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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
Programa de Qualificação Institucional - CAPES
(PQI UNEB/FAUUSP)
ANA BEATRIZ SIMON FACTUM
Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design
de jóias brasileiro
São Paulo
2009
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ANA BEATRIZ SIMON FACTUM
Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design
de jóias brasileiro
Tese apresentada a Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutor em Arquitetura e
Urbanismo.
Área de Concentração:
Design e Arquitetura
Orientadora: Profa. Dra.
Maria. Cecília Loschiavo dos Santos
São Paulo
2009
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA,
DESDE QUE CITADA A FONTE.
E-MAIL: anabiasimon@uol.com.br
Catalogação da Publicação
Biblioteca da Pós-Graduação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Factum, Ana Beatriz Simon
F142j Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design
de jóias brasileiro / Ana Beatriz Simon Factum. --São Paulo, 2009.
335 p. : il.
Tese (Doutorado - Área de Concentração: Design e Arquitetura) -
FAUUSP.
Orientadora: Maria Cecília Loschiavo dos Santos
1.Design (História) - Brasil 2.Jóias 3.Escravidão 4.Miscigenação
5.Relações de gênero 6.Relações étnicas e raciais I.Título
CDU 7.05(091)(81)
FACTUM, A. B. S. Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design de jóias
brasileiro. Tese apresentada a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof.(a) Dr.(a) __________________________________ Instituição: ___________________
Julgamento: __________________________ Assinatura: _____________________________
Prof.(a) Dr.(a) __________________________________ Instituição: ___________________
Julgamento: __________________________ Assinatura: _____________________________
Prof.(a) Dr.(a) __________________________________ Instituição: ___________________
Julgamento: __________________________ Assinatura: _____________________________
Prof.(a) Dr.(a) __________________________________ Instituição: ___________________
Julgamento: __________________________ Assinatura: _____________________________
Prof.(a) Dr.(a) __________________________________ Instituição: ___________________
Julgamento: __________________________ Assinatura: _____________________________
Às mulheres negras por minha profunda admiração a sua
competência em vencer os processos de exclusão pelo seu trabalho e
fé. E por preservarem o legado das mulheres africanas, que sempre
souberam amalgamar beleza e elegância com coragem e trabalho.
AGRADECIMENTOS
Ao meu companheiro de vida Ulysses Factum por sempre apoiar todos os meus projetos,
mesmo que lhe exija enorme sacrifício e as minhas tão amadas filhas Amanda e Clarissa, que
constantemente são privadas dos cuidados maternos, mas, apesar disto torcem sempre pelo
êxito dos trabalhos realizados pela mãe. Como designer, elas são meu melhor projeto.
Aos meus pais Laudice e Roberto Simon por tudo que fizeram por mim e por ainda
continuarem fazendo, sem eles seria, literalmente, impossível estar aqui. E aos meus irmãos
Roberto e Ana Cristina por sempre estarem na torcida da caçula da família e, em nome dos
meus trabalhos acadêmicos, vivem me poupando de inúmeras obrigações familiares.
A Professora Dra. Maria Cecília Loschiavo dos Santos, minha orientadora dos estudos de
doutorado e da vida, muito mais do que mestra, é amiga, a vida nos uniu para realizarmos o
sonho de diminuir as diferenças sociais do nosso país através da capacidade propositiva do
design.
A minha ex-colega da UNEB e amiga Mônica Tavares que ao retornar do seu processo de
doutoramento, tratou logo de elaborar e implantar o projeto PQI-CAPES UNEB/FAU-USP
para oportunizar a qualificação de seus colegas do curso de Desenho Industrial, absolutamente
apoiado pelo colega, amigo e na época Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Manoelito
Damasceno, foram eles os responsáveis iniciais, pela oportunidade de ter realizado minha
pós-graduação na USP, uma das melhores universidades da América Latina, quiçá do mundo.
Dando continuidade ao projeto, devo apontar os esforços do gerente da pós-graduação
Professor Edgard Lira sempre solícito as nossas necessidades.
Aos meus colegas e amigos da Universidade do Estado da Bahia UNEB, especialmente os
que trabalham na INCUBA UNEB/UNITRABALHO, Ronalda Barreto, Alessandra
Azevedo, Clélia Dantas, Maria Geovanda, Eduardo Nunes, Maria Eliza e todos os meus
amigos e amigas dos empreendimentos econômicos solidários incubados pela oportunidade de
construção conjunta de um projeto que prova o poder do design de gerar propostas, planejar,
realizar projetos e produtos servindo de demonstração e argumento de como se deve viver de
maneira sustentável e socialmente responsável. Em especial a CAMAPET Cooperativa de
Coleta Seletiva, Processamento de Plástico e Proteção Ambiental por ter oportunizado a
Universidade do Estado da Bahia através do curso de Bacharelado em Desenho Industrial
desempenhar seu papel social de aplicação do conhecimento acadêmico produzido na solução
de problemas emergentes que afligem a comunidade em que está inserida, implantando em
parceria a fábrica de jóias com reuso das embalagens de PET, a CAMAPET BIJU, recebendo
auxilio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNPq/Edital 18/2005, onde tudo começou.
Ao meu amigo, colega de doutorado e ex-colega de instituição Paulo Souza por ter
compartilhado todas as angustias e alegrias desse processo. Porém, o mais importante foi
sonharmos com a possibilidade de um ensino de excelência para o design na Bahia e por
continuarmos não medindo esforços para sua realização.
Aos professores e funcionários da USP e da FAU-USP que de alguma forma contribuíram
nessa caminhada. Em especial, ao Professor Dr. Luiz Américo de Souza Munari pelos
valiosos conhecimentos filosóficos, e principalmente, pela grande contribuição dada a minha
pesquisa em diversas situações, na banca de qualificação do mestrado, na banca de passagem,
na banca de qualificação do doutorado, na sala de aula e nos papos do cafezinho do Abraão.
Aos professores que participaram das minhas diversas bancas examinadoras Profa. Dra.
Mirian Mirna Korokolvas, Prof. Dr. João Spinelli e a Profa. Dra. Marizilda Menezes pelos
valiosos comentários e sugestões.
Aos grandes amigos e amigas que conquistei na cidade de São Paulo, que adotei como minha
segunda naturalidade, Valéria Contessa, Rodrigo Boufleur, Ana Célia Leitão, Manoel da
Coopamare, Rosane Muniz, Luciana Coin, Alessandro Faria e muitos outros tão queridos
quanto os aqui nominados. A COOPAMARE por sempre nos acolher de braços abertos, nos
ensinar com suas práticas coletivas de cooperação, sempre baseadas na solidariedade. E por
nos dar exemplos de construção de caminhos para vencer a exclusão.
Ao Museu Carlos Costa Pinto por sua grande colaboração no desenvolvimento desta tese,
disponibilizando para registro fotográfico o seu acervo de jóias escravas. A Diretora Mercedes
Rosa e a Diretora Adjunta Bárbara Santos por não ter medido esforços para que o referido
trabalho lograsse êxito. E em especial á museóloga Simone Trindade pela sua inestimável
ajuda, sempre acompanhada de uma inigualável simpatia e boa vontade. Também foi de
fundamental importância todo apoio que recebemos da museóloga Ana Maria Azevedo e de
todo o corpo de funcionários desta organização, que tanto orgulha nossa Bahia.
Aos meus queridos amigos, ex-alunos e excelentes designers gráficos Carlo Freitas e Carolina
Garrido responsáveis pelo excelente projeto gráfico desta tese, eles são exemplo de
competência projetual e retidão de caráter, casal 20, com certeza. E ao meu também querido
amigo e ex-aluno Antônio Barbosa pela elaboração do abstract.
Aos meus alunos e alunas que ao longo dos meus 23 anos de docência em design sempre me
ensinaram muito mais do que eu a eles e pela oportunidade de sempre estar a beber da fonte
da juventude.
RESUMO
FACTUM, Ana Beatriz Simon. Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design
de jóias brasileiro. 2009. 335 p. Tese (Doutorado) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Esta tese é uma investigação sobre a joalheria escrava na Bahia dos culos XVIII e XIX,
retrocedendo ou avançando no tempo quando necessário à melhor compreensão do fenômeno.
Contribui para o aprofundamento e ampliação dos conhecimentos relativos à história do
design no Brasil, no que se refere aos objetos classificados como afro-brasileiros, que são
fruto da complexa relação senhor-escravo materializada na forma, na função e no significado
do seu design. Adicionalmente, colaborou-se com os estudos da historiografia da escravidão
em geral, com foco na participação negra no processo de formação da cultura material
brasileira.
Palavras chaves: história do design, jóia, escravidão, mestiçagem, relações de gênero,
relações étnicas e raciais.
ABSTRACT
FACTUM, Ana Beatriz Simon. Slaves jewelry from the State of Bahia: the historical
construction of the Brazilian jewelry design. 2009. 335 p. Thesis (Doctoral) Faculty of
Architecture and Urbanism, University of São Paulo, São Paulo, 2009.
This thesis consists of an investigation about slave Brazilian jewelry in Bahia, in the
Eighteenth and Nineteenth centuries. In order to provide the best understanding of the
phenomena, it goes back and further in time, as it turns out to be necessary. It contributes to
both deepen and widen the knowledge on the history of design in Brazil, in relation to the
objects classified as Afro- Brazilian, which are an outgrowth of the complex relation between
masters and slaves, materialized in the shape, function and meaning of their design.
Moreover, it intends to contribute to the studies of slavery historiography in general, focusing
on the participation of black people in the building process of Brazilian material culture.
Key words: History of design, Jewel, slavery, miscegenation, gender relations, ethnic and
racial relations.
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
1.1 APRESENTAÇÃO ...................................................................................................... 25
1.2 OBJETO ...................................................................................................................... 26
1.3 OBJETIVOS ................................................................................................................ 29
1.3.1 OBJETIVO GERAL .........................................................................................29
1.3.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...........................................................................30
1.4 HIPÓTESES ................................................................................................................ 31
1.5 METODOLOGIA ........................................................................................................ 33
1.6 LIMITAÇÕES DA TESE ............................................................................................ 49
1.7 ORGANIZAÇÃO GERAL DA TESE ......................................................................... 51
CAPÍTULO II – HISTÓRIA DO DESIGN NO BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 57
2.2 INDO À ÁFRICA ......................................................................................................... 63
2.3 OBJETOS ARQUEOLÓGICOS .................................................................................. 89
2.4 OBJETOS AFRO-BRASILEIROS .............................................................................. 98
2.5 AFRODESIGN ........................................................................................................... 108
CAPÍTULO III – JÓIA ESCRAVA: PRIMÓRDIOS DO DESIGN MESTIÇO -
PERMEABILIDADES
3.1 A JÓIA ESCRAVA COMO OBJETO DO DESIGN ................................................. 123
3.2 OBJETO HÍBRIDO: JÓIAS CRIOULAS COMO MATERIALIZAÇÃO DA
MESTIÇAGEM .......................................................................................................... 133
3.3 ARTÍFICES DA JOALHERIA ESCRAVA: BRANCOS OU NEGROS? ................ 175
3.4 OURIVESARIA: AS TÉCNICAS DE CONFECÇÃO DA JÓIA ESCRAVA .......... 182
CAPÍTULO IV – JOALHERIA ESCRAVA: DESIGN DE RESISTÊNCIA -
IMPERMEABILIDADES
4.1 DESIGN DE RESISTÊNCIA: CONSTRUINDO UM CONCEITO ......................... 203
4.2 JÓIAS DE CRIOULAS: QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA ................................ 209
4.2.1 ENTRE AS MULHERES NEGRAS: AS RELAÇÕES INTRA-GÊNERO,
INTRA-RAÇA E AS JÓIAS...........................................................................214
4.2.2 MULHERES NEGRAS E MULHERES BRANCAS: AS RELAÇÕES
INTRA-GÊNERO, INTER-RAÇA E AS JÓIAS...........................................245
4.2.3 MULHERES NEGRAS E HOMENS BRANCOS: AS RELAÇÕES DE
GÊNERO, RAÇA E AS JÓIAS......................................................................250
4.2.4 MULHERES NEGRAS E HOMENS NEGROS: AS RELAÇÕES DE
GÊNERO, INTRA-RAÇA E AS JÓIAS........................................................255
CAPÍTULO V – CONCLUSÃO......................................................................................263
REFERÊNCIAS
ANEXOS IFICHAS DAS JÓIAS
ANEXOS II
- DOCUMENTO I
25
CAPÍTULO I
________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
1.1 APRESENTAÇÃO
O interesse em pesquisar a joalheria escrava baiana nasceu a partir da leitura de um
artigo da designer de jóias, Virginia Moraes
I-1
, intitulado A Joalheria Baiana do Século XIX”,
que suscitou em mim a seguinte reexão: sou uma mulher brasileira e baiana; sou designer de
jóias e professora de design; nasci em Salvador, a segunda cidade mais negra do mundo; a
escravidão no meu país durou 300 (trezentos) anos, o mais longo período de escravidão do
mundo. Então, se eu sou mulher, se eu sou designer de jóias e professora de design, se pesquiso
sobre história do design e se minha cidade é negra... Eu devo mostrar ao mundo a grande
contribuição africana para a história do design e para a história da cultura material brasileira.
Para mim, a joalheria escrava baiana é um dos melhores exemplos desta contribuição porque
mostra como os objetos representam ideologias, relações de poder, questões de gênero e raça,
etc., então, signica design hoje, ontem e sempre.
Vale esclarecer a escolha do título e subtítulo desta tese, Joalheria Escrava Baiana
1
I-
Disponível em: http://www.joiasdobrasil.com/opiniao/index.htm. Acessado em: 12/10/2005.
deve-se ao fato do objeto de estudo ser, tradicionalmente, assim designado, além de que existe
outra atribuição de nome para estes artefatos: “Jóias de Crioulas”. Mas, deu-se preferência ao
primeiro por contemplar o local de origem do objeto de pesquisa, considerando esta identicação
como um fator importante para compreensão do fenômeno, aqui estudado.
Quanto ao subtítulo “A Construção Histórica do Design de Jóias Brasileiro”, o termo
construção histórica foi eleito para exprimir que o objeto de estudo é produto do longo tempo,
do tempo histórico, entendendo que sua existência foi possível devido a um longo período
de convivência entre culturas diversas. Considera-se, assim, que o Brasil, devido a sua condição
de colônia, se constitui enquanto nação através deste processo de vasta extensão temporal,
tanto em relação aos aspectos políticos e econômicos, mas, principalmente, no que diz respeito
à consciência coletiva de sentir-se um povo. Pode-se também armar que os objetos, para serem
adjetivados como brasileiros, precisam estar vinculados ao surgimento consciente de enxergá-
los brasileiros. Esta questão será paulatinamente problematizada ao longo desta tese.
1.2 OBJETO
As jóias das ‘crioulas baianas’
I-2
confeccionadas nos séculos XVIII e XIX consistem
em uma coleção de peças de joalheria, tais como: colares, pulseiras, argolas ou brincos, anéis,
pencas de balangandãs
I-3
e outros. Hoje, esses adornos são exemplares de museus, apresentados
como um tipo muito particular de joalheria.
2
I-
Segundo Reis (2003, p.23): “A população da cidade dividia-se, segundo sua origem, em brasileiros, africanos
e europeus. [...] Mas havia também diferentes cores entre os nascidos no Brasil: o negro, que se chamava crioulo;
o cabra, mestiço de mulato com crioulo; o mulato, também chamado pardo; e o branco”. Portanto, crioulas são as
negras nascidas no Brasil.
3
I-
Balangandãs - ornamento de metal em forma de ga, fruto, animal etc., que, preso a outros, forma uma penca
usado pelas baianas em dias de festa; serve também como objeto decorativo, lembrança ou, se miniaturizada, jóia
ou bijuteria; berenguendém [No passado era usado especialmente na festa do Senhor do Bonm, em Salvador,
pendente da cintura ou do pescoço das afro-brasileiras, e constituía amuleto contra o mau-olhado e outras
forças adversas.]. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/ busca.jhtm?verbete= Balangand%E3. Acessado em
29/08/2004.
Investigar a joalheria escrava baiana traz em seu bojo uma série de pautas que desaam,
hoje, os pesquisadores da área de história do design e de estudos em design no Brasil e no mundo.
Isso ocorre pois essas jóias eram ornamentos de uso exclusivo das mulheres negras ou mestas,
sob a condão de escravas, alforriadas, ou libertas. Esta destinação especíca, associada a outras
proposições, impõe a consideração de assuntos emergentes na área do design, que são:
A história do design do mundo europeu, que se pretende universal, não possui parâme-
tros que dêem conta da especicidade de objetos forjados em circunstâncias histórico-
culturais-tecnológicas de países como o Brasil. É necessário e urgente incorporar à
História do Design novo material, das regiões menos desenvolvidas economicamente
do mundo, bem como das classes subalternas, das mulheres e das etnias historicamente
discriminadas, como é o caso de índios e negros.
se reconhece o quanto o entendimento das relões de gêneros pode contribuir para o
estabelecimento de novas práticas projetuais entre os designers, além da tarefa inadiável
de re-escrever ou escrever a história do design, contemplando a participão da mulher,
quase sempre ignorada, tanto como usuária e mais ainda, quanto como projetista.
É fato o uso das diferenças biológicas, como as de sexo e raça, para justicar a naturali-
zação das diferenças sociais. A exisncia deias confeccionadas para uso exclusivo das
mulheres negras nos leva a conjecturar sobre a possibilidade de estas ias signicarem
uma manutenção, ou melhor, uma re-constrão de identidade cultural para suas usuárias.
Mas, nos leva também a constatar um processo de racialização dos objetos, devido ao di-
recionamento de usrios, que as mulheres brancas o usavam o mesmo tipo de jóia.
Pretende-se investigar como os objetos de adorno foram utilizados para estabelecer dife-
reas de gênero e raça na história do design, no sentido de provocar uma reexão sobre
as atuais práticas de projeto que, consciente ou inconscientemente, perpetuam os objetos
como símbolo de desigualdade entre os sexos e os povos (ra/etnias).
Como o colonialismo, suas ideologias e relações de poder, inuenciam sobre na for-
ma como os artefatos são entendidos na era pós-colonial, ou seja, o impacto que as
relações de poder do colonialismo têm sobre a interpretação dos objetos. Para isso,
são evidenciadas questões de igual importância e urgência em diversos campos aca-
dêmicos, sendo que esta pesquisa se concentra no campo da cultura material e mais
especicamente, na área da história do design.
Hibridismo cultural - estas jóias são frutos deste fenômeno, enquanto objeto em si re-
sultam de um processo de permeabilidade cultural. São híbridas na sua aparência, nas
técnicas de feitura, na mistura de heranças culturais diversas, e, por isso, não podem
ser classicadas como jóias européias ou jóias africanas. Trata-se de adornos com ca-
racterísticas de difícil classicação estilística, com contribuições do barroco, rococó,
neoclássico, com um arranjo e concepção formal africanos, possibilitando classicá-
los como jóias afro-brasileiras.
Design de resistência - a revisão historiográca da escravidão brasileira é uma realida-
de iniciada desde a década de 80 do século XX, sabendo-se, hoje, que ela não existiu
sem uma intensa resistência por parte dos negros e das negras escravizados. A jóia es-
crava no seu signicado de uso resulta em um processo de impermeabilidade cultural,
de resistência negra ao sistema escravocrata. Ao portar essas jóias, a mulher negra ou
mestiça, escrava, alforriada ou liberta, simbolizava a manutenção de sua cultura (mes-
mo que adaptada), a preservação de sua auto-estima e, principalmente, sua resistência
à condição de mercadoria.
Pelo exposto, é possível vericar as inúmeras questões que envolvem o objeto de estudo
“Jóias Escravas” e o quão estão imbricadas, impondo o desenvolvimento de níveis de investigação
que cumpram a complexa tarefa de reconhecer modos complementares de conhecimento. Ou
seja, a história do design necessita dialogar com um corpo amplo de disciplinas, tais como
antropologia, sociologia, psicologia cognitiva, etc., tal como argumenta Jonathan Woodham
I-4
ao tratar da história do design na Inglaterra:
o reconhecimento de sua relação potencial com campos como
antropologia social e estudos em cultura material, temas de gênero, teoria
e história social e cultural, a história de negócios e economia, indústria e
políticas, até mesmo, geograa social e cultural. Alguns podem questionar
que isto representa uma posição de incerteza e de uma clara falta de
programa de trabalho e identidade. Eu veria tais relacionamentos como
centrais para muitas áreas de debate, repleto de possibilidades, oferecendo
inuência potencial e esclarecimento transversal um amplo espectro de
empreendimentos acadêmicos.
1.3 OBJETIVOS
1.3.1 Objetivo Geral
Demonstrar que a joalheria escrava baiana pode ser considerada como o primeiro
exemplo de design de jóias brasileiro, tratando-se de um exemplo de pré-guração do design
brasileiro, onde as pautas extra-design, aquelas se referem ao contexto social em todos os seus
aspectos, exercem uma função hegemônica sobre a forma como os objetos são entendidos na era
pós-colonial, explicando como os artefatos são provas materiais das relações de poder em uma
sociedade de cultura híbrida e contribuem signicativamente nos estudos de gênero, de raça,
da historiograa da escravidão e, principalmente, da história do design brasileiro. Este estudo
visa as seguintes metas: promover avanços nas investigações em design, formar designers mais
conscientes do seu papel social por conhecer a história o seu país e sistematizar referências
históricas brasileiras, tanto em relação ao aspecto estético-formal, quanto em relação ao aspecto
técnico-produtivo.
4
I-
Disponível em: http://www.eciad.ca/~rburnett/Designing%20Design%20History.pdf. Acessado em:
26/10/2005. Livre tradução nossa.
1.3.2 Objetivos Especícos
Produzir material bibliográco e iconográco de referência para o desenvolvi-
mento da pesquisa em design no Brasil, através de uma revisão da historiograa,
substituindo a anterior, de caráter androcêntrico e etnocêntrico.
Ampliar a capacidade propositiva da atividade projetual, ainda fortemente vincu-
lada às imposições de mercado, já que, ao colaborar com a continuidade da elabo-
ração da história do design brasileiro, se estabelecerão novas referências e estas,
espera-se, conduzirão a novas práticas.
Resgatar antigas técnicas produtivas artesanais com vistas à diferenciação da
produção joalheira brasileira, expandindo o conhecimento sobre os objetos afro-
brasileiros, fruto da complexa relação senhor escravo, materializada na forma,
na função e no signicado do seu design. Tal resgate reforçará o caminho que o
design de jóias brasileiro já começou a trilhar, se utilizando de técnicas artesanais
de produção com o objetivo de incorporar materiais alternativos (palha, semente,
couro, etc.), ofertando ao mercado internacional, jóias diferenciadas.
Sistematizar padrões históricos para fomentar a produção de jóias com uma identi-
dade regional, através do uso da sua simbologia, da suas técnicas de manufatura e da
sua linguagem. Acredita-se que estes estudos possam se constituir em uma impor-
tante estratégia para a promoção econômica, social e cultural do segmento baiano de
produção de jóias, dinamizando esse setor, enaltecendo suas raízes histórico-culturais
e fortalecendo as competências de seus recursos materiais e humanos.
1.4 HIPÓTESES
A presente investigação traz em seu bojo uma série de indagações, mas possui uma
questão preponderante: a joalheria escrava baiana se constitui no primeiro exemplo de design
de jóias brasileiro?
Responder sim ou não a essa queso não contempla a complexidade dos objetos que foram
concebidos e produzidos no seio da sociedade colonial brasileira. As jóias escravas guardam em si
um paradoxo, são, ao mesmo tempo, uma adaptação e uma resistência, tal como armava Mahatma
Gandhi
I-5
“Adaptabilidade não é imitação. Ela signica poder de resistência e assimilão”.
O conceito de adaptação é denido por Peter Burke (2003, p. 77), quando coloca que a
troca é uma conseqüência dos encontros e que a conseqüência das trocas é distinguível em quatro
estratégias de reação - as “importações” ou “invasões” culturais. São elas: aceitação, rejeição,
segregação e adaptação. A jóia escrava é um fenômeno que pode ser considerado como de
adaptação cultural, que pode ser analisada como um movimento duplo de des-contextualização
e re-contextualização, retirando um item de seu local original e modicando-o de forma que se
encaixe em seu novo ambiente (Burke, 2003, p. 91).
Para exemplicar Burke (idem, p. 92) apresenta o exemplo das cadeiras de design ings
que tiveram suas formas alteradas quando copiadas no Brasil, armando que as modicões
podem ter sido menos deliberadas, quer por resultarem de diferenças entre tradições artesanais
locais (inclusive tradões africanas, no caso do Brasil), quer pela substituição da madeira inglesa
(nogueira, por exemplo) por madeiras brasileiras como o jacaran. Burke aponta que as sua
linhas retas e os seus ângulos das cadeiras inglesas foram suavizados quando seus designs foram
copiados no início do século XIX no Brasil, citando Gilberto Freyre: “O estilo ings de móvel
arredondando-se no clima brasileiro” (Freyre apud Burke, p.92).
5
I-
O objetivo desta citação não é fazer apologia aos ideais pacistas de Mahatma Gandhi, e sim demonstrar que
conceitos opostos coexistem e se materializam em objetos que são a expressão de fenômenos sociais. Citação
publicada no catálogo de divulgação do Museu da Diáspora Africana, São Francisco, Califórnia, EUA, S/D
(tradução da autora).
Até o momento, argumentou-se sobre a assimilação, mas a adaptabilidade é também
poder de resistência, como defende Raul Lody (2001, p. 17), no livro Jóias de Axé: os-de-
contas e outros adornos do corpo: a joalheria afro-brasileira:
A cultura material africana, projetada nas condições de dominação durante
o período escravista do Brasil-Colônia, embora aparentemente submissa,
manteve um fogo de defesa e de memória que a tradição oral e os
conhecimentos tecnológicos conseguiram trazer até os dias de hoje.
A possibilidade de estudar a resistência escrava, sem dúvida, se deve ao direcionamento
mais recente tomado pela historiograa da escravidão. Tal posicionamento difere dos dois
momentos anteriores: o primeiro, marcado pelas investigações de Gilberto Freyre, e o segundo,
representado pelos estudos da “Escola Paulista”, ou seja, por aquela antiga visão do senhor
paternalista/escravo conformado e a não tão antiga abordagem do brutal proprietário/escravo
vítima respectivamente, que evidentemente, são diferentes, porém ambas não consideram os
escravos como agentes da sua própria história, (Reis, 1999, p. 437-438).
Com isso, pode-se constatar que o direcionamento desta investigação não corrobora
com os pressupostos da democracia racial brasileira, aliás, enfaticamente combatida pelos mais
renomados acadêmicos brasileiros, como na opinião de Maria Suely Kofes (2001, p.1),
Como antropóloga, não questiono somente o mito da democracia racial,
porque também não democracia social. A luta dos negros por seus direitos
no país denuncia os limites da nossa democracia. Por isso é importante
reescrever os livros que contam a história do negro no Brasil, bem como os
livros sobre os índios, cuja história parece ter parado em 1500.
Contudo, é necessário entender como a fusão das culturas francesa, espanhola, africana
e inglesa criou o Calipso no Caribe, como o entrosamento da cultura africana e americana
produziu o Jazz nos Estados Unidos e como o convívio entre a cultura africana e a portuguesa
gerou a joalheria escrava baiana no Brasil. É preciso atentar para o que alerta o historiador
francês Serge Grunziski (2004, p. 52) em relação ao Brasil:
Talvez vocês não se dêem conta do laboratório prodigioso que têm aqui.
Havia índios de antes da conquista, índios aculturados, negros, belle époque,
o problema da escravidão, a presença da África e da Europa... Houve
também a presença de holandeses e franceses. Desde o século XVI o Brasil
estava inserido na história internacional. Mas, além de ser um laboratório
maravilhoso, tem, graças ao trabalho pioneiro de Gilberto Freyre e Sergio
Buarque de Holanda, uma elaboração intelectual da mestiçagem. Não
com historiadores, mas com escritores modernistas, que trouxeram a idéia
da antropofagia. Ou seja, a mestiçagem, não? Adaptar, reinterpretar, e isto é
cultural, fundamentalmente.
A partir do que foi colocado são propostas as seguintes hipóteses para a tese:
H
1 -
A joalheria escrava baiana é híbrida na sua aparência, nas técnicas de feitura, na
mistura de heranças culturais diversas, que não podem ser classicadas como européias
ou africanas. Ela é fruto de idéias transculturadas, que foram interpretadas, modica-
das ou transformadas de acordo com circunstâncias histórico-culturais-tecnológicas
locais. Trata-se do primeiro exemplo de design de jóia brasileiro devido às condições
objetivas de sua aparição e de sua aparência.
H
2 -
A joalheria escrava baiana é um modelo do que se pode classicar de design de
resistência, não na sua forma, que é híbrida, mas no seu signicado de uso, da resistên-
cia negra ao sistema escravocrata. Portar estas jóias, para a mulher negra ou mestiça,
escrava, alforriada ou liberta, simbolizava a preservação de sua cultura, a sua re-cons-
trução identitária, a manutenção de sua auto-estima e, principalmente, sua resistência
à condição de mercadoria à qual estava submetida.
1.5 METODOLOGIA
Considera-se que uma das maiores contribuições desta pesquisa, sem, obviamente
desvalorizar a importância do seu objeto de estudo, é o seu percurso teórico-metodológico. Isto
porque a história do design no mundo, e mais ainda no Brasil, é um campo novo, em relação a
outros estudos historiográcos: “o estudo da história do design é um fenômeno relativamente
recente. Os primeiros ensaios datam da década de 1920, mas pode-se dizer que a área começou
a atingir a maturidade acadêmica nos últimos 20 anos” (CARDOSO, 2000, p.14).
Cardoso (idem, p.15) ainda arma que “As primeiras histórias do design, escritas durante
o período modernista, tendem a impor uma série de normas e restrições do tipo ‘isto é design e
aquilo não’, ‘este é designer e aquele não’...”. Uma tendência tão opressora que muitas vezes,
principalmente nos momentos inicias deste estudo, indagava-se: a joalheria escrava baiana é
objeto de estudo da história do design?
E as respostas vieram ao longo de um processo de construção do entendimento do objeto
de estudo, do qual o próprio campo do design não foi e não é capaz de dar conta, sem nenhuma
conotação de demérito, sendo imprescindível praticar, literalmente, a interdisciplinaridade, aliás,
uma recomendação corrente dos mais renomados
I-6
teóricos do design. Com a convicção de
poder contribuir com os iniciantes da investigação cientíca na área da história do design e, mais
especicamente, com aqueles que desejam incluir nesta história os objetos afro-brasileiros.
A metodologia interdisciplinar adotada nesta pesquisa pretende desvelar a jóia escrava
de uma forma complexa e problematizada, sem apenas estudar suas características enquanto
objeto em si (estilo, características físicas, tais como: peso, tamanho, aparência, etc.), mas
entendê-lo nas suas dimensões sociais, políticas, econômicas, culturais, etc. Ou seja, entendê-
lo enquanto cultura objeticada, “já que são os objetos culturais que viajam e transitam, sendo
resignicados na medida em difundem tanto a cultura de onde partiram, quanto aquela a qual
passam a ser incorporados” (PINHO, 2004, p. 238).
Por adotar este caminho de diálogo com vários campos do saber, foi necessário percorrer
6
I-
Margolin, Calvera, Bonsiepe, Woodham, Loschiavo, Sparke, Fry, Cardoso, Balcioglu, Salinas, Cooper, Moraes,
entre outros.
por uma extensa bibliograa (história, arte, joalheria, sociologia, hibridismo cultural, escravidão,
viajantes, arqueologia, etnologia, cultura material, gênero, raça, colonialismo, indumentária,
etc.) e por quase não existir bibliograa especíca sobre as jóias escravas baianas (dois livros
e uma dissertação) foi necessário ampliar signicativamente a revisão de literatura e, com uma
atitude de detetive, identicar cada pequeno trecho deste vasto universo que pudesse revelar
alguma faceta, por mais ínma que fosse, do objeto de estudo.
Preliminarmente, a fundamentação teórica adotada no projeto de pesquisa apresentado na
etapa de seleção para o programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo adotou a Nouvelle Histoire, de Fernand Braudel e outros historiadores.
Esta opção signicou eleger a ruptura por eles proposta, ou seja, posicionar-se contra o que eles
designavam de história tradicional, história historizante ou história positivista.
A partir do efetivo acesso ao programa de pós-graduação, cursando as disciplinas e iniciado
o processo de orientação, inaugurou-se uma abertura de possibilidades e de sistematização.
Consolidou-se o acerto na escolha dos pressupostos teóricos de Braudel e nasceu uma convicção:
é insuciente o uso único da Nova História, “os Analles
I-7
tem clara percepção da sua riqueza
passada e dos seus limites atuais” (REIS, 1994, p. 154).
Em relação ao acerto na adoção da linha braudeliana como alicerce teórico da pesquisa, se inclui
o livro da professora Marina Waisman (1990, p. 54), de título “El Interior de la Historia – historiograa
arquitetônica para uso de latino-americanos”. A autora, a partir de sua investigação, constatou que a
arquitetura latino-americana é constituída de descontinuidades, que lhe falta o desenvolvimento interno
de um estilo, de uma tipologia, de um modelo estrutural e de um procedimento técnico. Ao conhecer seus
estudos, identicou-se que ocorria o mesmo na joalheria escrava baiana e que estes artefatos possuíam a
condição dos objetos forjados nas condições sócio-históricas dos países da America Latina,
7
I-
O autor usa os nomes Nouvelle Histoire e Analles com o mesmo signicado.
...desde o momento em que apareceu a consciência histórica se tentou
distinguir períodos, na historia da arte e da arquitetura esse afã de caracterizar
períodos históricos se torna aparente no Renascimento e com o decorrer do
tempo as unidades históricas denidas para o mundo europeu pareciam cobrar
uma validade universal. Sendo que a denição de uma unidade histórica
tem por base uma serie de características que se diferenciam nitidamente
de outras e seus limites são xados em momentos, mais ou menos precisos,
em que se possam detectar as mudanças e as causas que os provocaram.
Na arquitetura européia, a caracterização de cada período tem por base
fundamentalmente os critérios estilísticos, entendendo estilo como um
código que possui elementos combináveis, uma determinada norma sintática
e um desenvolvimento histórico. No caso da América Latina, diferentemente
da historia européia, não se tem dado de um desenvolvimento estilístico
coerente que permita descobrir uma continuidade de idéias arquitetônicas,
devido à arquitetura está baseada em idéias transculturadas, que foram
interpretadas, modicadas ou transformadas de acordo com circunstancias
histórico-culturais-tecnológicas locais. (WAISMAN, 1990, p. 47-48).
Igualmente, compartilha-se da indagação da autora: “não seria possível descobrir uma
capa de longa duração na estraticação histórica, que nos permita uma aproximação a pautas
positivas de valorização?” (idem, p. 49).
A pesquisadora supracitada fala das diferenças de durações dos fenômenos históricos, tal
como proposto por Fernand Braudel, argumentando que, para o campo de estudos da arquitetura
latino-americana, podem-se aplicar estas distinções com grande utilidade, ou seja, a curta
duração (biograas e acontecimentos) aplica-se a obras e projetos; a média duração (conjuntural
com ciclos de 10 a 50 anos) corresponderia à produção de um arquiteto e ao desenvolvimento
de um estilo ou fases de um estilo; e a longa duração (estrutural), corresponderia à história
urbana, com alguns códigos lingüísticos como das ordens clássicas, como certas “invariantes”
I-8
nacionais ou regionais e como certos tipos arquitetônicos. Segue argumentando sobre a
pertinência da metodologia braudeliana em situações que exigem uma dupla leitura dos fatos
arquitetônicos, tanto conjuntural, quanto estrutural, sendo uma condição comum a quase todas
as obras signicativas na história da arquitetura, por ser um objeto historicamente fechado
8
I-
Grifos da autora Marina Waisman.
e simultaneamente presente no tempo do observador. Waisman aponta ainda (1990, p. 56):
“suas propriedades ‘produtivas’, sua capacidade de engendrar idéias, correntes, tendências, de
abrir perspectivas inéditas ou de consolidar em uma realização concreta um conjunto de idéias
dispersas, podem fazer que transcenda amplamente o momento de sua aparição”.
Reconhecer a capa de longa durão na jóia escrava baiana é posvel em dois eventos
inerentes a estes artefatos, o primeiro deles é o da sua aparição,posvel no tempo estrutural,
ou seja, no longo tempo de convivência entre os portugueses e os africanos na colônia portuguesa,
no Brasil. O segundo, é a condição da jóia escrava ser um evento que excede, e muito, a sua
concretude espo-temporal, exige a longa durão para formar as condões objetivas para sua
aparição nos séculos XVIII e XIX, bem como a sua permancia no tempo, pois algumas destas
jóias o confeccionadas ainda hoje. Alguns exemplos o os balangandãs, um souvenir pico da
Bahia muito apreciado pelos turistas estrangeiros; os adornos usados pelas mulheres que participam
da Irmandade da Boa Morte
I-9
da cidade de Cachoeira, mantendo a tradão do uso das jóias em
termos de arranjo e quantidade, talvez ainda existam algumas em ouro, outras são em prata ou em
prata dourada e a maioria são colares em metal dourado e colares de contas dos orixás.
Também no candomblé, algumas de suas adeptas ainda usam réplicas em prata de alguns
tipos destas jóias, principalmente o colar de crioula de contas de ouro ligranadas. Não importa
que sua permanência no tempo venha acompanhada da mudança de uso e da re-signicação, a
validade é possuir a persistente vitalidade do vernacular
I-10
.
Apesar de a ênfase estar sendo dada ao aspecto da permanência, sabe-se que a proposta
9
I-
Originária da cidade de Cachoeira na Bahia, a Irmandade da Boa Morte é uma das diversas confrarias católicas
do século XIX (até anterior segundo alguns estudiosos), que reuniam escravos e escravas emancipados de diversas
etnias africanas existentes na Bahia.
10
I-
Vernacular é um termo muito usado no campo do design apropriado da área de línguas, na história do ocidente
a língua considerada culta era o latim e as demais eram línguas vernáculas. Portanto se estar a usar o termo
vernacular por entender-se que as jóias escravas e suas permanências são fruto desta condição, ou seja, por força
da cultura popular, do povo, da rua e não da cultura erudita, da academia, dos museus (Stair, 2002, p. 70-88).
da Nouvelle Histoire observa tanto as continuidades quanto as rupturas. Não resta dúvida que
muita coisa mudou, mas muita coisa permanece como antes, várias práticas iniciadas no período
da escravidão continuam a ser reproduzidas na sociedade brasileira contemporânea, tanto no
que se refere aos opressores, como no que se refere aos oprimidos (Pinho, 2004, p. 235).
Ainda nos momentos iniciais da pesquisa, os estudos de Eduardo França Paiva (2001)
contribuíram signicativamente para uma melhor compreensão das jóias escravas e de suas
usuárias. Apesar de ser uma investigação em Minas Gerais, termina por estudar a jóia escrava como
demonstração da mobilidade soc ial das mulheres negras do século XVIII, ao analisar seus inventários
post-mortem e testamentos. Faz uso dos pressupostos da longa duração, tal como coloca,
Mas permanências notáveis, sobretudo no universo material, embora
não exclusivamente nele. Formas de ocupação das residências; técnicas
e produtos alimentares; móveis e utensílios domésticos; instrumentos de
trabalho; alguns ornamentos femininos. São elementos que parecem ter
atravessado incólumes esse tempo de longa duração, servido de veículo com
os quais transita-se entre mundos diferentes, como verdadeiros passeurs
culturels (PAIVA, 2001, p. 243).
Adere-se também à proposta de Paiva (2001), que trabalha em duas perspectivas: entende a
jóia escrava como objeto híbrido, indicando a existência da permeabilidade cultural, e como design de
resistência, demonstrando a impermeabilidade cultural, fenômenos típicos da longue durée. Uma via
de mão dupla, como se pode perceber na armação do autor supramencionado (idem, p.38):
O universo cultural na Colônia, portanto, era mestiço e também distinto;
era híbrido, mas, também, impermeável. Um conceito criado e empregado a
posteriori, como o de mestiçagem cultural, não pode privilegiar os elos que
favorecem o hibridismo, em detrimento das distinções e variações cultivadas
pelos grupos sociais. Mas, é preciso ressaltar, os diferentes mantêm entre si
e, às vezes, tais contatos propiciam misturas.
Para estudar a joalheria escrava baiana como um fenômeno do hibridismo cultural, existe
um grupo de teóricos de expressiva produção acadêmica
11
, desde os pioneiros como Gilberto
11
I-
A expressiva produção acadêmica se refere a: mestiçagem, hibridismo, sincretismo, miscigenação,
multiculturalismo e todos os outros nomes que são dados aos estudos das misturas culturais.
Freyre (Casa Grande e Senzala), Fernando Ortiz (Cuba), Américo Castro, Arnold Toynbee,
etc., até os contemporâneos como Homi Bhabha, Stuart Hall, Ien Ang, Nestor Canclini, Serge
Gruzinski, Edward Said, Peter Burke, entre outros (Burke, 2003, p.15 a 20).
No processo de desenvolvimento da investigação, o objeto de estudo se impõe e solicita
investigar a fundo questões a ele inerentes. Para realizar este procedimento de forma ordenada,
participou-se como ouvinte de duas disciplinas do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Bahia, a FCH 762 - A Nova História da Escravidão, ministrada pelo
Professor Doutor João José Reis e a FHC 764 - África Negra: Colonialismo, Modernização,
Raça, Classe e Gênero, ministrada pelo Professor Doutor Waldemir Zamparoni.
O motivo que conduziu ao curso da disciplina Nova História da Escravidão é óbvio: o
seria possível discorrer sobre jóia escrava sem a compreensão do que foi e como interpretamos hoje
a escravidão no Brasil. a disciplina África Negra: Colonialismo, Modernização, Raça, Classe
e Gênero, foi cursada por razões, igualmente óbvias, como a impossibilidade de versar sobre um
objeto de uso exclusivo das mulheres afro-descendentes sem conhecer a sua herança africana.
Quanto à disciplina Nova História da Escravidão, houve a apreensão de conhecimentos
indispensáveis, como as recentes características da historiograa da escravidão e os diversos
aspectos da resistência escrava. Segundo Reis (1999, p. 438),
É possível traçar as principais características da recente historiograa da
escravidão, que inclui: 1) Uma abordagem teórico-metodológica diversa, que
é multidisciplinar e envolve laços maiores com a historiograa da escravidão
em outras partes da América sem necessariamente ser comparativa; 2) um
mero maior de pesquisas empregando fontes primárias, que possuem uma
considerável diversidade; 3) ferramentas técnicas de pesquisa mais sosticadas,
usando programas computacionais avançados no aulio a história quantitativa;
4) diversicação de temas; e 5) uma ênfase nas vidas de escravos.
No que se refere à resisncia escrava, é basilar a consideração dos escravos como
agentes de sua própria história, compreendendo que a rebeldia escrava o se constitui
unicamente de atos coletivos e de grande vulto, mas também de pequenas e cotidianas
resisncias, incluindo aí a ia escrava, mbolo em diversos aspectos das estragias de
insubordinação das escravas e escravos.
A investigação da jóia escrava como design de resistência se torna viável pelo
relativamente recente advento do criticismo s-colonial e as reavaliões que isto tem
produzido (Guyatt, 2000, p.95), possibilitando desvelar como estes adornos se constituíram
em mais um dos inúmeros tipos de resistência ao sistema escravocrata, que se manteve
vigente no Brasil por mais de 300 anos. Para tanto, é necesrio apontar que o que possibilita
a realizão desta investigação, sem dúvida, se deve ao direcionamento mais recente tomado
pela historiograa da escravidão.
A visão do escravo como incapaz de ser agente da sua própria história sempre existiu. Na
Inglaterra do século XVIII, dentro do próprio movimento abolicionista da época, que adotou-se
como símbolo a sua adesão o medalhão escravo de Wedgwood
I-12
. No medalhão, a gura
de “um homem com características negras, com as mãos amarradas e elevadas para o céu,
ajoelhado, em um gesto de súplica, demonstrando que a hierarquia de poder estava estabelecida
e o escravo era claramente a parte submissa”, como tão bem analisa Guyatt (2000, p. 99).
a disciplina África Negra: Colonialismo, Modernização, Raça, Classe e Gênero foi
cursada por motivos apontados pelo próprio professor da disciplina,
É inequívoco que a construção de uma identidade passa pelo conhecimento
da própria História, não no sentido de resgatá-la idealisticamente, mas
de fazê-la presente como referência cultural. Cerca de 66 milhões de
pessoas (44% do total de 150 milhões) fazem do Brasil o segundo maior
país de negros ou descendentes de negros do mundo, perdendo somente
para a Nigéria (1991:122.340.000); entretanto, a marca da escravatura e a
hegemonia branca obscurecem esta realidade (ZAMPARONI, 2006)
I-13
.
12
I-
Josiah Wedgwood (1730-95), um dos mais famosos ceramistas britânicos e empresário, produziu o medalhão
escravo em 1787, como contribuição pessoal para a campanha da abolição do tráco escravo (Guyatt, 2000, p.93).
13
I-
Disponível em http://www.overmundo.com.br/blogs/os-estudos-africanos-no-brasil-parte-1. Acessado
em 12/06/2008.
À vista da colocação acima, como não ir à África? Como não vericar que são Áfricas,
um continente formado por 54 países e que nesta divisão territorial coexistem vários povos?
Como abordar um artefato denominado “jóia escrava” sem conhecer o legado que veio da África,
não toda ela, por ser tarefa hercúlea, para não dizer impossível, porém nacos signicativos de
Áfricas que impeçam a mitologização do objeto de estudo?
Para entender as questões de gênero e raça relativas às jóias escravas é, em primeira
instância, necessário compreender que as pessoas se apropriam dos artefatos no seu cotidiano
de modos que nem sempre são pré-determinados. Os usos que são dados aos artefatos têm
mostrado que os seres humanos são mais criativos quando se trata de manter as relações de poder
existentes ou iniciar e implementar novas. Como um signicativo exemplo disso, a jóia escrava
permite uma intrigante discussão sobre design e poder. Como fundamentação teórica para essa
discussão foi empregada a teoria de Michel Foucault que ainda é uma das mais valiosas fontes
usadas para desvelar relações de poder que atuam sobre o corpo, e como os efeitos do poder são
distribuídos através dos mais nos canais e artefatos materiais.
I-14
A contribuição de Michel Foucault nesta tese deve ser notada nas entrelinhas e de forma
estruturante em termos da adesão teórico-ideológica da pesquisadora, no seu entendimento sobre
a questão do poder nas sociedades capitalistas, principalmente sua relação com a produção da
verdade e as resistências que suscita (Microfísica do poder). É explícito o uso do pensamento
do autor sobre o sujeito na sua relação com o poder sobre si mesmo e sobre os outros (História
da Sexualidade I, II e III) e nos três aspectos essenciais da sua atitude como pensador apontados
por Marisa Eizirik (2005, orelha do livro): “o trabalho como experiência em desenvolvimento
permanente, a relatividade extrema do método e a tensão de subjetivação, constituindo uma
ética e uma estética da existência”.
14
I-
Contribuição do(a) avaliador(a) do Congresso EAD06 (European Academy of Design - 2006), 2005.
Pelo dito, pode-se perceber o quão além da Nouvelle Histoire o presente estudo se
encontra, não por abandono e sim por entendimento dos seus limites, tal como coloca Reis
(1994, p. 152), citando Quilliot (1989),
A nova lógica da cultura, que a sucede, reete a história de hoje - um universo
relativamente unicado, mas descentralizado e multipolarizado. uma
superabundância de homens, objetos, conhecimentos, idéias, informações,
obras. Há uma sensação de nivelamento e insignicância. A palavra e
o pensamento originais são raros. O espírito universal não é possível e o
pluralismo radicalizou-se. Não uma grande cultura, mas culturas. A busca
da identidade em tal mundo consiste na armação de diferenças internas
contra a massicação externa. Almeja-se uma biblioteca pessoal, um museu
pessoal, uma síntese losóca pessoal. As artes se equivalem. Não forma
de expressão superior. Não é mais possível o terrorismo intelectual, isto é,
padrões superiores de conhecimento e estética. Abriu-se mão da busca do
absoluto e não se quer mais produzir uma obra de valor universal. Não se
vive mais a época dos grandes gênios e das grandes descobertas. Não se tem
mais a ilusão da salvação na história. Vive-se autenticamente o anonimato
fundamental, em um mundo privado, que tem valor em si e não contribui
para criar o universal.
O uso da citação acima não indica o mesmo direcionamento de Quilliot, que é de
contraposição ao pensamento pós-moderno e por ele considerado como ultra-racionalista, a
questão não é desta seara. Concorda-se com ele na medida em que é detentor da capacidade
de expressar o Zeitgeist, o espírito da época, o que se estar a vivenciar desde o nal do século
XX até os nossos dias. Com isso, há a confortável sensação de não estar só e almejar pertencer
ao coletivo composto por teóricos e historiadores do design que contribuem para colocá-lo a
serviço da “aldeia humana”
I-15
, para citar alguns: Cecília Loschiavo, Ana Callvera, Rafael
Cardoso, Victor Margolin, Jonathan Woodham, Cheryl Buckley, Penny Sparke, Marina Garone,
Tevk Balcioglu, Tony Fry, Oscar Salinas e muitos, muitos mais.
A presente pesquisa, faz-se necessário esclarecer, tem início no mestrado. Quando
houve a qualicação, a banca examinadora recomendou a mudança para o doutorado, porém
15
I-
Tema do Congresso Internacional de Sociedades do Design Industrial (International Congresso of Societies
of Industrial Design – ICSID), em 1997, Toronto-Canadá.
ainda foi necessário mais um exame para a efetiva mudança de nível e nalmente, após a banca
de passagem do nível de mestrado para o nível de doutorado em junho de 2006, novos avanços
foram logrados devido ao cumprimento de créditos em disciplinas no segundo semestre letivo
de 2006. A disciplina História e Narrativas sob a responsabilidade da Profa. Dra. Maria Helena
Toledo Machado, indicou que a investigação sobre as jóias escravas pertence também à área
de estudo denominada Hermenêutica do Cotidiano na vertente proposta pela Profa. Dra. Maria
Odila Silva Dias (1998, p.236):
Crítica do conhecimento, perspectivismo e historiograa se entrecruzam
e se inter-relacionam pois, mais de um século, na lenta elaboração de
uma hermenêutica do cotidiano. O perspectivismo do conhecimento é um
fenômeno transdisciplinar que enlaça num campo único antropólogos,
sociólogos, historiadores, críticos literários e lósofos. Persegue a adequação
dos parâmetros conceituais dos cientistas sociais à possibilidade de apreender
experiências vividas por seres humanos em sociedade.
Observou que o estudo em questão está inserido no campo da micro-história, que,
[...] embora ofereça contornos bem concretos e delimitados, abre-se para
processos sociais bastante amplos. Diz respeito a quase tudo o que se atém
às relações entre sujeito e sociedade: relações de gênero, ciclos vitais,
condições de vida, estudos de gerações, história das organizações familiares,
religiosidades, formação de classes sociais, culturas populares, eruditas, -
em movimento, no tempo (DIAS, 1998, p. 237).
E deu-nos mais uma certeza em relação à escolha do percurso teórico-metodológico, a
de dar voz aos silenciados da história, como indica Maria Odila Dias (idem, p. 252):
Dar voz a sujeitos até hoje emudecidos implica redescobrir suas
temporalidades. uma multiplicidade de tempos assim como há uma
pluralidade de sujeitos que a lei e a norma ignoram. Dar voz, fazer falar
esses sujeitos anônimos e silenciados do passado, depende, intrinsecamente,
do processo de demolição do pensamento normativo, metafísico, fundante.
Fatores complicadores também fazem parte do processo e a construção do capítulo
Jóia Escrava Baiana: Questões de gênero e raça na história do design no Brasil indicou uma
sobreposição com o capítulo Design de Resistência Impermeabilidade X Objeto Híbrido
Permeabilidade, principalmente na abordagem sobre design de resistência impermeabilidade,
quando se trata as questões de gênero, raça e resistência sob a perspectiva da jóia escrava
se impõe a análise das relações entre poder e design numa abordagem conjunta. Logo, foi
necessária a modicação da estrutura inicial da tese para uma nova versão apresentada no
exame de qualicação (Quadro 1.1). No entanto, a escritura nal de uma tese incorpora em seu
processo o renamento de todo o trabalho realizando, exigindo novas mudanças que podem
ser conferidas comparativamente no Quadro 1.2., que termina por mudar também o nome do
capítulo, que passa a se chamar Joalheria escrava: design de resistência – impermeabilidades.
QUADRO 1.1 – Comparação entre a estrutura da tese inicial e no exame de qualicação.
ESTRUTURA DA TESE INICIAL ESTRUTURA DA TESE NA QUALIFICAÇÃO
INTRODUÇÃO 1.
CAPÍTULO I: 2. HISTÓRIA DO DESIGN NO
BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA
CAPÍTULO II: 3. JÓIA COMO OBJETO DO
DESIGN
CAPÍTULO III: 4. QUESTÕES DE GÊNERO
E RAÇA NA HISTÓRIA DO DESIGN NO
BRASIL
CAPÍTULO IV: 5. DESIGN DE RESISTÊNCIA
IMPERMEABILIDADE X OBJETO HÍBRIDO
– PERMEABILIDADE
CAPÍTULO V: 6. TÉCNICAS DE CONFECÇÃO
E DESCRIÇÃO DA JOALHERIA ESCRAVA
(CATALOGAÇÃO)
CONCLUSÕES 7.
