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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SOCIOLOGIA JURÍDICA E MUDANÇA SOCIAL EM
EVARISTO DE MORAES FILHO
JEFFERSON ALMEIDA SILVA
2009
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SOCIOLOGIA JURÍDICA E MUDANÇA SOCIAL EM EVARISTO
DE MORAES FILHO
JEFFERSONALMEIDA SILVA
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título
de Mestre em Sociologia com concentração
em Antropologia.
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Boas
Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Sciberras
de Carvalho
RIO DE JANEIRO
SETEMBRO DE 2009
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SOCIOLOGIA JURÍDICA E MUDANÇA SOCIAL
EM EVARISTO DE MORAES FILHO
JEFFERSON ALMEIDA SILVA
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Bôas
Co-orientador: Bruno Sciberras de Carvalho
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Sociologia com concentração em Antropologia.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Profª. Drª Glaucia Villas Boas (PPGSA/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho (Depto. Ciência Política/UFRJ)
_______________________________
Profª. Drª. Elina Gonçalves Pessanha (PPGSA/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Ivo Coser (Depto. Ciência Política/UFRJ)
_______________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Santana (PPGSA/UFRJ)
_______________________________
Profª. Drª. Sabrina Parracho Sant’Anna (Depto. Ciências Sociais/UFRRJ)
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
4
Silva, Jefferson Almeida.
Sociologia jurídica e mudança social em Evaristo de Moraes
Filho/ Jefferson Almeida Silva. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2009.
142 f.
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Bôas
Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Antropologia, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 139-144.
1. Sociologia Jurídica. 2. Mudança Social. 3. Intelectuais. 4.
Evaristo de Moraes Filho. I. Villas Bôas, Glaucia. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia. III. Sociologia jurídica e mudança
social em Evaristo de Moraes Filho.
5
RESUMO
SOCIOLOGIA JURÍDICA E MUDANÇA SOCIAL EM
EVARISTO DE MORAES FILHO
Jefferson Almeida Silva
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Bôas
Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho
Resumo da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Sociologia com concentração em Antropologia.
A presente dissertação faz uma leitura do pensamento de Evaristo de Moraes
Filho pelo ângulo de sua concepção sociológico-jurídica. Com base numa cuidadosa
pesquisa bibliográfica, procura demonstrar que a sociologia jurídica ocupa um espaço
de grande relevância sobre a formação das idéias que lhe trariam renome intelectual nos
campos da sociologia e do direito ao longo da década de 1950. Elo cognitivo de
associação destas duas áreas do saber, tal dissertação evidencia como a sociologia
jurídica é mobilizada pelo jurista e sociólogo carioca como fundamento teórico de suas
aspirações por mudança social no Brasil. Marcando, pois, sua singularidade em relação
à intelectualidade brasileira de meados do século passado, sobretudo no que diz respeito
aos cientistas sociais, demonstra-se como os postulados próprios desta sociologia
especial possibilitam a Evaristo de Moraes Filho reconhecer no direito do trabalho um
instrumento privilegiado para fazer da sociedade brasileira uma sociedade
verdadeiramente justa e democrática.
Palavras-chave: Sociologia jurídica, mudança social, intelectuais, Evaristo de Moraes
Filho.
6
ABSTRACT
SOCIOLOGY OF LAW AND SOCIAL CHANGE IN
EVARISTO DE MORAES FILHO
Jefferson Almeida Silva
Orientadora: Profª. Drª. Glaucia Villas Bôas
Co-orientador: Prof. Dr. Bruno Sciberras de Carvalho
Abstract da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de Mestre em Sociologia com concentração em Antropologia.
The present dissertation makes a reading of the thought of Evaristo de Moraes
Filho for the angle of its sociological-legal conception. On the basis of a careful
bibliographical research, looks for to demonstrate that sociology of law occupies a
space of great relevance on the formation of the ideas that would bring it intellectual
reputation in the fields of sociology and the right throughout the decade of 1950.
Cognitive link of association of these two areas of knowing, such dissertation evidences
as sociology of law is mobilized by the jurist and sociologist from Rio de Janeiro as
theoretical bedding of its aspirations for social change in Brazil. Marking, therefore, its
singularity in relation to the Brazilian intellectuality of middle of the past century, over
all in what it says respect to the social scientists, is demonstrated as the proper
postulates of this special sociology make possible the Evaristo de Moraes Filho to
recognize in the right of the work a privileged instrument to make of the Brazilian
society a really fairness and democratic society.
Key words: Sociology of law, social change, intellectuals, Evaristo de Moraes Filho.
7
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, gostaria de dedicar um agradecimento todo especial à minha
esposa Manuella, aos meus pais, Amauri e Diva, e ao meu irmão, Maycon, pela
possibilidade que me deram de levar adiante este empreendimento intelectual e, pois,
realizar o meu sonho de tornar-me mestre em sociologia. Sem dúvida alguma, o esforço
e o comprometimento de vocês com este objetivo, mais do que qualquer atributo que
possa ser creditado à minha individualidade, foram os elementos determinantes para
que o exaustivo trabalho por mim realizado nestes últimos dois anos viesse lograr êxito.
Em segundo lugar, mas não menos importante, é o meu agradecimento às minhas lindas
e amadas filhas, Júlia e Juliana, que não somente consistiram na inspiração maior para
o desenvolvimento desta dissertação, como também tiveram responsabilidade direta
para sua realização. Não fossem as incontáveis manifestações de carinho, apoio e
compreensão que, apesar da pouca idade, vocês me dedicaram, certamente eu teria
fraquejado ante as dificuldades próprias a um trabalho de pesquisa como este.
À minha orientadora Glaucia Villas Bôas e ao meu co-orientador Bruno
Sciberras de Carvalho, também gostaria de expressar aqui os meus enormes
agradecimentos. Para além da acurada e consistente orientação cnico-científica que
me proporcionaram, quero destacar que não se apagará de minha memória a
compreensão que vocês tiveram comigo ao longo desta jornada. Sua sensibilidade para
perceber meu contexto pessoal de homem recém casado e com duas filhas ainda
pequenas, foi fundamental não somente para um encaminhamento tranqüilo do trabalho
como, e conseqüentemente, para extrair de mim o melhor que eu poderia proporcionar;
contribuindo, assim, decisivamente para o meu crescimento profissional.
Por fim, gostaria de agradecer ao CNPq pelos recursos fornecidos ao
desenvolvimento desta pesquisa, bem como aos diversos professores e demais
profissionais do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia com quem
tive oportunidade de trabalhar nestes dois anos do curso de mestrado. Em especial,
agradeço à professora Elina Gonçalves Pessanha e às funcionárias Cláudia e Denise da
secretaria do PPGSA; pessoas sempre muito atenciosas comigo.
De maneira geral, a todos vocês expresso aqui o meu muito obrigado!
Jefferson Almeida Silva.
8
A minha mulher, minhas filhas, meus pais e
meu irmão.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................10
CAPÍTULO 1 – O INTELECTUAL E SUA SOCIOLOGIA JURÍDICA....27
1.1 – Um intelectual a serviço da sociedade e da democracia no Brasil.......27
1.2 - A sociologia jurídica de Evaristo de Moraes Filho..............................44
CAPÍTULO 2 – O PROBLEMA DO SINDICATO ÚNICO NO BRASIL:
UMA SOCIOLOGIA DO DIREITO DO TRABALHO...............................60
2.1 - Aspectos teórico-metodológicos de O problema do sindicato único no
Brasil.............................................................................................................65
2.2 – A natureza social do direito do trabalho no Brasil...............................77
CAPÍTULO 3 A DOUTRINA DO DIREITO DO TRABALHO DE
EVARISTO DE MORAES FILHO...............................................................92
3.1 - A sociologia jurídica na doutrina do direito do trabalho de Evaristo de
Moraes Filho................................................................................................101
3.2 - Características e finalidades de um direito de transição para uma
civilização em mudança...............................................................................113
CONCLUSÃO O FUNDAMENTO DE UMA UTOPIA
DEMOCRÁTICA........................................................................................127
Referências bibliográficas...........................................................................139
10
INTRODUÇÃO
Felizmente, de alguns anos para cá, pesquisadores ligados ao Núcleo de
Sociologia da Cultura (NUSC), ao Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro
(AMORJ), ambos da UFRJ, e ao Centro de Pesquisa e Documentação da História
Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC – FGV), têm realizado
um belo e importante trabalho de resgate da vida e da obra de Evaristo de Moraes Filho.
Como parte do esforço destes intelectuais, os estudantes e pesquisadores de nossas
ciências sociais, sobretudo no que se refere à sociologia, contam agora com referências
fundamentais acerca de um pensador que, a despeito de sua relevância para a sociologia
brasileira, não era muito conhecido pelas novas gerações de cientistas sociais
1
. Isto,
aliás, não é uma exclusividade de Evaristo de Moraes Filho. De maneira geral, toda uma
geração de grandes sociólogos brasileiros, a denominada sociologia dos anos 1950, com
suas teses e realizações, encontra-se quase que completamente desconhecida dos jovens
cientistas sociais de nossa época. Hoje em dia, é fato corriqueiro nossos jovens saírem
das universidades dotados de um amplo conhecimento acerca das mais variadas
1
Em 2005, Elina Pessanha (AMORJ), Glaucia Villas Bôas (NUSC) e Regina Morel (AMORJ) organizam
a publicação de Evaristo de Moraes Filho, um intelectual humanista, editado pela Topbooks. Livro que
procura remontar a vida e a obra de Evaristo a partir da reunião de textos diversificados (artigos,
depoimentos, poemas) escritos por intelectuais como Alberto Venâncio Filho, JoMurilo de Carvalho,
Gabriel Cohn e Paulo Sérgio Pinheiro, dentre outros. Em 2007, Regina Morel e Elina Pessanha, agora
com a companhia de Ângela de Castro Gomes (CPDOC – FGV), organizam Sem medo da utopia:
Evaristo de Moraes Filho: arquiteto da sociologia e do direito do trabalho no Brasil, publicado pela
Editora LTr. O livro reúne as mais de 30 horas de entrevista realizada pelas próprias pesquisadoras junto
a Evaristo de Moraes Filho entre os anos de 2002 e 2004. Ademais, o livro apresenta ainda uma detalhada
cronologia sobre a vida e a obra do autor, bem como um diversificado conjunto de artigos e entrevistas
desenvolvidos por Evaristo ao longo de sua carreira intelectual. Em 2008, o AMORJ lançaria ainda a base
de dados “Biblioteca Virtual Evaristo de Moraes Filho”, disponibilizada ao público a partir do endereço
eletrônico:
http://www.bvemf.ifcs.ufrj.br. A biblioteca virtual reúne um grande acervo de fotos,
publicações, documentos, entrevistas e correspondências que, em conjunto, nos propiciam um resgate
quase que completo acerca da vida deste importante sociólogo do Rio de Janeiro e do Brasil. Visando
exatamente a produção e a disponibilização de dados para subsidiar pesquisas ulteriores, pode-se dizer
que tais iniciativas vêm atingindo seu objetivo. Este trabalho que agora se apresenta é, portanto,
fortemente tributário destas realizações. Não fossem elas, dificilmente esta dissertação poderia ter sido
realizada em conformidade com a maneira pela qual foi concebida, afinal, os dados ali reunidos nos
propiciaram o embasamento necessário para sua efetiva construção.
11
correntes de pensamento estrangeiras, ao passo que, em sentido contrário, apresentam
um profundo desconhecimento do que aqui foi realizado no âmbito da ciência
sociológica de meados do século passado.
Segundo pensamos, não constitui equívoco uma boa formação sobre a produção
sociológica internacional, sobretudo no que diz respeito às escolas de pensamento que
influenciaram a formação e o desenvolvimento desta área particular das ciências
humanas. Sem dúvida nenhuma, uma boa formação neste sentido constitui acerto
inquestionável para uma preparação adequada dos profissionais das ciências sociais em
geral, e da sociologia em particular. O que salientamos, porém, é o acentuado
desequilíbrio que se verifica quando se trata de uma produção nacional ainda recente. O
distanciamento dos novos cientistas sociais em relação à produção de um Florestan
Fernandes, de um Luiz de Aguiar Costa Pinto, de um Victor Nunes Leal, de um
Evaristo de Moraes Filho, dentre outros, consiste numa lacuna irreparável para a
formação destes profissionais, bem como para o próprio desenvolvimento da sociologia,
afinal, é do fecundo diálogo do presente com o passado que se encontram as melhores
condições para pautar a construção do futuro de nossa disciplina.
Neste sentido, a dissertação que agora tem início busca dar uma pequena
contribuição para mudar este estado de coisas. À semelhança do que recentemente têm
realizado outros pesquisadores, como salientamos de início, esta dissertação procura
cumprir seu papel de resgatar, de dar nova visibilidade àquela geração de 1950, a partir
de uma investigação centrada na figura de Evaristo de Moraes Filho. Isto, porém, não se
deve ao acaso.
Evaristo de Moraes Filho foi um dos principais responsáveis pela
institucionalização das ciências sociais no Brasil. Ao lado de intelectuais como
Florestan Fernandes, Luiz de Aguiar Costa Pinto, dentre outros, ajudou a edificar
12
instituições fundamentais ao desenvolvimento destas ciências por aqui, como a
Sociedade Brasileira de Sociologia – chegando a ser vice-presidente da instituição ainda
em 1962 e o Instituto de Ciências Sociais (ICS), uma “casa” de pesquisa responsável
pela formação de grandes cientistas sociais ainda em atividade e que, ademais, viria dar
lugar ao surgimento do atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ; sem
dúvida alguma, um dos principais pólos de produção e reprodução das ciências sociais
no Rio de Janeiro e no Brasil.
No que diz respeito à literatura sociológica, por sua vez, a contribuição de
Evaristo também não seria pequena. Após ter escrito um significativo conjunto de
artigos em revistas literárias e mesmo em jornais de grande circulação durante os anos
1930 dando visibilidade a temas e autores que posteriormente teriam grande peso na
produção sociológica nacional – Evaristo chega à década de 1950 trazendo consigo uma
das mais importantes obras de sociologia do período: O problema do sindicato único no
Brasil. Seus fundamentos sociológicos, publicado pela primeira vez em 1952. Livro de
acentuado conteúdo crítico, ousava trazer os trabalhadores para o centro da reflexão
intelectual sobre a sociedade brasileira ao demonstrar seu protagonismo sobre o
processo de ampliação da cidadania no país ocorrido pelo estabelecimento de nossos
direitos trabalhistas. Um pioneirismo ousado que responderia não somente pelo sucesso
editorial da obra à época, como também por sua permanência no tempo, afinal, no auge
de seus cinqüenta anos de existência seria novamente objeto de rememorações que
destacam seu valor histórico e sua atualidade para pensar o cenário político-sindical
brasileiro nesta primeira década do século XXI
2
.
Esta sua atualidade diz respeito, porém, aos fundamentos mesmos que lhe
fornecem o sentido. Assim como as demais obras produzidas no período, como
2
Com este sentido, ver Costa (2002) e Gomes (2005).
13
Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil, de Victor
Nunes Leal, e a Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, de Alberto Guerreiro
Ramos, por exemplo, O problema do sindicato único no Brasil caracteriza-se por uma
temporalidade orientada para o futuro (Villas Bôas, 2006), isto é, para uma
transformação em chave positiva da sociedade brasileira, visando torná-la uma
sociedade verdadeiramente moderna, portanto, dotada dos mecanismos institucionais
que lhe assegurem a redução de suas desigualdades sócio-econômicas e a realização de
uma democracia plena no Brasil. Na referida obra, portanto, Evaristo encontra no direito
do trabalho um elemento essencial para isto. Recuperando o protagonismo dos
sindicatos para sua existência, busca o autor conferir legitimidade para uma profunda
reformulação de seu marco legal; uma reformulação que deixe para trás o legado
autoritário do período estadonovista e que, em contraposição, venha garantir ampla
liberdade e autonomia às organizações sindicais do país. Segundo ele, portanto, o
caminho para fazer do Brasil um país igualitário, democrático, passa fundamentalmente
pelo estabelecimento de um direito trabalhista que assegure à própria sociedade e não
ao Estado a condução de seu destino. Trata-se, pois, de uma utopia ainda não
completamente realizada, o que propõe Evaristo em seu livro de 1952. Ainda hoje,
mecanismos de controle provenientes do longínquo Estado Novo, como o imposto
sindical, por exemplo, permanecem em nosso direito positivo, o que explica, em boa
medida, a atualidade de O problema do sindicato único no Brasil nos dias que correm.
Contudo, pode-se dizer que se trata de uma obra típica de sua época, pois, a
rigor, a literatura sociológica dos anos 1950 caracteriza-se exatamente por este seu
sentido utópico de reforma social. Era o momento de provocar mudanças, de colocar os
fundamentos científicos da sociologia a serviço da construção de uma nova sociedade
democrática, secularizada, igualitária; moderna, em resumo. Neste sentido, os
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sociólogos se viam como verdadeiros agentes de mudança, autênticos portadores de um
novo tempo ainda por se fazer existente (idem). Mas esta não era uma aspiração
exclusiva dos sociólogos. De maneira geral, ao longo dos vinte anos transcorridos entre
1945 e 1964 os intelectuais dos mais diversos campos do saber se lançaram em um
debate marcado por formulações e perspectivas muitas vezes divergentes entre si
que procuravam assinalar estratégias para a construção de um futuro socialmente mais
justo para o Brasil.
É o que se verifica, inclusive, a partir da própria biografia de Evaristo de Moraes
Filho, uma vez que, esta sua utopia democrática presente em sua obra de 1952 seria
responsável por torná-lo um intelectual de grande reputação também no campo de
nossas letras jurídicas. Jurista de formação
3
, aqui também seria o direito do trabalho o
objeto de sua inteira dedicação, produzindo livros e artigos que viriam reforçar o sentido
utópico pelo qual já o havia concebido em O problema do sindicato único no Brasil.
Assim sendo, aqui como alhures, o direito do trabalho surge como instrumento
privilegiado de intervenção social voltado para a redução das desigualdades e para a
conquista de uma plena democracia. Em livros propriamente jurídicos como Introdução
ao direito do trabalho e Direito do trabalho e mudança social, Evaristo aprofunda suas
considerações a respeito teorizando que este ramo jurídico particular consiste num
autêntico direito de transição, ou seja, na expressão formal de uma civilização que,
segundo ele, estaria caminhando cada vez mais rumo à superação do capitalismo liberal.
Sendo, como afirma, um direito voltado à resolução da moderna questão social erigida
com o capitalismo, através de institutos e normas de proteção aos trabalhadores, caberia,
pois, ao direito do trabalho, o encaminhamento pacífico deste processo; conduzindo,
sem sobressaltos, o estabelecimento de uma ordem social mais justa e democrática, na
3
Evaristo bacharelou-se em direito em 1937 pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do
Brasil.
15
qual os sindicatos teriam ampla liberdade de funcionamento, assim como, trabalhadores
e patrões teriam suas relações definidas não mais por subordinação ou dependência, mas
sim por colaboração e, tanto quanto possível, equivalência.
Sendo, pois, jurista e sociólogo, é com base no direito do trabalho que Evaristo
não somente se insere no contexto progressista, reformador, que animava o debate de
idéias em ambos os campos de conhecimento à época dos anos 1950, como também, é a
partir deste ramo jurídico particular que a sociologia e o direito apresentam uma
constante e frutífera associação no pensamento de Evaristo de Moraes Filho. O direito
do trabalho surge, portanto, como ponto de contato entre ambas as áreas. É, pois, por
seu intermédio que Evaristo traz a sociologia para o âmbito do direito e leva o direito
para o âmbito da sociologia em suas elaborações teóricas.
Estamos aqui diante de um aspecto fundamental à compreensão do pensamento
do autor e, que, como tal, tem sido constantemente considerado pelos pesquisadores que
se tem ocupado de Evaristo de Moraes Filho, como é possível observar dos artigos
reunidos na publicação organizada por Morel, Pessanha e Villas Bôas (2005). Não
obstante, temos por certo que esta relação entre sociologia e direito em seu pensamento
carece de maiores considerações. Afinal, trata-se de uma dimensão, que ainda que
amplamente mencionada, tem sido obscurecida pelas próprias realizações intelectuais de
Evaristo tais como, seu papel na institucionalização de nossas ciências sociais, sua
atuação pela implementação da Justiça do Trabalho no Brasil em 1941, dentre outras -,
levando os pesquisadores a abordá-la apenas tangencialmente em suas análises.
Por conseguinte, sentido diverso é o que propomos com este nosso trabalho.
Aqui, a relação entre a sociologia e o direito no pensamento de Evaristo constitui o foco
central de nossa abordagem, pois, compreendemos que se situa uma chave essencial
para vislumbrarmos um melhor entendimento de suas idéias, bem como sua posição no
16
debate em que tomaram parte a intelectualidade brasileira em geral, e os sociólogos em
particular, no transcurso dos anos 1950. Segundo pensamos, tal relação não se
estabelece de maneira imediata no pensamento de Evaristo, ou seja, pela simples
reunião dos fundamentos particulares da sociologia e do direito nas considerações a
respeito de uma temática comum. Se é verdade, como dissemos, que Evaristo encontra
no direito do trabalho o tema, o objeto, que lhe permite associar estas duas dimensões
do conhecimento, nossa dissertação procurará demonstrar que é com base numa ciência
especial, na sociologia jurídica, que ele encontra as condições teóricas e metodológicas
para tornar tal associação possível.
Assim sendo, pensamos que a sociologia do direito, enquanto ramo sociológico
particular, constitui o elo cognitivo e metodológico responsável por uma conciliação
harmônica destas duas importantes dimensões de seu pensamento. Não seria, pois, mera
coincidência Evaristo dedicar toda uma obra a esta sociologia especial ainda em 1950,
portanto, antecedendo a publicação de livros como O problema do sindicato único no
Brasil e Introdução ao direito do trabalho, obras que lhe trariam renome no cenário
intelectual brasileiro. A tese que procuramos sustentar neste estudo é que em O
problema de uma sociologia do direito, como se chama a obra em questão, Evaristo
sistematiza os princípios teóricos e metodológicos que serviriam de embasamento às
construções teóricas supracitadas, bem como, e mais importante, às idéias ali
apresentadas. Em outras palavras, esta dissertação procura firmar a compreensão de que
a sociologia do direito, sistematizada por Evaristo em 1950, mesmo sendo uma
dimensão específica de seu pensamento, ocupa um espaço privilegiado na complexa
“arquitetura intelectual” que o caracteriza. A abertura cognitiva que lhe propicia
reconhecer no direito um produto direto das relações sociais, um fato social plural,
oriundo das diversas instituições sociais que conformam a sociedade e não apenas do
17
Estado -, seria o fundamento que afastaria Evaristo do abstracionismo lógico e estático
da ciência jurídica tradicional, em detrimento de uma concepção realista, empírica,
sobre o direito, que, sem desconsiderar a dimensão valorativa que lhe encerra, permitiria
ao autor desenvolver um conhecimento objetivo acerca do direito do trabalho que tão
decisivamente influenciaria sua produção intelectual nos anos 1950.
Neste sentido, buscamos com este nosso trabalho, preencher uma lacuna ainda
em aberto na literatura voltada às idéias de Evaristo de Moraes Filho. Assim, lançando
luz sobre o espaço que a sociologia do direito ocupa no pensamento do autor, o que
procuramos é contribuir com os demais pesquisadores para que as novas gerações de
cientistas sociais tenham acesso a um conhecimento cada vez mais completo acerca de
um intelectual que com suas idéias e práticas, não somente ajudou a institucionalizar
nossas ciências sociais, como também teve ativa participação na consolidação
institucional do direito trabalhista brasileiro; uma importante conquista, um marco
fundamental de nossa história recente.
Objetivo este que procuramos alcançar a partir de uma intensa e exaustiva
pesquisa bibliográfica, nos termos em que propõem Minayo (1994) e Lima & Mioto
(2007). Segundo estes autores, a pesquisa bibliográfica é um recurso de apreensão da
realidade que tem em livros, teses, periódicos, bases de dados digitais e etc. o seu objeto
de investigação. Distingue-se, porém, de uma simples revisão de literatura, pois,
enquanto esta consiste unicamente num “(...) pré-requisito para a realização de toda e
qualquer pesquisa.”, a pesquisa bibliográfica (...) implica em um conjunto ordenado
de procedimentos atento ao objeto de estudo, e que, por isso, não pode ser aleatório.”
(Lima & Mioto, 2007; p. 35). Neste sentido, seguindo as orientações apresentadas por
Salvador (1986), desenvolvemos esta pesquisa de forma dirigida, onde, foram
observadas as distintas etapas de leitura que envolvem uma pesquisa bibliográfica
18
segundo o autor, tais como, a leitura de reconhecimento, a leitura exploratória, a leitura
seletiva e a leitura reflexiva. Com base neste procedimento, buscamos separar o
essencial do assessório, de modo que, pudéssemos isolar as informações realmente
relevantes para o estudo que viríamos desenvolver. Assim, nos ocupamos
prioritariamente em levantar informações que nos permitissem compreender o que
significa propriamente a sociologia do direito para o autor, bem como as características
mais gerais de seu pensamento, isto é, suas principais referências, como se forma, ao
que se destina e etc. Por outro lado, também mereceram nossa atenção especial,
informações que nos colocassem a par de temas como o processo de institucionalização
das ciências sociais no Brasil, o contexto intelectual que caracteriza a produção teórica
dos anos 1950, a história da sociologia jurídica no Brasil, além de outros aspectos
diretamente relacionados a estas questões.
De maneira geral, ao longo de pouco mais de um ano de intensa investigação,
foram percorridas bibliotecas públicas e privadas, além de sites de internet, com vistas à
coleta das informações acima mencionadas. Não foram poucas as obras consultadas,
selecionadas e devidamente fichadas no transcurso deste trabalho. Para se ter uma idéia,
somente de autoria de Evaristo de Moraes Filho procedemos à leitura de mais de uma
dezena de publicações, entre livros e artigos. Por certo, em função mesmo das
prioridades e propósitos particulares desta pesquisa, nem todas receberam o mesmo
tratamento algumas completamente fichadas, outras parcialmente, outras ainda
serviram simplesmente para aprofundar informações obtidas e etc. Não obstante,
todas foram peças fundamentais para uma apreensão mais completa de nosso objeto, à
semelhança da imagem de um mosaico tal como nos ensina Howard Becker (1994)
4
.
4
Segundo explica o próprio autor, “A imagem do mosaico é útil para pensarmos este tipo de
empreendimento científico. Cada peça acrescentada num mosaico contribui um pouco para nossa
compreensão do quadro como um todo. Quando muitas peças já foram colocadas, podemos ver, mais ou
menos claramente, os objetos e as pessoas que estão no quadro e sua relação uns com os outros.
19
No entanto, foi também de suma importância para a montagem deste nosso
mosaico, o trabalho de resgate da vida e da obra de Evaristo de Moraes Filho em que
estiveram recentemente envolvidas as pesquisadoras Elina Pessanha, Regina Morel,
Ângela de Castro Gomes e Glaucia Villas Bôas, como destacamos no início desta
introdução. As publicações daí decorrentes, assim como a própria Biblioteca Virtual
Evaristo de Moraes Filho, foram decisivas para a realização desta dissertação, pois, nos
propiciaram o acesso à informações e materiais que dificilmente poderiam ser
conseguidos por outros meios, como, por exemplo, os artigos escritos por Evaristo ainda
na década de 1930 que, felizmente, boa parte agora se encontra disponibilizada ao
público no endereço eletrônico da Biblioteca Virtual.
Não obstante, a espinha dorsal, o eixo central por onde se desenvolve este
trabalho é composto fundamentalmente por três obras que Evaristo de Moraes Filho
publica na década de 1950: O problema de uma sociologia do direito, de 1950; O
problema do sindicato único no Brasil. Seus fundamentos sociológicos, de 1952; e
Introdução ao direito do trabalho, de 1956. É com base especialmente nestas obras, que
buscamos apreender em que consiste efetivamente a sociologia do direito ou
sociologia jurídica
5
para Evaristo de Moraes Filho, bem como sua relevância para a
formação das idéias propostas pelo autor, tanto no campo do direito quanto no da
sociologia, durante aquela década.
Diferentes fragmentos contribuem diferentemente para a nossa compreensão: alguns são úteis por sua
cor, outros porque realçam os contornos de um objeto.” (Becker, 1994; pp. 104-105).
5
A título de esclarecimento, vale frisar que, a partir da investigação realizada, não nos foi possível
perceber qualquer diferença substantiva entre as denominações “sociologia do direito” e “sociologia
jurídica”. No entanto, alguns autores, sobretudo Junqueira (1993), se empenham em demonstrar a
existência de diferenças conceituais entre elas. Alega que enquanto a primeira diria respeito ao trabalho
especificamente realizado por profissionais das ciências sociais, a segunda diria respeito à investigações
de cunho sociológico desempenhadas por juristas de formação. De nossa parte, porém, tal distinção não
nos parece algo relevante, de modo que, em compasso com a maioria das publicações do gênero,
inclusive no que tange a Evaristo, aqui utilizaremos ambas as denominações com o mesmo significado,
portanto, como sinônimos.
20
No primeiro capítulo, portanto, a partir de uma análise focada em O problema de
uma sociologia do direito, nossa atenção se dirige à concepção sociológico-jurídica de
Evaristo. Em resumo, apresentamos como a partir de um debate travado com a “teoria
pura do direito”, de autoria do jurista de Viena Hans Kelsen, Evaristo sistematiza uma
ciência dotada da capacidade de surpreender o direito em sua realidade fática, objetiva,
como mero fato social. Uma ciência sociológica particular que compreende o direito
como elemento dinâmico e plural, porque nascido de e voltado para os processos sociais
concretos em que estão envolvidas as diversas instituições que conformam a sociedade,
e não como algo estático, abstrato, como que surgido unicamente do trabalho de
depuração lógica levado a cabo pelos agentes do campo jurídico. Neste sentido, como as
demais especialidades sociológicas, Evaristo diria se tratar de uma ciência empírico-
causal que procura levar em consideração os diversos fatores sociais, políticos,
econômicos e ideológicos que incidem sobre a constituição dos fenômenos jurídicos.
Uma ciência que, em suma, reconhece seu objeto como fruto mesmo da realidade social
e não como um monopólio da agência estatal, como propõe o conhecimento tradicional
da ciência jurídica.
Neste sentido, em debate com parte da literatura voltada ao estudo do processo
de institucionalização das ciências sociais no Brasil, este capítulo se ocupa ademais, em
demonstrar a insuficiência de uma interpretação consagrada que procura compreender
este processo a partir de uma rígida oposição que coloca, de um lado, os sociólogos
paulistas, tidos como intelectuais essencialmente democráticos, propositores de um
conhecimento desinteressado, voltados para os interesses da sociedade civil e, portanto,
alheios ao jogo político; e, de outro lado, em sentido diametralmente oposto, os
sociólogos cariocas, vistos como intelectuais necessariamente autoritários que, por sua
maior ou menor vinculação ao Estado, depositariam neste o primado do processo de
21
transformação social pretendido para o Brasil. Introduzindo a questão sobre a
especificidade de Evaristo no contexto intelectual dos anos 1950, sobretudo em relação
à intelectualidade sociológica, procuramos neste capítulo relativizar estas noções.
Demonstramos que, apesar de Evaristo ser carioca e ter passado boa parte de sua vida
no âmbito do Ministério do Trabalho, poucos sociólogos do período seriam mais
democráticos do que ele. E isto se deve, em grande medida, à própria concepção
sociológico-jurídica que partilha, pois, com base nela, seu referencial cognitivo iria
apontar para uma relação entre sociedade civil e Estado, no qual a primeira teria
inquestionável prevalência sobre o segundo; distinguindo-se, assim, das considerações
relativas a uma certa sociologia do desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro à
época, que preconizava um papel de destaque ao Estado na condução do processo de
transformação social do Brasil, por reconhecer na sociedade civil brasileira um
aglomerado de indivíduos amorfos, portanto, sem qualquer capacidade de intervenção
coletiva pelas transformações que se faziam necessárias.
Perspectiva que avançamos no segundo capítulo do trabalho, onde, através de
uma análise sobre sua obra de maior expressão na seara da sociologia, O problema do
sindicato único no Brasil, buscamos demonstrar que a sociologia do direito consiste
num recurso cognitivo essencial pelo qual Evaristo fundamenta sua posição democrática
em favor da sociedade civil. Após dedicarmos algumas palavras acerca dos objetivos e
intenções que orientaram a publicação do livro, seguimos com uma abordagem sobre
seus aspectos teórico-metodológicos. Aí, procuramos demonstrar como Evaristo
mobiliza os postulados próprios da sociologia jurídica apresentados e definidos em seu
livro de 1950, nesta sua pesquisa empírica sobre a relação entre os sindicatos e o Estado
no Brasil; donde concluímos que o livro se trata de uma autêntica sociologia do direito
do trabalho. Com base nesta compreensão, acompanhamos a análise sociológico-
22
jurídica desenvolvida pelo autor que, remontando ao período de nossa Primeira
República, demonstraria a natureza genuinamente social do direito do trabalho no
Brasil. Recuperando historicamente os sujeitos sociais responsáveis por esta construção
legislativa particular, onde tem papel de destaque os sindicatos de trabalhadores,
Evaristo viria negar um dos maiores mitos da história política e social do país, a idéia de
que tais direitos sociais teriam sido uma benesse, uma outorga realizada de bom grado
pelo antigo Chefe do Estado Novo, Getúlio Vargas. Fundado, pois, sobre os postulados
de sua sociologia jurídica, Evaristo, de um lado, atestaria a falácia em que se assentava
este discurso ideológico e, de outro, daria provas manifestas do potencial associativo da
sociedade civil brasileira. Neste sentido, ao contrário de muitos outros intelectuais de
sua época, Evaristo advogaria a necessidade de um redimensionamento do espaço
ocupado pelo Estado na sociedade brasileira. Segundo ele, para o Brasil tornar-se uma
democracia real, e não apenas formal, seria necessário retomar o caminho natural que
estava sendo trilhado pela própria sociedade rumo ao seu desenvolvimento, antes da
instauração do regime do Estado Novo que, por sua vez, estabeleceu um rigoroso
controle sobre a ação e o funcionamento de nossas organizações sindicais. Tornava-se
urgente, portanto, o estabelecimento de um novo marco legal ao direito trabalhista
brasileiro, que, restringindo o controle estatal sobre os sindicatos, viesse possibilitar
novamente com que a sociedade fosse a responsável direta pela condução de seu próprio
destino.
No terceiro e último capítulo desta dissertação, nosso foco recai sobre a inserção
de Evaristo no campo jurídico nacional. Após destacarmos a relevância que o direito do
trabalho ocupa em sua vida, tendo em vista as várias atividades profissionais que
desempenhou no âmbito deste ramo particular do direito tais como a docência no
magistério superior, o cargo de Procurador do Trabalho, a elaboração do anteprojeto de
23
Código do Trabalho e etc. – nossas atenções se voltam para uma abordagem que
procura desvelar a relação entre a sociologia jurídica e a sua perspectiva doutrinária a
respeito do direito do trabalho.
