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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTESCEART
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICAPPGMUS
RODRIGO MOREIRA DA SILVA
“RATOEIRA NÃO ME PRENDE,
QUE EU NÃO TENHO QUEM ME SOLTA”:
MÚSICA DE TRADIÇÃO ORAL E IDENTIDADE CULTURAL NO
LITORAL DE SANTA CATARINA
FLORIANÓPOLIS
2009
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RODRIGO MOREIRA DA SILVA
“RATOEIRA NÃO ME PRENDE,
QUE EU NÃO TENHO QUEM ME SOLTA”:
MÚSICA DE TRADIÇÃO ORAL E IDENTIDADE CULTURAL NO
LITORAL DE SANTA CATARINA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Música da Universidade
do Estado de Santa Catarina como requisito
parcial para a obtenção do título de mestre.
Orientador: Acácio Tadeu de Camargo
Piedade
FLORIANÓPOLIS
2009
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RODRIGO MOREIRA DA SILVA
“RATOEIRA NÃO ME PRENDE, QUE EU NÃO TENHO QUEM ME SOLTA”:
MÚSICA DE TRADIÇÃO ORAL E IDENTIDADE CULTURAL NO LITORAL DE
SANTA CATARINA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música PPGMUS da
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC, como requisito parcial para a obtenção
do título de mestre.
Banca Examinadora:
Orientador: ________________________________________
Prof. Dr. Acácio Tadeu de Camargo Piedade
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Membro: ________________________________________
Prof. Dr. Marcos Tadeu Holler
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Membro: ________________________________________
Prof. Dr. Rafael José de Menezes Bastos
Universidade Federal de Santa Catarina UFSC
Florianópolis, 22 de outubro de 2009.
Dedicado à minha família e à
Camila Reis, minha companheira.
Em homenagem à Professora Maria
Ignez Cruz Mello que acreditou neste
trabalho em sua fase embrionária.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao professor Acácio Piedade por sua formidável
orientação, suas boas idéias e por todo o conhecimento construído durante o curso.
Gostaria também de agradecer aos demais professores do Programa de Pós-
Graduação em Música da UDESC por toda informação que compartilharam no decorrer
do curso, em especial aos professores Guilherme Sauerbronn, Maria Bernardete Póvoas
e Sérgio Figueiredo. Um agradecimento especial ao professor Marcos Holler que foi
membro da banca que avaliou este trabalho, contribuindo com importantes sugestões.
Agradeço ao professor Rafael Menezes Bastos por importantes apontamentos e
enorme colaboração, e por aceitar gentilmente fazer parte da banca avaliadora deste
trabalho.
Agradeço a imprescindível colaboração da CAPES e PROMOP, órgãos dos
quais fui bolsista.
Um agradecimento especial a todos os informantes deste trabalho, a Eugenio
Lacerda, a Joi Cletison do Núcleo de Estudos Açorianos, a Dona Francisca de Penha, a
Fernanda, Daiane e todos que conheci em Bombinhas, a Cristiane e ao Clube de Mães
de Porto Belo, a Dona Marisa do Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da
UFSC, a Dona Antonieta e ao grupo de mulheres de Governador Celso Ramos e a
Sérgio Luiz Ferreira, Dóris e ao Grupo Olaria do bairro Sambaqui em Florianópolis.
Finalmente agradeço a todos os colegas do curso que compartilharam e
participaram de todas as etapas dessa jornada.
RESUMO
SILVA, Rodrigo Moreira da. Ratoeira não me prende que eu não tenho quem me
solta: música de tradição oral e identidade cultural no litoral catarinense. Dissertação de
Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Música PPGMUS da Universidade do Estado
de Santa Catarina UDESC, sub-área: Musicologia/Etnomusicologia, Florianópolis, 2009.
Esta dissertação de mestrado traz um estudo etnomusicológico sobre a Ratoeira, uma
música de tradição oral típica do litoral catarinense. O tema será abordado em seus aspectos
musicais e sócio-culturais, buscando compreender o contexto no qual esta prática musical se
insere. Para isso falarei do campo científico da etnomusicologia, sobre a etnografia e outros
temas ligados ao objeto de estudo como ritual, folclore, identidade cultural, significado
musical e relações de gênero. Para compreender o contexto da Ratoeira, apresento alguns
dados históricos sobre a ocupação humana no litoral catarinense, dando destaque à influência
da colonização açoriana na região. Discutirei sobre os processos de elaboração da identidade
cultural no litoral catarinense baseados na origem açoriana da população. O discurso nativo
entra como um elemento chave na categorização de alguns conceitos e no esclarecimento das
discussões apresentadas no trabalho. Faço um apanhado musical de tudo o que foi coletado
em campo, apresentando cantigas de roda e principalmente a Ratoeira, foco desta pesquisa.
Apresento algumas transcrições musicais acompanhadas de breves análises sobre o material
registrado em campo. Por fim, relaciono dados etnográficos com a bibliografia selecionada,
verificando variações musicais regionais nesta prática e comentando outros aspectos culturais.
Palavras-chave: Ratoeira, etnomusicologia e identidade cultural.
ABSTRACT
SILVA, Rodrigo Moreira da. Ratoeira don’t hold me cause I don’t have someone
that let me free: music from oral tradition and cultural identity in the Santa Catarina
coast. Dissertation of Master by the Programa de Pós-Graduação em Música PPGMUS of
the Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC, subfield:
Musicology/Ethnomusicology, Florianópolis, 2009.
This dissertation brings an ethnomusicological study of the Ratoeira, an oral tradition
of typical music of the coast of Santa Catarina in Brazil. From this perspective, the issue will
be addressed in its socio-cultural and musical aspects, seeking to understand the context in
which this musical practice is inserted. For this, I will talk about the scientific field of
ethnomusicology, ethnography and other issues like ritual, folklore, cultural identity, musical
meaning and gender relations related to the object of study. To understand the context of the
Ratoeira, I present some historical data on human settlement in the Santa Catarina coast,
highlighting the influence of the Azorean colonization in the region. I talk about the processes
of elaboration of a cultural identity in the Santa Catarina coast, based on the Azorean
colonization origin. The native speech comes as a key element in the categorization of
concepts and in clarifying the arguments presented in the work. I present a musical collection
of everything that was collected in the fieldwork, featuring some popular tunes, and especially
the Ratoeira, the focus of this research. I present some musical transcriptions accompanied by
brief analysis of the material recorded in the fieldwork. Finally, I relate ethnographic data to
selected bibliography, checking variations in regional musical practice and commenting on
other cultural aspects.
Keywords: Ratoeira, ethnomusicology and cultural identity
Sumário
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 10
CAPÍTULO I ................................................................................................................ 14
1. 1 A RATOEIRA SOB UMA ABORDAGEM ETNOMUSICOLÓGICA .......................................................... 14
1.2
DANDO VOZ ÀS CANTORAS: REFLEXÕES SOBRE A ETNOGRAFIA .................................................... 17
1.3
UM RITUAL DE FLERTE .................................................................................................................... 20
1.4
DO TEMPO DOS ANTIGOS: A DESIGNAÇÃO DE FOLCLORE E SUAS IMPLICAÇÕES ............................. 22
1.5
ISSO É HERANÇA DOS AÇORIANOS: UMA IDENTIDADE EM EVIDÊNCIA ............................................. 28
1.6
RATOEIRA É COISA DE MULHER: RELAÇÕES DE GÊNERO E PRÁTICA MUSICAL ............................... 33
1.7
AS VOVÓS DA RATOEIRA ................................................................................................................. 35
1.8
NAMORO OU SAUDADE? UM NOVO SIGNIFICADO MUSICAL ........................................................... 36
CAPÍTULO II ............................................................................................................... 40
2.1 A PRESENÇA AÇORIANA NO LITORAL DE SANTA CATARINA .......................................................... 40
2.1.1 Florianópolis
............................................................................................................................. 45
2.1.2 Porto Belo
................................................................................................................................. 47
2.1.3 Bombinhas
................................................................................................................................ 48
2.1.4 Governador Celso Ramos
......................................................................................................... 48
2.1.5 Penha
........................................................................................................................................ 49
2.2
DISCUSSÕES SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL DO LITORAL CATARINENSE .................................. 50
CAPÍTULO III ............................................................................................................. 58
3.1 O TRABALHO DE CAMPO ................................................................................................................ 58
3.2
NINGUÉM SABIA QUE ERA AÇORIANO... ............................................................................................. 60
3.3
NÃO EXISTE TURISMO SEM CULTURA ................................................................................................ 64
3.4
O VILSON FARIAS É QUE PASSAVA ISSO TUDO PRA NÓS... ................................................................. 65
3.5
HOJE TEM O COMPUTADOR ... ....................................................................................................... 66
3.6
INTERCÂMBIO CULTURAL ENTRE O LITORAL DE SANTA CATARINA E OS AÇORES ....................... 68
CAPÍTULO IV .............................................................................................................. 71
4.1 O QUE É A RATOEIRA E COMO ACONTECE ...................................................................................... 71
4.2
PASSADO, PRESENTE E FUTURO ...................................................................................................... 75
4.3
A MÚSICA ......................................................................................................................................... 79
4.3.1 Governador Celso Ramos
......................................................................................................... 81
4.3.2 Dona Francisca de Penha
.......................................................................................................... 94
4.3.3 Clube de Mães de Porto Belo
.................................................................................................... 98
4.3.4 Grupo Olaria do Sambaqui (Florianópolis)
............................................................................ 108
4.3.5 Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC (Florianópolis)
............................. 117
4.4
A POESIA ........................................................................................................................................ 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 136
ANEXO UM PEQUENO MOSAICO DE MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DO
LITORAL CATARINENSE ...................................................................................... 142
DVD ANEXO .............................................................................................................. 163
10
Introdução
A Ratoeira pode ser descrita como uma dança ou brincadeira de roda, e a música é ali
um elemento fundamental. A temática das canções remete ao universo dos galanteios e
disputas amorosas, expressando também a jocosidade típica desta cultura (Lacerda, 2003a).
As pesquisas mostram alguns pontos importantes de investigação, como relações de gênero e
mudança de significado nesta prática (Silva, 2005, 2007). Como aponta o discurso nativo, a
Ratoeira está ligada ao universo feminino, e apesar de não haver restrições sobre a
participação de homens, observa-se que é quase praticada somente por mulheres. Como a
temática das canções está ligada a relacionamentos amorosos, as relações de gênero se
mostram em evidência. Já a mudança de significado é notável no fato de a Ratoeira ter sido
espontaneamente praticada entre jovens até aproximadamente a década de 1950 e atualmente
sua prática ser relacionada a dois campos: os grupos de idosos e as apresentações de folclore.
Portanto, certa função de promover namoros é ressignificada e substituída por um possível
papel de afirmação de identidade através de sua valorização enquanto folclore e patrimônio
cultural.
Para informar rapidamente o leitor a respeito das características musicais da Ratoeira,
a seguir observa-se um esquema melódico da cantiga
1
. Geralmente uma pessoa entra no meio
da roda e canta uma quadrinha
2
, que pode ser tanto improvisada quanto retirada do repertório
de versos existente. A roda, no entanto não é necessária para que a Ratoeira aconteça. Este
verso é endereçado a alguma pessoa presente, podendo ser de teor jocoso ou romântico.
Quando cantado em solo por uma pessoa, possui um contorno melódico característico, que
chamaremos aqui de melodia solo. Depois de cantado é seguido por um refrão
3
entoado pelos
demais participantes, tradicionalmente em formação de roda. Este refrão possui outro
contorno melódico, que aqui chamaremos de melodia coro (Silva, 2005, 2007). Apresento a
seguir uma melodia solo com dois versos e a melodia coro.
1
Este esquema foi elaborado a partir de análises de transcrições de material coletado em campo e bibliografia
(Silva, 2005).
2
Quadrinha é o poema de quatro versos que, geralmente, desenvolve um conceito relativo à filosofia popular
(Goldstein, 1986: 43).
3
Grupo de versos que se repete ao longo de um poema. O refrão facilita a memorização nas canções, tendo um
papel rítmico importante em todas as épocas. (op. cit.: 40).
11
Melodia solo
Melodia coro
A Ratoeira pode ser eventualmente acompanhada por instrumentos como violão,
acordeom, gaita de boca, percussão, entre outros. A melodia coro está representada acima
com uma possível variação cromática no terceiro compasso, entre parênteses. Essa variação
foi verificada na coleta de material entre diferentes grupos. O trabalho de campo mostrou que
pode haver outras variações melódicas em diferentes regiões do litoral catarinense onde a
Ratoeira é praticada, como será descrito em detalhes. A poética aponta para a tristeza como
ideal estético de beleza, e envolve metaforicamente plantas e partes do corpo humano.
Neste trabalho sobre a Ratoeira a etnomusicologia será o campo disciplinar nesta
investigação acerca desta música de origem popular e tradição oral, podendo também ser
chamada de folclore. Nessa perspectiva, o tema será abordado em seus aspectos musicais e
sócio-culturais, buscando compreender o contexto no qual esta prática musical se insere. O
trabalho está dividido em quatro capítulos.
O primeiro capítulo trata basicamente de uma revisão bibliográfica dos principais
conceitos teóricos envolvidos neste trabalho. Falarei do campo científico da etnomusicologia,
sobre a pesquisa etnográfica e outros conceitos como ritual, folclore, identidade cultural,
significado musical, relações de gênero, entre outros.
12
O segundo capítulo tem como objetivos discutir e contextualizar a cultura de do litoral
de Santa Catarina, destacar os elementos característicos desta identidade cultural e debater
sobre a alusão à origem açoriana. Apresentarei alguns dados históricos a respeito da
colonização açoriana e sobre a presença desta identidade açoriana no litoral catarinense.
Mostrarei a diversidade de discursos existentes acerca deste tema, como já tratado por
folcloristas, historiadores, antropólogos e outros intelectuais. A idéia é mapear o contexto
sócio-cultural que envolve esta prática.
No terceiro capítulo apresentarei uma narrativa etnográfica com base em trabalho de
campo. Aqui pretendo mostrar o discurso nativo a respeito da cultura açoriana no litoral
catarinense e sua relação com a música, assim como debater sobre a identidade cultural na
ótica nativa. Abordarei também aspectos da metodologia empregada na coleta dos dados,
como o uso do gravador de áudio e da câmera de vídeo. Exegeses do discurso nativo estarão
em evidência em interpretações de metáforas e categorias contidas na linguagem das pessoas
investigadas.
O quarto capítulo tratará exclusivamente da Ratoeira, verificando o discurso nativo a
seu respeito e apresentando transcrições do material musical coletado em campo. Falarei a
respeito da transcrição musical enquanto caminho metodológico para este tipo de pesquisa,
assim como farei breves análises sobre este material musical. A poesia também será analisada
em suas temáticas e apresentarei uma pequena antologia poética da Ratoeira. Creio que uma
contribuição aqui é o registro de melodias e versos poéticos. Tento neste capítulo, portanto,
apontar as características musicais e poéticas mais notáveis da Ratoeira, buscando sempre
apoio no discurso nativo. A estrutura da divisão dos capítulos se aproxima gradualmente ao
foco principal de estudo, a Ratoeira. Parte de questões mais gerais como o campo disciplinar e
conceitos teóricos, passando por discussões sobre história e identidade cultural das
comunidades em questão e conhecendo o discurso nativo, até que finalmente chega à
Ratoeira. Portanto, se o leitor até aqui sente falta de mais informações sobre a Ratoeira para
iniciar a leitura, sugiro que leia primeiramente o quarto capítulo, ou simplesmente acompanhe
essa aproximação gradual.
Nas considerações finais, exponho alguns comentários sobre a música da Ratoeira e
tento conectar as discussões apresentadas durante o trabalho. Nessas considerações finais
também apresento algumas sínteses ilustrativas das transcrições do material coletado em
campo, buscando contrastar as principais distinções entre as Ratoeiras de cada grupo visitado.
Proponho ainda uma redução das melodias expressando os elementos mais fundamentais
13
dessa música. Apresento em anexo narrativas sobre outras manifestações culturais praticadas
pelos informantes, incluindo algumas transcrições musicais de outros repertórios de tradição
oral. O trabalho também inclui um DVD em anexo contendo alguns fragmentos do registro do
trabalho de campo, com alguns arquivos de áudio e vídeo, ilustrando alguns exemplos.
14
CAPÍTULO I
Este trabalho trata da Ratoeira, manifestação tradicional da cultura do litoral de Santa
Catarina. A Ratoeira vem sendo descrita por folcloristas desde a década de 1950
4
, de maneira
que pode ser considerada uma prática musical folclórica. No quarto capítulo esta prática
musical será descrita de forma mais detalhada, tal qual foi registrada em campo. Neste
capítulo introdutório, discutirei como o folclore e a cultura popular podem ser objetos de
estudo no campo da etnomusicologia. Outra discussão é de como esta manifestação musical
pode ser entendida como um rito ou ritual. Também é importante apontar as relações entre
música e identidade cultural para tentar entender o discurso da extinção e a migração desta
prática do universo da juventude para centros comunitários e grupos de idosos. A mudança da
faixa etária de quem pratica a Ratoeira também representa uma mudança de significado, o que
será debatido a seguir.
1. 1 A Ratoeira sob uma abordagem etnomusicológica
Uma maneira de entender o campo da etnomusicologia é através de seus possíveis
objetos de estudo, seu foco e suas metas de investigação. Nettl fornece uma lista de possíveis
objetos de estudo, como a música folclórica e “primitiva”, podendo ser entendida como a
música indígena, tribal ou antiga; músicas não ocidentais; toda música que esteja fora da
cultura do pesquisador; músicas com tradição oral; toda música de uma determinada
localidade; música de um determinado grupo considerando suas características particulares,
como a black music norte americana por exemplo; toda a música contemporânea, e por fim
toda a música
5
Através dessas delimitações dos focos de pesquisa, pode-se definir o campo da
etnomusicologia como o estudo comparativo de sistemas musicais e culturas; a análise
compreensiva da música e da cultura musical de uma sociedade, numa abordagem
antropológica; o estudo de música como sistema de sinais, numa perspectiva lingüística e
semiótica; o estudo da música em seu contexto, com técnicas antropológicas, também
(2005: 4). Como vemos, o campo pode ser vasto, no entanto esses possíveis
objetos de estudo só nos dão uma pista do enfoque etnomusicológico.
4
Ver Piazza (1951), Medeiros (1953), Viana (1983), Cascudo (1984) e Soares (1987 e 1997).
5
A afirmação de que toda a música pode ser objeto de estudo da etnomusicologia é curiosa, e em minha opinião
demonstra a tendência de quebra de fronteiras entre etnomusicologia e a musicologia. Esta tendência já foi
sugerida por Kerman (1987) e certamente a nomenclatura da subárea (Musicologia/Etnomusicologia) do curso
de mestrado no qual este trabalho está inserido é um exemplo prático desta aproximação.
15
chamado de “antropologia da música; e estudos históricos musicais de músicas fora do
contexto clássico ocidental (op.cit.: 5). Nettl ainda sugere que a pesquisa etnomusicológica
pode ter como meta a busca por “universais”; a descrição de todos os fatores ligados a um
compositor ou à música de uma sociedade; ou ainda aspectos históricos de desenvolvimento e
mudanças em uma determinada prática musical, aos quais creio que podemos relacionar os
processos de “aculturação”, como sugerido em Krader (1980: 280). Penso que todos os
possíveis objetos de estudo não podem ser interpretados como definidores da pesquisa
etnomusicológica. O foco, como veremos, está muito mais centrado na maneira como estes
universos musicais são abordados. Portanto, penso que esta multiplicidade de definições nos
mostra que a preocupação da etnomusicologia não está tão centrada em qual música será
estudada, mas sim em como será investigada.
Alguns autores elaboram definições para o campo da etnomusicologia que tiveram, e
ainda têm grande repercussão no meio acadêmico. Para Merriam, um dos importantes teóricos
do campo, a etnomusicologia carrega em si uma divisão interna entre duas partes distintas,
uma musicológica, outra etnológica. O lado musicológico estaria mais preocupado com as
estruturas musicais, enquanto o etnológico trata a música como uma parte funcional da cultura
humana (1980: 3). Blacking, outra importante referência do campo, considera a música como
um produto do comportamento de grupos humanos. Independente da forma, a música é som
humanamente organizado (1973: 10). Este autor define a etnomusicologia como o estudo de
diferentes sistemas musicais do mundo (op. cit.: 3). Blacking entende que o significado
musical está totalmente ligado ao contexto social, e só pode ser realmente apreendido através
da experiência, ou vivência, nesse contexto (op. cit.: 52).
Para Menezes Bastos existe um descompasso entre “intenção e efetivação do projeto
disciplinar etnomusicológico”, o que considera como “típico da diplomacia de toda e qualquer
ciência (1995:14). Sobre estes pontos de indefinição do campo da etnomusicologia, destaco
algumas palavras do autor: “Isso mostra como delimitações de campos científicos nunca são
monolíticas, contendo os elementos que apontam para a natureza dinâmica do campo-objeto.”
(op. cit.: 17)
Parece-me, portanto, que nem tudo que é teorizado para esta disciplina acaba sendo
efetivado pela prática. Penso que este descompasso esteja relacionado com o desenvolvimento
do dilema etnomusicológico, que o autor entende como a abordagem da música em dois
planos, um sonoro, outro comportamental/cultural (op. cit.: 10). Seria como entender a música
16
de um lado através de sua semântica musical, que por si só permite uma longa discussão, e de
outro pelo estudo do contexto que envolve determinada prática musical (op. cit.: 12-13).
Outro fator importante para se entender este dilema é a questão do etnocentrismo, da
idéia de “nós e outros”. Menezes Bastos relaciona o etnocentrismo à questão do colonialismo
(op. cit.: 16), e quando trata da etnomusicologia metodologicamente, mostrando sua relação
com a etnologia e etnografia, mostra como estes métodos estão historicamente ligados ao
colonialismo, tanto como efeito deste, quanto dependente deste processo histórico (op.cit.:
64). Blacking exemplifica o etnocentrismo presente em certos estudos etnomusicológicos
quando cita alguns testes de musicalidade, como o de Carl Seashore realizado no início do
século XX por exemplo (1973: 5). Kerman afirma que musicólogos que ainda persistem nos
métodos positivistas atuam de maneira etnocêntrica. Ele critica a musicologia da “música
erudita ocidental” por negligenciar um contexto mais abrangente que não a própria música
(1987: 238). O próprio entendimento do prefixo “etno” nos dá uma pista deste etnocentrismo,
pois sugere a idéia de “outro” (Menezes Bastos, 1995: 16). Uma ciência que contenha esse
prefixo em seu nome é uma ciência que certamente estuda o “outro”.
Quando se pretende estudar o contexto musical, entramos em questões de cunho
antropológico e sociológico, possivelmente podendo fazer ligações com outras áreas das
ciências humanas, isso pode ser entendido como uma tendência à interdisciplinaridade que a
etnomusicologia possui (Béhague, 2004). Atualmente quando falamos em ciências humanas
não podemos deixar de lado temas como o relativismo e universalismo, que já se
manifestavam nas primeiras definições de etnomusicologia propostas por Adler, quando
propunha a musicologia comparada (Menezes Bastos, 1995: 15). Creio que a comparação
entre sistemas e culturas musicais certamente envolve uma carga de relativismo cultural. Esse
relativismo, aplicado aos estudos musicais, é influência da antropologia. A análise cultural
pode ser vista como uma interpretação de significados, uma estimativa de conjecturas, o que
também pode ser entendido como uma interpretação da interpretação (Geertz, 1989). Segundo
Geertz, “os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e
terceira mão” (op. cit.: 25). Béhague discorre sobre essa influência da antropologia
interpretativo-simbólica de Geertz, entre outros métodos (2004: 45), também relacionados à
idéia de relativismo cultural, na abordagem etnomusicológica.
Kerman discorre sobre a importante influência de Charles Seeger na consolidação da
etnomusicologia e cita suas “inclinações universalistas” (1987: 224). O universalismo em
música pode ser considerado como atividade e expressão específica da espécie humana
17
(Béhague, 2004:44). Ainda sobre o relativismo cultural penso que podemos citar sua
influência em Merriam e suas famosas formulações de definição da etnomusicologia: música
“na” e “como” cultura (Merriam, 1977).
Com isso, pretendo mostrar a orientação teórico-metodológica que este trabalho terá
ao tratar de uma música de tradição oral, típica das comunidades litorâneas do Estado de
Santa Catarina. A etnomusicologia será, portanto, o campo disciplinar desta investigação
acerca da Ratoeira, um folclore, patrimônio cultural, enfim, uma prática musical presente
nestas comunidades citadas.
1.2 Dando voz às cantoras: reflexões sobre a etnografia
O método etnográfico não deve ser confundido ou reduzido a uma técnica, podendo
usar ou servir-se de várias, de acordo com as circunstâncias de cada pesquisa. Peirano fala
sobre a existência de “múltiplas tradições etnográficas” (1995: 32). A etnografia é o método
desenvolvido pelas ciências humanas que permite aproximação ao “outro”, enquanto objeto
de estudo (Magnani, 2002: 17). Desta aproximação, penso que surge um diálogo entre a voz
do nativo e o pesquisador. Este último, representando também a voz de autoridades teóricas
do campo científico de atuação. Nesse diálogo, todos evidenciam seus valores, crenças,
posicionamentos políticos, etc. Importante, portanto, refletir sobre o etnocentrismo implícito
que cada parte representa. No caso do pesquisador, creio que é fundamental ter
autoconsciência dessa subjetividade em sua própria maneira de interpretar informações e
formular idéias. Velho alerta que atestar maior cientificidade ao discurso da objetividade e da
neutralidade, conquistadas através de um distanciamento mínimo entre investigador e objeto
de estudo, não é um posicionamento compartilhado por toda a comunidade acadêmica. Esse
posicionamento implicaria numa valorização de métodos quantitativos (1987: 123). Destaco a
seguir algumas palavras do autor, que embora se refira ao campo da antropologia, penso que
seu argumento também pode valer para este estudo etnomusicológico, ou simplesmente
musicológico: “A antropologia (...) tradicionalmente identificou-se com os métodos de
pesquisa ditos qualitativos. A observação participante, a entrevista aberta, o contato direto,
pessoal, com o universo investigado constituem sua marca registrada.” (op. cit.: 123)
O trabalho de campo, estipulando o contato direto com o universo registrado, é
certamente um dos pilares desta pesquisa. DaMatta compara o trabalho de campo, enquanto
iniciação na antropologia social, com um rito de passagem.
18
... a iniciação na antropologia social pelo chamado trabalho de campo fica muito próxima
deste movimento altamente marcado e consciente que caracteriza os rituais de passagem. Realmente,
em ambos os casos, antropólogo e noviço, são retirados de sua sociedade; tornam-se a seguir
invisíveis socialmente, realizando uma viagem para os limites do seu mundo diário (...). Finalmente,
retornam à sua aldeia com uma nova perspectiva (...). Vivendo fora da sociedade por algum tempo,
acabaram por ter o direito de nela entrar de modo mais profundo, para perpetuá-la com dignidade e
firmeza. (1981: 151)
Analisando meu trabalho de campo, considero que não tive que ir a lugares ou
sociedades distantes. Tampouco permaneci em convivência diária com meus informantes
durante um período prolongado de tempo. Realizei visitas, que duraram no máximo algumas
horas, a vários grupos comunitários, que além de conhecerem sobre o repertório musical da
Ratoeira, compartilham uma identidade cultural comum. Alguns destes informantes são
praticamente meus vizinhos. No entanto devemos considerar que o “outro” não é um dado
objetivo, e sim construído epistemologicamente.
Apesar da proximidade geográfica entre “eu” e “eles”, existem alguns fatores de
distanciamento. Como exemplo, cito em primeiro lugar a diferença de faixa etária. As
cantoras de Ratoeira em sua grande maioria são idosas. A própria questão de gênero é uma
diferença, sou um homem pesquisando um universo dito feminino. Santa Catarina também
não é meu estado de origem. Esta informação tem certa relevância na medida em que para
algumas pessoas isso gera uma barreira. Existe um discurso bairrista que corre entre algumas
pessoas no litoral catarinense. Há gente que questiona: o que uma pessoa “de fora” quer saber
sobre a “nossa” cultura?
Na relação que estabeleci com “eles”, ou no caso “elas”, sou o pesquisador, e “elas”,
as pesquisadas. Quando me apresento como um pesquisador e “as” considero como possíveis
de serem pesquisadas, creio que já estabeleço uma fronteira de antemão. Por outro ângulo,
morar em Florianópolis há mais de dez anos, facilita a inserção nesse contexto. Não sei até
que ponto estou realmente vivendo um rito de passagem, porém, considero que posso chamar
de trabalho de campo, ou ainda etnografia, este contato estabelecido com cantoras de Ratoeira
e pessoas que compartilham uma identidade cultural. A dicotomia entre distância e
proximidade pode gerar tanto sensações de estranhamento, quanto familiaridade entre os
informantes e eu (DaMatta, 1981).
Penso que este jogo entre estranhamentos e familiaridades define e inspira certas
interpretações. O discurso etnográfico deste trabalho é, portanto, permeado por interpretações.
Clifford comenta uma dicotomia existente entre “interior” e “exterior” dos acontecimentos
numa observação participante. Num momento a percepção detecta eventos singulares. Noutro,
19
estes eventos adquirem “uma significação mais profunda ou mais geral, regras estruturais, e
assim por diante” (1998: 33). Sobre a observação participante o autor complementa:
“Entendida de modo literal, a observação-participante é uma fórmula paradoxal e enganosa,
mas pode ser considerada seriamente se reformulada em termos hermenêuticos, como uma
dialética entre experiência e interpretação”. (op. cit.: 34)
Quando tratamos de experiência e interpretação, fica difícil escapar da subjetividade, e
às vezes, da mistificação. Com isso, ênfases diferentes são dadas a uma e outra enquanto
estratégias de autoridade. Clifford mostra como a experiência tem servido como “garantia de
autoridade etnográfica”. Porém, esse posicionamento vem sendo criticado por “antropólogos
hermeneuticamente sofisticados”, conferindo à interpretação, um nível maior de autoridade no
discurso. O trabalho final do pesquisador nunca é realizado em campo. Portanto, as narrativas
referentes à experiência em campo carregam interpretações a posteriori (op. cit.: 34-41).
Conseqüentemente, nem a experiência nem a atividade interpretativa do pesquisador científico
podem ser consideradas inocentes. Torna-se necessário conceber a etnografia não como a experiência
e a interpretação de uma “outra” realidade circunscrita, mas sim como a negociação construtiva
envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos.
Paradigmas de experiência e interpretação estão dando lugar a paradigmas discursivos de diálogo e
polifonia. (op. cit.: 43)
Portanto, este trabalho dá voz aos informantes, buscando interpretar os significados de
metáforas, categorias e outros elementos do discurso. Creio que esta atitude é um dos fatores
que institui autoridade ao discurso desta etnografia. Considero esta polifonia de vozes como
um mosaico carregado de heterogeneidades. No decorrer do trabalho de campo, deparei-me
com mulheres de diversos níveis de escolaridade, algumas analfabetas, outras, ex-professoras,
etc. Possuem em comum o conhecimento da Ratoeira, e no discurso a afirmação de uma
identidade cultural baseada na origem açoriana. Dentre as cantoras, além do fator
escolaridade, também existe uma diferença de relação com o objeto de estudo em questão.
Algumas são integrantes de grupos folclóricos que usam a performance como um dos
objetivos de cantar esta e outras cantigas tradicionais desta cultura. Outras cantam
esporadicamente em encontros de grupos de idosos, ou mesmo no dia-a-dia de maneira
espontânea. De acordo com a discussão apresentada, me proponho a organizar estes discursos,
certamente deixando minha marca interpretativa com base na experiência vivida.
20
1.3 Um ritual de flerte
Perceber a Ratoeira enquanto um rito pode ser uma maneira de ampliar as
possibilidades de interpretação do significado desta prática. Considerar como ritual eventos e
cerimônias que ocorrem de forma elaborada e distinta dentro da vida social, como por
exemplo casamentos e formaturas, é uma maneira simplória de pensar este conceito. Peirano
(2003) critica a visão do ritual enquanto um fenômeno formal ou arcaico, dissociado de um
conteúdo. Esta autora lista alguns pontos relativos à sua proposta de interpretação do rito,
expressando uma orientação para a definição de ritual nos dias de hoje. Afirma que definições
de ritual não devem ser rígidas e absolutas, e aponta a etnografia como o caminho da
interpretação do ritual, levando em consideração a voz do nativo, a voz do “outro”. Segundo
Peirano, “O pesquisador deve, portanto, desenvolver a capacidade de apreender o que os
nativos estão indicando como sendo único, excepcional, crítico, diferente;” (op.cit.: 9).
A autora também defende que a natureza de eventos, considerados rituais, não deve
estar em questão, independendo de serem religiosos, profanos, festivos, formais, informais,
simples ou elaborados. A atenção deve estar voltada à forma, às convenções, à combinação de
palavras e ações (op. cit.: 9). Também é importante saber que o ritual está repleto de
categorias, classificações, formas, valores e outros aspectos compartilhados no dia-a-dia
social. O rito, portanto, pode revelar os valores de uma sociedade (op. cit.: 10). Todas as
ações sociais possuem elementos comunicativos explícitos, como por exemplo, a maneira de
se vestir, normas de etiqueta, etc. Desta forma, a fala, e penso que também o canto, são ações
sociais. “Falar e fazer têm, cada um, sua própria eficácia e propósito” (op. cit.: 11). Destaco a
seguir uma “definição operativa” formulada pelo antropólogo Stanley Tambiah em 1985:
O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de seqüencias
ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas
seqüencias têm conteúdo e arranjo caracterizados por graus variados de formalidade
(convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). (Tambiah
apud Peirano, 2003: 11)
Farei referência à Ratoeira neste trabalho em dois momentos históricos. O primeiro
remete ao passado e pode ser observado na literatura que descreve esta prática. O outro
momento é o presente, no qual a Ratoeira assume novas significações enquanto rito. Portanto,
a Ratoeira enquanto cumpria seu papel de intermediar os namoros certamente era uma ação
social que envolvia uma espécie de comunicação simbólica, padronizada através do canto e
sua poética. O propósito desta ação era claro: o flerte, a disputa, a sátira, entre outros.
Atualmente vejo que o propósito pode estar mais relacionado a certa nostalgia e afirmação de
21
identidade, além de também desempenhar um papel de integração entre idosos de
determinadas comunidades. Porém, este ritual continua a desempenhar uma comunicação
simbólica. Esta mudança de significado é um dos interesses desta pesquisa e a discussão será
retomada adiante. Antes disso é interessante conhecer a opinião de outros autores sobre o
conceito de ritual.
