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CENTRO UNIVERSITÁRIO MOURA LACERDA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO
A surdez: a família como alicerce na desconstrução de um isolamento
socialmente construído
Priscila Alves Martins dos Santos
Ribeirão Preto
2009
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PRISCILA ALVES MARTINS DOS SANTOS
A surdez: A família como alicerce na desconstrução de um isolamento
socialmente construído
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação do Centro Universitário Moura Lacerda de
Ribeirão Preto, SP, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Área de Concentração: Educação Escolar
Linha de Pesquisa: Constituição do Sujeito no Contexto Escolar
Orientadora: Prof. Dra. Tárcia Regina da Silveira Dias.
Ribeirão Preto
2009
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PRISCILA ALVES MARTINS DOS SANTOS
A surdez: A família como alicerce na desconstrução de um isolamento
socialmente construído
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Educação do Centro Universitário Moura Lacerda de
Ribeirão Preto, SP, como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
Área de Concentração: Educação Escolar
Linha de Pesquisa: Constituição do Sujeito no Contexto Escolar
Comissão Julgadora:
Orientadora – Profª. Dra Tárcia R. S. da Silveira Dias (CULM):_______________________
1ª. Examinadora - Cristina Cinto Araújo Pedroso (CEUCLAR ): ______________________
2ª. examinadora - Célia Regina Vieira de S. Leite (CULM ): _________________________
Ribeirão Preto, 18 de Agosto de 2009.
Dedico este trabalho com todo carinho
Ao meu marido Fabiano Abrão Costa e meu filho Cauã.
A minha mãe Rosa Wada Alves dos Santos e meu pai Saulo A. M. dos Santos.
Ás minhas irmãs queridas Patrícia e Paola.
À minha sobrinha Bianca.
Aos surdos e todos aqueles que conseguem enxergar a diferença de forma crítica e igualitária.
AGRADECIMENTOS
Ao Fabiano, meu grande amor e companheiro, apoiando - me sempre e incondicionalmente.
Ao meu pai e, principalmente à minha mãe, maior incentivadora dessa conquista, buscando
sempre o melhor para mim!
À Paola, minha irmã caridosa e prestativa!
À minha querida irmã Patrícia e minha sobrinha Bianca, que nos momentos de cansaço
alegrava meu dia com seu sorriso sincero.
À Gabriela, profissional competente que, em meio a tantos insigths, ajudou e ajuda no meu
desenvolvimento pessoal.
Ao Alex, meu amigo e companheiro de lutas e ideais.
À Sônia do Carmo Pereira, exemplo de ser humano e de profissionalismo! Minha eterna
admiração!
À APÀS que contribuiu com esta conquista, permitindo a execução deste trabalho.
Ao Senac, instituição que permitiu e me apoiou na conclusão desse trabalho.
À Tárcia, que soube me compreender e me ensinar muito! Obrigada pelo apoio!
A Deus que tanto ilumina meus caminhos e me ajuda nos momentos mais difíceis!
E por fim, aos meus queridos surdos e seus familiares que tanto lutam por um mundo melhor,
com oportunidades igualitárias e justiça social!
RESUMO
Considerando a família como alicerce para o desenvolvimento de seu filho surdo, a
importância do olhar dos pais frente à surdez, a Libras como essencial para a
interlocução do surdo e a possibilidade de os pais estarem atrelados à luta pelos
direitos de seus filhos surdos, a proposta deste trabalho é descrever e analisar como
foi desenvolvido um grupo de apoio aos familiares de surdos como um projeto
político em uma escola de surdos. Para essa descrição e análise foi apreciado o
trabalho de uma Associação de Pais e Amigos de Surdos (APAS), do interior do
Estado de São Paulo, que tem oferecido o ensino de Libras aos pais e o apoio por
meio de um espaço grupal que tem transformado as relações. Os membros deste
grupo lutam pelos direitos dos surdos, visando minimizar o seu isolamento social.
Essa Associação em parceria com a escola de surdos também oferece atendimento
psicológico, fonoaudiológico e de fisioterapia aos surdos. Para analisar o
desenvolvimento do grupo de apoio aos familiares dos surdos os dados foram
registrados através do diário de campo para, em um segundo momento, através da
cédula de campo identificar as categorias: visão sobre surdez; educação dos filhos
surdos; relacionamento dos surdos com a Libras como língua; surdez e educação e o
desenvolvimento do grupo. A análise foi realizada sob a ótica sócio-antropológica da
surdez e sob a visão sartreana de grupos. Nos resultados, observou-se que o grupo de
apoio aos familiares de surdos, em seu primeiro momento, ensino de Libras,
oportunizou melhor interação, criando um espaço de interlocução entre os familiares
e os surdos, e, em seu segundo momento, grupo de apoio, criou um espaço para
propostas de ação coletiva organizada. Concluímos que o grupo de apoio aos
familiares de surdos oferecido pela APAS tem promovido mudanças na concepção
de surdez e no relacionamento entre familiares de surdos, sendo este um espaço que
concretiza transformações nas relações sociais através da atuação da família como
alicerce na desconstrução de um isolamento socialmente construído.
Palavras chave: família, processo grupal, surdez, educação.
ABSTRACT
Considering the family as the basis for a deaf child development, the parents view in
front the deaf, the Brazilian Sign Language (Libras) as the essential method of the
deaf communication and the possibility of the parents´ fight for their deaf children
rights, the aim of this study is describe and check how has been developed a support
group for the deaf relatives and a political plan in a deaf school. For this description
and analysis was considered the work made in a Deaf Association (APAS), from the
countryside of São Paulo, that has been given a free “Libras” teaching for the
parents and has given the support to them through a group that has making the
relations. The members of this group fight for the deaf rights, aiming to decrease
their social isolation. This Association and the deaf school together also gives
psychological, phonoaudiological and physiotherapy treatment to the deaf. To check
the deaf relatives support group development the data were registered in the specific
form to, in a second moment, through another specific form, identify the categories:
deafness view; deaf children education; relationship among the deaf and the
“Libras” as a language; deafness and education and the group development. The
analysis was made under the deafness socioantropological and the sartrean groups
view. In the results, was noticed that the deaf relatives support group, in its first
moment, Libras” teaching, had better interaction, starting a speaking place among
the relatives and the deaf, and, in its second moment, support group, started a place
for organized group action proposals. We concluded that the deaf relatives support
group offered by APAS has changed the deaf conception and the relationship among
deaf relatives, being this a place that makes changes in the social relation through
the family acts as a base in the change of a social isolation already built.
Key words: family, group process, deaf, education.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1: Classificação dos familiares e surdos participantes da pesquisa........................46
QUADRO 2: Caracterização dos participantes........................................................................ 47
QUADRO 3: Visão sobre a surdez...........................................................................................51
QUADRO 4: Educação dos filhos surdos.......................................................................................54
QUADRO 5:
Relacionamento dos surdos com a Libras como língua, de acordo com os
familiares...................................................................................................................................57
QUADRO 6:
Surdez e Educação na escola de ouvintes............................................................59
QUADRO 7: Desenvolvimento do Grupo.......................................................................................61
SUMÁRIO
RESUMO .............................................................................................................................. 06
ABSTRACT .......................................................................................................................... 07
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 11
SEÇÃO 1
1. A Família................................................................................................................. 14
1.1. A Família e a Surdez ............................................................................................... 21
SEÇÃO 2
2. A Surdez e a Educação............................................................................................ 25
2.1. A Inclusão dos surdos e a perspectiva multicultural crítica .................................... 32
SEÇÃO 3
3. O Desenvolvimento do Grupo................................................................................. 36
3.1. O Grupo em movimento.......................................................................................... 38
SEÇÃO 4
4. Método..................................................................................................................... 44
4.1. Instituição ................................................................................................................ 45
4.2. Participantes ............................................................................................................ 46
4.3. Procedimentos de coleta de dados........................................................................... 49
4.4. Procedimentos de análise de dados ......................................................................... 50
SEÇÃO 5
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO ............................................................................ 51
5.1. Referente aos relatos dos familiares dos surdos em relação à visão sobre a surdez...
...................................................................................................................................51
5.2. Referente aos relatos dos familiares dos surdos em relação à educação dos filhos
surdos ..................................................................................................................................54
5.3. Referente aos relatos dos familiares dos surdos sobre o relacionamento dos surdos
com a Libras como língua, de acordo com os familiares ..................................................... ..57
5.4. Referente aos relatos dos familiares dos surdos sobre a surdez e educação na escola
de ouvintes............................................................................................................................ ..59
5.5. Referente aos relatos dos familiares dos surdos sobre o desenvolvimento do grupo
...................................................................................................................................61
SEÇÃO 6
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................64
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................67
APÊNDICES
I. Termo de consentimento ....................................................................................... ....71
II. Autorização da Instiuição...........................................................................................72
11
INTRODUÇÃO
No decorrer do curso de Psicologia, os interesses e a visão de homem e de mundo
foram se delineando.
Na época dos estágios, algumas áreas deveriam ser escolhidas e, em mim, havia
sempre a certeza de escolher a área social e educacional dentro de uma visão crítica.
Depois de formada, os caminhos me levaram à área clínica, de psicometria e de
recursos humanos, o que me incomodava muito. Durante esse tempo, quando tive condições
de optar, redirecionei meus caminhos para a área da educação e social. A minha primeira
atitude nesse caminho foi fazer o mestrado e estudar os textos de Skliar, os quais mostravam
uma visão crítica sobre a surdez, superando o modelo clínico e patológico.
Para Skliar (1997) o modelo clínico-terapêutico sobre a surdez afirma que a surdez,
chamada de “deficiência auditiva” e certos problemas emocionais, lingüísticos e intelectuais
são considerados inerentes e comuns a todas as crianças, jovens e adultos surdos do mundo
inteiro. Percebe-se uma tendência à biologização da população surda, julgando-os como
inferiores em relação aos ouvintes.
Uma outra forma de compreender o surdo, com um olhar diferenciado do modelo
clínico-terapêutico é a perspectiva cioantropológica da surdez. Essa é uma visão da qual
compartilho e com a qual me identifico.
Segundo essa visão, Skliar (1997) reconhece que os surdos fazem parte de uma
comunidade lingüística minoritária, caracterizada pela Língua de Sinais, valores culturais,
hábitos e socialização próprios.
Ferrini define a visão antropológica social e exprime que:
Os surdos vêem sua cultura de maneira positiva, colaborando para as suas vidas.
Essa idéia é transmitida aos pais ouvintes pelos seus próprios filhos surdos. Os
surdos se vêem como grupo cultural de pessoas que m acesso ao mundo pela
“visão”, perspectiva que se opõe à idéia de surdez como um ser incompleto, como
deficiência (FERRINI, 2003, p.26).
Foi a partir dessas leituras, solicitadas pelo mestrado, que meu anteprojeto ganhou
forma, tendo seu tema voltado à surdez, tema que nunca havia tido contato até então. Ao
mesmo tempo, também nesse período, estava me candidatando ao cargo de psicóloga na
Associação de Pais e Amigos de Surdos (APÁS), razão pela qual comecei a estudar sobre a
surdez.
12
Fui aprovada na seleção do mestrado e na Associação. A convivência com os surdos
me encantou: o carinho, o esforço, a alegria. Essa convivência, contudo, mostrou-me o
sofrimento dessa população, seu isolamento e sua tristeza no olhar, quando se sentia excluída
e marginalizada.
Sobre a marginalização do surdo, Skliar (1998, p.7) discute as práticas educacionais:
As idéias dominantes, nos últimos cem anos, são um claro testemunho do sentido
comum segundo o qual os surdos correspondem se encaixam e se adaptam com
naturalidade a um modelo de medicalização da surdez, numa versão que amplifica e
exagera os mecanismos da pedagogia corretiva, instaurada nos princípios do século
XX e vigente até os nossos dias.
Em relação a estes aspectos, percebe-se que esse modelo ainda hegemônico, pauta-se
por uma atitude “normalizadora”, em que as diversas formas de educação de surdos têm a
intenção de fazê-los parecer como ouvintes.
No cargo de psicóloga da instituição, atendia os alunos em uma escola de surdos e
era primeira coordenadora de um grupo de apoio aos familiares, o qual estava em
andamento na instituição. Na verdade, sempre tive interesse em trabalhar com familiares e
estudar sobre o tema família, pois concordo com o que Gokhale, 1980 propõe sobre a família.
Para ele, a família não é somente o berço da cultura e a base da sociedade, é também o centro
da vida social. A família tem sido, é e será a influência mais poderosa para o desenvolvimento
da personalidade e do caráter das pessoas. A educação bem sucedida da criança na família vai
servir de apoio à criatividade e ao comportamento produtivo adulto (Gokhale, 1980)
Diante disso, quanto mais apoio a família oferece, principalmente para os filhos
surdos, maior o seu desenvolvimento, de modo geral.
É importante ressaltar que o presente estudo destacou os vários momentos históricos
e as diferentes constituições da família em cada contexto por considerar a família uma
instituição social mutável e histórica.
Os estudos de diferentes autores citados neste trabalho (CAMAROTTI, 2007;
FERRINI, 2003; PEQUENO, 2001; CHACON, 1995; ENGELS, 1987; ÁRIES, 1978)
ajudaram na compreensão histórica das mudanças na constituição familiar no decorrer dos
séculos.
Como psicóloga, o contato com a família de surdos no grupo de apoio aos familiares
definiu a escolha do tema deste estudo, pois sinto muito orgulho de fazer parte de sua história,
porque a maioria dos familiares que frequenta esse grupo sofrem, mas lutam incansavelmente.
13
A partir dessa conjuntura, foi proposto esse estudo que visa descrever e analisar o
desenvolvimento de um grupo de familiares de surdos de um município do interior de São
Paulo. A pesquisa também pretende mostrar o quanto à família pode ser alicerce e ajudar os
seus parentes surdos, sejam eles filhos, primos, sobrinhos, amigos; procurando minimizar o
sofrimento e o isolamento social com práticas transformadoras que possibilitam uma mudança
de paradigmas, de valores e de práticas de uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.
É importante salientar que a motivação deste trabalho surgiu também como uma
proposta de superar a contradição entre o que é proposto legalmente e o que é cumprido e
realizado na prática, através de um projeto político.
Com a intenção de compreender a trajetória deste grupo de familiares de surdos, o seu
desenvolvimento, este estudo foi organizado em três seções.
A primeira seção aborda questões como o significado de família, sua função social e
os modelos em que se organiza em diferentes momentos da história. Busca, também, trazer
reflexões sobre a reação da família ao seu filho surdo, sua relação com a escola e suas
especificidades como família de surdos.
A segunda seção trata o tema surdez dentro de uma visão sócioantropológica, na qual
o surdo é visto como diferente apresentando língua, identidade e cultura próprias. Traz
também discussões em relação à surdez e a educação e as filosofias educacionais.
