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Antonio Carlos Leal de Moraes
(Ninho Moraes)
RADIOGRAFIA DE UM FILME:
DE “AGONIA”
A SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA
Dissertação de Mestrado apresentada como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em
Ciências da Comunicação. Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Comunicação, Área de
Estudos dos Meios e da Produção Mediática, Linha
de Pesquisa de Comunicação Impressa e Audiovisual,
da Escola de Comunicação e Artes
Universidade de São Paulo
2009
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Antonio Carlos Leal de Moraes
(Ninho Moraes)
RADIOGRAFIA DE UM FILME:
DE “AGONIA”
A SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA
Dissertação de Mestrado apresentada como parte dos
requisitos para a obtenção do título de Mestre em
Ciências da Comunicação. Programa de Pós-
Graduação em Ciências da Comunicação, Área de
Estudos dos Meios e da Produção Mediática, Linha
de Pesquisa de Comunicação Impressa e Audiovisual,
da Escola de Comunicação e Artes
Universidade de São Paulo
2009
I
Radiografia de um filme:
de “Agonia” a São Paulo Sociedade Anônima
por Antonio Carlos Leal de Moraes (Ninho Moraes)
Presidente da Banca Examinadora: Professora Doutora Esther Império Hamburger
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Área de Estudos dos
Meios e da Produção Mediática
Aprovada por _________________________________________________
Presidente da Banca Examinadora
_________________________________________________
_________________________________________________
_________________________________________________
Programa autorizado conceder o título de: ___________________________
Data _________________________________________________________
II
I
I
I
RESUMO
Radiografia de um filme:
de “Agonia” a São Paulo Sociedade Anônima
por Antonio Carlos Leal de Moraes (Ninho Moraes)
Presidente da Banca Examinadora: Professora Doutora Esther Império Hamburger
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Área de Estudos dos
Meios e da Produção Mediática
A presente dissertação busca “radiografar” a realização do filme São Paulo
Sociedade Anônima (que originalmente teve o título provisório “Agonia”), escrito e
dirigido por Luiz Sérgio Person. O filme foi produzido em 1964 pela Sòcine
Cinematográfica Ltda., fundada por Renato Magalhães Gouvea, e lançado em 1965.
A pesquisa concentrou-se no arquivo do produtor, que contém um material quase
totalmente original, que vai da lista dos acionistas até as mais de 30 críticas,
inclusive da imprensa italiana, além de entrevistas e depoimentos inéditos de Person.
O material complementar foi obtido na Biblioteca da Cinemateca Brasileira. A partir
das leituras, foram realizadas entrevistas com o próprio Renato Magalhães Gouvea,
com o montador Glauco Mirko Laurelli e com a atriz Ana Esmeralda. São Paulo
Sociedade Anônima, além de suas qualidades artísticas, teve um modelo diferenciado
e profissional de produção e, principalmente, de marketing. Para completar,
procedeu-se à proposta estética de remontar o filme, colocando a narrativa original,
composta de flashbacks, em ordem cronológica seqüencial e acrescentando-se trecho
da poesia Agonia, de Vinicius de Moraes, que serviu de inspiração para Person.
Palavras-chave: São Paulo; cinema urbano; profissionalismo na produção
cinematográfica; marketing e divulgação; proposta estética
IV
ABSTRACT
Radiografia de um filme:
de “Agonia” a São Paulo Sociedade Anônima
por Antonio Carlos Leal de Moraes (Ninho Moraes)
Presidente da Banca Examinadora: Professora Doutora Esther Império Hamburger
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, Área de Estudos dos
Meios e da Produção Mediática
This dissertation tries to “radiograph” the realization of São Paulo Sociedade
Anônima (originally titled “Agonia”), a motion picture wrote and directed by Luiz
Sérgio Person. Sòcine Cinematográfica Ltda. (founded by Renato Magalhães
Gouvea) produced the film in 1964 by and released it in 1965. The research focused
on the producer files, an almost completely original material, from the shareholders
list to more than 30 newspapers — including Italian newspapers — critics reviews,
besides unpublished Person’s interviews and declarations. The Library of
Cinemateca Brasileira provided complimentary material. From those readings,
interviews were made with Renato Magalhães Gouvea, the film editor Glauco Mirko
Laurelli and actress Ana Esmeralda. Besides its artistic features, São Paulo
Sociedade Anônima showed a differentiated and professional production and, mainly,
a marketing model. Finally, the author of this dissertation presents the aesthetic
proposal of re-editing the film, arranging in sequential chronological order the
original narrative, compounded of flashbacks, and including a fragment of Vinicius
de Moraes poem Agonia, which inspired Person.
Keywords: São Paulo, urban cinema; professionalism in cinema production;
marketing and advertising; aesthetic proposal
V
DEDICATÓRIA
Ao próprio Person, que eu adoraria ter conhecido...
A Eliana Zaroni, pelo carinho e apoio na busca do foco no trabalho — e
também de sentido de vida.
Ao Jimi Hendrix de Carderos, o melhor amigo, o cão-irmão que ficou a meu
lado em todos os momentos de leitura e escrita.
A meus pais, in memoriam, que me ensinaram o que sei e a ser o que sou.
A minhas filhas, Rita e Alice, por tudo...
V
I
VI
I
AGRADECIMENTOS
A minha orientadora, Professora Doutora Esther Império Hamburger, que
pacientemente me aceitou como aluno e com quem aprendi a encontrar o tom da
dissertação.
A Renato Magalhães Gouvea, que abriu o precioso arquivo da Sòcine e
ofereceu seu Escritório de Arte para a realização e a copiagem da pesquisa.
À família de Luiz Sérgio Person — Regina Jehá, Marina e Domingas —, que
sempre estiveram prontas a liberar informações e materiais.
A Glauco Mirko Laurelli, genial montador, que, apesar da idade e da saúde
debilitada, me recebeu duas vezes, inclusive em sua casa, onde assistimos ao filme
em DVD. Seus comentários são preciosos.
A atriz Ana Esmeralda e seu filho Marco Audrá Jr., que me receberam em sua
Escola de Flamenco e relembraram boas histórias do filme.
Aos Professores Doutores Rubens Machado Jr. e André Piero Gatti, que
fizeram parte da banca de qualificação e, com suas palavras, ajudaram na ampliação
da pesquisa.
Ao professor Bruno Hingst, que me deu a pista para pesquisar a “Produção”
de São Paulo Sociedade Anônima.
À professora Marilia Franca, amiga à primeira vista e desde sempre
conselheira.
Ao professor Reinaldo Cardenuto, bom conselheiro e companheiro de
mestrado.
Ao revisor e conselheiro Frank Ferreira, por suas dicas acadêmicas e
ilustradas.
Aos professores do Curso de Cinema da Anhembi Morumbi e da Faculdade
de Rádio e TV da Cásper Líbero, que me ouviram com atenção nos momentos de
dúvidas.
Ao amigo José Roberto (Zezo) Cintra, pela força — em variados sentidos.
Ao casal Maria Cecília Reis, a Quilha, e Luiz Fernando Ramos, o Nando,
com quem divido dúvidas desde a tenra infância.
VII
I
Aos amigos Juca Aguirre e Ayres Jr., sempre presentes.
A Gilberto Labate, que me forneceu o primeiro material sobre o filme.
A Fernanda Coelho, um exemplo de profissional — e de amiga.
A equipe da Biblioteca da Cinemateca Brasileira, que me atendeu com
atenção.
A Zita Carvalhosa e José Roberto (Zé Bob) Eliezer, pelos filmes e pela
amizade que fizemos.
A Renato Neiva Moreira, que me ensinou o que é montagem — e outras
coisas mais.
A Cecília Maria Alves Góes, que transcreveu reportagens e críticas com toda
dedicação.
À cidade, ao povo e aos parentes de Penedo, Alagoas, onde vivi bons
momentos na confecção desta pesquisa.
Aos meus 7 irmãos, que com mais 7 fizeram muito mais do que 21...
A Ana Braga, mãe de minhas filhas, amiga desde sempre e para sempre — e
pela brilhante remontagem...
IX
Sumário
Lista de figuras
XI
Lista de quadros
XV
INTRODUÇÃO: por um “Novo (modelo de fazer) Cinema” para o Brasil
1
Motivos pessoais e profissionais
7
A Outra (versão em DVD)
10
Por que São Paulo Sociedade Anônima?
14
A produção em ação
20
Person & Carlos ou Person versus Carlos
24
As novidades chamadas Luiz Sérgio Person e São Paulo, SP
25
Descrição dos capítulos e anexos
28
Breve biografia de um multimídia avant la lettre
32
A origem na poesia
40
Anonimato na sociedade: um pequeno resumo
48
Apresentação, desenvolvimento, desenlace: os pontos de virada
55
Possibilidades de análises sobre São Paulo Sociedade Anônima
56
Sobre nomes, grafias e estilo
59
Prêmios recebidos por São Paulo Sociedade Anônima
59
Capítulo 1 PRODUÇÃO & MARKETING S.A. 61
1.1. Produção S.A.: 600 milhões de cruzeiros, 88 locações e 11 técnicos
61
1.2. A ida para Pesaro
64
1.3. A surpresa da votação em Pesaro: o voto do espectador
66
1.4. O planejamento e o trabalho em equipe
70
1.5. Histórico da produção de São Paulo Sociedade Anônima
77
1.6. A lista Ltda. de São Paulo Sociedade Anônima
82
1.7. A preparação da produção
85
1.8. 18 anos: A Censura surpreende e atrapalha o marketing
89
1.9. A grande divulgação
91
1.10. A fotografia de Aronovich: um caso à parte
103
1.11. A repercussão antecipada
106
1.12. A estratégia de divulgação nas palavras do produtor
110
1.13. A seqüência de festivais e mostras internacionais
112
Capítulo 2 PROMOÇÃO: o filme visto pela imprensa 115
2.1. Notas e reportagens em série
117
2.2. Rápida conclusão
161
Capítulo 3
PERSONALIDADE & PERSONAGENS DE PERSON 165
3.1. A questão urbana na vida de Person
165
3.2. A versão 1 da Lauper
169
3.3. A versão dos parceiros
172
3.4. A versão de fora
174
X
3.5. A versão 2 da Lauper
175
3.6. A chave burguesa e católica
176
3.7. A questão do melodrama
181
3.8. A vontade de ser ator
187
3.9. As diferentes interpretações de um personagem
189
3.10. As diferentes interpretações das “interpretações”
192
3.11. A cara de São Paulo
202
3.12. O ator de cinema
204
3.13. Outros atores, outro filme
206
3.14. O mistério do acidente
209
3.15. Pequeno apêndice: as palavras de dois amigos
211
Capítulo 4 PALAVRA CRÍTICA COMENTADA & ILUSTRADA 215
4.1. Person nas votações dos melhores
215
4.2. Os lançamentos paralelos de 1965
216
4.3. Críticas e “críticas”
219
4.4. Person e o Cinema Novo
220
4.5. São Paulo versus Rio de Janeiro
221
4.6. Comentários sobre as críticas da época
224
4.7. O olhar paulistano da crítica
228
4.8. De volta ao Rio de Janeiro
242
4.9. Fora do eixo
246
4.10. Ainda Cinema Novo
248
4.11. A crítica italiana em Pesaro
249
4.12. Trabalhos acadêmicos sobre São Paulo Sociedade Anônima
258
Capítulo 5 PROPOSTA DE DESMONTAGEM & REMONTAGEM 261
5.1. Por dentro do filme
261
5.2. Um pouco de teoria
263
5.3. As três fases de São Paulo Sociedade Anônima
265
5.4. A repercussão da montagem
270
5.5. Por dentro da montagem
273
5.6. Por dentro da remontagem
277
5.7 A estrutura da remontagem
279
5.8 Anotações sobre o tempo na montagem
282
CONCLUSÃO
285
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
293
Anexo 1 PRÉ-PROJETO DE PERSON 301
Anexo 2 ENTREVISTAS 309
Anexo 3 PALAVRA DE PERSON: entrevistas e depoimentos do diretor
325
Anexo 4 PRORROGAÇÃO S.A. 341
Anexo 5 PROMOÇÃO: fotos e textos de divulgação
349
XI
Lista de figuras
Figura 1. A imprensa noticia o início das filmagens de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
2
Figura 2. São Paulo Sociedade Anônima na imprensa (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
5
Figura 3. Frente e verso de material de divulgação de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
6
Figura 4. Reportagem de página dupla da Última Hora mostra filmagem de São
Paulo Sociedade Anônima. Aronovich está de camisa preta na foto inferior
(arquivo Renato Magalhães Gouvea).
15
Figura 5. Na sua primeira crítica para O Estado de S. Paulo, Rogério Sganzerla
pergunta: “documentário-ficção?” (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
17
Figura 6. Plano de produção de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
21
Figura 7. Anúncio comemora o sucesso do filme (arquivo Cinemateca Brasileira)
23
Figura 8. Moniz Vianna destaca a opção urbana de Person versus o “exotismo
regionalista” do Cinema Novo (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
27
Figura 9. Exemplo de material publicado pela imprensa sobre São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
29
Figura 10. Foto de divulgação com Person (à direita) e Aronovich publicada na
Última Hora (SP), em 17 nov 1965 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
34
Figura 11. Página inicial da entrevista de Luiz Sérgio Person a O Pasquim, edição
nº 295, 5 a 11 de junho de 1973 (arquivo Cinemateca Brasileira)
38
Figura 12. Trecho de Agonia, na 2ª página do roteiro original (arquivo Cinemateca
Brasileira)
41
Figura 13. Roteiro original de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca
Brasileira)
42
Figura 14. Jornal italiano fala do desempenho de São Paulo Sociedade Anônima
na Mostra de Pesaro (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
46
Figura 15. Nota em jornal mostra filmagem da primeira cena de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
50
Figura 16. Texto de Person para narração em off de Carlos em adaptação para a
dublagem, montagem e finalização de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
51
Figura 17. Manuscrito de Person para as últimas cenas de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
53
Figura 18. Coluna feminina destaca figurino de São Paulo Sociedade Anônima,
criado pela estilista Regina Tomaso (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
57
Figura 19. Nota de jornal destaca o trabalho de fotografia na fábrica da
Volkswagen (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
58
Figura 20. Anotações e desenhos de Person com dados para prestar contas de
gastos na Itália, em junho de 1965 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
64
X
I
I
Figura 21. Convite do cineasta Mario Pirri para a exibição de São Paulo Sociedade
Anônima numa grande mostra de jovens diretores em Roma (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
65
Figura 22. Crítica de Aldo Scagnetti, em jornal italiano não identificado, aponta
influências em São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
68
Figura 23. Jornal italiano elogia São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
69
Figura 24. Jornais destacam a vinda de “estrelas” de Hollywood para a pré-estréia
no cine Olido. Os atores cumpriram vasta agenda social (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
72
Figura 25. Relatório de despesas com balão cativo para divulgação do lançamento
de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
73
Figura 26. O Estado de S. Paulo de 3 dez 1967 noticia premiação de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
74
Figura 27. Documento de exportação de São Paulo Sociedade Anônima para a
Tchecoslováquia (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
77
Figura 28. Lista dos acionistas de São Paulo Sociedade Anônima. Os números da
coluna do meio são porcentagens; os da coluna da direita são valores em cruzeiros
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
83
Figura 29. Anotações de L. S Person no roteiro de São Paulo Sociedade Anônima.
Destaque (“ATENÇÃO!!”) para a indicação de vestuário de Carlos e Hilda — e
não Ana, como está escrito (arquivo Cinemateca Brasileira)
88
Figura 30. Jornal paulistano aponta “cenas audaciosas” em São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
91
Figura 31. Coluna de fofocas da revista Cinelândia, edição de julho de 1964
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
92
Figura 32. Adhemar de Barros oferece uma jaguatirica para uma atriz de
Hollywood. Reportagem destaca lançamento do filme (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
93
Figura 33. Anúncio de lançamento de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Re
nato Magalhães Gouvea)
94
Figura 34. Notícia do coquetel da Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SAC),
no Terraço Itália, para o lançamento do filme e outros eventos artísticos (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
95
Figura 35. Anúncio de terceira semana em cartaz de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
97
Figura 36. Primeira página de artigo de Geraldo Mayrink na Revista de Cinema de
Belo Horizonte (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
100
Figura 37. Capa e contracapa de catálogo para mostra organizada por Ismail
Xavier e Fernando Albino para o Grêmio Politécnico em 1966 (arquivo
Cinemateca Brasileira)
101
Figura 38. Aronovich e sua Cameflex (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
104
Figura 39. Relatório de distribuição de ganhos de São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
108
Figuras 40 e 41. Revista revela o “clima” do filme de Person (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
117
Figura 42. Divulgação toma conta dos jornais (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
119
X
II
I
Figura 43. Jornal anuncia o começo das filmagens de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
121
Figura 44. Divulgação destaca o trabalho de Ana Esmeralda (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
123
Figura 45. Noticiário destaca as filmagens do filme de Person (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
127
Figura 46. O sensualismo em São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
128
Figura 47. Jô Soares faz provocação com Darlene Glória (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
129
Figura 48. Todos os jornais repercutem as filmagens de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
131
Figura 49. Reportagem de duas páginas sobre um set (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
134
Figura 50. Walmor Chagas é propositadamente “confundido” com Carlos (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
136
Figura 51. Até o fim das filmagens é anunciado nos jornais (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
137
Figuras 52 e 53. Grande reportagem faz “jogo de palavras” para misturar ficção e
realidade (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
139
Figura 54. Até a festa de encerramento de filmagem ganha reportagem de duas
páginas. Na foto principal, a confraternização entre diretor e produtor (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
141
Figura 55. Person e Aronovich são retratados em destaque (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
143
Figura 56. Mais um destaque para o trabalho do diretor de fotografia de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
145
Figura 57. Revista Contigo diz que São Paulo Sociedade Anônima faz radiografia
da classe média (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
147
Figura 58. Crítico diz que filme de Person é boa promessa (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
149
Figura 59. O suicídio volta a ser tema na imprensa (arquivo Cinemateca Brasileira)
149
Figura 60. Nota ajuda na divulgação do filme (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
150
Figura 61. A angústia dos personagens de São Paulo Sociedade Anônima foi tema
recorrente na imprensa (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
151
Figura 62. Até jornais cariocas repercutem em muitas notas e reportagens o
lançamento de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
155
Figura 63. A atriz espanhola Ana Esmeralda teve destaque no lançamento de São
Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
156
Figura 64. O Estado de S. Paulo acompanhou todos os passos de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
158
Figura 65. A extinta revista Intervalo, especializada em televisão, destaca os atores
e o diretor, que já tinha trabalhado em TV (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
160
Figuras 66 e 67. Publicidade, em rodapé de página de jornal, sobre relançamento
de São Paulo Sociedade Anônima, em 1969 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
162
Figura 68. São Paulo Sociedade Anônima ganha nova campanha publicitária ao
ser exibido no cine Belas Artes, especializado em filmes de arte (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
163
X
I
V
Figura 69. Programação de cinema de O Estado de S. Paulo destaca São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
216
Figura 70. Texto do jovem crítico e futuro cineasta, Maurício Gomes Leite, em
revista especializada de Minas Gerais (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
220
Figura 71. Os jornais anunciam a boa recepção carioca para São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
223
Figura 72. Crítica I de David E.Neves (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
225
Figura 73. Crítica II de David E. Neves (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
226
Figura 74. Crítica I de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
228
Figura 75. Crítica II de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
229
Figura 76. Crítica III de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
230
Figura 77. A revista dá os primeiros números de custos de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
231
Figura 78. Crítica de Alfredo Sternheim (arquivo Cinemateca Brasileira)
233
Figura 79. Crítica de Luiz Francisco Almeida Salles (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
235
Figura 80. Crítica I de Rogério Sganzerla (arquivo Renato Magalhães Gouvea).
236
Figura 81. Crítica II de Rogério Sganzerla (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
237
Figura 82. Crítica de H. Didonet (arquivo Cinemateca Brasileira)
238
Figura 83. Crítica de Arley Pereira (arquivo Cinemateca Brasileira)
240
Figura 84. Anotações de Paulo Emílio Salles Gomes sobre os personagens de São
Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
241
Figura 85. Crítica de Salvyano Cavalcanti de Paiva (arquivo Cinemateca Brasileira)
242
Figura 86. Crítica “Person e a má consciência da burguesia” (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
243
Figura 87. Crítica I de Paulo Perdigão (arquivo Cinemateca Brasileira)
244
Figura 88. Crítica de José Wolf (arquivo Cinemateca Brasileira)
245
Figura 89. Primeira de três páginas da revista Filme 66 (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
247
Figura 90. Crítica do jornal Corriere della Sera (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
250
Figura 91. Jornal faz restrições ao filme de Person (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
252
Figura 92. O jornal critica a falta de crítica social do filme (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
253
Figura 93. Jornal italiano contrapõe os filmes rurais do Cinema Novo com a obra
urbana de um jovem cineasta brasileiro que estudou em Roma (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
255
Figura 94. O jornal destaca os estudos de Person em Roma (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
257
Figura 95. Folheto de campanha cívica, anotado por Person e anexado ao roteiro
de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
267
Figura 96. Manuscrito de Person com sugestões de montagem para Glauco
(arquivo Cinemateca Brasileira)
274
Figura 97. Ilustração de Adams Carvalho para Folha de S. Paulo (arquivo do autor)
287
XV
Lista de quadros
Quadro 1 Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo inicial de São Paulo
Sociedade Anônima previsto por Luiz Sérgio Person e Nélson Mattos Penteado
81
Quadro 2 Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo inicial de São Paulo
Sociedade Anônima previsto por Luiz Sérgio Person e Nélson Mattos Penteado
81
Quadro 3 Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo consolidado de São Paulo
Sociedade Anônima de acordo com a lista de acionistas
84
Quadro 4 Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo consolidado de São Paulo
Sociedade Anônima de acordo com a lista de acionistas
84
Quadro 5 Correção pelo IGP-DI (FGV) do faturamento de São Paulo
Sociedade Anônima em dois dias de exibição no Cine Olido (setembro de 1965)
96
Quadro 6 Correção pelo IPC-SP (Fipe) do faturamento de São Paulo Sociedade
Anônima em dois dias de exibição no Cine Olido (setembro de 1965)
96
Quadro 7 População, espectadores e filmes no mercado em países
selecionados, 1964
99
Quadro 8 Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo de São Paulo Sociedade
Anônima segundo a revista Visão de junho de 1965
107
Quadro 9 Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo de São Paulo Sociedade
Anônima segundo a revista Visão de junho de 1965
107
Quadro 10 População residente, por situação do domicílio e por sexo, Brasil,
1940-1996
166
X
V
I
Foto Sérgio Roizenblit
Reprodução Catálogo MIS, 1988
1
INTRODUÇÃO:
por um “Novo (modelo de fazer) Cinema” para o Brasil
É assim mesmo que vejo o cinema. Um cinema
cujo tempo presente seja a sua matéria e o seu
fim. Um cinema até antiestético se for o caso, um
cinema antieterno (pois o tempo não está para
catedrais góticas!), um cinema voltado à
realidade presente, destinado a servir à realidade
presente sem moralismos de segunda ordem
(Luiz Sérgio Person).
Luiz Sérgio Person escreveu o roteiro de São Paulo Sociedade Anônima entre
1962, quando estava em Roma, cursando o Centro Sperimentale di Cinematografia, e
1963, quando retornou a São Paulo.
1
Foi no final deste ano que, junto com o produtor-executivo Nélson Mattos
Penteado, apresentou o roteiro e o pré-projeto do filme, com orçamento detalhado
(ver Anexo 1), para seu futuro produtor, o empresário Renato Magalhães Gouvea,
sócio de uma construtora, que nunca havia trabalhado com cinema (ver Anexo 2).
Com a negativa de financiamento por parte dos bancos, Renato uniu uma
série de amigos — inclusive Pietro Maria Bardi, criador do Museu de Arte Moderna
de São Paulo (Masp) — e parceiros, e montou uma lista de acionistas, que apresento
no Capítulo 1. Com isso, fundou a Sòcine Cinematográfica Ltda.
A equipe original, apresentada por Person e Nélson, foi muito modificada. A pré-
produção foi rápida (menos de seis meses, o que é raro até mesmo nos padrões dos anos
1
Há polêmica sobre o período exato que Person passou na Europa. Na pequena biografia que consta
no pré-projeto do filme Agonia, Person diz que embarcou para a Europa em abril de 1961. Em
entrevista para a TV Cultura, garante para a entrevistadora, a atriz Joana Fomm, que saiu do Brasil
“pretendendo passar três meses e fiquei dois anos e meio” (Labaki, 2002, p. 27). Já Glauco Mirko
Laurelli, seu amigo, futuro montador e sócio, que viajou no final de 1960 para fazer o mesmo curso,
diz que ficou um ano e meio em Roma, mas garante que não esteve com Person (cf. Jesus, 2007, p.
81-92); ou seja, Glauco teria voltado em meados de 1962. Como Person voltou em 1963, as
informações ficam contraditórias. Glauco não se recorda das datas exatas.
2
2000). O clima era tão favorável que o jornal O Estado de S.Paulo noticiou até o começo
das filmagens, para o dia 25 de abril.
Figura 1. A imprensa noticia o início das filmagens de o Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
O jornal é de 10 de abril, apenas dez dias depois do golpe de 1964.
3
É interessante notar a pequena entrevista com Luiz Sérgio Person, que já
buscava uma definição estética para o filme. E também a importância que o mais
importante jornal paulista da época, dava para um jovem cineasta e suas pretensões
artísticas e intelectuais:
Sem imitar o cinema francês da “nouvelle vague”, ou a escola de Nova York, tentarei
captar uma realidade da classe média de São Paulo. Nenhuma das cenas será fotografada
em estúdio, já que pretendo usar cenários verdadeiros. O material de filmagem será o
mais leve possível, com o emprego do recurso de câmara na mão (Inicia-se a 25 a
filmagem de “S. Paulo S.A.”, O Estado de S. Paulo, 10 abr. 1964, s/p).