Antes de mais nada, importa esclarecer que por “perspectiva doutrinária” não
fazemos referência à idéias que se proponham inquestionáveis, impostas
irrefletidamente pela força de algum indivíduo ou instituição que se arrogue detentor de
uma suposta verdade absoluta. No direito, que é como aqui aparece, “doutrina” é um
conceito largamente utilizado e que diz respeito a uma sistematização teórica, de cunho
propriamente acadêmico-científico, voltada à reunião coerente, gica, dos princípios e
características que qualificam determinado ramo do direito. Em sentido geral, o
conceito de “doutrina jurídica” responde por um trabalho intelectual, quase sempre
fundado sobre pesquisas exaustivas acerca da jurisprudência dos tribunais e da
bibliografia relativa a um ramo jurídico particular, com vistas ao estabelecimento de
uma interpretação que transcenda a dimensão específica da lei escrita, positiva,
buscando uma compreensão mais profunda acerca do sentido que encerra suas normas
e, desta forma, servir como instrumento teórico para o desenvolvimento do trabalho
profissional realizado pelos diversos agentes do campo jurídico advogados, juízes,
desembargadores e etc.
Em relação a Evaristo de Moraes Filho, pode-se dizer que trate de um dos mais
renomados doutrinadores do direito do trabalho no Brasil. Sua obra de 1956, Introdução
ao direito do trabalho, expressão mais bem acabada de sua doutrina jurídico-trabalhista,
e por isto mesmo nossa principal referência para este capítulo, seria, sem sombra de
dúvida, o maior sucesso editorial da carreira do autor, chegando à edição em 2003,
com publicação realizada pela editora LTr. Assim sendo, nossa abordagem sobre o
24
espaço da sociologia do direito no pensamento de Evaristo não poderia desconsiderar
esta dimensão de suas atividades intelectuais.
E o que se verifica aqui é uma influência central da sociologia jurídica sobre sua
doutrina. Em que pese a especificidade teórica de uma construção como esta,
propriamente ligada à ciência do direito e não à sociologia, ainda assim os postulados
sociológico-jurídicos que informam o pensamento do autor seriam decisivos para sua
elaboração, uma vez que, segundo procuramos demonstrar no capítulo, seriam eles os
responsáveis diretos pela fundamentação teórica da doutrina em questão; determinando
a maneira pela qual Evaristo concebe sua natureza jurídica, sua definição, sua
denominação, e mesmo a abrangência de seu horizonte legislativo.
Após analisarmos detalhadamente estes pontos, nos ocupamos, porém, com as
finalidades e características atribuídas por Evaristo ao direito do trabalho, aspectos que
fornecem a identidade mesma de sua doutrina. Em resumo, o direito do trabalho é
apontado pelo autor como um instrumento privilegiado de intervenção social para a
conquista de uma democracia plena e para a redução das desigualdades sócio-
econômicas oriundas do sistema capitalista. Trata-se de um direito de transição que
anuncia uma organização social ainda por se fazer existente e que, como tal, se
diferencia inteiramente dos princípios que informam o direito civil. Não se orienta,
portanto, pelo fundamento jurídico individualista que propõe a igualdade de todos
perante à lei, ao contrário, persegue a justiça e a igualdade tratando desigualmente a
seres desiguais social e economicamente. Tendo por base a sociologia jurídica como seu
fundamento teórico, a doutrina de Evaristo reconhece como fato a subordinação inerente
às relações de trabalho na ordem capitalista e, por isto mesmo, estabelece como sujeitos
de titularidade deste direito os trabalhadores dependentes. Neste sentido, a principal
finalidade jurídica do direito do trabalho seria a proteção e tutela dos trabalhadores, a
25
partir de normas que venham compensar juridicamente a desigualdade sócio-econômica
que lhes caracterizam em função de sua posição subordinada na relação de emprego.
Entendendo, porém, que uma das características principais deste direito é a sua evolução
permanente, seu constante vir-a-ser, encerramos este capítulo apontando a perspectiva
utópica com que Evaristo de Moraes Filho concebe o direito do trabalho. Em verdade,
com sua doutrina, ele aprofunda as aspirações democráticas que havia depositado
sobre este direito por ocasião de O problema do sindicato único no Brasil.
Na conclusão desta dissertação, a partir de uma análise sintética, buscamos
demonstrar toda a relevância que a sociologia do direito ocupa no pensamento de
Evaristo de Moraes Filho durante a década de 1950. Apontamos o fato de que esta
sociologia especial não somente surge como fio condutor ligando suas atividades
intelectuais no campo do direito e da sociologia, como, sobretudo, consiste no aspecto
diferencial de sua inserção no debate intelectual daquele período. Assim sendo,
entendemos que tal sociologia atua como um fundamento essencial pelo qual Evaristo
encontraria no direito do trabalho o instrumento privilegiado para uma reforma social de
cunho democrático no Brasil. Uma utopia que singularizaria a perspectiva de Evaristo
frente ao que aqui se produzia em meados do século passado, em especial no campo das
ciências sociais.
Neste nosso trabalho, portanto, fazemos uma leitura do pensamento de Evaristo
de Moraes Filho pelo viés específico de sua concepção sociológico-jurídica, abordando
sua influência sobre a construção de obras e idéias que lhe trariam renome na sociologia
e no direito nacionais durante a década de 1950. Com isto, demonstramos ciência de que
esta dissertação consiste numa pequena contribuição ao entendimento deste importante
intelectual brasileiro, contudo, esperamos que seja uma contribuição valiosa pela
26
possibilidade que se abre de expandir o conhecimento a seu respeito para os jovens
cientistas sociais de nossa época.
27
CAPÍTULO 1
O INTELECTUAL E SUA SOCIOLOGIA JURÍDICA
1.1 - Um intelectual a serviço da sociedade e da democracia no Brasil.
Que elementos sociais e políticos condicionaram a profissionalização das
Ciências Sociais no Brasil? Qual a relação entre os agentes políticos e empresariais e o
desenvolvimento de instituições voltadas à pesquisa sociológica em nosso país? Qual a
singularidade teórica e metodológica contida na produção dos primeiros praticantes da
Ciência Social brasileira que os distingue da intelectualidade que lhes precede
historicamente? A que se propôs, ou melhor, que funções assumiram estes primeiros
sociólogos profissionais no sentido do desenvolvimento ulterior de nossas ciências
sociais, bem como de sua atuação no debate público sobre a realidade social do país? A
busca por responder a estas e outras perguntas tem sido o móvel principal de um
conjunto de pesquisas realizadas nas últimas décadas voltadas à apreensão do processo
mais amplo de institucionalização das Ciências Sociais no Brasil. Não obstante, tem
sido possível perceber dentro deste campo de reflexão, uma espécie de homogeneização
interpretativa que resulta diretamente da consideração a um conjunto mais ou menos
restrito de variáveis, de forma que, a despeito da capacidade e da heterogeneidade dos
pesquisadores voltados a esta problemática, tem contribuído para uma percepção
estereotipada do processo de institucionalização das Ciências Sociais em terras
brasileiras.
cerca de quinze anos atrás, Lúcia Lippi de Oliveira já havia chegado à
semelhante constatação quando, por ocasião de pesquisa sobre a história das Ciências
28
Sociais no Rio de Janeiro
6
, afirmava a existência de uma vertente de análise tida como
“consagrada” nos trabalhos que tratam do processo nacional de instituição das novas
disciplinas. Segundo a autora, esta perspectiva seria herdeira das pioneiras observações
desenvolvidas por Donald Pierson e Florestan Fernandes
7
, que postulavam a idéia de
que a criação dos cursos de sociologia na USP e na Escola Livre de Sociologia e
Política de São Paulo (ELSP) durante os anos 1930, significariam um marco de ruptura
radical na história da sociologia até então produzida no país. Ainda segundo a autora,
por intermédio de sociólogos como Antônio Cândido e Luiz de Aguiar Costa Pinto,
dentre outros, esta perspectiva ganhou extrema notoriedade e, por conseguinte, instituiu
a idéia de que as iniciativas pioneiras da ELSP e da USP determinaram uma profunda
descontinuidade em relação aos estudos sociológicos que antecederam estas
experiências, pois, segundo este enfoque analítico, foi somente a partir de então que a
sociologia teria abandonado sua veia literária e se constituído em um campo
propriamente científico.
Ademais, de acordo com esta vertente de análise, o estatuto de cientificidade dos
sociólogos profissionais de São Paulo resultaria de outras variáveis que estão além da
introdução de novos métodos de pesquisa
8
, tais como sua constituição enquanto uma
comunidade científica de tipo mertoniano
9
, que teria possibilitado a esta intelectualidade
manter-se autônoma frente aos interesses políticos do empresariado paulista - por sua
6
Refiro-me aqui a Oliveira (1995).
7
Para uma análise acerca da relevância de Donald Pierson para a institucionalização da sociologia como
disciplina autônoma no Brasil, bem como de seu legado sobre importantes sociólogos como Florestan
Fernandes e outros, ver, da mesma autora, Oliveira (1987).
8
Tem destaque aqui o método de investigação propriamente etnográfico que, por sua vez, viria a ter
grande influência sobre a produção sociológica paulista nos anos 1940 e 1950, através do que ficou
conhecido como “estudos de comunidades”. As publicações de Pierson (1945; 1948) e o estudo de
Cândido (2003, 10ª ed.), entre outros, representam bem a presença desta orientação nas pesquisas
sociológicas paulistas de então.
9
Segundo Werneck Vianna (1997), que emprega esta noção de “comunidade científica mertoniana”, a
intelectualidade sociológica de São Paulo teria conseguido exercer uma auto-jurisdição sobre suas
atividades e, desta forma, consolidar seu espaço no ambiente universitário como uma estratégia de
autonomia em relação ao seu mecenato.
29
vez, idealizador do projeto de institucionalização das Ciências Sociais em São Paulo
10
-
e, como destaca Miceli (1989), sua distância em relação à Faculdade de Direito, tendo
em vista a vocação pouco científica deste espaço em função da efervescência política
que o animava durante as décadas de 1930 e 1940. Estas variáveis incidentes sobre o
processo de institucionalização das Ciências Sociais em São Paulo seriam, segundo a
interpretação dominante, as bases sob as quais a Ciência Social paulista apresentaria
uma singularidade marcante frente aos outros estados da federação. Para nós, cumpre
observar mais de perto como, tendo referências na experiência paulista, esta visão
“consagrada” aborda o processo de institucionalização das novas disciplinas no Rio de
Janeiro.
Por oposição comparativa, parte importante da literatura especializada vai
enxergar a institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro por um ângulo
radicalmente distinto; na verdade, em sentido diametralmente oposto ao que teria
ocorrido na experiência paulista. Entre 1930 e 1964, o único ponto em comum entre a
Ciência Social paulista e a carioca, segundo Werneck Vianna, diz respeito ao fato de
que “ambas inscrevem a disciplina [sociologia] na vida pública em torno de uma
agenda de reformas sociais.” (1997, p. 198). Mas as convergências param por aí. A
interpretação dominante é que apesar de ambas terem se constituído enquanto
intelligentsia
11
, entre o Rio e São Paulo teria havido, neste particular, uma “diferença
gritante” (Miceli, 1989; p. 81).
10
Importa destacar, no entanto, que a camada empresarial aqui mencionada diz respeito, sobretudo, aos
setores envolvidos com o mercado cultural, tais como donos de jornais de grande circulação e editoras de
livros. Para uma abordagem mais detalhada sobre este ponto, ver Miceli (1979).
11
Aqui, utilizamos o termo no sentido proposto por Martins (1987). O termo é cunhado pelo autor em
pesquisa voltada à intelectualidade brasileira com foco no período entre 1920 e 1940. Como mesmo
apresenta o autor, o termo é marcado por intensa polissemia em função das distintas apropriações de seu
significado, desde sua criação na Rússia em fins do século XIX. Neste sentido, Luciano Martins o
emprega para dar significação cognitiva aos grupos específicos de intelectuais que se caracterizam por ter
como atributo principal a relação entre suas atividades e a esfera política da sociedade. Tem-se como
pressuposto aqui, a compreensão de que não existe relação necessária entre a condição de intelectual e a
de ator político.
30
Tanto quanto em São Paulo, o processo de institucionalização das Ciências
Sociais no Rio de Janeiro também seria um reflexo das transformações sociais, políticas
e econômicas vividas pelo país a partir de 1930 (Almeida, 1989). No entanto, por ser a
então capital da República, a literatura vai destacar a forte presença do Estado neste
processo. Segundo Miceli, o que vai caracterizar o processo de institucionalização das
novas disciplinas em terras cariocas é o caráter clientelista que teria marcado às relações
entre o sistema político e as instituições; donde a alocação em postos e cargos
acadêmicos resultaria diretamente seja de relações pessoais, seja das demandas próprias
dos setores governamentais
12
. Assim, se em São Paulo a nova intelectualidade
sociológica pôde lograr uma substantiva autonomia frente aos interesses políticos de
seus idealizadores, no Rio de Janeiro o que teria ocorrido seria exatamente o inverso;
com o aparelho de Estado frustrando iniciativas universitárias autônomas, como no caso
da UDF, em que contou com a ativa participação dos intelectuais católicos desejosos de
manter o monopólio da Igreja em relação à educação superior (Almeida, 1989; Oliveira,
1995), e, sobretudo, com a intensa cooptação dos intelectuais a partir de meados da
década de 1930 que, por sua vez, teriam forte presença em instituições como o
Ministério da Educação e Cultura (MEC) e o Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio (MTIC). Geralmente, as gravuras de Portinari no edifício do MEC são
evocadas como marco simbólico desta estreita vinculação ocorrida entre os intelectuais
e o Estado no Rio de Janeiro (Martins, 1987; Almeida, 1989; Pécaut, 1990).
Dentro deste contexto, a intelligentsia sociológica do Rio de Janeiro seria
marcada por sua direta vinculação ao Estado. Ao contrário da experiência paulista,
portanto, no Rio, a institucionalização das Ciências Sociais teria ocorrido por fora do
12
A este respeito, afirma Miceli (1989, pp. 81-82): “Na então capital federal, o vigor institucional e
intelectual das Ciências Sociais esteve via de regra ancorado em iniciativas assumidas ou encampadas
por setores políticos e governamentais influentes (...) No Rio de Janeiro, nos dois empreendimentos
universitários citados [a Universidade do Distrito Federal e a Faculdade Nacional de Filosofia] verifica-se
uma corrida política em torno das posições disponíveis, logo convertidas em alvos de clientelismo (...)”.
31
espaço universitário. Não seria, pois, a universidade o lócus profissional desta
intelectualidade, mas sim instituições para-universitárias financiadas com recursos
governamentais, o que teria levado Werneck Vianna a afirmar que o havia “Nada
mais distante da experiência de um cientista social carioca do que uma comunidade
científica mertoniana” (1997, p.194); e Sérgio Miceli, comparando com a experiência
paulista, complementaria dizendo que (...) o Rio de Janeiro está para a política assim
como São Paulo está para a ciência” (1989, p. 89), buscando com isto ilustrar a
heteronomia dos intelectuais cariocas frente ao Estado.
Neste sentido, quase sempre fundada exclusivamente sobre a experiência do
ISEB
13
e de alguns de seus principais participantes, tais como Hélio Jaguaribe e Alberto
Guerreiro Ramos, o processo de institucionalização das Ciências Sociais no Rio de
Janeiro será abordado pela literatura como resultado direto das demandas políticas
14
.
Tratar-se-iam, pois, de “intelectuais de Estado” em oposição aos “intelectuais da
sociedade civil” que tiveram vez em São Paulo (Werneck Vianna, 1997). Assim, a
produção teórica desta intelligentsia seria antes de tudo uma autêntica “sociologia do
desenvolvimento”, a qual teria por sentido formular representações e diagnósticos
acerca dos problemas que impediam o desenvolvimento da nação. Por conseguinte,
ainda que fosse uma sociologia comprometida com as reformas sociais, o seria elegendo
o Estado e a política econômica como a agência e o instrumento mais adequados para
“provocar” as mudanças sociais tidas como necessárias à superação do atraso sócio-
13
Sobre o ISEB ver, entre outros, Pécaut (1990); Toledo (1982); e Sodré (1978).
14
Mesmo abordando uma maior diversidade de instituições que tiveram vez no processo de
profissionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro, tais como o CBPE, a CLAPCS e o ICS, dentre
outros, Almeida (1989) sintetizaria suas observações sobre este processo fundamentalmente a partir da
experiência isebiana, levando-a a uma conclusão muito próxima daquela a que chegaram Werneck
Vianna e Sérgio Miceli, qual seja, a de que os trabalhos intelectuais oriundos de tais instituições “(...)
tratavam-se de uma produção que não se dirigia à comunidade acadêmica, nem tampouco aos cultores
de conhecimento diletante e desinteressado. Ao revés, os destinatários das Ciências Sociais eram as
elites políticas do país.” (p. 216).
32
econômico do país (Almeida, 1989)
15
. Portanto, enquanto “intelectuais de Estado”, os
cientistas sociais cariocas valer-se-iam da ciência como fundamento para subsidiar um
transformismo protagonizado pelo poder público; apontando sua primazia para fazer do
Brasil uma nação moderna.
Desta maneira, se em relação a São Paulo a literatura irá reconhecer a influência
dos intelectuais reunidos na década de 1920 em torno da Associação Brasileira de
Educação (ABE) sobre os cientistas sociais daquele estado o que se expressaria tanto
teórica quanto praticamente -, no que tange aos seus colegas cariocas, tal literatura irá
frisar sua vinculação estreita com o ensaísmo ilustrado do início do século XX. Assim,
descendendo da produção ensaística “quase que por filiação direta”, como destaca
Werneck Vianna (1997, p. 195), a produção sociológica do Rio de Janeiro e, ainda
mais importante, seus intelectuais não representariam qualquer descontinuidade em
relação à intelligentsia que se origina no Brasil em fins do século XIX. Como esta, os
cientistas sociais do Rio de Janeiro serão abordados como representantes de uma
intelectualidade elitista que continuaria a hipotecar às elites políticas a tarefa de
modernizar o Brasil em detrimento da sociedade civil
16
. Por este motivo, ainda que
orientada à transformação social, a sociologia carioca se vista como conservadora,
pois que, ao confiar ao Estado o primado desta transformação, tal sociologia não estaria
comprometida com a edificação de uma ordem social democrática no Brasil. A
15
Como destaca Villas Bôas (2006), esta orientação de atuar sobre a realidade social do país com vistas à
superação de suas desigualdades, é uma marca distintiva dos cientistas sociais da década de 1950
independentemente da localização geográfica de suas atividades. Demonstra a autora que, apesar de
divergências e particularidades, esta seria uma orientação comum àqueles intelectuais. Em função disto,
segundo informa, “’Mudança provocada’ era uma expressão comum no vocabulário dos sociólogos dos
anos 1950. Reveleva a liberdade de agir dentro de um plano elaborado de antemão. Traduzia o desejo de
intervir na espontaneidade dos acontecimentos para mudar a feição das instituições, das mentalidades,
da distribuição do poder, impondo uma regularidade nova à conduta cotidiana de homens e mulheres.”
(idem, p. 13).
16
Buscando demonstrar o caráter elitista dos cientistas sociais da então capital federal em relação aos
paulistas, Miceli, (1989) leva em consideração ainda o fato de que muitos dos pioneiros das Ciências
Sociais no Rio de Janeiro têm sua formação profissional em cursos superiores tradicionais, sobretudo em
direito. Tal aspecto, segundo o autor, seria uma marca distintiva da origem social destes pioneiros e,
como tal, elemento de compreensão no que tange ao sentido teórico-político de suas produções.
33
passagem que se segue é bem ilustrativa a respeito desta interpretação. Referindo-se à
intelectualidade carioca e sua produção sociológica, seria taxativo Werneck Vianna
(idem, p. 197):
Nesta construção, a mudança social não pode prescindir de uma
intelligentsia influente na agência estatal e que, a partir de um diagnóstico
com requerimentos de perícia científica, assinale com precisão quais os
obstáculos que hipotecam o moderno ao atraso e ao subdesenvolvimento.
Por isso, não se trata de uma sociologia orientada para a conquista e
regulação de uma boa ordem democrática.
Dentro deste rígido esquema interpretativo, porém, não espaço para a grande
figura de Evaristo de Moraes Filho e, com efeito, investigar sua produção teórica, bem
como sua trajetória profissional, leva, ainda que indiretamente, a um choque inevitável
com esta interpretação dominante.
Jurista, artífice da implementação da Justiça do trabalho no Brasil, autodidata
nos assuntos sociológicos; tais características de sua vida profissional e intelectual
poderiam levar, numa conclusão apressada, ao reconhecimento de que Evaristo de
Moraes Filho se enquadraria perfeitamente na interpretação anteriormente exposta
acerca dos pioneiros da Ciência Social carioca. Contudo, para isto, seria necessário
manter-se na superficialidade das informações e, ademais, continuar preso a noções
essencialistas que enxergam nos juristas um papel social de irremediável colaboração
com as elites dirigentes e, de outra parte, que todos os intelectuais que tomaram parte no
Estado entre as décadas de 1930 e 1950 tinham por função fazer desta agência um
verdadeiro leviatã hobbesiano na condução do processo de modernização
experimentado pela sociedade brasileira no período
17
. Não sendo este o nosso caso,
acreditamos que um exame, ainda que sucinto, de sua trajetória contribui para
desmistificar estas noções, bem como, para trazer a lume elementos novos que possam
17
Para uma análise detalhada sobre o processo de modernização sócio-econômica experimentado pelo
país a partir de 1930, ver Fernandes (1960) e Ianni (1963), entre outros.
34
sugerir uma compreensão diferenciada sobre o processo de institucionalização das
Ciências Sociais no Brasil.
Evaristo de Moraes Filho, que viria a ser um dos principais personagens da
institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro durante os anos 1950 e
1960
18
, inicia sua carreira como agente público ainda em 1934, no âmbito do recém
criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Nesta ocasião, ainda estudante da
Faculdade Nacional de Direito, tornar-se-ia secretário das Comissões Mistas
Conciliação onde permaneceria por sete anos
19
. Este período seria fundamental na
trajetória intelectual de Evaristo de Moraes Filho, pois, de um lado, o contato direto
com as contendas trabalhistas lhe permitiria ter uma compreensão profícua acerca dos
conflitos sociais que agitavam os anos 1930 – experiência que seria determinante para a
construção de sua perspectiva sociológica, da qual o livro O problema do sindicato
único no Brasil. Seus fundamentos sociológicos, publicado pela primeira vez em 1952, é
a mais destacada expressão. De outro lado, é ainda durante estes sete anos que se
verifica a expansão de sua “bagagem” intelectual; bacharelando-se em direito em 1937 e
iniciando os seus estudos de filosofia na Faculdade Nacional de Filosofia em 1939
(Gomes; Morel; Pessanha, 2007). Ademais, é o período onde o intelectual mostra
18
Evaristo foi um dos co-fundadores do chamado Instituto de Ciências Sociais (ICS) em 1958, ao lado de
intelectuais como Victor Nunes Leal, Temístocles Cavalcanti, Luís de Aguiar Costa Pinto, Luis de Castro
Faria, Darcy Ribeiro, dentre outros. Tratava-se da primeira instituição de pesquisas em Ciências Sociais
de natureza propriamente universitária no Rio, que era parte constitutiva da Universidade do Brasil.
Evaristo de Moraes Filho foi seu maior presidente, pois, esteve à frente do instituto em quatro gestões
1960, 1962, 1966 e 1967. O intelectual carioca teve ainda importante participação na Sociedade Brasileira
de Sociologia (SBS), na qual chegou a constituir sua primeira diretoria no cargo de vice-presidente em
1962. O presidente foi Florestan Fernandes. Informações extraídas de depoimento publicado por Gomes,
Morel e Pessanha (2007). Para mais detalhes sobre o papel de Evaristo de Moraes Filho na
Institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro, ver Amorim (2005).
19
Evaristo esteve à frente do cargo de secretário das Comissões Mistas de Conciliação de 25 de abril de
1934 a março de 1941. Tais comissões, que foram criadas pelo Decreto n. 21.396, de 12 de maio de 1932,
não eram instâncias julgadoras, sua função era apenas mediar os conflitos coletivos de trabalho com
vistas ao estabelecimento de acordos. Por conseguinte, sua composição respeitava a proporção entre
empregados e empregadores, tendo cada parte três representantes. Informações extraídas de Gomes,
Morel e Pessanha (2007).
35
domínio avançado dos conhecimentos sociológicos, publicando interessantes artigos
nesta área
20
.
Em 1941, quando da inauguração da Justiça do trabalho no Brasil, Evaristo de
Moraes Filho deixaria o cargo de secretário das Comissões Mistas de Conciliação para
assumir o posto de Procurador da Justiça do trabalho, cargo em que permaneceria até
1965 quando resolve se aposentar voluntariamente em função do golpe militar de 1964
(idem). Ao lado de juristas como Joaquim Pimenta, Arnaldo Süssekind e outros,
Evaristo integraria um “time” de jovens procuradores entusiasmados em atuar
diretamente pelas reformas sociais no país.
Em relação a Evaristo, no entanto, sua longa carreira de agente público no
âmbito do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio - seja como secretário das
Comissões Mistas de Conciliação, seja como procurador do trabalho não significou
adesão ao espectro ideológico da época, segundo o qual o Estado deveria ser forte e
autoritário para levar a cabo a tarefa de modernizar o país, tendo em vista a fraqueza de
amplos setores da sociedade civil em se desvencilhar da dominação imposta pelas
oligarquias regionais. Não veria, pois, o Estado como agência mais adequada para
“construir a nação”, como propuseram Alberto Torres, Oliveira Vianna e outros
intelectuais nas primeiras décadas do século XX. De fato, não deixaria de reconhecer
funções importantes ao Estado e, também, não observaria negativamente o processo de
industrialização experimentado pelo Brasil no pós-30, contudo, Evaristo não seria um
“intelectual de Estado” na acepção formulada por Werneck Vianna (1997); melhor seria
caracterizá-lo como um “intelectual no Estado”, pois, ao longo de toda a carreira suas
20
Entre estes, “Marx e a sociologia contemporânea”, publicado em novembro de 1934 em A Idéia; “A
problemática da sociologia do saber”, publicado em setembro de 1937 em A Idéia; “Introdução à
sociologia rural”, publicado em 12 de dezembro de 1937 no Jornal do Commércio; e “A comunidade
rural”, publicado em fevereiro de 1938 no Mensário Jornal do Commércio. Para maiores informações ver
site da Biblioteca Virtual Evaristo de Moraes Filho.
Endereço:
http://www.bvemf.ifcs.ufrj.br/producao_intelectual.htm#artigos
Acesso em: 01/04/2009.
36
concepções manter-se-iam coerentes e autônomas frente à ideologia ventilada no
período. Seu caso, aliás, não seria único! Antônio Cândido (1979) faz considerações em
mesmo sentido ao abordar a passagem de Carlos Drummond de Andrade pelo gabinete
do ministro Gustavo Capanema durante a década de 1940; e Carlos Nelson Coutinho
(1981) pondera, de maneira geral, o equívoco em associar o posto de funcionário
público com convicções políticas de cunho reacionário.
Em verdade, como muitos outros intelectuais, soube Evaristo perceber, à época,
o caráter ambíguo do Estado que se edificava a partir da Revolução de 30. Neste
sentido, percebeu décadas antes de muitos outros cientistas sociais o binômio
“conservação-mudança” que caracterizaria aquele Estado
21
; criticando veementemente
seu autoritarismo, mas valendo-se de sua contradição inerente para avançar no
atendimento às demandas próprias da sociedade civil. Por conseguinte, sua passagem
pelo Estado Novo não deve ser encarada como adesão política e/ou ideológica ao
regime, pois, segundo ele mesmo afirma: “Procurador da Justiça do trabalho, eu metia
o pau no Estado Novo e em Getúlio! Feri suscetibilidades e, por isso, fiquei 16 anos à
espera de promoção.” (Gomes; Morel; Pessanha, 2007; p. 115).
A razão para esta especificidade de Evaristo em relação ao Estado e à ideologia
de sua época, assim como no que diz respeito aos fundamentos mesmos de sua
produção sociológica ou jurídica, a nosso ver, resultam dos princípios gerais que
informaram a constituição de seu pensamento. Segundo pensamos, ainda que
reconhecesse o mérito da ensaística de um Sérgio Buarque de Holanda ou de um
Gilberto Freyre, bem como a de um Tobias Barreto ou Silvio Romero, não nos parece
que se situem as referências fundamentais que informariam a concepção intelectual
21
Segundo apresenta Werneck Vianna (1997), é somente a partir dos anos 1970 que os cientistas sociais
se voltam a compreender o processo de modernização conservadora experimentado pelo país a partir de
1930. Entre os autores que tomam parte nesta análise, Werneck Vianna cita Francisco de Oliveira, José
Murilo de Carvalho, Simon Schwartzman, Florestan Fernandes, Luciano Martins e outros.
37
de Evaristo de Moraes Filho; contrariando, pois, a generalização desenvolvida por
Werneck Vianna (1997), que enxerga na produção dos cientistas sociais cariocas uma
descendência por filiação direta à tradição do ensaísmo sociológico. Em verdade, as
concepções de Evaristo descenderiam, sobretudo, de uma fração da intelligentsia
nacional ainda pouco explorada pelos especialistas voltados ao tema da relação entre
intelectuais e política no Brasil, como é possível apreender dos trabalhos de Martins
(1987) e Pécaut (1990), por exemplo. Refiro-me aos intelectuais socialistas do início do
século XX que tiveram ativa participação nas lutas sociais do período; construindo
jornais operários, fundando partidos socialistas e assistindo juridicamente os sindicatos
de trabalhadores em sua luta contra patrões e governos
22
.
Entre estes, destaca-se a figura do próprio pai de Evaristo, Antônio Evaristo de
Moraes, grande advogado trabalhista e intelectual socialista de primeira hora
23
, a quem
o filho procurou seguir-lhe os passos com a ambição de se tornar maior do que o pai
(Gomes; Morel; Pessanha, 2007). Entretanto, não seria exclusividade de seu pai o
estabelecimento das referências que norteariam decisivamente sua produção. Outros
intelectuais, como Joaquim Pimenta e Pontes de Miranda – que junto de Antônio
Evaristo e outros viriam constituir o chamado Grupo Clarté
24
seriam muito
22
Para uma análise mais detalhada sobre estes intelectuais e sua atuação na cena política, ver Moraes
Filho (1981) e Gomes (1994).
23
Como apresenta Gomes (1994), além de atuar diretamente na construção dos primeiros partidos
socialistas do país e junto aos sindicatos de trabalhadores nas greves que sacudiram a então capital federal
nas primeiras décadas do século XX seja escrevendo artigos, seja representando-os juridicamente -,
Antônio Evaristo tornar-se-ia o primeiro consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, sendo de sua autoria e de Joaquim Pimenta a chamada “lei de sindicalização” Decreto n.
19.770, de 1931 que regulava a sindicalização das classes patronais e operárias, além de instituir a
unicidade como fundamento jurídico do sindicalismo no Brasil.
24
Sobre este agrupamento de intelectuais socialistas, assim informa o verbete do Partido Comunista
Brasileiro no DHBB do CPDOC FGV: Ainda em 1920 surgiu no Rio de Janeiro o grupo Clarté,
filiado ao grupo francês do mesmo nome, liderado por Henri Barbusse e René Lefèvre. Dele
participaram, entre outros, [Antônio] Evaristo de Morais, Maurício de Lacerda, Nicanor Nascimento,
Agripino Nazaré e Everardo Dias. Seu objetivo era defender a Revolução Russa e definir o papel dos
intelectuais na reforma social brasileira”.
Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/6069_1.asp
Acesso em: 01/04/2009.
Para uma análise mais detalhada sobre o Grupo Clarté, ver Hall & Pinheiro (1986).
38
importantes na formação teórica e prática profissional de Evaristo de Moraes Filho;
todos juristas e voltados à constituição de uma ordem verdadeiramente democrática no
Brasil. Em sentido lato, é com base nesta herança intelectual e política, que devemos
compreender a especificidade de Evaristo em relação aos outros pioneiros da Ciência
Social brasileira.
É a partir da influência destes bacharéis socialistas que Evaristo extrai não
somente sua concepção política fundada sobre um socialismo democrático de cunho
reformista -, como também, a qualidade de surpreender o direito do trabalho a partir de
um enquadramento sociológico; elemento que singularizaria a produção de Evaristo seja
no campo sociológico ou no jurídico. Obras como Apontamentos de direito operário
(1905), de Antônio Evaristo; Sociologia jurídica do trabalho (1944), de Joaquim
Pimenta; e os livros de Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do direito (1922)
e Introdução à sociologia geral (1926), seriam recorrentes nos trabalhos produzidos por
Evaristo, pois é a partir delas que o intelectual toma contato com o postulado
sociológico-jurídico, segundo o qual o direito sobretudo, o do trabalho - não consiste
apenas em um conjunto abstrato de normas de conduta produzido e monopolizado pelo
Estado, mas que, acima de tudo, é um produto das relações sociais; um fato
propriamente social originado do conflito de interesses em que se encontram
envolvidos os diversos grupos que constituem a sociedade.
Este postulado próprio de uma sociologia do direito tornar-se-ia um recurso
teórico-metodológico fundamental na produção sociológica de Evaristo de Moraes
Filho. É com base nele, por exemplo, que o intelectual vai se valer do conceito de
“grupo social” trabalhado por sociólogos alemães como Leopold Von Wiese e George
Simmel, para fundamentar a tese capital de O problema do sindicato único no Brasil,
segundo a qual a legislação trabalhista brasileira não se tratou de uma benesse de
39
Getúlio Vargas à classe trabalhadora durante o autoritário Estado Novo, mas sim que foi
resultado direto das lutas empreendidas por sindicatos de trabalhadores desde fins do
século XIX. Trataremos desta questão mais adiante. Por ora, importa reter que as
prerrogativas próprias da sociologia do direito consistiram no elemento diferencial que
marcaria a produção sociológica de Evaristo de Moraes Filho, seja em relação ao
Estado, seja em comparação com o que produziam seus colegas cariocas no período.