Na terceira seção são aprofundadas questões relacionadas ao desenvolvimento do
processo grupal e o grupo como espaço de transformação das relações sociais, visando fornecer
elementos para a análise do movimento do grupo baseada nas proposições de Sartre.
O percurso metodológico do estudo é descrito na quarta seção.
E, finalmente, na quinta e sexta seções são apresentados os resultados, a discussão e,
feitas as considerações finais.
14
SEÇÃO 1
A FAMÍLIA
Essa seção apresenta estudos e pesquisas sobre a família, na intenção de ampliar o
conhecimento dessa instituição, suas diferentes formas de organização em diferentes momentos
da história, desde a época medieval até os dias atuais.
Diferentes autores (CAMAROTTI, 2007; FERRINI, 2003; PEQUENO, 2001;
CHACON, 1995; ENGELS, 1987; ÁRIES, 1978) ajudam na compreensão histórica das
mudanças na constituição familiar no decorrer dos séculos, buscando identificar
transformações que se relacionam com o contexto sócioeconômico e político.
Com o objetivo de ampliar essa compreensão histórica sobre as famílias, há a intenção
de contemplar o universo familiar e a diversidade de relações nele prevalecentes, que decorreu
com o passar do tempo e em diferentes épocas e contextos históricos.
Segundo Chacon (1995), em relação à família ele diz:
Trata-se de uma instituição que vem acompanhando a evolução social da
humanidade e, mais que isso, vem superando-se em suas formas de constituição e, a
cada superação, diferencia-se o significado social dos vínculos estabelecidos entre
seus membros, assim como dos papéis e poder destes para com a sociedade maior
(p.16)
É de extrema importância resgatar os estudos de Áries (1978) sobre as diferentes
formas de organização da família desde a época medieval até a modernidade.
Segundo as idéias de Áries (1978), a família transformou-se profundamente na
medida em que foram modificadas as suas relações internas com a criança.
O autor começa considerando que, na Idade Média, as crianças eram conservadas em
casa até os sete ou nove anos e, tanto os meninos quanto as meninas, depois dessa idade, eram
colocados nas casas de outras pessoas para fazerem o serviço pesado. Nessa época, as
crianças eram chamadas de aprendizes e o serviço doméstico se confundia com a
aprendizagem, como uma forma de educação. Todos, qualquer que fosse a condição social,
levavam suas crianças para casas alheias, enquanto recebiam em seu próprio lar crianças
estranhas.
15
Segundo Áries (1978, p.228) “Era através do serviço doméstico que o mestre
transmitia a uma criança, não ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de
conhecimentos, a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir”.
Essa forma de organização, comum ao Ocidente Medieval, de enviar as próprias
crianças a outras famílias para com elas morarem e começarem suas vidas, limitando toda a
educação a essa aprendizagem, não possibilitava e nem criava condições para a construção de
um sentimento existencial profundo entre pais e filhos.
Segundo o mesmo, a família quase não existia sentimentalmente, era uma realidade
mais moral e social.
Com a organização da instituição escolar, os estudos demonstraram uma
transformação profunda nos sentimentos da família, e a educação passou a ser fornecida cada
vez mais pela escola.
Nesse novo cenário Áries (1978) ressalta:
A escola deixou de ser reservada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da
iniciação social, da passagem do estado da infância ao do adulto. Essa evolução
correspondeu a uma necessidade nova de rigor moral da parte dos educadores, a uma
preocupação de isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para mantê-la na
inocência primitiva a um desejo de treiná-la para melhor resistir às tentações dos
adultos. Mas ela correspondeu também a uma preocupação dos pais de vigiar seus
filhos mais de perto, de ficar mais perto deles e de não abandoná-los mais, mesmo
temporariamente, aos cuidados de uma outra família. (p.231- 232).
Esse novo cenário de proliferação de escolas levou às transformações ocorridas nas
formas de relação entre os membros da família e, consequentemente, a alterações
significativas em relação à forma e ao modo de educação dos filhos. A substituição da
aprendizagem pela escola refletiu em uma aproximação da família com as crianças, em
mudanças nos sentimentos da família e da infância, antes separados e negligenciados.
Áries (1978) também discute que, com o novo cenário do fortalecimento da escola e
aproximação entre as crianças e a família, surge um novo olhar para a criança.
A criança, apesar de não ficar junto com seus pais, porque precisava ir à escola, o seu
afastamento não tinha a mesma característica e duração daquele prevalecente na Idade Média.
O clima sentimental era diferente e mais próximo daquele apresentado hoje pela família
moderna.
16
Percebe-se um cenário em que a escola foi reconhecida e a base escolar foi
definitivamente estabelecida, aumentando-se cada vez mais o número de unidades escolares e
a sua autoridade moral.
Uma outra marca desse movimento gradual que partiu da família-casa em direção à
família sentimental moderna foi o respeito pela igualdade entre os filhos. Anteriormente, a
família estabelecia privilégios ao filho mais velho.
O antigo costume permitia beneficiar apenas um dos filhos em detrimento dos
demais, em geral o filho mais velho, chamado de primogênito. O privilégio do filho mais
velho foi a base da sociedade familiar do fim da Idade Média até o século XVII. A partir do
fim do século XVIII, a desigualdade entre os filhos de uma mesma família era considerada
uma injustiça intolerável.
Os pais não se conformaram em privilegiar apenas filhos mais velhos. A moral da
época impôs proporcionar aprendizagem a todos os filhos. Naquele período a aprendizagem
foi assegurada pela escola que substituiu definitivamente o processo de aprendizagem,
anteriormente convencionado. Essa escola estava transformada e representava um instrumento
de uma disciplina severa.
A família moderna e a escola retiraram a criança da sociedade dos adultos, se
adequando a uma necessidade de intimidade e de identidade, na qual os membros da família
se unem pelo sentimento.
Observa-se que as condições da vida cotidiana, por muito tempo, não permitiam a
aproximação sentimental entre os membros da família. Após a Idade Média, o sentimento de
igualdade entre as crianças pôde se desenvolver num novo clima afetivo e moral, graças a
uma intimidade maior entre pais e filhos.
Essa volta das crianças ao lar foi um grande acontecimento, pois deu à família do
século XVII sua principal característica, que a distinguiu das famílias medievais: o
estreitamento dos laços familiares. A criança teve um olhar diferenciado e os adultos
passaram a se preocupar com sua educação, carreira e futuro.
A família do século XVII, entretanto, era diferente da família moderna. A
constituição da família moderna caracteriza-se pela oposição do grupo solitário dos pais e
filhos à sociedade.
Segundo Áries (1978, p. 271):
Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família
moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, aos burgueses, aos artesãos e
aos lavradores ricos. Ainda no início do século XIX, uma grande parte da população,
17
a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias medievais, com as crianças
afastadas das casas dos pais. O sentimento da casa, não existia para eles. A partir do
século XVIII e até nossos dias, o sentimento da família modificou-se muito pouco.
Ele permaneceu o mesmo que observamos nas burguesias rurais ou urbanas do
século XVIII. Por outro lado ele se estendeu cada vez mais a outras camadas sociais.
O casamento tardio, a precocidade do trabalho, os problemas habitacionais, a
mobilidade do estágio do auxiliar junto ao mestre, a persistência das tradições da
aprendizagem, todos esses fatores constituíram obstáculos ao modo de vida familiar
burguesa, os obstáculos que a evolução dos costumes pouco a pouco removeria. A
vida familiar estendeu-se a quase toda a sociedade, a tal ponto que as pessoas se
esqueceram de sua origem aristocrática e burguesa.
Segundo o autor, essa extensão da vida familiar foi acompanhada pela redução da
sociabilidade, em toda parte reforçou-se a intimidade da vida privada em detrimento das
relações de amizade ou de trabalho. A casa perdeu o caráter de local público e a vida
profissional e familiar abafaram a atividade das relações sociais.
Todas essas transformações, segundo esse autor, trazem marcas e estruturam a
família moderna que tem consciência da importância do sistema educacional e que construiu
entre ela mesma e a sociedade, a vida privada.
Referindo-se especificamente à sociedade brasileira, Pequeno (2001) contribui refletindo
sobre a constituição da família desde a época do Brasil - Colônia:
No Brasil - Colônia, marcado pelo trabalho escravo e produção rural para a
exportação, identificamos um modelo de família tradicional, extensa e patriarcal;
onde os casamentos baseavam-se em interesses econômicos, que à mulher era
destinada a castidade, a fidelidade e a subserviência. Aos filhos, considerados
extensão do patrimônio do patriarca, ao nascer dificilmente experimentavam o sabor
do aconchego e da proteção materna, pois eram amamentados e cuidados pelas amas
de leite. (p. 9).
Pequeno (2001) também ressalta que, com a Proclamação da República, o fim do
trabalho escravo e as novas práticas de sociabilidade, com o início do processo de
industrialização e modernização, o modelo de família nuclear burguesa prevaleceu, originário
da Europa. Esse modelo referia-se a uma família constituída por pai, mãe e poucos filhos,
onde o homem continua detentor da autoridade, enquanto a mulher assume a posição nova,
dedicando-se apenas ao lar. Essa condição familiar traz resquícios de um passado não muito
distante, pois, até o presente, existe na sociedade uma educação que busca, desde cedo, educar
a menina para desempenhar seu papel de mãe e esposa, zelar pela educação dos filhos e pelos
cuidados com o lar.
18
Ferrini (2003) reconhece os estudos de Morgan (1877/1985) como aqueles que mais
têm fornecido dados sobre a família na história. Segundo Ferrini, em relação à família
monogâmica, considera que:
É aquela que foi instituída baseada no predomínio do homem sobre a mulher, com a
finalidade de garantir a paternidade e a herança de pai para filho. [...] Com a
instituição da monogamia, enquanto forma última de família, a mulher perde poder
para o homem, perante a sociedade e, fica confinada ao lar e aos afazeres domésticos
até a época da Revolução Industrial (FERRINI,2003, p.5).
Sobre essa configuração familiar, Camarotti (2007) ressalta que após modificações
políticas, econômicas e sociais, a família conquista uma nova constituição:
Nessa nova configuração social, a mulher foi inserida no mercado de trabalho, fato
que passou a exigir mudanças nos hábitos familiares. As transformações ocorridas
na família após a independência econômica feminina vêm abalar a estrutura da
família monogâmica nuclear que vinha sendo fortalecida através dos séculos (p.31).
A transformação da família monogâmica para a constituição da atual família pós-
monogâmica tem um cenário que influencia direta e indiretamente essa mudança.
Nesse cenário, Pequeno (2001) traz como contribuição os estudos de Pereira (1995)
que tratam sobre as várias mudanças ocorridas nos últimos 20 anos, relacionadas ao processo
de globalização da economia capitalista. Tais mudanças, para o autor, vêm interferindo na
dinâmica e estrutura familiar, produzindo mudanças em seu padrão tradicional de
organização.
As mudanças referidas são:
Queda da taxa de fecundidade, devido ao acesso a métodos contraceptivos e de
esterilização; tendência de envelhecimento populacional; declínio do número de
casamentos e aumento da dissolução dos nculos matrimoniais constituídos, com
crescimento das taxas de pessoas vivendo sozinhas; aumento da taxa de coabitações,
o que permite que as crianças constituam outros valores, menos tradicionais;
aumento do número de famílias chefiadas por uma pessoa, principalmente por
mulheres, que trabalham fora e têm menos tempo para cuidar da casa e dos filhos
(PEQUENO, 2001, p.10).
O estudo de Camarotti (2007) destaca a nova constituição familiar: a família pós-
monogâmica.
19
Nessa família:
[...] o homem perde parte de seu poder, pois, a mulher tem participação no
orçamento familiar e passa [...] a desempenhar um novo papel. Além dos cuidados
com a família, exerce uma profissão. Essa nova condição lhe possibilita certa
liberdade financeira. (p.32).
Esses dados da literatura permitem concluir que não é uma tarefa fácil conceituar
família e sua organização. Ela é o reflexo dos aspectos da reestruturação que vem sofrendo.
Percebe-se, diante dos estudos de vários autores
(
CAMAROTTI, 2007; FERRINI,
2003; PEQUENO, 2001; CHACON, 1995; ENGELS, 1987; ÁRIES, 1978),
que embora a
cada momento histórico prevaleça um modelo de família, é importante ressaltar que esse
modelo nunca é único, ou seja, um estudo sobre famílias deve considerar diferentes leituras e
suas formas de constituição nos diferentes contextos. A família deve ser considerada uma
instituição social mutável e histórica. É importante destacar que junto aos modelos
dominantes de cada época sempre há outros, com menor expressão social. O surgimento de
uma tendência não eliminava imediatamente a outra, prova disto é que neste início de século
XXI pode-se identificar a presença de mulheres que estão no mercado de trabalho e mulheres
que dedicam sua vida ao lar.
Em última instância, neste trabalho, a família é vista como uma instituição social que
pode contribuir com o desenvolvimento de seus filhos, no caso filhos surdos, em seu contexto
educacional e principalmente em sua vida pessoal, buscando garantir as condições necessárias
ao filho (a) e aluno (a) surdo (a).
vários documentos que reconhecem a importância da participação da família no
desenvolvimento de seus filhos. Este reconhecimento está explícito em vários artigos do
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) (BRASIL, 1990). O artigo desse
Estatuto dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. Trata não apenas sobre o
aspecto penal praticado pela criança ou contra ela, mas também sobre o seu direito à vida,
saúde, educação, convivência, lazer, profissionalização, liberdade e outros. Em seu artigo 4° é
estabelecido como dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.
20
Ainda nesse Estatuto, o artigo 129 fala das medidas pertinentes aos pais ou
responsáveis, citando dentre várias outras a obrigação de matricular em escolas o filho ou
pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento.
Outro documento, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN Lei
9394/96) (BRASIL, 1996) institui que a educação abranja os processos que se desenvolvem
na vida familiar, no trabalho, nos movimentos sociais, entre outros, reconhecendo a educação
como dever da família e do Estado.
Pequeno (2001) ressalta como de extrema importância o Plano Nacional de Educação
(aprovado pela Lei n°10.172/2001) (BRASIL, 2001),
que define como uma de suas diretrizes a
implantação de conselhos escolares e outras formas de participação da comunidade escolar
(composta também pela família) para a melhoria do funcionamento das instituições de
educação, bem como para o enriquecimento de oportunidades educativas e dos recursos
pedagógicos.
Por essa legislação, é possível perceber a importância de uma parceria entre família e
escola para o fortalecimento de vínculos, inclusão e desenvolvimento de seus filhos e alunos,
como é o caso da escola oferecer condições para estender o trabalho que realiza com os seus
alunos até o núcleo familiar.
Apesar do aspecto legal, nem sempre é possível implementar o que rezam as leis,
mesmo quando a sua prática lugar à justiça, à solidariedade e à inclusão e resultou de uma
luta empreendida dentro do movimento social organizado.
Essa contradição que acontece no contexto educacional, entre o que a legislação
propõe e o que é realizado na prática, pode ser superada com a participação de familiares de
surdos informados, dispostos a lutar e criar condições de igualdade de oportunidades e acesso
ao currículo escolar.