INTRODUÇÃO1.
Objeto1.1.
Objetivos1.2.
Hipóteses1.3.
Metodologia 1.4.
HISTÓRIA DO DESIGN NO BRASIL: 2.
CONTRIBUIÇÃO NEGRA
Visão Panorâmica1.1.
Ourivesaria: as técnicas de confecção da 1.2.
jóia escrava
A JÓIA COMO OBJETO DO DESIGN2.
Jóia Escrava: objeto híbrido - 1.2.
permeabilidade
JÓIA ESCRAVA: QUESTÕES DE 3.
GÊNERO E RAÇA NA HISTÓRIA DO DESIGN
NO BRASIL
Gênero e Raça1.3.
Design de Resistência - impermeabilidade1.4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS4.
QUADRO 1.2 – Comparação entre a estrutura da tese no exame de qualicação e ao nal.
ESTRUTURA DA TESE NA QUALIFICAÇÃO ESTRUTURA FINAL DA TESE
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
1.1 Objeto
1.2 Objetivos
1.3 Hipóteses
1.4 Metodologia
CAPÍTULO II - HISTÓRIA DO DESIGN NO
BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA
2.1 Visão Panorâmica
2.2 Ourivesaria: as técnicas de confecção da
jóia escrava
CAPÍTULO III A JÓIA COMO OBJETO DO
DESIGN
3.1 Jóia Escrava: objeto híbrido -
permeabilidade
CAPÍTULO IV - JÓIA ESCRAVA: QUESTÕES DE
GÊNERO E RAÇA NA HISTÓRIA DO DESIGN
NO BRASIL
4.1 Gênero e Raça
4.2 Design de Resistência - impermeabilidade
CAPÍTULO V - CONSIDERAÇÕES FINAIS
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
Apresentação1.1.
Objeto1.2.
Objetivos1.3.
Hipóteses1.4.
Metodologia1.5.
Limitações da Tese1.6.
Organização Geral da Tese 1.7.
CAPÍTULO II - HISTÓRIA DO DESIGN NO
BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA
2.1 Considerações Iniciais
2.2 Indo à África
2.3 Objetos Arqueológicos
2.4 Objetos Afro- brasileiros
Afrodesign 1.5
CAPÍTULO III - JÓIA ESCRAVA:
PRIMÓRDIOS DO DESIGN MESTIÇO -
PERMEABILIDADES
3.1 A Jóia Escrava como Objeto do Design
3.2 Objeto Híbrido: Jóias Crioulas como
Materialização da Mestiçagem
3.3Artíces da Joalheira Escrava: Brancos ou
Negros?
3.4 Ourivesaria: As Técnicas de Confecção da
Jóia Escrava
CAPITULO IV - JOALHERIA ESCRAVA: DESIGN
DE RESISTÊNCIA - IMPERMEABILIDADES
4.1 Design de Resistência: Construindo um
conceito
4.2 Jóias de Crioulas: Questões de Gênero e
Raça
4.2.1 Entre Mulheres Negras: As relações
Intra-gênero e Intra-raça e as Jóias
4.2.2 Mulheres Negras e Mulheres
Brancas: As Relações Intra-gênero e
Inter-raça e as jóias
4.2.3 Mulheres Negras e Homens Brancos:
As Relações de Gênero, Raça e as Jóias
4.2.4 Mulheres Negras e Homens Negros:
As Relações de Gênero, Intra-Raça e as
Jóias
CAPÍTULO V – CONSIDERAÇÕES FINAIS
5.1 Conclusão
5.2 Contribuição Teórica
5.3 Contribuição Prática
5.4 Linhas Futuras de Investigação
O fator complicador supracitado não foi o único. Ao se elaborar uma tese de doutorado
existe um sem número de dúvidas, hesitações, incertezas. Contudo, neste processo se congurou
um dilema, ou seja, raciocínio que parte de premissas contraditórias e mutuamente excludentes,
mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão
I-16
.
O dilema desta tese é a própria condição inerente à jóia escrava:
O principal conito teórico se dava no campo das representações sociais destas ias, muitas
vezes exemplicavam-se situações, simbolizadas pelo artefato, da relação senhor versus escrava,
na linha do modelo freyreano, senhor paternalista/escravo conformado, indicando que estas ias
representavam essa permeabilidade, como uma adeo ao que se denominou democracia racial
brasileira. Essa suposta democracia racial nasce do mito de origem tão difundido no país, uma
hisria que é contada e recontada, o mito fundador: os brasileiros são um resultado da mistura
racial dos europeus, índios e negros, ou seja, a idéia e a noção de miscigenão amistosa, como se
a ordem social do país não fosse tensa e conituosa desde o século XVI. Ao contrário disso, o que
se tem na relação senhor versus escravo são situões de negociação e conito. E as situações de
negociações podem ser entendidas como cordialidade.
Mas, com o aprofundamento dos estudos sobre arte afro-brasileira, logrou-se um caminho
possível, principalmente devido ao posicionamento de Prof. Munanga, e outros combativos teóricos
engajados no Movimento Negro, ao armar que esta arte nada tem a ver com os ideais de pureza.
Com isso, nossa dupla abordagem em relação à jóia escrava baiana se dará da seguinte forma:
Ao tratar a jóia escrava em si mesma, ou seja, nas suas características estilísticas, será
explicitada a sua condição de objeto híbrido.
16
I-
A denição da palavra dilema é oriunda do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: http://
houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=dilema&stype=k. Acessado em: 13/06/2008.
Ao abordar a jóia escrava como símbolo das relações sociais e como signicado para
suas usuárias, considerar-se-á a sua condição de design de resistência.
Os entrelaçamentos ainda existirão, pois as fronteiras não são nitidamente delimitadas,
ao contrário, são borradas e, também, não se pretende praticar o maniqueísmo.
Para nalizar, irá se identicar a âncora de todo esse percurso teórico-metodológico,
visto que a necessidade de ir a outras áreas, principalmente a história e a antropologia, bem
como a sociologia para mencionar as mais importantes e de maior recorrência, promove o risco
efetivo de sair da área de investigação, a área Desenho Industrial (Design) nome de classicação
da área no CNPq, vinculada à grande área de Ciências Sociais Aplicadas. Para não perder a
perspectiva do design, foi de fundamental importância cursar as disciplinas inseridas da referida
área, O Design Posto em Questão e Design e Cenograa, ambas ministradas pela Profa. Dra.
Maria Cecília Loschiavo dos Santos, pela vasta bibliograa estudada sobre a teoria e história
do design, bem como as suas orientações, devido ao corpo de conhecimento já construído pela
referida pesquisadora, sendo basilar e estrutural nos processos e resultados desta tese. Destaca-
se como fundamental a sua sensibilidade tanto vivencial, quanto teórica, dos assuntos baianos,
que pode ser constatada em sua própria fala (SANTOS, 2004, p.51),
Um dos efeitos do design que mais me intrigava era o descarte e a reutilização
das embalagens na vida diária do povo baiano. A cuia do queijo Palmira, o
chamado queijo do reino, era um exemplo emblemático desse fenômeno.
Testemunho de uma cultura de opressão, que o reino exerceu sobre o Brasil,
os navios aportavam em Ilhéus carregados de queijos e outros produtos e
partiam da Bahia levando cacau e fumo. O queijo era consumido pelos ricos
e cava a embalagem, que era reutilizada pelos pobres.
A autora ainda acrescenta que a Bahia lhe deu as primeiras lições de diversidade cultural,
mestiçagem e design, entendendo isso em um amplo sentido da cultura material e espiritual de
um povo, percepções fundamentais à compreensão do fenômeno das ias crioulas baianas, essa
inventividade baiana que explode das entranhas da opressão.
Os estudos realizados para sua tese de doutorado Tradição e Modernidade no Móvel
Brasileiro, mais particularmente o capítulo que trata da investigação sobre uniformização de
padrões e preservação da identidade, norteiam as questões referentes à joalheria escrava devido
ao signicado (simbolismo) que possuíam para suas usuárias, como argumenta em relação aos
objetos de uma maneira geral (SANTOS, 1993, p. 22),
Gostaríamos também de considerar o ponto de vista de Gillo Dores, que
também advoga a necessidade do design responder tanto a aspectos de uso,
quanto aos requisitos estéticos, mas sobretudo simbólicos. Entendendo que
o simbólico é “(...) uma característica do objeto criado pelo homem em todo
tempo (dos fragmentos das rochas vulcânicas, às ânforas, às armaduras)
possuir uma alta capacidade simbólica. Além de sua função prática, qualquer
objeto teve e terá conotação que poderá ser: agressiva, preventiva contra o
azar, mágica, persuasiva, sagrada, etc.; e essa conotação, o mais das vezes
será desenganchada de sua utilitariedade funcional e será intimamente ligada
à uma utilitariedade psicológica e estética, que varia com o variar dos estilos
e das modas, mas das quais os homens (sic) de toda época observaram a
urgência” (grifos da autora).
E, além disso, cooperam procuamente para esta investigação, as pesquisas a que a
referida autora vem se dedicando nos últimos anos, onde examina temas relativos ao design e
suas relações com a exclusão sócio-cultural e espacial, design e atendimento a necessidades de
populações excluídas e minorias. A construção deste corpo de conhecimento pela pesquisadora
supracitada são alicerces do conceito de design de resistência vinculado às jóias das escravas da
Bahia, como será visto no capitulo IV.
Além disso, poderá se constatar, ao longo da obra da professora Maria Cecília Loschiavo
dos Santos, a busca por um ensino do design e uma prática prossional do designer que não se
submetem às exigências de uma sociedade que se apropria do design com uma compreensão
restrita a objetos de luxo, para o consumo de poucos. Ao contrário disso, forma pesquisadores
que buscam o compromisso ético do design, aquele que está a serviço das reais necessidades da
população deste país, como se averigua na colocação a seguir (ibidem, 2008, p. 65):
Mais do que nunca a palavra design ganha um sentido muito próximo, quase
um sinônimo a luxo e a alto poder aquisitivo. Essa compreensão restrita do
design repercutiu fortemente numa visão autoral da história do design, bem
como favoreceu discursos sobre a identidade cultural do design, equivocados
e distorcidos. No caso da identidade cultural brasileira, esse processo gerou
a imagem exótica de um Brasil tropical, à la Carmem Miranda, tão ao
gosto da cultura caricata de aeroporto. Essa concepção acaba obliterando
a diversidade, o hibridismo e a mestiçagem cultural dos grupos sociais e
étnicos que deram origem à formação cultural de nosso país.
Não é elaborar uma tese, é uma adesão ao que Cecília Loschiavo (2002, p.122)
dene como a formação do compromisso,
A formação para o compromisso requer uma relação direta entre a didática,
a pesquisa e a sociedade, onde cada vez mais a didática se nutre de questões
vitais. Na formação para o compromisso estão em jogo não apenas as
dimensões acadêmicas, mas também nossas qualidades humanas, ansiedade,
tristeza, indignação e esperança.
1.6 LIMITAÇÕES DA TESE
A recente historiograa da escravidão tem como uma das suas características um
número maior de pesquisas empregando fontes primárias, que possuem uma considerável
diversidade, mas do que uma caractestica se trata de uma indicação trico-metodogica
que se desejava incorporar a esta tese.
A Dra. Maria Helena Machado, professora da disciplina História e Narrativas também
rearmou a recomendação da nova historiograa da escravidão sobre a necessidade de se
empregar fontes primárias, exigência apontada na disciplina Nova História da Escravidão,
sob a responsabilidade do Prof. Dr. João José Reis.
Pesquisar as fontes documentais buscando primeiramente inventários post-mortem e/
ou testamentos de ourives do século XIX foi uma estratégia sugerida pela Profa. Dra. Maria
Helena Toledo Machado, quando cursamos sua disciplina no segundo semestre de 2006. O
objetivo era encontrar relacionada no inventário alguma encomenda de jóia escrava solicitada
por uma mulher negra e, a partir desta descoberta, vericar se a contratante possuía também
inventário post-mortem e/ou testamento. Tal investigação, além de ser uma necessidade imposta
pela metodologia escolhida, reverte-se da maior importância por ser a única maneira de dar voz
a estas mulheres, tal como fez Eduardo Paiva em suas pesquisas em Minas Gerais, como aponta
Del Priore (2001, p. 21) ao prefaciar o livro do referido pesquisador,
Graças a este livro, distantes do retrato embaçado que lhes costuma fazer
a historiograa, guras como a de Bárbara saem das sombras para a luz.
Não se trata aqui de descrever mais uma escrava que passeia publicamente
os bens de seus senhores imediatamente devolvidos ao voltar para a
senzala. Não! Seus enfeites e bens lhe pertenciam, sendo a prova de sua
ecaz mobilidade social. A mobilidade, por sua vez, comprova as astúcias
e manobras engendradas para consolidar tal fortuna. Bárbara, uma exceção
que conrma a regra? Mais uma vez, não. Mulheres como Maria da Costa
Silva, crioula forra, também possuía objetos em ouro e aljôfar entre outros
bens enquanto a africana Joana Silva Machada, comerciante e aventureira,
enriquecera transitando com desenvoltura entre autoridades e “homens
bons”. Por sua vez as pretas forras Joana da Costa Pontes e Antonia Barreta
de Faria eram possuidoras de escravos e de outros bens.
Usar como ferramenta um corpo documental que privilegie a análise qualitativa e
que seja capaz de reconstruir, ainda que parcialmente, a vida das mulheres que usavam as
jóias escravas é uma forma a desvelar com maior precio as raes da existência destes
paradigmáticos objetos, foi uma tentativa frustrada dessa tese.
O trabalho de investigação documental se iniciou, no entanto, foi apenas encontrado um
ourives com inventário post-mortem. Trata-se de Joaquim de Santana e Almeida, cuja transcrição
foi realizada pela historiadora Jacira Primo. Chega-se ao nome do ourives e a informação que
o mesmo possuía inventário, devido ao trabalho realizado pela historiadora Marieta Alves,
no livro “Dicionário de artistas e artíces na Bahia” (1976, p.21), no ANEXO II, uma
foto digital da primeira página do inventário e sua transcrição. Porém, não existia nenhuma
encomenda realizada por qualquer mulher, nem branca, nem negra. Ainda se tentou localizar os
testamentos e inventários post-mortem das pessoas envolvidas no testamento do ourives, como
esposa, lhos, uma escrava e um escravo. Não foi encontrado no Arquivo Público do Estado da
Bahia nenhum desses documentos das pessoas arroladas do inventário do ourives.
Diante do exposto pode-se apontar como limitão da investigação em pauta a
pesquisadora não possuir formação na área de história e a impossibilidade de uma tese ser
realiza por uma equipe multidisciplinar. Também existem limitações no que se refere aos
todos da antropologia e da sociologia, o que leva a concluir que as pesquisas relativas
ao design e à cultura material devem ser realizadas por equipes multidisciplinares, que
envolvam, no mínimo, os especialistas supracitados.
1.7 ORGANIZAÇÃO GERAL DA TESE
Esta tese está estruturada em 5 (cinco) capítulos, como relatado a seguir. O primeiro e presente
capítulo trata da introdução da tese, onde constam as informações sobre os percursos teóricos-
metodológicos da elaboração de tese, tais como: motivações e justicativa, o objeto de estudo e sua
delimitação, objetivos da pesquisa, hipóteses, metodologia, limitações e a sua organização geral.
O segundo capítulo, “História do Design no Brasil: contribuição negra”, aspira proporcionar
uma visão panorâmica das contribuições africanas para o design brasileiro, desde a sua pré-
guração até os dias atuais. A selão dos objetos seguiu a metodologia usada pela história da arte
brasileira, pois intra-disciplina não existem parâmetros estabelecidos. Considerara-se o caráter
ambíguo da sociedade brasileira, na qual as cercas das identidades vacilam, os deuses se tocam,
os sangues se misturam, na qual as identidades étnicas, embora defensáveis, nada têm a ver com
leis de “pureza”
I-17
. Então, os objetos serão selecionados conforme as diferentes seções propostas
por Silva e Alcântara (2004). Como resultado tem-se a prodão de material bibliográco para
o desenvolvimento da pesquisa em história do design no Brasil, através de uma revio da
historiograa de caráter etnocêntrico, que costuma não considerar as contribuições negras.
O terceiro capítulo, “Jóia Escrava: primórdios do design mestiço - permeabilidades”,
inicia-se com uma breve explicação sobre a jóia escrava como objeto do design, a condição
17
I-
MUNANGA, Kabengele. Disponível em <http//: www.cni.org.br/produtos/diversos/src/rev57/Pg%20
46_49%20Cultura.pdf >. Acesso em 03/05/2007.
52
de objeto híbrido das jóias crioulas e como exemplo material da mestiçagem. Indaga-se sobre
quais os executores destas jóias na Bahia dos séculos XVIII e XIX e naliza com um dossiê
sobre as diversas técnicas de produção e decoração da joalheria escrava baiana.
O quarto capítulo “Joalheria Escrava: Design de Resistência - Impermeabilidades”, inicia-
se com a abordagem da constrão do conceito “design de resistência” e como ele se manifesta
no objeto ia e mais especicamente na jóia escrava. Prossegue com o objetivo de revelar como
os objetos de adorno foram utilizados para estabelecer diferenças de gênero e raça na hisria
do design no Brasil, no sentido de provocar uma reeo sobre as atuais práticas de projeto que
costumam perpetuar os objetos como símbolo de desigualdade entre os sexos e os povos. Com
isso, são investigadas as relões intra-gênero e intra-raça, intra-nero e inter-raça, inter-gênero
e inter-raça, inter-gênero e intra-ra e como os objetos de adorno, as jóias usadas pelas mulheres
negras ou mestiças, permeiam, com signicados diversos, essas relões.
O quinto e último capítulo apresenta as conclusões dos estudos realizados, suas
contribuições para a construção do conhecimento no âmbito da área do design no Brasil e no
mundo, bem como os desdobramentos potenciais desta tese.
O Anexo I é composto por chas das jóias escravas por tipologia, trata-se de uma organizão
de parte do registro fotográco das jóias escravas existentes em museus da cidade do Salvador.
Esse trabalho de catalogação e chamento teve início no ano de 2002, portanto, antes de pertencer
ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo. Neste período foram registradas todas as peças do acervo Museu de Arte da Bahia e todo o
acervo de ias do Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da Bahia. Porém, o principal
acervo, devido à maior quantidade, variedade e porte das jóias que o come, é o da colão de
jóias escravas do Museu Carlos Costa Pinto. Em 2005, foi realizado o trabalho neste museu com o
auxílio do designer e fotógrafo Júlio Acevedo. A ordenação, sistematização, catalogação e análise
deste rico material de pesquisa encontram-se nas referidas chas.
57
CAPÍTULO II
________________________________________________________________
HISTÓRIA DO DESIGN NO BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA
2.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O objetivo primevo deste catulo é pagar uma parcela da vida histórica que este país tem
com todos os africanos que aqui foram escravizados e, pelas mesmas raes da recente implantão
das ações armativas, o existe margem para questionamento, pois dívida não se questiona, se
paga! E assim sendo, é fundamental concordar com Emanuel Araújo (2004, p. 243),
Se o Brasil conseguiu ser indiferente aos danos causados a seus lhos
negros, os próprios negros deste país, os que vieram da África e os que
aqui nasceram, de pais e avós brasileiros, deram talvez a mais generosa
contribuição para a construção do Novo Mundo, alimentando o poder e o
luxo dos escravocratas locais e extraindo o ouro e o diamante que faziam
a riqueza do velho mundo. O mesmo ouro que expandia a prosperidade e
o luxo que reluziam nos tempos de D. João V e Pombal e transformavam
Lisboa em sua sionomia física e econômica, como antes zera o açúcar,
desde o começo da colonização e, antes ainda, o comercio do pau-brasil, sob
o peso da escravidão indígena. (Esta, porém, ainda que a mesma, é uma
outra história...) (grifos do autor).
Também aspira proporcionar uma visão panorâmica das contribuições africanas
II-1
para
1
II-
Neste capítulo sempre que houver referência a África trata-se da África negra, a subsaariana, pois os povos
que vieram para o Brasil como escravos são procedentes dessa região.
o Design brasileiro, desde a sua pré-guração até os dias atuais. Por isso, este capítulo constitui
uma parcela dos esforços, ora existentes no Brasil, para a construção da história do Design
brasileiro, que não pretende repetir o erro do lamentável desinteresse pelos assuntos não-brancos
do discurso histórico anterior. Ou seja, a História do Design do mundo europeu, que se pretende
universal, não possui parâmetros que dêem conta da especicidade de objetos forjados em
circunstâncias histórico-culturais-tecnológicas de países como o Brasil. É necessário e urgente
incorporar à História do Design novo material, das regiões menos desenvolvidas do mundo,
bem como das classes subalternas, das mulheres e das etnias historicamente discriminadas,
como índios e negros.
A questão de partida é: Quais são as contribuições africanas para o design brasileiro?
O que se pode mostrar como produção/produtos afro-brasileiros quando intra-
disciplinarmente (Design) não existem parâmetros
II-2
estabelecidos para fazê-lo? Então,
recorre-se à História da Arte Brasileira, que investe em conceituar a arte afro-brasileira, mais
intensamente a partir da comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, em 2000,
tarefa também assumida pela exposição comemorativa deste fato denominada “Mostra do
Redescobrimento”. Tem-se aqui a mesma questão vivenciada pelo Prof. Kabengele Munanga
(2000, p. 108), como um dos curadores da referida exposição,
Numa sociedade como a brasileira, na qual não devemos negar
categoricamente o sincretismo cultural, ou, pelo menos, as inuências entre
culturas, seria raro encontrar um artista da chamada arte afro-brasileira
que manipulasse estrita e exclusivamente os critérios formais, estilísticos e
temáticos oriundos do universo africano, ou que empregasse uma linguagem
estética exclusiva de uma África aliás muito diversa, sem lançar mão de
alguns elementos provindos desse universo nacional mais amplo, no qual as
diversas culturas que aqui foram trazidas dialogam e se inuenciam, apesar
do contexto histórico colonial e escravista, caracterizado pela assimetria, no
qual se encontram. Concretamente, em algumas obras, e entre alguns artistas
2
II-
Refere-se à ausência de parâmetros em relação ao estudo das contribuições africanas para o design brasileiro.
Considera-se que a história do design no Brasil tem avançado signicativamente devido aos esforços de inúmeros
atores, tais como: congressos cientícos, revistas acadêmicas, professores e pesquisadores da área e de outras áreas
do conhecimento devido ao crescente interesse pelo design.
brasileiros, a forma, a técnica e o estilo, isoladamente, podem ser inspirados
na tradição artística africana sem necessariamente integrar a temática,
as fontes de inspiração, a iconograa e o universo simbólico familiares
ao mundo africano tradicional e contemporâneo. Em outras obras, estas
últimas características podem aparecer reinterpretadas e recriadas dentro de
estruturas e de estilísticas que nada ou pouco têm a ver com as africanas.
Excluir uma ou outra deste módulo, em nome de uma arte afro-brasileira
autêntica que não seriamos capazes de delimitar nitidamente, uma obra
que, além da origem étnica do artista, integraria no mesmo corpo todas as
características acima evocadas, seria ignorar as ambigüidades da sociedade
brasileira, sociedade na qual as cercas das identidades vacilam, os deuses
se tocam, os sangues se misturam, na qual as identidades étnicas, embora
defensáveis, nada têm a ver com leis de “pureza” (grifo do autor).
Propondo discutir a contribuição negra na hisria do design brasileiro têm-se algumas
questões de fundo que devem ser explicitadas. Em primeiro lugar, como se entende o sincretismo
cultural da citação acima em relação à cultura material brasileira, não se irá advogar em favor
do mito fundador, nem a favor da fábula das três raças, mas é sabido que são as premissas do
pensamento de nacionalidade brasileiro, como mostraram Marilena Cha(2000) e Roberto
DaMatta (1981), respectivamente. Esta colocação é indicativa do posicionamento de que não se
busca a “essência” da identidade brasileira, nem da identidade africana nos exemplos mais adiante
elencados. Estes são frutos da valorização e reconhecimento da particularidade negra que é social
e historicamente construída e constituída pelas subjetividades negras (Pinho, 2004, p.20).
Em segundo lugar, será observado que a maioria dos objetos possui procedência baiana
(exceto os exemplos vindos da África), sem dúvida pela Bahia ser constantemente citada como
a parte mais africana do Brasil, e mais, como coloca Pinho (2004, p.19),
Além de ser habitada pela maior população afro-descendente do país, a
Bahia é conhecida nacional e internacionalmente pela vibrante cultura
negra produzida em seu seio e que constitui de modo fundamental a sua
imagem pública.
Em terceiro lugar, os exemplos aqui relacionados como afro-referenciados oriundos
de qualquer período histórico (do colonial até hoje) perpassam pela tese de Eric Hobsbawm
(2002, p.13) das tradições inventadas, armando que “houve adaptação quando foi necessário
conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos ns”. Visto
que, quando se é retirado da sua terra natal de forma brutal para ser escravizado, se passa por
um processo de perda de identidade étnica, não existindo, portanto, o que se manter e sim, a
necessidade de reconstruir o que foi perdido. Nesse processo de reconstrução, as representações
objeticadas da cultura negra no Brasil estão profundamente atravessadas por modos e códigos
ocidentais (Mercer, 1988 apud Pinho, 2004, p.171).
Após essa breve fala sobre os pressupostos teóricos que embasam esta pesquisa,
retoma-se o assunto da categorização da arte afro-brasileira como referência para este estudo.
Elegeram-se as sessões propostas (vide abaixo relacionadas) por Silva & Alcântara (2004, p.
119) que são oriundas das proposições dos curadores da Mostra do Redescobrimento (2000),
supracitada. Os autores argumentam que o patrimônio material afro-brasileiro se apresenta
muito diversicado em estilística e intenção, por isto será mais facilmente compreendido se
colocado em diferentes sessões. São elas:
Arte Africana: com peças produzidas em África que se distinguem entre as
ações produtoras Nagô
II-3
, Jeje
II-4
e Angola
II-5
, entre outras;
Visão exótica do escravo africano: pinturas de Debret, Rugendas e Carlos
Julião, entre outros;
Visão do negro sobre si mesmo: artistas negros representando a imaginária
afro, como é o caso de Arthur Timóteo (séc. XIX) e José Benedito Tobias
(1930), entre outros.
Visão do branco sobre o negro: possível devido aos dois séculos de convivência
inter- racial, seus representantes são Tarcila do Amaral, Portinari e Di
Cavalcanti, entre outros;
Objetos de uso cotidiano: denominados como artesanato ou objetos utilitários,
reetem igualmente uma estética afro;
3
II-
Segundo o Dicionário Houaiss: Indivíduo dos nagôs, designação de qualquer negro escravizado,
comerciado na antiga Costa dos Escravos e que falava o ioruba. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.
jhtm?verbete=nag%F4&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
4
II-
Povo que habita o Togo, Gana, Benin e regiões vizinhas, representado entre o contingente de escravos africanos
trazidos para o Brasil. (HOUAISS. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=jeje&cod=112851.
Acesso em 10/02/2009).
5
II-
Grupo étnico que habitava a região da atual República de Angola; andongos [Representados em grande
número no contingente de escravos trazidos para o Brasil entre o início do sXVI e 1850, quando foi proibido
o tráco negreiro.]. (HOUAISS. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=angola&stype=k.
Acesso em 10/02/2009).
Objetos de uso ritual: onde ca muito clara a dialética Aié-Orúm
II-6
, importante
aspecto do ideário africano;
O momento atual: artistas como Rosana Paulino, Rego Monteiro, Mestre
Didi, Rubem Valentim e fografos como Walter Firmo, Pierre Verger,
Madalena Scharwartz, Mario Cravo Neto, retratando a situação atual da
cultura afro no país;
Campo antropológico: como proposta de Raul Lody que estuda a cultura material
corporicada, as Jóias de Axé, pencas guisos dos orixás e os de contas.
Pretende-se seguir tanto quanto possível as sessões acima estabelecidas, mas existirá
uma ênfase maior nos objetos classicados como design ou artes aplicadas, tanto por ser
o campo especíco da pesquisa, como também por haver maior quantidade de registros
em relação às peças classicadas como arte pura ou belas-artes. Esta proposta seseguida
mesmo estando consciente do fato de que a África desconhece uma separação estrita entre arte
aplicada e arte pura. Como aponta Junge (2003, p.39), curador da exposição “Arte da África
explicando a parte da exposição denominada “Design”, ilustrada na Figura 2.1 um dos objetos
expostos nesta seção,
A produção de tais objetos, que na Europa seriam correlacionados ao design
ou às artes aplicadas, não estava reservada a um grupo especial de artistas.
Na África não existiu uma separação entre arte, artes aplicadas ou design,
tal como na Europa em termos de produção, no apreço social e mesmo na
preservação e exposição em museus. Tampouco podemos reconhecer uma
distinção entre objetos destinados unicamente ao uso, objetos indicativos de
status de seu proprietário ou aqueles que também desempenham uma função
protetora, como amuleto, por exemplo.
Na África, os objetos são comunicadores, esteticamente poderosos, de história, conhecimento,
identidade e valores. Os desenhos abstratos e as esculturas gurativas que adornam os objetos
africanos possuem uma utilidade que vai além do seu embelezamento, pois são produzidos para
explicitar a situação social do seu proprietário, salientar seu status com insígnias de prestígio. Mas
também são produzidos assim porque podem ser instrumentos cerimoniais ou evocar um mito
6
II-
Segundo Ribeiro (2008, p.35 e 36): Entres os iorubas, enquanto Olodumaré, deus supremo, e os orixás estão
associados ao Orun, mundo transcendental, o homem está associado ao Aiyê, mundo físico composto pelo céu,
pelo mar, pela terra e, mais especicamente ainda, ligado a ilê (terra, casa, território).
compartilhado pela cultura local, que transmitem um signicado simbólico. Ou seja, “em categorias
de objectos tão variados como instrumentos de música, os assentos, as portas, os recipientes ou as
colheres, a ornamentação ou a forma devem ser signicantes e tão belas quanto possível, porque os
Africanos, sensíveis à beleza, a associam ao prestígio” (MEYER, 2001, p. 197)
Outro aspecto importante ao se buscar as contribuões africanas para o campo
do Design é o fato desta área de estudo, talvez por sua existência bem mais recente, o
estar preocupada com os nones eurocêntricos de classicão do que é arte africana, ou
seja, qual é a arte africana tradicional e autêntica. Destitda deste foco, pode-se ampliar
signicativamente o espectro deste legado, sem restrições de datação, de originalidade e de
Figura 2.1 – Apoio para nuca. Uganda, Lango. Séc. XIX (madeira, bra vegetal, comprimento 24 cm).
Imagem digitalizada do catálogo da exposição Arte da África (JUNGE, 2003, p. 219). Para dar a este
apoio para nuca esta forma elegantemente arqueada, a madeira cortada e polida foi vergada enquanto
estava molhada. Este processo de fabricação lembra o das chamadas “cadeiras vienenses” da marca
Thonet, fabricadas na Europa desde meados do século XIX. / Anke Scharnbeck
(2003, p.219).
objeto único, isto se deve a condição do artista africano entender seu trabalho de maneira
diferente do artista ocidental como esclarece Sidney Kasr (2008, p. 9 e 10),
[...] muitos artistas ocidentais consideram que a sua obra constitui em
primeiro lugar uma forma de realização pessoal; no entanto, essa atitude
é tão rara entre os artistas africanos, como na cultura africana em geral, a
não ser que se trate de uma elite de artistas formados em escolas de arte do
tipo ocidental. Tradicionalmente, a prossão de escultor, ou qualquer outra
que resulte na criação de artefactos (moldes em metal, tecelagem, peças
de olaria, etc.) é vista como uma actividade que não é muito diferente da
agricultura, da reparação de rádios ou da condução de um táxi. Isto não
signica que não seja uma actividade ‘séria’ o trabalho é sempre sério
que essa actividade é vista de um modo pragmático, com o objectivo
de satisfazer as exigências dos patronos. Faz-se o que é necessário, para se
tornar um artíce com sucesso (grifo da autora).
Analisando a citação acima, percebe-se que as pessoas que produzem qualquer artefato
na África, seja ele considerado objeto de arte ou não pelos ocidentais, se aproximam mais da
denição do trabalho do designer do que de um artista dentro da perspectiva do pensamento
ocidental, pois o foco sempre é no cliente/usuário.
2.2 INDO À ÁFRICA
O que se tem difundido ao longo da história do Brasil é a capacidade técnica oriunda
do branco, como um legado dos portugueses, principalmente. Quanto aos índios e aos
negros, o que se tinha em conta como legado era uma força bruta destituída de qualquer
capacidade intelectual.
Mas, o postulado da superioridade branca e da inferioridade negra não é uma
invenção brasileira, ele tem uma longa existência no Ocidente. Ele prevalece desde a
Antiguidade, quando quase não existia esta noção, o que não impediu Heródoto (século
V a.C.) de descrever os africanos (chamados de líbios) como selvagens capazes de se
alimentarem de serpentes e largatos e de emitirem sons que em nada se assemelhavam a
voz humana, até o estabelecimento da teoria da raça no século XIX, quando ocorreu um
fenômeno no mínimo intrigante: quanto mais antiescravagista se tornava a sociedade do
século das Luzes, mais se intensificava o racismo de cor, ao final do século se constituía
a ideologia dominante. Neste percurso, os preconceitos aumentam com a importação
intensa de escravos negros, pelos árabes, na Idade Média, que os consideravam como
uma raça inferior reservada à escravidão, para exemplificar que não apenas os ocidentais
engendraram tudo.
A escravizão dos negros africanos, antes de ocorrer nas Américas, foi testada
nos anos de 1470, em uma ilha não habitada chamada São Tomé ao fundo do golfo da
Guiné, sendo então, ocupada e colonizada pelos portugueses. Aumentando o contingente
de escravos ao longo dos anos, explodindo uma grande revolta entre 1530/36:Foi a partir
desse momento que se elaboraram as primeiras teorias sobre a inferioridade do negro
(COQUERY-VIDROVITCH, 2004, p. 752).
Nas Américas, das plantações de cana
II-7
as plantações de algodão
II-8
os negros foram
escravizados, preferencialmente a partir da proibição da escravização dos índios em ao longo
do século XVI até a assinatura do denominado código negro por Luís XIV em 1685, sendo
necessário justicar essa discriminação. Por isso, os teólogos trataram de demonstrá-la através
da maldição de Cam
II-9
, acrescentando-se ao texto sagrado
II-10
, vários contos, entre os quais
aquele em que Cam concebe um lho durante o dilúvio e é amaldiçoado por Deus que faz a
criança, Cuch, nascer negra (idem, p.754).
No culo XIX, antes mesmo de Darwin publicar (1859) a sua teoria da evolução das
7
II-
No Brasil (meados do século XVII), nas Antilhas (m do século XVII), na Martinica (século XVIII) Cuba
(ultimo terço do século XVIII).
8
II-
Nos Estados Unidos no inicio século XIX.
9
II-
Filho de Noé.
10
II-
“Em si mesma, a Bíblia não é portadora de racismo antinegro, pelo contrário. A questão aparece duas ou três
vezes e não se trata de da maldição de Cam, que, nela, a referência ao povo negro é uma invenção apócrifa
ulterior” (COQUERY-VIDROVITCH, 2004, p. 750).
espécies, o conde Arthur Gobineau, entre 1853 e 1855, propalava seu ensaio
II-11
, no qual
defende abertamente a superioridade branca. Sabe-se que ele não era o único teórico racista
de seu tempo, mas ganha importância para o Brasil, pois em sua visita de 15 meses como
enviado frans, aponta a inviabilidade do país, em termos “civilizatórios”, por ser composto
predominantemente por raças mistas. Esta breve exposição demonstra como a superioridade
branca e a inferioridade negra foram potica e historicamente constrda (Coquery-Vidrovitch,
2004; Schwarcz, 1993).
Em contraposição a esta versão eurocentrada, têm-se os fatos, quando se iniciou a relação
de Portugal com a África, no século XV, os diversos povos africanos, fossem eles da região
sudanesa ou bantu
II-12
, possuíam o mesmo desenvolvimento técnico dos europeus. Porém, mais
do que desenvolvimento técnico, os povos africanos que vieram escravizados para o Brasil
possuíam uma cultura vigorosa, da região que abrange o leste do rio Volta até o delta do rio
Níger (vide mapa da região na Figura 2.2), onde viviam os akans
II-13
, ewes
II-14
, fons
II-15
, iorubas
II-16
, entre outros, e onde existiam grandes áreas dominadas por reis que ostentavam muito luxo e
11
II-
Essai sur l’inégalité des races humaines (1855), em português: Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas.
12
II-
Regiões de concentração do tráco para o Brasil: 1) Ewe-fon (mina-jeje): Gana, Togo, Benim; 2) Nagô-
Iorubá: Reino de Queto (Benim) e Nigéria; 3) Bantos: Gabão, Congo, Congo-Kinshasa, Angola e Moçambique.
CASTRO, Yêda Pessoa de. Das línguas africanas ao português brasileiro. In: Patrimônio Revista Eletrônica do
IPHAN, 2007. (http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=214).
13
II-
Conforme o Dicionário Houaiss: diz-se de membro de qualquer povo falante da língua akan ou língua falada
na região do golfo da Guiné (República de Gana e República da Costa do Marm) [Freq. considerada conjunto de
línguas nigero-congolesas, subgrupo do Kwa.]. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=
akan&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
14
II-
Etimologia: africanismo; o ing. é de 1890; diversamente transliterado tb. como awuna, ehue, evé, yewe etc.
Ewe = Jeje. Segundo Cacciatore, prov. do ior. ajeji ‘estrangeiro, estranho’, design. que os iorubas, no Daomei,
atribuíam aos povos vizinhos, os daomeanos. ( Dicionário Houaiss. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/
busca.jhtm?verbete=jeje&stype=k. Acesso em 10/02/ 2009.
15
II-
Indivíduo dos fons ou dialeto do Ewe, da família nigero-congolesa de línguas africanas, falado por eles. Povo
de agricultores do Sul da República de Benin e da República Federal da Nigéria. Disponível em: http://houaiss.
uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fon&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
16
II-
Povo africano do Sudoeste da República Federal da Nigéria, com grupos espalhados tb. pela República de
Benin e pelo Norte da República do Togo [Trazido em grandes levas para o Brasil, onde recebeu a denominação
de nagô (ver)... Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=ioruba&cod=110455. Acesso em
10/02/2009.
riqueza, incentivando a construção de edifícios sosticados e fomentando a produção de objetos
de rara beleza. Eram reinos vinculados à cidade de Ifé
II-17
e foi dessa região que saiu grande
parte dos africanos tracados para América, prisioneiros de guerras entre os grupos existentes
e vendidos para comerciantes europeus (Mello e Souza, 2006, p. 21).
os povos bantos (um termo que serve para designar todos os africanos que possuem falas
aparentadas), antes dos portugueses aportarem na foz do rio Congo, havia ocorrido à denominada
historicamente expansão banta, que em 2500 anos modicou a face da África. Ocupando regiões (vide
mapa da região na Figura 2.3) que antes eram habitadas por povos nômades, eles eram agricultores,
viviam em aldeias e dominavam a metalurgia. Esta atividade, fundição de metais, exigia altas
temperaturas e para obtê-la, queimava-se uma grande quantidade de madeira das orestas do entorno,
terminando por abrir amplas clareiras, que por sua vez eram propícias à agropecuária (idem, p. 21).
O reino do Congo (de língua banto) foi uma das civilizações de grande prestígio desta região,
o seu soberano relacionava-se com o rei de Portugal de igual para igual e dentro da complexa estrutura
social e administrativa (rede comercial, sistema monetário, sociedade hierárquica rígida) que organizava o
território, era autoridade suprema e terapeuta sagrado de toda a nação. Nessa região, além dos congoleses,
viviam os cokwes
II-18
(quioco, tchokwe, khoi, chokwe, etc.), os lubas
II-19
, entre outros, e como visto
com os povos iorubas, o rei era o núcleo em que repousam e de onde se irradiam as forças de vida que
mantêm a coesão e a prosperidade do reino. Foram os objetos de suas cortes que subsistiram como raros
testemunhos de uma cultura altamente renada (Neyt e Vanderhaeghe, 2000, p. 47 e 62).
17
II-
Segundo MEYER (2001, p.21): Os Yoruba atribuem a Ifé, a sua cidade santa, uma origem mitológica. Seria
o lugar onde os deuses teriam descido do céu para povoar o mundo. Os lhos do primeiro grande deus Oduduwa
teriam criado os seus próprios reinos, e os soberanos de Ifé são ainda considerados pelos seus súditos como
semideuses.
18
II-
Povo indígena que habita o Sul da República Democrática do Congo (ex-Zaire), do rio Kwango a Lualaba, a
Nordeste de Angola e Noroeste da Zâmbia. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=quioco
&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
19
II-
Luba = Baluba, povo que habita o Sul da República Democrática do Congo (ex-Zaire). Disponível em: http://
houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=baluba&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
Todos os exemplos de objetos, técnicas e processos produtivos aqui relacionados
não possuem necessariamente uma relação direta com os artefatos afro-brasileiros, mesmo
porque vários deles, principalmente aqueles que tinham funções e signicados simbólicos
Figura 2.2 - Mapa de uma das regiões da África onde viviam alguns dos povos que vieram
como escravos para o Brasil. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira (AGUILAR, 2000, p. 36).
Figura 2.3 - Mapa de uma das regiões da África onde viviam alguns dos povos que vieram
como escravos para o Brasil. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira (AGUILAR, 2000, p. 37).
enquanto suportes materiais e espirituais do poder e da autoridade, não puderam encontrar um
espaço para continuidade e recriação no Brasil por uma simples razão: as cortes e instituições
reais que eles representavam não foram trazidas também. Aqui, foi no campo religioso onde
houve a maior possibilidade de continuidade dos elementos culturais africanos (Munanga,
2000, p.100 e 101).
Os povos africanos que foram trazidos para o Brasil dominavam a metalurgia desde
o primeiro milênio a.C. e produziam peças em bronze pelo processo da cera perdida e em
terracota; praticavam o artesanato em vidro e possuíam uma grande perfeição na arte cerâmica;
sempre praticaram a pintura rupestre e os desenhos incisos de excelente qualidade na pedra
desde o Paleolítico Inferior até os nossos dias, em que as pinturas dos Bosquímanos chegam a
incluir até automóveis e outros bens de consumo da tecnologia ocidental; além disso, há a arte
em escultura, considerada por Cunha como a maior contribuição da África negra do ponto de
vista técnico e artístico (Cunha, 1993, p. 977).
Vários povos da África possuem uma forte tradição metalúrgica, segundo Marina de
Mello e Souza (2006, p. 20) “a transformação do minério em metal era vista como uma atividade
mágica, ensinada pelos deuses, ancestrais e espíritos, o que conferia grande prestígio àqueles
que detinham esse conhecimento”. Laure Meyer (2001, p. 160) dene a situação do ferreiro em
relação às sociedades africanas,
Nas sociedades africanas, é sempre temido por causa dos seus laços com
o fogo, que levam a supor práticas de magia ou feitiçaria. É igualmente
receado pela sua familiaridade com os metais saídos do ventre da terra-mãe.
Finalmente é também visto como uma personagem ambivalente, mediadora
entre os vivos e mortos.
A sua situação social, variável de acordo com as regiões, é sempre extrema.
No Senegal, está connado ao interior de uma casta. No Mali e Costa do
Marm, é temido. No antigo Congo e Angola, pelo contrário, o trabalho
dos metais era feito pelos notáveis. Os mitos fundadores evocam a memória
do herói civilizador Tshibinda Ilunga, que ensinou aos Tshokwe a produzir
e utilizar armas mais ecazes para caça e a guerra. Entre os Kuba por m
Mbop Pelyeeng era um rei-ferreiro identicado por uma bigorna que gura
diante dele na sua estatua.
Os axântis
II-20
(ashanti), e todos os grupos étnicos pertencentes ao complexo cultural
Akan, habitavam uma região com ouro abundante, e era o ouro em o meio tradicional de troca.
Esses povos também fabricavam jóias e outros objetos em ouro, considerados como insígnias
de poder e prestígio, conforme será estudado mais adiante. Devido ao ouro em pó ser utilizado
como meio de troca, seu valor era medido por peso, conseqüentemente foi necessária a produção
de uma grande quantidade de pesos em bronze ou latão para medi-lo, denominados como “peso
de ouro” e usados durante um longo período como arma Lucia Chirinos (2004),
Os pesos foram usados durante aproximadamente cinco séculos (1400-1900)
pelos povos akan e outros relacionados a eles. Mas o seu uso e manufatura por
parte dos ashanti é o mais documentado e os levou a ser conhecidos nos catálogos
de coleções e museus como “pesos de ouro ashanti” (grifos da autora).
Um dos aspectos mais importantes destes pesos de ouro e da maioria dos objetos africanos
é possuir funções além da utilitária. Neste caso veículam provérbios e são símbolos cosmogônicos
da cultura axânti, indo muito além da função de contrapeso. No acervo do Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São Paulo MAE, existem sete destes pesos, em lao, gurativos
e geométricos, alguns do período contemporâneo e outros sem cronologia, sendo a maioria
manufaturada pela técnica de cera perdida. A pesquisadora Chirinos (2004) considera essas peças
como transmissoras de idéias que concernem não a uma escrita formal, mas a uma oralidade que
é pstica, visual e tátil, e arma, quanto ao escorpião estilizado dagura 2.4,
À representação de escorpião, é atribuído o seguinte provérbio: “Se o
escorpião pica uma boa mãe, a dor continua ate que o coração esfrie”, ou
seja, “se uma pessoa problemática na casa, não haverá paz até que ela
parta” (grifos da autora).
Outro peso de ouro freqüentemente encontrado é o crocodilo, sendo geralmente
representado com uma presa, normalmente um peixe, na boca (vide gura 2.5), pois o peixe
20
II-
Tal como escrito no Dicionário Houaiss. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=ax%
E2nti&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
constitui sua vítima natural, tendo o valor
de uma oferenda, um sacrifício. Representa
o seguinte provérbio: se o peixe crescer e
engordar muito, terá mais probabilidade
de se tornar presa natural do crocodilo,
o que signica dizer que a prosperidade
do súdito sempre benecia o rei (Carise,
1991, p. 220).
Não se tem notícia que existiram os
pesos de ouro no Brasil, vindos da África
ou fabricados aqui, pois ocialmente não se
usava o ouro em pó como moeda de troca
e os controles eram de autoria euroia, e
não africana.
Outros objetos também fabricados
em liga metálica e com a técnica de cera perdida são os edans, usados em uma associação dos
iorubas, Nigéria, de caráter político-religioso, denominada Ogboni. Alexsander Gebara (2008)
relata que a organização social dos iorubas é baseada em comunidades familiares patrilineares,
que possuem relativa autonomia, sendo mediadas pelas associações Ogboni:
A relação entre estes grupos era mediada por sociedades religiosas chamadas
Ogboni. Esta sociedade tinha funções reguladoras, determinava penas aos
criminosos e efetuava julgamentos de disputas eventualmente ocorridas entre
os diferentes grupos familiares. Além disto, tinha função de eleger o chefe
principal da cidade, intitulado Oba. As ações deliberadas pela sociedade
Ogboni, eram executadas por outra sociedade religiosa conectada a esta,
chamada Oro (grifos do autor).
Figura 2.4 - Pesos para Ouro. Tombo: 73/2.2
(Axânti – Gana). Imagem disponível no site: http://
www.arteafricana.usp.br/codigos/galeria/albuns/pe-
sos/pesos.html S/D. Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.5 - Peso de Ouro Axânti. S/D. Imagem
digitalizada do livro África: Trajes e Adornos
(CARISE, 1991, p. 220).
Como se pode observar na gura 2.6, o edan é uma peça metálica que representa um
casal. Algumas vezes os pares estão colocados sob espetos curtos e ligados na parte superior por
uma corrente. O edan pode ser um amuleto ou identicador pessoal dos membros da associação
Ogboni, cujos componentes realizam o culto a Onilé, entidade que personica a terra ou o território,
algumas vezes considerada como mais poderosa que os orixás e como a mãe de todas as deidades
iorubanas. Peças semelhantes à supracitada
existem nas coleções do Instituto Geográco e
Histórico da Bahia e no Museu Arthur Ramos.
A fotograa de uma delas foi publicada no
livro de Nina Rodrigues
II-21
. Essas peças têm
sido usadas por estudiosos como prova da
existência dessas sociedades no Recôncavo
Baiano (Ribeiro Junior, 2008, p.7).
O escultor destes artefatos deveria
ser “ancião, pois essa prossão é vedada aos
jovens por ser associada à impotência e à
perda de lhos, acreditando-se também que
homens viris venham a distorcer a forma da
imagem, um produto sagrado em si mesmo”
(Ribeiro Jr. e Salum, 2003)
II-22
.
O Professor Mariano Carneiro da Cunha (1983, p. 985), ex-diretor do Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo adquiriu uma coleção de edan
21
II-
O livro Os Africanos no Brasil [1905] foi publicado em 1932, anos depois da morte de Nina Rodrigues, por
Homero Pires (Ribeiro Junior, 2008, p. 72).
22
II-
Disponível em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/artigos/003/edan.html. Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.6 - Casal de Edan, Sudoeste da Niria,
Século XIX. Imagem digitalizada do catálogo
Mostra do Redescobrimento: arte afro-brasileira
(AGUILLAR, 2000, p. 87).
quando foi leitor na Universidade de Ifé-Ifé na Nigéria. É ele que explica a técnica de
fundição por cera perdida, tal como produzido em África (vide na Figura 2.7 as etapas de
fabricação de um edan):
a forma básica da peça é grosseiramente modelada em barro; uma folha de a.
cera recobre e é modelada em volta da forma de argila; são esculpidos os
detalhes e aplicam-se decorações em cera;
o modelo é coberto de argila e quando seco, é aquecido de cabeça para baixo b.
sobre uma pequena chama para que a cera derreta formando assim um molde;
o bronze derretido é entornado dentro do molde vazio. Após esfriamento o
molde é quebrado revelando a peça de bronze.
Os edans que foram provavelmente fabricados na Bahia, aqueles mencionados acima
(coleção do Instituto Geográco e Histórico da Bahia e do Museu Arthur Ramos), além de
serem menos detalhados em relação a sua concepção formal, em alguns casos, parecem ter
sido fundidos por um processo mais simples que o da cera perdida, em outros, aparentemente,
foi utilizada a técnica da forja (martelamento de placas ou barras metálicas a quente), muito
Figura 2.7 - Etapas de produção dos edan. Acervo MAE-USP. Fotograas: Wagner Souza e
Silva, 2000. Imagem disponível em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/artigos/003/edan.
html. Acesso em 05/02/2009.
freqüente até hoje na confecção de objetos rituais do candomblé na Bahia e na África. Na Figura
2.8, há um ferreiro executando o trabalho de forja no Quênia, século XX, como demonstração
da técnica e de sua continuidade até hoje
II-23
.
Dentro da sociedade Ogboni, os edans eram usados de diversas formas, desde uso
em rituais de inicião de um novo membro até o ritual de casamento de um membro da
associação Ogboni
, passando por rituais de promoção dos seus membros, ofensas entre
cidadãos, disputas entre membros Ogboni, contra o abuso de pessoas poderosas e briga entre
cidadãos com derramamento de sangue. Neste último
caso, se acredita que o sangue humano derramado no
chão, quando o é por sacrifício, profana a Terra, por
isso, imediatamente é colocado um edan ao lado do
sangue vertido e os envolvidos na briga pagam multa
e providenciam animais para sacrifício, cujo sangue é
despejado sobre o edan. Também se encontram edans
em forma de jóias (anéis e pendentes) que servem para
identicar os membros dessa associação.
Dando continuidade ao rol de engenhos africanos que, implícita ou explicitamente,
veiculam uma mensagem simbólica, de particular interesse são os tecidos e o vestuário. Como
explica Ducam Clarke (1998, p. 56) sobre a questão do traje na África,
Roupas são um importante meio através do qual o status social pode ser
construído e mostrado. Tanto para os trajes cerimoniais como para os do
quotidiano, as diferentes sociedades na África desenvolveram sistemas
complexos e sosticados através dos quais as idéias locais sobre autoridade,
gênero, idade, ancianidade e riqueza podem ser expressas.
Como matéria-prima usada na produção do vestuário tinha-se: pele de animais, bras
23
II-
Nem pelo texto, nem pela fotograa se pode identicar qual objeto estava sendo elaborado.
Figura 2.8 - Jua Kali, ferreiro,
mercado de Kamakunji, Nairobi,
Quénia, 1987. Fotograa: Sidney
Kasr. Imagem retirada do artigo
Arte africana e autenticidade: um
texto com uma sombra (KASFIR,
2008. Disponível em: http://www.
artafrica.info/Pdfs/artigo_14_pt.pdf.
Acesso em 02/02/2009).
vegetais, lã, algodão, seda, ráa e casca de árvore. Quanto às tintas, existem plantas nativas que
produzem cores como tonalidades de marrom, verde, amarelo e vermelho. Porém, a mais importante
tintura tem sido o índigo, como percebe-se na cerimônia fúnebre da gura 2.9, em que todos estão
com vestimentas elaboradas com tecido nesta cor (Clarke, 1998, p.58).
Fiar é uma atividade eminentemente feminina e tecer ca geralmente reservado aos homens,
apesar de, em algumas regiões, as mulheres tamm tecerem, contudo a atividade de costurar é
eminentemente masculina. No Brasil, vários
homens africanos ou afro-descendentes
se dedicaram à alfaiataria, na condão de
libertos ou como atividade de ganho.