Tendo por base os fundamentos constitutivos desta sociologia especial, o que se
observa é um afastamento considerável de Evaristo pelos problemas que animavam a
produção da chamada “sociologia do desenvolvimento” no Rio de Janeiro de meados do
século XX. Como esta, buscava sua sociologia atuar pela edificação de uma ordem
verdadeiramente moderna e igualitária no Brasil, contudo, não encontraria no Estado o
móvel fundamental desta mudança social. Para Evaristo, a solução do problema passava
essencialmente pela redução do autoritarismo político do Estado, em prol do
reconhecimento de novos atores sociais (sindicatos), e dos direitos coletivos de que são
portadores, na condução do processo de modernização do país. Não se tratava, pois, de
modernização estritamente econômica o que ambicionava Evaristo, mas uma
modernização social e política fundada sobre o fim do controle estatal sobre os
sindicatos, tendo em vista o reconhecimento dos direitos coletivos que estes trazem à
cena sócio-política do país. A sociologia do direito permitiu a Evaristo, portanto,
desenvolver uma compreensão diferenciada da relação Estado/sociedade civil, na qual
esta passa a gozar de substantiva prevalência sobre o primeiro; daí a natureza particular
da relação experimentada por este intelectual frente à agência estatal. Daí resulta
também, o fato de sua produção sociológica consistir em uma autêntica “sociologia de
reforma da sociedade civil”, atributo considerado por Werneck Vianna uma
exclusividade da sociologia paulista da década de 1950 (1997, p. 189).
40
Assim sendo, partindo da compreensão de que as leis, em sentido geral, guardam
suas raízes na própria sociedade, Evaristo mobiliza sua produção sociológica no sentido
de legitimar o ponto de vista partilhado por muitos democratas, segundo o qual, o
espaço da agência estatal na sociedade brasileira necessitava ser urgentemente
redimensionado. Conforme vem sustentar, o Estado não deveria ser nem liberal demais,
nem autoritário. Deveria reconhecer as liberdades individuais, mas também os
espontâneos direitos coletivos oriundos da sociedade que já eram uma realidade
concreta para todas as nações avançadas no após-guerra. Seu papel deveria ser,
portanto, o de harmonizar e regular os diferentes interesses existentes no seio da
sociedade sendo estes o verdadeiro “motor” da vida social -, e não sobrepor-se acima
deles buscando “construir a sociedade” a partir de sua vontade.
Por conseguinte, devemos considerar que se Evaristo de Moraes Filho conseguiu
perceber na sociologia do direito um expediente científico que apontava para uma nova
compreensão da relação entre sociedade civil e Estado, não podemos negligenciar que
sua relevância na produção do autor é devida a um certo pragmatismo político
25
de
legitimar uma crítica contundente ao autoritarismo do Estado novo e seu mais destacado
fundamento; o corporativismo. Socialista, sempre se opôs à restrição das liberdades e à
intensa repressão às organizações de trabalhadores que se seguiu a partir de 1937. Em
entrevista concedida a José Sérgio Leite Lopes, Evaristo de Moraes Filho expõe toda
sua indignação com o autoritarismo que se abre a partir deste fatídico ano:
o movimento sindical cessou. Cessou porque o Estado Novo não
brincava em serviço; a greve era proibida como movimento anti-social,
nociva à produção nacional e assim por diante. Isso depois de 37. E fizeram
logo uma lei sindical referendando, ratificando esse entendimento. É o
25
Este uso pragmático da sociologia do direito não é uma exclusividade de Evaristo de Moraes Filho.
Como apresenta Junqueira (1993), a partir de uma abordagem histórica sobre a sociologia jurídica
brasileira, esta relação entre sociologia do direito e pragmatismo é a característica central que marca sua
recepção no país, tendo em vista sua potencialidade para o uso prático de juízes e legisladores desejosos
de fornecer um embasamento científico às suas atividades.
41
decreto-lei (...) Esse decreto-lei, 1.402, é ultra-reacionário, fascista. E nas
eleições sindicais, a lista dos candidatos tinha que ir para o DOPS. Se o
sujeito fosse suspeito de alguma coisa, saía da lista. Essa lei criou o
chamado “atestado negativo de ideologia”. Você tinha que provar que não
constava nada contra você, que era um bom moço. Foi um absurdo.
(Lopes, 2005; p. 178).
Não por acaso, Oliveira Vianna seria um interlocutor privilegiado em sua
produção teórica; e é verdade que, como este, também reconhecia uma certa falta de
espírito público na sociedade brasileira a qual os sindicatos teriam importante papel a
cumprir. Entretanto, sempre tornou clara sua crítica ao posicionamento autoritário de
Vianna como forma de solução do problema. Certa feita, afirmou Evaristo (2004, pp.
344-345):
Oliveira Vianna pregou, à sua maneira, a educação, a ascensão e a cidadania
plena desse homem-massa, mas só via um caminho para isso: o indicado por
ele, com sufocação da liberdade e das livres manifestações dos indivíduos,
dos grupos, dos municípios, dos estados, em favor da ordem e da disciplina
que vinham de cima. Seria, ou deverá ser indicada essa terapêutica, em
detrimento das forças vivas da sociedade? Não seria substituir a tirania dos
antigos chefes localistas e demagógicos por outra ainda pior, por que única e
infalível?
Como revela sua posição, Evaristo nunca se deixou levar pela utopia
corporativista de Oliveira Vianna que alimentava expectativas de equacionamento da
chamada “questão socialno Brasil, a partir da instauração de uma “democracia social”
sem consideração pelas liberdades políticas e pelas garantias constitucionais (Gomes,
1993; 1994)
26
. Por conseguinte, em sentido contrário a muitos intelectuais de sua época
26
Segundo demonstra Gomes (1994), o conceito de democracia não seria abandonado pela ideologia do
Estado Novo, mas apropriado a partir de uma significação nova em contraposição àquela propriamente
liberal. De acordo com a autora (idem, pp.182-187): “A nova democracia [social] não se recobria dos
aspectos constitucionais liberais, pois se afirmava por outros objetivos (...) significava o abandono da
noção ilusória da existência de um regime político que pudesse subsistir como um formato final de
organização das sociedades (...) O regime democrático não era o regime da pseudo-representação
eleitoral de indivíduos iguais, que na verdade não existem; mas aquela da organização corporativa dos
indivíduos em sindicatos diferenciados e dotados de poder político. A nova democracia era a democracia
42
sobretudo, juristas –, que tomaram parte ativa na construção da ideologia
estadonovista ao se incorporarem em órgãos de comunicação da estrutura do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)
27
, Evaristo, em companhia de Carlos
Drummond de Andrade, se associaria a chamada União dos Trabalhadores Intelectuais
em 1945 . Tratava-se de uma organização de profissionais liberais contrários ao regime,
na qual figuraram importantes intelectuais, tais como Afonso Arinos de Melo Franco,
Mario Pedrosa e outros. Segundo declara o próprio Evaristo (Gomes; Morel; Pessanha,
2007; p. 102): “A União era fabulosa! Tínhamos um interesse comum na derrubada do
regime. Lá não havia distinção ideológica, pois éramos todos democratas.”.
Este caráter “militante” que orienta a trajetória intelectual de Evaristo de Moraes
Filho em favor dos trabalhadores e do alargamento da democracia no Brasil – em
poucas palavras, em favor da sociedade civil brasileira -, seria também, conforme
observamos, a marca fundamental de sua sociologia. Neste sentido, ao menos que
desconsideremos a relevância deste intelectual para o processo de institucionalização de
nossas Ciências Sociais, nos parece visível a insuficiência daquele rígido modelo
interpretativo que observa a profissionalização de tais ciências a partir de um fosso
intransponível entre os pioneiros da ciência social paulista e carioca. Nele, como vimos,
não espaço para Evaristo de Moraes Filho, pois, não faculta um entendimento da
produção carioca para além da sociologia do desenvolvimento de um Hélio Jaguaribe
(1969), de um Guerreiro Ramos (1954), ou de um Costa Pinto (1963).
Melhor interpretação nos oferece Villas Bôas (2006). Aí, é possível observar
Evaristo como parte constitutiva de uma geração de cientistas sociais que,
independentemente de suas particularidades e divergências, orientaram-se pela
instauração de uma ordem social igualitária e moderna no Brasil. Se, como demonstra a
das corporações (...) O cidadão desta nova democracia, não mais se definia pela posse de direitos civis e
políticos, mas justamente pela posse de direitos sociais.”.
27
Sobre isto, ver, entre outros, Codato & Guandalini Jr. (2003).
43
autora, diversas foram as relações sociais enfocadas pelos sociólogos desta geração com
vistas a atingir tal objetivo primordial
28
, em Evaristo, seu foco analítico foi direcionado,
indubitavelmente, às relações sociais de trabalho especialmente, às relações entre
organizações sindicais e o Estado. O aspecto central a ficar marcado reside, porém, no
fato de que assim o fez com base em uma abordagem propriamente sociológico-jurídica.
Em verdade, a sociologia do direito se constituiu em uma espécie de “conhecimento-
síntese”, de unidade cognitiva, que permitiu ao intelectual reunir, de forma coerente e
integrada, os objetos centrais de sua preocupação: os grupos sociais (sindicatos, em
particular), o Estado e o direito do trabalho. Não por acaso, o autor publica, ainda em
1950, uma obra inteira dedicada a esta sociologia especial, a qual forneceu-lhe o título
de O problema de uma sociologia do direito.
De maneira geral, se podemos inferir que o direito do trabalho consistiu no tema
responsável pela associação teórica de suas maiores vocações profissionais a
sociologia e o direito -, podemos igualmente sinalizar que a sociologia do direito
consistiu no fundamento teórico-metodológico que tornou tal associação possível.
Portanto, antes de avançarmos sobre as considerações sociológicas e jurídicas que
fizeram de Evaristo de Moraes Filho um renomado intelectual brasileiro, faz-se mister
que abordemos primeiramente em que consiste a sociologia do direito que seria tão
importante para a organização e definição de suas idéias.
28
Enfocando a generalidade e a diversidade em que a noção de “relações sociais” esteve presente na
sociologia dos anos 1950, escreve Villas Bôas (idem, p. 100): “No decorrer dos anos 1950, o ponto de
vista sociológico se impôs à reflexão sistemática sobre a sociedade brasileira, legitimando uma
percepção da experiência humana que punha em destaque as relações sociais (...) A convicção de que a
sociedade se ordena através de relações sociais impregnou as pesquisas que trataram das relações entre
negros e brancos, índios e ribeirinhos, senhores e empregados, sitiantes e vizinhos, trabalhadores e
Estado.”.
44
1.2 – A sociologia jurídica de Evaristo de Moraes Filho
É possível um estudo sociológico do direito? Em O problema de uma sociologia
do direito, é a partir desta indagação que Evaristo de Moraes Filho introduz, após longa
e exaustiva exposição de teorias formuladas por filósofos e sociólogos do direito, suas
próprias definições do que venha a ser a sociologia jurídica. Apesar de aparentemente
descabido tal questionamento em uma obra voltada exatamente à afirmação dos
princípios de uma sociologia do direito, ele é revelador acerca da histórica dificuldade
de aceitação a um enquadramento sociológico sobre o fenômeno jurídico, tendo em
vista a resistência do campo do direito em superar a longa tradição teórica que o
informa em detrimento da contribuição que diferentes ciências humanas como, a
psicologia, a sociologia, a ciência política, e outras podem prestar a um entendimento
mais completo da natureza particular destes fenômenos
29
.
Em relação à sociologia, as raízes desta resistência remontam ao século XIX,
onde o positivismo jurídico tradicional passa a ser severamente criticado pelo
positivismo filosófico de Augusto Comte
30
. E ao longo de todo o século XX, não foram
poucos os teóricos a tomarem parte nos dois lados deste debate; uns, como Ehrlich
29
Maillet (1994), em estudo sobre o estado da ciência jurídica francesa, aponta o caráter refratário deste
campo de conhecimento em relação às contribuições que outras ciências humanas trazem para a reflexão
científica sobre o direito. Segundo o autor, esta refração é um fenômeno objetivo fundado sobre a
imposição de obstáculos epistemológicos impeditivos à produção de novos conhecimentos científicos.
Ressalta ainda, o caráter histórico, e não apenas cronológico, desta contenda teórica, afirmando suas
raízes tanto na história das instituições voltadas ao ensino jurídico, quanto na história mesma das
instituições políticas que produzem o direito. Em relação ao Brasil, também Fernandes (1958) chama
atenção para a histórica dificuldade de desenvolvimento de abordagens sociológicas sobre o direito. Frisa,
no entanto, as instituições católicas de ensino como as principais responsáveis por tais dificuldades ao
longo das primeiras décadas do século XX. Outras análises a respeito da difícil compatibilização da
sociologia com o direito, tendo o Brasil como foco, podem ser encontradas em Faria & Campilongo
(1991), Junqueira (1993) e Souto & Falcão (2001), dentre outros.
30
Assim distingue Codato & Guandalini Jr. estes dois tipos de positivismo: “O positivismo filosófico
(comteano) toma a sociologia como ciência prática de organização da sociedade. Em oposição, o
positivismo jurídico visa transformar o estudo do direito em ciência e preconiza, na prática jurídica, a
estrita aplicação dos textos legais deixando de lado a análise da sociedade à qual eles se aplicam.”
(2003, p. 161; nota 24).
45
(1986), buscando negar qualquer validade à ciência (ou dogmática) jurídica e afirmando
a sociologia do direito como a ciência fundamental ao estudo dos fenômenos jurídicos;
outros, como Kelsen (1998), fazendo o inverso e, pois, não reconhecendo qualquer outra
ciência que não à dogmática como instrumento de conhecimento do direito. Entre uns e
outros tem-se ainda Weber (1999), intentando uma conciliação entre ambas as
ciências
31
.
Os intelectuais brasileiros notadamente juristas também não ficaram alheios
a este debate teórico. Segundo mostram alguns estudiosos, tal debate se inicia no Brasil
a partir de intelectuais como Tobias Barreto, Silvio Romero, Clóvis Beviláqua e outros,
que, juntos, viriam constituir a chamada “Escola do Recife” em fins do século XIX e
fundar uma perspectiva culturalista, sócio-lógica, de compreensão do direito
32
. No
decorrer do século XX, os juristas brasileiros continuaram envolvidos com esta
problemática; e nomes como os de Joaquim Pimenta, Pontes de Miranda e Oliveira
Vianna devem ser destacados pela centralidade com que empreenderam tal debate no
intuito de subsidiar suas idéias. Contudo, pelo menos até a década de 1950, ninguém
melhor do Evaristo de Moraes Filho soube apreender os termos desta “disputa” teórica
e, a partir de uma posição próxima da que formulara Weber, firmar um espaço próprio,
conciliatório, entre estas duas áreas do saber: o espaço da sociologia do direito.
A verdade é que (...) os juristas e os sociólogos vivem em polêmicas, com
incompreensões recíprocas, cada qual querendo atribuir tudo à sua ciência,
diminuindo o campo próprio da outra. São dois imperialismos científicos
que se entredevoram, quando lugar para um meio termo conciliatório. E
este meio termo, terra de ninguém, é justamente a sociologia do direito.
(Moraes Filho, 1997; p. VIII).
31
Para uma abordagem comparativa entre as perspectivas de Max Weber e Hans Kelsen, ver Silveira
(2006).
32
Sobre a “Escola do Recife”, seus intelectuais, e a posição destes no debate mencionado, ver, entre
outros, Machado Neto (1969), Reale (1977), Paim (1984) e Moraes Filho (1985).
46
Entretanto, conciliação aqui não deve ser vista como sinônimo de equivalência,
pois, como expõe claramente Evaristo (idem, p. 224): “Dos dois termos que a compõem
– sociologia e direito – a nova disciplina possui mais da primeira do que do segundo.”.
Esta diferença de ênfase que o autor imprime à sua concepção de sociologia jurídica não
é um mero detalhe; sugere uma tomada de posição frente ao debate mencionado acima
e, como tal, explica em boa medida porque sua definição acerca deste novo campo é
precedida pela indagação que abrimos esta seção. Antes de qualquer consideração
substantiva a respeito desta nova ciência, sentiu Evaristo a necessidade de legitimá-la
teoricamente perante as críticas que sofria de teóricos adeptos do positivismo jurídico. E
o fez, assim como outros intelectuais, a partir do debate com a “teoria pura do direito”
desenvolvida pelo jurista de Viena Hans Kelsen; sem sombra de dúvida, uma das
concepções jurídicas mais influentes no século XX.
Desde 1911, quando publica pela primeira vez a obra Teoria geral do direito e
do Estado, Kelsen já vinha desenvolvendo sua concepção a respeito de uma teoria pura
do direito. No entanto, é somente na década de 1930, quando publica livro homônimo à
teoria que trazia a público, que o jurista vienense a concebe inteiramente. Segundo
entendia o autor, a ciência jurídica reclamava uma reformulação de suas bases teóricas
em função de uma suposta - e indevida - presença da sociologia, da psicologia e de
outras ciências em seu âmbito particular desde meados do século XIX, o que, por sua
vez, acarretaria um sincretismo metodológico que obscureceria sua essência e diluiria
seus limites enquanto ciência autônoma. Por este motivo, a construção de uma nova
teoria à ciência do direito que lhe trouxesse novos contornos científicos, deixando à
parte tudo que não lhe fosse genuíno era encarada por Kelsen como algo mais do
conveniente; era uma exigência. Assim surge a teoria pura do direito. Teoria que o autor
define a partir dos seguintes termos (Kelsen, 1998; p. 1):
47
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do direito, isto significa
que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e
excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo
quanto não se possa, rigorosamente, determinar como direito. Quer isto dizer
que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são
estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental.
Em linhas gerais, a teoria pura de Hans Kelsen firma-se sobre uma concepção
abstrata que pressupõe a idéia segundo a qual o direito consistiria em um objeto
autônomo em relação à natureza e à sociedade. O direito encerraria normas, valores,
passíveis de transgressão e, como tal, em nada se equiparando às leis naturais que
regulam e condicionam o ambiente físico e social
33
. Neste sentido, ainda que seja um
objeto de estreitas relações com a realidade social e com a estrutura psicológica de seus
agentes – legisladores, magistrados e etc. -, o direito não se confundiria com a realidade
fática. Aqui, como destaca Miranda (1973), Kelsen valer-se-ia de Kant para
fundamentar a idéia de que o direito, enquanto valor, não diz respeito à dimensão do ser,
do sein, do plano material da realidade; ao contrário, diz respeito unicamente à esfera do
sollen, do dever ser, da dimensão abstrata e ideal em que se situam os valores. Sendo
assim, abordar o direito com base no estudo causal dos fatos sejam eles sociais,
políticos ou psicológicos – lhe parece um grande equívoco.
Com base nesta distinção fundamental, em que o direito e a realidade fática
situam-se em duas esferas particulares a do dever ser e a do ser, respectivamente -,
Kelsen deriva uma segunda distinção: a que põe de um lado a validade do direito, e, do
outro, sua eficácia. A eficácia, enquanto realização prática da norma jurídica – enquanto
aspecto próprio da esfera do ser -, não diz respeito ao estudo do direito. Aqui, o jurista
de Viena mobiliza o mesmo argumento, segundo o qual, sendo norma, o direito
pressupõe a possibilidade de não observância da conduta a que, enquanto dever ser,
33
Convém destacar aqui, que este é o argumento fundamental mobilizado pelo autor no sentido de
afirmar a autonomia da ciência do direito em relação às ciências naturais e às ciências sociais.
48
busca estatuir como obrigatória; frisando mais uma vez a particularidade deste objeto
frente aos fatos irresistíveis da realidade natural.
Para Hans Kelsen, caberia, pois, à ciência jurídica uma estrita observação da
validade das normas de direito. Com isto, quer dizer o aspecto de coerência gica,
textual, entre as diversas normas que compõem uma ordem jurídica mais abrangente. A
validade do direito, por conseguinte, em nada se relaciona com sua eficácia, com sua
vigência prática sobre a conduta dos indivíduos e grupos sociais, diz respeito ao fato de
ser coerente, de não encerrar contradições gicas entre o conjunto das normas que lhe
constituem. Deste ponto de vista, a ciência jurídica acaba por consistir em uma ciência
tipicamente formal, preocupada com a dimensão lógica da conexão entre símbolos de
linguagem. É a partir desta fundamentação, que Evaristo inicia suas críticas à teoria de
Kelsen, buscando contrapô-la a uma outra perspectiva sobre o direito.
(...) vê-se desde logo o logicismo abstrato e estéril a que Kelsen levou a
ciência jurídica. O objeto do estudo do jurista, como tal, se resume a deduzir
uma norma da outra, num trabalho analítico de construção, de
sistematização, de ordenação lógica destas mesmas normas, como alguém
que joga paciência com cartas.
(Moraes Filho, 1997; p. 208)
E nas linhas seguintes indagaria (idem):
Concordamos que a norma, constituída de um juízo hipotético se tal for
feito ou deixar de sê-lo, tal pena será aplicada constitui um dever ser, que
se interessa mais pela conduta futura dos homens; mas como negar-se a
importância de sua eficácia no momento e no meio para os quais foi
promulgada, afinal de contas?
Em contraposição a esta teoria pura de Hans Kelsen, Evaristo de Moraes Filho
formularia o que poderíamos denominar de uma “teoria social do direito”, ainda que tal
perspectiva não apareça literalmente sobre estes termos em sua produção. Questões
terminológicas à parte, seria esta teoria um aspecto primordial da sociologia do direito
49
de Evaristo de Moraes Filho, pois, encerraria as bases epistemológicas que a
sustentariam enquanto ciência autônoma, particular.
Enxergando a cultura humana como um todo complexo e interdependente,
Evaristo compreende os fenômenos jurídicos como fatos sociais que, a despeito de sua
especificidade funcional, não se distinguiria, em essência, dos demais fatos sociais que
constituem a sociedade em sua totalidade
34
. Conceituando o direito como “(...) um
comando que surge para a composição dos conflitos de interesses, necessária à
pacífica coexistência social.” (idem, p. 215), não deixaria de frisar Evaristo, assim
como propôs Durkheim (2003), o aspecto universal, exterior e coercitivo que, como fato
social, é constitutivo do direito. Porém, não se detém profundamente nestas
considerações. Ocupa-se Evaristo, prioritariamente, em firmar a compreensão de que é a
própria sociedade, e não o Estado, a responsável efetiva por sua existência e autoridade.
Por conseguinte, fazendo das palavras de Hermes Lima as suas, afirmaria o autor (Lima,
1935 apud Moraes Filho, 1997; p. 217):
O direito vai buscar a sua autoridade social não apenas na coerção do
Estado, mas principalmente na sociedade que deu lugar a que ele surgisse
como instrumento de comando e defesa da ordem em que nela se distribuem,
se possuem e se gozam os bens e as riquezas. Nem o direito nem a moral
existem fora da sociedade, mas dentro dela como manifestações da
consciência e da vontade de seres que traduzem em atos, em sistemas, em
elaborações doutrinárias, em princípios, as condições de vida em que
trabalham, ganham a vida e se organizam.
Aqui, revela-se uma outra dimensão do debate que Evaristo trava com Kelsen.
Desde sua Teoria geral do direito e do Estado, de 1911, procurou o jurista de Vienna
estabelecer uma indissociável relação entre o direito e o Estado, na qual este teria todas
as dimensões sociais e políticas que informam sua constituição anuladas em favor de
34
A este respeito, Evaristo seria explícito ao afirmar que (idem, p. 221): “(...) vive o direito – como fato e
como norma mergulhado na mesma ‘Gestalt’ cultural da sociedade ambiente. É simplesmente uma das
partes do todo grupal, das instituições sociais suas antecedentes, contemporâneas e conseqüentes (...)
Sofre o direito influências diretas da economia, da política, da moral e dos demais fatores sociais. Sofre,
e reage sobre os mesmos, exercendo então efeitos objetivamente observáveis, estruturando e controlando
a matéria social.”.
50
sua redução às normas autônomas e ideais daquele. Reconhecendo que toda
exteriorização da vida do Estado, todo ato do Estado, só pode aparecer como ato
jurídico seja de produção ou execução de normas -, Kelsen reduz o Estado a uma
soma de normas jurídicas e, conseqüentemente, elimina a política da teoria do Estado.
Neste sentido, sua teoria pura do direito seria, assim, responsável não somente por
“purificar” a ciência jurídica da influência das outras ciências, mas também, por instituir
uma “(...) teoria purificada de toda a ideologia política.” (Kelsen, 1998; p. XI).
Evaristo de Moraes Filho não se deixaria enganar pelo suposto “apoliticismo”
que se esconde atrás desta busca por neutralidade. Afirma que podia crer em tal
realização, quem ousara negar ao Estado a condição de realidade histórico-política.”
(Moraes Filho, 1997; p. 214); e, ademais, que “Mesmo nos representantes do ‘método
jurídico puro’, apesar de se julgarem apolíticos, é sempre fácil descobrir uma capa de
‘firmes conceitos políticos’ como base de suas investigações.” (idem). Assim, ciente do
aspecto ideológico subjacente à idéia de que o Estado encarna o único poder legítimo na
produção e aplicação das leis, isto é, de que o Estado detém o monopólio do direito,
Evaristo iria mobilizar um conceito de suma importância na conformação
epistemológica de sua sociologia jurídica: o conceito de pluralismo jurídico.
A relevância deste conceito deve-se ao fato de tornar inteligível o processo
mesmo de constituição social do direito. Ele denota a compreensão de que as
instituições sociais existentes no seio da sociedade consistem na base de constituição
dinâmica de um direito efetivo, real, paralelo aquele produzido e outorgado pelo
Estado. Evaristo entende as instituições sociais a partir de uma chave cognitiva aberta,
significando (...) um grupo, uma idéia ou conceito que lhe determina o fim e uma
organização permanente que realiza os propósitos para os quais foi constituída (idem,
p. 224). Neste sentido, procura estabelecer a idéia de que as instituições sociais, assim
51
definidas, consistem em ordens de poder legítimo de onde emanam os fatos sociais do
direito; fundados, tanto quanto o direito estatal, na exterioridade frente aos indivíduos e
no poder de coercitividade como mecanismo de vigência prática das normas que
buscam tornar obrigatórias. Daqui resulta a compreensão plural acerca do direito, pois,
sendo diversas as instituições que, em conjunto, constituem a ordem social mais
abrangente e nesta inclui-se também o Estado -, diversos serão também os comandos
jurídicos por elas instituídos. Com base nesta compreensão, Evaristo nega a convicção
dos teóricos formalistas - em especial, Hans Kelsen - que enxergam o Estado como a
única instituição legítima de produção e aplicação das normas jurídicas. Neste
particular, a própria experiência de Evaristo durante os sete anos em que secretariou as
Comissões Mistas de Conciliação do Ministério do Trabalho seria um importante
recurso de observação prática deste postulado teórico. Antecipando o que realizaria em
O problema do sindicato único no Brasil, Evaristo observaria nas contendas trabalhistas
instituições como empresas e sindicatos produzirem um direito efetivo, espontâneo e
independente do Estado.
costumes profissionais, acordos coletivos de trabalho, convenções
coletivas, regulamentos de empresa, que constituem um verdadeiro direito
espontâneo, não estatal que soluciona os conflitos de interesses surgidos
entre indivíduos ou grupos em choque. Há uma organização permanente que
dita as normas, sanções para quem não as cumpre. E que é isso, senão
autêntico fenômeno jurídico?
(idem, p. 220)
Mas, para além do conceito de pluralismo jurídico e da abertura cognitiva que
ele propicia, um último fundamento teórico seria capital para a sustentação
epistemológica da sociologia do direito que buscava formalizar. Tal fundamento, diz
respeito a uma concepção particular da relação entre fato e valor que desautorizaria um
dos principais argumentos da teoria jurídica de Kelsen. Lembra Evaristo, “(...) que os
formalistas [do direito] se esquecem de que os valores só se tornam perceptíveis quando
52
se encarnam nos fatos (objetos ou processos).” (idem, p. 208). Com esta enunciação,
Evaristo contrapõe a distinção kelseniana entre fato e valor, entre ser e dever ser,
postulando a unidade empírica, real, destas duas dimensões. Para Evaristo de Moraes
Filho o direito consiste exatamente na comunhão de fatos e valores. Afirmaria ele que
“Sem dúvida alguma não se pode construir uma sociologia jurídica sem levar em conta
o elemento valorativo ou normativo do direito” (idem, p. 214). Por isto mesmo, sua
sociologia do direito não necessita recorrer ao empiricismo vulgar, que rejeita os valores
como objetos de pesquisa, para fundamentar sua legitimidade enquanto ciência
particular. Ao contrário, sua eficácia científica resultaria exatamente do fundamento
teórico que incorpora os valores como aspectos constitutivos das normas, pois,
considera a ambos como elementos fáticos, objetivos. E o próprio autor justifica este
entendimento quando afirma (idem, p. 210):
Justamente aqui, por se considerar o valor atuando efetivamente no mundo
concreto, é que se deve criticar aquela concepção de La Piere de que tanto
relação jurídica ou conduta nomotética, na situação do assaltante que
rouba um viajante, como no policial que o persegue em nome da sociedade e
o prende. Exteriormente, objetivamente, parecem, a princípio, idênticas as
duas condutas, mas não o são. A sociologia do direito não despreza a
existência do valor no conceito de direito, por isso mesmo distingue, no
mundo real, aquelas duas situações. A diferente relação dos dois atos no
mundo dos valores provoca diferenças conceituais profundas na reação do
corpo social.
Apesar de na passagem acima Evaristo referir-se a um suposto “mundo dos
valores”, tal assertiva não passa de uma força de expressão corriqueira. Em sua
sociologia jurídica, ao contrário, trabalha-se com a idéia de que os valores, enquanto
valores, não se situam em uma esfera abstrata distante da realidade, mas sim que são
elementos objetivos de causalidade sobre o meio social e, como tal, objetos perceptíveis
à mensuração em função dos efeitos práticos que desencadeiam. Em se tratando do
direito, os valores que lhe informam tornar-se-iam existentes, fáticos, tanto no momento
53
de seu surgimento enquanto letra expressa, quanto no momento de sua efetiva
realização; entendendo por isto sua eficácia sobre a conduta de indivíduos e grupos
inseridos na sociedade. Este não seria um elemento menor na configuração teórica da
sociologia jurídica de Evaristo, ao revés, consiste em um princípio epistemológico
essencial, pois, conforme esclarece o autor (idem, p. 209; nota 313):
É justamente nessa interseção do valor jurídico com a realidade social que a
sociologia consegue surpreender o direito em sua vigência fática, com
conteúdo concreto, perdido entre os demais fatos sociais, controlando-os e
sendo por eles condicionado (...) é que se torna passível de ser explicado
pela sociologia como qualquer fato social. Na vida humana em sociedade,
quase arriscaríamos dizer que ‘realidade’ e ‘valor’ fazem um só.
Com base nestes princípios teóricos, a sociologia do direito de Evaristo se
constitui em um sentido radicalmente distinto da ciência jurídica proposta por Kelsen.
Na teoria pura do jurista de Viena, o direito não é encarado enquanto monopólio do
Estado como com ele se confunde integralmente; ademais, surge como objeto de
conhecimento ideal e essencialmente distinto da concretude do mundo social. Na
perspectiva sociológico-jurídica do intelectual carioca, seus princípios epistemológicos
delimitam a compreensão do direito como um objeto empírico, plural, e diretamente
relacionado com a realidade social mais abrangente em que está inserido.
A sociologia do direito encara os fatos jurídicos como fatos sociais,
relaciona-os com os demais fatos sociais. Coloca-os dinamicamente no
conjunto de toda a organização social, sem isolá-los criticamente como fatos
jurídicos específicos (...) Pode aceitar a noção de direito da ciência jurídica
dogmático-lógica, pode admitir as doutrinas jurídicas, mas observa os
efeitos sociais que as mesmas produzem. Interessa-lhe o comportamento
objetivo dos homens em sua vida prática de interação, de interrelação,
interhumana, em suma. Admite a sociologia jurídica um pluralismo de
fontes do direito, segundo os diversos ordenamentos jurídicos. Pesquisa a
sociologia jurídica os fatos sociais em que se manifeste o fenômeno jurídico.
(idem, p. 224)
54
Tratar-se-ia, pois, de uma ciência nova, fundada sobre o método empírico-causal
e voltada a explicar “(...) como é e onde é que se realiza concretamente o fenômeno
jurídico em sociedade.” (idem, p. 211). Mas, convém frisar, não adota Evaristo o
sentido “imperialista”, “sociologista” que muitos sociólogos do direito procuram
conferir a tal ciência, como nos lembra Machado Neto (1969). Ilustrativamente, a
posição de Evaristo pode ser enquadrada como um meio termo entre aquelas que
caracterizam a perspectiva de Kelsen e a do jurista austríaco Eugen Ehrlich. Como Max
Weber, e vimos isto na abertura desta seção, Evaristo de Moraes Filho na sociologia
do direito um campo científico conciliatório entre ambas as áreas. Mais do que isto,
entendendo o direito como um fenômeno extremamente complexo defenderia uma
abordagem multidisciplinar sobre este objeto, convicto da relevância a que podem
prestar ao seu entendimento não somente a sociologia do direito, como também a
filosofia e a ciência jurídicas.
A verdadeira sociologia do direito, como disciplina própria que luta por um
lugar ao sol, não nega existência autônoma à teoria dogmática do direito,
nem muito menos à filosofia do direito. Nenhuma delas poderá,
isoladamente, abranger o fenômeno jurídico por todos os lados; mas
somente as três juntas poderão por certo alcançar maior êxito nos seus
propósitos.
(idem, p. IX)
Enquanto à filosofia do direito caberia a reflexão acerca dos fins e valores gerais
que informam as normas jurídicas - tais como, os ideais de segurança, justiça, ordem e
moralidade -, à ciência jurídica, com seu método lógico-normativo, cumpriria zelar pela
boa coerência dos textos legais. Seu papel estaria mais ligado à sistematização das
normas, atuando diretamente pela redução das divergências interpretativas e, desta
forma, contribuindo para o aprofundamento da objetividade e universalidade do direito.
No que diz respeito à sociologia do direito, sua particularidade residiria em surpreender
55
os fenômenos jurídicos em sua vigência prática e objetiva, de forma que, “(...) é o
problema das suas origens de fato que lhe constitui, é o problema de sua eficiência
sobre o comportamento do homem comum que se levanta.” (idem, p. 218). Fundada,
pois, sobre o método empírico-causal, caberia a esta sociologia especial retirar o direito
de sua “torre de marfim”, como diria Evaristo, desvelando sua constituição a partir da
ação institucionalizada que os diversos grupos sociais estão em condições de realizar,
bem como o desdobramento objetivo desta constituição no meio social; ou seja, a
questão mesma da eficácia real das normas instituídas. Com base nesta orientação, a
sociologia jurídica seria dotada da qualidade de abordar criticamente o direito, tornando
inteligíveis os processos sociais concretos, e os interesses incidentes, que concorrem
para a institucionalização das diversas normas, além do impacto real que estas causam à
vida social.