Para DaMatta, o rito é “um veículo básico na transformação de algo natural em algo
social” (1997: 35). Esta transformação ocorre através de uma forma qualquer de
dramatização. É a dramatização que dá sentido e torna certas coisas como sendo sociais. De
acordo com DaMatta: “... é pela dramatização que o grupo individualiza algum fenômeno,
podendo, assim, transformá-lo em instrumento capaz de individualizar a coletividade como
um todo, dando-lhe identidade e singularidade.” (op. cit.: 36)
A necessidade de procriar é obviamente natural à existência humana, e acaba
implicando em diversas possíveis maneiras de organização social. No entanto, utilizar o canto
em determinadas situações da vida social para conquistar ou disputar um possível namorado,
é uma maneira de conferir singularidade e identidade a esta ação. Vale lembrar, que este
propósito de flerte perdeu o sentido no presente, pois a Ratoeira perdeu a adesão da juventude
e acontece atualmente num contexto relacionado a idosos e ao folclore.
DaMatta afirma que o mundo do ritual é totalmente relativo ao que ocorre no cotidiano
(op. cit.: 37). Isto, portanto, informa que o ritual pode revelar aspectos da vida social,
ideologias, valores, identidade, entre outros. No Brasil geralmente classificamos eventos que
fazem parte do dia-a-dia, como trabalhar e estudar, e eventos que estão fora da rotina diária,
como festas, cerimônias, solenidades, bailes, congressos, encontros e conferências, por
exemplo. Eventos como estes são considerados extraordinários, fogem da rotina e possuem
como elemento comum o fato de aglutinar pessoas. Estes eventos, no entanto, se diferenciam
de outros, também extraordinários, como milagres e tragédias, por exemplo, pelo fato de
serem previstos (op. cit.: 47). Ainda sobre as diferenças entre estes eventos cotidianos e
extraordinários, o autor afirma: “A passagem de um domínio a outro é marcada por
modificações no comportamento, e tais mudanças criam as condições para que eles sejam
percebidos como especiais.” (op. cit.: 49)
Apesar de extraordinários, estes eventos, ou ritos, não são substantivamente diferentes
da vida cotidiana. O que ocorre são combinações e transformações dos elementos das relações
sociais. “Os rituais seriam, pois, modos de salientar aspectos do mundo diário” (op. cit.: 83).
22
Creio que é válido destacar o caráter mágico de alguns aspectos da cultura em questão
6
Com isso penso que a Ratoeira tanto pode expressar aspectos da vida social de
comunidades do litoral catarinense, como certos elementos desta cultura em questão podem
ser verificados na essência deste rito musical. Creio ainda que isto seja válido tanto para o que
a Ratoeira representava no passado quanto para sua função e significado no presente. Ou seja,
podemos pensar a Ratoeira como um ritual de flerte, remetendo a um tempo passado, e
também um ritual de saudade e exaltação de uma identidade, em relação à sua prática no
presente. De modo que, apesar da mudança de significado, este rito certamente continua a
expressar e reforçar elementos da vida social.
. No
caso da Ratoeira existe a elocução de certas categorias da natureza e do corpo, como pode ser
visto no quarto capítulo deste trabalho, que podem ser interpretadas como tendo função
mágica. É comum, por exemplo, a presença de plantas como a malva, o manjericão, o cravo, a
rosa e outras, como veremos. Quando questionei sobre isso em campo, uma das senhoras me
respondeu que são plantas comuns no universo dessas pessoas, muitos têm em casa. O
perfume de algumas delas eram utilizados com certa função de sedução, e o manjericão por
exemplo, servia para “espantar mau-olhado”. Portanto, pode haver nexo entre essas plantas e
o universo das benzedeiras, também presente nesta cultura. Se anteriormente a presença
mágica dessas plantas num rito musical servia para o flerte e a sedução, agora essa mágica
estaria relacionada em recriar o passado mítico, como veremos a seguir na discussão sobre a
mudança de significado da prática. Montero mostra como o pensamento mágico pode operar
dentro de uma racionalidade, contrariamente ao que geralmente se crê. Essa racionalidade
estaria ligada à função e ao objetivo dessas ações mágicas. Para a autora “os ritos são gestos,
palavras e operações realizadas pelo mágico” (Montero, 1986).
1.4 Do tempo dos antigos: a designação de folclore e suas implicações
Classificar a Ratoeira como uma prática folclórica é algo aparentemente mais óbvio do
que considerá-la um ritual. Para quem busca saber sobre o assunto, essa talvez seja a primeira
categorização que se faça a seu respeito. Um indicativo disso é o fato de a grande maioria do
material existente sobre o assunto ser composta de textos dos Boletins da Comissão
6
Como por exemplo foi tratado em Maluf (1993) sobre o mundo das bruxas em comunidades semelhantes às
pesquisadas. Numa perspectiva não tão acadêmica, o tema foi tratado em Cascaes (1989).
23
Catarinense de Folclore
7
Já sabemos que o folclore pode ser objeto de estudo da etnomusicologia. Portanto, é
fundamental entender o que o conceito de folclore representa e como é tratado por alguns
autores. Apresento a seguir um breve histórico do termo.
, que trazem descrições formais sobre esta prática. Os folcloristas a
definem como uma coisa antiga e dos antigos, algo a ser preservado, resgatado, algo que
desperta saudade e conecta o povo aos antepassados açorianos. Atualmente sua prática está
fortemente ligada a apresentações em festivais de folclore e cultura açoriana, sendo cantada
exclusivamente por grupos de idosos compostos basicamente por mulheres. Voltarei a falar
sobre o que presenciei da prática da Ratoeira em meu trabalho de campo no quarto capítulo.
O termo folklore apareceu em agosto de 1856 numa carta escrita por William John
Thoms
8
para a revista londrina The Atheneum (Brandão, 1982: 26). O conceito foi ganhando
adeptos até que em Londres foi fundada a Folklore Society
9
- As narrativas tradicionais, como os contos populares, os mitos, lendas e estórias de adultos
ou de crianças, as baladas, “romances” e canções;
no ano de 1878. Esta sociedade,
criada por “um grupo de tradicionalistas, mitólogos, arqueólogos, pré-historiadores,
etnógrafos, antropólogos, psicólogos e filósofos”, possuía pretensões em estabelecer um novo
campo científico (op. cit.: 28). Seus objetos de estudo eram:
- Os costumes tradicionais preservados e transmitidos oralmente de uma geração à outra, os
códigos sociais de orientação da conduta, as celebrações cerimoniais populares;
- Os sistemas populares de crenças e superstições ligados à vida e ao trabalho, englobando,
por exemplo, o saber da tecnologia rústica, da magia e feitiçaria, das chamadas ciências populares;
- Os sistemas e formas populares de linguagem, seus dialetos, ditos e frases feitas, seus
refrões e adivinhas. (op. cit.: 28)
O interesse por este tipo de objetos de estudos é uma tendência que, segundo Carvalho
(2000), existe desde o século XVII, no início da modernidade européia. Estes objetos de
estudo, ainda não rotulados de folclore, representavam algo antigo, quase perdido, que ainda
persistia no novo contexto social da modernidade.
No seio de sociedades que se representavam no nível de seus códigos legais como
homogêneas, regidas por normas universais e unificadoras, surge simultaneamente a percepção de que
fragmentos de um estrato anterior permanecem sem ser dissolvidos neste processo de constituição dos
estados-nação que caracterizou a modernidade. (Carvalho, 2000: 13)
7
Como por exemplo, Medeiros (1953), Piazza (1951), Soares (1997) e Viana (1983).
8
Este, na verdade, era um pseudônimo de Ambrose Merton, um assinante da revista The Atheneum (Carvalho,
2000: 14).
9
Ver o sítio: www.folklore-society.com
24
Esta percepção, à qual a autora se refere, torna evidente uma heterogeneidade existente
no contexto social do incipiente mundo moderno, que ia de encontro à tendência dominante
da homogeneização e racionalidade referentes à estruturação dos estados-nação. Deste
contraste, entre os costumes populares e o comportamento institucionalizado, surgem várias
denominações e categorizações, como “superstições”, “antiguidades vulgares” e
“antiguidades populares”, por exemplo. Isso acabou culminando no termo folclore, que
passou a ser uma denominação definitiva para este tipo de objeto de estudo (op. cit.: 13).
O termo folclore foi formulado pela união de duas palavras saxônicas: folk e lore,
“onde lore significa saber e folk, gente as pessoas comuns” (op. cit.: 14). O termo folk, no
entanto, gera imprecisões de definição.
No uso habitual deste termo folk, até hoje, vemos esta ambivalência, folk é povo, gente
comum, plebe, mas também pode ser um grupo de qualquer extração social quando, devido à ocasião,
seu senso de coletividade ou de solidariedade quer ser colocado em relevo, quando sua coesão se torna
mais forte. (op. cit.: 14)
A noção de antigo, contida naquilo que é considerado folclore, é acompanhada
também da noção de desaparecimento, ou possível extinção (op. cit.: 14). Penso que esta
noção é uma das motivações para o discurso do resgate entre os folcloristas. Além da aparente
necessidade de resgate, defendida pelos folcloristas, também existe um teor de saudosismo em
todo esse discurso. De acordo com Carvalho, “um saudosismo que denota a ruptura das
épocas e o progressivo vazio deixado pelo que Weber descreveu como ‘desencantamento do
mundo’.” (op. cit.: 14)
Vivenciei em meu trabalho de campo estes discursos da extinção e do resgate, tanto na
voz dos praticantes da Ratoeira, quanto entre informantes relacionados à coordenação dos
grupos investigados e pessoas ligadas a secretarias de cultura. Uns dizem que a Ratoeira vai
um dia acabar porque é conhecida e ainda cantada somente por pessoas idosas. Também é
dito que é importante ser resgatada, assim como no caso de outros aspectos culturais do litoral
catarinense, para que não se perca a identidade e os valores. O teor saudosista também é
comum nestes discursos. O terceiro capítulo trata mais detalhadamente destes discursos no
ponto de vista do nativo.
Carvalho considera que existe um “tripé conceitual” em torno do conceito de folclore,
constituído por três outras idéias: povo, nação e tradição (op. cit.: 15). Sendo assim, o folclore
seria o saber do povo na perspectiva de uma nação moderna. A nação, portanto, poderia
resgatar e racionalizar este saber, estabelecendo a demarcação de uma identidade, e também
25
instituindo, ou inventando uma tradição (Hobsbawm, 1983). A ambigüidade em torno do
conceito de folclore, e seu “tripé conceitual”, leva a algumas questões que considero serem
importantes no processo de desgaste que este termo sofreu, como veremos adiante. Carvalho
indaga:
1. É todo povo folk? Como delimitar este tipo de povo que interessa? Como diferenciar povo
de não povo? Há setores da sociedade que não são povo? O que é, afinal de contas, povo, e o que não
é?
2. É toda cultura deste povo relevante para a identidade da nação?
3. É todo saber tradicional constitutivo destas manifestações ou há saberes tradicionais que
não o são? Acaso não é tradicional toda cultura? ... Quais são os limites da tradição? (2000: 15)
As respostas para estas questões viriam com a mudança paradigmática na idéia de
cultura formulada nos anos 60
10
. Nessa mudança, o objeto de estudo passou a não ter tanta
importância, mas sim a maneira como era tratado. Os estudos de folclore consistiam
metodologicamente em “análises tipológicas”, uma busca excessiva pela forma, tornando-se
obsoletas após essa mudança de paradigma. Este tipo de trabalho foi substituído pela “exegese
das tipologias nativas”, ou seja, a voz do nativo passou a ser o foco da atenção (op. cit.: 19).
Peirano nos dá uma visão um pouco mais aprofundada deste momento de aparente crise do
folclore no contexto acadêmico. A autora discorre que até o final dos anos 30, o estudo do
folclore estava estreitamente ligado à etnografia no Brasil. Um exemplo disso foi a Sociedade
de Etnografia e Folclore
11
Nesse momento, havia um esforço em fornecer uma base mais científica aos estudos
de folclore no Brasil. O valor do trabalho de campo era ressaltado, o que resultou em
importantes contribuições como as viagens etnográficas de Mário de Andrade. No entanto, a
partir do final dos anos 30 até os anos 60, período em que a sociologia viveu uma fase
hegemônica no meio acadêmico brasileiro, o folclore passou a se distanciar das ciências
sociais e a perder status de ciência (op. cit.: 87). Este também foi um momento crucial do
debate da formação da identidade nacional. Enquanto o folclore se encarregava de fornecer
elementos constituintes desta identidade nacional, a sociologia buscava uma teoria sociológica
feita no Brasil. Dessa forma, estabeleceu-se uma hierarquia dentro das ciências sociais, na
qual a sociologia, por possuir “maior fôlego teórico”, ocupa um lugar de destaque. O folclore
em contrapartida estaria em último lugar nesta hierarquia, estando abaixo, nesta ordem, da
, que em 1937 vivia um momento de relativo prestígio (2000: 85).
10
Ver Geertz (1989), por exemplo.
11
Presidida por Mário de Andrade, esta sociedade era ligada ao Departamento de Cultura do Município de São
Paulo.
26
etnografia, da etnologia e da antropologia. A antropologia, ainda desprovida de uma
“perspectiva teórica madura”, vinha em segundo plano em relação à sociologia. Este quadro
se alteraria depois dos anos 50, quando a antropologia passa a considerar o “outro” como
objeto de estudo, e não mais o exótico e o não-ocidental. Neste momento, o que havia sido
objeto de estudo do folclore, passa a ser de interesse da antropologia também, com uma
abordagem teórico-metodológica mais elaborada. O estudo do folclore, neste período de
afastamento e alvo de críticas do mundo acadêmico, posteriormente acaba encontrando no
desenvolvimento das ciências sociais, a elaboração teórica que faltava. Com isso, Peirano vê a
possibilidade de uma nova abordagem do folclore nos estudos acadêmicos, mais madura e
teoricamente mais elaborada (op. cit.: 87).
Apesar da posição hierárquica inferior citada, isso não significou que o estudo do
folclore estivesse em abandono. Pelo contrário, como veremos adiante, a década de 50 foi um
período de grande produção e desenvolvimento desta área no Brasil. O maior desafio para os
defensores do folclore
12
No Brasil, um marco para os estudiosos do folclore foi o I Congresso Brasileiro de
Folclore, realizado em 1951 no Rio de Janeiro (Brandão, 1982: 31). Este congresso criou a
Carta de Folclore Brasileiro. Cito a seguir algumas palavras deste documento:
, enquanto ciência, foi justamente conquistar autonomia dentre as
ciências humanas já estabelecidas, como a sociologia, por exemplo. Brandão cita como alguns
dos importantes estudiosos da época definiam o folclore. Para Franz Boas, por exemplo,
folclore era “um aspecto da etnologia que estuda a literatura tradicional dos povos de qualquer
cultura” (Brandão, 1982: 29). “Arthur Ramos, um dos pioneiros do estudo sistemático do
folclore brasileiro, compreendia-o como uma divisão da antropologia cultural” (op. cit.: 30).
Isso faz recordar a idéia de disputa de poder entre campos científicos, como tratada por
Bourdieu (1983).
1. O I Congresso Brasileiro de Folclore reconhece o estudo do folclore como integrante das
ciências antropológicas e culturais, condena o preconceito de só considerar folclórico o fato espiritual
e aconselha o estuda da vida popular em toda sua plenitude, quer no aspecto material, quer no aspecto
espiritual.
2. Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas
pela tradição popular e pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos
eruditos e instituições que se dediquem ou à renovação e conservação do patrimônio científico e
artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica.
12
A palavra folclore passou a ser escrita em maiúscula (Folclore) pretendendo estabelecer um status de ciência,
uma disciplina à parte, enquanto o uso da palavra escrita em minúscula seria o saber do povo enquanto objeto de
estudo (Brandão, 1982: 28). Neste trabalho, no entanto não utilizo essa distinção para não entrar neste tipo de
distinções, como entre saber popular e ciência por exemplo, que renderiam uma boa discussão.
27
3. São também reconhecidas como idôneas as observações levadas a efeito sobre a realidade
folclórica, sem o fundamento tradicional, bastando que sejam respeitadas as características de fato de
aceitação coletiva, anônimo ou não, e essencialmente popular.
4. Em face da natureza cultural das pesquisas folclóricas, exigindo que os fatos culturais
sejam analisados mediante métodos próprios, aconselha-se, de preferência, o emprego dos métodos
históricos e culturais no exame e análise do Folclore. (op. cit.: 31)
Vilhena considera que este “movimento folclórico”, como prefere chamar, teve uma
repercussão durante os anos 50 proporcionalmente muito maior em relação ao quanto é
estudado atualmente (1996: 2). Sobre a pretensão desses estudos folclóricos serem
reconhecidos como disciplina autônoma, buscando, portanto, uma institucionalização, o autor
afirma: os estudos de folclore deveriam ser reconhecidos como disciplina autônoma no
interior do campo das Ciências Sociais e possuir uma cátedra específica nas Faculdades de
Filosofia, garantindo que a pesquisa superasse o amadorismo então reinante no campo.(op.
cit.: 3)
É importante citar alguns intelectuais que tiveram papel fundamental no
desenvolvimento da pesquisa folclórica no Brasil. Sílvio Romero, Amadeu Amaral e Mário de
Andrade, seriam as maiores influências da área no contexto nacional (Cavalcanti, Barros,
Vilhena, Souza & Araújo, 2000: 101). Travassos nos dá um panorama aprofundado da
influência de Mário de Andrade, que via no folclore o cerne da identidade nacional. Mário de
Andrade, um dos mais importantes representantes do modernismo brasileiro, incentivava a
incorporação dos elementos folclóricos na produção artística brasileira, visando à elaboração
de uma estética artística nacional genuína (1997 e 2000). Em Santa Catarina, destacaria
Walter Piazza, Doralécio Soares e Franklin Cascaes, como os principais intelectuais que
contribuíram para a pesquisa do folclore neste estado.
Como havia a concepção de que estes estudos de folclore deveriam servir à
“preservação das raízes da nacionalidade”, era de se esperar que o órgão que articulasse esses
esforços fosse diretamente ligado ao governo. A Comissão Nacional de Folclore, fundada em
1947 por Renato Almeida, é uma entidade governamental ligada ao IBECC (Instituto
Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura) e à UNESCO, que desempenhou este importante
papel de articulação entre os estudiosos do folclore. Uma das principais ações de Renato
Almeida nesta comissão foi criar comissões regionais em quase todos os estados brasileiros.
Estas comissões, coordenadas por representantes folcloristas de cada região, serviriam para
“organizar pesquisas, divulgar a causa do movimento e desenvolver esforços no contexto
local para a proteção do folclore”. A idéia era criar uma rede que abrangesse todo o território
nacional. O grande sucesso do movimento folclórico na década de 50, apesar de toda a crítica
28
acadêmica, se deve em grande parte aos congressos periódicos realizados em diversas cidades
brasileiras (Vilhena, 1996: 3-4).
No entanto, apesar de todo o avanço conquistado pelo movimento folclórico no Brasil,
os objetivos não foram inteiramente alcançados. Entre os principais motivos estavam
justamente as críticas dos representantes da sociologia às posições metodológicas e teóricas
do movimento. Após o avanço das Ciências Sociais no final da década de 60, com a criação
de novos programas de pós-graduação, a mudança de paradigma no conceito de cultura, o
folclore foi perdendo espaço enquanto especialidade, como já citado anteriormente. Este
amadorismo dos folcloristas brasileiros talvez fosse justificado pelo fato de que boa parte dos
secretários das comissões estaduais desempenhava ltiplas funções, como advogados,
médicos, jornalistas, docentes, políticos, entre outras. Com isso a dedicação à pesquisa
folclórica, e a própria produção de pesquisas, não era regular (op. cit.: 6).
Além do esforço em “preservar” estes conhecimentos e práticas populares, havia a
intenção, por parte dos folcloristas, de contribuir na formulação da identidade nacional. Para
isso deveria haver um equilíbrio entre os traços nacionais e regionais na elaboração desta
identidade. Este discurso de conciliar regional e nacional era muito presente no discurso de
folcloristas, no entanto na prática isso não se verificava nos resultados dos estudos. A atenção
parecia estar mais voltada ao regional, com trabalhos marcados por um “intenso empirismo”
(op. cit.: 10). Além desta dicotomia entre regional e nacional, também era presente no
discurso dos folcloristas a dicotomia entre cultura erudita e folclórica. A primeira possuindo
“vocação universalista” e a segunda com “capacidade de criar identidades”. Cada uma
devendo ser valorizada em seus domínios específicos. (op. cit.: 14). Portanto, já é clara a
relação entre o folclore e a questão da identidade cultural. Esta também é uma discussão
fundamental neste trabalho e será introduzida a seguir, sendo que permeará todo o trabalho.
1.5 Isso é herança dos açorianos: uma identidade em evidência
Os processos de construção da identidade estiveram sempre presentes nas discussões
nacionalistas, tanto no Brasil quanto em outros países e também no campo artístico, como no
caso do modernismo brasileiro
13
13
Sobre a questão do nacionalismo ver Hobsbawm (1990) e Guibernau (1997). Taruskin (2009) e Turino (2003)
tratam do nacionalismo no campo da música. No caso do Brasil, Travassos (2000) discute o nacionalismo no
movimento modernista do início do século XX.
. Um conceito importante relacionado à construção de
29
identidade é o de autenticidade (Stokes, 1994). Para Stokes, autenticidade e identidade estão
intimamente ligadas (op.cit.: 6). O autor também discute a problemática de se definir o
conceito de etnicidade, e discorre que este deve ser entendido em termos de construção,
manutenção e negociação de fronteiras. Complementa formulando que fronteiras étnicas
definem e mantém identidades sociais (op.cit.: 6).
Os modernistas brasileiros, por exemplo, em sua busca por uma arte nacional
autêntica, utilizavam material folclórico. Esta autenticidade artística atuaria na construção e
manutenção de uma identidade nacional, o que conseqüentemente destacaria as fronteiras
nacionais no contexto artístico internacional. A autenticidade artística viria como resultado da
utilização de matéria-prima autêntica, retirada do folclore oriundo principalmente do meio
rural brasileiro. Para elucidar melhor sobre esta autenticidade proveniente do folclore vale
falar também na idéia de patrimônio cultural. Para Gonçalves uma identidade cultural pode
ser representada por patrimônios culturais, e de acordo com o autor, “os chamados
patrimônios culturais podem ser interpretados como coleções de objetos móveis e imóveis,
através dos quais é definida a identidade das pessoas e de coletividades como a nação, o grupo
étnico etc.”. (1988: 266)
O autor mostra como um patrimônio cultural está normalmente ligado a políticas
culturais, que através de ministérios, secretarias, fundações, associações e etc., atuam para
construir e comunicar uma identidade étnica ou nacional (op. cit.: 266). Isso se confirmou em
meu trabalho. A maioria dos grupos e pessoas que forneceram informações a esta pesquisa
estão, ou já estiveram, ligados a políticas culturais. O trabalho de campo foi realizado em
diversos encontros de grupos de idosos. Estes grupos de idosos estão relacionados a
associações de bairro e secretarias de cultura. Em alguns casos, o objetivo destes encontros
está em trabalhar na manutenção de tradições, como cantigas, manufaturas, danças, etc. Em
outros, o foco é a saúde física e mental dos participantes através de integração social e
atividades ocupacionais. Grande parte das senhoras que freqüentam estes encontros são
viúvas, algumas em idade avançada. A ênfase nestes encontros transita entre o folclore e a
terapia ocupacional dependendo das circunstâncias. No entanto, a questão da identidade está
sempre em voga quando o que é considerado patrimônio cultural está em questão. O orgulho
em preservar certas práticas culturais como a Ratoeira, o Boi de Mamão, e mesmo
patrimônios culturais móveis e arquitetônicos como igrejas e outras construções centenárias, é
comum nesse contexto. Este orgulho está relacionado à identidade cultural de origem
açoriana, seus costumes e valores. Valores que parecem ter ficado em algum lugar do passado
30
antes da influência dos meios de comunicação e as mudanças sociais decorrentes disto. Entre
os vários efeitos dessa influência, parece ter havido uma diminuição na auto-estima das
pessoas, como conta o discurso nativo. A recuperação da auto-estima nestas comunidades é
um dos discursos de políticas culturais como estas que promovem estes encontros de idosos,
parcela da população a qual problemas de auto-estima também se relacionam às limitações da
idade (op. cit.).
Podemos analisar a origem açoriana da cultura do litoral catarinense em seus
processos de formação de identidade num contexto local, fazendo analogia à construção da
nação brasileira. Para DaMatta, a identidade nacional brasileira não estaria ameaçada pelo
fenômeno da globalização dos fins do século XX, pois o nacionalismo teve bases sólidas em
sua formação (apud Lacerda, 2003a: 9). No entanto algumas tendências contemporâneas
seriam perceptíveis, entre elas: “... a intensidade dos processos locais de afirmação étnica, a
emergência de transnacionalismos de toda ordem e a progressão incalculável das viagens.”
(op. cit. 9). Na intenção de melhor compreender a açorianidade, Lacerda parte destas
considerações de DaMatta para investigar questões como o transnacionalismo, processos de
afirmação de identidade, invenção da tradição e sociabilidade local. Sobre o termo
açorianidade, Lacerda explica:
...cunhado na década de 1930 pelo escritor açoriano Vitorino Nemésio, traduzia na época um
esforço sistemático e permanente de intelectuais e organizações políticas açorianas para fixar, no
imaginário nacional português, um espaço de diferença constitutivo da identidade cultural das
populações do Arquipélago. (op.cit. 10)
Este autor discorre que este discurso da açorianidade atravessa o século XX, como um
“mote unificador” entre as comunidades dos Açores e de outras comunidades de imigrantes e
descendentes de imigrantes açorianos pelo mundo, como no caso do Sul do Brasil. Lacerda
mostra como manifestações de cultura popular traduzem e alimentam este sentimento da
açorianidade, simbolizando a busca de uma identidade cultural, podendo inclusive estar
relacionada a disputas de ordem política em alguns contextos. O discurso da açorianidade
“narra uma idéia de nação para além das fronteiras nacionais” (op.cit.: 11).
Isso mostra como um sentimento de identidade nacional ou cultural muitas vezes pode
transcender a fronteira política dos estados. Essa idéia de nação além de fronteiras nacionais
talvez seja baseada em um sentimento fraterno e nostálgico no caso dos descendentes de
imigrantes, mas também pode envolver questões políticas e sociais. Pessoas com antepassados
de um mesmo local de origem podem utilizar esse fator em comum como elemento
demarcador de uma fronteira cultural. Uma comunidade unida por um sentimento de
31
identidade cultural provavelmente possui mais força na conquista de espaço político dentro de
um contexto mais abrangente.
A imigração dos açorianos para algumas partes do mundo, principalmente na América,
pode ser encarada como uma diáspora (op.cit.). Baseando-se em Clifford (1997), Lacerda
afirma que geralmente os povos que experimentam a diáspora acabam desenvolvendo
sentimentos de identidade divididos: de um lado estaria a identidade da terra de origem, de
outro uma nova identidade criada num novo contexto de inserção social (op. cit.). Isso
tornaria evidente a capacidade dos povos de recriarem sua cultura em locais diferentes (op.
cit.: 37). Paralelamente a isso, a aceitação e valorização da cultura de origem açoriana variam
historicamente. Em Santa Catarina, em geral sempre se tratou das culturas litorâneas como
atrasadas em relação àquelas do interior, onde houve predomínio de colonos alemães e
italianos. A partir da década de 1990 a cultura açoriana passa a ser vista positivamente e surge
então entre alguns intelectuais a necessidade de elaborar um discurso de “preservação” e
“resgate” (op. cit.: 89). Isso acabou levando ao que os teóricos do nacionalismo chamam de
invenção de tradição (Hobsbawm e Ranger, 1983). Sobre isso, Lacerda afirma:
Como imagem notória e integrada, a elaboração da identidade vai implicar na seleção de
atributos tácitos, quer dizer, no estabelecimento de um consenso sobre a memória. O que devemos
lembrar é uma questão crucial nos processos de reconstrução identitária. No entanto, lembrar também
implica uma dose de esquecimento. (2003a: 98)
Alguns dos mecanismos que atuaram na construção desta identidade dos açoriano-
brasileiros foram: o “mito fundador”, que narra a saga da chegada dos imigrantes; a
demarcação de uma fronteira, no contexto multiétnico do Estado de Santa Catarina; eventos
evocativos, que principalmente a partir dos anos 90 passam a valorizar a cultura açoriana do
litoral catarinense; um repertório singular de tradições culturais, como o ciclo do divino, Farra
do Boi, Boi de Mamão, Terno de Reis, Pão por Deus, Renda de Bilro, lendas e mitos, danças
de roda (entre elas, a Ratoeira); a figura do “manézinho da ilha”; e viagens e “peregrinações”,
como as promovidas por instituições dos Açores para levar descendentes de açorianos ao
Arquipélago
14
Como vimos, a Ratoeira pode ser entendida como um dos mecanismos do sistema que
reforça o sentimento de identidade açoriano-brasileira no litoral catarinense. No entanto, não é
uma manifestação muito divulgada pela mídia como um símbolo de identidade açoriano-
.
14
Ver Lacerda (2003a: 98-106). No trabalho de campo presenciei a vinda de um grupo folclórico dos Açores que
veio à Santa Catariana, patrocinado por uma prefeitura açoriana. O grupo veio com o objetivo de fazer algumas
apresentações e estabelecer um intercâmbio com um grupo folclórico da cidade de Bombinhas. No terceiro
capítulo narro com mais detalhes este episódio.
32
brasileira, ou catarinense. Aliás, é conhecida entre um número restrito de pessoas, entre os
quais não parece desempenhar uma função central na expressão da identidade cultural local se
comparada a outras manifestações, como por exemplo o Boi de Mamão, que possui maior
visibilidade no cenário da mídia catarinense. Além disso, o Boi de Mamão possui grande
adesão de jovens, o que não ocorre com a Ratoeira.
Diferentemente dos processos de elaboração de uma identidade nacional, a Ratoeira
parece atuar em conjunto com todo um arsenal de outras práticas. No caso da identidade
nacional, parece haver uma tendência muito maior em selecionar um ou alguns fatores
definidores de identidade
15
Valorizar várias práticas folclóricas talvez seja um mecanismo de estabelecer as
fronteiras da identidade neste contexto regional, facilitando a integração destas identidades. A
Ratoeira, portanto, exerceria este papel de compor um conjunto de traços da identidade
cultural dos açoriano-brasileiros do litoral catarinense. No caso da Farra do Boi isso
aconteceria de maneira transgressora, ou mesmo ilegal
. No caso de uma identidade local, parece haver mais aceitação de
um repertório mais amplo enquanto representatividade simbólica. Ao menos no caso do
Estado de Santa Catarina este parece ser o caso, talvez porque o povo catarinense é divulgado
pela mídia como um mosaico de etnias, dada a imigração de pessoas provenientes de vários
lugares. A cultura de descendentes de alemães e italianos parece ser a mais preferida na
divulgação enquanto imagem do povo catarinense pela mídia, mas a cultura açoriano-
brasileira vem conquistando mais espaço e aceitação desde a década de 1990, como mostrou
Lacerda (op.cit.). Esse panorama da identidade catarinense parece estar relacionado à maneira
como é distribuída a renda e o poder no estado, o que certamente merece uma análise
sociológica mais aprofundada.
16
Após toda a digressão sobre a Ratoeira e seu contexto sócio-cultural e o conceito de
açorianidade, é possível analisar esta prática musical enquanto mecanismo de afirmação de
identidade cultural. Isso poderia também ser uma maneira de entender como esta prática
encontra seus novos espaços no mundo globalizado atual, contrariando o discurso da extinção.
A Ratoeira não é o principal símbolo da cultura açoriano-brasileira, ou da identidade cultural
do litoral catarinense, mas expressa elementos fundamentais ainda presentes em outras
dimensões culturais. Não apenas a jocosidade e as relações amorosas como também o
.
15
No Brasil, no início do século XX elegeu-se o samba como a música que representa a nação, e neste processo
de eleição, todo um repertório musical produzido no Brasil acabou colocado numa posição hierárquica inferior
enquanto símbolo nacional (Vianna, 2004).
16
Para saber mais a respeito da Farra do Boi ver Menezes Bastos (1993) e Lacerda (2003b).
33
universo fantástico e sobrenatural, onde plantas e corpos se fundem nos feitiços de amor.
Todos os elementos simbólicos, expressos tanto na poética quanto na dimensão sonora,
agindo neste verdadeiro rito do litoral catarinense que é a Ratoeira, trabalham portanto em
função da construção e manutenção de identidade.
1.6 Ratoeira é coisa de mulher: relações de gênero e prática musical
O que se constata facilmente no universo da Ratoeira é o fato de ser praticada quase
exclusivamente por mulheres. Em meu trabalho de campo praticamente não conheci homem
algum que a cantasse. Uma decorrência disso talvez seja o fato de haver pouca participação
masculina nos grupos de idosos que averigüei. Se existem homens que cantam e conhecem o
repertório da Ratoeira atualmente em Santa Catarina, ainda não os conheci
17
No entanto, de acordo com o discurso nativo, parece que entre os homens havia certa
timidez de cantar a Ratoeira. Nem todos sabiam cantar este repertório, apesar de
freqüentemente estarem presentes, até porque as cantigas eram para eles. Outro dado é que as
mulheres aprendiam com suas mães e avós esse repertório. Acredito que a suposta timidez dos
homens esteja relacionada com uma fronteira de gênero expressa neste repertório. Homens
que supostamente cantavam outros repertórios, como o Boi de Mamão e a Trova,
essencialmente masculinos de acordo com o discurso nativo, não se sentiam muito a vontade
para cantar a Ratoeira. Creio que o fato de não ter encontrado homens cantores de Ratoeira
não seja mera coincidência. Penso que pode haver um espaço de transgressão na hierarquia de
poder entre homens e mulheres. Essa relação de poder expressa na música já foi objeto de
vários estudos
. As mulheres que
entrevistei, quando se referem ao passado, contam que os homens sempre estavam por perto
da roda de Ratoeira. Eventualmente participavam da roda, pois era uma situação socialmente
permitida para darem as mãos às mulheres, trocarem olhares e se paquerarem através da
cantiga.
18
17
Faço uma exceção para o Grupo da Terceira Idade da UFSC, que realiza apresentações folclóricas
freqüentemente, e possui homens em sua formação. Os homens são basicamente instrumentistas, mas também
cantam em coro, como por exemplo nas cantigas de Ratoeira que fazem parte do repertório. No entanto,
considero este exemplo atípico, pois esta performance da Ratoeira é bem estilizada e se difere muito do resto do
material coletado em campo. Voltarei a refletir sobre isso no quarto capítulo.
, e geralmente revelam a supremacia dos homens em relação às mulheres. A
18
Ver McClary (1991), Citron (2000) e Mello (2007) por exemplo.
