricos que constam na narrativa cancionista apontam para
uma geografia psicológica, na qual a autorização dada aos objetos de uso cotidiano é feita
pela alusão ao lugar de suas origens. Essa iconicidade parece também apontar para uma
permanência cultural evidente. E talvez por isso mesmo o guri manifeste o desejo de não
partir. É aquela cultura que o referencia, aquele pai que o identifica.
O outro tema, "Canção de rio", ainda que a personagem central afirme sua inexorável
partida, também aponta para um mundo social, para uma cultura da qual aquele que cedo foi
88
embora não consegue dissociar-se. A presença de um curso d’água constante, de onde o pai e
a mãe retiram o sustento familiar, marca decisivamente a vida do “guri ribeirinho”.
não é mais uma criança que enuncia desde a infância e sim um adulto que constata
o quanto dele mesmo ficou preso às barrancas do rio que lhe levou embora. As referências
familiares são sutis, quase imperceptíveis. Parecem apenas postas no discurso para conferir
verossimilhança ao personagem viajante: foi-se pelo rio aquele cuja mãe era lavadeira, e o
pai, pescador.
O grego Heráclito afirma sabiamente que nunca é o mesmo rio a passar por aquele que
o adentra. Esta contínua transformação dá-se também conosco pelas situações todas que
encontramos vida a fora. Contudo, por mais que nos distanciemos de uma origem qualquer,
parece que continuamos a carregar algo daqueles inícios ou daquelas páginas que vamos
escrevendo e arrancando de nós mesmos. Reencontrar o seu guri é o que pretende aquele que
o rio levou embora. Não consigo me encontrar: essa é a conclusão da voz que canta. Assim
como o guri do campo, o ribeirinho que saiu pelo mundo busca sua referência, e é o seu
mundo social, a sua cultura (que foi deixada para trás) que pode dar-lhe a resposta. Tudo
aponta para um processo de múltiplas identificações que vão nos (des)construindo, nos
conduzindo e nos transformando.
Freud, quando fala de sentimento oceânico (1978), parece ter sempre uma boa palavra
para esta análise "A ‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa
como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra
maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece ameaçá-lo a partir do mundo externo".
Mesmo que não haja tom confessional que aponte para o religioso em nenhuma das
narrativas cantadas, é nítido que existe uma necessidade de ligação cósmica chamamos
atenção novamente para a presença ou para resquícios do pensamento mítico nessas
construções a partir de um lugar identificado nas angústias dos dois guris. O campo que
exerce seu magnetismo atrativo e o rio, com sua força de afastamento, conduzem a alegoria de
dois homens que estão perdidos numa busca que é de todos: o encontro consigo mesmo.
Campo e rio em um certo sentido são forças propulsoras ou freantes do périplo humano.
Árdua tarefa, cotidiano embate. Mínimas respostas: existem campos imensos e rios que
jamais cessarão jornada nas vidas humanas que são porque se procuram incessantemente.
89
6. CONCLUSÃO
Pensando nestas ginas como se fossem um rio, imagino que se agora tentasse voltar
a revê-las, para novamente experimentar o movimento de suas águas, como Heráclito, me
depararia com novos cursos ainda não tocados, e a viagem, mesmo que conhecida, seria
totalmente díspar dessa que acabamos de empreender através das canções de Barbosa Lessa e
alguns de seus pares do universo regionalista gaúcho. Pelos ditames da investigação
científica, necessário é manter-se distância do objeto investigado para melhor apreendê-lo em
suas idiossincrasias. Contudo, para que se faça um recorte que seja abarcável e esteja apto a
receber uma observação atenta, deve-se ter com ele alguma familiaridade, deve-se, portanto,
ser-lhe próximo. Como, pois, nos aproximarmos sem deixar de manter a devida distância
daquilo que pretendemos estudar? Essa deve ser, por certo, a grande barreira a ser transposta
por aquele que pretenda mergulhar em águas análogas. E assim foi: prendi a respiração e
mergulhei.