Não obstante, se os princípios teóricos que informam os limites e a sustentação
epistemológica da nova ciência são expostos com clareza e consistência, O problema de
uma sociologia do direito não é uma obra que se caracteriza por definir de maneira
satisfatória os princípios metodológicos que orientam o fazer prático desta sociologia
especial. Esta pode ser, inclusive, uma das razões que explicam o pouco interesse
despertado por esta obra se comparada à outras do autor, como O problema do sindicato
único no Brasil e Introdução ao direito do trabalho
35
. Tal inconsistência, porém, não
resulta de qualquer limitação teórica pessoal que possa ser creditada a seu autor; resulta,
isto sim, das próprias dificuldades de sistematização que marcavam a nova
35
Como pode-se observar a partir do site da Biblioteca Virtual Evaristo de Moraes Filho, as obras do
autor renderam cinqüenta e cinco resenhas críticas publicadas por especialistas, editoras, revistas
especializadas, além de jornais de pequena e grande circulação. Trata-se de uma recepção cultural
inquestionável. No entanto, O problema de uma sociologia do direito é objeto de apenas uma destas
resenhas, sendo esta, ainda, a realizada pela Editora Freitas Bastos, que publicou o livro. Ademais, tal
resenha, datada de 1957, foi publicada apenas para compor o catálogo bibliográfico da editora produzido
naquele ano.
Endereço:
http://www.bvemf.ifcs.ufrj.br/producao.htm#resenhas
Acesso em: 20/04/09.
56
especialidade sociológica sobretudo, fora do Brasil - ainda em meados do século XX.
Como afirmaria Evaristo (idem, p. 223):
Ainda hoje (...) não é a sociologia do direito uma disciplina acabada,
totalmente construída. Antes, pelo contrário, trata-se de uma ciência em
formação, divergindo os seus fundadores em vários pontos fundamentais, a
começar pela sua problemática. Colocam uns em seu âmbito assuntos típicos
de outras disciplinas; tirando outros de seu campo matérias que lhe deviam
ser próprias.
Talvez sejam estas divergências teóricas, que em maior ou menor medida se
verificam no processo de formação de qualquer nova ciência, a explicação pela forma
como Evaristo constrói seu livro e, conseqüentemente, pela maneira sucinta com que
aborda a orientação metodológica e a problemática particular da sociologia jurídica.
Visando divulgar e ampliar o debate teórico em relação à sociologia do direito, bem
como atuar por uma presença mais efetiva da sociologia no campo propriamente
jurídico sobretudo no que diz respeito à formação intelectual dos futuros profissionais
-, Evaristo desenvolve uma obra em que, praticamente toda ela, consiste numa vasta
exposição de teorias. Dos quatro capítulos que lhe constituem, três são voltados à
apresentação da teoria sociológica com que trabalham, diferenciadamente, um extenso
conjunto de autores, e o quarto se detém mais especificamente na exposição de
concepções próprias ao campo da sociologia do direito. É apenas na conclusão da obra
que Evaristo apresenta suas considerações particulares acerca da nova ciência.
Aí, para além das proposições teóricas que abordamos nesta seção, em termos
metodológicos, o autor vai reafirmar o método empírico-causal como principal
metodologia a ser empregada nas pesquisas de orientação sociológico-jurídica, e, de
maneira coerente com princípio do pluralismo jurídico, vai ressaltar a necessidade de tal
ciência não ater-se exclusivamente ao que está contido na letra da lei. Neste sentido, a
sociologia jurídica deve trabalhar com base no direito efetivamente vigente, ou seja,
57
aquele que, estando ou não expresso oficialmente, obtém aplicação eficaz;
condicionando a conduta concreta dos homens em sociedade. Para tanto, documentos
nos quais se processam operações jurídicas sem que o Estado ou os tribunais tomem
conhecimento não devem ser ignorados pela sociologia do direito, ao contrário, devem
ser por ela privilegiados em sua busca por apreender e explicar como e onde, de fato, se
realiza o direito.
Em relação ao problema específico da nova disciplina, que apesar de consistir no
objeto fundamental da obra – como demonstra o título mesmo do livro -, Evaristo
também não apresenta considerações com a profundidade necessária para que se
promova uma definição mais completa, em pormenores, sobre o sentido pelo qual
devem se orientar as pesquisas em seu âmbito. Limita-se o autor, a delimitar três
orientações de investigação que, a despeito da independência relativa entre elas,
concorrem para conformar, em conjunto, a problemática particular da sociologia do
direito segundo Evaristo de Moraes Filho. A primeira destas seria, pois, a busca por
estabelecer as relações existentes entre a “normalidade social e a normatividade
jurídica” (idem, p. 214). Com isto, o autor procura evidenciar a necessidade de a
sociologia do direito captar os processos nos quais as regularidades da vida social atuam
como condição para o estabelecimento de um fluxo dinâmico de constituição e
institucionalização de normas jurídicas, tendo em vista que,
Nem toda norma jurídica é imposta como um dever ser, que pretenda mudar
a conduta do homem em sociedade, determinando-lhe outra forma de agir.
Muitas vezes, limita-se o legislador a captar no fluxo social os principia
media da conduta social, a orientação normal do comportamento coletivo, as
bases desse procedimento, e as sanciona em lei.
(idem)
Mas pondera o autor (idem, p. 215):
58
(...) não basta a simples sanção do poder competente, com todo o seu
cerimonial formalista, para que a norma passe a ser cumprida. Fica de
ainda o problema de sua eficácia real, quais os efeitos efetivos que irá ter na
vida prática da sociedade como regra das relações humanas.
Daqui resulta, por conseguinte, a segunda orientação de pesquisa com a qual
deve trabalhar a sociologia do direito, isto é, compreender o impacto efetivo das leis
sobre a conduta real dos indivíduos e grupos sociais. Como vimos anteriormente, a
conduta prática dos homens é o que lhe interessa decisivamente, de forma que, a
apreensão da eficácia jurídica, bem como, de sua real extensão sobre a vida prática da
sociedade consiste em um de seus objetivos científicos primordiais.
Por outro lado, não sendo o direito um fato social isolado, mas ao contrário, em
estreita conexão com outras dimensões da realidade social, Evaristo atribuiria como
terceira orientação para pesquisas sociológico-jurídicas a necessidade (...) de estudá-lo
em suas relações com os demais fatores da cultura humana e em suas funções dentro
dessa mesma cultura.” (idem, p. 221).
Apesar da ausência de considerações mais detidas acerca destas três orientações
na sistematização científica formulada por Evaristo, importa considerar, no entanto, que
sua reunião responde pela conformação de uma problemática teórica de grande
amplitude à sociologia jurídica; tornando-a um poderoso instrumento de compreensão
objetiva do direito. Uma rápida análise sobre o objetivo particular que cada uma destas
orientações encerra é suficiente para concluirmos sobre a abrangência com que Evaristo
confiou à sociologia do direito a elucidação dos fenômenos jurídicos. De acordo com
sua concepção, esta sociologia especial poderia, assim, surpreender o direito no
momento de seu surgimento observando os processos existentes entre a normalidade
social e a normatividade jurídica -, após seu surgimento (a eficácia real que possui sobre
as condutas), e, ademais, em suas relações com as outras esferas da sociedade tais
como, a política e a economia, dentre outras.
59
Neste sentido, mesmo apresentando algumas insuficiências teóricas importantes
no trato da matéria em questão, O problema de uma sociologia do direito é uma obra
valiosíssima para aqueles que pretendem contribuir para uma melhor compreensão da
produção intelectual de Evaristo de Moraes Filho. Em nenhum outro escrito seu, os
fundamentos constitutivos de uma sociologia do direito, que teriam papel tão destacado
em sua produção, seriam apresentados de forma mais intensa. Ademais, as limitações
teóricas que a obra traz consigo contrastam profundamente com o grande alcance que os
princípios sociológico-jurídicos experimentam quando são mobilizados por Evaristo de
Moraes Filho como recursos de análise para o desenvolvimento de pesquisa empírica.
Como veremos a seguir, em O problema do sindicato único no Brasil, as considerações
teóricas que expõe em seu livro de 1950 seriam a base pela qual Evaristo consegue
surpreender sociologicamente o processo de constituição do direito do trabalho no
Brasil, tendo em perspectiva a relevância que tiveram os sindicatos de trabalhadores
enquanto instituições sociais na construção desta legislação. Fundada sobre os
princípios da sociologia jurídica, portanto, a pesquisa de Evaristo de Moraes Filho seria
responsável por situá-lo em uma posição de singularidade tanto no que diz respeito ao
que se produzia no campo jurídico nacional sobre nosso direito do trabalho, quanto na
seara da sociologia, onde o autor aponta para preocupações marcadamente distintas das
que estavam envolvidos os sociólogos de sua época, trazendo, assim, uma compreensão
inteiramente nova sobre a sociedade brasileira. Vejamos, então, como isto ocorre.
60
CAPÍTULO 2
O PROBLEMA DO SINDICATO ÚNICO NO BRASIL: UMA
SOCIOLOGIA DO DIREITO DO TRABALHO
O problema do sindicato único no Brasil vem a público em um momento no
mínimo interessante da história do país. E não é sem consciência disto que Evaristo
decide publicar seu livro, ao contrário, o faz exatamente para influir no rumo dos
acontecimentos políticos que se abriam no início dos anos 1950. Não havia muito, o
Brasil conhecia sua quarta Constituição Federal desde o advento da República em 1889,
trazendo nova feição às instituições políticas e ao ordenamento econômico e social da
nação. A Carta Magna de 1946 consistia, assim, num marco claro e decisivo de resgate
da tradição liberal-democrática brasileira, pondo fim à longa noite que se abrira em
novembro de 1937 quando um golpe militar instaurava o ditatorial regime do Estado
Novo. Por conseguinte, era igualmente o fim do período de vigência da Constituição de
1937, e, com sua revogação, questões anteriormente tidas como estratégicas estavam
novamente postas ao debate público que a sociedade estava em condições de realizar.
Entre estas, adquire importância fundamental para Evaristo a questão da
regulamentação sindical. A este respeito, a nova Constituição Federal conhecida pela
nação em 1946 abria espaço para uma profunda alteração do marco legal em que se
assentava o sindicalismo brasileiro até então. Em seu artigo 159, que trata da matéria,
procurava-se romper com a extrema centralização sobre os sindicatos levada a cabo pelo
Executivo durante o período estadonovista, no entanto, de uma maneira um tanto quanto
tímida. Seu texto estabelecia a mais ampla liberdade ao exercício da atividade sindical,
mas, eximindo-se de maiores responsabilidades, transferia ao legislador ordinário a
61
tarefa de regulamentar a forma de constituição destas organizações, bem como outros
pontos importantes relativos à matéria
36
.
Assim, mesmo em 1950 ano em que Evaristo redige o livro em questão
37
o
Congresso Nacional ainda não havia apresentado uma nova lei regulamentar sobre a
matéria e, desta forma, continuava vigente em nosso direito positivo, mesmo após a
revogação da Carta de 37, o disposto no decreto-lei 1.402, de 5 de julho de 1939
posteriormente incorporado à CLT –, que regulamentava a sindicalização no Brasil
animado pelo espírito conservador e autoritário dos tempos da ditadura chefiada por
Getúlio Vargas. Com ele continuava vigente, por conseguinte, toda a rie de restrições
ao funcionamento autônomo dos sindicatos, tais como a possibilidade de intervenção
federal nas direções sindicais, o mais completo controle sobre as eleições para a
composição de diretorias – incluindo a possibilidade de tornar nulas inscrições de
chapas em que os candidatos fossem considerados suspeitos de ideologia contrária ao
regime – além, é claro, do procedimento mesmo de reconhecimento legal das entidades,
e do estabelecimento do imposto sindical.
Tais medidas marcavam um controle estatal minucioso sobre a vida das
organizações sindicais, tendo no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio seu
principal órgão de fiscalização”. Como apresenta Evaristo, o 1.402 conferia amplos
poderes a este ministério; passando a controlar toda a vida sindical do país, pois, a ele
cabia determinar tudo o que lhe dissesse respeito. Orientação política que, aliás,
36
Segundo apresenta Evaristo, esta foi a redação dada ao art. 159 da Constituição de 1946 (1978, p. 274):
“É livre a associação profissional ou sindical, sendo reguladas por lei a forma de sua constituição, a sua
representação legal nas convenções coletivas de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder
público.”. Apenas como esclarecimento, convém destacar que trabalhamos aqui com a segunda edição de
O problema do sindicato único no Brasil. Seus fundamentos sociológicos, publicado em 1978 pela
Editora Alfa-Ômega.
37
O problema do sindicato único no Brasil, importa salientar, é publicado pela primeira vez em 1952, no
entanto, sua redação propriamente dita data do primeiro semestre de 1950, segundo informa Gomes
(2005). Ademais, o próprio Evaristo de Moraes Filho confirma esta informação ao afirmar no posfácio
que acompanha sua segunda edição de 1978, que no período em que redigia o livro “Encontrava-se no
poder o antigo condestável do Estado Novo, General Eurico Gaspar Dutra, vendo transcorrer o último
ano de seu mandato [1950] (Moraes Filho, 1978; p. 323).
62
figuraria explícita na própria exposição de motivos apresentada pela comissão
responsável pela elaboração do decreto-lei, onde pode-se ler com todas as letras a
seguinte passagem (MTIC, 1939 apud Moraes Filho, 1978, p. 259): “Com a instituição
deste registro, toda a vida das associações profissionais passará a gravitar em torno do
Ministério do Trabalho: nele nascerão, com ele crescerão, ao lado dele se
desenvolverão, nele se extinguirão.”.
É contra este estado de coisas, ainda presente no ordenamento democrático pós-
45, que se levanta Evaristo em O problema do sindicato único no Brasil. Sua questão
fundamental era, portanto, a incompatibilidade existente entre a recente vida
democrática do país com uma regulamentação marcada pelo intervencionismo e o
atrelamento das organizações sindicais ao Estado
38
. Neste sentido, ao passo que o autor
saía em defesa da manutenção do critério da unicidade - que constava do 1.402 -
como o modelo mais adequado para o sindicalismo no Brasil
39
, lançava mão de uma
crítica intransigente acerca da permanência da estrutura sindical desenvolvida ainda no
período anterior.
38
Em entrevista a José Sérgio Leite Lopes, Evaristo de Moraes Filho tornaria manifesta a relevância desta
questão para a sua obra. Perguntado sobre o porquê da publicação do livro, sobre o caráter oportuno de
seu lançamento, responderia taxativamente Evaristo (2005; p. 191): “Foi porque ainda estava em vigor a
Constituição de 46, e estando ela em vigor, como é que s tínhamos ainda o imposto sindical? Como é
que tínhamos ainda a intervenção sindical? (...) lutei contra o imposto sindical, contra a intervenção
sindical, o atestado negativo de ideologia, e a favor da liberdade e autonomia sindical. De modo que
publiquei o livro com essa intenção.”.
39
Evaristo de Moraes Filho é um árduo defensor da unicidade como princípio jurídico da organização
sindical brasileira, o que se verifica pelo próprio título de sua obra. Para ele, é com apenas uma
organização sindical para cada categoria profissional, que tais instituições encontrariam as condições
ótimas para envolver completamente a profissão e, pois, constituirem-se em instrumentos eficazes de
associação dos indivíduos que a exercem. Em sentido contrário, a existência de duas ou mais
organizações sindicais representaria um mecanismo de dispersão e, por conseguinte, de enfraquecimento
da categoria profissional. Ademais, este princípio da pluralidade tornaria muito difícil a tarefa mesma de
representação dos interesses profissionais, pois, de acordo com o autor, abrir-se-ia a possibilidade real de
cada instituição mover-se por inclinações distintas ou a mesmo antagônicas. É o que se verifica
claramente quando afirma (idem, p. 156): “Num regime de pluralidade absoluta, como pleiteiam os seus
adeptos, viveríamos num verdadeiro inferno de confusão social, com prejuízo da própria profissão,
fracionada e dividida entre associações dissidentes e até mesmo opostas em seus pontos de vista, cada
uma controlada, talvez, por outros organismos mais fortes: uma igreja, um partido político, o patronato,
o próprio Estado...”.
63
Porém, importa considerar que, se de um lado a abertura política consistia num
momento histórico oportuno ao empreendimento de uma revisão crítica do Estado Novo
e de sua estrutura sindical corporativa fornecendo as bases para a proposta de um
novo marco legal para a questão sindical brasileira -, de outro lado, esta crítica teria
necessariamente que se defrontar com a força simbólica da ideologia oficial
desenvolvida durante os anos de vigência daquele regime, e que, ainda imponente
àquela época, tinha por intenção fazer de Getúlio Vargas o principal responsável pelo
estabelecimento dos direitos sociais no Brasil
40
.
Tratava-se, pois, do chamado “mito da outorga”, que procurava estabelecer
tábula rasa sobre a experiência sócio-jurídica vivida pela sociedade brasileira em
relação à fixação e oficialização de direitos coletivos no período anterior à Revolução
de 30. Tal “mito” dizia respeito, portanto, a uma construção ideológica que se centrava
na afirmação do caráter passivo do operariado nacional durante a Primeira República,
negando todo o histórico de lutas do movimento operário brasileiro neste período, de
forma que, as diversas garantias sociais alcançadas no após-30 como a Justiça do
Trabalho, a CLT, os Institutos de Previdência e etc. – seriam obras exclusivas do
Estado, por intermédio daquele que seria o “pai dos pobres”. À classe trabalhadora não
teria cabido nenhum papel neste processo, sendo tais garantias nada mais do que uma
benesse, uma dádiva, uma simples outorga realizada de bom grado pelo Executivo.
Criticar a permanência da estrutura sindical remanescente do Estado Novo tinha
como condição, portanto, o empreendimento de uma desmistificação satisfatória desta
construção ideológica. Assim é que Evaristo constrói sua obra, ou seja, como uma
40
Sobre isto ver, entre outros, Gomes (1994) e Codato & Guandalini Jr. (2003).
64
resposta franca e direta ao “mito da outorga”, que, segundo Evaristo, seria de
responsabilidade do jurista paulistano, Antônio Cesarino Júnior.
41
.
É, pois, em contraposição ao positivismo jurídico que encerra o mito edificado
por Cesarino Júnior e não especificamente a partir de um debate direto com este autor
-, que a sociologia do direito de Evaristo apresentaria toda a sua eficácia. Com base nos
postulados fundamentais desta sociologia especial, o jurista e sociólogo carioca extrairia
uma nova concepção acerca da gênese e desenvolvimento de nossos direitos
trabalhistas, demonstrando o caráter falacioso do discurso que afirmava que “A
legislação social no Brasil começou decididamente após a Revolução de 1930.”
(Cesarino Jr., 1970; p. 79).
Este, afinal, o sentido último deste nosso capítulo. De maneira geral,
procuraremos demonstrar como a sociologia jurídica consiste em um conhecimento
fundamental de que Evaristo lançaria mão nesta sua orientação intelectual
eminentemente crítica. Em sua segunda seção, nos ocuparemos em apresentar como o
autor remonta ao período de nossa Primeira República para fundamentar sua convicção
acerca da natureza propriamente social do direito do trabalho brasileiro. Aí, nossa
intenção consiste em expor como Evaristo traz à tona o papel dos sindicatos de
trabalhadores além de outros sujeitos sociais, como parlamentares e intelectuais
enquanto protagonistas desta construção legislativa particular. Buscamos, assim,
desvelar como os postulados próprios da sociologia jurídica de Evaristo o conduz a uma
bem sucedida negação daquela ideologia que procurava firmar o monopólio do Estado
41
Como revelaria Evaristo em mais de uma ocasião, O problema do sindicato único no Brasil, teria
consistido em uma resposta à dogmática do direito social formulada por Antônio Cesarino Júnior. A
passagem mais clara onde Evaristo expõe esta orientação de contrapor-se a tal jurista se encontra em uma
entrevista por ele prestada ao “Jornal do Brasil”, em 2002, por ocasião dos cinqüenta anos de publicação
do livro. Ali, pode se ler a seguinte afirmação (Costa, 2002; p. 3): “A finalidade desse livro era acabar
com o mito da outorga. Havia em São Paulo um professor chamado Cesarino Júnior, que, durante o
Estado Novo, bajulava o Getúlio Vargas, dizendo que ele outorgou a legislação trabalhista brasileira,
como se ela tivesse sido espontânea e vindo de cima para baixo, do Estado para o povo. Com isso, criou-
se o mito da outorga. Ora, eu sabia que a história não era bem assim.”. A mesma orientação foi também
mencionada pelo autor ao prestar depoimento recente para Gomes, Morel e Pessanha (2007).
65
(Novo) sobre a existência de tais direitos no Brasil. Antes, porém, na primeira seção que
adiante se segue, procuramos subsidiar esta compreensão a partir de uma abordagem
centrada na dimensão teórico-metodológica da obra de Evaristo. Buscamos com isto
salientar como a sociologia jurídica, enquanto sociologia especial, é inserida
praticamente na análise empreendida pelo autor, isto é, como se relaciona com a
concepção sociológica mais geral de que partilha Evaristo, como influencia a orientação
geral e a metodologia empregada no livro, bem como a relevância de postulados que lhe
são próprios - como a relação entre normalidade social e normartividade jurídica, o
princípio do pluralismo jurídico e outros para a organização teórica da obra. Nossa
intenção é trazer uma compreensão distinta acerca de O problema do sindicato único no
Brasil, ou seja, a de que o livro encerra uma autêntica sociologia jurídica aplicada ao
direito do trabalho no Brasil, e, como tal, responsável pelo estabelecimento de uma
nova compreensão no tocante à nese e evolução deste ramo do direito por aqui. Uma
compreensão que devolve à sociedade o seu papel genuíno de protagonizar o
surgimento e oficialização de fenômenos jurídicos.
2.1 Aspectos teórico-metodológicos de O problema do sindicato único
no Brasil
Uma das primeiras características que salta aos olhos quando procedemos a uma
leitura de O problema do sindicato único no Brasil diz respeito a sua densidade, tendo
em vista a integração coerente de conhecimentos produzidos em distintas áreas do saber
científico que se verifica em sua constituição teórica. Por este motivo, a teoria que lhe
encerra sempre tornou tarefa difícil o estabelecimento de uma definição consensual
66
acerca de sua localização nas ciências sociais. Paulo Sérgio Pinheiro, no prefácio que
escreve à sua segunda edição de 1978, o definiria como uma obra pioneira da sociologia
do trabalho no Brasil; posição acompanhada de perto por José Sérgio Leite Lopes em
publicação de 2005. Outros como Villas Bôas (2006) observam o livro pelo ângulo da
teoria social, ou seja, como uma interpretação sociológica da sociedade brasileira.
Ademais, o próprio Evaristo de Moraes Filho não apresentaria uma definição precisa
sobre a obra. No prefácio à primeira edição, o autor a qualifica enquanto uma obra de
sociologia industrial, mas, em 2002, por ocasião da referida entrevista que prestou ao
“Jornal do Brasil” em função dos cinqüenta anos de publicação do livro, afirmaria se
tratar da primeira obra de história social do país. Sem qualquer intenção de polemizar
com estas interpretações, sobretudo àquelas professadas pelo próprio autor, entendemos
que O problema do sindicato único no Brasil compreende, de alguma forma, todos estes
“regionalismos científicos”, no entanto, ressaltamos aqui uma compreensão distinta: a
de que o livro encerra uma autêntica sociologia do direito; uma “sociologia do direito do
trabalho”.
Alguns elementos vêm reforçar esta nossa interpretação. Em primeiro lugar,
devemos considerar seu forte envolvimento profissional com a sociologia jurídica e o
direito do trabalho no início dos anos 1950. Com isto, queremos salientar não somente a
edição de sua obra sobre a sociologia jurídica ou suas atividades como procurador da
Justiça do trabalho. Buscamos chamar atenção para o fato de que, no ano mesmo em
que publica O problema do sindicato único no Brasil 1952 -, Evaristo dividia-se em
atividades docentes relativas a estas duas áreas do conhecimento. Neste sentido, ao
passo que lecionava a disciplina direito do trabalho em um curso gratuito promovido
pelo Ministério do Trabalho a partir daquele ano
42
, o autor ministrava também um curso
42
O curso em questão era denominado Curso de Direito Social. Ao lado de Evaristo de Moraes Filho,
outros juristas que integravam o MTIC também lecionavam no curso. Casos de Geraldo Bezerra de
67
de extensão universitária em sociologia do direito no âmbito da Universidade do Brasil
(Gomes; Morel; Pessanha, 2007). Por conseguinte, do ponto de vista de sua biografia
profissional, não é uma hipótese descabida considerar o livro que publica nesta época
como uma obra que reúne estas duas áreas; ao contrário, vem tornar esta hipótese algo
plausível.
Não obstante, decisivo mesmo para este entendimento seria a própria
conformação teórico-metodológica da obra, onde os princípios sociológico-jurídicos
definidos e apresentados em O problema de uma sociologia do direito aqui têm grande
participação. Assim sendo, pensamos que entre seu livro de 1950 e este de 1952
existiria, portanto, mais do que uma semelhança de nomes; haveria entre eles uma
relação teórica direta, na qual a sociologia do direito figuraria como um verdadeiro fio
condutor. Aliás, não se trata de nenhuma novidade o reconhecimento desta vinculação
teórica entre ambas as obras. Outros pesquisadores como Pessanha (2005) haviam
considerado esta relação; e Antônio Carlos de Moraes seria preciso nesta consideração
ao abordar a relação entre a sociologia e o direito na produção intelectual de Evaristo.
Dois anos antes [de O problema do sindicato único no Brasil] havia
apresentado em O problema de uma sociologia do direito todos os
fundamentos teóricos de unidade dessas ciências, mas foi no livro relativo
ao sindicato que [Evaristo] tornou prático todo o seu pensamento e, em
especial, aplicando-o à realidade nacional, cuja história oficial muitas vezes
falseia os fatos.
(Moraes, 2005; p. 120).
Ademais, o próprio Evaristo tornaria manifesta esta vinculação quando, no
prefácio mesmo da obra de 1952, ao apresentar suas considerações gerais sobre o livro,
Meneses, professor de processo trabalhista; Délio Maranhão, professor de contrato individual; Jorge
Severiano Ribeiro, professor de direito penal do trabalho; Dorval Lacerda, professor de contrato coletivo;
e outros (Gomes; Morel; Pessanha, 2007).
68
torna patente a presença marcante de prerrogativas próprias à sociologia jurídica no
enquadramento teórico de seu objeto.
Em verdade, sendo um produto social, misto de fato e de valor, não escapa o
fenômeno sindical à ação consciente e voluntária do homem. Ao lado de sua
realidade fática apresenta também manifestações referentes a valores.
Contudo, nunca será demais procurar-se saber, antes, o que é normal, para
então depois acrescentar-se-lhe o normativo. Ambos se completam e se
misturam, mas este último aspecto terá tanto mais vigência e validade,
quanto mais coerente estiver com o primeiro. Procuramos, assim, fazer neste
nosso ensaio uma tentativa embora ligeira de aproximação dos dados
sindicais proporcionados pela sociologia e pela economia com os fins a que
se propõem o direito e a prática (...) Quase sempre, param os sociólogos na
simples exemplificação dos sindicatos como grupos econômicos,
ocupacionais ou de interesses, sem se demorarem especificamente no
assunto. O mesmo ocorre com os juristas, que, como é óbvio, se preocupam
em geral unicamente com o aspecto legislativo da questão. Faltava unir as
duas maneiras de se encarar a mesma realidade social.
(Moraes Filho, 1978; p. 8)
43
Como se vê, é fato notório a vinculação existente entre as obras publicadas por
Evaristo de Moraes Filho em 1950 e 1952, bem como a conseqüente orientação
sociológico-jurídica que viria caracterizar sua análise sobre a constituição de nossa
legislação trabalhista. Contudo, sendo explícita esta orientação sociológico-jurídica
sobre a pesquisa publicada em 1952, não importa aos nossos propósitos perguntar se ela
realmente ocorreu. Se assim o fizéssemos, seríamos apenas repetitivos em relação ao
que afirmaram outros pesquisadores além do próprio Evaristo e, portanto, nada
acrescentaríamos de novo ao entendimento da produção intelectual do autor. Importa,
isto sim, apreender como tal orientação efetivamente se apresentou, como se estabeleceu
praticamente na configuração analítica empreendida por ele.
Aqui, precisamos considerar, fundamentalmente, a natureza específica da
relação teórica entre a sociologia geral e as sociologias especiais que Evaristo
43
Grifos no original.
69
desenvolve ainda em O problema de uma sociologia do direito, pois, é com base nesta
relação que poderemos apreender de forma mais precisa o sentido em que se insere
praticamente a sociologia do direito no esquema teórico e metodológico de O problema
do sindicato único no Brasil.
Antes de qualquer coisa, é importante termos em conta que esta relação entre a
sociologia geral e as sociologias especiais de que se ocupa Evaristo ainda em O
problema de uma sociologia do direito, não se trata de uma formulação arbitrária. Em
verdade, Evaristo de Moraes Filho acompanha o pensamento de sua época e, por
conseguinte, propõe tal relação a partir das transformações mesmas que se fizeram
sentir sobre a teoria do conhecimento sociológico, especialmente a partir do início do
século XX. Aí, ao invés de uma sociologia de teor enciclopédico e evolucionista – como
em Comte ou Spencer -, que a toda a humanidade queria abarcar e que,
conseqüentemente, acima de todas as ciências sociais particulares queria se elevar, o
que se verifica é a edificação de uma sociologia que se pretende “modesta e realista”
(Moraes Filho, 1997; p. 111). Uma sociologia que compreende e aceita a complexidade
da vida social e que, por isso mesmo, se especializa cada vez mais tendo em vista
surpreender os processos e as relações sociais concretas que têm lugar em cada esfera da
realidade social, ou como prefere Evaristo, em cada campo de cultura específico tais
como a política, a economia, o direito, as artes, etc.
Por conseguinte, ao invés de uma sociologia geral com pretensões de ciência
única do social, como propusera Augusto Comte, o crescente número de sociologias
especiais ao longo do século XX vem contribuir para uma redefinição de suas
características. Para Evaristo de Moraes Filho, a sociologia geral torna-se uma ciência
de contornos tipicamente formais. Seu papel consiste agora em abstrair do resultado
empírico alcançado pelas sociologias especiais, as regularidades das formas e processos
70
de que se revestem as relações sociais; buscando, com isto, sistematizar e generalizar os
casos típicos que, em conjunto, definem o padrão de interação entre os homens.
(...) realiza a sociologia [geral], através dos resultados adquiridos pelas
sociologias especiais, o seu papel de sistematizadora dessas relações
recíprocas que se dão incessantemente entre os diversos fatos da vida social
humana (...) Compete-lhe abstrair dos conteúdos empíricos, brutos, dos
acontecimentos econômicos, históricos, jurídicos, políticos e assim por
diante, os casos típicos, os processos e as formas mais ou menos uniformes
de interação humana.
(idem, pp. 117-118)
Não obstante, a relação entre a sociologia geral e as sociologias especiais não se
exclusivamente no sentido abordado acima. Segundo Evaristo, esta é uma relação de
“mão dupla”, onde as abstrações teóricas proporcionadas pela sociologia geral também
subsidiam a produção das pesquisas empíricas levadas a cabo pelas sociologias
especiais. Neste sentido, procuram as sociologias especiais, em conjunto com as
ciências sociais particulares que lhe sejam correlatas, apreender “(...) as maneiras
específicas como se encarnam os processos e as formas abstratas” (idem). Tem lugar
no pensamento de Evaristo, portanto, uma vinculação direta entre estas duas dimensões
do conhecimento sociológico; uma vinculação que se estabelece a partir da constante
troca de conteúdos que realizam.
De um lado, a sociologia geral, voltada para a generalização e sistematização
teórica dos resultados empíricos alcançados pelas sociologias especiais, fornece a estas
o enquadramento teórico e os fundamentos conceituais necessários à orientação
propriamente sociológica das pesquisas empíricas que desenvolvem. De outro, as
sociologias especiais que, fundadas sobre o arcabouço teórico proporcionado pela
sociologia geral, produzem conhecimento novo e específico a respeito das diversas
formas assumidas pela interação do homem em sua existência social; contribuindo,
desta maneira, para que a sociologia geral abstraia daí os casos típicos responsáveis pelo
desenvolvimento de uma sempre renovada teoria geral dos princípios reguladores de
71
nossas relações sociais. Trata-se, por conseguinte, da existência de um círculo de
comunicação entre estas duas dimensões que as vinculam de tal maneira que, na
produção efetiva das abordagens sociológicas, tal vinculação assume a forma de uma
inextricável associação.
E é exatamente isso o que realiza Evaristo de Moraes Filho em O problema do
sindicato único no Brasil, onde a sociologia do direito enquanto sociologia especial
é inserida na configuração teórica do livro a partir de uma indissociável relação com a
teoria sociológica mais abrangente que reveste o pensamento do autor. Contudo, no que
diz respeito à orientação geral e à metodologia empregada na pesquisa, é possível
constatar, desde logo, que os fundamentos particulares da sociologia jurídica se fazem
sentir decisivamente. Em relação ao primeiro destes aspectos, convém ressaltar que a
diretriz fundamental por onde Evaristo desenvolve sua investigação condiz exatamente
com aquela orientação de pesquisa própria da sociologia do direito, segundo a qual a
normatividade jurídica deve ser compreendida com base na normalidade social ponto
que, como vimos em passagem transcrita páginas atrás, é mencionado pelo próprio
autor no prefácio da obra. Em relação à metodologia aplicada, o que se pode apreender
é que Evaristo apresenta uma observância completa do que propõe a sociologia jurídica
a este respeito. Por conseguinte, em sua busca por elucidar as relações existentes entre a
normalidade social e a normatividade jurídica, Evaristo de Moraes Filho lança mão de
uma análise que compreende tanto a legislação oficial do Estado onde, aliás, dezenas
de leis, decretos e constituições são observadas na qualidade de material empírico de
pesquisa -, como também um conjunto diversificado de outras fontes de onde se pode
captar as manifestações dos fenômenos jurídicos para além do direito estatal (resoluções
de congressos operários ou patronais, conferências, reportagens, boletins informativos,
discursos parlamentares e etc.).
72
Não obstante, se no que tange à orientação de pesquisa e à metodologia aplicada
os princípios da sociologia jurídica incidem com alguma autonomia, naquilo que pode
ser considerado como a substância, o conteúdo do trabalho – ou seja, a teorização
desenvolvida para apresentar, de maneira sistemática e coerente, os resultados obtidos
o que sucede é aquela mencionada associação entre a sociologia jurídica e a teoria
sociológica mais abrangente de que partilha o autor. Uma associação na qual os
postulados desta sociologia especial são incorporados numa teoria sociológica de cunho
universalista, que tem nos grupos sociais sua unidade básica de observação
44
. E é
partindo deste arranjo teórico que Evaristo encontra as condições para surpreender os
sindicatos no papel de instituições sociais responsáveis por profundas transformações
no mundo do direito; é, pois, a partir daí, que o autor apreende objetivamente a
normalidade social condicionar a normatividade jurídica.