34
Ratoeira poderia ser um momento de inversão nessas relações entre homens e mulheres,
enquanto um terreno de sabedoria das mulheres
19
Portanto, a Ratoeira parece expressar um discurso simbólico construído sobre um
sistema de categoria binária, como o masculino e feminino (Héritier, 1997: 17). Françoise
Héritier considera essa oposição binária como um sinal cultural que não possui sentido
universal (op. cit.: 19). Estas oposições ou categorias binárias são freqüentes em um número
incontável de sociedades. Alguns exemplos como baixo, alto, Lua, Sol, esquerda, direita, leve,
pesado, inferior, superior, feminino, masculino, estão presentes em diversas culturas, como a
ocidental por exemplo, com grande influência do pensamento grego. O Yin e Yang do
pensamento taoísta seria outro exemplo. O interessante é o modo como estes dualismos se
associam. Por exemplo, relacionar o Sol ao elemento masculino e a Lua ao feminino não é um
consenso entre todas as sociedades. Ou seja, essas associações duais denotam características
culturais, sociais e até mesmo filosóficas (op. cit.). Dessa maneira, penso que decifrar estas
relações neste tipo de discurso simbólico, como no caso da Ratoeira, é uma maneira de
acessar a outros aspectos culturais. Creio que através das exegeses do discurso nativo,
podemos procurar as relações do dualismo masculino/feminino com o significado musical da
Ratoeira.
.
Uma questão freqüente relacionada aos gêneros sexuais é a da assimetria hierárquica
existente entre eles, uma influência da antropologia feminista, que tornam explícitas as
relações de poder e dominação entre os sexos (Mello, 2004: 49). No entanto, idéias
universalizantes podem levar a enganos e falsas interpretações. Mello (2007), discorrendo
sobre sua experiência no Alto Xingu pesquisando os índios Wauja, se depara com uma
complexa e singular associação entre música e as relações de gênero nessa sociedade. A
autora, portanto, vê a necessidade de desconstruir certas formulações universalizantes em
torno desta discussão no campo da musicologia, e sobre isso afirma: “Ao tratar de povos que
vivem e pensam as relações de gênero de forma tão peculiar e tão explicitamente associada ao
campo da música, nos vemos forçados a reformular nossas próprias idéias a este respeito em
nossa sociedade.” (op. cit.)
Entendo com isso, que cada caso, levando em consideração essas associações entre
gênero e música, deve ser pensado através de suas próprias singularidades. No caso da
Ratoeira, a ligação com o universo feminino deve ser percebida enquanto construtora de
19
Essa inversão ocorria por exemplo no contexto da bruxaria, estabelecendo um terreno no qual as mulheres
possuem mais poder, como tratado em Maluf (1993) a respeito da mesma cultura em questão.
35
significados. O discurso simbólico implícito na afirmação de que Ratoeira é coisa de
mulher”, como registrado em campo, denota uma carga de significados que certamente têm
suas correspondências com todo o contexto social, cultural e histórico das cantoras. Essa
carga de significados relacionada à questão de gênero pode fornecer elementos na discussão
sobre a mudança de significado que trato a seguir.
1.7 As vovós da Ratoeira
Uma questão que se mostrou relevante também nesta pesquisa é a faixa etária
predominante das mulheres que praticam a Ratoeira atualmente, na faixa entre 60 e 90 anos
de idade aproximadamente. Isso seguramente tem suas implicações nas relações sociais
estabelecidas entre elas e a comunidade. Mead classifica três tipos de cultura: uma pós-
figurativa, na qual as crianças aprendem primordialmente com os mais velhos, firmando-se a
idéia de continuidade imutável entre as gerações; outra co-figurativa, onde tanto crianças e
adultos aprendem com seus semelhantes, sendo natural que se assumam novas condutas em
cada nova geração; e uma última, pré-figurativa, na qual os adultos também aprendem com as
crianças, o que segundo a autora é reflexo do período em que vivemos e pode ser observada
no abismo existente entre gerações na sociedade contemporânea, exemplificando com a
problemática da rebeldia adolescente (2006).
Quando citei anteriormente que as mães e avós ensinavam suas filhas a cantar a
Ratoeira, penso que existe uma relação com essas categorias de cultura elaboradas em Mead
(op. cit.). A filha aprendia com a mãe, que por sua vez aprendia com a avó e assim por diante.
Podemos traçar um paralelo aí ao sentimento de saudade deste tempo onde isto acontecia.
Para o discurso nativo, enquanto havia essa continuidade na transmissão do conhecimento, se
mantinham os valores da sociedade, havia mais respeito e dignidade. Hoje o valor a este tipo
de cultura, pós-figurativa para Mead, de certa maneira ainda existe quando, por exemplo,
pescadores do litoral catarinense resistem a aderir a novas técnicas de pesca para não mudar o
que foi ensinado pelos antepassados. Vejo que a perda dessa continuidade é um dos fatores
presentes no discurso da saudade de um modo de vida passado, e está totalmente ligado à
geração das cantoras em questão, como se elas fossem um último elo desse modo de pensar e
agir (op.cit.).
36
1.8 Namoro ou saudade? Um novo significado musical
A mudança de significado na prática da Ratoeira, a qual me refiro, a princípio pode ser
observada pelo o que é descrito em alguns documentos e também pelo discurso nativo
20
.
Ocorre porque a Ratoeira não é praticada com o mesmo propósito de algumas décadas atrás
21
Atualmente a semântica musical, área da musicologia que se dedica a interpretar os
significados musicais, vem sendo cada vez mais integrada aos estudos etnomusicológicos, o
que para Menezes Bastos representa uma diluição do dilema etnomusicológico (1995: 13). A
possibilidade de se estabelecer uma semântica musical surge da relação de semelhança que se
coloca entre música e linguagem. Trata-se de uma metáfora, como já propôs Borges Neto
(2005), que não deve ser interpretada com sentido de equivalência. É comum escutarmos
expressões como a linguagem do jazz”, ou a “linguagem tonal”, por exemplo. A respeito da
suposta equivalência entre música e linguagem, Agawu expõe algumas diferenças entre
música e linguagem, como por exemplo, o fato da música envolver certas simultaneidades,
entendidas como harmonia, polifonia, etc., enquanto a linguagem ocorre com certa
linearidade. A música também não possui a mesma capacidade discursiva da linguagem.
Apesar de poder desempenhar a função de “linguagem ordinária”, ou meio de comunicação,
em algumas sociedades e contextos, essa capacidade discursiva é muito inferior na música. A
.
A Ratoeira já possuiu um papel de intermediar namoros, através das disputas poético-musicais
e flertes entre os cantantes. Atualmente é basicamente realizada em apresentações folclóricas
de grupos de terceira idade, e eventualmente é ensinada a crianças em algumas escolas,
também com rótulo de “folclore”. Certamente isso representa uma grande mudança em seu
significado enquanto prática musical. Portanto vejo que entender esta mudança é saber algo a
respeito de seu significado musical. Turino relaciona a semiótica Peirciana com o estudo da
sica e defende a idéia de que os significados dos símbolos são estabelecidos através de um
“contrato social” (1999: 228). Isso nos remete novamente ao que já foi mencionado sobre
como o significado musical está ligado ao contexto social (Blacking, 1973: 52). Dessa forma,
os significados musicais são estabelecidos e compartilhados através de um consenso social.
20
Os documentos citados possuem em sua maioria um viés folclorista. Refiro-me a Piazza (1951), Medeiros
(1953), Viana (1983), Cascudo (1984), Soares (1987 e 1997), publicação da Fundação Franklin Cascaes (1995) e
Bunn (2006).
21
A percepção dessa mudança de significado na prática da Ratoeira foi inspirada por um fato similar ocorrido na
prática do Jongo, como narrado no estudo de Travassos (2004). O Jongo, uma prática de origem afro-
descendente, teria atravessado uma fase de aparente extinção, até que na década de 60 foi conquistando adeptos
entre a juventude e atualmente não se fala mais na suposta extinção. O caráter mágico e enigmático das canções,
que em certos casos servia para envio de mensagens secretas entre escravos, foi trocado por um sentido de
resgate de uma tradição cultural, no caso, uma re-invenção dessa tradição com sua conseqüente mudança de
significado.
37
música também está sempre relacionada à performance e a fatores estéticos. A linguagem
também pode envolver a performance, como no caso da poesia, porém seu caráter mais
cotidiano de “linguagem ordinária”, de comunicar informações simples, objetivas e
específicas, dificilmente é encontrado na música (2001: 142).
Molino define que a música opera em três modos de existência. Música é
simultaneamente a “produção de um objeto sonoro, objeto sonoro e, enfim, recepção desse
mesmo objeto” (1975: 112). Essa concepção torna possível a comparação entre o “fenômeno
musical”, com o fenômeno lingüístico e ainda o religioso. O autor empresta o conceito de fato
social total de Marcel Mauss (1979) e o aplica à música, entendendo-a como um fato musical,
que é também social. Molino sugere que a musicologia passe a considerar não somente o
material sonoro, muitas vezes considerado autônomo em relação ao contexto, mas que se
percebam também as perspectivas da recepção e da produção musical (1975: 125). É desta
forma que vê na Semiologia um recurso para entender o fato musical. Para que se estabeleça
uma semiologia musical, é necessário, portanto, que se entenda a música como uma forma
simbólica, e inevitável que se esclareçam alguns conceitos como o de signo.
O conceito de signo é apresentado por Molino da maneira como foi proposto por
Granger, basicamente como um “reenvio” (op. cit.: 127). É aquilo que representa algo para
alguém. Este substituto simbólico ainda pode ter classificações mais específicas, como as de
sinal, símbolo, ícone, indício e index. Reproduzo a seguir as palavras de Molino ao se referir à
abordagem da música no “mundo do simbólico”, partindo da concepção tripartida de Peirce
22
Os fenómenos sonoros produzidos pela música são ao mesmo tempo ícones: podem parecer-
se com os ruídos do mundo e evocá-los, podem ser imagens dos nossos sentimentos como tais os
considerou uma longa tradição que não se pode dizer nula ou inexistente; indícios: consoante os casos,
podem ser causa ou conseqüência ou simples concomitâncias de outros fenómenos que servem para
evocar; símbolos: entidades definidas e conservadas por uma tradição social e um consenso que lhes
dá o direito de existir. (op. cit.: 129)
:
Estes conceitos podem ajudar a interpretação simbólica de uma expressão cultural,
como a Ratoeira, buscando entender seus possíveis significados. Entoar uma cantiga de
Ratoeira poderia ser o indício de uma paixão, ou rivalidade no passado ou de sentimento de
nostalgia no presente. Ouvir uma cantiga poderia representar o sentimento de amor ou
interesse de uma pessoa em relação à outra, como a idéia de ícone. A Ratoeira também pode
22
Peirce é um dos fundadores da Semiótica. A Semiologia e a Semiótica tratam basicamente do “mundo do
simbólico”. A diferença entre as duas está relacionada com a origem epistemológica de cada. A Semiologia tem
sua origem na lingüística estrutural. Possui, portanto ligação com o estruturalismo de Lévi-Strauss, e no campo
da música é representada por J.J. Nattiez (2005). A Semiótica origina-se da lógica filosófica, e no campo
musicológico, Martinez (1996) é um dos representantes.
38
ser vista como um símbolo do folclore, ou da cultura local, remetendo a um sentimento
nostálgico e a uma afirmação de identidade cultural. A Ratoeira seria um dos símbolos que
representam um passado coletivo, no qual a vida era melhor do que no presente. Estas são
possíveis especulações acerca dos prováveis significados musicais que esta prática evoca,
baseadas na literatura e no discurso nativo acerca da Ratoeira.
Turino explica a cadeia semiótica através da idéia do triângulo de Peirce: signo, objeto
e interpretante (1999: 222). A cadeia semiótica envolve diferentes tipos de signos e efeitos,
ligados a questões subjetivas, sensoriais e à linguagem. A música estaria mais ligada a
emoções e identidades sociais, enquanto a linguagem é responsável pelo entendimento. É a
partir da linguagem que se pode entender o significado musical. (op. cit.: 224). No entanto a
fronteira deste modelo que diferencia música e linguagem não é tão precisa assim. Um
exemplo, já citado anteriormente, é a poesia, que é linguagem, pois envolve o mundo das
palavras, mas também possui um conteúdo estético e uma forma de expressão artística.
Pensar questões como estas no universo da Ratoeira é misturar ainda mais a fronteira
entre música e linguagem. A Ratoeira ao mesmo tempo em que é música, é linguagem
poética. Além de todo o significado musical que remete ao universo do namoro, da saudade e
da identidade cultural, existe o significado de sua linguagem poética. A linguagem poética
também pode evocar a identidade cultural através de sua estética e no uso de determinadas
expressões e palavras. No caso da Ratoeira, a ligação mágica entre plantas e o corpo humano
é visível em diversas quadrinhas. No quarto capítulo encontram-se vários exemplos desses
versos. No entanto, como veremos, o significado literal destes versos pode não condizer com
seu significado real no imaginário popular. Obviamente a linguagem poética oferece toda a
liberdade de transcendência e transgressão da realidade. Portanto, o interessante aqui é buscar
o significado poético desses versos, analisando suas metáforas e percebendo como estas
revelam certos aspectos culturais, da mesma maneira como foi dito a respeito do discurso
nativo. Aliás, é o próprio discurso nativo que vai informar os possíveis significados poéticos
da Ratoeira. A ambigüidade simbólica pode se tornar bem complexa se pensarmos
isoladamente no material sonoro e no conteúdo verbal da Ratoeira. Isso nos lança ao dilema
etnomusicológico, já comentado anteriormente. Porém, se pensarmos no material sonoro
autonomamente será preciso escolher um modelo adequado de análise musical, que melhor
justifique esta escolha e traga informações relevantes ao trabalho. A questão da análise
musical será tratada no quarto capítulo.
39
Penso que entender o processo de mudança de significado ocorrido com a Ratoeira
seja interpretar sua semântica musical. A semiologia e a semiótica podem fornecer meios
interpretativos para o sistema simbólico no qual a Ratoeira se insere, assim como a própria
hermenêutica. Blacking deixa claro que o significado musical está totalmente relacionado ao
contexto social ao afirmar que as pessoas falam sobre música fazendo referências a
experiências culturais (1973: 52). O autor ainda sugere uma pergunta interessante,
considerando uma questão sociológica, que é interrogar quem ouve, quem canta e toca
determinada música, e por que (op. cit.: 32). Resumindo, é o próprio contexto cultural que
fornece significado à música.
Se, no caso da Ratoeira, existe uma mudança de significado, fica claro portanto, que
existe uma mudança no contexto sócio-cultural. Essas mudanças sócio-culturais serão tratadas
com maior profundidade no próximo capítulo. Para adiantar, de forma resumida, podemos
citar a presença da indústria cultural, o papel da televisão e dos meios de comunicação
modernos, a mudança de ordem econômica representada pelo turismo e a especulação
imobiliária que mudaram drasticamente o estilo de vida das comunidades em questão nas
últimas décadas. No entanto como unir estas informações contextuais a uma análise
estritamente musical da Ratoeira? Talvez a resposta venha da própria consciência de que não
faz sentido isolar o texto musical do “fato musical total”. Daí novamente se apresenta o
desafio de escapar do dilema etnomusicológico. O discurso nativo é, portanto, essencial para
qualquer tipo de categorização. Penso que uma das premissas de qualquer estudo
etnomusicológico seja discutir o material sonoro. Creio que o sucesso de uma análise musical
esteja relacionado com a escolha do método utilizado e à integração desta análise com todo o
contexto percebido pela investigação.
Desta forma, este trabalho etnográfico traz à tona algumas reflexões sobre este rito
musical, que representa uma identidade cultural e está relacionado ao universo feminino desta
cultura. O teor interpretativo dos dados apresentados é fruto do diálogo estabelecido entre
pesquisador e pesquisados, dentro da perspectiva teórico-metodológica da etnomusicologia,
ou simplesmente da musicologia. Portanto, o texto musical é uma das premissas dessa
discussão. No entanto, para uma aproximação dos significados musicais implícitos nesse
repertório, é preciso uma mínima imersão no contexto sócio-cultural de seus praticantes. O
próximo capítulo apresenta alguns dados históricos e contextuais da presença cultural
açoriana no litoral de Santa Catarina. Com isso pretendo incluir algumas informações sobre a
colonização açoriana e a formação da identidade cultural nestas comunidades em questão.
40
CAPÍTULO II
Neste capítulo o foco será contextualizar a influência açoriana na cultura do litoral
catarinense. Apresentarei brevemente alguns dados históricos sobre a ocupação humana no
litoral catarinense, em seguida tratando especificamente dos municípios visitados no trabalho
de campo. Depois de contextualizar os locais pesquisados, falarei sobre o processo de
elaboração da identidade cultural baseada na origem açoriana no litoral catarinense.
2.1 A presença açoriana no litoral de Santa Catarina
O litoral do Estado de Santa Catarina até aproximadamente o século XVII foi habitado
por Guaranis, chamados de Carijós pelos europeus. Essa população de indígenas foi
praticamente dizimada por bandeirantes paulistas, escravizada e acometida por doenças
européias. No entanto sua presença ainda é notada nos dias de hoje, como por exemplo: no
vocabulário, em nomes geográficos e botânicos; no imaginário popular, em suas lendas e
crenças; plantas medicinais e principalmente na culinária típica do litoral catarinense, sendo
visivelmente perceptível no uso da farinha de mandioca na alimentação (Fundação Franklin
Cascaes, 1995: 2).
A partir da segunda metade do século XVIII, os açorianos e descendentes que
colonizaram o litoral catarinense passam a ser a referência cultural da região. Basicamente
pelo fato de estarem em maior número populacional. Porém, devem-se considerar outras
contribuições culturais para compreender o contexto cultural da região. Já foi mencionada a
presença Carijó. Outra presença importante foi a dos chamados vicentistas, “representantes do
império português em expansão e, via de regra, considerados tão somente como força política
e militar, foram eles também uma força cultural, cultivadora da tradição e assentadora de
hábitos e costumes” (op. cit.: 2). Apesar de estarem em menor número, os vicentistas
representavam as elites e estabeleciam alguns códigos sociais, através da burocracia, da
moeda e da própria igreja, exercendo portanto, grande influência cultural na população (op.
cit.: 2). Também é importante citar a influência dos escravos negros nas crenças, formas de
magia, cultos e rituais religiosos (op. cit.: 3). Atualmente a influência do turismo, da mídia
eletrônica, da especulação imobiliária, dos centros universitários, do desenvolvimento
industrial, entre outros fatores, contrasta com um modo de vida tradicional, quase mítico,
41
criado na cultura de antigas comunidades de pescadores e lavradores. A cultura que se
encontra hoje no litoral catarinense é um mosaico de influências e possui identidade própria.
Como o assunto deste capítulo é a presença açoriana em Santa Catarina, é importante
citar a narrativa histórica sobre esta colonização. A chegada de açorianos ao litoral
catarinense aconteceu por motivos objetivos e estratégicos. Portugal e Espanha disputavam o
domínio da América Meridional. A colonização açoriana no litoral catarinense foi, portanto,
uma estratégia da coroa portuguesa em habitar a região, que até meados do século XVIII
contava com um contingente demográfico pouco expressivo de representantes do império
português (Cascaes, 1988: 31 e Farias, 1998: 299).
Os casais açorianos ao chegarem em Desterro (Florianópolis), em meados do século XVIII
(1748-56), vinham como parte de uma política de ocupação sistemática do Sul do Brasil. As
comunidades básicas que deveriam organizar ou reforçar populacionalmente na Capitania de Santa
Catarina já haviam sido definidas pela coroa portuguesa, através de seu representante local, o Coronel
José da Silva Paes (Farias, 1998: 242).
Outros fatores também foram decisivos na vinda de açorianos para esta povoação do
litoral Sul do Brasil. Nos Açores do século XVIII a superpopulação e a pobreza foram um
problema que facilitou a vinda de várias famílias açorianas ao Brasil. Os Açores são ilhas
vulcânicas, com vulcões em plena atividade sísmica, o que aliados a pouca extensão de terra
disponível e grande densidade demográfica, também sempre foram fatores de insegurança
para os habitantes do arquipélago. Alguns anos de esterilidade na agricultura foram freqüentes
na história do arquipélago e já geraram pobreza e dificuldades para o povo (Rosa e Trigo,
1990: 64).
O Arquipélago dos Açores passou a ser ocupado por portugueses a partir do século
XV, e desde então foi economicamente dependente do continente. Este também é um dos
fatores contribuintes para que a emigração sempre fosse algo presente na história do
arquipélago, e durante o século XVIII o Brasil era um dos principais destinos dessa diáspora.
Principalmente entre os anos de 1748 e 1756, período em que vigorava o projeto da coroa
portuguesa aliando o povoamento do Sul do Brasil e o combate à pobreza nos Açores, um
significativo número de açorianos foi trazido aos estados de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul (op. cit.: 68).
Os alistamentos feitos a partir de 1746, nas ilhas dos Açores (Terceira, Faial, Pico, São Jorge,
Graciosa, São Miguel, Santa Maria e Flores), oferecendo ajuda em dinheiro, terras, instrumentos
agrícolas, sementes, gado e arma de fogo às famílias que desejassem emigrar para o Brasil bem
indicam a importância atribuída pela coroa portuguesa a esta emigração (Farias, 1998: 242).
42
Durante o século XVIII, fatores sociais e econômicos dos Açores aliados à estratégia
geopolítica portuguesa foram os principais motivos da colonização açoriana no litoral
catarinense. Alguns discursos mais românticos dizem que os açorianos teriam, por exemplo,
certo espírito de aventura (op. cit.: 300), mas penso que poderíamos dizer isso de
praticamente todos os imigrantes trazidos ao Brasil com a promessa de melhor qualidade de
vida.
Nesses oito anos (1748-1756) chegaram mais de 6000 açorianos ao Sul do Brasil,
sendo que deste total, cerca de 4500 se estabeleceram em Santa Catarina e o restante no Rio
Grande do Sul (Farias, 2000: 91). Antes da chegada desta leva de açorianos, o litoral
catarinense era esparsamente habitado ao longo de três centros irradiadores: São Francisco do
Sul, Ilha de Santa Catarina e Laguna (Farias, 2000: 100 e Lacerda, 2003: 129). Com a vinda
dos açorianos, a Ilha de Santa Catarina e seu entorno continental passam a ter grande
importância no desenvolvimento do povoamento na região (Farias, 2000: 100).
A ilha de Santa Catarina, por ter o melhor porto natural de aguada e consertos de
embarcações do sul do Brasil, foi o centro irradiador do grande fluxo povoador do litoral catarinense,
sem desconsiderar o papel relevante das vilas de Laguna e São Francisco do Sul, pois na ilha
desembarcaram os colonizadores enviados para o sul do Brasil, no século XVIII, inclusive os
destinados ao Rio Grande do Sul (op. cit.: 100).
A preferência deste projeto colonizador, que trouxe os açorianos ao Sul do Brasil, era
por casais jovens, em idade de gerar filhos ou com filhos jovens. Estes seriam fatores que
garantiriam o sucesso da colonização, promovendo o crescimento populacional (Farias, 1998:
242). Ainda hoje, aproximadamente 250 anos depois desta imigração açoriana, é possível
encontrar traços dos primeiros povoamentos de vicentistas e açorianos em municípios que
originalmente se desenvolveram com a presença destes povos, tanto na arquitetura local
quanto na cultura de modo geral (Farias, 2000: 102).
Como citado anteriormente, foram feitas algumas promessas a esses açorianos trazidos
ao litoral catarinense pelo governo português, como terras, ferramentas, armas entre outras.
Alguns relatos mostram que essas promessas não foram totalmente cumpridas pela coroa,
sobretudo no que diz respeito à divisão das terras. De certa maneira, todos vieram pobres dos
Açores para o Brasil, mas alguns colonos possuíam títulos de nobreza, o que os fizeram ter
privilégios principalmente na aquisição de terras (Cascaes, 1988: 57 e Farias, 2000: 91). De
acordo com Cascaes (1988):
Eles sofreram muito aqui, sofreram demais. Sofreram um aperto terrível. Lendo os livros que
os historiadores têm escrito, foi uma coisa horrível, o que Portugal fez com essa gente. Eles vieram de
lá corridos pela fome. A verdade é que, é sempre a pobreza que sofre. Os ricos, os senhores de
43
engenho sofrem menos, porque os nobres que vieram, que lá nas Ilhas eram pobres, que haviam
empobrecido, aqui eles se destacaram. Eles vieram pobres mas trouxeram o nome. Passaram a viver
outra vez nababescamente. Enquanto que o pobre ganhava uma nesga de terra, eles ganhavam uma
fortuna de terra (op. cit.: 57).
Os colonizadores que chegaram foram organizados em comunidades semelhantes às que
viviam no arquipélago no aspecto de estrutura e funcionalidade, o que se afirma ter sido um
fator do sucesso desse povoamento (Farias, 1998: 301). Em relação a essa estrutura do
povoamento de origem luso-açoriana na costa catarinense, Piazza complementa: a
colonização luso-açoriana, toda ela plantada à beira-mar, já trouxe no seu regimento a
estrutura das suas povoações, ou seja, uma praça, tendo em cada lado uma fileira de casas e,
no ponto de maior elevação, a igreja, partindo desta praça todas as demais ruas” (Piazza apud
Soares, 2002: 19).
Estas características ainda são facilmente observáveis na arquitetura dos pontos mais
antigos de cidades catarinenses, como no centro histórico de Florianópolis, ou ainda em
antigas freguesias, como no caso do bairro Ribeirão da Ilha de Florianópolis. Freguesia era
uma designação dada aos predecessores dos distritos e municípios, sendo um misto de
organização religiosa, urbana e política (Lacerda, 2003a: 130). Algumas das importantes
freguesias que abrigaram estes colonos açorianos do século XVIII foram Nossa Senhora do
Desterro (atual região central do município de Florianópolis), Nossa Senhora do Rosário da
Enseada de Brito (atualmente um distrito do município de Palhoça), Nossa Senhora da
Conceição da Lagoa (atual Lagoa da Conceição, distrito do município de Florianópolis), São
José da Terra Firme (atual município de São José), Santo Antônio dos Anjos da Laguna (atual
município de Laguna), Nossa Senhora da Penha de Itapocorói (atual município de Penha),
Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da Ilha (atual Ribeirão da Ilha, distrito do município de
Florianópolis), entre outros (Farias, 1998).
Como vemos, algumas dessas importantes freguesias se tornaram municípios de Santa
Catarina e outras foram anexadas como bairros, ou distritos de outros municípios. Geralmente
essas freguesias recebiam o nome da igreja, ou paróquia local. Posteriormente esses nomes
acabaram batizando alguns municípios e bairros que podemos encontrar atualmente no litoral
catarinense (Lacerda, 2003a: 130).
Nas coletas de campo, onde presenciei e gravei a Ratoeira em algumas localidades do
litoral catarinense, constatei que existem algumas variações na maneira de cantar e fazer a
brincadeira, conforme aprofundarei no quarto capítulo e nas considerações finais. Essas
variações pareceram ter caráter regional dentro do contexto do litoral catarinense. Certamente
44
a Ratoeira é somente um dos aspectos dessas variações culturais entre as comunidades que
tiveram forte influência da colonização açoriana. Estas variações culturais refletem um
contraste regional entre populações com uma origem cultural comum. Segundo Farias (2000):
As variações culturais microrregionais são o resultado de inúmeros fatores, entre os quais: o
meio ambiente e os recursos naturais disponíveis. Tipos de bens e serviços produzidos; facilidade de
vender, trocar e também comprar outros produtos necessários à sobrevivência da comunidade. Troca
de experiências com outras culturas. Mentalidade do povo frente aos inúmeros desafios do dia-a-dia
(op. cit.: 99).
Farias (op. cit.) divide o litoral catarinense em oito microrregiões
23
Durante o trabalho de campo visitei os municípios de Bombinhas, Porto Belo,
Governador Celso Ramos e Florianópolis (bairros Sambaqui, Ribeirão da Ilha e Barra da
Lagoa)
, as quais possuem
características culturais e históricas peculiares, e onde a colonização açoriana se desenvolveu
de maneira diferenciada, no entanto mantendo muitos aspectos em comum. Os açorianos se
espalharam por Santa Catarina de maneira que alguns lugares se estabeleceram como núcleos
secundários e terciários desta colonização (op. cit.). Isso diferencia historicamente o
povoamento e seria um fator de diversidade na construção de identidades regionais e
fronteiras culturais.
24
23
De acordo Farias (2000) essas oito microrregiões e seus respectivos municípios de abrangência são: 1. Ilha de
Santa Catarina e continente frontal (Florianópolis, São José, Biguaçu, Palhoça, Paulo Lopes e Antônio Carlos);
2. Caminhos do Planalto (São Pedro de Alcântara, Angelina, Santo Amaro, Águas Mornas, Rancho Queimado,
Alfredo Wagner e Urubici); 3. Sistema lagunar de Mirim/Santo Antônio dos Anjos/Imaruí/bacia do Tubarão
(Garopaba, Imbituba, Imaruí, Capivari de Baixo, Tubarão, Gravatal, Armazém, São Martinho e Laguna); 4. Foz
Itajaí/Camboriú (Camboriú, Balneário Camboriú, Itajaí, Ilhota, Navegantes e Luiz Alvez); 5. Baía da
Babitonga/vale do rio Itapocorói-Parati/baía de Itapocorói (Penha, Piçarras, Barra Velha, São João de Itaperiú,
Barra do Sul, Araquari, Itapoá e São Francisco do Sul); 6. Vale Tijucas/Costa Esmeralda (Tijucas, Canelinha,
São João Batista, Porto Belo, Bombinhas, Itapema e Governador Celso Ramos); 7. Bacia Jaguaruna/Urussanga
(Jaguaruna, Sangão, 13 de Maio, Morro da Fumaça e Içara) e 8. Bacia do Araranguá/Mampituba e sistema
lagunar de Sombrio (Araranguá, Sombrio, Criciúma, Maracajá, Arroio do Silva, Ermo, Jacinto Machado,
Balneário Gaivota, São João do Sul, Santa Rosa do Sul e Passo de Torres).
. Originalmente a idéia era visitar mais municípios do litoral catarinense. Cheguei a
estabelecer contato com pessoas ligadas à cultura dos municípios de Laguna, Sombrio e
Palhoça, porém os encontros não se concretizaram por motivos variados. Com isso, o trabalho
de campo acabou não tendo a dimensão que se pretendia inicialmente. Isso certamente daria
um panorama mais rico sobre essas nuanças culturais de região para região, principalmente na
maneira de cantar e brincar a Ratoeira, elemento condutor da pesquisa nas visitas e
entrevistas. Veremos como certas variantes regionais se manifestam na música da Ratoeira no
quarto capítulo e nas considerações finais, verificando possíveis relações com o processo
histórico da ocupação humana no litoral. A seguir apresento uma breve narrativa histórica do
24
Os bairros do Ribeirão da Ilha e da Barra da Lagoa foram visitados em meu primeiro trabalho de campo
(Silva, 2005). Os dados ali coletados também serão utilizados na reflexão proposta por este trabalho.
45
desenvolvimento de cada município visitado em trabalho de campo. Algumas informações
sobre a economia e outros argumentos que mostram semelhanças e singularidades entre essas
cidades.
2.1.1 Florianópolis
O município de Florianópolis, que compreende a Ilha de Santa Catarina e uma
pequena parte continental, é a capital do Estado de Santa Catarina. A história da ocupação
portuguesa na região data do século XVII e se deu através dos bandeirantes, que aprisionavam
e vendiam índios como escravos. Um dos primeiros registros dessa ocupação está centrado na
figura de Francisco Dias Velho, que se estabeleceu na Ilha de Santa Catarina em 1662, onde
contava com alguns índios escravizados, padres jesuítas e familiares. Ali este bandeirante deu
início à construção da Capela de Nossa Senhora do Desterro em 1678 e acabou sendo
assassinado por corsários alguns anos mais tarde. A povoação do local teve sucesso no início
do século XVIII, quando em 1726 Nossa Senhora do Desterro foi elevada à condição de vila,
até então pertencente à Laguna. Em 1838 foi criada a Capitania da Ilha de Santa Catarina,
tendo Nossa Senhora do Desterro como sede e incorporando as vilas de São Francisco do Sul
e Laguna. Desde então, Desterro (atual Florianópolis) é a sede do que veio a se tornar o
Estado de Santa Catarina, e principal centro econômico do litoral catarinense (Farias, 1998:
257).
Nossa Senhora do Desterro foi o ponto de desembarque dos mais de 6000 imigrantes
açorianos que chegaram a Santa Catarina entre os anos de 1748 e 1756. No final do século
XVIII Desterro já contava com uma população de aproximadamente 4000 habitantes.
Considerando as antigas freguesias que atualmente fazem parte do município de
Florianópolis, como a da Lagoa, do Ribeirão, de São José, de Santo Antônio entre outras, esse
número quase triplicaria (op. cit.: 258). Atualmente o número de habitantes está próximo dos
400.000
25
25
. Desterro passou a se chamar Florianópolis em 1894, numa homenagem ao
Marechal Floriano Peixoto. O nome Florianópolis até hoje é contestado por vários
intelectuais, que preferem se referir à cidade como Desterro. Floriano Peixoto teria promovido
o assassinato de revolucionários federalistas desterrenses (op. cit.: 259). Por esse motivo o
nome Florianópolis simboliza essa violência e causa raiva e inconformismo em algumas
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46
pessoas. Nas palavras do ilustre artista e intelectual Franklin Cascaes, podemos ter uma noção
deste sentimento:
Nas minhas cartas, desenhos e documentos diversos, eu não assino Florianópolis, mas sim
Nossa Senhora do Desterro. Isso porque é desde criança que a gente sente na carne aqueles fatos ruins
que aconteceram na família. Nessa degola que foi feita aqui na terra por Floriano Peixoto entraram
três parentes meus e a minha falava muito, não gostava que ninguém tocasse naquele nome, até
mesmo no de Hercílio Luz (Cascaes, 1988: 21).
Em Cascaes (1988) podemos ver que em diversos momentos o autor demonstra
insatisfação com o nome Florianópolis e explicita seu desejo da cidade voltar a ser chamada
de Desterro (op. cit.: 30). Independente de toda a polêmica em torno do nome, Florianópolis
ainda é um importante centro de influência da cultura herdada dos colonizadores açorianos.
Esta influência é percebida, por exemplo, na arquitetura, em nomes de estabelecimentos com
alusão aos Açores ou em sobrenomes de origem açoriana, na culinária, em algumas
expressões verbais, algumas técnicas de pesca e de construção naval, algumas manifestações
religiosas entre outros aspectos culturais (Fundação Franklin Cascaes, 1995: 3).