Neste momento, Person já procurava se distanciar das influências de Jean-Luc
Godard e Alain Resnais e, principalmente, de Michelangelo Antonioni. Vaticinou:
“Antonioni está superado, depois de breve onda de entusiasmo. Seu cinema ficou
amaneirado em excesso”. E por isso cita obras pouco conhecidas no Brasil. É o caso
dos cineastas nova-iorquinos Jonas Mekas e Shirley Clarke, que até hoje não tiveram
repercussão no País. Person garantia que o filme The cool world, da autoria de Clarke,
“foi recebido com entusiasmo no último Festival de Cinema (1963)” (a reportagem não
explica qual Festival). Mas seu cineasta preferido era o italiano Francesco Rosi, que
considerava o mais talentoso.
Sobre o cinema brasileiro, Person afirmava ter gostado de três obras do
Cinema Novo: Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, Barravento (1962),
de Glauber Rocha, e Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra. Suas palavras já
mostravam o distanciamento que havia entre o cinema paulista e o do resto do País:
“O cinema brasileiro existe do Rio de Janeiro para cima. Em São Paulo, a única
produção importante, comercial e artisticamente, é a de Walter Hugo Khoury.”
2
A filmagem começou no dia 1º de maio de 1964. Foram dois meses de
trabalho, com uma equipe enxuta (11 técnicos), percorrendo 88 locações. Para um
filme de muitas externas, é uma prova de que foi tudo muito bem organizado,
inclusive a divulgação de cada passo da equipe e dos atores, com uma série
2
Para finalizar, a pequena nota informava que a Sòcine já tinha comprado os direitos de Os ossos do
barão, peça de Jorge Andrade, cujas filmagens deveriam começar em agosto do mesmo ano, sem
informar quem seria o diretor (talvez Person). Este filme nunca chegou a ser realizado.
4
impressionante de artigos e notas em jornais e revistas (ver Capítulos 1 e 2, Anexo 5
e Figura 3, a seguir).
Praticamente todos os órgãos de imprensa fizeram reportagens ou deram
notas sobre o filme em todas as suas etapas. A saber, os jornais O Estado de S.
Paulo, Folha de S. Paulo, Última Hora (São Paulo), Última Hora (Rio de Janeiro),
Correio da Manhã, Jornal do Comércio, Jornal do Brasil, O Globo, Notícias
Populares, A Gazeta, A Gazeta Esportiva, Diário de S. Paulo, Diário Popular,
Diário da Noite, Diário Carioca, Diário de Notícias, O Dia (São Paulo), Zero Hora
(Porto Alegre) e as revistas Cinelândia, Claudia, Visão, Intervalo, Contigo etc.
A totalidade das reportagens foi favorável. No caso das críticas, a grande
maioria apoiou, elogiou e elevou o filme como grande obra — as exceções são
apontadas no Capítulo 4.
Para citar apenas uma das notícias da imprensa, reproduzo as palavras
publicadas no jornal Diário da Noite, de 21 de outubro de 1965. A reportagem tinha
uma manchete que traduzia a efusividade: “‘São Paulo S.A.’: produtora explica a
razão do sucesso” (ver Figura 2).
Pela primeira vez na história do cinema nacional, um filme brasileiro bate recorde de
bilheteria e críticas favoráveis. Isso está acontecendo com “São Paulo S/A” de Luís
Sergio Person, que entra para quarta semana no cine Olido e circuito (“São Paulo S.A.”:
produtora explica a razão do sucesso, Diário da Noite, São Paulo, 21 out 1965, p. 10).
Figura 2. São Paulo Sociedade Anônima na imprensa (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
5
Foi esta mistura de criatividade com profissionalismo que me atraiu para realizar
o presente trabalho. Afinal, em grande parte dos livros, ensaios e pesquisas sobre cinema
brasileiro, prefere-se estudar a estética, as opções criativas e até as motivações políticas
que levam muitos filmes a integrar movimentos sociais e culturais.
Existem poucas pesquisas sobre temas ligados com a própria economia do
cinema. Jean-Claude Bernardet é um dos pensadores que afirma isso. Na
apresentação de Estado e cinema no Brasil, de Anita Simis, o autor afirma que
essa historiografia elaborou essencialmente uma história de cineastas, de
realizadores e de filmes. Outras questões, como o mercado, a legislação, a
distribuição, a exibição, o público, eram tratadas alusivamente, freqüentemente a
partir de fontes secundárias (Simis, 2008, p. 9).
Bernardet dá como o exemplo o livro Introdução ao cinema brasileiro, de Alex
Viany, que traz apêndices com textos legais, mas sem qualquer análise, o que provoca
limitações, já que “outras questões, não menos relevantes para uma história do cinema,
como as que dizem respeito às equipes, aos técnicos, às técnicas, ao equipamento,
foram simplesmente desconsideradas” (Simis, 2008, p. 9). Bernardet conclui que as
expressões “crise do cinema brasileiro” ou “crise da produção cinematográfica
brasileira” deveriam ser trocadas por “decadência de um modelo de produção”.
A meu ver, o modelo instituído pela Sòcine em São Paulo Sociedade
Anônima, da pré-produção até seu primeiro lançamento, seria um bom exemplo para
o conjunto da indústria cinematográfica — independentemente do fato de ter apenas
quase empatado receita e despesa, por motivos de distribuição, segundo o produtor,
como iremos discutir mais adiante.
6
Figura 3. Frente e verso de material de divulgação de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
Outro tema que será apontado no Capítulo 1 é a censura de 18 anos que foi
imposta para São Paulo Sociedade Anônima. Não se sabe o motivo para tal
7
classificação que, também segundo Renato Magalhães Gouvea, atrapalhou o
faturamento. Uma das possibilidades, como apresentarei no subitem 1.8. é a suposta
“ousadia” de algumas cenas (como a de Carlos e Ana nos rochedos à beira mar), que
foram destacadas pela imprensa (ver figura 30, no Capítulo 1).
Motivos pessoais e profissionais
A presente dissertação acontece num momento bem claro da minha vida
profissional, que sempre andou em círculos. Meu nome profissional é Ninho Moraes.
Em 1974, cheguei a ser aprovado no curso de Cinema da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mas preferi fazer uma viagem
de intercâmbio para Londres. Na volta, em 1975, por conta dos movimentos político-
sociais, entrei no curso de Ciências Sociais da USP. Depois de um ano e meio, a série
de greves e a falta de uma perspectiva acadêmica levaram-me a cursar Jornalismo na
Faculdade Cásper Líbero. Trabalhei na imprensa escrita (edição paulista do jornal
Última Hora), porém logo redescobri o amor pelo cinema, ao ser assistente de
direção e pesquisador histórico-iconográfico do filme República Guarani, de Silvio
Back, filmado em 1979.
A partir de 1980, iniciei minha carreira em televisão, especificamente como
editor dos telejornais da TV Globo. Depois de uma série de trabalhos, do jornalismo
experimental da Abril Vídeo, na TV Gazeta, do primeiro talk show de Marília Gabi
Gabriela, da criação e direção de programas na TV Cultura (como o teleteatro Lucy
Puma, uma gata da pesada, feito com câmera na mão e em locações com atores não-
profissionais, essencialmente músicos negros que se uniam com novas gangs de rap e
hip hop, inclusive Thayde e DJ Hum, o programa experimental Olhar Feminino,
apresentado por Marisa Orth, e o telejornal cultural Metrópolis), voltei ao cinema pelas
mãos da produtora Zita Carvalhosa, da Superfilmes, quando realizei dois curtas: Ondas
(1986), com Helena Ignez, Isabel Ribeiro, Ana Maria Magalhães e Giulia Gam, e
Branco & Preto (1988), com Bete Coelho, ambos produzidos a partir de concursos da
Embrafilme; o segundo filme faria parte de um longa-metragem intitulado Norte &
Sul, cujo roteiro já estava encaminhado quando surgiu o Plano Collor.
8
Em vez de partir para a publicidade, como muitos colegas de cinema, preferi
o jornalismo de TV, no qual me dediquei a dirigir programas da jornalista e
apresentadora Marília Gabriela em diferentes canais e a criar programas como Saia
justa, no GNT. Foi quando a antropofagia e a autofagia do mercado televisivo
explodiram de vez. Falta de profissionalismo por parte das emissoras, com a
contratação inescrupulosa de estagiários no lugar de profissionais, e brigas
intermináveis entre os próprios profissionais puseram-me em outros caminhos, como
esta dissertação.
A partir de 2004, realizei trabalhos esporádicos em vídeo — caso do
documentário O Brasil da Virada (2007), para a série Panorama, do Itaú Cultural —
e dei preferência para a área acadêmica, aquela para a qual quase entrei nos anos 70.
Tornei-me professor de Produção e Direção de Televisão na Faculdade Cásper
Líbero e coordenador do curso de Cinema da Universidade Anhembi Morumbi.
Simultaneamente, ingressei neste mestrado da ECA. Desde o primeiro curso (que
acompanhei como aluno especial e, depois, regular) com a Professora Doutora Esther
Hamburger, sobre representação da pobreza e da violência no cinema e na televisão,
escolhi o filme São Paulo Sociedade Anônima como tema. Minha idéia inicial era
fazer um “espelho” com o curso da Profª Esther e pesquisar a representação das
imagens da riqueza na cidade de São Paulo, acrescentando como objetos de pesquisa
o filme O invasor (2002), de Beto Brant, e a novela Belíssima, de Silvio de Abreu,
exibida pela TV Globo em 2005.
Como o filme de Person é generoso com a questão do tempo, pois delimita
um momento histórico de mudança da cidade, do estado, do País e do mundo — e,
portanto, de todas as pessoas —, pensei em fazer uma pesquisa filosófica sobre este
universo. Nessas condições, a dissertação se intitularia São Paulo em três tempos:
passado, presente e futuro em São Paulo Sociedade Anônima.
Desde 2005, freqüentei aulas de do Professor Doutor Ismail Xavier (Análise
de Filme, Crítica de Cinema) e dois cursos do Professor Doutor Rubens Machado Jr.
(Poetas, Artistas, Anarco-superoitistas: a variedade experimental no surto brasileiro
de Super 8, e São Paulo vista pelo cinema: as óticas de representação e a fisionomia
da metrópole nos meios audiovisuais), assim como pesquisei os temas apresentados
pelo Professor Doutor Eduardo Morettin (Representação da história no cinema e na
9
televisão) e a Professora Doutora Marília Franco (A produção audiovisual de não
ficção: na transversal da imagem).
Com a contribuição da banca de qualificação, formada pelos Professores
Doutores Rubens Machado Jr. e André Piero Gatti, resolvi me concentrar na produção
do filme em questão. Foi quando, por sugestão do professor de Análise do Mercado
Cinematográfico, Bruno Hingst, procurei o produtor Renato Magalhães Gouvea.
Dono de um escritório de artes plásticas, sua organização ajudou a preservar
um patrimônio inestimável para o cinema brasileiro. Em primeiro lugar, fiz com ele
longa entrevista, de quase quatro horas. Depois, em seguidas visitas ao seu escritório,
fui abrindo caixas e organizando, em contrapartida pela sua generosidade, todo o
material que havia sido guardado sobre São Paulo Sociedade Anônima. Um material
absolutamente original e inédito que, posteriormente, por minha sugestão, será
depositado na Biblioteca da Cinemateca Brasileira de São Paulo. Renato ainda possui
uma cópia em bitola 35 mm do filme de Person e de Esportes no Brasil (1966), de
Maurice Capovilla, que, como explico no Capítulo 1, serviu para pagar as últimas
dívidas do São Paulo Sociedade Anônima (foi entregue ao Itamarati, que o exibiu em
algumas capitais pelo mundo, mas ainda é inédito no Brasil; também por minha
sugestão, deve ser depositado na Cinemateca).
Como método de trabalho, comentei as críticas publicadas pelos jornais da
época, assim como grande parte das reportagens, que ilustram todo o corpo da dissertação.
Durante a pesquisa, estive inúmeras vezes na Biblioteca da Cinemateca
Brasileira, onde encontrei, entre outros materiais impressos, o manuscrito de Paulo
Emilio Salles Gomes com anotações sobre cenas do filme e os roteiros originais de Luiz
Sérgio Person.
Além do roteiro de O bom marido, de 1957, está depositado o do filme
inédito Os 7 pecados capitalistas, que Person chegou a escrever parcialmente com o
dramaturgo e autor de novela Lauro César Muniz. Ambos só completaram o primeiro
episódio, “A publicidade”, que se encontra em forma de roteiro cinematográfico.
Sozinho, Person escreveu “A livre iniciativa”, que previa a utilização de stock shots
de São Paulo Sociedade Anônima, como se revivesse os personagens do filme em
forma de memória — comento isso mais adiante e sugiro ver o Anexo 4. Outro
capítulo seria baseado num texto do escritor e jornalista carioca Sergio Porto —
10
muito conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta —, mas está apenas
datilografado em forma de conto.
3
A partir daí, percebi que tinha um precioso e raro material, o qual poderia se
transformar na “radiografia” de um filme brasileiro premiado e elogiado. Fui em
busca de uma bibliografia que me ajudasse a compreender estes processos. E, como
explico a seguir, na descrição dos capítulos, também me voltei para o processo de
montagem de São Paulo Sociedade Anônima. De posse do roteiro original utilizado
na filmagem, com anotações de Person, pude perceber que, desde o início, tudo
estava na cabeça do diretor. Impressionou-me como cenas e diálogos foram
respeitados na versão final, como se o diretor, seguro de si, já colocasse no papel a
idéia dos flashbacks.
A Outra (versão em DVD)
Para acompanhar esta dissertação, resolvi me fazer um desafio: desmontar e
remontar o filme — o que é possível conferir no DVD anexo. Explico por quê.
Acredito na obra aberta. Hoje, com as novas possibilidades técnicas (edição
em computador, digital, novas mídias etc.), é possível apresentar duas ou mais
versões de uma mesma obra. Até recentemente, um filme tinha apenas um negativo.
Depois de cortado, ficava praticamente impossível ser remontado — a não ser que se
fizesse um contratipo do original, o que implicava altos custos. Com a telecinagem e
outros recursos mais modernos, até para ajustar enquadramentos e cores (como o
cineasta Arnaldo Jabor fez, em 2006, na remasterização do filme Tudo bem, de
1978), tornou-se possível realizar o que já se faz em outras obras artísticas,
especialmente no caso da música.
Em 2006, George Martin, chamado “o quinto Beatle”, arranjador do grupo
em seus melhores momentos, recriou músicas de Paul McCartney, John Lennon,
George Harrison e Ringo Starr, introduzindo novos ritmos, como rap, e muita música
3
Para conseguir as cópias dos roteiros, pedi autorização a Regina Jehá, segunda esposa de Person,
que, com as filhas Marina e Domingas, detém os direitos autorais de sua obra. Regina, gentilmente,
enviou para as bibliotecárias da Cinemateca uma mensagem eletrônica, tendo como anexo a
autorização escaneada.
11
eletrônica, com recursos digitais. O álbum foi intitulado Love. Na época (anos 1960-
1970), tudo era feito de forma analógica.
Quando ainda não existiam métodos de gravação, os músicos clássicos
utilizavam o recurso de escrever partituras. Algumas para orquestra completa, outras
apenas para violino e piano, e assim por diante. O resultado é que a mesma obra —
só para citar um exemplo, o clássico O Quebra-Nozes (1892), de Pyotr Ilyich
Tchaikovsky — tem inúmeras versões, algumas mais longas, outras mais curtas, que
eram e são utilizadas conforme o momento, o palco, o público, o tipo de montagem
do balé etc.
Atualmente, é praxe entre os músicos criar variações eletrônicas das próprias
músicas ou de outros compositores. Um exemplo é a versão de Roda-Viva, feita por
Fernanda Porto, com a participação do autor, Chico Buarque de Holanda, que ganhou
uma versão acelerada. A música fez parte da trilha do filme Cabra-cega (2005), de
Toni Venturi.
Em artes plásticas, já se transformou em hábito o recurso de utilizar obras de
outros autores. Marcel Duchamp pintou um bigode na Mona Lisa, de Leonardo da
Vinci. Volto a falar no assunto, ao citar a obra do cineasta Peter Greenaway sobre um
quadro de Rembrandt, no Capítulo 5.
E no cinema? Por questão de direitos autorais (afinal, a realização
cinematográfica envolve muitos artistas, técnicos e empresas), a reutilização é mais
complicada. Não obstante, milhares de imagens de filmes são utilizadas
inescrupulosamente por outros autores.
Em 1963, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) lançou o livro O
jogo da amarelinha, que apresenta três opções para o leitor: 1) ler de forma direta, na
ordem dos capítulos; 2) optar pela sugestão de leitura dos capítulos feita pelo autor;
3) inventar o próprio método de leitura, escolhendo os capítulos ou páginas.
A questão é: se a montagem original é muito boa, foi elogiada e premiada, se
dá conta do recado, por que, então, refazê-la? Na minha opinião, porque demonstra a
riqueza do material original que dá margem para a criação de novos olhares, novas
narrativas, novas interpretações. São Paulo Sociedade Anônima pode ganhar ainda
outras montagens, como aceleração dos cortes e inversão total do roteiro — iniciando,
por exemplo, pela fuga de Carlos de São Paulo e a criação de capítulos, como se fosse
feito por vários curtas-metragens. Posso deixar este desafio para um doutorado.
12
Em vez de trabalhar com as páginas do roteiro, fiz isso a partir da cópia em
DVD lançada em 2007 pela distribuidora Videofilmes — e fica aqui, para a família
de Person, a idéia de seu lançamento ao lado da obra principal.
O filme não começa mais com a briga entre Carlos e Luciana. Vai direto para
os letreiros e segue com o protagonista a dizer que “faz cinco anos”. A partir daí,
seguimos seu namoro com Ana, seu relacionamento com Hilda, seu contato com
Luciana, as brigas e voltas, o casamento e, finalmente, o rompimento (ver Capítulo 5,
onde estruturo a narração).
A meu ver (e também da montadora Ana Braga, que fez a parte técnica), o
resultado é tão sensacional quanto o filme original. Chego a acreditar que a narrativa
ganha mais densidade, fica mais profunda, porque penetra na vida interior de cada
personagem de modo uniforme, sem que o espectador se perca nas chamadas “idas e
vindas”. Ou seja, sem precisar que sua memória se esforce para recordar o que teria
acontecido nas cenas anteriores — embora isso não signifique um filme “melhor”,
que fique claro.
Como observo mais à frente, um dos anúncios de jornal, na época de
lançamento, alertava que o público deveria assistir ao filme desde o inicio. Era uma
forma direta de dizer que a história, a narração, poderia ser prejudicada se os
acontecimentos não fossem acompanhados na ordem proposta pela montagem original.
Posso dizer que, de acordo com a concepção de Ismail Xavier em O discurso
cinematográfico: a opacidade e a transparência, a nova versão é muito mais
“transparente”, porque o espectador não nota os recursos de montagem, não percebe
a intervenção do diretor, não atenta para as tentativas de modernidade que assolam as
artes em geral há tantos anos. Numa das entrevistas que concedeu durante o
lançamento, em Porto Alegre (ver Anexo 3), o diretor chega a defender o recurso ao
filme rápido e ágil e, por outro lado, ataca certos filmes de Antonioni, que
considerava demasiadamente lentos.
Advirto que, nesta minha proposta de remontagem, o filme não ficou lento
nem arrastado. Não sei dizer se isso o torna mais palatável e, portanto, mais atraente
para o público. Afinal, a versão original foi premiada e atraiu mais de 50 mil
espectadores, apenas na cidade de São Paulo. Cabe lembrar que a reação do público é
uma “caixa de surpresas”. Em toda a história do cinema, milhares de filmes que
13
usaram “fórmulas de sucesso” redundaram em fracassos de bilheteria e crítica.
Outros, pelos quais nada se dava, foram bem-sucedidos.
A questão especifica do filme ter ou não se pago é resolvida por um fato
matemático: o lançamento se restringiu a três capitais (São Paulo, Rio de Janeiro e
Porto Alegre). Como demonstrarei mais à frente, de inicio, estreou em dois cinemas
paulistanos, depois permaneceu em um e foi levado para mais dois. Ou seja, apenas
cinco cinemas na capital. Não foi distribuído para a Grande São Paulo (ABC,
Diadema, Guarulhos, Osasco, cidades industriais onde poderia ter bom público) nem
para o interior do estado, em cidades grandes como Campinas, Ribeirão Preto,
Araraquara, entre muitas outras, também com potencial enorme, já que na época o ato
de ir ao cinema era um hábito cultural e de entretenimento. No Rio de Janeiro, ficou
apenas em cinco cinemas – e por curto período. Mas não foi levado para a periferia
nem para o interior. Em Porto Alegre, teve uma carreira curtíssima. Por que não foi
para Belo Horizonte, Salvador e Recife, cidades com tradição em cinema? Ou mesmo
outras capitais, como Curitiba e Goiânia ou até Brasília, a capital do Brasil? Nesta
simples contagem, apesar de eu não ter provas “científicas” de que seria sucesso, o
filme poderia ter ampliado a renda, já que tinha cópias suficientes para isso (pelo
menos onze cópias, segundo o certificado de censura que comento mais adiante).
Já que Person citou o cineasta Michelangelo Antonioni, aproveito para dizer
que nem todo filme com flashbacks presta-se a este tipo de remontagem. É o caso do
meu filme preferido no cinema mundial, O passageiro/Profissão: repórter (1975), do
próprio Antonioni (com Jack Nicholson e Maria Schneider). Filmado na África e na
Europa, o diretor utiliza cenas da câmera jornalística (camera press) para revelar os
passos anteriores do personagem principal, jornalista que troca de identidade com um
traficante de armas. Neste caso, o roteiro — de Mark Peploe, brilhante — tem um
motivo para fazer idas e vindas. Afinal, na moviola, a ex-esposa do jornalista
encontra motivos para a “fuga” do personagem — caso de uma entrevista com um
líder tribal africano que mostra as contradições da imprensa ocidental.
Não é o caso do filme de Person, que não tem ganchos neste formato.
Relembro que a montagem original de São Paulo Sociedade Anônima foi
muito elogiada e faço questão de trazer à luz as críticas para o montador Glauco
Mirko Laurelli (ver os Capítulos 4 e 5 e o Anexo 2).
14
Por que São Paulo Sociedade Anônima?
Agora o “x” da questão: o filme de Luiz Sérgio Person é rico na narrativa,
inteligente na construção dos personagens, possui ótimas interpretações dos atores,
tem uma realização técnica impecável, apesar das carências da época (como vou
discutir mais adiante), uma montagem e uma finalização moderna e resulta numa
obra que se basta ao ser assistida por diferentes públicos, tanto no Brasil, como no
exterior. Na minha opinião particular, é um dos melhores já realizados em todo
mundo. Acredito, como Paulo Emílio Salles Gomes, que não existe cinema, existem
filmes. Para completar, acho que não existem filmes nacionais. Existem filmes feitos
por pessoas diferentes que nasceram em países ou culturas diferentes. Neste sentido,
São Paulo Sociedade Anônima é um filme universal. Ou, como declarou certa vez o
cineasta mexicano (seria necessário mencionar a nacionalidade?) Alfonso Cuarón —
diretor de Y tu mamá también (2001) e Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban
(2004) —, ao ser criticado por filmar em outros países, especialmente a adaptação de
um best-seller inglês: “Minha nação é o cinema e minha língua, os filmes. Faço
filmes na língua dos filmes. Onde são feitos e suas bandeiras são só aspectos
circunstanciais” (ouvi estas palavras do próprio Cuarón, numa entrevista de televisão
— o making of de um de seus filmes — e as transcrevo de memória.)
Num país como o Brasil, onde o bairrismo já foi muito mais forte e havia a
disputa entre o cinema do Rio de Janeiro e de São Paulo — e onde o paulistano Person
foi criticado por ter ambientado um filme (Cassy Jones, o magnífico sedutor, de 1972)
no bairro carioca de Ipanema, ou seja, como se tivesse ido para outro País — é quase
uma obrigação defender seu primeiro longa-metragem realmente assinado.
Para começar a enumerar suas qualidades, creio que não é um filme “datado”,
que perdeu sua força com a passagem dos anos. Isso acontece quando a história, sua
forma de contar, é fixada por modismos ou por tentativas de difundir conceitos de
determinadas épocas — o que ocorre no chamado “cinema engajado” política e
partidariamente. E também quando se utilizam recursos técnicos novos e chamativos
— as chamadas “novidades tecnológicas”. Quem não se lembra do boom de zooms
que assolou a cinematografia mundial quando este recurso de lente foi lançado pela
indústria de câmeras?
15
Outra questão freqüente é: Person era influenciado pelo Neo-Realismo ou
pela Nouvelle Vague? Se sim, soube se distanciar de seus códigos — apesar de usar
alguns, como a dosagem certa de câmera na mão, a utilização de cenas documentais,
a linguagem informal nos diálogos e os cortes rápidos — e fazer uma obra ao mesmo
tempo autoral e com padrão industrial. Como diz o fotógrafo Ricardo Aronovich (ver
Capítulos 1 e 3), o diretor tinha o domínio da gramática do cinema, do ato de fazer
sem improvisar, o que, segundo ele, era uma exceção entre diretores brasileiros da
época, junto com Ruy Guerra, com quem havia filmado Os fuzis (1964).
Figura 4. Reportagem de página dupla da Última Hora mostra filmagem de São Paulo Sociedade
Anônima. Aronovich está de camisa preta na foto inferior (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
1
6
Falando na fotografia, a dupla diretor-cinematógrafo conseguiu um fato raro:
retratar a luz de uma cidade, de uma nascente metrópole, com grande habilidade. O
que, em minha opinião, já é um desafio e tanto. Vemos a cidade por inteiro,
completa, numa mistura de planos abertos bem dosados com campo e contracampo,
em alguns momentos sutis. Cito dois exemplos: o famoso primeiro plano do exterior
do apartamento, pela janela do terraço, onde se vê, mas não se ouve a briga do casal
Carlos e Luciana, e na apresentação do personagem Arturo Carracci, na fábrica da
Volkswagen, onde o empresário está ao lado de Carlos, apresentando uma
engrenagem, mas a câmera também fica atrás de uma janela interna, do pátio para o
escritório, enquanto ouvimos a voz do ator Walmor Chagas a descrever seu
“parceiro”; nesta segunda cena, a perspicácia está em mostrar-sem-revelar e,
principalmente, sem se utilizar uma caricatura fácil de Carracci.