Assim, coerente com o universalismo sociológico que orienta sua perspectiva, a
abordagem desenvolvida por Evaristo tem nos grupos sociais o centro de sua reflexão.
Entretanto, isto não se deve exclusivamente à questões de ordem metodológica. Para
ele, a própria capacidade de associação, de formação de grupos, é uma das
características essenciais da humanidade, um de seus fundamentos naturais. Neste
sentido, esforça-se no início de sua teorização em firmar a compreensão de que os
44
O universalismo que orienta a perspectiva sociológica de Evaristo consiste em uma forma de apreensão
da realidade que se caracteriza pela prevalência do todo sobre as partes. A este respeito, ensina Evaristo
que Tanto em metafísica, como em sociologia a tese do universalismo é a de que o caráter do todo, seja
do conjunto das coisas, seja dos homens, deve ser considerado como primordial em relação às unidades
isoladas.” (Moraes Filho, 1978; p. 71). Por conseguinte, em coerência com este postulado fundamental, a
sociologia de Evaristo, em sintonia com autores de tradição alemã como Leopold von Wiese, George
Simmel e outros, confere um espaço de centralidade ao conceito de “grupo social”. Trata-se, pois, de uma
sociologia que vai encontrar neste conceito a fundamentação teórica que permite superar o individualismo
sem, no entanto, cair no enciclopedismo sociológico que ambiciona traçar leis gerais para toda a
humanidade. Não por acaso, o capítulo que abre O problema do sindicato único no Brasil consiste numa
profunda revisão literária sobre o conceito de “grupo social”, no qual Evaristo, dotado de larga erudição
sobre o tema, procura demonstrar que a sociologia por ele considerada contemporânea se caracterizaria,
entre outros elementos, pela delimitação de sua abordagem sobre os grupos sociais. Estes encerrariam,
por conseguinte, sua unidade básica de observação científica.
73
sindicatos, assim como outras formas de agrupamento coletivo, consistem em
associações naturais, espontâneas
45
.
No entanto, preocupa-se o autor em esclarecer duas de suas características
específicas que os singularizam em relação aos demais grupos sociais. Em primeiro
lugar, destaca Evaristo que, apesar de sua espontaneidade, as organizações sindicais
ou associações profissionais não se formam de maneira apriorística, involuntária; ao
contrário, diferentemente dos grupos de parentesco, por exemplo, onde a vinculação do
indivíduo ao grupo se estabelece de maneira imediata, não intencional, no que diz
respeito aos sindicatos, o que lhe caracteriza é exatamente sua dimensão intencional
onde os indivíduos tornam-se membros pela consciência de que possuem interesses
comuns devido ao pertencimento mútuo a uma mesma profissão. Esta aparente
contradição envolvendo natureza e voluntarismo em relação aos sindicatos seria, pois,
resolvida teoricamente na abordagem de Evaristo pela dimensão natural que atribui ao
fenômeno econômico. Assim, apesar de se constituir como grupo voluntário, o sindicato
não perderia sua condição natural por dizer respeito a um fenômeno originado na esfera
da economia. Vale a citação.
(...) o que interessa fixar é que a profissão é um grupo social natural (...)
anterior a qualquer tentativa de regulamentação pelo direito. Fora dos
quadros jurídicos impostos pelo Estado, já se encontram funcionando na
vida econômica da nação as diversas maneiras do homem realizar a
produção, a distribuição, a circulação e o consumo dos bens. E assim como é
natural a existência deste grupo profissional, também o é a consciência de
que aproximados, coordenados, poderão todos os membros defender melhor
45
No que tange a esta questão, Evaristo de Moraes Filho recorreria ao trabalho de historiadores para
sustentar seu ponto de vista. De acordo com ele (idem, pp. 61-62): “Desde a mais recuada antiguidade,
segundo os historiadores das formas de realização do trabalho humano, constatam-se exemplos de
associações profissionais. Desta ou daquela natureza, dos tipos e espécies as mais diversas, de qualquer
modo ao lado da realização do trabalho sempre existiu um grupo associativo coordenador (...) lembra
Renard que no antigo Egito casos de greves que implicam numa reunião, embora provisória, de
homens ocupados em tarefas semelhantes (...) Mesmo entre os hebreus, no tempo de Salomão; entre os
gregos, desde a remota época de Sollon; em Roma, ainda sob o reino de Numa, permitem os velhos textos
entrever colégios de artesãos. Mas o que pretendemos focalizar não é a história da associação
profissional, e sim o fato da solidariedade espontânea que surge sempre entre os exercentes da mesma
ocupação.”.
74
os seus interesses, resistindo a interesses opostos e elevando mais alto o
nível econômico e social do seu grupo. A aglutinação da profissão em
associação, apesar de um fato consciente e voluntário, encontra suas bases
primeiras na própria natureza da operação econômica que realizam seus
exercentes. Os homens como que fazem apressar e ordenar aquilo que a
realidade já lhes sugeriu.
(idem, p. 60)
46
Da passagem acima pode-se entrever, ademais, a segunda característica das
associações profissionais que as distingue de outros grupos, em especial, do próprio
círculo profissional tomado em si mesmo. Segundo Evaristo, embora este consista em
um agrupamento coletivo real, ele se caracteriza, de certo modo, como um grupo difuso
e disperso, pois, o que lhe define exclusivamente a unidade é a igualdade ou semelhança
das ocupações em que estão envolvidos um conjunto maior ou menor de indivíduos. Por
outro lado, as associações profissionais dizem respeito a verdadeiras instituições sociais,
entendendo por isto (...) um grupo de pessoas, reunidas em torno de uma idéia, capaz
de realizá-la graças a uma organização permanente.” (idem, p. 65)
47
. Trata-se,
portanto, de algo mais do que um grupo social simplesmente. Trata-se de uma
instituição social, de um grupo permanentemente organizado, que tem por finalidade
elevar as condições de vida e de trabalho do grupo profissional que representa; idéia que
procura realizar, dentre outros elementos, por uma atuação direta pela afirmação e/ou
ampliação de direitos; construindo assim, autênticos fenômenos de natureza jurídica
48
.
É neste ponto que o princípio conceitual do pluralismo jurídico é inserido
logicamente na reflexão empreendida, dando contornos decisivos ao caráter
46
Grifos nossos.
47
Grifos no original.
48
No que tange a este ponto, afirma o autor (idem, p. 82): “Como grupos de atividade, que tendem a
envolver as profissões por todos os lados, procuram os sindicatos organizá-las, dar-lhes estrutura
própria, coesa, homogênea. Através de mais um expediente de fato ou jurídico greve, lock-out,
picketing, boycott, dissídio coletivo, convenção coletiva de trabalho, regulamentação de toda espécie,
assistência, cooperativas, previdência vai o sindicato procurando melhorar as condições de trabalho
dos membros da profissão que representam e consolidar este bem-estar econômico e social adquirido.”.
75
sociológico-jurídico da obra. Tem lugar aqui, portanto, o núcleo daquela associação
teórica entre sociologia geral e sociologia jurídica mencionada pouco, pois, a
percepção sociológica do autor, fundada sobre uma concepção abstrata de “grupos
sociais”, aqui adquire consubstanciação empírica ao combinar-se com o conceito do
pluralismo jurídico, de forma que, os sindicatos surgem na análise como instituições
sociais e, como tal, responsáveis pela edificação de direitos espontâneos, à margem do
Estado; direitos estes que seriam decisivos para o reconhecimento público destas
instituições e para a oficialização mesma do direito do trabalho enquanto ramo
particular do direito positivo. Em O problema do sindicato único no Brasil, por
conseguinte, Evaristo confirmaria o entendimento pluralista de Maurice Hariou,
segundo o qual “(...) são as instituições que fazem as regras de direito, e não as regras
de direito que fazem as instituições.” (idem, p. 95).
Neste sentido, como veremos adiante em sua análise sobre o caso brasileiro,
Evaristo fundamentaria sua compreensão social a respeito do direito do trabalho
demonstrando que, antes mesmo de qualquer sanção oficial, as associações profissionais
enquanto instituições - e os grupos empresariais acordavam entre si verdadeiros
direitos coletivos voltados à regulamentação profissional, fixação de salários, condições
de trabalho e etc. Tratar-se-ia, portanto, de um verdadeiro direito extra-estatal que o
pluralismo jurídico de Evaristo lhe permitiria surpreendê-lo na condição de “embrião”
do futuro direito do trabalho. Um “direito costumeiro do trabalho” (idem, p. 109) que
resultaria do próprio conflito das forças sociais, e que principiaria a positivação
irresistível do direito do trabalho no Brasil.
Note-se, pois, a relevância da sociologia do direito para a construção teórica e
metodológica de O problema do sindicato único no Brasil, no qual seus postulados
científicos próprios norteariam decisivamente a abordagem empreendida por Evaristo
76
de Moraes Filho. Assim, para além da orientação teórica de se compreender as regras do
direito com base na normalidade social e do princípio do pluralismo jurídico que já
aludimos -, perceberá o leitor, na seção que se abre a seguir, a presença de outros dois
postulados próprios desta sociologia especial sobre a análise desenvolvida pelo autor.
Em primeiro lugar, a diretriz de não se abordar o direito de forma isolada, desconectado
dos outros fatos que constituem a vida social. Aqui, o destaque fica por conta da
observação sócio-histórica que apresenta, na qual, como veremos, Evaristo surpreende a
gênese e o desenvolvimento de nossas leis trabalhistas a partir de uma relação complexa
que envolve diversos elementos: a influência da modernização econômica sobre o país
no início do século XX, o crescimento de nossas cidades, a assinatura do Tratado de
Versalhes por parte do governo brasileiro em fins da década de 1910, entre outros
pontos. E, em segundo lugar, a preocupação sociológico-jurídica de Evaristo em captar
a dimensão valorativa que encerra a construção legislativa por ele observada. A este
respeito, vale frisar, não escaparia ao jurista e sociólogo do Rio de Janeiro a importância
que o ideário político de esquerda teria neste processo, orientando o sentido da ação não
somente de organizações sindicais, como também de intelectuais e parlamentares no
desenvolvimento de nossas leis do trabalho.
Por tudo isto, temos como certo o fato de que o livro em questão não se trata
apenas de uma obra sociológica sobre o fenômeno sindical brasileiro ou de uma história
social das lutas empreendidas pelo operariado nacional. Segundo pensamos, ambas as
dimensões se integram numa sociologia jurídica aplicada ao nosso direito do trabalho.
Uma sociologia do direito do trabalho que, como tal, recupera historicamente os
sujeitos, as instituições sociais e as idéias que incidiram diretamente no processo de
construção legislativa deste ramo do direito no Brasil. E seria, pois, com base nesta
análise sociológico-jurídica, que Evaristo desqualificaria o chamado “mito da outorga”,
77
ao demonstrar que muito antes de Getúlio Vargas e seu staff governamental existia
entre nós uma autêntica legislação do trabalho; uma legislação de natureza propriamente
social.
2.2 – A natureza social do direito do trabalho no Brasil
Segundo apresenta Evaristo, mesmo antes da virada do século XX os
trabalhadores se mobilizavam ativamente pela promulgação de leis sociais em nosso
país. A Carta de 1891, que instituíra definitivamente o regime republicano entre nós, era
omissa em relação à fixação legal de direitos coletivos que assegurassem uma plena
cidadania ao conjunto dos trabalhadores nacionais, “Limitava-se unicamente a
proclamar, de modo geral, a garantia do direito de associação e reunião a todos os
cidadãos.” (idem, p. 183). Tratava-se, pois, de uma hesitação deliberada das classes
dirigentes de nossa nascente República esta completa ausência de garantias sociais na
Constituição de 1891. Isto porque, ao permitir o direito de associação aos cidadãos
nacionais, demonstra a Carta em questão sua sintonia com a realidade social e política
que se fazia presente nas modernas sociedades européias de fins do século XIX - era
o reconhecimento explícito do caráter coletivista que então lhe caracterizavam
49
.
Neste sentido, ao não ir mais além neste reconhecimento, a jovem República brasileira
nascia marcada por uma acentuada limitação democrática, excluindo tanto política
quanto socialmente fração considerável de nossa população no que diz respeito aos
ditames da vida moderna e, pois, fazendo de sua Carta de fundação um texto legal já em
49
Segundo Evaristo, a partir do último quartel do século XIX o continente europeu conheceria uma
grande disseminação de direitos coletivos assegurando a liberdade de sindicalização, direito de greve
além de outros pontos relativos ao direito do trabalho. Neste sentido, as principais datas em que se
promulgam legislações desta natureza em tal continente o: 1874, na Dinamarca; 1875, na Inglaterra;
1884, na França; 1887, em Portugal e Espanha; e 1898, na Bélgica (idem, 114).
78
descompasso com nossa realidade social. Nem a recente saída do regime escravista,
nem o caráter eminentemente rural da economia brasileira à época, podem servir de
justificativas satisfatórias para esta orientação legislativa, afinal de contas, há apenas um
ano após a promulgação da Constituição de 1891, já demonstravam os trabalhadores sua
existência político-social e seu poder de mobilização coletiva. Como mostra Evaristo de
Moraes Filho, em 1892 tomavam parte no debate a respeito do Código Civil que se
preparava.
Quando da discussão do Código Civil em 1892, agitou-se o operariado,
procurando melhorar suas condições de vida. Realizou-se nesta Capital [Rio
de Janeiro] um congresso trabalhista, com o fim de apresentar as
reivindicações da classe. Uma associação de trabalhadores procurara o
ministro cio de Mendonça, do Supremo Tribunal, convidando-o para
colaborar na elaboração de um corpo de leis trabalhistas. Aconselhou-a
aquele Magistrado que dirigisse os seus esforços no sentido de introduzir no
projeto do Código Civil alguns institutos aproveitáveis aos operários.
(idem, p. 190)
Não obstante a existência de participação ativa de associações de trabalhadores
pelo estabelecimento de leis sociais ainda no século XIX, a abordagem de Evaristo nos
chama a atenção para o rápido incremento deste tipo de atuação a partir da virada do
século XX. Por conseguinte, já nos primeiros anos do século passado a sociedade
brasileira conheceria suas primeiras normas oficiais atinentes ao coletivo mundo do
trabalho. Em compasso com que teria ocorrido na Europa, também por aqui as primeiras
experiências jurídicas deste tipo estariam voltadas à regulamentação sindical o que,
por si só, aponta para a inquestionável presença destes agrupamentos coletivos desde
os primeiros anos de nossa era republicana. Na verdade, desde os tempos do Império,
como demonstra o autor por intermédio da Liga Operária e da União Operária,
79
associações profissionais com finalidades de reivindicações fundadas, respectivamente,
em 1870 e 1880 na então Capital do país (idem, p. 182).
A presença de associações profissionais desde os tempos do Império não é,
contudo, um dado de pouca importância. Ao contrário, ele é altamente revelador acerca
de como o desenvolvimento global do ordenamento capitalista moderno atua enquanto
fator de grande relevância no condicionamento deste processo por aqui. Autores
clássicos de nosso pensamento social, como Victor Nunes Leal (1997), Caio Prado
Júnior (2006) e Gilberto Freyre (2007), entre outros, haviam observado o impacto da
modernização européia sobre as diversas esferas da vida social brasileira a partir do
século XIX – na política, na economia, na cultura, nas ciências, etc. - e Evaristo, por sua
vez, teria o mérito de captar mais uma manifestação desta influência, porém, com foco
sobre a esfera de nossas relações sociais de produção. Desta maneira, importa termos
em conta que, no processo de constituição do direito do trabalho apresentado pelo autor,
as particularidades nacionais não são abordadas isoladamente, mas sim a partir de sua
inserção no contexto global mais amplo. É, pois, com base numa combinação complexa
de fatores que, como ressaltamos anteriormente, Evaristo de Moraes Filho surpreende a
gênese e o desenvolvimento ulterior da legislação social brasileira.
Neste sentido, em razão de nossa particular inserção na economia mundial
àquela época ou seja, basicamente ligada à produção e fornecimento de produtos
agrícolas – a primeira lei do trabalho promulgada no Brasil teve como matéria a
regulamentação de sindicatos rurais. Por intermédio do Decreto 979, de 06 de janeiro de
1903, atendia-se assim “(...) às solicitações constantes dos agricultores, formuladas em
vários congressos, comícios e conferências agrícolas (...)” (idem, p. 185) com vistas ao
reconhecimento legal de suas associações profissionais
50
. Tratava-se, pois, de uma
50
Como mostra Evaristo, o Decreto 979 de 1903 dizia respeito a uma lei de nítida inspiração liberal. Não
havia restrições quanto ao número de sindicatos seja por indústria, seja por ofício -, nem ao
80
realidade sui generis o que estabeleceu o Decreto 979, de 1903, tendo em vista que,
segundo o autor, era a primeira vez na história que um país regulamentava primeiro a
sindicalização rural para depois regulamentar a sindicalização urbana
51
. No entanto,
importa ficar registrado que, se no continente europeu levou-se quase um século entre o
surgimento dos modernos Estados republicanos e as primeiras leis de regulamentação
sindical, no Brasil, em função do vulto global que tomava conta da economia
capitalista, este período representou pouco mais de uma década.
E não demoraria muito para que a lei se estendesse a todas as categorias
profissionais. Mesmo sendo, ainda no início do século XX, um país de feição
predominantemente rural no que diz respeito ao plano econômico e social, não quer isto
dizer que as cidades eram fenômenos inexistentes no Brasil. O que se observa é um
processo lento, porém, gradual de crescimento da vida urbana nacional ao longo do
século XIX, sobretudo a partir de sua segunda metade (Fernandes, 2006; Freyre, 2007).
No início do século XX, o Rio de Janeiro já ocupa importante papel por constituir-se na
então Capital Federal – congregando toda a estrutura burocrática do Estado - e no centro
comercial da nação, onde destaca-se o intenso fluxo de trocas advindos da infra-
estrutura portuária da cidade. Por isto mesmo, não causa espanto o crescente fenômeno
associativo que se verifica a partir de então, sobretudo, mas não exclusivamente, no
Distrito Federal do país.
funcionamento das associações. Seu art. estipulava somente a necessidade de registro cartorial dos
estatutos, atas de fundação, lista de sócios, além da assinatura de seus administradores. Contudo, entende
o autor que a principal razão de ser desta lei é dada pela redação de seu art. : “É facultado ao sindicato
exercer a função de intermediário do crédito a favor dos sócios, adquirir para estes tudo que for mister
aos fins profissionais, bem como vender por conta deles os produtos de sua exploração em espécie,
beneficiados, ou de qualquer modo transformados.” (idem, nota 191). Com base neste artigo, tais
associações caracterizar-se-iam fundamentalmente como entidades de beneficência e auxílio mútuo, sem
prejuízo, porém, de suas funções de resistência coletiva.
51
Nas palavras de Evaristo (idem, pp. 184-185): “Sendo um país de formação agrícola (...) talvez com a
mais alta percentagem de trabalhadores rurais em relação aos urbanos em todo o mundo, não podíamos
deixar de iniciar a nossa legislação sindical senão por este lado. Por isso mesmo, contrariando todos os
demais exemplos da história, começamos a legislar sobre o fenômeno associativo por onde os outros
povos em geral terminam: pelo trabalho rural....
81
Ponto-chave neste processo é o ano de 1906, onde se realizou, nesta cidade, o I
Congresso Operário. Segundo Evaristo, tal congresso de trabalhadores teve ampla
repercussão nacional em virtude do número satisfatório de associações presentes e do
intenso debate ideológico que tomou conta do evento. Isto porque, desde o final do
oitocentos, as tendências políticas de esquerda se faziam presentes junto aos
trabalhadores, o que, inevitavelmente, levou a uma concorrência das diversas
concepções pela orientação doutrinária e política do movimento operário nacional
52
. O
referido congresso consistiu, assim, num marco importante da história do sindicalismo
brasileiro, tendo em vista a grande influência que os ideais de esquerda notadamente
socialistas e anarquistas imprimiriam à organização e à atuação política das
associações profissionais. Segundo Evaristo, decorre daí, por conseguinte, o
estabelecimento de grande número de sociedades de resistência em vários estados do
país (idem, p. 191). E seria, pois, por intermédio das reivindicações encetadas por um
conjunto variado destas organizações que se estenderia a regulamentação sindical agora
a todas as categorias profissionais inclusive as liberais. Era promulgado, assim, a 5 de
janeiro de 1907, o decreto 1.637.
De acordo com a abordagem do autor, o 1.637 apresentava fortes semelhanças
com o 979, de 1903, no que tange ao seu espírito doutrinário. Como este, procurava
estar preso aos cânones liberais, não estabelecendo qualquer restrição ao número de
sindicatos por categoria ou ao funcionamento autônomo das organizações
53
. Não
52
No que diz respeito à introdução dos ideais de esquerda no Brasil, importa frisar novamente o papel de
destaque que os já mencionados intelectuais socialistas - como o próprio pai de Evaristo, Antônio
Evaristo de Moraes, além de Agripino Nazareth, Everardo Dias, Joaquim Pimenta e outros tiveram
neste processo. Foram ele os principais idealizadores dos partidos socialistas construídos desde fins do
século XIX no Brasil. Ademais, durante toda a Primeira República se envolveram em atividades conexas
como a construção de jornais operários, assistência jurídica aos sindicatos e etc. Sobre isto ver, entre
outros, os já referidos estudos de Evaristo de Moraes Filho (1981) e Gomes (1994).
53
Para Evaristo, o decreto 1.637 teria sido o único expediente jurídico a estabelecer efetivamente o
pluralismo como modo de organização sindical no Brasil. Concorreu para isto a frouxidão dos critérios
estabelecidos pelo decreto para o reconhecimento oficial dos sindicatos, afinal, segundo o autor, “(...)
82
obstante, em função das péssimas condições sociais a que estavam sujeitos os operários,
o decreto em questão estava longe de suprir as necessidades da massa trabalhadora
brasileira, pois, para além da simples regulamentação sindical, nenhuma outra garantia
social constava do 1.637.
Neste sentido, com o crescimento das cidades e o incremento da população
trabalhadora que daí se segue, as associações profissionais agora fortemente
influenciadas pelo ideal político de esquerda iriam empreender grandes mobilizações
sociais com vistas ao estabelecimento de leis que garantissem melhores condições de
vida aos trabalhadores. em 1912, por ocasião do Congresso Operário Brasileiro,
realizado no Rio de Janeiro, mostra Evaristo que os trabalhadores desenvolveram uma
plataforma de reivindicações centrada na afirmação de direitos coletivos, que, por sua
vez, nortearia sua atuação organizada nos anos ainda porvir
54
.
Portanto, por força de sua mobilização coletiva, as organizações sindicais
conseguiram impor ao patronato suas reivindicações jurídicas de maneira independente,
de forma que, segundo vem mostrar o autor, os direitos propriamente trabalhistas no
Brasil surgiriam de forma espontânea, à margem do Estado Nacional. Um verdadeiro
direito extra-estatal surgia no âmbito privado das relações entre patrões e empregados,
forçando, tornando mesmo inevitável seu reconhecimento por parte do aparelho estatal.
Assim, em acordo com sua ótica sociológico-jurídica fundada na convicção do caráter
plural em que consiste o mundo do direito, demonstrava Evaristo que o direito do
bastavam sete associados para dar como constituído um sindicato, sem outra exigência além do registro
no cartório competente, com a juntada da identidade dos sócios e da cópia dos estatutos.” (idem, p. 227).
54
Era criada a partir deste congresso a Confederação Brasileira do Trabalho, que tinha seu programa
inicial fundado sobre os seguintes direitos coletivos (idem, pp. 195-196): “a) redução do horário do
trabalho normal a oito horas por dia; b) descanso semanal obrigatório para todas as categorias de
operários e trabalhadores; c) indenização às vítimas dos sinistros do trabalho; d) regulamentação do
trabalho nas fábricas, limitação do trabalho das mulheres e dos menores, proibição absoluta de trabalho
nas fábricas às crianças com menos de quatorze anos de idade; e) seguro obrigatório (com participação
nas despesas divididas entre o Estado, os patrões e os operários) para indenizar os trabalhadores nos
casos de doença e de desocupação forçada e para dar-lhes pensão na velhice e nos casos de invalidez
para o trabalho; f) substituição do contrato individual pelo contrato coletivo de trabalho.”.
83
trabalho enquanto gênero particular do direito positivo brasileiro é precedido por um
autêntico direito costumeiro, um direito eminentemente social, nascido
espontaneamente do conflito de grupos e classes que compõem a sociedade.
Na cronologia então apresentada, o ano de 1919 seria particularmente relevante
a respeito do que dissemos acima. O crescimento econômico verificado pelo país com a
deflagração da Primeira Guerra Mundial e a conseqüente expansão da população
trabalhadora nas cidades, bem como a grande repercussão que tivera o advento da
Revolução Russa entre os círculos operários brasileiros, segundo Evaristo de Moraes
Filho, seriam variáveis de grande influência sobre a eclosão de greves até então sem
precedentes ocorridas a partir de maio daquele ano nos principais centros urbanos do
país - Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. Escorado em um diversificado
conjunto de fontes de pesquisa resoluções normativas, discursos parlamentares e,
sobretudo, material jornalístico mostra o autor o alcance daquele movimento grevista
e seu impacto sobre a edificação de direitos trabalhistas. Em todas estas cidades, o
movimento de greve teve alcance quase que geral, afetando, em larga medida, a
economia nacional.
Eram os empregados no comércio, eram os tecelões, eram os barbeiros,
eram os marceneiros, eram os gráficos, eram os empregados nos transportes,
eram, enfim, todas as classes que se levantavam em manifestações grevistas,
em reivindicações de melhorias de condições de trabalho.
(idem, p. 203)
Sob a liderança de intelectuais socialistas, como Joaquim Pimenta, Agripino
Nazareth e outros, as greves de 1919 lograram vitórias expressivas
55
. O alcance
55
Em referência ao êxito da greve pernambucana, com destaque para os operários da companhia
“Pernambuco Tramways”, cita Evaristo edição do “Correio da Manhã” de 29 de julho de 1919, onde se lê
(idem): “A greve dos operários da ‘Pernambuco Tramways’ acha-se terminada, tendo os operários
obtido tudo o que queriam. Hoje, às 14 horas, os operários realizaram uma grande passeata,
acompanhados do Dr. Joaquim Pimenta, lente da Faculdade de Direito do Recife.”.
84
generalizado de tais paralisações levou o patronato a ceder às reivindicações operárias e,
pois, firmar acordos com os sindicatos que instituiriam ainda que restrito à esfera
privada um vasto conjunto de direitos coletivos voltados à melhoria das condições de
vida e trabalho do operariado. Assim, de maneira espontânea, à revelia da omissão
legislativa por parte do Estado, instituía-se a jornada de oito horas diárias de trabalho, a
proibição do trabalho de menores de 14 anos e a proibição do trabalho feminino
noturno, além de outros direitos mais específicos a cada localidade.
De acordo com a análise de Evaristo, a existência e disseminação destes direitos
extra-estatais pelos principais centros econômicos do país, seriam fatores de grande
pressão sobre a responsabilidade do Estado em legislar a respeito dos direitos coletivos;
a realidade social condicionava, assim, a normatividade jurídica do trabalho no Brasil.
Tratava-se, no entanto, de um processo que tinha início em âmbito regional, onde os
estados fortemente impactados pela atuação do movimento operário se viram forçados a
adotar medidas que, em verdade, principiaram a positivação do direito do trabalho no
país
56
. Não por acaso, este processo seria tema expresso na plataforma política do ex-
presidente Washington Luis, tendo-se como preocupação fundamental o possível
desequilíbrio econômico entre os estados da Federação que decorreria desta positivação
regional de normas atinentes ao mundo do trabalho.
Basta ver que algumas das aspirações operárias alhures são realidade entre
nós. A jornada de oito horas, praticamente em execução por todos; a
regulamentação do trabalho da mulher e do menor; nos Códigos Sanitários,
é observada. A observância, porém, de tais preceitos deve ser imposta por
56
A este respeito, o caso baiano revela-se exemplar. Mostra o autor que pelo alcance da greve baiana de
junho de 1919, não teve outra escolha o governo daquele estado senão legislar sobre a jornada de trabalho
dos operários nos estabelecimentos públicos, oficializando, desta forma, uma das principais
reivindicações do movimento grevista que já se havia alcançado espontaneamente junto à iniciativa
privada. Era, assim, promulgada a Lei 1.309, onde consta a seguinte redação (idem, p. 201): “O
Governador do Estado da Bahia, faço saber que a Assembléia decretou e eu sanciono a lei seguinte:
Artigo único É fixado em oito horas o dia do trabalho para todos os estabelecimentos industriais e
oficinas pertencentes ao Estado, ou por ele subvencionados, revogadas todas as disposições em
contrário.”.
85
lei da República para que, por bem agir, não se coloque um estado em
inferioridade econômica aos outros na produção nacional.
(idem, p. 211. nota 213)
57
Apesar da relevância dos direitos coletivos autonomamente constituídos, para
Evaristo eles não seriam os únicos elementos a influenciar a positivação de nosso direito
trabalhista. A que se considerar também, a participação do governo brasileiro na
Conferência de Paz que se seguiu ao término da Primeira Grande Guerra, onde o país
assinaria o conhecido Tratado de Versalhes e, conseqüentemente, ingressaria na
Organização Internacional do Trabalho; aumentavam-se, assim, as pressões para que a
jovem República brasileira viesse regulamentar as relações de trabalho em seu território
e, por conseguinte, superar o anacronismo que lhe caracterizava em relação às demais
nações signatárias do Tratado.
Em 1919, entra o Brasil numa nova fase de seu desenvolvimento social-
trabalhista. Vínhamos de assinar o Tratado de Versalhes, no qual nos
obrigávamos a cumprir determinadas recomendações a favor dos
trabalhadores, além de nos filiarmos à Organização Internacional do
Trabalho. Aumentava agora para o Governo a responsabilidade legislativa,
no sentido de maior intervenção do Estado nas relações econômicas entre
empregados e empregadores.
(idem, p. 197)
58
De maneira geral, em função deste variado conjunto de fatores, segundo nos
apresenta Evaristo, a questão da regulamentação do trabalho tomaria vulto
impressionante no país entre 1919 e 1930. Ainda neste primeiro ano, era constituída no
Congresso Nacional a Comissão de Legislação Social, onde teria destaque a figura do
57
Este trecho da plataforma política de Washington Luis é retirado por Evaristo de Moraes Filho a partir
da obra de Carvalho Neto (1926, p. 238).
58
Grifo nosso.
86
deputado Maurício de Lacerda em função do projeto de Código do Trabalho que então
preparava
59
. Maurício de Lacerda era um antigo lutador social que, ao lado de Antônio
Evaristo, Joaquim Pimenta e outros, tivera decisiva participação na constituição dos
primeiros partidos socialistas brasileiros (Gomes, 1994). Coerente com sua trajetória, a
atuação de Lacerda como parlamentar sempre esteve ligada à questão social brasileira,
em especial no que tange à regulamentação de nossos direitos sociais. Neste sentido, em
sintonia com os reclamos advindos da sociedade, Maurício de Lacerda seria responsável
ainda pela criação, em 1923, do Conselho Nacional do Trabalho, “(...) que vinha dar
cumprimento ao compromisso assumido no Tratado de Versalhes de se instituir um
aparelho técnico-burocrático para organizar a legislação do trabalho e superintender
sua aplicação” (idem, p. 209). Indiscutivelmente, tratava-se do primeiro órgão técnico
de natureza estatal voltado exclusivamente à questão dos direitos trabalhistas no Brasil.
Este ano de 1923 seria marcado ainda pela promulgação da conhecida lei Eloy
Chaves (Lei 4.682, de 24 de janeiro de 1923), que instituíra uma Caixa de
Aposentadorias e Pensões aos empregados de todas as empresas de estradas de ferro do
país
60
. Em 1925, mais especificamente em 24 de dezembro deste ano, seria promulgada
ainda a Lei nº 4.982 que instituiria férias por um período de quinze dias aos empregados
de diversos setores de atividade (comércio, indústria, bancos e empresas jornalísticas).
Mas a atividade legislativa durante os anos 1920 não cessaria por aí. Segundo nos
mostra Evaristo, outros três dispositivos legais viriam ao encontro dos reclamos sociais.
A primeira em 1926, onde, por inspiração direta da lei Eloy Chaves, se estenderia o
59
De acordo com que expõe Evaristo, o Código de Trabalho proposto por Maurício de Lacerda era
composto de oito títulos: “I da duração do trabalho; II do descanso semanal e das férias; III do
trabalho do menor; IV do trabalho do menor e das mulheres; V das caixas de pensões; VI do
trabalho das mulheres; VII – da higiene e segurança do trabalho; e VIII – da inspeção do trabalho e dos
conselhos de conciliação.” (idem, p.213. nota 216). Importa considerar, porém, que este Código de
Lacerda não chegou a ser votado por nossos parlamentares àquela época. Tratava-se, pois, da primeira
tentativa frustrada de codificar o direito do trabalho no Brasil, mas não seria a única. Como veremos no
próximo capítulo, Evaristo também viria sentir o gosto amargo desta frustração durante os anos de 1960.
60
Segundo destaca Evaristo, inicialmente a lei tinha vigência exclusiva sobre as empresas privadas, mas
logo se estenderia às companhias públicas das três esferas de governo (idem, p. 209).
87
benefício das Caixas de Aposentadorias e Pensões aos trabalhadores de empresas
portuárias e marítimas (Lei 5.109, de 20 de dezembro de 1926). A 30 de junho de
1928, por intermédio do Decreto 5.485, passavam os trabalhadores de empresas
telegráficas e radiotelegráficas a gozar de seguros por enfermidade ou falecimento. E
ainda neste ano, seria promulgado também o Decreto 5.492, de 16 de julho, que
regulava o setor de diversões e estabelecia critérios para a locação de serviços teatrais
assim, artistas e demais trabalhadores do ramo do entretenimento também passavam a
ser cobertos por lei federal que lhes regulava a atividade profissional.
Contudo, destaca Evaristo que o ano de 1926 seria marcante na história da
legislação social brasileira. Pela amplitude mesma que a questão trabalhista atingira,
sobretudo a partir de 1919, não podia prescindir o país de uma reforma de sua
Constituição de 1891 que a tornasse devidamente acordada à realidade sócio-política do
país. Assim, por intermédio da Emenda Constitucional nº 22, era estabelecido ao
Congresso Nacional a competência para legislar sobre o trabalho no Brasil. Neste
sentido, “(...) pela primeira vez passava a constar da Constituição, como assunto
expresso, a referência à legislação do trabalho, que se tornava, então, matéria
constitucional.” (idem, p. 211). É, pois, em virtude de todo este processo, onde destaca-
se a evolução legislativa após 1919, que afirmaria indignado Evaristo de Moraes Filho
(idem, p. 210):
Assim, terminado o balanço geral desse período compreendido entre 1919 e
1930, não podemos deixar de reconhecer que muito conseguiram as classes
trabalhadoras brasileiras. Daí considerarmos erro histórico, além de mera
propaganda eleitoral, a frase feita de que o Brasil nada possuía nesse terreno
antes daquela última data. É uma injustiça que se comete à massa operária;
aos grandes idealistas e lutadores que a defenderam e orientaram; aos
parlamentares, principalmente, aos membros da Comissão de Legislação
Social; e, finalmente, a alguns homens de governo.