Pela surdez se constituir como uma condição de vida socialmente construída é
importante, para o desenvolvimento dos alunos surdos, estudos sobre a relação do surdo com
a sua família, assim como a participação desta na garantia dos seus direitos, como por
exemplo, no acompanhamento e luta pela implementação das leis.
21
SEÇÃO 1.1
A FAMÍLIA E A SURDEZ
Por ser a família, apesar de todas as transformações pelas quais tem passado o espaço
em que a criança estabelece seu primeiro contato e constitui-se como um ser social, optou-se
neste estudo por trabalhar com familiares, especificamente de surdos, pois, nesse caso, ela tem
um papel crucial no desenvolvimento humano e social de seu filho surdo.
Ao se falar de família, e principalmente de famílias com filhos diferentes, as
contribuições de Ferrini (2003), Bergman (2001) e Pasqualin (1998) são de extrema
importância.
Pasqualin (1998, p.39) realiza a definição de família como: “A família é o espelho
social que fornece imagens da criança e informações ao seu respeito, as quais terão forte
repercussão em seu desenvolvimento futuro”.
Em relação a esse aspecto é importante refletir sobre as representações sociais das
pessoas diferentes, especificamente, neste estudo as representações da surdez que a família
internaliza da sociedade e que podem contribuir ou limitar o desenvolvimento de um filho
surdo.
Antes de apresentar as diferentes reações e representações que os familiares de
surdos podem ter, é necessário definir o que é realmente a surdez.
A surdez é um fenômeno que provoca a ausência de resposta aos estímulos sonoros
e, uma intensa dificuldade na aquisição da fala, principalmente quando o nível de
perda se encontra acima de 70 decibéis (surdez de severa à profunda), sendo comum
nesses casos, a criança chegar aos 4 ou 5 anos sem ter aprendido a falar(FERRINI,
2003, p.15).
Os estudos de Ferrini (2003), Bergman (2001) e de Pasqualin (1998) indicam as
diferentes reações dos pais frente à situação de ter um filho surdo.
Para Ferrini (2003), o conhecimento da surdez de um filho é um acontecimento que
gera uma confluência de sentimentos e pode substituir sonhos por dúvidas e anseios:
Os pais apresentam sentimentos que oscilam entre a esperança de que a situação não
seja o que realmente aparenta ser e o discernimento de que alguma coisa esteja
errada. Esses sentimentos cessam com a confirmação do diagnóstico, em que os
familiares experenciam sentimentos de tristeza e “luto pela perda do filho
idealizado (FERRINI, 2003, p.18).
22
Com a constatação do problema e a confirmação do diagnóstico, a família vivencia,
segundo Ferrini (2003), sentimentos de estresse, angústia, rejeição e revolta.
Em relação a essas reações Pasqualin (1998) contribui com o estudo clássico de
Drotar e outros (1975), que foi realizado com vinte pais, analisando a reação que apresentam
ao receberem a notícia de que seus filhos possuírem alguma malformação congênita,
seguindo algumas etapas de reações hipotéticas, que especificamente em relação ao
conhecimento da surdez do filho ocorre o que ele chama de etapa de choque e depois de
negação, citadas acima por Ferrini.
Nos estágios iniciais, Ferrini salienta que:
Os profissionais da audiologia tendem a ser a única fonte de informações para os
pais. Normalmente esses profissionais apresentam, aos pais, duas posturas: a
oralidade ou os benefícios da fala, diante de diferentes visões, encorajando-os a
preferirem a fala, a leitura labial e, especialmente, os implantes cocleares, com o
objetivo de que o filho tenha capacidades iguais às das pessoas ouvintes e negando a
condição de surdo (FERRINI, 2003, p.19).
Essas alternativas propostas aos pais estão ligadas a uma visão de surdez que
concebe seu filho como um ser em falta, como um problema e como um deficiente,
aprisionando a pessoa surda em uma rede construída por preconceitos, estigmas e
estereótipos. (CRUZ e DIAS, 2008).
Sobre esses aspectos Ferrini (2003) cita a autora Lora (1984) e explica que: “os
familiares que vêem a surdez como deficiência, tendem a se desequilibrar emocionalmente e,
por isso mesmo, passam a proteger excessivamente esse membro ou então, a serem
negligentes” (p.20).
Os estudos de Bergmann (2001) confirmam os estudos de Ferrini ao indicarem que,
nas diferentes reações possíveis dos pais frente à situação de terem um filho surdo, passam da
negação e indiferença à superproteção.
Os pais aprendem a ser pais apenas quando passam pela experiência. É na sua
experiência com a criança surda que encontrarão as respostas, mas antes de tudo
precisarão compreender seus sentimentos especiais em relação ao seu filho e à
deficiência deste e conhecerem a si mesmos como indivíduos únicos (BERGMANN,
2001, p.6).
23
Os pais experimentam reações de choque, de impotência, de negação, de
superproteção, que são sentimentos que exigem compreensão para serem elaborados. Quanto
a esses sentimentos e atitudes, negar a surdez, para Bergmann (2001), seria uma prisão (p.7).
Essa situação se quando surdos profundos, oralizados, apropriam-se da linguagem
oral, mas continuam junto com seus familiares, convivendo com as implicações emocionais
da surdez.. Em relação a essa situação, Bergmann (2001) ressalta que o mais importante não é
a fala em si, mas o poder que se atribui à linguagem oral, isto é, como condição única de se
libertar da surdez (p.7).
Nesse momento, a família percebe que compreendendo seu filho surdo e, não falando
por ele é que ela aprende realmente sobre a surdez. É o que o trabalho de Pasqualin (1998)
discute e cita como etapa de reorganização: “A quinta e última etapa é de reorganização,
quando os pais finalmente encaram com responsabilidade os problemas da criança, quando o
apoio mútuo entre os pais é de grande importância” (p.43).
A convivência da família com seus filhos surdos em todos os âmbitos e momentos
sociais é condição necessária para a promoção da qualidade de vida do surdo. Nesse caso,
alguns membros da família percebem o filho surdo como integrante de uma classe
minoritária, principalmente quando têm a oportunidade de participar de um grupo de apoio
aos familiares e aprendizagem da Libras. Nesses casos, o surdo passa a ser visto como
membro de uma comunidade, com língua e cultura próprias, deixando de olhar para o seu
filho de forma patológica, enxergando-o com potencialidades e capacidades iguais a de
qualquer ouvinte.
Quando a família não percebe resultados positivos com o oralismo, constata a
necessidade de aceitação de um modelo de diferença, o qual o surdo vai buscar sua
identificação nas comunidades surdas.
Com a comunicação efetiva e eficaz, realizada por meio da língua de sinais, pode-se
conversar sobre tudo, fazer confidências, trocar idéias, rir e chorar juntos, enfim,
estreitar os laços familiares, apoiando e confiando uns nos outros, mantendo
cumplicidade e tornando-se fortes e unidos nas horas adversas, às quais nenhuma
família escapa, sendo ouvinte ou não. (FERRINI, 2003, p.22).
Ferrini, parafraseando Skliar (1997), explica que essa é a visão antropológica-social
da surdez e exprime que:
24
Os surdos vêem sua cultura de maneira positiva, colaborando para as suas vidas.
Essa idéia é transmitida aos pais ouvintes pelos seus próprios filhos surdos. Os
surdos se vêem como grupo cultural de pessoas que m acesso ao mundo pela
“visão”, perspectiva que se opõe à idéia de surdez como um ser incompleto, como
deficiência (FERRINI, 2003, p.26).
É importante ressaltar que a Libras acarreta enormes benefícios, favorecendo o
desenvolvimento do surdo em seus aspectos psicossociais, lingüísticos e culturais e, os pais,
no ambiente da língua de sinais, passam a olhar o seu filho surdo como diferente.
Dessa maneira, pode-se dizer que o modo como a pessoa surda é tratada em casa,
com seus familiares, e no contexto social e educacional influenciará na imagem de si mesma.
Se for tratada como incapaz e aculturada, sua auto-estima será baixa, e sua
expectativa de vida será triste, desmotivada, distante da comunidade surda. Se
tratada como capaz, como pessoa diferente, porém com potencialidades, possuidora
de cultura com língua própria e singular, sua auto-estima poderá ser alta, e sua
perspectiva de vida será boa em todos os aspectos (FERRINI, 2003, p.22)
Quando a família, depois de todas as elaborações emocionais necessárias aceita a
surdez como diferença, e não como uma parte doente de seu filho, preservando a
autenticidade deste e reconhecendo a Libras como essencial para a interlocução e
desenvolvimento, mostra que está preparada para começar a lutar pelos direitos de seu filho
surdo junto às comunidades surda e ouvinte.
Assim, é importante ressaltar que a família poderá se constituir de alicerce nas
lutas pelos direitos dos surdos se tiver elaborado a surdez, entendendo-a como diferença, não
como uma deficiência.
25
SEÇÃO 2
SURDEZ E EDUCAÇÃO
Esta seção fará um percurso sobre o conceito de desviante relacionando-o com o
tema da surdez. Posteriormente serão apresentadas as filosofias para a educação de surdos e,
por fim, uma análise crítica entre surdez e educação.
Inicialmente é preciso considerar que todo grupo, de alguma forma ou em algum
momento, cria regras sociais a serem seguidas.
Becker (1977) compreende que:
Regras sociais definem situações sociais e os tipos de comportamento apropriados a
elas, especificando algumas ações como “certas” e proibindo outras como “erradas”.
Quando uma regra é imposta, a pessoa que se supõe tê-la transgredido pode ser
vista como um tipo especial de pessoa, alguém que não se espera que viva segundo
as regras com as quais o grupo concorda. Ela é vista como um marginal ou desviante
(p.52).
Becker (1977) discute que a visão do senso comum e de muitas teorias científicas,
em relação ao desvio, parte da premissa de que algo inerentemente desviante, sem
questionar os rótulos e os valores do grupo que faz o julgamento. Nesse caso, as teorias e a
compreensão sobre o desvio ficam limitadas pela cristalização da visão naturalista da surdez.
O presente trabalho, ao contrário, considera o homem como um ser social e
histórico, discordando desse olhar naturalista e medicalizado da surdez.
Becker (1977) também apresenta algumas perspectivas sobre o conceito de desvio.
A primeira delas é chamada de visão estatística, considerada a perspectiva mais simples, que
define como desviante “qualquer coisa que varie de forma muito ampla em relação à média”.
(p.56)
Uma outra visão, menos simples, é aquela que identifica o desvio como patológico,
repousando sobre essa visão medicalizada e clínica.
Uma outra perspectiva, colocada por Becker (1977), é a de que alguns sociólogos
acabam também usando um modelo de desvio baseado nas noções médicas ao identificarem o
desvio como sintoma exclusivo da desorganização social.
Becker (1977) defende a idéia de que “o desvio é criado pela sociedade, ou seja,
socialmente construído, o que não significa que as causas do desvio estão na situação social
26
do desviante ou nos ‘fatores sociais’, e sim, que os grupos sociais criam o desvio ao fazer as
regras cuja infração constitui desvio e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-
las como marginais e desviantes.” (p.60).
Por fim, Becker (1977, p.60) propõe sua visão de desvio: “[...] encararei o desvio
como produto de uma transação que ocorre entre algum grupo social e alguém que é encarado
por aquele grupo como um infrator de regras [...].”
É importante ainda explicar que a construção das regras e do desvio tem
essencialmente representado relações de poder, que, no caso dos surdos, tornam-se
socialmente desfavorecidos em relação aos ouvintes.
Becker (1977) sobre esta questão ressalta:
Diferenças na capacidade de fazer regras e de aplicá-las a outras pessoas
representam, essencialmente, diferenciais de poder. Aqueles grupos cuja posição
social lhes confere armas e poder são mais capazes para impor suas regras.
Distinções de idade, sexo, etnia e classe estão todas relacionadas a diferenças de
poder, que explicam diferenças no grau em que os grupos assim diferenciados
podem fazer regras para os outros (p.67).
A questão do desvio foi discutida devido ao fato dos surdos na maioria das vezes
serem considerados como desviantes, dentro de regras que foram construídas pelos ouvintes.
Os surdos, por participarem e estudarem em uma escola preparada para ouvintes, não
possuem espaços de interlocução e, consequentemente, têm dificuldade na acessibilidade do
currículo escolar. O contexto educacional, envolvido e influenciado pela cultura ouvinte, não
questiona sua prática e atribui o fracasso escolar do surdo ao surdo, dificultando o seu
desenvolvimento e excluindo-o socialmente. A surdez, nesse caso, é vista como uma doença
ou mesmo uma patologia, pela qual o surdo é caracterizado como um ser em falta, como um
deficiente.
Essas visões estão relacionadas ao que Skliar (1997) entende como modelo clínico-
terapêutico sobre a surdez, que afirma que a surdez, chamada de “deficiência auditiva”, e
certos problemas emocionais, lingüísticos e intelectuais, são considerados inerentes e comuns
a todas as crianças, jovens e adultos surdos do mundo inteiro. Percebe-se uma tendência à
homogeneidade e à biologização da população surda, que é julgada como inferior em relação
à ouvinte.
A visão de surdez como “deficiência auditiva” a relaciona ao processo de correção e
reabilitação da fala, nesse contexto, Cruz (2008, p.133) apresenta conceitos sobre o vocábulo
27
deficiente: “O vocábulo deficiente traz em sua raiz latina o significado de fadiga,
esgotamento, defecção, defeito, incompletude, desertor, traidor, diminuído, abandono, revolta,
abalar, desanimar, perder as forças, transgredir [...] e, em sua raiz grega, deficiente é falta,
imperfeição numa obra, insuficiência”.
Percebe-se que os vocábulos pertinentes à deficiência refletem e envolvem conceitos
clínicos, corretivos e medicalizados, pressupondo uma busca à reparação, reabilitação e cura.
Compreender o surdo neste referencial é negar a surdez como diferença e compartilhar da
visão de surdez proposta pelo modelo clínico-terapêutico.
Em relação a esse modelo Skliar (1997) explica:
Medicalizar a surdez significa orientar toda a atenção à cura do problema auditivo, à
correção de defeitos da fala, ao treinamento de certas habilidades menores, como a
leitura labial e a articulação, mais que a interiorização de instrumentos culturais
significativos, como a Língua de Sinais. E significa também opor e dar prioridade ao
poderoso discurso da medicina frente à débil mensagem da pedagogia, explicitando
que é mais importante esperar a cura medicinal encarnada atualmente nos
implantes cocleares que compensar o déficit de audição através de mecanismos
psicológicos funcionalmente equivalentes (p.111).
O Oralismo, filosofia educacional, representa e compartilha desta visão, sustentando
a idéia de que a Língua de Sinais não constitui um verdadeiro sistema linguístico,
conceituando-a como um sistema de gestos sem estrutura gramatical e que impede a
aprendizagem da língua oral.
