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Um dia, o chefe da turma de poaeiros (grupo de colhedores de ipecacuanha,
planta medicinal), assistindo a essa cura, pede ao curandeiro que espere até o
próximo domingo pela chegada de seus homens que, certamente, quererão
todos ser vacinados (a cinco mil-réis cada um, ou seja, cinco francos de
1938). O curandeiro aceita. No Sábado de manhã, ouve-se um cachorro uivar
fora do barracão. O chefe da turma despacha um camarada para
reconhecimento: é uma cascavel, cobra de chocalho, enfurecida. Manda o
curandeiro capturar o réptil; o outro se recusa a fazê-lo. O chefe se zanga,
declara que sem captura não há vacinação. O curandeiro obedece, estende a
mão na direção da cobra, é picado e morre.
Quem me conta essa história explica que fora vacinado pelo curandeiro e
que em seguida deixou-se morder por uma cobra para controlar a eficácia do
tratamento, com absoluto sucesso. É verdade, ele acrescenta, que a cobra
escolhida não era venenosa.
Transcrevo o relato porque ilustra muito bem essa mistura de malícia e
ingenuidade – a propósito de incidentes trágicos tratados como pequenos
acontecimentos da vida cotidiana – que caracteriza o pensamento popular do
interior do Brasil. Não devemos nos enganar quanto à conclusão, absurda só
na aparência. O narrador raciocina como o chefe da seita neomulçumana dos
Ahmadi, que eu iria ouvir mais tarde durante um jantar para o qual ele me
convidara, em Lahore. Os Ahmadi afastam-se da ortodoxia, sobretudo
mediante a afirmação de que todos os que se proclamaram messias no
decorrer da história (entre os quais incluem Sócrates e Buda) o foram
efetivamente: caso contrário, Deus ter-lhes-ia castigado a imprudência. Da
mesma forma, talvez pensasse meu interlocutor de Rosário, se a magia do
curandeiro não fosse real, os poderes sobrenaturais provocados por ele
fariam questão de desmenti-lo tornando venenosa uma cobra que em geral
não era. Já que a cura era considerada mágica, num plano igualmente mágico
ele, afinal de contas, a controlara, de modo experimental.
Da mesma forma, Vanusa conta da eficácia do benzedor, que a coletividade
institui. Pessoas do saber profundo. Não importando, como disse Dona Antônia, se as vezes
“falha”, mas a aliança perpétua dessa fé é inabalável, assim como as amarras da socialidade
que dela se constitui. Feitiço, magia, religião, sinal da cruz, batida na madeira, Insha Allah
frutos de crenças que evocam: “tudo é o que é e nada mais” (GEERTZ 2000, p. 121).
Seu Cezário, tabelião do povoado, relata, com certa nostalgia, sobre os benzedores
de Caiçara:
S2 - Olha no tempo que a gente foi criado tinha muita essas... assim de
benzeção né, é... porquee tem certas coisas gente que... a gente num pode
duvidar, num pode... e... vamo dizer assim... é... zombar né, mais é porque é
certas coisa que parece que até ajuda né, interessante né... por exemplo: o mal
jeito que a gente arruma nesses cadera, o pessoal fala custurá né, e é uma coisa
interessante né, uma coisa que acontece... acontece e melhora né... outra coisa
também, espinhela caída – médico não cura, cê sabe que médico não cura
espinhela caída né, e tem outro tipo sem ser benzeção também que cura né, é o
exercício de manhã, o levantamento do corpo também faz a espinhela voltar
pro lugar... mas a benzeção é uma coisa incrível né; benze a pessoa se tiver
fé... a coisa de um dia pro outro tá bão né – é uma coisa interessante né...