88
Note-se, entretanto, que, para o autor, este erro histórico não seria um produto
imediato da Revolução de 1930. Ao contrário, Evaristo entende que este episódio
marcaria o aprofundamento de um processo “natural”, socialmente espontâneo, que
se desenrolava desde a Primeira República. A construção do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio, considerada pelo autor “o maior mérito da Revolução de outubro”
(idem, p. 218), seria a comprovação disto. Seria ele uma espécie de maturação
institucional do Conselho Nacional do Trabalho de 1923, dotado de maiores recursos
para cumprir a missão de zelar pela observância das leis sociais brasileiras então
vigentes e, pois, levar a efeito definitivamente as conquistas sócio-jurídicas alcançadas
pelos trabalhadores no período anterior. Ademais, Evaristo teria outra boa razão para tal
entendimento: a destacada presença de antigos lutadores sociais, como Antônio Evaristo
e Joaquim Pimenta, na conformação do quadro técnico do Ministério
61
o que, por si
só, demonstra a heterogeneidade política que sustentava o Governo Provisório.
Desta forma, o tal “erro histórico” que menciona Evaristo seria conseqüência
direta do endurecimento político que se abriu a partir de 1935 – quando é promulgada a
chamada Lei de Segurança Nacional que estabeleceria uma profunda repressão à classe
trabalhadora organizada e, sobretudo, com a instauração do regime do Estado Novo
em 1937. Segundo ele, portanto, é a partir de então que se estabelece uma grande
ruptura com o passado brasileiro, de forma que, o totalitarismo do regime carecia de
61
Com base nesta compreensão, Evaristo dá grande destaque ao Decreto 19.770, de 19 de março de 1931.
Tal decreto resultara de projeto formulado por estes dois intelectuais, e instituía uma nova
regulamentação da questão sindical no Brasil, que, segundo o autor, vinha aprofundar os interesses dos
trabalhadores ao estabelecer o princípio da unicidade, mas também por permitir aos sindicatos a liberdade
para procederem a realização de contratos de trabalho, manutenção de cooperativas, além de outros
benefícios (idem, p. 221). Sem deixar de reconhecer algumas de suas limitações, Evaristo de Moraes
Filho não deixaria de frisar o aspecto progressista do decreto. Segundo ele (idem, pp. 225-226): “Não se
pode negar que o 19.770 tenha sido um grande passo no caminho da organização profissional brasileira.
Não foi uma lei perfeita, mas realizou muito de congraçamento e aglutinação das classes produtoras.
Procurou aproximar-se o mais possível da realidade social entre nós, permitindo mais de uma
modalidade de forma de sindicalização, desde que respeitado o princípio sico da unidade. Mesmo os
dispositivos que aproximavam o sindicato do Estado, colocando-o em situação de tutela, ali aparecem
condicionados pela sistemática geral da lei, que procurava tornar o sindicato exclusivamente órgão
representativo dos interesses profissionais, isento de partidarismos políticos, ideológicos ou religiosos
(...) E os autores da lei eram antigos lutadores sociais, que bem conheciam o assunto...”.
89
legitimar-se através de uma propaganda ideológica oficial, segundo a qual Getúlio
Vargas deveria ser identificado como o único responsável pelo estabelecimento dos
direitos sociais no país.
Constituiu ele [o Estado Novo] uma ruptura violenta com todo o passado
brasileiro, com tudo que tivemos de mais legitimamente nacional, para
imitar outras instituições estrangeiras. Segundo os arautos de tal regime nada
fora imaginado, concebido, pensado, tentado, nem realizado por ninguém,
antes de o haver feito o Chefe Nacional.
(idem, p. 210)
Porém, com base nas prerrogativas próprias de sua sociologia jurídica, como
vimos ao longo deste capítulo, Evaristo demonstrou toda a falácia em que se assentava
este discurso ideológico. Como podemos observar do que foi exposto acima, para ele, o
processo de constituição efetiva do direito do trabalho enquanto gênero particular do
nosso direito positivo, não parte da vontade exclusiva de qualquer jurista ou governante.
Acima de tudo, tal construção legislativa é encarada como resultado do próprio processo
de modernização da sociedade brasileira, isto é, de consolidação e desenvolvimento da
ordem sócio-econômica capitalista, de forma que, os sindicatos foram se tornando
instituições cada vez mais relevantes dentro do ordenamento social e, como tal,
impondo ao Estado, por sua própria força, o reconhecimento oficial dos direitos
coletivos espontâneos que desenvolviam à sua margem na esfera privada de suas
relações com empresas e organizações patronais.
90
Portanto, em oposição ao monismo jurídico
62
que fundamentava aquele
autêntico “mito da outorga”, Evaristo de Moraes Filho lançaria mão de sua concepção
plural do direito e, assim, com foco em um conjunto complexo de fatores sociais,
políticos, econômicos e ideológicos, reconstruiria a história de nossa legislação
trabalhista ao conduzir as organizações sindicais ao papel de protagonistas deste
processo. Instituía-se, pois, uma nova concepção acerca do direito do trabalho no Brasil,
uma concepção fundada sobre sua natureza genuinamente social.
E se, como destacado logo acima, a sociologia do direito surge como um
conhecimento científico, um recurso teórico e metodológico, fundamental ao
desenvolvimento desta tese que tornou seu livro um dos marcos da sociologia brasileira
na década de 1950, por outro lado, importa dizer, esta não seria sua única manifestação
sobre o pensamento de Evaristo de Moraes Filho. Como teremos oportunidade de
observar no capítulo a seguir, postulados próprios desta sociologia especial que aqui
apresentam grande relevância – como o conceito de pluralismo jurídico, a orientação em
surpreender o direito com base na normalidade social, o reconhecimento de seu caráter
valorativo e, ademais, sua inextricável relação com fenômenos de natureza política,
social ou econômica retornariam poucos anos mais tarde, onde, dotados da mesma
eficácia cognitiva, seriam responsáveis pela fundamentação teórica de um dos mais
importantes “projetos” intelectuais em que se empenhou Evaristo ao longo de sua vida:
a construção de uma doutrina jurídica particular ao direito do trabalho
63
. É neste
62
O conceito de monismo jurídico, vale esclarecer, denota a idéia de que o direito possui exclusivamente
uma única fonte de origem: o Estado. Por conseguinte, tal conceito implica na afirmação de que os
fenômenos jurídicos são elementos privativos de um suposto monopólio estatal sobre sua constituição,
vigência e revogação. Neste sentido, não existe qualquer consideração sobre a possibilidade de que estes
fenômenos possam se constituir de maneira autônoma, espontânea, independente da ação jurídica levada a
efeito pelo Estado.
63
Neste momento, faz-se mister relembrarmos o significado efetivo que o termo “doutrina” adquire em
nossa abordagem, sob pena de interpretações errôneas acerca do que realmente busca denotar aqui. Em
nosso trabalho, portanto, o termo “doutrina” não faz referência à idéias que se proponham
inquestionáveis, impostas irrefletidamente pela força de algum indivíduo ou instituição que se arrogue
detentor de uma suposta verdade absoluta. No direito, que é como aqui aparece, “doutrina” é um conceito
91
sentido, que a sociologia do direito se caracteriza enquanto um conhecimento-chave na
vida intelectual deste pensador brasileiro, transcendendo, pois, suas reflexões de cunho
propriamente sociológico como em O problema do sindicato único no Brasil e
alcançando suas elaborações teóricas de natureza jurídica sobre o direito do trabalho. É
o que veremos com mais detalhes a seguir, no terceiro capítulo desta dissertação.
largamente utilizado e que diz respeito a uma sistematização teórica, de cunho propriamente acadêmico-
científico, voltada à reunião coerente, gica, dos princípios e características que qualificam determinado
ramo do direito. Em sentido geral, o conceito de “doutrina jurídica” responde por um trabalho intelectual,
quase sempre fundado sobre pesquisas exaustivas acerca da jurisprudência dos tribunais e da bibliografia
relativa a um ramo jurídico particular, com vistas ao estabelecimento de uma interpretação que transcenda
a dimensão específica da lei escrita, positiva, buscando uma compreensão mais profunda acerca do
sentido que encerra suas normas e, desta forma, servir como instrumento teórico para o desenvolvimento
do trabalho profissional realizado pelos diversos agentes do campo jurídico advogados, juízes,
desmbargadores e etc.
92
CAPÍTULO 3
A DOUTRINA DO DIREITO DO TRABALHO DE EVARISTO
DE MORAES FILHO
Em boa medida, as publicações que se ocupam da sociologia jurídica como
objeto primordial de suas reflexões – tanto no que diz respeito à história de sua
constituição como ciência sociológica particular, quanto em relação ao seu conteúdo
teórico geralmente adotam uma mesma orientação intelectual. A rigor, a literatura
voltada ao tema surpreende esta sociologia especial a partir da revisão crítica levada a
efeito por juristas em relação à ciência jurídica tradicional. Aqui, quase sempre destaca-
se o papel modernizante (porque científico) das teorias e métodos sociológicos como
aspecto fundamental desta revisão, o que redundaria na construção de novas e
diferenciadas perspectivas à teoria geral do direito e à delimitação mesma da sociologia
jurídica enquanto ciência especial seus problemas específicos de pesquisa, sua
epistemologia, seus métodos, etc.
64
.
Quando destacamos este sentido comum que caracteriza boa parte da literatura
voltada à sociologia jurídica enquanto campo científico, na terminologia de Bourdieu
(1995), não temos nenhuma intenção em negar qualquer validade teórica a esta
literatura, ao contrário, segundo pensamos, a ela deve ser creditado méritos
inquestionáveis à compreensão deste novo ramo do saber sociológico. A prevalência
dos juristas em relação aos sociólogos no que tange ao seu desenvolvimento, bem como
a orientação teórica e metodológica que lhe define as características; tudo isto e mais é
indiscutivelmente muito bem abordado e apresentado por esta literatura. O que
procuramos salientar é que tal literatura não costuma abordar a influência desta
64
Com este sentido, ver, entre outros, Saldanha (1970), Gurvitch (1977), Machado Neto (1987),
Junqueira (1993) e Souto & Falcão (2001).
93
concepção sociológico-jurídica sobre o trabalho intelectual de doutrinação do direito
65
levado a cabo pelos próprios juristas adeptos daquela sociologia especial; muitas vezes
grandes tratadistas em matéria de direito civil, direito constitucional e outros ramos
particulares da ciência jurídica. Por certo, concorre para isto seu foco central sobre a
disciplina - sua formação e características e não necessariamente sobre seus cultores
que, ainda que trazidos à cena, ocupam um espaço apenas secundário nas abordagens.
Como dissemos acima, em relação a estes é a contribuição teórica que trazem à
disciplina o que realmente importa para tal literatura, de forma que, seus
desdobramentos ao conhecimento propriamente jurídico são restritivamente abordados
em referência à teoria do direito que desenvolvem. Note-se, pois, que não se trata do
trabalho doutrinário destes juristas, mas sim de sua concepção filosófica geral sobre o
direito.
Sentido diverso é o que propomos para este capítulo de nossa dissertação. Sendo
este um trabalho de sociologia dos intelectuais – no qual a sociologia jurídica ocupa um
espaço de grande relevância sem, no entanto, como ela confundir-se – nos parece
imprescindível procedermos a uma abordagem analítica que desvele a relação entre esta
sociologia especial e a doutrina do direito do trabalho desenvolvida por Evaristo de
Moraes Filho, afinal de contas, em função da relevância que tal doutrina ocupa em sua
vida, nossa abordagem sobre o lugar desta sociologia em seu pensamento ficaria muito
aquém se não a levássemos em consideração.
Para tanto, a principal fonte de que aqui nos valeremos para desenvolver esta
análise, embora não seja a única, consiste no livro publicado por Evaristo em 1956,
denominado Introdução ao direito do trabalho. Por certo, não se trata da única fonte em
que sua doutrina sobre o direito do trabalho seria apresentada, na verdade, em não
65
Sobre o significado deste conceito ver nota 63.
94
poucas ocasiões – como conferências, nos próprios pareceres emitidos em função de seu
cargo de Procurador do trabalho e, até mesmo, em outros livros publicados por
Evaristo
66
- esta sua doutrina jurídica seria objeto de suas reflexões. Contudo, não nos
resta qualquer dúvida de que Introdução ao direito do trabalho consiste na mais bem
acabada exposição de sua doutrina jurídico-trabalhista, o que se confirma, ademais, pelo
sucesso editorial que lhe caracteriza, chegando a sua 9ª edição em 2003
67
e, pois,
mantendo seu caráter de referência obrigatória àqueles que se interessam por este ramo
particular da ciência jurídica. Ali se encontram, portanto, de maneira sistemática e
coerente, todos os elementos que conformam tal doutrina, de forma que, se torna
possível apreender claramente as características que definem esta elaboração teórica
particular, bem como a relevância mesma que a sociologia jurídica ocupa. Trata-se,
pois, de um livro primordial ao estudo que nos propusemos desenvolver neste capítulo.
Porém, antes de levarmos a termo tal análise, convém dedicarmos algumas
poucas palavras acerca da importância que o direito do trabalho ocupa na trajetória de
Evaristo, com vistas a uma apreensão mais clara a respeito do papel desta doutrina e,
mais especificamente, da própria sociologia jurídica no contexto mais amplo de sua
vida como profissional do direito.
Até o presente momento desta dissertação, em função mesmo da especificidade
dos temas tratados nos capítulos anteriores, aludimos à presença do direito do trabalho
na trajetória de Evaristo apenas a partir de duas dimensões: em atividades relacionadas à
sua inserção profissional no Ministério do Trabalho, como nos cargos de secretário das
Comissões Mistas de Conciliação e como Procurador da Justiça do Trabalho, além do
trabalho de docente da disciplina no Curso de Direito Social realizado por aquele
ministério; e em relação às atividades intelectuais de cunho sociológico, onde consistiu
66
Casos, por exemplo, de Moraes Filho (1958; 1965;1971 e 1983).
67
Publicado pela Editora LTr.
95
no tema primordial de sua mais importante obra nesta área. No entanto, pode-se dizer
que a presença do direito do trabalho na vida do jurista e sociólogo carioca transcende
em muito estas atividades, a rigor, não seria exagero nenhum se disséssemos que toda a
sua vida foi dedicada a este ramo do direito. Isto porque, em verdade, o direito do
trabalho consistiu no objeto segundo o qual Evaristo de Moraes Filho se debruçou a
partir das mais distintas e importantes atividades de sua trajetória profissional, ou seja,
para além daquelas supracitadas foi objeto ainda de suas atividades acadêmicas,
legislativas e doutrinárias.
Em relação à sua vida acadêmica, Evaristo de Moraes Filho teve uma intensa e
diversificada carreira docente. Neste particular, não se dedicou exclusivamente ao
direito do trabalho, pois, iniciou sua carreira de professor universitário, em 1949, dando
aulas de sociologia na Faculdade Nacional de Filosofia, enquanto auxiliar de ensino.
Após seis anos, porém, Evaristo oficializaria sua posição naquela instituição ao tornar-
se livre-docente da mesma disciplina
68
. No entanto, ainda no ano de 1950 o intelectual
marcaria sua estréia como professor universitário de direito do trabalho ao ser
contratado como docente para a cadeira de Direito Industrial e Legislação do Trabalho,
na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, posto em que
permaneceria até 1951. Em 1953, tornar-se-ia também livre-docente desta mesma
cadeira ao defender a tese A justa causa na rescisão do contrato de trabalho,
substituindo ninguém menos do que Joaquim Pimenta, então catedrático da disciplina,
que se aposentava ao completar setenta anos de idade. Mas seria em 1957 que Evaristo
atingiria o maior posto em sua invejável trajetória acadêmica, tornando-se professor
catedrático de Direito do Trabalho nesta mesma instituição, ao defender a tese O
contrato de trabalho como elemento da empresa. Contudo, apesar do grande empenho
68
Feito alcançado, portanto, em 1955, quando defendeu o autor a tese de livre docência Augusto Comte e
o pensamento sociológico contemporâneo (Gomes; Morel; Pessanha, 2007).
96
com que sempre se dedicou ao magistério superior, seja no âmbito do direito do
trabalho, seja no da sociologia, Evaristo de Moraes Filho teria sua carreira acadêmica
brutalmente interrompida pela truculência do regime militar instaurado a partir do triste
ano de 1964, quando foi compulsoriamente aposentado de suas atividades docentes em
1969. Como diria Paulo Sérgio Pinheiro ao comparar a tardia promoção de Evaristo ao
posto de Procurador de categoria em 1957 com este lastimável episódio: “(...) a
memória autoritária nunca é curta” (1978, p. XVIII).
Mas é no campo propriamente legislativo que as atividades de Evaristo de
Moraes Filho em relação ao direito do trabalho adquirem maior relevância. Aí, os
efeitos de seu trabalho se fariam sentir não somente sobre seus alunos e leitores como a
toda a nação, não fosse, porém, o conservadorismo que, em menor ou maior medida,
caracterizou nossas elites dirigentes durante a maior parte da história republicana do
país. Em 1986, Evaristo seria convidado por Afonso Arinos de Melo Franco seu
antigo companheiro nos tempos da União dos Trabalhadores Intelectuais – para integrar
a Comissão Constitucional nomeada pelo então Presidente José Sarney, que deveria
redigir um anteprojeto de Constituição a ser apresentado pelo Executivo ao Congresso
Nacional. Evaristo foi o presidente da Subcomissão de Direito do Trabalho, onde se
dedicaria a combater alguns resquícios ainda provenientes do período estadonovista que
se encontravam em vigor não somente àquela época, como até hoje. Buscou assim
estabelecer definitivamente a liberdade sindical entre nós, criando os chamados
conselhos de empresa voltados à realização de acordos entre os sindicatos de
trabalhadores e patrões – e extinguindo o controverso imposto sindical
69
.
Mas não foi isso. Resultou dos trabalhos da Subcomissão presidida por
Evaristo outros pontos de grande alcance social, como a redução da jornada de trabalho
69
Informações contidas nestes dois últimos parágrafos foram extraídas do já referido depoimento
prestado pelo autor a Gomes, Morel e Pessanha (2007).
97
semanal ao período máximo de quarenta horas, a imposição de medidas tecnológicas
voltadas a impedir a insalubridade nos locais de trabalho, a manutenção pelo
empregador de creche para os filhos dos empregados até um ano de idade e de escola
maternal para os filhos de até quatro anos, além, da vedação de prescrição no curso da
relação de trabalho e do restabelecimento da estabilidade no emprego revogada de
nosso direito positivo ainda em 1966 quando da instituição do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (Moraes, 2005). Nada disto, contudo, tornar-se-ia matéria
constitucional quando da promulgação da nova Carta Magna em 1988. Em verdade, o
anteprojeto elaborado pelo conjunto da Comissão não chegou sequer a ser apresentado
ao Legislativo para sua aprovação, por isto não esconderia Evaristo sua decepção com o
destino final de seus esforços intelectuais ao afirmar que “Depois de um ano de
trabalho, reconheço que isso foi algo frustrante.” (Gomes; Morel; Pessanha, 2007; p.
177). Mas com o bom humor característico de quem sempre procura ver o lado positivo
das coisas, completaria dizendo: No entanto, valeu a pena! Quase todos os que
participaram da Comissão registraram o fato em seus currículos, como um título.”
(idem).
A despeito deste ponto benéfico, sua participação na Comissão Constitucional
em 1986 (a chamada Comissão Afonso Arinos) não seria, porém, nem a primeira nem a
mais importante frustração de Evaristo em suas atividades de legislador do trabalho.
Ainda em 1962, indicado pelo antigo professor e amigo Edgardo de Castro Rebelo,
Evaristo de Moraes Filho seria convidado por João Mangabeira, então Ministro da
Justiça do governo João Goulart, para elaborar nada menos do que o anteprojeto de
Código do Trabalho brasileiro. Tal código deveria substituir a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), instituída em 1943, como o principal diploma legal do direito
trabalhista do país, superando o caráter de mera reunião dos dispositivos jurídicos de
98
nossa legislação social que caracteriza aquela Consolidação e, pois, apresentando
matéria nova relativa à questão.
E foi exatamente isto o que fez o eminente jurista. Não tendo a necessidade
estrita de manter-se preso às normas constantes da CLT, Evaristo de Moraes Filho traria
inovação ao nosso direito do trabalho ao redigir pontos de elevado alcance social. Entre
estes contam-se alguns daqueles dispositivos resultantes do trabalho constitucional em
que se envolveu o autor na década de 1980, tais como, o que diz respeito ao acesso à
educação pré-escolar por parte dos filhos de empregados, a extinção ainda que
progressiva do imposto sindical, a afirmação da estabilidade no emprego reduzindo
o prazo de dez anos imposto pela CLT e que ainda em 1962 se encontrava vigente -,
bem como a criação dos conselhos de empresa. No entanto, o anteprojeto de Evaristo ia
mais além. Tratou ele de legislar sobre a redução de pessoal nas empresas, buscando
minimizar impactos de possíveis crises econômicas sobre a ordem social do país;
legislou também sobre matérias como medicina do trabalho, convenções coletivas do
trabalho, acordos coletivos salariais; e em matéria sindical tratou de regulamentar a
questão sindical entre nós que, desde a redemocratização do país em 1945, ainda não
conhecia uma lei ordinária sobre a matéria aquilo de que se queixava Evaristo em O
problema do sindicato único no Brasil acabaria, por ironia do destino, tornando-se
incumbência sua. Neste sentido, procurou deixar para trás todas as medidas
conservadoras impostas pelo Estado Novo, onde, para além da extinção progressiva do
imposto sindical, alteraria a questão do enquadramento sindical tornando-a apenas mero
cadastro das atividades. Ademais, visando proporcionar maior poder aos trabalhadores
em sua relação com patrões e governos, previa seu Código a criação da figura do
delegado sindical nos conselhos de empresas, bem como o estabelecimento de um
99
direito de greve dotado de amplas e profundas garantias legais para seu efetivo exercício
(Moraes Filho, 1963; Moraes, 2005; Gomes, Morel, Pessanha, 2007).
O anteprojeto foi apresentado a João Mangabeira em março de 1963, mas por
conta de sua revisão e pela própria tramitação no Ministério da Justiça, somente se
converteu propriamente num código em 1965 quando foi apresentado ao então Ministro
da Justiça Milton Campos. Contudo, vivendo o país sob o controle ditatorial dos
militares, e encontrando forte oposição do empresariado nacional e até mesmo do
governo norte-americano em função de seu conteúdo acentuadamente democrático
(idem), não seria de causar espanto o fato de que o Código do Trabalho elaborado por
Evaristo nem sequer foi enviado ao Congresso Nacional, sendo, ao contrário,
sumariamente engavetado. Mais uma vez, a tentativa de codificar o direito do trabalho
no Brasil conheceria seu destino inexorável: a gaveta, empoeirada ou não, de alguma
instância burocrática do Estado Nacional.
Note-se, porém, que estas duas experiências legislativas em que esteve
envolvido Evaristo de Moraes Filho significaram, indiscutivelmente, a realização
prática de sua doutrina jurídico-trabalhista. Pode-se dizer que se trata, portanto, de uma
sistematização teórica acerca do direito do trabalho que bem representa a trajetória de
sua vida profissional; uma trajetória orientada, sobretudo, pela afirmação de uma
democracia real, e não apenas formal, de modo que, a doutrina que a acompanha não
poderia perseguir uma finalidade que lhe fosse distinta. É neste sentido que, ao contrário
do positivismo jurídico de um Kelsen, por exemplo, a doutrina desenvolvida por
Evaristo não se caracterizaria por manter-se alheia aos fatos sociais de onde se originam
e para os quais estão diretamente voltadas as normas do direito do trabalho. Trazendo
uma percepção sociológica – ou melhor, sociológico-jurídica -, que já se apresentava em
O problema do sindicato único no Brasil, tal doutrina reconhece a desigualdade sócio-
100
econômica que se estabelece entre empregados e empregadores, bem como os conflitos
e tensões sociais que daí emanam. Por isto mesmo, faz das relações sociais do trabalho,
desde que juridicamente estabelecidas a partir de um contrato, seu objeto precípuo,
procurando resolver a moderna questão social que tem origem, através de medidas
tutelares em favor dos trabalhadores. É uma doutrina jurídica que concebe o direito do
trabalho como um instrumento de resolução das desigualdades que se desenvolvem com
o capitalismo. Um instrumento que alcança esta finalidade por se colocar ao lado dos
interesses dos trabalhadores, fazendo destes, portanto, seus verdadeiros sujeitos.
Por conseguinte, foi partindo deste seu espírito democrático que, como vimos
nas páginas anteriores, Evaristo buscou pôr tal doutrina a serviço do desenvolvimento
social do país, tendo em vista torná-lo mais justo e equânime. Esbarrou, no entanto,
naquele conservadorismo histórico que surge como verdadeiro fio condutor ligando
períodos distintos de nossa vida republicana. Isto, por sua vez, em nada minimiza a
importância desta doutrina que agora passaremos a estudar, pois, se seu valor não
advém necessariamente pelo que materializou, infelizmente para todos nós, este se
mantém intacto pelo que deixou de gozar o Brasil.
isto já justifica a importância de se proceder a uma abordagem analítica
acerca desta doutrina, mas quando percebemos o significado desta para a inserção de
Evaristo no debate intelectual que animava os anos 1950, aí, esta justificativa se
reafirma ainda mais. Neste capítulo, portanto, buscamos a realização desta abordagem a
partir de duas seções. Na primeira, que se segue logo adiante, é a sociologia do direito
que ocupa o centro de nossa reflexão, onde buscamos demonstrar a relevância desta
sociologia especial para a própria fundamentação teórica da doutrina em questão. Como
verá o leitor, nossa preocupação recai sobre como esta ciência sociológica particular
influencia decisivamente a construção desta elaboração doutrinária, incidindo
101
diretamente sobre aspectos que lhe são fundamentais, como a natureza jurídica do
direito do trabalho, sua definição conceitual, sua denominação disciplinar e seu
horizonte legislativo. Na segunda seção deste capítulo, abordamos pontos mais
específicos da doutrina do direito do trabalho desenvolvida por Evaristo. Neste
particular, o foco de nossa abordagem é dirigido às finalidades e características
estabelecidas por Evaristo a este ramo do direito, donde se define, por sua vez, a própria
identidade de sua sistematização teórica. Por fim, concluímos ressaltando o viés
particularmente transformador, utópico, que, com base em tal doutrina, o eminente
jurista emprega ao direito do trabalho.
3.1 A sociologia jurídica na doutrina do direito do trabalho de
Evaristo de Moraes Filho
Desde já, é preciso destacar que a doutrina do direito do trabalho desenvolvida
por Evaristo de Moraes Filho é fortemente influenciada pela sociologia jurídica, na
verdade constitui mesmo o elemento central de sua fundamentação teórica. Não quer
isto dizer, porém, que se trate, em qualquer hipótese, de uma manifestação daquilo que
Machado Neto (1987) e o próprio Evaristo (1997) chamam de “sociologismo” ou
“imperialismo sociológico”. Não procura o jurista e sociólogo carioca proceder a uma
substituição da ciência jurídica pela sociologia do direito como propõem, por exemplo,
os principais artífices do movimento do direito livre, Hermann Kantorowicz e Eugen
Ehrlich
70
. Como vimos no primeiro capítulo desta dissertação, a posição de Evaristo se
70
Para uma análise mais detida acerca do movimento do direito livre e de seus principais propugnadores,
ver (Moraes Filho, 1997; pp. 136-143).
102
combina mais com aquela professada por Weber (1999), marcada, portanto, pela
autonomia destas duas áreas do conhecimento jurídico. Trata-se, pois, de uma doutrina
propriamente inscrita nos mores da ciência jurídica e, como tal, não se confundindo com
a sociologia do direito
71
; por isto mesmo, utilizamos o verbo influenciar e não outro
para nos referirmos a inegável relação que experimenta com aquela sociologia especial.
Mas, como dissemos, não se trata de qualquer influência, e sim de uma
influência central que exerce a sociologia jurídica sobre a doutrina do direito do
trabalho de Evaristo. Em 1974, ao proferir uma palestra denominada O Direito do
Trabalho no Estado de Direito” durante a VII Conferência Nacional da Ordem dos
Advogados do Brasil realizada na cidade de Curitiba -, Evaristo expressaria
claramente seu entendimento sociológico acerca deste direito ao compará-lo com o
direito administrativo.
Vindo da própria sociedade para o Estado, impondo-se a este, acabando
finalmente por ser reconhecido como direito vivo, espontâneo, surgido
diretamente dos fatos sociais, não pode o direito do trabalho ser confundido
com o direito administrativo, como fruto único do poder de política da
administração pública.
(Moraes Filho, 1984; p. 126)
72
Mas, no entanto, é em sua mais importante atividade de legislador do trabalho
o mencionado anteprojeto de Código do Trabalho que podemos verificar com mais
clareza esta relevância da sociologia jurídica na doutrina proposta por Evaristo, senão
71
Esta, inclusive, é uma questão que Evaristo procura acentuar muito claramente. Para ele, apesar das
características singulares que, como veremos adiante, contornos de especialidade ao direito do
trabalho, este se localiza indiscutivelmente no âmbito da ciência jurídica. Trata-se, pois, de uma
autonomia apenas relativa a que possui frente aos outros ramos do direito, uma vez que, assim como os
demais, o direito do trabalho também se definiria enquanto um comando universal de conduta – dotado de
positividade e exterioridade - com vistas a composição dos conflitos de interesses existentes na
sociedade.
72
O conteúdo da conferência em questão foi posteriormente publicado na obra O Direito e a Ordem
Democrática, pela editora LTr.
103
vejamos. Ali, no texto introdutório voltado exatamente à justificação doutrinária do
anteprojeto, pode-se verificar nitidamente o aspecto central desta sociologia especial
para a fundamentação teórica da doutrina e, conseqüentemente, de seu próprio Código.
Afinal de contas, são com estas palavras que Evaristo de Moraes Filho inicia seu texto:
As normas do direito do trabalho foram elaboradas fora do direito comum,
fora dos digos de direito privado. As relações a ser reguladas eram de
índole diversa, como diversos eram os problemas a ser tratados, solicitando
regras inspiradas em outros princípios e orientadas por outro espírito.
(Moraes Filho, 1963; p. 5)
E o que é isto senão autêntica sociologia jurídica? Trata-se claramente de uma
explicação que encontra no dinamismo mesmo do processo social a origem e o sentido
desta construção legislativa particular. Ainda em sua obra de 1952, havia dito o autor
que “(...) tiveram influência na gênese da constituição do sindicato durante o século
XIX os mesmos fatores que determinaram o aparecimento do próprio Direito do
Trabalho, como ramo autônomo da ciência jurídica.” (Moraes Filho, 1978; p. 106),
para caracterizar não somente a relação entre ambos, mas, sobretudo, para frisar-lhes
sua origem particularmente sócio-histórica. E se é na história que Evaristo encontra os
fatos que lhe permitem ratificar tal entendimento acerca do direito do trabalho, é na
sociologia jurídica que ele ganha inteligibilidade teórica, afinal, o que vemos na
passagem acima diz respeito unicamente à já conhecida relação entre normalidade
social e normatividade jurídica que, enquanto postulado próprio daquela sociologia
especial como vimos, aqui atua como recurso de abstração, de síntese cognitiva, acerca
de um processo histórico real e extremamente complexo
73
. Não seria, pois, por acaso
73
Em O problema de uma sociologia do direito, Evaristo já havia traçado o sentido desta relação entre a
sociologia e a história, entre a síntese abstrata e os fatos concretos. Segundo ele, ambas as ciências se
104
que com aquelas palavras Evaristo inicia a justificação doutrinária de seu anteprojeto de
Código do Trabalho, ao contrário, seria o anúncio explícito do viés propriamente
sociológico-jurídico que marcaria a fundamentação teórica da doutrina ainda por ser
apresentada.
Em Introdução ao direito do trabalho, sua principal obra doutrinária acerca
deste ramo do direito, encontramos, ademais, diversas outras manifestações disto que há
pouco anunciamos a começar pela própria definição de direito do trabalho que
apresenta. Segundo a doutrina de Evaristo, este direito particular consiste no “(...)
conjunto de princípios e de normas que regulam as relações jurídicas oriundas da
prestação de serviço subordinado e outros aspectos deste último, como conseqüência
da situação econômica das pessoas que o exercem.” (Moraes Filho, 1956; p. 50). Trata-
se de uma definição que, de acordo como o que explica o próprio autor, se filia à
corrente de classificação jurídica tida como mista ou complexa. Significa isto que a
definição proposta por Evaristo não se pauta exclusivamente nem pelo objeto nem pelo
sujeito deste direito, mas sim por ambos conjuntamente. O aspecto objetivo do direito
do trabalho seriam assim as próprias relações jurídicas que se estabelecem entre as
partes envolvidas por meio de um contrato de trabalho, seja ele individual ou coletivo.
O mesmo vale no que tange ao seu sujeito, ou seja, os trabalhadores, que tanto
individual quanto coletivamente com prevalência para esta segunda modalidade
consistem nos autênticos portadores deste direito
74
.
completam mutuamente, pois, como afirma (1997, p.111): “(...) de nada adiantaria o estudo fracionado
da realidade social, sem um estudo geral, abstrato.”. Mas, por outro lado, “Para não cair numa
catalogação anêmica de formas puras de socialização ou de tipos ideais de ações sociais, deve o
sociólogo procurar comprovar os resultados obtidos pelos dados concretos proporcionados pela
história.”.
74
A este respeito é elucidativa a passagem em que Evaristo compara a distância dos direitos comercial e
do trabalho frente ao direito civil, tendo como fundamento os sujeitos daqueles respectivos direitos. Diria
ele que “O direito do trabalho separa-se ainda mais nítida e profundamente do direito comum do que o
comercial. Neste, o comerciante está sempre a invocar a proteção do direito civil, não só porque ambos
possuem muito em comum, principalmente na parte geral e na teoria das obrigações, mas também como
proprietário, como herdeiro, como testamenteiro, como administrador de bens (...) o mesmo não
105
Mas, para além desta classificação propriamente jurídica - a qual não convém
nos determos mais profundamente sob pena de nos afastarmos em demasia de nossos
propósitos –, a definição de direito do trabalho elaborada por Evaristo revela todo o
potencial teórico da sociologia do direito sobre sua doutrina. O próprio conceito de
“norma” presente na definição do autor é caudatário de seu pluralismo jurídico. Encerra
este conceito não somente os dispositivos de comando emanados diretamente do
Estado, como também aquele conjunto mais amplo de direitos espontâneos que
autonomamente se constituem a partir das relações reais que se estabelecem entre
patrões e empregados. Vale a citação.