Segundo Goldfeld (1997, p.31) “O Oralismo percebe a surdez como uma deficiência
que deve ser minimizada através da estimulação auditiva. Ou seja, o objetivo do Oralismo é
fazer uma reabilitação da criança em direção à normalidade, à ‘não-surdez’”.
Esta visão sobre a surdez, segundo as idéias de Goldfeld, baseia-se em metodologias
que acreditam na reabilitação, estimulação auditiva precoce, leitura orofacial e oralização,
rejeitando qualquer forma de gestualização, bem como a língua de sinais.
Ainda em relação a esta visão, Goldfeld (1997, p.34) ressalta que no Oralismo: “o
surdo que consegue dominar as regras da Língua Portuguesa e consegue falar (oralizar) é
considerado bem-sucedido. O Oralismo espera que, dominando a língua oral, o surdo esteja
apto para se integrar à comunidade ouvinte”.
Outra filosofia educacional, a Comunicação Total, em oposição ao Oralismo,
acredita, que não é somente a aprendizagem da língua oral que garante o desenvolvimento do
surdo.
28
Em relação a esta filosofia educacional Goldfeld (1997) discute que:
A filosofia da Comunicação Total tem como principal preocupação os processos
comunicativos entre surdos e surdos e entre surdos e ouvintes. Esta filosofia também
se preocupa com a aprendizagem da língua oral pela criança surda, mas acredita que
os aspectos cognitivos, emocionais e sociais não devem ser deixados de lado em prol
do aprendizado exclusivo da língua oral. Por este motivo, essa filosofia defende a
utilização de recursos espaço-visuais como facilitadores da comunicação (p. 35).
A diferença entre a Comunicação Total e as outras filosofias educacionais oralistas é
o fato dela defender o uso de qualquer recurso lingüístico e recomenda a comunicação
simultânea através de códigos manuais que seguem a estrutura gramatical da língua oral.
Diferentemente, a língua de sinais possui sua gramática própria, surgiu de forma espontânea na
comunidade surda, ou seja, é uma língua natural e carrega uma cultura própria.
Segundo Goldfeld (1997, p.39) “A Comunicação Total demonstra uma eficácia maior
em relação ao Oralismo, que leva em consideração aspectos do desenvolvimento infantil e
ressalta o papel fundamental dos pais ouvintes na educação de seus filhos surdos”.
Considerando as idéias de desvio e de surdez serem criadas pela sociedade, neste
estudo a surdez é assumida como um fenômeno socialmente construído, contrariando essas
visões apresentadas, isto é, optou-se por uma outra forma de compreender o surdo, com um
olhar diferenciado do modelo clínico-terapêutico, que é a perspectiva cioantropológica da
surdez, discutida por Skliar (1997).
Skliar (1997) discute que os surdos fazem parte de uma comunidade lingüística
minoritária, caracterizada pela língua de sinais, valores culturais, hábitos e socialização
próprios.
A comunidade surda reconhece a língua de sinais como essencial para o
desenvolvimento linguístico, comunicativo e cognitivo dos surdos e tem um olhar diferente
frente à surdez, reconhecendo-a como uma diferença e não a considerando como um desvio
da normalidade.
Em relação à comunidade surda Klein e Lunardi (2006) destacaram que nos últimos
anos, após décadas de discursos e práticas institucionais de patologização, reabilitação e
normalização, movimentos de resistência foram se construindo por sujeitos surdos que tinham
a necessidade de encontrar nas comunidades o compartilhamento da mesma língua e valores
culturais comuns.
29
“Esses movimentos de afirmação de culturas surdas têm se apresentado, na maioria
das vezes, como forma de cristalização de um ideal onde a essência da cultura é algo a ser
buscado no contato e na aproximação entre esses sujeitos” (KLEIN E LUNARDI, 2006,
p.16).
A comunidade surda, através de suas manifestações, apresenta esse movimento de
denúncia e de resistência, ou seja, um projeto político que possibilita aos surdos o cultivo de
sua língua e cultura próprias.
A existência da língua de sinais como língua natural da comunidade surda
(FERREIRA, 2003), a possibilidade de um espaço de interlocução através dela e o
reconhecimento da comunidade permitem que o surdo não seja visto como deficiente.
Essas idéias e conceitos estão ligados à filosofia do Bilinguismo que, de acordo com
Goldfeld (1997, p.39): “[...] tem como pressuposto básico que o surdo deve ser bilíngue, ou
seja, deve adquirir como língua materna a língua de sinais, que é considerada a língua natural
desse grupo e, como segunda língua a língua oficial de seu país.”.
Estas idéias concordam com Skliar (1997, p.144) quando discute sobre a proposta
bilíngue bicultural, isto é, a utilização de duas línguas no contexto educativo: “O modelo
bilíngue propõe, então, dar acesso à criança surda às mesmas possibilidades psicolinguísticas
que tem a ouvinte. Se desta maneira que a criança surda poderá atualizar suas
capacidades lingüístico - comunicativas, desenvolver sua identidade cultural e aprender”.
Essa visão de surdez rejeita a ideia de o surdo aprender a modalidade oral para se
aproximar ao máximo do padrão de normalidade.
Em relação à aquisição da linguagem Goldfeld (1997, p.40) ressalta: “[...] o
Bilingüismo afirma que a criança surda deve adquirir como língua materna, a língua de sinais.
Esta aquisição deve ocorrer, preferencialmente através do convívio da criança surda com
outros surdos mais velhos, que dominem a língua de sinais.”.
A partir da caracterização das filosofias educacionais apresentadas: Oralismo,
Comunicação Total e Bilinguismo, observa-se que estas possuem visões diferentes sobre a
surdez que geram consequentemente, posições teóricas divergentes. O presente trabalho
trouxe uma análise crítica das filosofias educacionais e assume um embasamento teórico à luz
da visão sócioantropológica da surdez, proposta por Skliar (1997).
A visão sócioantropológica é um olhar sobre a surdez que considera o surdo como
uma pessoa que apresenta uma diferença linguística e não uma deficiência na comunicação,
que contempla o aluno surdo como uma pessoa com cultura e língua próprias e não como um
deficiente, comparando-o com os ouvintes.
30
Esta nova visão, em que se valoriza a história, cultura e identidade, parte de uma
nova concepção na qual a surdez passa a ser uma diferença e não uma deficiência como
relatam Skliar e Lunardi (2000): “A surdez como diferença nega uma atribuição puramente
externa do ser surdo a alguma característica marcante, como por exemplo, não ouvir. A
diferença não deve ser entendida como uma oposição (surdo como contrário e negativo de
ouvinte)” (p.20).
Partindo desse principio sócioantropológico, as escolas brasileiras precisam
concretizar uma educação bilíngue, ou seja, viabilizar a Libras e o Português escrito no
contexto escolar, construindo, dessa forma, o desenvolvimento cognitivo, a autoimagem do
surdo de forma positiva e o acesso ao currículo e contexto escolar.
Adicionalmente, com relação às pessoas com necessidades educacionais especiais,
vários documentos internacionais têm declarado os seus direitos.
Um deles é a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) que enfatiza a importância
da inclusão, do acesso das crianças e jovens com necessidades educacionais especiais às
escolas regulares, as quais devem se adequar a cada uma das necessidades.
Especificamente em relação ao surdo, essa situação pode ser bem ilustrada. Por
exemplo, o Decreto que regulamenta a Lei 10.436 de 24 de abril de 2002 e o artigo 18 da Lei
10.098 de 19 de dezembro de 2000 (BRASIL, 2002) que dispõe sobre a Língua Brasileira de
Sinais Libras, institui, em seu capítulo IV, o uso e a difusão da Libras para o acesso das
pessoas surdas à educação. Apesar das garantias previstas, ainda é muito incipiente a
realização de uma prática inclusiva que garanta o acesso das pessoas surdas à educação e ao
currículo.
Pela lei, a presença de tradutor e intérprete de Libras-Língua Portuguesa é condição
essencial para o acesso das pessoas surdas aos conteúdos curriculares, após a série do
Ensino Fundamental. No entanto, a grande maioria das escolas ainda não conta com a
presença desse profissional, mantendo o sofrimento do surdo, as dificuldades e,
consequentemente, o desânimo, a evasão escolar e, principalmente, o isolamento. Os surdos,
nas escolas, continuam sendo vistos como deficientes, ou seja, como seres em falta,
comparados com os ouvintes, quando deveriam ser compreendidos como diferentes, por sua
língua e cultura próprias (CRUZ e DIAS, 2008).
É importante ressaltar ainda como legislação atual em relação à educação inclusiva a
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).
31
A política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva que
tem como objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência,
transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação,
orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com
participação, aprendizagem e continuidade nos veis mais elevados do ensino;
transversalidade da modalidade de educação especial desde a educação infantil até a
educação superior; oferta do atendimento educacional especializado; formação de
professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da
educação para a inclusão; participação da família e da comunidade; acessibilidade
arquitetônica, nos transportes, nos mobiliários, nas comunicações e informação; e
articulação intersetorial na implementação das políticas públicas (p. 14).
Por fim, a presença na escola do professor surdo, da língua de sinais, do intérprete,
do professor de Português como segunda ngua e de uma pedagogia embasada em
características visuais do aluno são, para os surdos, os caminhos mais adequados para garantir
o seu desenvolvimento educacional. E, apesar de na maioria das vezes, estas condições não
estarem presentes no contexto educativo e social, caminhos devem ser trilhados com uma
parceria entre família e escola, buscando juntas conquistar e construir uma realidade
democrática e justa para o surdo.
32
SEÇÃO 2.1
A INCLUSÃO DOS SURDOS E A PERSPECTIVA
MULTICULTURAL CRÍTICA
O objetivo deste trabalho, além de uma posição sócioantropológica da surdez,
também pretende contribuir para proposições políticas de transformações sociais, visando à
comunidade surda.
Pensando em transformações sociais é necessário conhecer o movimento de inclusão
social que propõe uma reorganização da escola na sua estrutura, valores e relações de poder
como discutido por Dias (2006, p. 47):
Esse movimento, além de buscar importantes transformações sociais, tem por base o
reconhecimento e a aceitação da pluralidade social, ou seja, construir condições para
que as pessoas, com suas diferenças, possam se desenvolver e usufruir
oportunidades semelhantes na vida social.
Conforme aponta Mendes (2004, p.61):" Trata-se, em suma, de um movimento de
resistência contra a exclusão social, que historicamente vem afetando grupos minoritários,
caracterizado por movimentos sociais que visam à conquista do exercício do direito ao acesso
a recursos e serviços da sociedade”.
Para entender melhor o movimento de inclusão escolar, Dias (2006) chama a atenção
sobre saber que o mesmo decorre de um movimento mais amplo, mundial, a inclusão social. (
p.47).
O percurso da inclusão escolar depara-se com dificuldades e ambiguidades que
dificultam a construção da igualdade social. Nesse campo de dificuldades e ambigüidades é
importante refletir sobre as oposições binárias socialmente construídas, tais como:
ouvinte/surdo, vidente/cego, branco/negro, entre outros, que levam a um caminho de
privilégio a alguns e discriminação e exclusão social, outros (classe minoritária) (DIAS,
2006).
Em relação às oposições binárias, Dias (2006) discute sobre a necessidade de
problematizar os binarismos e analisar essas relações como sendo as raízes da exclusão social,
como sugere Veiga - Neto (2001).
Percebe-se que dentro do movimento de inclusão escolar e, especificamente falando
sobre as dificuldades da realidade escolar, em relação ao processo educacional dos surdos,
33
prevalecem binarismos (surdo/ouvinte, normal/anormal) que geram a visão da surdez como
deficiência. A construção desses binarismos reflete relações de poder que se manifestam nas
práticas sociais e educacionais e que devem ser questionadas por uma crítica radical, isto é,
criticar a construção social desses binarismos que é, em última análise, assumir uma postura
política.
Em relação a esse reconhecimento político da surdez a pedagogia crítica que
reconhece a importância das lutas sociais, olha criticamente as relações de poder e reconhece
que todos somos sujeitos da história e que ela depende de todos nós.
Um representante da pedagogia crítica é McLarem (2000), que analisa as instituições
escolares e aponta as repercussões da sociedade de classes e as discriminações de gênero e de
raça. Destaca as possibilidades de uma educação multicultural a partir de uma concepção
crítica do multiculturalismo.
Segundo essse autor, existem várias concepções de multiculturalismo que vão do
humanismo liberal conservador ao humanismo crítico e de resistência.
McLarem (2000, p.111) discute que “As primeiras tendências do multiculturalismo
conservador podem ser encontradas naquelas visões que estiveram fundamentadas nas
atitudes profundamente auto- elogiosas, auto - justificatórias e profundamente imperialistas
dos europeus e norte-americanos”.
Segundo este autor, os multiculturalistas conservadores disfarçam a igualdade
cognitiva de todas as raças, acusa grupos minoritários e não questiona o conhecimento
elitizado.
Complementando as diferentes concepções de multiculturalismo, há o humanista
liberal que, segundo McLarem (2000, p.119): “Diferente das concepções conservadoras, esta
outra postura multicultural acredita que as restrições econômicas e socioculturais existentes,
podem ser modificadas e reformadas com o objetivo de alcançar uma igualdade relativa”.
Outra concepção de multiculturalismo é o liberal de esquerda que destaca a diferença
cultural e sugere que a igualdade das raças encobre diferenças culturais importantes, tratando
a diferença como “essência”.
Percebe-se que as posições, humanista liberal e liberal de esquerda estão limitadas ao
discurso e não propõem um projeto de transformação social. Neste sentido, McLarem (2000)
ressalta que: “As posições liberais e conservadoras assumem que a justiça existe e precisa ser
apenas distribuída igualitariamente” (p.126), isto é, a justiça precisa ser distribuída de maneira
que todos possam ter acesso a ela, mas não propõem nenhum programa para que isso
aconteça. Permanecem no discurso, sem se concretizar.
34
Na verdade, a justiça social deve ser construída por meio de uma luta constante. Um
exemplo são as leis que propõem o acesso de pessoas diferentes no ensino e que não são
concretizadas na prática.
Esse processo de inclusão tem apresentado dificuldades de implantação no contexto
escolar. Ou seja, mesmo diante da obrigatoriedade colocada por várias leis, a LDB, Lei de
Libras, Declaração de Salamanca, entre outras, muitos surdos encontram-se à margem da
escola.
Sobre a marginalização do aluno surdo, Skliar (1998, p.7) discute as práticas
educacionais:
As idéias dominantes, nos últimos cem anos, são um claro testemunho do sentido
comum segundo o qual os surdos correspondem, se encaixam e se adaptam com
naturalidade a um modelo de medicalização da surdez, numa versão que amplifica e
exagera os mecanismos da pedagogia corretiva, instaurada nos princípios do século
XX e vigente até os nossos dias.