O tear mais comum é o bem estreito
(vide Figura 2.10), apesar de existirem uma
enorme variedade de teares, que produzem
faixas de 10 a 20 cm de largura, são cortadas
e costuradas para confecção dos trajes
tradicionais (Menezes, 2000)
II-24
.
Tecidos decorados com motivos que
correspondem a uma escrita, cujos símbolos
são denominados adinkra
II-25
, que signica
“adeus”, como aqueles elaborados pelos axânti, eram elementos de decoração do vestuário utilizado
em cerimônias fúnebres. A gura 2.11 apresenta um símbolo adinkra e seu signicado. Centenas deles
24
II-
Disponível em: http://www.afrodescendencia.hpg.com.br/ideario.htm. Acesso em 10/02/2009.
25
II-
Os símbolos adinkra também são colocados em objetos de prestígio em madeira, joalheria, pesos em latão.
Os mais proeminentes são as estampas que ornamentam os tecidos. Disponível em: http://africa.si.edu/exhibits/
inscribing/adinkra.html. Acesso em 08/02/2009.
Figura 2.9 - Visitantes de um importante fune-
ral em Assamang, Gana, 1994. Nesta imagem
homens usando tecido adinkra cumprimentam
as mulheres sentadas da “abusua”, uma clã ma-
trilinear dos povos akan. O tecido escuro usado
pelo homem do centro é estampado de fábri-
ca ladeado por homens usando “biris”, tecido
tradicional. Estes tecidos escuros de azul-preto
são estampados com adinkra marrom muito
escuro, próximo ao preto, com os tradicionais
motivos adinkra. Foto e informações de auto-
ria do Professor Emérito de História da Arte
Dan Mato, Universidade de Calgary. Imagem
e informações relativas a ela estão disponíveis
no site: http://africa.si.edu/exhibits/ inscribing/
adinkra.html. Acesso em 10/02/2009.
já foram documentados e observa-se que os mais antigos estão mais freqüentemente relacionados aos
provérbios, contos e canções folclóricas e ditados populares. Os mais novos estão associados a temas
mais comuns como ora, fauna, objetos do cotidiano, etc. Controlar as nuances dessas formas grácas
de comunicação exige que os adinkra sejam elaborados por especialistas, artistas bem treinados
e anciãos (tradição recorrente para vários povos africanos) que, através de estudo, são capazes de
identicar os seus nomes e os provérbios associados a eles.
Os tecidos podem ser estampados pressionando o carimbo (símbolo), esculpido no
pedaço de cabaça, sobre o tecido ou desenhando os adinkra no tecido com um pente de dois
dentes, conforme demonstrado na gura 2.12.
Figura 2.10 - Tecelão ashati de Bonwire (conhecida como a terra do kente, é uma região de tecelões)
que cuidadosamente adiciona motivos decorativos a trama. Tiras estreitas de tecido feitas a mão,
Gana, 1997. Imagem digitalizada do livro African Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 65).
Figura 2.11 - Carimbo esculpido por Joseph
Nsiah de Ntonso, Gana, 1988.
Foto e informações de autoria do Professor
Emérito de História da Arte Dan Mato, Uni-
versidade de Calgary.
Um dos melhores e mais afamados escultores de
carimbo adinkra, Sr Nsiah, esculpiu o carimbo
ao lado em um pedaço de cabaça. A imagem/
símbolo é identicada com o provérbio: Aka
mani na mede hwe wo” - “Eu tenho apenas que
ver você com os meus olhos”, o que signica
que alguém pode observar um tolo e seus atos e
saber o resultado.
Imagem e informações relativas a ela estão dis-
poníveis no site: http://africa.si.edu/exhibits/ins-
cribing/adinkra.html. Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.12 - Um pintor de tecido trabalhan-
do em Ntonso, Gana, 1988. Foto e informações
de autoria do Professor Emérito de História
da Arte Dan Mato, Universidade de Calgary.
Os artistas que estampam e pintam tecidos tra-
balham sobre uma mesa comprida que tem uma
esteira por baixo para absorver a tinta e fornecer
trabalho de superfície, ou seja, uma textura espe-
cial. Ele traça os quadrados e alterna os motivos
inseridos em cada quadrado. Seu estilo é exclusivo,
usando um pente de dois dentes para desenhar as
padronagens de quadrados e triângulos. O eviden-
te motivo da cruz é chamado Musuyidee é um
talismã contra o mal. É uma herança do traçado
padrão do metal islâmico proveniente do norte,
uma região do país predominantemente mulçuma-
na. Este motivo também está associado ao provér-
bio: Kerapa te se okera, okyiri ” - “Puro como um
gato que abomina sujeira,” signica que alguém
deve levar uma vida boa/sem erros para ser uma
pessoa decente. Os triângulos opostos são conheci-
dos como Mframandam” - “Casa de Vento”, uma
referência que sugere arejamento, uma casa bem
ventilada, uma metáfora para a disposição para
enfrentar as mudanças circunstanciais da vida.
o Kente é um tecido também produzido pelos axântis e pelos ewes
II-26
em Gana.
Antigamente ele podia ser usado por reis. O material básico para sua produção é o
algodão do norte do Gana ou a seda. Como não havia a criação do bicho-da-seda na região,
desde o século XVII os axântis importavam tecidos de
seda, desfaziam-nos e produziam os tecidos kente. Na
corte do antigo império de Gana (século XI) somente
o rei e seus herdeiros podiam usar roupas costuradas,
enquanto os outros nobres podiam usar grandes
peças de tecido de algodão ou seda importada enrolada
no corpo (vide Figura 2.13). Estas peças de tecidos
de grande comprimento são geralmente de seda ou
algodão com complexos ornamentos, elaborados
por especialistas dos povos nupe, ioruba ou hauçá, e
tornaram-se a veste predominante de reis e chefes, bem
como de homens ricos em uma grande área da África
ocidental (Clarke, 1998, p. 58 e 60). Nas Figuras 2.14
e 2.15, há exemplares de tecidos kente.
Também muito conhecidos são os veludos do
Kasai em ráa da República Democrática do Congo.
Os Shoowa, subgrupo dos Kuba eram especialistas na
produção de um bordado aveludado policromático,
cuja textura em revelo é obtida pela inserção de pequenos tufos de bra entre o o da trama
26
II-
Etimologia: africanismo; o ing. é de 1890; diversamente transliterado tb. como awuna, ehue, ev é, yewe etc. Ewe
= Jeje. Segundo Cacciatore, prov. do ior. ajeji ‘estrangeiro, estranho’, design. que os iorubas, no Daomei, atribuíam
aos povos vizinhos, os daomeanos. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=jeje&stype=k.
Acesso em 10/02/ 2009.
Figura 2.13 - Ocial da côrte de
Asantehene de Kumasi, usando
pano pintado a mão de uma aldeia
próxima a Ntonso com os motivos
adinkra, Gana, 1997. Imagem digi-
talizada do livro African Hats and
Jewelry (CLARKE, 1998, p. 58).
e o o de encadeamento. Tais bordados eram confeccionados
antigamente por mulheres grávidas, serviam como moeda e
como vestimenta solene dos mortos, quando costurados juntos.
Com seu formato quase quadrado com medidas em torno
de 60 por 50 centímetros, a sua composição visual combina
geralmente as cores preta, marrom, amarelo queimado e marrom
claro (bronzeado), como os Kasaï das Figuras 2.16 e 2.17.
Outro modelo de veste é uma saia-envelope ou tanga
de dança (vide figuras 2.18 e 2.19), denominada ntshak,
com mais de 5 metros de comprimento, formada com
pedaços de tecido de ráfia. Entre os Kuba, a fabricação
dos tecidos era uma tarefa masculina, ornamentá-lo com
Figura 2.14 - Tecido axânti mascu-
lino. Século XX, Gana, alternando
seções de urdidura e trama de face
plana, suplementado por decorão
de trama utuante. Imagem digi-
talizada do livro African Hats and
Jewelry (CLARKE, 1998, p. 66).
Figura 2.15 - Tecido axânti femi-
nino em seda, século XX, Gana.
Imagem digitalizada do livro Afri-
can Hats and Jewelr (CLARKE,
1998, p. 67).
Figura 2.16 - Veludo do Ka-
saï, República Democrática
do Congo, Ráa, 56x54 cm
aproximadamente. Musée
Barbier Muller Gene-
bra. S/D. Imagem digitali-
zada do livro África Negra
(MEYER, 2001, p.212).
apliques decorativos era papel da mulher. O aspecto modernista dos apliques inspirou
muitos artistas europeus, como Paul Klee, entre outros. Em cerimônias oficiais, essas
saias indicavam o prestígio das mulheres
que as usavam e também eram meios de
troca no âmbito das relações sociais, como
contratos de casamento e acertos legais
(Ivanova, 2003, p. 212).
O bogolanfani ou bologan é
denominado em inglês como mud cloth,
que na tradução literal para o português,
signica tecido de lama, ‘feito com terra’
(bogo = terra). Técnica característica dos
Bambaras
II-27
, povo que ocupa uma grande
área do leste e do norte de Bamako, em
Mali, consiste na imersão do tecido branco
em uma tintura vegetal, como o Basilan.
Segundo a tradição, esse tingimento com plantas, que são também medicinais (basi = curar),
ao tecido não tons de ocre, marrom e amarelo, mas também propriedades curativas.
27
II-
Subgrupo dos mandingas da África ocidental, povo negróide de cultura guineano-sudanesa islamizada
e que habita esp. o Mali e o Senegal e tb. a Guiné-Bissau. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.
jhtm?verbete=bambara&stype=k. Acesso em 15/02/2009.
Figura 2.17 - Veludo do Kasaï, República De-
mocrática do Congo, Ráa, 68,50 x 58,50 cm.
S/D. Imagens disponíveis em: http://www.cte.
ku.edu/teachingInnovations/gallery/visiblek-
nowledge/salami/f06/a/35/G4_pictures.htm.
Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.18 - Ntshak, aplique sobre pano de oito larguras. Ráa. 525 x 78 cm. Arquivo do Museé
Dapper, Paris. S/D. Conservada em sua integridade, essa tanga decorada por apliques era usada
pelas esposas do rei, sua mãe e suas lhas por ocasião das danças do Itul, espécie de reconstitui-
ção do mito da origem do mundo. É vestida enrolada em torno da cintura, o busto nu, e cobrindo
até o tornozelo (Neyt e Vanderhaeghe, 2000, p. 52). Imagem digitalizada do catálogo da exposi-
ção Mostra do redescobrimento: arte afro-brasileira (AGUILAR, 2000, p. 52).
DETALHE DO BORDADO
FRENTE FUNDO
Com alta concentração de tanino, as plantas
utilizadas são xadores naturais, o que
garante aos tecidos uma cor que nunca
desaparecerá. O processo de confecção é
longo: primeiro as folhas do N’galama e do
Cangara e as cascas do N’péku são secas
ao sol e depois piladas, então são fervidas
ou postas de molho para soltar sua cor.
A fundadora da Cooperativa Bogolan de Djenné explica as características dos tecidos em
entrevista dada à jornalista Bordas (2008) para uma matéria na revista Marie Claire,
Madame Traoré explica que os tecidos tingidos absorvem as virtudes das plantas
terapêuticas e, portanto, são protetores, uma segunda pele que cobre e protege o
corpo, em momentos cruciais ao longo da vida, como o nascimento, a menstruação,
a circuncisão dos meninos e a excisão da meninas em algumas etnias -segundo
vários estudos cientícos, a planta N’galama tem alto poder cicatrizante.
O tecido é colocado ao sol para reforçar a tinta amarela. A fazenda é então estampada com
aplicação de lama, que, para torná-la preta, passa por um processo de fermentação em potes fechados
por duas
II-28
ou três semanas. A área que recebe a lama preta (que serão os espaços negativos do
grasmo) recebe o contorno dos motivos (vide na Figura 2.20 os motivos e seus signicados), feito
com um pincel, graveto ou outra ferramenta. Às vezes estêncil é utilizado para facilitar a execução.
Depois de lavados, para ser retirado o excesso de lama, são novamente secados ao sol. Nas áreas
onde se deseja o branco, e não o ocre de base, é aplicada com pincel ou graveto uma receita local de
sabão corrosivo pastoso, alvejando os motivos desejados. Finalmente uma nova camada de tintura
vegetal é aplicada e, em reação química com a lama, torna a tinta negra inapagável (Menezes, 2000).
Na Figura 2.21 há uma amostra do tecido pronto.
28
II-
Existem controvérsias quanto ao período de fermentação, também é dito ser necessário o período de um ano
para a conclusão desse processo.
Figura 2.19 - Saia-envelope (detalhe), ntshak. Re-
pública Democrática do Congo, Kuba. Século XX.
Fibras de ráa comprimento 535 cm. Coleção A.
Henseler. Imagem digitalizada do catálogo da ex-
posição Arte da África (JUNGE, 2003, p. 212).
Os símbolos do Bogolam
Céfarin jala: literalmente, a cintura do corajoso.
Simboliza bravura ou fecundidade.
Dankun: cruzamento de dois caminhos. Evoca um sacrifício por outras
pessoas.
Falifereke: a imagem representa animais
domésticos presos. É um símbolo do imobilismo.
Juru sarabali ka sira: ziguezague, o caminho
tomado por quem não quer pagar suas dívidas.
Kalabanci ka sira: caminho feito pelo impostor, aquele que nge ser
quem não é.
Kolon kisèso: a casa das conchas (ou moedas).
É o lugar onde se guarda a fortuna.
Bunteni ku: a cauda do escorpião, sempre
associada a pessoas desonestas, traiçoeiras.
Figura 2.20 - Símbolos do Bologan e seus respectivos signicados. Disponível em: http://revista-
marieclaire.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,1678951-
1738-1,00.html. Acesso em 10/02/2009.
A riqueza têxtil e de vestrio da África Negra é innvel, elencou-se apenas uma
parcela desta contribuão milenar e para nalizar essa amostragem, apresenta-se uma vestimenta
que está na memória de todos, é um espécie de robe de grande largura com mangas também
muito amplas, usado na maior parte da África Ocidental e da África do Norte. Denominado em
português de Boubou/Bubu, é também conhecido por outros nomes, dependendo do idioma do
país/nação em que está inserido, ou onde foi traduzido.
É uma roupa masculina que possui três peças: um par de
calças de amarrar na cintura que se anam na panturrilha,
conhecidas por Sokoto; uma camisa de mangas compridas,
conhecida por Dashiki, nomes iorubas, e uma túnica larga
usada sobre elas, o Bubu propriamente dito.
Possui versões femininas no Mali, Senegal,
Gambia e Gui, mas nas outras regiões da África negra,
a vestimenta formal feminina é o Kaftan. Na Figura
2.22, tem-se o detalhe de um bubu, e, na Figura 2.23,
o chefe da tribo usando um dos incontáveis modelos
dessa tradicional indumentária.
Figura 2.21 - Tecido Bologanni (detalhe).
S/D. Imagem digitalizada do livro African
Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 71)
Figura 2.23 - Chefe da tribo em casa.
Shedan, Nigéria. 1910–20. Imagem
disponível no site: http://www.adi-
reafricantextiles.com/images1nige-
ria7.htm.Acesso 10/10/2009.
Figura 2.22 - Bubu masculino de algoo
e seda importada. 1950. Sem indicão de
local de origem. Imagem digitalizada do li-
vro African Hats and Jewelry (CLARKE,
1998, p. 62 e 63).
Usar roupas como metáfora é um antigo costume entre vários povos africanos e é
este caráter simbólico que será mais evidente na indumentária afro-brasileira. Tal como em
outros objetos, vicejou principalmente no campo religioso: nas tradições afro-católicas e no
candomblé. Por isso, é tão importante conhecer como a questão do vestir-se sucedia e sucede na
África subsaariana. O espírito das roupas
II-29
também deve ser observado na maneira de trajar
da população brasileira como percebe Marizilda Meneses (2000)
II-30
,
Durante muito tempo relegadas ao nível do folclore, a arte e a cultura africanas
renascem, reencontrando a sua vitalidade e originalidade profundas. Esse passado
que foi muitas vezes apresentado sem interesse e grandeza merecidos, os africanos
na África e na diáspora tem procurado redescobrir. Apesar de ser negada quase
toda a inuência dos negros na cultura brasileira, com exceção do folclórico,
existem elementos que devem ser creditados à cultura africana, e que encontramos
no modo de ser e de vestir do brasileiro, características que prevalecem, apesar
da importação quase que integral da moda européia. Podemos assim destacar a
estamparia vistosa, o uso da cor, o vestir sem o preconceito moral, o adorno em
profusão, a liberdade gestual, a exuberância.
De particular interesse para esta investigação são os encontros, as misturas,
as impurezas... A África faz parte do mundo e tem longa história, neste escopo não
cabe retornar ao advento do islã na África (século VII), mas com certeza nos interessa
a chegada dos portugueses (século XV) e o impacto provocado por este encontro na
produção de objetos.
Destacar-se-ão, aqui, as mudanças ocorridas com os artefatos elaborados pelos
povos que passaram a ter contato direto com os portugueses, uma referência conveniente
para os estudos da cultura material afro-brasileira, todavia, tendo-se em conta que
no Brasil a situação possuía diferenças importantes, como a escravidão e a condição
de colônia de Portugal, pois a escravidão na África tinha suas especicidades e a sua
colonização vai acontecer efetivamente, a partir do século XIX (a despeito dos séculos
29
II-
Título do livro da pesquisadora Gilda de Melo e Souza (1987).
30
II-
Disponível em: http://www.afrodescendencia.hpg.com.br/ideario.htm. Acesso em 10/02/2009.
de convivência), os europeus (portugueses, franceses, ingleses e também holandeses)
demoram a penetrar no continente africano, entretanto quando o conseguem, terminam
por dividi-lo entre si.
Logo que os portugueses conheceram o reino do Congo (1483), estabeleceram relações
políticas e comerciais com regras de independência entre os dois reinos. A penetrão da
icnograa cristã se dá com a conversão do mani (rei) Congo ao cristianismo. Objetos de uso
cotidiano e de culto criso denotam a mescla brida de traços africanos e europeus, típicas
de reges de contato entre as culturas. O baso de marm (Figura 2.24), elemento de suporte
e decorativo para rede de transporte, é encabeçado por uma gura masculina com roupas que
se assemelham a um hábito religioso, um padre calico talvez. Todavia, a ênfase na cabeça
e a postura simétrica do corpo conferem com a estica local.
O crucixo (Figura 2.25), artigo contumaz de religiosos cristãos, foi apresentado
ao reino Congo pelos missionários. As proporções e a cabeça de Cristo correspondem ao
modelo europeu, mas seu rosto o; as três guras menores, longe do gurativo europeu,
são um entendimento local do lamento ao da cruz de Virgem Maria, Maria Madalena e
São João. O simbolismo da cruz tem uma interpretão com base na cosmovio Congo,
em que o universo é um entrecruzamento entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
As relatadas características indicam que a prodão de objetos passa a misturar linguagens
formais européias e locais. Com a batalha de Ambla, em 1665, o Congo entrou em um
processo de desagregação e guerras entre as suas diferentes proncias, e rapidamente os
símbolos cristãos foram incorporados às práticas religiosas locais como objetos poderosos,
com a força de um nkisi
II-31
(Ivanova, 2003, p. 80 e 81).
31
II-
Nkisi é para os bantos o mesmo que é o orixá para os iorubas e o mesmo que é o vodun para os ewes.
Figura 2.24 Suporte para rede com gura
masculina. República Democrática do Con-
go. Século XIX inicio do século XX. Marm,
26 cm de comprimento. Imagem digitalizada
do catálogo Arte da África (JUNGE, 2003, p.
80).
Figura 2.25 Crucixo. República Demo-
crática do Congo. Aproximadamente culo
XVI a XVIII. Liga de cobre, 31 cm de altu-
ra. Imagem digitalizada do catálogo Arte da
África (JUNGE, 2003, p. 81).
Para aprofundar a compreensão da materialização dos fenômenos sociais nos objetos, tem-
se o exemplo do trono ou cadeira real (Figuras 2.26, 2.27 e 2.28), principal sinal distintivo de poder
entre os chokwes. No entanto, antes da chegada dos portugueses, os tronos eram bancos, um tipo
de tamborete redondo chamado de “bigorna”.
Cadeiras, bancos e assentos comumente têm um
signicado simbólico proeminente na África.
O fato de os chefes chokwes terem adotado
a forma européia, provavelmente obedece ao
desejo de expressar igualdade de posição perante
os parceiros comerciais europeus. As cadeiras
européias serviram de padrão para os artesãos,
que com elas descobrem as possibilidade de
entalhe e encaixes de madeira, o uso de pregos,
bem como fecho de tapeçaria em latão. Todavia a
composição do objeto preserva o dinamismo e o
ritmo próprios da estética Chokwe.
Ao debruçar-se sobre estes três
exemplares de cadeiras, principalmente o da
gura 2.28, surge uma inquietante pergunta:
como caracterizar estas sociedades africanas de
ágrafas? Que papel valioso desempenham os
objetos para estes povos? Uma forma de escrita,
não resta dúvida... Urge aprender a lê-los!
Quando Alberto da Costa e Silva
(2003, p. 48 e 49) inicia o seu texto Uma
Figura 2.26 Trono de Chefe. República De-
mocrática do Congo, Sudoeste de Sheba. Ma-
deira, latão e couro. Museé Royal de l’Afrique
Centrale, Tervuren, Bélgica. Inspirada em
modelo de cadeira portuguesa do século XVII,
esse objeto fazia parte dos aparatos de poder
que acompanhavam os chefes em seus deslo-
camentos. Embora o couro do assento e os fe-
chos de tapeçaria em latão lembrem o original
europeu, a escultura gurativa do espaldar, os
pés e a estrutura sob a cadeira são absoluta-
mente chokwe (Neyt e Vanderhaeghe, 2000,
p. 80). Imagem digitalizada do catálogo Mos-
tra do Redescobrimento: arte afro-brasileira
(AGUILAR, 2000, p. 81).
visão brasileira da escultura tradicional africana, relata como um senufo se sentia em
relação a uma imagem (estátua) ancestral, como admirava a perfeição de suas formas. Em
contrapartida, explica que, aos olhos dos navegantes e mercadores europeus, as estatuetas
Figura 2.27 – Trono de Chefe. Ango-
la, Balombo. Madeira, pele de animal
e latão. Museu Etnográco Socie-
dade de Geograa de Lisboa, Lisboa.
As cenas que ornamentam a parte
inferior do trono são inspiradas na
vida cotidiana, do nascimento a mor-
te, com os seus pés anteriores assu-
mindo a forma de cariátides, tutores
ancestrais (Neyt e Vanderhaeghe,
2000, p. 81). Imagem digitalizada do
catálogo Mostra do Redescobrimen-
to: arte afro-brasileira (AGUILAR,
2000, p. 80)
Figura 2.28 Cadeira Real. An-
gola. Chokwe. Século XIX inicio
do século XX. Madeira, pele e la-
tão. Altura: 114,50 cm. “Sintetiza
o cosmos local: as duas máscaras
de lideres e as cenas de inicião
dos rapazes esculpidas no encosto
simbolizam os princípios do poder
político masculino associados, por
outro lado, à fertilidade feminina
(detectável nas imagens de con-
teúdo etico e na cena de parto
que decoram a parte da frente da
cadeira) e, por outro, ao poder
dos ancestrais, simbolizado pelas
cartides nas pernas da cadeira
(IVANOV, 2003, p.78). Imagem
digitalizada do catálogo Arte da
África (JUNGE, 2003, p. 78).
eram consideradas mal-acabadas, de traços duros, feiíssimas e ainda provocavam aição e
medo. Mas logo em seguida esclarece,
Não faltaram, porém, portugueses que se encantaram com a delicadeza do
trabalho em marm dos sapes (ou sapi) da Serra Leoa e dos edos ou benins
a oeste do delta do Níger. Tanto, que começaram, desde os últimos anos
do século XV, a encomendar-lhes peças em que a técnica e a sensibilidade
africanas se aplicam a objetos de tradição européia. Mostram-lhes saleiros,
paliteiros, cibórios, colheres, garfos e trompas de caça, e lhes pediram para
que imitasse. O resultado foram objetos de luminosa beleza, apreciadíssimos
nas cortes européias.
Um deles é o paradigmático saleiro em marm do século XV ou XVI elaborado por
africanos para o mercado europeu e que, em conjunto com o texto que acompanha esta peça
no catálogo da exposição Arte da África, mostra que classicar a África e suas produções de
Figura 2.29 – Saleiro - Serra Leoa, Sapi com inu-
ências portuguesas. Século XV ou XVI (marm,
altura 27,4cm.). “A partir do século XV, depois de
terem alcançado, em 1471, a foz do rio Niger, os
portugueses começaram a importar da África Oci-
dental para Europa saleiros deste tipo. Este obje-
to (saleiro) foi fabricado por um artista africano
especialmente para o mercado europeu, no Rei-
no do Sapi localizado no atual território de Serra
Leoa. Esculpido em marm, material altamente
valorizado na Europa, reúne elementos europeus e
africanos: sua forma e função, e também cada um
de seus ornamentos, como os colares de miçanga,
correspondem às preferências européias. As gu-
ras humanas e zoomórcas na base, bem como as
serpentes ao meio e em torno da tampa, fazem par-
te do repertório formal local do artista Sapi. Este
saleiro é um exemplo da criatividade dos entalha-
dores da África Ocidental, não apenas por sua qua-
lidade artística, mas também por sua exibilidade
na produção de artigos para exportação” (JUNGE,
2003, p. 74). Imagem digitalizada do catálogo Arte
da África (JUNGE, 2003, p. 75).
primitiva é no mínimo, um equívoco. Além disso, peças como essa mostram que a África nada
devia à Europa em todos os sentidos, técnicos, artísticos, sociais, etc.
Com base na citação acima, pode-se extrapolar a reexão de Junge e dizer que o artista
de Sapi, no contexto deste estudo, denominar-se-ia designer, e este, em pleno século XV ou XVI,
dominava o que muitas empresas, hoje, usam como estratégia para exportar seus produtos:
atendem de certa forma aos padrões estéticos da sociedade em que almejam inserir seu produto
e, ao mesmo tempo, mantêm as características originárias do local onde foram produzidas, no
claro estilo local-global.
2.3 OBJETOS ARQUEOLÓGICOS
Entre os vestígios materiais mais encontrados em sítios arqueológicos envolvendo os
escravos estão os cachimbos e as contas, como aponta Camilla Agostini (1998, p.116),
Ao que parece, os cachimbos cerâmicos e as contas são constantes nos
sítios arqueológicos históricos que tiveram o escravo dentro da sua rede de
relações sociais. Estes objetos aparecem também como uma constante na
iconograa dos viajantes que vieram ao Brasil no século XIX.
Quanto ao cachimbo, não é surpresa seu achado tendo em vista que nas relações
escravistas entre portugueses e africanos o tabaco era um produto de alta cotação na compra de
escravos, como esclarece Antonio Risério (1997, p.33),
Pierre Verger esclareceu a base econômica responsável pelo estabelecimento
dessa parceria entre a Bahia e o Benin. A Bahia praticamente detinha o
monopólio da produção de tabaco, produto mais cotado nas trocas do
comércio escravista naquela região africana. Autoridades colonialistas na
África chegaram mesmo a dizer que o fumo do Recôncavo Baiano tinha,
entre aqueles negros, preferência sobre o ouro.
Em toda a África, fumar e aspirar tabaco é um habito corriqueiro. O tabaco chegou à
costa ocidental africana ao nal do século XVI e penetrou para o interior do continente por
volta de 1600 a 1650, tendo como atores os navegantes e comerciantes holandeses, portugueses
e árabes. Porém todo o aparato para seu consumo era existente devido ao consumo da
cannabis sativa introduzido pelos árabes e persas na costa oriental africana. Os materiais em
que eram elaborados os cachimbos são diversos: metal, madeira e principalmente cerâmica.
Sua confecção era exclusivamente masculina. Na
Figura 2.30, um cachimbo africano e sua
descrição, em relação ao tamanho e decoração é explicada por Meyer (2001, p. 66),
O tamanho e a decoração do cachimbo eram regidos por um rigoroso
código de acordo com a categoria e a riqueza do feliz possuidor: motivo
geométrico simples para um homem vulgar, motivo antropomorfo para
os altos dignitários ou membros da família real, motivo zoomorfo se o
proprietário era membro de uma sociedade secreta ou tinha laços totêmicos
com o animal representado.
os cachimbos encontrados nos diversos sítios arqueológicos associados aos escravos,
no Brasil, eram cerâmicos e com grande variedade de padrões decorativos, alguns, com maior
freqüência, com seqüência de linhas e semi-esfera nas extremidades do fornilho e do porta-
boquilha e com duas concentrações de linhas onduladas no meio da peça (Rio de Janeiro).
Outro padrão possui características barrocas (Minas Gerais), com decorações mais rebuscadas,
compostas por duas seqüências de semi-esferas menores, mediadas por uma das semi-esferas
maiores, no meio da peça duas concentrações de linhas onduladas. Também existiam padrões
Figura 2.30 Cachimbo de chefe. Camarões, Grassland. Ba-
moum. Argila, tubo com contas. Comprimento total: 110
cm. Museu Etnográco Antuérpia. “Entre os Bamoum, o rei
Njoya tinha o hábito de oferecer como presente de casamento
cachimbos de terracota ou latão, cujo fornilho, de decoração
muito complexa, se prolongava por um tubo com revestimen-
to de contas policromas. Na parte esculpida, os motivos mais
freqüentes são uma cabeça humana com bochechas inchadas
e um séqüito de aranhas de seis patas, insetos de valor mítico”
(MEYER, 2001, p. 66). Imagem digitalizada do livro África
Negra (MEYER, 2001, p. 66).
decorativos antropomorfos nestas duas regiões (Agostini, 1998, p. 128 e 129).
Em Salvador, capital baiana, durante as obras de restauro da etapa de intervenção
no Pelourinho (centro histórico), técnicos que trabalhavam no local encontraram uma série de
objetos arqueológicos, entre eles 30 cachimbos em cerâmica, provavelmente relacionados à
cultura africana, com diversos padrões decorativos. Através das Figuras 2.31 e 2.32 constata-se
que são semelhantes à descrição dos que foram encontrados em sítios arqueológicos do Rio de
Janeiro e de Minas Gerais.
Convém salientar que esses cachimbos aproximam-se dos “cachimbos de viagem” africanos,
que eram realmente acessos, pois os de grandes dimensões eram apenas objetos de prestígio.
O cachimbo antropomorfo da Figura 2.32 assemelha-se às representações de anjos do
período barroco, usados de maneira excessiva na arte sacra barroca da América portuguesa,
aplicados em todas as tipologias de arte religiosa, desde o entalhe até a imaginária, passando
pela pintura em azulejos, tanto que passaram a ser denominados anjos barrocos. Os estudiosos
da arte apontam como elemento distintivo do barroco brasileiro a representação de santos e
anjos com traços negróides e o amulatamento das guras representadas, reforçando a idéia
de apreço da população negra pela morfologia do anjo barroco. De caráter ilustrativo e
Figura 2.31 Cachimbos en-
contrados em escavações no
Pelourinho Salvador/Bahia,
2006. O do alto a esquerda pos-
sui padrão antropomorfo. O do
alto à direita padrão geométri-
co e decorado com linhas en-
trecruzadas e os outros dois em
padrões semelhantes, mais cur-
vilíneos no formato e nos ele-
mentos decorativos. S/D. Ima-
gem disponível em: http://www.
maxpressnet.com.br/e/iphan/
cahimbos_africanos.jpg. Acesso
em 10/02/2009.
não-comparativo, na Figura 2.33 há o detalhe dos querubins que estão aplicados na base da
imagem de Nossa Senhora da Conceição da Praia, de origem portuguesa do século XVIII.
Atentando para os anjos barrocos da gura 2.33, nota-se que são bochechudos, assim como
os são, as guras antropomorfas do cachimbo africano e do cachimbo baiano.
Tanto o fato de não existirem (até o momento) cachimbos no padrão de insígnias
de prestígio, quanto a assunção de
padrões decorativos europeus indicam
como as circunstâncias impõem
mudanças por um lado e permanências
por outro. Como permanência, a
manutenção do hábito de fumar, que
foi e ainda é muito apreciado pelas
mulheres negras, conforme Figura 2.34,
uma pintura de Carlos Julião do nal do
século XVIII, onde se uma escrava
Figura 2.32 Cachimbo antropomorfo em
detalhe, remetendo claramente aos anjos do
estilo barroco. Pelourinho – Salvador/Bahia,
2006. S/D. Imagem disponível em: http://www.
maxpressnet.com.br/e/iphan/cahimbos_africa-
nos.jpg. Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.33 Detalhe dos anjos esculpidos na base da escultura de Nossa Senhora da Conceição da Praia
– Portugal. Século XVIII. Imagem digitalizada do livro Bahia: tesouros da Fé (JORDAN, 2000, p. 227).
com turbante, cachimbo, o pano bamburol
II-32
e as escaricações.
Entre os cachimbos e as contas, não resta dúvida que usar contas é uma permanência
muita mais explícita do que fumar cachimbo ao longo
da história deste país e mais especicamente na Bahia.
Mas, pode-se constatar na Figura 2.35 a continuidade do
uso destes dois artefatos por uma mulher negra baiana
do século XX participando de uma festividade local.
O uso de contas ou miçangas na África é tanto
intenso quanto antigo. As pesquisas arqueológicas
descobriram, no Sudão e na Líbia, contas datadas em
torno de 10.000 anos a.C., encontradas em uma enorme
diversidade de materiais, contudo, as mais costumeiras são
as de vidro e são sobre estas o interesse neste momento.
As contas de vidro eram e ainda são usadas
como símbolo de beleza, riqueza ou posição social; para
proteção e cura; para indicar uma adesão religiosa; como sinais de fases da vida e como indicador
de identidade grupal, e para diversos ns, como a confecção de jóias, peças de vestuários e
instrumentos musicais cerimoniais. Na Figura 2.36, há contas de vidro usadas na África, porém
de origem européia. O comércio de importação de contas da Europa é dos mais antigos na
África subsaariana, sendo os principais centros produtores desse artefato Veneza, Amsterdã
e um pouco mais tarde, a cidade de Jablonec, na atual República Checa. As fábricas, nessas
cidades, tornaram-se peritas em fornecer para África gostos e preferências em termos de cores,
32 Segundo nota do artigo de Lara (2000): Vocábulo mandinga que signica “trazer ao dorso” e que designa
o pano utilizado para carregar as crianças às costas. Cf. Antonio Carreira - Notas sobre o tráco português de
escravos (1983, p. 118).
Figura 2.34 Mulher escrava. Pin-
tura de Carlos Julião (Detalhe)
século XVIII. Imagem disponível
em: http://consorcio.bn.br/slave_
trade/iconografia/iconc1_2_8i33.
jpg. Acesso em 15/02/2009.
Figura 2.35 Mulher negra baiana. Foto de Aristides Alves (1997). Imagem digitalizada do livro
Mágica Bahia (RISÉRIO et alli, 1997, p. 27).
tamanhos e formas de contas, geralmente tentando imitar
contas de vidro manufaturadas localmente (Clarke, 1998,
p. 36-44), vide também as contas da Figura 2.37.
Tal como essas contas da Figura 2.36, que são
oriundas de túmulos, os estudos de Áurea Tavares
(2006) sobre sepultamentos humanos localizados
no sítio arqueológico da antiga Igreja da Sé em
Salvador, na Bahia, se debruçam sobre aqueles que
apresentavam colares de contas de culturas religiosas
de origem africana, provavelmente oriundos dos
séculos XVIII e XIX. Na Figura 2.38 está um dos
sepultamentos estudados e suas respectivas contas.
Figura 2.36 – Contas antigas de
vidro, de origem européia, recupe-
radas das pilhagens de túmulos no
delta do rio Niger, no interior da
região de Mali. Imagem digitaliza-
da do livro African Hats and Jewel-
ry (CLARKE, 1998, p. 38).
Figura 2.37 – As contas do colar externo e as duas em decorações azul, vermelha e branca são feitas em
Veneza desde o século XVI. O segundo colar possui contas de âmbar da Mauritânia. As contas tubulares
multicoloridas são de vidro mil ores (millore) importados de Veneza; as contas vermelhas são de Ams-
terdã. Somente as contas grandes brancas-azuladas do sul da Nigéria podem ser de fabricação local de
vidro reciclado. Imagem digitalizada do livro African Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 40).
Não é surpreendente o achado de contas em túmulos dentro de uma igreja, pois as
práticas religiosas católicas e africanas sempre coexistiram, mesmo que às vezes de forma
velada, principalmente a partir da existência de irmandades religiosas de pretos e pardos.
conito sobre a datação do seu início, mas se sabe que são anteriores ao século XVIII. Tanto na
Bahia como aponta Tavares (2006, p.18), quanto em todo o Brasil,
Há muito tempo, Salvador tem sido reconhecida como uma das localidades
do Brasil onde podem ser visualizadas, independente de outros cultos
existentes no seu território, a presença de instituições religiosas, marcadas
por princípios originários de diferentes sistemas de cultos africanos
pertencentes às diferentes culturas que chegaram através de indivíduos que
foram escravizados.
Aqui no Brasil o uso das contas é preservado principalmente pelos adeptos das religiões
afro-brasileiras. No candomblé, por exemplo, seus seguidores, ao morrer, devem ser enterrados
com o colar de contas de seu orixá, podendo ser acrescentado um colar de contas brancas que
representa Oxalá, o mais importante dos orixás, e um colar de contas vermelho-terra, vinculado
a Iansã de Igbalé, considerada como
dirigente dos mortos. No quadro 2.1, um dos
tipos de contas encontradas, entre as muitas
investigadas, nos sepultamentos do adro da
Catedral da Sé, está sendo comparado com
contas contemporâneas.
No Brasil as contas ou miçangas
caram mais restritas à aplicão em
colares e na decoração da parafernália
dos cultos afro-brasileiros, mas na África seu uso foi e é mais amplo, principalmente
nos chamados bordados de contas ou miçangas empregados na decoração de insígnias de
prestígio (tronos, coroas, bastões, cachimbos, etc.); em vestimentas, como os saiotes para
Imagem 2.38 - Sepultamento no adro da
apresentando contas em conexão com os ossos
na região do pescoço. Setor F, Qd. C-9/10, -
vel 130-170. Fonte: arquivo MAE/UFBA, 2001.
Imagem retirada da dissertação Vestígios Mate-
riais nos Enterramentos na Antiga de Salva-
dor: Postura das instituições religiosas africanas
frente à igreja católica em Salvador no período
escravista (TAVARES, 2006, p. 8).
meninas e mulheres; ornamentos de instrumento musical e em ornamentação de estatuária
religiosa. Na Figura 2.3, há uma amostra do bordado de contas aplicado em peças de
vestuário oriundas do leste e do sul da África. Este era geralmente um trabalho feito por
mulheres, e os motivos, as cores e a quantidade deste tipo de roupa sobre o corpo indicavam
a posição social e a faixa etária da usuária.
A pesquisa arqueológica no Brasil, como campo acadêmico, é relativamente recente
e grande parte dos sítios arqueológicos são descobertos ao acaso, em meio a uma construção
ou uma obra. Diante desse quadro, pode-se inferir que muito ainda está porvir do estudo
arqueológico em relação às particularidades da cultura material afro-brasileira.
Quadro 2.1 - Comparação entre contas arqueológicas e contemporâneas. Fonte: Dissertação Ves-
tígios Materiais nos Enterramentos na Antiga de Salvador: Postura das instituições religiosas
africanas frente à igreja católica em Salvador no período escravista (TAVARES, 2006, p. 116).
2.4 OBJETOS AFRO-BRASILEIROS
Várias ponderações sobre a questão do ser ou ter o selo de objeto afro-brasileiro foram
realizadas ao longo deste capítulo, mas pretende-se, nesta seção, reforçar o seguinte aspecto:
ao terem que construir novos objetos, bem como se inserir em uma sociedade dominada pelo
colonizador que impunha os seus padrões, os grupos heterogêneos de africanos escravizados
recorrem não apenas aos saberes trazidos por determinados indivíduos, mas também ao que
havia de comum aos sistemas cognitivos das pessoas pertencentes a grupos étnicos diversos,
traduzindo-os para seus próprios termos.
Dessa forma, os elementos da cultura
dominante de origem européia, ao serem
incorporados pelas comunidades afro-
descendentes, receberam sentidos por elas
criados (Mello e Souza, 2002, p. 146). Trata-
se de uma das linhas de investigação desta
tese no que se refere à cultura material afro-
brasileira, que é muito bem pontuada por
Mello e Souza para esta questão em termos
gerais (2002, p. 125),
Os estudos sobre inserção dos africanos escravizados e seus descendentes nas
Américas têm sido um campo fértil para a reexão acerca dos processos de
sincretismo, aculturação, transculturação, encontro de culturas, miscigenação
cultural, entre várias outras noções que buscam dar conta de situações nas
quais novas culturas surgem a partir do contato de povos diferentes.
Os objetos estudados são a expressão material dessas culturas que nascem do convívio
de distintos povos. No que se refere à produção de objetos em metal, foi utilizada a competência
milenar em metalurgia dos diversos grupos africanos escravizados, com os limites das
Figura 2.39 – Saiote de miçanga para crianças (es-
querda). Tanzânia, Sukuma. Século XIX ou início
do século XX, em vidro e altura de 20 cm. Saio-
te de miçanga para meninas (direita). Tanzânia,
Nyamwezi. Século XIX, em vidro e altura de 15,70
cm. Imagem digitalizada do catálogo da exposição
Arte da África (JUNGE, 2003, p. 241).
circunstâncias impostas pelos colonizadores que eram detentores dos instrumentos de poder,
restou para si (uso próprio) fabricar objetos mágico-religiosos. Dos objetos em metal, destacam-
se dois: objetos que compõem a presença imanente do orixá na forma de altar individualizado
ou coletivo, oculto aos não-iniciados, denominados pejis (altares) do candomblé e os objetos
que manifestam a relação entre o orixá e seu lho (por meio do corpo deste que é possuído
pela entidade), usados em cerimônias públicas, também chamados ferramentas dos orixás.
Dentre os inúmeros anônimos que geralmente possuem vínculo com um terreiro de candomblé,
fazendo parte de uma equipe encarregada das diversas necessidades desta prática religiosa,
têm-se aqueles que galgam as galerias de arte e museus por produzirem peças de reconhecido
valor estético, segundo a classicação de curadores, colecionadores, críticos de arte etc.. Alguns
destes prossionais são citados por Vagner Silva (2008, p. 109),
Obras de Mário Proença, Clodomir Menezes da Silva (Mimito), José Adário dos
Santos, Gilmar Tavares, Wuelyton Ferreiro, Adilson Martins, Jorge Rodrigues,
Junior de Odé, apenas para citar alguns entre tantos outros que trabalham nas
artes da pintura, modelagem de metal, olaria, escultura em madeira, produção
de vestimenta, adornos, os de contas etc., são representativas dessa arte
religiosa afro-brasileira transitiva entre o campo estético e o religioso. Em
geral, esses artistas são iniciados na religião e eles próprios, como suas obras,
transitam entre o terreiro, o atelier e os museus de arte.
O baiano José Adário do Santos é ferreiro especializado em artefatos de metal colocados
nos pejis dos orixás, com peças em vários museus nacionais e internacionais. Uma das mais
conhecidas são imagens de Ossain (Figura 2.40) por ele idealizada, com gurações de folhas de
andres em pontas de hastes de ferro: uma espécie de buquê, perfazendo um pequeno arbusto
com seus ramos plenos de delicadas formas laminares recortadas, mas evidenciadas pelo
tamanho e pelo metal branco como se fosse para reetir um verde entorno. Ele começou como
aprendiz ainda criança, levando para vender no Mercado Modelo (Salvador-Bahia) os “exus de
ferro” de seu mestre. Uma produção que, apesar do caráter estético e da alta qualidade artística,
sua vocação primeira é ritual, portanto, não é feita para contemplação, nem para ser exibida
como arte (Salum e Silva, 2006, p. 295-296). A principal técnica utilizada para elaboração dos
artefatos metálicos é a forja, sendo necessário também o recorte das folhas metálicas, a solda e
as gravações (riscos intencionais no metal), como pode ser observado na gura 2.40.
Gilmar Tavares (Figura 2.41) é outro baiano especializado nas ferramentas dos orixás:
coroas, braceletes, capacetes, cetros, couraças, espelhos e leques. Peças metálicas, que
apresentam uma riqueza muito grande de detalhes, resultados da técnica de puncionar
II-33
sua
superfície, muito usada na ourivesaria barroca portuguesa e brasileira. Agnes Mariano (2007,
web) faz um breve relato biográco de Gilmar Tavares,
O seu ingresso nesse ofício aconteceu 18 anos. “Peguei uma peça e senti
que podia e queria fazer aquilo. Na época, eu era bancário, trabalhava com
computador. Todo mundo cou chocado”, conta ele, rindo. O aprendizado,
explica Gilmar, veio da sua iniciação religiosa: “Sou ogã do terreiro Tingongo
Muende, sou lho de Oxalá”. De Mimito, ganhou uma ferramenta “que tinha sido
do pai dele” e valiosas orientações sobre os segredos dos metais. Aos poucos, seu
trabalho foi sendo conhecido e hoje é difícil encontrar um terreiro em Salvador
que não tenha alguma ferramenta sua. Depois, também meio por acaso, suas peças
foram chegando às exposições, museus e galerias, sendo reconhecidas como arte:
“Tenho trabalhos expostos na Alemanha, Chicago, França, Portugal, Argentina e
em vários estados do Brasil”.
33
II-
O puncionamento da superfície é realizado com a técnica de cinzelar e repuxar que será detalhada no próximo
capítulo.
Figura 2.41 Gilmar Tavares repuxando o metal para
imprimir o rendilhado característico das ferramen-
tas dos orixás. Imagem disponível: http://www.atarde.
com.br/fotos/index.jsf?id=1012147&foto=64604#17.
Acesso em 20/02/2009.
Figura 2.40 José Adário fazendo ferramenta
de Ossain, Salvador-Bahia, 2004. Foto: Adenor
Godim. Imagem digitalizada do livro Arte Afro-
brasileira (CONDURU, 2007, p. 36).
Gilmar Tavares, entre março a
novembro de 2006, se envolveu como um
dos idealizadores e como professor do curso
de arte-educação, destinado a ensinar jovens
a fabricar ornamentos sagrados dos rituais
do candomblé (ferramentas dos orixás)
denominado “Casa dos Objetos Mágicos”
(Figuras 2.42 e 2.43), patrocinado pelo
Programa Monumenta, em acordo com um
novo conceito de preservação: a recuperação
sustentável do patrimônio histórico
brasileiro, ou seja, o combate às causas da
degradação de sítios históricos e conjuntos
urbanos tombados e a elevação da qualidade
de vida das comunidades envolvidas. Um dos
objetivos dessa iniciativa é fazer renascer,
com força, uma antiga tradição: a produção
das ferramentas por artesãos estreitamente
vinculados ao culto. A tradição esteve
ameaçada nos últimos anos, na medida em
que os mestres artíces mais velhos foram desaparecendo e outras pessoas ocuparam seu lugar,
com uma produção em série, distanciada do universo simbólico original. O projeto tem como
meta formar novos artesãos, para lhes garantir uma ocupação remunerada e a possibilidade de
desenvolver seus dotes artísticos. Diplomaram-se dezenove alunos ao nal do curso e parte
deles estava iniciando a fundação de uma cooperativa.
Figura 2.42 Alunos e alunas do curso em aula
de desenho. Ao fundo da sala, em pé, Gilmar
Tavares. Imagem retirada do documento Casa
dos objetos mágicos (IPHAN, 2007, p. 42). Dis-
ponível em: http://www.monu menta.gov.br/site/
wp-content/uploads/2008/04/objetosmagicos96-
dpi.pdf. Acesso em 20/02/2009.
Figura 2.43 – Coroa elaborada pelos alunos do
curso. Imagem retirada do documento Casa
dos objetos mágicos (IPHAN, 2007, p. 8). Dispo-
nível em: http://www.monumenta.gov.br/site/
wp-content/uploads/2008/04/objetosmagicos
96dpi.pdf. Acesso em 20/02/2009.
Essa política de preservação vem ao encontro do ideário do ex-presidente do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o designer Aloísio Magalhães (1999, p. 11):
Aqui, a natureza contrastada e desigual do processo de desenvolvimento
gera problemas naquela relação, que exigem um posicionamento de latitudes
extremamente amplas; a consciência da modéstia de nossos recursos para
a amplitude do espaço territorial; a responsabilidade ética de diminuir o
contraste entre as pequenas áreas altamente concentradas de riquezas e
benefícios e grandes áreas rarefeitas e pobres. Nestas é poderosa apenas
a riqueza latente de autenticidade e originalidade da cultura brasileira.
Naquelas a carência de originalidade deu lugar à exuberante presença da
copia e o gosto mimético por outros valores culturais.
Corroborando com a mesma losoa de Aloísio Magalhães, está a arquiteta e designer
Lina Bo Bardi (1994, p. 21), quando (re)arma a necessidade de ações como a supracitada para
o Design brasileiro, com o objetivo de reinventar-se a partir do processo de conhecimento de si
mesmo, ou seja, da cultura brasileira,
Procurar com atenção as bases culturais de um país, (sejam quais forem:
pobres, míseras, populares) quando reais, não signica conservar as formas
e os materiais, signica avaliar as possibilidades criativas originais. Os
materiais modernos e os modernos sistemas de produção tomarão depois
o lugar dos meios primitivos, conservando, não as formas, mas a estrutura
profunda daquelas possibilidades.
Ainda em relação às obras “ferramentas de orixás”, estas são as insígnias e adereços
que o orixá carrega na cabeça, pescoço, peito, ombros, pulsos, mãos e pernas e se constituem
em uma parte da indumentária litúrgica dos orixás. A outra parte se refere às roupas que
vestem efetivamente o corpo do adepto no momento do culto. Para melhor compreensão dessa
composição de vestes e ferramentas, apesar da sua grande popularidade, a Figura 2.44 mostra o
traje de Ogum, deus do ferro e das guerras, em uma interpretação fotográca de Aristides Alves.
O adê (coroa, chapéu ou capacete) que traz na cabeça é um acessório obrigatório de quase todo
orixá, e indica a sua condição de antepassado divinizado. Nos orixás femininos, ao adê está
preso o lá, que são os de conta enleirados, possuindo um comprimento que cubra os olhos
e nariz. Por conta do contato das culturas africana e européia no Brasil, alguns adês são coroas
Figura 2.44 Orixá Ogum. Fotograa de Aristides Alves. Imagem digitalizada do livro Mágica
Bahia (RISÉRIO et alli, 1997, p. 81).
tipicamente européias, observe na Figura 2.44 que o cinturão e os braceletes de Ogum remetem
aos cavaleiros romanos ou medievais (Vagner, 2008, p. 102).
Além das indumentárias dos orixás, existe outro traje, o da baiana, composto pelo torço
branco ou colorido, saia rodada e camizu (pequena bata) de richelieu e o pano da Costa, levado
sobre o ombro, que as religiões afro-brasileiras tiveram participação ativa na sua perenização
e reconhecimento, “um exemplo dessa arte religiosa do vestir derivada tanto de uma estética
africana como da imposição de uma moda européia” (VAGNER, 2008, p. 101). Nesta seção nos
interessa particularmente o pano de alacá ou pano da Costa, começando por esclarecer o porquê
da denominação “da Costa” pela antropóloga Heloísa Torres (2004, p. 417),
Chama-se ao pano, “da Costa” como se dizia dos demais produtos importados
da África e que tinham uso popular: sabão da Costa, limo da Costa, búzio da
Costa, muito embora a origem de alguns deles seja vária e ainda controversa.
A princípio estendia-se a denominação a todos os tecidos importados da
África, qualquer que fosse a sua aplicação; o uso lhe foi restringindo o
campo até a limitação ao xale.
Um dos mais conhecidos tecelões de pano da Costa é o Mestre Abdias Sacramento
Nobre (Figura 2.45) que, segundo Lody (1999, p. 248), recebeu os ensinamentos da arte de tecer
pano da Costa de seu padrinho Alexandre Gerardis
II-34
da Conceição, que, por sua vez, aprendeu
a tecer com seu pai, Ezequiel Antônio Geraldes da Conceição (nascido livre). Este não foi
tecelão, era pedreiro e seu lho Alexandre foi funcionário dos Correios. Ezequiel aprendeu o
ofício com seu pai, Antonio Campos (nascido ioruba), que veio para o Brasil muito jovem e foi
forro por uma Junta de patrícios; a alforria se justicou pela alegação de que Antônio conhecia
ofício (Torres, 2004, p. 425). De acordo com os relatos de Lody sobre Abdias e de Torres
sobre Alexandre, ambos teciam conforme a tradição africana, com a técnica supracitada de unir
34
II-
Alexandre Geraldes da Conceição, conforme a antropóloga Heloísa Alberto Torres que o entrevistou para sua
pesquisa Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana, tese apresentada no concurso para provimento da
Cadeira de Antropologia e Etnograa da Faculdade Nacional de Filosoa da Universidade do Brasil, 1950.
tiras estreitas até a largura desejada pelo usuário/a. Os panos pesquisados por Torres datam de
1890/95 a 1930/35. Ela aponta as diferenças, em relação aos africanos,
Quanto ao aspecto tecnológico, portanto, podemos dizer que surgiu no Brasil
um novo estilo, não somente pela adoção do tempereiro no tear o que,
paralela, mas independentemente, ocorreu na África sob inuência européia
- como na reinterpretação dos setores transversais, às vezes bordados, de
África, a que me parece corresponderem os setores em tecido frouxo, ou de
fustão ou de cor variante, adotadas na tecelagem negra no Brasil e já acima
referidos. (Ibidem)
Na Figura 2.46, Torres (2004, p. 453)
detalha com desenhos os modos de usar o pano
da Costa. Da esquerda para a direita, em cima:
1) saída a passeio com o traje de cerimônia;
2) saída à rua, a serviço, com o traje diário;
3) costas do 1º. Embaixo, na mesma ordem:
1) modo também de cerimônia, agasalhando
mais; 2) pano da Costa de mulher que se dispõe
a trabalhar; 3) modo de usá-lo em cerimônia
do culto orixá masculino. Ao centro (32 a 36),
diferentes modos de usar o torso.