Naturalmente, aproximar-se de algo é conferir-lhe importância, é sentir-se atraído, é,
de alguma forma, intuir que exista algo além daquilo que se mostra à superfície imediata da
apreensão sensorial. Esse movimento liga-se à necessidade de compreensão dos fenômenos
que ronda de forma inexorável a natureza humana. Ainda que para cada coisa, para cada olhar
sobre a coisa sejam infindas as possibilidades de análise e sempre múltiplas e parciais as
conclusões que possam ser obtidas, cabe salientar que se pode sempre demonstrar aquilo que
nos foi possível (in)concluir. E diga-se: inconcludência não remete obrigatoriamente ao não se
alcançar conclusão nenhuma, mas sim apontar para a própria natureza dos fenômenos que nos
cercam no mais das vezes de forma infinita, ou cíclica, ou espiralada. Ou ainda circular ou
esférica como nas ocorrências míticas. O que aqui expomos, pois, de forma conclusa ou não,
parece-nos, ainda que minimamente, demonstrável. Passemos então a retomar alguns pontos
que podem evidenciar o caráter elucidativo de tal demonstração.
A canção popular de inspiração rural do Rio Grande do Sul, como as canções
populares de maneira mais abrangente, constitui-se em vasto material no qual se podem
empreender estudos que possibilitem dar conta das vicissitudes formadoras da cultura à qual
pertencem, através das possíveis inquietações, talvez coletivas, que se assomam neste
indivíduo-autor-cantador aqui localizado como gaúcho. Seus percalços, seus arroubos, suas
conquistas, seu cotidiano, tudo está, parece, contemplado nas letras e melodias cantadas que
tivemos a oportunidade de apreciar. Poder-se-ia dizer algo sobre a esgotabilidade do universo
contemplado sem dúvida. Mas, se podemos admitir que dialeticamente as partes concorrem
90
para a constituição do todo, algo possivelmente estas canções tem a nos dizer sobre o grande
cenário a que pertencem.
Podemos aproximá-las de acordo com algumas características que o acesso a
recorrências temáticas. Em "Negrinho do Pastoreio", "Feitiço Índio", "Quando sopra o
Minuano" e "Roda Canto", a questão da transcendência e da religiosidade está presente quase
como deflagrador da construção poético-musical. Mesmo que possuam enredos distintos,
caminhos melódicos díspares, campos harmônicos, talvez, inconciliáveis, o eu-lírico que
assume cada uma das vozes que canta parece estar irremediavelmente tocado por dramas
próprios de tentativas de compreensão existencial. Como bem o disse o escritor alemão
(MANN, 1947, p. 13), quando fala da nossa essência enigmática, toda a atividade humana
está sempre à procura do condão que descortina a natureza íntima do homem.
Tais canções perscrutam o insondável. Aquilo que de divino e de diabólico no
humano. Parece-me que a condição gentílica, ou seja, o lugar de origem desse homem,
quando a dimensão das interrogações é dessa natureza, histórico-geográfica, não consegue
irradiar-se de maior significância. No canto que chega de longe, na flama da vela da tradição,
no voo do vento gelado que abre corações, na evocação de deuses criadores e de seres
poderosos, na verdade, o que salta aos ouvidos, pelo menos aos nossos e neste ínfimo
momento, é aquilo que a humanidade vem procurando desde remotos imemoriais: a si mesmo.
Poder-se-ia encontrar, e aqui vai apenas uma desconfiança, construções próximas na maioria
das culturas cujas identidades se pudesse localizar.
A avareza do estancieiro é lindeira à dos vendilhões do templo no episódio bíblico. A
purgação do negrinho sobre o formigueiro fervente emparelha-se com o crucial caminho de
Jesus ao encontro da morte e da ressurreição. Guardadas, é claro, as devidas proporções dos
eventos históricos ou lendários e seus impactos sobre a história da humanidade. Vemos, pois,
que não uma prerrogativa de gauchidade importante. Encontramo-la como composição de
cenário para que se desenrole uma teatralidade em letra e música de fôlego superior. Todos os
que cantam são gaúchos, mesmo que alguns não o sejam. Muitos fazem questão de afirmar tal
condição, mas a inquietação que os toma não é meramente essa de reconhecer-se como tal, é
mais: é angústia infinita de não saber com precisão quem verdadeiramente se é. Reconhecer-
se gaúcho, portanto, é mais uma peça que engendra o jogo no qual uma pergunta é mais uma
ponte para a próxima do que o descortino da resposta última. Nesse caso, e quem sabe apenas
nesse, não é por ser gaúcho que se canta assim, o que nos permite esta voz é a mesma
condição, como ensinava Rousseau, aquela que fez a palavra – primordial e musical
constituir nossa natureza intrínseca.