Outra qualidade de São Paulo Sociedade Anônima está no título, de uma
felicidade ímpar. Em declaração para a revista Contigo, em agosto de 1964, Person
modestamente diz que foi “sugestão de amigos”. Esta aceitação mostra a capacidade
do artista de reconhecer boas idéias, e também do homem de negócios que enxerga
um título que carrega forte chamariz comercial e de marketing.
Nos anos 2000, São Paulo é sinônimo de capital financeiro, turismo de
negócios, de comércio nacional e internacional, de gastronomia e cultura. Ou seja,
desde os anos 40, a cidade deixou de ser a Casa-Grande dos fazendeiros de café para se
transformar em cidade industrial, algo que hoje não é mais. Para isso, teve a ajuda da
chegada das siderúrgicas no Brasil a partir da Segunda Guerra Mundial e da
necessidade de se produzir produtos industrializados pela falta dos importados de uma
Europa em crise. O ponto de virada foi, exatamente, a chegada do capital internacional
para implantar o parque de fábricas de automóveis na chamada Grande São Paulo,
inclusive o ABC, de Santo André, São Bernardo e São Caetano. A produção de São
Paulo Sociedade Anônima teve até a felicidade de obter a autorização dos alemães da
Volkswagen para fazer as filmagens dentro da fábrica, para que a marca registrada
fosse citada verbalmente (apesar das falcatruas da dupla Carlos-Carracci) e para que o
próprio Carlos vestisse um jaleco com a mundialmente famosa logomarca — imagem
que, hoje, corre o mundo em fotos de divulgação do filme.
Rogério Sganzerla chegou a se perguntar e a questionar o leitor do jornal O
Estado de S. Paulo: “O documentário-ficção, solução para o cinema paulista?”
17
Figura 5. Na sua primeira crítica para O Estado de S. Paulo, Rogério Sganzerla pergunta:
“documentário-ficção?” (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
18
Person lhe havia dito, em entrevista publicada uma semana depois, no mesmo
jornal (ver Anexo 3): “Eis os vasos comunicantes: a angústia individual e a angústia
coletiva. Tratei-os como num documentário.”
E este é um dos trunfos — mais um — do filme. Mais um exemplo: entre as
cenas documentais que são apresentadas — inclusive como forma de corte de uma
cena para outra — talvez a mais significativa seja a retirada dos trilhos dos bondes da
cidade de São Paulo. Ali, em simples takes, estava a transformação de uma cidade
que abria mão do transporte coletivo — e não poluente — para o domínio do carro,
do transporte individual. Tenho certeza que foi uma observação pertinente, uma
escolha, um olhar severo, como se a equipe se perguntasse: “O que vamos
documentar? O que vamos filmar de documental?”. Enquanto nas cidades européias,
e até mesmo nas norte-americanas, como São Francisco, os bondes sobrevivem (e os
trens também), aqui predominaram os automóveis, que superlotam pátios e
estacionamentos (como o da praça Roosevelt), e os caminhões (como o que traz o
protagonista de volta para São Paulo).
Já Francisco Luiz de Almeida Salles, em sua crítica Em louvor de Person,
destaca o único material comprado, feito para os cinejornais de Primo Carbonari.
4
Nada mais paulistano — e é lamentável que a percepção dessa peculiaridade não
possa ser fácil a platéias estrangeiras — do que a fuga desesperada de Carlos ao
longo da vida noturna de São Paulo, ao mesmo tempo em que se processa a corrida
de São Silvestre (Salles, 9 out 1965, p. 5).
Isso, sim, seria angústia. Mas o título original Agonia, apesar de representar o
sentimento de angústia do personagem principal e de Hilda, uma de suas parceiras,
certamente restringiria a leitura da obra.
4
Conforme créditos do próprio filme e depoimento de Glauco Mirko Laurelli para mim, a filmagem
das cenas da famosa Corrida de São Silvestre foram realizadas pela equipe de Primo Carbonari, que
detinha os direitos de apresentar seu cinejornal como “complemento nacional” obrigatório. Glauco diz
que era um material de má qualidade (ver Anexo 2), pois não tinha cuidado técnico nem na captação
fotográfica — ou seja, com interesse apenas informativo e não artístico. Glauco procurou as cenas de
melhor qualidade e, através de uma montagem ágil, editou com as cenas de Carlos entre bares e
guiando seu carro pela noite paulistana. A São Silvestre era organizada pelas empresas do grupo
Cásper Líbero, lideradas pelo jornal A Gazeta, e acontecia sempre na passagem do ano, com saída à
meia-noite do dia 31 de dezembro para 1º de janeiro. Era a única maratona noturna do mundo.
19
Creio que existem filmes que dispõem de ótimos roteiros e grandes recursos,
porém pecam no que os americanos chamam de miscasting, ou seja, má escolha do
elenco. Não é este o caso de São Paulo Sociedade Anônima. Walmor Chagas, que
não era a primeira escolha de Person, sai-se muito bem no papel de um jovem
(Carlos) que não encontra a felicidade nem no trabalho, nem na vida pessoal. Ator de
teatro, foi seu primeiro papel em cinema. Person chegou a pensar em Tarcisio Meira,
em Francisco Cuoco, em John Herbert e até mesmo em promover um concurso para
a escolha do ator. Discuto mais este assunto no Capítulo 3.
A interpretação de Otelo Zeloni como Arturo Carracci tem um timing
conciso. Seu sorriso maroto, sem nunca se deixar irritar (apesar de demonstrar ter um
vulcão interno) e seu figurino preciso (como vou discutir daqui a pouco) revelam a
escolha de quem sabia fazer filmes.
Já para os três papéis femininos, o diretor encontrou atrizes que souberam
interpretar personagens, cada uma com sua intensidade, num roteiro em que, vou repetir
adiante, estas nunca se encontram. Eva Wilma (Luciana) sabe se transformar de
adolescente ingênua em dona de casa ambiciosa. Talvez tenha se aproveitado da grande
experiência televisiva (tamm foi seu primeiro papel em cinema), principalmente na
série Alô doçura, que estrelava na antiga TV Tupi, ao lado do marido John Herbert. Para
o espectador, parece-me que representou o símbolo da mulher de classe média brasileira,
já com vista para o padrão American way of life. Também da TV, mas com participação
em teatro de revista, Darlene Glória (Ana) dignifica, sem vulgarizar, a personagem que
quer ascender socialmente — e também se divertir. Seu diálogo, quando diz que adora
filmes mexicanos e canta o refrão de uma música (“Yo soy pecadora... como una mujer
de film mexicano”), num bar na Galeria Metrópole, é um dos mais preciosos achados
para se apresentar um personagem.
E, finalmente, Ana Esmeralda (Hilda). Esta, sim, atriz tarimbada de cinema,
com mais de 15 filmes na Espanha, carrega com doses misturadas de euforia (no
baile de carnaval e na corrida pela praia) e melancolia (ao acelerar o carro na estrada,
ao passear pela exposição de Lasar Segall, ao dizer “Pessoal e intransferível” no
apartamento) uma personagem fundamental para os pontos de virada do filme — e
que acontecem com o suicídio nas lembranças de Carlos. É importante lembrar que
Ana Esmeralda, até hoje, mistura espanhol com português e foi dublada (muito bem
dublada, diga-se de passagem) pela atriz Cacilda Lanuza. Aliás, este fato mostra o
20
profissionalismo com que o filme foi feito, com cuidado redobrado na captação e
edição de som, e finalmente na sonorização, musicalização e dublagem, cujo feito
transforma-se em mais um dos valores do filme.
Para completar a exposição de minha opinião pessoal, gosto de São Paulo
Sociedade Anônima por se tratar de uma obra uniforme. Sua linguagem é do cinema
moderno e busca aquilo que mais angustiava o diretor: a comunicação com o público.
Se não se pagou, foi pelos motivos de má distribuição pelo Brasil, como procurarei
explicar ao longo da dissertação.
Até mesmo seu cartaz, com elementos que remetem ao construtivismo russo,
mesclando imagens da grande cidade com frases bombásticas, utilizando as cores da
bandeira geometricamente disforme de São Paulo, apresenta tudo do que precisamos
para saber que filme é esse.
Sobre a produção e sobre a montagem, dedico capítulos inteiros, que
completam o pensamento sobre o porquê de pesquisar o filme.
A produção em ação
Empresa limitada, a Sòcine Produções Cinematográficas foi criada por
Renato Magalhães Gouvea, que, junto com Person e Nélson Mattos Penteado,
montaram uma eficiente equação na qual o lado prático aliou-se à criação artística,
algo raro no cinema brasileiro.
Na primeira etapa, venceram o desafio de filmar em exatos dois meses, com a
dificuldade de constantes deslocamentos para 88 locações — centro de São Paulo,
bairros como a Lapa e a Vila Buarque, a periferia, a Grande São Paulo, no nascente
complexo industrial do ABC, o litoral paulista, a represa de Guarapiranga, estradas,
alto da Serra do Mar etc. (cf. São Paulo vista sem retoque, Visão, 11 jun 1965, p. 63).
O roteiro resolve de forma eficiente um desafio dramatúrgico: contar uma história que
se prolonga por cinco anos, com flashbacks, mas em cuja narrativa, entre a primeira e a
última cena, passam-se apenas 24 horas. A estrutura não-linear e cheia de
descontinuidades provoca um verdadeiro tour de force para o ator Walmor Chagas, já
que aparece em todas as cenas (e com todos os personagens), exceto as documentais.
Para isso, foi necessária uma decupagem eficaz. As intérpretes dos personagens
21
femininos Ana, Hilda e Luciana nunca contracenam. Já o outro personagem masculino,
Arturo Carracci perpassa por grande parte da trajetória que vai de 1957 a 1961, mas só
aparece de fato na segunda parte do filme. A Figura 6 demonstra a decupagem
cuidadosa e o profissionalismo no cumprimento do cronograma.
Figura 6. Plano de produção de o Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
Além do filme propriamente dito, sua feitura interessa pela maneira como
diretor e produtor relacionam-se com a imprensa. Simultaneamente, Person e Gouvea
22
abasteceram a imprensa brasileira com fotos e textos — desde a assinatura de
contratos dos atores até etapas de filmagens em lugares públicos. Isso resultou numa
enorme centimetragem de notícias sobre São Paulo Sociedade Anônima — ou seja,
de publicidade grátis — que criou uma expectativa junto ao público. Enfim, depois
de várias sessões fechadas para a crítica e profissionais de cinema, tanto em São
Paulo, como no Rio de Janeiro, o filme foi levado para um festival internacional, a
Primeira Mostra do Novo Cinema, em Pesaro, na Itália, onde ganhou o Prêmio do
Público — e, com isso, mais divulgação.
Afinal, tinha sido comentado e criticado por jornais italianos como Corriere
della Sera, Il Messagero, L’Unitá, Il Tempo, Il Popolo, Momento Sera, L’Avvenire
D’Italia e Voce Adriatica. Os jornalistas e críticos que assinaram foram Aldo
Scagnetti, Antonio Troisio, Corrado Terzi, Dino Biondi, Giancarlo Del Re, G. B.
Cavallaro, Pompeo De Angelis, Ugo Casiraghi e Vincenzo Bassoli (e ainda outro que
assinava apenas como A.S.).
O marketing foi concluído durante o lançamento paulistano, que incluiu pré-
estréia beneficente (para a Sociedade Pestalozzi de São Paulo, uma instituição de
utilidade pública, que desde meados do século 20 atende a crianças e adolescentes, e
dá apoio a adultos com deficiência intelectual), como se tornou praxe a partir dos
anos 1990, quando a contrapartida social e a responsabilidade diante de carências da
população tornam-se armas empresariais. A apresentação do filme foi cercada por
festas e a presença de convidados internacionais (atores de Hollywood), com direito
a tapete vermelho (cf. Capítulos 1 e 2 e Anexo 2).
Em São Paulo, conforme anúncios publicados nos jornais pela Sòcine e pela
Columbia Pictures, o filme estreou nos cines Olido e Regência, duas salas de
prestígio. Permaneceu mais três semanas no Olido e seguiu para as salas Clímax, na
rua Espírito Santo, e Itamaraty, na rua Barão de Tatuí.
23
Figura 7. Anúncio comemora o sucesso do filme (arquivo Cinemateca Brasileira)
No Rio de Janeiro, o filme entrou em cartaz em cinco salas: Vitória,
Copacabana, Miramar, América e Riviera (cf. programação de cinema do Jornal do
Brasil de 28 de novembro de 1965 reproduzida no Anexo 2). Depois, seguiu para
Porto Alegre, apenas com a presença do diretor. Segundo a revista cineclubista Filme
66, editada no Rio Grande do Sul, Person cumpriu extensa agenda de compromissos
entre sessões especiais e entrevistas para vários órgãos de imprensa (ver Anexo 3).
Infelizmente, como já disse, o circuito terminou aí.
Já em São Paulo, amparado por uma publicidade moderna, o lançamento de
São Paulo Sociedade Anônima mostrou-se um modelo que poderia ter sido seguido
por grande parte do cinema brasileiro.
24
Person & Carlos ou Person versus Carlos
Muito já se aventou, inclusive por seus parceiros, que o personagem
principal, Carlos, seria baseado na personalidade do próprio diretor. É o caso do
diretor, produtor e montador Glauco Mirko Laurelli (posteriormente seu sócio), do
seu co-roteirista em O caso dos irmãos Naves (1967), o professor e cineasta Jean-
Claude Bernardet, e do autor da música de São Paulo Sociedade Anônima, Cláudio
Petraglia, também amigo e parceiro em empreitadas teatrais. O assunto é discutido,
inclusive, no filme Person (2007), de Marina Person, filha mais velha de Luiz Sérgio
Person. Apesar de alguns estudos já terem tratado do tema, considero que o material
por mim reunido joga novas luzes sobre a confecção do filme e o profissionalismo de
sua produção. Por isso, dedico o Capítulo 3 ao assunto, junto com a questão da
interpretação dos atores.
Antes, porém, vale a pena ressaltar que uma obra de arte não depende da
“vida” do artista. Creio que trazer dados sobre Person apenas ajuda a esclarecer o
processo de criação e de formatação de um projeto não apenas artístico, mas também
empresarial. Ao analisar os planos de negócio, trazer à tona a estratégia de
divulgação, mostrar os números financeiros, pretendo revelar a personalidade de um
homem que conseguiu tudo isso. Mas não a obra final, esta, sim, criada por um
artista. Mário Pedrosa afirma que isso deve ser evitado para a compreensão, pois o
resultado final não carrega a motivação do criador, como se viesse do mundo
exterior, estruturada de fora, de forma subjetiva e autônoma.
Por isso mesmo, na maioria desses casos, quanto mais diretamente carregada de
sentimentos e paixões, mais tende a obra a ser episódica, sem significação
explicitante, nem para o criador nem para a história da experiência estética. Eis por
que nos parece perigoso, ou pelo menos unilateral e no fundo infrutífero, estar a
medir o grau de “sensibilidade” que aparece numa obra, ou quanto da vida ou do
drama do autor está contido nela: se assim fizermos, como critério para pesar-lhes o
valor e a qualidade, o resultado será sempre negativo. Daí a importância da
preocupação com o que se pode chamar de estilo ou dinamismo próprio da forma
artística, em face de sua época, de seus tabus, de seus materiais e solicitações, pois
só o estilo na obra nos permite, ao seguir-lhe o desenvolvimento apreender por fim,
para além da obra de arte e somente através dela, a fisionomia do seu tempo, o
sentido profundo de civilização em que medrou (Pedrosa, 1986, p. 20).
25
Person tinha paixões e sentimentos, tinha motivos e experiências próprias
para narrar. Mas nem por isso São Paulo Sociedade Anônima deva ser assistido sob
esta ótica. Repito: minha intenção é cercar o ambiente em que o filme foi concebido,
construído e lançado, como exemplo bem-sucedido, um dos raros do cinema nacional
até aquela data. Um outro estudo sobre o filme também poderia cercar a conjuntura
política turbulenta de 1964.
As novidades chamadas Luiz Sérgio Person e São Paulo, SP
Dos estreantes, Menino de engenho e São Paulo
S.A., o primeiro me encantou e o segundo me
interessou muitíssimo. Ambos receberam
menções especiais (Gomes, 18 dez 1965, p. 5).
É importante “ouvir” as vozes da crítica — majoritariamente brasileira —
que, repentinamente, se voltou para cinco fenômenos:
1) o longa-metragem de estréia de um jovem cineasta;
2) a cidade de São Paulo como cenário — e protagonista — e um filme
urbano, raro no cinema nacional de então;
3) um filme que, simultaneamente, se contrapunha ao recente fracasso industrial
da Vera Cruz e ao emergente fenômeno do Cinema Novo, que tentou cooptá-lo;
4) seu “diálogo” com o Neo-Realismo italiano e com a Nouvelle Vague;
5) a busca de um “cinema de arte”, “de autor”, mas também de público, de
“comunicação”, como queria Person.
Apesar de O grande momento (1958), de Roberto Santos (de fato, filmado em
bairros operários da Zona Leste paulistana), e de Noite vazia (1964), de Walter Hugo
Khoury, realizado quase ao mesmo tempo, era a primeira vez que a capital paulista
virava “personagem”.
Da mesma maneira, a saudação para a “primeira obra” foi generalizada, como
é possível constatar pelas frases a seguir:
“Senhoras e senhores, a maior revelação do cinema brasileiro em 1965 nos
vem de São Paulo, de um jovem realizador que acaba de terminar seu primeiro
filme” (David E. Neves).
2
6
“Seguro ao que quer dizer, Person deu um verdadeiro baile em toda a turma
do Cinema Novo principalmente na ‘genialidade’ dos meninos cariocas que falam
muito, têm na mão todos os meios de promoção, fazem pouco e na maior parte,
fazem mal” (Ignacio de Loyola).
“Person, que nessa sua estréia pode ser considerada como das mais
promissoras de todo o cinema brasileiro...” (Alfredo Sternheim).
“É um filme urbano — avis rara, portanto, em um cinema atacado de
cangaceirismo crônico e reformista panfletário agudo” (Ely Azeredo).
“[Luis Sérgio Person] demonstra domínio completo da técnica de direção e
isso — convenhamos — é raro. Rejubilemo-nos” (Thomaz Souto Correia).
“Em louvor de Person quero tecer meus ditirambos críticos, e em louvor da
minha cidade quero assinalar que, pela primeira vez, a vejo captada, apesar da sua
difícil recusa ao registro” (Francisco Luiz de Almeida Salles).
“Luiz Sergio Person é o primeiro cineasta paulista a romper com o complexo
de ‘honestidade’ que esconde a mediocridade da maioria de nossas produções”
(Rogério Sganzerla).
“Talvez o filme de estréia mais inteligente e imaginoso em toda a história do
cinema brasileiro, ‘São Paulo S.A.’ parte dessa ominosa imagem inicial, como que
surpreendendo personagens anônimas por trás de um vidro qualquer, para todo um
emaranhado de situações angustiantes, através das quais vamos conhecendo e
identificando os problemas e as agonias de seu herói” (Alex Viany).
Não era pouca coisa.
A lista de críticos foi enorme: Alfredo Sternheim, Alex Viany, Antonio
Moniz Vianna (ver Figura 8, a seguir), Arley Pereira, David E. Neves, Ely Azeredo,
Francisco Luiz Almeida Salles, Glauber Rocha, Goida, Gustavo Dahl, H. Didonet,
Ignácio de Loyola Brandão, João Marschner, João Silvério Trevisan, José Wolf, Luiz
Alípio de Barros, Luiz C. Oliveira, Mauricio Gomes Leite, M. Aurélio Barcelos,
Novais Teixeira, Orlando Fassoni, Paulo Perdigão, Rogério Sganzerla, Rudá de
Andrade, Salvyano Cavalcanti de Paula, Sérgio Augusto, Thomaz Souto Correia e
Vladimir Herzog foram alguns dos jornalistas, críticos, professores e cineastas que
escreveram sobre o filme na época de seu lançamento. Sem falar em Paulo Emílio
Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet, naquele período, assim como Ismail Xavier e
Rubens Machado Jr., que posteriormente se aprofundaram em ensaios.
2
7
Entre os críticos que escreveram logo após o final das filmagens de São
Paulo Sociedade Anônima, em 1964, estava o severo Moniz Vianna que elogiou a
busca por uma nova temática no cinema brasileiro.
Figura 8. Moniz Vianna destaca a opção urbana de Person versus o “exotismo regionalista” do
Cinema Novo (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
No final de 1965, Vianna fez parte da delegação brasileira que esteve no
Festival dos Festivais, em Acapulco, México, acompanhando a performance do filme
de Person, que também estava lá (cf. coluna de Miriam Alencar no Jornal do Brasil,
de 28 de novembro de 1965, s/p). Infelizmente, não descobri se Vianna escreveu uma
crítica específica sobre o filme.
Pelo menos quatro críticos (Loyola, Neves, Perdigão, Sganzerla) optaram em
dividir suas opiniões em duas ou mais edições das publicações em que escreviam.
Todos do eixo São Paulo - Rio de Janeiro. As únicas de fora destas cidades foram
feitas por Goida, do jornal Zero Hora de Porto Alegre, M. Aurélio Barcelos, da
28
Federação Gaúcha de Cineclubes e o futuro cineasta Maurício Gomes Leite, na
Revista de Cinema, publicação bimestral de Belo Horizonte. Infelizmente, não tive
oportunidade de pesquisar se outras cidades brasileiras (afora São Paulo, Rio de
Janeiro, Porto Alegre e Belo Horizonte) também se debruçaram sobre São Paulo
Sociedade Anônima.
Esta é uma tarefa — e sugestão — que deixo para outros pesquisadores.
Descrição dos capítulos e anexos
No primeiro capítulo desta dissertação (“Produção & marketing S. A.”), meu
objetivo é apresentar os dados que cercaram a pré-produção e a produção em si de
São Paulo Sociedade Anônima. Inicio com o projeto inicial apresentado por Luiz
Sérgio Person ao produtor Renato Magalhães Gouvea. Em seguida, por meio de
entrevistas realizadas por mim e reportagens, notas e comentários publicados nos
jornais, mostro como se montou uma estrutura para que o filme cumprisse prazos,
orçamentos e, com um marketing eficiente, criasse expectativa no público paulistano,
o qual prestigiou e aplaudiu sua realização. Como já observei, um caso raro no
cinema brasileiro.
No segundo capítulo (“Promoção: Reportagens – o filme visto pela
Imprensa”), transcrevo, comento e ilustro grande parte das notas e reportagens que
acompanharam o processo de filmagem e lançamento de São Paulo Sociedade
Anônima. Mas, principalmente, municio o leitor com elementos que levaram a
imprensa brasileira a se impressionar com um filme que julgavam inédito, um filme
sobre uma capital, enfim um “filme urbano”, como muitos diziam. É interessante
notar o linguajar da época, como “arranha-céus”, por exemplo. Isso permite um
estudo muito próximo de como foi montada a estratégia de marketing, assim como
observar o tratamento que jornalistas deram à realização de um filme paulistano. A
produção, através de uma jornalista contratada e do profissional de relações públicas
da Sòcine (Orpheu Paraventi Gregori, que até aparece em foto numa reportagem de A
Gazeta Esportiva, de 18 de setembro de 1965), fornecia fotos acompanhadas de
textos, revelando todas as etapas de pré-produção, filmagem e finalização.
Proporcionavam-se até informações dirigidas sobre os bastidores do
29
empreendimento, como no caso do figurino (para coluna de moda), de fotos de
coquetéis (para colunas sociais) e de textos picantes sobre tramas do roteiro (para
revistas de fofocas e entretenimento), entre outras.
Figura 9. Exemplo de material publicado pela imprensa sobre São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
No terceiro capítulo (“Personalidade & personagens de Person”), discuto
quem foi Luiz Sérgio Person. Parto de uma análise do momento histórico que vivia
São Paulo e o Brasil, a crescente industrialização da era JK, e apresento depoimentos
de parceiros e amigos, assim como do próprio Person, que viveu uma fase na
indústria e se coloca desta maneira. Sua “identidade” com o personagem Carlos é
apontada por diferentes fontes e opiniões. Embora o assunto já tenha sido tratado em
outros estudos — caso da dissertação A São Paulo de Person: uma análise
socioespacial do filme São Paulo S. A., de Marco Antonio Bin, de 1998 —, acredito
30
que há um recorte importante para se entender o processo de produção do filme, pois
a personalidade do diretor mostrou-se fundamental para a concretização de seu
projeto. Neste mesmo viés, pesquiso a questão da interpretação do elenco, que
chamou a atenção da crítica e de estudiosos como Jean-Claude Bernardet — e que
era importante para o diretor. Após um breve histórico sobre a carreira de Person
como ator e a partir das críticas e dos prêmios, procuro analisar a atuação dos atores
de São Paulo Sociedade Anônima. Como referência, recorro ao texto de Paulo
Emilio Salles Gomes em A personagem de ficção.
No Capítulo 4 (“Palavra crítica comentada & ilustrada”), o objetivo é
comentar e encadear as críticas da época e situá-las dentro do contexto em que foram
realizadas. São Paulo Sociedade Anônima era um filme diferenciado para o período,
porque não se engajava nas propostas “ideológicas” do Cinema Novo, mas trazia
idéias para um cinema realista moderno — e que chamou atenção por sua linguagem
dinâmica, seu profissionalismo em todas as etapas e pelo tratamento que deu para o
raro tema urbano na cinematografia brasileira da época. Na seqüência, apresento os
textos da crítica italiana num momento específico: a reação ao fato de que o recebera
o Prêmio de Público na Prima Mostra Internazionale del Nuovo Cinema, em Pesaro,
na Itália, dirigida pelo cineasta Pier Paolo Pasolini.