O pano da Costa não é apenas um simples componente do traje da baiana, apesar de
ser um traje híbrido, o seu signicado remete a uma compreensão africana de mundo, indica
hierarquia, pois, pela maneira de usar o pano sabe-se a posição da usuária. As cores estão
associadas ao orixá, vodum ou inquice da usuária e se aproximam funcional e visualmente dos
xales luso-espanhóis (Lody, 2003, p. 248 e 249).
Os colares de contas ou miçangas no candomblé são emblemas de todas as fases da
vida religiosa de um adepto, e, para serem usadas como objeto litúrgico, passam por um
Figura 2.45 – Mestre Abdias (Abdias do Sacra-
mento Nobre Salvador, BA 1910). Imagem
digitalizada do livro A Mão Afro-Brasileira:
Signicado da Contribuição Artística e Históri-
ca (ARAÚJO, 1988, p. 244).
processo de sacralização através de um banho de folhas e outros materiais. O candidato à
iniciação (abiã) recebe o colar de seu orixá e o de oxalá, para entender a sua importância.
No período da iniciação, já chamado de iaô, vai ter direito a uma coleção de os de contas
que obrigatoriamente devem ter um comprimento até a altura do umbigo (inhãs) e contas
que indicam sua condição de iniciado, sendo sacralizadas em sangue. Antes dos sete anos,
período que dura a iniciação, sempre recebe alguma conta enfeitada, pelos três anos
de iniciação. Ao tornar-se ebomi, quando está nalizado o período de iniciação, adquire
Figura 2.46 Desenhos explicativos dos modos de usar o pano da costa. Imagem retirada do
documento Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana (TORRES, 2004, p. 453).
os adornos que indicam ter alcançado este estágio e
também ganha a liberdade de criar seus próprios os,
escolhendo o tamanho e os materiais de suas contas
(Lemos, 2002).
Os os de contas, já analisados enquanto objetos
arqueológicos, persistem no cenário contemporâneo,
atualizados na concepção do artista/designer Junior de
Odé, tal como indica Conduru (2007, p. 43),
Certa ânsia pela modernidade faz de sua produção de os
de contas algo semelhante a uma caçada: antevisto na
imaginação, cada colar resulta na pesquisa e aquisição de
peças e materiais novos e inusitados. Flexibilizando as
regras, tanto se vale apenas de contas, explorando a gama
de cores e formas, quanto incorpora elementos naturais em
que os orixás se manifestam, como a casca de coco em os
de Oxossi e o bambu nos de Iansã.
Também é referencial contemporâneo de colares
de conta, aqueles concebidos por Jorge Rodrigues, resultado de uma vasta pesquisa sobre a
iconograa africana tradicional e uma convivência de longa data com o candomblé. Na Figura
2.47 está Ângela de Oyá usando os de contas da autoria de Jorge Rodrigues (Figura 2.48) e de
Junior de Odé (Figura 2.49).
Figura 2.47 – Ângela de Oyá usan-
do colares da autoria de Junior de
Odé e Jorge Rodrigues. Imagem
digitalizada do livro Arte Afro-Bra-
sileira (CONDURU, 2007, p. 42)
Figura 2.48 Fios de conta da autoria de Jor-
ge Rodrigues, o da esquerda refere-se a oxa-
lá, e o da direita, a xangô. Fotos de Francisco
Moreira da Costa, 2002. Imagens disponíveis
em: http://www.studium.iar.unicamp.br/10/id/
galeria.html. Acesso em 20/02/2009.
Figura 2.49 Fios de conta da autoria de Ju-
nior de Odé, o da esquerda refere-se a oxalá, e
o da direita, a xangô. Fotos de Francisco Mo-
reira da Costa, 2002. Imagens disponíveis em:
http://www.studium.iar.unicamp.br/10/id/ga-
leria.html. Acesso em 20/02/2009.
É justo lembrar que a cultura brasileira, nascida do contato inicial de três diferentes
povos e mais tarde de outros, mas sempre sobre a supremacia branca européia que agia de
forma complacente, algumas vezes, e, em outras, coibia as manifestações praticadas pelas
comunidades de negros. A permanência das contribuições africanas até os nossos dias é fruto de
muita resistência, que soube aproveitar a complacência se unindo aos portugueses, mesmo que
esquadrinhado o seu lugar nas manifestações católicas, transformando-as em afro-católicas,
como é o caso de quase todas as festas populares deste país, principalmente em Salvador e no
Estado da Bahia. As proibições foram superadas de diversas formas, desde o fazer às escondidas
até a rebeldia aberta e coletiva. O combate ao candomblé perdurou, aproximadamente, até 1930,
sendo intenso e sistemático, “por denuncias de gente grande e pequena, sobretudo da imprensa,
e a conseqüente repressão policial” (REIS, 2008, p.26).
A produção material gerada destas contribuições para alcançar as galerias de arte e
museus, sem a qualicação de material exótico de culturas primitivas, necessitou de quase
quatro séculos de sangue, suor e lágrimas da população afro-brasileira.
2.5 AFRODESIGN
Desde o início da escravio até hoje, muitas faces tiveram a questão racial no Brasil e
a sua respectiva expressão material. O poder de agrupamento do povo negro sempre se revelou,
seja nas irmandades, nos candomblés, nas festas, nos levantes ou revoltas e continuou pós-
abolição da escravatura, mesmo acontecendo em clima, muitas vezes, marcado pelo desejo de
branqueamento demogco e cultural, imperando o racismo em todos os setores da sociedade,
conseentemente, dicultando sobremaneira a integração do negro no país. Para sobreviver,
negros e mestiços seguiram a sua capacidade de organizar-se coletivamente e, entre 1931 e 1937,
criaram: a imprensa negra, que não conseguiam penetrar na imprensa ocial; organizações
sociais, pois também o eram bem-vindos nos clubes da elite; e um movimento político próprio,
pois também, até hoje, é um espaço majoritariamente branco. Todos voltados para a defesa
dos direitos civis e políticos da população afro-brasileira, foram fundados jornais como A Voz
da Ra, O Clarim da Alvorada, clubes sociais negros e a Frente Negra Brasileira. Tanto em São
Paulo como na Bahia, a Frente tinha como estratégia fazer com que o negro se sentisse parte da
sociedade brasileira, renegando solenemente a herança africana de seus representados, como a
religo, danças, etc.. A proposta era de, mesmo sendo negro, tornar-se culturalmente branco.
Assumir atitudes da classe hegemônica não era novidade, sempre ocorreu, todavia era a
primeira vez que acontecia de forma organizada e coletiva. E é a partir daí que se tem a negação
de uma estética afro-brasileira que vinha sendo construída por séculos. Por outro lado, nessa
mesma época e um pouco antes, no marco inaugural da arte moderna brasileira - a semana de
22 (século XX) -, intelectuais e artistas buscam as manifestações de matriz africana, como
“verdadeiras” representações da nação brasileira, mediadoras entre cultura popular e erudita em
busca dos símbolos de identidade nacional.
Em paralelo, quando ocorre a completa e total ascensão norte-americana, para
demonstrar que “brasileiro tão bonzinho”, o governo brasileiro banca o projeto de imagem
ocial do país à “La Carmem Miranda”. Portanto, aquele momento foi marcado pela seguinte
conguração: a negação de uma estética afro-brasileira pelo movimento negro; a busca da
identidade através da estética afro-brasileira pelos intelectuais e artistas; e o estereótipo da
estética afro-brasileira pelo governo.
Porém, o Movimento Negro (assim será chamado) não estaciona na Frente. A partir da
década de 70 do século passado, os negros conquistam uma discussão mais honesta no país sobre
a questão racial. Desde então, a população da cidade de Salvador vem exercitando uma prática
de retomada e rearmação de valores da cultura negra. Esses valores, que foram secularmente
reprimidos, estão sendo recuperados através de um acelerado processo de conscientização e
auto-estima, alterando radicalmente o clima cultural da cidade:
Na Bahia, os blocos afro, surgidos nos anos 1970, no bojo do processo de
formação de uma cultura negra internacional contemporânea, tem sido,
desde então, os principais condutores desta conexão. Através das letras de
suas canções, da criação de vestuários e penteados “afro”, e da elaboração
de uma rica narrativa identitária, os blocos afro recriam e perpetuam o
mito Mama África, a terra-mãe dos negros na diáspora, onde residiriam o
“fundamento” e a “originalidade” (PINHO, 2004, p.33) (grifos do autor).
Com isso, abre-se um grande espaço para
elaboração de produtos cujo design (proposta estético-
formal) tem em sua concepção referências africanas,
não importando a origem geográca africana, desde
que remeta a África. Como exemplo de afro-design
para blocos afro existe o trabalho do designer J. Cunha,
que, durante mais de 30 anos, assinou a concepção
visual e estética do Ylê-Ayê. Suas criações são pautadas
nas temáticas estabelecidas pelo bloco, geralmente
homenageando países africanos como a Nigéria, Benin,
Congo, Angola, Guiné Conakry, etc. O designer, relata
que, desde o início, cou combinado com a direção
do bloco que as cores utilizadas não mudariam, a m
de manter um estilo: preto (relacionada à condição
da cor da pele), amarelo (luz), vermelho (sacrifício, a
história do negro no Brasil) e branco (a vitória, a paz e
o candomblé). Nas Figuras 2.50 e 2.51, trabalhos do
designer desenvolvido para o bloco.
A designer baiana Goya Lopes desenvolve
produtos para moda e decoração de interiores (vide
Figura 2.50 - Estamparia para o
bloco Ylê-A/ Carnaval de 2001.
Imagem digitalizada do livro De-
sign na Bahia (GUERRA et alli,
2002, p.72).
Figura 2.51 - Capa de disco para
o bloco Ylê-Ayê. Imagem digita-
lizada do livro Design na Bahia
(GUERRA et alli, 2002, p.73).
Figuras 2.52 e 2.53), e, segundo o texto disponível em seu site, optou por este caminho por
razões empresariais de tendência de mercado,
Em 1980, percebendo a inuência da cultura étnica aqui na Bahia resolvi fazer
um projeto de design criando produtos afro-baianos para moda e decoração.
Em 1986, intuindo que essa tendência ainda tinha muito a crescer e sentindo
que este projeto poderia continuar por muitos anos criei a Didara. Tornei-me
micro-empresária com a nalidade de atender à necessidade do mercado e
também o desejo de ser um referencial da moda afro-brasileira.
Nesta pesquisa, não se pode excluir exemplos
no campo do design de jóias, com trabalhos expressivos
como são os de Waldeloir Rego, Chico da Prata, Annete
Sorin e também o Mestre Didi, com uma rara coleção
exposta uma única vez em Salvador, tendo em vista não
ser o objeto da sua especialidade.
Waldeloir Rego (1930-2001) (Figura 2.54),
foi um reconhecido pesquisador/escritor baiano, além
de etnólogo, historiador, folclorista. Ogan do terreiro
de candomblé Ylé Axé Opó Ajonjá, é conhecido
por sua produção de adereços para os trajes do culto.
Autor do livro “Capoeira Angola”, possuía um enorme
acervo, com mais de 15 mil obras que hoje estão sob
a responsabilidade da biblioteca pública do estado da
Bahia, transformado em Memorial Waldeloir Rego. Ele
também projetava jóias.
A baiana Annete Sorin (Figura 2.55) dedica-se
ao design de jóias e é a religiosidade afro-brasileira
que inspira suas criações. Suas peças chegaram ao
Figura 2.52 Composição de várias
estampas. Imagem digitalizada do
livro Design na Bahia (GUERRA
et alli, 2002, p.66).
Figura 2.53 Vestuário e acessó-
rios diversos. Imagem digitalizada
do livro Design na Bahia (GUER-
RA et alli, 2002, p.67).
conhecimento do público em 1999, quando
realizou em Salvador a exposição “Formas
de Nanã”. Depois, recebeu um convite para
mostrar seu trabalho em Paris, na loja de
departamentos Bon Marché.
Deoscoredes Maximiliano dos Santos,
com o nome artístico de Mestre Didi (Figura
2.56), é descendente da tradicional família
Asipa, originária de Oyo e Ketu, importantes
cidades do império Iorubá. Mais antigo
descendente, no Brasil, do reino do Ketu, hoje
ocupado pela Nigéria e pelo Benin, Mestre Didi
recebeu, em 1983, o título máximo de Obá (rei)
Mobá Oni Xangô, do Rei do Ketu, na Republica
de Benin. É autor de vários livros, dentre eles
um dicionário português-iorubá. Aos oito anos
foi iniciado no culto aos ancestrais, dedicando
toda sua vida a preservar a tradição legada
pelos seus antepassados. É conhecido internacionalmente por sua extensa produção de esculturas,
e suas obras fazem parte do acervo do Museu Picasso, em Paris, do MAM de Salvador e do Rio de
Janeiro, entre vários outros museus estrangeiros. As peças da Figura 2.56 são elaboradas em ossos e
miçangas, criações em design de jóias do Mestre, pouco conhecidas pelo grande público.
Em Salvador existem inúmeros designers que possuem algum trabalho afro-referenciado
por opção ou por demanda. Trabalhos signicativos, principalmente por estarem envolvidos
neste imenso caldo cultural que caracteriza a cultura afro-baiana.
Figura 2.54 – Colares baseados em motivos
afro-brasileiros, em prata, búzios e pedras se-
mipreciosas, produzidos por Waldeloir Rego.
Imagem digitalizada do livro A Mão Afro-Bra-
sileira (ARAÚJO, 1988, p. 286 e 287).
Contudo, é fundamental retomar a discussão do cerio s anos 70 (século XX),
trata-se de uma preocupação em relão à dicotomia de certa forma existente hoje entre a
militância do movimento negro, cuja presea e voz sempre existiram na academia baiana, e
os debates universitários.
O movimento negro, envolvido com a questão da identidade negra, a tem entendido,
como aponta Soares (2005, p.98), da seguinte forma:
A militância, quando busca amparo nos estudos históricos sobre o negro e
a escravidão, carrega uma visão clara de uma identidade negra, trazida do
continente africano profundo, que acompanharia os escravos nascidos no
além-mar e seus descendentes negros até o presente – o o condutor de sua
ancestralidade. Os mais modernos estudos de identidade escrava apresentam
um quadro mais complexo, contraditório e heterogêneo, com identidades
africanas variadas.
Sem negar a dívida que se tem em relação aos povos africanos e afro-descendentes, os
recentes estudos revelam uma África que não era culturalmente uniforme, não era marcada por
uma harmonia nas relações sociais e nem pela pureza de formas ancestrais e também esclarecem
que o africano, aqui escravizado, foi “um negociador de sua própria condição, marcado por
Figura 2.56 Mestre Didi e suas jóias. Im-
presso da Exposição de adereços de Mes-
tre Didi promovido pela Prova do Artista e
pela Joalheria Bahia Preciosa em setembro
de 2003.
Figura 2.55 Colar Iemanjá. Coleção “Orixás”
de Annete Sorin. Foto de Dadá Jaques. Ima-
gem digitalizada do folder da exposição Heran-
ça Africana no Universo Baiano Um ‘Filá’ de
Liberdade. Agosto de 2008.
profundas diferenças étnicas e culturais, construtor de identidades muito mais complexas do
que uma única identidade racial negra” (SOARES, 2005, 98).
Se por um lado, no passado, o discurso da miscigenação estava associado à idéia da existência de
uma democracia racial no Brasil que, obviamente, não existia, por outro, adotar a regra norte-americana
de “basta apenas uma gota de sangue negro” para ser negro, também não vingou, pois se não agradava
as autoridades estabelecidas, constrangia identidades arraigadas, constituídas por experiências sociais
concretas e seculares. João Reis (2000, p.9) propõe “buscar o ponto em que mestiçagem e negritude se
encontram para constituir uma força capaz de mudar a história” e arma:
Essa utopia, que circula sem pouso e sem rumo certos entre nós, precisa
ser promovida e dirigida a mudanças concretas, ao invés de ser apenas
celebrada ou combatida sem razões convincentes. Ela é compatível com
políticas compensatórias reivindicadas pelos negros, ela, aliás, já é praticada
muito tempo no interior de instituições predominantemente negras. Quem
há de negar que o Candomblé possa ensinar democracia racial ao Brasil?
A preocupação em relação à opção do movimento negro pela negritude, em busca de uma
referência exclusivamente africana, seja ela qual for, gera uma rejeição, ou não consideração,
dos objetos afro-brasileiros, fato que pode levar à extinção histórica ou propriamente dita, de
parte importante da cultura material brasileira, tanto no que se refere aos valores materiais
desses artefatos, quanto aos imateriais.
É neste ponto que se desejava chegar, pois não se pode negar uma condição factual: somos
mestiços, quer se queira ou não. E em termos estéticos, sem fazer apologia, contudo, vale considerar
como um dos possíveis caminhos para uma estética mestiça brasileira, a proposta “fashion periferia”
do músico Carlinhos Brown (Figura 2.57), que ao falar da sua vida, sempre arma ter sido vendedor
de picolé e continua sendo. O seu conceito visual
II-35
inspirou a coleção de jóias da H. Stern (Figura
35
II-
O conceito visual de Carlinhos Brown está divulgado no site ocial do músico: “Extremamente ligado a
símbolos, Carlinhos Brown é um admirador da beleza, da alegoria, das formas, das cores e das texturas. Seja
através das artes barrocas que tem marcante presença na Bahia, passando pelas pinturas indígenas e ornamentações
africanas até chegar a elementos de arte contemporânea, Carlinhos Brown é um liquidicador de imagens”.
Disponível em: http://www.carlinhosbrown.com.br/mosaico/estetica-carlinhos-brown/. Acesso em 20/02/2009.
2.58), denominada miscigens e as quatro linhas que compõem a coleção recebem nomes de músicas
do compositor, “bebem da fonte miscigenada do músico e apresentam referências indígenas,
africanas e também urbanas”, de acordo com o seu site ocial. É algo que se revela materialmente,
mas é também imaterial e não é uma condição exclusiva e premeditada de um músico famoso, pois
está também em Aglailson Santos (Figura 2.59), vendedor de picolé capelinha
II-36
nas praias da
cidade da Bahia, como em tantos exemplos anônimos por esse Brasil afora.
36
II-
Picolé fabricado em Salvador-Bahia desde 1971 que possui esse nome devido ao local de sua produção,
bairro popular denominado Capelinha de São Caetano. Muito conhecido e apreciado entre os soteropolitanos.
Figura 2.57 Carlinhos Brown, can-
tor e compositor baiano (2008). Foto
de João Meirelles. Imagem digitali-
zada da Revista Muito (2008, p.31).
Figura 2.58 Carlinhos Brown. Imagem digitalizada do
Catálogo da coleção “Miscigens” da empresa de jóias H.
Stern, 1999. Foto de Mario Cravo Neto.
Figura 2.59 Aglailson Santos, vendedor de picolé baiano (2008). Foto de Sebastião Bisneto.
Imagem digitalizada da Revista Muito (2008, capa).
Essa investigão evidencia o quanto ainda precisa ser estudado para compreender a
enorme complexidade da identidade brasileira e sua correspondente expressão material, bem
como para consolidar a tendência detectada pelo designer e pesquisador Dijon de Moraes
(2007, p. 193 e 194),
Dentro deste cenário, o design brasileiro começa a se distanciar da prática
da mimese e das referências provenientes do exterior e a apontar (fruto,
na verdade, do seu percurso e do seu amadurecimento) em direção a uma
referência própria como modelo possível. Começa, então, a partir dos anos
oitenta, a surgir, através do multiculturalismo e mestiçagem local, novas
referências projetuais que, de forma correta, colocam em evidência e
reetem a vasta gama de elementos da cultura híbrida e das nuances do
nosso próprio país.
Mas é fundamental estar consciente do poder da hegemonia branca e do mercado
capitalista e por mais bem intencionados que os designers estejam nas suas concepções, neste
ambiente tudo é passível de mercadorização e as tentativas são quase sempre de cooptação
para cumprir a estratégia maior de manutenção de status quo mesmo que com diferentes
roupagens.
118
123
CAPÍTULO III
________________________________________________________________
JÓIA ESCRAVA: PRIMÓRDIOS DO DESIGN MESTIÇO
- PERMEABILIDADES
3.1 A JÓIA ESCRAVA COMO OBJETO DO DESIGN
No Brasil, a Bahia foi o centro produtor das chamadas jóias escravas ou jóias de crioulas,
como descreve Simone Silva (2005, p.19) e como pode ser observado na Figura 3.1,
As jóias crioulas foram uma expressão ímpar na joalheria brasileira. Segundo
a maioria dos autores, essa arte é tipicamente baiana. Parece que unicamente
a Bahia foi o grande centro produtor desses exemplares, confeccionados nos
séculos XVIII e XIX. Elas diferem das jóias das senhoras brancas quanto à
dimensão, ao peso, a qualidade do material, ao formato e a decoração. As
jóias crioulas são de grandes proporções, embora quase sempre sejam ocas,
em sua maioria em ouro, profusamente decoradas e usadas em quantidade
(profusão de colares, anéis em todos os dedos, muitas pulseiras).
Portanto, trata-se de jóias que foram elaboradas para uso exclusivo das mulheres negras
e mestiças (escravas, alforriadas ou libertas) e são entendidas como objeto do design devido às
condições a elas intrínsecas, de projeto, produção, circulação, uso, e descarte.
Porém, propor a pesquisa “Joalheria Escrava Baiana: A Construção Histórica do Design
de Jóias Brasileiro” suscita dúvidas e questionamentos em relação à possibilidade de se estar
efetivamente no campo do design. Tem-se a clareza de que, no período em que estas jóias foram
confeccionadas, não eram entendidas como produto do design, mas, “... em última análise,
quem determina o sentido que se aos termos é a própria construção da sua história, feita
necessariamente a posteriori.” (CARDOSO, 2005, p.9).
Os artefatos para adornar o corpo acompanham os homens desde os primórdios,
quando se ornavam com pinturas corporais, dentes ou ossos de animais caçados, pedras
ou conchas coletadas na natureza, entre outros. Com o desenvolvimento do processo de
fundição dos metais, estes objetos passaram a ser confeccionados, também, com este
material, constatando-se que a joalheria foi uma das primeiras atividades a utilizar técnicas
Figura 3.1 - Usuária e suas respectivas jóias. Fotocomposição: fotograa de mulher baiana do
nal do século XIX, de Rodolpho Lindemann, e fotograas das jóias do acervo do Museu Carlos
Costa Pinto, por Júlio Acevedo.
de produção em série. Ou seja, para entender as jóias escravas como objeto o design, é
necessário compreender os limites da conceituação tradicional do design, como explica
Rafael Cardoso (2000, p. 17, grifos do autor):
A principal diculdade para a aplicão do modelo tradicional que dene o
design, como ‘elaboração de projetos para produção em série de objetos por
meios mecânicos’, reside no fato de que a transão para este tipo de fabricação
não ocorreu de forma simples ou uniforme. Diferentes tipos de artefatos e
diferentes regiões geográcas passaram por esse processo em momentos
díspares. Já eram utilizados na Antiguidade, por exemplo, técnicas básicas de
produção em série como moldagem de cerâmicas e a fundição de metais, as
quais permitem a produção mais ou menos padronizada em larga escala.
Considerando o que coloca Deforges (1996) em um dos seus artigos, onde intenciona
chamar a atenção dos leitores para os “Avatares
III-1
do Design” e particularmente para o “design
antes do design” em uma abordagem que isola o termo design temporariamente e considera
muito genericamente o fato de que todo objeto tecnológico, isto é, todo objeto produzido por
seres humanos sempre tem duas funções: a utilitária e a simbólica. É neste entrelaçamento da
utilidade com o simbolismo que se compreende o objeto jóia de uma maneira geral e, mais
especicamente, as jóias escravas.
Funções utilitárias e simbólicas estão absolutamente imbricadas e a jóia é um dos
melhores exemplos para demonstrar esta condição comum a todos os objetos, sejam eles
criados, transformados ou coletados pelas mãos humanas. Portanto, se entende como
funções utilitárias ou funções de uso “aquelas relacionadas à execução da ação. Exprimem
caractesticas objetivas e são quanticáveis(por exemplo: suportar peso, medir temperatura,
conduzir eletricidade, etc.)” (Ono, 2003, p. 74, grifos do autor).
Enquanto ornamento, a jóia é um elemento que serve para embelezar ou dar
aspecto mais atraente às pessoas. Neste direcionamento, observa-se que adornar é uma
1
III-
Avatar. [Do sânscr. avatara, 'descida' (do Céu à Terra), pelo fr. avatar.] S. m. 1. Rel. Reencarnação de um
deus, e, especialmente, no hinduísmo, reencarnação do deus Vixnu.
função utilitária repleta de simbolismo, pois, ainda na pré-história, o homem utilizava
as jóias para suprir necessidades pessoais, explicitar suas posses e sua posição social, além
de demonstrar vaidade, superstição, desejo de riqueza material, etc.. Nas mais diferentes
culturas a jóia é um objeto considerado imprescindível na expressão destes valores, usada
tanto por mulheres como por homens.
Para apresentar a função utilitária das jóias tem-se, na Figura 3.2, uma mulher
africana do povo peul, com suas jóias de grandes dimensões, como os brincos em forma
da fruta carambola, pesando por volta de 500 g. cada par. Na Figura 3.3, uma mulher
européia, com o seu colar em estilo geométrico e em ouro 18 kt. Na Figura 3.4, um chefe
de estado africano, com uma grande quantidade de jóias em ouro, cuja função utilitário-
simbólica é a de expressar a sua posição social, e na Figura 3.5, o príncipe do Nepal e suas
jóias (coroa e medalhas) como insígnias do seu status. Vale ressaltar que todas as fotos são
oriundas do século XX.
As funções simbólicas dos objetos
em geral e mais especicamente das jóias
são, no âmbito desta tese, compreendidas
conforme a denição de símbolos proposta
por Bernhard Bürdek (1994, p. 178),
[...] são instrumentos do
pensamento, remetem a
algo mais e respondem a
algo além do objeto em
si mesmo. Tem caráter
“representativo”, tal
Figura 3.2 - Mulher Peul/África. Século XX. Ima-
gem digitalizada do livro África Negra: Máscaras,
Esculturas e Jóias (MEYER, 2001, p. 178).
como Cassirer
III-2
tem demonstrado. Esta conceão do mbolo inclui
aspectos como experiência, intuição, valoração, normas culturais, etc.
É importante recordar que os símbolos o são dados de forma natural,
mas nascem de convenções, ou seja, por meio de acordos, tradições, etc.
(grifos do autor).
Deste modo, a jóia pode ser designada também como símbolo de poder, seja ele
conferido por ancestralidade, liderança, ou imposto pela força. Desde os primórdios,
acreditava-se que usar adornos de dentes de animais caçados conferiria ao usuário as
características desejáveis destes animais (força, esperteza, agilidade, astucia, etc.).
Também pedras (esmeraldas, rubis, saras, diamantes, coral e outras), metais e uma série de
2
III-
Ernest Cassirer (1874-1945): “historiador da losoa e antropólogo, teve seu reconhecimento após a 2ª Guerra
Mundial, a partir de 1945, pelo seu denso estudo da losoa das formas simbólicas, impregnado de um racionalismo
no qual estende a problemática kantiana às formas simbólicas como o campo das produções constitutivas da cultura”
(MOURA, 2000, p.76). Disponível em: http://www.uefs.br/nef/marinaide5.pdf. Acesso em 10/03/2009.
Figura 3.3 - Mulher européia. Século XX. Ima-
gem digitalizada do livro Lo Mejor en Joyeria
Contemporanea (WATKINS, 1993, p. 207).
Figura 3.4 – Nana Kwaye Amayaw II. Supremo
chefe de Techiman - Estado de Bono. Foto: Ân-
gela Fisher. Imagem digitalizada do livro Áfri-
ca, Trajes e Adornos (CARISE, 1991, p. 116).
materiais coletados na natureza, vêm sendo
usados como jóia com o objetivo de
transmitir aos seus utentes as forças da
natureza, representando poder e proteção.
Em forma de pingentes, brincos, anéis,
correntes, coroas, tiaras, pulseiras, etc.,
esses objetos de luxo e desejo foram
também sacralizados ao longo da história
da humanidade. Os adornos corporais se
expressam de variadas formas conforme
esclarece Irina Santos (2004, CD),
Ora signica e devoção; ora status social, econômico e cultural; ora
amuleto; ora veículo de cura; ora apenas um objeto de decoração. É símbolo
de individualidade e coletividade, de valores morais e estéticos, da alma
humana, de suas tradições, heranças e antepassados, rituais, crenças,
prosperidade, compromisso, comportamento, desenvolvimento tecnológico,
além de ser um objeto de adoração, contemplação e desejo.
exemplos desse caráter híbrido dos adornos nas mais diversas culturas, como é o caso
da África, onde o povo Baoule (Costa do Marm) usa pendentes em forma de face humana, de
concepção mais realista, como a da Figura 3.6, ou mais estilizada, apenas uma oval perfurada
por triângulos numa superfície feita por os de ouro justapostos, como o da Figura 3.7. Estas
“máscaras”, miniaturas em ouro, fundidas por cera perdida, poderiam ser uma cabeça de um
troféu Akan, representando um escravo ou inimigo morto em um combate, ou também um
antepassado, apesar de não serem retratos. De acordo G. Niangoran Bouah, estes pendentes
serviam para defender seus usuários, que, quando envolvidos em alguma briga, revelavam ao
Figura 3.5 - Príncipe do Nepal, 1930. Ima-
gem digitalizada do livro The Master Jewelers
(SNOWMAN, 1990, p. 206).
adversário estar usando uma cabeça de homem, o que signicava estar sob a proteção dos
antepassados, o que desencorajava o agressor (Meyer, 2001, p. 192).
Na Inglaterra, por volta da segunda metade do século dezessete, era comum o uso de
jóias ornamentadas com símbolos denominados de Memento Mori
III-3
, tal qual o anel com a
caveira e dois ossos cruzados da Figura 3.8, usado em memória de um indivíduo já morto.
As jóias, em muitas situações, possuem as características que Ulpiano Meneses (1998,
p.7) identica nos objetos históricos em seu texto sobre “Memória e cultura material: documentos
pessoais no espaço público”,
3
III-
Memento Mori é uma expressão latina que signica "lembra-te que és mortal". Este tipo de pensamento é
muito utilizado dentro da literatura, principalmente na literatura barroca. Disponível em http://pt.wikipedia.org/
wiki/Memento_Mori. Acessado em 30/05/2006.
Figura 3.6 – Pendente em ouro em forma de
face humana Costa do Marm. Imagem
digitalizada do livro África Negra: Máscaras,
Esculturas, Jóias (MEYER, 2001, p. 192).
Figura 3.7 Pendente em ouro em forma de face
humana Costa do Marm. Imagem digitalizada
do livro África Negra: Máscaras, Esculturas, Jóias
(MEYER, 2001, p. 193).
São ‘semióforos’
III-4
, expressão rebarbativa forjada por Pomian (1977) para
identicar objetos excepcionalmente apropriados e (exclusivamente) capazes
de portar sentido, estabelecendo uma mediação de ordem existencial (e não
cognitiva) entre o visível e o invisível, outros espaços e tempos, outras faixas de
realidade. Escusado insistir que o conceito de relíquia, no campo religioso, condiz
com os anteriores, ressaltando a necessidade de contigüidade, contato com um
transcendente, para que o objeto prolongue esse transcendente, seja, entre nós,
o que dele cou (relicta). Todos funcionam como fetiches, signicantes cujo
signicado lhes é imanente, dispensando demonstração: as relíquias do Santo
Lenho, por exemplo, impunham credibilidade, não pela autenticidade de suas
origens, mas pelo poder manifestado. (grifos do autor, exceto negrito, nosso).
Diante do exposto, conclui-se pelo inapelável fetiche das jóias, entendendo que este
funciona ao mesmo tempo como atribuição de valores subjetivos ao objeto e como apropriação
de valores subjetivos representados pelo objeto ou nele embutidos (Cardoso, 1998, p. 24 e 25).
Em um artigo exemplar, Cardoso (idem, p.15 a 39) faz um estudo das origens e signicados do
termo fetichismo e inicia armando que a palavra ‘fetiche’ em português é uma adaptação do
vocábulo francês fetiche, cuja origem é uma transposição da palavra portuguesa ‘feitiço’:
A palavra ‘feitiço era usada na língua portuguesa desde o século XV para
denotar qualquer amuleto usado para ns de bruxaria e o é difícil entender que
os portugueses tenham empregado a mesma palavra para descrever as práticas
religiosas dos povos africanos que encontraram no século XVI (Idem, p.25).
4
III-
Segundo Chauí (2000, p. 11-14), Semeiophoros é uma palavra grega composta de duas outras: semeion “sinal”
ou “signo”, e phoros, “trazer para frente”, “expor”, “carregar”, “brotar” e “pegar” (no sentido que, em português,
dizemos que uma planta “pegou”, isto é, refere-se a fecundidade de alguma coisa)” (grifos da autora). Então, Chauí
dene: “Um semióforo é, pois, um acontecimento, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito
do uso ou sem utilidade direta imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de signicação ou de valor
simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o
sagrado (um espaço além de todo espaço) ou o passado ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade),
e expostos à visibilidade, pois é nessa exposição que realizam sua signicação e sua existência” (grifos da autora).
Após essa denição de semióforo, argumenta a possibilidade de inexistência do mesmo no modo de produção
capitalista, devido a tudo ser transformado em mercadoria, anulando um aspecto decisivo dos semióforos: a
condição de serem signos de poder e prestígio. Portanto, arma a autora, “[...] ele é também posse e propriedade
daqueles que detêm o poder para produzir e conservar um sistema de crenças ou um sistema de instituições que
lhes permite dominar um meio social. Cheas religiosas ou igrejas, detentoras do saber sobre o sagrado, e cheas
político-militares, detentoras do saber sobre o profano, são os detentores iniciais do semióforos. É nesse contexto
que a entrada da mercadoria e do dinheiro como mercadoria universal pode acontecer sem destruir os semióforos
e, mais do que isso, com capacidade para fazer crescer a quantidade desses objetos especiais”. Entendem-se as
jóias escravas nessas duas situações apontadas por Chauí, como também na terceira via explicada pela autora, a
condição atual de serem patrimônio artístico e cultural da nação, pois as jóias em destaque fazem parte do traje da
baiana (atualizadas para materiais do contexto econômico da contemporaneidade), que foi considerada como bem
cultural do Patrimônio Imaterial no Livro dos Saberes em 01/12/2004, como a autora explica mais uma vez: “Em
outras palavras, os semióforos religiosos são particulares de cada crença, os semióforos da riqueza são propriedade
privada, mas o patrimônio histórico-geográco e artístico é nacional”.
É ainda Cardoso (Ibidem) que
analisa o significado da palavra fetichismo
em três vieses, o acima referido, o da tese
de Karl Marx sobre o ‘fetichismo das
mercadorias’ e o da teoria de Sigmund
Freud, que buscou na palavra fetiche
um termo que abrangesse a idéia da
sexualização de objetos materiais comuns
e concluiu com o que todas têm em
comum: fetichismo é o ato de investir os objetos de significados que não lhes são inerentes.
Pergunta-se, então: existe melhor exemplo de objeto que possua de forma explícita estes
três vieses do que a jóia?
E Cardoso prossegue propondo o seguinte conceito de design,
O design é, em última análise, um processo de investir os objetos de
signicados, signicados estes que podem variar innitamente de forma e
função, e é nesse sentido que ele se insere em uma ampla tradição ‘fetichista’
(Idem, p.29; grifos do autor).
Com base neste conceito de design, ca explícito que tanto as jóias de uma forma geral,
como as jóias escravas, em particular, constituem-se em objeto do design. A joalheria escrava
baiana é um conjunto de artefatos votivos, pois estão associados às crenças religiosas de suas
usuárias, principalmente as pencas de balangandãs. Também são insígnias de poder quando
vinculadas aos senhores de escravos, como modelo de comportamento da elite na sociedade
colonial, que adornava suas escravas com uma quantidade exacerbada de jóias de ouro para
exibir poder e riqueza, como elucida Solange Godoy (2006, p.18),
Os senhores de engenho são opulentos não nas alfaias com que povoam
suas casas e no modo de trajar seu e de sua mulher, mas também nos escravos
domésticos que acompanham a família em ocasiões especiais e solenes.
Figura 3.8 – Anel com a caveira e dois ossos cruza-
dos, ao redor rubis. Imagem digitalizada do livro
Jewelry Design (SCARISBRICK, 1998, p. 65).
Mas é também e principalmente o que Pierre Bourdieu (2005, p. 102) dene como a
própria natureza dos bens simbólicos:
Estes constituem realidades com dupla face mercadorias e signicações -,
cujo valor propriamente cultural e cujo valor mercantil subsistem relativamente
independentes, mesmo nos casos em que a sanção econômica rearma a
consagração cultural.
No quadro 3.1, apresenta-se uma mulher negra usuária das jóias escravas com as
indicações das três condições fetichistas destes objetos. Com base nos pressupostos acima
colocados, pergunta-se: anal, em que implica, na área do design, ou melhor, na história do
design, estudar a jóia escrava baiana?
Como tentativa de resposta, ressalta-se que a história da historiograa do design precisa
passar por uma profunda revisão, tendo como pauta incluir uma série de objetos que caram
fora dela, desde os que povoam o cotidiano das pessoas no Ocidente desenvolvido até os
excluídos
III-5
de diversos tipos; todos os designs e designers que não haviam encontrado um
lugar apropriado segundo o modelo imperante e, portanto, também caram de fora da história
do design (Anna Calvera, 2000, web).
A legitimidade dos estudos sobre jóia escrava baiana no campo da história do design
ca, de certa forma, mais evidente, já que estes artefatos, segundo Cardoso (2005, p.15),
“codicam em sua estrutura e aparência umarie de informações complexas sobre a
sociedade, tecnologia e criação individual que precisam ser decodicadas pelo trabalho de
investigação histórica”
III-6
.
A jóia, como objeto do design, é entendida em sua complexidade, não é apenas objeto
5
III-
O termo excluído foi usado por manter o signicado do texto original, porém Anna Calvera utiliza a palavra
hispânica ‘marginados’ para explicar o direcionamento da história ocial do design, tal como: preferiu o culto em
detrimento do popular; deixou à margem as distintas culturas urbanas, especialmente se provinham das periferias
pobres das grandes cidades; e também os coletivos sociais, entre os quais está o coletivo feminino.
6
III-
Cardoso, no seu texto, se refere aos objetos em geral e não especicamente, é claro, à jóia escrava baiana.
ou um simples retrato das circunstâncias políticas e econômicas, é um fenômeno sociocultural
que possibilita entender, através de um ponto de vista privilegiado, a diversidade das práticas
de diferenciação nas sociedades humanas.
3.2 OBJETO HÍBRIDO: JÓIAS CRIOULAS COMO
MATERIALIZAÇÃO DA MESTIÇAGEM
Um dos códigos existentes na estrutura e aparência da joalheria escrava baiana é ser
identicada como objeto (afro)brasileiro, portanto, um objeto híbrido, mestiço, sincrético ou
crioulo
III-7
e, para compreender esta condição, é necessário conhecer a formação da sociedade
brasileira e sua identidade.
Portanto, quando a expansão ultramarina levou os europeus a aportarem nas Américas,
7
III-
O uso de vários termos deve-se à concordância com as explicações de Nestor Canclini (2006, p. 29): “estes termos
mestiçagem, sincretismo, crioulização continuam a ser utilizados em boa parte da bibliograa antropológica e etno-
histórica para especicar formas particulares de hibridação mais ou menos clássicas. Existe uma grande discussão
teórica sobre o termo mais adequado para o fenômeno em questão, inclusive com longos estudos argumentando a
favor deste ou daquele termo, circunscrevendo-o em uma determinada linha teórica. O ponto de vista aqui adotado
é: não se considera um problema os diversos nomes dados para identicar o fenômeno (mestiçagem, hibridismo,
sincretismo, crioulização ou multiculturalismo), mas entender os mecanismos pelos quais se dá.
Quadro 3.1 Mulher negra com as jóias escravas e a indica-
ção das três condições de fetiche. Imagem digitalizada do livro
O Século XIX na Fotograa Brasileira (FERNANDES JR. &
LAGO, 2000, p. 49). Fotograa da autoria de Marc Ferrez.
1- Fetichismo de caráter etimogico: penca de balangandãs,
objeto místico, signicava as inúmeras crenças das suas
usuárias fetichismo - um tipo de culto religioso em que se
atribui aos objetos poderes sobrenaturais.
2- Fetichismo de caráter mercadológico: indicativo de poder e riqueza
das usuárias ou dos seus senhores, acumulo de riqueza para compra
da liberdade ou como herança para seus descendentes - fetichismo
um aspecto da teoria econômica que explica a atribuição de um valor
transcendental a certos objetos (mercadorias).
3- Fetichismo de caráter sexual: os brancos portugueses fascinados
pelas mulheres negras e mulatas e toda a indumentária por elas usada,
inclusive suas jóias, compunham o quadro desta sedução. Comporta-
mento em que o indivíduo atribui ao objeto uma carga sexual.
o destino deste continente tomou, inexoravelmente, novos rumos, conforme se compreende
pela análise feita por Jorge Couto (2000, p. 48):
Tendo o Brasil resultado de um processo de construção empreendido
pelos portugueses em cooperação ou conito com outros grupos étnicos,
ou seja, ameríndios e africanos, destacam-se os aspectos relacionados com
os intercâmbios civilizacionais euro-afro-americanos da lingüística à
zoologia e da gastronomia às epidemias – que deram origem a uma criação
profundamente original e distinta de cada uma das suas componentes.
Está implícito na colocação acima como se deu o processo de formação da sociedade
brasileira e o seu resultado: uma sociedade híbrida. Quem primeiro assim a deniu de modo
favorável foi o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre
III-8
, como se pode constatar no título do
primeiro capítulo do seu livro Casa Grande & Senzala (1933) “Características gerais da
colonização portuguesa do Brasil: formação de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida”.
Mesmo com todas as críticas em relação ao seu trabalho, deve-se levar em conta o aspecto
positivo de sua obra, apontado por Fernando Henrique Cardoso (2003, p. 28) ao prefaciar a 47ª
edição do referido livro:
De alguma forma Gilberto Freyre nos faz fazer as pazes com o que somos.
Valorizou o negro. Chamou atenção para a região. Reinterpretou a raça pela
cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais força de que todos, que
a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (misticação à parte) a plasticidade
cultural da convivência entre contrários, não são apenas uma característica,
mas uma vantagem do Brasil.
A obra freyriana contribuiu signicativamente para a superação da negatividade em
relação à condição do Brasil como terra de mestiços, devido à concepção das teorias racistas
do século XIX sem possibilidade de viabilidade civilizatória, como analisa a historiadora
Sandra Pesavento (2006, p. 5),
Desde as últimas cadas do século XIX, as posturas cienticistas e
evolucionistas armavam a supremacia da civilização européia cristã ocidental
8
III-
Manoel Bonm, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta são considerados intérpretes da cultura brasileira que
seguiram a tônica valorativa e otimista de Gilberto Freyre.
e estabeleciam hierarquias culturais, étnicas e raciais entre os povos. Nesta
escala de valor, que dos indivíduos se estendiam às nações, o futuro do Brasil
se achava fortemente comprometido. Belo país, um dos mais belos que existem
no mundo, dizia um periódico francês por ocasião da participão brasileira
na exposição universal de Paris, em 1889. Mas era terra de mestiços, cheia
de negros e doenças, que futuro teria o país, amaldoado pelos pressupostos
cientícos que condenavam a miscigenação? (grifos da autora).
O mérito dos estudos de Gilberto Freyre é inegável, todavia traz em seu bojo aspectos
vulneráveis, sendo o maior deles a disseminação da existência de uma democracia racial no
Brasil. Nas entrelinhas de sua obra, existe um posicionamento político que tolera o intolerável:
um país repleto de injustiças sociais, mas que possui uma imagem positiva de si mesmo,
considerando-se um povo sem preconceitos. Por isso e também pela sua adesão ao governo
militar, Gilberto Freyre permanece no ostracismo por quase 30 anos. É a partir da década de 90,
por uma necessidade contemporânea de compreender os processos de mundialização que ocorre
o seu resgate como primeiro estudioso da mestiçagem, porém totalmente revisado por diversos
pesquisadores que serão citados ao longo desta investigação focada na cultura material, ou
seja, na mestiçagem cultural e não mestiçagem biológica, seguindo a linha de estudo de Serge
Gruzinski
III-9
(2002, web),
É principalmente a mestiçagem cultural das práticas, a mistura dos
comportamentos, das crenças, dos imagirios, das idéias. Não é a mestiçagem
biológica. Tentei compreender que a mestiçagem não é um fenômeno exótico
próprio à América Latina ou à Ásia e África; hoje é um fenômeno generalizado.
Tudo se mistura no planeta. Minha reexão sobre a mestiçagem está ligada
à reexão sobre a globalização. Tentar compreender qual é a relação que
pode haver: ou seja, entre a mistura de culturas e o desenvolvimento de uma
dominão planetária num contexto político. A mestiçagem é alguma coisa
que exprime a reação das populações que são mestiças ou uma maneira de
manipular as populações para melhor dominá-las.
Pelo exposto, averigua-se que a existência da condição mestiça, tanto no processo como
no resultado, da sociedade brasileira pode ser constatada de modo indiscutível e encontra-se em
9
III-
Disponível em: http://www.ibest.estadao.com.br/ext/frances/gruzinskip.htm. Acessado em 15/04/07.
seu âmago a questão da identidade, ou melhor, identidades. Particularmente, interessa como
se constrói a identidade cultural de uma nação, de um povo, de um país. Stuart Hall (2003,
p. 29), analisando a questão da identidade cultural caribenha, alerta para a questão do mito
fundador que está relacionado a uma “concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria” (grifos
do autor). Ser portador deste tipo de identidade cultural é estar associado a um núcleo “imutável
e atemporal”, constituindo-se na “tradição” que tem compromisso com as origens e com a sua
“autencidade”, ou seja, um mito - “com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de
moldar nossos imaginários, inuenciar nossas ações, conferir signicado às nossas vidas e dar
sentido a nossa história” (Ibidem).
A identidade cultural brasileira possui inúmeras semelhanças com a caribenha, usando
a mesma seqüência de Hall (2003, p.30), uma sociedade composta de muitos povos e não
apenas de um e que possuem origens diversas; os povos originários e proprietários da terra
foram dizimados e o pouco que ainda resta encontra-se circunscritos em “reservas”; possui
um passado constituído de rupturas e não de continuidades e mais, com uma associação civil
imposta, enm, substitua na citação abaixo o nome Caribe por Brasil e tudo permanecerá válido:
“O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e através dela. A via para nossa
modernidade está marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de
engenho e pela longa tutela da dependência colonial” (HALL, 2003, p.30).
Tal como Hall
III-10
descreve para o Caribe, Darci Ribeiro (1995, p.19) descreve para o Brasil,
Nessa conuência, que se sob a regência dos portugueses, matrizes
raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas
se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo (Ribeiro 1970),
num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como
etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,
fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada
pela redenição de traços culturais delas oriundos. (grifos do autor)
10
III-
“A distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da
sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus”. (HALL, 2003, p. 31)
Para se atribuir aos objetos o status de brasileiro tem que se ter em conta as condições
históricas de sua formação enquanto povo. Proveniente de uma interação cultural de longo
prazo, apenas ao nal do século XVIII, quase trezentos anos após a frota de Cabral ter aportado
na Baía de Cabrália, que se nota um sentimento de brasilidade que amadureceu expressamente
com os companheiros de Tiradentes, que falavam de brasileiros como designação política do
povo que eles queriam erigir (Ribeiro, 1995, p.139 e 140).
Entretanto, o foco dessa pesquisa está na cultura material, por isso, pergunta-se:
quando surgem os objetos mestiços?
Tal como ocorre em todas as sociedades híbridas, a sua cultura material é descendente de
processos que o tempo demora muito a desgastar e a transportar, como uma atualidade” que rne
movimentos de origem e de ritmo diferente: o tempo de hoje data simultaneamente de ontem, de
anteontem, de outrora (Braudel, 1958, p.18). Considera-se que estes objetos são oriundos dos
processos de hibridação tal como é conceituado por Nestor Canclini (2006, p.19),
Parto de uma primeira denição: entendo por hibridação processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem
de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e
práticas. (grifos do autor)
Segundo Burke (2003, p. 23-25), tem-se inúmeros exemplos de processos de
hibridização envolvendo artefatos: na arquitetura, no mobiliário, nas imagens, e também nos
textos. Para exemplicar, aponta que as linhas retas e os ângulos dos móveis ingleses foram
suavizados quando seus designs foram copiados no início do século XIX no Brasil, citando
Gilberto Freyre: “O estilo inglês de móvel arredondando-se no clima brasileiro” (Idem).
É instrutivo que antes de deter-se nos objetos brasileiros, conseqüentemente híbridos,
conheçam-se, ainda que resumidamente, as características especícas desses três povos
constitutivos do pensamento simbólico fundacional da identidade brasileira e suas respectivas
formas de se adornar como exemplo de contraponto em relação à joalheria escrava baiana.
O colonizador português era portador de uma identidade originária da sua terra natal,
obviamente. Apesar das circunstâncias de uma conquista nos trópicos e do contato com os
índios que ocupavam as terras encontradas, existia a tentativa de preservar, ou pelo menos
reproduzir, o que se tinha na Lusitânia
III-11
, tanto que, ao nal do século XVI, já se armava que
“este Brasil é já outro Portugal”
III-12
.
O povo português possui uma grande plasticidade, que é originária das especicidades
do seu passado cultural devido à convivência com os mouros, esta característica é fortemente
apontada por Freire (2003, p.66):
A singular predisposição do português para a colonização híbrida e
escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico,
ou antes, cultural, de povo indenido entre a Europa e a África. Nem
intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A inuência
africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual,
à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma
grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda
hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas
instituições e na forma de cultura as durezas germânicas; corrompendo
a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao
cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao
direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando
mas sem governar; governando antes a África.
Apesar dessa prévia condição mestiça dos portugueses, em relação à cultura material
eles representavam o imperialismo cultural europeu, impondo aos demais povos que integravam
a sociedade colonial brasileira seus padrões estéticos, como é o caso da jóia da Figura 3.9, que
apesar de produzida no Brasil, possui o estilo das jóias européias. Trata-se de um broche em
crisólitas e prata, do século XVIII, no padrão formal denominado girândola, como descreve
Simone Silva (2004, p.13):
11
III-
Nova Lusitânia foi nome que o donatário Duarte Coelho deu à capitania que lhe doara D. João III, inclusive
todas as cartas que enviava ao el-rei eram identicadas como originárias desta localidade, nunca de Pernambuco
(Mello, 2000, p. 73).
12
III-
Frase do jesuíta Fernão Cardim encontrada na obra de sua autoria Tratados da terra e gente do Brasil (1585).
(Couto, 2000, p. 64).
No século XVII, os desenhos do francês Gilles Légaré, joalheiro do rei Luís
XIV da França, inuenciaram a decoração e composição de peças em todo
o mundo e originaram vários tipos de jóias, como a girândola e o savigné.
A girândola ou girandole foi um modelo criado baseado em um tipo de
candelabro assim denominado. A partir de um elemento central pendem
três a cinco pingentes em forma de gotas. Era uma peça bastante apreciada
pelas damas por ser muito vistosa, apresentando-se como brincos, broches,
pendentes ou parte central de um colar. (grifos da autora)
Toda a indumentária das famílias
abastadas de ascendência portuguesa, das
jovens de elite e das mulheres brancas
brasileiras eram mimeses do vestrio europeu
da época, como se verica na gura 3.10.
Usando a terminologia dos idos
de 1500, as terras que posteriormente
se chamariam Brasil representam um
“achamento”, não de terras, mas também de
vários povos (Tamoio, Tupiniquim, Aimoré,
Goitacaz, etc.) que foram denominados de
índios pelo conquistador português, cuja diversidade foi retratada por Debret nas Figuras 3.11
e 3.12. Seja como aliados ou adversários, os povos indígenas foram de suma importância e
exerceram diversos papéis no processo de constituição da nova colônia. A presença ameríndia
na cultura brasileira é notável, basta observar o que Freire (2003, p.232) aponta,
Vários são os complexos característicos da moderna cultura brasileira, de
origem pura ou nitidamente ameríndia: o da rede, o da mandioca, o do banho
de rio, o do caju, o do “bicho”, o da “coivara”, o da “igara”, o do moquém, o
da tartaruga, o do bodoque, o do óleo de coco-bravo, o da “casa do caboclo”,
o milho, o de descansar ou defecar de cócoras, o do cabaço para cuia de
farinha, gamela, coco de beber água etc. Outros, de origem principalmente
indígena: o do descalço, o da “muqueca”, o da cor encarnada, o da pimenta,
etc. Isto sem falarmos no tabaco e na bola de borracha, de uso universal, e de
origem ameríndia, provavelmente brasílica. (grifos do autor)
Figura 3.9 - Broche em crisólitas e prata. Brasil,
século XVIII. Imagem digitalizada do Catálogo
da Exposição A Sedução das Jóias (2005, p.9).