Onde hoje se encontra um dos mais conhecidos pontos turísticos da cidade de
Florianópolis, a antiga freguesia da Lagoa da Conceição, foi um importante local de
estabelecimento de vários imigrantes açorianos. A freguesia foi fundada em 1750 e já nos
primeiros anos contava com aproximadamente 1000 indivíduos vindos dos Açores,
principalmente da Ilha Terceira. Alguns traços açorianos que atualmente podemos encontrar
na Lagoa da Conceição são a produção da renda de Bilro, a prática do Boi de Mamão, a
cantoria do Divino, o Terno de Reis, a gastronomia e alguns engenhos de farinha (Farias,
1998: 249). O engenho de farinha é um espaço que está muito presente no discurso das
pessoas que entrevistei no trabalho de campo. Acredito que sua importância transcendia o
aspecto econômico, pois como veremos no próximo capítulo, o discurso nativo mostra que era
também um espaço de convivência social, e um dos ambientes nos quais a Ratoeira acontecia.
Sobre a importância econômica deste espaço, Farias (1998) salienta:
Os engenhos de farinha foram as primeiras unidades semi-industriais criadas no Sul do
Brasil. Resultaram da aplicação da tecnologia dos moinhos de trigo utilizados no arquipélago dos
Açores. A sua introdução revolucionou os processos de produção até então utilizados, além de
melhorar qualitativamente o produto. A importância dos engenhos de farinha foi tão grande nas
atividades econômicas do atual estado de Santa Catarina, que em 1796, para uma população de 23.865
existiam 884 engenhos. Na mesma época a freguesia da Lagoa possuía 101 engenhos e uma população
de 1.916 habitantes, com 329 famílias, resultando numa média de um engenho para cada 3,12 famílias
(op. cit.: 249).
Além dos engenhos, na região da Lagoa também se produzia açúcar e cachaça. Desta
freguesia se originaram os bairros da Trindade, Barra da Lagoa e Rio Vermelho em
47
Florianópolis (op. cit.: 250). Outra importante antiga freguesia foi a do Ribeirão da Ilha,
fundada em 1809, hoje bairro de Florianópolis. O início do povoamento do Ribeirão da Ilha se
deu como um ponto estratégico de defesa contra os espanhóis. Em sua estruturação enquanto
freguesia, dois povoados tiveram importância fundamental, o do Ribeirão e o da Armação. O
povoado da Armação foi criado para a exploração da pesca de baleias. A antiga freguesia de
Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão conserva sua arquitetura típica da colonização açoriana.
Porém sua população foi composta por gente de procedência variada. É marcante a presença
negra de descendentes de escravos africanos. Na freguesia também se estabeleceram alguns
portugueses da península, luso-madeirenses, hispano-canários, alemães e brasileiros de outros
estados (op. cit.: 271). Em todas essas comunidades citadas, a economia girava em torno da
produção de farinha, açúcar, cachaça, café e a pesca. Geralmente se trabalhava na lavoura
quando a estação era apropriada para isso e na época de boa pescaria se lançavam ao mar.
Essa sazonalidade entre o mar e a terra seria uma das heranças açorianas (Cascaes, 1988).
Atualmente Florianópolis possui importância burocrática enquanto sede do Estado de Santa
Catarina, conta com duas importantes universidades públicas (Universidade Federal de Santa
Catarina UFSC e Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC), é um importante
centro comercial no estado, possuindo um grande potencial turístico.
2.1.2 Porto Belo
O município de Porto Belo é um dos mais antigos do Estado de Santa Catarina. É um
núcleo secundário de colonização açoriana, pois recebeu população dessa origem inicialmente
instalada em comunidades de Biguaçu e Santo Antônio de Lisboa (atual bairro de
Florianópolis) (Farias, 1998:269 e 2000: 179).
Foi em 1753, que o governo português, fundou um povoado nessas terras, enviando 60 casais
vindos das ilhas dos Açores para iniciarem sua colonização. O crescimento desse povoado foi lento e
difícil dadas as dificuldades com o clima, ataque dos espanhóis e por ter sido entregue, a própria sorte,
longe do centro administrativo da capitania de SANTA CATARINA (IBGE)
26
Este município também recebeu dezenas de famílias portuguesas continentais em
1819, que viriam para um empreendimento pesqueiro que acabou não vigorando, mas as
famílias permaneceram e se espalharam na região (Farias, 1998: 269 e 2000: 179). A
economia de Porto Belo centra-se na pesca e na indústria pesqueira, no cultivo de ostras e
mariscos, existindo também uma produção agrícola de subsistência. O turismo vem exercendo
.
26
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48
grande importância econômica no local (Farias, 2000: 181). Em Porto Belo, que atualmente
possui cerca de 13000 habitantes (IBGE), ainda se encontram aspectos culturais da
colonização açoriana, no artesanato, religiosidade, folclore e gastronomia.
2.1.3 Bombinhas
O município de Bombinhas possui sua história ligada ao município de Porto Belo. Até
1992 Bombinhas foi distrito de Porto Belo, quando então se emancipou (Farias, 2000: 184). A
cidade possui importantes sítios arqueológicos com inscrições rupestres, oficinas líticas e
sambaquis, um registro da presença indígena na região antes da chegada dos europeus. Os
primeiros registros de europeus na região data do início do século XVI. Mas foi a partir da
segunda metade do século XVIII e início do século XIX que a região passou a ser habitada
principalmente por açorianos, que após aportarem e se fixarem primeiramente na Ilha de
Santa Catarina e suas imediações no período entre 1748 e 1756, se deslocaram posteriormente
à região onde hoje se encontra os municípios de Porto Belo e Bombinhas (Farias, 2000).
Com auto-suficiência, a comunidade plantava, pescava, fazia farinha, açúcar, café em pó e
escalava o peixe para conservar. Produzia suas roupas e, também, cestos, louças de barro, sabão e óleo
de peixe para a iluminação. A fabricação da canoa de um pau só também é uma arte herdada dos
índios carijós. O nome se dá por ser construída em um único tronco de madeira entalhado, que ganha a
forma de canoa. O garapuvú, árvore abundantemente encontrada na região é preferida em função de
sua leveza e por possuir o tronco reto em seus nós. A maioria dos pescadores de Bombinhas, mantém
com extraordinário capricho as canoas herdadas dos avós, muitas delas com cerca de 100 anos
(Nunes, 2009).
Assim como em Porto Belo, Bombinhas e boa parte dos municípios da costa
catarinense, o turismo balneário desempenha um papel econômico muito importante (Farias,
2000: 186). Atualmente Bombinhas conta pouco mais 12000 habitantes (IBGE) e a herança
açoriana também se faz presente no discurso sobre a cultura local.
2.1.4 Governador Celso Ramos
O que trouxe os portugueses para a região onde hoje se encontra o município de
Governador Celso Ramos foi a caça à baleia por volta do ano de 1742. O núcleo populacional
inicial levou o nome de Armação da Piedade. O empreendimendo feito para a caça das baleias
foi o primeiro do Sul do Brasil. Os colonos açorianos também se instalaram na região a partir
de 1748. A costa Norte do município, onde atualmente se encontra sua sede, passou a ser
49
povoada anos mais tarde por açorianos vindos da Ilha de Santa Catarina e da freguesia de São
Miguel da Terra Firme (Farias, 2000: 202).
A região era conhecida como Ganchos e chegou à condição de distrito de Biguaçu em
1918. Em 1963 Ganchos foi transformado em município e a partir de 1967 passou a ser
chamado de Governador Celso Ramos em homenagem a um dos governadores de Santa
Catarina (op. cit.: 202). Atualmente o município, que conta com pouco mais de 12000
habitantes (IBGE), tem a pesca e a indústria pesqueira como as principais atividades
econômicas. O turismo também desempenha um importante papel na economia do município
que conta com diversas praias. A presença cultural dos descendentes de açorianos é
característica em Governador Celso Ramos.
A cultura popular em Governador Celso Ramos tem o tempero da cultura de base açoriana e
perpassa pelas atividades artesanais onde se destacam as criveiras; pelo folclore com ênfase no Boi de
Mamão, farra do boi, terno de reis, cantorias do divino e ratoeira; na literatura popular do pão-por-
Deus; e na exelente gastronomia tradicional (Farias, 2000: 205).
2.1.5 Penha
A antiga freguesia de Nossa Senhora da Penha do Itapocorói, atual município de
Penha, levou o nome da padroeira da paráquia Nossa Senhora de Penha construída em 1825.
A comunidade era inicialmente subordinada a São Franciso do Sul e posteriormente a Itajaí,
até que em 1958 foi elevada à condição de município. A ocupação do local por portugueses
aconteceu depois de 1715 numa missão de reconhecimento da costa catarinense. A agricultura
e pesca foram uma das primeiras atividades dos primeiros habitantes, famílias vindas de São
Francisco do Sul. Em 1759 foi construída a capela de São João Batista, ainda existente na
região, que mostra em suas dimensões que nessa época já havia uma população considerável
no local (Farias, 1998: 133).
Entre os anos de 1777 e 1778 ocorreu uma invasão espanhola na Ilha de Santa
Catarina que acabou trazendo vários luso-açorianos a outras localidades da costa catarinense,
entre elas o atual município de Penha. Parte desses colonos açorianos vieram da vila da
Armação da Piedade na Ilha de Santa Catarina. Estes açorianos implantaram a armação de
baleias em Penha, transferindo a técnica, equipamentos e mão-de-obra especializada que já
utilizavam na Ilha de Santa Catarina. A partir de então a pesca da baleia passou a ser a
principal atividade econômica até aproximadamente o ano de 1819, quando o número de
50
baleias ficou escasso no litoral. O ciclo baleeiro foi substituído por atividades agrícolas,
pesqueiras e comerciais (op. cit.: 134).
Atualmente o município possui quase 21000 habitantes (IBGE). Essa população passa
dos 100000 no verão, quando milhares de pessoas vindas do interior e de outros estados
visitam a região. Isso revela o potencial turístico de Penha. Além das praias o município é a
sede de um dos maiores parques temáticos da América Latina, o Beto Carrero World , um
empreendimento que interfere consideravelmente na economia e no turismo da cidade. A
pesca artesanal ainda movimenta a economia local, assim como a agricultura, a pecuária e a
maricultura (Farias, 1998: 135).
O turismo cultural também desempenha um importante papel no município, que é sede
de algumas festas como a Festa do Marisco, a Festa do Divino Espírito Santo que atrai gente
de toda a região e é realizada há quase 200 anos, a festa de São João e São Pedro, realizada
mais de 250 anos. Divulgando a inflência cultural açoriana, Penha realiza a Açorpen, Festa da
Cultura Açoriana de Penha, “uma das maiores mostras da cultura açoriana do Estado” (op.
cit.: 139). A identidade de origem açoriana é evocada nessas festas, na gastronomia e em
manifestações folclóricas como na Dança de São Gonçalo, no Mastro de São Sebastião, na
Cantoria do Divino e no Boi de Mamão (op. cit.: 139).
Todos os municípios citados possuem em comum a influência cultural da imigração
açoriana. Por estarem localizados na costa, a pesca e a indústria pesqueira desenvolvem um
importante papel na economia, assim como o turismo. Uma das tendências atuais do turismo
da região é explorar o patrimônio cultural como um atrativo turístico. Acredito que este seja
um dos fatores que incentivam o movimento iniciado na década de 1990, no qual passou-se a
valorizar a identidade cultural de origem açoriana no litoral catarinense (Lacerda, 2003a). A
questão da formação da identidade no litoral catarinense foi discutida no primeiro capítulo.
Retomarei a seguir esta discussão, tentando perceber como a cultura local é relatada em
diferentes enfoques, e como a alusão à ascendência açoriana está presente nesses discursos.
2.2 Discussões sobre a identidade cultural do litoral catarinense
A maneira como se categoriza a cultura miscigenada da população do litoral
catarinense não parece ser consensual. Alguns fazem referência a esta cultura simplesmente
como cultura açoriana (Cascaes, 1988). Outros usam conceitos como cultura “de base
51
açoriana” (Farias, 1998 e 2000). Há também os que se refiram a essa cultura como algo
genuinamente catarinense, ou seja, uma cultura particular do litoral catarinense (Fundação
Franklin Cascaes, 1995). Ainda pode-se chamar os habitantes do litoral catarinense de
açoriano-brasileiros, como em Lacerda (2003a).
Certamente a presença açoriana é marcante na formação dos povoamentos da região.
Porém é igualmente inegável a contribuição que tiveram outras culturas na elaboração da
maneira de ser dos catarinenses do litoral. Já citamos alguns exemplos como os guaranis,
negros e vicentistas, mas se pensarmos nas últimas décadas essas influências são ainda mais
diversificadas. Sobretudo no acesso aos meios de comunicação atuais que certamente
interferem na construção da identidade, nos valores morais e no comportamento. Sabe-se que
a maioria da pessoas que se estabeleceu na região a partir do século XVIII era de origem
açoriana. Penso que os 250 anos que separam os colonizadores açorianos e seus descendentes
atuais foi um tempo razoável para que ocorressem muitas adaptações culturais. Toda a
peculiar miscigenação que ocorreu no litoral de Santa Catarina criou um padrão de
comportamento, valores, costumes, imaginário e uma cultura que não são os mesmos que se
encontravam em Açores no século XVIII, ou que lá se encontraria nos dias atuais. Penso que
no litoral de Santa Catarina encontra-se uma identidade cultural que tem características muito
particulares.
Apesar do contraste, certamente ainda existem pontos em comum entre os Açores e o
litoral catarinense. Classificar esta identidade, ou esta cultura, como açoriana, ou de base
açoriana, ou simplesmente como cultura do litoral catarinense, parece evidenciar certos
posicionamentos políticos e econômicos inseridos num processo histórico. Os mecanismos
que envolvem esta construção da identidade implicam também em questões de ordem
filosófica e até psicológica. O capítulo anterior discutiu sobre processos de formação de uma
identidade regional e considerou a Ratoeira como um dos possíveis mecanismos de afirmação
e construção de uma identidade regional. Tanto fenômenos locais do contexto catarinense,
quanto externos, do contexto açoriano, podem ser considerados como combustível para a
recente valorização da cultura açoriana, especificamente no litoral de Santa Catarina.
Os fenômenos locais poderiam ser atribuídos por exemplo à necessidade de se
incrementar o turismo na costa catarinense. A cultura local com seus eventos evocativos, sua
culinária, produções artesanais, arquitetura e outros aspectos, passa a ser divulgada enquanto
patrimônio cultural, um atrativo turístico além das praias. O turismo é certamente um fator
econômico para se evidenciar um traço cultural, mesmo que às vezes de modo estereotipado.
52
A divulgação desta identidade tanto pode ser observada na mídia quanto no discurso de
alguns intelectuais e acadêmicos. Alguns representantes na área de cultura entrevistados no
trabalho de campo, também mostram essa intecionalidade na relação entre a identidade local e
o turismo, como veremos no próximo capítulo.
Neste capítulo faço referências a Farias (1998 e 2000). Nestas obras, que classificam a
cultura do litoral catarinense como “de base açoriana”, é perceptível uma certa militância em
relação à valorização desta identidade em questão, principalmente ressaltando seus laços com
os Açores. Em Santa Catarina este movimento vem sendo fomentado pelo Núcleo de Estudos
Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina NEA
27
Como vemos o turismo é mostrado como um dos fins dessa valorização da identidade
açoriana. Soares (1999) mostra a mesma preocupação, e justifica essa estratégia turística sob o
enfoque do folclore como vemos a seguir:
, que promeve pesquisas,
intercâmbios e ações afirmativas no sentido de valorizar o traço açoriano do litoral
catarinense. De acordo com Alves, “ a proposta do NEA é justamente sensibilizar a população
do litoral catarinense para resgate, preservação, valorização e divulgação das raízes da cultura
de base açoriana, criando com isso um corredor turístico cultural na costa catarinense” (apud
Farias, 1998: 103).
O Folclore no Turismo Cultural destaca-se por levar aos que visitam os estados ou pontos de
interesse pessoal, que se destacam dentro da grandeza do Brasil. Esses procuram conhecimentos
culturais, além de simplesmente diletantismo vazio, sem proveito. Diante disso, os responsáveis pelos
setores culturais dos estados e municípios, através dos órgãos que dirigem, procuram promover o que
de melhor poderão oferecer aos que visitam os estados (op. cit.: 5)
No entanto esta identidade étnica poderia se tornar uma caricatura enquanto serve aos
interesses do turismo, como na seguinte afirmação:
Onde quer que se tenha desenvolvido uma indústria do turismo que, como atividade
econômica, move-se pela lógica do lucro, elas acabam por se tornar a melhor embalagem para um
produto, que se destina a um tipo especial de consumidor, que quer comprar o típico, o diferente, o
exótico, sem se importar muito com sua autenticidade (Fundação Franklin Cascaes, 1995: 4).
De acordo com o que foi discutido no capítulo anterior, a autenticidade é um elemento
fundamental no estabelecimento de uma identidade cultural. Me parece, portanto, que quando
essa identidade cultural se torna uma espécie de produto para o turismo, por exemplo, a
27
O NEA foi o ponto de partida da pesquisa de campo desse trabalho.
53
questão da autenticidade não possui tanta importância. Isso poderia favorecer uma invenção
de tradição
28
, como no caso das tradições gaúchas
29
Mas por trás desse aparente pragmatismo na relação entre cultura e economia, no caso
através do turismo, certamente existem fundamentos filosóficos e psicológicos que viabilizam
este projeto de valorização da cultura açoriana em Santa Catarina. Já foi dito no capítulo
anterior que os ambientes pesquisados ora ressaltam o folclore, ora a saúde mental e física dos
participantes. As práticas folclóricas e os saberes populares estão repletos de símbolos
representando valores morais, atualmente confrontados pelos efeitos da globalização. A
reconquista da auto-estima através da afirmação étnica, como mencionado no capítulo
anterior, mostra um lado psicológico na demarcação de fronteiras culturais.
por exemplo.
O conceito de açorianidade, citado no capítulo anterior, está ligado a um processo
histórico de reinvidicações de autonomia política dos Açores em relação a Portugal, e também
à questão da emigração do povo açoriano pelo mundo, interpretanto a diáspora como um traço
cultural (Rosa e Trigo, 1990). A açorianidade está inserida num contexto aparentemente
exterior ao catarinense. A motivação da literatura açoriana em definir um traço cultural
unificador da identidade do arquipélago certamente não é a mesma que constrói a identidade
do litoral catarinense. No entanto, penso que o discurso da açorianidade pode operar enquanto
base filosófica à definição da “alma” açoriana supostamente presente em Santa Catarina.
Debatendo sobre a relação do discurso da açorianidade e o processo de construção política de
identidades étnico-culturais em Santa Catarina, Lacerda (2003a) mostra:
Em geral, podemos dizer que no período entre as décadas de 50 e 70, assistimos à
consolidação de uma produção literária, historiográfica e folclórica sobre a açorianidade, uma
produção rica em descrições de costumes e cronologias, e cujos autores representavam a geração
nacionalista de 48. Dos anos 1970 até 1992, essa literatura de base historiográfica será revivada,
discutida e ratificada nas chamadas Semanas Açorianas, organizadas bilateralmente pela Universidade
dos Açores e Universidade Federal de Santa Catarina (op. cit.: 92)
A geração nacionalista de 48 à qual o autor se refere foi responsável pela fundação da
primeira Faculdade Catarinense de Filosofia na década de 1950 (op. cit.: 92). O autor ainda
mostra que a partir da década de 1990 essa discussão sai do meio acadêmico e intelectual e
ganha a adesão popular. Logicamente foram promovidas certas ações afirmativas para que
isto se concretizasse. Reproduzo a seguir um trecho em que Farias (2000) narra este processo:
O trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Açorianos da Uniersidade Federal de Santa
Catarina, que sob a liderança deste autor vem, desde 1992, coordenando a política de cultura de base
28
Sobre invenção de tradição ver Hobsbawm e Ranger (1983).
29
Ver Luvizotto e Poker (2009).
54
açoriana no litoral catarinense, envolvendo municípios, universidades regionais e especialistas dos
500 quilômetros litonâneos que abrange esta cultura, tem operado um verdadeiro ressurgir cultural.
Como isto pode ser possível, no curto espaço de tempo de 8 anos?
Tinha-se a consciência, na qualidade de descendente açoriano, que só conheceu a verdadeira
origem cultural quando da chegada à Universidade, que o primeiro e mais significativo passo seria
devolver ao povo litorâneo o conhecimento de suas raízes históricas e culturais que praticava.
O processo tinha que ser sistemático e devolvido junto aos que efetivamente operavam com
valores culturais-educacionais locais, para que tivesse efeito multiplicador consistente.
Os professores que atuavam no ensino fundamental (séries iniciais) e os agentes culturais que
interagiam nas comunidades foi a clientela selecionada, apoiadas pelo trabalho pioneiro e corajoso dos
administradores municipais, e em alguns momentos pelas universidades regionais (UNISUL,
UNIVALI, UNESC) (op. cit.: 108)
É possível perceber nestas palavras um discurso entusiasta em torno da valoriazação
da descendência açoriana no litoral catarinense. Também fica claro que este projeto, que
vinha sendo estruturado desde a criação dos Boletins da Comissão Catarinense de Folclore
nos anos 1950 (Lacerda, 2003a), foi bem articulado durante a década de 1990 entre várias
instituições e comunidades, envolvendo administrações públicas e a rede de ensino,
intelectuais e líderes comunitários. Para isso foi criado o Curso de Cultura
Açoriana/Mapeamento Cultural oferecido pela UFSC. Participaram deste curso mais de 2000
pessoas (Farias, 2000: 109). O autor considera esta ação conjunta, encabeçada pelo NEA,
como uma “verdadeira operação de guerra” (op. cit.: 109), o que de certa maneira revela uma
postura ideológica diante das disputas de poder no contexto do Estado de Santa Catarina,
como debatido em Lacerda (2003a).
Lacerda exemplifica este processo na reprodução de uma entrevista realizada em seu
trabalho de campo, na qual um líder comunitário é questionado sobre a consciência da
descendência açoriana em sua infância (op. cit.: 93). Esta também foi uma pergunta frequente
em meu trabalho de campo, como veremos no próximo capítulo, e foi interessante constatar
que as respostas foram similares. Saber que é descendente de açoriano parece ter sido uma
novidade para parte considerável da população do litoral catarinense, sobretudo a partir da
década de 1990 como mostrou Lacerda (op. cit.). Após aproximadamente 10 gerações desde
que os imigrantes açorianos chegaram a Santa Catarina no século XVIII, a origem açoriana
parece ter sido esquecida entre os catarinenses do litoral. Deixou de ser um dado relevante, até
que da metade do século XX aos dias atuais, principalmente a partir dos anos 1990, presencia-
se uma descoberta dessas origens. Esta descoberta é de certa forma apoiada pelo poder
público e pelo meio intelectual, tanto catarinense quanto daquele que divulga o discurso da
açorianidade.
55
Como características originais à açorianidade, ou seja, características culturais dos
habitantes do arquipélago dos Açores, podem-se destacar três elementos básicos: a
insularidade, a emigração e a religiosidade (Rosa e Trigo, 1990: 15). A insularidade é um
fator inerente ao povo açoriano desde que passaram a habitar o arquipélago a partir do século
XV. Tanto contribuiu para o semi-isolamento do povo, originalmente português, fazendo com
que características peculiares surgissem na cultura dos moradores das ilhas, quanto para a
criação de um imaginário próprio, tendo o mar como um dos principais elementos simbólicos.
A natureza teve um forte papel na criação desse imaginário, e considerando a presença do
mar, de vulcões e abalos sísmicos, isso também contribuiu para uma religiosidade fervorosa
entre os açorianos, basicamente católicos. Os fatores naturais aliados ao quase isolmanento
geográfico das Ilhas, fez com que a emigração fosse algo constante e frequente na história do
arquipélago (op. cit.). Nas últimas décadas os principais alvos da diáspora açoriana foram os
Estados Unidos da América e o Canadá. O discurso da açorianidade estabelece um “espaço de
diferença constituido da identidade cultural regional da população do Arquipélago”
transplantado ao univervo das comunidades de imigrantes (Lacerda, 2003a: 56).
Penso que o laço fraternal que une imigrantes açorianos recentes, principalmente de
comunidades nos Estados Unidos e Canadá, que certamente mantém vínculos de parentesco e
comunicação freqüente com os Açores, é mais forte do que entre descendentes de açorianos
em Santa Catarina e os Açores. Esses laços se diluíram nos 250 anos e nas várias gerações
que separam os que imigraram a Santa Catarina e os que permaneceram no arquipélago. Há
dois séculos as facilidades de comunicação existentes atualmente eram inimagináveis. A
adapação aos novos recursos naturais e a influência de outras culturas fizeram com que os
imigrantes açorianos estabelecidos em Santa Catarina redefinissem seu modo de ser. No
entanto, o mote da açorianidade parece sugerir que uma essência açoriana ainda reside nesses
descendentes que ocupam o litoral catarinense atualmente. A responsabilidade dos intelectuais
e líderes comunitários seria então “devolver” ao povo esta consciência, ou em outras palavras,
recriar esta identidade cultural.
Em minha opinião, a alusão à presença da cultura açoriana em Santa Catarina reflete
um momento histórico, palco de algumas disputas no campo político e econômico. Nessa
busca por inserção no mundo globalizado, onde imperam os valores do capitalismo, a
valorização de características regionais serviria como um recurso fundamental neste processo.
Além de criar um turismo mais consistente, como sugeriu Cristiane de Jesus, presidente da
Fundação Municipal de Cultura de Porto Belo, a valorização dessa identidade trabalha a auto-
56
estima da população. Creio que a elevação da auto-estima venha da afirmação de
determinados valores morais correspondentes a um modo mais antigo, ou tradicional, de vida.
Veremos no próximo capítulo como o discurso de lideranças comunitárias, ou de pessoas
relacionadas a associações culturais e secretarias de cultura, confirma a necessidade de
trabalhar a auto-estima, através da valorização do folclore por exemplo. Esta seria uma
alternativa de resposta à temida influência da mídia moderna, como vemos a seguir:
As influências registradas nos últimos anos, que colocaram em risco a sobrevivência da
cultura de base açoriana do litoral catarinense, estão sendo repelidas de forma natural. Isto demonstra
que o elemento açoriano, daqui e do além mar, tem em comum a tenacidade, o espírito de luta, e o
orgulho por seus valores culturais, que poucos lugares do mundo conservam. Estes valores culturais
sobreviverão ainda por muitos séculos, paralelamente à modernidade tecnológica a que estarão
sujeitos (Farias, 1998: 304).
Este discurso revela um caráter de militância, se trocássemos algumas palavras penso
que o texto poderia ser uma espécie de convocação nacionalista. Durante o trabalho de campo
verifiquei que este discurso é freqüente entre líderes comunitários e instituições da área de
cultura. A expressão “cultura de base açoriana” aparecerá no relato de algumas entrevistas,
como veremos no próximo capítulo.
Um dado importante, relacionado a essa valorização da identidade açoriana, é a
existência de uma espécie de busca por superação de alguns estereótipos perjorativos que já
estigmatizaram a população do litoral catarinense. É possível perceber um certo orgulho
ferido entre habitantes do litoral catarinense no que se refere à identidade cultural. O
fenômeno da balnearização do litoral, que atraiu turistas e especuladores imobiliários do
interior do estado e outras regiões do Brasil, confrontou diversas identidades e assim se
criaram estereótipos pejorativos, se referindo ao homem do litoral como malandro,
preguiçoso, pobre, ignorante, atrasado, conformado, sem ambição, entre outros. Farias
justifica o que favoreceu a proliferação desta espécie de ofensa histórica:
A desorganização cultural das sociedades pré-capitalistas ocorreu quando foram pressionadas
por valores das culturas tecnologicamente melhor qualificadas e competitivas. Quando isto ocorreu se
generalizou a insegurança, o sentimento de vergonha, a interiorização dos valores culturais básicos,
que passaram a ser detidos pelos mais velhos que, em via de regra, não os repassam aos mais jovens.
Em consequência, em três gerações (...) tais valores poderiam simplesmente desaparecer (Farias,
2000: 108).
Penso que todos esses discursos que permeiam as categorizações da identidade
cultural no litoral catarinense, evidenciam uma fronteira cultural. As especificidades regionais
que esta identidade valoriza, opera às vezes de maneira simbólica e une politicamente o litoral
no contexto do Estado de Santa Catarina. Evidenciar etnias é algo recorrente no contexto
estadual, como no caso de descendentes de alemães e italianos. Atualmente a origem açoriana
57
é o que vem fundamentando o processo de elaboração da identidade cultural do litoral de
Santa Catarina. Este processo, por sua vez, possui justificativas históricas, políticas e
econômicas, como comentado neste capítulo. No próximo capítulo mostrarei como o discurso
nativo define a identidade cultural, como trata da origem açoriana e como evidencia traços
culturais típicos do litoral catarinense. No anexo “Um pequeno mosaico de manifestações
culturais do litoral catarinense, também se pode ter um panorama dessa identidade cultural
através algumas manifestações culturais típicas da região.
58
CAPÍTULO III
No capítulo anterior a discussão foi em torno da identidade cultural do litoral
catarinense, dando ênfase à valorização da origem açoriana enquanto definidora desta
identidade. Como vimos, foi um processo que teve momentos históricos diferenciados, sendo
que a partir da década de 1990 esta alusão à origem açoriana na identidade cultural do litoral
catarinense, passa dos meios acadêmicos e intelectuais para o universo popular. Isso foi
conquistado por ações envolvendo instituições de ensino, poder público e representações de
comunidades. Este capítulo mostra algumas conseqüências destas ações no discurso popular,
principalmente no referente à identidade cultural. Primeiramente apresentarei uma breve
narrativa sobre o trabalho de campo, contando sobre como estabeleci os contatos com as
pessoas entrevistadas e certos métodos empregados. Em seguida voltarei a algumas
discussões apresentadas nos capítulos anteriores, desta vez enfatizando o discurso nativo.
3.1 O Trabalho de Campo
O projeto inicial para o trabalho de campo era visitar o máximo de localidades
possíveis no litoral de Santa Catarina em busca de pessoas conhecedoras da Ratoeira. Em
pesquisa anterior sobre o mesmo tema (Silva, 2005), visitei duas localidades em
Florianópolis: os bairros Ribeirão da Ilha e Barra da Lagoa. Neste primeiro contato com a
Ratoeira, verifiquei a pertinência de algumas discussões em torno de aspectos musicais e
sobre questões contextuais, como as relações de gênero e a mudança de significado. Estes
foram os pontos de partida que motivaram novas investigações. Para enriquecer estas
discussões, surgiu a necessidade de uma maior abrangência investigativa, no caso, visitando e
entrevistando pessoas de outras localidades, dando uma amplitude um pouco maior ao
trabalho no contexto do litoral catarinense.
A primeira pessoa que procurei em busca de pistas sobre onde pesquisar no litoral
catarinense foi Eugenio Lacerda, antropólogo, pesquisador da influência cultural açoriana em
Santa Catarina
30
, que também havia sido membro da banca examinadora de minha primeira
pesquisa (op. cit.), portanto já conhecedor de meu trabalho. Eugenio me orientou a procurar o
Núcleo de Estudos Açorianos da Universidade Federal de Santa Catarina
31
30
Algumas de suas obras são referências para este trabalho, como Lacerda (2003a e 2003b).
. Lá conheci Joi
31
www.nea.ufsc.br
59
Cletison, que me forneceu alguns contatos de pessoas relacionadas a secretarias e fundações
de cultura de alguns municípios do litoral catarinense, assim como alguns líderes
comunitários e de grupos de pesquisa folclórica. Através desses contatos marquei algumas
entrevistas e fui convidado a assistir a apresentações de alguns grupos. Em algumas
localidades estes encontros acabaram não se concretizando por motivos variados, como no
caso de Sombrio, Laguna e Palhoça. A visita nestes municípios forneceria um panorama
cultural do litoral ao Sul da Ilha de Santa Catarina, sobretudo no que diz respeito à pesquisa
da Ratoeira. O trabalho de campo acabou sendo realizado nos municípios de Florianópolis,
Penha, Bombinhas, Porto Belo e Governador Celso Ramos. Dessa forma, o panorama cultural
analisado aqui condiz com o litoral ao Norte da Ilha de Santa Catarina, como já mencionado
no capítulo anterior.
O método utilizado para registrar as entrevistas e certos encontros foi variado. No caso
das entrevistas, quando conversei com pessoas individualmente, ou no máximo em três,
utilizei um gravador de áudio. Estas entrevistas ocorreram basicamente na residência das
pessoas, considerei que o gravador de áudio era mais apropriado, pois registraria o discurso
sem intimidar, constranger ou invadir o espaço pessoal dos entrevistados, como supus que
pudesse ocorrer com a filmagem. No caso de encontros com grupos de idosos nas
comunidades visitadas e em apresentações públicas de grupos folclóricos, utilizei uma câmera
filmadora
32
. Este método se mostrou eficaz em minha pesquisa, porque no caso dos grupos
nos quais registrei várias pessoas dando depoimento simultaneamente, a imagem ajudou
consideravelmente no momento das transcrições. Analisar somente o registro de áudio, nestes
casos, seria uma confusão sonora, o que teria comprometido a compreensão e transcrição
posterior do material. A filmadora também pareceu não incomodar ou intimidar pessoas em
grupo e foi um recurso de registro rico em informações. Houve encontros em que não ocorreu
o registro sonoro ou audiovisual, mesmo nesses casos várias informações importantes para a
análise e documentação foram colhidas e posteriormente registradas em anotações e na
memória. Portanto, a metodologia de trabalho
33
32
Antes de sair em campo munido de filmadora, me baseei em Ardèvol (2006), falando da utilização da câmera
filmadora como um caderno de notas, ou bloco de anotações. A autora esclarece sobre a utilização desse recurso
não como um fim, no sentido de o objetivo principal da filmagem em campo não ser a produção audiovisual,
cinematográfica ou de documentário, mas sim um dos recursos de registro para análises do trabalho de campo
antropológico, no caso deste trabalho, etnomusicológico, ou simplesmente musicológico.
variou de acordo com as situações
encontradas em campo. A seguir apresento algumas narrativas registradas sobre a identidade
cultural.
33
Sobre a utilização de recursos tecnológicos como filmadora, gravador de áudio e fotografia em pesquisas de
etnomusicologia ver Pinto (2001), por exemplo.
60
3.2 Ninguém sabia que era açoriano...
A descoberta da origem açoriana parece ter sido um episódio para muitos dos
entrevistados. Isso se constatou no discurso de diversas senhoras em localidades diferentes.
Ou seja, o processo histórico de construção da identidade cultural do litoral catarinense é
relativamente recente. Tanto que há pessoas que viveram este momento de descoberta de suas
origens. Isso certamente foi institucionalmente induzido. Logicamente a origem açoriana da
população do litoral catarinense é um fato histórico. No entanto, a consciência e a auto-
identificação com a origem açoriana é algo em construção. A reprodução de discursos
acadêmicos e intelectuais acerca da identidade e da origem, como debatido no capítulo
anterior, é perceptível na fala das pessoas pesquisadas. De acordo com Dona Maroca
34
Dona Francisca, uma das entrevistadas, é líder comunitária do município de Penha.