No Capítulo 5 (“Proposta de desmontagem & remontagem”), procuro
explicar os motivos que me levaram a fazer uma nova montagem de São Paulo
Sociedade Anônima, totalmente dentro da ordem cronológica dos eventos da história
narrada pelo filme (DVD anexo). O período entre 1957 e 1961 é colocado de forma
linear, com os relacionamentos entre os personagens sem o vai-e-vem da montagem
original de Glauco Mirko Laurelli. Ou seja, na remontagem feita por Ana Braga, por
minha encomenda, as seqüências de Carlos com Ana, Hilda e Luciana entram de
forma encadeada, com o posterior reencontro do protagonista com Ana e Hilda. A
briga do casal, que abre o filme, passa para o final. E, finalmente, inseri o poema
Agonia, de Vinicius de Moraes, conforme proposta do próprio Person manuscrita em
seu roteiro. O capítulo discute a questão da montagem no cinema a partir de textos de
Eduardo Escorel, Maria Dora Mourão, Eduardo Leone e Luiz Adelmo F. Manzano.
Em todas as análises, estão em foco as diferentes possibilidades de um filme a partir
de diferentes montadores e como a montagem já pode nascer no roteiro e/ou a
31
montagem transformar o roteiro. No objeto estudado, o filme já nasceu com a
estrutura que foi para a tela.
No Anexo 1 (“Pré-projeto de Person”), exponho o minucioso projeto para a
realização de São Paulo Sociedade Anônima, que Luiz Sérgio Person levou para
Renato Magalhães Gouvea. Trata-se de um material até então desconhecido, pois
estava guardada nos arquivos do produtor.
No Anexo 2 (“Entrevistas”), apresento os depoimentos que gravei com o
produtor Renato Magalhães Gouvea, com o montador Glauco Mirko Laurelli e com a
atriz Ana Esmeralda, que fez Hilda em São Paulo Sociedade Anônima.
O Anexo 3 (“Palavra de Person: entrevistas e depoimentos do diretor”) traz
um lado pouco conhecido do diretor de São Paulo Sociedade Anônima. Ele pouco
escrevia para a imprensa — apesar de, no inicio de carreira, ter lançado uma revista
sobre cinema, Seqüência (que só publicou um número), e de ter colaborado para o
semanário O Pasquim nos anos 70. Apesar de polêmico, não vestia o figurino para,
em público, trocar idéias estéticas ou sóciopolíticas. Por isso, a importância de
conhecer, por suas próprias palavras, os pensamentos que o cercavam. São
depoimentos que gravou ou escreveu e entrevistas que concedeu, inclusive para
cineastas como Rogério Sganzerla e Alfredo Sternheim, só para citar dois exemplos,
que viviam a dupla face de críticos.
Com o Anexo 4 (“Prorrogação S.A.”), lanço a seguinte pergunta: Person
pensou na continuidade de São Paulo Sociedade Anônima? Se na época do
lançamento disse que era uma página virada, anos depois escreveu uma versão, até
hoje inédita, do que teria sido a história de Arturo Carracci e Ana como amantes, no
período do “milagre econômico” que o Brasil experimentou durante o regime militar
e que levaria a fábrica Carracci à falência. A grande questão para o “novo capitão da
indústria”, como o personagem de Zeloni se auto-intitula no filme, é vender ou não a
fábrica para uma multinacional — fato corriqueiro naquele período — e também
como pagar as contas de duas casas: a sua própria, com mulher e filhos, e a de Ana.
Na certa, Darlene Glória e Otelo Zeloni teriam topado a empreitada. Considero
pertinente apresentar este texto, pois demonstra a vontade de Person em voltar a
tratar de temas urbanos. A história seria um capítulo do filme Os 7 pecados
capitalistas, como já citei anteriormente, cujo primeiro episódio se chamaria “A
32
publicidade” — e era uma forte ironia contra o mundo da propaganda que Person
freqüentou durante um período para manter a própria subsistência.
O Anexo 5 ilustra o profissionalismo da assessoria de imprensa e de relações
públicas da Sòcine. São três páginas de release, com vários itens que destacam os
acontecimentos e bastidores das filmagens de São Paulo Sociedade Anônima. As
fotos já vinham com legenda no verso, com o carimbo da Columbia Pictures (ver
Figura 3, na página 6, como exemplo).
Breve biografia de um multimídia avant la lettre
Eu e o Person estávamos sempre inventando
coisas. Por exemplo: pensamos em ter uma
distribuidora de filmes brasileiros para que não
entregássemos para as distribuidoras americanas.
E fizemos esta distribuidora, a RPI, onde
reunimos uma porção de diretores, de produtores,
aqueles independentes. Fizemos reuniões no
escritório na Rua do Triunfo, lá na Boca do Lixo.
É que o Person tinha outra coisa: ele pensava
comercialmente. Nós produzimos! Tanto é que
ele pensava em fazer séries, como foi o caso do
Cassy Jones, em que ele pretendia transformar
num produto. Era uma comédia sem pretensões
porque ele dizia que queria também o lado
comercial (Depoimento de Glauco Mirko
Laurelli, concedido ao autor em 19 mar 2008).
Antes de entrar nos Capítulos “Produção & marketing S. A.” e
“Personalidade & personagens de Person” (especialmente este, no qual me aprofundo
em dados sobre sua vida), considero necessário delinear esta breve biografia de Luiz
Sérgio Person (1936-1976), para facilitar a compreensão de sua forma de
pensamento e atuação.
Em 1957, precoce, com 21 anos de idade, Person já dirigia o longa-metragem
Um marido barra-limpa e teleteatro ao vivo. No pequeno currículo que consta da p.
2 do pré-projeto do filme (ver Anexo 1), ele assim definia sua atuação na TV: “LUIZ
33
SÉRGIO PERSON, ator, adaptador, diretor de espetáculos de televisão de 1955 a 1958
(‘Grande Teatro Tupy’ TV 4, ‘Teatro Cacilda Becker’ TV 7), colaborou com Antunes
Filho, Maria Fernanda, Aurora Buarque, Jaime Barcellos etc.”
Neste segundo caso, é possível inferir que a televisão ajudou-o a desenvolver
o espírito do improviso, a capacidade de vencer dificuldades, de resolver carências
técnicas (uma câmera que falha, por exemplo), e também no trato com atores. O
convite foi do diretor Antunes Filho. Em depoimento para Joana Fomm, Person
explica como era: “Chamava-se Grande Teatro Três Leões e era ao vivo. Uma hora e
meia de loucura ao vivo dentro de um estúdio menor do que esse em que nós
estamos, creio” (Labaki, 2002, p. 27).
5
Da mesma maneira, ele sempre teve aptidão para os números e para a
administração. Prova disso é que, em 1958, foi “Secretário de Produção” (como se
intitula na biografia escrita na p. 2 do pré-projeto de São Paulo Sociedade Anônima)
do filme Verdes mares bravos (não declara autoria) e de “diversos outros
documentários do Planalto Prod. Cinem. de S.P.”.
Depois da passagem pela Person-Bouquet, a empresa de seu pai, resolve
partir para uma temporada na Europa. Primeiro, na casa de Georgette Person, sua tia,
em Paris. Em seguida, em Roma, onde cursou o Centro Sperimentale di
Cinematografia. Lá, entre muitos estrangeiros, estudou e conviveu com dois diretores
brasileiros contemporâneos, Gustavo Dahl — que viria a escrever sobre São Paulo
Sociedade Anônima na revista Cahiers du Cinéma — e Paulo César Saraceni — que
lançou O desafio (1965) quase simultaneamente com o de Person e com quem
disputou alguns prêmios e algumas preferências.
Em 1962, como trabalho de escola, dirigiu o curta-metragem Al ladro,
premiado como representante italiano no Festival de Veneza, e foi assistente de
direção de Luigi Zampa em Anni ruggenti. Em 1963, realizou como trabalho de
conclusão de curso outro curta-metragem, L'ottimista sorridente, em 16 mm (que
5
Quantos e quais diretores de cinema deste período, fossem do Cinema Novo, fossem remanescentes
da Vera Cruz, passaram pela televisão? Hoje, anos 2000, esta vivência chega a ser considerada
fundamental para o aprendizado e a experiência, de acordo com testemunhas que vão de Beto Brant a
Walter Salles, com destaque para Fernando Meirelles, que fez de tudo na produtora Olhar Eletrônico,
programas como TV Mix, na TV Gazeta, e Rá-Tim-Bum, na TV Cultura, além de centenas de
comerciais para televisão.
34
Person definia como um musical) e também o documentário II Palazzo Doria
Pamphil (cf. Labaki, 2002, p. 89), sobre o histórico prédio romano onde está
instalada a embaixada brasileira.
Retornou ao Brasil no final deste ano, já tendo escrita grande parte do roteiro
de São Paulo Sociedade Anônima.
Figura 10. Foto de divulgação com Person (à direita) e Aronovich publicada na Última Hora (SP),
em 17 nov 1965 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Suas entrevistas são pouco ou nada conhecidas, porque foram esporádicas,
em jornais e revistas, e nunca mais reunidas. Pelo quem sabemos, o cineasta era
inquieto, provocador, hiperativo, mas, acima de tudo, um realizador. Ao contrário do
que muita gente escreve, não o vejo como polêmico. Ele simplesmente queria fazer a
sua parte. Por isso, trafegou entre o cinema realista (o curta italiano Al ladro, São
Paulo Sociedade Anônima e O caso dos irmãos Naves), o terror (episódio “A procissão
dos mortos”, da Trilogia do terror, de 1968, com Ozualdo Candeias e José Mojica
35
Marins), a comédia (Panca de valente, de 1968), a comédia musical (Cassy Jones, o
magnífico sedutor), o musical (L’ottimista sorridente), além de documentários curtos
(Vicente do Rego Monteiro, de 1974).
Inteligente, provou-nos e se provou um artista sensível, um artesão detalhista,
um intelectual preocupado com seu tempo e uma pessoa eclética. E sabia unir tudo
isso (revista, cinema, teatro, comerciais, televisão, ópera), através de uma forte veia
empresarial. Tudo indica que não tinha vergonha deste seu lado para os negócios,
muito pelo contrário. O comentário usado como epígrafe na página 32, de Glauco
Mirko Laurelli, mostra a sua inquietude. Além de Cassy Jones, a idéia de criar obras
em “séries” pode ter sido uma das obsessões de Person — o que anteciparia práticas
corriqueiras nestes anos 2000, quando a TV Globo exibe séries baseadas em filmes,
caso de Carandiru, outras histórias (2005), Antonia (2006) e Cidade dos homens
(2002-2007). Glauco recorda que Person queria fazer algo que Os Trapalhões vieram
a concretizar. O filme Panca de valente teria esta proposta: “Era para ser o piloto de
uma série, cujo personagem central é um caubói desastrado e suas aventuras. A idéia
era criar um personagem que passasse por várias histórias, como Os Trapalhões
viriam a fazer mais tarde” (Jesus, 2007, p. 128).
Esta comédia foi feita depois de ver rejeitado — tanto aqui no Brasil, como
por um produtor norte-americano que havia gostado de O caso dos irmãos Naves —
o que seria um dos grandes projetos de sua vida: realizar um filme baseado na obra A
hora dos ruminantes, de J. J. Veiga. Esta frustração fica patente no documentário
Person e na entrevista a O Pasquim.
Person, corajosamente, demonstrou sua insatisfação com Panca de valente,
filme do qual não gostava nem de citar o nome — e um dos motivos era o excesso de
pretensão, com a utilização de piadas e gags que só seriam entendidas por poucas
pessoas. Ele mesmo diz isso na gravação que fez com Joana Fomm para a TV Cultura:
Por exemplo, um bandido diz a famosa frase de Julio César ao cruzar uma ponte.
Alea jacta est. O Jofre Soares dizia isso e eu achava muito engraçado, mas realmente
ninguém percebia isso dentro do filme. O filme para mim foi um fracasso total —
artístico, comercial —, não tanto porque o filme não desse dinheiro, mas porque eu
mesmo fui distribuir o filme. Montei com outros cineastas uma distribuidora e o
dinheiro todo que entrava na distribuidora se diluía em pagamentos e despesas
(Labaki, 2002, p. 30).
3
6
Com o fracasso do filme, a Lauper Filmes passa a se dedicar, por quatro anos
e meio, a filmes publicitários, quando se transforma numa das maiores produtoras do
meio. Neste meio tempo, em 1970, produz, ao lado de Cláudio Petraglia, um dos
maiores sucessos de público do cinema brasileiro, o filme A moreninha, dirigido pelo
sócio Glauco.
Mesmo com essa boa notícia, segue inconformado com o que chamava de
“mundo publicitário”, recheado de “gênios”. Segundo o diretor Carlos Reichenbach,
no documentário Person, ele teria se despedido de todos os donos de agências, pelo
telefone, fazendo um longo e estrondoso xingamento. Ainda nesta fase de
propaganda, em 1972, com mais de 100 filmes realizados, consegue escrever,
produzir e dirigir Cassy Jones e, apesar do bom público, ao receber novas críticas,
decide retornar ao teatro. Em 1973, em sociedade com Glauco Mirko Laurelli,
transforma ironicamente um cinema na rua Augusta, centro de São Paulo, num
espaço teatral, o Auditório Augusta — assunto de que vou tratar a seguir.
Na mesma entrevista para Joana Fomm, Person se diz um “sociólogo
frustrado” e explica por que não gosta de teorias sobre cinema: “[...] eu confesso que,
depois, muitos dos livros sobre cinema que eu li, principalmente sobre teoria
cinematográfica, são todos muito chatos, e vieram sempre com atraso” (Labaki,
2002, p. 26).
Dessa maneira, não é de estranhar que nada ou pouco tenha escrito e/ou
publicado sobre o assunto — nem no solitário número 1 de Seqüência assinou
textos.
6
Ao contrário dos diretores do Cinema Novo, que se especializaram em
teorizar os filmes ou justificá-los politicamente de forma engajada, Person preferia
agir. Hoje, é muito pouco o que temos sobre ele. Neste sentido, esta dissertação
pretende cobrir parte dessa lacuna.
6
A revista Seqüência, editada por Person, a que tive acesso pelas mãos de Marina Person, versava
sobre cinema e teatro. Era bem programada, diagramada de forma leve e bastante moderna para a
época. Sua proposta era tratar de teatro e de cinema. Uma das reportagens, por exemplo, abordava os
cuidados que se deveria ter com figurinos teatrais. Para a área de filmes, a responsabilidade era do
crítico Francisco Luiz de Almeida Salles. O futuro produtor executivo de São Paulo Sociedade
Anônima, Nélson Mattos Penteado, era o diretor comercial. A revista só teve um número, bancado
pela família de Person, e apenas um anúncio, do Café Caboclo. Glauco Mirko Laurelli fala sobre ela
no Anexo 3.
3
7
Na bibliografia sobre ele, há poucas teses, alguns capítulos e apenas o livro já
citado, Person por Person, com organização e notas do crítico Amir Labaki, editado
em 2002 numa parceria do festival É Tudo Verdade com o Centro Cultural Banco do
Brasil. A intenção de Labaki era (ou é) inaugurar “a parte editorial do Projeto Person,
voltado a recuperar a importância histórica de um dos mais originais artistas surgidos
na São Paulo do pós-guerra” (Labaki, 2002, p. 18). A edição do primeiro volume foi
feita em paralelo com a mostra Person, Um Cineasta de São Paulo, em 2002. O livro,
de formato pequeno, resume-se a uma introdução, algumas fotos, as entrevistas para O
Pasquim (edição nº 295, 5 a 11 de junho de 1973) e a TV Cultura (programa Luzes,
Câmera, de 27 de dezembro de 1975) e a sua filmografia. Trata-se de um material
limitado perto do que é possível pesquisar sobre Person. Afinal, só alcança dois
momentos extremos do diretor paulistano, ambos fora do contexto de suas principais
obras em cinema (São Paulo Sociedade Anônima e O caso dos irmãos Naves).
No primeiro momento, em entrevista para O Pasquim (que encerra o pequeno
volume, apesar de ter acontecido em junho de 1973, portanto antes da gravação na
TV Cultura, final de 1975) Person se mostra uma pessoa agressiva, já que estava
cercado por jornalistas cuja função era, precisamente, provocá-lo. Nestas
circunstâncias, não traduz suas idéias, embora Labaki afirme, na pequena introdução,
que Person estava “arrojado, polêmico, provocador” (Labaki, 2002, p. 16).
Na verdade, está irreconhecível, talvez até sob efeito alcoólico (as entrevistas
de O Pasquim ficaram conhecidas pela prática do uso de bebida para “soltar” os
convidados). Durante grande parte do tempo, é levado a se justificar sobre o fato de
ter feito uma comédia carioca ambientada no bairro de Ipanema e instado a se
indispor com diretores do Cinema Novo: chega a partir para uma agressão verbal
contra Cacá Diegues e Arnaldo Jabor, o que acabou se transformando na manchete
do jornal (ver Figura 11, a seguir).
38
Figura 11. Página inicial da entrevista de Luiz Sérgio Person a O Pasquim, edição nº 295, 5 a 11 de
junho de 1973 (arquivo Cinemateca Brasileira)
39
No segundo momento, na conversa com Joana Fomm, pouco antes de sua
morte em janeiro de 1976, por ser uma entrevista “falada”, com câmeras, luzes e
muita produção ao seu redor no estúdio, fica difícil distinguir o que é pensamento, o
que é exibicionismo, o que é autojustificativa e o que é, de fato, reflexão.
7
Person provavelmente não tentou o romance nem a poesia. Freqüentador de
teatro, foi amigo de diretores como Antunes Filho e José Celso Martinez Correa (que
chegou a ser cotado como assistente de direção em São Paulo Sociedade Anônima e
sobre quem, na mesma entrevista para O Pasquim, declarou ser um dos maiores
diretores de cinema do Brasil, não pelos filmes, mas pelas peças no Teatro Oficina,
caso de O rei da vela, de Oswald de Andrade).
Na fase do Auditório Augusta, iniciada em 1973, fez traduções, como foi o
caso de Trotzki im Exil in Düsseldorf (Trotski no exílio), de Peter Weiss, censurada
pelo regime militar. Por causa disso, ainda em 1975, resolveu escrever a comédia
musical Pegando fogo, com o jornalista Ricardo Kotscho, que ficou incompleta.
8
Em cinema, o primeiro roteiro solo de Person foi O grande marido, de
setembro de 1957, sobre original de Eurico Silva, e que provavelmente foi a base de
seu primeiro longa-metragem, Um marido barra-limpa. Person chegou a dirigir e
atuar neste filme, que só foi concluído 10 anos depois, com a direção assinada por
Renato Grecchi. O primeiro título era Um marido para três mulheres. Grecchi foi
produtor executivo, com Antônio Galante, do episódio A procissão dos mortos.
Em roteiros de cinema, foi parceiro ou teve colaboradores interessantes. A
saber: o cineasta José Mojica Marins (A sina do aventureiro, 1957, sem crédito na
7
Da mesma maneira, o livro nem sequer traz os textos que Person publicou como colaborador de O
Pasquim, semanário carioca basicamente de humor, a convite dos diretores do jornal, Jaguar e Millôr
Fernandes. Aliás, é uma tarefa que outro pesquisador pode realizar, já que meu estudo versa apenas
sobre São Paulo Sociedade Anônima. Outro desafio seria investigar os bastidores e o lançamento de O
caso dos irmãos Naves, um filme que ainda está a merecer uma boa publicação.
8
O Auditório Augusta ainda teve uma sobrevida sem a personalidade de Person. Depois de sua morte,
no inicio de 1976, algumas peças foram montadas sob o comando solitário de Glauco Mirko Laurelli,
mas o espaço passou, principalmente, a ser alugado para outras companhias teatrais. Glauco
permaneceu na sociedade até 26 de dezembro de 1979. Em 22 de fevereiro de 1984, transferiu sua
participação na Lauper Filmes para a família de Person, ficando apenas com os direitos do filme A
moreninha, com Sonia Braga, que dirigiu em 1970, com produção de Luiz Sérgio Person — e até
hoje, proporcionalmente, uma das maiores bilheterias do cinema nacional (cf. Jesus, 2007).
40
tela); o distribuidor Alfredo Palácios (Casei-me com um xavante, 1957); o acadêmico
Jean-Claude Bernardet (SSS contra a Jovem Guarda, 1966, não realizado, e O caso
dos irmãos Naves); o humorista Jô Soares (SSS contra a Jovem Guarda); o também
humorista Millôr Fernandes, que escreveu piadas e cenas para Cassy Jones, mas não
assina o roteiro, que é do próprio Person e de Joaquim Assis, engenheiro e músico
carioca que foi montador e diretor musical de Todas as mulheres do mundo (1966, de
Domingos de Oliveira), com o mesmo ator, Paulo José; o dramaturgo e autor de
novelas Lauro César Muniz (capítulo “A publicidade”, em Os 7 pecados capitalistas).
A origem na poesia
Agonia
No teu grande corpo branco depois eu fiquei.
Tinha os olhos lívidos e tive medo.
Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia
Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites.
Na minha angústia eu buscava a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara.
Eu estremecia agonizando e procurava me erguer
Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos.
Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma
Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.
Depois foi o sono, o escuro, a morte.
Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas (Vinícius de Moraes).
9
O filme São Paulo Sociedade Anônima nasceu com o nome do poema de
Vinicius de Moraes, Agonia, conforme registro na Biblioteca Nacional, de 1963.
9 O poema “Agonia” foi publicado no livro Forma e exegese, em 1935 (Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti), com epígrafe de Jacques Rivière — “Je ne vois clair qu’au contact de la vie” — e dedicado
a Jean-Arthur Rimbaud e Jacques Rivière (cf. www.viniciusdemoraes.com.br).
41
Figura 12. Trecho de Agonia, na 2ª página do roteiro original (arquivo Cinemateca Brasileira)
Duas perguntas ficam no ar: qual o seu impacto para o roteiro? Por que Luiz
Sérgio Person não colocou as palavras de Vinicius na montagem final? Para esta
segunda questão, só Person poderia responder.
Levanto três hipóteses: opção estética do diretor que deixou de ver utilidade
artística e formal, questão de direito autoral ou o alto custo de tal procedimento, a
que acredito ser a mais provável.
10
10
Se, hoje em dia, por métodos eletrônicos e digitais, isso é muito fácil — motivo que me levou a
incluir a poesia na minha proposta de remontagem —, no processo fotoquímico era muito trabalhoso e
custava muito caro. Levantei esta questão para Fernanda Coelho, técnica em conservação de arquivos
audiovisuais, desde 1979 trabalhando na Cinemateca Brasileira, que me explicou, por e-mail, dois
processos diferentes. No primeiro, texto e imagem se casavam apenas na cópia e não no negativo. Era
este o método utilizado para os cinejornais, que tinham pouco tempo para chegar aos cinemas e menos
necessidade de preservação. Segundo ela, “nos cinejornais — que tinham um letreiro a cada
mudança de assunto —, era comum colar o filme de letreiros fisicamente no negativo de imagem, no
início da cena. Assim podia-se fazer uma cópia corrida, sem precisar parar a copiadeira para trocar os
letreiros”. No segundo caso, bem mais caro, era preciso fazer uma “trucagem”. “Para isso, eram
necessários equipamentos especiais e técnicos especializados. Mesmo a publicidade — sempre mais
rica — selecionava bem o material que iria trucar por causa dos custos”.
42
A parte que grifei, as últimas sete linhas, está datilografada na segunda página do
roteiro de São Paulo Sociedade Anônima (ver Figura 12, na página anterior). Na parte
alta da página, nomes dos personagens e dos atores. Duas cópias, ambas usadas na
produção e na montagem, foram doadas por Jean-Claude Bernardet, em abril de 1983,
para a Fundação Cinemateca Brasileira. Na primeira página, a palavra “Agonia”, em
maiúsculas, está riscada como título provisório, e, à mão, surge o titulo “São Paulo
Sociedade Anônima”.
Figura 13. Roteiro original de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
43
Já na página 83, a última do roteiro, abaixo da palavra FIM, existe um lembrete
manuscrito, do qual mantenho a grafia original: “OBS. Eventualmente sôbre a imagem
final entraria o trêcho do poema do Vinicius” (ver Figura 13, na página anterior).
E, finalmente, datilografada, a assinatura:
L. S. PERSON
Roma, Itália — 1962
São Paulo — 1963
As palavras revelam muito de um filme em gestação. O prenome “eu”
determina o agente. Agonizar é sintoma de agonia. Resistir, o verbo de lutar. Mas
algo puxa para baixo, areia movediça, afogamento, desaparecimento, morte: “E o
pavor das tuas entranhas”.
A cidade se assemelha a uma mulher — no caso, de um homem. Alguém que
se ama e se odeia.
É interessante notar a paixão de Person por Vinicius. Na cena em que revela o
suicídio da personagem Hilda, interpretada por Ana Esmeralda, a câmera de Ricardo
Aronovich passeia pelo quarto e se fixa em livros de cabeceira, onde se encontra
Para viver um grande amor, ao lado de outras obras de poesia, todas em francês.
Uma pequena e sutil citação.
As palavras finais do poema falam do “sono”, do “escuro”, da “morte”, que
atingem a amiga, Hilda, a que mais balança Carlos.
A filmagem respeitou o roteiro e a cena assim está escrita:
26) APTO.LIVING DORMITÓRIO — INT — DIA
103-104-105-106-107
O delegado gira em torno do sofá-cama que não é visto na enquadração.
Encarando Carlos que está do outro lado, pergunta:
— O senhor conhecia bem esta moça?
Carlos olha estarrecido para o sofá.
— Sim... éramos amigos...
A CAM baixa de Carlos para o sofá enquanto ele fala. Hilda está semi-núa como se
dormisse numa noite de calor. Numa mesinha, um cinzeiro cheio de pontas de cigarro,
tubos de comprimidos, um copo de bebida: tudo numa arrumação clássica de suicídio com
barbitúricos.
44
— Uns quatro anos atrás Hilda trabalhava comigo
num escritório [o complemento ‘comercial’ está
riscado no original] ...brigou com o patrão e
saiu...não parava muito no emprego...mas tinha
quantos queria...às vezes passava muito tempo sem
ver Hilda...
Em PAN ou planos fixos a CAM. mostra particularidades do apartamento, livros,
uma poltrona, um porta-retrato, particularidades que possam sugerir os hábitos de Hilda,
sua maneira de viver, enquanto se ouve parte da conversação acima e o que se segue. O
delegado pergunta:
— O senhor sabe de algum motivo... qualquer coisa
em especial pra que ela fizesse isso?
— Hilda poderia ter muitos motivos...