Figura 3. 10 - Indumentária dos brasileiros e brasileiras de ascendência européia. Imagem digitali-
zada do livro Debret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 443, 350 e 444 respectivamente).
a- Família de
gente abastada
- estudo de
indumentária.
Lápis; 18 x
20,5 cm; C.
1817-1829
b- Jovens
da elite.
Aquarela; 9
x 13,3 cm; C.
1817-1829
c- Senhoras
brasileiras
sentadas no
chão da igreja.
Aquarela; 12
x 18 cm; C.
1817-1829
No que se refere a adornos pessoais, a quantidade existente em um dos inúmeros povos
indígenas já é considerável, sendo muito maior no conjunto de todos eles, implicando em uma
enorme diversidade desses artefatos que são, além de emblemas tribais, insígnias de faixa
etária, de sexo e distintivos clânicos. Os indivíduos pertencentes a esses povos recebem ou
confeccionam, durante a sua vida, certa quantidade de conjuntos ornamentais adequados a sua
condição social, tais como: colares de materiais diversos, adornos faciais (brincos, narigueira e
labrete), bandoleira
III-13
, cintos, estojo peniano, amarrações, pinturas corporais e a especialíssima
arte plumária. Nas guras 3.13 e 3.14, dois exemplos de adornos indígenas, que, segundo
Renato Wagner (1980, p. 22), particularizam-se por:
Vários objetos encontrados, as tradições e os adornos usados em
cerimônias que os índios preservam até os nossos dias, demonstram uma
sensibilidade muito grande no tocante às cores.
Todos os adornos mostram um tipo de atividade efetuada dentro
de fórmulas totalmente artesanais, pois apenas processos manuais
13
III-
Enfeite usado a tiracolo constituído de cordéis de algodão com ou sem pingentes ornamentais.
Figura 3. 11 – Tipos indígenas. Aquarela; 16,5 x 19,5 cm;
C. 1817-1829. Imagem digitalizada do livro Debret e o
Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 382).
Figura 3. 12 Bastão e cabeça indí-
gena com cocar. Aquarela; 20,5 x 17
cm; 1828. Imagem digitalizada do li-
vro Debret e o Brasil (BANDEIRA &
LAGO, 2008, p. 374).
eramutilizados, não existindo, obviamente, qualquer colaboração de
máquinas especícas para o setor.
se detalhou ao longo do primeiro capítulo a diversidade dos povos africanos que
forçosamente foram trazidos para o Brasil e suas incalculáveis contribuições para a existência
de uma cultura material dita brasileira. Nas primeiras décadas do século XIX, a multiplicidade
desses indivíduos ainda era notada aqui no Brasil, como se pode constatar nos registros de
Debret, nas Figuras 3.15 e 3.16.
Tão diversos quanto os grupos são os seus adornos, e suas diferenças de forma e
estilo podem signicar categorias sociais: linhagem, jovem/idoso, homem/mulher, o culto
a uma divindade, rego (dentro de uma área de mesma linguagem), urbano/rural, artista,
etc.. Também são utilizados para iniciação (feminina e masculina), agricultura (colheita e
Figura 3.13 Colares de contas de noz de tucúm
e rodelas de casco de tatú: usa ainda, outros de
bra de palmeira de tucúm e um pintado com
sementes de urucum. Indiazinha Surrui, Cinta
Larga. Imagem digitalizada do livro Jóia Con-
temporânea Brasileira (WAGNER, 1980, p. 25).
Figura 3.14 Colar de dentes de onça, brin-
cos de contas de porcelanas. Pintura facial fei-
ta com extrato de semente de urucum. Tribo
Mentuktire (Kaiapó). Imagem digitalizada do
livro Jóia Contemporânea Brasileira (WAG-
NER, 1980, p. 25).
semeadura), ritos fúnebres, fatos mitológicos e legendários, cultos de ancestrais, ritos da
fertilidade, adivinhação e curas médicas e para as práticas de proteção.
A joalheria africana também possui uma grande variedade de materiais e cada um deles
era da preferência de um determinado povo. Uns apreciavam mais o marm, outros o cobre,
também havia os que admiravam a prata, como os tuaregues, que era até mais valorizada do
que o ouro por não estar disponível em algumas regiões, além do bronze e das contas de vidro
(outro materiais também eram usados), que possuem um papel proeminente ao longo de toda a
história da joalheria e do adorno na África. Por outro lado, o uso do ouro como jóia foi limitado a
determinadas áreas, mais recentemente foi que se deu o uso das jóias em ouro, e particularmente
associada aos povos akans, como se pode vericar na Figura 3.17 o colar em ouro de 108 contas,
uma jóia africana akan do século XIX, contextualizada por Meyer (2001, p.187),
Quando Jean Barbot
III-14
esteve na Costa do Ouro, em 1678, foram as jóias
Akan que desenhou. Embora mencione no seu texto numerosos motivos
gurativos, animais em particular, as contas dos desenhos têm formas
abstractas, discos, espirais, rectângulos, losangos, cones ou tubos. Alguns
desses motivos sobreviveram durante séculos.
14
III-
Da ourivesaria Africana dos séculos XVII e XVIII praticamente não se encontram exemplares, apenas tem-se
as informações deixadas por um francês, Jean Barbot, no Journal de voyage que foi escrito logo após a sua estadia na
Costa do Ouro, em 1678-1679. Ele fez esboços exatos que provam a existência de formas que foram transmitidas aos
ourives Akan da Costa do Marm desde essa época e que ainda hoje são fabricadas (Meyer, 2001, p. 178).
Figura 3. 15 Negros de diferentes na-
ções. Aquarela; 10,2 x 19,6 cm; C. 1817-
1829. Imagem digitalizada do livro De-
bret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO,
2008, p. 422).
Figura 3. 16 – Tipos de negras. Aquarela; 9,7 x 16,46
cm; C. 1817-1829. Imagem digitalizada do livro De-
bret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 422).
A Costa do Ouro, atualmente República de Gana, onde viviam os axântis/akans que
dominavam a técnica de fundição por cera perdida, técnica esta altamente desenvolvida, tanto
que alguns trabalhos fundidos têm a delicadeza de ligranas. A arte da ourivesaria conservou-se
até hoje, como se pode observar na Figura 3. 18, um exemplar da joalheira axânti, um escudo
peitoral de ouro em forma de disco que fazia parte do equipamento dos mensageiros reais.
Cada um dos exemplos apresentados mantém suas matrizes étnicas culturais, o
espelha o caldeamento, apontado por Darci (1995, p. 455), do invasor portugs com índios
silvícolas e campineiros e com negros africanos,quando, através do longo tempo de convívio,
foram criadas as condições objetivas para que nos séculos XVIII e XIX surgisse a joalheria
escrava baiana forjada em uma estética “... mesta e tropical, orgulhosa de si mesma, porque
lavada em sangue índio e sangue negro”.
Portanto, retoma-se a questão da riqueza cultural produzida pela mestiçagem das tradições
africanas e européias. Segundo Gruzinski (2001), toda cultura é uma mistura de maneiras de
ser, de acreditar, de imaginar, de idéias, etc.. Não é o que a visão eurocêntrica determina como
extraordinário e próprio da África, da América Latina ou da Ásia, é algo associado à constituição
da humanidade, ganhando força a partir da ocidentalização do século XVI, que o supracitado
autor entende como um conjunto de meios de dominação aplicados pela Europa renascentista na
América via catolicismo, mercantilismo, força através das armas e de informações orais, escritas
e imagéticas como processos de convencimento. Esse intercâmbio resultou em “mestiçagens
biológicas, de línguas e crenças; mescla de saberes e técnicas; sobreposição e imbricação de
formas de trabalho” (MEZZOMO, 2005, p. 337).
Nessa conuência formativa de um modus vivendi, nem luso, nem afro, tem-se uma
peculiar criação de trajes, cujas jóias escravas fazem parte, numa clara tentativa de re- construção
identitária sob novas condições. Desde 1641 pode ser averiguado na tela a óleo intitulada
Mulher Negra (vide Figura 3.19), do pintor holandês Albert Eckhout, um traje forjado pela
Figura 3.17 - Colar de 108 contas. Gana. Akan. Ouro. Séc. XIX. Imagem digitalizada do livro
África Negra (MEYER, 2001, p. 184). A peça pertence ao Musée Barbier-Mueller, Genebra.
mulher africana na sua nova condição nas terras do além-mar, imagem deste algo novo que está
presente na mestiçagem, como expõe Sandra Pesavento (2006, p. 3),
A representação visual desta mulher negra é, neste caso, exemplar. O quadro
compreende uma espécie de mise en abîme, onde uma paisagem que
mergulha no retrato, e a personagem aparece cercada de elementos que
oscilam entre a referência etnográca, de um lado, e o simbolismo e a
alegoria, por outro. A mulher negra de Eckhout parece não só ofertar frutos
tropicais dentro do cesto que porta na mão direita como ela própria se oferece
ao olhar do espectador, cheia de promessas e de signicados. Ela parece
sugerir não um encontro cultural profundo, entre mundos interligados,
com histórias conectadas, onde as fronteiras se dissolvem, como também
insinua a presença de algo totalmente novo, presente na mestiçagem, tomada
no seu sentido mais amplo.
Analisando mais amiúde a tela de
Eckhout, nota-se uma série de detalhes
como a possibilidade desta mulher não
ser uma escrava, devido à maneira como
se ornamenta, traz de africano o tecido da
sua saia, os seios à vista, os pés descalços
(condição escrava), colar de coral, pulseiras
de ouro e brincos. Contudo, tem de europeu
o colar de duas voltas de pérolas barrocas e
mais o cachimbo holandês amarrado à cintura
e, para ampliar o mix, usa um chapéu cônico oriental
III-15
. De um lado, o cesto africano repleto
de frutas tropicais brasileiras e do outro, uma criança, provavelmente seu lho mestiço pela
condição da pele mais clara, segurando uma espiga de milho em uma das mãos e na outra, um
15
III-
Segundo Freyre (2003, p. 339), o Brasil foi a parte do império lusitano que, graças a suas condições
sociais e clima, mais largamente se aproveitou dos produtos de nas, opulentas e velhas civilizões asiáticas
e africanas, como: o chapéu-de-sol, o palanquim, o leque, a bengala, a colcha de seda, a telha à moda sino-
japonesa, o telhado das casas caído dos lados e recurvado nas pontas em cornos de lua, a porcelana da China e a
louça da Índia. Plantas, especiarias, animais, quitutes. O coqueiro, a jaqueira, a mangueira, a canela, a fruta-pão,
o cuscuz. Móveis da Índia e da China.
Figura 3.18 Adorno peitoral. Início do século
XX. Asante, Gana. Imagem digitalizada do catá-
logo da exposição Arte da África (2003, p. 244).
papagaio, ave encontrada em abundância no
Brasil. No entorno uma paisagem tropical,
caracteristicamente brasileira. “No plano do
simbólico, a tela Mulher Negra, de Albert
Eckhout é uma representação alegórica
de um encontro de culturas, dando a ver
misturas, contatos, interação, mestiçagem”
(PESAVENTO, 2006, p. 21).
Este encontro de culturas indica que
grupos sociais coexistem, relacionam-se e
se inuenciam mutuamente e tal como com
eles ocorre, da mesma forma acontece com o
sistema de valores. Já é sabido ser possível um
convívio de enfrentamento, com disputa de
lugar entre estes sistemas em que um deles se
impõe aos demais, sem conseguir destruí-los. Com isso, termina por se reconstruir uma cultura a
partir de um relacionamento de colaboração/embate. É desta maneira que Kalina Silva (2005, p.3),
com quem concordamos aqui nesta tese, crê que ocorreu na América portuguesa:
Cremos que assim ocorreu com a sociedade das vilas açucareiras da América
portuguesa no período que se estende das últimas décadas do XVI ao nal do
XVIII. Se um sistema de valores engloba valores éticos e morais, noções de
certo e errado, de Bem e de Mal, concepções religiosas e hierarquia social,
nas vilas açucareiras de Pernambuco e Bahia, tais concepções e valores eram
denidos, a priori, pela cultura da Igreja Católica, da monarquia e dalguia
ibérica. Constituía-se assim um sistema de valores ocial. Mas se, por um
lado, tais noções eram impostas, aceitas e adaptadas por escravos, forros,
índios aldeados e mestiços, por outro, diversos grupos compostos por esses
personagens construíam suas próprias noções mestiças, com variado grau
de herança indígena ou africana, de Bem e Mal, de divindade, de hierarquia
social, como nos mostram diversas instituições de caráter mestiço da
sociedade urbana açucareira.
Figura 3.19 Mulher Negra. Albert Eckhout.
Óleo sobre tela, 1641. Imagem digitalizada do
livro Círculo das contas: jóias de crioulas baia-
nas (GODOY, 2006, p. 43).
Este sistema de valores é denominado
por Silva (2005, p. 5-7) de barroco mestiço.
O uso do termo barroco se deve ao fato de
o mundo colonial ter adotado o que alguns
estudiosos denominam de cultura barroca,
“baseada nos valores da dalguia, valorizando
o ócio e a ostentação, e condenando
os valores burgueses do trabalho, suas
características sociais têm base no controle
da massa urbana, através principalmente
de sua cooptação cultural”. E mestiço, por
não ser uma mera transposição do conceito
barroco para o universo da colônia,
que “as misturas de imaginário e valores
construíram um sistema de valores mestiço,
com predomínio das estruturas mentais do
barroco na América açucareira”.
Existem inúmeros exemplos da
objeticação deste barroco mestiço,
principalmente pela via religiosa, pois não se
deve esquecer que o barroco é um movimento de contra-reforma, de rearmação do cristianismo,
incluindo sua expansão no novo mundo, e, dentre as inúmeras estratégias de alcançar seus
objetivos, uma delas, sem dúvida era a tolerância aos elementos signicativos daqueles a quem
se queria conquistar. Um exemplo é a igreja de Santa Egênia (Ouro Preto), construída por
Chico Rei, senhor na África e escravo no Brasil, que enriquece com a mineração de ouro e
Figura 3.20 Jerônimo Felix Teixeira e Felipe
Vieira. Detalhes ornamentais da talha policro-
mada dos altares da Igreja de Santa Egênia,
Ouro Preto, MG, 1747/1769. Foto: Marília An-
drés.
Imagem digitalizada do livro Arte Afro-
Brasileira (CONDURU, 2007, p. 17).
compra sua liberdade. Como toda a arte barroca é oriunda de encomenda, a talha (Figura 3.20)
desta igreja possui elementos próprios das crenças africanas, como búzios, chifres de carneiro
e cabra, marcas de iniciação, etc.
Outro exemplo de como o sistema de valores hegemônico também se reconstrói e passa
a fazer parte do universo mestiço e não mais dos seus referenciais de origem, têm-se iconograa
dos santos Cosme e Damião. Estes eram dois médicos norte-africanos ou médio-orientais que
nunca foram irmãos e que a Igreja Católica, para substituir o culto africano aos Ibejis (Gêmeos),
transformou em irmãos gêmeos (Cunha 1993, p. 990). Vê-se na Figura 3.21 Ibejis africanos,
Ibejis baianos e o Oratório de São Cosme e Damião, em um claro exemplo de circularidade
cultural
III-16
. Gruzinski (2001) demonstra que a concepção européia de reprodução deixava um
16
III-
Segundo Fernandes (2002, p.6): A cultura popular ltra elementos da cultura letrada de acordo com seu
conjunto de valores e condições de vida. o contrário é recíproco a cultura letrada/ocial também capta
elementos da popular. O historiador italiano Carlo Ginzburg busca analisar, não a cultura popular em si, ao analisar
o caso especíco do moleiro friuliano, em O queijo e os vermes, mas o processo de circularidade cultural que
Figura 3.21 Ibejis africanos, Ibejis baianos e o Oratório de São Cosme e Damião. Imagens de
diversas fontes.
Par de Ibejis
Sudoeste da Nigéria - S/D
Arte Afro-Brasileira
(AGUILLAR, 2000, p.80)
Par de Ibejis. Bahia.
Século XIX.
A Mão Afro-Brasileira
(ARAÚJO, 1988, p.185))
Oratório: Cosme e Damião
Séc. XIX, Diamantina-MG
Arte Afro-Brasileira
(CONDURU, 2007, p.21)
campo considerável à interpretação e à invenção.
Em conformidade com a pesquisa de Affonso Ávila (1994, p.32) o barroco está presente
desde o seiscentos brasileiro,
Com a construção dos primeiros templos suntuosos da Bahia e do nordeste
açucareiro, implanta-se no seiscentos brasileiro o tônus barroco, que a
literatura irá repercutir com a prosa oratória do padre Antônio Vieira e a
poesia de Gregório de Matos, propiciando ao mesmo tempo, ao longo do
século XVII e na primeira metade do XVIII, uma série de manifestações
menores, seja em obras individuais, seja na atividade coletiva das academias,
mas sempre bastante típicas no seu barroquismo.
É deste ponto, templos suntuosos da Bahia
III-17
- possíveis devido à opulência gerada
pelos engenhos de açúcar - que se irá atentar para o denominado mundo Afrobarroco
III-18
baiano caracterizado pelo encontro dos africanos e os representantes ou herdeiros da cultura
portuguesa, já modicada pelos ameríndios. Concordando com Ávila, Antonio Risério relata o
que aconteceu aqui mais estritamente no campo da cultura baiana:
O que os portugueses trouxeram para não foi apenas uma linguagem
estética e intelectual, foi toda uma mentalidade. A mentalidade barroca,
cristalizando-se na arquitetura dos prédios públicos, mas também no universo
discursivo de Antonio Vieira e Gregório de Mattos. Vieira, o compositor de
um sermonário que distinguia no céu um xadrez de estrelas. Gregório, o
poeta gregário, manejando um léxico e um ritmo que o fazia devolver, à
matriz barroca da Península Ibérica, um produto poético, ostensivamente
original. Mas havia, ainda, a linguagem e a sensibilidade originárias da
África Negra. O barroco, incorporando os “outros” que ingressavam em seu
campo magnetizado, não foi exatamente um problema, mas uma solução.
Como a poesia de Juana Inés de La Cruz, no México, trouxe para as suas
linhas tensas os falares africanos, também aqui os falares africanos se
projetavam e se gravavam em tessitura barroca. Tivemos um barroco “de
interiores”, rebrilhando nas volutas de nossas muitas igrejas. E um barroco
“de exteriores”, explodindo em festas e mais festas ao ar livre dos trópicos,
Afrobarroca Bahia. (grifos do autor)
Foi do ventre desta Bahia Afrobarroca que nasceu o traje da baiana, inicialmente
formava suas idéias tão originais, e que demonstra as interelações entre a cultura letrada e a popular.
17
III-
A Bahia ao qual nos referimos é, na verdade, Salvador, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo.
18
III-
Como o antropólogo Antonio Risério (1997, p.18) denomina a cultura baiana.
a serviço de externar a riqueza de suas senhoras e seus senhores, e, mais tarde ou ao
mesmo tempo, constituindo-se em insígnias de poder para suas usuárias. Trata-se de uma
indumentária híbrida, que foi sendo elaborada muito vagarosamente, no século XVII, cuja
ascendência pode ser averiguada na pintura “Mulher Negra” de
Albert Eckhout (Figura 3.19),
passando pelo século XVIII com as pinturas de Carlos Julião
III-19
, produzidas provavelmente
entre 1776 e 1799 - “Ditos de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro e
19
III-
Os riscos referentes ao Rio de Janeiro e Serro do Frio compõem um conjunto de 43 pranchas de traços delicados
e cores fortes, com algumas iluminuras. Guardado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, este conjunto
constitui um dos raros documentos iconográcos sobre escravos e libertos na América portuguesa setecentista.
Homens e mulheres de pele bem escura aparecem em 21 das pranchas: 10 representam situações de trabalho
individual ou coletivo, 6 referem-se a ocasiões festivas, 4 contêm guras isoladas destacando a indumentária, e
nalmente, uma traz uma cena em que dois feitores revistam um escravo garimpeiro (LARA, 2000, p.1).
Conjunto de
pinturas de
Carlos Julião,
guardado pela
Biblioteca
Nacional do
Rio de Janeiro
- 1776 e 1799
- “Ditos
de Figurinhos
de Brancos e
Negros
dos Uzos do
Rio de Janeiro
e Serro
do Frio”.
Figura 3.22 - Indumentárias de mulheres negras. Carlos Julião. Imagens capturadas do artigo
Mulheres Escravas, Identidades Africanas (LARA, 2000, p. 3, 4 e 6).
Figura 3.23 Indumentárias de Baianas. Imagens digitalizadas do livro Debret e o Brasil
(BANDEIRA & LAGO, 2008, páginas 406 e 416 respectivamente).
Figura 3.24 Indumentárias de Baianas. Imagens digitalizadas do livro Debret e o Brasil
(BANDEIRA & LAGO, 2008, páginas 406 e 412 respectivamente).
Baianas
Aquarela - 10 x 19,5 cm
C. 1817-1829
Negra mina da Bahia
Aquarela
1817-1829
Baiana
Aquarela
1817-1829
Serro do Frio (Figura 3.22) -, chegando a uma iconograa mais vasta no século XIX, com
pinturas em diversascnicas e posteriormente fotograas, como por exemplo, as inúmeras
representações de indumentárias de mulheres negras da autoria de Debret (Figura 3.23 e
Figura 3.24). Esse tipo de vestimenta que se tornou traje típico brasileiro, sendo um mix
de elementos mulçumanos, iorubanos e europeus de determinado período, onde estavam
inseridas as jóias escravas, que podem ser conferidas tanto nas guras anteriores, como na
gura 3.25, onde estão detalhados os componentes da indumentária.
O estudo da indumentária da mulher negra no Brasil em relação ao binômio design
e poder, que, neste caso, envolve design e raça e design e gênero, será assunto do próximo
capítulo. Presentemente, está-se examinando a composição estético-formal da roupa
mestiça da mulher negra baiana. Não interessa, entretanto, destacar minuciosamente quais
as contribuições européias e quais as africanas, elas existem, bem como os estudos que
as destacam, dando-se maior importância a uma ou outra em consonância com a adesão
teórica dos pesquisadores. O que se pretende evidenciar é o caráter antropofágico do
objeto mestiço, em que, neste ponto, já se pode dizer objeto brasileiro, conceito elaborado
pelos modernistas brasileiros, nos anos 20. “A
intenção do movimento era digerir a cultura européia
e convertê-la em algo brasileiro, modernizar sim, mas
considerar também a cultura autóctone como aspecto
fundamental para a criação artística” (MORAES,
2006, p. 44). Esse desejo que foi expresso na segunda
década do século XX, termina por evidenciar uma
característica formativa da estética brasileira, como
já acontecia com o barroco, como evidencia Dijon de
Moraes (2006, p. 46 e 47),
Figura 3.25 Indumentária da baia-
na com a indicação dos seus diversos
componentes. Imagem disponível
em: http://www.terrabrasileira.net/
folclore/manifesto/trajes/baiana.
html. Acesso em 25/05/2009.
O Barroco brasileiro é caracterizado por muitos aspectos tipicamente
nacionais, como o uso de pedra sabão e madeira jacarandá, matérias-
primas encontradas somente no Brasil. Da mesma maneira, sublinham-se
as peculiaridades socioculturais implicadas nesse estilo, como o fato de
os casarões e as igrejas dos senhores brancos terem sido construídos por
escravos negros. E os negros construíam também edicações para seu
próprio uso, como suas igrejas, pois, como é sabido, lhes era proibido o
acesso aos templos brancos. Isso relaciona-se ao fenômeno do sincretismo,
tanto religioso quanto estético, tão marcante no Brasil: os escravos negros
construíam igrejas Barrocas, nelas inserindo, porém, elementos relacionados
aos seus ritos, dramas e tensões, como por exemplo a forte saudade da África,
chamada em idioma africano de Banzo.
O mesmo ocorre com as vestes das negras baianas dos séculos XVIII e XIX, seja o traje
cotidiano de trabalho ou os trajes festivos (a roupa de baiana e o traje de beca), que estavam
relacionados com a indumentária das trabalhadoras portuguesas (Silva, 2005, p. 47-66). Nossas
personagens retiraram da cultura européia aquilo que lhes parecia interessante e mantiveram de
africano: o turbante, o pano da costa e o gosto pelos adornos como jóias. A partir daí criaram
uma indumentária misturada, que pertence simultaneamente aos dois mundos e a nenhum. “Um
objeto mestiço é aquele que pertence a várias civilizações ao mesmo tempo. Por exemplo, ele é
africano e europeu, americano e europeu, asiático e americano” (GRUZINSKI, 2008
III-20
).
O que se deve contabilizar nas investigações sobre a formação estética da cultura
brasileira, seja na arquitetura, na escultura, na pintura, na joalheria, na indumentária, na musica,
na literatura, etc., é a consonância, pouquíssimo apontada, entre a tradição visual africana e as
formas barrocas, tal como o faz Risério (2007, p. 250):
Em campo estético, as coisas foram ainda mais fáceis. A tradição visual africana
não se choca com as formas barrocas. Prima pelo excesso e a extravagância. Por
oreios e volutas. É uma festa de movimentos, cores, detalhes. Um mundo de
procissões sacro-carnavalescas e danças multicoloridas – de mascaras e brilhos
e insígnias e artifícios, todos capazes de seduzir de chofre um temperamento
barroco. Apesar das diferenças culturais, um homem barroco se sentiria à
vontade diante da plástica em movimento de orixás e eguns. Assim, a conjunção
e o parentesco formais facilitaram a articulação de sincretismos entre nós.
20
III-
Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/3007,1.shl. Acesso em 29/05/2009.
Na Figura 3.26, pode-se comparar as indumenrias de trabalho em Portugal e no
Brasil. Na Figura 3.27, apontam-se os trajes festivos das mulheres portuguesas e das crioulas
baianas, incluindo o traje de beca
III-21
, e na Figura 3.28, o traje de baiana
III-22
, também festivo.
“O traje de beca era de uso mais restrito, cerimonial, de solenidades como as procissões
religiosas e a quaresma, enquanto o traje de baiana era como um traje domingueiro, de ir à
missa” (SILVA, 2005, p. 63).
Nas vestes destas mulheres, como também nas suas jóias, manifesta-se a
mistura dos
elementos da cultura européia com as questões locais para se criar uma nova realidade, ambígua
e contraditória, em que é possível reconhecer parcialmente suas matrizes originais.
Ornamentos
corporais femininos, tecidos coloridos e diferentes tipos de penteados o legítimos objetos
historiográcos, e uma maior atenção dispensada a eles ajuda-nos a melhor compreender o passado e
o presente”
(PAIVA, 2001, p. 218).
21
III-
“O traje de beca consistia em torço de seda branca enfeitado de níssimo bico condizente, que podia ser
também em gorgorão preto; camisas brancas em tecido níssimo, primorosamente bordadas, de mangas curtas,
decote arredondado alargado e pouco profundo; saias de beca de tecido preto plissado de comprimento até o
tornozelo; anáguas; lenço de cambraia bordada posto na cintura; pano preto, possivelmente pano da costa, usado
como xale; sapatinhas de pelica branca com enfeite de seda, de biqueira revirada para cima à morisca e salto
de carretel; e uma profusão de jóias como grosas correntes de ouro no colo, braceletes cobrindo os punhos e os
antebraços até a altura dos cotovelos” (SILVA, 2005, p. 63).
22
III-
“A parte superior, acima da saia, é feita de na musselina, lisa ou enfeitada, algumas vezes tão transparente
que não chega a disfarçar o corpo, da cintura para cima. A parte que cobre o busto é bordada com largas rendas
e pequenos tubos, lindamente trabalhados, reunidos por meio de uma abotoadura de ouro; esta parte superior do
vestido é sempre tão folgada que um dos ombros da mulher ca quase inteiramente descoberto. A saia do vestido
é muito volumosa, sua orla é bordada com renda ou leva um arabesco branco aplicado sobre a mesma; a saia de
baixo também é bordada com rendas. Os pés, sem meias, são enados em pequenos sapatos que cobrem a ponta
dos dedos e os saltos, muito altos e pequenos, não alcançam o calcanhar. Os braços são cobertos de pulseiras de
coral e de ouro, etc; o pescoço e o peito carregados de colares e as mãos de anéis (...) Um elegante pano da costa é
jogado sobre o ombro. (...) Um elegante lenço de renda branco ou musselina de cor, com uma orla de renda branca
ou preta, é transformado da maneira mais elegante num turbante para a cabeça, e curiosos brincos completam esse
vestuário. (...) Uma pequena cesta, usada mais como adorno do que como objeto de uso, é por vezes carregada na
cabeça” (WETHERELL apud SILVA, 2005, p. 62).
Pelo exposto, considera-se a joalheria escrava baiana como o exemplo inaugural do
design de jóias brasileiro, sendo um produto do hibridismo cultural. Essa joalheria é composta
por artefatos híbridos na sua aparência, nas técnicas de feitura, na mistura de heranças culturais
diversas, que não podem ser classicados como europeus ou africanos. Tal como argumenta
Mariano Cunha (1983, p. 1027), depois de apontar que “a metalurgia aplicada à fabricação de
adornos e ornamentos pessoais era fato corrente na África negra muito antes de qualquer
contato com os europeus, quando arma que:
...pode-se avaliar a diversicação da contribuição africana à ourivesaria
brasileira. É claro que aqui chegados, esses negros já encontram uma infra-
Figura 3.26 – Indumentária de trabalho em Portugal e no Brasil.
Traje de trabalhadora portuguesa. S/D. Imagem digitalizada
do livro Ouro Popular Português (COSTA e FREITAS,
1992, p. 26). Foto: Manuel e Lucila Valle - 1992
Lavadeira - Bahia. Foto: Lindemann
- Séc. XIX - Imagem digitalizada do
livro O negro na fotograa brasile-
ira do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 212)
estrutura portuguesa do trabalho do metal e o produto nal apresenta-se
como reformulações desses componentes.
Ou seja, as jóias afro-brasileiras são fruto de idéias transculturadas, que foram
interpretadas, modicadas ou transformadas em conformidade com as circunstâncias histórico-
culturais-tecnológicas locais (Waisman, 1990, p. 48).
Os estudiosos da cultura material da América Latina constatam com freqüência uma
abundância de anacronismos. Para exemplicá-los Marina Waisman (1990, p. 49) se refere
à arquitetura mexicana,
Figura 3.27: Trajes festivos das lavradeiras portuguesas e das crioulas baianas (traje de beca).
Lavradeiras portuguesas - Vila Nova de Gaia -
Séc. XX Imagem digitalizada do livro Círculo das
contas (GODOY, 2006, p. 69).
Crioulas da Bahia. Foto: Lindemann - Séc.
XIX Imagem digitalizada do livro O negro na
fotograa brasileira do culo XIX
(ERMAKOFF, 2004, p. 216)
No México, por exemplo, se entreviram góticos tardios com maneirismos
e renascimentos, platerescos e nos renascimentos italianos, vestígios
românicos e estruturas indígenas, contemporaneamente e até em uma
mesma obra. Daí que uma periodização baseada em critérios estilísticos, ou
de concepção espacial ou de desenvolvimento estrutural, resulte articial
para a nossa arquitetura, e possa indicar, em resumo, alguma coincidência
temporal com períodos europeus.
Na joalheria escrava baiana também se encontra uma situação de inexistência de um
desenvolvimento estilístico coerente aos padrões europeus. São jóias que possuem características
de difícil classicação estilística, com contribuições do barroco, rococó, neoclássico, com um
arranjo e concepção formal de evidente contribuição africana, possibilitando classicá-la como
uma jóia afro-brasileira, como explica Virginia Moraes
III-
23
:
As pencas de balangandãs e outras jóias que compõem a Joalheria Baiana
são verdadeiros símbolos da cultura afro-brasileira, registro de suas tradições
e saberes. As jóias autênticas desse período hoje são tidas como verdadeiras
raridades, com seus exemplares nos acervos de grandes museus.
Por exemplo, a pulseira da Figura 3.29 é um “bracelete cilíndrico que se assemelha a
um copo. Traz geralmente como elemento decorativo central, medalhão com gura feminina de
perl. Decoração comumente em ligrana” (SILVA, 2005, p.46). É, então, denominada pulseira
‘copo’. Analisando a peça, percebe-se que a concepção formal da pulseira possui matriz africana,
apesar dos muitos elementos europeus, como expõe Cunha (1983, p. 996),
Enm, dadas como do século XVIII são as conhecida pulseiras ‘copo’,
em ouro ou prata, e outros adereços crioulos do Museu Costa Pinto, de
Salvador. Alguns desses exemplares encontram-se também no Museu
Imperial de Petrópolis e no Museu de Arte da Bahia. Embora esse material
seja apresentado como europeu, veremos em seguida que se trata de modelos
africanos repensados crioulamente, mas cuja forma, função e grande parte
da técnica utilizada revelam sua origem real (grifos do autor).
Ainda conforme o professor Mariano da Cunha (1983, p.1028), ao confrontar as pulseiras
do tipo ‘copo’ de ligrana dourada com as pulseiras de aparato em bronze da África Ocidental,
23
III-
Disponível em http//joiasdobrasil.com/opiniao/index.htm. Acessado em 12/08/2004.
logo se identica que a forma permanece africana e o tipo de fecho também, que só é aplicado
na África nas pulseiras de menor tamanho. Portanto, estes artefatos, podem ser considerados
como versões mais sosticadas das usadas nos cultos afro-brasileiros
III-24
(Figura 3.30).
Existem pulseiras africanas desse tipo no acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia
da Universidade de São Paulo. Encontra-se na Figura
3.31 um exemplar em bronze e na Figura 3.32 outra peça
em marm. A peça em latão é nigeriana do início do
século XX e é usada por um alto membro do culto ioruba
ogboni. O desenho da pulseira foi amplamente usado
como símbolo de poder que transgride as fronteiras do
normal e, por essa razão, apropriado para a associação
de anciãos com poderes místicos (Clarke, 1998, p.30). A
pulseira em marm foi elaborada por um exímio eborário,
responsável por elaborar os adereços de cerimônia do
rei. Os eborários eram possuidores de elevada destreza
técnica, como se percebe através dessa pulseira, por
exemplo, que possui dois cilindros embutidos um no
outro e com o mecanismo de rodar separadamente.
No entanto, a pulseira cilíndrica africana,
com articulação em charneira e montagem de vários
elementos associados com a ligrana, é uma réplica contemporânea do bracelete cabila
24
III-
O Professor de Antropologia da USP Vagner Gonçalves da Silva faz outra interpretação das origens da
inuência em relação à forma de pulseira “copo”: “Outra grande inuência estrangeira na vestimenta dos orixás
encontra-se na forma do peitoral e dos braceletes e pulseiras que os orixás, em geral os guerreiros, usam. Feitas
também de metal trabalhado, em forma de “copo”, estas peças lembram as armaduras típicas dos cavaleiros
romanos ou medievais” (2008, p. 102).
Figura 3.28 Traje de Festa. H.
Lewis/ Maria Graham. Imagem
digitalizada do catálogo Mostra do
Descobrimento: negro de corpo e
alma (AGUILLAR, 2000, p.255).
tradicional (Figura 3.32). A Cabília é uma
região do Norte da África, situada a noroeste
da Argélia às margens do mar mediterrâneo.
Vive nesta área parte do povo Berbere
(falantes do berbere, nômades do deserto
de Saara, a maioria islamizada). A sua
ourivesaria é pouco conhecida no mundo,
suas particularidades são o trabalho em
ambas as faces, as cores do seu esmalte, a
utilização do coral vermelho e as decorações
características presentes em todas as jóias da
Cabília. Os braceletes acompanham a mulher
cabila ao longo de sua vida, sendo usados em
pares, um em cada mão, durante ocupações
cotidianas
(Codina, 2002, p.152-154).
Estudiosos da joalheria baiana evocam
a semelhança estilística de algumas peças
com aquelas que fazem parte da joalharia
popular portuguesa, como se mostrará mais
adiante. Todavia, nessa coleção de jóias não
se encontram as pulseiras, e, muito menos
as do tipo ‘copo’.
Retomando a análise da pulseira
‘copo’, os elementos isolados que a compõe
são todos europeus e barrocos: folhas
Figura 3.30 Iemanjá em uma interpretação
do fotógrafo Aristides Alves (Detalhe). Imagem
digitalizada do livro Mágica Bahia (RISÉRIO
et alli, 1997, p. 74).
Figura 3.29 - Pulseira Copo ou Punho: em -
ligrana e com medalhões feitos em ouro. Foto
da peça do acervo do Museu de Carlos Costa
Pinto - Júlio Acevedo/2005.
de acanto, ores, volutas em ligrana,
bolinhas (técnica do granulado), entretanto
a excessiva repetição e o uso de outros
elementos remetem ao estilo rococó. Além
da efígie de uma mulher de perl, típico da
joalheria neoclássica, apesar das inúmeras
semelhanças entre a joalheria grega e a
joalheria romana, o camafeu é uma diferença
entre elas. O desejo romano de representar
um indivíduo em particular é completamente
oposto à tendência grega do ideal universal.
Os referenciais greco-romanos foram
retomados por duas vezes ao longo da
história da arte européia: no Renascimento
e no nal do século XVIII, com Napoleão
Bonaparte, quando o pintor francês Jacques
David desenvolveu um estilo artístico para o
seu império inspirado na Antiguidade.
Percebe-se, o aspecto da joalheria
escrava baiana, que ela possui uma
série de similitudes com a arte da talha
das igrejas, embora a talha barroca seja
a mais afamada na Bahia. Contudo,
no século XIX, várias igrejas passam por reformas ornamentais, passando do barroco
para o neoclássico, como detalha o pesquisador baiano, professor Luis Freire (2006, p.
Figura 3.31 Pulseira em latão. Nigéria/Início
do Século XX. Imagem digitalizada do livro Afri-
can Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 30).
Figura 3.32 Pulseira cilíndrica em marm.
Nigéria. Benim. Séc. XVIII. Origem: Owo.
Imagem digitalizada do livro África Negra
(MEYER, 2001, p.52).
339), ao abordar o hibridismo estilístico
baiano: “Do estudo genealógico dos tipos
retabulares que proliferaram em Salvador
dos Oitocentos, podemos concluir que
o estilo neoclássico processou-se sem a
negação das tradições do século XVIII,
incluídos o barroco mais aparatoso do
joanino, o rococó mais refinado de cariz
francês e o Luís XVI (França)”. E afirma
algo sobre a talha neoclássica baiana que se
considera absolutamente valido para a coleção de peças que compõem a joalheria escrava
baiana: “Por mais que decorra ou faça referências aos elementos estilísticos europeus, a
talha baiana oitocentista é resultado de criações bastante singulares e identificadas com
o gosto local” (Idem, p.344).
Inclusive, em outro exemplar de pulseira copo(Figura 3. 34), o expressos de
maneira mais contundente os propósitos da arte neocssica como arte a serviço do Estado,
pois, depois da vinda da Família Real para o Brasil, da Missão Francesa, da Independência e
principalmente, no reinado de D. Pedro II, o culto a personalidade não podia ser feit o atras
de uma egie feminina qualquer, precisava haver identidade com um projeto de nação e este
elegeu o índio como o seu representante. Em uma encomenda ocial ao escultor Francisco
Manuel Chaves Pinheiro, na escultura Alegoria do Império Brasileiro, é o próprio império
que se faz representar como índio (Pereira, 2008, p. 38). Então, tem-se, no exemplar da
peça em queso, a efígie de um indígena e não mais de uma mulher com traços idealizados
greco-romanos, demonstrando mais uma vez como as jóias, objetos, cultura material, enm,
revelam o que somos e como somos.
Figura 3.33 Bracelete cabila tradicional da
autoria de Salima Hadj e Oukali Saliha (ouri-
ves da Cabília). Imagem digitalizada do livro A
Ourivesaria (CODINA, 2002, p.152-154).
A pulseira de placas (Figuras 3.35 e 3.36), peça da jóia de crioula, composta por chapas
retangulares decoradas com motivos tomorfos ou efígies e as partes são conectadas entre si
por elos ou cilindros no mesmo metal, ou em coral ou pedra colorida encastoados. (Trindade,
2005, p.46). O estilo neoclássico francês também está presente nessas pulseiras em termos de
culto à personalidade, onde era esculpida em baixo-relevo a efígie de membros do império (D.
João VI, D. Pedro I e D. Pedro II), como descreve Oliveira (1948, p.30),
Na Bahia predominavam as pulseiras de ouro compostas de seções
retangulares tendo ao centro efígies masculinas e femininas, retratos dos
imperadores e imperatrizes. Por ocasião da menoridade de D. Pedro, eram
comuns as pulseiras com efígies do imperador menino.
Escultura em terracota:
Alegoria ao Império Bra-
sileiro. Francisco Chaves
Pinheiro - 1872. Imagem
digitalizada do livro Arte
Brasileira no Século XIX
(Pereira, 2008, p. 39)
Pulseira Copo ou Punho. Foto da peça: Acervo do
Museu de Carlos Costa Pinto.Júlio Acevedo/2005
India Guarani (Detalhe de litograa de Debret).
Imagem digitalizada do livro Debret e o Brasil
1834 - (BANDEIRA & LAGO, 2008, p.526)
Figura 3.34 – Pulseira “copo” e suas referências.
Figura 3.35 Pulseira de Placas. Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
Em termos estéticos, portar os membros da família real do Brasil nas jóias era o
padrão da época e, portanto, necessário aos significados sociais destas jóias que faziam
parte de um projeto de inserção social de suas usuárias. A Marquesa de Santos, amante
oficial de D. Pedro I, primeiro imperador do Brasil, possuía um colar de ametistas (Figura
3.37) e, no centro dele, havia a efígie do amásio, neste caso, por padrão e provavelmente
por paixão.
Nas pulseiras de placa (Figura 3.38) existem aquelas que possuem conexões de
cilindros em coral, indicando uma tradição africana tanto na forma cilíndrica, como na
predileção pelo material.
O uso do coral foi bem diversicado e intenso entre as mulheres forras e livres,
sobretudo encontra-se em abundância na cor vermelha e mais raramente na azul e em
várias formas: em contas (cilíndrica ou esférica) à moda africana, em rama como amuleto
Figura 3.36 Pulseira de Placas. Efígie de D. Pedro I jovem e na idade madura intercaladas.
Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
europeu, ou ainda, lapidados em forma
de ga, de pitanga e cabochão (Figura
3.39). Eles penetraram na África através
dos mercadores vienenses, onde foram
fetichizados de acordo com os usos,
costumes e signicações dos seus povos e
chegaram ao Brasil com o longo período
de escravidão. Eduardo Paiva relata como
foi na África (2004, p. 61):
Os corais trazidos do Oriente Médio, da Ásia, do Mediterrâneo Itália,
Espanha, Argélia, Tunísia se transformaram em objetos de uso corrente
da corte beninense e em várias regiões da África Central e também eram
apreciados no reino Ashanti ou Costa da Mina (atual Gana) e nos reinos de
Daomé (povo Fon) e Yoruba (atual Nigéria). A eles e a outro tipo de contas foi
associado o ouro, existente em quantidade signicativa, nestas regiões.
Tanto o coral vermelho quanto o azul possuem função e signicado nos cultos afro-
brasileiro. Por exemplo, só as adeptas do candomblé com mais de sete anos de iniciação podem
Figura 3.37 Colar de Ametistas com a efígie
de D. Pedro na peça central. Pertenceu a Mar-
quesa de Santos – S/D. Imagem digitalizada do
livro Jóia Contemporânea Brasileira (WAG-
NER, 1980, p. 31).
Figura 3.38 Pulseira de Placas - placas com efígie do imperador menino e conexões em cilindros
de coral e ouro. Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
usar “os brajás, colares truncados por “rmas” (contas maiores feitas de coral) que formam
“gomos” em sua extensão (VAGNER, 2008, p. 103) (grifos do autor). E Gerlaine Martini ainda
destaca sua importância para o candomblé:
O coral continua tendo destaque nos acessórios de candomblé. O “coral
marrom avermelhado é um atributo da divindade que preside a venda de
acarajé. Os brincos em forma de “barrilzinho, geralmente imitando coral,
são seu complemento. Pitangas de coral ou de pedras podem enfeitar as
orelhas, assim como os búzios se tornaram bastante comuns em joalheria.
Ainda é possível se observar estes últimos acessórios em baianas bem
vestidas para as festas de largo.
Quanto ao coral em rama (Figura 3.40), ele é mais um exemplo de circularidade cultural
- quando
a cultura popular ltra elementos da cultura letrada de acordo com seu conjunto de
valores e condições de vida por ser um dos elementos encontrados na penca de balangandã e
Figura 3.39 Diversas jóias escravas em ouro e coral. Foto da peça do acervo do Museu de Car-
los Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
aparecer pendurado muitas vezes pendendo no colar em torno do pesco do menino Jesus nas
representações dos pintores renascentistas italianos da Virgem com o menino, como amuleto contra
o mau-olhado e outros males. Nessas diversas pinturas também aparecem rios componentes das
pencas de balangandã, como romãs e cachos de uvas (Paiva, 2004, p. 61).
A Penca de balangandãs é um adereço místico em sua maioria confeccionado em prata,
usado por certas negras e mulatas, até a primeira metade do século XX, na região da cintura/
quadris. (Silva, 2005, p.46). A museóloga Simone Silva realizou em sua dissertação de mestrado
um extensivo estudo sobre as pencas de balangandã, tomando por base as 27 (vinte e sete)
unidades pertencentes ao acervo do Museu Carlos Costa Pinto, descortinando através da análise
histórica e semiótica, todos os componentes da penca: corrente, nave ou galera e os seus vários
elementos pendentes. E é a fala da pesquisadora que os detalha (2005, p. 79):
A corrente de elos serve para xar o adorno à usuária, perpassando-lhes a cintura. A
nave ou galera é a parte que agrupa os elementos pendentes. Geralmente, apresenta
decoração em sua parte superior (espécie de frontão), é articulada a partir de uma
bisagra lateral, que acesso para sua parte inferior semicircular e denticulada,
onde cam os pendentes. A parte inferior e superior unem-se a partir de um
orifício lateral, oposto à bisagra, xado por parafuso denominado “borboleta”. Os
elementos pendentes variam em tipologia, materiais e quantidade.
Figura 3.40 Penca de Balangandã. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimen-
to: negro de corpo e alma (AGUILAR, 2000, p. 262).
Na Figura 3.41 identica-se essa estrutura da penca de balangandã e também se notam seus
elementos pendentes mais freqüentes, que são: gas, côco de água, chave, moedas, cilindro, romã,
cacho de uva, peixe e dentes de animais encastoados em prata (Silva, 2005, p.94). Em relação à
questão estética pertinente à penca de balangandãs, existem, na decoração das naves e nos ornatos
dos elementos pendentes, características inquestionavelmente barrocas, um exagero de adorno em
si mesmo e em composição com as demais peças usadas pelas mulheres negras ou mestiças, “onde
muito ouro e prata barrocamente ajaezavam corpos e trajes de gala [...]” (LODY, 2001, p. 42). O que
se considera mais importante na estética da penca de balangandã, apesar da sua estrutura formal ser
bem denida, é a sua condição de obra aberta, por possibilitar a sua proprietária agregar ao longo da
sua vida, a materialização da própria vida... E é essa condição que leva a penca de balangandã a ser o
exemplo paradigmático do conceito de design de resistência, assunto do próximo capítulo.
Os colares nomeados por correno de crioula são compostos por bolas ou contas
confeitadas, que podem ser lisas ou gomiladas. Alguns exemplares trazem pendentes do tipo:
Figura 3.41 – Penca de Balangandã. Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto -
Júlio Acevedo/2005.
borla, pomba do Espírito Santo, roseta e/ou cruzes, crucixos (Silva, 2005, p. 44). Neste caso,
há uma apropriação formal total de um tipo de jóia portuguesa da rego de Viana do Castelo, lá
chamados simplesmente de colares de contas, e são as contas propriamente ditas que recebem
denominões diferentes conforme a sua tipologia: redondas ligranadas, cobertas, de Viana ou
minhotas, brasileiras, de pipo, bago de arroz e lisas.
A importância do uso de contas na África foi visto no capítulo anterior. os materiais
mais usuais eram a pedra, o vidro e o coral, que antecederam os metais como matéria-prima
das contas fundidas. Quanto à importância das contas para as mulheres desta região de Portugal
supramencionada, são esclarecedoras as explicações de Amadeu Costa e Manuel Rodrigues de
Freitas (1992 p. 74) e a observação do colar de contas (português) da Figura 3.42,
O colar de contas era adquirido pela mulher de Viana antes do tão desejado
cordão e, muitas vezes comprado, conta a conta, à custa das poucas
economias dessas jovens, em geral provenientes da venda de ovos ou do
comércio de frangos. As contas usavam-se em número variável consoante
a localidade, mas nunca, como agora, a rodear todo o pescoço. As contas
iam até o meio dele, ligadas por um o de correr, podendo aumentar ou
diminuir o colar, consoante a necessidade, e terminando na parte de trás
com um “pompom”. O o era feito manualmente, de algodão, que podia ser
vermelho, amarelo ou azul, e os “pompons” das mesmas cores ou com os
mesclados. (grifos dos autores).
O uso das contas pelas mulheres negras ou
mestiças no Brasil (Figura 3.43) possui a inuência dos
hábitos e costumes das mulheres brancas portuguesas
ou brasileiras, conforme a pesquisadora Solange Godoy
(2006, p. 28 e 59), que arma ter existido um círculo de
contas, ou seja, “interligações existentes entre Portugal,
Figura 3.42 Colar de contas redondas ligranadas,
com cruz de raios e canovão. Imagem digitalizada do li-
vro Ouro popular português (COSTA e RODRIGUES DE
FREITAS, 1992, p. 76).
África e Brasil através dessas jóias raras, exuberantes e de signicado até hoje pouco conhecido.
As jóias de crioulas baianas guardam semelhança com as jóias africanas akan, mas também
com jóias populares portuguesas do Noroeste de Portugal e com jóias da Martinica”.
Essas conexões percebidas por Godoy são parte do que o historiador Grunziski (2004,
p. 55) vem investigando como o início do processo de mestiçagem em grandes proporções,
pois, entre 1580 a 1640, com a integração dos reinos de Portugal e Espanha, aconteceu o que se
designou de “mundialização ibérica”, o primeiro império mundial, ou seja, presença ibérica em
Macau (China), Nagasaki (Japão), Goa (Índia), na África, no Brasil, no México, em Milão, etc.
e aponta as suas conseqüências nas artes,
Nesse mesmo contexto houve a mundialização da arte. O Renascimento
chega à Bahia, a Macau e a Nagasaki, onde artistas locais copiavam
arte ocidental. Ao mesmo tempo, chegou à Europa a arte africana, a arte
mexicana, as penas do Brasil... Para mim a mundialização é a conexão das
quatro partes do mundo. Não a exportação de coisas européias, mas a
chegada à Europa de elementos do resto do planeta. Nesse contexto temos
a mestiçagem em todos esses lugares. Não basta estudar o México e o
Brasil. Outro fenômeno que estudo no livro é a exportação da religião. Os
europeus trazem o catolicismo, os africanos e os índios respondem com o
sincretismo. A imposição da religião está relacionada com mestiçagens. Ao
mesmo tempo, a Europa exporta elementos que nunca se misturam, e para
mim isso é globalização.
O colar de alianças é outro (Figuras 3.44 e 3.45) que pode ser formado elo por elo, usando-
se da mesma estratégia das trabalhadoras portuguesas, comprando conta a conta para ter seu
colar completo que, aliás, pode ser assim também para as pencas de balangandãs e para quase
todas as peças da joalheria escrava baiana, excetuando-se, talvez, a pulseira copo. Designado
colar de alianças ou grilhões, tipo de correntão de crioula, é formado pelo encadeamento de
elos em formato de alianças, lisas ou decoradas, que se entrelaçam. Também trazem pendentes
com símbolos católicos, e até a ga, considerada como de matriz africana, tem essa origem
desconstruída por Paiva (2004, 58),
No Brasil atual, ainda se acredita que os amuletos estão mais associados a
cultos afro-brasileiros, o que nem sempre é verdadeiro. Um caso clássico é o
da ga. Vinculada a um passado escravista e, por isso, a uma origem africana,
é um amuleto antiqüíssimo, provavelmente da Europa mediterrânica e
que não teve a função que hoje se conhece, de trazer sorte e proteger o
usuário: a semelhança com as genitálias masculina e feminina sugere uma
referência à sexualidade e à fertilidade. E mesmo vindo do Mediterrâneo,
foi perfeitamente incorporado aos amuletos afro-brasileiros, evidenciando
assim uma mistura de culturas. (grifos nossos).
Figura 3.43 – Correntão de criou-
la - colar de contas ligranadas em
dimensões maiores do que as portu-
guesas. Foto da peça do acervo do
Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
Figura 3.44 – Colares de alianças ou grilhões. Foto da
peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - -
lio Acevedo/2005.