Machado (2006) complementa a posição de Skliar ao esclarecer que diferentes
práticas pedagógicas, na educação dos surdos, apresentam uma série de limitações, levando
esses alunos a não desenvolverem satisfatoriamente a leitura e a escrita na língua portuguesa.
(p.40)
O fato não está em recusar tentativas de inserção dos surdos, e sim, em banalizar o
processo de inclusão do surdo na escola e se limitar ao fato de colocá-los fisicamente no
ensino regular, optando por modelos pedagógicos hegemônicos.
Machado (2006) em relação a estes aspectos ressalta que: “Esse modelo ainda
hegemônico, em síntese, pauta-se por uma atitude “normalizadora”, em que as diversas
formas de educação de surdos têm a intenção de ouvintizar, ou seja, de fazê-los parecer como
ouvintes “p.41).
Skliar (1998, p.15) discute e conceitua o ouvintismo: “Trata-se de um conjunto de
representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e narrar-se como
se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que acontecem as percepções
do ser deficiente, do não ser ouvinte; percepções que legitimam as práticas terapêuticas
habituais.”.
É importante ressaltar que o ouvintismo está representado no espaço escolar como
uma forma de colonização do currículo, impondo pré-requisitos derivados da língua oral para
um possível e hipotético progresso na escolarização. ( SKLIAR,1998).
35
A escola, nessa perspectiva, é entendida como espaço de tolerância para com os
diferentes e limita a experiência do surdo na convivência com os colegas ouvintes e não se
empenha em promover condições para a aquisição do conhecimento necessário a uma
aprendizagem com qualidade e para a efetivação de uma inclusão social.
Percebe-se que as ambigüidades e dificuldades no processo de educação do surdo e
de inclusão escolar podem impedir a superação da exclusão social se estes não tiverem
organizadas dentro de uma visão crítica e comprometidas com a justiça social.
Essas atitudes estão baseadas na visão do multiculturalismo crítico que discute que a
diversidade deve estar dentro de uma política crítica e pautada na igualdade social.
McLarem (2000) ressalta que: “O multiculturalismo crítico um passo à frente ao
assumir que todas as representações são as resultadas de lutas sociais sobre significantes e
significados” (p.132).
Isto significa que as relações de poder devem ser consideradas e deve-se ir além de
apenas problematizar incessantemente a diferença. Precisa-se intervir criticamente nas
relações de poder que organizaram as diferenças e os binarismos, construir uma política de
consolidação de alianças e de transformação das relações sociais.
Essas transformações estão pautadas não apenas em compreender uma mudança
metodológica dentro do paradigma da escolarização, ou seja, não está no quanto os projetos
pedagógicos se distanciam do modelo hegemônico, mas, no quanto realmente se aproximam
de uma visão crítica que propõe uma mudança de paradigmas, de valores e de práticas que
alicerçarão uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.
Diante dessas considerações, o presente estudo buscou realizar uma análise crítica
sobre as condições do surdo e da surdez em nossa sociedade em um grupo de apoio aos
familiares de surdos, descrevendo, analisando e situando as relações no grupo e o seu
desenvolvimento. Além disso, buscou-se analisar se as ações do grupo pautadas dentro de
uma perspectiva crítica, que busca ir além do discurso, e se essa coletividade pode
transformar as relações de poder na luta pelos direitos dos surdos.
36
SEÇÃO 3
O DESENVOLVIMENTO DO GRUPO
A presente seção pretende apresentar a filosofia como método de investigação e
explicação do grupo, pautado em algumas idéias sartreanas.
Inicialmente, é necessário pontuar alguns nomes importantes e marcantes da filosofia
no decorrer dos séculos. Segundo Sartre (1972) entre o século XVII e o século XX, existem
três nomes célebres: o “momento” de Descartes e de Locke, o de Kant e de Hegel e,
finalmente o de Marx.
“Estas três filosofias tornam-se, cada uma por sua vez, o humo de todo o pensamento
particular e o horizonte de toda a cultura, elas são insuperáveis enquanto o momento histórico
de que são expressão não tiver sido superado” (SARTRE, 1972, p.12).
Percebe-se que de fato o que são filosofias que permanecem eficazes enquanto
mantêm-se vivas, enquanto vivem a práxis que as construíram, as sustentam e são por elas
iluminadas (SARTRE, 1972).
Em relação a este aspecto, Sartre (1972) pontua que:
É que uma filosofia, quando está em sua plena virulência, não se apresenta nunca
como uma coisa inerte, como a unidade passiva e terminada do Saber; nascida do
movimento social, ela própria é movimento e morde o futuro: esta totalização
concreta é, ao mesmo tempo, o projeto abstrato de prosseguir a unificação até seus
últimos limites; sob este aspecto, a filosofia caracteriza-se como um método de
investigação e de explicação; a confiança que tem em si mesmo e no seu
desenvolvimento futuro apenas reproduz as certezas da classe que a sustenta. (p.10).
Percebe-se, pois, que o método pode ser uma arma social e política, um instrumento
coletivo de emancipação que se transforma. Em relação a essa transformação, Sartre (1972,
p.20) mostra que: “por sua presença real, uma filosofia transforma as estruturas do Saber,
suscita ideias e, mesmo quando define as perspectivas práticas de uma classe explorada,
polariza a cultura das classes dirigentes e modifica-a”.
Em relação ao marxismo Sartre (1972) aponta que:
Assim, o marxismo como filosofia ‘tornada mundo” nos arrancava da cultura
defunta de uma burguesia que vegetava sobre seu passado, enveredávamos ás cegas
na via perigosa de um realismo pluralista que visava o homem e as coisas na sua
existência “concreta”. Entretanto, permanecíamos no quadro das “idéias
37
dominantes”: o homem que queríamos conhecer na sua vida real, não tinha ainda a
idéia de considerá-lo, de início, como um trabalhador que produz as condições de
sua vida. (p.22).
O marxismo, então, enquanto interpretação filosófica do homem e da história, busca
a práxis, transformação, movimento dialético (contradições, superações, totalizações).
reflexão sobre opiniões pré-concebidas, ou seja, como citado acima por Sartre, um homem
que produz as condições de sua vida.
E o presente trabalho buscou através das idéias de Sartre realizar uma análise do
movimento de um grupo de familiares de surdos que busca transformações, através de um
movimento dialético, uma ação coletiva organizada que visa à emancipação na luta pelos
direitos dos surdos.
Na próxima seção, será discutido especificamente um estudo da práxis de familiares
de surdos baseado nas ideias de Sartre apresentado por Reboredo (1995).
38
SEÇÃO 3.1
O GRUPO EM MOVIMENTO
As contribuições de Reboredo (1995), que partem do pressuposto de que o
movimento grupal é o espaço de transformação das relações sociais, vêm ao encontro da
proposta deste trabalho com as famílias dos surdos. Como discutido no capítulo anterior, a
família é vista como uma instituição essencial para o fortalecimento e a criação de condições
que permitam a organização de intervenções que garantam a igualdade de oportunidades para
os surdos, evitando seu sofrimento e isolamento social. Para essa pesquisadora: ”A ação
coletiva organizada é produto de organizações onde indivíduos se agrupam para discutirem
interesses individuais ou coletivos, dependendo do seu compromisso político e da sua
conscientização” (p.12).
Para compreender esse processo do desenvolvimento grupal, Reboredo (1995) expõe
as noções de Sartre sobre dialética, práxis, mediação e grupo, visando fornecer elementos para
a análise do movimento grupal.
Reboredo (1995) explica que a proposição de Sartre é pensar a dialética como um
movimento de criação em que a humanização do homem se faz pela mediação do grupo. Para
o autor, “o dualismo matéria-espírito, se supera na práxis da dialética humana realizada pelo
homem” (p. 30).
Sartre (1970) procura reafirmar a dialética na perspectiva do materialismo histórico,
baseando-se em cinco condições: a primeira considera a dialética como racionalidade da
práxis, como tal deve ser a aventura de todos e a liberdade de cada um, como experiência e
como necessidade. A segunda condição consiste em que a única possibilidade que exista
dialética é que ela mesma seja dialética, ou seja, não se deve partir a priori do objetivismo ou
subjetivismo, mas da dialética, na qual se descobre o ser e o conhecer. A subjetividade e a
objetividade coexistem e se delimitam. A terceira condição afirma que os homens fazem a
história sobre as bases de condições anteriores; isto significa a negação de influência de
fatores, somente naturais, evitando a reificação do homem. A quarta condição é a
humanização da natureza através do grupo, ou seja, existe um movimento constante de
totalização no qual, de um lado se humaniza a natureza e por outro se humaniza o homem.
Sartre afirma que “sem o conhecimento, qualquer que seja sua forma, a relação do homem
com o mundo, não existe”. A quinta posição defende a dialética como razão e não uma lei
cega, isto é, a dialética não é uma vontade divina ou uma força oculta atrás da história, mas
39
um movimento que desvenda o processo humano, ou seja, que nenhuma natureza original o
determina (p.30).
Sartre (1970) ao analisar o grupo como constituído pela práxis de indivíduos,
introduz o conceito de práxis-processo e, ao discutí-la, o relevante é mostrar os momentos que
transformam as séries (agrupamentos) em grupos e os grupos em séries. A práxis-processo
nada mais é do que a passagem do homem/Serialidade (agrupamentos) ao homem-grupo
(ação coletiva organizada). As proposições sartreanas de que todo agrupamento (série) tem a
possibilidade de evoluir para a condição de grupo, são reconhecidas na análise do empírico da
ação grupal.
Percebe-se que a dialética sartreana dos grupos diz respeito a um constante
movimento, uma constante luta de tensionamentos, com o objetivo nunca acabado de
totalização. No estudo de um grupo é necessário e significante pensar a práxis, que para Sartre
(1970), é pensada na dimensão epistemológica do materialismo histórico, ou seja, “o homem
conhece a realidade ao transformá-la” (p.33).
Segundo Reboredo (1995, p.33) “a posição de que o homem desvela o mundo, ao
modificá-lo, coloca a práxis como dimensão fundamental para o conhecimento da realidade e
materialização do compromisso político de transformá-lo.” Ao discutir a práxis na teoria
sobre grupos, ela explica:
A práxis é a expressão concreta, o atuar da dialética; a práxis, ao exercer-se sobre a
materialidade, condiciona as relações humanas e, por sua vez, a relação com as
coisas que aparecem através do grupo humano. A práxis é uma dupla mediação que
leva a interiorizar o exterior (as coisas) e exteriorizar o interior (relações humanas).
Observa-se, então, como a práxis é dialética e como a dupla mediação possibilita as
relações entre os homens. (p.158).
Reboredo (1995), dentro da visão sartreana identifica a mediação como um
“processo de investigação do Eu/Tu através do grupo” (p.35), uma tarefa comum em
movimento, existindo dois momentos de mediação, o primeiro, quando o grupo é o “terceiro
mediador” e o segundo momento, quando cada integrante funciona como “terceiro mediador”.
(p.35)
Em relação aos terceiros mediadores Reboredo (1995) destaca:
As condições que possibilitam o surgimento dos ‘terceiros mediadores’ não dizem
respeito somente às características dos indivíduos, mas à existência de condições
materiais que garantiram a ação mediadora. A relação que os ‘terceiros mediadores’
40
mantêm com os outros membros e o grupo, descarta a relação destes com a figura do
líder, frequentemente utilizada nas teorias clássicas dos grupos. Enquanto o líder é o
instrumento da reprodução de relações alienadas no grupo, os “terceiros
mediadores” facilitam ao agrupamento transformar-se em grupo tirando seus
membros da condição de alienação, mantida pela relação do Eu e Tu, elevando-os à
condição do Nós que passa a ser o sujeito da ão grupal. (REBOREDO, 1995, p.36
e 37).
É importante ressaltar que a elevação dessa relação do Eu e Tu a Nós não é um
processo tranquilo, e sim um processo de luta e tensão constante da polaridade “dispersar-
constituir”. O que quer dizer que todo grupo tem condições de se transformar e,
especificamente neste trabalho, na situação dos surdos, isto significa ter no grupo de apoio aos
familiares um espaço que crie condições para que a relação Eu e Tu eleve-se à condição do
Nós, se neste processo, o grupo buscar atuar e contribuir com a formulação de um projeto
político no qual o surdo não seja condenado a viver o isolamento social, ou seja, tenha
igualdade de oportunidades, tanto no âmbito educacional como profissional ou social.
Sejam grupos de familiares de surdos, de homossexuais, de pais de cegos,
cadeirantes, qualquer um destes, para Reboredo (1995, p.37):
O grupo é um devir no qual os indivíduos são possibilidades de se tornarem sujeitos
históricos à medida que superam a condição de isolamento e alienação do Eu e Tu e
se organizam nas ações coletivas para materializarem o projeto individual-histórico.
Na luta para a realização destes projetos, o indivíduo estabelece relações, onde são
tecidos novos valores e novos projetos políticos.
Uma vez que são tecidas novas relações, é importante ressaltar que esse resultado
novo é sentido como próprio, pois é o resultado de uma ação multiplicada por todos, um
resultado que chega à reciprocidade, estando desenvolvida a mediação que, segundo a ótica de
Reboredo (1995, p.35), “[...] é uma práxis, uma tarefa comum em movimento. A objetivação
da práxis do grupo me pertence como resultado comum.”. Ou, complementando:
A mediação na análise do grupo é a tentativa de captar o movimento do Eu-Tu-
Outro, ou seja, de investigar a relação ternária vivida no grupo, pois, segundo Sartre,
existe sempre entre o indivíduo e o grupo um terceiro, como também existe um
terceiro entre dois indivíduos e o grupo. Isto significa que no grupo, sob o prisma da
dialética, existe sempre um terceiro incluído. (REBOREDO, 1995, p.35).
Para Reboredo(1995) existem diferentes possibilidades de relação no grupo,
constituindo momentos que surgem por decisão dos membros do grupo.” Estes momentos
41
ocorrem e se desenvolvem, chegando aos seguintes, somente se cada integrante e o grupo
assumem e decidem alcançá-los” (p.38).
Reboredo (1995) cita Sartre e explica que cada momento condiciona o seguinte. A
passagem de um momento ao outro não é regida de forma linear e imutável, mas se constitui
em processo. O movimento grupal, captado nos momentos de Fusão, Juramento, Organização,
Fraternidade-Terror
1
e Institucionalização, busca tirar o grupo da condição da Serialidade e da
alienação. (p.38)
Segundo Reboredo (1995), a Serialidade é um tipo de relação humana, onde os
indivíduos são indiferenciados e podem facilmente ser substituídos por outros, pois todos são
indiferenciados. A individualidade confunde-se com individualismo e os indivíduos assumem
condição de ”coisas”. Neste sentido, a Serialidade consiste em relações entre indivíduos que
compõem uma série.