91
Em "Negrinho do Pastoreio" e "Feitiço Índio" a divindade é evocada. A prece é
elevada diretamente a Tupã, ou a Nossa Senhora, protetora do Negrinho. A religiosidade,
nitidamente posta no texto cancionista, mostra-se como o caminho da salvação. Esse se salvar
pode não tratar da grande esperança humana que pretende dar sentido à existência, mas
podemos aceitá-lo como sendo um pequeno salvamento que conduz ao todo. E talvez o que se
persiga cotidianamente, seja pelas canções, seja pelos atos e seus arrependimentos e suas
afirmações, integre um arcabouço de ínfimas salvações que nos cumulam de preparo para a
grande redenção, se é realmente plausível o reconhecimento desta. Segundo essa consciência,
o homem está para sempre perdido e apenas através da divindade será possível se encontrar o
mapa que leva ao ponto existencial onde a alma humana haverá de religar-se ao divino.
De outra forma, ainda que resquícios do pensamento tico estejam presentes, em
"Roda Canto" e "Quando sopra o Minuano", o evocável, o talvez divinizado, agora é um
fenômeno da natureza. E me ocorre uma analogia no nimo curiosa como acontece na
canção do norte-americano Bob Dylan
39
: espera-se achar a resposta viajando na voz do vento.
Por certo, não se trata do mesmo vento aquele da canção do norte não está nomeado e é
provável que por os gelos deste nosso minuano até nem pareçam tão gelados. Contudo,
pode-se fazer ligação entre a proferição dos eus-líricos cantantes: um encantamento pelo
fenômeno a ponto de conferir-lhe a capacidade de guardião ou de transportador de alguma
resposta. Na canção em idioma inglês, a resposta está vindo no vento. Já no canto que nos
oferece Lessa, um convite para voar com o Minuano, pois nele se reúnem gerações, e as
velhas tradições dão o rumo do futuro. Silva Rillo e Mário Barbará nos contam que seu canto
chega de longe, vem na garupa do vento, da furna funda do tempo. Na jornada que nos leva
do passado ao futuro parece haver, como no canto que ouvimos, resposta fora do homem.
Um fora, entretanto, em tudo relativizado, pois aquela referida essência enigmática parece
ser capaz de colocar fora o que vai dentro e inserir internamente o que nos é exterior.
Estas angústias alinham-se aos sentimentos que movem o "Enlutado", aquele que,
como ouvimos, apresentou-se como sovada boleadeira, e como se disse tal sovado parece
aludir a além de um esgotamento físico um cansaço do espírito, levado a efeito pelas
incongruências as quais esse corpo e essa alma vão submetidos. A existência foge: este é o
nosso intransponível desmazelo. Como nestas canções, talvez, nos reste meio pavio
piscando, uma velinha queimando aquecendo e as asas de um vento gelado para que possamos
suportar e tentar compreender o tempo que nos consome.
39
Referência à canção Blowing in the wind.
92
Enquanto eu ia me detendo nas canções, cheguei a lamentar um par de vezes sobre a
ineficiência deste suporte sobre o qual lanço estas impressões. Como o poeta exclamava-se de
não ter podido traficar para o presente seu passado roubado na algibeira, ainda me ronda essa
fragilidade que persegue a análise: não poder o papel transportar, além das palavras, toda a
sonoridade pela qual empreendi rota de investigação. Não sendo isso realizável, gostaria que
aquilo que ora escrevo pudesse pelo menos servir como roteiro para uma audição possível,
que obviamente aqui não cabe a tola pretensão de um aponte definitivo. Este texto tomado
como guia poderia então se capacitar ao estabelecimento de diálogo entre o que eu ouvi, e
imprimi, com tantos quantos pudessem também ouvir, inferir e redaguir impressões sobre esse
universo poético e musical. Se tal puder ser concretizado, poderei dizer que valeu o
empreendimento.
Quando iniciamos esta jornada, dissemos que um dos objetivos precípuos da
investigação seria buscar, na medida do possível, o encontro com o processo de construção
identitária do gaúcho dentro do universo cancionista através do recorte proposto. Onde está,
pois, essa figura, é a indagação que agora se faz pertinente para a continuação dessas
considerações.
Retomemos a saga do "Negrinho do Pastoreio". Simões Lopes Neto, quando procede à
narrativa das lendas gaúchas, o faz dentro de uma cronologia exposta com didática eficiente.