O colar de gramalheira, também de Viana, possui uma concepção formal bem diferente
do colar de alianças produzido no Brasil, mas seus elos constitutivos, mesmo que menores, são
como anéis com a superfície lisa ou decorada. No exemplar da Figura 3.46, confere-se essa
semelhança, apesar da decoração ter motivos geométricos e não orais, em outros colares de
alianças brasileiros, se encontram este tipo de ornato.
Do conjunto das jóias escravas, ainda existem duas peças a serem consideradas: os
brincos de crioulas e os anéis. Na Figura 3.47, observa-se o tradicional brinco tipo argola ou
pitanga (por lembrar a fruta). A forma mais comum é redonda, convexa, em coral lapidado em
forma de pitanga, entretanto, existem em outros materiais (ágata, turquesa, cornalina, tartaruga,
etc.), como também a substituição da
lapidação em forma de pitanga por cabochão
oval ou redondo, abaulado ou não. Todavia,
Figura 3.45 Detalhes dos elos dos colares de alianças ou grilhões. Foto da peça do acervo do
Museu de Arte da Bahia - Júlio Acevedo/2003.
Figura 3.46 Colar de gramalheira e seu de-
talhe. Imagem digitalizada do livro Ouro po-
pular português (COSTA e RODRIGUES DE
FREITAS, 1992, p. 168).
Figura 3.47 – Diversos Brincos tipo argola ou pitanga. Foto de peças do acervo do Museu de Car-
los Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
Figura 3.48 – Anéis diversos. Foto de peças do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
a estrutura em ouro que craveja estes materiais nestes diversos formatos não se modica. Ainda
hoje, as adeptas do candomblé e as baianas de acarajé usam comumente este tipo de argola, com
a mesma estrutura em prata cravejando búzios.
Os anéis de crioula dourados, à esquerda da Figura 3.48, apresentam características da talha
dourada barroca, tanto as jóias escravas baianas como as ias populares portuguesas perseguiam
o mimetismo com a decoração das igrejas de forma tão intensa que nos leva a conjecturar ser uma
busca a sua consagração, talvez uma razão a mais para este perl da arte barroca. Os anéis do
lado direito e do centro são de conceão híbrida, base do anel conforme estilo da talha dourada
barroca e topo central em metal oxidado e pedra branca, provavelmente um diamante ou uma sara
branca, característico da jóia vitoriana, pois quando, o Príncipe Albert morreu repentinamente, a
Rainha Vitória (Inglaterra) entrou em luto para o resto de sua vida
. Suas roupas, sempre pretas
e com poucos e discretos enfeites, necessitavam de jóias que acompanhassem este novo estilo,
tamm entrou em voga as jóias feitas com o cabelo de entes queridos mortos, e a utilizão do
Jet, material semelhante ao carvão, uma espécie de madeira fossilizada (1860/70).
Foi visto no capítulo anterior que vários povos africanos possuíam sua escrita impressa
nos objetos e a pesquisadora Silvia Escorel
III-25
(1998) aponta como provável esse mesmo uso
das roupas pela população negra e mestiça do Rio de Janeiro colonial e sem maiores temores,
pode e deve ser ampliado para a situação baiana e brasileira também:
Sabe-se que entre os ashanti da atual Gana, “cada tecido e a maneira como
era usado servia para transmitir uma mensagem especíca”. Da mesma
forma, é provável que a população negra, mulata e parda, majoritária no
Rio de Janeiro colonial, quase toda sem acesso à escrita e à leitura, usasse
a linguagem das roupas e adereços para expressar suas identidades e
pertencimentos. Dessa forma, a análise das suas imagens, um dos legados
mais eloqüentes a sobreviver os séculos que nos separam, traz à luz indícios
de seus valores, de sua concepção de mundo e das condições materiais de
sua produção. (grifos da autora).
25
III-
Disponível em: www.rj.anpuh.org/Anais/1998/autor/Silvia%20Escorel%20de%20Moraes.doc. Acesso
em: 05/06/2009.
3.3 ARTÍFICES DA JOALHERIA ESCRAVA: BRANCOS OU NEGROS?
Apesar de ainda não se ter uma fonte documental, dados bibliográcos que apontam a
probabilidade de existirem especialistas de ascendência africana ou africanos na confecção das jóias
escravas baianas. Se não eram negros ou mestiços, esses prossionais possuíam aprendizes escravos
e forros, ou os próprios eram ex-escravos e, em sua maioria, possivelmente adeptos dos cultos
afro-brasileiros ou tinham pleno conhecimento dos signos e símbolos agregados às manifestações
religiosas de escravos, forros e seus descendentes, como relata Paiva (2001, p. 221e 222),
Aliás, é bem possível que tenham existido ourives especialistas na elaboração
dessas jóias-amuletos consumidos em larga escala. Vários desses ourives
tinham aprendizes escravos e forros, alguns artesãos eram, eles próprios,
ex-escravos e quase todos eram iniciados em cultos afro-brasileiros ou
conheciam os signos e símbolos agregados às manifestações religiosas de
escravos, forros e seus descendentes. Não foram poucos os africanos artíces
do ouro que entraram escravizados e trabalharam em varias regiões da
Colônia. O trabalho de todos eles possibilitou a injeção de valores culturais,
de objetos e de material africanos e afro-brasileiros na ourivesaria colonial
e facilitou, também, a apropriação de emblemas, representações e estéticas
européias pela população negra e mestiça.
Os escravos dominavam, desde a África (Figura 3.49), diversas técnicas existentes ao
longo da história da joalheria, tais como: a fundição, a gravação, o cinzelado, o repuxado, a
granulação e a ligrana. Estes processos de trabalhar o metal vêm sendo utilizados há milênios
pela humanidade, mas, nos ornamentos corporais reservados às escravas baianas ganham uma
inquestionável singularidade.
Figura 3.49 “A transformação do minério em
metal, para os africanos era vista como uma ati-
vidade mágica, ensinada pelos deuses, ancestrais
e espíritos, o que conferia grande prestigio aque-
les que detinham o conhecimento” (SOUZA,
2006, p. 20). Imagem digitalizada do livro África
e Brasil africano (SOUZA, 2006, p. 21).
A competência da humanidade em criar seus adornos é pré-histórica, mas é complicado
precisar uma data, conforme elucida Eliana Gola (2002, p.11),
É difícil determinar a origem dos objetos de adorno os quais, mais tarde, serão
nomeados como jóias, mas pode-se datar alguns documentos provenientes
do período chatel perroniano antigo (entre 35.000 e 30.000 a.C.). Em seu
texto ‘Pré-História da Arte Ocidental’ Leroi-Gourhan cataloga os objetos de
adorno como ‘Objetos para dependurar atravessados por um buraco, para
enamento, ou providos de ranhuras, para assegurar um laço. São nomeados
como ‘objetos de adereço’ ou ‘pingentes’ e pode-se considerar estes objetos
os ancestrais das jóias. (grifos da autora).
O que tem se difundido ao longo da história deste país é a capacidade técnica origiria
do homem branco, como um legado dos europeus. Quanto aos índios e aos negros, geralmente
eram considerados apenas como força bruta, destituída de qualquer capacidade intelectual.
Retrocedendo no tempo, quando se iniciou a relação de Portugal com a África no século XV, nota-
se que os diversos povos africanos possuíam o mesmo desenvolvimento técnico dos europeus e,
no que diz respeito à joalheria, a África conheceu o ouro atras dos árabes no século VII, bem
antes do seu contato com os portugueses, como explica Meyer (2001, p. 177):
Jóias, adornos, regalia, o ouro para os europeus representou, desde há
milênios, o metal precioso por excelência, permitindo a uma classe social
privilegiada manifestar sua superioridade. Em África, tudo é diferente.
Originalmente, o metal mais procurado era o cobre. Foram os árabes que,
servindo de intermediários a partir do século VII, deram a conhecer aos
Africanos o valor comercial do ouro.
Na Figura 3.50, uma tela (século XVI) retratando uma “ocina de ourives com
operios entregues às rias fases do trabalho, da batedura da mina aos acabamentos
de cinzel. Florença, Palácio Velho, Gabinete de Francisco I(GRISERI, 1989, p. 8). na
Figura 3.51, encontra-se a imagem de uma ocina de um ourives do povo Peul, elaborando
brincos gigantes em forma de carambola (ver Figura 3.2). As mulheres Peul adoram jóias e
chegam a colocar nove brincos e anéis em uma única orelha. Foram essas culturas, com tão
claras dessemelhanças nessas imagens, mesmo considerando-se as diferentes épocas, que
construíram a cultura brasileira, inclusive a dos nossos fazeres. Pela documentação existente
prevaleceu o modelo de ourivesaria européia, não em sua forma “pura”, mas um modelo de
ocina com “sabor local”.
Quando os portugueses aportaram no Brasil, possuíam o desejo de encontrar nestas
terras o metal precioso, o ouro. Indicando uma prévia vocação para esta atividade, mesmo
que nascida de uma vontade dos colonizadores e não de uma descoberta espontânea da sua
existência em terras brasileiras, como coloca Chaves (1989, p. 39),
Em decadência e empobrecido, em conseqüência de vários fatores, admitia-se
como riqueza das novas terras o pau-brasil, que atraiu a cobiça de outros
povos. Porém, a carta de Pero Vaz de Caminha a D. Manoel, o Venturoso, já se
refere à possibilidade da existência do ouro na terra. Diz ele, entre outras coisas:
O Capitão, quando eles (índios) vieram, estava assentado em uma cadeira, uma
alcatifa aos pés por estrado e bem vestido, com um colar de ouro mui grande
ao pescoço... Acenderam-se tochas; entraram e não zeram nenhuma menção
de cortesia, nem de falar ao Capitão, nem a ninguém. Porém um deles pôs olho
no colar do Capitão e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o
colar. Como que nos dizia que havia em terra ouro [...]’.
A descoberta do ouro no Brasil ocorreu na Capitania de São Vicente (São Paulo),
na Serra do Jaraguá e nas suas redondezas,
todavia, a quantidade era tão insignicante
que não houve desdobramentos. Mas
foram os paulistas que se introduziram
por onde iria ser o Estado de Minas Gerais
e, animados pela sanha do ouro, pois os
percalços eram de grandeza exponencial,
nalmente um componente da expedição
Figura 3.50 - Pintura de Alessandro Fei, dito o
Barbeiro, (1543-92) que representa a ocina de
um ourives. Florença – Itália. Imagem digitali-
zada do livro Ourivesaria Barroca (GRISERI,
1989, p. 9).
vinda de Taubaté e adentrando pela futura Capitania
de Minas Gerais foi beber água no córrego Tripuí e,
ao fazê-lo percebe no fundo da sua vasilha grânulos
escuros que possuíam brilho. Este expedicionário,
pelos indícios existentes, só poderia ser um mulato,
mas poderia ter sido um negro, pois tudo que se
move, anda, trabalha nesta colônia é negro
III-26
,
dizia um viajante. Este local era a montanha do
Itacolomi, nos arredores do que viria ser a cidade
de Ouro Preto e assim teve início o ciclo do ouro
(Almeida, 1989, p. 46-50).
Com a descoberta das primeiras minas de ouro
no Brasil, no século XVIII, os colonizadores portugueses, estrategicamente, passaram a trazer
escravos da África que dominavam as técnicas de mineração, como aponta Paiva (2002,
p.187 e 188) e pode ser observado na gravura de Rugendas (Figura 3.52),
Esses homens e mulheres embarcados na Costa da Mina com destino ao
Brasil, eram tradicionais conhecedores de técnicas de mineração do ouro
e do ferro, além de dominarem antigas técnicas de fundição desses metais.
Eles conheciam muito mais sobre a matéria que os portugueses antigos
parceiros comerciais dos reinos negros da África, vorazes consumidores do
ouro desse continente e senhores de enorme extensão territorial no Novo
Mundo. Ao que parece, o poder quase mágico dos Mina para acharem ouro
e a sorte na mineração associada a uma concubina Mina eram, na verdade,
aspectos alegóricos de um conhecimento técnico apurado, construído
durante centenas de anos, desde de muito antes de qualquer contato com
os reinos europeus da era moderna. A opção dos tracantes luso-brasileiros
por escravos da Mina, principalmente, durante a segunda metade do século
XVII e a primeira do século XVIII, fundou-se nesse know-how mineratório
e metalúrgico dos negros. Tratou-se, pois, de equipar a região mineradora
26
III-
A frase dita é: “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro [...]” em relação à cidade
de Salvador, da autoria do viajante Robert AVÉ-LALLEMANT. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco,
Alagoas e Sergipe. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 22-23.
Figura 3.51 – Ourives do povo
Peul - África. S/D. Imagem di-
gitalizada do livro Círculo de
contas: jóias de crioulas baianas
(GODOY, 2006, p. 9).
da Colônia com mão-de-obra especializada. Ao contrario, então, do que se
tem pensado em geral, o tráco atlântico de escravos obedeceu, ainda que
parcialmente, a parâmetros originados de demandas especicas, como, por
exemplo, as surgidas entre os mineradores coloniais.
Ao se debruçar sobre a mineração do ouro relacionada à condição escrava no Brasil,
não se pode também deixar de mencionar a hisria de Chico Rei, capturado juntamente com
sua tribo, foi trazido para o Brasil e vendido para um proprietário de áreas de mineração
em Vila Rica, através de trabalho extra, comprou sua alforria e a do seu lho, e, usando da
mesma estratégia, foi comprando a liberdade de todos os membros da sua tribo. Na condição
de livres, conjuntamente compraram a mina de ouro
Encardideira e reconstituíram, em terras brasileiras, o
reinado perdido na África.
Diante do exposto, indícios de que os negros
escravizados eram experientes mineradores e será que
este fato é determinante para que os africanos sejam os
ourives que produziam as jóias escravas baianas?
Para que exista a joalheria escrava, um ator é
fundamental, o executor do projeto pretendido pela mulher
negra: o ourives. A contribuição africana na ourivesaria é
certa, mesmo com a proibição da participação de negros,
mestiços e índios neste ofício, como arma Octávia Oliveira (1948, p. 30):
No século XVII, um alvará de 20 de outubro de 1621, dizia que, nenhum
mulato, negro ou índio, mesmo liberto, podia exercer o cargo de ourives;
porém a necessidade da vida colonial levava o ourives a ter na sua ocina
escravos ou forros, que os senhores empregavam, recebendo boa renda. Isso
prova que as minas descobertas tinham estimulado a arte da ourivesaria.
Também Oliva de Menezes (1941, p.36) arma que seriam negros islamizados os
responsáveis pela fabricação das pencas de balangandãs:
Figura 3.52: Lavagem do ouro
Rugendas Montanha do Itaco-
lomi, Ouro Preto, 1875. Imagem
digitalizada do catálogo Mos-
tra do Redescobrimento: Negro
de Corpo e Alma (AGUILLAR,
2000, p. 114).
Não é possível armar com segurança, quando foram os barangandans
primeiramente fabricados no Brasil, embora seja crença geral que tenha sido a
cidade do Salvador o centro de sua maior produção. Primado pela ausência de
ornatos barrocos, afastada assim a inuência portuguesa, podiam ter sido pelos
negros islamizados do Daomei e de nações vizinhas, os Malês, que conheciam a
fundição dos metais, e, que em levas sucessivas, chegaram a Baía.
O que Oliva de Menezes arma sobre os balangandãs desperta algumas dúvidas, primeiro
pela armativa da ausência de ornatos barrocos, o que afastaria a inuência portuguesa. Porém,
como foi visto anteriormente na análise das jóias escravas, elas, além de possuidoras de
características próprias dos objetos mestiços, portam semelhanças identicáveis da joalheria
popular portuguesa, da região do Douro, onde, na sua manufatura, são empregadas técnicas
decorativas das jóias árabes, como o cinzelado e o repuxado, a granulação e a ligrana. Quiçá,
essa hipótese tenha por base, a nítida incorporação de técnicas moçárabes nas pencas de
balangandãs (Lody, 2000, p.42) e da reputação dos negros Malês - organizadores da rebelião
ocorrida em Salvador em 1835 - na elaboração e uso de amuletos, tais como: bolsa de mandinga
ou mandinga, anel de malê ou kendé e o tessubá (Reis, 2003, p.159-231).
A bolsa de mandinga (Figura 3.53), também chamada de patuá, era usada da mesma
forma que o escapulário católico sobre o peito e as costas. Era feita por entendidos, composta de
folhas de papéis com escritos em árabe e dobradas até um tamanho de três a cinco centímetros,
era comum o uso de outros ingredientes, tudo colocado em uma bolsinha de couro ou pano
totalmente costurada, eram carregadas junto ao corpo. A bolsa de mandinga ganhou também a
simpatia de pessoas de fora da comunidade malê, possivelmente por não obrigar um compromisso
com a religião mulçumana (Reis, 2003, p. 183).
O anel de malê ou kendé é formado por dois grandes anéis de ferro usados nos dedos
polegar e anular ou no médio da mão esquerda, que, quando batidos um contra o outro
produzem um som forte e seco. Na África eram usados pelos guardas de caravanas comerciais
e na Salvador colonial eram usados como marcas de identidade dos negros islamizados. Já
tessubá era o rosário malê, com cinqüenta
centímetros de comprimento, formado por
noventa e nove contas grossas de madeira,
terminado por uma bola e não por uma
cruz, como é o caso do católico (Reis,
2003, p. 212 e 231).
Não se tem comprovação da
origem e tampouco da cor dos ourives que
confeccionavam as jóias escravas baianas,
se eram portugueses ou africanos, se brancos
ou negros. Principalmente, se a pretensão é fazê-lo através de uma prova documental escrita.
Outra forma de atestar a sua autoria seria através da marca do ourives que as tinha elaborado,
entretanto essas jóias, na sua maioria, não possuíam nem as marcas dos ourives, nem as dos
ensaiadores como a regulamentação da época obrigava e exigia seu registro na Câmara. Esta
ausência das marcas indica uma possível clandestinidade da atividade, facilitada por ser
encomenda de particular.
Considera-se que os objetos precisam ser vistos de forma documental, tal como um
documento escrito, assim sendo, ele revela seus produtores: a sociedade colonial brasileira que
possuía um enorme contingente de população africana, crioula ou parda que realizava todo o
trabalho necessário a sua existência. “Segundo Koster (1818), os negros crioulos eram, por
volta de 1810, obreiros de todas as artes (Godoy, 2006, p. 57)”.
Figura 3.53 – Mulher usando uma bolsa de
mandinga ou um escapulário católico. Debret,
1817-1829. Imagem digitalizada do livro África
e Brasil africano (SOUZA, 2006, p. 114).
3.4 OURIVESARIA: AS TÉCNICAS DE CONFECÇÃO DA JÓIA ESCRAVA
Ouro, do latim aurum, que signica brilhante, elemento químico de número atômico 79,
símbolo Au, é um metal considerado nobre, precioso e raro. Possui características inigualáveis,
a sua cor dourada e o seu brilho são como um sol brotando da terra, uma luz que fascina. Não
oxida, não escurece, não se modica com o passar dos anos e, por assim ser, vários povos
africanos o consideraram como um material maléco, mas a grande maioria de todos os povos
habitantes do planeta terra se renderam aos seus encantos. Uma das suas qualidades que mais
impressiona é a alta ductilidade, de todos os metais o ouro é o único que possibilita transformar
apenas um grama do seu material em dois mil metros de o praticamente invisível ao olho nu.
Essa ductilidade do ouro serviu ao Brasil no trabalho de douramento da talha das igrejas,
como relata Lucia Almeida (1989, p. 79):
É oportuno lembrar que em Portugal eram fabricados os “pães de ouro”,
obtidos através do seguinte processo: por meio de técnicas especiais, o ouro
brasileiro era batido e laminado em folhas níssimas como papel de seda.
Feito isso, era tudo amarrado, enrolado em fôrma de pães e remetido ou
melhor, “devolvido” ao Brasil, pronto para ser usado no douramento
dos altares das igrejas, de varias regiões do país. E assim o precioso metal
brasileiro voltava às origens, que convertido em “pães de ouro”, através
da sosticada tecnologia zelosamente guardada pelos portugueses.
O ouro, durante muito tempo, foi obtido dos depósitos secundários como vales, encostas
de montanhas ou colinas e leito dos rios. Apresenta-se usualmente puro, em massas denominadas
pepitas (Figura 3.54) quando atingem certas dimensões. Atualmente são mais raros os depósitos
sedimentares, e o ouro é obtido diretamente da rocha matriz.
Figura 3.54 Pepita no Brasil foram desco-
bertas pepitas com pesos brutos entre 33 a 60 Kg.
Imagem disponível em: http://fotocache01.stor-
map.sapo.pt/fotostore02/fotos//95/e2/16/2345521_
OEoU3.png. Acesso em 05/06/2009.
A fundição do ouro era realizada na época do Brasil Colônia em primeira estância para
transformá-lo em barras de ouro maciço, ouro puro. O ouro extrdo das minas, era levado
para Casas de Fundição
27
pelos mineradores, sendo pesado e quintado. Para o processo de
fundição, o fundidor recebia o material e colocava em um cadinho (recipiente em material
refratário), leva-se ao forno coberto com carvão vegetal, até que o cadinho incandescesse e
o ouro se tornasse líquido, sendo possível adicionar o mercúrio, que provoca a calcinação e
volatilizão do ferro, cobre antimônio e impurezas de uma maneira geral, a partir das quais
se forma uma escória que é eliminada. Adicionava-se mercúrio até a sua completa puricação,
em estado ainda líquido derrama-se em uma forma de ferro besuntada, a esfriar e car com
formato de barra, como a da Figura 3.55
(Eschwege apud Almeida, 1989, p. 56).
O ouro em barra, atualmente, serve como
padrão monetário internacional.
Para completar os estudos sobre
a joalheria escrava baiana como objeto
mestiço é necessário conhecer as suas
técnicas de confeão, começando pela
fundição, passando pela granulão, o
cinzelado, o repuxado, a granulação e nalizando com a ligrana. Existe uma centena de
outras cnicas para se produzir ias, principalmente aquelas que foram incorporadas ao
longo do século XX, mas que fogem ao escopo do assunto tratado nesta tese.
27 Foi uma determinação do rei de Portugal a instalação das Casas de Fundição, subordinadas à Intendência. Nelas,
todo ouro extraído em ou em pepitas, seria fundido e "quintado"- ou seja, retirados os 20% correspondentes
a coroa portuguesa. As barras obtidas eram cunhadas, comprovante do pagamento do tributo, e devolvidas ao
portador acompanhadas de um certicado de origem, conrmando o cumprimento das formalidades legais.
Figura 3.55 Barra de ouro. Brasil, séc. XVIII.
Peso: 273,5 gr. Propriedade de Portugal. Ima-
gem disponível em: http://www.monarquicos.
com/forum/viewtopic.php?t=815&sid=6148
790126ff4486226f7ab913955df7. Acesso em
05/06/2009.
3.4.1 Fundição
Para a fabricão de jóias, o ouro é misturado com outros metais, principalmente a
prata e cobre, para resultar no ouro amarelo mais característico do imaginário de qualquer
indivíduo. Essa liga conserva a cor dourada e é mais dura, o que é desejável para que as jóias
não se amassem com o uso. A quantidade de ouro das ligas é medida em quilates, ouro puro
tem 24 quilates e as ligas mais usadas na indústria joalheira hoje o: 14 quilates (Estados
Unidos), 18 quilates (Brasil) e 22 quilates (Portugal), que contêm respectivamente 14/24,
18/24 e 22/24 de ouro puro.
O ouro funde-se a 1.064º C e emite
vapores violeta a temperaturas mais elevadas
(Figura 3.56). De sólido torna-se líquido e de
novo sólido quando arrefece, essa propriedade
do metal proporcionou uma amplião
exponencial da inventividade humana.
A técnica de fundição de jóias e
outros objetos, mais usada na história dos
povos africanos, é a cera perdida (modelos
perdidos) proveniente de Gana, como foi
visto no primeiro capítulo. “É um método que propicia a fundição de peças de metal mediante
a realização prévia de um modelo de cera, um processo que permite compreender claramente
a fundição em cera perdida” (CODINA, 2002, p.50) (Figura 3.57). Elabora-se um modelo em
cera da peça nal e une-se a ele uma espécie de cabo também em cera, nas Figuras 3.57 a 3.62,
há a seqüência do processo de fundição por cera perdida.
Figura 3.56 – Ouro em estado líquido. Imagem
digitalizada do livro A Ourivesaria (CODINA,
2002, p. 48).
Figura 3.57: O modelo em cera deve receber
uma camada na de uma mistura de carvão ve-
getal em pó e barro de grés umedecido em água.
Aplica-se uma camada mais grossa composta
por 40% de de carvão vegetal, 25% de es-
terco de cavalo, 25% de barro de grés e 10% de
chamota. A peça deve car igual a da Figura 3.
58. Imagem digitalizada do livro A Ourivesaria
(CODINA, 2002, p. 50).
Figura 3.58 É aplicada ainda mais uma ca-
mada da mesma mistura, subtraindo o carvão,
deixa-se secar e elimina-se a cera do seu inte-
rior por aquecimento. Imagem digitalizada do
livro A Ourivesaria (CODINA, 2002, p. 50).
Figura 3.59 Coloca-se no cadinho, elabora-
do com o mesmo material de revestimento do
molde, metal suciente (calculado a partir do
modelo de cera) para garantir o empurrão e
a correta passagem para o interior do molde.
Imagem digitalizada do livro A Ourivesaria
(CODINA, 2002, p. 51).
Figura 3.60 – Selam-se as duas partes, cadinho e corpo do molde. Antes de colocar ao fogo para
fundição, deve-se assegurar estar livre de toda umidade, depois, leva-se a um forno rústico de
tijolos refratários, tendo como combustível uma mistura de carvão vegetal e mineral. Põe-se,
então, o conjunto na vertical. Tal processo que deve perdurar até o conjunto ganhar uma cor
vermelha-alaranjada. Imagem digitalizada do livro A Ourivesaria (CODINA, 2002, p. 51).
Na Figura 3.63, estão indicados, na penca de
balangandã, objetos que podem ter sido produzidos
através do processo de fundição por cera perdida.
3.4.2 Gravação
A gravação é a aplicação de ornamentos
existentes nas jóias que são executados sem o uso
de calor. Esta técnica decorativa, freqüentemente
aplicada nas superfícies das jóias com o objetivo de
embelezamento, gera letras, desenhos e inscrições, bem
como produz variados tipos de texturas, ou ainda, realça
e orna espaços.
Pode ser descrita como uma técnica de entalhar
ou abrir incisões em um material menos duro do que a
fermenta que está sendo usada para fazê-lo. No processo
de formar as linhas, ranhuras, caracteres, padrões,
retratos, etc., ocorre a retirada de material da superfície
que está sendo trabalhada.
A gravação em ouro existe desde o terceiro milênio
a.C. e era executada com ferramentas primitivas de pedra,
bronze, cobre, e depois com o ferro. Como uma técnica
decorativa, a gravação sobre o metal foi precedida por ornamentos grácos realizados em uma
variedade de materiais não-metálicos, tais como: concha, osso, marm, cabaça, casca de coco, dentes
de animais, bambu, madeira e pedra. “Quando as superfícies dos materiais eram sucientemente
Figura 3.62 – Branqueia-se a peça
e elimina o cabo. Na imagem da
direita, o resultado da fundição
por cera perdida. Imagem digita-
lizada do livro A Ourivesaria (CO-
DINA, 2002, p. 51).
Figura 3.58 Aplica ainda mais
uma camada da mesma mistura,
subtraindo o carvão, deixa secar e
elimina a cera do seu interior por
aquecimento. Imagem digitaliza-
da do livro A Ourivesaria (CODI-
NA, 2002, p. 50).
Figura 3.61 Retirada do molde
com uma tenaz, gira-se o conjunto
para o metal fundido passar para
o outro lado do cadinho, ou seja,
para onde está o vazio deixado
pela cera. Essa posição é mantida
até esfriar e depois deixa-se o con-
junto “descansar” até esfriar por
completo. Imagem digitalizada
do livro A Ourivesaria (CODINA,
2002, p. 50).
planas poderia se utilizar ou não, expressões grácas, feitas com incisões e entalhes, que muitas
vezes, eram muito harmoniosas” (LAMBERT, 1998, p. 2 1) ( F ig ur a 3 .6 4) .
Segundo Codina (2002, p.38),
Existem diferentes técnicas de gravação, a saber, a gravação com ácidos, a
fotogravação e a gravação de aço, além do recurso a pantógrafo e sosticados
aparelhos, que, com um scaner, permitem a realização precisa e rápida de qualquer
gravação ou inscrição em metal ou sobre diversos materiais e formas.
28
28 A citação está escrita no mesmo idioma do texto original, português de Portugal.
componentes da penca de
balangandã que podem ter
sido produzidos pela técnica
de fundição em cera perdida
Figura 3.63 Penca de Balangandãs. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do Descobrimento:
negro de corpo e alma (AGUILLAR, 2000, p.262).
Figura 3.64: Dentes de animais - perfurados para serem
usados como pingentes e decorados através da gravação.
Peça do acervo do Museu Arqueológico “St Germain-em-
Laye”.
Imagem digitalizada do livro The Ring (LAMBERT,
1998, p.21).
Nas gravações feitas à mão são empregadas ferramentas de aço pontiagudas e aadas,
chamadas buril (Figura 3.65), que possuem duas partes, um cabo de madeira e uma lamina
de aço tratado e temperado de extraordinária dureza. Para que se possa executar o trabalho de
gravação, deve-se xar a peça em um bloco de gravador. Gravações de monogramas e inscrições
são realizadas por artesãos qualicados em caligraa.
Para se executar uma gravação devem-se cumprir várias etapas. O buril é a ferramenta
básica de execução dessa técnica, devendo estar aado antes de se dar inicio ao processo (Figura
3.66). A placa de metal que irá ser gravada deverá ser xada em um pedaço de madeira com breu
ou lacre de cera, ou solta em cima de uma superfície antiderrapante, como um coxim revestido
de couro. Para desenhos mais complexos, é necessário transferi-los para a chapa de metal, essa
etapa pode se eliminada quando o desejo é fazer riscos decorativos aleatórios, contudo, em
ambos os casos, antes, a superfície deve ser lixada para garantir um bom acabamento. O ângulo
que o buril deve fazer com a chapa que será gravada é de dez ou quinze graus.
Figura 3.65 - Buris
diversos. Imagem
digitalizada do livro
Acabados decorativos
en Joyería (MCGRA-
TH, 2007, p. 102).
Figura 3.66: Aação do buril. Imagem di-
gitalizada do livro Acabados decorativos en
Joyería (MCGRATH, 2007, p. 103).
Nas Figuras 3.67 a 3.68, exemplos de gravações em linha reta, linha curva e gravação
de rebaixo em uma área.
Segue abaixo exemplo da técnica de gravação na jóia escrava (Figura 3.70).
Figura 3.67: gravação de linhas retas. Imagem digitaliza-
da do livro Acabados decorativos en Joyería (MCGRATH,
2007, p. 104).
Figura 3.68: gravação de linhas curvas. Imagem digitaliza-
da do livro Acabados decorativos en Joyería (MCGRATH,
2007, p. 104).
Figura 3.70 - Brinco Pitanga - em torno do
coral lapidado com a forma da fruta pitanga,
montagem em ouro decorada com a técnica de
gravação. Foto da peça do acervo do Museu
Carlos Costa Pinto. Julio Acevedo/2005.
Figura 3.69: gravação de linhas curvas. Imagem digitali-
zada do livro Acabados decorativos en Joyería (MCGRA-
TH, 2007, p. 105).
3.4.3 Cinzelado e Repuxado
As técnicas denominadas cinzelado e repuxado devem ser explicadas conjuntamente,
pois os dois processos são alternados em uma mesma peça. Na seqüência convencional do
trabalho, as linhas são cinzeladas na parte da frente do metal e o repuxado é aplicado na parte
posterior do metal, ou seja, na face oposta à execução do cinzelado.
O cinzelado e o repuxado são técnicas que datam da Idade do Bronze. Ourives da
Assíria, Mesopotâmia, Grécia, Roma, Nepal, do rococó europeu incluindo Portugal, da África
e do Brasil produziram peças com estas técnicas. São o que se chama de processo associado,
pois as ferramentas do cinzelado criam os efeitos de entalhe e as ferramentas do repuxado criam
os efeitos de relevo. É um trabalho que confere um jogo luz e sombra à jóia.
O repuxado é um método que usa a qualidade de plasticidade do metal para dar
forma a uma lâmina metálica com uma
ferramenta que comprime o material
através de golpes de um martelo, criando
graus variados de relevo, neste processo
não existe perda de metal, e, a superfície
permanece continua.
As técnicas do cinzelado e repuxado
são utilizadas na confecção dos componentes
das pencas de balangandãs (Figura 3.71),
peça que as mulheres negras e mestiças
levavam à cintura, usada em variados trajes
do cotidiano. Esse adorno também denotava
hierarquia nas festas religiosas, católicas ou
Figura 3.71 Penca de Balangandã em ouro.
Existem mais 27 exemplares em prata. Único
exemplar em ouro existente no acervo do Museu
Carlos Costa Pinto. Foto: Julio Acevedo/2005.
afro-católicas, preservada até hoje na sua feitura artesanal. Atualmente as pencas de balangandãs
são utilizadas como objeto de decoração das residências baianas, penduradas nas paredes ou
dispostas em cima de móveis.
Cinzelar é a arte de controlar uma pequena ferramenta de aço para empurrar as
linhas de um desenho ao longo da face do metal. O metal não é afastado, como se uma
ferramenta de gravura fosse usada e como foi dito, não perda de material. Ele é movido
lateralmente e comprimido para baixo na superfície do metal conforme a ferramenta é
empurrada ao longo da linha. O cinzelado é usado para esboçar e denir áreas que serão
repuxadas e carão fora do nível plano do metal.
Repuxado é a arte de trabalhar com cinzéis por trás do metal, formando relevos
e linhas que dão ao trabalho uma aparência tridimensional quando visto pela frente,
complementado pela técnica do cinzelado.
A técnica do cinzelado e repuxado em
placas metálicas, ou seja, em superfícies planas
é executada da conforme a seqüência das
Figuras 3.72 a 3.76, muito usada para produzir
as ferramentas dos orixás (Figura 3.77).
Figura 3.72: equipamentos e materiais para
executar o cinzelado e repuxado: cinzéis, mar-
telo e breu. Imagem digitalizada do livro Aca-
bados decorativos en Joyería (MCGRATH,
2007, p. 118).
Figura 3.73: transfere-se o desenho para a pla-
ca antes de xá-la no breu. Imagem digitali-
zada do livro Acabados decorativos en Joyería
(MCGRATH, 2007, p. 119).
A penca de balangandã ainda é fabricada, nos
dias atuais, como objeto típico do Estado da Bahia, e
em vários elementos que a compõe a ornamentação o
feitos com esta técnica. No centro histórico da cidade
do Salvador existem algumas ocinas de fabricão
artesanal das pencas de balangandãs. Os registros
fotográcos das imagens a seguir foram realizados em
uma destas ocinas, a de propriedade do Sr. Raimundo
Maçaranduba, Figuras de 3.78 a 3.82.
Figura 3.74: xação da placa metálica no breu
aquecido. Imagem digitalizada do livro Aca-
bados decorativos en Joyería (MCGRATH,
2007, p. 118).
Figura 3.75: utiliza-se um martelo pesado com
ferramentas do repuxado para fazer impres-
sões profundas no dorso. Imagem digitalizada
do livro Acabados decorativos en Joyería (MC-
GRATH, 2007, p. 119).
Figura 3.76: emprega-se o lado plano do martelo com o cinzel para acentuar mais as marcas de
transferência do desenho pelo lado frontal da peça. Imagem digitalizada do livro Acabados deco-
rativos en Joyería (MCGRATH, 2007, p. 119).
Figura 3.77: Ferramentas de orixás
do candomblé. Imagem digitaliza-
da do catálogo Negras Memórias,
Memórias de Negros (ARAUJO,
2003, p. 16).
Segue abaixo exemplo da técnica de cinzelado e repuxado em um dos componentes da
penca, neste caso a romã, na jóia escrava (Figura 3.83).
3.4.4 Granulação
A granulação é um trabalho em metal que recebe este nome por juntar pequenas bolas ou
minúsculos grãos em uma base. Normalmente essa base é uma lâmina de metal. Estes grãos se fundem
em toda a superfície ou se amontoam em uma determinada área da peça, se alinhando linearmente
Figura 3.78: As ferramentas básicas usadas no cinzelado
são: um jogo de cinzéis de diversos tipos e martelo de cabo
bem balanceado. Foto: Júlio Acevedo/2003.
Figura 3.79: São necessários vários tipos de cinzéis di-
ferentes para se ter um trabalho satisfatório. Um cinzel
de traço é usado para esboçar o desenho. Além do arre-
dondado, do ligeiramente curvado, em forma de V, meio
círculo, e assim por diante. A ponta não deve ser aada e
sim ligeiramente arredondada para que não corte o metal
quando o cinzel for martelado. Foto: Júlio Acevedo/2003.
Figura 3.80: Recorta-se a chapa metálica em forma circular
para, então se estampar a meia esfera. Soldam-se as duas
partes, sendo que uma dessas partes possui uma abertura
para possibilitar seu preenchimento de breu, e depois
serão cinzeladas.
Figura 3.81: O cinzel é seguro
entre o dedo polegar e os outros
três dedos, enquanto o dedo mí-
nimo descansa no metal para
rmar e apoiar a mão. Com
golpes rmes e ritmados, o cin-
zel é martelado, imprimindo as
marcas que formarão o desenho
decorativo.
Figura 3.82: O resultado nal dessa técnica é uma
ornamentação de diferentes texturas e volumes.
ou formando a silhueta de um desenho pré-
denido. Este processo ocorre pela capacidade
que os metais possuem de serem soldados
e é inuenciado pelas suas características
metalúrgica, química, física e térmica. Soldagem
por fusão é essencialmente um processo em que
os objetos ou metais são unidos por um estado
de fusão das suas superfícies de contacto,
ocorrendo uma interpenetração de átomos.
Os grãoso feitos ainda na fase de
fundição do metal, quando este é vertido
em água formando gnulos, ou colocando
pequenas peças de ouro cortadas em um
crisol com carvão, aquecido e girado de
forma que o ouro forme pequenas esferas.
O processo de granulações do
ouro é usado desde 3000 a.C. na região
mediternea Oriental e no Egito, e foi
Figura 3.84: Abotoadura em ouro.
Figura 3.83: Romã em ouro, elemento da penca
de balangandãs. Foto da peça do acervo do Museu
Carlos Costa Pinto. Julio Acevedo/2005.
Foto: Rodolpho Lindemann - Séc XIX
Abotoadora em ouro decorada com granulado
e ligrana. Foto da peça do Museu Carlos Costa
Pinto. Julio Acevedo/2005.
se prolongando até ser renado especialmente pelos Etruscos. Os grânulos de ouro eram
soldados aparentemente isolados através do uso de uma técnica de solda invivel ‘a olho nu’.
Nos exemplos Etruscos, grânulos de ouro misculos (às vezes só 0.25 mm para 0.14 mm de
diâmetro) eram borrifados na superfície, mais tarde, passam a ser utilizados grãos maiores.
Essa técnica também era usada pelos gregos.
A mais recente técnica foi desenvolvida em Roma por F. Magi e V. Federici, e envolve
a fabricação dos grânulos de ouro vertendo o metal fundido de certa altura sobre uma laje de
pedra. Depois os grânulos formados são soldados ao objeto de metal através de uma resina que,
sob a chama de um maçarico, adquirem propriedades adesivas.
O resultado da granulação na superfície de uma jóia escrava, em abotoaduras da bata da
indumentária da baiana pode ser visto na Figura 3.84.
3.4.5 Filigrana
É um tipo de decoração empregada em peças de metal com o uso de os bem nos, lisos
e torcidos. O o empregado é normalmente de ouro ou prata (às vezes de bronze no recente
trabalho romano), e é usado para formar desenhos ao mesmo tempo delicados e com formas
rebuscadas. É feito basicamente em quatro estilos: 1) o arame é aplicado em uma base de
metal, sendo xado à mesma por soldagem - este método foi muito utilizado pelos Bizantinos
e Etruscos; 2) o arame não é aplicado em uma base de metal, se auto-estruturando, formando
um desenho vazado; 3) uma combinação dos dois anteriores, unidades completas do arame não
aplicado na base de metal com a ligrana aplicada na base de metal ou outras bases; 4) o quarto
e último tipo é a ligrana associada a outros materiais, tais como: esmalte, ornato de esmalte
preto ou resina, aplicados nos espaços entre um arame e outro.
O mais recente método é o encontrado nas jóias européias desde o século XV, e foi
revitalizado na Inglaterra da era vitoriana, sendo usado especialmente em colares e anéis que
tinham em sua composição pedras preciosas cercadas por tal ligrana. É extremamente ampla a
distribuição do processo de ligrana na produção joalheira, o que indica que esta técnica continua
popular. A ligrana é uma tradição presente nas jóias portuguesas da região do Minho, como
anteriormente apontado. Costa e Rodrigues de Freitas (1992, p. 14) descrevem a técnica:
Filigranação. Consiste na utilização de os repuxados numa série de
arabescos em <<SS>> ou espiralados e na soldagem numa armação ou
esqueleto, ou numa base plana ou abaulada. A ligranação tem formas
inndáveis, tantas quantas a imaginação do artista deseje, e assemelha-se
aos trabalhos executados pelas bordadeiras com agulha, peno e linhas.
Segue o passo a passo de um trabalho em ligrana sem base de metal. As imagens das
guras 3.85 a 3.90 foram digitalizadas do livro Bijuteria/Jóias (1988, p. 67-74).
Figura 3.87: construindo os diversos elementos
com os os para posterior montagem.
Figura 3.85: Materiais e ferramentas.
Figura 3.86: dobragem do o.
Figura 3.88: soldando os diversos elementos.
A peça da Figura 3.91 exemplica
a técnica de ligrana, onde os os torcidos
são diretamente aplicados na chapa através
de solda. E na Figura 3.92, um exemplo
de ligrana sem base de aplicação, ou seja
vazado.
As diversas cnicas apresentadas para
se trabalhar o ouro e transformá-lo em uma
“joalheria da palavra”, onde a escrita mantém
o difícil equilíbrio entre um desenvolvimento
eloente e uma profunda relação com o seu
referente, explorando uma sintaxe, não como
mero jogo, mas como meio de transmissão de
signicados reais (Waisman,1990, p. 105),
desnuda a alma dos materiais e a sua condição de mutáveis e mutantes, aumentando a capacidade
de explorar, seja qual for, os valores que permanecem nos produtos advindos da sua matéria-prima
constitutiva, neste caso: o ouro e seu referente, as jóias.
Considera-se que essas jóias são
oriundas dos processos de hibridação tal como
é conceituado por Nestor Canclini (2006,
p.19): [...] entendo por hibridação processos
socioculturais nos quais estruturas ou práticas
discretas, que existem de forma separada,
se combinam para gerar novas estruturas,
objetos e práticas. (grifos do autor).
Contrariando a tentativa hisrica de
invisibilizar o negro como projetista e executor
da cultura material brasileira, arma-se que o
Figura 3.91: Conta em ouro ornada com cír-
culos em ligrana. Foto da peça original do
acervo do Museu do Traje e do Têxtil. Júlio
Acevedo/2003.
Figura 3.90: trabalho nalizado.
Figura 3.89: preenchendo os espaços entre os
arames com novos elementos em o retorcido.
198
primeiro exemplo de design de jóias no Brasil
tem cor e sua cor é negra, seja no projeto, seja
na prodão, seja no uso.
Tem-se neste estudo a dimensão
mestiça da sociedade brasileira permeada em
tudo, seja macro, ou micro, essa miscigenação
é inegável e, para não acreditar que admiti-
lo seja uma adesão à democracia racial,
compreende-se a mestiçagem, hibridismo,
multiculturalismo, sincretismo, tenha o nome que tenha, como mistura sim, mas sem signicar
igualdade. Ela é resultado de um processo brutal de escravidão (Gruzinski, 2004, p. 52) e como
detalha Alípio de Sousa Filho,
Em tudo isso pode-se ver uma dimensão transgressiva que aproxima as
mestiçagens daquilo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de
“potência subterrânea” da vida social. Aqui pensamos sobretudo em todas
essas pequenas transgressões cotidianas que nascem das misturas, das
substituições, das recriações que se pratica a todo instante na vida brasileira,
animando o corpo social, estruturando-o e regenerando-o. Nesse sentido,
as mestiçagens, para além das formas instituídas e legitimadas do social,
asseguram a circulação dos sentimentos, das paixões, do sexo, asseguram
diversas trocas anônimas, engendram diversos acordos secretos, sem que se
possa classicá-los, prevê-los, controlá-los.
É essa argumentação que faz o design mestiço ser o design de resistência conceituado
e analisado no próximo capítulo. Para apresentar mais exemplares da joalheria escrava baiana
dos séculos XVIII e XIX, há as chas de jóias por tipologia anexas a esta tese.
Figura 3.92: Na ligrana da peça ao lado o o
retorcido é usado sem uma base de metal, for-
mando um desenho vazado. Foto da peça ori-
ginal do acervo do Museu do Traje e do Têxtil.
Júlio Acevedo/2003.
203
CAPÍTULO IV
________________________________________________________________
JOALHERIA ESCRAVA: DESIGN DE RESISTÊNCIA
IMPERMEABILIDADES
4.1 DESIGN DE RESISTÊNCIA: CONSTRUINDO UM CONCEITO
O conceito design de resistência foi construído no âmbito desta tese com o objetivo
de atender as características do objeto de estudo, a joalheria escrava baiana, que, como foi
visto no capítulo anterior, é mestiça. Entretanto, é, também, a objeticação de uma das várias
formas de resistência escrava, as jóias usadas pelas mulheres negras nos séculos XVIII e XIX
“eram seus sinais diacríticos, marcas de sua identidade. Vítimas de guerras e do tráco em
suas Áfricas, essas mulheres conseguiram fazer a travessia do Atlântico acompanhadas de uma
bagagem cultural que serviria para reconstituir e dar sentido as suas vidas sob (e contra) a
escravidão em solo baiano” (REIS, 2003, p. 214)
IV-1
.
Tanto jóias quanto vestimentas são sinais exteriores da posição social dos indivíduos
nos séculos XVIII e XIX, e hoje igualmente. São elementos simbólicos importantes que
1
IV-
Reis em seu texto está se referindo aos escravos malês (Salvador-Bahia, século XIX). Onde se lê: essas
mulheres, leia-se: os malês, no texto de João Reis.
evidenciam as diferenças existentes entre os grupos sociais, tornando visível a hierarquia social
(Bittencourt, 2005, p. 25). Foi dito, reiteradas vezes nesta pesquisa que as jóias são símbolo de
riqueza, ostentação e poder e possuí-las estava reservado aos afortunados, ou seja, às elites de
uma sociedade hierarquizada.
Por outro lado, as jóias são excelentes suportes indicativos de individualidade e
coletividade, de valores morais e estéticos, da alma humana, de suas tradições, heranças e
antepassados, rituais, crenças, prosperidade, compromisso, comportamento, desenvolvimento
tecnológico, além de ser um objeto de adoração, contemplação e desejo (Santos, 2004, p.1)
e destas maneiras, por isso, são utilizadas tanto pelas elites e quanto pelas classes populares,
como nos exemplos de ornamentos que se verá mais adiante.
Primeiramente, precisa-se detalhar como a resisncia ocorre, e para iniciar a discuso,
concorda-se com Santos (2003, p. 24) citando Focault, na compreensão de como se operam
as relações de poder:
No célebre ensaio “Des Espaces Autres”, Foucault arma que as ligações
entre espaço, conhecimento, poder e política cultural devem ser vistas ao
mesmo tempo como opressivas e possibilitadoras, compostas não somente
pelos perigos autoritários, mas também pelas possibilidades para resistência.
(grifos da autora).
É por perceber as possibilidades de resistência, de forma consciente ou inconsciente,
que escravizados, minorias, excluídos, desclassicados, etc. encontram as brechas para reagir
à força opressora. E, para isso, é também em Santos (idem, p. 28 e 29) que se tem a diferença
entre estratégia e tática. A autora faz uso do pensamento de Michel Certeau para elucidar que
a estratégia pressupõe um lócus de poder, diferenciado-a das táticas: “são práticas individuais
e defensivas, cremos que podem ser pensadas como práticas de resistência, ainda que não
desaem diretamente a denição da situação política e econômica”. E é através desta distinção
que se explica a possibilidade de existir as pequenas resistências escravas, àquelas que ocorrem
cotidianamente e onde se incluem o uso de jóias especícas pelas mulheres negras nos séculos
XVIII e XIX. Como será visto, essas mulheres já empregavam a marginalidade, para o período
talvez seja mais adequado dizer subalternidade, como espaço de resistência, de uma forma
semelhante à explicada pela escritora norte-americana bell hooks
IV-2
, uma mulher negra deste
século (apud Santos, 2003, p. 25),
Entender a marginalidade como posição e lugar de resistência é crucial para
oprimidos, explorados, povos colonizados. Se nós vemos a margem como
sinal, marcando nossa condição de dor e privação, então a falta de esperança
e o desespero, um profundo nihilismo, penetram de modo destrutivo. Eu
gostaria de dizer que essas margens foram tanto lugar de repressão, quanto
lugares de resistências.
Ainda em relação às jóias serem suporte de ideologias irá se usar como exemplo uma
peça muito comum na história da joalheria ocidental e muito usada desde o nal do século
XVIII e, praticamente, por todo o século XIX, na Europa e no Brasil. Trata-se do medalhão, uma
peça que tem forma comumente redonda ou ovalada e que geralmente emoldura uma miniatura
em porcelana pintada ou esculpida em pedra, ou ainda modelada em cerâmica e estampada
no metal. Os medalhões possuem, normalmente, temas decorativos mitológicos ou religiosos,
efígies representando personagens reais ou simbólicos, acompanhados de frases ou não. Eram
usados por ambos os sexos de diversas maneiras: os homens usavam montados em uma placa
de metal, como broche ou como pendente de corrente e decorando caixas de guardar rapé. As
mulheres, da mesma forma que os homens, os usavam como pendentes presos a correntes, ou
aplicados em pentes de cabelo e braceletes.
O medalhão e as medalhas são peças importantes da joalheria neoclássica, derivados das
medalhas renascentistas, que, por sua vez, têm origem nas medalhas do período clássico grego,
que parece ser a época mais remota da sua existência. Tinham uma função comemorativa e,
2
IV-
A autora deseja que seu nome seja escrito com iniciais minúsculas.
associadas às celebrações dos eventos esportivos, eram dadas como prêmios. Com os romanos, as
medalhas passaram a ser produzidas para serem distribuídas pelo soberano àqueles que ele desejava
homenagear. Este costume é retomado no início do século XVI, quando, no seu ressurgimento, essas
peças possuíam texto e imagens e funcionavam como meio de disseminação de idéias.
Na sua versão neoclássica, os medalhões foram usados como veículo de propaganda
com inúmeras nalidades de causas. Como exemplo, será visto o medalhão escravo (Figura
4.1) mencionado no capítulo I, produzido em 1787 por Josiah Wedgwood, como uma
contribuição sua à campanha para abolição do tráco escravo. O medalhão foi adotado pelo
comitê abolicionista inglês e funcionava como a peça central de sua propaganda. Ao analisá-lo
em um primeiro momento, percebe-se que ele representa o sofrimento humano e foi desenhado
para comunicar as preocupações humanitárias dos abolicionistas. Contudo, ao estudá-lo mais
profundamente, vê-se com mais clareza que os abolicionistas ingleses, apesar de contrários
à escravidão, eram adeptos da sociedade hierarquizada. Isto está indicado pela condição de
súplica do escravo na imagem, demonstrando que será o senhor branco o seu libertador,
provavelmente através de um ato do Parlamento, ou seja, a jóia representando o pensamento
hegemônico, como é o esperado (Guyatt, 2000, p. 99).
Figura 4.1 – Medalhão Escravo de Wedgwood
de 1787. Imagem disponível em: http://www.
thebritishmuseum.ac.uk/compass/ixbin/
print?OBJ9926. Acesso em 21/08/2004.
A frase do medalhão: Eu não sou um homem e um
irmão?
Dados da imagem: altura de 3cm, Gift of Sir A. W.
Franks, museum number P&E MLA 1887, 3-7.I.683
(Pottery Catalogue I. 683), museum location room
1/7, Enlightenment: Trade and Discovery, case 1
(The Americas). Capturada em 21/08/2004. Dispo-
nível em: http://www.thebritishmuseum.ac.uk/com-
pass/ixbin/print?OBJ9926
Medales e medalhas, tal como na Inglaterra, foram muito cultivados na Fraa, no
período de Napoleão Bonaparte. Conforme dito no capítulo anterior, ele restabelece na história
da joalheria ocidental o culto à personalidade, através de Jacques-Louis David, expoente da arte
neoclássica, que foi o mais eciente artista no que se classica como arte a servo do Estado. Ele,
“imitando o exemplo dos gregos e romanos mandou cunhar medalhas (Figura 4.2) para comemorar
os principais acontecimentos da era de Napolo” (SCHWARCZ, 2008, p.106).
Em contrapartida, este tipo de jóia também foi utilizado como manifestação de
posicionamento de resistência ao sistema de poder estabelecido, em um maravilhoso exemplo
de como o feitiço vira-se contra o feiticeiro. Napoleão Bonaparte e outros assemelhados recebem
o troco de sua estética personalista com a mesma moeda, ou melhor, com o mesmo medalhão,
como relata Reis (2000, p. 248),
Figura 4.2 Medalhas com o retrato de Napoleão Bonaparte. Imagens disponíveis em: http://
blackwatch.napoleonicmedals.org/Empire/Empire-index%20page.htm. Acesso em 10/06/2009.