(...) normas não significam unicamente leis ou regras de conduta
expressamente ditadas pelo Estado. Incluem-se em seu conceito toda e
qualquer modalidade de comando abstrato e universal, emanado de uma
autoridade legítima em qualquer grupo social, munido de sanção externa.
Desde o grupo englobador, a nação, à empresa e ao sindicato, todos são
esferas onde se manifestam regularmente os fatos normativos do direito.
Incluem-se aí, portanto, não só as composições espontâneas, voluntárias, dos
conflitos sociais, como igualmente as necessárias ou obrigatórias. Normas
autônomas ou heterônomas, oriundas da livre concorrência das vontades dos
indivíduos ou impostas de fora, pouco importam, que ambas engendram
inúmeras e complexas relações e situações jurídicas, proporcionando de
certa maneira a composição daquele conflito de interesses em sociedade.
(idem, p. 51)
75
E desta maneira plural de se enquadrar teoricamente o conceito de “norma”
resulta um ponto de suma importância em sua doutrina: a natureza jurídica do direito
ocorre no direito do trabalho, que passa a ser quase o único direito de toda a vida do empregado. Com
raras exceções, que antes confirmam a regra, o trabalhador nasce de família operária, vive e morre
mergulhado todo o tempo nas normas de seu direito especial. Pouco possui o direito civil que lhe seja
aplicável, que o Código Civil é inegavelmente o código dos bens. Fora a parte geral de introdução e
alguns dispositivos sobre família e obrigações, o resto estatui sobre a propriedade. Quem não é
proprietário poucas vezes será sujeito de direitos civis.” (Moraes Filho, 1956; p. 132).
75
Grifos no original. Pouco mais adiante segue Evaristo tratando do assunto (idem): “Para que seja
considerada norma positiva ou direito objetivo é o bastante que se trate de um comando geral, em vigor
em uma sociedade determinada, impondo-se aos seus membros e suscetível de ser assegurado pela
coerção organizada. Estão presentes aí, todas as fontes do direito do trabalho: a lei, propriamente dita,
as sentenças normativas emanadas dos tribunais de trabalho, as convenções coletivas de trabalho, os
usos e costumes, os atos das autoridades administrativas, e assim por diante.”.
106
do trabalho. Segundo Evaristo de Moraes Filho, este ramo do direito distingue-se de
seus congêneres, entre outras coisas, em função de sua natureza jurídica particular.
Diferenciando-se de outros autores que entendem o direito do trabalho seja como um
ramo jurídico exclusivamente relacionado ao direito público, seja como exclusivamente
relacionado ao direito privado, Evaristo introduz a noção de que o direito do trabalho
encerra um direito unitário.
Por conta mesmo da pluralidade de fontes que informam suas normas, doutrina o
jurista carioca que a clássica distinção entre direito público e privado não satisfaz a uma
classificação adequada do novo direito. Segundo ele, ao deixar para trás o estatuto de
legislação esparsa e descontínua para, em sua evolução histórica, constituir-se
propriamente num direito integrado e coerente, as normas do novo direito – antes
oriundas tanto da esfera privada da relação entre patrões e empregados, quanto da esfera
pública da relação destes com o Estado –, todas elas “(...) amalgamaram-se numa
substância nova, diferente, criando-se uma nova combinação de elementos até então
diversos entre si, e não uma simples mistura.” (Moraes Filho & Moraes, 1993; p. 116).
Assim, segue o autor afirmando que “Perdem aqueles elementos de origens estranhas
as suas antigas características, acabando por ganhar as novas de um direito unitário
(...) de uma combinação orgânica dos caracteres do direito público e do privado.”
(idem). É o pluralismo jurídico próprio da sociologia do direito de Evaristo servindo de
fundamentação teórica a uma doutrina que situa o direito do trabalho por fora dos
quadros da ciência jurídica tradicional, de sua classificação estritamente fundada sobre
dois blocos estanques: o direito público e o direito privado.
Mas isto não é tudo em se tratando da influência da sociologia jurídica na
doutrina proposta por Evaristo. Voltando àquela sua definição conceitual do novo
direito, encontramos o ponto alto desta influência; algo que se expressa na própria
107
definição de seu objeto: as relações jurídicas. Neste sentido, importa termos em conta
que, ao definir tais relações como o objeto precípuo do direito do trabalho, nada mais
fez Evaristo que trazer para o centro de sua doutrina o objeto, por excelência, da
sociologia jurídica. antes em seu Problema de uma sociologia do direito, por
influência mesmo da sociologia de Simmel e Weber em seu pensamento, Evaristo
encontraria nas relações sociais o objeto que singularizaria a ciência sociológica,
tornando-o competência desta em comparação às outras ciências sociais. De outro lado,
afirmava o autor naquela ocasião que a distinção entre as diversas sociologias especiais
que então surgiam tinha origem na capacidade de cada uma surpreender as relações
sociais em seu respectivo campo de cultura; cabendo, pois, à sociologia jurídica
exatamente as relações sociais do direito, as relações jurídicas
76
.
E como ele mesmo faria questão de acentuar, admite sua doutrina esta expressão
em sentido amplo, (...) como simples relações sociais reguladas pelo direito positivo.”
(Moraes Filho, 1956; p. 52), exatamente para marcar seu entendimento para além dos
marcos teóricos da ciência do direito. O mais importante, porém, é que como elemento
objetivo deste ramo jurídico, as relações sociais, ou melhor, as relações jurídicas do
trabalho, viriam consistir em nada menos do que no “(...) núcleo central em torno do
qual gira o direito do trabalho.” (idem).
E é, pois, com base no espaço de destaque que esta dimensão relacional ocupa
em sua doutrina, o motivo fundamental pelo qual Evaristo denomina este novo ramo do
saber e da prática jurídicas como “direito do trabalho”. Segundo vem chamar atenção o
autor, esta não é uma questão sem importância, afinal, como ele mesmo explica (idem,
p.159): É preciso que se uma denominação única a esta seção da ciência jurídica,
76
Sobre isto ver Moraes Filho (1997, pp. 101-118).
108
porque daí advirá um critério uniforme de tratamento da matéria por ela estudada (...)
De acordo com o critério seguido, a definição será mais ampla ou mais restrita.”.
Tendo assim como critério aquela dimensão relacional - a relação de trabalho
juridicamente estabelecida a partir do contrato -, a doutrina de Evaristo acentua sua
particularidade em referência ao que aqui se produzia em meados dos anos 1950. No
que diz respeito à matéria em questão, segundo frisa o próprio Evaristo, desde a década
de 1940 predominavam no Brasil doutrinas que enquadravam o novo direito a partir da
denominação “direito social”. A isto se devia à grande presença do referido jurista
Antônio Cesarino Júnior, por intermédio do chamado Instituto de Direito Social que tal
jurista criara e presidira em São Paulo no período considerado. De acordo com as
doutrinas assim denominadas, lhes parecia um equívoco referir-se a este ramo jurídico
pela expressão “direito do trabalho”, sendo dois os motivos principais responsáveis por
tal perspectiva: a própria origem deste direito; e sua vastidão legislativa que, ao regular
questões como previdência, seguro social e outras, muito se alcançava para além do
contrato de trabalho e das relações sociais que engendra.
Evaristo, no entanto, rejeita frontalmente estas duas objeções. No que tange à
primeira, recorreria à sua maneira sociológica de compreender o mundo jurídico para
afirmar a redundância daquela expressão, que, para ele, todo direito é genuinamente
social
77
. Ademais, ao denominar o direito em questão como “do trabalho”, Evaristo
também apresenta consideração pela questão de sua origem, afinal, entende o autor que
o surgimento e desenvolvimento deste direito resulta fundamentalmente do processo de
77
É o que se observa do debate travado com Cesarino Júnior sobre este ponto, onde afirmaria o autor
(idem, p. 216): “Todo o direito é social, nisso que vem da sociedade, única fonte material do direito, e
para ela se volta, já que é a única matéria que deve regular. É uma norma de conduta social.”.
109
modernização capitalista, tendo como fulcro central as transformações mesmas que se
fizeram sentir sobre o mundo do trabalho a partir do século XIX
78
.
Em se tratando da segunda objeção, é exatamente a relevância da relação de
trabalho no seu entendimento sobre a matéria que lhe permite questionar aquela
perspectiva. Com base na centralidade que ocupa em seu esquema gico, a relação de
trabalho surge como critério definidor da abrangência legislativa do novo direito. Isto
não quer dizer, porém, que se restrinja a regular especificamente a dimensão contratual
que encerra aquela relação. Mas levando-a em consideração decisivamente, procura
regular também as condições e conseqüências que lhe são inerentes na sociedade atual.
Reconhece, pois, a subordinação e as diferenças sócio-econômicas entre empregados e
empregadores que resultam inexoravelmente da relação de trabalho
79
, tendo em vista,
como diz Evaristo, “equilibrar os pratos da balança” (idem). Por isto, coloca-se o direito
do trabalho ao lado dos trabalhadores que, por ter toda sua vida social e econômica
determinadas exatamente por sua posição na relação em questão, procura regular não
somente o momento em que esta se realiza praticamente, como também outros domínios
da vida do empregado que derivam da própria existência deste tipo de relação social.
Daí, pois, a explicação de Evaristo para a vastidão legislativa do novo direito.
(...) a relação de trabalho é o principal objeto do direito do trabalho, com a
sua regulação e tutela, mas não exclusivo. Ocupa-se este novo ramo do
direito ainda de outros aspectos da vida do trabalho, como uma
conseqüência da situação ou do status social e econômico em que vivem as
duas pessoas desta mesma relação. A relação constitui tão somente um dos
78
Para mais detalhes acerca deste ponto no pensamento de Evaristo ver (Moraes Filho, 1956; pp. 319-
353) e (Moraes Filho, 1978; pp. 99-181).
79
Abordando esta questão da subordinação inerente à relação de trabalho afirmaria Evaristo (idem, p.
55):”O elemento característico dessa relação de trabalho é, assim, o estado de subordinação ou
dependência em que fica o empregado, por força mesma do contrato, frente a quem lhe dá serviço, isto é,
seu empregador (...) Caracteriza-se este estado pela dependência real criada por um direito, o do
empregador, de dar ordens, surgindo daí para o empregado a obrigação correspondente de se submeter
a essas ordens (...) Em resumo, manifesta-se a subordinação jurídica através dos poderes de direção e
fiscalização por parte do empregador.”.
110
modos, talvez o mais concreto, de se manifestar a posição na comunidade
dos dois elementos que a compõem.
(idem, p. 56)
Por isto, prossegue Evaristo de Moraes Filho (idem):
Mesmo fora do local da prestação de serviços, mesmo no recesso de seu lar
leva o direito do trabalho ajuda e proteção ao hipossuficiente do ponto de
vista econômico [o empregado]. Previne-lhe os riscos da vida natural em
sociedade, através do seguro social, quando não mais puder trabalhar, por
invalidez ou por velhice. Presta-lhe pequenos auxílios para a satisfação dos
inevitáveis ou excepcionais eventos (riscos) da existência de todos os dias:
auxílio-doença, auxílio-funeral, auxílio-natalidade, auxílio-matrimônio.
Proporciona-lhe auxílio monetário quando se encontra desempregado
forçadamente (...) Mesmo depois de sua morte, propicia à sua viúva ou ao
seu dependente econômico uma certa pensão financeira.
Tendo, pois, as relações sociais do trabalho no centro de sua doutrina, Evaristo
estabelece um critério preciso para delimitar o horizonte legislativo do novo ramo da
ciência jurídica, em comparação com o espectro excessivamente amplo que, por conta
mesmo de sua indefinição terminológica, a denominação “direito social” preconizava
entre nós
80
. Por outro lado, esta sua posição é também o fundamento que fornece
sentido a todos os elementos que constituem aquela definição dada por Evaristo ao novo
direito, isto é, seu sujeito, o foco no caráter subordinado da prestação de serviço, e a
extensão de sua regulação aos outros aspectos que daí derivam como conseqüência da
situação econômica daqueles que a exercem. Ademais, é preciso salientar, ambas as
80
É também em debate com Cesarino Júnior, como não podia deixar de ser em função de sua relevância
neste campo de conhecimento àquela época, que Evaristo lança suas críticas à corrente que enquadra o
novo ramo jurídico a partir da expressão “direito social”. antes dizia que “(...) não resiste a menor
crítica a locução ‘direito social’ como significativa de uma disciplina jurídica específica e particularista.
E isto por vários motivos (...) O primeiro deles é a ambigüidade do qualificativo ‘social’, excessivamente
genérico e equívoco que, querendo tudo exprimir, acaba por mergulhar numa vacuidade assustadora.”
(idem, p. 209). Assim, de posse deste entendimento lançaria, mais adiante, sua crítica à perspectiva
excessivamente abrangente desenvolvida por aquele jurista de São Paulo. Diria Evaristo (idem, p. 217):
“(...) voltando ao segundo argumento de Cesarino Júnior, teríamos no âmbito do direito social tudo
quanto se referisse à assistência social, em sentido amplo, todo o trabalho social, toda a ação social,
todo o serviço social (...) Ora, confessemos que isso seria ampliar demais o direito do trabalho, tornando
os seus limites imprecisos, dificultando mesmo a sua autonomia científica e didática entre as outras
espécies jurídicas.”.
111
questões resultam diretamente do entendimento sociológico do autor, tendo em vista a
primazia que estabelece à dimensão das relações sociais; segundo pensamos, sem tal
entendimento, não teria o autor conseguido delimitar e definir de maneira tão precisa e
clara este ramo da ciência jurídica. Percepção nossa que se confirma, sobretudo, quando
vemos, na sexta edição de sua Introdução ao direito do trabalho, escrita em
colaboração com seu filho Antônio Carlos de Moraes, Evaristo afirmar:
Os inquéritos, as pesquisas, os dados reais e estatísticos são oferecidos ao
jurista pelo sociólogo, a quem não cabe indicar os fins práticos e a forma de
melhor organização. Contudo, são estudados os fatores de ajustamento e de
desajustamento social, muitas vezes surpreendidos fora e longe do local de
trabalho, tais como a vida doméstica, os grupos de vizinhança, as
influências políticas e ideológicas (...) vai caber à sociologia a pesquisa dos
fatos sociais, da situação, da vida do trabalho, sem normatividade. E com
isso é da maior importância o auxílio que ela presta ou pode prestar ao
direito do trabalho.
(Moraes Filho & Moraes, 1993; pp. 134-135)
81
Sendo ele próprio jurista e sociólogo, consegue Evaristo, como vimos acima,
relacionar muito bem os dois pólos da relação entre a sociologia e o direito em sua
doutrina jurídico-trabalhista: a realidade social (normalidade) e a normatividade
jurídica. Assim, diferentemente do que propõe Kelsen em sua “teoria pura”, não procura
Evaristo afastar sua doutrina dos fatos sociais. Para frisar-lhe sua vinculação ao
conjunto da ciência jurídica não necessita colocá-lo em uma “torre de marfim” distante
da realidade, ao contrário, em não poucas oportunidades, tornaria clara a idéia de que
“O dinamismo é a sua essência (...) Caminhando [o direito do trabalho] rente à vida,
sentindo a própria realidade concreta (...).” (Moraes Filho, 1956; p. 124). Por isto
mesmo, com base nesta perspectiva sociológico-jurídica que resulta de seu
envolvimento profissional sobre ambas as áreas, voltar-se-ia diretamente contra o
81
Grifos nossos.
112
dogmatismo clássico da ciência jurídica tradicional. Primeiro, no que tange à
inadequação de uma aplicação estrita de seu método lógico-formal a este ramo do
direito
82
. E, em segundo lugar, contra aqueles, que por puro tradicionalismo jurídico,
ainda insistiam em negar a existência do caráter autônomo e especial do direito do
trabalho. Aqui, a sociologia jurídica que informa seu pensamento seria o aspecto
diferencial que faria de Evaristo um ardoroso defensor desta autonomia, em
contraposição às idéias juspositivistas que ainda se faziam presentes na cabeça de
muitos juristas de sua época. Apesar de sua extensão, pedimos licença ao leitor para
transcrever a passagem que se segue, de suma importância ao que estamos procurando
demonstrar. Assim, segundo escreve Evaristo (idem, pp. 471-472)
83
:
Não temos dúvida alguma quanto à autonomia do direito do trabalho. Mas a
verdade é que o jurista prefere sempre jogar com as cartas suas velhas
conhecidas. O conservantismo é o seu sentimento mais característico. Junte-
se a isso a sua preferência pelos conceitos abstratos, universais e eternos.
Sempre o incomodou qualquer tentativa de renovação, que sugere alguma
coisa de rompimento com o tradicional (...) Entre ele e os dados concretos
colocam-se as suas normas, que lhe parecem eternas e perfeitamente lógicas.
É este conjunto, sistemático, coerente e bem ordenado, que acaba por
constituir a dogmática jurídica (...) Mas, por mais que se diga que a ciência
jurídica começa a existir com a norma, seu dado imediato, ninguém pode
negar que o direito encontra sua matéria no fato econômico e social concreto
(...) E como lembra Perroux repetindo neste particular toda a escola da
sociologia jurídica um direito social, em perpétua progressão, pesa
constantemente sobre o direito positivo, dando lhe nova vida ou fazendo-o
arrebentar.
Depois de tudo que dissemos nesta seção, nos parece suficientemente claro o
quão relevante é a sociologia do direito para a fundamentação teórica da doutrina
jurídico-trabalhista de Evaristo de Moraes Filho, influenciando-a diretamente e, como
vimos, tendo ascendência fundamental sobre suas dimensões mais gerais, tais como sua
natureza jurídica, sua definição conceitual, sua denominação disciplinar e, em
82
Crítica que Evaristo desenvolve, ademais, a partir de uma retomada do caráter sócio-histórico de sua
formação. Segundo ele, “Surgido em meio a lutas políticas e sociais, não pode o direito do trabalho
recolher-se a uma atitude restrita de mero tecnicismo jurídico, de simples lógica jurídica, estranho aos
motivos e às condições que lhe deram o primeiro impulso histórico.” (idem, p. 235)
83
Grifos nossos.
113
decorrência, seu horizonte legislativo. Cumpre agora, para já irmos finalizando este
capítulo, abordar outras dimensões mais específicas desta doutrina – suas características
e finalidades para que possamos desenvolver um entendimento mais completo a seu
respeito.
3.2 Características e finalidades de um direito de transição para uma
civilização em mudança.
Para Evaristo de Moraes Filho, o direito do trabalho consiste numa culminação
formal, logicamente coerente, de um processo histórico complexo e objetivo, uma vez
que, “A rigor, não possui o direito [em geral] matéria que lhe seja própria. A sua regra
nada mais é do que o revestimento ético, de comando pragmático, de um conteúdo
concreto que lhe é alheio.” (idem, p. 248). Neste sentido, sua existência e substância
teriam origens no próprio processo social. A sociedade moderna teria conhecido, ao
longo do século XIX, mudanças profundas em suas estruturas política, econômica e
social –, que se expressariam na passagem de um liberalismo radical a uma nova ordem
social de cunho coletivista; eram os grupos sociais de todo tipo ocupando, pois, o
espaço de destaque que antes gozaram os indivíduos isolados.
As principais sociedades ocidentais seriam, assim, sacudidas pelo
estabelecimento de novas formas de relações sociais, tendo como centro dinâmico as
transformações mesmas que se fizeram sentir sobre o mundo do trabalho. O
desenvolvimento do capitalismo decorrente de um estabelecimento cada vez mais
acentuado da grande indústria, traria transformações profundas às relações sociais de
produção; com o crescimento das desigualdades sociais e econômicas entre empregados
e empregadores e, conseqüentemente, com a intensificação de conflitos e tensões
114
provenientes de seus distintos interesses. As sociedades por intermédio, sobretudo,
das instituições de classe que as constituíam reclamavam, de forma cada dia mais
intensa, o estabelecimento de direitos coletivos oriundos da nova realidade social, em
contraposição ao ordenamento jurídico moderno, de caráter acentuadamente
individualista.
Surgiam, assim, os primeiros acordos coletivos espontâneos e as primeiras leis
oficiais voltadas à regulação específica das relações de trabalho, e que, posteriormente,
viriam constituir o direito do trabalho, segundo a ótica de Evaristo de Moraes Filho. Um
direito, portanto, nascido da especificidade das novas relações sociais aparecidas com o
desenvolvimento capitalista, e não a partir de um desdobramento gico das regras do
direito comum. E é, pois, com base nesta particularidade de sua gênese que a doutrina
de Evaristo vem sustentar o caráter especial do direito do trabalho, uma vez que, “Se
especiais são as relações reais e concretas reguladas pelas normas (empregado-
empregador, individual ou coletivamente considerados), especiais também devem ser
estas.”
84
(idem, pp. 434-435).
Contudo, mais do que um simples direito especial – com princípios gerais
particulares, ordenamento jurídico próprio e institutos de direito específicos
85
- o direito
do trabalho encerra, segundo sua doutrina, um autêntico direito de transição. Isto é,
entende o autor que o direito do trabalho representa a expressão jurídica de uma
sociedade em transformação, ou como prefere, de uma “civilização em mudança”. Tem
84
Vale frisar, no entanto, que, para além desta independência frente ao direito comum e do fato de regular
relações sociais especiais, a doutrina de Evaristo incluiria ainda sua destinação à determinada classe de
pessoas (no caso, os trabalhadores), como outra nota típica a caracterizar o direito do trabalho enquanto
gênero especial da ciência jurídica.
85
De acordo com o que expõe o autor, o direito do trabalho possui institutos jurídicos específicos, que,
por isto mesmo, não encontram explicação dentro dos princípios e doutrinas do direito civil. Seriam eles:
a convenção coletiva do trabalho, o dissídio coletivo de trabalho, a sentença normativa dos tribunais do
trabalho que por si só, denota a existência de um ordenamento jurídico próprio a este ramo do direito
-, bem como um princípio interpretativo particular que pauta-se por uma inclinação favorável aos sujeitos
de titularidade deste novo direito os trabalhadores -, quando verificam-se dúvidas ou o silêncio da lei
sobre algum ponto particular. Ver Moraes Filho (idem, pp. 416-424).
115
lugar aqui, portanto, uma clara manifestação da utopia que caracteriza o pensamento
social e político de Evaristo sobre sua doutrina jurídico-trabalhista. Uma utopia em
sentido propriamente mannheimiano, que em nada se confunde com a idéia de um
sonho de realização impossível (Mannheim, 1976), mas sim que compreende as
transformações sociais, políticas e econômicas que se originam ainda no século XIX,
como elementos determinantes de um processo inexorável de abandono do modelo
liberal clássico de organização da sociedade em detrimento de um outro, pretensamente
mais democrático, que, sobretudo após a Segunda Grande Guerra, se caracterizaria por
uma organização planificada da economia em comunhão com os princípios da liberdade
social e política.
Dentro desta perspectiva, o direito do trabalho surge não somente como uma
cristalização jurídica, um desdobramento acabado daquelas profundas e duradouras
transformações ocorridas no seio da estrutura social. Não por sua origem, como
também por seu desenvolvimento, este ramo do direito seria visto também enquanto um
comando de conduta característico de uma sociedade em movimento, que caminharia,
segundo o autor, para o estágio por certo ainda distante de um ordenamento social
fundado sobre a indistinção de classes
86
. Tratar-se-ia, pois, de um direito que traz
consigo, que anuncia, uma nova forma de organização social ainda por se fazer
existente, de forma que, segundo Evaristo, “(...) desempenha o direito do trabalho um
papel revolucionário de vanguarda na ciência jurídica.” (idem, p. 237).
Em função desta sua particularidade, ou seja, de constituir-se em um “(...)
ordenamento jurídico de transição, que não é bem o da antiga estrutura social, mas
86
É o que se depreende claramente quando, julgando-a como perfeita, faz sua a análise do jurista francês
George Scelle, quando este afirma (1927, p. 349 apud Moraes Filho, 1956; p. 154): “A legislação do
trabalho corresponde a uma época de transição. O que apresenta de inacabado e de instável provém do
jogo contínuo das ações e reações do meio em que se elabora. O sentido imutável de sua evolução
pressagia contudo a vitória da democracia social e do desaparecimento, longínquo sem dúvida, do
regime do salariado.”.
116
que também não é ainda o da nova formação que há de vir.” (idem, p. 154), este direito
vanguardista da ciência jurídica seria, assim, orientado para a realização de diversos fins
ou objetivos bem particulares. Segundo Evaristo, sendo ele o ramo do direito que mais
se inclina pelo ideal valorativo da justiça, sua doutrina vai apontar que um dos objetivos
principais do direito do trabalho consiste em atuar decisivamente pelo equacionamento
da chamada “questão social”.
(...) em nenhum ramo do direito se manifesta tão ao vivo, cruentamente ao
vivo, a luta entre os dois ideais valorativos do ordenamento jurídico: a
segurança e a justiça. Se a ordem jurídica individualista, se a organização
jurídica do capitalismo se inclina pela primeira, querendo manter e
conservar um estado de coisas tradicional; volta-se o novo direito para uma
redistribuição dos bens sociais, dando a cada um aquilo que lhe pertence,
procurando romper a antiga estrutura econômica e social. Em nenhum outro
direito se encontra tão dramática e intensa esta sede de justiça social como
no direito do trabalho.
(idem, p. 21)
Assim sendo, lança mão este novo direito de um tratamento diferenciado entre as
partes que constituem a relação de trabalho, procurando tratar desigualmente a seres
desiguais econômica e socialmente. Tem lugar, portanto, aquilo que a doutrina de
Evaristo consagra como a finalidade jurídica do direito do trabalho, considerada mesmo
a parte primordial deste direito especial: a tutela do trabalhador.
Significa isto, por sua vez, em nada mais do que as medidas jurídicas
sancionadas pelo Estado com vistas à proteção sócio-econômica dos trabalhadores, tais
como leis de salário mínimo, seguro desemprego, seguro contra acidentes de trabalho,
leis de duração da jornada de trabalho, previdência social, dentre outras. Tratam-se,
pois, tais medidas tutelares, de expedientes que perseguem a justiça e a igualdade entre
empregados e empregadores através de uma compensação da desigualdade econômico-
117
social resultante da relação de emprego por uma desigualdade jurídica em favor do lado
mais fraco desta relação: os empregados.
As mesmas causas sociais, que lhe determinaram o surgimento,
transformaram-se em fins no espírito dos homens, outros tantos objetivos a
ser atingidos para correção da própria realidade econômico social dos nossos
dias. Ressaltava logo à vista a desigualdade concreta em que viviam os
contratantes na relação de emprego. O desequilíbrio era patente, fazendo
com que as manifestações de vontade de uma grande parte dos interessados
a maior, porque dos empregados, que necessitavam do salário para viver –
viessem viciadas desde a origem, extrajuridicamente. Daí a finalidade
manifesta e inequívoca de tutela das leis do trabalho, que, pendendo mais
para um dos lados, procura compensar uma desigualdade real com outra
desigualdade, embora formal, apenas.
(idem, p. 257)
De fato, esta finalidade jurídica de tutela do trabalhador
87
não constitui mero
detalhe na doutrina jurídico-trabalhista de Evaristo, ao contrário, responde ela por um
aspecto primordial desta; afinal, é por intermédio dos expedientes de que lança mão
para efetivar-se que o direito do trabalho atinge o segundo de seus objetivos principais,
isto é, o encaminhamento pacífico das transformações sociais. Coerente com o espírito
reformista que informa sua concepção política, Evaristo enxerga no direito do trabalho,
na pretensão igualitarista que encerra as medidas de tutela do trabalhador, o instrumento
por excelência de uma transição social pacífica, sem rupturas bruscas e violentas do
status quo. Verifica-se aqui, por conseguinte, outra nota típica que a doutrina de
Evaristo de Moraes Filho atribui ao direito do trabalho. Ou seja, em função mesmo de
sua qualidade de norma de transição, de meio-termo entre dois mundos sociais distintos,
87
Ainda sobre esta questão, importa frisar que, segundo a doutrina de Evaristo, estas medidas de proteção
do trabalhador acabam por tutelar o próprio “trabalho” enquanto fato social, dotando-lhe, pois, de novas
qualidades. É o que se expressa claramente quando afirma o autor (idem, p. 258): “(...) através da tutela e
da proteção que dispensa a um dos lados do binômio empregatício ao trabalhador realiza o direito
do trabalho a sua principal finalidade jurídico-formal, tornando menos injustas as relações entre
empregador e empregado, atingindo assim, de modo indireto, a tutela do próprio fato social do trabalho,
que se torna mais digno, mais produtivo e mais compensador.”.
118
tal direito atuaria como canal de assimilação, como espaço de acomodação das
transformações sociais em curso; conduzindo sem sobressaltos os seus
desdobramentos, com vistas ao estabelecimento de uma paz social que repousaria na
construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Dadas as transformações técnicas e econômicas do mundo moderno, as lutas
políticas e os ideais insopitáveis do nosso tempo, tornava-se necessário uma
correspondente ordem jurídica que, modelando organicamente toda essa
matéria, a fosse conduzindo pacificamente para sua própria finalidade (...)
Sua tarefa mais alta e inadiável é a da obtenção da paz social, pelo advento
de uma sociedade menos injusta, em que uns e outros, empregados e
empregadores, sejam de fato colaboradores na obra comum da empresa,
tanto quanto possível num regime associativo, de colaboração, e não mais
como atualmente, de subordinação ou dependência.
(idem, p. 154)
É com base neste entendimento, que compreende as medidas de tutela do
trabalhador como dispositivos para um encaminhamento pacífico de resolução da
chamada questão social, o fundamento pelo qual a doutrina jurídico-trabalhista de
Evaristo vem apontar objetivos outros a este ramo particular do direito para além do
terreno jurídico propriamente dito. Na verdade, em relação a esta finalidade jurídica de
tutela do trabalhador, a despeito de sua relevância, não se furtaria Evaristo a apontar seu
caráter estritamente técnico, formal, no qual os fins últimos que busca atingir estariam
situados em outras esferas da realidade social.
O direito é a forma técnica, o controle formal, através do qual se realizam
todas as finalidades humanas em sociedade: econômicas, políticas, sociais,
éticas, artísticas, educacionais, religiosas, e assim por diante. Todas essas
afirmativas ficam absolutamente claras e bem compreensivas ao
verificarmos que os fins jurídicos do direito do trabalho [as medidas
tutelares] nada mais são do que medidas práticas e legais que o Estado toma
em favor da efetivação daquelas finalidades econômicas, políticas e sociais
oriundas de outras esferas, às vezes extrajurídicas.
(idem, p. 248)
119
Por conseguinte, à revelia dos positivistas do direito – como Kelsen -, que
indicam a necessidade das doutrinas aterem-se exclusivamente ao que, ilustrativamente,
poderíamos chamar de “feudo jurídico”, esta desenvolvida por Evaristo não teria
maiores considerações por tal tipo de cânone, de forma que, aponta finalidades político-
sociais e também finalidades econômicas – ambas extrajurídicas - ao direito do trabalho.
No que tange à primeira, adquire relevo a questão gerencial das empresas, onde, em
consonância com aquele objetivo de canalização pacífica das transformações sociais,
Evaristo viria ressaltar a necessidade teleológica do direito do trabalho em garantir uma
verdadeira ampliação democrática dos espaços empresariais.
Sem mudança de estado econômico de produção, mesmo em pleno regime
capitalista, vai o direito do trabalho realizando a mudança social sem saltos,
sem bruscas alterações. A sua finalidade política manifesta-se no sentido de
maior democratização da empresa, com a maior participação dos
trabalhadores na direção e na gestão da unidade econômica.
(idem, p. 236)
E é de par com esta finalidade político-social de democratização da empresa,
que Evaristo doutrina uma das finalidades econômicas do direito do trabalho.
Finalidade esta que, por seu turno, diria respeito a um aprofundamento mesmo deste
processo de democratização político-social do espaço empresarial. Tratar-se-ia, pois, de
uma maior participação dos empregados também na esfera econômica da empresa,
através de expedientes que lhes assegurassem o direito de também se beneficiarem dos
resultados econômicos por ela alcançados.
A democratização da empresa, através da cogestão administrativa, é
realizada aqui mediante mais de um expediente. Um deles, e dos mais
importantes, é a participação dos empregados nos lucros das empresas, sob
qualquer de suas modalidades, inclusive do acionariado operário.
(idem, p. 242)
120
Pode-se inferir, no entanto, que esta finalidade propriamente econômica de uma
melhor redistribuição dos lucros aos empregados, consiste, de certa maneira, em uma
finalidade de dimensões particularmente microscópicas ao direito do trabalho, tendo em
vista sua circunscrição ao espaço da organização empresarial em si mesma. Contudo, na
doutrina desenvolvida por Evaristo de Moraes Filho, o direito do trabalho teria ainda
finalidades econômicas de caráter mais abrangentes, macroscópicas, por assim dizer.
Para o jurista carioca, este ramo do direito consistiria em um instrumento
privilegiado de planificação da vida econômica, tendo por base a possibilidade de uma
organização justa e racional do mercado de trabalho que traz consigo. Assim, segundo
apresenta, por regular aquilo que considera o centro da vida econômica nas sociedades
modernas, ou seja, as relações sociais de produção, o direito do trabalho seria dotado
das condições fundamentais através das medidas de tutela do trabalhador que lhe
constituem para atuar diretamente sobre as desigualdades econômicas que
redundariam da livre concorrência no mercado e que caracterizaria de maneira tão
flagrante esta nossa sociedade capitalista atual. Ademais, ainda em referência ao seu
papel na organização racional da atividade econômica, Evaristo destacaria outras
atribuições ao direito do trabalho. Casos, por exemplo, de sua participação sobre o preço
da mão-de-obra no mercado de trabalho em função dos encargos que suas medidas
tutelares trazem consigo, bem como, desdobramentos daí decorrentes, tais como sua
incidência sobre os preços de mercadorias e serviços, a capacidade de consumo da
população e, até mesmo, o deslocamento regional desta (idem, p. 243).