No fundo, e além da sua magistralidade literária, o que se a conhecer é justamente a
formação do Rio Grande do Sul. Há um gênesis pertencente à cultura indígena no relato sobre
A M’boitatá; num segundo momento, passa ao encontro do branco europeu com esses índios
em A salamanca do jarau; e fechando a tríade o início de uma organização social fundada em
estamentos distintos em "O negrinho do pastoreio". Nas canções que vimos, ainda que
diretamente sobre a narrativa feita pelo vaqueano Blau Nunes não haja alguma incidência
como no caso da história do santão e da princesa moura , os elementos alegóricos que
compõe as lendas são análogos aos cantados. É perceptível, pois, que Lessa tenha se inspirado
nas narrativas simonianas, e isto pode estar prenhe de significados. Os motes que deram à luz
as canções não surgiram de modo aleatório. Foram destacados de uma literatura
identificada com aquele regionalismo sobre o qual o autor, com sua verve propositalmente
posta a serviço do resgate das tradições do povo gaúcho, acreditava ser necessária a criação
cancionista. Digo necessária, porque como foi afirmado pelo próprio Lessa, não havia canções
para se cantar. Para preencher tal lacuna elas foram sendo compostas. E ocupar esse vazio era
dar voz reconhecível ao gaúcho. E para isso era necessária a conformação de um arquétipo
93
adequado. Chega-se a esse construto um tanto pela história verificável e outro tanto pelas
inesgotáveis cidadelas do imaginário que compõem os tesouros culturais de um povo.
Em suas obras cancionistas, Barbosa Lessa pretende situar o gaúcho cantando. E situá-
lo significa conferir-lhe dicção reconhecível. Significa dotar a expressão cantada de tal
singularidade que a voz e a sonoridade total demanadas possam dar-se ao conhecimento
pelo estreito e inarredável vínculo com aquela cultura tradicional, cuja atualização pretende
ser a fonte deflagradora das canções. Contudo, o cancionista parece conseguir suplantar seus
propósitos iniciais, construindo uma obra de grande valor artístico. Como disse, algumas
canções merecem figurar entre as melhores páginas do gênero no país.
Quem acende vela ao negrinho, quem observa o comportamento da ave que é um
verbo repetido, quem bota os cavalos a girar sobre as vagens de feijão, quem pretende ter um
cesto para misturar a bicharada, quem conduz carreta e bois e canta e é cantado, quem chama
a divindade índia e quem exorta a um levante rumo às tradições que vão no vento: o gaúcho.
A abstração modelar de uma cultura e a sua voz. Sua, portanto, dicção inconfundível. E diga-
se que o Conjunto Farroupilha, ainda que tenha acolhido em seu repertório canções dos mais
distintos gêneros, correu mundo na qualidade de arauto desse cancioneiro. E quando se afirma
que correu mundo não se está cometendo exagero algum, posto que o grupo, no auge de sua
trajetória, apresentou-se em todos os continentes do globo. Permanece, contudo, a indagação:
dito que aquele que canta é o gaúcho, deve-se, pois, dizer quem ele é. Eis então mais um poço
de fundura talvez inexpugnável. Mas que até aqui viemos, nos é impossível não deixar que
a roldana leve o nosso balde bocal adentro até onde o comprimento da nossa corda puder
atingir.
O trovador Gildo de Freitas apresenta sua gauchidade, brandindo seu canto metálico
como bandeira, consentindo que lhe chamam de grosso. E ele até reconhece a procedência
dessa condição. Poder-se-ia emparelhar assim que esse grosso constrói sinonímia com
gaúcho. E disso, depreenderíamos que a questão estaria resolvida: gaúcho significa pessoa
desprovida de cultura, ou ainda, aquele que, por sua origem no meio rural, se move com
dificuldade ainda que o próprio Gildo ironize, como vimos, essa circulação social
embaraçosa num mundo que tende a uma crescente e contínua urbanidade. Se tomássemos a
obra do trovador, e de outros que o seguem, como também seguem a Teixeirinha, talvez as
nossas rondas investigativas tivessem que aqui serem dadas por concluídas. Esta seria, pois, a
designação elucidativa e concludente da condição antropológica “ser gaúcho”. Contudo, uma
rápida aproximação entre as produções cancionistas pelas quais estamos empreendendo esta
viagem aponta-nos para algo muito além de tal superfície: novamente a fundura do poço.