Entra a voz de Carlos como se dissesse a si mesmo:
— Muitos...o que o delegado poderia compreender
de Hilda? O que pude?
É na hora da morte dela, Hilda, que ele, Carlos, decide romper o casamento, o
trabalho, a vida na cidade, e partir para o desconhecido. Ou, como disse o próprio
Person, em depoimento para o cineclube Centro Dom Vital, na época do lançamento
do filme — e que está registrado na Cinemateca Brasileira sob o número D 287/2
(ver Anexo 3):
Ele não tem mais, mergulhado como está em sua condição burguesa, nenhuma
possibilidade crítica realmente válida. É então que ataca pelos flancos, nos sintomas
comezinhos, que nunca denunciam um mal maior. São as pequenas coceiras que só
o exame atento e profundo poderia acusar o câncer. Nunca é capaz de desvendar a
estrutura que o envolve nos males. Sua posição, como a de todos os inconscientes
indivíduos de seu meio, é a de um moralista suburbano. Nunca vê o conjunto ou não
quer ver as peças que deram origem ao defeito essencial do motor. Sua moral é
compulsiva e mesquinha, ou ainda tristemente, inútil.
A questão do suicídio foi muito notada por vários críticos e jornalistas, que
apontaram para isso. Foi o caso de José Wolf no Jornal do Comércio do dia 5 de
dezembro de 1965, com o título “São Paulo: a tragédia do homem-multidão”.
45
Ah! O suicídio. Mas para que o suicídio? Por quê? Quando Carlos amanhece no alto
da estrada, ele se encontra novamente com a vida, a vida dos homens simples, que
trabalham ao seu lado. Pede carona e volta para São Paulo. Mas, como viver daí para
diante? Excluída, pois, a hipótese do suicídio, nada mais lhe resta que o
afrontamento lúcido, frio — como a filosofia bergmaniana — do homem com a
própria vida com o próprio absurdo. É necessário recomeçar. Recomeçar.
Recomeçar. A multidão de aproxima da tela. Carlos é um deles. Como todos devem
enfrentar, lutando como o Sísifo de Le Mythe de Sisyphe, de Albert Camus. Para
Camus, Sísifo é o condenado a transportar um enorme bloco de pedra até o cimo de
uma colina. Todas as vezes que alcançava o alto da colina o bloco escapava-lhe e
rolava pelas encostas da colina, obrigando-o a recomeçar sempre. Contudo, Camus
termina sua obra dizendo que “é preciso imaginar Sísifo feliz”. A única saída é
recomeçar como o condenado Sísifo. Tudo: o sofrimento, as correrias, as andanças,
o amor, VIDA, prosseguindo o homem em seu ciclo de pesadelo até que Alguém lhe
responda (Wolf, 5 dez 1965, s/p).
O jornal italiano Il Popolo também comentou a questão do suicídio (ver Figura 14,
a seguir), assim como todos os outros periódicos que acompanharam a jornada de Pesaro
falaram da rara opção urbana de Person e de sua busca em interpretar a crise de identidade
que assolava a cidade industrial de São Paulo, nos moldes dos filmes europeus. O
jornalista, assim como eu, considera um ponto de virada fundamental para a narrativa,
como procuro demonstrar no final desta Introdução.
Il suicídio di una donna che aveva Amato anni prima è l’occasione per tornare
indietro com la memoria, e con ciò egli spiega a se stesso che moralmente non può
accettare il meccanismo del benessere che lo trascina. Decide di fuggire, ma,
accorgendosi che la sua fuga non può risolvere niente, torna indietro. In questo caso
la memoria serve a chiarificare il presente, a verificare la morale di uma vita. Il film
brasiliano, tagliato debitamente di alcune sequenze inutili, è un bel film e soprattutto
è utile ad indicarci come la nuova estética possa essere applicata anche a temi
morali, quali la construzione di uma determinata società (Angelis, 7 jun 1965, s/p).
4
6
Figura 14. Jornal italiano fala do desempenho de o Paulo Sociedade Anônima na Mostra de Pesaro
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Até mesmo isso serviu como pretexto para a divulgação do filme. É o que no
jargão jornalístico se chama de “gancho” ou pretexto para se dar uma notícia. Quem
lesse rapidamente, no jornal Diário da Noite, o título da coluna Movietone, poderia até
pensar que o próprio ator ameaçava se matar: “Walmor Chagas com uma só porta
aberta: a do suicídio”, junto a uma foto do personagem Carlos, de perfil, usando terno
(ver Figura 50, no Capítulo 2). Em seguida, o texto esclarecia a pequena “confusão”:
Há momentos na vida de um homem em que tudo parece perdido. A família, o
emprego, os amigos. A única porta que parece estar aberta é a do suicídio. Carlos
(Walmor Chagas) sente-se muito tentado a dar esse passo desastroso, quando tudo se
turva a seu redor. Isso acontece no filme “São Paulo Sociedade Anônima”, da
“Socine Produções”, com direção e história de Luiz Sérgio Person (Walmor Chagas
com uma só porta aberta: a do suicídio, Diário da Noite, São Paulo, s/d, s/p).
4
7
O próprio Person, na entrevista já citada para o Centro Dom Vital, examina a
questão a partir de seu principal “objetivo”, ou seja, o público:
Do aspecto desagradável desse final é que eu esperava a atitude crítica e positiva do
espectador em relação ao filme. As seqüências finais, para mim e pelo que eu pude
constatar junto aos espectadores, principalmente nas sessões de público no cine
Olido, em tudo contradizem o espectador e o arremessam com impacto diante
daquela realidade cotidiana que lhe é devolvida já não mais sob o verniz e a
complacência aparente, mas debaixo de um crivo de reflexão e sufocação de que eu
tentei sugerir a ele a necessidade de sair, de escapar, redenção essa que
evidentemente não acontece ao protagonista, já que ele, basicamente, não tem as
condições mínimas requeridas para a sua libertação.
Estamos falando de Carlos, mas poderíamos estar falando de “Fréderic
Moreau, o herói de A Educação Sentimental, que se move de espaço em espaço em
Paris e nos seus subúrbios, reunindo, enquanto o faz, experiências de qualidade bem
distintas”, como nota David Harvey: “O que é especial é a maneira como ele entra e
sai dos espaços diferenciados da cidade com a mesma facilidade com que o dinheiro
e a mercadoria mudam de mãos [...] A ação se reduz a uma série de caminhos que
podiam ter sido tomados, mas não foram” (Harvey, 1994, p. 239).
É como se o personagem de Carlos vivesse esta angústia até o limite. Ele busca
uma carreira, mas não se entrega. Tenta se relacionar com mulheres de diferentes
personalidades, mas não se encontra. Hilda, a única que lhe balança o sentimento e
desafia seu intelecto e sua forma de pensar, acaba se matando. É como se a idéia do
futuro o atormentasse, enquanto o passado o prendesse no mesmo lugar. Ou como
escreveu Flaubert: “Eis porque o presente foge de nossas mãos” (Harvey, 1994, p. 239).
Harvey acrescenta que, para falar dessas probabilidades, Flaubert teve de
descobrir uma nova linguagem. Como já antecipei, creio que esta mesma busca por
uma nova linguagem, sem desrespeitar os cânones tradicionais da comunicação, está
na essência de São Paulo Sociedade Anônima.
48
Anonimato na sociedade: um pequeno resumo
João Luiz Lafetá, em seu texto “O mundo à revelia”, posfácio do romance S.
Bernardo, de Graciliano Ramos, expõe a distinção teórica entre “sumário narrativo”
e “cena”. Ele escreve:
O sumário narrativo, explica-nos Norman Friedman (The theory of the Novel. NY:
The Free Press, 1967), é a exposição generalizada de uma série de eventos,
abrangendo um certo período de tempo e uma variedade de locais; a cena, por sua
vez, implica a apresentação de detalhes concretos e específicos, dentro de uma
estrutura bem determinada de tempo e lugar (Lafetá, 1978, p. 189).
Para ser analisado, São Paulo Sociedade Anônima coloca-se como um desafio
entre cenas avulsas intercaladas na construção de um sumário narrativo. A história
filmada respeita a história escrita e não propõe seqüências que se liguem diretamente.
Poucas ações ocorrem sucessivamente em tempo e lugar definidos. Ao contrário de
um romance ou de um filme, que narram uma história com começo, meio e fim, o
roteirista-diretor olha o universo dos personagens de fora para dentro, como se
fossem lembranças, os tais flashbacks, ou até mesmo um sonho ou sucessão de
sonhos. Não há um narrador em voz over que descreva os acontecimentos, apesar de,
no inicio, ouvirmos os pensamentos de Carlos. Na cena do jantar no sitio — aliás,
das poucas em que acompanhamos acontecimentos em ordem cronológica: duas
famílias no carro, crianças brincando no pátio, conserto do gerador e, finalmente,
jantar —, podemos “ouvir” o que Carlos e Luciana acham um do outro. Ou na cena
da lambreta, onde Carlos está com Luciana, mas a conversa em off se desenvolve
entre ele e Ana.
O filme percorre cinco anos na vida de um funcionário de escritório
comercial que vira técnico (inspetor de qualidade) de uma grande indústria
automobilística e, depois, executivo de uma fábrica de autopeças em ascensão. Está
na faixa etária dos 23 a 28 anos. Bem-sucedido, vive em constante crise pessoal,
individual, e se revolta, de forma íntima, sem revolução, contra seu fornecedor e
futuro patrão, Arturo, afeito a práticas escusas — inclusive suborno a funcionários do
Ministério do Trabalho, obtenção de facilidades inexplicáveis junto ao Banco do
Brasil e compra da vista grossa do próprio Carlos para aprovar autopeças imperfeitas
49
para a Volkswagen do Brasil. São todos personagens anônimos, sem destaque, sem
cartaz, sem manchetes, perdidos e achados no meio da multidão de uma cidade que
explode e que forma ou destrói famílias.
Segundo Ismail Xavier, o cinema, desde o período clássico, vale-se do desejo
de controlar o sentimento do espectador: dramatizar, dar “transparência” e fazer
mergulhar. Para se chegar ao ponto, é preciso partir de uma pergunta inicial, de um
paradigma inicial (cf. Xavier, 1977).
Durante os exatos 35 segundos iniciais, atrás de uma vidraça, o espectador de
São Paulo Sociedade Anônima vê um casal que briga. Intui-se que estão num
apartamento bem equipado, de classe média ainda em ascensão.
11
Os dois discutem,
mas não ouvimos as palavras, apenas vozes agressivas. Como se fosse uma fusão, a
câmera capta o reflexo de prédios do centro nas superfícies de vidro. Num clímax
sem áudio nem música, Carlos empurra Luciana para o chão. A câmera inicia uma
lenta tomada panorâmica para a direita — como se abrisse uma cortina —, enquanto
uma música grandiloqüente “atrai” o título e os créditos iniciais.
Ou como escreveu Person, que chegou a colocar a palavra “Apresentação” no
topo da primeira página do roteiro:
1) APARTAMENTO DE CARLOS — EXT. — INT. DIA
1-2
Do terraço, através do janelão de vidro, sem nenhum som, vemos no interior do
living do apartamento, ao fundo, Carlos e Luciana que discutem junto da mesa preparada
para o café da manhã. Depois de um momento, Luciana segura o braço de Carlos com
força, tentando impedi-lo de fazer derramar o bule de café sobre a mesa. Num gesto rápido,
Carlos a empurra com violência e Luciana cai no chão, lágrimas nos olhos, desesperada. Ao
fundo, Carlos desaparece. [A frase “A imagem de Luciana se fixa nessa posição —
fotograma fixo” está riscada à mão.] Sobre esse plano entra o primeiro título de
apresentação e a música.
11
Numa das cenas cortadas do roteiro, a de número 98 num total de 160, Carlos se surpreende ao
encontrar uma televisão na sala (objeto de desejo e símbolo de consumo da época) que sua esposa,
Luciana, havia encomendado sem avisá-lo. Na mesma seqüência, ela tenta convencê-lo a comprar um
apartamento na praia. Isso seria mote para mais uma briga e caracterizaria as diferenças de concepção
de vida e de ascensão.
50
Na montagem final, percebemos que o “nenhum som” proposto por Person
foi trocado por vozes distantes, quase inaudíveis — o que, segundo Renato
Magalhães Gouvea, levava muitos espectadores a reclamaram do baixo volume de
áudio no início da projeção. Na seqüência, São Paulo é revelada em movimento com
imagens aéreas misturadas com pontos de vista por baixo dos “arranha-céus”. O
desembarque de trens e a entrada de ônibus revelam os habitantes da cidade e as
primeiras favelas. É quando voltamos para o drama do casal. Carlos, a pé, na rua,
“dialoga” em off com Eva Wilma, deitada, no chão da sala.
— Não vá embora, Carlos. Não vá.
— Seria somente prolongar, Luciana.
— Não. Por que ir embora, Carlos? Por que?
— É inútil. É como se fosse um câncer. Nada
adiantaria.
Figura 15. Nota em jornal mostra filmagem da primeira cena de São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
51
A partir daí, o personagem principal prepara o espectador, ao dizer que “já faz
cinco anos”. Esse é o tempo da narrativa, da história que será contada, com várias
idas e vindas. Uma de suas características mais fortes é o tom documental. Tudo isso
vem acompanhado com dados da realidade vivida pela Grande São Paulo após os
anos JK, inclusive com notícias narradas em off pelo personagem:
Bastava abrir o jornal e escolher: precisa-se de jovens competentes para trabalhar
na indústria automobilística [...] Duas mil fábricas de autopeças cresceram em São Paulo da
noite para o dia [...] O programa de nacionalização dos veículos precisava ser acelerado.
Figura 16. Texto de Person para narração em off de Carlos em adaptação para a dublagem, montagem
e finalização de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
É uma cena que procura fazer o sumário narrativo, como se fosse um alerta
para um espectador desavisado — embora pudesse ser um depoimento de Carlos
para um personagem extra e invisível.
52
E a história de São Paulo Sociedade Anônima pode ser contada a partir dos
vários tipos de crise de Carlos, principalmente pelo seu bordão “Recomeçar, mil vezes
recomeçar, recomeçar...”, que se tornou seu discurso, tão repetido por todos que
assistem ao filme. É o que acontece nas palavras de Carlos, nas cenas que se seguem à
de seu passeio com Ana por um porto de areia em São Vicente, no litoral paulista.
70) — FÁBRICA DE AUTOPEÇAS — INT - DIA
“Recomeçar...trabalhar... Mil vezes...
12
trabalhar...esquecer Ana...apagar
Luciana...não lembrar-se que do trabalho...das 50 obrigações diárias...”
71) — CENTRO DA CIDADE — EXT- DIA
“Lembrar-se somente das mil chateações diárias do trabalho... lembrar-se que uma
engrenagem e mais outra, e mais outra, e mais outra...
13
devem ser entregues dentro do
prazo estabelecido... Ler as condições de compra... aceitar as condições de compra...
14
Em dado momento, Carlos quer abandonar tudo; em outro, propõe-se a
constituir vida normal. E cada uma das situações e aflições surge a partir de seu
relacionamento com as três mulheres, Ana, Hilda e Luciana, e/ou com seu chefe
Arturo Carracci. Ou, como escreve Ismail Xavier em Sinopse, do Cinusp:
O mal-estar de Carlos permeia todas as ações e espaços, mas ganha sua melhor
expressão na relação do protagonista com o universo do trabalho e com a
configuração geral de uma experiência que é coletiva e se expressa nas cenas
exteriores, mais do que na esfera dos dramas privados (Xavier, 2006, p. 20).
Como já apontei, durante o filme, Carlos vai a diferentes lugares, numa
infinidade de cenas, computadas pela produção como 88 locações. A saber (fora de
ordem cronológica): praia; sauna; fábrica; pátio da fábrica; escritório; estrada 1 (de
carro com Arturo); estrada 2 (de lambreta); estrada 3 (de carro com família de Arturo
e Luciana e filho); estrada 4 (à noite, de carro); estrada 5 (de caminhão); sítio; escola
de inglês; festa; restaurante na Galeria Metrópole; praça da República; viaduto do
Chá; praça do Patriarca; centro de São Paulo a pé e de carro; periferia com Arturo;
12
Person riscou com caneta, no roteiro: “... tentar ser um homem... não beber... trabalhar para Arturo...”
13
Person riscou com caneta, no roteiro: “...um bujão e um radiador devem ser entregues...”
14
Person riscou com caneta, no roteiro: “...devolver a confirmação do pedido...pagamento 30 dias fora
o mês com 3%...60 dias fora o mês líquido.”
53
restaurante com Ana; trem; asilo; apartamento de Hilda em São Paulo; apartamento
do amante de Hilda na praia; hotel; bar; restaurante alemão; terreno em São
Bernardo; casa dos pais de Luciana; rua na frente da casa; apartamento de Carlos e
Luciana; praça da Sé; represa de Guarapiranga; praça Roosevelt etc.
Para o gran finale, Person leva seu personagem para a estrada, onde ele se
despede. Mas estaciona, dorme e deixa o carro no acostamento, com vista para a
serra do Mar, e resolve voltar de carona num caminhão jamanta.
Figura 17. Manuscrito de Person para as últimas cenas de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
54
O roteiro original foi modificado e as cenas foram escritas à mão por Person
(ver Figura 17, na página anterior). As palavras indicam que o diretor queria cenas de
helicóptero, para capturar a chegada de Carlos. Mas, segundo depoimento de Renato
Magalhães Gouvea ao autor, não havia muitos helicópteros em São Paulo na época e
o procedimento ficaria caro para o orçamento.
É importante que o leitor desta dissertação saiba que algumas regras padrão
do cinema clássico — como a do ator não olhar ou se dirigir para a câmera — foram
contrariadas por Person em alguns poucos momentos do filme. Logo no inicio, por
exemplo, após a briga com Luciana no apartamento do casal, Carlos sai para a rua e
caminha pelo centro da cidade. Em dois instantes, ele encara a câmera e explica o
que está acontecendo ao espectador. É como se fosse um prefácio, uma introdução.
Ali, o personagem se coloca como protagonista e revela que vai contar uma história.
Já no final do filme, uma multidão caminha na direção da câmera (e do público,
portanto), como se desviasse do próprio protagonista. Está ali um novo tipo de
relacionamento obra-espectador.
Os atores não mais pretendem ignorar a presença do equipamento de filmagem e sua
ação deixou de ser resultado de um planejamento próprio à “mise-en-scène”
tradicional [...] Com isso e outras estratégias de comunicação, o cinema moderno
distancia-se do cinema clássico e introduz na sua imagem e no seu som, tal como a
vanguarda, uma série de índices que chamam a atenção do espectador para o filme
enquanto objeto, procurando criar a consciência de que se trata de uma narração,
cujo trabalho começa a se confessar para a platéia (Xavier, 1977, p. 118).
É o que Ismail Xavier, entre outros, chama de “novidade do cinema
moderno”: revelar os códigos de linguagem antes escondidos na narrativa clássica. É
como se a câmera não mais ficasse de fora, como se participasse das tramas que
formam a estrutura de um filme.
55
Apresentação, desenvolvimento, desenlace: os pontos de virada
Dentro do conceito de se analisar o filme a partir de sua apresentação,
desenvolvimento e desenlace, como defende Ismail Xavier, entre outros estudiosos,
creio que São Paulo Sociedade Anônima pode ser dividido em três blocos:
A “apresentação” ocorre em duas etapas.
a) 0 a 10 minutos: a apresentação dos personagens começa com a crise do
casamento de Carlos e Luciana e o retorno em cinco anos de história. Com isso,
introduz os flashbacks. Este bloco termina quando Carlos faz um discurso sobre
trabalho e, aos 10 minutos do filme, conhece Luciana.
b) 10 a 19:57 minutos: o suicídio de Hilda aparece como flashback dentro de
um flashback (seu apartamento e no carnaval). Carlos tem um surto, com crise de
consciência e desespero profissional. Começamos a descobrir a pré-história de
Carlos, especialmente seu contato com Arturo Carracci que, no entanto, neste
momento, só aparecerá com narração em off, sem diálogos. Arturo, por sinal, só
aparece de fato na segunda metade do filme.
O “desenvolvimento” acontece entre 19:57 minutos e 54:40 minutos (cena 90
de um roteiro que tem, mais ou menos, 160 cenas; vale lembrar que algumas foram
cortadas). É na seqüência de Ano Novo, depois da Corrida de São Silvestre, quando
Carlos vai para a frente da casa de Luciana e promete se “regenerar”, transformar-se
num “novo homem”. A seqüência — em que Walmor Chagas atua sozinho — dura
exatamente 3 minutos e 16 segundos, com cortes. E isso acontece 3 minutos e 30
segundos depois que surge mais um flashback da morte de Hilda, aos 51:15 minutos,
como se a crise de Carlos “por uma vida normal” tivesse explodido por causa disso.
O “desenlace” começa com novo ponto de virada, com 1 hora 31 minutos e 50
segundos de filme, quando se introduz mais um flashback, com Hilda morta na cama,
seguido por uma conversa de Carlos com o delegado sobre os motivos do suicídio.
O tempo total do filme é de cerca de 1 hora e 47 minutos. Podemos
considerá-lo como um “filme de montagem”, já que seu roteiro foi quase todo
respeitado e as cenas em seqüências estavam desde o início previstas.
5
6
Possibilidades de análises sobre São Paulo Sociedade Anônima
Durante estes anos de mestrado, percebi que São Paulo Sociedade Anônima
ainda pode ser analisado sob vários pontos de vista.
a) A primeira possibilidade chegou a ser objeto de estudo e de trabalho nas
primeiras aulas. Minha idéia era a de ampliar o foco e pesquisar a “Representação da
riqueza” a partir de São Paulo Sociedade Anônima.
b) Outra proposta interessante seria a de traçar um paralelo com outros filmes
paulistanos, como fez, por exemplo, Ismail Xavier na revista Sinopse (cf. Xavier,
2006, p. 18-25), em um pequeno ensaio em que se unem as angústias do personagem
Carlos com as de Ivan em O invasor, de Beto Brant.
c) Como foi a direção de atores por Luiz Sérgio Person? Como é interpretado,
especialmente, o personagem Carlos, por Walmor Chagas ? Ele está praticamente em
todas as cenas (menos nas documentais). É um tour de force que merece ser
examinado sob o olhar da crítica. É impressionante o uso de seu “físico” como forma
de atuação. São diferentes maneiras de expressar o que o sufoca. Surge de terno na
maioria das vezes, mas também de calção de banho na praia, de roupão e toalha na
sauna, de roupa esportiva. É uma “deambulação” sem fim. Um olhar sobre este
gestual pode ser um desafio.
d) O comportamento feminino: a presença conservadora de Luciana, que, como
escreveram vários comentaristas, quer levar seu marido para a mediocridade; as atitudes
de Ana e Hilda, que já fazem parte de uma certa liberação sexual dos anos 1960.
e) O viés psicanalítico, para entender as angústias de cada um dos
personagens, especialmente Carlos e Hilda.
f) As transformações econômicas e sociais da capital de São Paulo (e de suas
cidades circunvizinhas), a partir dos elementos que o filme sugere e mostra.
g) O relacionamento com o Cinema Novo, que começou próximo e se
distanciou. São Paulo Sociedade Anônima é apontado como filme deste movimento
cinematográfico até mesmo por autores “canônicos” como Georges Sadoul, na sua
ambiciosa obra histórica sobre o cinema mundial (cf. Sadoul, 1977). Algumas
críticas também o tratam da mesma maneira (ver Anexo 4). Não obstante, na célebre
entrevista a O Pasquim, o próprio Person nega ter sido do grupo de cineastas
encabeçado por Glauber Rocha — que chega a citar a personagem Luciana, de Eva
5
7
Wilma, em seu manifesto A estética da fome, mas que depois ignora o cineasta
paulista em todos os seus escritos.
h) Hábitos e costumes dos anos 1960, inclusive sob o ponto de vista do
figurino. Caso raro no cinema nacional, todas as roupas usadas em São Paulo
Sociedade Anônima foram desenhadas e confeccionadas por uma grife de alta costura
de São Paulo. O fato chegou a chamar a atenção da imprensa.
Figura 18. Coluna feminina destaca figurino de São Paulo Sociedade Anônima, criado pela estilista
Regina Tomaso (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
O Diário Popular do dia 3 de julho de 1964 (ver Figura 18) publicou uma nota,
quando a filmagem ainda não havia acabado, na coluna intitulada Quem Comanda é
Eva, assinada pela jornalista Paula Léia. Com o título “Moda e Cinema”, dizia:
E falando de cinema, aqui está mais uma notícia relacionada com ele e a moda. Pela
primeira vez na história do cinema brasileiro, um nome da alta costura prepara um
guarda-roupa inteiro para ser usado por três estrelas em um filme. O nome da alta
costura é Tomaso, o filme “São Paulo S/A” e as estrelas são Eva Wilma, Ana
Esmeralda e Darlene Glória, três tipos diferentes, tanto física, como mentalmente.
Com seu espírito criador, Regina Tomaso apreendeu cada característica das
personagens vividas pelas três intérpretes desse filme, criando trajes especialmente
58
adequados para elas. Um dos papéis é o de uma jovem casadoira da classe média, o
outro o de uma intelectual e o terceiro, o de uma cavadoura de ouro, decidida a fazer
carreira sem olhar os meios (Léia, 1964, s/p).
i) Finalmente, a própria fotografia, que se tornou referência para outros cineastas
e filmes. O trabalho de Ricardo Aronovich, tanto como diretor de fotografia, como de
operador de câmera, superou as dificuldades técnicas e o tempo exíguo. Numa época em
que não havia efeitos especiais disponíveis nem recursos de computador, Aronovich
explorou a exposição controlada de luz e revelação diferenciada no laboratório, como
veremos mais adiante, em entrevista dada pelo fotógrafo.
Figura 19. Nota de jornal destaca o trabalho de fotografia na fábrica da Volkswagen (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
59
Sobre nomes, grafias e estilo
Como o leitor já deve ter notado, busquei montar o material visual junto com
o texto. Meu intuito é fazer com que a leitura se torne uma espécie de “filme”, um
tipo de making off do filme pesquisado, onde as ilustrações de imprensa ou de
material de produção demonstrem diretamente as provas da minha hipótese, sem
precisar recorrer aos Anexos. Grande parte do material sobre o qual baseei a pesquisa
veio de jornais dos anos 60, editados antes da reforma ortográfica de dezembro de
1971 e implantada em 20 de janeiro de 1972 — e, também, da atual, que está em fase
de consolidação. Só mantive a ortografia original na transcrição de trechos do roteiro
de Person e de pequenos textos, como o de Ismail Xavier, de 1966, no Capítulo 1.