Na Serialidade, os indivíduos realizam no cotidiano a relação de solidão,
reciprocidade e unificação na exterioridade. Nesta situação, que os indivíduos são facilmente
substituídos, pois se reduzem a números numa série, contém as condições que possibilitam a
aglutinação e o movimento para constituir-se no grupo. Este coletivo empreende uma luta
constante, sem duração determinada, para sair da condição de alienação. Neste processo, a
alienação faz-se presente como parte da práxis humana, pois o indivíduo nasce na condição de
alienado e tem que lutar contra ela.
Superada a Serialidade e a alienação, cada indivíduo é para o outro como ele mesmo.
Não como “idênticos” ou “coisas” substituíveis, mas na “dimensão humana”. Em outras
palavras, ocorre a interiorização do outro como sujeito. O movimento contra a
alienação/Serialidade, que constrói as relações de reciprocidade, é a práxis, na qual se
expressa a relação fundamental do homem com o meio.
Neste movimento, a Fusão constitui-se no primeiro momento após a superação da
Serialidade. Na Fusão, supera-se a inércia que condiciona o afastamento e a solidão dos
indivíduos. Para a consolidação deste momento, é necessário um espaço em um campo
espacial próprio, unificado pelos participantes. No processo grupal, a Fusão é o momento em
que o grupo tem consciência da tarefa comum e cada um depende do outro. Na Fusão, o grupo
ainda não se consolidou, mas segundo Sartre, a unidade está presente.
Para Reboredo (1995), ocorrem práticas reflexivas para a manutenção do grupo e a
relação de seus membros, constituindo-se em uma comunidade que atua sobre si. Neste
1
Fases grupais que serão explicadas posteriormente nesta seção.
42
momento, segundo Sartre, “cada um é ele mesmo” representando a livre constituição da
práxis individual em práxis comum.
Na espiral dialética do movimento grupal, o Juramento caracteriza-se como o
momento no qual os indivíduos vivem mais intensamente, que na Fusão, a condição de
pertinência ao grupo. Sartre define o Juramento como a reciprocidade mediada, que não pode
ser confundida com um contrato, mas sim como maneira de evitar a dispersão. Cada
Juramento está condicionado por todos, sendo o reconhecimento, em cada um, de seu
compromisso e de sua liberdade comprometida, reafirmando a pertinência ao grupo como um
compromisso de não - retorno à liberdade individual da alienação. “O estabelecimento de
instrumentos reguladores de ações, individuais e coletivas, que impeçam a dispersão do
grupo, cria o sentimento de ‘somos todos irmãos” (p.44) pelo Juramento.
A criação do estatuto como regulador das ações sobrepõe-se a qualquer medida
baseada no poder jurídico. Este momento do processo, na busca da totalização, engendra as
condições que asseguram o momento da Organização.
Ao conceituar o grupo organizado, Sartre ressalta o estabelecimento da Organização
interna e o reencontro com a Organização do poder interno. O grupo prioriza a questão do
poder, tomando consciência de sua unidade prática, com a perspectiva do objetivo
conscientemente perseguido. A necessidade da divisão das tarefas e o enfrentamento do poder
criam uma situação de perigo para a soberania de todos.
O momento da Fraternidade-Terror começa a esboçar-se quando o grupo entra na
fase de Organização, mas o seu germe está no Juramento onde o temor pela dispersão é
constante. Neste momento, o grupo procura controlar as possibilidades de fuga, de desvio e de
não participação, tomando medidas mais duras do que as dos momentos anteriores. Busca-se
uma condição que deve evitar, de todas as formas, a dispersão, ou seja, a Serialidade.
O momento da Fraternidade-Terror pode ser compreendido como o retorno do grupo
ao projeto normativo das relações de seus membros, enfrentado, anteriormente, no Juramento.
A Institucionalização significa a separação dos membros do grupo. A diversidade de
tarefas impõe a cisão e a especialização. Esta realidade esboçava-se desde a Organização. Isto
significa a consolidação de subgrupos e a possibilidade de dispersão. A questão do poder é
recolocada em virtude de sua concentração nos indivíduos que se encarregam de determinadas
funções. A estratificação é gerada pela especialização, o que significa que é difícil
“reconhecer-se no outro como sendo exatamente o mesmo”. A Institucionalização para Sartre
seria a “morte do grupo”
(p.46).
43
A inevitável cristalização destas relações, que levam à “morte do grupo”, não
significa uma fatalidade, pois sob a ótica processual a “morte do grupo”, que significa
também a “morte” de relações, engendra novas formas de organização e de relações que
devem permanecer enquanto forem úteis aos indivíduos. Sartre chama a atenção para essa
questão, ao discutir a necessidade de um chefe ou presidente para o grupo organizante, o
problema é a permanência em definitivo desta estrutura.
Na Organização, definição de funções que permitem a mobilidade grupal. Com a
Institucionalização, há a tendência de perder esta mobilidade. Assim, os membros do grupo
vivem tensões constantes de conviver com uma estrutura que pode levá-los à burocratização,
mas necessária para a sua práxis.
As proposições de Sartre sobre os momentos do processo grupal permitem conhecer
o grupo no seu devir, pois fornecem um método e instrumental teórico que contemplam a
totalidade neste devir, capturando suas mediações e assim resgatando o projeto individual-
coletivo na sua relação com a sociedade.
44
SEÇÃO 4
MÉTODO
Neste estudo, pelo fato de a pesquisadora participar de forma ativa no grupo, como
segunda coordenadora, foi realizada uma pesquisa-ação, com análise qualitativa.
Em relação à pesquisa-ação Thiollent (1947) coloca:
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e
realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema
coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou
do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. (p.14)
Os autores Bogdan e Biklen (1994, p.292) contribuem também em relação ao
conceito de pesquisa-ação: “A investigação-ação consiste na recolha de informações
sistemáticas com o objetivo de promover mudanças sociais. Os seus praticantes reúnem dados
ou provas para denunciar situações de injustiça ou perigos ambientais, com o objetivo de
apresentar recomendações tendentes à mudança”.
Tanto Thiollent (1947) quanto os autores citados acima, discutem o papel ativo dos
pesquisadores na pesquisa-ação no equacionamento dos problemas e a relação entre pessoas
da situação investigada e pesquisadores do tipo participativos.
A respeito dessa relação participativa, Thiollent (1947) destaca alguns aspectos
importantes da participação dos pesquisadores:
A participação dos pesquisadores é explicitada dentro da situação de investigação,
com os cuidados necessários para que haja reciprocidade por parte das pessoas e
grupos implicados nesta situação. Além disso, a participação dos pesquisadores não
deve chegar a substituir a atividade própria dos grupos e suas iniciativas (p. 16).
Um outro aspecto importante a ser destacado é a função política da pesquisa-ação,
que o presente trabalho analisa e descreve um grupo de familiares de surdos como um projeto
político, dentro de uma perspectiva de transformações das relações sociais.
Em relação a esse aspecto, Thiollent (1947) contribui quando discute a pesquisa-ação
como uma “investigação que está valorativamente inserida numa política de transformação”
(p.43).
Por fim, o presente trabalho, com a pesquisa-ação, pretende alcançar realizações,
ações efetivas, transformações e mudanças no campo social.
45
4.1 Instituição
O estudo foi realizado em uma Associação de Pais e Amigos de Surdos (APÁS), no
interior de São Paulo, a qual mantém parceria com uma escola de surdos localizada na mesma
cidade, realizando, juntas, o apoio aos surdos e aos seus familiares. Nesta instituição
acontecem encontros semanais com o grupo de familiares dos surdos que estudam na escola
de surdos, oferecendo curso de Libras, ministrados por um educador surdo no primeiro
momento, e, no segundo momento, o grupo é mediado por um psicólogo, chamado de
primeiro coordenador e, a pesquisadora, como segunda coordenadora.
Além desse atendimento, a instituição proporciona, aos surdos, atendimento
psicológico, fonaudiológico, fisioterapia e também disponibiliza o curso de Libras para a
comunidade.
46
4.2 Participantes
Participaram do estudo, familiares de surdos, identificados como: mãe, pai, irmãos e
tia de alunos surdos, o que significa que este especificamente é um grupo heterogêneo no qual
ficou mais viável a classificação como familiares. Para indicar que a participação no grupo é
de familiares de modo geral, estes foram indicados pela letra F maiúscula e por números de
acordo com o número de participantes: F1, F2, F3, F4 e assim sucessivamente. As letras
minúsculas estão relacionadas ao grau de parentesco: m para mãe, t para tia e p para pai. Os
filhos surdos receberam a letra S, maiúscula, com a numeração respectiva de seus familiares.
Quadro 1 - Classificação dos familiares e surdos participantes da pesquisa.
Classificação
Significado
S1 Filho (a) surdo (a) número um
F1m Mãe do (a) surdo (a) número um
F1t Tia do surdo (a) número um
S2 Filho (a) surdo (a) número dois
F2m Mãe do (a) surdo (a) número dois
F2p Pai do (a) surdo (a) número dois
S3 Filho (a) surdo (a) número três
F3m Mãe do (a) surdo (a) número três
F3p Pai do (a) surdo (a) número três
S4 Filho (a) surdo (a) número quatro
F4m Mãe do (a) surdo (a) número quatro
S5 Filho (a) surdo (a) número cinco
F5m Mãe do (a) surdo (a) número cinco
S6 Filho (a) surdo (a) número seis
F6m Mãe do (a) surdo (a) número seis
S7 Filho (a) surdo (a) número sete
F7m Mãe do (a) surdo (a) número sete
S8 Filho (a) surdo (a) número oito
F8m Mãe do (a) surdo (a) número oito
S9 Filho (a) surdo (a) número nove
F9p Pai do (a) surdo (a) número nove
S10 Filho (a) surdo (a) número 10
F11m Filho (a) surdo (a) número 11
OBS: O S10 foi citado, mas, ele e seus familiares não participaram do grupo no período da pesquisa.
47
O grupo de apoio aos familiares é um grupo aberto para a participação de familiares
de surdos que são ou não alunos da escola de surdos. Caracteriza-se como um coletivo que
não tem uma composição fixa constante, isto é, é um grupo composto por um número de
flutuantes, isto é, alguns familiares, ora apareciam nos encontros, ora estavam ausentes. O
número dos integrantes do grupo variava de 12 a 20 pessoas e, apesar desta flutuação dos
integrantes, foi possível identificar um núcleo de sujeitos, alguns familiares que participavam
dos encontros constantemente. Este núcleo assíduo de participantes contou com
aproximadamente 12 familiares, dentre os quais alguns participavam da diretoria da
Associação de Pais e Amigos de surdos, portanto estavam mais próximos da comunidade
surda e tinham uma participação ativa na luta pelo direito dos surdos.
Os filhos dos participantes do grupo de apoio aos familiares eram crianças,
adolescentes e adultos que frequentavam a escola de surdos.
Quadro 2 - Caracterização dos participantes
Classificação
Sexo Idade
Parentesco
Escolaridade
Aluno
Surdo
F1m
Feminino 42 Mãe Ensino
fundamental
incompleto
S1
F1t
Feminino 40 Tia Ensino
fundamental
incompleto
S1
F2m
Feminino 44 Mãe Ensino
fundamental
completo
S2
F2p
Masculino 52 Pai Ensino
fundamental
completo
S2
F3m
Feminino 50 Mãe Ensino
fundamental
incompleto
S3
F3p
Masculino 53 Pai Ensino
fundamental
incompleto
S3
F4m Feminino 35 Mãe Ensino
fundamental
incompleto
S4
F5m Feminino 30 Mãe Ensino
fundamental
incompleto
S5
F6m Feminino 33 Mãe Ensino médio
completo
S6
F7m Masculino 55 Pai Ensino
fundamental
S7
48
incompleto
F8m Feminino 48 Mãe Ensino
fundamental
incompleto
S8
F9p Masculino 54 Pai Ensino
fundamental
incompleto
S9
49
4.3 Procedimentos de coleta de dados
A coleta dos dados aconteceu entre os meses de março de 2008 e Julho de 2008
baseando-se no registro de 10 sessões.
O grupo encontrava-se quinzenalmente, com duração de 60 minutos, tendo como
primeiro coordenador o psicólogo da Instituição e, como segunda coordenadora a
pesquisadora. O grupo foi desenvolvido em dois momentos. No primeiro momento, foi
ensinada a Libras aos familiares junto com os surdos, no qual é propiciado um diálogo entre
familiares e surdos, construindo um espaço de interlocução.
Em um segundo momento, aconteceu o grupo de apoio aos familiares, em que
participaram apenas os familiares dos surdos, onde eram trazidos temas de forma espontânea
pelo grupo e trabalhados no próximo encontro, utilizando materiais relacionados. Esse
segundo momento foi o objeto deste estudo.
Para a elaboração do diário de campo foram utilizadas sugestões de Reboredo
(1992). Para Reboredo:
Na elaboração do diário de campo o pesquisador deve superar a mera descrição do
empírico e constituir-se no narrador que descreve o empírico e faz ensaios de
interpretação, tentando desvelar o concreto, ou seja, conhecer o movimento de
transformação do objeto de investigação (p.40).
Por conjugar a investigação e participação, o diário de campo mostrou-se um
instrumento necessário e importante para o registro dos dados.
Os dados foram obtidos a partir das seguintes ações:
1- Elaboração e assinatura de termo de consentimento (APÊNDICE I);
2- Registros em diário de campo com leitura posterior;
3- Registro da cédula de campo, que é o registro dos principais temas após a
leitura do diário de campo.
50
4.4. Procedimento de análise de dados
Durante a ocorrência de cada sessão do grupo de apoio aos familiares, surgiam
dúvidas e, consequentemente, temas que eram retomados pelo primeiro coordenador no
próximo encontro, trazendo textos, discussões e materiais relacionados a cada tema que
emergiu espontaneamente. Os temas trabalhados foram: a Lei de Libras, o acesso ao
currículo, o intérprete, a educação do surdo, a escola de ouvintes, a escola de surdos, entre
outros.
Foi realizada uma leitura do diário de campo e, na sequência, o preenchimento da
cédula de campo, sendo analisados os conteúdos e identificadas categorias, sob a ótica crítica
de grupos e sob a visão sócioantropológica da surdez, que permitiram compreender como
estava se desenvolvendo o grupo de familiares de surdos.
As categorias foram:
1-Visão sobre a surdez: refere-se aos familiares apresentarem ou uma visão clínico-
terapêutica da surdez ou uma visão sócioantropológica sobre esta.
2-Educação dos filhos surdos: refere-se aos pais relacionarem as facilidades ou
dificuldades na criação de seus filhos surdos.
3-Relacionamento dos surdos com a Libras como língua: refere-se à relação dos
surdos e dos familiares com a Libras, na perspectiva desses.
4-Surdez e educação: refere-se à visão que os pais têm do relacionamento entre a
escola e seu filho surdo.
5-Desenvolvimento do grupo: refere-se a analisar o grupo dentro de uma visão
sartreana, bem como descrever ações desenvolvidas pelo grupo e seus efeitos.