Imperador Napoleão Bonaparte.
França-1804. Bronze.
Napoleão, Imperador da França e Rei da Itália.
França-1810.
Em 1805, apenas um ano após a proclamação da independência haitiana
por Jean-Jacques Dessalines, seu retrato decorava medalhões pendurados
dos pescoços de milicianos negros no Rio de Janeiro, episódio que ganha
maior signicado se lembrarmos que Dessalines era também militar, o
comandante-em-chefe das forças hatianas que derrotaram os exércitos de
Napoleão enviados para recuperar a ilha e reintroduzir a escravidão. na
Bahia escravocrata, em 1814, os escravos falavam abertamente nas ruas
sobre os sucessos nas Antilhas francesas.
A independência da colônia francesa de São Domingos, Antilhas (a parte oeste passa a
se chamar Haiti) foi um acontecimento de repercussão internacional, exemplo único de rebelião
escrava considerada vitoriosa na história da humanidade, provocando um amplo impacto
em toda a América latina. No Brasil, o episódio tanto foi utilizado para convencimento da
necessidade de reformular a escravidão, visando sua extinção paulatina, quanto foi razão para
exacerbar o controle e policiamento sobre a escravaria e hipotéticos abolicionistas, chegando-
se ao ponto de o Ouvidor do Crime da Corte do Rio de Janeiro mandar “arrancar dos peitos de
alguns cabras e crioulos forros, o retrato de Dessalines, imperador dos negros da ilha de São
Domingos” (MOREL, 2004, p. 61). Na Figura 4.3, uma tentativa de concepção do medalhão
com o retrato de Jean-Jacques Dessalines.
Concepção do medalhão a partir do retrato de
Jean-Jacques Dessalines
Jean-Jacques Dessalines.Imagem disponível em:
http://www.webster.edu/~corbetre/haiti/leaders/
dessalines.htm.Acesso em 10/06/2009.
Figura 4.3 – Retrato de Jean-Jacques Dessalines e seu medalhão.
E mais uma vez recorre-se à pesquisadora Maria Cecília Loschiavo dos Santos (2003,
p. 31) quando ela faz uso da análise de Thesome Gabriel sobre a estica nômade no cinema
negro independente, uma situão contemporânea que tem suas origens na diáspora africana,
nos povos desterritorializados. Entende-se a citação de Gabriel (apud Santos, idem) aplicada
à construção de uma estica própria pelas mulheres negras no período do Brasil colonial,
trocando-seo mundo industrializado” por “mundoapenas. Tamm se constata na citação
abaixo, a permanência da excluo e, ao mesmo tempo, a capacidade de resisncia da
população negra, o que lhes dava ancoragem e inventividade durante o longo período de
escravidão prossegue existindo na atualidade,
Assim como os nômades são sintetizadores das culturas circunvizinhas, os
negros também o são. Eles vivem em um mundo industrializado, mas não
pertence a ele; eles passam por ele. Ambos optam não por adotar, mas por
adaptar. Eles incorporam alguns aspectos e não outros. Ambos parecem não
ser governados pela idéia do lar físico, mas pelo lar místico e espiritual
que eles alimentam no seu sistema de crenças e carregam nas suas culturas.
Ambos são obcecados pela essência da liberdade.
Ao longo deste capítulo ver-se-á em inúmeras situações como a jóia escrava se expressa
enquanto design de resistência.
4.2 JÓIAS DE CRIOULAS: QUESTÕES DE GÊNERO E RAÇA
Para se descobrir de que maneira as relações de poder se manifestam no mundo
material, conseqüentemente, para compreender o fenômeno joalheria escrava, um objeto
de uso exclusivo das mulheres negras ou mestiças, se impõe o estudo do seu contexto
social, principalmente no que se refere à utilização das diferenças biológicas, de sexo e
raça, para justificar a naturalização das diferenças sociais. Explicando mais claramente,
foi o artefato e a quem ele se destinava que exigiu a incorporação das categorias de análise
gênero e raça e isso sucede devido às características do mundo material identificadas por
Radley (1990, p. 58 apud MENESES, 1998, p.2),
Porque o mundo material resiste, porque ele pode preservar suas marcas, ele
pode servir como um monumento para seus esforços e ideais; e ainda por
esta mesma razão, artefatos sobrevivem de maneira involuntária em relação
aos seus produtores e proprietários, para tornarem-se evidência em que
outras interpretações do passado podem ser reconstruídas. Esta propriedade
das coisas compartilhada em algum grau com os textos escritos tem dado
a alguns artefatos um lugar especial como símbolos do passado. Culturas
diferem quanto ao grau em que artefatos são usados deste modo.
Além disso, se observou que os poucos estudos realizados a respeito da joalheria
escrava baiana não davam conta de inúmeras indagações, especialmente àquelas que desejam
contemplar a voz e a visão da usuária destas jóias, pois, as mulheres ainda são os silêncios da
história, “[...] este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem
destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao
menos fora do acontecimento” (PERROT, 2005, p. 9, grifos da autora).
Compreender estes artefatos no seu inter-relacionamento com as questões de gênero e
raça não está vinculado à sua destinação à mulher negra, mas se deve principalmente ao fato
de tanto a dominação racista quanto a de gênero possuírem muito mais do que algo em comum,
como explica Elisa Larkin Nascimento (2003, p.30),
A essência da dominação racista tem um terreno amplo em comum com a
de gênero, cuja origem reside no mesmo fenômeno histórico. Por isso, julgo
inseparáveis esses dois campos de polarização social, ambos os focos de grande
controvérsia, discussão e mudança no acontecer humano destes tempos.
O conceito de raça adotado nas alises deste trabalho é o mesmo apontado por
Osmundo Pinho (2002, p. 416) na sua resenha sobre o livro do cientista político afro-
americano Hanchard
IV-3
,
3
IV-
HANCHARD, Michael. Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro: EdUERJ/
UCAM-Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
O termo “raça” refere-se, neste livro, ao uso de diferenças fenótipicas
como símbolos de distinção social. Signicados raciais são, nesse sentido,
culturalmente e não biologicamente construídos, distinguindo-se, a partir da
inserção nestas categorias, lugares sociais dominantes e dominados. “Raça”
é, assim, síntese de diferenças fenotípicas, mas também de status, de classe,
de diferenças, em suma, políticas. De modo que podemos dizer que relações
de raça são relações de poder (grifos do autor).
Tal como explicado para o conceito de raça, as diferenças de gênero são aqui entendidas
como uma dominação masculina em relação à mulher, uma construção de mulher na sociedade
patriarcal ocidental (Nascimento, 2003, p.65).
Deve-se elucidar que os conceitos de gênero e raça não estavam cunhados no período
apontado como o de origem e uso das jóias estudadas (séculos XVIII e XIX), nem a questão
de gênero enquanto uma categoria útil à história e esclarecedora sobre a “[...] história das
mulheres, mas também a dos homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens
entre si e igualmente das mulheres entre si, além de propiciar um campo fértil de análise das
desigualdades e das hierarquias sociais” (TORRÃO Fº, 2005, p.129).
Gênero é uma incorporação recente, que foi concebida como contraposição ao
determinismo biológico nas relações entre sexos, passando a ser encarada como de caráter
essencialmente social. o termo raça passa a existir a partir da segunda metade dos oitocentos,
possuindo certa contemporaneidade com o objeto de estudo desta tese. Por conseguinte, as
categorias de análise gênero e raça são resultados de uma historiograa interessada na história
daqueles que possuem inúmeras denominações: oprimidos, excluídos, marginalizados,
subalternos, desclassicados, etc..
A explicação da antropóloga Maria de Lourdes Siqueira (2000, p. 3) sobre o racismo,
contempla também a discriminação de gênero, por se considerar ambos a serviço das
ideologias de dominação e exclusão,
[...] uma resposta engendrada a serviço das modernas ideologias de
dominação e exclusão, no interior do sistema capitalista de produção e
seus desdobramentos, todas em continuidade aos caminhos historicamente
reconhecidos, desde as leis abolicionistas, à forma como se realizou
o processo de Abolição da escravidão nas Américas, o colonialismo,
escravismo, monarquia, república, economia exportadora, acentuando-se as
dimensões constituintes de um mesmo propósito: excluir como agentes do
processo de construção do sistema produtivo e sistema político, segmentos
da sociedade, historicamente considerados periféricos a esse processo e a
essa sociedade, gerada e desenvolvida no bojo das contradições.
Pelo que foi colocado, observa-se que o fato de serem conceitos criados a posteriori do
fenômeno pesquisado, não quer dizer que não existissem no Brasil colônia as desigualdades
políticas, sociais e econômicas com base nas diferenças de sexo/raça. Conseqüentemente,
torna-se fundamental a incorporação dessa abordagem à análise das jóias, já que são materiais
tangíveis e, por isso, fornecem a possibilidade de uma averiguação concreta da existência do
passado, formando uma interconexão entre o dantes e o agora.
Em virtude de se estar investigando adornos de corpo na perspectiva das relações de
gênero e “raça”, que são tidas como relações de poder, então, estabelece-se nessa situação,
de modo quase inevitável, o seu vínculo com o conceito foucaultiano de bio-poder. Em razão
de se considerar os ornamentos colocados sobre o corpo (aparência) como uma das formas e
dos múltiplos procedimentos do exercício do bio-poder, portanto, recorre-se ao próprio Michel
Foucault (1988, p. 132 e 133) para lho denir:
Este bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao
desenvolvimento do capitalismo, que pôde ser garantido à custa da
inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de
um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos.
Mas, o capitalismo exigiu mais que isso; foi-lhe necessário o crescimento
tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade;
foram-lhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças,
as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de
sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como
instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção,
os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVIII
como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e
utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola,
a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades),
agiram no nível dos processos econômicos, do seu desenrolar, das forças
que estão em ação em tais processos e o sustentam; operaram também
como fatores de segregação e hierarquização social, agindo sobre as
forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de
dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos
homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos
à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro,
foram, em parte tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com
suas formas e procedimentos múltiplos. O investimento sobre o corpo
vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram
indispensáveis naquele momento (grifos do autor).
Vale ressaltar a necessidade de se atentar para o fato de que o bio-poder é, tal como gênero
e raça, um construto contemporâneo para, tamm, entender o passado. Apesar da indicação dos
séculos XVII e XVIII como o peodo de aparecimento das técnicas essencialmente centradas no
corpo (Foucault, 1999, p.288), o autor supracitado se referia à Europa. No período e no local desta
pesquisa (Século XIX/Brasil) identica-se, ainda, uma situação de transição entre o poder soberano
IV-4
e o bio-poder, porque o capitalismo o se disseminou no mundo de maneira uniforme. Nanci
Sanches (2007, p. 80) caracteriza o século XIX, Bahia-Brasil, da seguinte forma:
O século XIX é cheio de diferentes nuances sociais, e se caracteriza pela
preservação da mentalidade patriarcal que, paradoxalmente, teve que
conviver com os novos padrões burgueses presentes, principalmente, no
discurso da elite proprietária de terras e escravos.
Visto isto, faz-se necessário ampliar a discussão em relação à natureza dos
ornamentos usados no corpo, inclusive jóias, como matéria da aparência enquanto uma
“dimensão da experiência social que mediatiza a apreensão das representações construídas”
(SANT’ANNA, 2007, p. 18). Isso em razão do que os trajes conotam, como pondera Jocélio
Teles dos Santos (1997, p. 146),
Anal, é de se notar, como faz Braunstein (1990:566), que o traje vai além
do tecido e ornamento, estendendo-se ao comportamento, determinando- o e
evidenciando-o, marcando as etapas da vida, contribuindo para a construção
da personalidade e distanciamento dos sexos, das classes, dos grupos étnicos,
de status, de idade, etc.
4
IV-
Segundo Foucault (1988, p.131): “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é
agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.
Na Salvador do século XIX havia elementos vestimentares constitutivos da ordem social
dominante, isto é, a ocial, que era composta de padrões rígidos para ambos os sexos. “Esta
ordem abrangeria a gestão das aparências (sexuadas), a normatização do corpo (através da
roupa, ou da ornamentação corporal e da cosmética de uma forma geral) e a regulação da sua
visibilidade (nos espaços público e privado)” (SANTOS, idem).
Pelo dito, a questão a ser feita não é mais: “o que é que a baiana tem?”, nem tampouco:
“por que a baiana tem?” O foco está no que se considera a questão das questões: o que as jóias
usadas pelas mulheres escravas baianas revelam?
4.2.1 ENTRE AS MULHERES NEGRAS: AS RELAÇÕES INTRA-GÊNERO, INTRA-
RAÇA E AS JÓIAS
Não existe objeto sem usuário, portanto, é fundamental a investigação sobre as mulheres
utentes das supracitadas jóias, tais como: suas origens, as heranças trazidas da África, o processo
de reconstrução de suas identidades, etc.. Para não se incorrer no velho erro de considerar este
continente como possuidor de uma única cultura, único povo, é claro, que existiram e ainda
existem: Áfricas. Segundo vários autores, a maioria dos escravos baianos, no século XIX, eram
nagôs, como se confere em Carlo Eugenio Soares (1994, p. 46),
Pelo famoso dicionário de Luís da Câmara Cascudo, novos indícios se
apresentam. O verbete nagô identica ‘todo negro da costa dos escravos
que falava ou entendia ioruba’, ou seja, as atuais regiões de Benin e Nigéria.
No Brasil se concentram na Bahia, mas também foram trazidos para o Rio,
sendo portadores de uma vigorosa identidade cultural, hoje sinônimo de
africano (grifo nosso).
Verger (1992, p. 98) arma o mesmo, que denomina os nagôs como iorubas, ou como nagô-
iorubas. Outros autores também utilizam uma ou outra denominação, ou então as duas associadas,
O segundo sistema de tráco negreiro fora organizando por e em proveito dos
negociantes xados na Bahia e em Recife que tinham estabelecido relações
diretas (tabaco por escravos) entre os seus portos e os da Costa dos Escravos,
os quais lhes forneciam cativos iorubas em grande número (idem).
Hoje, a averiguação das origens dos homens e mulheres, que foram capturados na
África e trazidos à força para o Brasil, possui argumentos mais que históricos, os suportes
o de estudos genéticos. Os geneticistas Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolin,
comparando o padrão de alterações genéticas compartilhado por africanos e brasileiros,
conrmaram as informações históricas que indicam terem sido três as regiões da África
a Oeste, a Centro-Oeste e a Sudeste que mais exportaram mão-de-obra africana para o
Brasil. Segundo Ricardo Zorzetto (2007, p. 37), o que surpreende é o aumento signicativo
de indivíduos trazidos da região denominada sudanesa
IV-5
:
A novidade é o envolvimento maior no tráco negreiro da África Ocidental,
também conhecida como Costa Oeste, região de onde vieram povos como os
iorubás, os jejes e os malês, que exerceram forte inuência social e cultural
no Nordeste brasileiro, em especial na Bahia.
Os números anteriores de participação das regiões eram: 10% da Oeste, 17% da Sudeste
e de 73% da Centro-oeste, de um total de mais de 5 milhões de africanos que aqui chegaram,
segundo Herbert Klein, da Universidade de Colúmbia, e David Eltis, da Universidade Emory,
cujos estudos já se encontram em revisão devido aos achados dos geneticistas:
E, nesse ponto, os trabalhos de Pena e Maria Cátira podem colaborar para
esse reexame histórico. A análise do material genético compartilhado por
brasileiros e africanos revelou que a proporção de escravos oriundos do
Oeste da África entre Senegal e Nigéria pode ter sido de duas a quatro
vezes maior que o contabilizado até o momento, bem mais próximo dos
números exportados por Angola (idem, p. 38).
E mais, pelo menos em termos biológicos e no caso brasileiro, não faz o menor sentido
5
IV-
Do século XVI ao século XIX, o tráco transatlântico trouxe em cativeiro para o Brasil quatro a cinco milhões
de falantes africanos originários de duas regiões da África subsaariana: a região banto, situada ao longo da extensão
sul da linha do equador, e a região oeste africana ou “sudanesa”, que abrange territórios que vão do Senegal à
Nigéria (CASTRO, Yeda Pessoa de. A inuência das línguas africanas no português brasileiro. Disponível em:
http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/linguas-africanas.pdf. Acesso em 10/06/2009.
falar em “raças”, tendo-se a expectativa destas conclusões auxiliarem na eliminação das
desigualdades sociais, econômicas e políticas supostamente fundadas neste parâmetro, devido
ao que foi levantado por Zorzetto (idem, p.41) junto aos geneticistas:
Com base nesses resultados obtidos em dez anos de investigação das características
genéticas do brasileiro, Pena e Maria Cátira não têm dúvida em armar que, ao
menos no caso brasileiro, não faz o menor sentido falar em raças, uma vez que
a cor da pele, determinada por apenas 6 dos quase 30 mil genes humanos, não
permite saber quem foram os ancestrais de uma pessoa.
Na Figura 4.4 mapas que apresentam a atual divisão territorial do continente africano,
a distribuição espacial dos povos de línguas banto e iorubá e as principais rotas do tráco de
escravos, dados que auxiliam na melhor compreensão das explicações supracitadas.
Em relação ao contingente feminino, mais especicamente, existe um estudo de título
Mulheres escravas, identidades africanas, da historiadora Silvia Hunold Lara (2000),
IV-6
que
analisa as ilustrações elaboradas por Carlos Julião ao nal do século XVIII
IV-7
e as gravuras
elaboradas por Johann Moritz Rugendas na segunda década do século XIX
IV-8
, disponíveis na
Figura 4.5, concluindo o seguinte:
As imagens estampadas por Julião mostram um “padrão” caracterizador das
“escravas do Rio de Janeiro”, que as diferenciam das “escravas da Bahia”,
e que podemos encontrar em outras imagens posteriores, como no caso das
feitas por Rugendas (grifos da autora).
Debret (apud VERGER, 1992, p. 103 e 104) também descreve a maneira particular que
as negras da Bahia se vestiam,
...com as perturbações políticas ocorridas na Bahia, em 1822, vericou-se
uma muito grande imigração de trânsfugas e, desde eno, as negras da Bahia
6
IV-
Disponível em http://www.desao.ufba.br/gt3-006.html. Acessado em 15 de fevereiro de 2008.
7
IV-
Ditos de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro. Guardado pela Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, este conjunto constitui um dos raros documentos iconográcos sobre escravos e libertos na América
portuguesa setecentista. Homens e mulheres de pele bem escura aparecem em 21 das pranchas: 10 representam
situações de trabalho individual ou coletivo, 6 referem-se a ocasiões festivas, 4 contêm guras isoladas destacando
a indumentária, e nalmente, uma traz uma cena em que dois feitores revistam um escravo garimpeiro. LARA,
Silvia Hunold. Disponível em http://www.desao.ufba.br/gt6-005.html. Acessado 15/02/2008.
8
IV-
As imagens aqui atribuídas a Rugendas pertencem ao conjunto de cem litograas com base em desenhos brasileiros
de Rugendas publicadas no volume Voyage Pittoresque dans le Brésil (edição bilíngüe francês-alemão, 1827/1 835).
encontram-se misturadas com as vendedoras das ruas. Elas distinguem-se pela
sua “toilette” e a sua intelincia; umas vendem tecido de musselina e xales
outras menos comerciantes, oferecem como novidade doçarias importadas da
Bahia, que tem grande êxito... As negras da Bahia reconhecem-se facilmente
pelos seus turbantes e pela largura exagerada dos seus lenços de seda; quanto
ao demais vestuário, ele é composto por uma blusa de musselina bordada,
sobre a qual elas colocam uma baeta cujas riscas caracterizam o fabrico da
Bahia. O valor da blusa e a quantidade das jóias em ouro são os principais
objetos da sua coqueteria (grifos do autor).
Com isso, se pode armar que as usuárias destas jóias eram, em sua maioria, de origem
nagô-ioruba. Essas mulheres traziam consigo heranças da sociedade iorubana em que viviam na
África, tais como: integravam uma organização familiar polígama, que lhe proporcionava maior
liberdade do que em uniões monógamas; na família do esposo, eram consideradas progenitoras
de lhos para perpetuar a linhagem familiar do marido, não sendo totalmente integradas ao
Mapa da África. Imagem disponível em:
http://www.webbusca.com.br/atlas/afri-
ca/. Acesso em 10/06/2009.
Principais rotas do tráco de escravos.Ima-
gem disponível em: http://navionegreiro.
arteblog.com.br/image/1195855879.jpg/.
Acesso em 10/06/2009.
Mapa de localização na África dos falantes banto e
iorubá. Imagem digitalizada do Jornal A Tarde. Salva-
dor: 18/09/2005
Figura 4.4 – Mapas com várias informações sobre a África e o tráco de escravos.
Figura 4.5 Mulheres negras em aquarelas de Carlos Julião e gravuras de Rugendas. Imagens
capturadas do artigo Mulheres escravas, identidades africanas (LARA, 2000, web).
Mulher negra
Carlos Julião. Séc. XVIII
Negra e Negro da Bahia
Rugendas. Séc XIX
Mulher negra
Carlos Julião. Séc. XVIII
Negras do Rio de Janeiro
Rugendas. Séc XIX
núcleo familiar do esposo, situação que lhes conferia uma relativa independência; ao casarem
não tinham obrigação de praticar o culto da família dos esposos, continuavam vinculadas à
religião de suas famílias; não podiam manter relações sexuais com o marido durante a gravidez
e mais o período de desmame da criança, o que justicava a admissão de co-esposas; o grupo
de esposas vinculadas a um marido, geralmente quatro, constituía um grupo solidário, que
não hesitava em explorar a generosidade do esposo, na obtenção de presentes caros como:
jóias, tecidos e enfeites, e este se via obrigado a presentear todas para evitar ciúmes; também
circulavam livremente e faziam os mercados das cidades vizinhas e outras mais afastadas;
sendo boas comerciantes se tornam mais ricas que seus maridos e às vezes amealham fortunas
consideráveis (Verger, 1992, p. 99-100).
Apesar de no século de XIX a cidade do Salvador contar com uma quantidade semelhante de
homens e mulheres escravas, anteriormente o gênero masculino era majoritário, proporcionando às
mulheres experienciar a poliginia inversa: elas possam, ou lhes era imposto, vários homens. Esta
situação terminava por determinar uma responsabilidade exclusiva sobre os lhos, preservando,
nessa nova forma, a independência que possuíam nas sociedades da África.
Dentre as heranças africanas supracitadas, merece destaque a atividade de mercancia
que, devido a inúmeras razões, gerou o predomínio
das mulheres negras no setor de serviços
urbanos
IV-9
e no pequeno comércio ambulante, colocadas no sistema de ganho
por seus senhores
na condição de escravas e por conta própria se livres ou libertas. Este era “um traço comum às
regiões da África exportadoras de escravos e aos aglomerados das sociedades escravocratas do
sul dos Estados Unidos, do Haiti, da Jamaica, das Antilhas em geral, assim como das cidades
brasileiras” (DIAS, 1985, p.91).
9
IV-
Segundo Dias (1985, p. 91), esse predomínio decorria provavelmente do baixo valor relativo das escravas
mulheres, quando comparadas aos homens, e da maior demanda de escravos homens para setores economicamente
mais estratégicos, propriamente produtivos, de monocultura rural exportadora.
A historiadora Cecília Soares (2007, p. 38), em seu livro Mulher negra na Bahia no
século XIX, identica em uma tabela, reproduzida na Figura 4.6, as ocupações das escravas
no século XIX. Duas destas atividades possuem uma relação mais direta com as jóias, a de
ganhadeira e a de fazer conta de ouro na prensa.
O sistema de ganho era um acerto entre
os escravos ou escravas e seus senhores. No
ganho de rua, em tempo parcial ou integral, as
escravas deviam entregar ao senhor uma parte
previamente acertada entre ambos do dinheiro
que recebiam por dia ou por semana.
Na cidade
também se permitia que escravos domésticos
saíssem à noite ou nos domingos e feriados
para trabalhar neste sistema, como mascates ou
prostitutas (Nishida, 1993, p. 235 e 236).
As atividades femininas, diferentes das masculinas, eram, geralmente, a venda
de miudezas e alimentos, contribuindo de maneira indispensável à distribuição de bens
essenciais à vida urbana. Também participavam desse sistema mulheres negras livres e
libertas que, pagando ao senhor ou a senhora o acertado, podiam guardar para si as sobras,
as quais eram economizadas até juntar uma determinada quantia para a compra de sua
alforria ou ainda gastar conforme seus desejos e necessidades. A moradia podia continuar
ou não sob o teto de seus senhores.
Herança iorubana que assim acontece na Cidade da Bahia
IV-10
, apresentada por Gerlaine
Martini (2007, p. 14) na sua tese de doutorado em antropologia sobre Baianas do Acarajé,
10
IV-
Conforme Reis (2003, p.19), Salvador no século XIX era mais conhecida como Cidade da Bahia.
Figura 4.6 Ocupações das escravas no
século XIX. Imagem digitalizada do livro
Mulher negra na Bahia no século XIX
(SOARES, 2007, p. 38).
Ocupações escravas: Salvador 1811-1888
Mais tarde, essa característica iorubana vai se destacar dentre os costumes
soteropolitanos, quando este povo for transportado, em grande número para
a capital a partir do século XVIII. No entanto os dados demonstram uma
atividade feminina muito mais anterior, demonstrando que, às antigas formas
de venda pela rua, decerto empreendidas por mulheres de regiões africanas
mais ao sul do continente, foram agregadas maneiras mais recentes e iorubanas
do pregão. Essas formas mais antigas também possuíam um forte aspecto luso-
africano centro-ocidental, pois foram criadas a partir das adaptações culturais
realizadas entre Portugal e as reges de Congo e Angola desde o século XV.
O próprio tabuleiro era um instrumento de trabalho usado por vendedoras nas
ruas de Portugal, naquele período, como pode ser observado em detalhes de
monumentos históricos em azulejo, dos quais a atividade representada está
atestada por documentos portugueses do século XV.
Existiam características desejáveis para exercer o trabalho de ganhadeira, uma delas era
ser ladina, o que signicava ter vivacidade de espírito, astúcia, além de exigir um bom domínio
do idioma português e saber as práticas de comercialização. Essas mulheres terminaram por
demonstrar uma grande capacidade de acumular riqueza proveniente do trabalho de ganho, o
que pode ser conrmado, também, nas investigações sobre alforria de Mikeo Nishida (1993, p.
250): “Os senhores negociavam com os cativos o preço da alforria, cientes de que as mulheres
africanas eram capazes de pagar mais do que seu preço como mercadoria, dada a excelência de
muitas delas como empreendedoras bem-sucedidas”.
A relação da joalheria escrava baiana com o mundo das libertas africanas, ex-escravas
de ganho geralmente, e o papel fundamental que tiveram na constituição do candomblé, pode
ser comprovada nas investigações do historiador João Reis em sua mais recente publicação
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século
XIX (2008), cujos pertences foram listados em um inquérito policial “por ter sido denunciado
pessoalmente ao chefe de polícia por um funcionário da Alfândega, que o acusou de receber
por suas adivinhações e “feitiçarias” objetos roubados por escravos a seus senhores” (REIS,
2008, p. 15; grifos do autor). As jóias arroladas no Auto de busca e achada, que o pesquisador
considera provável pertencer a Delna, esposa de Domingos e a outras pretas ganhadeiras que
circulavam ou moravam na casa de propriedade do sacerdote, são:
Um Rosário de ouro com um crucixo igualmente d’ouro, contendo oitenta
e nove contas grandes. Seis voltas de colar de ouro com sua cruz de dito. Um
par de botões de ouro para punho, dois pares de argolas um de prata dourada,
e outro d’ouro. Uma volta com dezenove corais e treze contas d’ouro, outra
volta com oitenta e cinco corais e vinte e duas contas d’ouro. Uma vara de
corrente de prata, regular, quatro anéis de prata, uma argola de prata para
enar chaves, dois anéis d’ouro quebrados, um castão também de prata, e
duas pequenas gas e coral (idem, p. 111 e 112).
Um traço comum às mulheres negras livres, libertas e escravas ganhadeiras era a posse
dessas jóias. Elas saíam para labuta faustosamente embrincadas e os motivos dessa peculiaridade
são explicados também por Reis (idem, p. 113),
Aqueles adornos, cujo uso pelas negras chegou a ser proibido no período
colonial, indicavam prosperidade, clientela numerosa e, portanto, sinal de
que a ganhadeira vendia produtos de boa qualidade. Mas, além de adornos,
jóias podiam servir como amuletos - o balangandã, e sobretudo as duas
pequenas gas encontradas
IV-11
, o conrmam – e método de poupança quiçá
considerado mais seguro do que moeda corrente.
Reunir em jóias o valor necessário para a própria alforria era, quiçá, um modelo de
juntas de alforria feminino. Essas juntas, certamente se inspiravam na esusu, uma instituição de
crédito inventada pelos iorubas, um costume da África pré-colonial. Tratava-se de um sistema
rotativo de crédito usado pelos nagôs para acumular fundos e fazer frente às despesas. No Brasil,
os nagôs chamavam o esusu de caixinha
IV-12
e utilizavam o mesmo sistema rotativo, com cada
membro do grupo depositando um valor igual, que depois era usado na compra das alforrias. “À
semelhança dos cantos de trabalho
IV-13
, as juntas constituíam organizações predominantemente,
quando não exclusivamente masculinas” (Idem, p. 207).
11
IV-
Reis (idem) refere-se às jóias encontradas na casa de Domingos Sodré.
12
IV-
“Geralmente, as caixinhas reúnem um determinado número de pessoas que têm o compromisso de uma vez
por mês doar um valor pré-estabelecido. Também uma vez por mês, todo o dinheiro arrecadado é entregue a um
dos membros da caixinha, que assim consegue juntar dinheiro mais depressa para pagar uma dívida ou adquirir
algum bem de consumo”. Matéria jornalística sem identicação do autor. Disponível em: http://www.correioda
bahia.com.br/2003/06/17/noticia.asp?link=not000077420.xml. Acesso em 14/06/2004.
13
IV-
“Para sobreviver no ganho, os negros cativos ou livres se organizavam nos cantos de trabalho, uma espécie de
empreiteira. Embora alguns atuassem sozinhos, mediante autorização do senhor e licença prévia da Câmara Municipal,
a maioria preferia agir em grupo, pois assim competiam melhor no mercado. Entre as prossões exercidas, a de
carregador era a mais comum e necessária”. Matéria jornalística sem identicação do autor. Disponível em: http://
www.correiodabahia.com.br/2003/06/17/noticia.asp?link=not000077420.xml. Acesso em 14/06/2004.
Um exemplo signicativo e demonstrativo de posse de quantidades expressivas de jóias
por vendeiras é a história de uma preta forra de nome Delindra Maria de Pinho, que demandou
judicialmente a posse de uns “corazes”
IV-14
engranzados em ouro, supostamente furtados por um
homem livre e sua mulher. O local do episódio é o Estado de Pernambuco da primeira metade do
século XIX. O roubo ocorreu em uma parada para descanso do condutor contratado por Delindra
para levar seu baú de pertences de Recife para Olinda, onde participaria de um batizado. Foram
levados o cavalo e o baú, durante o cochilo do condutor e depois foram encontrados o cavalo
e o baú, este, porém, vazio no sítio de Belchior José dos Reis, que será acusado judicialmente
pela forra. O historiador Maciel Henrique Silva, que investiga o fato (2005, p. 223), relaciona
todos os bens que estavam no mencionado baú,
O conteúdo do balaio estava avaliado na considerável quantia de 232$340
réis, e constava de inúmeras peças de roupa de seda e objetos de ouro. A
longa relação dos bens, posta à folha 6 do processo, arrolava os dezenove
itens seguintes: doze corais com 12 oitavas de ouro, oito varas de cordas de
ouro com 3 oitavas, quatro voltas de contas do Rio de Janeiro com 4 oitavas
de ouro, uma volta de cordas de ouro de bentinhos com 6 oitavas, um par
de brincos de diamantes, um relicário de ouro com 8 oitavas, um cordão do
mesmo relicário com 13 oitavas, um rosário de ouro com 17 oitavas de ouro,
um anel de topázio, um anel de feguinha (sic) com 1
1/3
oitava de ouro, um
sulutário (sic) com meia oitava de ouro, uma saia com 10
1/2
Es. de sarja de
seda, duas Es. de pano no de lumirte (sic), duas saias brancas de lavarinto,
cinco cabeções de cassa, um bauzinho de tartaruga, dois lenços, uma saia de
barra, e, por m, 9 mil réis em dinheiro (grifos do autor).
Existiram fatos, neste acontecimento, reveladores. Um deles é a grande necessidade de
cunho moral das ex-escravas em provar que, apesar da sua condição anterior, eram honestas
e honradas. Porém, o mais instigante neste ocorrido é o desejo de Delindra de recuperar,
especicamente, uns corais encastoados em ouro, que encabeçavam a lista e tinham o valor de
16$800 réis. Tendo em vista que foram roubadas outras jóias de maior valor monetário como: o
par de brincos de diamantes que valia 28$000 réis, e o relicário e seu cordão que valiam juntos
14
IV-
Como se escrevia “corais”, no plural, no século XIX.
37$000 réis, o que representava a peça para
essa mulher? A despeito de Delindra ter
lutado judicialmente para recuperar seus
pertences, não obteve ganho de causa,
anal o que podia uma preta forra contra
um homem livre proprietário de um sítio no
Brasil oitocentista? O que se pode especular
é que as mulheres negras brasileiras, que
estão marcadamente vinculadas à escravidão,
“constituem uma identidade peculiar e diversa
do que se costuma chamar genericamente
de ‘identidade feminina’” (SILVA, 2005,
p. 239; grifos do autor). Na Figura 4.7,
“corazes” engrazados em ouro que talvez se
assemelhem aos da protagonista.
na Figura 4.8 mulheres negras
exercendo suas atividades de ganho, que pressupunham a liberdade de circulação e uma permanência
demorada nas ruas, possibilitando a construção de um universo próprio, que “dependeu das
oportunidades oferecidas pelo mercado, do interesse do senhor e, sobretudo, da ousadia em lançar-
se nas incertezas da vida quotidiana de uma sociedade escravista e discriminadora, e conquistar
algum espaço” (SOARES, 2007, p.81).
Quanto à atividade de fazer conta de ouro na prensa, se era diminuta no século XIX,
hoje é inexistente. Como já mencionado no capítulo III, esta é uma tradição portuguesa e lá está
preservada como uma ocupão masculina. Na Figura 4.9, um equipamento contemponeo
de fazer semi-esferas que serão soldadas para tornarem-se contas, bem como as outras etapas do
Figura 4.7 Corais engrazados em ouro for-
mando colar Século XIX. Júlio Acevedo –
2005. Foto da peça do acervo de jóias escravas
do Museu Carlos Costa Pinto.
processo até a sua constituãonal de colar, intensamente usado pelas mulheres negras. Aqui no
Brasil mantêm-se a tradição do uso das contas em materiais mais baratos do que o ouro, tais como:
prata, metaiso-preciosos, pedras, inclusive o coral, vidro e mais comumente em pstico.
As contas possuem profunda importância para as mulheres negras, até mesmo nas
situações em que elas pretendem, o mais fortemente possível, se aproximar dos padrões brancos
de vestir. Na Figura 4.10, a retratada está vestida à moda das senhoras brancas e livra-se de quase
tudo que faça referência a sua condição anterior, exceto os colares de contas de ouro, talvez pelo
forte vínculo identitário com as suas origens africanas. Existe uma dissertação de mestrado de
título Modos de negra e modos de branca: o retrato “baiana” e a imagem da negra na arte
do século XIX, da autoria de Renata Bitencourt (2005, p. 9), cujo foco da investigação é esse
retrato da Figura 4.10. É a autora que descreve a obra,
1- Vendedora no mercado. Marc
Ferrez - 1875. Imagem digitali-
zada do livro O negro na foto-
graa brasileira do século XIX
(ERMAKOFF, 2004, p. 142).
2- Duas negras posando em es-
túdio. Alberto Henschel - 1870.
Imagem digitalizada do livro O
negro na fotograa brasileira
do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 175).
3- Negra vendedora com guar-
da-sol. Alberto Henschel - 1870.
Imagem digitalizada do livro O
negro na fotograa brasileira
do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 191).
4- Ganhadeiras. Rodolpho Lin-
demann - Séc. XIX. Imagem di-
gitalizada do livro O negro na fo-
tograa brasileira do século XIX
(ERMAKOFF, 2004, p. 213).
Figura 4.8 – Ganhadeiras.
O retrato “Baiana” é um óleo sobre tela de autoria não identicada. Apresenta
a imagem de uma mulher negra, de identidade desconhecida, adornada com
belas jóias, misturando elementos de estilo comum aos hábitos das mulheres
brancas da época, e uma profusão de colares de ouro usualmente utilizados
por mulheres negras. (grifo da autora).
Até mesmo a Igreja Católica era complacente com o uso das contas, como está colocado
nos dizeres de Padre Antonio Vieira, culo XVII, citado por Marco Aulio Luz (2003, p. 346 e
347) quando relata sobre as irmandades negras aqui no Brasil e diz que Antonio Vieira foi um dos
incentivadores da aproximação dos negros com a Igreja, autorizando-os a usarem colares de contas
em homenagem ao rosário,
Primeiro corta-se a chapa
de metal em círculos, intro-
duzindo a tira de metal pela
abertura da base e depois
pressiona-se o punção para
fazer o corte, possibilitando
cortar vários discos de me-
tal de forma rápida e precisa
(Codina, 2002, p. 67)
Depois de cortados, embutem-
se os círculos de metal em
uma matriz de estampagem,
conformando-osem semi-es-
feras (Codina, 2002, p. 67)
Colar de contas de ouro com
pendente em cruz de ouro (Fo-
tograa do acervo do Museu
do Traje, 2003, Júlio Acevedo)
Enando as contas para com-
por o colar (Costa e Rodri-
gues de Freitas, 1992, p. 254)
Processo de soldagem das se-
mi-esferas de metal para torna-
rem-se contas (Costa e Rodri-
gues de Freitas, 1992, p. 254)
Figura 4.9 – Processo de fabricação de contas de ouro e do colar de contas.
Figura 4.10: Baiana. Século XIX. Autor: Anônimo. Obra da Coleção do Museu do Ipiranga.
Imagem digitalizada do livro Círculo das Contas. (GODOY, 2005, p. 17).
Assim quer que tragais a sua marca a Senhora do Rosário: Pone me ut
signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum; as voltas
de contas que trazeis nos pulsos e no pescoço (falo com as pretas), sejam
todas as contas do Rosário. As do pescoço, caídas sobre os peitos, serão a
marca do peito. Pone me ut signaculum super cor tuum. E a dos pulsos como
braceletes, serão marcas do braço: ut signaculum brachium tuum. E uma
e outra marca, assim no coração, como nas obras. Serão um testemunho e
desengano para todos de que estão livres vossas almas do cativeiro e do
demônio e do pecado, para nunca mais o servir.
Deve-se também salientar o importante papel da liderança religiosa feminina nas questões
que se referem à identidade negra, conforme explica Mãe Stella (apud Joaquim, 2001, p. 140),
O candomblé facilita a reatualização de tradições afro-brasileiras, porque o
procedimento do dia-a-dia das pessoas desde o nascimento está misturado
com a religião e inserido na cultura do povo. Por exemplo, têm dias que as
pessoas podem comer certas comidas outros dias não. A forma de saudar os
pais e os mais velhos, a forma de se vestir; a forma de sair na rua, etc.
Figura 4.11 – Mulheres negras e seus colares de contas.
Mãe Meninha do Gantuá. Sé-
culo XX. Foto do acervo do
Jornal Correio da Bahia (S/D)
capturada no site http://sotero-
politanosculturaafro.wordpress.
com/2007/11/08/maes-de-san-
to/. Acesso em 29/03/2008.
Creoula - Bahia. Século
XIX. Foto: Rodolpho Linde-
mann. Cartão Postal Imagem
digitalizada do livro O negro
na fotograa brasileira do-
culo XIX. (ERMAKOFF,
2004, p. 220).
Luzia, Iyakekere da Casa
Branca. Salvador-Bahia.
Imagem digitalizada do livro
Círculo de Contas (GODOY,
2006, p. 64).
Na Figura 4.11, uma mulher negra do século XIX, usando o colar de contas de
ouro, além de outros, e duas importantes representantes de candomblés no século XX, Mãe
Menininha do Gantuá e a Iyakekere Luzia da Casa Branca, ambas usam versões em prata do
mesmo colar indicados na gura.
“Nos terreiros de candomblé esses colares são indícios de nobrezas e são patrimônios que
circulam pelas gerações descendentes na hierarquia dos terreiros e nas relações entre famílias-
de-santo” (LODY, 2001, p. 82). As mais emblemáticas maneiras de resistir via ornamento de
corpo são aquelas vinculadas as suas funções de uso e simbólicas, isto é, dar aspecto mais
atraente a pessoas, implicando em manutenção de auto-estima e explicitar crenças, envolvendo
preservação cultural, respectivamente.
Deve-se esclarecer que apesar da tolerância da Igreja Católica com o uso das contas,
havia uma grande intolerância com as religiões africanas, ignorando até mesmo a adesão de
outros setores da população, cujo objetivo político subjacente “era impedir reuniões de africanos
para garantir a paz nas senzalas e cortiços da Cidade da Bahia” (REIS, 2008, p. 37).
Existem inúmeros exemplos de escravas bem sucedidas em seu projeto de alforria e ascensão
social. O antropólogo Luiz Mott (1988), no artigo De Escravas a Senhoras relata a história de quatro
africanas nascidas no antigo Reino do Daomé (Benim), selecionou-se das quatro Marias pesquisadas
aquela que galgou elevação na pirâmide social através da mineração, acumulando ouro, muito ouro
em jóias, como se conrma no relato do referido professor (idem, p. 121):
Maria da Costa foi contemporânea e vizinha de Maria do O, pois também
morou em São Caetano, registrando seu testamento em 1745. Era da nação
Ardra (Porto Novo), solteira, tendo comprado sua alforria por 190 oitavas
de ouro. Em vez de imóveis, esta daomeana investiu primeiro em escravos:
possuía nove cativos em idade economicamente ativa, com menos de 30 anos.
Depois, aplicou seu capital em jóias de ouro. A vaidade ostentatória destas
“Vênus de ébano” escandalizava os moralistas: o jesuíta italiano Giovanni
António Andreoni (Antonil) em 1711 denunciava os “excessivos gastos
em cordões, argolas e outros brincos, dos quais se vêem hoje carregadas
as mulatas de mal viver e as negras, muito mais que as senhoras”. Maria
da Costa parece ter servido de inspiração para tal comentário, pois em seu
testamento declarou possuir os seguintes enfeites, todos em ouro: dois
enormes cordões de pescoço, uma cruz, uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição, um Menino Jesus, um Espírito Santo, quatro pares de brincos, um
anel de ligrana, seis pares de botões, vários braceletes e corais, perfazendo
tudo mais de 600 gramas de ouro puro. Era mulher requintada também no
vestir: mau grado o calor tropical da Comarca de Vila Rica, e a
proibição real de que as negras usassem tecidos de gala, tinha uma grossa
saia preta e um conjunto azul claro; tudo em precioso veludo, provavelmente
importado de Flandres. Como liberta, adquirira o privilégio de andar calçada:
trazia um par de velas de prata em seu sapato. Sua residência de telhas
em São Caetano devia ser das casas de pasto mais sosticadas da vila: seu
serviço de mesa incluía sete colheres e um garfo de prata, seis pratos de
estanho, além de tachos de cobre, bacia de arame e demais trastes de casa.
Suas roupas de cama e mesa eram o que de melhor existia na praça: quatro
lençóis de linho, seis toalhas de renda, tudo conservado em rico baú de
moscôvia. Superou sua conterrânea no número de missas encomendadas
para seu descanso eterno: como devota irmã da Confraria de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos. Mandou celebrar 2.100 missas no valor de 100 réis
cada. Mais que ela, o beato monarca Reinante D. João V, que encomendara
700 mil missas! (grifos do autor).
Portanto, essas mulheres, descendentes dos nagô-iorubas, trazidas de forma brutal para
as terras do além-mar, passam, claramente, por um processo de reconstrução identitária, devido
à perda de elementos da sua identidade e da imposição de novos. É na indumentária especíca
que elas criaram com a intenção de auto preservar-se em todos os sentidos, que se tem como
acessório as jóias de crioulas baianas. O assunto vestimenta no âmbito desta tese foi analisado
em várias perspectivas, mas ainda não se apontou que entre as mulheres negras (intra-gênero e
intra-raça) existiam diferenças no trajar. As que se vestiam de maneira suntuosa (Figura 4.12),
como descreve Luís Vilhena e Nina Rodrigues,
...mulatas e pretas vestidas com ricas saias de cetim branco, becas de lemiste
IV-15
níssimo, e camisas de cambraia, ou cassa, bordados de forma tal, que
vale o lavor, três, ou quatro vezes mais que a peça; e tanto é o ouro, que cada
uma leva em velas, cordões, pulseiras, colares ou braceletes, e bentinhos
que sem hipérbole, basta para comprar dois ou três negras ou mulatas...
(VILHENA, 1969, p. 54 e 55)
As negras ricas da Bahia carregavam o vestuário à baiana de ricos adornos.
Vistosos braceletes de ouro cobrem os braços até o meio, ou quase todo;
volumoso molho de variados berloques, com a imprescindível e grande
ga, pende da cinta. A saia é então de seda na, a camisa de alvo linho, o
15
IV-
Pano preto e no de lã.
pano da Costa de rico tecido e custosos lavores; completando o vestuário
especiais sandálias que mal comportam a metade dos pés. (RODRIGUES
apud CARNEIRO, 2005, p. 465)
Figura 4.12 – Mulheres negras suntuosamente vestidas. Marc Ferrez – 1885. Imagem digitaliza-
da do livro O Negro na fotograa brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 138).
Aquelas que trabalhavam na lavoura e habitavam a senzala não possuíam vestes tão
ricas quanto as outras que tinham a função de mucamas
IV-16
e habitavam a casa grande ou
eram libertas, demonstrando como os artefatos são materializações de posições sociais. Basta
observar como Nina Rodrigues (
idem, p. 465) descreve as vestes das operárias,
As operárias pretas usam saias de cores vivas, de larga roda. O tronco
coberto da camisa é envolvido no pano da Costa, espécie de comprido xale
quadrangular, de grosso tecido de algodão, importado da África. O pano
da Costa passa a tiracolo sobre uma espádua, por baixo do braço oposto,
cruzadas na frente às extremidades livres.
Na cabeça trazem o torso, triângulo de pano cuja base cinge a circunferência
da cabeça, indo prender as três extremidades na parte posterior ou nuca.
Este vestuário, sobretudo usado pelas negras da Bahia, valeu-lhes no resto
do país o qualicativo de baiana, dando a expressão popular: uma mulher
vestida à baiana ou uma baiana.
O que estas diferentes roupas revelam? Elas falam, porque o vestuário possui um valor
signicativo de comunicação e está assentado sobre códigos e convenções expressadas nas
diferenças em suas vestimentas, principalmente na ausência das jóias escravas e na qualidade
inferior dos materiais com que eram confeccionados os trajes (Figura 4.13).
Essas indumentárias especícas usadas pelas mulheres negras, independente de serem
mais ou menos luxuosas, possuíam signicados diversos. Na sua origem havia um duplo
signicado: para a usuária, uma resignicação de si mesma, diante do lugar social reservado
a sua condição de escrava, e, para a classe dominante, uma armação explícita do lugar do
‘Outro’ que relega a mulher negra a um lugar social subordinado. No entanto, ao longo dos
anos, essas mulheres associadas aos seus trajes típicos tornam-se ícones da indústria turística
baiana, em um processo de folclorização da mulher negra, ocupando um lugar de destaque, mas
ainda em situações subalternas (Sardenberg e Barros, 2005)
IV-17
, “em políticas culturalistas,
16
IV-
No Brasil e na África portuguesa, a mucama era a escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia
mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama-de-leite
dos lhos de seus senhores. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=mucama&stype=k.
Acessado em 15/07/2006.
17
IV-
Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia Imagens de Gênero e Raça
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Período: novembro de 2005 a agosto de 2006.
práticas culturais operam como um m em si mesmo, símbolos e artefatos afro-brasileiros
e afro-diaspóricos tornam-se reicados (são tornados coisas) e commodied (são tornados
mercadorias) (PINHO 2002, p. 416; grifos do autor)”.
Nas situações acima descritas se observa o que alertava Foucault (1999, p. 73-95) em
relação à força dos dispositivos de poder que permeiam a sociedade e o jogo de coações e
exclusões que a caracterizam.
1- Lavadeira. Rodolpho
Lindemann Séc. XIX. Ima-
gem digitalizada do livro
O negro na fotograa bra-
sileira do século XIX (ER-
MAKOFF, 2004, p. 212).
2- Vendedora de frutas. Mar
Ferrez - 1875. Imagem di-
gitalizada do livro O negro
na fotograa brasileira do
século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 139).
3- Vendedora. Felipe Fidan-
za - 1870. Imagem digitali-
zada do livro O negro na fo-
tograa brasileira do século
XIX.(ERMAKOFF, 2004,
p. 147).
4- Vendedora.Christiano
Júnior, 1865. Imagem di-
gitalizada do livro O negro
na fotograa brasileira do
século XIX.(ERMAKOFF,
2004, p. 133).
Figura 4.13 Mulheres ne-
gras com vestes simples.
Existe todo um esquadrinhamento do tecido social, onde a cada sujeito
corresponde um lugar e, a cada lugar, um sujeito. Por conta disso o diferente
ca fora de determinados espaços, ca excluído deles, mas, paradoxalmente,
lhes são denidos outros lugares, e ele ca connado. (...) Nem sempre
o outro, percebido como perturbador, é o que está fora, distante, estranho:
muitas vezes o que incomoda é o “estranho em nós”, aquilo que percebemos
como diferente em nós mesmos e com o qual não queremos nos defrontar.
(EZIRIK, 2005, p.54) (grifos da autora).
Esses trajes estão preservados até hoje pelas vendedoras de quitutes afro-baianos, a
famosa Baiana de Acarajé (Figura 4.14), no culto religioso do Candomblé (Figura 4.15), nas
festas típicas baianas como a Lavagem do Bonm (Figura 4.16) e também na Irmandade da Boa
Morte, que será pormenorizada mais adiante.
Quanto à baiana de acarajé é relevante detalhar esta ocupação da mulher negra que se
“originou das práticas votivas dos cultos afro-brasileiros, tornando-se uma atividade secular na
história da cidade de Salvador, caracterizada como um ofício feminino” (MARTINI, 2007, p. 4):
Figura 4.14 - Baiana de Acarajé 2003. Imagem digitalizada do livro As Cores do Bonm
(FRANÇA, 2003, p. 128)
Historicamente, a gura da baiana de acarajé esta ligada á tradição religiosa
afro-brasileira; era parte das obrigações, sobretudo, das lhas de Iansã dos
terreiros da Bahia sair ás ruas para vender o bolinho conhecido na África
Ocidental por acará.
Ao longo do século XX, essa atividade foi perdendo seu caráter religioso
original, tornando-se meio de geração de renda (uma “carreira típica”)
para mulheres negras pobres em Salvador, mesmo as evangélicas, que
transformaram um símbolo originário da cultura africana no “acarajé de
Jesus”. Da tradição original restou, sobretudo o uso da indumentária de origem
africana e a preparação dos bolinhos o acarajé. Porém, percebe-se que
tanto o traje como o tabuleiro da baiana sosticaram-se progressivamente.
E de vendeira, a baiana tornou-se gura emblemática, ganhando agora o
status de Patrimônio Histórico Nacional (SARDENBERG e BARROS, op.
cit.
IV-18
) (grifos das autoras).
O aspecto religioso em relação à condição das mulheres negras na escravidão e até mesmo
pós-escravidão é dos mais importantes, tanto no que se refere ao adorno de corpo, como no que
se refere à convivência entre elas, mesmo sabendo que o comportamento adotado por algumas
mulheres negras que galgavam ascensão social, era de assumir comportamentos similares ao
da dominação branca, demonstrando que o padrão hegemônico termina por dominar também
aquele que está excluído do processo e consegue estrategicamente sua inclusão, passando a
adotar o comportamento do dominador,
18
IV-
Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia Imagens de Gênero e Raça
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Período: novembro de 2005 a agosto de 2006.
Figura 4.15: Candomblé - Sem data. Autor des-
conhecido.
Figura 4.16: - Baianas participando da festa
da lavagem do Bonm - 2003. Imagem digita-
lizada do livro As Cores do Bonm (FRANÇA,
2003, p. 122).
Nessa dinâmica perversa do sistema colonial, a escravidão foi, sem dúvida,
o fator mais negativo, junto com a grande propriedade privada, para o
desenvolvimento da cidadania. Uma análise pormenorizada da escravidão
é de suma importância para a compreensão da precariedade da cidadania
hodierna, que a mentalidade escravista foi um modus operandi bastante
difundido, os libertos, uma vez livres, possuíam escravos, e mesmo os
quilombolas os possuíam, cerca de 78% dos libertos da Bahia possuíam
escravos (ALVES, 2005, web).