Da mesma maneira, muitas pessoas tratam o diretor de forma diferente:
“Luis” e “Luiz”, como é correto, ou não acentuam “Sérgio”. Em alguns lugares,
também encontrei “Pearson”.
Apesar do sobrenome do produtor Renato Magalhães Gouvea surgir acentuado
nos créditos iniciais (“Gouvêa”), o circunflexo não faz parte do seu nome verdadeiro.
Curiosamente, no certificado de censura de 13 de abril de 1966 (reproduzido na capa
deste trabalho), seu nome foi grafado como “Renato Guimarães Gouvêa” e a Sòcine
(grafado sem acento) é tratada como “S/A”, quando, de fato, era uma sociedade
limitada.
Já o nome da produtora Sòcine é grafado desta maneira nos créditos, mas depois
passa a ser “Sócine” ou simplesmente “Socine”. Na maioria dos documentos que
pesquisei, no arquivo de Renato Magalhães Gouvea, está com crase, grafia que adotei.
Entre os jornalistas, alerto que Ignácio de Loyola Brandão, na época da
Última Hora, assinava “Ignacio”, sem acento, e apenas “de Loyola”.
Em diferentes lugares, o nome do próprio filme é tratado de diferentes
formas: “São Paulo S.A.”, “São Paulo S/A”, “São Paulo, Sociedade Anônima” etc.
Neste caso, durante as transcrições, procurei respeitar a grafia escolhida pelos
jornalistas. Mas eu mesmo o chamo de São Paulo Sociedade Anônima.
60
Prêmios recebidos por São Paulo Sociedade Anônima
Prêmio de Público na 1ª Mostra Internacional do Novo Cinema em
Pesaro, na Itália (1965)
Prêmio Cabeza de Palenque no VIII Festival Internacional do Filme de
Acapulco, no México (1965)
Menção Honrosa (Luiz Sérgio Person) na I Semana do Cinema Brasileiro,
em Brasília (1965)
Prêmio Governador do Estado por Argumento e Roteiro (Luiz Sérgio
Person), Fotografia (Ricardo Aronovich) e Montagem (Glauco Mirko
Laurelli), São Paulo (1965)
Prêmio Cidade de São Paulo por Direção (Luiz Sérgio Person), Atriz (Eva
Wilma), Ator secundário (Otelo Zeloni), Fotografia (Ricardo Aronovich)
e Edição (Glauco Mirko Laurelli), 1965
Prêmios Saci do jornal O Estado de S. Paulo para Direção, Montagem,
Atriz Secundária (Darlene Glória) e Filme (1966)
61
Capítulo 1
PRODUÇÃO & MARKETING S.A.
Na ocasião de se organizar a produtora, todos os
detalhes foram estudados: elaboração do
orçamento, sistema de divulgação e outros
problemas, inclusive o planejamento para as
despesas em viagens e estadias. O orçamento
planejado não ultrapassou do previsto. E para
provar que a Sòcine realmente é a responsável
pelo sucesso do filme de Person, a promoção
continuará na capital, bairros, cidades do interior
e outras capitais. Com isso fica provado que
quando a produtora encara o filme como um
grande negócio, o que realmente é, não há razão
para temer o insucesso dos filmes nacionais,
pois, com produções como esta, é a única
maneira de manter o cinema nacional em
constante novidade (“São Paulo S. A.”:
produtora explica a razão do sucesso, Diário da
Noite, 21 out 1965, p. 10).
1.1. Produção S.A.: 600 milhões de cruzeiros, 88 locações e 11 técnicos
O filme São Paulo Sociedade Anônima é um dos mais interessantes casos de
PRODUÇÃO e MARKETING do cinema brasileiro. Uso as palavras em caixa-alta
para ressaltar que o objetivo desta pesquisa é focar num aspecto pouco explorado
sobre o cinema brasileiro. O interessante é que foi o longa-metragem de estréia, tanto
do diretor, Luiz Sérgio Person, como do produtor, Renato Magalhães Gouvea.
Foi um encontro entre duas fortes personalidades — assunto que vou tratar a
partir do subitem 1.5., onde passo a analisar o processo inicial de confecção do filme
e os temas mais áridos ligados com acionistas, orçamentos e resultados financeiros.
Nesse momento, prefiro apresentar as promoções e repercussões obtidas pela dupla.
62
Luiz Sérgio Person tinha apenas 28 anos, mas um currículo respeitável. Além
disso, uma obsessão de realizador, como comprovam os depoimentos de amigos em
diferentes fontes: gravações para a série organizada pelo Museu da Imagem e do
Som (MIS) em parceria com a Embrafilme, o documentário Person, de Marina
Person, sua filha, e reportagens de jornais e revistas.
Na mesma faixa etária, Renato Magalhães Gouvea era sócio e diretor
administrativo e financeiro da Construtora Magalhães Gouvea, que tinha em
sociedade com um irmão, engenheiro de profissão. Naquele momento, ambos
finalizavam as obras do Edifício Itália (o prédio, ainda inconcluso, aparece em
destaque no final da primeira cena entre Carlos e Luciana em São Paulo Sociedade
Anônima, na praça da República, centro de São Paulo, e depois foi usado para um
dos coquetéis de lançamento do filme, organizado pela Sociedade dos Amigos da
Cinemateca (SAC), como vou mostrar a seguir). Além disso, Renato fazia
investimentos em obras de arte e era amigo de artistas plásticos, marchands e
diretores de museus.
O resultado da parceria foi um profissionalismo e um rigor que, com raras
exceções, não faziam parte do vocabulário cinematográfico do Brasil da época.
Segundo nota do jornal O Estado de S.Paulo, a filmagem foi iniciada no dia
1º de maio de 1964. O cronograma de dois meses foi religiosamente cumprido. A
partir de julho, iniciou-se a primeira fase de montagem, dublagem, revisão e
finalização, com a idéia de lançar o filme já no segundo semestre. Mas os planos de
lançamento passaram para o ano seguinte — o que comprova a decisão de fazer tudo
de forma profissional, porque houve mais tempo para se trabalhar na montagem, na
sonorização, na dublagem e na finalização de efeitos. Glauco Mirko Laurelli diz (ver
Anexo 2) que teve o tempo necessário para realizá-lo:
Nessa época, eu montava muitos filmes. Então, fazia a primeira montagem, a
dublagem, e me afastava [...] Depois de um mês, um mês e meio, eu voltava e mexia
de novo no filme. Eu precisava ter esse tempo, porque quando você passa meses
sobre o mesmo material, vendo as mesmas imagens, num certo momento você perde
um pouco a noção do todo (Depoimento de Glauco Mirko Laurelli, concedido ao
autor em 19 mar 2008).
63
Em abril de 1965, foram feitas concorridas sessões de São Paulo Sociedade
Anônima em São Paulo e no Rio de Janeiro, para críticos e cineastas — o que agitou
e criou grande expectativa no mercado cinematográfico.
Da mesma maneira, a estratégia de apresentação do filme privilegiou um
novo festival, a Primeira Mostra do Novo Cinema, em Pesaro, na Itália, para que a
aposta de uma repercussão internacional chegasse aqui em primeira mão. A Mostra,
entre final de maio e inicio de junho de 1965, só aceitava filmes (longas) de estréia
de jovens diretores. Foi quando aconteceu a polêmica sobre de qual Festival São
Paulo Sociedade Anônima participaria — e até isso virou assunto de jornal.
Naquela época, quem determinava os participantes dos filmes brasileiros nos
festivais internacionais era a Comissão de Seleção de Filmes do Ministério das
Relações Exteriores. O Itamarati também se responsabilizava pelo envio das cópias.
Eram inúmeras as reclamações que se faziam, por jornalistas, produtores e cineastas,
quanto aos critérios e a burocracia que atrasava remessas e retiradas dos filmes.
Segundo a coluna de Marcello Torres no jornal Tribuna de Imprensa do dia 3
de maio de 1965, o Itamarati preferia enviá-lo a Berlim. Mas Person considerava a
mostra italiana mais interessante. Dessa maneira, Vereda da Salvação (1964), de
Anselmo Duarte, ficou como a primeira opção para a Alemanha e São Paulo
Sociedade Anônima permaneceu na “reserva” — e acabou passando na mostra não-
competitiva, por já ter sido premiado.
A coluna Cine-Ronda, da Última Hora carioca, assinada por Luiz Alípio de
Barros, de 7 de maio de 1965, confirmou que foi uma decisão pessoal de Person não
se arriscar no disputado Festival de Berlim, entre 25 de junho e 7 de julho, em que
poderia se misturar com pesos-pesados da cinematografia: “Acontece que Person, ao
que se fala, prefere levar seu filme ao Festival de Pesaro, Itália, uma nova mostra
cinematográfica destinada mais a reunir trabalhos de realizadores novos”.
A imprensa vibrou com a iniciativa. Ignacio de Loyola, por exemplo, exclamou:
A Sòcine fez com “São Paulo S/A.” o que nunca tinha sido feito no passado:
concorrer com a fita, principalmente, num festival do exterior, para testá-la. Não
poderia ter sido melhor a iniciativa. Dos 84 filmes inscritos, a fita de Person
conseguiu arrebatar o premio dado pelo publico. Ao ser exibido aos brasileiros, já
havia sido consagrado no exterior (Loyola, Última Hora, 1º out 1965, s/p, coluna
Cine-Ronda).
64
1.2. A ida para Pesaro
Conforme palavras de Renato Magalhães Gouvea, por questões burocráticas
do Itamarati, a cópia de São Paulo Sociedade Anônima chegou atrasada na Itália e as
sessões dos filmes competidores já tinham começado. O primeiro passo do produtor
e do diretor foi o de convencer o presidente da Mostra, Pier Paolo Pasolini, a assistir
ao filme. Havia uma pré-seleção para que, junto com colegas, este decidisse se tinha
características de “Nuovo Cinema”. A sessão prévia aconteceu e o diretor italiano
deu o seu OK.
Figura 20. Anotações e desenhos de Person com dados para prestar contas de gastos na Itália, em
junho de 1965 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
65
Vale ressaltar que a premiação na Mostra do Novo Cinema, abria as portas
para o mercado internacional. E que os negócios precisavam ser feitos naquele
momento. No arquivo de Renato Magalhães Gouvea, existe uma carta do cineasta
Mario Pirri, argentino que trabalhou no Centro Experimental de Cinema de Roma e,
posteriormente, ajudou a montar o projeto cinematográfico de Cuba. Pirri estava
organizando uma mostra com 500 filmes para o Centro Internazionale Artistico
Cinematografico, e o filme de Person passaria no dia 22 de junho de 1965. Na
correspondência, havia também um convite impresso para a exibição de São Paulo
Sociedade Anônima, que acabou não acontecendo (ver Figura 21).
Figura 21. Convite do cineasta Mario Pirri para a exibição de São Paulo Sociedade Anônima numa
grande mostra de jovens diretores em Roma (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Mas a carta, de fato, era um pedido de desculpa e um protesto contra o adido
cultural do Brasil na Itália, porque a cópia de São Paulo Sociedade Anônima teria
sido enviada para Berlim, impedindo assim sua projeção em Roma. Pirri reforça que
seria uma ótima oportunidade para abrir as portas do filme para o mercado, já que o
evento reuniria importantes nomes:
C’è anche il disgravio delle spese dell’organizzazione, senza contare che presso il
C.I.A.C. abbiamo fatto una figuraccia. Quella sera c’era tutta o quase, l’ANICA, e
precisamente: Lattuada, Nany Loy, Francesco Rosi, Chiarini, Forges-Davanzati,
Blasetti, Nino Manfredi, La Documento Film, tutti i critici ufficiali della Stampa
romana, i noleggiatori della De Laurentiis, quelli della Columbia-Ceiad, i
rappresentanti del Centro Sperimentale e i più importanti produttori privati, che
erano venuti per visionarei il film ed eventualmente comprarlo per i circuiti italiani.
6
6
Insomma, c’erano, oltre a quelli dell’Anica anche gli artisti cinematografici italiani e
stranieri e i registi. Fernando Birri, Bartolucci, Amadio, Ferrero eccetera eccetera.
No Festival de Berlim, São Paulo Sociedade Anônima acabou passando quase
despercebido, apesar das elogiosas críticas para a fotografia de Ricardo Aronovich.
1.3. A surpresa da votação em Pesaro: o voto do espectador
Depois de premiado na Prima Mostra — e não Festival, como se convencionou
chamar — Internazionale del Nuovo Cinema, alguns críticos bateram na mesma tecla:
a diferença de votação entre críticos de 15 países que preferiram Démanty noci (“Os
diamantes da noite”, de 1964), do tcheco Jan Nemec, e o público que optou por São
Paulo Sociedade Anônima. Seria um filme do “Novo Cinema”?
Foi o caso de Giancarlo del Re, do jornal Il Messagero, que fez restrições ao
filme de Person, e chega a chamá-lo de “fumettistico”, ou seja, “fotonovelesco”: “Si
tratta di un film convenzionale e di genere drammatico e, diciamolo, “fumettistico”, e
non si capisce come i “miccichei” abbiano potuto portarlo a Pesaro e gabellarlo como
espressione di nuovo cinema.”
Segundo os jornais, a votação foi apertada entre espectadores: 3,22 para São
Paulo Sociedade Anônima, 3,21 para L’amour à la mer, do francês Guy Gilles, e
3,11 para o americano Andy, de Richard Sarafian.
Se houve surpresa geral pela escolha dos espectadores, em votação direta,
alguns críticos não se surpreenderam com a qualidade de São Paulo Sociedade
Anônima. Jornais de toda Itália estavam lá (ver Capítulo 4). Os recortes que pesquisei
foram feitos pelo próprio Renato Magalhães Gouvea, em sua estada em Pesaro. Nesta
condição de pessoa diretamente interessada, mas não pesquisadora, em alguns casos
não preservou o nome do jornal, o dia da publicação ou a assinatura do jornalista. Mas
a variedade é grande e atinge nomes como Corriere della Sera, Il Messagero, L’Unitá,
Il Tempo, Il Popolo, Momento Sera, L’Avvenire D’Italia e Voce Adriatica.
O enviado especial do Corriere della Sera, que assinava apenas A.S., disse
que São Paulo Sociedade Anônima era “oscillante fra la ripetizione di esperienze
6
7
europee (alienazione, scusate e incapacita di inserirsi in un contesto industriale), e la
tentazione di strizzare un occhio al pubblico”.
Esta crítica foi traduzida para uma nota no jornal O Estado de S. Paulo, de 8
de junho de 1965:
O Corriere della Sera define “São Paulo S.A.” como “um filme oscilante entre a
repetição de experiências européias (alienação e incapacidade de introduzir-se em
um complexo industrial) e a tentação de piscar um olho para o público”. A crítica
não se embaraçou, prossegue o jornal, mas na platéia o cálculo de Person encontrou
crédito. Os prêmios foram entregues pelo ministro Corona.
As comparações com o cinema europeu e a necessidade de equiparação com
os filmes de Antonioni, pelo tema da burguesia e da angústia solitária — e que
Person sempre negou —, começaram já em Pesaro (ver Capítulo 4).
Em longo texto, num jornal não identificado (só temos o recorte; ver Figura
22, a seguir), Aldo Scagnetti escreveu, no dia 6 de junho de 1965, com o subtítulo
“Alienazione”, que São Paulo tinha uma atmosfera de Nova York no filme de
Person. Ao destacar os estudos italianos do diretor, descreve a ação do filme, para
depois repetir a comparação com um dos maiores cineastas italianos da época: “Il
film de Person getta um occhio ad Antonioni ed uno alla casseta, muovendosi fra
pagine solide ed altre effettistiche”; em seguida, declara que Person sabia narrar e
que encontrou um ambiente diferente do pessoal do Cinema Novo.
O jornal local Voce Adriatica, sem assinatura, destacou a surpresa da votação
e atacou o prêmio do júri popular por ser “um filmescope, che potrebbe entrare bene
in un circuito normale [...] Anche se non tutto male, certo non era fra i primi dei film
presentati in questi giorni”.
Na opinião de Ugo Casiraghi, para o jornal comunista L’Unitá, o problema
estava na falta de crítica social e que, no máximo, poderia ser considerado “un buon
prodotto di confezione media, commerciale, senza com ciò trascurare qualche utile
indicazione sociale”.
68
Figura 22. Crítica de Aldo Scagnetti, em jornal italiano não identificado, aponta influências em São
Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
No jornal L’Avvenire D’Italia, da Bolonha, o crítico G. B. Cavallaro revela o
aperto da votação e chega a comparar São Paulo Sociedade Anônima com Noite
vazia, apenas para falar de uma mesma matriz:
il problema della borghesia, del senso della sua vita , della frustrazione erótica e del
velleitarismo, nella attesa di uma rivoluzione che rimane solo allo stato di sogno e di
pigro álibi. In termini cinematografici, è il ricalco , più o mene fedele, di Fellini,
Antonioni e Godard, ma in contesti ingenuamente spettacolari e in culture arretrate.
69
O jornal Momento Sera, com assinatura de Antonio Troisio, fez um balanço
positivo da Mostra Internacional, que reuniu 25 filmes de ficção e 10 documentários,
todos em primeira direção. O jornalista fez questão de ressaltar que o filme de Person
— “un’opera degna e bem fatta” — só ganhou do seu concorrente francês L’amour à
la mer, de Guy Gilles, por um centésimo dos votos. Pelo texto, Troisio preferia o
filme francês, de um diretor com apenas 22 anos.
O jornal Il Tempo fez uma breve biografia “italiana” de Person, mas não faz
julgamento sobre a premiação nem sobre o filme em si.
O jornal Il Popolo, apesar das restrições, afirma que São Paulo Sociedade
Anônima é um belo filme e que sua estética abre portas para se tratar de assuntos como
moral e construção de uma nova sociedade. Destaca que é dedicado ao boom industrial
de São Paulo e que tem um olhar para a realidade sociologicamente existente. Diz que
é um belo filme, com propostas estéticas, apesar de alguns cenas inúteis.
Figura 23. Jornal italiano elogia São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
70
1.4. O planejamento e o trabalho em equipe
É possível dizer que o filme São Paulo Sociedade Anônima não teve
percalços entre suas pré e pós-produções. E é o que procuro demonstrar a partir de
dados obtidos nesta pesquisa. Por isso, começo pelas palavras do próprio diretor, em
entrevista para a Folha de S. Paulo do dia 19 de outubro de 1965, véspera da estréia
paulistana do filme, concedida ao repórter Orlando Fassoni, na qual destacava que
fez uma obra de equipe.
Foi um trabalho em plano dividido, com cada elemento participando de sua máxima
importância. Cabe selecionar a excelente participação de Renato Magalhães Gouvea,
produtor, e Nélson Penteado, produtor executivo, que deram a mim uma colaboração
decisiva, principalmente pela crença deles no interesse da película e sabendo que
precisava de liberdade de ação para realizar o que queria (Person diz que cinema
novo é superado por incentivadores, Folha de S. Paulo, 19 out 1965, s/p).
Tal fato já havia sido notado meses antes, no dia 15 de abril de 1965, pelo
colunista Ignacio de Loyola, no jornal Última Hora. Ainda antes de o filme partir
para a Mostra de Pesaro, na sua terceira crítica sobre São Paulo Sociedade Anônima
(ver Capítulo 4), Loyola assim escreveu:
Para encerrar quero falar do papel da Socine, do produtor Renato Magalhães Gouvea
e do produtor executivo Nélson Mattos Penteado. Confiaram em Person, acreditaram
num diretor de primeira fita e o deixaram com plena liberdade para realizar uma
obra de acordo com suas concepções, sem tentar, um só instante, interferir com
injunções comerciais. Colaboraram, portanto, para ‘São Paulo, Sociedade Anônima’
ser a boa fita que é. Cabe à Socine a cobertura de um caminho e é importante que ela
sobreviva e faça outros filmes (Loyola. Notícia 3 Sobre “São Paulo S/A”, Última
Hora, 15 abr 1965, s/p, coluna Cine-Ronda).
Na citada reportagem do jornal Diário da Noite do dia 21 de outubro de 1965,
(ver Figura 2 na Introdução) o texto tentava uma explicação para o sucesso de São
Paulo Sociedade Anônima. Nesta perspectiva, o jornal afirmava que fora feita uma
pesquisa de mercado por Renato Magalhães Gouvea, que teria constatado a
importância do papel da produtora — e que este papel não deveria cessar no
momento em que o filme terminasse.
71
O êxito da primeira produção é o efeito de uma longa pesquisa que abrangeu até os
resultados financeiros dos antigos filmes brasileiros. Notou Renato que os
resultados, por pior que fosse a película, não eram deficitários como se propalava. E,
aproveitando seus conhecimentos e experiências acumuladas, fundou sua própria
produtora (sem assinatura, Diário da Noite, 21 out 1965, s/p).
O que se chama de êxito, era de fato uma tentativa de quebrar o padrão
prevalecente na maior parte da produção do cinema brasileiro, que vivia do
improviso e da falta de planejamento empresarial — o que Gouvea tentou organizar.
Planejamento este que havia faltado até mesmo na Companhia Vera Cruz que, com
sua mentalidade estrangeira, especialmente européia, não pesquisou a realidade do
cinema nacional.
Durante todo o ano de 1965, mesmo antes do lançamento, o filme teve forte
reverberação na imprensa e na crítica nacional. A tática de distribuição de notícias
alcançava todos os cadernos, inclusive as colunas sociais, como as de Ibrahim Sued
no Rio de Janeiro e Tavares de Miranda em São Paulo, que publicou nota com foto
do produtor, dizendo que a
fita paulista vai dar o que falar [...] um drama da vida comum da Supercap [...] vai
ser levado no Olido, dia 29, com presença de astros e estrelas (se o paulistano céu
estiver nublado não faz mal que elas (estrelas) e eles (astros) não apareçam), em
benefício da Sociedade Pestalozzi (Miranda, SÃO PAULO S. A., Folha de S. Paulo,
23 set 1965, s/p).
Neste mesmo período, a convite da Fundação Cinemateca Brasileira, também
estavam em São Paulo intelectuais como o diretor da Cinemateca da Suíça, Freddy
Buache, o da Cinemateca uruguaia, W. Dassori, o da Cinemateca do Peru, Miguel
Reynel Santijana, e o crítico da revista Cahiers du Cinéma, Louis Marcorelles. E
todos acompanharam o lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, assim como
foram até a Bienal de São Paulo, que ocorria no mesmo período, sempre
impulsionados por Renato Magalhães Gouvea.
72
Figura 24. Jornais destacam a vinda de “estrelas” de Hollywood para a pré-estréia no cine Olido. Os
atores cumpriram vasta agenda social. (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
O resultado logo se refletiria na bilheteria. Os cinemas paulistanos em que
São Paulo Sociedade Anônima foi exibido tiveram grande público. Segundo a coluna
assinada por Ignacio de Loyola, um deles, o Olido, era considerado o maior e melhor
da época, mas de difícil penetração para os filmes brasileiros. Mesmo assim, o
cinema o manteve por mais de três semanas, um tempo acima do normal para a
produção nacional (inclusive nos padrões posteriores e mesmo atuais, deste começo
de século 21).
Mas tudo isso foi apenas na capital de São Paulo, onde a Sòcine comandou a
estratégia de divulgação e cercou o lançamento com cuidados mínimos e máximos:
sessão beneficente, pré-estréia com atores de Hollywood que vieram do Festival
Internacional de Cinema que acontecia no Rio de Janeiro, participação na
apresentação de celebridades da televisão, coquetéis e até um inédito balão inflável
no largo do Paissandu, no centro da cidade (ver Figura 25, a seguir).
73
Figura 25. Relatório de despesas com balão cativo para divulgação do lançamento de o Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Esta estratégia foi considerada inovadora pela imprensa. Ignácio de Loyola,
por exemplo, no dia 1º de outubro de 1965, escreveu que o primeiro contato do filme
com o público tinha sido bem favorável, especialmente pela noite beneficente
organizada por Sonia Ribeiro, presidente da Sociedade Pestalozzi.
Muita gente, banda de música, holofotes, televisão, devolvendo algumas das grandes
noites de gala do cinema em São Paulo. Para isso, é preciso dizer que surge no
Brasil uma figura com mentalidade de produtor interessado no filme que fez: Renato
Magalhães Gouvea. O homem é incansável e promove mesmo. Não está olhando
despesas e aceita todas as boas idéias. A de trazer os atores norte-americanos, por
exemplo, deu resultado. Troy Donahue, apesar de tudo, tem suas fãzocas. Esperamos
agora que o grande público goste do filme (Loyola, “São Paulo S/A”, Última Hora,
1º out 1965, s/p, coluna Cine-Ronda).
74
Segundo Loyola, o único contraste na chamada noite de gala foi a pequena
vaia recebida por Harry Stone, figura polêmica, conhecida dos cineastas por
comandar o lobby da Motion Picture Association of America do Brasil, responsável
pela penetração do cinema de Hollywood no País.
No final de 1967, na época da entrega do prêmio Saci — representado por
estatueta de Victor Brecheret — para os melhores de teatro e cinema de 1965 e 1966,
promovido pelo jornal O Estado de São Paulo, uma reportagem dizia que o resultado
satisfez o produtor: “Um dos ‘Sacis’ para cinema, referentes a 1965, caberá à Sòcine
Produções Cinematográficas, empresa que produziu São Paulo Sociedade Anônima,
considerado o melhor filme do ano” (Realiza-se amanhã a festa do Saci, O Estado de
S. Paulo, 3 dez 1967, p. 28).
Figura 26. O Estado de S. Paulo de 3 dez 1967 noticia premiação de São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
75
A reportagem do “Estadão”, não assinada, dizia que Gouvea havia
emprestado sua experiência no mundo dos negócios e trazia sua declaração de que
também havia produzido Esportes no Brasil, dirigido por Maurice Capovilla, mas
que só voltaria a fazer cinema quando pudesse dedicar todo seu tempo.
