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quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa
(interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos
encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias
secularizadas”, como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em
que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós,
buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma.
Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e
contexto que temos... (CHAMBERS, 1990 apud HALL, 2003, p. 27).
Mesmo que Lessa, ao criar suas canções, não tivesse tal consciência, sua obra parece
reconhecer a impossibilidade de volta sensível ao lugar cantado. Cantar, então, é sua posição,
sua localização. A canção é o seu momento e o seu contexto. É sua casa imaginada e concreta.
Essa casa ideal só se torna perceptível pelo movimento da linguagem (das linguagens), da voz
ou das vozes que a situam ou projetam. Voz essa que tanto pode ser do autor, do cantautor, do
cantor ou daquele que, mesmo em silêncio, a reproduz: a voz empírica que pontua a
subjetividade da enunciação. "As emoções suscitadas pelo poeta não pertencem a um passado
remoto. Estão “aqui” – vivas e imediatas" (CASSIRER, 1994, p. 241). Quem ouve uma
canção, lê um texto, contempla uma obra de arte ou um objeto qualquer da realidade, ainda
que de forma silenciosa, estabelece com o objeto contemplado uma relação de contraste e de
resposta contínua pertencente à natureza da enunciação. Somos tocados pelo que nos cerca, e
esse toque nos posiciona diante das coisas. Está aí a evidência de que as pessoas que
compõem o ato enunciativo estabelecem entre si um vínculo inarredável. Evidentemente, a
teoria da enunciação tem sua aplicação voltada para os fenômenos linguísticos, e o gênero
canção, uma vez que provoca uma ampliação dos campos de linguagem, necessita de outras
referências teóricas para o procedimento de análises mais consistentes. Posteriormente trarei
à reflexão deste trabalho alguns pressupostos linguísticos formulados por Émile Benveniste,
bem como considerarei algumas contribuições de Mikhail Bakhtin e de Ernst Cassirer acerca
da filosofia da linguagem.
As teorias enunciativas, apesar de suas eloquências de investigação e método, também
deixam sempre portas abertas para novas investidas. Essa é a natureza da construção do
conhecimento: haverá sempre possibilidade de colocação de mais um tijolo na edificação.
Pode-se afirmar, ainda, que é pelo ato enunciativo que se constrói o homem que, permeado
por suas inquietações interiores, condiciona-se em sua posição social, portanto, ideológica.
Sendo assim, pode-se investigar o papel da canção popular de inspiração rural na construção
arquetípica do gaúcho considerando-se as questões sociais e ideológicas aí imbricadas, assim
como refletir sobre a subjetividade que orienta o gênero canção, bem como as implicações
perceptíveis nas aproximações e nos distanciamentos entre os suportes de natureza linguística