A adesão das escravas ao tipo de comportamento dos colonizadores, principalmente
aqueles que conquistavam um espaço nesta sociedade, não foi rara. Existem inúmeros exemplos
a serem apontados, dentre eles o mais divulgado e conhecido é o de Chica da Silva
IV-19
, conforme
explica Junia Furtado (2003, p.143),
Como Chica da Silva, outras forras reuniram entre as paredes de suas
casas objetos que permitiram sua inserção na sociedade branca. A posse
da cultura material representada pelos móveis, a indumentária, as jóias,
os utensílios de cama e mesa próprios da cultura européia fez com que
essas mulheres imitassem, a forma de vestir-se e adornar-se das senhoras da
elite portuguesa. Dessa forma distanciavam-se cada vez mais do mundo da
senzala onde nasceram.
Chica da Silva foi uma mulher mestiça que vivia na cidade de Tejuco, no Estado de
Minas Gerais. Na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, existiu Ritta Sebola, possuidora de
escravos negros e brancos, conforme narração de Anna Bittencourt (1992, p. 50),
Vinha Ritta vestida com uma magnicência que, dizia Pedro Ribeiro,
jamais vira nas princesas que depois estiveram na Bahia: vestido de seda de
primeira ordem bordados e toucado riquíssimo. As lacaias brancas também
traziam ricos vestidos de seda. As escravas, mulatas e negras jejes, usavam
o pitoresco traje das negras baianas, hoje tão raro: saia, camisa bordada e
becas, tudo de grande luxo.
Ainda sobre a questão das crenças, é relevante apontar que a inuência das mulheres africanas
se fazia particularmente marcante pela via religiosa, conforme episódio narrado abaixo sobre a
invasão da polícia ao candomblé do Accú, em meados de 1829, nas imediações de Salvador,
19
IV-
Cuja biograa inspirou o lme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, e a novela homônima da Rede
Manchete (1996-1997), escrita por Walcyr Carrasco, dirigida por Walter Avancini e reprisada em 2005.
Ao promover a uno entre africanos e crioulos, o candomb do Ac
revelou-se intolerável ameaça a um importante aspecto da dominação
escravocrata na Bahia. Desunidos na rebelião, escravos nacionais e
africanos se uniam na religião. É possível que nisso a sabedoria feminina
tenha sido decisiva. As africanas acolhiam crioulas que provavelmente
buscavam no Accú respostas a problemas cotidianos, do corpo e do espírito,
impossíveis de serem resolvidos nos marcos paternalistas. Construíam
assim uma identidade própria, ao mesmo tempo que imprimiam uma
nova identidade ao candomblé que as recebia. Pela surpresa do juiz, a
signicativa presença crioula representava uma novidade dos tempos,
um fenômeno que seguramente vinha fortalecer a religião escrava, que
aos poucos deixava de ser africana para tornar-se afro-baiana. Nesse
movimento de absorção de gente nova, que implicava em recriação de
signos culturais, o candomblé ensinava a seus adeptos que às tradições
da África podia e devia conviver com o espírito de mudança do Novo
Mundo. Era o que poderíamos chamar de reinvenção da tradição. Aliás,
como vimos a religião africana desde antes, desde muito cedo, procurou
furar o bloqueio do isolamento, conseguido seduzir o crioulos, mas
também mulatos e brancos que procuravam os serviços de seus sacerdotes
ou o encanto de seus rituais (REIS e SILVA, 1989, p. 47).
O que se infere da citação acima é a existência de uma grande solidariedade entre
mulheres pela via religiosa, seja no Candomblé, seja nas irmandades católicas de negras.
A pesquisadora Maria Salete Joaquim (2001, p.140) relata sobre o papel do candomblé
para a comunidade negra,
O candomblé é uma comunidade que propicia ao membro o exercício
da cidadania, que consiste no direito de os negros preservarem as suas
identidades étnicas, individuais e coletivas, conhecerem as normas e
regras para agirem no cotidiano, aprofundarem sua hisria, cultura,
cultuarem os Orixás. De outra forma, implica também submissão à mãe-
de-santo, que é a autoridade constitda pro intermediar a comunicação
com os Orixás, em troca de os membros da comunidade adquirirem
proteção e um sentido para suas vidas.
Inúmeros pesquisadores indicam o candomblé como um dos maiores focos de resistência
do negro na sociedade brasileira e as mães-de-santo, ou melhor, as mulheres negras, foram
elementos fundamentais neste processo. Nesta religião os adornos são de importância ímpar,
como se constata na fala de Mãe Stella: “Os adereços, as ferramentas, ajudam as lhas-de-santo
a incorporarem o deus, porque tudo tem a ver com os Oriquis, com a vida toda do Orixá” (apud
JOAQUIM, 2001, p.80). Observe na Figura 4.17, a senhora Pulchéria Maria da Conceição
Nazaré (1840-1918) segunda Iyálorixá do Terreiro de Gantois, usando vários exemplares das
jóias escravas, principalmente a exuberância das pulseiras copo nos braços.
O candomblé foi um dos principais
focos de resistência do negro no Brasil, e a
liderança religiosa feminina foi e, ainda é,
um elemento fundamental neste processo,
contribuindo para preservação do amor-
próprio de pessoas submetidas a condições
subumanas, e para manuteão da sua altivez,
como zeram Florinda Anna do Nascimento e
Mãe Senhora (Figura 4.18), esta última uma das
mais importantes es-de-santo na hierarquia
do candomblé da Bahia. Pela dignidade que
ostentam nas poses, essas mulheres sinalizam
o desejo de transformação desta condição,
apesar da sociedade excludente em que tentam
inserirem-se lhes reservar um espaço social subalterno, sempre.
Essa postura de consciência do próprio valor foi tomada como soberba das mulheres
africanas ou afro-descendentes, assim está no relato do viajante e naturalista francês Robert
Avé-Lallement (1980, p. 22 e 23),
Entre as negras Minas moças da Bahia, vêem-se ou adivinham-se formas
admiráveis. Além disso, têm todas porte soberbo, ombros bem inclinados para
trás, de maneira que o peito se salienta fazendo os pomos parecerem muito
mais desenvolvidos. Nesse porte exagerado há, sem dúvida, uma espécie
de provocação, porque, até mesmo no andar, todos os músculos participam
tamm na mulher. Movem, inquietas, os ombros e os braços e têm um modo
peculiar de balançar os quadris. Vi algumas, sobretudo aos domingos, que
brilhavam pelos seus atavios. muitas negras Minas livres na Bahia, e estas,
ao que parece, têm perfeita consciência dos seus escuros encantos.
Figura 4.17 - Pulchéria Maria da Conceição
Nazaré. Mãe-de-santo do Terreiro de Gan-
tois. Imagem digitalizada do livro Círculo de
Contas (GODOY, 2006, p. 77)
Florinda Anna do Nascimento. Fotograa inte-
grante do acervo do Museu do Traje e do Têxtil
da Cidade do Salvador sem indicação de autor
e data. Também existe um texto acompanhan-
do a foto, estando o conjunto exposto na vitrine
que exibe as indumentárias originais dessa mu-
lher. O texto é: “Florinda Anna do nascimento,
conhecida como Folô era cria da Fazenda Bom
Sucesso em Cruz das Almas,de propriedade do
Coronel Joaquim Inácio Ribeiro dos Santos e
D. Ana Maria do Nascimento, Folô era crioula.
Usava indumentária típica das mulheres de sua
condição, mas não era escrava. Não é conheci-
do o ano de seu nascimento, sabe-se, entretanto,
que carregou Dr. Ribeiro dos Santos, nascido
em 1851. Faleceu em 11 de maio de 1931. Re-
sidia, então, em companhia do casal Isaura Ri-
beiro dos Santos Diniz Borges e Dr. Otaviano
Diniz Borges”.
Dona Maria Bibiana do Espírito Santo, Mãe
Senhora do Terreiro Axé Opô Afonjá.Imagem
capturada em 19/09/2004. Disponível em http://
www.pierreverger.org/br/photos/photos theme-
tree.php?op=open&no=1200, o copyright desta
fotograa pertence ao acervo da Fundação Pier-
re Verger, sob o número 27593, período 1948-
1967.Segundo Marcos Zibordi (2009, p. 273):
Das principais responsáveis pela amação do
candomblé como legítima manifestação cultural
e pela atração de adeptos inuentes à comini-
dade religiosa, Mãe Senhora abriu as portas do
terreiro a intelectualidade: escritores, pintores,
sociólogos,jornalistas tomaram contato com a
religiosidade afro-brasileira por seu intermédio.
Até o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beau-
voir visitou e reverenciou a mãe-de-santo”.
Figura 4.18: Florinda Anna do Nascimento e Mãe Senhora
As antropólogas Cecília Sardenberg e Zelinda Barros (2005)
IV-20
relatam o que as
inúmeras fotograas de mulheres de cor (negra e mestiça) que compunham a Exposição Mulher
Negra na Bahia – Imagens de Gênero e Raça, reetem:
As imagens da mulher negra que se esboçam reetem o entrecortar dos
determinantes de raça e gênero, que podem ser perverso, pois relega a
mulher negra a um lugar social subordinado, mas também aponta para
possibilidades de transformação, a partir da resistência à opressão e da
resignicação de si mesma.
A respeito das irmandades de pretos e pardos, sabe-se que eram associações de atividades
religiosas que se manifestavam na organização de procissões, festas, coroação de reis e rainhas,
e também exerciam atribuições de caráter social como: ajuda aos necessitados, assistência aos
doentes, visita aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os maus tratos de seus
senhores, ajuda para a compra da carta de alforria e garantia de um enterro.
A presença feminina é marcante e seu ingresso nas irmandades representava
reconhecimento social, possibilidade de contatos e uma tentativa de contornar os preconceitos
sociais e raciais que caracterizavam e ainda caracterizam a sociedade brasileira (Quintão, 2000,
web). As mulheres participavam da rede de solidariedade estabelecida nessas instituições
doando suas jóias para caixa de alforrias (fundos comuns para a libertação de escravos). Esta
é uma das principais razões de se classicar estas jóias como um design de resistência, pois
aqui, igualmente ao que ocorre em outras situações mencionadas, estes adornos de corpo
signicavam a sobrevivência ao sistema escravocrata, simbolizando a resistência dessas
mulheres à condição de mercadoria.
As mulheres pertencentes à Irmandade da Boa Morte (Cachoeira-Bahia) preservam
até hoje o uso das jóias (Figura 4.19), mesmo que a maioria delas sejam réplicas em metal
20
IV-
Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia Imagens de Gênero e Raça
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Novembro de 2005 a agosto de 2006.
não precioso, e realizam uma grande festa religiosa todos os anos na segunda semana
de agosto, arrecadando fundos junto à comunidade para pagar as despesas do festejo,
preservando as práticas solidárias das suas antepassadas. A atuação dessa irmandade é de
grande interesse para a compreensão das territorialidades e simbologias engendradas pelas
mulheres africanas na diáspora, o que conclui Aureanice de Mello Corrêa (2008, p. 131 e
132) em referência a história da Irmandade da Boa Morte,
Ao sinalizarmos a importância desta confraria de mulheres negras na
sociedade de Salvador desde o século XIX, pautada por uma ostentação
de riqueza e poder, signicada no corpo através de suas jóias e vestimentas
- objetivamos ressaltar as territorialidades engendradas como estratégias e
que teceram paulatinamente o seu território. Estas observações se inscrevem
no nosso objetivo de contextualizar a compreensão da emergência de um
processo identitário afro-brasileiro que fruticará e legará a justicativa
histórica e social da fundação desta irmandade na cidade de Cachoeira,
no recôncavo baiano, tendo em vista que esta será fortalecida na sua
territorialização em Cachoeira não somente por sua fundação na casa Estrela,
um geossímbolo que passa a marcar no espaço da cidade a existência e a
identicação daquelas que a freqüentam, mas também, pelo adorno que
incorporam à sua indumentária o correntão Cachoeirano, uma jóia de caráter
étnico que sinaliza e identica-as como irmãs da Irmandade da Boa Morte
da cidade de Cachoeira: mulheres negras, devotas de Nossa Senhora
d’Agosto e Iyalorixás fundadoras dos terreiros de Candomblé.
Outro exemplo de resistência das mulheres via ornamento de corpo são as pencas de
balangandãs (Figura 4.20 e 4.21). A peça é um exemplo paradigmático de design de resistência,
pela concepção do objeto em si e pelo implícito projeto de preservação cultural das suas usuárias,
detalhado por Eduardo Paiva (2004, p. 60),
Trazer os balangandãs à cintura, como era de costume, servia como proteção
contra vários males. Os pingentes, em geral, signicavam a fertilidade e
a sexualidade femininas, além do poder delas na formação de famílias,
inuenciando a organização do cotidiano e do trabalho com uma perspectiva
materna, ou matrifocal, e feminina, na qual os balangandãs passaram a
integrar a indumentária das forras, o que pode ser identicado na iconograa
da época. Que parecia ser um adorno sem especial importância para uns,
era indicador de autoridade, poder, devoção e proteção para outros.
“A palavra barangandam, balangandam ou beremguenden é onomatopaica e vem do
som que produzem esses berloques quando em contato uns com os outros” (OLIVA, 1941, p.
38), ela está presente no Novo Dicionário Banto no Brasil e o seu autor, Nei Lopes, classica-a
como onomatopaica de origem africana, devido ao quincongo bolongonza, que signica
objeto que tilinta quando é transportado de um lado para outro. Também aponta o quimbundo
mbalanjanga, como brigão, conituoso e por m o zulu bulungana, sendo porções que formam
um todo (Lopes, 1995, p. 35).
Figura 4.19 - Componentes da Irmandade da Boa Morte com suas jóias e em vários momentos
da festa. Júlio Acevedo, Cachoeira-Bahia, 2004.
O uso de uma jóia votiva como a penca
de balangandã, associado ao fato de produzir
som, permite margem para especulação em
torno de crenças católicas e africanas, pois
muitos amuletos têm a função de afastar
as inuências malignas através do som. É
a especialista em pencas de balangandãs
Simone Silva (2005, p. 77) que explica os
usos religiosos da sonoridade,
Figura 4.20 - Penca de balangandã. Imagem
digitalizada do catálogo Negro de Corpo e Alma
(AGUILLAR. 2000, p. 262).
Figura 4.21 – Vendedora de cajus com penca de balangandã na cintura. Imagem digitalizada do
livro Debret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 205).
Após a fuga do Egito, no deserto do Sinai, Deus estabeleceu uma aliança
com os lhos de Israel e entre as leis havia as prescrições referentes às
vestimentas dos sacerdotes que estabelecia que “haverá em toda a orla do
manto uma campainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouro e outra
romã. Aarão o vestirá para ociar para que se ouça o seu sonido quando
entrar no santuário diante de Iahweh, ou quando sair, e assim não morra”
(Ex 28, 34-35). Essa citação na Bíblia de Jerusalém (1985, p. 148) traz a
seguinte nota “vestígio de uma concepção primitiva amplamente espalhada,
segundo a qual o tilintar das campainhas afastava os demônios”. Com essa
intenção são usados os chocalhos indígenas brasileiros (manacá) nos rituais
de pajelança. Também no candomblé, o adjá, “instrumento idiófono formado
por uma, duas ou três campânulas” (LODY, 2003, p. 63) funciona como
meio evocatório das entidades de outros planos. (grifos da autora).
A sonoridade da penca de balangandã poderia, adicionalmente, funcionar como aviso
da chegada da ganhadeira, que vendia em pontos xos na cidade, mas também de porta em
porta, como faz até hoje o vendedor de taboca
IV-21
, vendedor ambulante de balas, chocolates,
chicletes, etc. (baleiro), o amolador de tesouras, reminiscências de um passado não tão distante,
pelo menos na cidade da Bahia...
Por tudo que foi mostrado e demonstrado sobre a intensa participação das mulheres
negras na formação social, econômica e cultural deste país, comprova-se que, em sua condição
feminina tomou para si inúmeras obrigações: a procriação, a fecundidade, a proteção da família,
a preservação de valores, a transmissão dos costumes, a responsabilidade pelos processos de
formação educacional, a cura, a que dá forma material aos legados culturais de estética, de arte,
a proximidade com o sagrado, etc.. Foi aquela que criou os meios para a convivência humana
de forma solidária, edicando os espaços de paz no mundo (Siqueira, 2000, p. 12 e 13).
21
IV-
Na Bahia é um doce tipo casquinha de sorvete em formato cilíndrico feito com consistência de hóstia,
quase transparente. O vendedor carrega um grande latão nas costas e toca o triângulo (o mesmo dos trios de forró)
anunciando a sua presença nos bairros.
4.2.2 MULHERES NEGRAS E MULHERES BRANCAS: AS RELAÇÕES INTRA-GÊNERO,
INTER-RAÇA E AS JÓIAS
Se entre as mulheres negras existia a solidariedade, o que dizer da relação entre as
mulheres negras e as mulheres brancas, todas mulheres, todas partícipes de um sistema patriarcal
onde a gura dominante era o homem branco? Segundo bell hooks
(1994, p. 94), essa interação
se dava através do modelo servidora e servida,
O ponto de contato entre uma mulher negra e uma mulher branca se dava
através do modelo servidora-servida, uma hierarquia, uma relação baseada
em poder sem mediação do desejo sexual. Mulheres negras são servidoras,
e mulheres brancas as servidas.
Na Figura 4.22 está retratado o grau de servidão existente entre brancas e negras.
Enquanto a mulher branca faz sua sesta, a mulher negra permanece em pé, abanando-a em seu
cochilo, numa cena que representa a extrema exploração de um ser humano pelo outro.
Figura 4.22 Escrava doméstica abanado a senhora branca. James Henderson, 1821.Imagem
disponível em: http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=9&category
Name=Domestic%20Servants%20and%20Free%20People%20of%20Color&theRecord=15&
recordCount=58. Acesso em 10/06/2009.
Nem o fato de estarem submetidas ao mesmo jugo dominador, que fazia das mulheres
objeto de manipulação e dominação, projetadas em pais sociais e estereótipos estabelecidos
pelo patriarcado, levava a mulher branca a solidarizar-se com a mulher negra, aquela que
cuidava e amamentava os seus lhos. Na Figura 4.23 existem vários exemplos das amas negras
cuidando das crianças brancas. Inclusive, uma das imagens mostra uma ama carregando a
criança branca à moda da África, com o auxílio do pano da costa, que prendia a criança ao
seu corpo para facilitar sua mobilidade, tendo em vista que eram obrigadas a realizar outras
tarefas, e, ao mesmo tempo, garantir a seguraa dos lhos das servidas. Muitas vezes lhes
era negado cuidar dos seus próprioslhos.
Este zelo com os lhos das mulheres brancas lhes rendia presentes dos pais e dos
próprios lhos adultos, que iam de pequenos mimos, passando pelas jóias escravas, até a
concessão da sua alforria.
Amamentar os lhos das mulheres brancas era um dos mais comuns dos “favores”
prestados pelas escravas, como também cuidar de um ente querido por doença ou velhice. Este
trabalho realizado por anos a o, algumas vezes, provocava nos favorecidos uma profunda
gratidão, ao ponto de muitos deles concederem a escrava bondosa e prestativa, o prêmio máximo,
a sua alforria. Ora, se havia concessão de tamanha envergadura, existiam outros agrados e não
que pôr dúvidas que muitos destes fossem as tais jóias, tão do gosto da “escrava sublime”
IV-22
. Não era sem propósito o comportamento amistoso das escravas,
A própria acomodação escrava tinha um teor ambíguo. “Correntezas
perigosas e fortes passavam por aquela docilidade e ajustamento”, percebeu
o historiador Eugene Genovese (REIS e SILVA, 1989, p. 32).
As jóias escravas também eram utilizadas pelas mulheres negras na condição de
prostitutas, exploradas pelas mulheres brancas, como arma Bittencourt (2005, p.148):
22
IV-
Escravo sublime é um termo de Paul Gilroy encontrado no livro de sua autoria O Atlântico Negro:
modernidade e dupla consciência, tradução de Cid Knipel Moreira - São Paulo: Ed. 34, 2001.
As mulheres buscavam se diferenciar das escravas que compunham os
séqüitos senhoriais e daquelas que atuavam como prostitutas. Estas muitas
vezes gerando renda para mulheres brancas que administravam a renda
diária gerada pelos serviços sexuais destas negras de ganho que saíam a
rua paramentadas com rendas, correntes, anéis e pulseiras. O viajante
Carl Schelichthorst arma que até “as mulheres públicas escondem a sua
vergonha sob o luxo e a elegância”. (grifos da autora).
1- Negra com criança.
Rodolpho Lindemann
Século XIX. Imagem
digitalizada do livro
O negro na fotograa
brasileira do século
XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 102)
2- Babá com meni-
no.Alberto Henschel
1874. Imagem digi-
talizada do livro O
negro na fotografia
brasileira do século
XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 99)
3- Babá com meni-
nas.Desconhecido
- 1890. Imagem di-
gitalizada do livro O
negro na fotograa
brasileira do século
XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 103)
4- Babá com criaa.J.
H. Papf - 1899. Ima-
gem digitalizada do
livro O negro na foto-
graa brasileira do -
culo XIX (ERMAKO-
FF, 2004, p. 98)
Figura 4.23: Amas.
A relação entre mulheres brancas e negras alcança o ponto máximo de tensão nas suas
interações com os homens brancos, devido à tradição judaico-cristã do corpo-expropriado da
mulher. Neste caso se trata, principalmente, do corpo da mulher branca, que deveria submetê-
lo (seu corpo) aos ditames do casamento e à geração de lhos, versus o mito da mulher negra
super sexuada, que deveria subjugar-se aos desejos sexuais dos senhores,
Num contexto de valores morais e religiosos rígidos, vai recair sobre a
negra a responsabilidade do desejo do senhor, que justica seus atos como
inevitáveis diante da intensa sensualidade da escrava, que ca à mercê dos
senhores e de seus lhos, além de despertar o ciúme e a inveja da senhora, o
que gera os mais bárbaros crimes de tortura e todo o tipo de violência contra
as escravas no Brasil. (LOPES, 2004, web).
As jóias escravas são provas materiais da situação acima descrita, pois tudo era de
propriedade do homem branco: a mulher negra e seus objetos de distinção ou submissão,
como também a mulher branca e seus lhos. Na Figura 4.24, são apresentadas as diferenças e
semelhanças das indumentárias das mulheres negras e brancas do século XIX. As diferenças nas
indumentárias são necessárias para identicar os espaços sociais diferenciados entre a mulher
branca e a mulher negra e as semelhanças são fundamentais para a rearmação da condição
de mulher submetida à dominação masculina (homens brancos), sendo o vestuário e as jóias
indispensáveis à construção social da condição de mulher, pois
Sinais exteriores da posição social dos indivíduos como vestuário e jóias
tinham importante papel na hierarquizada sociedade brasileira do século
XIX. Neste contexto a indumentária deve ser vista como importante elemento
simbólico ao evidenciar as diferenças existentes entre os grupos sociais,
tornando visível a hierarquia social. Além de denidora de identidades, a
moda permitia a visualização sistemática de signicados relacionados a
valores e padrões de comportamento. A observação e análise de roupas e
ornamentos facilitam a compreensão acerca das relações de poder existentes
entre pobres e ricos, negros e brancos, escravos e libertos, bem como entre
homens e mulheres. (BITTENCOURT, 2005, p. 25)
Na sociedade patriarcal brasileira do século XIX, as diferenças de situação entre brancas
e negras são descritas por Élcia Bandeira (2007, p.3),
As mulheres brancas deveriam preservar sua imagem e as negras eram
obrigadas pelas circunstâncias da época a expô-las como escravas ou mesmo
como livres pobres que necessitavam trabalhar para sobreviver em ambiente
público.
Como foi visto anteriormente com as ganhadeiras, a rua foi tomada pelas mulheres
negras como espaço de sobrevivência e, por conta do enorme esforço empreendido para superar
a condição histórica de subalternidade na sociedade brasileira, ainda machista e racista, é que o
movimento feminista negro possui as especicidades de luta, que Siqueira (2000, p. 9), citando
a militante Lélia Gonzalez, enumera:
Condessa de Iguaçu. Óleo sobre tela. Krumholz
– 1852. Imagem disponível em:http://upload.
wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e7/Con-
dessa_de_Igua%C3%A7u.JPG
Moça cafuza. Fotograa. Henschel – 1869.
Imagem digitalizada do livro O negro na foto-
graa brasileira do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 177)
Figura 4.24: Mulher branca e mulher de cor.
Lélia Gonzalez professora de Cultura Popular na Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro, publicou livros, artigos, era militante de
primeira linha do Movimento Negro Unicado, fundadora do Grupo
Nzinga, representou o Brasil em muitos congressos, seminários, simpósios,
encontros conferências, palestras sempre denunciando o racismo brasileiro e
distinguindo as especicidades da luta da mulher no âmbito do racismo,
das discriminações étnicas e raciais, e toda sorte de preconceitos que
recaem sobre ela em sua tríplice jornada de trabalho, sua tríplice
carga de exploração, em sua tríplice aparência de pertencimento ao
bloco daqueles seres humanos, sujeitos à dominação por sua cor, pelo
gênero ao qual pertencem e pela classe social, onde historicamente se
vêem colocadas; sempre numa escala inferior, de colocação no mercado
de trabalho; com remuneração inferior ao homem branco, ao homem
negro, e à mulher branca. (grifo nosso).
4.2.3 MULHERES NEGRAS E HOMENS BRANCOS: AS RELAÇÕES DE GÊNERO, RAÇA
E AS JÓIAS
Continuando a discussão da relação entre design e poder, o que as jóias crioulas revelam
do relacionamento entre a mulher negra e o homem branco?
Como situa Foucault (1996) a sexualidade, além de biopsicológica, também
é uma forma de manifestação social e histórica, não se podendo abandonar
seu contexto sócio-cultural. Para a Igreja Católica, a sexualidade é, ainda
em nossos dias, concebida segundo o paradigma losóco de São Tomás
de Aquino. A Representação Social Hegemônica da identidade feminina
disfarça os desejos, as ambigüidades, as ambivalências, tornando o corpo
um corpo dominado, que deve incorporar os modelos do consenso social,
pautado num destino social reservado muito tempo, sem deixar espaços
para outros caminhos (LOPES, 2004, web).
O paradigma de São Tomás é constatado na relação do homem branco com a mulher
branca, mas, quando essa relação se com a mulher negra, o que se observa é a prevalência do
mito da mulher negra super sexuada, conforme Helena Lopes (idem) relata,
A relação escrava-objeto sexual representava, aos olhos da senhora, uma
ameaça aos laços abençoados e sacramentados da família branca, mas o
fato da Igreja proibir relações sexuais com realização sexual do casal, levou
os senhores ao uso contínuo das escravas como fonte contínua de prazer,
além de gerar nas esposas uma aceitação social não explícita à indelidade
conjugal dos maridos.
A volúpia dos portugueses em relação às mulheres africanas era tão intensa que gerava
preocupação governamental em relação à beleza e sensualidade delas, tanto que foi estabelecida
uma portaria real no ano de 1636 limitando o luxo vestimentar das escravas:
El-Rei, tendo tomado conhecimento do luxo exagerado que as escravas do
Estado do Brasil mostram no seu modo de vestir, e a m de evitar este
abuso e o mau exemplo que poderia seguir-se-lhe, Sua Majestade dignou-
se decidir que elas não poderiam usar vestidos de seda nem de tecido de
cambraia ou de holanda, com ou sem rendas, nem enfeites de ouro e de
prata sobre seus vestuários. Com este luxo, as escravas causam uma baixa
de moral nas capitanias, pervertem os homens brancos, do que resulta o
cruzamento das raças e o aumento sempre crescente do número de pessoas
de cor, o que de modo algum é conveniente (VERGER, 1992, p.103).
Na Figura 4.25 o exemplo da rica indumentária usada por escravas e libertas que a
supracitada portaria real queria proibir.
O homem branco heterossexual, no
ambiente da escravidão e da subordinação
física e brutal de outros seres humanos,
exercia o desejo e o controle sobre o corpo
do Outro e sua simbolização, indicando um
componente voluptuoso da escravidão, além
do econômico e cultural. Ter um escravo ou
escrava era como possuir algo perfeito, pleno
e legalmente caracterizado, um objeto muito
especial, é bem verdade, na medida em que é
um ser humano, terminando por caracterizar
um paroxismo da objetivação carnal. (Pinho,
2004, p.102)
Foi esse assédio sexual do homem
Figura 4.25: Creoula Bahia. Rodolpho Lin-
demann. Século XIX. Imagem digitalizada do
livro O negro na fotograa brasileira do século
XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 221)
branco sobre a mulher negra que possibilitou e continua até os nossos dias, a dissimulação
dos conitos raciais no Brasil, que, através de medidas ideológicas e da violência material,
criaram imagens de raça e gênero, estereótipos que povoam o imaginário social, xando as
afro-descendentes em lugares subalternos e/ou folclóricos. (Pinho, 2004, p.112)
Nos séculos XVIII e XIX, a rica indumentária e as jóias escravas expressavam uma
mistura de desejos, pelo ouro e pelo corpo da mulher negra, sendo o lascivo imputado
ao gestual das mulheres negras e não a sua nudez, o que era apropriado ao padrão
comportamental daquele período. No entanto, hoje, após a criação do discurso da democracia
racial brasileira, o mito da mulher negra super sexuada se transfere para a mulher mulata
(mestiça), de preferência desnuda,
Não é de hoje que chama atenção a recorrência com que na literatura, nas
artes, na música popular e alhures, se reinventa um ideal de mulher, que
sendo mulata (mestiça), preserva características da sensualidade bestial
da negra em modos “anados” pelo sangue branco. Mariza Corrêa revela
como a mulata é pensada como “puro corpo”, recém saída do estado natural,
maliciosa e pura, embaralhando as categorias raciais e sexuais, apresentando-
se como um híbrido, que pelo intermédio do sexo cruza as raças e funda uma
cultura. A operação de invenção do Brasil, mito fundacional brasileiro, está
carregada de signicado sexual porque é pensada como a miscigenação racial
por via sexual. Ora, a mulata é o símbolo gracioso desta miscigenação que,
segundo ocorre, ainda ajuda a revelar o que pretende esconder: a rejeição da
“negra preta”. (PINHO, 2004, p. 113)
Além do estertipo acima descrito, existem outros dois que perduram até hoje, o da baiana
de acarajé (escrava de ganho) e o da empregada doméstica (ama-de-leite/criada), supracitados,
situação que as feministas negras lutam combativamente para mudar, como já foi mencionado.
Também se tem exemplos da relação mulher negra versus homem branco,
para o período analisado é mais apropriado dizer escrava versus senhor, onde existe a
objetificação da relação literalmente, ou seja, a exploração do corpo da mulher negra pelo
homem branco transforma-se em uma das peças da joalheria escrava. O colar de alianças
ou grilhões, também chamado correntão cachoeirano, é um exemplo, de acordo com a
tradição (história oral), do qual se que cada elo que compõe essa jóia é originário de uma
aliança portuguesa conquistada pela escrava ou liberta após uma noite de amor (Lody,
2001, p. 50). Na Figura 4.26 encontra-se um exemplar do referido colar.
Esta versão sobre o correntão
reforça o estereótipo da mulher negra que
só conquista a ascensão social via intercurso
sexual com o homem branco. Ao contrário
do que está posto em relação a este colar,
e que foi exaustivamente exemplicado ao
longo deste capítulo, trata-se da conquista
de um lugar dentro da sociedade brasileira
através do árduo trabalho destas mulheres.
Pelo o que foi visto, crê-se que a explicação mais provável é o da compra elo a elo, como faziam
as vendeiras portuguesas da região do Minho, comprando conta de ouro a conta de ouro para
por m ter o seu colar nalizado. A história das mulheres afro-descedentes no solo brasileiro é
uma história de trabalho!
Inclusive o mito da mais frajola e sensual mulher de cor do Brasil, a Chica da Silva, foi
desconstruído pela historiadora Junia Furtado (2003, p. 119 e 121), como ela relata,
As atitudes de João Fernandes demonstram sua intenção de conferir à
relação com Chica da Silva os ares de um matrimônio estável mas não legal
o qual deveria ser somente constituído entre indivíduos de mesmo status
-, como a alforria precoce, a promoção para que ela acumulasse patrimônio,
o uso que Chica fez do sobrenome Oliveira, o número elevado de lhos,
cujos nomes se ancoram nas tradições familiares dos pais, e a longevidade
do relacionamento.
Durante dezessete anos, entre 1753 até 1770, ano em que João Fernandes
voltou para Portugal, ele e Chica mantiveram um relacionamento estável, do
qual nasceram treze lhos, nove meninas e quatro meninos. A média de um
parto a cada treze meses faz desmoronar o mito da gura sensual e lasciva,
devoradora de homens, ao qual Chica esteve sempre ligada. João Fernandes
jamais teve dúvidas sobre a paternidade dos rebentos, pois os legitimou e
lhes legou todo o seu patrimônio, apesar de em seu testamento demonstrar a
esperança de que ainda pudesse vir a ter um lho legítimo que o sucedesse.
Figura 4.26 - Correntão de alianças ou grilhões
ou correntão cachoeirano Século XIX. Júlio
Acevedo 2002. Foto da peça do acervo do
Museu do Traje e do Têxtil.
Na Figura 4.27 es retratado um casal inter-racial e família. Se a data não fosse o primeiro
ano do século XX e a reduzida quantidade de lhos em relação aos de Chica e João Fernandes,
poderia ser o retrato da família Silva Oliveira. Ressalta-se o fato de que esta família tenha se
formado s-abolão da escravatura, quando o mais existia a imposão do senhor que decidia
sobre a possibilidade e qualidade da relação entre homem e mulher escrava, sobre se haveria ou
não vida familiar, se casados ou concubinados seriam ou não separados, se conviveriam com os
lhos e onde, como e em que condição morariam, etc. (Giocomini, 1988, p. 37).
Figura 4.27: Casal inter-racial e família. Zaramella. 1990. Imagem digitalizada do livro O negro
na fotograa brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 92)
4.2.4 MULHERES NEGRAS E HOMENS NEGROS: AS RELAÇÕES DE GÊNERO, INTRA-
RAÇA E AS JÓIAS
Dentre todas as relações existentes na sociedade escravocrata brasileira a de menor
visibilidade é o relacionamento da mulher negra com o homem negro, condição imposta pela
escravidão,
Sabe-se que uma das decorrências da escravidão foi a fragmentação da
família africana. Ao incorporar a mulher negra ao ciclo reprodutivo da
família branca, inviabilizava-se para os escravos a constituição do seu
próprio espaço reprodutivo. Assim, as relações eram precárias e efêmeras,
ocorrendo muitas vezes à revelia dos próprios parceiros. Acabavam
predominando os interesses dos senhores, mais preocupados em assegurar a
reprodução de sua mão-de-obra. A legislação escravista enfatizava sempre a
unidade “mãe-lhos”, preocupando-se mais com a separação dos lhos em
relação à mãe do que ao pai ou do que com a separação entre os próprios
cônjuges. Nesse contexto, a mãe acaba assumindo sozinha a responsabilidade
da prole, que os parceiros estão sempre de passagem (Giacomini,1988 e
Woortmann,1987). (VELLOSO, 1990, p. 5)
Apesar de verdadeira a situação acima descrita, os estudos mais recentes da historiograa
da escravidão apontam para a constituão de famílias (Figura 4.28) entre a população escrava,
As pesquisas vêm revelando que, a despeito dos obstáculos à constituição
da família escrava, ela não só existiu, como também, com muita freqüência,
pôde experimentar uma certa estabilidade no tempo, sendo uma instituição
importante não para os escravos, como, muitas vezes, para seus
proprietários (REIS, 2001, p. 29).
A família escrava muitas vezes proporcionou uma tendência destituída de conito nas
relações escravistas. Porém, diante da impossibilidade de cultivar suas relações familiares,
de preservar seus relacionamentos afetivos, o descontentamento escravo manifestou-se em
circunstâncias as mais variadas, a exemplo das fugas em família ou em busca de parentes,
crimes cometidos contra os que abusavam de familiares de escravos, do suicídio de mulheres
escravas precedido do infanticídio contra seus lhos, além de um comportamento cotidiano
rebelde em função da pressão senhorial sobre a parentela escrava (Reis, 2001, p. 30).
Diante do quadro atitudinal acima descrito, nele também se inclui a estratégia de acumular
valores para a compra da libertação familiar.
Era da tradição africana considerar a jóia
como uma das mais importantes maneiras
em que a riqueza poderia ser acumulada e
passada para as futuras gerações (Clarke,
1998, p. 16). Para a mulher escrava, esta era
a melhor estratégia, acumular em jóia, os
valores, que um dia, seriam sucientes para
a compra da sua alforria ou do seu marido, de
seus lhos, de sua mãe e de seu pai, ou seja,
a compra da liberdade da família escrava.
Na Figura 4.29, está retratada uma escrava
ou liberta de ganho carregando o seu lho
à moda da África. Por amor e por zelo, ela
colocou em seu pescoço uma corrente com
vários amuletos para lhe dar proteção e evitar o “mau olhado”, como rezava a tradição.
Por outro lado, existiam situações de conito entre mulheres negras e homens negros
e, se envolvia jóias, podia haver morte. O assassinato do crioulo João Manoel pela crioula
Maria Joana da Conceição se deu em 1875, por causa de uma argola de ouro vendida a crédito.
Como Maria não pagou todas as prestações acertadas, João conseguiu reaver a argola de ouro,
certamente pelo uso de força física, e procurou devolver o dinheiro dado como entrada. Mas,
a contenda não parou por e o vendedor foi chamado pela crioula para acertar as contas e
acabaram entrando em luta corporal, morrendo João esfaqueado por Maria, que foi presa em
agrante pelos transeuntes e por um soldado da polícia (Soares, 2007, p. 112-118). “[...] Através
dos relatos percebe-se que o desgosto de Maria Joana por lhe terem sido tiradas as argolas,
Figura 4.28: Retrato de família negra 1880.
Imagem digitalizada do livro Mostra do redesco-
brimento: negro de corpo e alma (AGUILLAR,
2000, p. 186).
levara a praticar o crime. Aquelas argolas
deviam signicar muito para aquela crioula
de 20 anos, talvez ávida por exibi-las como
grande trunfo junto a amigas (idem, p.116).
Será que a argola de ouro desejada
por Maria Joana era semelhante à da Figura
4.30 e esta jóia iria lhe proporcionar a beleza
e elegância da mulher negra da Figura
4.31? São suposições... Contudo, constata-
se algo inquestionável: mesmo estando na
escravidão e em extrema privação, existia
uma vontade maior, avassaladora mesmo,
de mulheres que lutavam com todas as suas
“forças” para vencer a exclusão social. Não
se tratava de reconhecer uma oportunidade,
elas inventavam a cada dia uma oportunidade,
construindo uma estratégia de sobrevivência
nas fímbrias da sociedade colonial. Se para os senhores e senhoras as jóias eram acúmulo de
riqueza material, para as mulheres negras eram uma arma de inserção social, de resgate da auto-
estima, de solidariedade humana.
Figura 4.29: Mina Tapa. Augusto Sthal. 1865.
Imagem digitalizada do livro O negro na foto-
graa brasileira do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 233).
Figura 4.30 – Argolas em ouro e cabochão em vidro azul Século XIX. Júlio Acevedo 2005.
Foto da peça do acervo de jóias escravas do Museu Carlos Costa Pinto.
258
Figura 4.31: Mulher Negra. Klumb - 1862. Imagem digitalizada do livro O negro na fotograa
brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 202).
263
CAPÍTULO V
________________________________________________________________
CONCLUSÃO
Com o que foi apresentado nesta tese sobre a joalheria escrava baiana, ou seja, demonstrá-
la como objeto oriundo da contribuição africana, como fruto da conformação mestiça da
cultura brasileira, como materialização da resistência ao jugo da exclusão, e, ao mesmo tempo,
considerando tais características como circunstâncias indispensáveis para estes artefatos serem
o que são: uma centralização das culturas antes consideradas marginais. Conclui-se, então, pela
importância e necessidade de estudos como esse que encontraram rumos alternativos aos que
marcam a sociedade globalizada. Fortalecendo a tese de Marina Waisman (1990, p. 64 e 65):
[...] hoje, o traço característico da relação centro e margens seria a perda
do valor do centro como fundamento, ou seja, o deslocamento do centro
para as margens e como conseqüência o ganho de certa condição central por
parte das margens. Advertindo que a crise do modelo central tem dado lugar
ao pluralismo e tem acabado com o monopólio cultural dos grandes países
ocidentais e com ele sancionado a legitimação de diversos projetos locais.
Esta tese, metodologicamente, empreendeu a tarefa de realizar uma abordagem do
objeto de estudo de forma multidimensional e complexa, como uma tentativa de superar o
modo secular de pensar fragmentado, limitado no que se refere a apreender o “todo”, ou seja,
não examina o objeto em seu contexto, na sua complexidade, no seu conjunto. A superação da
hegemonia do paradigma cartesiano, que reduz o conhecimento do todo ao conhecimento das
partes, ainda está em processo, está porvir.
Com isso, se quer dizer que as conclusões aqui colocadas serão parametrizadas pelas
proposições concebidas pelo lósofo e sociólogo francês Edgar Morin para a educação em seu
livro Os sete saberes necessários a educação do futuro (2007). Assumir este posicionamento é um
compromisso com o que se aprendeu ao mergulhar no universo da cultura africana, principalmente
na cosmologia da cultura ioruba, que usa a história oral para perpetuar as suas tradições milenares
e, ao mesmo tempo, é portadora de uma abertura de pensamento/atitude que o encara o “Outro”
como “Outro”, mas, como si mesmo. Segundo essa tradição, tudo comou na cidade sagrada de
Ifé e depois se espalhou pelo mundo, então, todos os povos que habitam o planeta Terra de lá se
originam. Tornando evidente a adesão teórico-ideológica desta pesquisadora, ca manifesto o seu
pertencimento intelectual e emocional ao grupo daqueles que tamm acreditam na possibilidade
de constrão de um humanismo planerio” (PINHO, 2004, p. 249).
Posto isso, discute-se, primeiramente, as conclusões obtidas na investigação em
relação a sua questão preponderante: a joalheria escrava baiana se constitui no primeiro
exemplo de design de jóias brasileiro?
Na medida em que as jóias estudadas são uma estratégia para entender o processo
histórico que constituiu este país, e tudo que está em seu bojo, inclusive o seu design, e se
concorrem para revelar a signicativa herança de projeto existente na matriz africana formadora
da cultura brasileira, então, não se reveste de grande importância o posicionamento no ranque
de primeiro exemplo de design de jóias brasileiro. O seu mérito está em oferecer referenciais
capazes de contemplar as verdadeiras dimensões de nossa diversidade, contribuindo assim para
a elaboração do pensamento contemporâneo do design brasileiro.
Quanto à hipótese H
1
levantada nesta tese:
H
1
A joalheria escrava baiana é híbrida na sua aparência, nas técnicas de feitura, na
mistura de heranças culturais diversas, que não podem ser classicadas como européias
ou africanas. Ela é fruto de idéias transculturadas, que foram interpretadas, modica-
das ou transformadas de acordo com circunstâncias histórico-culturais-tecnológicas
locais. Trata-se do primeiro exemplo de design de jóia brasileiro devido às condições
objetivas de sua aparição e de sua aparência.
Julga-se que a pesquisa elaborada alcaou resultados adequados à compreeno do
fenômeno por contemplar as exigências do saber para o século XXI. Comprovar a condão
da joalheria escrava baiana como um objeto híbrido é contemplá-la como elemento da história
planetária, enxergá-la como fruto do movimento que se inicia com o estabelecimento da
comunicão entre todos os continentes no século XVI, sendo que o artefato em queso possui
a capacidade de “mostrar como todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem, contudo,
ocultar as opressões e a dominação que devastaram a humanidade e que ainda não desapareceram
(idem, p. 15). Os objetos forjados no seio de encontros de culturas, mesmo que sob a escravidão,
possuem a capacidade de mostrar o grau máximo de compreensão dessa interconexão planetária,
fazendo com que se entenda que todos os seres humanos partilham um destino comum.
Ao tornar evidente que as jóias são o resultado de idéias transculturadas, que foram
interpretadas, modicadas ou transformadas de acordo com circunstâncias histórico-culturais-
tecnológicas locais, signica que as pesquisas atenderam o exercício do pensamento policêntrico,
consciente da unidade/diversidade da condição humana, nutrido das culturas do mundo. “A
riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está
em sua unidade geradora” (MORIN, 2007, p. 65).
Enfocar o assunto sob a complexidade do pensamento mestiço e encará-lo como mestiço,
efetivamente, mostrou a possibilidade da edicação de um saber indispensável ao que se
pretende como processo de formação educacional que dê conta das pautas éticas que desaam
a humanidade no século XXI. Introduzindo a complexidade no âmago da identidade mestiça
como ponte de constituição da identidade complexa plenamente humana, tal enfoque resultou
na produção de um conhecimento que não prioriza apenas ao progresso, mas a sobrevida da
humanidade (idem, p. 78).
a hipótese H
2,
imbricada na hipótese H
1
, por serem entendidas como partes inseparáveis
e indissociáveis do fenômeno estudado:
H
2
A joalheria escrava baiana é um modelo do que se pode classicar de design de
resistência, não na sua forma, que é híbrida, mas no seu signicado de uso, da resistên-
cia negra ao sistema escravocrata. Portar estas jóias, para a mulher negra ou mestiça,
escrava, alforriada ou liberta, simbolizava a preservação de sua cultura, a sua re-cons-
trução identitária, a manutenção de sua auto-estima e, principalmente, sua resistência
à condição de mercadoria à qual estava submetida.
Usar os conceitos de gênero e raça como adequados ao entendimento do assunto inquirido,
desenvolvendo habilidades analíticas necessárias para a sua reexão e contextualização, é
revelar a possibilidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, de suas modalidades
e de seus efeitos, como indicado por Morin (2007, p. 17),
Este estudo é tanto mais necessário porque enfocaria não os sintomas, mas
as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constituiria, ao mesmo
tempo, uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos
ligados por essência e por vocação.
O egocentrismo, o etnocentrismo, o sociocentrismo e todas as desigualdades que
degradam, excluem, escravizam, desclassicam, oprimem e os inumeráveis atos praticados por
este mundo que insiste em ser injusto, precisa, urgentemente, da ética da compreensão. Aquele
que está escravizado compreende aquele que o escraviza e isso as mulheres negras conseguiram
praticar de forma inimaginável, por conseguinte, os trabalhos realizados representam um tributo a
tudo o que elas zeram e fazem por este país, como detalha Lourdes Siqueira (2000, p. 11 e 12),
Vale a pena repetir que a mulher negra sempre esteve presente em todas as
esferas da vida social brasileira, de mucama, a ama de leite, a quituteira, a
vendedora de ganho, a cuidadora das alcovas de seus senhores e tudo isso
aliado às suas lutas etno-políticos-culturais nas Imandades, nas Congadas,
nos Reizados, nos Terreiros, nas guerras, revoltas. Em todos estes espaços
ela lutava pela continuidade e sobrevivência da família negra, enquanto raça,
enquanto grupos étnicos especícos, enquanto representações culturais das
tradições que vinham de seus antepassados. E era aí que elas desenvolviam
as primeiras lutas contra o racismo, contra a ideologia básica que alimentava
a colonização e a escravidão. Nestas lutas elas organizavam, politizavam,
conscientizavam criando consciência entre a população negra, ao mesmo
tempo lutando por direitos de cidadania, guardando memória histórico
cultural, criando formas associativistas, promovendo ações educativas,
formando pessoas, desenvolvendo projetos culturais de música, dança,
revivendo e recriando contos, lendas, mitos, hoje à nossa disposição, sobre
o qual reelaboramos, reinventamos, recriamos o patrimônio civilizatório
africano na Diáspora.
O design de resistência, fruto da investigação minuciosa do universo das mulheres
usuárias das jóias escravas, conscientes do seu poder feminino, pois são elas que fazem a vida
acontecer, adaptando-a sob a escravidão, e sem abandonar as tradições de suas culturas, com a
consciência de ter sido criada pela sua cabeça e que ninguém criou a sua cabeça, demonstraram
ser possível a realização da cidadania terrena.
Trabalhar as duas hipóteses postas nesta tese de maneira integrada, exercitando a abertura
para considerar as várias interpretações, constitui um exemplo do conhecimento tratado como
um “feitiço” colocado na encruzilhada, por ser nela que as forças do norte e do sul, do leste e
oeste se encontram e possibilitam a interconexão do mundo físico com o mundo metafísico.
É demonstrar que as dualidades são conteúdos do mesmo conceptáculo (cabaça da existência
na cosmologia ioruba), porquanto estão positivo/negativo, masculino/feminino, quente/frio,
noite/dia, bom/mal, e todas as antíteses existentes, é desnecessário elencar aqui todo o universo
das dualidades, pois são bem conhecidas. Segundo Babatude Lawal
V-1
: “a mesma mão que cria
1
V-
Conteúdo do curso ministrado por pelo pesquisador e professor de História da Arte nigeriano Babatunde
Lawal, da Virginia Commonwealth University, em Richmond, no estado norte-americano de Virginia (EUA), no
período de 6 a 10 de julho de 2009, na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, em Salvador-Bahia.
a caneta, cria também a borracha”. Ao nal, este trabalho é apenas uma tentativa de superar as
cegueiras do conhecimento.
Quanto à contribuição teórica, admite-se como principal esforço destes estudos a
efetiva ampliação da bibliograa sobre a história do design brasileiro e mundial. A história da
joalheria escrava baiana demonstra que as histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras não
interessam somente aos afro-descendentes, “mas à humanidade como um todo e ao Brasil como
nação” (MOORE, 2008, p. 11).
Acredita-se que o resultado deste trabalho faça parte da história não-ocial deste país,
que ainda está sendo escrita, principalmente quando se trata das tradições dos povos africanos,
os quais foram esquecidos historicamente. E mais, quando o assunto é história da joalheria
brasileira, onde tudo está por ser construído, pensa-se estarem alicerçadas nesta pesquisa
as bases onde podem ser ncados os pilares para o avanço das investigações em história da
joalheria, servindo de estímulo e referência para outros pesquisadores e prossionais da área.
Como contribuição prática, o que se galgou com a investigação sobre joalheria escrava
baiana dos séculos XVIII e XIX foi, também, uma referenciação e uma sistematização de
padrões históricos, que incorpora a possibilidade de fomentar a produção de jóias com uma
identidade regional, através do uso da sua simbologia, da suas técnicas de manufatura e da sua
linguagem. Esses estudos podem se constituir em uma importante estratégia para a promoção
econômica, social e cultural do segmento baiano de produção de jóias, enaltecendo suas raízes
histórico-culturais e fortalecendo as competências de seus recursos materiais e humanos. Se
propondo, precisamente, a colocar em evidência pautas de valorização que possam contribuir a
orientar a práxis do design de jóias até o aançamento ou a elaboração de uma identidade
regional. (Waisman, 1990, p. 66)
Diante da investigação apresentada sobre a joalheria escrava baiana, pode-se armar
que a mesma possui a legítima condição de projeto local, merecedora de ser levada em conta
tanto nacionalmente, quanto internacionalmente.
Contudo, insiste-se que ainda há muito a fazer, para que a prática projetual dos atuais e
futuros designers possa contemplar aspectos como a diversidade, a justiça social, o tratamento
igualitário, que promova a solidariedade, enm, para que se construa em pilares sólidos uma
práxis na área do design pautada na ética.
Contemplando linhas futuras de investigação, tem-se a intenção de solucionar as
limitações existentes nesta pesquisa, tal como colocado no capítulo introdutório desta tese.
Portanto, haverá o empenho na criação de um grupo interdisciplinar de estudo, em busca da
transdisciplinariedade, que reúna uma diversidade de atores, tais como, adeptos do candomblé,
historiadores, antropólogos, designers, educadores, estudantes dos três níveis de ensino, ativistas
dos movimentos sociais, sociólogos e todos aqueles que têm interesse na reexão e pesquisa
na área dos objetos afro-brasileiros. O foco de estudos contemplará as conexões entre design,
história, cultura, e outras que se avalie no processo como necessárias, no contexto brasileiro e
mais especicamente no contexto baiano. O objetivo é cobrir questões referentes aos objetos
produzidos em um ambiente onde os aspectos sociais são preponderantes na construção da
história do design no Brasil, ou seja, parâmetros que dêem conta da especicidade de objetos
forjados em circunstâncias de países como o Brasil.
Adicionalmente, espera-se que esta tese possa colaborar na promoção de uma mudança
de atitude na teoria e prática do design, que seja capaz de avançar no estabelecimento da
igualdade entre os sexos e entre os povos, tornando possíveis novos comportamentos projetuais
e prossionais, abandonando o modelo de dominação ocidental, masculino, cristão e branco. É
através do conhecimento histórico que se alcança uma postura social e prossional pautada na
ética, compreendendo que o fato de sermos diferentes não nos faz desiguais.
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ANEXOS II
ANEXOS II – DOCUMENTO 1
Transcrição de Inventário
Seção Judiciário, série inventário
Notação: 03,977,1446,02
Ano: 1842
Local: Capital
50 fls.
Inventariado: Joaquim de Santana
e Almeida
Inventariante: Joaquina Maria de
Almeida
Página 1
1842
Joaquim de Santa Anna de
Almeida
Juízo do direito cível da 2 vara
Inventário dos bens, que ficarão
por falecimento de Joaquim de
Sant Anna e Almeida, continuados
com a sua inventariante e viúva D.
Joaquina Maria d’ Almeida
Meeira
D. Joaquina Maria d’Almeida
Herdeiros
O Reverendo Cônego Manoel
Joaquim d’ Almeida
O Padre Jose Mara de Almeida
Parella
D. Maria Joaquina d’ Almeida
Escrivão M. J. de Góis Tourinho
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