51
SEÇÃO 5
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados serão apresentados de acordo com as categorias identificadas no
decorrer do desenvolvimento do grupo de apoio aos familiares de surdos.
As narrativas retiradas do Diário de Campo se baseiam na redação da pesquisadora.
5.1 Quadro 03: Visão sobre a surdez
Exemplos Narrativas
1
A F1m comentou sobre uma reportagem em Monte Azul, em que uma
adolescente surda estava ensinando Libras para os alunos da classe. A
Maria colocou que seria interessante se um instrutor surdo estivesse
ensinando, mas, que já é um grande avanço.
2
A F3m disse que antes treinava o filho em frente ao espelho e que ele
“deslanchou” quando aprendeu Libras.
3
F4m diz que a sogra é testemunha de Jeová e que eles não comemoram
aniversário e que ela vai ao aniversário dos outros netos, menos no
aniversário do S4. Então, questionamos se era por ele ser o único neto
surdo e ela disse que achava que sim, mas que não tinha certeza.
4
A F5m disse que a filha participava de um projeto de artesanato e que
ela ensinava Libras. Teve que sair para ir a uma escola de ouvintes e,
sentiu muito, tanto ela quanto os professores. A F5m teve essa fala: “Ela
saiu do projeto para ir a uma escola ‘normal’, porque a S5 fala bem.”.
Observamos, por esses depoimentos que, embora a maioria dos familiares
modificaram a visão de surdez, alguns mantêm uma visão de surdez associada ao modelo
clínicoterapêutico.
A F5m, ao falar que a filha vai para uma escola “normal”, está assumindo a escola
de surdos como sendo para anormais, demonstrando uma visão frente à surdez chamada por
Skliar (1997) de modelo clínico-terapêutico, que se relaciona com a patologia, com o déficit
biológico e com estratégias e recursos de correção e reparação. É uma construção de surdez
baseada em olhar estatístico e de patologia.
Até agora, a escola de ouvintes, dentro do modelo clínico-terapêutico, não tem
criado condições e nem espaços de interlocução para os surdos e, estes acabam virando
“copistas”, sem compreender o conteúdo passado pela língua oral (PEDROSO, 2001).
52
Sobre esse aspecto, para entender melhor o movimento de inclusão escolar, Dias
(2006) chama a atenção sobre saber que o mesmo decorre de um movimento mais amplo,
mundial, a inclusão social (p.47).
Conforme aponta Mendes (2002 p.61): “Trata-se, em suma, de um movimento de
resistência contra a exclusão social, que historicamente vem afetando grupos minoritários,
caracterizado por movimentos sociais que visam à conquista do exercício do direito ao acesso
a recursos e serviços da sociedade”.
Percebe-se que dentro do movimento de inclusão escolar e, especificamente falando
sobre as dificuldades da realidade escolar, em relação ao processo educacional dos surdos,
prevalecem binarismos (surdo-ouvinte, normal-anormal) que geram a visão da surdez como
deficiência.
Em relação às oposições binárias, Dias (2006) discute sobre a necessidade de
problematizar os binarismos e analisar essas relações como sendo as raízes da exclusão social,
como sugere Veiga - Neto (2001).
A construção desses binarismos reflete relações de poder que se manifestam nas
práticas sociais e educacionais e que devem ser questionadas por uma crítica radical, isto é,
criticar a construção social desses binarismos que é, em última análise, assumir uma postura
política.
Assumir essa postura política da surdez envolve implementar a pedagogia crítica que
reconhece a importância das lutas sociais, olhar criticamente para as relações de poder e
acreditar que todos somos sujeitos da história e que ela depende de todos nós.
Um representante da pedagogia crítica é McLarem (2000), que analisa as instituições
escolares e aponta as repercussões da sociedade de classe e as discriminações de gênero e de
raça. Destaca as possibilidades de uma educação multicultural a partir de uma concepção
crítica do multiculturalismo.
Da mesma maneira que acontece a exclusão social com os surdos no contexto
educacional, há algumas dificuldades também no seio familiar.
Por exemplo, a família do S4 deixa a perceber menos valia e discriminação em
relação ao filho surdo, pois a avó não ia ao aniversário do neto surdo, justamente por ele
ser surdo, revelando as dificuldades de aceitação da surdez. Diz que
a sogra vai ao aniversário
de todos os netos, menos no aniversário do S4. Comentou, também, que faz diferença em relação a ele
por ser surdo.
Sobre esses aspectos, os estudos de Ferrini (2003) contribuem para mostrar que os
familiares que veem a surdez como deficiência, na maior parte das vezes, sentem-se confusos,
53
inseguros, sem saber como agir e tendem a se desequilibrar emocionalmente. Esse
desequilíbrio emocional é consequência da dificuldade de aceitar a surdez.
F1m e F3m mostram, no entanto, nas suas falas, uma outra visão de surdez, próxima
à visão sócioantropológica. Esses familiares parecem reconhecer os surdos como uma
comunidade linguística minoritária, caracterizada pela língua de sinais, com cultura e
socialização próprias.
A F3m admite que o filho se desenvolveu quando aprendeu Libras, ou seja, a
língua da comunidade surda. Nessa asserção, essa mãe admite que a língua de sinais é a
língua do surdo, é a língua capaz de criar condições para um desenvolvimento adequado da
pessoa surda.
A F1m considera adequado o surdo ensinar a língua de sinais na escola, mas o surdo
capacitado, o instrutor. Mesmo assim, acredita que o surdo ensinar Libras é um avanço no
processo educacional em direção a um ensino de melhor qualidade a esses alunos.
Esta visão está relacionada com a visão sócioantropológica da surdez proposta por
Skliar (1997), que visualiza os surdos como uma comunidade que reconhece a Libras como
essencial para o desenvolvimento linguístico e cognitivo dos surdos e um olhar diferente
frente à surdez que não focaliza a deficiência e a anormalidade, e, porém o seu
reconhecimento desta como diferença.
54
5.2 Quadro 4: Educação dos filhos surdos
Exemplos
Narrativas
1
O F3p falou que é difícil fazer o seu filho ser doutor, que se
aprender o básico está bom. A mãe falou que não tem muita
expectativa de ver o S3 se formar.
2
F8m disse que ela (a filha, S8) acordava às 6 h da manhã e
colocava o celular para vibrar todos os dias, sozinha.
F1m e da F8m disseram que elas (as filhas, S1 e S8) fazem os
afazeres de casa e a F5m disse que a filha (S5) ajuda em casa e faz
faxina para fora e que ela guarda o dinheiro dela.
3
O S9 quis ir ao forró, a mãe disse que chegaram á 1 h da manhã.
O F9p assumiu que ele sempre vai também e a mãe disse que
gosta, mas, não vai porque tem que acordar cedo.
O F3p fala que no começo não dorme, depois acostuma, confirma o
lugar que ele falou que está e disse que o S3 não segue muito o
horário que dá
4
A F4m falou que ela segura o S4 e ele queria ir à casa do S9 e no
final ela deixou, diz que o S4 adora conversar, mas deixa insegura.
5
A F3m disse que o filho fala, fala até conseguir as coisas.
A F2m e F2p disseram que combinavam e que se diziam não, eles
não faziam e, que eles ficam firmes no não na educação de S2.
F6m falou que pediu para a S6 lavar a louça e ela não lava e, na
correria, ela mesma acaba lavando.
As narrativas do pai de F9p e de F3p, que estão relacionadas aos limites na educação
de seus filhos surdos, levam a pensar que a realidade e os problemas na educação desses
filhos, sejam eles surdos ou ouvintes, não são tão diferentes, isto é quando falam a respeito
dos filhos saírem: irem ao forró e não voltarem na hora combinada.
Observamos, por esses depoimentos, que as dificuldades na educação dos filhos
surdos, no seu cotidiano, apresentam situações semelhantes à dos filhos ouvintes. Essas
situações trazem uma realidade vivenciada pelos pais parecida com a dos pais ouvintes, no
sentido de trazerem angústias e questões voltadas para como educar seus filho.
As questões relacionadas à adolescência parecem prevalecer sobre as questões
relacionadas à surdez.
Em contrapartida, a situação de S4, de S6 e de algumas afirmações sobre S3,
demonstram dificuldades específicas de pais de filhos surdos que acabam superprotegendo-os,
o que reflete
ainda uma visão de surdez como deficiência e não como diferença.
Sobre esses aspectos, Ferrini (2003) apresenta que os familiares que possuem uma
visão clínica da surdez se desequilibram emocionalmente e passam ou a proteger
excessivamente ou a negligenciar o surdo.
55
Os estudos de Bergmann (2001) estão de acordo com os estudos de Ferrini ao
indicar as diferentes reações possíveis dos pais frente à situação de ter um filho surdo, as
quais passam da negação e indiferença à superproteção.
A esse respeito Ferrini (2003), também, discute que.
A família, na maior parte das vezes, sente-se confusa, insegura, sem saber como agir
frente aos problemas causados pela perda auditiva de um filho, principalmente
porque o aspecto ligado à comunicação, que no caso está ausente, é,
invariavelmente, o fato de maior conflito (p.20).
Os pais experimentam reações de choque, impotência, de negação, de superproteção,
que são sentimentos que exigem compreensão para serem elaborados. Quanto a esses
sentimentos e atitudes, negar a surdez, para Bergmann (2001), seria uma prisão (p.7)
A negação da surdez ocorre quando surdos profundo, oralizados apropriam-se da
linguagem oral, mas continuam junto com seus familiares convivendo com as implicações
emocionais da surdez.. Nesse caso, Bergmann (2001) ressalta que o mais importante não é a
fala em si, mas o poder que se atribui à linguagem oral, isto é, como a única condição de se
libertar da surdez (p.7).
Por outro lado, familiares que trabalham seus sentimentos de forma mais
adequada em relação ao membro surdo, com um olhar próximo a uma concepção
sócioantropológica da surdez, respeitando a sua liberdade e independência, como no caso de
S8, S5, S1 e S2 que realizam seus afazeres e atividades com responsabilidade e autonomia,
segundo os familiares.
De modo geral, é importante ressaltar que a forma como a família e a escola tratam o
surdo vai determinar a imagem que ele tem de si. Ferrini (2003) contribui em relação a esta
questão ao propor que:
Se a pessoa surda for tratada como incapaz e aculturada, sua auto-estima será baixa,
e sua expectativa de vida será triste, desmotivada, distante da comunidade surda. Se
tratada como capaz, como pessoa diferente, porém com potencialidades, possuidora
de cultura, com língua própria e singular, sua auto-estima poderá ser alta, e sua
perspectiva de vida será boa em todos os aspectos (p. 23).
Quando a família, depois de elaborações emocionais, aceita a surdez como
diferença e não como uma parte doente de seu filho, está preparada para começar a lutar pelos
direitos de seus filhos surdos junto da comunidade surda. Nesse caso, a família é capaz de
56
preservar a autenticidade do surdo e reconhecer a Libras como uma forma essencial de
interlocução para o desenvolvimento dele.
A seguir, será apresentado o Quadro 5 que mostra exemplos de depoimentos sobre o
relacionamento do surdo com a Libras.
57
5.3 Quadro 5: Relacionamento dos surdos com a Libras como língua, de acordo com os
familiares.
Exemplos Narrativas
1
Os familiares falaram que tem uma igreja católica onde há um intérprete
e que como ele está ocupado ele parou de ir e vários surdos pararam de
freqüentar as missas.
2
A F8m disse que chega em casa e a filha pede para mostrar o que ela
aprendeu no grupo, toda feliz!
3
A F1t disse que treina Libras em casa.
4
A F2m disse que treina Libras todos os dias conversando com ele.
Segundo as narrativas da F2m e da F1t, os surdos ajudam os familiares a
desenvolverem a fluência em Libras, treinam Libras em casa. Essa iniciativa parece
demonstrar não a aceitação da surdez pelos familiares, bem como, o reconhecimento da
Libras como essencial para o desenvolvimento do surdo. Essa iniciativa também mostra um
interesse, tanto dos surdos quanto dos familiares de criarem, no lar, um espaço de interlocução
com o membro surdo. A Libras passa, nesses casos, a ser uma escolha segura e desejada dos
familiares e dos membros surdos.
Ferrini (2003) apresenta, sobre essa questão, que
A insegurança lugar a certeza de que é estando do lado dos surdos, buscando
compreende-los, observando-os, respeitando seus desejos e anseios, e não falando
por eles, é que estariam aprendendo sobre a surdez (p.22).
A transformação não ocorre apenas nos pais, o reconhecimento da Libras transforma
essencialmente a vida dos surdos. A fala da F8m demonstra a felicidade de sua filha por ela
frequentar o grupo e aprender a Libras.
A esse respeito, Ferrini (2003) também discute ao falar que a mudança dos pais traz
uma convivência muito mais verdadeira, tranquila e confortável com os surdos.
A Libras é uma comunicação efetiva para o surdo, sem ela não há um espaço de
interlocução, não existe relação, não existem laços familiares. Ferrini (2003) ainda sugere:
Com comunicação efetiva e eficaz, realizada por meio da língua de sinais, pode-se
conversar sobre tudo, fazer confidências, trocar idéias, rir e chorar juntos, enfim,
estreitar os laços familiares, apoiando e confiando uns nos outros, mantendo
cumplicidade e tornando-se fortes e unidos nas horas adversas, as quais nenhuma
família escapa, sendo ouvinte ou não (p.22).
58
A Libras, como primeira língua em casa, na escola ou em qualquer outra instituição
social acarreta enormes benefícios e oportuniza uma identificação sólida com o grupo. A fala
dos familiares em relação à Libras na Igreja é um exemplo desta situação, pois, quando o
intérprete deixou a Igreja, os surdos pararam de frequentá-la.
A prática e aceitação da Libras é uma atitude de respeito ao surdo nos seus aspectos
linguísticos, culturais e psicossociais, incluído-os socialmente.
No Quadro 6, os depoimentos tratam sobre a surdez e a educação na escola de
ouvintes.
59
5.4 Quadro 6: Surdez e Educação na escola de ouvintes
Exemplos Narrativas
1
A F2m disse que [na escola comum] ele está adorando os alunos e odeia
os professores.
2
A F1m quer que o seu filho ouvinte [que conhece Libras] fique na classe
do S2 e do S10 [surdos], pois está na mesma série, para ajudá-los na
comunicação. A escola não facilita, parece que surgiu uma vaga e não o
colocaram.
3
F1m falou sobre a questão da S1 estar praticamente parada no estudo,
pois a escola de surdos só vai até a 8ª Série. Ela está cursando pela 3ª vez.
4
A F4m disse que ano que vem ele vai para a escola de ouvintes, porque
ele consegue falar bem, mas ela tem medo da exclusão.
5
A F2m disse que ele tem muitas provas na escola de ouvintes e que ele
fica tentando estudar e desiste. Disse que ligou para a coordenadora da
escola de surdos, porque ele disse que a professora de ciências senta, fala
muito e não escreve. O S2 não entende nada.