Atualmente vive em Balneário Camboriú, mas continua exercendo sua influência na
comunidade de Penha. Marcamos um encontro em sua casa para em princípio falar sobre a
Ratoeira. Seu filho e sua irmã também participaram da conversa. Dona Francisca liderou um
grupo que se apresentava em festas açorianas e outros eventos, representando seu município.
No início da conversa, algumas de primeiras suas palavras me chamaram a atenção: “Nós
nascemos no município de Penha, nós temos a cultura açoriana, a Penha ela tem uma cultura
bem viva né. Nós trabalhamos em cima do resgate da cultura açoriana.”
do
Grupo de Senhoras de Governador Celso Ramos, “Ninguém sabia que era açoriano, que não
era né... depois de uns tempos pra cá que a gente foi saber que isso era... era açoriano né”.
Podemos verificar um exemplo do resultado conquistado pelo Núcleo de Estudos
Açorianos (NEA) no litoral de Santa Catarina. Dona Francisca revelou que muita coisa sobre
a origem açoriana, aprendeu diretamente com Vilson Farias, e cita o NEA: “O Núcleo de
Estudos Açorianos é que trouxe mais conhecimento, assim, é de resgate, porque daí sim a
gente ia conversando com um, com outro, o povo antigo contava história que meu Deus...”
O discurso do resgate também é freqüente na fala de representantes comunitários e
pessoas relacionadas a instituições culturais. O resgate é tido como uma necessidade entre
fomentadores da cultura no litoral catarinense. Existe o temor de que algumas práticas
34
Utilizarei alguns nomes fictícios, como o de Dona Maroca, pois durante as entrevistas em grupo o nome da
maioria pessoas não foi anotado. Isso ocorreu pelo grande número de pessoas que normalmente estavam
presentes nos encontros registrados durante o trabalho de campo. Só colocarei o nome real dos colaboradores
deste trabalho quando forem representantes comunitários ou com cargos institucionais, o que será sempre
indicado no texto.
61
culturais se acabem. A busca pela Ratoeira acabou basicamente me levando ao encontro de
mulheres com idade entre 60 e 90 anos em média, freqüentadoras de encontros de terceira
idade em centros comunitários ou associações de bairro. Alguns destes grupos e encontros de
mulheres têm apoio de fundações culturais ou secretarias de cultura. As primeiras pessoas
com as quais estabeleci contato, ainda por telefone, manifestaram grande entusiasmo pela
pesquisa, e em todas as localidades visitadas fui muito bem recebido. Muitos disseram que
este trabalho seria muito importante para o resgatedesta cultura, para a documentação da
Ratoeira, e tal. Este entusiasmo chamou minha atenção pelo interesse neste resgate”,
manifestado no discurso de praticamente todos os que contribuíram ao trabalho.
De certo modo, esta expectativa em torno do resgate por parte dos informantes me
preocupou. A Ratoeira, enquanto rito e música, certamente é parte da cultura em questão.
Definir o conceito de cultura não é tarefa simples, de acordo com Eagleton o termo é um dos
mais complexos da linguagem e pode ser entendido como o oposto de natureza (2005: 9).
Para falar sobre cultura creio ser necessário entender este conceito etimologicamente, no
entanto este não é o objetivo deste trabalho. Dentre as várias definições possíveis para este
conceito, estou de acordo com a concepção de que cultura pode ser entendida como um setor
específico ou um subsistema dentro de um complexo conjunto de relações com outros
sistemas (Middleton, 2003: 6)
35
No caso particular da Ratoeira fica claro que uma tentativa de resgate, ou de
reimplantação da prática entre os populares, seria uma espécie de readaptação cultural desta
prática nos dias atuais. A tradição certamente busca perpetuar certos aspectos culturais. A
mudança de significado ocorrida na Ratoeira pode ser um sinal de que o resgate opera como
uma transgressão tolerável da tradição, na medida em que é algo transformador daquilo que se
. Desta forma, a cultura certamente é algo dinâmico, em
constantes adaptações e transformações, de maneira que esta dinâmica própria é incompatível
com intervenções como o resgate. Penso na idéia de resgate como uma transformação ou
recriação intencional. Ou seja, enquanto a dinâmica da cultura elege e estabelece o que se
mantém e o que se reelabora, sem a necessidade de intervenções diretas, o resgate busca isto
de maneira “forçada”. Creio que é impossível transplantar uma prática cultural no tempo ou
no espaço sem que se altere seu significado, sua estética ou sua razão de existir. Dessa forma,
o resgate da Ratoeira em momento algum foi o objetivo deste trabalho, e sim avaliar todo este
processo de transformações e interferências nesta prática musical.
35
Middleton se refere à visão de Talcott Parsons sobre o conceito de cultura sem fazer citação direta de obra
específica.
62
pretende perpetuar. A Ratoeira atualmente é praticada entre um número reduzido de pessoas,
quase exclusivamente por pessoas idosas, portanto a possibilidade de extinção possui certo
fundamento. Creio que esta possibilidade seja um dos principais argumentos para o discurso
do resgate.
No encontro com Dona Francisca de Penha, indaguei sobre as possíveis causas desta
valorização recente da origem açoriana. Perguntei se existiriam alguns motivos políticos para
que isso tivesse ocorrido. Quando supus que pudesse haver interesses políticos neste processo,
parece que houve certo incômodo. Seu filho rapidamente replicou: não tinham a consciência
que era uma coisa açoriana, que era a origem de cada um dali... E aí não foi questão política
ou outra, foi a questão da consciência mesmo. Quando começou-se a conscientizar na região,
então houve um interesse maior de todos pra que aquilo continuasse.”
O reencontro com essas origens teria então uma explicação natural na visão nativa.
Uma informação que estava perdida e que alguém a encontrou e revelou aos demais. A meu
ver o que é chamado de conscientização também pode ser entendido quase como uma
imposição, articulada politicamente. Logicamente as pessoas que receberam estas
informações não estavam preocupadas com a reflexão sobre os motivos da divulgação da
origem açoriana. O discurso da descoberta da origem parece ter seduzido a população, antes
estigmatizada por rótulos pejorativos. É como se o povo do litoral catarinense tivesse enfim
sua identidade, baseada na origem açoriana, podendo sentir um orgulho parecido ao dos
vizinhos do interior, descendentes de alemães, italianos e poloneses. Sobre seu
comprometimento com essa identidade, Dona Francisca de Penha afirma: eu resgatei
bastante mesmo, porque sabendo que tem fundamento, que é da minha família... Eu sentia
assim, eu sentia orgulho mesmo de ir a fundo, porque é minha família ali, raízes né. Que eu to
ainda ali na árvore né...”
Para a presidente da Fundação Municipal de Cultura (FMC) de Porto Belo, Cristiane
de Jesus, a questão da origem açoriana também está relacionada à recuperação de certos
valores morais perdidos pela sociedade. A importância de se divulgar os saberes populares
oriundos dos antepassados estaria, portanto, em se recuperar tais valores inerentes à origem
cultural.
... se tu não buscares a tua história, o alicerce da tua família, da tua vida, da onde tu veio, por
que tu veio, como tu chegou... eu acho que tu não tem direção, as pessoas tão buscando direção... tu
tem que buscar direção pra conseguir resgatar os valores que já não existem mais. Tu resgatar esse
saber fazer, é tu resgatar a união das famílias, que hoje já não existe mais. É tu buscar saber o
significado do teu sobrenome, da onde veio, nós temos que começar a buscar pra nós podermos ter
63
uma direção. Como é que eu vou dar direção pros meus filhos, pros meus netos ou tu né, enfim...
como? Se eu não sei nada da minha história... (Cristiane de Jesus)
Entendo que os valores que se pretende resgatar são anteriores ao modo de vida
capitalista, da sociedade de consumo, da internet e do celular. Essa mudança nos modos de
produção e do consumo no litoral de Santa Catarina é relativamente recente. Tais valores
antigos continuam na memória e no discurso de algumas pessoas vivas: avós e bisavós que
foram criadas no contexto das comunidades de pescadores e lavradores do litoral catarinense,
basicamente praticantes de uma produção de subsistência. Estas comunidades certamente
viviam num sistema de produção parecido ao de séculos passados. Depois da chegada da
energia elétrica, da televisão, dos meios de comunicação contemporâneos, como a internet, da
balnearização do litoral e a conseqüente especulação imobiliária, entre outros fatores, o modo
de vida se alterou radicalmente nestas comunidades. Portanto fica evidente neste contexto o
contraste entre meio rural e urbano, ou entre o modo de vida antigo e o contemporâneo.
Uma das mulheres entrevistadas em Governador Celso Ramos mostrou grande
conhecimento tradicional, sabendo inúmeros versos de Ratoeira e várias outras cantigas. O
fato de não ser alfabetizada mostra o caráter de tradição oral destas práticas. Ao falar da
origem açoriana mostrou alguma desconfiança e jocosidade em relação a isso. Reproduzo a
seguir um trecho de seu relato acompanhado de intervenções de uma colega para ilustrar o
assunto
36
_ Olha menino, olha... Ratoeira, Terno de Reis... Folia... Festa do Espírito Santo, essas
coisas... isso é tudo da antiga. Eu agora, esses tempos agora, nós tudo aqui... fomo lá num lugar...
como é... no...
.
_ Tubarão.
_ Em Tubarão. Cheguemo lá, o padre, mandou convidar... nós... eu... e essa daqui e a
Adélia... pra nós cantar o Terno de Reis! Não é tempo de Terno de Reis... Se for cantar aqui ó... a
língua... tu não... bota tudo de fora que tem... E lá ele mandou chamar pra nós cantar. Aí nós cantemo,
sabe o que que ele disse? Ele disse que coisas antiga não pode acabar. Que isso tudo, herança de...
como é?
_ Os açorianos...
_ Os açorisianos... ele até disse pra mim que eu tinha disso... eu disse não, eu não tenho...
porque eu sou nascida e criada nos Gancho... a minha mãe também não era puladera de cerca... Aí ele
assim, olha... porque minha mãe era uma alemôa... a minha mãe era alemôa... ele assim... mas a
senhora sabe que essas coisas vem tudo lá dos...
Vejo a identidade cultural que se forma no litoral catarinense como um esforço
coletivo em torno de um ideal. Apesar de ser um processo baseado em fatos históricos e
encabeçado por intelectuais, percebo que é algo que vem sendo plantado nas camadas
36
Ver arquivo de vídeo “1 origem açoriana” do DVD anexo.
64
populares. De um lado o orgulho em descobrir sua origem, em recuperar valores perdidos e a
auto-estima, de outro, interesses econômicos relacionados ao turismo. Os catalisadores desses
interesses estariam representados pelas ações e pesquisas do NEA e instituições afins, que
fornecem o aparato intelectual para a elaboração e divulgação desta identidade cultural.
3.3 Não existe turismo sem cultura
Como já foi debatido no capítulo anterior, existe uma relação direta entre a valorização
da origem açoriana na construção da identidade cultural do litoral catarinense, e o turismo,
atividade que adquiriu grande importância econômica nos últimos anos. Penso que o turismo
seja o principal fator econômico, atuando em conjunto com outros fatores sociais, políticos,
culturais e históricos, viabilizando a construção desta identidade. Pessoas relacionadas a
instituições culturais estão cientes disso, assim como intelectuais e pesquisadores do NEA.
Certamente isso é positivo para a população na medida em que movimenta a economia local,
gerando empregos e criando oportunidades. Porém, tenho dúvidas sobre a consciência desta
relação entre turismo e cultura por parte do povo em geral. O discurso das pessoas
entrevistadas sobre a identidade cultural “de base açoriana” possui a tendência de evidenciar
questões como o orgulho, a auto-estima, a história, os valores morais, passando longe de
questões políticas e econômicas.
... na verdade não existe turismo sem cultura. A cultura ela existe sem o turismo, porque ela
existe, a cultura existe. E essa cultura existente que nós estamos tentando resgatar, tirar lá fundo do
baú. O turismo não vive sem cultura e isso já é comprovado. Não adianta hoje tu vir a Porto Belo só
pelas praias, as pessoas não vêm mais, elas querem pegar uma casa da cultura... ver um museu...
encontrar uma pessoa que tenha conhecimento da história. (Cristiane de Jesus)
Cristiane de Jesus, presidente da Fundação Municipal de Cultura de Porto Belo,
informou que no município capacitam-se pessoas para a atividade do turismo. Essa
capacitação envolve o aprendizado histórico do local, instituindo o patrimônio cultural.
Patrimônios culturais como práticas folclóricas, artesanato e traços culturais, tornam-se
atrativos turísticos. A capacitação dessas pessoas opera em conjunto com a divulgação na
mídia destes atrativos.
...falando em Porto Belo... eu vejo que nós estamos conseguindo através da Secretaria de
Turismo e Fundação Cultural... como é que eu diria... capacitando as pessoas a receberem esses
turistas. E pra eles receberem, eles têm que se capacitar, pra receber, pra contar a história da nossa
ilha, pra contar a história de um peixe, de um pescado... É claro que a mídia ta fazendo esse trabalho,
mas por quê? Os governos eles estão começando a trabalhar mais em cima de políticas públicas para a
cultura. Políticas públicas não do governo né, política pública de estado, entende? Então isso tá
acontecendo mais por eles estão vendo... não adianta, ninguém mais vem tomar um banho de mar só
65
em Florianópolis, só em Porto Belo, Bombinhas, enfim... não vêm mais só pra isso... eles vêm pra
passear, conhecer um pouco... (Cristiane de Jesus)
O mesmo movimento que a partir dos anos 1990 estimulou a elaboração da identidade
“de base açoriana”, também reivindica a valorização do patrimônio cultural que a representa.
Como conseqüência disso, cria-se um novo produto econômico através do turismo. Por isso
creio ser importante ressaltar o papel que o NEA teve na construção deste cenário.
3.4 O Vilson Farias é que passava isso tudo pra nós...
Dona Francisca, assim como outras lideranças comunitárias, deixa clara a influência
das obras de Vilson Farias em seu discurso sobre as origens açorianas. Vilson Farias é um
historiador e professor aposentado da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi Secretário
de Turismo, Consultor Técnico do gabinete do prefeito e Consultor do IPUF no município de
Florianópolis, já coordenou o Núcleo de Estudos Açorianos e também encontros de cultura
açoriana em Santa Catarina
37
Houve também em alguns livros, alguns registros do professor Vilson Farias, a gente sempre
que busca isso a gente percebe também que houve um certo preconceito pelo açoriano também né...
Talvez por eles acharem que não eram tão inteligentes, bonitos né, porque a maioria era barrigudo,
enfim... por causa da farinha... tem toda uma história né... Mas eu acho que com o Núcleo de Estudos
Açorianos, com o trabalho que o litoral está realizando assim... eu acho que os açorianos eles tão
conseguindo se organizar um pouco mais. Daí a gente ta crescendo um pouco mais dentro do contexto
do estado... acho que ela tem um dia já da cultura açoriana... então ele ta começando a mostrar
também os seus valores... (Cristiane de Jesus)
. Vejo que suas obras tiveram um papel didático, e de certa
forma partidário, na formação da identidade do litoral catarinense. A expressão muito
utilizada em suas obras “cultura de base açoriana” está presente no discurso de lideranças
comunitárias. A seguir apresento alguns trechos de entrevistas e conversas, nos quais a
referência a Vilson Farias é explícita e de fato reproduz seu discurso:
De início eu tinha o Vilson Farias também... professor Vilson Farias... Um livro sobre resgate
açoriano, eu tenho aí, se puder contribuir com esse trabalho. ... a gente se encontrava assim... o grupo
que era o Joi, era o... eram 4, o Farias... o Peninha não participava do grupo, do núcleo açoriano? O
Peninha acho que não, ele só mais fotografava... (Dona Francisca)
No primeiro telefonema que fiz a Cristiane de Jesus de Porto Belo falando sobre
minha pesquisa, meu interesse sobre a Ratoeira, sobre a cultura açoriana em Santa Catarina
fui repreendido. Cristiane disse que o correto era se referir à “cultura de base açoriana” em
Santa Catarina, e não simplesmente cultura açoriana, pois esta era a cultura encontrada no
Arquipélago dos Açores, não em Santa Catarina. Realmente estou de acordo que há uma
37
Para mais informações sobre a produção bibliográfica e atividades institucionais desempenhadas por Vilson
Farias consultar:
http://blogdofarias.blogspot.com/2006/09/quem-sou.html.
66
distinção muito clara entre os dois contextos. Mas aderir e reproduzir esta categorização
revela a influência que as obras de Vilson Farias exerceram em seu discurso, assim como no
de outros informantes e de certo modo na elaboração da identidade cultural do litoral
catarinense.
3.5 Hoje tem o computador né...
Penso que o impacto da mídia na vida tradicional é mais acentuado para as pessoas
mais velhas. Grande parte das mulheres entrevistadas viu a chegada da luz elétrica e da
televisão, o que alterou radicalmente as relações sociais. A televisão substituiu formas de
entretenimento, como a Ratoeira, e as cantigas de roda, que permearam diversas gerações
38
De noite a nossa mãe dizia assim ó: terminou de lavar louça, nós íamos todos para a sala, ali
nós líamos a Bíblia, que ela não sabia ler, todo mundo ficava quietinho, rezava o rosário. Depois
quando terminava ela contava historinha pra nós de Jesus quando andava pelo mundo. As historinhas,
então a gente aprendia assim... Hoje não... Hoje já come em frente a televisão, em frente ao
computador...
. O
discurso nativo sugere que desde então a tradição vem sendo substituída pela comunicação
globalizada. Para Dona Francisca:
As mudanças no comportamento atingem tanto aspectos religiosos quanto afetivos. Os
padrões de namoro, casamento e divórcio, que a geração de mulheres entrevistada viveu, é
impensável para os dias atuais. Comportamentos que seriam censurados e tidos como falta de
respeito ou ofensa à moral, são mais tolerados atualmente. Alguns relatos revelam estas
transformações:
Hoje não... hoje é tudo... atracado... abraçadinho... aquele tempo não era isso... e o pai de
olho! E é marcada a horinha ainda de chegar em casa... não chegasse a hora que marcava ó... o pau...
hoje não! Hoje já não é mais né... (Dona Filó Governador Celso Ramos)
Porque no nosso tempo nós não namorava cedo... Eu fui namorar com dezessete anos... Eu
fiquei na rua... naquele tempo dizia que era na rua, por causa de um beijo que o meu namorado me...
eu fui dançar o baile que tinha ali... de dia! Vê só... ele deu um beijo em mim, aí eu fiquei na rua...
todo mundo falava que eu tinha beijado... Aí daquele tempo pra cá eu não namorei com mais ninguém
e eu não... só casei com ele... esperei que ele viesse de Santos, que ele trabalhasse, ganhasse dinheiro
pra depois casar... Só por causa dum beijo que eu ganhei no rosto. (Dona Adélia Governador Celso
Ramos)
... ia namorar, sentava cada um do seu lado, conversava até dar a hora, o outro carcava e ia
embora... Porque era bem diferente de hoje né. Hoje as pessoas têm... assim... têm contato... e
antigamente não... (Dona IlzaPorto Belo)
38
Bourdieu (1997) mostra como a televisão pode converter-se num instrumento de opressão simbólica,
tornando-se um perigo à vida democrática e política.
67
Como é que ia namorar em casa? E o meu namorado fui quando foi pra noivar... E nunca
tinha namorado nem conversado... (Dona Rita Porto Belo)
Se na juventude dessas avós, uma mulher solteira engravidasse indesejavelmente, a
chance de não se casar com o pai da criança era praticamente nula. O divórcio era bem difícil
de acontecer, e havia certa segregação de mulheres divorciadas.
Uma vez eu me casei... aí o meu marido era bem... trabalhava lá no Rio Grande... aí eu
aborreci dele e disse: Mãe. Ô mãe, eu não quero mais morar junto, eu não quero mais ta casada, vou
separar. A minha mãe disse assim mais o meu pai: Não! Quem boas camas fizer, nela se deitará. Tu
não quisesse casar? Então agora tens que agüentar as conseqüências... as separadas não dançavam
nem no baile... no baile junto com as outras... não dançava... (Dona Zilma Governador Celso
Ramos)
Para algumas pessoas essas mudanças representam um choque cultural, afrontamento à
moral ou indiferença aos valores. No entanto, certa vez escutei de Dona Maria da Barra da
Lagoa
39
Em algumas situações ouvi queixas sobre a perda dos valores, o que penso ser uma das
principais justificativas para o discurso do resgate cultural. Para Cristiane de Jesus de Porto
Belo, “Resgatar é reviver”. Reviver um passado onde havia o respeito, mais senso de
solidariedade e cooperação. O povo detinha um conhecimento passado por gerações, técnicas
de produção e práticas culturais com identidade própria. O resgate cultural é o discurso de
algumas lideranças e representações comunitárias. Como vimos, é um discurso
institucionalmente incentivado. Certamente existem questões de ordem política e econômica
que justificam esta mobilização em torno da identidade cultural. Fatores psicológicos também
estão envolvidos quando a auto-estima está em questão. Orgulhar-se e não ter vergonha de sua
identidade seria um caminho para a recuperação da auto-estima.
que se ela fosse jovem nos dias atuais, faria igual à juventude, dizendo: “Se fosse
hoje eu fazia a mesma coisa. Porque é moda né!”. Mesmo criticando a influência da mídia na
manutenção dos valores, algumas senhoras reproduzem clichês de novelas globais em
brincadeiras nas relações interpessoais, por exemplo. Ou seja, a mídia que é acusada de
suprimir certas tradições, também pode servir como entretenimento e gerar um novo
comportamento.
Dessa cultura que a gente fala de base... sabe que é a história do povo né... resgatar isso...
reviver essa cultura, essas tradições, é mostrar pras gerações futuras e pra geração atual, que ta aí mais
jovem, mais bonita, mais informatizada, que foi muito mais trabalhoso... na minha opinião foi muito
mais trabalhosa a vida dos nossos avós, dos nossos pais, porém eu acho que muito mais unida, muito
mais respeitosa também. E ela mostra os valores né... a cultura, essa cultura de base, da identidade das
nossas comunidades, ela mostra na verdade o valor das pessoas. (Cristiane de Jesus)
39
Entrevista realizada durante o trabalho de campo em Silva (2005).
68
Na busca do resgate, surgem grupos que reelaboram de maneira diferenciada a
tradição. Existe a tendência de buscar a origem diretamente da matriz, ou seja, dos Açores.
Através de intercâmbios culturais, se estabelece uma nova relação de influência cultural entre
o litoral de Santa Catarina e os Açores, certamente muito distinta da influência no período
colonial. Veremos a seguir um exemplo destes intercâmbios.
3.6 Intercâmbio cultural entre o litoral de Santa Catarina e os Açores
Um dos primeiros episódios que presenciei durante o trabalho de campo foi o
intercâmbio cultural entre dois grupos folclóricos, um de Bombinhas no litoral catarinense e
outro de Lages do Pico, da Ilha do Pico nos Açores. Como já mencionado anteriormente, há
uma iniciativa pública nos Açores que promove este tipo de intercâmbio. Grupos do Brasil
são levados aos Açores e vice-versa. Este intercâmbio que presenciei aconteceu em abril de
2009.
O Grupo Folclórico Mixtura de Bombinhas existe há dez anos. Composto basicamente
por jovens dançarinos, já esteve nos Açores através desses intercâmbios culturais. De acordo
com Fernanda Nadir da Silva, Diretora de Cultura de Bombinhas, na apresentação que fez do
evento que teve como atrações o Grupo Mixtura, o Grupo da Casa do Povo de São João e as
Senhoras Cantadoras de Canto Grande, realizado no bairro Canto Grande em Bombinhas:
... esse intercâmbio cultural se dá através do acordo, do protocolo de geminação que
Bombinhas, que o município de Bombinhas firmou no ano passado, no dia 14 de março com o
município de Lages do Pico de Portugal. Nós temos aqui representando o S. José Armindo, presidente
do grupo, e também o Sr. Sérgio Souza que é o vice-prefeito de Lages do Pico... Quero lembrar que
esse evento, esse intercâmbio cultural, está sendo organizado por quatro instituições, Fundação
Municipal de Cultura Prefeitura Municipal de Bombinhas, Associação Folclórica Mixtura, Instituto
Boi Mamão e Núcleo de Estudos Açorianos de Santa Catarina. (Fernanda Nadir da Silva)
O Grupo da Casa do Povo de São João, proveniente dos Açores, é formado por um
grupo de jovens de aproximadamente vinte dançarinos e um conjunto musical composto por
pessoas de meia idade e alguns com idade mais avançada. Na formação instrumental do
conjunto encontra-se a viola da terra
40
40
Instrumento constituído de doze cordas metálicas divididas em cinco parcelas, sendo as três primeiras de
cordas duplas e as duas mais graves triplas.
, instrumento típico dos Açores, violão, violino e
bandolim e também contam com um coro. No início de suas apresentações um de seus
integrantes lê um texto contando a história do grupo, descrevendo algumas características
gerais e revelando objetivos. Para ilustrar, reproduzo a seguir alguns trechos deste texto.
69
Na sua indumentária que foi evoluindo ao longo do tempo, tem procurado representar a
tradição histórica da sua terra, particularmente o traje do pastor de São João, com peças típicas como
as alparcas de sola, meias de lã de ovelha e chapéu de palha entre outras, bem como o traje de ver a
Deus nos domingos de dias festivos. O grupo tem como objetivo mostrar e representar os hábitos e
costumes da sua terra através da cultura popular que divulga os seus trabalhos e festas,
particularmente as do Espírito Santo... Na Páscoa que se aproxima, cabe mais uma vez representar a
sua terra na terra de tantos imigrantes que outrora partiram das ilhas, no Estado de Santa Catarina,
mais concretamente na cidade de Bombinhas no Sul do Brasil, onde agora se deslocou. Para esta longa
viagem contou com vários apoios, nomeadamente, da câmara municipal das Lages, da direção
regional das comunidades, da junta da freguesia de São João, do Inatel e da câmara municipal de São
Roque... este intercâmbio que todos os já feitos é o que representa maiores encargos e gera mais
expectativas. (Grupo Folclórico da Casa do Povo de São João do Pico)
Tanto o Grupo Mixtura quanto o Grupo da Casa do Povo de São João, participantes
deste intercâmbio, se apresentam de maneira muito parecida no que diz respeito ao repertório
musical e coreográfico e também ao figurino
41
Neste encontro o Grupo Mixtura foi presenteado com uma viola da terra pelos
visitantes açorianos. Durante a apresentação do grupo, o tocador de CD falhou, gerando uma
situação embaraçosa para os dançarinos. Depois deste fato a coordenadora do grupo convidou
voluntários a aprenderem tocar o tal instrumento, para que situações como esta não voltassem
a ocorrer e para que o grupo passe a ter próprios tocadores, aproximando-se ainda mais da
tradição açoriana. Nas palavras de Dona Vera, coordenadora do Grupo Mixtura: “quero deixar
aqui de público que a prefeita de Lages do Pico nos mandou um presente, a nossa primeira
viola de arame, ou a viola da terra, uma viola especial açoriana, e que só com ela a gente pode
fazer as nossas danças, principalmente a chamarrita”.
. A vestimenta, a música e as coreografias são
tradicionais do folclore açoriano. A diferença básica entre os dois está no fato de o grupo
açoriano se apresentar com um conjunto de músicos, e o grupo catarinense realizar sua
apresentação utilizando músicas reproduzidas em CD. O Grupo Mixtura de Bombinhas
realiza uma pesquisa de danças e indumentária tradicional dos Açores, e busca reproduzir
meticulosamente as danças açorianas. Dentre as gravações de música tradicional açoriana que
utilizam em suas apresentações, algumas são do CD do próprio Grupo da Casa do Povo de
São João.
Interessante notar que o Grupo Mixtura reproduz tradições dos Açores que não fazem
parte do folclore catarinense. No entanto é presente em seu discurso a questão do resgate
cultural dos antepassados açorianos. Podemos verificar isso nas palavras da coordenadora do
grupo durante a apresentação:
Nós do Grupo Folclórico Mixtura fazemos os bailes das nove ilhas. Por quê? Porque foram
de lá dessas ilhas que vieram os nossos colonizadores aqui de Bombinhas e de todo o litoral de Santa
41
Ver arquivo de vídeo “2 Intercâmbio cultural” do DVD anexo.
70
Catarina. Então não queremos privilegiar só uma ilha, queremos contemplar a todos, assim como os
nossos trajes também. (Dona Vera)
Depois de conhecer o trabalho do Grupo Mixtura, refleti sobre a questão da
representação da identidade cultural que o grupo promove. No caso dos grupos de idosos que
visitei é mais evidente a valorização de práticas culturais das antigas comunidades de
lavradores e pescadores, descendentes de açorianos povoadores do litoral catarinense. O
Grupo Mixtura, no entanto, propõe uma estética comum a grupos açorianos contemporâneos
com ênfase no folclore dos Açores. Se pensarmos que a atual valorização das origens
açorianas, através do incentivo e divulgação das práticas culturais tradicionais do litoral
catarinense, já é uma espécie de mecanismo de (re) elaboração da identidade cultural, então a
proposta deste grupo parece transcender esta tendência. O trabalho do Grupo Mixtura difere
completamente do de grupos do litoral catarinense que enfatizam práticas folclóricas como o
Pau de Fitas, o Boi de Mamão e a Ratoeira, por exemplo. Apesar de tratar-se de tradição
açoriana, acredito que o que este grupo apresenta é algo novo, ou mesmo estranho, ao povo do
litoral catarinense. Por isso o Grupo Mixtura pareceu-me peculiar no contexto da afirmação
da identidade cultural açoriana em Santa Catarina. Mostrou-me possibilidades de diversos
caminhos que este fenômeno de “açorianização” no litoral catarinense pode percorrer.
Após todo o percurso seguido neste trabalho, chegaremos finalmente ao assunto que
foi o ponto de partida desta pesquisa. Depois de no primeiro capítulo definir a área do campo
científico que fundamenta este trabalho, debatendo alguns conceitos e temas relacionados à
Ratoeira, discutimos a questão da identidade cultural do litoral catarinense no capítulo
anterior. Neste capítulo, retomamos algumas dessas discussões iniciais, desta vez sob a ótica
do discurso nativo. No próximo capítulo, portanto, a Ratoeira será apresentada de acordo com
o que foi coletado em campo.
71
CAPÍTULO IV
Neste capítulo mostrarei como a Ratoeira é descrita na bibliografia e como foi
presenciada e registrada em campo. Falarei sobre algumas de suas características básicas, a
respeito da roda, da coreografia, de sua transmissão oral, da música e da poesia. Como a
música é foco principal neste estudo, apresentarei algumas transcrições musicais do trabalho
de campo, descrevendo e fazendo breves análises do material musical coletado.
4.1 O que é a Ratoeira e como acontece
Boa parte do material bibliográfico que trata da Ratoeira foi produzido por folcloristas.
Os documentos mais antigos encontrados datam da década de 1950
42
, e os mais recentes
parecem reproduzir o que foi dito nessas primeiras descrições
43
Um grande círculo formado por moças e rapazes de mãos dadas. No centro da roda fica um
rapaz ou uma moça que canta uma quadrinha, enquanto os do círculo avançam repetindo a quadrinha.
Nessas ocasiões desabafam os corações cantando declarações de amor ou desafio aos rivais. (Piazza,
1951: 165)
. Geralmente se descreve a
Ratoeira como uma brincadeira de roda, na qual os participantes entram para cantar versos de
amor, desafio ou sátira, endereçados a algum outro participante. Nas entrevistas do trabalho
de campo, me relataram que a Ratoeira podia ser cantada em outras situações,
independentemente da brincadeira de roda, principalmente durante o trabalho, como na
raspagem da mandioca, na colheita do café e na escalação do peixe. Portanto, era um tipo de
cantiga que parece ter sido muito corriqueira no cotidiano das pessoas há algumas décadas
atrás. Além de diversão e distração na hora do trabalho, servia como meio de comunicação
entre namorados. Destaco a seguir algumas das descrições encontradas nos documentos mais
antigos que tratam desta prática.
A música aproxima-se do círculo para acompanhar as quadrinhas, que vão desde declarações
de amor e confirmações, e até desafio aos rivais, não raro ouvindo-se quadras verdadeiramente
sarcásticas e satíricas (Medeiros, 1953: 11)
Como veremos, estas descrições já não condizem com a realidade atual da Ratoeira,
pois hoje em dia é basicamente praticada por mulheres idosas. O sentido de namoro foi
substituído pelo de nostalgia e pelo caráter de patrimônio cultural. Piazza também afirma que
se tratava de uma das “músicas populares mais usuais” entre descendentes de açorianos no
42
Refiro-me a Piazza (1951) e Medeiros (1953).
43
Ver Soares (1987, 1997 e 2002), Farias (2000), Viana (1983) e Fundação Franklin Cascaes (1995).
72
litoral catarinense (1951: 165). Portanto, percebe-se nesta afirmação que a origem açoriana já
era assunto na década de 1950, e a Ratoeira era vista como uma expressão desta identidade
cultural. Como vimos nos capítulos anteriores, a questão da origem açoriana entraria em voga
com mais vigor algumas décadas depois, tanto entre intelectuais quanto em meio a população
de modo geral. Nestas descrições da Ratoeira sempre se faz referência à roda, e em minha
opinião os folcloristas negligenciaram a presença desta música no cotidiano, principalmente
durante o momento do trabalho, como relatado em campo. Em Governador Celso Ramos,
uma das informantes explicou:
A gente cantava quando tava no engenho de farinha, apanhando café... Nós escalava peixe na
praia, tava escamando, tava cantando... assubia em cima do cafezal pra apanhar o café, tava
cantando... raspava mandioca no engenho pra fazer a farinha, cantava... Não precisava de fazer roda...
era só no serviço, parado... trabalhando, fazia crivo a noite toda... era três, quatro hora da madrugada,
e cantava... era sempre assim... (Dona Cissa)
Se nos dias atuais a Ratoeira está basicamente confinada a grupos de idosos que se
reúnem em associações de bairro e eventualmente a apresentam em festas típicas, na época da
juventude das entrevistadas a Ratoeira habitava outros espaços e situações. De acordo com os
relatos registrados, alguns espaços do convívio social eram típicos de ser palco da Ratoeira.
Um dos locais mais citados nas entrevistas, nos quais a Ratoeira era praticada, foi o engenho
de farinha. Certamente o engenho de farinha merece ser citado como um local importante de
reunião social. Obviamente um ponto de encontro para o trabalho, no entanto, algumas
relações sociais extra laborais se estabeleciam ali. Penso porém, que não se pode afirmar que
a Ratoeira é simplesmente um canto de trabalho, pois ocorria também em outras situações.
Mostrarei novamente outras narrativas coletadas em campo sobre a Ratoeira no ambiente do
trabalho.