94
Tentemos, então, agrupar, por algumas características observáveis, os autores e
confrontá-los à guisa de desvencilharmo-nos dessas abordagens tangenciais. De imediato,
parece haver proximidade demonstrável nas produções de Barbosa Lessa "Negrinho do
Pastoreio", "Quero-quero", "Feitiço Índio" e "Quando sopra o Minuano" –, Silva Rillo e
Mário Barbará "Roda Canto" –, Sérgio Metz e Nelson Pessano "Enlutado" –, que
chamaremos de primeiro grupo, em contraste com Lessa "Entrevero no jacá", "Cantiga de
eira, Carreteiro" –, Gildo "Eu reconheço que sou grosso" –, Rillo "Rio de infância" –, e
Júlio e João Machado – "Guri", de agora em diante nomeado segundo grupo.
No primeiro grupo é nítido um tratamento de linguagem que tende a alguma
sofisticação, quer pelo engendramento litero-musical proposto, quer pelo conteúdo reflexivo
que inaugura o ato composicional. Ainda assim, parece que não estamos atingindo águas,
senão essas mais tépidas e confortantes que ficam à tona do espelho líquido. Mais um fôlego e
mais um impulso ao fundo, pois, é o que se impõe.
Aquele que canta, neste primeiro grupo de canções, denota possuir alguma erudição
quando aproxima seu canto da literatura, constrói metáforas, transita suas melodias por
campos harmônicos não-óbvios, percorre a escala com um domínio um tanto além do caráter
espontâneo frequentemente encontrado em contextos populares de produção artística.
Configura-se, portanto, um gaúcho diferenciado daquele que canta no segundo grupo. Nesse,
tomando-se o grosso e os dois guris, parece ficar evidente que as linguagens verbais e
musicais tendem a uma comunicação mais direta, sem “enfeites”. Estão, estas canções, dando
voz a um gaúcho mais simples, mais direto, que se reconhece a partir de uma relação terrena
muito bem definida. Contudo, devemos sinalizar para o perigo de delineá-lo este gaúcho
como alguém cuja inteligência tangencie algo de obnubilação ou falta de capacidade de
elaboração dos conceitos, ainda que mínimos, que constituem sua sabedoria.
Estamos tentados neste momento a identificar que são dois, portanto, esses que
cantam. Seguramente, se não fosse isso alongar por demais este estudo, poderíamos nos
deparar com ainda muito mais facetas, mais figuras que transitam suas vozes por este
cancioneiro. Sendo assim, parece também lícito inferir que é justamente por tal multiplicidade
que podemos chegar aos contornos de um gaúcho identificável. Tratamos de uma cultura, não
de um indivíduo. Cultura é um processo de construção humana. E coletiva, portanto. Como
cantou um compositor popular: ninguém é um só. Um arquétipo é um paradigma, um tipo, e
aqui consideramos um tipo social que se faz resultado pela soma das características mais ou
menos identificáveis de uma comunidade localizada.
95
Como se pode perceber, no próprio Barbosa Lessa, através das canções vistas,
coabitam estas duas facetas gaúchas. Recorrendo à surrada expressão popular: dois lados da
mesma moeda. Ainda assim, cumpre afirmar, em se tratando do homem e da sua
circunstância, múltiplos serão sempre estes lados. Inesgotáveis porque se retroalimentam e
proliferam, porque estão eternamente a confrontar-se. Os dois gaúchos que são o mesmo
cantam pelo modo que veem, que se veem e que são vistos. A paisagem que os cerca é
idêntica. Os medos, as ânsias, as pedras no meio do caminho, carretas, bois, amores,
boleadeiras, velas, vento, pássaro, tradição, tudo faz parte do microcosmo que se configura
como casa – o pago. O lugar que se quer rever, do qual não se quer partir e partindo se deseja
voltar. O que muda é o olhar, o que se move é a distinta capacidade de percepção, não cabe
juízo de valor algum sobre tal diferenciação. Esse sentimento, esse nativismo, é constituinte
das manifestações regionalistas. As culturas que buscam afirmar suas características
regionais, segundo o enfoque dos mais variados estudiosos das questões identitárias, alinham-
se numa posição de contrariedade à globalização cultural. E se assim adjetivo é porque mais
cotidianamente recebemos como processos de globalização apenas aqueles de natureza
econômica ou tecnológica. "O ponto a destacar é a ênfase na cultura e na identidade local"
(BURKE, 2006, p. 104). Cabendo sempre que se ressalte a dificuldade enfrentada por
tentativas de preservação dentro de uma realidade mundial que tende inexoravelmente à
dissolução das fronteiras diante da possibilidade cada vez mais veloz e abrangente dos
intercâmbios culturais.