Numa curta entrevista, o produtor declarou qual foi seu método de trabalho
em São Paulo Sociedade Anônima:
Escolhi um sistema utilizado em todas as empresas bem organizadas: uma delegação
total de poderes a cada um dos integrantes da equipe. Esta foi uma das razões de não
ter havido grandes problemas, pois cada um desincumbiu-se de seu papel, não houve
qualquer interferência ou imposição. E o mesmo pode ser dito com relação ao
trabalho dos atores (Realiza-se amanhã a festa do Saci, O Estado de S. Paulo, 3 dez
1967, p. 28).
Sobre a rentabilidade do filme, Gouvea desconversou para o repórter: “O
resultado financeiro de um filme não é o mais importante [...] Poderia dizer que, no
caso específico, a volta do capital empregado não se fez com necessária rapidez. Mas
a película pagar-se-á, sem dúvida. Não há que se falar em prejuízo financeiro.” Para
finalizar, a reportagem dizia que o produtor estava plenamente satisfeito com o
trabalho da Columbia, “da qual só recebemos atitudes cordiais [...] No fim deste ano
cessam os direitos de distribuição da fita pela companhia. Poderemos, então,
negociá-la com qualquer empresa.”
Hoje, contrariando essa declaração, Renato Magalhães Gouvea considera que
o grande erro dele e de Person foi terem assinado a distribuição com a Columbia
Pictures, pois acreditaram na venda internacional.
A partir do lançamento paulistano, o filme não teve a mesma sorte, ficando
restrito a mais duas capitais, Rio de Janeiro e Porto Alegre — e já sem a mesma
criatividade de divulgação engendrada pela dupla. Da mesma maneira, não foi
exportado para os Estados Unidos, como era o objetivo de ambos. Nem para Espanha e
países de língua espanhola, já que contavam com o chamariz do nome de Ana
Esmeralda, que tinha uma carreira internacional com mais de 15 filmes.
1
1
Ana Esmeralda, natural da Espanha, é bailarina, coreógrafa e atriz. Nas comemorações do 4º
Centenário da cidade de São Paulo, veio representar seu país durante um Festival Internacional de
Cinema. Na ocasião, conheceu o produtor de cinema Mário Audrá, com quem se casou (ver Anexo 2).
7
6
Com isso, São Paulo Sociedade Anônima não fechou a conta. E por este
motivo (pagar os acionistas), segundo palavras do próprio produtor, a Sòcine só
realizou mais um filme, o citado curta-metragem de divulgação institucional do
Brasil, via Itamarati. Segundo o depoimento de Renato Magalhães Gouvea ao autor,
foi a maneira como o Ministério das Relações Exteriores desculpou-se pelo atraso no
envio da cópia do filme de Person para a Mostra do Novo Cinema, o que quase o
deixou fora da competição (ver entrevista completa de Renato Magalhães Gouvea no
Anexo 2). De acordo com documentos que encontrei no arquivo pessoal de Gouvea,
o filme foi exportado para dois países que faziam parte do universo soviético:
Bulgária e Tchecoslováquia (ver Figura 27).
Após desta experiência, o produtor resolveu abandonar o cinema — inclusive
pela morte de seu irmão e sócio, em acidente de avião, e o fechamento da
Construtora Magalhães Gouvea.
Depois de dois filmes apenas, retomou a vida profissional no universo das
artes plásticas (compra, venda e leilões de obras de arte), para a qual se dedica até a
presente data (2009). A Sòcine foi fechada e os direitos do filme foram passados para
a família de Luiz Sérgio Person.
Dono da Cinematográfica Estúdios Maristela, Marinho, como era conhecido, foi um dos sócios da
Sòcine em São Paulo Sociedade Anônima. No Brasil, ela também atuou no filme Quem matou Anabela
(1956). Em São Paulo, abriu a Escola de Flamenco-Ana Esmeralda e fundou a Associação de Cultura e
Arte Flamenca do Brasil, entidade reconhecida pelo Consulado Geral da Espanha.
77
Figura 27. Documento de exportação de São Paulo Sociedade Anônima para a Tchecoslováquia
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
1.5. Histórico da produção de São Paulo Sociedade Anônima
No final de 1963, Renato Magalhães Gouvea foi procurado por um amigo
comum de Person, Nélson Mattos Penteado, que trabalhava com cinema e acabaria
78
sendo produtor executivo de São Paulo Sociedade Anônima. Renato recebeu o projeto
(ver Anexo 1) e o roteiro, mas diz que não ficou entusiasmado: “Eu nunca tinha lido
um roteiro na vida. E eu li. Uma coisa que pouca gente sabe é que o título era
‘Agonia’. Li e no dia seguinte falei pro Nelson que tinha achado uma coisa muito sem
graça” (depoimento de Renato Magalhães Gouvea, concedido ao autor em 7 abr 2008).
Nelson não desistiu e combinou um encontro entre os dois. Numa conversa
que durou das sete da noite até sete da manhã, na casa de Gouvea, Person o
convenceu a produzir o filme. Apesar de, segundo o produtor, ser “[...] uma época de
cinema em que artista nenhum, ator nenhum, conseguia receber o dinheiro”
(depoimento de Renato Magalhães Gouvea, concedido ao autor em 7 abr 2008).
Neste encontro, Person e Nélson levaram a relação da equipe e um pré-
orçamento com o valor bem detalhado de Cr$ 23.341.750,00. Na verdade, este
documento havia sido preparado em janeiro de 1963, conforme está datilografado no
pé da última página; isso pode significar que Person, que nesta época estava na Itália,
havia enviado o roteiro ao Brasil para levantamento de custos.
Lá está:
Para a elaboração do presente orçamento compilados dados fornecidos pelas firmas
“Du Pont S. A.”, “Estúdios AIC Arte Industrial Cinemat. Ltda.”, “Líder
Cinematográfica Ltda.”, bem como se consideraram estimativas e custos extraídos
de orçamentos de filmes em fase de realização ou recentemente terminados.
Ou seja, a base também foi feita em comparação com outros filmes, o que
leva a crer que este era o padrão vigente. Nele, também consta o nome de Camilo
Sampaio como diretor de produção (e que talvez tenha feito o estudo), cargo que
acabou não exercendo.
É difícil a atualização do valor dos orçamentos para se saber exatamente quanto
foi previsto por Person, quanto foi gasto de fato pela produtora Sòcine ou o valor final do
que arrecadou. A partir dos anos 1960, houve uma seqüência de moedas (cruzeiro,
cruzeiro novo, cruzado, cruzado novo, cruzeiro de novo, real etc.), o que nos faz ter
apenas uma aproximação da realidade. No site do Banco Central
(www.bancocentral.gov.br), é possível fazer dois tipos de correção de valores: pelo IGP-
DI, da FGV (dados a partir de fevereiro de 1944), e pelo IPC-SP, da Fipe (dados a partir
de novembro de 1942). Os números não conferem, pois o da FGV é mais sensível ao
79
câmbio e é mais ligado à economia como um todo, enquanto o da Fipe abarca apenas os
preços ao consumidor — e, por isso, sempre dá valores bem menores.
2
Pelo projeto original, Person receberia Cr$ 200.000 pelo argumento, Cr$
300.000,00 pelo roteiro e Cr$ 1.700.000,00 pela direção, além de uma ajuda de custo
de Cr$ 300.000,00 por três meses. Isso perfaz o total de Cr$ 2.500.000,00, ou seja,
quase 10% do orçamento total. Em valores de julho de 2008 (quando apliquei a
tabela pela primeira vez), seria algo entre R$ 114.992,00, segundo índices da
Fundação Getúlio Vargas (FGV), e R$ 33.082,00, segundo a Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas (Fipe).
Aqui vale um pequeno comentário sobre a conjuntura sociopolitica que, até hoje,
dificulta a comparação entre preços e valores. E imagino o quanto atrapalhou não só
esta, como todas as produções de cinema do Brasil. Justamente no período retratado por
São Paulo Sociedade Anônima, entre os governos dos presidentes Juscelino Kubitschek,
Jânio Quadros e João Goulart, a inflação brasileira ganhou força.
Jean-Claude Bernardet, em seu livro Brasil em tempo de cinema, fala do
processo econômico que o Brasil atravessava, para destacar os personagens
escolhidos por Person. Não os grandes empresários nem os operários: “Os donos
dessas pequenas fábricas, que surgem da noite para o dia, desenvolvem-se e
enriquecem-se às custas da inflação (o dinheiro é substituído pelo crédito) e de
manobras mais ou menos desonestas” (Bernardet, 1978, p. 106).
Vale a pena citar mais um pouco, pois Bernardet apresenta sua teoria
sociológica sobre o momento.
Uma pequena característica dessa classe média que euforicamente enche os bolsos
está em que o desenvolvimento industrial não resulta dela, mas que ela aproveita o
desenvolvimento com o fim exclusivo de enriquecer: está na total dependência da
grande indústria, pela qual é condicionada, obrigando-se a obedecer-lhe cegamente
ponto por ponto (Bernardet, 1978, p. 106).
Como o grande mote de São Paulo Sociedade Anônima é a fabricação de
veículos automotores no País, vale a pena ler o que o ex-ministro na época, o
economista Roberto Campos, escreveu:
3
2
Para mais detalhes, consultar os sítios: http://www.portalbrasil.net/igp.htm (FGV) e
http://www.portalbrasil.net/ipc.htm (Fipe).
80
A implantação da indústria automobilística era, sem dúvida, a menina dos olhos de
Kubitschek e uma espécie de “pedra de toque” do êxito do programa de
industrialização. A meta inicial era assaz modesta — 100 mil veículos automotores
em 1960. Foi depois revista para 347 mil. O grau de implementação — 92,3% — foi
surpreendentemente elevado de vez que em 1960 foram produzidos 321.200 mil
veículos. O índice de nacionalização, projetado para 95% em 1960, atingiu na
realidade cerca de 90% [...] No balanço, a implantação da indústria automobilística
foi um sucesso desenvolvimentista. O pesado encargo dos subsídios cambiais à
importação de componentes foi logo neutralizado pela receita de impostos sobre a
nova produção (Campos, 1994, p. 322, 326).
Como se vê, Person estava atento a esta nova realidade brasileira e conseguiu
transformar uma questão econômica e uma conjuntura político-social num plot sobre
dramas individuais e de toda uma cidade.
3
Como o filme se passa num período específico (1957-1961), fui buscar informações na obra de um
economista que viveu toda a conjuntura. Falo de Roberto Campos, que publicou suas memórias em
1994, no livro A lanterna na popa, exatamente ele que implantou a correção monetária para o
primeiro governo militar, como forma de segurar a inflação. Campos explica que, além do famoso
Plano de Metas, fez dois programas de estabilização de preços para o presidente Juscelino Kubitschek.
Ambos previam a liberalização da taxa cambial — ato sempre rejeitado, porque os presidentes
brasileiros, segundo Campos, gostam de controlar o câmbio como medida popular: “Nenhum deles [os
programas] chegou à fruição, sendo realizado apenas o Plano de Metas, acrescido da ‘meta-síntese’
inventada por Juscelino — a construção de Brasília — com os previsíveis resultados de inflação
acelerada e bancarrota cambial” (Campos, 1994, p. 559). Campos sempre defendeu que a
transferência da capital federal do Rio de Janeiro para o interior do Brasil, com a construção de uma
cidade inteira e moderna, foi a grande responsável pelo endividamento do País e a causa maior da
inflação que viria a seguir, e por décadas. Ele explica por quê: “O Brasil é relativamente tolerante com
respeito à inflação porque desenvolveu durante algum tempo uma técnica eficaz de “crescinflação” —
crescimento com inflação — através da indexação generalizada [...] No momento em que termino
estas memórias, é lançado um novo plano de estabilização — o Plano Real. É a sexta reforma
monetária desde a redemocratização. Chega num momento de grande tensão inflacionária, beirando à
hiperinflação” (Campos, 1994, p. 1.227).
81
Quadro 1
Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo inicial de São Paulo Sociedade Anônima
previsto por Luiz Sérgio Person e Nélson Mattos Penteado
Dados básicos da correção pelo IGP-DI
Data inicial janeiro de 1963
Data final julho de 2008
Valor nominal Cr$ 23.341.750,00
Dados calculados
Índice de correção no período 12.499.054,4754900x10E7
Valor percentual correspondente 1.249.905.347,5490000x10E7 %
Valor corrigido na data final R$ 1.060.908,21
Fonte: http://www.portalbrasil.net/igp.htm.
Quadro 2
Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo inicial de São Paulo Sociedade Anônima
previsto por Luiz Sérgio Person e Nélson Mattos Penteado
Dados básicos da correção pelo IPC-SP
Data inicial janeiro de 1963
Data final julho de 2008
Valor nominal: Cr$ 23.341.750,00
Dados calculados
Índice de correção no período 35.795.924,0526387x10E6
Valor percentual correspondente 3.579.592.305,2638700x10E6 %
Valor corrigido na data final R$ 303.830,22
Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipc.htm.
Ou seja, pelos cálculos do pré-projeto, o filme custaria entre R$ 300 mil e R$
1 milhão em valores dos anos 2000, o que se coaduna no chamado “filme BO”, ou
seja, de baixo orçamento (ver Quadros 1 e 2).
Gouvea diz que procurou diretores de bancos e garante que foi alertado para
não entrar na área. Segundo ele, a alegação era de que “cinema é uma coisa em que
você põe o dinheiro, o sujeito diz que vai dar, que retorna, mas aqui está tudo no
vermelho”. Depois de bater na porta de várias instituições financeiras, resolveu expor
o projeto para pessoas de seu circulo de amizade.
Telefonei para alguns amigos, inclusive o Pietro Maria Bardi — que eu conhecia
porque já freqüentava o Museu de Arte de São Paulo — e o Bardi entrou com X,
outro entrou com Y... E assim foi. O único que não entrou com dinheiro, mas ficou
sócio da Sòcine foi o Mario Audrá, que era dono da Cinematográfica Maristela. Ele
82
entrou com estúdios e equipamentos, com a parte técnica dele (depoimento de
Renato Magalhães Gouvea, concedido ao autor em 7 abr 2008).
O primeiro passo foi a criação de uma produtora, a Sòcine Produções
Cinematográfica, que era uma sociedade limitada (“Ltda.”), com o intuito de
arrecadar dinheiro de investidores através de cotas.
1.6. A lista Ltda. de São Paulo Sociedade Anônima
Na consulta que fiz nos arquivos de Renato Magalhães Gouvea, comprovei
inúmeros boletos e relatórios de reembolso para acionistas, inclusive com algumas
renegociações que envolviam juros e correção monetária. O produtor guarda uma
lista, escrita de próprio punho, com os detalhes das porcentagens e valores, e que
reproduzo a seguir (ver Figura 28, na página seguinte).
Os nomes e porcentagens mencionados nessa lista, assim como os
sobrenomes e profissões lembradas por Gouvea, são:
Mario P. [Mario Pimenta Camargo, consultor jurídico do filme] 7,358 303,06
Rubens Murta [Gouvea não recorda a profissão] 0,735 30,27
P. M. Bardi [Pietro Maria Bardi, fundador do Masp] 0,245 10,09
Renato de Alm. [Renato de Almeida, advogado] 0,735 30,27
Jaime A. de Barros [Jayme Alípio de Barros, advogado e procurador geral da República] 0,245 10,09
José L. da R. B. [José Luis da Rocha Botelho, advogado] 1,226 50,49
Raphael de Cunto [engenheiro da Construtora Magalhães Gouvea] 0,981 40,40
José Oswaldo C. [José Oswaldo Cosenza - engenheiro e construtor] 0,981 40,40
Aníbal de B. F. [Aníbal de Barros Fagundes, engenheiro-chefe da Construtora Magalhães Gouvea] 1,226 50,49
Antonio M. [Gouvea não recorda sobrenome] 0,245 10,09
Luiz S. P. [Luiz Sérgio Person] 5,395 222,21
Renato [Renato Magalhães Gouvea] 26,850 1.105,92
Mario Audrá [produtor de cinema, dono da Maristela] 16,923 697,04
Carlos Pont [empresário, dono de imobiliária] 12.263 505,10
Luiz Person [industrial e pai do diretor] 13.857 570,75
Eduardo S. O. [Eduardo de Salles Oliveira, administrador de empresas e dono de escritório de artes] 0,735 30,27
Nelson [Nélson Mattos Penteado, produtor executivo do filme] 10 411,89
[99,94] 4.118,83
83
Figura 28. Lista dos acionistas de o Paulo Sociedade Anônima. Os números da coluna do meio são
porcentagens; os da coluna da direita, são valores em cruzeiros (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
84
Quadro 3
Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo consolidado de São Paulo Sociedade
Anônima de acordo com a lista de acionistas
Dados básicos da correção pelo IGP-DI
Data inicial fevereiro de 1964
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 411.800.083,00
Dados calculados
Índice de correção no período 62.212.376,1439419x10E6
Valor percentual correspondente 6.221.237.514,3941900x10E6 %
Valor corrigido na data final R$ 9.315.988,56
Fonte: http://www.portalbrasil.net/igp.htm.
Quadro 4
Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo consolidado de São Paulo Sociedade Anônima
de acordo com a lista de acionistas
Dados básicos da correção pelo IPC-SP
Data inicial fevereiro de 1964
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 411.800.000,83
Dados calculados
Índice de correção no período 18.685.055,4634278x10E6
Valor percentual correspondente 1.868.505.446,3427800x10E6 %
Valor corrigido na data final R$ 2.797.975,11
Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipc.htm.
Como se vê nos Quadros 3 e 4, de acordo com a conversão pela lista de
acionistas, o filme teria custado algo entre R$ 2 milhões e 800 mil e R$ 9 milhões e
300 mil, o que já o transformaria num filme de padrão intermediário para os anos
2000, inclusive em comparação com filmes como Cidade de Deus (2002), de
Fernando Meirelles, que, apesar de sua grande estrutura, custou apenas R$ 3 milhões,
70% bancados pela produtora O2, do diretor e de seus sócios, ou Carandiru (2003),
de Hector Babenco, o mais caro da história do cinema brasileiro (até o momento),
com R$ 12 milhões de reais. Para este filme, a produtora HB, de Babenco, utilizou o
mesmo sistema de captação por venda de cotas realizada de forma mais amadora,
digamos, para a realização de São Paulo Sociedade Anônima.
Para efeito de comparação, no ano anterior, o filme Vidas Secas teria custado
Cr$ 18 milhões. A informação consta à p. 235 do livro Estado e cinema no Brasil, de
Anita Simis. A autora diz que este valor era equivalente a US$ 60 mil. Pela
85
Calculadora do Cidadão, mecanismo utilizado no site do Banco Central, o valor
atual, segundo a FGV, seria de R$ 667.168,20 ou, pelo índice da Fipe, R$
200.088,00. Ou seja, o filme dirigido por Nélson Pereira dos Santos em 1963, no
sertão brasileiro, teria custado bem menos do que o de Luiz Sérgio Person. Isso é
compreensível. Independentemente da viagem para o Nordeste do País, trata-se de
um filme com menos personagens e muitas cenas de paisagens, sem as dificuldades
de realização no espaço urbano. Anita Simis faz esta afirmação para explicar que
vários filmes foram subsidiados pelo governo do Rio de Janeiro — na época, o
recém-criado estado da Guanabara. Foi o caso do episódio “Couro de gato”, do filme
Cinco vezes favela (1962) — também subvencionado pela União Nacional dos
Estudantes (UNE) e pelo Centro Popular de Cultura (CPC) —, assim como Os fuzis
(1965) e A grande cidade (1966), todos ligados ao Cinema Novo. Tratava-se de uma
tentativa do governo da Guanabara, por meio da Lei nº 73/61, de dividir recursos
para estimular a indústria do turismo e do cinema.
1.7. A preparação da produção
O primeiro cuidado que Renato Magalhães Gouvea teve foi com os contratos.
Ele propôs que cada ator recebesse semanalmente. Para isso, organizou sessões de
assinaturas dos acordos na sede da sua construtora, com direito a fotografias e
posterior divulgação. A preocupação com a produção chegou a ponto de ter, entre os
acionistas, um consultor jurídico, cargo desempenhado por Mario Pimenta Camargo,
que aparece como consultor da produção nos créditos iniciais do filme. E, hoje,
Gouvea garante: “Ficou tudo dentro do orçamento. Eu recebi os atores, um por um,
para saber quanto queriam ganhar. Isso começou a repercutir muito bem na crítica,
com o pessoal que escrevia sobre cinema” (depoimento concedido ao autor por
Roberto Magalhães Gouvea).
Na área técnica, a decisão mais importante foi a da contratação do diretor de
fotografia Ricardo Aronovich. No projeto original de Person (ver Anexo 1), a função
caberia ao artista plástico Wesley Duke Lee. A dificuldade estava na agenda. Aronovich
estava de viagem marcada. Gouvea e Person foram ao Rio de Janeiro para negociar.
8
6
Fomos ao Hotel Leme, conversamos, e consegui convencê-lo a não ir para a
Argentina, mas vir passar dois meses em São Paulo para fazer o filme. Ele topou. E
aí o Person disse que só queria filmar em dias que não tivesse muito sol, que tivesse
uma atmosfera meio sombria para São Paulo. Ele topou também (depoimento de
Renato Magalhães Gouvea, concedido ao autor em 7 abr 2008).
No catálogo da Mostra Luz e Movimento — A fotografia no cinema
brasileiro, organizada por Eduardo Ades e Mariana Kaufman, na Caixa Cultural do
Rio de Janeiro em janeiro de 2007, Ricardo Aronovich confirma:
O encontro com Luiz Sérgio Person foi logo uma felicidade porque ele tinha
estudado no Centro Sperimentale, em Roma, e sabia fazer cinema, conhecia a sua
gramática, a sua sintaxe, o que não era muito comum nessa época, nos jovens
cineastas, fossem da Argentina ou do Brasil, excetuando, claro, o Ruy Guerra...
A partir desta realidade, foi montado um cronograma minucioso para que as
datas não extrapolassem. Afinal, além de Aronovich, os atores (com exceção de Ana
Esmeralda) tinham compromissos com as emissoras de televisão do Rio de Janeiro e
de São Paulo, bem como espetáculos de teatro. O elemento facilitador era que apenas o
personagem Carlos participava de todas as cenas, já que os personagens femininos
Ana, Hilda e Luciana não contracenavam. E Arturo Carracci tinha cenas apenas com
Carlos, Luciana (apenas a viagem para o sítio) e Ana (escritório e restaurante alemão).
Como já observei, uma decupagem delicada, mas possível para viabilizar a produção.
De acordo com a revista Visão, edição de 11 de junho de 1965, foram
somente 11 técnicos, o que certamente facilitava o deslocamento da equipe para as
88 locações que a divulgação do filme propalava (ver Capítulo 3 e Anexo 5). Os
créditos iniciais confirmam: um diretor; um assistente de direção; um diretor de
fotografia/câmera; um assistente de câmera/fotógrafo de cena; um maquinista; um
eletricista; um diretor de arte; um produtor; dois assistentes de produção; três
técnicos de som; se não considerarmos o diretor e seu assistente como técnicos,
chegamos ao número de 11. Outra conta possível é de o filme ter tido apenas um
técnico de som na filmagem, pois os três nomes que são creditados podem ter
dividido o trabalho também na finalização, que ficou terceirizada, ao cargo da AIC
— Arte Industrial Cinematográfica [informação técnica: sistema sonoro Westrex].
De qualquer forma, uma equipe enxuta e de fácil transporte e deslocamento.
8
7
Em 1964, a capital paulistana já tinha cinco milhões de habitantes e seu
centro era muito movimentado. Organizar a produção exigia muito critério, até
porque grande parte das cenas e seqüências era em externas — e dependiam da “boa
vontade” da chuva, na chamada “terra da garoa”. Sem falar dos deslocamentos para o
litoral e para o interior de São Paulo (cenas na praia de São Vicente, represa de
Guarapiranga, serra do Mar, sítio de Arturo Carracci etc.). Em depoimentos para o
documentário Person, os atores Walmor Chagas e Eva Wilma garantem que foi uma
filmagem tranqüila. A mesma palavra me foi repetida pela atriz Ana Esmeralda, que
entrevistei no seu estúdio de balé flamenco, em São Paulo. Ela diz que Person sabia o
que queria de cada ator, que filmava rápido e que as filmagens sempre aconteciam
como previsto: “Tudo muito programado para não tumultuar as seqüências [...]
Apesar de muito jovem, ele ‘sacava’ da gente o mais possível. Sem gritar, falava
direto: ‘quero esta ‘bruma’, este sentimento” (depoimento de Ana Esmeralda,
concedido ao autor em 8 maio 2008).
Como já se enfatizou, uma novidade para o período foi o profissionalismo no
figurino, um hábito desenvolvido pela indústria de Hollywood, em parceria com
grandes nomes da alta-costura — uma prática comum e muito difundida até hoje. O
caso mais conhecido é o de Bonequinha de luxo (1961), onde a atriz Audrey Hepburn
é vestida pelo estilista francês Givenchy.
A Sòcine contratou uma estilista muito famosa da época, chamada Regina
Tomaso, que tinha uma grife de alta costura, a Confecções Tomaso. O objetivo era
ajudar a definir cada personagem por meio do vestuário. É interessante notar que
Carlos muda o tom do terno conforme o período que está retratando. E as roupas
femininas se transformam com a idade dos personagens e os climas das seqüências.
Na Figura 29, a seguir, é possível notar um “ATENÇÃO!!”, escrito por
Person, para que na cena 123, na praça do Patriarca, Carlos usasse terno azul
marinho, gravata marrom com pintas amarelas e uma pasta PB. Apesar de estar
manuscrito “Ana” no roteiro, a cena era com Hilda, que deveria estar com tailleur,
roupa escura, bolsa “Licia” [inclusive com desenho da bolsa no papel] e embrulho na
mão esquerda. É um momento importante do enredo, quando os dois se reencontram,
já depois da morte do marido de Hilda. Neste sentido, o chamado para que ela
estivesse com uma roupa sóbria e discreta.