Assim, nós tínhamos salga de camarão, e o camarão quando era bastante assim, nossa, às
vezes vinha 800 quilos de camarão, e aí anoitecia. Quando dizia-se vai anoitecer o camarão lá na salga
de fulano, reunia-se mais gente pra ajudar... Até meia-noite pelo menos tinha que dar conta daquele
camarão, porque ou era cru ou era cozido, mas não existia geladeira né, gelo... Aí, ah todo mundo se
reunia e começava a cantar Ratoeira. Dava assim mais Ratoeira no descascar camarão né, de noite, e a
gente se divertia, era um trabalho e se divertia com aquilo ali, sabe, era gostoso até. (Dona Francisca
Penha)
Era quando apanhava café, era quando tava na farinhada, fazendo farinha... (Dona Gina
Porto Belo)
De acordo com os relatos, a Ratoeira também era cantada em encontros que aconteciam
aos domingos na casa de algum conhecido, quando faziam almoço e cantoria. Outro local
típico era a praia, espaço sempre presente na vida dos habitantes do litoral. Em situações
como estas, era mais comum que se fizesse a roda, que ainda podia ser feita após o trabalho
no próprio local, como no caso do engenho de farinha por exemplo. A roda, deste modo, não
73
era o elemento fundamental da Ratoeira, mas sim o canto. Além disso, quando se fazia a roda
também se cantava outros repertórios, como as cantigas de roda que apresento em anexo neste
trabalho. Portanto, a Ratoeira era uma das cantigas possíveis nas situações onde se fazia a
roda. Creio que um dos diferenciais básicos entre as demais cantigas de roda e a Ratoeira é o
fato de que na Ratoeira se improvisava. Voltaremos a falar sobre o improviso na Ratoeira
adiante.
Bombinhas foi a primeira localidade visitada no trabalho de campo e os primeiros
questionamentos em campo acerca da Ratoeira aconteceram ali. Como até então não estava
muito claro quais eram as situações possíveis para se cantar a Ratoeira, uma das questões era
se havia algum traje especial para a brincadeira. Logicamente, como a Ratoeira era um tipo de
canção corriqueira, não havia motivo para um traje específico. No entanto, atualmente alguns
grupos de senhoras, como no caso do grupo entrevistado em Bombinhas, desenvolveram
trajes para apresentar a Ratoeira em eventos e festas. Portanto a utilização de um traje
particular é fato relativamente recente, desde que a Ratoeira migrou das situações corriqueiras
do cotidiano para apresentações públicas. Quase todos os grupos entrevistados apresentam ou
já apresentaram a Ratoeira em festas e outros eventos. No decorrer do trabalho as perguntas
nas entrevistas foram mudando de acordo com o desenvolvimento da pesquisa.
No bairro Sambaqui em Florianópolis, entrevistei um grupo de senhoras que se
encontra na sede da associação de bairro para tecer renda de bilro e ensaiar Pau de Fitas e
outras práticas como a Ratoeira. Uma das informantes manifestou sua preocupação e interesse
em aprender outras coreografias para a Ratoeira. Algumas integrantes do grupo tentaram
convencê-la de que não havia outra, que a coreografia era simples mesmo. Parece não existir
uma dança específica para a Ratoeira. Atualmente os grupos que apresentam publicamente a
Ratoeira adaptam suas coreografias, como no caso do grupo de Sambaqui. De acordo com
uma entrevistada de Governador Celso Ramos: “Não tinha nada, era só aquele balanço”. O
balanço talvez viesse do girar na roda. Na apresentação do Grupo de Dança Folclórica da
Terceira Idade da UFSC não havia uma coreografia muito elaborada para a Ratoeira,
diferentemente do Pau de Fitas apresentado pelo mesmo grupo. Mesmo não havendo uma
dança elaborada, existe uma maneira de caminhar peculiar quando se canta na roda de
Ratoeira. Como somente presenciei grupos de mulheres idosas, é provável que os movimentos
corporais não sejam feitos como na juventude. Penso que a preocupação com a coreografia
está mais relacionada às apresentações em público. A narrativa das informantes sobre a
74
juventude mostra uma Ratoeira de caráter mais espontâneo. A ênfase não era o auditório, mas
sim os próprios participantes.
Em relação ao significado do nome Ratoeira, muitas pessoas não souberam responder,
mas registrei algumas definições que revelam um pouco sobre esta prática musical. A roda da
Ratoeira, ou a própria cantiga, seria uma armadilha amorosa para capturar alguém que se
gosta. Este é um fator que torna a Ratoeira exclusiva em relação ao resto do repertório
musical dessa gente. Existe algo mágico nesta cantiga que remete ao contexto das benzeduras,
simpatias e bruxarias, também presentes nesta cultura. Porém esse sentido da cantiga ficou
perdido numa espécie de passado mítico, no tempo da infância e juventude, dos pais, dos avôs
e assim por diante. De acordo com Dona Marisa, coordenadora do Grupo de Dança Folclórica
da Terceira Idade da UFSC: “a Ratoeira é uma armadilha do jogo da sedução... antigamente
nós não tínhamos o poder de comunicação como nós temos nos dias de hoje, então se usava
essa brincadeira de roda para se dar as mãos, para trocar olhares, e mandarem algumas
mensagens.”
A Ratoeira é música de tradição oral, era ensinada geralmente pelas mães e avós, de
acordo com o discurso nativo. As crianças aprendiam ouvindo os mais velhos cantarem. Em
Governador Celso Ramos uma das senhoras afirmou em relação ao aprendizado da Ratoeira:
“A gente que tirava os truque, os truque vêm da idade da gente... Os truque vêm da idade da
gente, aí a gente vai pegando...” Os “truque” eram os versos da Ratoeira, que também podem
ser chamados de “moda”, como constatado em campo.
Desde o tempo... a minha bisavó... encostava na... eu era pequena... e a minha vó tava na
janela, vendo cantar Ratoeira. (Dona Lilica Governador Celso Ramos)
É do tempo dos antepassados, veio passando de geração em geração né... já veio do tempo
dos antigos... porque eu me lembro da Ratoeira na minha bisavó pela parte do meu pai. Que era no
tempo que no Porto Belo tinha quatro ou cinco casas, e a minha bisavó morava ali naquela encruza ali,
aonde a Cassi mora por hoje ali, que era um mato e elas moravam ali. Então ela cantava muito, às
vezes eu vinha do Canto Grande, meu pai trazia a gente de carro um dia ou dois ali né, e ela cantava
muito, ela sentava, ela fazia crochê, enfiava... era... aí ela cantava né. E cantava que era uma voz
bonita que era uma coisa! (Dona Neide Porto Belo)
Parece que este ciclo de transmissão de conhecimento se interrompeu. A juventude
perdeu o interesse por esse tipo de tradição e existe um consenso de que isso se deve aos
meios de comunicação, principalmente à televisão, como dizem o discurso nativo e alguns
intelectuais
44
.
44
Refiro-me a Farias (1998 e 2000) e Cascaes (1988).
75
4.2 Passado, Presente e Futuro
Neste trabalho a Ratoeira vem sempre sendo tratada no tempo presente e no passado,
isto porque aconteceram mudanças consideráveis em sua prática. O indício de praticamente
não haver jovens cantando a Ratoeira já é um exemplo dessas transformações, já que há
décadas atrás era uma música de jovens. Isso pode ser um reflexo da interrupção do processo
de transmissão deste conhecimento. Hoje os principais praticantes são mulheres entre sessenta
e noventa anos. São as avós e bisavós que há algumas décadas atrás estariam cantando
Ratoeira para os mais novos. As avós continuam cantando, no entanto este é um
conhecimento que parece não interessar e ter serventia aos jovens de hoje.
Hoje em dia já ninguém canta mais... ninguém sabe por quê... A nossa mocidade, não era
baile, não era nada... nós ia de noite pra praia, aí nós fazia aquela roda, né Nina? E começava a
cantar... cantava a noite... cantava de três, quatro horas, nós cantava... aquela onda grande... cantava
um verso uma pra outra... É que ninguém sabia essas músicas de rádio, televisão, não sabia, então era
só isso né... (Dona Maria Governador Celso Ramos)
Dona Francisca de Penha também falou sobre este assunto, para ela a geração de seus
filhos parou de repassar esse conhecimento aos netos.
E essas coisas assim mais antigas, dos mais jovens né, até hoje... já não tem mais, os nossos
netos já não tem, já não conhecem né... nossos filhos... eu contava pros filhos... as histórias né, tudo
que a minha mãe ensinou eu sempre passava pra eles, sabe? Mas os nossos netos já não têm né. Eu
conto pros meus netos, eles vêm aqui assim e eu falo pra eles né, Mas assim como as minhas filhas, as
filhas de... Cresceram escutando e eles não contam, não passam pros filhos deles hoje né... (Dona
Francisca Penha)
Em Porto Belo algumas das entrevistadas do Clube de Mães foram professoras do
ensino fundamental. Elas disseram que a Ratoeira chegou a ser ensinada nas escolas, assim
como outras práticas folclóricas. Na literatura também se encontra referência ao ensino da
Ratoeira nas escolas, como em Soares (1997). Quando este documento foi publicado o autor
dizia: “Atualmente estudantes praticam a Ratoeira nas escolas, um jeito “moderno” de
integração e socialização na abordagem do cotidiano”. (op. cit.: 21) Esta afirmação faz crer
que nos anos 1990 havia crianças aprendendo Ratoeira nas escolas. No entanto este projeto,
que segundo as professoras aposentadas de Porto Belo vinha do governo do estado através de
algumas cartilhas, parece não ter vingado. Pelo menos em relação à Ratoeira, não obtive
conhecimento de seu ensino em escolas nos dias de hoje, certamente não faz mais parte de
uma política pública.
Quando nos referimos à Ratoeira no passado é impossível não falar de sua relação com
os namoros da época. Primeiramente é preciso entender que na juventude das pessoas
entrevistadas os namoros eram bem diferentes. O discurso nativo fala de uma permissividade
76
nas relações de namoro atuais que não havia antes. Além disso, as possibilidades de
comunicação e entretenimento mudaram bastante de mais ou menos cinqüenta anos pra cá.
Era aos domingos quando vinha os namorados... que não se conversava de namoro, era
diferente... Então eu tinha um tio que contava que quando eles tinham namorada, eles faziam a roda
pra cantar, entravam dentro e tiravam versos uma pra outro pra... como coisa que tava conversando
um com o outro né... aí cantavam as moda um pro outro... ele falava que era assim... (Dona Ana
Governador Celso Ramos)
Como já mencionado, as cantigas não aconteciam somente no sentido de flerte, havia
também o desafio. As pessoas se desafiavam na Ratoeira, na tentativa de vencer a disputa na
conquista de alguém.
Escalava peixe na ponte né... naquele rio né... escalava peixe... cantava... cantava uma dum
lado... elas desafiavam uma à outra... o desafio né... desafiavam uma à outra... cantiga né pra...
Desafiando uma à outra... se desafiava uma à outra... Desafiava pra... tirar moda, pra elas... por causa
do namorado... do namorado... (Dona Nena Governador Celso Ramos)
O namoro naquela época, segundo relatos registrados em campo, não envolvia contato
físico. Logicamente existiam transgressões desse código moral e ético, mas era tudo muito
escondido. Era inadmissível que pessoas solteiras se beijassem em público. Certamente a
mulher ficaria “falada” e teria problemas em firmar compromisso de matrimônio. O namoro
da época acontecia com a presença da família. A Ratoeira normalmente acontecia longe do
olhar dos pais, durante ou depois do trabalho e também na praia, o que permitia uma
aproximação um pouco maior entre os jovens. Também não era permitido falar abertamente
sobre os sentimentos, dificilmente alguém se declarava a outra pessoa. Por outro lado, na
Ratoeira isso acontecia de maneira cantada e indireta. Os versos sempre eram endereçados a
alguém, porém geralmente não explicitamente. A Ratoeira, portanto, era uma ocasião onde se
permitia o flerte, que era proibido na maioria das situações do convívio social na juventude
das entrevistadas.
No nosso tempo a gente namorava, não pegava na mão, não encostava, era um lá, outro de
cá... Então essa moda da Ratoeira, a gente pegava na mão... Era a hora que podia aproveitar...
Aproveitava e já passava a mão né... (Dona Zilma Porto Belo)
A questão do gênero está sempre presente na Ratoeira. Existe uma tendência em
afirmar que se trata de uma prática feminina
45
45
Ver Soares (1997), por exemplo.
, no entanto a cantiga é feita para o rapaz
amado. Ou seja, sempre existe esta relação homem/mulher em evidência. Não há um
consenso no discurso nativo sobre isso. Alguns relatos mostram que os homens também
cantavam, porém é fato que atualmente a maioria das pessoas que cantam é de mulheres.
Mesmo quando os homens não cantavam, estavam por perto, pois a cantiga era pra eles.
77
... o homem cantava junto com nós, brincadeira com nós eles cantavam... Ele sabia cantar...
todos eles sabiam cantar... A gente cantava versos pra eles, eles cantavam pra gente... Aí arrumava
namorado... Nós cantava na praia, era uma, todas cantavam, era roda na praia... nós brincava tudo...
(Dona Bilica - Governador Celso Ramos)
De acordo com algumas senhoras do Clube de Mães de Porto Belo, os homens
participavam da Ratoeira durante a “raspação” da mandioca. As afirmações em relação à
participação dos homens são sempre confusas e às vezes controversas. Ao mesmo tempo em
que certas informantes dizem que os homens também sabiam cantar e que participavam da
Ratoeira, outras dizem que geralmente era só mulher. O fato de hoje praticamente só
encontrarmos mulheres cantando a Ratoeira talvez revele algo sobre isso. Se os homens
também cantavam, por que pararam de cantar? Infelizmente esta foi uma questão que ficou
sem resposta nesta investigação. No início do trabalho, ainda na fase de projeto, a idéia era
investir na observação das relações de gênero na Ratoeira. Entretanto, no decorrer da pesquisa
esta questão acabou perdendo espaço, sobretudo porque os informantes não mostraram um
consenso em relação a este tema. Além disso, outros assuntos foram tomando maior
importância dentro do trabalho, como a questão da identidade cultural.
Outro fator que era prioridade no início do trabalho era a mudança de significado
ocorrida com a prática da Ratoeira. Este tema já havia sido uma constatação em Silva (2005) e
esta pesquisa só confirmou esta verificação. À medida que vários aspectos no modo de vida
das pessoas mudaram, a Ratoeira também se alterou. Como já foi dito, a função do namoro foi
substituída pela nostalgia.
Ah! Hoje é mais diferente né... que a gente... mas a gente canta pra gente... eu me distraio
né... eu quando eu to em casa sozinha eu to cantando... eu me distraio com essas músicas assim... às
vezes eu ligo o rádio... enquanto to cantando... quando não to rezando to cantando, sabe, essa música...
essas modinhas... (Dona Júlia Governador Celso Ramos)
... pra nós, relembrar do passado é muito bom. (Dona Maria Porto Belo)
Esta mudança de significado está relacionada ao fato da Ratoeira hoje em dia ser
domínio de mulheres em idade avançada. Os sentimentos de nostalgia e saudade são em
relação ao tempo da juventude, onde se vivia com mais dignidade e felicidade. A Ratoeira
atualmente está confinada em espécies de asilos, nos quais mulheres idosas se encontram em
busca de qualidade de vida. Nestes encontros a lembrança do passado é uma das maneiras de
recuperar a alegria de outros tempos. Esta geração de cantoras de Ratoeira está se
extinguindo, assim como tudo indica que a própria Ratoeira irá se extinguir com elas. A
proximidade do fim da vida destas mulheres possui, a meu ver, uma correspondência com a
consciência de que a Ratoeira é uma prática em extinção. Isto certamente faz com que a
78
Ratoeira possua um significado de tristeza também. Como veremos nos versos de Ratoeira, a
tristeza sempre esteve presente, porém anteriormente muito mais relacionada a amores
impossíveis ou não correspondidos. Nos dias de hoje, me parece que mesmo os versos
satíricos e divertidos contêm uma dose de tristeza. A tristeza aí não está relacionada com o
significado literal dos versos, mas com aquilo que acredito que a Ratoeira representa hoje para
estas pessoas, a proximidade do fim. O riso diante da sátira poética da Ratoeira possui certa
ambigüidade, pois camufla esta consciência do fim da vida, do fim da Ratoeira. Penso que
este riso que a Ratoeira desperta, hoje possui também um caráter terapêutico, pois tenta
exorcizar a lamentação, vista como negativa entre essas pessoas.
Os encontros nesses grupos de mulheres geralmente têm o caráter de terapia
ocupacional, ora através de práticas culturais que promovem integração social, como no caso
das cantigas e outras manifestações do folclore, ora através de atividades e exercícios físicos,
sempre visando à preservação da saúde mental e física das participantes. Quando me
encontrei com o grupo de Governador Celso Ramos, antes de começar a entrevista, a
coordenadora do grupo, Dona Antonieta, realizou uma sessão de atividades que ilustra a
preocupação com a saúde dessas mulheres a qual me refiro. Havia cerca de quarenta mulheres
no total. A maioria estava de pé e em círculo e a coordenadora propunha uma atividade,
tentando encorajar as que se negavam a participar. Ela utilizava expressões como: “Quem
quer durar passa pra !”, o que demonstra esta preocupação com longevidade. A atividade
consistia em formarem um rculo de mãos dadas, a coordenadora então apertaria a mão da
pessoa do lado olhando em seus olhos. Esta pessoa deveria passar o aperto de mão e o olhar
adiante, para a pessoa seguinte, como uma onda. Uma atividade aparentemente simples que
levou alguns minutos para que todas compreendessem a proposta e conseguissem realizá-la, o
que ilustra a debilidade física, e em alguns casos mental, que a idade avançada pode
proporcionar. Isso também revela um pouco sobre o contexto com o qual me deparei em
campo e onde a Ratoeira está inserida.
O resultado desses encontros de idosas em certos casos é também a apresentação de
danças e cantigas folclóricas em festas evocativas. Este, por exemplo, é o caso do Grupo de
Dança Folclórica da Terceira Idade da UFSC e do Grupo Olaria do Sambaqui, ambos de
Florianópolis, que apresentam coreografias e cantigas típicas do folclore do litoral
catarinense, como o Pau de Fitas e a Ratoeira. Em relação à apresentação da Ratoeira, Dona
Francisca de Penha, que já coordenou um desses grupos de idosas, explicou que é difícil
manter o interesse do público numa apresentação de Ratoeira. Numa festa evocativa, como as
79
festas de cultura açoriana por exemplo, geralmente há mais de um desses grupos se
apresentando. Apresentações como o Pau de Fitas e o Boi-de-Mamão normalmente despertam
mais interesse do público. De acordo com Dona Francisca, a Ratoeira acaba sendo repetitiva e
cansativa ao público. Se o grupo é grande, todas as mulheres querem cantar um verso.
Quando vários grupos se apresentam num mesmo evento, acaba ficando ainda mais cansativo
e repetitivo. O grupo da UFSC possui uma performance estilizada da Ratoeira. Somente uma
pessoa canta os versos e é respondida pelo coro. Além disso, a cantiga é acompanhada por
instrumentos musicais, como sanfona, violão e percussão. Esta parece ser uma estratégia que
garante mais interesse pela Ratoeira por parte do público. No entanto, distancia a prática da
tradição à medida que a estiliza. Isto para alguns pode ser visto negativamente como
inautêntico.
O futuro da Ratoeira parece ser bem incerto. Diferentemente de outros patrimônios
culturais, como o Boi-de-Mamão por exemplo, não vem despertando o interesse da juventude,
o que compromete sua continuidade. O fato de ser domínio de pessoas idosas também é uma
ameaça à sua extinção. Entretanto, enquanto os grupos buscam estratégias para uma
reelaboração da Ratoeira, como no caso da senhora do Sambaqui que pensava numa nova
coreografia e a estilização do grupo da UFSC, também existe a possibilidade de que a prática
se estabeleça enquanto um patrimônio cultural merecedor de atenção. Por enquanto a Ratoeira
é uma das maneiras de acessar o passado, porém este passado parece interessar somente às
suas praticantes. Não é possível afirmar que esta cantiga passe a ser vista com mais interesse
pela juventude atual. Para que isso ocorra, talvez o caminho seja a sua valorização enquanto
patrimônio cultural. Outras estratégias poderiam ser a própria estilização da prática e a
evocação à origem açoriana. Isto certamente mudará ainda mais seu significado, forma e
conteúdo, o que pode incomodar alguns tradicionalistas, mas pode ser uma maneira de
garantir continuidade a esta música. Não pretendo propor aqui algum tipo de intervenção para
que isto ocorra, apenas especulo sobre algumas possibilidades que a “seleção cultural” pode
seguir. Em minha opinião, quem decidirá se a Ratoeira deve ou não continuar certamente é o
povo, independentemente de ações institucionais.
4.3 A música
Uma das primeiras constatações em relação às características musicais da Ratoeira foi
a existência de duas estruturas melódicas, como já descrito em Silva (2005). Normalmente há
80
um contorno melódico cantado solo e outro cantado pelo coro, como já mencionado na
introdução deste trabalho
46
A melodia da Ratoeira é singela e talvez sua maior riqueza musical esteja nas
ornamentações vocais. Faz parte da estética musical a utilização do glissando em alguns
saltos melódicos. Como a Ratoeira não é um repertório realizado por músicos de formação
tradicional, a maneira como é cantada pode causar alguns estranhamentos ao ouvido
ocidental. Piedade (2004) discute sobre a questão da tonalidade e dos centros tonais e suas
relações com as exegeses nativas e o grau de relativismo do ouvido do etnomusicólogo.
Penso que falar sobre um centro tonal na música da Ratoeira, é tentar traduzir para a
linguagem da música tradicional alguns elementos inerentes desta música. Esse suposto
centro tonal nem sempre es claro dentro da heterofonia (Cooke, 2009) e também não foi
verificado na exegese nativa, porém há uma tendência em afirmar uma determinada região de
freqüências sonoras com o canto. Traduzirei isso como um centro tonal e falarei em
determinadas tonalidades para tentar expressar essa região de alturas na qual o canto ocorre.
.
Talvez a maior sabedoria implícita na Ratoeira não esteja na música e sim na poética.
A música possui um padrão melódico aparentemente simples que é interpretado de maneira
variada, de acordo com cada cantora e às vezes de acordo com a região geográfica de origem
dessas cantoras. Cada grupo visitado parece possuir uma maneira própria de cantar a Ratoeira.
Logicamente existe uma estética e uma aprendizagem musical própria, mas foi visível no
trabalho de campo que algumas cantoras possuem maior expressividade na técnica vocal. Não
me refiro à técnica vocal da tradição musical ocidental, mas uma técnica vocal particular, que
certamente evidencia a consciência de uma afinação e de um centro tonal. Este centro tonal,
como decidi chamá-lo, notavelmente tolera uma gama considerável de alturas, podendo
causar a sensação de que as cantoras desafinam. Portanto é necessário um exercício de
relativização para uma maior aproximação a esse repertório e contexto musical. Nas
transcrições apresentadas a seguir, baseei-me nas cantoras que considerei estarem em maior
acordo com o que seria um centro tonal, ou em outras palavras, em maior sintonia com meu
ouvido ocidental. Seria bem mais complexo representar todas essas nuanças heterofônicas do
centro tonal nestas cantigas registradas, e não considero que seria pertinente a esta pesquisa.
Estas transcrições são, portanto, uma espécie de tradução desta música para a notação musical
46
Em Soares (1987) encontram-se partituras de algumas músicas típicas do litoral catarinense, entre elas a “Meu
Cravo de Rosa” que possui mesma letra e melodia similar à Ratoeira que coletei. No entanto, Soares parece
considerar algumas outras cantigas como também sendo Ratoeira. Em campo não encontrei essa variedade
melódica para a Ratoeira. De acordo com os informantes, Ratoeira é o que será apresentado neste capítulo.
81
tradicional. Como em qualquer tradução, alguns elementos desta música certamente não
possuem correspondência com a música ocidental tradicional, e vice-versa. Desta maneira, as
transcrições que apresento servem como uma ilustração deste canto, que permite algumas
reflexões sobre esta música. Estas transcrições, portanto, pretendem servir como uma
ferramenta de análise do material coletado (Seeger, 1987).
Alguns recursos da notação musical como mudança de fórmula de compasso e
armadura de clave e fermata foram utilizados para representar algumas inconstâncias no pulso
e alterações mais notáveis na afinação e no centro tonal. Para representar a ornamentação
vocal, utilizo basicamente dois sinais, glissando e legato. O andamento das cantigas é presto,
em torno de 200 b.p.m.. Porém vale lembrar novamente que o pulso não é sempre constante,
aliás o conceito de pulso parece não existir entre os nativos. Desta maneira, a utilização de
fórmulas de compasso e mesmo a idéia de pulso, são estratégias e tentativas de representar
esta música na escrita. Quando se busca representar características musicais, deve-se
considerar que o material apresentado é uma aproximação do que foi registrado. Talvez uma
tentativa de representar mais elementos tornasse a leitura muito carregada, e certamente
extrapolaria a dimensão esperada pare este trabalho. Opto pelo sistema de notação musical
tradicional, ciente de suas limitações para este repertório, seguindo os passos de Piedade
(2004). O objetivo destas transcrições é ilustrar o leitor sobre as características musicais mais
notáveis da Ratoeira e servir como material de análises. Dividirei as transcrições de acordo
com os grupos registrados.
4.3.1 Governador Celso Ramos
Existe uma abertura para a cantoria da Ratoeira que é cantada por todos os
participantes. Esta abertura é cantada sob aquilo que considero a melodia solo, a melodia dos
“versos”, ou “truques”. Em seguida (representado depois da barra dupla de compasso), canta-
se o refrão, ou a melodia coro, que geralmente é cantada entre um verso e outro pelo grupo. A
seguir se encontra a transcrição dessa abertura cantada pelo grupo de idosas de Governador
Celso Ramos
47
47
Para ver em vídeo a Ratoeira registrada em Governador Celso Ramos, acesse o arquivo “3 Governador Celso
Ramos” do DVD anexo.
.
82
Depois dessa abertura, iniciou-se a seqüência de versos, ou “modas”, cantados
individualmente e seguidos pelo refrão cantado pelo grupo. Na letra da cantiga percebe-se a
relação entre beleza e tristeza, pois quando a Ratoeira é bem cantada desperta este tipo de
sentimento, como sugere o verso. Nota-se aqui que a cantora que “puxou” essa moda baixou a
tonalidade, ou centro tonal em meio tom, indo de Lá maior para Lá bemol maior. A nova
tonalidade foi seguida pelo grupo no refrão.
83
Esta tonalidade de Lá bemol maior pareceu ser confortável à tessitura de voz do grupo,
pois permaneceu por muitos versos. Penso que existe uma região tonal que é preferida pelas
cantoras de Ratoeira, pois como veremos, as tonalidades ficaram preferencialmente entre o Fá
maior e o Lá bemol maior. Logicamente as cantoras não pensam nesses termos de tonalidades
ou centro tonal, mas fica evidente que existe uma espécie de diapasão consensual entre elas.
Como no exemplo anterior, neste que segue o grupo acrescentou uma segunda voz ao refrão.
84
Na próxima transcrição acrescentei um compasso no final da melodia solo.
Geralmente a melodia solo possui dezesseis compassos, porém às vezes algumas cantoras
prolongam a nota na última, ou últimas sílabas do verso. Não pretendo estabelecer uma forma
imutável à Ratoeira, como já disse, as transcrições são de caráter ilustrativo do que foi
registrado em campo.
85
No exemplo seguinte ocorre o mesmo acréscimo de um compasso na melodia solo.
86
A partir desse momento, a dinâmica da cantoria na roda que estava formada mudou.
Poucas cantoras, dentre aproximadamente quarenta mulheres, realmente possuíam um
repertório grande de versos. Ocorreu, portanto, que estas que detinham maior conhecimento
na Ratoeira passaram a “puxar” alguns versos e o grupo repetia, fugindo do padrão seqüencial
de verso/refrão. Assim sendo, a seguir reproduzo apenas os versos cantados em solo.
87
88
Neste último verso vemos uma sugestão de que a casca da laranjeira possui um poder
mágico contra a bruxaria
48
.
48
A bruxa é figura presente na cultura do litoral catarinense, como já mostrou Maluf (1993). Em minha primeira
etnografia da Ratoeira também registrei uma interessante história de bruxa, transcrita e anexada em Silva (2005).
89
Percebe-se que as estruturas melódicas são bem repetitivas. Mesmo os locais onde se
costuma ornamentar tendem a serem sempre os mesmos, geralmente nos terceiros, quartos e
quintos compassos. Note-se que melodicamente é como se houvesse um ritornello no oitavo
compasso, o que muda é o verso, sendo que a melodia pode variar em função da prosódia. O
último verso sugere que a babosa pode ser utilizada para combater a inveja. Vemos que o
universo das simpatias e bruxaria se mescla na poética da Ratoeira. Como está subentendido
que as “modas” seguintes são cantadas em solo, deixo de fazer essa indicação nas próximas
transcrições. O final de cada “truque” é indicado pela barra dupla de compasso. Na “moda”
que segue, a letra mostra uma relação intrigante entre natureza e corpo humano (ou cultura
49
49
Lembrando o antagonismo sugerido por Eagleton (2005) entre natureza e cultura.
),
onde uma semente nasce no peito de alguém.
90
A maioria das cantoras costuma fazer o mesmo tipo de ornamentação nos mesmo
locais do que seria o ritornello. Ou seja, quando fazem um glissando no terceiro compasso,
normalmente fazem o mesmo no cimo primeiro compasso de sua “moda”. Na letra da
próxima transcrição novamente se constata uma mistura entre o que é humano e o que é
vegetal, cultura e natureza.
91
Uma característica musical marcante da Ratoeira, que veremos em todos os versos
solo transcritos aqui, é a ausência do primeiro grau melódico na melodia, a tônica está sempre
omissa na melodia solo. Isso dá um ar de continuidade, de ausência de repouso, podendo
inclusive haver uma relação simbólica com a própria roda.
Nos próximos versos, veremos que a tonalidade baixa novamente meio tom, portanto,
indo para Sol maior. Na maioria dos casos, quando alguma cantora alterou a tonalidade a
tendência foi de as demais seguirem na nova tonalidade, como veremos a seguir.
92
O próximo verso foi inspiração para o título deste trabalho. Foi cantado depois de
desfazerem a roda como uma resposta a uma das perguntas que fiz ao grupo. A pergunta era
se alguém sabia o significado do nome Ratoeira. Imediatamente recebi esta réplica. O
significado continuou de certa forma enigmático, mas considero que foi muito representativo
em relação à improvisação poética, como veremos na seção seguinte deste capítulo. A
improvisação neste caso não está relacionada à criação de um verso, mas sim na utilização de
algum que seja pertinente à situação, o que certamente envolve um domínio do repertório
poético.
93
A seguir apresento os dois últimos “truques” registrados e transcritos do encontro em
Governador Celso Ramos.
94
4.3.2 Dona Francisca de Penha
O encontro com Dona Francisca foi diferenciado, pois foi o único registro que não foi
feito em grupo. No entanto foi muito representativo porque Dona Francisca coordenava um
grupo de idosos em Penha que se apresentava em festas evocativas. Além disso, Dona
Francisca demonstrou um grande conhecimento do repertório musical da cultura do litoral
catarinense. É uma excelente cantora deste repertório
50
. Sua voz expressa sua sabedoria
musical, sempre com uma afinação decidida. Nos versos de Ratoeira que cantou, manteve a
mesma tonalidade de Fá maior todo o tempo. Outra constância foi em relação à pulsação. Sua
experiência musical vinda das várias apresentações realizadas com o grupo que comandava é
notável em sua performance. Seguiremos então com algumas transcrições dos versos de
Ratoeira que Dona Francisca cantou.
50
Para ouvir a Ratoeira cantada por Dona Francisca, acessar o arquivo de áudio “4 Dona Francisca” do DVD
anexo.
95
Em relação à Ratoeira de Governador Celso Ramos, já é possível notar uma variação
no que diz respeito à preferência de determinados graus melódicos em alguns pontos da
melodia. Em Governador Celso Ramos geralmente se canta o terceiro grau melódico no
terceiro compasso. Dona Francisca parece preferir o quinto grau melódico no terceiro
compasso. São variações como esta que diferenciam a Ratoeira de cada região que visitei.
96
A transcrição anterior é de uma melodia coro, ou refrão. Dona Francisca disse que este
refrão era cantado eventualmente. Parece-me, portanto, que na Ratoeira conhecida por ela,
este refrão não intercala os versos da mesma maneira que acontece na maioria dos casos
vistos. Isso mostra que não existe um padrão seqüencial para esta música. Cada lugar, e cada
grupo de pessoas determinam o próprio funcionamento da brincadeira. Creio que o conteúdo
possui mais importância que a forma na Ratoeira. Ou seja, a Ratoeira não necessita da roda ou
de uma regra específica para acontecer, basta o conhecimento dos versos e de como empregá-
los. Vale chamar a atenção do leitor novamente para a relação mimética entre natureza e
corpo, como sugere o refrão.
97
O verso seguinte sugere que a folha da bananeira pode servir como uma espécie
oráculo na adivinhação da pessoa com quem se vai namorar. A folha aponta para o lado onde
mora o amor.
98
A “moda” anterior diz que um cravo caiu do céu e nasceu num copo. O cravo no copo
parece fazer brotar um amor divino, mostrando uma relação divina no amor, o que parece
expressar a religiosidade manifestada também nas relações afetivas. O glissando, que parece
ser uma das características estéticas da Ratoeira, além de freqüentemente aparecer em
determinados compassos da melodia, geralmente é realizado em intervalos descendentes.
4.3.3 Clube de Mães de Porto Belo
A Ratoeira que registrei em Porto Belo também possui suas particularidades. Suas
características distinções melódicas são muito semelhantes às da Ratoeira que presenciei no
município de Bombinhas, adjacente a Porto Belo. Infelizmente o encontro com o grupo de
senhoras de Bombinhas não foi registrado, o que certamente traria comparações interessantes
entre as similaridades e diferenças melódicas. Creio que exista muita influência na
musicalidade de um local para o outro, já que são municípios vizinhos, e isso é perceptível na
Ratoeira. Neste encontro com o Clube de Mães de Porto Belo estavam presentes cerca de dez
mulheres cantando
51
51
Para ver a Ratoeira do Clube de Mães registrada em campo, acessar o arquivo “5 Clube de Mães de Porto
Belo” do DVD anexo.
. O grupo não utiliza tantas ornamentações na melodia em relação aos
demais reproduzidos até aqui, como o glissando por exemplo. O andamento que este grupo
aplica na Ratoeira é um pouco mais ligeiro que os demais, talvez por isso cantem com menos
99
ornamentos. O grupo também faz o mesmo tipo de abertura que fez o grupo de Governador
Celso Ramos, como vemos a seguir:
O ideal estético sugerido na letra relaciona-se à tristeza e ao esquecimento. Parece-me
que esta estética representa perfeitamente a realidade decadente da Ratoeira nos dias de hoje,
pois tristeza e esquecimento são conceitos intimamente ligados ao significado atual desta
música em minha opinião. Na melodia coro, ou refrão, vemos um diferencial desta Ratoeira.