Esse é o paradoxo: mesmo diante de um cenário que nega afirmações regionais,
produziu-se no Rio Grande do Sul, nestes sessenta anos, um tal volume de canções que parece
impossível não ser levado em consideração. E podemos situar a obra de Luiz Carlos Babosa
Lessa na origem – sempre provisória origem – dessa construção. Trata-se de uma contradição,
poderão afirmar. Contudo, se somos de alguma forma passíveis de explicação ou de
entendimento, não será justamente por nossa intrínseca natureza contraditória? O fato é que
este cancioneiro está, relevante ou não. Tantos o admiram, uns lhe são indiferentes, muitos
o consideram referencial: talvez, como tudo na vida, por sua capacidade de ser pífio e
maravilhoso.
Existe uma canção popular em que o autor/cantor revela e pergunta surpreendido:
certas que canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece, como não fui
eu que fiz.
40
E parece existir uma imensidão de canções que, apagada a autoria, sobrevivem
40
"Certas canções" (Tunai e Milton Nascimento). LP ANIMA (1982)
96
como propriedade coletiva: cabem tão dentro da alma de um povo, justamente por ter sido ele,
em última análise, que as concebeu. São desta natureza as canções que nos deixou Lessa.
Essas são as canções que, depois daquelas origens aqui estudadas, continuam sendo
produzidas, difundidas e cantadas com rara identificação pelos palcos, pelas rodas domésticas,
pelas emissoras de rádio, nas praças e nos bares das cidades, em cada festival, em cada
lugarejo, em cada coração gaúcho. Naturalmente, tudo ainda está para ser dito, ainda que tudo
já tenha sido dito. Talvez uma coisa apenas neste momento mereça ser grifada nestas páginas:
mesmo que haja um gaúcho delineado como a voz que dá vida a estas canções, aquilo que ele
canta, acima de sua condição gentílica, além do seu contorno cultural, é aquilo que move a
arte e move a cultura, e que em instância derradeira põe o mundo em movimento: a condição
humana. Cantamos para quase tudo: gritar, amar, doer, chamar, ouvir. Mas cantamos sempre
para perguntar quem somos. E a resposta está sempre adiada. Acaba-se a corda e o poço
continua: mete medo, desafia, nos convida. Invariavelmente, mesmo cientes de que não
mais corda para nos trazer de volta ao bocal, atendemos ao convite e permanecemos vida a
fora em rota de mergulho.
97
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NESTROVSKI, Arthur. (org) Lendo música: 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo:
Publifolha, 2007.
_____.
Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996.
OLIVEIRA, Solange Ribeiro...[et al.] Literatura e música. São Paulo: Editora Senac São
Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003.
TEZZA, Cristóvão. Entre a prosa e a poesia: Bakthin e o formalismo russo. Rio de
Janeiro: Rocco, 2003.
101
9. DISCOGRAFIA
CD Barbosa Lessa 50 anos (2001):
- Negrinho do Pastoreio (Barbosa Lessa)
- Quero-quero (Barbosa Lessa)
- Cantiga de eira (Barbosa Lessa)
- Entrevero no jacá (Barbosa Lessa/Danilo Vital de Castro)
- Carreteiro (Barbosa Lessa)
- Feitiço índio (Barbosa Lessa)
- Quando sopra o minuano (Barbosa Lessa)
LP Gildo de Freitas (1979):
- Eu reconheço que sou grosso (Gildo de Freitas)
LP 5ª Califórnia da canção nativa de Uruguaiana (1975):
- Roda Canto (Mário Barbará/Apparício Silva Rillo)
LP Tropa de osso – Luiz Carlos Borges (1980):
- Enlutado (Nelson Pessano de Souza/Sérgio Metz)
LP 13ª Califórnia da canção nativa de Uruguaiana (1983):
- Guri (Júlio Machado da Silva Filho/João Batista Machado)
LP Cantos de Pampa e de Rio – Os Angueras (1975)
- Canção de rio (Apparício Silva Rillo)
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