A F2m disse que ele pede para a mãe responder as perguntas e que ele
não desistiu, porque fez amizade com os ouvintes e que eles o ensinaram
a colar.
Observamos que todas as falas dos familiares de surdos refletem que o acesso das
pessoas surdas à educação ainda é muito incipiente, havendo uma contradição entre o que a
Lei propõe e o que é implementado no contexto educacional.
Apesar das garantias previstas pelo decreto que regulamenta a Lei 10.436 de 24 de
abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais Libras, e o artigo 18 da Lei
10.098 de 19 de dezembro de 2000, que institui em seu capítulo IV, o uso e a difusão da
Libras para o acesso das pessoas surdas à educação, este acesso não é garantido aos surdos.
A fala da F4m e a situação de S1 revelam a insegurança dos pais em inserir seus
filhos surdos no contexto educacional ouvinte (escola de ouvintes) e revela a consciência da
situação do surdo na escola, ou seja, ao invés de ser um espaço de transformação e inclusão,
está despreparada e fechada para a diferença e para a inclusão social dos grupos minoritários.
A fala da F2m exemplifica o quanto é essencial a presença de um intérprete em sala
de aula para que seja um espaço de interlocução para os surdos. Na maioria das escolas de
ouvintes, a professora fala e o surdo não consegue entender, não tem acesso ao currículo
escolar, desanima e acaba evadindo-se da escola.
Pela Lei, a presença de um tradutor intérprete de Libras-Língua Portuguesa é
condição essencial para o acesso das pessoas surdas ao currículo e à educação. No entanto, a
grande maioria das escolas não conta com a presença desse profissional, mantendo o
60
sofrimento do surdo, causando-lhe, consequentemente, o desânimo, o isolamento social e a
falta de perspectivas frente à vida e ao seu desenvolvimento educacional.
O surdo, diante dessa condição de escolarização, começa a querer encontrar
alternativas para conseguir sobreviver nesse contexto cruel e que lhe traz a ele sofrimento e
vivências de exclusão.
Alguns alunos ouvintes se sensibilizam, demonstram vontade e curiosidade frente à
realidade do surdo e, muitas vezes, tentam apoiá-lo nesta busca individualizada e solitária
para ser inserido e incluído realmente no contexto educacional. A experiência de S2 retrata
esta situação, pois, os alunos ouvintes, por não saberem Libras e assim não saberem como
ajudar o surdo, ensinaram S2 a colar.
É importante ressaltar que essa realidade de despreparo educacional, de exclusão e
de isolamento social é também uma realidade que envolve todas as pessoas, com necessidades
educacionais especiais. E, apesar de haver um documento que ampara estas pessoas que é a
Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994), que enfatiza a importância da inclusão, do
acesso às crianças e jovens com necessidades educacionais especiais às escolas regulares, as
quais devem adequar a cada uma dessas necessidades, nenhuma dessas condições são
garantidas, na prática, ainda não são concretizadas.
Nesse sentido, a participação de familiares de pessoas com necessidades
educacionais especiais e, especificamente neste caso, familiares de surdos informados, como
um segmento civil atrelado à comunidade surda, disposto a lutar e criar condições de
igualdade de oportunidades, de acesso ao currículo escolar, é condição essencial para a
inclusão do surdo no contexto educacional e para proposições políticas de transformações
sociais, visando à comunidade surda.
Essas transformações estão pautadas não apenas em compreender uma mudança
metodológica dentro do paradigma da escolarização, ou seja, não está no quanto os projetos
pedagógicos se distanciam do modelo hegemônico, mas, no quanto realmente se aproximam
de uma visão crítica que propõe uma mudança de paradigmas, de valores e de práticas que
alicerçarão uma sociedade mais justa, igualitária e democrática.
Quanto ao desenvolvimento do grupo, os dados estão postos no Quadro 7.
61
5.5 Quadro 7: Desenvolvimento do grupo
Exemplos Narrativas
1
O F9p questionou a falta de intérprete e falou que deveríamos fazer um
abaixo-assinado.
2
F1m falou uma mensagem em Libras e ela disse: Hoje estou feliz porque
tenho amigos aqui e que Deus abençoe a todos.
3
A F3m falou que lutando com a Lei certo, porque seu filho fazia
terapia e, no convênio não tinha psicóloga que sabia Libras.
Então, entraram com a Lei e a psicóloga fluente em Libras foi cadastrada.
4
Os familiares disseram que vão cinco surdos fazer o exame de carta com
o delegado e com intérprete, o que é uma grande vitória!
A fala de F1m demonstra que há, no grupo, uma relação próxima entre os
integrantes, o que reflete a identificação, o sentimento de pertinência ao grupo e a
interiorização dos outros familiares participantes como sujeitos, isto é, o outro é visualizado
na condição de “ser humano” e, a dinâmica da relação individualizada do Eu e Tu é
substituída pelo Nós. Estas relações demonstram que o grupo não vivencia relações
características à Serialidade, ou seja, relações de isolamento, particularistas, cultuando o
individualismo.
Na Serialidade, o grupo vive uma solidão no sentido de que cada integrante está
unido apenas fisicamente, sem nenhuma relação na dimensão humana. A fala de F1m reflete
que as relações no grupo superaram o momento da Serialidade e da Fusão, porque vivem
intensamente a reciprocidade e o sentimento de “somos todos irmãos” (REBOREDO, 1995,
p.44), vivenciada no Juramento.
O grupo de apoio aos familiares de surdos traz iniciativas de conscientização pela
luta dos direitos dos surdos, como no caso da proposta do F9p ao propor abaixoassinado para
a presença de um intérprete no contexto educacional. Proposta que surgiu de uma
conscientização política, mas que não foi assumida pelo grupo e efetivada na prática, ficando
apenas no nível de diálogo reflexivo, ou seja, não chegou a uma práxis coletiva.
As proposições sartreanas, discutidas por Reboredo (1995), demonstram a
importância do conceito da práxis que é a expressão concreta que aparece no empírico da ação
grupal, ou seja, “o homem conhece a realidade ao transformá-la” (p.33).
As narrativas de F3m e dos familiares, no exemplo 4, demonstram certa mobilização
do grupo em direção à luta pelos direitos dos surdos, concretizando conquistas importantes.
Essas atitudes indicam a presença de propostas políticas de transformação que foram
realizadas, como é o caso da conquista de uma psicóloga que sabia Libras na área de saúde e a
conquista de um intérprete no exame da carteira nacional de habilitação.
62
Pensando em transformações sociais é necessário conhecer o movimento de inclusão
social que propõe uma reorganização da escola, na sua estrutura, valores e relações de poder
como discutido por Dias (2006, p. 47):
Esse movimento, além de buscar importantes transformações sociais, tem por base o
reconhecimento e a aceitação da pluralidade social, ou seja, construir condições para
que as pessoas, com suas diferenças, possam se desenvolver e usufruir
oportunidades semelhantes na vida social.
No grupo de apoio aos familiares de surdos práticas reflexivas na manutenção do
grupo, ou seja, iniciativas e discussões sobre a luta pelos direitos dos surdos, bem como
atitudes de conquistas, de transformação da realidade e de execução de uma práxis. Percebe-
se, pois, que o grupo, na sua totalidade, até o momento em que foi realizada essa pesquisa, foi
capaz de construir relações orientadas pela reciprocidade, conscientização, novos valores,
caracterizando uma mobilidade grupal que se identifica com as relações vivenciadas no
juramento, principalmente pelo comprometimento e pelo sentimento de pertinência ao grupo.
O grupo demonstra estar a caminho de uma consolidação efetiva de uma
organização grupal, com elementos iniciais e atitudes que compõem o momento da
organização, que é a expressão da consolidação do grupo em uma ação coletiva organizada.
É importante ressaltar que, sejam grupos de familiares de surdos, de cegos, de
homossexuais, de cadeirantes, qualquer grupo apresenta condições de se transformar.
Reboredo (1995) contribui ao discutir o grupo sempre como possibilidade de transformação:
O grupo é um devir no qual os indivíduos são possibilidades de se tornarem sujeitos
históricos, à medida que superam a condição de isolamento e alienação do Eu e Tu e se
organizam nas ações coletivas para materializarem o projeto individual-histórico” (p.37).
Esta transformação acontecerá se, neste processo, o grupo buscar atuar e contribuir
com a formulação de um projeto político, ou seja, se for além de uma posição
sócioantropológica da surdez, pretendendo contribuir para proposições políticas de
transformações sociais que visam à comunidade surda com um olhar voltado ao movimento
de inclusão social e especificamente de inclusão escolar.
É preciso lembrar que o percurso da inclusão escolar depara-se com dificuldades e
ambigüidades que dificultam a construção da igualdade social. Nesse campo de dificuldades e
ambigüidades é importante refletir sobre as oposições binárias socialmente construídas, tais
como: ouvinte-surdo, vidente-cego, branco-negro, entre outros, que levam a um caminho de
63
privilégio para alguns e de discriminação e exclusão social para outros (classe minoritária)
(DIAS, 2006).
64
SEÇÃO 6
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo revelou que a família é um ambiente que fornece informações
significativas que contribuem para o desenvolvimento do surdo.
O movimento do grupo de apoio aos familiares de surdos e os seus discursos destes
revelaram pontos importantes dentro dos temas (categorias) que foram investigados e
analisados: visão sobre a surdez, educação dos filhos surdos, relacionamento dos surdos com
a Libras como língua de acordo com os familiares, surdez e educação na escola de ouvintes e
o desenvolvimento do grupo.
Os dados sobre a visão de a surdez revelaram que enquanto alguns familiares que
frequentavam o grupo de apoio aos familiares de surdos ainda apresentavam uma visão de
surdez associada à deficiência e à anormalidade, uma visão sobre a surdez chamada por
(Skliar, 1997) de modelo clínico-terapêutico; outros familiares demonstraram a aceitação da
surdez como uma diferença. Esses familiares, em suas falas, mostram uma outra visão de
surdez, próxima à visão sócioantropológica. Eles reconhecem os surdos como uma
comunidade linguística minoritária, caracterizada pela língua de sinais, cultura e socialização
próprias e que a língua de sinais é a língua do surdo, e que é a única capaz de criar condições
para um desenvolvimento adequado dessa pessoa surda.
É importante considerar nesta análise a forte influência da representação social da
surdez e o quanto é construída socialmente, que familiares vão espontaneamente aprender
Libras e freqüentam o grupo de apoio aos familiares de surdos, que é um grupo político na
luta pelos direitos dos surdos, revelando uma visão de surdez oposta àquele ambiente que
freqüentavam de reconhecimento da surdez como diferença.
Da mesma maneira que acontecem dificuldades no cotidiano dos surdos perante a
sociedade, há dificuldades também no seio familiar e no contexto educacional.
Em relação ao ambiente familiar e à educação do membro surdo, tiveram familiares
que souberam lidar de forma tranqüila e adequada na educação de seus filhos surdos, bem
como familiares que apresentam dificuldades nesse processo e acabam ou protegendo-os ou
negligenciando-os.
É importante destacar que, no grupo de apoio aos familiares de surdos, foram
trabalhadas as possíveis reações adversas frente às dificuldades de se ter um filho surdo, de
65
educá-lo e ajuda-lo a desenvolver-se de forma adequada com o objetivo de facilitar a
elaboração dos sentimentos dos familiares e contribuir com o desenvolvimento do filho surdo.
Em relação às dificuldades no contexto educacional, percebeu-se que o acesso dos
surdos à educação ainda é muito incipiente, trazendo a essa população sofrimentos e vivências
de exclusão e marginalização.
Apesar do grupo de apoio aos familiares de surdos iniciarem tentativas de mudança
nesse contexto, mesmo embasado em leis, percebeu-se muitas dificuldades de concretização e
implementação dessas.
Em relação ao relacionamento dos surdos com a Libras de acordo com seus
familiares, ficou claro o reconhecimento geral no grupo de ensino da Libras como essencial
para o desenvolvimento do surdo.
Por fim, em relação ao desenvolvimento do grupo como um segmento civil atrelado
à luta pelos direitos dos surdos, observou-se que o grupo traz iniciativas de conscientização
nesta luta, bem como certa mobilização do grupo, concretizando algumas atitudes de
transformação.
Percebe-se, pois, que o grupo, na sua totalidade, constitui relações orientadas pela
reciprocidade, novos valores, caracterizando uma mobilidade grupal, demonstrando estar a
caminho de uma consolidação efetiva de uma organização grupal, com elementos iniciais e
atitudes que compõem a Organização, momento que reflete a expressão da consolidação do
grupo em ação coletiva organizada.
O estudo mostrou que o grupo com inspiração sartreana foi capaz de criar um espaço
de ação coletiva organizada, cujas as relações foram tecidas na dinâmica do “Nós”.
Portanto, o grupo de apoio aos famliares de surdos, oferecido pela APÀS, em
parceria com uma escola de surdos, promoveu mudanças iniciais na concepção de surdez, no
relacionamento entre familiares e surdos, sendo um espaço que está a caminho de uma
concretização mais efetiva das transformações nas relações sociais, através da atuação da
família como alicerce na desconstrução de um isolamento socialmente construído ao surdo.
Este trabalho mostrou a importância de se incentivar e apoiar outros grupos de
familiares de surdos que possam surgir e contribuir com o movimento social de inclusão por
meio de uma atuação política, consciente e ativa.
È importante ressaltar os resultados desse trabalho que buscou despertar o interesse
de mais pesquisadores em relação ao estudo da família e sua participação no desenvolvimento
do membro surdo e, principalmente como um projeto político de transformação social.
66
Estas últimas palavras não indicam o final de um trabalho, e sim, uma semente que
germinará o início de outros trabalhos que possam contemplar a família, o surdo e a luta pelos
seus direitos como um projeto político.
67
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71
APÊNDICE I
TERMO DE CONSENTIMENTO
Eu ________________________________________, concordo em participar da
pesquisa: “A surdez: A família como alicerce na desconstrução de um isolamento
socialmente construído”, de autoria da mestranda Priscila Alves Martins dos Santos,
sob orientação da Profª. Drª. Tárcia Regina da Silveira Dias, e declaro estar ciente dos
objetivos da mesma, de minha participação como informante, bem como dos cuidados
de anonimato e sigilo garantidos em possíveis divulgações dos resultados em eventos
científicos.
______________, ___ de _________ de 200___.
______________________________
Assinatura
72
APÊNDICE II
AUTORIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO
Eu, __________________________________________, coordenadora da
Associação de Pais e Amigos dos Surdos do interior de São Paulo, concedo
autorização para que Priscila Alves Martins dos Santos, mestranda do Programa de
pós-graduação em Educação do Centro Universitário Moura Lacerda do interior de
São Paulo, realize a pesquisa com os familiares participantes do grupo de apoio aos
familiares de surdos, sob orientação da Profa.Dra. Tárcia Regina da Silveira Dias,
nesta instituição.
Jaboticabal,___de____de 2008
_______________________________
(Assinatura da coordenadora)