Somente na última sílaba, ou último compasso, se faz uma segunda voz uma terça abaixo. No
caso da Ratoeira deste grupo, é o único momento no qual se canta a tônica, o primeiro grau
100
melódico. Cheguei a perguntar em vários encontros sobre o uso de uma segunda voz, tanto na
Ratoeira quanto em outras músicas, e geralmente isso é feito de maneira intuitiva. As pessoas
não têm muita consciência desta habilidade, fazem com naturalidade sem racionalizar sobre a
ação. A seguir apresento os versos cantados em solo, seguidos do refrão cantado pelo coro.
Vemos que a roda da Ratoeira e a natureza são sinônimas no “truque” que segue.
101
A transcrição a seguir mostra que a cantora subiu a afinação em um tom, e o coro
canta o refrão respeitando esta tonalidade sugerida pela solista. A “moda” cantada é muito
parecida com a anterior. Apesar de este grupo cantar com menos ornamentações que os
demais, algumas cantoras possuem estilo próprio e “desenham” a melodia de maneira
particular, como vemos também no exemplo seguinte.
102
Creio que esta subida de um tom, em relação à tonalidade que cantavam
primeiramente, foi um pouco radical, pois em seguida baixaram meio tom, indo para Fá
sustenido maior, aproximando-se da tonalidade inicial Fá maior.
103
A tonalidade de Sol maior certamente ficou no ouvido, pois a próxima solista voltou a
subir meio tom. O coro responde com naturalidade a essas alterações, sempre aderindo à
tonalidade cantada por quem “puxa a moda”. O próximo verso é um exemplo jocoso de
Ratoeira, certamente um “truque” usado para rechaçar algum pretendente indesejado. A
solista anunciou antes de cantar que as colegas iriam rir.
104
Novamente a tonalidade volta para o Fá sustenido maior, que desta vez permanece por
duas solistas. A cantora do próximo exemplo mostra personalidade em suas ornamentações,
diferente da maioria do grupo, que canta as alturas de maneira mais estável.
105
106
Na próxima transcrição veremos a síntese desta constante mudança de centro tonal. A
cantora inicia a “moda” em Sol maior, e vai baixando gradualmente até voltar ao Fá sustenido
maior. Apesar de a cantiga iniciar em Sol maior, o coro responde na tonalidade em que a
solista termina o verso, ou seja, Fá sustenido maior. O exemplo a seguir é uma tentativa de
representar esta queda de tonalidade, lembrando novamente que se trata de uma aproximação
ilustrativa do material registrado.
107
A última solista registrada neste encontro continuou afirmando a tonalidade de Fá
sustenido maior, como vemos a seguir. Se por um lado o grupo realizou mais variações na
melodia solo, na tonalidade e na pulsação, por outro, a melodia coro pareceu mais coesa,
variando somente em função da tonalidade, porém praticamente sem que se alterasse o
contorno melódico.
108
4.3.4 Grupo Olaria do Sambaqui (Florianópolis)
O Grupo Olaria, que se encontra na sede da Associação de Bairro do Sambaqui em
Florianópolis, possui um caráter semi-profissional, pois um dos objetivos do grupo é se
apresentar em festas, e eventualmente são contratados para isto. Além da Ratoeira o grupo
também apresenta o Pau de Fitas e outras danças. A Ratoeira que registrei neste grupo
109
também inicia a cantoria com o mesmo tipo de abertura já observado nos demais grupos
mencionados aqui, como vemos a seguir
52
.
Novamente verifica-se aqui a tonalidade de Fá sustenido maior. Tudo leva a crer que
exista ou uma memória tonal, ou uma região tonal de maior conforto em relação à tessitura
vocal, que faz com que se cante geralmente entre as tonalidades de Fá maior e Lá bemol
maior, como se constatou nestas transcrições. Se compararmos as linhas melódicas de cada
52
Para ouvir a Ratoeira do Grupo Olaria, acessar o arquivo “6 Grupo Olaria” do DVD anexo.
110
grupo, veremos que existe uma espécie de identidade, que diferencia sutilmente a cantiga de
um grupo pra outro. Retomarei este assunto nas considerações finais do trabalho. Antes disso,
vejamos mais transcrições da Ratoeira do Grupo Olaria, agora com os versos individuais.
Desta vez o refrão, ou melodia coro, foi cantado com uma letra diferente. Não ficou
claro se na abertura se canta daquela maneira, ou se foi um erro do grupo. Parece-me que foi
um equívoco, pois a partir daqui o grupo cantou sempre com a letra transcrita acima na parte
do refrão. Creio que pelo fato do grupo ensaiar visando apresentações, sua performance é
relativamente mais coesa do que em grupos que não possuem esse objetivo. Refiro-me à
111
constância na pulsação e na afinação, apesar de que veremos adiante que o grupo também
mudou de tonalidade. Outra marca de originalidade na cantiga de Ratoeira deste grupo está na
maneira em que acrescentam uma segunda voz no refrão. Geralmente acrescenta-se a segunda
voz, uma terça abaixo, nos compassos 23 e 24 de cada conjunto de melodia solo seguida pela
melodia coro. Se considerarmos o refrão isoladamente, isso ocorreria entre os compassos 11 e
12 da melodia coro. Seguimos com mais exemplos.
112
113
114
Um fato notável no próximo exemplo é que o grupo a partir daqui passou a cantar a
tônica, ou primeiro grau melódico, no último compasso do refrão. Como temos visto,
geralmente a cantiga da Ratoeira omite a tônica, porém fica claro que isto não é uma regra, já
que eventualmente se canta o primeiro grau melódico. Este acréscimo da tônica geralmente
ocorre quando se acrescenta uma segunda voz uma terça abaixo da linha melódica principal.
115
Os últimos dois exemplos foram cantados meio tom acima, na tonalidade de Sol
maior. A solista cantou na nova tonalidade e foi seguida pelo grupo.
116
Este grupo possui um encerramento para a Ratoeira, que da mesma forma que a
abertura é cantada por todas as mulheres. Em um determinado momento o grupo se olhou e
decidiu que seria o final. Segue portanto, o único exemplo de um final para a cantoria da
Ratoeira registrado.
117
4.3.5 Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC (Florianópolis)
O único registro de uma apresentação pública de Ratoeira que fiz durante o trabalho de
campo foi do Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC. A Ratoeira que este
grupo faz é bem distinta das demais presenciadas nesta pesquisa. Nesta ocasião, o grupo
também apresentou o Pau de Fitas, a Dança das Rendeiras e a Dança da Jardineira. Com
coreografia e figurino próprios e formação instrumental, a Ratoeira deste grupo tem um
caráter estilizado, adaptado à apresentação pública
53
Nesta apresentação faz-se a roda, e em cada melodia solo entra uma dançarina no
centro da roda. Porém esta pessoa, no caso só havia mulheres na roda, não canta o verso.
Todas as “modas” são cantadas pela vocalista e coordenadora do grupo, Dona Marisa. O
grupo de instrumentistas, formado exclusivamente por homens, canta o refrão intercalando
cada verso da vocalista. Tanto a melodia solo quanto a melodia coro sempre são cantadas
basicamente com o mesmo contorno melódico, variando somente em função da prosódia de
determinados versos. Como a linha melódica variou pouco durante a apresentação, mostrarei
apenas uma transcrição deste grupo para ilustrar sua maneira de fazer a Ratoeira, evitando
exaustão na leitura. Os demais versos cantados por Dona Marisa estarão incluídos na próxima
seção deste capítulo. A instrumentação do grupo consiste em uma sanfona, dois violões e
instrumentos de percussão como surdo, pandeiro, reco-reco e afoxé. Na transcrição a seguir
também incluo as cifras do acompanhamento harmônico. A tonalidade desta Ratoeira também
. Também foi o único caso de presenciar
homens cantando a Ratoeira. Porém considero ser um exemplo não muito representativo da
presença masculina na Ratoeira. Digo isso porque a Ratoeira não é o único repertório do
grupo, e os homens só cantam durante o refrão. Em minha opinião o conhecimento da
Ratoeira está mais relacionado ao domínio dos versos que se canta em solo.
53
Para ver esta apresentação registrada no Largo da Alfândega em Florianópolis, acessar o arquivo “7 Grupo de
Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC” no DVD anexo.
118
difere das demais por estar em Dó Maior, talvez pela facilidade para os instrumentos de
harmonia. Esta tonalidade faz a cantiga soar bem mais aguda que a maioria da Ratoeira
registrada nos outros grupos.
No refrão o coro canta uma segunda voz que foge ligeiramente do padrão da terça
abaixo paralela à melodia principal. Além disso, a melodia principal deste refrão é cantada
como se fosse a segunda voz dos exemplos anteriores, quando existem duas vozes. Ou seja,
não se canta a melodia principal do refrão presenciada nos demais grupos, e sim uma linha
119
melódica uma terça paralela abaixo. Talvez isso seja uma adaptação à tessitura vocal
masculina. O ritmo da melodia coro também mostra uma variação que sugere outras
influências nesta execução. Esses detalhes fazem da Ratoeira do Grupo de Danças Folclóricas
da Terceira Idade da UFSC soar de maneira distinta do que se considera tradicional. O grupo
tem consciência disso, e na apresentação registrada Dona Marisa explicou esta adaptação
antes de dar início à Ratoeira.
4.4 A poesia
Nesta seção pretendo fazer uma breve análise da poética da Ratoeira e apresentar uma
pequena antologia poética de tudo o que foi coletado no trabalho de campo. Falarei
brevemente da temática dos versos e de alguns elementos freqüentes, como determinadas
plantas por exemplo. Também tratarei da improvisação na escolha e criação de algumas
“modas”.
Em relação à métrica na poesia da Ratoeira podemos dizer que os versos cantados em
solo são heptassílabos, ou seja, de sete sílabas poéticas, também conhecidos como
“redondilhos maiores”. O redondilho maior é muito comum em quadrinhas, canções
populares e folclóricas, freqüente em cantigas medievais e aparece em poemas de todas as
épocas em Portugal e no Brasil (Goldstein, 1986: 27). A poesia que o coro canta é composta
por versos hendecassílabos, de onze sílabas poéticas. A rítmica dos versos da Ratoeira é
facilmente identificada na notação musical pelo ostinato:
De acordo com o sistema quantitativo herdado da Antiguidade Clássica, interpreta-
se esta rítmica como uma alternância entre sílabas longas e sílabas breves. Estas unidades
rítmicas são conhecidas como “pés métricos”, e este que se caracteriza pela presença de uma
sílaba longa seguida de uma breve, como no caso da Ratoeira é conhecido como “pé trocaico”
ou “troqueu” (op. cit.: 18).
Durante o trabalho estive sempre me referindo aos versos da Ratoeira e é importante
fazer uma distinção. Na poesia um verso é uma linha, ou frase, do poema. No entanto, o
discurso nativo categoriza como verso todo o trecho cantado individualmente, ou aquilo que
se canta na melodia solo, o que corresponderia a dois versos, duas linhas, ou duas frases, de
acordo com a classificação que se utiliza na poesia de maneira geral. Um verso de Ratoeira é,
portanto, o mesmo que uma “moda” ou um “truque”, como já mencionado anteriormente.
120
Assim sendo, sempre que me referi aos versos da Ratoeira nas seções anteriores utilizei a
categorização nativa.
Certamente existe uma origem açoriana na Ratoeira, talvez até anterior. Como foi dito
no segundo capítulo, o arquipélago dos Açores foi colonizado por portugueses por volta do
século XV. Em minha opinião a Ratoeira carrega traços trovadorescos de Portugal medieval.
Sua temática amorosa, de origem popular, lembra as Cantigas de Amigo trovadorescas.
Talvez o que defina a Ratoeira como música “das mulheres”, como disse Dona Maria da
Barra da Lagoa (Florianópolis)
54
A Ratoeira pode ser eventualmente improvisada, porém exige a capacidade de rimar
por parte de quem cria. Cantar Ratoeira envolve o conhecimento de um repertório
relativamente grande de versos. Alguns dos versos coletados possuem muita semelhança entre
si. Isso mostra que alguns elementos podem ser substituídos por outros, como vemos a seguir.
, seja a predominância do eu lírico feminino em seus
versos. A relação com certos elementos da natureza também pode ser uma influência deste
tipo de literatura portuguesa medieval (Moisés, 1997: 25). A Ratoeira também pode assumir
um teor satírico, o que poderia aludir às Cantigas de Escárnio trovadorescas, por serem
sempre dirigidas a alguém de maneira indireta e até mesmo enigmática (op. cit.: 33). O
redondilho e os versos hendecassílabos eram os mais comuns na métrica destas cantigas
trovadorescas (Spina, 2003: 38), outra semelhança com a Ratoeira. Além disso, o “pé
trocaico” é o ritmo predominante encontrado nas partituras de Cantigas de Amigo
apresentadas em Alegria (1968). Não pretendo especular sobre a origem poética da Ratoeira,
porém estas semelhanças com as primeiras formas de literatura portuguesa são notáveis
(Moisés, 1997).
Mandei fazer um relógio
da casca do caranguejo.
Para contar os minutos,
e as horas que não te vejo.
Mandei fazer um barquinho,
da casca do caranguejo.
Para levar o meu bem,
nadando por onde eu vejo.
Quando eu saí de casa
minha mãe chorando disse:
Vai-te filho de minh’alma,
porque eu vou ficar tão triste.
Mandei fazer um barquinho,
da casquinha da babosa.
Pra botar meu amor dentro,
por causa das invejosas.
Mandei fazer um barquinho,
da casca da laranjeira.
Pra botar meu amor dentro,
por causa das “embruxera”.
Quando eu saí de casa,
minha mãe ficou na porta.
Ela a mim chorando disse:
Filha vê quando é que volta.
54
Ver Silva (2005).
121
Lá de trás daquele morro
tem um banquinho de vidro
Onde meu amor se senta
para conversar comigo.
Lá de trás daquele morro
tem um pé de araçá.
Quem quiser casar comigo,
pisque o olho que já está.
O improvisar na Ratoeira também está muito relacionado a saber utilizar o verso mais
adequado para cada tipo de situação. Em Porto Belo, após uma das mulheres cantar o primeiro
verso a seguir, todas riram bastante. Como o verso se refere a um nome iniciado com a letra
“R”, penso na possibilidade de ter sido uma brincadeira comigo. Esta maneira de endereçar os
versos indiretamente a algum pretendente utiliza muito as letras do alfabeto na construção dos
versos. Outra maneira seria a de fazer referência ao local de residência do amado.
“A, B, C” tem uma letra,
que eu devo muito favor.
É o “R” com o que se assina,
o nome do meu amor.
O “A, B, C” do amor,
vinte e cinco letras tem.
Vinte e cinco penas passa,
quem se afasta do seu bem
Com “S” escrevo saudade,
com “R” recordação.
Com “C” escrevo teu nome,
meu amor, meu coração.
O meu amor é moreno,
mas não é de geração.
É de tomar o sol quente,
lá da praia da Armação.
Com “R” faço o meu nome,
eu com “U” faço união.
Eu com “E” faço o seu nome,
amor do meu coração.
Gavião me dá uma pena,
que eu quero escrever um “S”.
Menino da cor morena,
tem a cor de quem padece.
Escrevi na areia fina,
sete letras pra meu bem.
A maré veio e apagou,
não ficou pra mais ninguém.
A folha da bananeira,
pra que lado se virou.
Lá pro lado de Balneário,
onde mora o meu amor.
A temática do amor é sem dúvida a mais recorrente nos versos, como vemos nos
próximos exemplos registrados em campo.
Ô que noite tão bonita,
ô que céu tão estrelado.
Deu que era meu amor,
fará contigo ao meu lado.
O meu amor é um anjo,
Deus me deu porque mereço.
Já falaram em comprar,
anjo do céu não tem preço.
Eu gosto da rosa branca
pelo perfume que tem.
Quem tem amor tem ciúme,
quem tem ciúme quer bem.
Eu não tenho alegria,
nem tenho consolação.
No mundo não sou ninguém,
sem você meu coração.
Antes que o fogo apague,
na cinza deixou calor.
Antes que o amor se acabe,
no coração deixa dor.
Meu moreno chegou ontem
lá das bandas do sertão.
Pra alegrar a minha vida
e também meu coração.
122
Laranjeira pequenina,
carregadinha de flor.
Eu tamm sou pequenina,
carregadinha de amor.
Te abaixa morro alto,
que eu quero ver a cidade.
Quero ver o meu amor,
senão morro de saudade.
Da tua boca de ouro,
tua garganta de prata.
Esse teu sorriso me alegra,
esse teu olhar me mata.
Ratoeira bem cantada,
faz chorar, faz padecer,
Também faz um triste amante,
de seu amor esquecer.
Não há pão como o pão doce,
nem na goma do carneiro.
Nem peixe como a pescada,
nem amor como o primeiro.
Fui no mato cortar lenha,
cortei o dedo do pé.
Amarrei com a fitinha
da camisa do José.
Eu entrei na Ratoeira,
mas não foi para cantar.
Quem meu coração queria,
na Ratoeira não está.
Namorei com teu amor,
namorei tá namorado.
Inda tenho fé em Deus,
de botar ele ao meu lado.
Acabou a Ratoeira,
amanhã é outro dia.
Na Ratoeira não estava,
quem meu coração queria.
Eu fui numa pesca de linha,
com isca de amor tirano.
Logo no pegar da linha,
conheci teu desengano.
Alguns versos sugerem até certa erotização, como vemos abaixo:
Eu queria ser uma moça,
uma moça, eu queria ser.
Pra cair nos teus braços,
e ser amada por você.
Açucena quando abre,
tem um cheiro diferente.
É igual moço solteiro,
quando passa pela gente.
Pode-se também utilizar na Ratoeira versos, quadrinhas e outras cantigas conhecidas
do folclore brasileiro em geral, como a seguir:
O anel que tu me destes,
era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas,
era pouco e se acabou.
Batatinha quando nasce,
se esparrama pelo chão.
Meu amor, viu, quando dorme,
põe a mão no coração.
Muito comuns são os versos com a alusão à natureza, às vezes expressando relações
mágicas e oníricas com o corpo. Isto foi muito mencionado na seção anterior deste capítulo, e
pode significar uma relação mimética entre as idéias antagônicas de natureza e cultura. Nesta
fusão a natureza está representada por algumas plantas específicas e a cultura por partes do
corpo humano, como em alguns dos exemplos seguintes:
123
Amor firme não havia,
se a semente se perdeu.
Se a semente de amor firme,
só no meu peito nasceu.
Meu galho de malva, meu manjericão,
dá três pancadinhas no meu coração.
Meu galho de malva, meu manjericão,
não posso passar sem te ver toda hora.
O limão na beira d’água
pode estar quarenta dias.
Eu longe do meu amor,
não fico mais nem um dia.
Lá do céu caiu um cravo,
dentro do copo e nasceu.
Fiquei muito satisfeita,
do amor que Deus me deu.
Choveu no enxuto, choveu no molhado,
choveu no meu peito, meu cravo encarnado
Meu cravo encarnado, meu manjericão,
dá três pancadinhas no meu coração.
Meu galho de malva, meu manjericão,
dá três pancadinhas no meu coração.
Meu galho de malva, meu buquê de aurora,
não posso passar sem te ver toda hora.
Alecrim na beira d’água,
pode dar quarenta dias.
Eu longe do meu amor,
não posso tá nem um dia.
Fiz a cama na varanda,
esqueci o cobertor.
Deu um vento na roseira,
encheu a cama de flor.
Algumas plantas são muito recorrentes nas cantigas de Ratoeira, como a malva, o
manjericão, o cravo e outras. Algumas dessas plantas possuem poderes mágicos na crendice
popular, como o manjericão que espanta o mau olhado. Estes poderes poderiam muito bem
ser utilizados nos “truques” da Ratoeira com outras intenções. A Ratoeira também pode
expressar certa tristeza, como vemos nestes versos:
Quem me vê estar cantando,
pensa que eu estou alegre.
Meu coração tá tão negro,
quanto a tinta que eu escrevo.
Cada vez que eu considero,
quem era, quem fui, quem sou.
Olho pra mim, tenho pena,
minha sorte se acabou.
Eu não tenho alegria,
nem tenho consolação.
No mundo não sou ninguém,
sem você meu coração.
Chora “zolho”, chora olho,
que para o choro nascesse.
Chora já pouca fortuna,
do amor que tu perdesse.
Destaco também alguns versos jocosos, pensando numa possível relação com as já
mencionadas Cantigas de Escárnio do Trovadorismo na literatura portuguesa da Baixa Idade
Média.
Vai embora pinto tolo,
passarinho do arroz.
Já tenho meu namorado,
não quero namorar dois.
Pensar que eu por ti morro
Pensar que eu me libero
É engano de memória
Nem te amo nem te quero
(Farias, 2000: 371)
Da minha casa pra tua,
é um passinho de cobra.
Inda hei de chamar
a tua mãe de minha sogra.
Meu amor me deixou
Pensa que eu tenho paixão
Não me faltam Deus do céu
Amor não me faltarão
(op. cit.: 368)
124
Alguns versos fazem referência à própria Ratoeira. Às vezes sugere o significado desta
cantiga de maneira enigmática, como no verso que inspirou o título deste trabalho.
Ratoeira não me prende,
que eu não tenho quem me solta.
Eu já tenho arrebentado,
outras correntes mais fortes.
Ratoeira bem cantada,
faz chorar, faz padecer.
Também faz um triste,
amante de seu amor esquecer
Ratoeira não me prenda,
que eu não quem me solte.
A prisão da Ratoeira
é como a prisão da morte.
(op. cit.: 368)
Pra cantar na Ratoeira
não é preciso ter escola.
Eu tiro da minha cabeça,
e da minha boa memória.
(op. cit.: 371)
125
Considerações Finais
No percurso seguido até aqui, iniciei discorrendo sobre a etnomusicologia, que é o
campo disciplinar desta pesquisa. Procurei mostrar como a Ratoeira, enquanto objeto de
estudo, pode ser foco de uma investigação desta natureza. Na perspectiva do estudo
etnomusicológico debatido no primeiro capítulo, a análise desta música esteve sempre
conectada ao contexto sócio-cultural de seus praticantes. Neste trabalho procurei aproximar o
leitor ao universo da Ratoeira, partindo de discussões mais abrangentes, mostrando a
orientação teórica do trabalho e definindo alguns conceitos relacionados à Ratoeira, até
questões mais específicas deste objeto de estudo, como debatido no segundo capítulo. Esta
aproximação culminou nos dois últimos capítulos, nos quais dei voz às praticantes da
Ratoeira. Tentei passar uma visão geral sobre o contexto no qual a prática ocorre,
apresentando informações históricas e discutindo a formação da identidade cultural nessa
região. Certamente algumas dúvidas continuarão sem resposta, mas vejo que esta pesquisa
fornece uma nova abordagem sobre esta música. Para tal, estabeleceu-se um diálogo entre
autores que fundamentaram minhas interpretações e o discurso nativo dos praticantes da
Ratoeira, o que consiste no método etnográfico.
Alguns conceitos importantes relacionados ao tema da pesquisa foram apresentados no
primeiro capítulo, como o de ritual, folclore, patrimônio cultural e identidade cultural. Estes
debates foram seguidos de algumas considerações sobre questões relacionadas a esta prática
que já haviam sido constatadas em pesquisa anterior: as relações de gênero e a mudança de
significado (Silva, 2005). Nos primeiros contatos que tive com a Ratoeira notei certa falta de
interesse sobre esta prática de maneira geral, muito pouco foi documentado acerca deste ritual
e pouca gente conhece. Sua simplicidade formal esconde um universo rico em conteúdo. Uma
música que já cumpriu um papel tão singular no convívio social certamente possui muitos
mistérios a serem desvendados. Seu vasto repertório de versos mostra um conhecimento de
tradição oral proveniente das camadas populares do litoral catarinense. O espaço que gera
para a criação e a improvisação também destaca este gênero musical dos demais repertórios.
Toda a criatividade que proporciona é desenvolvida dentro de uma forma aparentemente
simples no âmbito musical. É justamente esta criatividade que está ligada à Ratoeira que
parece criar espaço para sua sobrevivência nos dias atuais. Sua adequação aos novos valores e
modos de vida decorrentes de toda a revolução tecnológica das últimas décadas, sobretudo no
que diz respeito aos meios de comunicação, evidenciam a força desta cultura. Hoje a Ratoeira
126
é patrimônio cultural, e carrega em si histórias que remetem a um passado mítico. Certamente
a história reserva um lugar para esta música.
A questão da identidade cultural acabou tomando uma importância maior do que o
imaginado para este estudo. A constatação da recente valorização da identidade de origem
açoriana no litoral catarinense foi decisiva para a reflexão sobre o significado que este rito
possui na atualidade. Foi surpreendente verificar em campo os efeitos desta ação
institucionalizada na elaboração desta identidade cultural. Algumas disputas políticas e
interesses econômicos ficaram evidentes nesta política de valorização da cultura açoriana em
Santa Catarina. Vimos que o turismo é um dos fatores econômicos que motivam esta busca
por identidade, através da (re) descoberta da origem açoriana. A Ratoeira, enquanto um
patrimônio cultural, certamente colabora com esta construção de identidade. Isto seguramente
distorce o significado original desta brincadeira, que atualmente é colocada em novos
espaços, como as festas evocativas da cultura açoriana, e a distancia cada vez mais de seu
passado mítico. O caráter corriqueiro e sua ligação com os namoros e a juventude são
substituídos pelo risco da extinção e a conseqüente preocupação do “resgate”.
O discurso nativo confirmou que esta identidade cultural de origem açoriana foi
induzida, para não dizer imposta, por articulações políticas e intelectuais. A presença açoriana
em Santa Catarina é um fato histórico, porém é inegável também que houve miscigenação e
influência de outras culturas na formação do povo que habita o litoral. As “raízes” açorianas
certamente se diluíram em mais de dois séculos após a chegada dos primeiros colonizadores.
Logicamente se encontram atualmente vestígios dessa cultura açoriana em boa parte do litoral
catarinense, assim como encontramos traços indígenas e de outros povos que participaram da
ocupação da região. No entanto, eleger o traço açoriano para definir a identidade cultural
desta população revela um momento histórico permeado por interesses políticos e
econômicos. Esta compreensão ajudou a desmistificar o contexto no qual a Ratoeira se insere,
e de certo modo passei a desconfiar do discurso da identidade açoriana. Um exemplo foi o
intercâmbio cultural narrado no terceiro capítulo. Ali vi o quão distantes estão as músicas
tradicionais dos Açores em relação às tradições do litoral catarinense. Esta disparidade
musical certamente está relacionada a outras no âmbito sócio-cultural.
Boa parte das pessoas entrevistadas mostrou certo entusiasmo com a questão da
origem açoriana. Vejo que desmistificar isso mexe com o orgulho e altera o ânimo de algumas
dessas pessoas. Não pretendo aqui comprar uma briga com quem promove esta política de
valorização desta identidade açoriana, e muito menos com quem se identifica com ela. Porém,
127
considero coerente expor o que foi constatado neste estudo, mesmo sabendo que pode ferir o
orgulho de alguns. Ficou claro que existe uma identidade cultural peculiar entre os habitantes
do litoral catarinense, chamá-la de açoriana ou não é posicionar-se neste cenário político.
Prefiro simplesmente me referir à identidade cultural do litoral catarinense, que como foi
mostrado é o fruto de um rico processo miscigenação e troca de influências entre vários
grupos étnicos.
Sobre a Ratoeira, vejo que as relações de gênero estabelecidas neste rito não ficaram
de todo esclarecidas. Existem muitas controvérsias, tanto na literatura quanto no discurso
nativo, sobre a participação masculina. Não tenho dúvida alguma de que os homens faziam
parte da brincadeira, porém a maneira como isto acontecia é que permanece obscura. Também
não houve uma resposta clara sobre o porquê de a Ratoeira ser dita por alguns como “coisa de
mulher”. O eu lírico feminino da maioria das cantigas registradas indica este sentido, porém
não conheci as versões masculinas da cantiga, e tudo leva a crer que também existe. Depois
de praticamente concluir este trabalho, conheci um senhor que afirmou ter cantado “muita
Ratoeira” em sua juventude. A conversa foi rápida e aconteceu por acaso, o que causou certa
frustração e também me preveniu para possíveis considerações precipitadas. Se a Ratoeira é
“de mulher” ou não, não posso afirmar, o que sei é que não existe uma restrição à participação
masculina, pelo contrário, a música era originalmente para o namoro. Em minhas buscas por
esta prática, me guiei por algumas informações e contatos pessoais, o que acabou me levando
a encontros de mulheres idosas. Talvez existam outros nichos onde se possam encontrar
homens cantando este repertório, porém não os conheci no decorrer desta pesquisa. É
provável também que os homens idosos não procurem o mesmo tipo de encontros de caráter
terapêutico e de valorização de patrimônio cultural nos quais encontrei as cantoras de
Ratoeira.
No que diz respeito à mudança de significado, penso que o trabalho avançou
principalmente na perspectiva de análise da identidade cultural. Se no primeiro contato com a
Ratoeira ficou evidente que havia tal mudança de significado, agora os motivos para que isso
ocorresse estão mais claros. A quebra da continuidade na transmissão desse conhecimento é
um dos pontos chave para esta compreensão. A partir do momento que os jovens pararam de
se interessar por esta música, de acordo com o discurso nativo em função da chegada da
televisão, esta prática começou a se transformar. Se a televisão foi responsável por esta
mudança, e tudo indica que sim, é certo que não afetou só a Ratoeira, mas todo o contexto
social, envolvendo as práticas culturais, as relações pessoais, o comércio, o consumo, entre
128
outras coisas. Na Ratoeira a mudança básica está no fato de que a brincadeira deixou de estar
relacionada aos namoros juvenis e passou a ser um patrimônio cultural de domínio de pessoas
idosas. Creio que a valorização da identidade açoriana no litoral catarinense foi um dos
principais fatores que fez com que a Ratoeira encontrasse uma razão de existir nos dias atuais.
Parece-me que esta militância em torno da origem açoriana se apropriou de vários aspectos
culturais do litoral catarinense para ganhar força na elaboração da identidade cultural. A
Ratoeira é um desses aspectos, que apesar de ser considerada cansativa em apresentações de
festas evocativas pelos próprios nativos, possui seu valor enquanto patrimônio cultural e
representante desta identidade. Penso que a mudança de significado é uma questão de
sobrevivência para a Ratoeira, e esta música só terá continuidade se realmente for
reelaborada. O sentido de namoro certamente não voltará mais, e a nostalgia só faz sentido
para a geração de idosas que ainda pratica este repertório.
Em relação à música da Ratoeira que coletei, farei algo similar ao que foi apresentado
em Silva (2005). Elaborei modelos sintéticos das cantigas de Ratoeira que registrei em cada
grupo. O objetivo é verificar as características mais freqüentes e marcantes de cada uma
dessas Ratoeiras, percebendo as particularidades que dão uma identidade própria à Ratoeira
de cada região ou grupo pesquisado. Para criar esses modelos me baseei em alguns
parâmetros como ritmo, tonalidade e contorno melódico, elegendo os padrões que apareceram
mais vezes em cada grupo registrado. Dessa forma, esses modelos consideram
quantitativamente os tais parâmetros. Certamente corre-se o risco de caricaturar a Ratoeira de
cada grupo, pois boa parte da identidade musical penso vir justamente do repertório de
variações que cada grupo apresentou. No entanto, esses modelos fornecem uma visão geral da
maneira como cada grupo canta, e permite fazer algumas distinções entre um e outro. Seguirei
a mesma ordem de apresentação das transcrições do quarto capítulo, começando por
Governador Celso Ramos.
129
Ratoeira de Governador Celso Ramos – grupo de idosas (síntese)
A forma das melodias solo e das melodias coro é de basicamente oito compassos cada,
com barra de repetição. Em alguns casos representei a melodia coro desses modelos com
dezesseis compassos, pois cantam a segunda parte de maneira pouco diferente. O interessante
é notar que cada grupo elege alguns graus melódicos preferenciais em cada um dos oito
compassos de cada tipo de melodia. Isso acaba criando um contorno melódico particular, o
que diferencia sutilmente a Ratoeira de cada grupo. O que me levou a fazer tais distinções foi
notar tais diferenças na audição de cada grupo. Nestes modelos também procurei representar
as tonalidades que foram mais recorrentes em cada grupo. Vejamos a síntese da Ratoeira de
Penha, cantada por Dona Francisca:
Ratoeira de Dona FranciscaPenha (síntese)
130
A Ratoeira de Dona Francisca, que representa seu município e o grupo que já
coordenou, possui uma melodia um pouco mais “plana” em relação à anterior. No próximo
modelo, vemos uma passagem pelo quarto grau melódico no primeiro compasso da melodia
solo que foi muito característica na Ratoeira coletada em Porto Belo.
Ratoeira do Clube de Mães– Porto Belo (síntese)
Na Ratoeira do Grupo Olaria do bairro Sambaqui em Florianópolis, percebe-se uma
rítmica pouco mais movimentada do que os demais. Isso não quer dizer que nos outros grupos
131
não houve variações rítmicas. Pelo contrário, como foi visto no quarto capítulo. O que
acontece é que essa rítmica diferenciada do grupo de Sambaqui foi constante no decorrer das
cantigas. Nos outros grupos, as variações ocorriam de maneira mais individual, como
características do canto de cada mulher. No caso do Grupo Olaria, parece que o grupo todo
assimilou a melodia desta maneira. O contorno da melodia coro deste grupo também é bem
característico.
Ratoeira do Grupo Olaria do Sambaqui – Florianópolis (síntese)
Por último, o modelo do Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC.
Uma das características básicas da Ratoeira deste grupo é a tonalidade pouco acima do que
registrado nos demais grupos
55
55
Inclusive se compararmos com as transcrições apresentadas em Silva (2005), que também transitam entre o Fá
maior e o Lá bemol maior. Nestas transcrições encontram-se Ratoeiras de dois grupos de idosos de
Florianópolis, um do bairro Ribeirão da Ilha e outro do bairro Barra da Lagoa.
. Outro fator diferenciador está na melodia coro, que apresenta
duas vozes e um ritmo diferenciado. A voz mais aguda da melodia coro é cantada uma terça
132
abaixo da melodia coro apresentada pelos demais grupos, se pensarmos nos graus melódicos.
A esta voz o coro ainda acrescenta uma linha praticamente paralela uma terça abaixo. Esta
segunda voz da melodia coro do grupo da UFSC estaria a uma quinta abaixo das demais
melodias coro, um tipo de linha melódica que não apareceu em nenhum outro grupo. Além
disso, o grupo também se apresenta com acompanhamento instrumental, mostrando uma
harmonização para a Ratoeira.