Em sua doutrina, por conseguinte, o direito do trabalho é mais do que um
simples ramo especial da ciência jurídica. É um mecanismo estratégico, um instrumento
de intervenção, voltado para a resolução dos problemas sociais e econômicos da vida
moderna, tendo em vista o potencial efetivo de seus dispositivos tutelares para dirigir ou
121
planificar a organização econômica da sociedade. Neste sentido, são com estas palavras
que Evaristo finaliza suas considerações acerca das finalidades econômicas deste ramo
jurídico (idem, pp. 247-248):
Em resumo: representa o direito do trabalho o instrumento mais apto e capaz
de que dispõe o Estado e os próprios interessados diretos para a planificação
da vida econômica, a organização do mercado de mão-de-obra, com os
problemas de sua remuneração, do seu poder aquisitivo, da sua auto-
suficiência econômica, através de institutos jurídicos de proteção e tutela.
Incluem-se aí, como é óbvio, não as medidas tutelares da regulamentação
do trabalho em geral e da relação de emprego, como também as medidas
pré-contratuais (de aprendizagem industrial e comercial, de escolas pré-
vocacionais, de orientação e seleção profissional, de agências de colocação)
e as s-contratuais (aposentadorias e pensões, auxílios de toda ordem). São
imensos e flagrantes os objetivos ou as finalidades econômicas do direito do
trabalho moderno.
De maneira geral, portanto, o conjunto destas finalidades jurídicas, político-
sociais e econômicas atribuídas por Evaristo ao direito do trabalho, seria responsável
pela identidade mesma de sua doutrina. Afinal, como vimos no primeiro capítulo desta
dissertação, a teoria jurídica de Evaristo se caracteriza por reconhecer no direito um
misto de fato e de valor, de ser e dever-ser. E é exatamente isto o que expressa as
finalidades (ou objetivos) do direito do trabalho, segundo sua doutrina; ou seja, o
reconhecimento de fatos concretos a ser abordados com base em uma realidade futura
que se deseja estabelecer. É neste sentido, pois, que tais finalidades acabam por
responder como os alicerces identitários da doutrina jurídico-trabalhista de Evaristo de
Moraes Filho.
Mas, é bom que se diga, tais finalidades não são os únicos elementos
responsáveis por dar contornos à doutrina em questão. Se o espaço que ocupam é de
certa forma especial em função de dizerem respeito aos postulados apriorísticos pelos
quais se orienta permanentemente o novo direito, este tem a doutrina que lhe informa
complementada por suas características particulares, uma vez que, segundo Evaristo,
122
“(...) as características são conseqüências, são etapas vividas e realizadas,
permitindo verificar a posteriori os sinais que vão marcando a existência deste direito.”
(idem, p. 234). E conforme vem doutrinar o jurista, a existência do direito do trabalho é
verificada a partir de cinco características principais, todas elas decorrentes daquela que
seria, segundo pensamos, sua característica mais marcante, isto é, a de consistir o novo
direito em um ramo jurídico de transição, a expressão formal de uma civilização em
mudança. Seriam elas, portanto: a) é um direito propriamente dinâmico, em constante
vir-a-ser, que tende a se ampliar cada vez mais; b) é de cunho nitidamente cosmopolita
ou universal; c) trata-se de um direito de classe; d) seus institutos mais típicos são de
ordem coletiva e; e) é intervencionista, de cunho imperativo ou regulamentarista (idem,
p. 123).
Em relação à primeira destas, o dinamismo que lhe qualifica resulta do próprio
realismo com que sua doutrina encara o novo direito. Neste sentido, seria ele o mais
típico daquilo que se pode denominar como “direito vivo”
88
, pois, segundo Evaristo de
Moraes Filho, sendo ele de transição, situado entre duas ordens sociais distintas, evolui
e se renova constantemente acompanhando o processo de transformação social então em
curso
89
. Por isto mesmo, a doutrina do autor ressalta sua tendência de ampliação
permanente; o que, segundo ele, ocorreria em três níveis distintos: em intensidade, em
88
O conceito de “direito vivo” é originalmente formulado pelo já referido jurista austríaco Eugen Ehrlich.
Sua intenção consistia, pois, exatamente em firmar o caráter dinâmico do direito, visto como produto
social. Com base neste conceito, Ehrlich, que seria um dos fundadores do movimento do direito livre,
viria fundamentar sua perspectiva de que a sociologia do direito deveria constituir-se na disciplina
jurídica por excelência, em detrimento da dogmática tradicional. Para maiores considerações, ver Ehrlich
(1986).
89
Aliás, para Evaristo, este seria um dos aspectos fundamentais a tornar tão difícil a sistematização
doutrinária do direito do trabalho. Neste sentido, a obra de que aqui estamos nos valendo prioritariamente
para apreender sua perspectiva doutrinária, o livro Introdução ao direito do trabalho, segundo não
esconde o autor, diz respeito a uma tarefa arriscada. Diria ele (idem, p. 259): “Encontramo-nos na mesma
situação de um médico que pretendesse fixar de antemão a altura exata de um adolescente em franco
período de crescimento. Qualquer índice absoluto que pretendesse apresentar correria o risco de ser
falso e não responder à realidade existencial. O mesmo ocorre com o direito do trabalho.”. Porém, mais
adiante concluiria (idem, pp. 262-263): “Pois bem, mesmo correndo o risco (...) não negar-se a
necessidade inadiável de uma parada nesse crescimento, para fins didáticos, a fim de que se possa fazer
um balanço, embora provisório, do estado atual da nossa ciência.”.
123
extensão pessoal e em extensão territorial. Melhor do que qualquer observação que
pudéssemos fazer, a passagem que se segue corresponde exatamente ao pensamento de
Evaristo a este respeito. Diria ele (idem, p. 126):
Em intensidade, por isso que tende cada vez mais a estender os benefícios
em favor dos sujeitos dessa legislação, aumentando assim em seus preceitos
maior número de matérias (...) Dá-se, por igual, uma extensão em sentido
pessoal, de vez que a tendência do direito do trabalho é incluir em seu
âmbito um número cada vez maior de pessoas, às quais suas normas sejam
aplicáveis. Das fábricas e oficinas industriais urbanas, passou ao comércio,
às profissões liberais, às empresas bancárias, as explorações agrícolas, e
assim por diante (...) Por outro lado, visa esta legislação a estender-se
sempre mais territorialmente, abrangendo o direito positivo de todos os
povos cultos, como também constituindo um sistema de leis de aplicação
universal, que se baseia em princípios fixos, discutidos e estipulados em
organismos internacionais (Organização Internacional do Trabalho).
Este terceiro nível de extensão de que trata Evaristo (o territorial), nos desobriga,
por sua vez, de procedermos a maiores explicações acerca da segunda característica
apontada pelo doutrinador. Na verdade, ambas dizem respeito ao mesmo fenômeno, isto
é, de que o direito do trabalho, em compasso com a “globalização” da ordem sócio-
econômica capitalista, vai se tornando cada vez mais, segundo sua doutrina, um
comando jurídico de assimilação das mudanças daí decorrentes em diversos países do
mundo. E se daí provém sua dimensão cosmopolita, daí resulta também seu caráter
crescentemente universal, uma vez que, como frisa o autor, a homogeneidade das
relações sociais de produção que o capitalismo engendra independente das
características regionais dos diversos países, é acompanhado por uma homogeneidade
cada vez mais marcante no que diz respeito às normas trabalhistas que as regulam
90
.
Não obstante, Evaristo destacaria também o fato do direito do trabalho
constituir-se em um direito de classe e com institutos de natureza tipicamente coletiva.
90
É o que afirma propriamente o doutrinador (idem, p. 145): “Internacionalizou-se a forma econômica
capitalista, criando por toda parte os mesmos problemas e idênticas relações humanas. Instalou-se no
mundo um estado econômico mais ou menos uniforme, que somente poderia condicionar uma capa de
cultura jurídica também homogênea e uniforme.”.
124
Ou seja, de acordo com sua doutrina, em função mesmo de sua finalidade jurídica de
proteção e tutela, este ramo jurídico é encarado como um direito próprio dos
trabalhadores (portanto, seus autênticos sujeitos), e com institutos coletivos que teriam
nascido da própria luta político-social por estes travada em busca de melhores condições
de vida e trabalho - tais como a convenção coletiva de trabalho, os dissídios coletivos de
trabalho e outros. Trata-se aqui, por conseguinte, de manifestações decisivas do caráter
paradigmático que, como direito transitório, a doutrina de Evaristo surpreende o direito
do trabalho, pois, diferentemente do direito comum que se caracteriza por um
individualismo radical alicerçado sobre o valor de uma igualdade estritamente formal
este direito revelaria desde sempre, por sua origem e desenvolvimento, um pronunciado
sentido coletivo em favor de uma determinada classe de pessoas os trabalhadores.
Neste sentido, tal direito especial representaria uma profunda transformação no mundo
jurídico, pois, de um lado, ao colocar-se explicitamente em favor de determinado
conjunto de pessoas, deixaria para trás, como princípio jurídico de uma época
supostamente passada, a formalidade que encerra o valor da igualdade de todos
perante a lei. Ademais, ao reconhecer como institutos seus mecanismos de negociação
como o dissídio ou as convenções coletivas de trabalho, romperia o direito do trabalho
também com o fundamento monista característico do direito clássico, isto é, com o
princípio de que somente ao Estado caberia a tarefa de constituir fatos normativos do
direito.
Mas, se estas duas características apontam para uma realidade jurídica então
sui generis ao direito do trabalho, Evaristo apontaria ainda outra que, por sua vez,
marcaria definitivamente sua distinção frente ao direito civil, isto é, o caráter
intervencionista que lhe constitui tendo em vista sua função precípua de tutela e
proteção deliberadas aos trabalhadores. Neste sentido, como direito de transição de uma
125
civilização em mudança, o direito do trabalho significaria aquilo que, ainda em sua
mocidade, Evaristo chamou de “crepúsculo do contrato” (Moraes Filho, 1934), para
marcar sua oposição à extrema liberdade econômica que caracterizaria a relação entre os
contratantes no âmbito do direito civil. Portanto, em sentido contrário ao absenteísmo
do Estado na esfera econômica uma nota típica da doutrina liberal que encerra o
direito civil nascido com a modernidade -, o direito do trabalho, como aqui já podemos
observar, intervém diretamente, participa ativamente da vida econômica da sociedade a
partir de uma regulação voltada à superação das desigualdades que resultam daquela
suposta liberdade. Assim sendo, colocando-se ao lado da coletividade em detrimento
dos indivíduos, restringe o direito do trabalho as vontades individuais, negando o
princípio formal da igualdade de todos perante a lei que legitimava sua liberdade quase
que irrestrita. O sentido imperativo que traz consigo significa, assim, de acordo com a
doutrina de Evaristo, a superação do dogma liberal inerente à doutrina civilista, bem
como a garantia de proteção aos trabalhadores.
Se o direito civil é de natureza dispositiva, preenchendo simplesmente as
lacunas deixadas em claro pela livre vontade dos contratantes o contrato é
a lei entre as partes, diz o velho refrão civilista -, o direito do trabalho
coloca-se em ponto diametralmente oposto, é um direito imperativo, que
determina a vontade dos indivíduos, regulando-lhes a conduta social,
deixando para as partes unicamente o acessório. Suas normas não trazem a
ilusão de que todos sejam iguais, tratam de propósito desigualmente a seres
desiguais, tutelando uma categoria que precisa da sua proteção e bem a
merece (...) Por isso mesmo, [repita-se], limita deliberadamente a suposta
liberdade de contratar, intervindo o Estado naquela esfera, outrora sagrada,
da autonomia da vontade, da doutrina liberal.
(Moraes Filho, 1956; pp. 142-143)
Em face de tudo o que vimos neste capítulo, portanto, salta desde logo aos
nossos olhos o sentido transformador, propriamente utópico, que Evaristo de Moraes
Filho reveste o direito do trabalho com esta sua doutrina. Tratar-se-ia, pois, de um
126
instrumento privilegiado de intervenção sobre a realidade sócio-econômica, tornando-a
mais justa e democrática a partir de uma superação dos princípios do capitalismo liberal
que a regulam. E, como vimos aqui, nada disto ficou restrito ao âmbito particular de
sua elaboração doutrinária, ao contrário, esta consistiu no corpo de idéias que
fundamentou iniciativas práticas levadas a efeito por Evaristo, com vistas a uma
transformação em sentido positivo da realidade brasileira. Aqui, cabe voltarmos mais
uma vez ao seu anteprojeto de Código do Trabalho que redigiu em 1962 e publicou no
ano seguinte, onde se pode observar todo o sentido transformador de uma doutrina que,
captando as aspirações da sociedade por mudanças, se propõe a ordená-las e apressá-las.
É o que se verifica quando, após uma observação tipicamente sociológica acerca do
processo de desenvolvimento social e econômico pelo qual passava o país àquela época,
viria afirmar Evaristo (1963, p. 33):
Incumbe à legislação do trabalho acompanhar de perto, com olhos bem
abertos, essas etapas do desenvolvimento nacional. Tratando das relações
dos dois fatores da produção empregado e empregador e da organização
da própria vida econômica e profissional, representa essa legislação a forma
jurídica adequada para formular e apressar a mudança social. Daí a
necessidade de se transformar em regra jurídica aquilo que a sociedade
solicita para a realização do seu crescimento.
Assim, não poderíamos concluir este nosso capítulo sem afirmar nossa
concordância com outros pesquisadores que se dedicaram a resgatar recentemente sua
vida e obra
91
e, desta forma, atestar que Evaristo de Moraes Filho, mais do que jurista e
sociólogo, tratar-se-ia de um homem sem medo da utopia.
91
Refiro-me aqui, fundamentalmente, ao trabalho de Gomes, Morel e Pessanha (2007).
127
CONCLUSÃO
O FUNDAMENTO DE UMA UTOPIA DEMOCRÁTICA
Proceder a uma abordagem analítica sobre o pensamento, sobre as elaborações
teóricas dos grandes pensadores de uma nação, não constitui tarefa de fácil realização. É
sempre uma grande responsabilidade refazer perspectivas que não somente
fundamentaram a construção de livros, teses e artigos, como alcançaram a dimensão
mesma da realidade palpável, causando impacto real ou potencial sobre a vida cotidiana
da população em função do legado efetivo que deixaram. Abordagens como essas
transcendem, portanto, direta ou indiretamente, a dimensão subjetiva em que se
originam as idéias sob análise, dizendo respeito também aos processos sociais objetivos
que delas derivam. Este o caso de que se trata quando falamos de Evaristo de Moraes
Filho. Este, pois, o tamanho do desafio que nos propusemos quando decidimos realizar
este trabalho.
De fato, Evaristo de Moraes Filho foi um intelectual acostumado a grandes
realizações. Em relação às ciências sociais, professor de sociologia desde 1949, Evaristo
foi um dos responsáveis pela própria institucionalização destas ciências no Brasil. Em
1954, não somente seria um dos participantes do tornado célebre I Congresso
Brasileiro de Sociologia, realizado por ocasião do IV centenário da cidade de São Paulo,
como desempenhou ali importante papel ao ser o relator dos trabalhos do congresso. Em
1958, seria co-fundador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) ao lado de intelectuais
como Victor Nunes Leal, Temístocles Cavalcanti idealizador do projeto -, Luiz de
Aguiar Costa Pinto, Lino de Albuquerque Melo, Luís de Castro Faria e Darcy Ribeiro.
Instituição de pesquisa ligada à Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, Evaristo de
Moraes Filho foi o seu maior presidente, estando à frente de sua gestão em quatro
128
ocasiões 1960, 1962, 1966 e 1967. Apesar de ter sido responsável pela formação
científica de grandes cientistas sociais ainda em atividade, como Luciano Martins,
Gilberto Velho, Maria Stella Amorim, Alba Zaluar, entre outros, além de produzir
periódicos e realizar conferências, o Instituto perdeu sua autonomia e fechou suas portas
em 1968 em função das estratégias de controle autoritário da ditadura militar, vindo
constituir, em contrapartida, o atual Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
Ademais, em 1962, já por ocasião do II Congresso Brasileiro de Sociologia, Evaristo
viria ter importante papel junto à SBS, tornando-se vice-presidente da instituição ao
lado de Florestan Fernandes, eleito presidente.
Se em relação às ciências sociais estas realizações de Evaristo são dignas de
notável relevância, em função da importância mesma que as instituições que ajudou a
edificar possuem na afirmação deste campo de conhecimento no Brasil formando
profissionais, definindo tradições de pesquisa e proporcionando organicidade à área
através da reunião e aproximação dos cientistas que a conformam -, em relação ao
direito, ou melhor, ao direito do trabalho, as realizações de Evaristo seriam ainda mais
relevantes.
Vimos aqui, que, para além de ter sido um dos primeiros funcionários do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio - quando em 1934 tornava-se secretário
das Comissões Mistas de Conciliação -, o jurista e sociólogo carioca seria ainda um dos
responsáveis pela implementação efetiva da Justiça do Trabalho. Em 1941, designado
para o Conselho Regional do Trabalho da Região, com sede na Bahia, Evaristo
integraria um seleto time de jovens procuradores ávidos por fazer do direito do trabalho
um ramo jurídico prontamente institucionalizado no Brasil. Um ramo do direito dotado
de um ordenamento jurídico próprio que lhe garantisse a eficácia necessária para servir
de instrumento de reforma social e promoção da cidadania no país. E foi exatamente o
129
que fez Evaristo como Procurador Regional do Trabalho a partir daquela data, tomando
parte direta nos processos e emitindo pareceres que muito realizaram neste sentido
92
.
De outra parte, como destacamos com maior riqueza de detalhes no capítulo
anterior, Evaristo responderia ainda por outros importantes trabalhos no campo do
direito do trabalho brasileiro. Como vimos aqui, no início dos anos 1960, seria ele o
responsável direto pela elaboração do Código do Trabalho que, infelizmente até hoje,
não possuímos. Mais uma vez, a ditadura militar instaurada no país em 1964 tornar-se-
ia um obstáculo aos trabalhos de Evaristo. Não fosse o conservadorismo deste regime, o
eminente jurista teria prestado um grande serviço ao país, alargando sobremaneira os
contornos de sua frágil democracia. A partir do estatuto jurídico que elaborou, os
trabalhadores brasileiros passariam a gozar de uma cidadania sem precedentes na
história do Brasil, tendo acesso a um pleno direito de greve, independência de suas
organizações profissionais frente ao Estado, estabilidade no emprego com apenas três
anos de efetivo exercício laboral em uma mesma empresa, além de outros benefícios
tutelares.
Em meados da década 1980, por seu turno, entrando o país em nova fase de
abertura política, teria Evaristo nova oportunidade de estabelecer vigência àqueles
dispositivos legais. Tornava-se, pois, membro da Comissão Constitucional instituída
pelo então Presidente José Sarney, onde presidiria a Subcomissão de Direito do
Trabalho. Infelizmente, porém, em mais esta ocasião Evaristo não conseguiria fazer de
suas idéias parte integrante de nosso direito positivo. Novamente, a realidade sócio-
política brasileira, a despeito da abertura que então se processava no país, mostrar-se-ia
92
Inclusive, cita Evaristo no já referido depoimento a Gomes, Morel e Pessanha (2007), que seus
pareceres tiveram uma aprovação de 99% junto ao Conselho Regional. Ademais, segundo afirma, um
destes pareceres teria dado origem ao seu primeiro livro Trabalho a domicílio e contrato de trabalho
formação histórica e natureza jurídica, publicado pela editora Revista do Trabalho em 1943. Trata-se de
uma obra de teor doutrinário surgida de um parecer favorável dado por Evaristo a uma operária que,
apesar de então constar como funcionária da empresa denominada Trapiche Adelaide, realizava seu ofício
de trabalho em sua própria residência.
130
aquém do avanço democrático que suas idéias procuravam estabelecer. Mas, se é
verdade que Evaristo não conseguiu materializar suas idéias nestas ocasiões, por outro
lado, importa lembrar que estas atividades legislativas em que se envolveu não foram
inócuas. Nem todos os dispositivos jurídicos ali apresentados se perderam
definitivamente, ao contrário, se tornariam precedentes fundamentais para construções
legislativas mais recentes, como nos mostra Moraes (2005)
93
.
De toda forma, vê-se desde logo que Evaristo não confinou suas idéias à
dimensão do abstrato, ao contrário, procurou incansavelmente torná-las efetivas,
influentes na realidade empírica. Em verdade, Evaristo de Moraes Filho foi parte
integrante de uma geração de intelectuais que, especialmente na década de 1950, se
acreditavam imbuídos da tarefa de intervir sobre a realidade brasileira. Buscavam, com
base na racionalidade científica de que eram portadores, edificar um novo ordenamento
social no Brasil, uma sociedade mais justa e equânime através da promoção da
cidadania. Tratava-se, pois, de uma intelligentsia destinada a prestar os seus serviços
para apontar e construir os caminhos que levariam o Brasil ao status de uma sociedade
tipicamente moderna, o que só se faria possível superando o “atraso” social, econômico
e cultural que lhe caracterizava. Neste sentido, tanto as iniciativas práticas quanto às
elaborações teóricas desta nossa intelectualidade de meados do século passado estavam
orientadas por este sentido utópico de reforma social. Visando, pois, o desenvolvimento
social, econômico, político e cultural da sociedade brasileira, muitos foram os manuais,
tratados, compêndios, monografias e etc. produzidos por esta intelectualidade,
proporcionando um fecundo debate intelectual sobre os rumos do país durante a década
de 1950.
93
De acordo com o autor, este seria o caso de alguns dispositivos jurídicos de caráter mais pacífico, como
a regulamentação dos serviços de medicina do trabalho, convenções coletivas do trabalho, acordos
coletivos salariais, o estabelecimento de prazo determinado para o contrato de experiência, e a proteção
dos empregados que lidam com radiações ionizantes no exercício de suas funções de trabalho, dentre
outros.
131
No campo do conhecimento sociológico era chegado o momento de provocar
mudanças, de fazer ciência para fazer história, como nos apresenta muito bem Villas
Bôas (2006), de forma que, não foram poucos os diagnósticos formulados e
apresentados por nossos cientistas sociais para subsidiar cientificamente as mudanças
que se pensavam necessárias. Mas esta não era uma realidade privativa da sociologia, o
mesmo ocorria em outros domínios das ciências humanas. Assim, como menciona
Reale (1977), este movimento também se registrou no campo do saber jurídico
nacional, onde, os mesmos propósitos de intervenção para a transformação social,
levaram os juristas brasileiros, especialmente a partir de meados da década de 1940, a
intensificarem suas críticas aos preceitos teóricos e práticos da ciência jurídica
tradicional, adotando outros métodos na realização de suas atividades profissionais.
Dentro de um contexto assim marcado pela necessidade de intervir por mudanças, mais
do que nunca a lógica estática (porque abstrata) do positivismo jurídico tradicional se
mostraria inadequada.
É dentro deste contexto que devemos compreender tanto as realizações práticas,
quanto as elaborações teóricas desenvolvidas por Evaristo de Moraes Filho na década de
1950, as quais tivemos oportunidade de abordar ao longo desta dissertação. Estas
últimas representam não somente a produção intelectual de um pensador sintonizado
com o contexto no qual as produziu, como também a forte inserção que ele
experimentava em ambos os campos de conhecimento naquela ocasião. Assim é que,
reunindo estas duas áreas do saber, tanto em O problema do sindicato único no Brasil
como em sua doutrina jurídica, Evaristo de Moraes Filho faria da sociologia e do direito
do trabalho aspectos complementares. Por certo, não constituem ali uma mistura, tendo
em vista a autonomia que ambas as dimensões gozam no pensamento de Evaristo de
Moraes Filho, porém, se complementam mutuamente dando sentido a uma produção
132
que, fundada sobre a frieza objetiva da realidade social, se volta para a utopia
construtiva de reformar a sociedade brasileira, buscando torná-la mais justa e
democrática. Aqui se manifesta, por conseguinte, toda a relevância que a sociologia do
direito ocupa no pensamento de Evaristo de Moraes Filho, como buscamos demonstrar
neste nosso trabalho. Afinal, é esta sociologia especial que lhe proporciona as condições
para reunir de maneira satisfatória estes dois campos do conhecimento científico com
vistas ao atendimento de seus propósitos reformadores.
Tradicionalmente, estas duas áreas das ciências humanas não costumam se
relacionar. Enquanto a sociologia, ocupada unicamente com os fatos sociais, preocupar-
se-ia em apreender objetivamente as regularidades que conformam a vida humana em
sociedade a normalidade social sem qualquer pretensão normativa; o direito, ao
contrário, segundo os cânones do positivismo jurídico clássico, não teria qualquer
preocupação com a realidade fática. Ocupando-se da vida futura dos homens, sua
preocupação exclusiva consistiria em estabelecer normas que assegurem, pela coerção
estatal, determinado padrão de conduta que se pretende fazer existente (a normatividade
jurídica).
Em Evaristo de Moraes Filho, porém, a sociologia do direito cumpriria o papel
fundamental de servir de elo entre ambas as ciências, alterando este estado de coisas
tradicional. Se a sociologia se ocupa da normalidade social e o direito da normatividade
jurídica, a sociologia do direito de Evaristo se ocupa das duas dimensões, pois, traz
consigo o recurso cognitivo de compreender a normatividade jurídica com base na
normalidade social; donde se explica, aliás, o porquê do autor se referir a esta sociologia
especial como um espaço intermediário, um meio termo conciliatório entre a sociologia
e o direito (1997).
133
Grosso modo, para Evaristo a sociologia do direito, diferentemente da dogmática
jurídica, não é uma ciência formal, preocupada com as coisas da gica metafísica. É
uma ciência empírico-causal, que encontra na objetividade do mundo social os
fundamentos de constituição do direito. Por isto mesmo, concebe os fenômenos
jurídicos como fatos sociais, de forma que, sem excluir a dimensão valorativa que os
encerra, se tornam objetos passíveis de mensuração objetiva pela sociologia, assim
como qualquer outro fato social. E sendo, pois, fato social como os demais, aponta esta
sociologia especial a necessidade de se compreender os fenômenos jurídicos em sua
totalidade, ou seja, de forma não desconectada dos elementos políticos, econômicos ou
ideológicos que incidem sobre sua constituição. Soma-se a isto, ademais, a
compreensão plural sobre o mundo jurídico que esta sociologia traz consigo. O
princípio conceitual do pluralismo jurídico responde assim por um de seus postulados
mais característicos. Partindo daquela premissa essencial de que o direito encontra sua
realidade na própria sociedade, o conceito de pluralismo jurídico vem denotar a idéia de
que, assim sendo, não pode ser o Estado a única fonte dos fatos normativos do direito.
Entende a sociologia jurídica de Evaristo, a partir deste conceito, que o direito possui
uma pluralideade de fontes. Não somente o Estado, como qualquer outra instituição
social dotada de autoridade legítima e meios para assegurar o cumprimento de suas
normas, constituem fontes de onde se originam autênticos fenômenos jurídicos. É o
caso, por exemplo, de sindicatos, empresas, partidos políticos, e até mesmo entidades
esportivas ou religiosas.
Como procuramos demonstrar ao longo de toda esta nossa dissertação, a
sociologia jurídica, assim definida, consistiria num recurso teórico e metodológico
fundamental mobilizado por Evaristo em suas formulações durante a década de 1950.
Não seria mera coincidência, portanto, o fato de que O problema de uma sociologia do
134
direito, obra dedicada à sistematização teórica desta sociologia especial, foi precedente
a publicação tanto de O problema do sindicato único no Brasil, quanto de Introdução
ao direito do trabalho. Em verdade, os postulados sociológico-jurídicos sistematizados
em sua obra de 1950 lhe forneceriam o embasamento científico pelo qual o intelectual
carioca desenvolveria as reflexões sociológicas e doutrinárias acerca do direito do
trabalho que, respectivamente, aquelas publicações posteriores se ocupam.
É, pois, a partir dos princípios de sua concepção sociológico-jurídica, que
Evaristo de Moraes Filho desenvolve uma compreensão diferenciada do direito do
trabalho que, por sua vez, viria singularizar sua posição no debate intelectual que
permeava os anos 1950. Informado pela sociologia jurídica, Evaristo desconstrói a
perspectiva juspositivista fundada no monopólio estatal sobre a produção e aplicação do
direito, para reconhecer no direito do trabalho sua natureza propriamente social. Este
seria, por conseguinte, resultado direto das mudanças estruturais por que passou a
sociedade moderna a partir do desenvolvimento que o sistema sócio-econômico
capitalista experimentou no século XIX. Tratar-se-ia de um direito espontâneo, surgido
das novas relações sociais que se fizeram sentir sobre o mundo do trabalho, de forma
que, os sindicatos de trabalhadores responderiam pelo papel de protagonistas deste
processo de construção legislativa. Não seria assim, nem um desdobramento lógico do
direito comum e nem uma produção exclusiva do Estado, mas sim, um resultado direto
do processo social.
Entendendo este ramo particular do direito a partir do enquadramento
sociológico-jurídico mencionado acima, Evaristo tomaria parte no debate intelectual da
década de 1950 advogando a idéia de que o direito do trabalho constituiria o
instrumento mais adequado para fazer do Brasil um país verdadeiramente democrático.
É o que se apresenta decididamente em O problema do sindicato único no Brasil.
135
Autêntica sociologia do direito do trabalho, como vimos no segundo capítulo deste
trabalho, ali Evaristo recupera instituições e demais sujeitos sociais responsáveis pela
gênese e pelo desenvolvimento inicial de nosso direito trabalhista, demonstrando sua
natureza propriamente social. Importa considerar, porém, que o sentido desta construção
teórica não é casual. Ao demonstrar a natureza social de nosso direito do trabalho,
buscava Evaristo denunciar a falácia em que se assentava a ideologia que procurava
fazer de Getúlio Vargas o único responsável pela existência deste direito no Brasil. Não
se tratava, pois, de mero acerto de contas com o passado o que pretendia Evaristo com
esta sua sociologia jurídica do trabalho. Desconstruir o “mito da outorga” lhe parecia
àquela ocasião, a condição indispensável para tornar eficaz uma crítica da legislação
trabalhista do período estadonovista e, conseqüentemente, tornar legítima sua
reivindicação acerca da necessidade de uma profunda reformulação dos dispositivos
legais deste ramo do direito, como forma de estabelecer uma democracia efetiva no
país.
Para Evaristo, a vigência dos dispositivos legais construídos ainda durante o
Estado Novo, dispositivos estes que asseguravam um minucioso controle estatal sobre
as organizações sindicais, fazia da democracia alcançada pelo Brasil em 1945, e
referendada na Carta Magna de 1946, um expediente apenas formal. Neste sentido,
segundo advoga O problema do sindicato único no Brasil, tornava-se urgente
estabelecer um novo marco legal ao direito do trabalho para tornar real aquilo que até
então era apenas formal. Somente com a garantia de plena liberdade e autonomia às
organizações sindicais que o direito do trabalho estaria em condições de estabelecer,
poderia o Brasil tornar-se uma autêntica democracia moderna à semelhança das
sociedades européias. Para Evaristo, portanto, as mudanças sociais requeridas pela
136
sociedade brasileira deveriam começar por aí, pois estas, deveriam resultar do livre e
democrático jogo das forças sociais, e não da mão forte do Estado.
Poucos anos mais tarde, por ocasião da doutrina apresentada em Introdução ao
direito do trabalho, o sentido utópico de reforma social atribuído por Evaristo a este
ramo do direito seria ainda mais acentuado. Fundamentada teoricamente na sociologia
jurídica, a doutrina de Evaristo apresentaria o direito do trabalho enquanto um direito de
classe, um direito propriamente voltado aos trabalhadores, a quem procuraria tutelar em
função das condições sociais e econômicas que resultam da própria posição subordinada
que ocupam na relação de emprego. Tendo, pois, nas medidas de tutela do trabalhador
sua principal finalidade jurídica, o direito do trabalho surge aqui como um instrumento
legal de intervenção sobre a realidade sócio-econômica, tendo em vista alcançar os fins
últimos que lhe norteariam, ou seja, a resolução da moderna questão social surgida com
o sistema capitalista, bem como o encaminhamento pacífico das transformações sociais
que daí decorrem. Ademais, tal doutrina compreenderia o direito do trabalho como um
direito de transição, ou seja, uma expressão jurídica que ao mesmo tempo em que atesta
a superação de uma ordem social fundada nos princípios do liberalismo clássico, traz
consigo, anuncia, a irrupção de um novo modelo de organização das sociedades. Uma
ordem social verdadeiramente democrática, que teria nas normas do trabalho um recurso
fundamental para o Estado organizar racionalmente a economia e garantir uma maior
eqüidade entre empregados e empregadores.
Em função do que vimos aqui, importa considerar que diferentemente de outros
intelectuais sobretudo, cientistas sociais que reconheciam na educação, no
desenvolvimento industrial ou no crescimento econômico os elementos fundamentais
para superar as mazelas sociais brasileiras, Evaristo de Moraes Filho enxergaria no
direito do trabalho o melhor instrumento para tal empresa. Seria ele o instrumento de
137
democratização social e econômica necessário para elevar a sociedade brasileira ao
padrão de desenvolvimento das consolidadas democracias da Europa e da América do
Norte. Ademais, tendo em vista o enquadramento sociológico-jurídico que fundamenta
sua compreensão acerca deste ramo do direito, Evaristo viria se distinguir de muitos de
sua época que preconizavam a primazia do Estado para levar a cabo a tarefa de
desenvolver o país. De fato, Evaristo não negaria certa responsabilidade da agência
estatal neste processo, em função do próprio papel que lhe confere para organizar
racionalmente a economia através dos meios de que dispõe para assegurar o efetivo
cumprimento das normas trabalhistas. Não obstante, o papel desempenhado aqui pelo
Estado é apenas intermediário. Sendo um direito surgido da sociedade e imposto a ele
pela força das organizações sociais que o reivindicam, a ação jurídico-trabalhista do
Estado não seria uma manifestação de sua própria vontade , mas sim da sociedade que
lhe confere a existência. Assim, o transformismo social preconizado por Evaristo
encontraria na própria sociedade o seu sujeito, fundamentando a orientação democrática
da utopia que reveste seu pensamento.
Nota-se, pois, a relevância que a sociologia do direito adquire na conformação
do pensamento de Evaristo de Moraes Filho. É com base nesta sociologia especial que o
direito do trabalho lhe surge como uma via privilegiada para intervir no processo de
configuração e reconfiguração da realidade social, diferenciando-se assim de outros
intelectuais de sua época. Mesmo que possamos afirmar que esta é uma peça
fundamental da arquitetura intelectual de Evaristo, é importante ter claro que sua obra, e
sua contribuição à compreensão do país, se enriquecem com uma gama extremamente
ampla de referências que, por sua vez, extrapolam em muito o foco estabelecido neste
trabalho. Com foco em sua sociologia jurídica, portanto, estabelecemos unicamente
alguns pontos a partir dos quais se pode aprofundar uma interpretação mais complexa e
138
densa do pensamento do autor. Neste sentido, esperamos ter dado uma contribuição que,
ainda que pequena, possa ter sido valiosa para estimular a reflexão sobre suas idéias e,
sobretudo, para aproximar Evaristo de Moraes Filho das novas gerações de cientistas
sociais.
139
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