Ratoeira do Grupo de Danças Folclóricas da Terceira Idade da UFSC Florianópolis
(síntese)
Se a Ratoeira pode expressar a identidade cultural do litoral catarinense de origem
açoriana, cada grupo que a canta possui uma identidade própria. Certamente existe uma troca
de influência entre esses grupos, que eventualmente se encontram em apresentações de festas
evocativas por exemplo. Outra situação curiosa de troca dessas influências podia ocorrer no
mar. Os pescadores de Sambaqui, por exemplo, pescam na mesma área marítima que os
pescadores de Governador Celso Ramos. Estas comunidades que estão situadas uma
praticamente de frente para a outra, Governador Celso Ramos no Mar e Sambaqui na Ilha de
Santa Catarina, se encontram no mar, e ali além de conseguirem seu sustento, trocavam
informações e influências culturais. Uma das senhoras entrevistadas em Sambaqui afirmou
que os pescadores chegavam com novas “modas” Ratoeira. Esse é um dado da participação
masculina nesta música. Esta troca de informações entre as duas comunidades talvez explique
133
suas semelhanças melódicas na Ratoeira. Certamente as influências vão muito além do âmbito
musical.
A seguir apresentarei um gráfico que sintetiza musicalmente a Ratoeira vista neste
trabalho. Faço uma espécie de redução, estabelecendo diferentes hierarquias para
determinadas notas das melodias solo e coro, baseado na ocorrência e importância de cada
grau melódico conforme constatado nas transcrições e propondo os graus harmônicos que
considerei mais óbvios e fundamentais nesta música. A tonalidade de Lá bemol maior
representa a tessitura e o centro tonal preferido pelas cantoras pesquisadas. Segue a redução
da melodia solo e depois a redução da melodia coro.
Melodia solo:
Melodia coro:
Nestas reduções não considerei o ritornello de cada melodia, apenas a linha melódica
básica. Na redução da melodia solo, as notas com menor valor hierárquico que aparecem
simultâneas, representam possíveis variações na linha melódica. O principal movimento
melódico ocorre no quinto ao terceiro grau melódico. Na redução da melodia coro o
procedimento foi o mesmo, e percebe-se o movimento melódico do quinto ao terceiro,
passando pelo quarto grau melódico. Nas duas reduções vemos o destaque para a nota de
passagem que ornamenta o quinto grau melódico. O próximo gráfico une as duas reduções
sintetizando-as ainda mais, deixando as possíveis variações melódicas de lado e enfatizando
os graus melódicos mais importantes na música da Ratoeira e seus movimentos na melodia.
134
Penso que é possível reduzir ainda mais este gráfico, o que nos levaria à passagem do
quinto para o terceiro grau melódico. Isso resultaria num intervalo melódico de terça menor
descendente. Podemos então estabelecer várias metáforas desse intervalo em relação à
Ratoeira. Esta terça menor descendente pode conter em seu significado musical toda a tristeza
e decadência que a música da Ratoeira alude nos dias de hoje. A melancolia deste intervalo
lembra um chamado por alguém que está longe. Este chamado também pode ter um caráter
carinhoso quando é para alguém que se ama. O fato de não ser resolutivo, de não repousar,
pode remeter à roda da Ratoeira, que não cessa até que se acabem os versos. A continuidade
da roda pode também levar à especulação de que a prática realmente não terá fim. Será que
este intervalo possui algum poder mágico? Se tiver, certamente terá seu correspondente no
mundo vegetal.
Em alguns estudos etnomusicológicos os pesquisadores procuram vivenciar a música
estudada. Geralmente procura-se tocar junto, participar de rituais, danças e etc. Como na
antropologia, busca-se a imersão no contexto do objeto de estudo, às vezes tentando se tornar
um próprio nativo, o que certamente é utópico. Em meu caso, nas visitas e entrevistas, não
toquei ou cantei Ratoeira com os informantes. Quando marquei encontro com alguns grupos,
as pessoas responsáveis ao saberem que sou músico, me pediam para levar algum instrumento
para animar o encontro. No entanto, como o objetivo foi registrar a maneira como estas
pessoas faziam a Ratoeira, considerei que uma participação, ou intervenção, iria distorcer as
informações que eu buscava. Quando iniciei as transcrições, sempre utilizei algum
instrumento auxiliando o processo, às vezes violão, piano ou escaleta. Passei então a
experimentar algumas harmonizações às melodias que eu transcrevia. Neste momento percebi
que estava transformando a Ratoeira, e estabelecendo uma relação pessoal com este
repertório. Certamente houve uma fusão entre minha vivência musical, basicamente centrada
no jazz e na MPB, e esta música de tradição oral. Isso ocorreu de maneira não intencional,
sendo um fruto deste trabalho. Apresento, portanto, uma dessas harmonizações que fiz
brincando com a Ratoeira. Seguem as melodias solo e coro, escritas na forma de melodia
cifrada, típica do repertório que eu pratico.
135
A escolha do Lá bemol maior como tonalidade, representa a tonalidade preferencial
das cantoras de Ratoeira. Quando iniciei os contatos com os informantes, percebi que existe
uma grande preocupação com a questão do resgate, já que a prática pode realmente se acabar,
como já mencionado. Como também já disse no quarto capítulo, penso que uma das
estratégias de continuidade da Ratoeira pode ser a adaptação desta prática, e mesmo sua
própria estilização, sempre valorizada enquanto um patrimônio cultural. Como tenho minhas
ressalvas em relação a este discurso do resgate, já que entendo a cultura como algo em
constante construção e adaptação, tive receio de que meus informantes de certa forma se
decepcionassem com o resultado deste trabalho, já que promover o resgate da Ratoeira nunca
foi meu objetivo. No entanto, penso que trazer a Ratoeira ao universo da música urbana, como
sugere esta harmonização que apresentei, pode ser minha contribuição, e quem sabe uma
alternativa, a esta preocupação dos nativos em não deixar esta música acabar. Deixo, portanto,
minha marca dissonante na Ratoeira.
136
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142
Anexo – Um pequeno mosaico de manifestações culturais do litoral catarinense
Durante o trabalho de campo, indagando sobre a Ratoeira em algumas localidades do
litoral catarinense, verifiquei a existência de outras práticas culturais que fazem parte do
mesmo contexto. Uma pergunta freqüente que os entrevistados me fizeram foi: Mas você só
quer saber da Ratoeira? Logicamente estava interessado em tudo o que as pessoas quisessem
me relatar. Percebi que seria complicado falar da Ratoeira sem mencionar o universo cultural
que a engloba. Portanto, acredito ser indispensável falar sobre este conjunto de manifestações
culturais, mesmo que de maneira superficial, ilustrando um panorama geral da cultura do
litoral catarinense. A idéia aqui não será apresentar um catálogo de folclore, tradições
catarinenses de origem açoriana ou outras origens, mas expor o que foi coletado e registrado
durante o trabalho de campo.
Em várias dessas manifestações culturais encontradas em Santa Catarina, nota-se uma
forte tradição poética. A Ratoeira é um exemplo disso, como veremos no próximo capítulo.
Outras manifestações como o Pão-por-Deus também demonstram o conhecimento poético
presente no meio popular. Existem pessoas com grande destreza na rima, que improvisam e
detém um grande repertório de versos utilizados em cantigas, como no caso da Ratoeira, e
mesmo na escrita, como no Pão-por-Deus.
Os açorianos e seus descendentes sempre foram muito criativos no seu saber popular. Hábeis
na improvisação de versos, faziam deles verdadeiros poemas e mensagens de amor ou de crítica. O
pão-por-Deus, o pasquim, as quadras, os desafios, as cantorias de terno de Reis ou do Espírito Santo
são exemplos de literatura falada e escrita. (Farias, 2000: 417)
Registrei um exemplo interessante desta tradição poética na apresentação das Senhoras
Cantadoras do Canto Grande, realizada em Bombinhas. O grupo é composto por violão e
vozes. O repertório musical contém composições próprias, entre outras, sendo que há uma
forte referência ao catolicismo na temática das letras. Mas a introdução que umas das
integrantes fez me chamou mais a atenção do que o próprio repertório musical. Reproduzo a
seguir o conteúdo da introdução desta apresentação e outras intervenções entre as músicas
cantadas. A apresentação aconteceu no mesmo evento que reuniu o Grupo Mixtura e o Grupo
da Casa do Povo de São João mencionado anteriormente.
Assim como é de costume, nós vamos iniciar em versos e prosa.
Neste Domingo de Ramos viemos agradecer, a todas as comunidades que vieram aqui nos
ver. Nosso agradecimento vai em versos aos nossos amigos e irmãos, que vieram de Lages do Pico
nos trazer muita emoção. Muita emoção nos trouxeram de Portugal terra bela, queremos agradecer a
143
Fernanda e a Dona Vera. Morrinhos, Bombas, Bombinhas, Simbros e Canto Grande, ao nosso Padre
Rivelino que nos prestigia vai um abraço bem grande. Seja de onde viemos e pra onde Deus nos
mande, queremos apresentar as Cantoras de Canto Grande.
Inspirados nessa arte, nessa arte de amar, estamos nesta praça felizes para cantar.
Canto Grande amanheceu cantando, toda a cidade amanheceu em flor. É com esta marchinha
de carnaval que mostramos em canto todo o nosso valor. (Senhoras Cantadoras do Canto Grande)
O Pão-por-Deus
56
Existe uma variação do Pão-por-Deus na qual este era produzido como um bolo em
forma de coração, ao invés do papel. Esta talvez seja a razão do nome desta manifestação
popular. Farias explica: “Parentes, amigos ou namorados mandavam para alguém um pão-por-
Deus, que era um bolo de massa de pão-de-ló, ou papel em forma de coração. Em volta do
bolo colocava-se uma fita vermelha. Junto com o bolo ia uma quadrinha escrita em um papel
todo enfeitado”. (Farias, 2000: 417)
, já citado anteriormente, é outro exemplo do conhecimento poético
entre o povo do litoral catarinense. Trata-se de um trabalho manual feito em papel todo
recortado, geralmente em formato de coração. Seus recortes lembram a estética da renda de
bilro. É um trabalho minucioso. Além da arte no papel, o Pão-por-Deus inclui versos escritos,
que são endereçados e dedicados a alguém. De acordo com Dona Francisca de Penha era na
época entre o mês de setembro e o início de outubro que se presenteava alguém com o Pão-
por-Deus, e a rima é elemento fundamental nos versos. A época de se presentear o Pão-por-
Deus parece não ser consensual. De acordo com Farias (2000: 417): “As pessoas mandavam o
pão-por-Deus de outubro até o período do Natal”. Era comum ser utilizado no sentido de
flerte. Neste aspecto me parece que há uma semelhança entre o Pão-por-Deus e a Ratoeira,
que em ambos se fazia versos a uma pessoa desejada. No caso da Ratoeira estes versos eram
cantados, e no Pão-por-Deus, escritos em um recorte de papel estilizado. Os versos podiam
ser inventados e Dona Francisca de Penha deu alguns exemplos: “Lá vai meu coração nas asas
de um beija-flor, vai dizendo ao fulano a quem tenho tanto amor, né. Meu coração de contente
saiu a passear, chega e bate na porta pra ver se você está...”
Dona Francisca chamou este Pão-por-Deus feito de massa de Coração de Massa. Em
suas palavras: “O Coração de Massa era assim né, não era enfeitado tanto assim. A mulher
sempre é que dá pro homem né, o coração. Aí o de papel, daí não precisa dar presente, e o de
massa sim. Aí devolve presente. Talvez pelo sentido de gasto né...”
56
Para o leitor interessado no Pão-por-Deus, ver Mannrich (2007).
144
Na visita que fiz a um grupo de senhoras em Governador Celso Ramos, vez ou outra,
algumas mulheres me abordavam pra recitar quadrinhas
57
Atirei comangue n’água a folhinha e deu a costa, da tua pra receber, da tua boca a resposta.
. Verifiquei que alguns desses
versos são utilizados na cantoria da Ratoeira e mesmo na escrita do Pão-por-Deus. Creio que
exista um conhecimento poético que pode ser aplicado e compartilhado entre diversas
expressões culturais. Em relação à métrica poética e à temática, alguns desses versos
poderiam ser perfeitamente cantados na Ratoeira, como mostrado no quarto capítulo. Abaixo
estão alguns exemplos de quadrinhas coletadas em Governador Celso Ramos:
Rio em cima do meu telhado, não quero homem viúvo nem café requentado.
Meu amor mora no morro num pezinho d’alecrim, bota um raminho pra baixo e vem morar
perto de mim.
Como a idéia deste anexo é apresentar uma coleção de manifestações culturais, de
acordo com relatos registrados em campo, seguiremos com a Dança do São Gonçalo. Esta
dança foi relatada por Dona Francisca de Penha, que explicou um pouco sobre a história do
santo e do ritual da dança. Reproduzo a seguir sua explicação sobre a dança e alguns trechos
de melodias das canções
58
Os foliões ficam lá na frente, aí tem um com uma viola, daí ele tira o verso, aí ficam, pode
quatro ou cinco casais, sempre assim, a mulher aqui, o homem ali, enfileiradinho, um atrás do outro,
os casais... A imagem do São Gonçalo fica lá numa mesinha né, e tem até uma bandejinha pra uma
oferta, e o folião fica por trás da mesinha. Aí ele começa a cantar...
:
Aí sapateia né, tem o sapateado, aí tudo começa, aí o casal começa a dançar, não sai dali,
fica sempre naquela filinha, mas é um ritmo assim ó, é um ritmo assim né. Aí depois ele fala, ele
pronuncia o nome da pessoa que ta ali...
57
O termo quadrinha é recorrente à poética encontrada no litoral de Santa Catarina. Em Vieira (2007)
encontramos uma coletânea de quadrinhas recolhidas no município de Palhoça.
58
No arquivo “8 Dança do São Gonçalo” do DVD anexo encontra-se a reprodução em áudio desta narrativa.
145
Aí quem ta ali se ajoelha, o casal se ajoelha, beija o santinho, aí ele manda dar a oferta
também, tudo cantando, manda dar o oferta, bota a ofertinha ali, aí manda se levantar, o casal levanta.
Aí manda levantar o braço, aí o casal vem, é de mão dada. Aí vem, vem, vem, assim e a fileira vai
aqui por baixo. Aí a gente vem e fica o último. Até o último que era da fila, aí fica o primeiro, daí ele
terminou, ali pronto, ali terminou. (Dona Francisca)
Outra manifestação cultural narrada por Dona Francisca é o Mastro de São Sebastião.
De acordo com Dona Francisca, o Mastro de São Sebastião é uma anunciação da festa de São
Sebastião, um convite para ser avistado de longe. Isso remete a um tempo anterior aos meios
de comunicação modernos. Era uma celebração que também cumpria um papel de
comunicação visual à distância. Foliões de localidades mais afastadas viam a bandeira na
ponta do mastro enfeitado e entendiam o chamado. Nas palavras de Dona Francisca e com
algumas intervenções de sua irmã:
_ as casas eram distantes, ia ter a festa de São Sebastião, então pra avisar que tava começando
a novena levantava uma vara com uma bandeira na ponta, todo... as pessoas de longe viam que a
novena tava começando. Isso era no domingo e aí começava a novena pra o outro domingo ter a festa.
_ Todo enfeitado o mastro né...
_ É. Aí hoje... ...aí a gente enfeita... aí começou uma tradição de decorar aquele mastro, que é
uma tora mesmo de eucalipto né...
_ É grande.
_ Bem, de não sei quantos metros... A gente levanta de seis, sete, oito metros...
_ Com a bandeira de São Sebastião na ponta.
_ Daí é tudo com flores. Aí a ponta fica um tanto assim pra enterrar né. Sem nada né ali. Daí
pra lá são verdes de flores, flores até a ponta. Aí lá tem uma argolinha que vai passar o fio que a
bandeira ainda vai levantar né... Daí é assim ó, se eu prometi de levantar o mastro de São Sebastião,
vai sair da minha casa. Então vai sair da minha casa, eu chamei os foliões da cantoria pra irem lá. Aí
eu tenho que fazer consertada, a consertada tem que ter... ... É um licor. É uma bebida. Aí broinha, se
fazia muita broinha de côco, de polvilho né, aí a consertada e a broinha tem que ter. Aí avisa o
pessoal, vai gente de todo lado né, não tem essa coisa de receber convite ou não. Avisou que o Mastro
de São Sebastião vai sair de tal casa, tal dia na praça da igreja vai ser levantado. Aí é dia 20 de janeiro
né, o dia de São Sebastião. Então dias antes acontece. Aí vai o grupo que canta, eles usavam muito
era... sabe, os negros usavam... uma coisinha branca, com pontinha... E o aventalzinho, era mais ou
menos um ritual africano, mais ou menos assim. Então tem tambor, tem pandeiro, tem uns
instrumentos assim...
_ Chocalho, aquelas coisas assim...
146
_ É, e daí eles vão... um tira o verso e todos ficam respondendo, aí cantando pela estrada, vai
todo mundo lá pela rua, e o todo mundo levando o mastro nas costas né. Os homens tudo com o
mastro. É os homens pegam o mastro e vai, até chegar na igreja, pode ta a distância que for... Vai tudo
de pé, pela praia, pela estrada, pela... Hoje acontece na Armação. Isso aí acontece, todo ano, todo ano
tem.
Dona Francisca é extremamente religiosa e mostrou ter um grande envolvimento com
a Igreja Católica. Recitou uma ladainha em latim no encontro que tivemos em sua casa.
Relatou-me sobre um milagre que curou sua irmã de um problema grave de saúde. Uma
história realmente fantástica que confrontou meu ceticismo. Saí de sua casa convicto da
veracidade do fato, tamanha a fé de sua narrativa. De seu catolicismo dedicado, também
destaco seu envolvimento com a Festa do Divino. Tive a oportunidade de presenciar essa
festividade no município de Penha e pude constatar a participação de um grande público.
Dona Francisca explicou-me sobre a escolha do festeiro, ou seja, a pessoa responsável por
organizar a festa, sobre as vestimentas tradicionais utilizadas e todo o procedimento ritual da
festa. Mencionou inclusive que a coroa utilizada na procissão de Penha veio dos Açores.
Falou com entusiasmo sobre as rabecas e o tambor, que vêm anunciando de longe a chegada
da procissão. A Festa do Divino é um tema que atrai muitos pesquisadores e é também muito
presente no litoral de Santa Catarina. No entanto, como o tema é complexo e já foi abordado
com profundidade em diversos trabalhos
59
Talvez uma das práticas culturais mais típicas do litoral catarinense seja o Boi de
Mamão
, considero que não é necessário me aprofundar.
60
... a questão do boi, ela sempre foi muito forte, a questão da Farra do Boi né. O boi na rua
sempre foi muito forte, tanto que é que meu boi é o único boi vermelho do estado, se tu olhares...
porque tem uma história vinculada ao boi Vermelho, ao boi Vermelhinho que vinha pra cá... que era
solto aqui... era um boi muito famoso... então o boi Vermelhinho é o único boi vermelho do estado...
. Com grande adesão da juventude pela beleza de seu ritual, estimula o imaginário
popular com seus personagens e anima com sua música. Atualmente é ensinado em algumas
escolas do litoral catarinense e esteve presente no relato de praticamente todos os que
colaboraram neste trabalho. A presença do boi no imaginário do litoral catarinense é notável e
também desperta interesse na pesquisa acadêmica. No discurso de algumas pessoas verifiquei
certa relação entre a prática do Boi de Mamão e a tão polêmica Farra do Boi. Cristiane de
Jesus de Porto Belo me falou sobre um grupo de Boi de Mamão de sua cidade, Nativos da
Carioca, composto basicamente por jovens. Perguntei a ela sobre possíveis razões para a
adesão juvenil à prática do Boi de Mamão, diferente do que visivelmente ocorre com outras
manifestações típicas, como a Ratoeira por exemplo. Eis sua resposta:
59
Ver por exemplo Etzel (1995), Alves e Isaia (1999) e Michelute (2000) e Lacerda (2003a).
60
O Boi de Mamão já foi tema de pesquisa de Beltrame (1995) e Gonçalves (2006) por exemplo.
147
Mas eu acho que o Boi de Mamão, a comunidade se identifica muito mais por causa da Farra do Boi
que sempre foi muito forte. Dentro de Porto Belo é essa a visão que eu tenho. (Cristiane de Jesus)
Para ilustrar um pouco do imaginário popular em relação ao Boi de Mamão, destaco a
seguir alguns relatos registrados durante o encontro com as senhoras do Clube de Mães de
Porto Belo.
Então o que que a gente viu? Pau de Fita, né, a Bandeira do Espírito Santo, o Terno de Reis,
o Boi de Mamão... e eu por sinal tinha um medo que queria morrer do Boi de Mamão né, até me casar
eu ia morrendo... Depois de casada! De tanto medo que eu tinha... Meu Deus do céu! E não era boi
vivo né, era um boi de ferro que saía na rua...
Eu era menina de dez anos e os meus tios... tio Gentil, tio Sebastião, tio João... a gente
morava lá dentro né, então eles diziam assim pra nós: Vocês vão pegar os vaga-lumes. Eles botavam
os vaga-lumes nos olhos do boi, no Boi de Mamão... A gente ganhava dinheiro naquela época... a
gente cantava: Vaga-lume vai e vem que lá o teu pai, com porrete na mão pra te derrubar no chão... e
nós tudo puf, buscava no chão e apanhava na caixa de fósforo, enchia a caixa de fósforo pra eles botar
nos olhos do boi... pra ir brincar no Boi de Mamão...
A Bernunça certamente é um dos personagens mais marcantes do Boi de Mamão,
talvez por ser um monstro colorido comedor de gente. Uma descoberta interessante foi saber
que este ser fantástico possui outro nome na região de Penha. Lá, de acordo com Dona
Francisca, a Bernunça é conhecida como Barão. Outra curiosidade está numa possível relação
entre o Boi de Mamão e o Terno de Reis, outra manifestação cultural muito praticada no
litoral de Santa Catarina. De acordo com Dona Francisca, “Meu Deus! Era época de Natal,
chegava o Terno de Reis cantando na porta, já vinha o boi de mamão, a brincadeira de boi de
mamão acompanhava o Terno de Reis...”
A brincadeira de boi, comum entre meninos da cidade de Governador Celso Ramos,
também é um exemplo peculiar da força que o boi exerce no imaginário dessas pessoas.
Quando Dona Antonieta, secretária de cultura de Governador Celso Ramos, começou a falar
sobre a tal brincadeira, achei que se tratasse da Farra do Boi com um nome mais simpático.
Ela então me explicou: quando um garoto encontra um graveto qualquer no chão, coloca na
cabeça como se fosse o chifre de um boi. O moleque imita um boi e sai atrás de outros na rua.
É uma espécie de encenação infantil da Farra do Boi
61
Na associação de bairro do Sambaqui, em Florianópolis, encontrei verdadeiras adeptas
da brincadeira. Ali conversei com um grupo de mulheres que se reúne para tramar renda de
bilro e ensaiar apresentações de Pau de Fita, Ratoeira entre outras coisas. Num momento o
tema Farra do Boi surgiu. Algumas pessoas manifestaram uma inquietação, pedindo pra não
.
61
Sobre a Farra do Boi sugiro dois trabalhos esclarecedores ao público interessado: Menezes Bastos (1993) e
Lacerda (2003b).
148
tocar nesse assunto, sempre de maneira jocosa. Em seguida relataram com entusiasmo
algumas experiências de aventura, fuga e medo, envolvendo a brincadeira com o boi. Como
os espaços residenciais são cada vez mais habitados, o perigo de acidente limita a farra, além
da ilegalidade logicamente. Os próprios brincantes dizem que infelizmente existem casos de
violência gratuita com o animal, aliás, o foco principal de divulgação da brincadeira pela
mídia. Porém, algumas pessoas garantem que a brincadeira é sadia, e mesmo concordando
com certos pontos da restrição, sentem-se tolhidas de sua tradição.
O Cacumbi é uma manifestação típica da tradição afro-descendente do litoral de Santa
Catarina. O exemplo de Cacumbi
62
que apresento a seguir foi coletado em Governador Celso
Ramos. O fato de ter sido registrado entre mulheres não afro-descendentes evidencia a
miscigenação cultural do litoral catarinense
63
.
62
Sobre o Cacumbi em Santa Catarina ver Alvez e Lima (1990).
63
Ouvir o arquivo “9 Cacumbi” do DVD anexo.
149
Mulheres que cantam Ratoeira normalmente também conhecem cantigas de roda,
como foi registrado em campo. Algumas dessas cantigas são comuns entre as localidades
visitadas. Às vezes uma palavra ou outra é cantada diferente, ou a própria melodia é um
pouco variada. Os nomes das cantigas não são consensuais, portanto usarei nomes provisórios
para diferenciá-las, baseando-me no refrão ou algum outro elemento recorrente da letra. Não
me aprofundarei nas análises musicais dessas cantigas, pois isso me distanciaria do foco desta
pesquisa. Estas cantigas de roda estão totalmente relacionadas ao universo da Ratoeira, pois
podiam acontecer nos mesmos espaços e situações. Além disso, em praticamente todas as
situações que registrei as cantigas de Ratoeira, essas cantigas de roda estiveram presentes. No
entanto, o próprio discurso nativo estabelece uma diferença entre as cantigas de roda e a
Ratoeira. A Ratoeira também podia ser cantada na roda, como mencionado no quarto capítulo,
porém envolvia o improviso poético e sua intenção relacionada aos namoros era explícita,
diferentemente da maioria das cantigas de roda. A temática dos namoros também está
presente em algumas cantigas de roda, porém com um sentido de encenação, pois algumas
cantigas possuem personagens que são representados pelos brincantes. Na Ratoeira não se
representa um personagem fictício, e sim a si mesmo nas provocações amorosas. Dessa
forma, penso ser incoerente falar sobre a Ratoeira sem ao mínimo citar as cantigas de roda.
150
Apresentarei a seguir exemplos mais freqüentes das cantigas gravadas em campo e
transcritas, dando ao leitor uma breve impressão do repertório musical das cantoras de
Ratoeira. A seguir Que linda boneca, registrada em Governador Celso Ramos e no bairro
Ribeirão da Ilha em Florianópolis
64
:
Quando a brincadeira de roda começa, várias cantigas podem entrar na brincadeira.
Algumas delas possuem uma coreografia específica, e em algumas delas a temática sugere
uma espécie de namoro inocente, como já dito. Muito do discurso que faz referência aos
namoros dessa geração, hoje com mais de setenta anos de idade, parece ser repleto de
inocência e romantismo se comparado às gerações atuais de jovens. Em Que linda boneca,
cada estrofe possui uma coreografia específica, e são cantadas sob a mesma linha melódica do
exemplo acima. A seguir as demais estrofes desta cantiga:
“Que linda boneca na roda entrou,
que linda boneca na roda entrou.
Deixasse entrar que ela não rodou,
deixasse entrar que ela não rodou.”
“Ladrão, ladrãozinho, andai ligeirinho...
ladrão, ladrãozinho, andai ligeirinho.
Não queira ficar na roda sozinho,
não queira ficar na roda sozinho.”
“Se ela não rodou o verde limão,
se ela não rodou o verde limão.
Mocinha solteira não vai pra lá não,
mocinha solteira não vai pra lá não.”
“Na roda sozinho não hei de ficar,
na roda sozinho não hei de ficar.
Terei uma dama para ser meu par,
terei uma dama para ser meu par.”
64
Registro realizado durante o trabalho de campo de Silva (2005). Ver o arquivo “10 Que linda boneca” do DVD
anexo.
151
As cantigas se iniciam uma na seqüência da outra, às vezes sem pausa, geralmente
uma pessoa da roda começa e as demais acompanham. O próximo exemplo foi cantado
imediatamente após a Que linda boneca, no registro feito em Governador Celso Ramos.
Chamarei de Aponta aqui o seu pezinho
65
.
65
Ouvir arquivo “11 Aponta aqui o seu pezinho” do DVD anexo.
152
Esta canção certamente é muito conhecida em outras regiões. No entanto parece haver
variações possíveis tanto na letra quanto na melodia. A transcrição
66
foi baseada num
emaranhado de vozes, quase trinta, às vezes com afinações diferentes
67
. Tentei buscar nessa
massa sonora vozes mais expressivas e com uma afinação decidida. O mesmo procedimento
foi utilizado em todos os casos de transcrição de coro neste trabalho. O resultado certamente
não é objetivo, às vezes também me guiei por aquilo que meu ouvido considerou mais
coerente, logicamente coerente ao tonalismo. Portanto estas transcrições musicais estão
repletas de minhas próprias interpretações sobre o material registrado. Procurei nestas
transcrições, produzir um material ilustrativo fácil de ler. Outra cantiga muito comum em
várias regiões é Terezinha de Jesus. A seguir, a versão registrada em Governador Celso
Ramos
68
:
Como são cantigas de tradição oral, creio que não exista um modelo fixo, uma
partitura que defina objetivamente essas melodias. Penso que existe uma idéia consensual do
que seja a melodia nesse tipo de contexto, e as variações são fruto do processo de transmissão
do conhecimento oral. Certamente se coletarmos Terezinha de Jesus em diversas regiões do
Brasil, encontraremos diversas variantes na melodia e na poesia. Algumas canções aparecem
como interlúdios nessas cantigas de roda. No exemplo a seguir, Vamos Maninha é seguida de
66
Sobre a transcrição musical como recurso metodológico na etnomusicologia consultar Nettl (1964), Blacking
(1967), Seeger (1958), Mello (2005a e 2005b) e Piedade (2004), por exemplo.
67
Este emaranhado de vozes também pode ser chamado de heterofonia. De acordo com Cooke (2009), a
heterofonia é comum em música vocal de tradição oral homofônica. Invés de cantar em uníssono, cada cantor do
grupo realiza diferentes ornamentações sob a mesma melodia, dando ao canto este caráter heterofônico.
68
Ouvir arquivo “12 Terezinha de Jesus” do DVD anexo.
153
A barca virou, que na roda registrada em Governador Celso Ramos foi cantada em diversos
momentos. No Ribeirão da Ilha também presenciei A barca virou como uma espécie de
interlúdio
69
.
Na letra de A barca virou coloca-se o nome de um dos participantes, assim como em
Se eu fosse peixinho do exemplo a seguir
70
69
Ouvir o arquivo “13 A barca virou” do DVD anexo.
:
70
Ouvir o arquivo “14 Se eu fosse peixinho” do DVD anexo.
154
Canções como Ô linda flor, transcrita a seguir, demonstram como estas cantigas
preparavam as moças para o namoro
71
, explicitando os valores morais da sociedade. Creio
que é esse o tipo de valor que se procura resgatar atualmente, de acordo com certos discursos
já apresentados neste trabalho
72
.
71
Na Ratoeira não havia uma preparação para o namoro, e sim o próprio namoro, de acordo com o que foi
relatado.
72
Ouvir arquivo “15 Ô linda flor” do DVD anexo.
155
A seguir destaco outra cantiga de roda muito comum no Brasil, Samba Lelê, conforme
registrado em Governador Celso Ramos. Este exemplo também mostra como o repertório
popular aceita transformações no decorrer da transmissão. Talvez não seja coerente falar em
variação, pois creio que parar variar é necessário haver algo original, ou padrão, o que
certamente é indefinido no contexto dessas tradições populares. Talvez ao invés de um padrão
exista um consenso em relação ao conhecimento musical
73
.
73
Ouvir arquivo “16 Samba lelê” do DVD anexo.
156
O próximo exemplo é outra cantiga de roda muito comum no litoral de Santa Catarina,
Senhora Viúva. Nela também se revela uma espécie de encenação de cortejo entre homem e
mulher. A cantiga acontece na forma de diálogo, com pergunta e resposta. Na roda os
participantes se dividem entre os personagens da narrativa da cantiga e realizam suas
respectivas coreografias
74
.
74
Ouvir arquivo “17 Senhora viúva” do DVD anexo.
157
158
Outra cantiga que se mostrou freqüente nos encontros do trabalho de campo foi a
Senhora Condessa. Assim como em Senhora Viúva, esta cantiga apresenta personagens que
são representados pelos brincantes. Em Senhora Condessa, a coreografia é uma brincadeira na
qual a menina escolhe seu namorado. Todas essas cantigas me parecem um ensaio infantil
para as futuras relações afetivas. Nesse aprendizado através da brincadeira e da cantiga,
certamente evidenciam-se códigos morais e éticos da sociedade
75
.
75
Ouvir arquivo “18 Senhora condessa” do DVD anexo.
159
160
O último exemplo, Dona Augusta, lembra uma marcha de carnaval, e também foi
verificado em praticamente todas as localidades visitadas. Nesta transcrição, a cantiga A
Barca Virou também aparece como um interlúdio. Representei A Barca Virou de maneira
diferenciada nessa cantiga, adequando-a à mesma fórmula de compasso que julguei mais
coerente para representar Dona Augusta
76
.
76
Ouvir arquivo “19 Dona Augusta” do DVD anexo.
161
Algumas das cantigas apresentadas são conhecidas em outras regiões do Brasil. Estas
cantigas de roda já foram o passatempo da juventude em outras épocas. Num tempo em que
não havia opções de lazer e informação como as proporcionadas pela mídia atualmente.
Parece-me que estas cantigas de roda desempenhavam muito mais do que simples
entretenimento. Penso que desempenhavam um papel na transmissão de certos valores morais
aos jovens e crianças. Essas brincadeiras certamente estão repletas de códigos e valores que
eram reproduzidos e aprendidos entre as crianças.
O trabalho de campo revelou vários aspectos da cultura do litoral catarinense, como a
paixão pelo Boi-de-Mamão e pela Farra do Boi, a religiosidade católica representada por
algumas festas do calendário litúrgico, como a Festa do Divino, e várias cantigas tradicionais,
como as cantigas de roda apresentadas neste anexo. Para entender o significado da Ratoeira,
creio ser preciso considerar todo esse entorno cultural que a envolve. As melodias das
cantigas de roda certamente revelam algo sobre a musicalidade das cantoras de Ratoeira.
Impossível desvincular a Ratoeira das cantigas de roda, apesar das diferenças já mencionadas.
Penso que uma possível continuação para este estudo seria o aprofundamento neste repertório
162
musical de tradição oral. No presente trabalho não houve espaço para uma análise mais
elaborada dessas cantigas de roda, porém ficou claro que são inseparáveis da Ratoeira.
163
DVD Anexo
Este DVD anexo contém arquivos de áudio e vídeo que ilustram alguns
exemplos apresentados no texto, trazendo trechos do registro realizado no trabalho de
campo. O DVD anexo reúne alguns depoimentos sobre a origem açoriana, sobre a
Ratoeira e outras manifestações culturais. Além disso, o DVD anexo contém uma
versão PDF desta dissertação, com os arquivos de áudio e vídeo inseridos no próprio
PDF.
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