88
Figura 29. Anotações de L. S Person no roteiro de São Paulo Sociedade Anônima. Destaque
(“ATENÇÃO!!”) para a indicação de vestuário de Carlos e Hilda — e não Ana, como está escrito
(arquivo Cinemateca Brasileira)
89
Hilda tem um figurino marcado pela personalidade sombria, meditativa e com
pretensões intelectuais. E é a única que aparece nua (embora escondida pelos
lençóis), no apartamento da praia, e de lingerie, no hotel, aonde vai se encontrar com
Carlos. Usa jaquetas fechadas quando circula pensativa pelo Museu de Arte
Contemporânea. Na hora do suicídio, está de camisa masculina, grande, uma moda
ousada para a época.
Já Ana inicia o filme com trajes mais simples, de uma moça do interior, como
o tailleur que usa no bar onde canta “viver como num filme mexicano”. E termina,
ao lado de seu amante, Arturo Carracci, com vestidos mais trabalhados, no
restaurante alemão, onde sua veste preta contrasta com o branco esvoaçante de sua
amiga, aspirante a starlet, de Belo Horizonte.
Luciana, de uma estudante comportada que sai da aula de inglês, faz a última
cena com um vestuário sofisticado, escuro e cerrado, caminhando pela fábrica e por
um galpão em busca de Carlos. A mesma Luciana que usa lenço e tiaras até a
segunda metade do filme e solta o cabelo depois de casada, já como uma mulher
decidida.
O fato “inovador” demonstra um dos cuidados tomados pela produção.
1.8. 18 anos: A Censura surpreende e atrapalha o marketing
O filme São Paulo Sociedade Anônima foi registrado como São Paulo S/A pelo
Certificado 25.096 (livro 5) do Serviço de Censura de Diversões Públicas, do
Departamento Federal de Segurança Pública, que fazia parte do Ministério da Justiça e
Negócios Interiores. Foi no dia 9 de agosto de 1965. De acordo com o documento,
foram apresentados 3.047 metros de filme 35 mm e 11 cópias. A propriedade era da
Columbia Pictures of Brazil Inc. Apesar de livre para exportação e para ser exibido em
todo território nacional, o filme foi considerado impróprio para menores até 18 anos.
Segundo Renato Magalhães Gouvea, a proibição provocou um impacto muito
grande na bilheteria, porque afastava o potencial público jovem que poderia ir
sozinho ou, pelo menos, acompanhado dos pais, como era de praxe na época (ver
Anexo 2). Ele diz que esta classificação provocou uma verdadeira maratona de Luiz
Sérgio Person pelos órgãos públicos responsáveis.
90
Algumas hipóteses podem ser levantadas para uma proibição tão dura:
práticas escusas do protagonista, Carlos, e de seu parceiro, Arturo, inicialmente
contra a Volkswagen e depois contra o Banco do Brasil; cena de beijos ardentes, na
praia, entre Carlos e Ana; namoro no hotel entre duas pessoas não casadas, Carlos e
Hilda; o suicídio de Hilda; corrupção de funcionários do Ministério do Trabalho;
adultério do personagem Arturo Carracci e suspeita de traição no casamento pelo
próprio Carlos, que tem vários relacionamentos; o roubo do carro no final do filme,
pelo personagem principal.
Para os costumes da época, qualquer tipo de cena mais provocativa em termos
sensuais ou sexuais chamava a atenção. Vivia-se o civismo mostrado nas ruas de São
Paulo e também a moral da “Tradição-Família-Propriedade” (TFP), uma entidade
político-religiosa que tentava controlar os chamados “bons costumes”. A imprensa
ajudou a levantar esta questão, talvez até mesmo como estratégia de marketing da
produção. Como exemplo, cito a reportagem “São Paulo é cenário de ousada película
nacional”, do paulistano Diário de Notícias. No dia 19 de maio de 1964, apenas 19
dias depois de iniciada a filmagem, narra-se que “os três vivem audaciosas cenas de
amor nas quais o diretor exigiu o máximo de realismo, atingindo às raias do insólito
pela audácia e coragem com que obrigou os personagens a retratarem momentos de
incontida paixão” (ver Figura 30, a seguir).
Os três citados na reportagem são Carlos, Ana e Hilda, que aparecem em duas
fotos. A de Walmor Chagas com Ana Esmeralda é no apartamento de praia do
“turco”, com ele deitado sobre ela. A legenda fala em “cenas de alcova e invulgar
audácia para o cinema brasileiro”. Na mesma posição, só que com Darlene Glória
nos rochedos sobre o mar; a legenda da foto diz que “Walmor Chagas vive
momentos de erotismo e paixão...”.
Certamente, este tipo de divulgação chamou a atenção da Censura que existia
no Brasil desde os primórdios do cinema e que ficou mais rigorosa a partir do golpe
militar de 1964. Não se sabe se houve negociação de Luiz Sérgio Person para se
cortar alguma cena. O diretor nunca escreveu ou comentou o assunto.
91
Figura 30. Jornal paulistano aponta “cenas audaciosas” em São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
1.9. A grande divulgação
Um impressionante material de texto e de fotos abasteceu a imprensa
brasileira durante longos meses, entre sua pré-produção, no segundo trimestre de
1964, até seu lançamento, no terceiro semestre de 1965. Entrevistas coletivas e
coquetéis foram realizados no mesmo local onde cenas foram filmadas. Foi o caso da
casa de chá Mon Drink, na Galeria Metrópole, no centro de São Paulo, onde Carlos
diz para Ana que “detesta filme mexicano”.
Como venho tentando demonstrar, São Paulo Sociedade Anônima teve uma
divulgação detalhada. Os recortes da empresa LUX, que rastreava as notícias dos
jornais, comprova o trabalho de assessoria de imprensa e de relações públicas numa
época em que não havia empresas especializadas. Ao manuseá-los, é possível perceber
que se trata de um material que nada deve a lançamentos nacionais nos anos 2000,
como os já citados Cidade de Deus e Carandiru. Pela centimetragem de notícias (ver
Capítulo 2), os métodos utilizados hoje fariam parte de qualquer manual de Marketing.
Renato deixa claro que seu objetivo era atingir todos os meios. Por isso, é possível
encontrar notas não apenas em páginas especializadas em arte e cultura.
92
Figura 31. Coluna de fofocas da revista Cinelândia, edição de julho de 1964 (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
Depois da pré-estréia, a chamada “alta sociedade paulistana” reuniu-se no
Clube Atlético Paulistano para um baile de debutantes em que a atração eram os
convidados estrangeiros. Tratava-se de um convite da Sòcine, da Empresa Sul, da
Columbia Pictures e da Sociedade Pestalozzi de São Paulo. No dia seguinte, os atores
vindos dos EUA tiveram um encontro com o governador Ademar de Barros, tudo
organizado pelo seu secretário Blota Jr., a pedido de Renato Magalhães Gouvea.
4
4
Além de um baile de debutantes no Clube Atlético Paulistano, que atraiu a chamada “alta sociedade”
paulistana, em um bairro sofisticado de São Paulo, e da 8ª Bienal de São Paulo, no parque do
93
Figura 32. Adhemar de Barros oferece uma jaguatirica para uma atriz de Hollywood. Reportagem
destaca lançamento do filme (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Ibirapuera, onde o encontro seria com artistas mais sérios, os atores Troy Donahue, Nancy Kovak,
Meri Welles e Statis Gialelis tiveram intensa programação, até com várias entrevistas coletivas. Em
todos os noticiários desses dias, aparecia o nome do filme São Paulo Sociedade Anônima, fosse qual
fosse a notícia ou informação. Para completar este circuito, os chamados atores “de Hollywood
visitaram o Palácio do Governo do Estado de São Paulo, nos bairro dos Campos Elíseos. Segundo os
jornais, foram recebidos pelo governador Ademar de Barros (ver Figura 28, acima), que chegou a
oferecer uma jaguatirica (que vivia na residência oficial) de presente para a atriz Meri Welles: “A atriz
recebeu a oferta com grande satisfação, dizendo que levará o pequeno felino para adornar os jardins
de sua casa nos Estados Unidos” (Silva, 1º out 1965, p. 13).
94
Um dos colunistas sociais mais famosos do período, Ibrahim Sued, também
reportou no dia 30 de setembro:
A convite do secretário de Turismo de São Paulo, deputado Blota Jr., seguiram para
a Capital paulista Troy Donahue, Beverly Adams, Mike (Tarzã) Henry e Mitzi
Gaynor que foram assistir a estréia de “São Paulo S.A.”, fazendo a alegria das
gaivotinhas locais que se concentraram na porta do hotel Jaraguá... (Sued, 30 set
1965, p. 8)
No dia 29, São Paulo Sociedade Anônima entrou em cartaz nos cines Olido e
Regência, acompanhado por grandes anúncios nos jornais que tinham os seguintes
dizeres: “GENTE que SOFRE! GENTE que AMA! GENTE que VIVE! Você está
em SÃO PAULO S/A. ‘Importante: assista desde o início’.” (ver Figura 33).
Figura 33. Anúncio de lançamento de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
As badalações não paravam por aí. Aproveitando-se da inauguração do Edifício
Itália, que sua construtora havia construído, Renato Magalhães Gouvea organizou outro
coquetel para ser oferecido pela Sociedade Amigos da Cinemateca. O pretexto era reunir
participantes da 8ª Bienal de São Paulo e do 1º Festival de Arte Cinematográfica para
celebrar o êxito de dois filmes, São Paulo Sociedade Anônima e Memória do cangaço, de
Paulo Gil Soares. O Diário da Noite (publicação do grupo Diários Associados, comandado
por Assis Chateubriand), que se orgulhava de ser o mais vendido de São Paulo, comentou
95
sobre os convidados: “Cineastas, artistas, intelectuais, personalidades do mundo político,
financeiro e social de São Paulo estiveram presentes ao brilhante acontecimento, do qual
foi anfitrião o sr. Dante Ancona Lopes, presidente da SAC” (Homenagem ao cinema
paulista, Diário da Noite, sem assinatura, s/p, s/d). Nas fotos, destaques para o presidente
da Cinemateca Brasileira, Almeida Salles, e o diretor Rudá de Andrade, para o secretário
da Embaixada da Checoslováquia, Jiri Kozak, e para a noiva de Person, Hiltrud Holzherr
(ver Figura 34).
Figura 34. Notícia do coquetel da Sociedade dos Amigos da Cinemateca (SAC), no Terraço Itália,
para o lançamento do filme e outros eventos artísticos (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
9
6
O colunista Ignácio de Loyola escreveu sobre o tema logo na segunda semana
de lançamento.
Sucesso de “São Paulo S/A” PROVA: PÚBLICO VAI VER O CINEMA
NACIONAL. O público vai ver o cinema brasileiro, quando o filme é sério, bem
feito e não vazio. É o caso de “São Paulo S.A.”, a única das cinco fitas nacionais que
estavam em cartaz que rendeu, e rendeu bastante. Nos dois primeiros dias de Olido
entraram pelas bilheterias quatro milhões de cruzeiros, batendo o recorde de muita
fita norte-americana. Depois a carreira continuou muito bem, o filme entra hoje em
segunda semana e há amplas possibilidades de uma terceira. E numa sala como o
Olido que todo mundo dizia ter um público refratário aos filmes nacionais. Não é
nada disso. É que hoje em dia o povo não gosta e não se deixa enganar. Sabe o que
quer, sabe o que é bom, apreende o que procuram lhe transmitir (Coluna Cine-
Ronda, Última Hora, Loyola, s/p, s/d).
Quadro 5
Correção pelo IGP-DI (FGV) do faturamento de São Paulo Sociedade Anônima em
dois dias de exibição no Cine Olido (setembro de 1965)
Dados básicos da correção pelo IGP-DI
Data inicial setembro de 1965
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 4.000.000,00
Dados calculados
Índice de correção no período 28.715.767,9013624x10E6
Valor percentual correspondente 2.871.576.690,1362400x10E6 %
Valor corrigido na data final R$ 41.768,00
Fonte: http://www.portalbrasil.net/igp.htm.
Quadro 6
Correção pelo IPC-SP (Fipe) do faturamento de São Paulo Sociedade Anônima em
dois dias de exibição no Cine Olido (setembro de 1965)
Dados básicos da correção pelo IPC-SP
Data inicial setembro de 1965
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 4.000.000,00
Dados calculados
Índice de correção no período 82.854.340,4515921x10E5
Valor percentual correspondente 8.285.433.945,1592100x10E5 %
Valor corrigido na data final R$ 12.051,20
Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipc.htm.
9
7
Segundo a conversão de valores proporcionada pelo site do Banco Central,
com duas hipóteses de cálculo (ver Quadros 5 e 6, na página anterior), os Cr$ 4
milhões em apenas dois dias de exibição citados por Ignácio de Loyola se
transformariam em algo entre R$ 41.768,00 (índice da FGV) ou R$ 12.051, 20
(índice da Fipe).
Nas semanas seguintes, a Columbia Pictures e a Sòcine prosseguiram com a
estratégia de anúncios nos jornais. No O Estado de S. Paulo do dia 16 de outubro de
1965, acompanhado de uma foto da briga entre Carlos e Luciana, letras garrafais de
um anúncio apontavam a terceira semana em cartaz: “Isto é sucesso. 50.000 pessoas
já aplaudiram!” (Figura 35, a seguir).
Figura 35. Anúncio de terceira semana em cartaz de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
O filme seguia em cartaz no cine Olido, saía do cine Regência, mas ganhava as
salas dos cines Clímax e Itamaraty. Até ali, já era 1% de uma cidade de cinco milhões
de habitantes, mas ainda considerada provinciana perto da ex-capital, Rio de Janeiro.
98
Como antecipei, os números do público paulistano foram favoráveis. O filme
completou um mês no importante cine Olido, como atestava a reportagem do Diário
da Noite do dia 21 de outubro de 1965, já comentada.
Conforme prefácio de Jean-Claude Bernardet para o livro de Anita Simis, a
falta de pesquisa sobre a economia no cinema brasileiro é um dos pecados capitais
para a incompreensão do dilema: por que a indústria cinematográfica não cresce de
forma coerente no País. Ainda hoje — e não sei se será para sempre, já que muitos
arquivos de produtoras, distribuidoras e empresas afins não foram guardados — é
difícil encontrar dados sobre exibição, renda e público em períodos anteriores a
1966, ano da fundação do Instituto Nacional de Cinema (INC). As principais
informações estão nas publicações do antigo Grupo Executivo da Indústria
Cinematográfica (Geicine), órgão interministerial do governo federal, que tinha um
caráter de formulação de políticas para o setor.
5
A Revista do Geicine de 1964, em edição ainda anterior ao golpe militar, com
João Goulart na Presidência da República e Flávio Tambelini como presidente do
órgão. Um artigo não assinado sobre preços dos ingressos assim dizia:
Não possuímos, infelizmente, dados concretos relativos a 1962 e 1963 (que serão,
com certeza, mais marcantes) e quanto a 1961, dispomos apenas dados referentes ao
Estado de São Paulo e cidade de São Paulo; mesmo assim, é possível distinguir a
tendência de queda do número de espectadores (Preços dos ingressos, Revista do
Geicine, 1964, p. 15-17).
A Revista do Geicine apontava a concorrência da televisão e o controle do
preço dos ingressos como culpados pela “crise”. A maior proposta, naquele
momento, era a criação do INC, que depois seria transformado na Embrafilme, que
acabou extinta no governo Fernando Collor.
5
Além do livro de Anita Simis, recomendo a leitura de Ramos (1983). Outra contribuição importante
para este tipo de pesquisa é a coleção organizada por Meleiro (2007). São cinco volumes que focam em
diferentes partes do mundo: África, Estados Unidos, Europa, Ásia e América Latina. No caso específico
do Brasil, o mercado é analisado principalmente a partir de 1990; ver esp., no vol. II (América Latina) da
série, textos de Jom Tob Azulay (“Por uma política cinematográfica brasileira para o século XXI”) e
André Piero Gatti (“O mercado cinematográfico brasileiro: uma situação global?”).
99
Por outro lado, contraditoriamente, notícias posteriores de jornais diziam que
o momento era bom. É o caso da coluna Letreiro, do Jornal do Brasil, assinada por
Miriam Alencar, que, em 13 de setembro de 1964, anunciava:
O mercado exibidor do Brasil é, possivelmente, um dos poucos, ou mesmo o único,
em grande expansão, atualmente. Há dois anos tínhamos três mil salas de exibição
(cinemas) e hoje temos cerca de quatro mil. Em 1963, foram vendidos 320 milhões
de ingressos, o que representa quatro vezes a população do Brasil, que atingirá,
oficialmente no dia 23 de setembro, 80 milhões de habitantes.
Na mesma coluna, Miriam Alencar publicava uma foto de divulgação de São
Paulo Sociedade Anônima, com Carlos e Luciana no trem. Ainda em 1964, a Revista
de Cinema publicou “A produção de filmes no Brasil” (ver Figura 36, a seguir), que
defendia a famosa Lei de Reserva de Mercado:
A idade de ouro do cinema brasileiro começará no dia em que os produtores tiverem
amplo acesso aos órgãos de financiamento e quando toda a produção nacional,
preservada da concorrência injusta do produto estrangeiro, for eficientemente
distribuída em todos os pontos do país.
O texto do jornalista Geraldo Mayrink falava sobre o Decreto nº 52.745, que
tornava obrigatória a exibição de filmes brasileiros por, pelo menos, 56 dias.
Segundo ele, a fiscalização acabara de começar no Rio e em São Paulo e passaria, em
breve, para Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e Recife. Já sobre espectadores e
filmes no mercado, Mayrink apresentava os números indicados no Quadro 7.
Quadro 7
População, espectadores e filmes no mercado em países selecionados
1964
Países (população
em milhões)
Espectadores,
em milhares
Filmes no mercado,
em unidades
USA (180) 2.300 525
Alemanha (55) 609 522
Inglaterra (52) 515 308
Itália (50) 744 527
França (45,3) 372 425
Brasil (70) 328 683
Fonte: Revista de Cinema, Belo Horizonte (MG), 1964.
100
Segundo esta mesma fonte, o preço da entrada era de US$ 0,60 nos Estados
Unidos, US$ 0,35 na Inglaterra, US$ 0,34 na Alemanha, US$ 0,20 na Itália, US$
0,37 na França e US$ 0,10 no Brasil.
Figura 36. Primeira página de artigo de Geraldo Mayrink na Revista de Cinema de Belo Horizonte
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
101
No segundo semestre de 1966, o jovem crítico Ismail Xavier citava dados
semelhantes, em artigo para o boletim sobre um ciclo de cinema brasileiro que ele
mesmo organizara para o Grêmio Politécnico da USP (ver Figura 37).
Figura 37. Capa e contracapa de catálogo para mostra organizada por Ismail Xavier e Fernando
Albino para o Grêmio Politécnico em 1966 (arquivo Cinemateca Brasileira)
102
Apesar de não ter ligação direta com São Paulo Sociedade Anônima (filme
que exibira sob a égide de Cinema Novo), vale a pena relembrar suas palavras que
trazem o espírito da época. Em meio a propostas para uma lei de proteção ao cinema
nacional, Ismail dizia (na ortografia de então) que
os principais objetivos seriam [a ortografia é da época]: 1) contrôle efetivo do
mercado exibidor brasileiro (4.000 salas e 320 milhões de espectadores por ano)
para evitar fraudes; 2) contrôle da importação com a criação de restrições
alfandegárias; 3) criação de um percentual sobre os lucros da exibição de filmes
estrangeiros, que seria aplicada em co-produções; 4) obrigatoriedade de aceitação,
por parte do distribuidor, de determinado número de filmes brasileiros em troca; 5)
fiscalização das alícotas a que têm direito os produtores no preço de cada ingresso;
6) instituição do ingresso único oficial; 7) observância de um impôsto
cinematográfico (incluído em cada ingresso); 8) utilização deste impôsto para a
construção de estúdios e importação de equipamentos.
6
Um dos dados que mais impressiona é o fato de, hoje, final da década de
2000, 50 anos depois, o número de salas está por volta de duas mil.
No ano seguinte ao desta retrospectiva da USP, por ocasião do lançamento de
O caso dos irmãos Naves, foi a vez do próprio Person colocar-se neste quadro
institucional. Foi durante um depoimento em um artigo não assinado para o jornal O
Estado de Minas, em 24 de setembro de 1967:
Ao retornar da Europa em fins de 1963, encontrei uma outra realidade
cinematográfica no país. Meus anseios e possibilidades se integraram a essa nova
fase em que um cinema verdadeiramente brasileiro deixava de ser uma soma de
fatos ocasionais, de atitudes isoladas e começava a ganhar a dimensão de conjunto.
Embora já escrito na Itália, S.P.S.A. nasceu ai. É produto dessa nova fase.
Dificilmente tomaria, em outras circunstâncias, forma e vida assim como é. De lá
para cá, toda uma nova geração está fazendo filmes com uma certa continuidade.
6
Encontrei esta publicação na Biblioteca da Cinemateca Brasileira, em São Paulo. Não estava datada nem
os bibliotecários sabiam avaliar quando fora impressa. Escrevi um e-mail para Ismail Xavier que
gentilmente me informou tratar-se “do Catálogo para uma Mostra de Cinema Brasileiro que foi organizada
por nós (eu e Fernando Albino) para o Grêmio Politécnico (eu era estudante de engenharia e fazia política
estudantil). A Mostra foi na Biblioteca Municipal, no segundo semestre de 1966. A seqüência dos filmes
seguiu a tese de Trevisan que, trabalhando então na Cinemateca, nos ajudou”. Inadvertidamente, eu mesmo
escrevi “2º Sem/1966” na minha cópia xerocada pela bibliotecária da Cinemateca (ver Figura 37).
103
Firmou-se uma autonomia fundada no cinema de autor, na afirmação do realizador
cinematográfico que, mesmo com possíveis reveses de toda sorte, não voltará atrás.
O “cinema-indústria”, o “cinema de papai” felizmente está perdendo terreno em
nosso país. Este ano, teremos mais de vinte filmes de longa-metragem já feitos ou
iniciados por estreantes! É preciso ter consciência e pleno aproveitamento desse fato
novo. Temos de ganhar a batalha do público conquistando o mercado brasileiro (Um
depoimento de Person, O Estado de Minas, 22 set 1967, p.6).
Mas alertava para uma palavra que considerava chave: “Todavia, para que
não sobrevenham severas frustrações, temos que atentar seriamente para um
determinado ponto: ‘a comunicação’.
Sem entrar no mérito da proposta de filme que se comunique com o
espectador, podemos confirmar a tal “avalanche” a partir de notícias de jornal. Como
declarou, Person desembarcou no Brasil no final de 1963. Seis meses depois, no dia
4 de junho de 1964, a coluna Cine-Ronda da Última Hora carioca, assinada por Luiz
Alípio de Barros, “manchetava”: “Filme brasileiro às pampas neste junho”.
Para cumprir a lei que mandava exibir filmes brasileiros durante 14 dias a
cada trimestre, o colunista dizia que, no final de junho, haveria uma “orgia” de filmes
nacionais. Citava Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, O
Lamparina (1964), de Glauco Mirko Laurelli, e A morte em três tempos (1964), de
Fernando Campos, que já haviam entrado em cartaz, e as estréias de O caipora
(1964), de Oscar Santana, A montanha dos sete ecos (1963), de Armando de
Miranda, e Asfalto selvagem (1964), de J. B. Tanko. Além disso, aguardava-se uma
maratona de reprises.
1.10. A fotografia de Aronovich: um caso à parte
Com o roteiro pronto e a produção armada, a grande parceria, a “dobradinha”
(como se costuma dizer) foi com o diretor argentino Ricardo Aronovich, nascido em
1930, portanto com 34 anos durante a filmagem. Grande parte do material de
divulgação publicado pela imprensa brasileira chamou a atenção para o seu trabalho
nos sets.
104
Num longo depoimento para o catálogo da Mostra Luz e Movimento — A
fotografia no cinema brasileiro, já citado (vários fotógrafos responderam as mesmas
questões abaixo), Aronovich nos desvenda o processo técnico de filmagem. Acho
importante transcrevê-lo na íntegra, porque ressalta aspectos importantes do que
estamos pesquisando. É o caso, especialmente, do escasso e limitado material de
iluminação que encontrou na cidade de São Paulo. Na ficha técnica sobre fotografia
que acompanha o catálogo, Aronovich lembra que “equipamento de luz e
maquinária” eram primitivos. Com isso, se viu obrigado a buscar recursos técnicos
na hora da revelação, o que “revela” muito da beleza plástica de São Paulo
Sociedade Anônima:
Figura 38. Aronovich e sua Cameflex (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Ao ser perguntado sobre o que o filme de Person representava para ele e sua
carreira, Aronovich diz o seguinte:
São Paulo S.A. representa, de alguma forma, a oportunidade de fazer uma fotografia
completamente diferente e oposta a Os Fuzis, uma fotografia urbana, mas de uma
cidade que eu não conhecia, diferente de Buenos Aires, com uma luz bem diferente
também, mas com o denominador comum de ser um drama urbano [...] Foi o São
Paulo S.A., paralelamente com Os Fuzis, uma bifurcação no meu caminho
105
fotográfico, partindo da Argentina, porque é evidente que não se pode fotografar da
mesma forma Buenos Aires, São Paulo e o nordeste brasileiro. Foi uma grande
experiência, uma escola e ainda um laboratório. E tive um grande prazer de
fotografar todos os dois; a prova é que ainda há mais de quarenta anos que esses dois
filmes, mesmo estando datados, não têm nenhuma ruga!
O que você tentou trabalhar esteticamente neste filme?
Dentro das minhas possibilidades (juventude, falta de experiência) e das
possibilidades que ofereciam os meios técnicos da época (limitadíssimos), tentei o
que falei mais acima, fazer uma fotografia que apoiaria a história sendo contada
(aliás, esta é a minha política desde meus começos), e que tivesse uma “qualidade
pictórica” correspondente a uma cidade como São Paulo. Desde o momento em que,
partindo da minha cultura cinematográfica e da de Person, de inspiração neo-realista
do cinema italiano do pós-guerra, as soluções eram evidentes.
Quais as soluções técnicas utilizadas?
Simplesmente adequar os meios à disposição: a revelação do negativo em função do
contraste desejado (aumentar ou diminuir o gamma ou contraste do negativo virgem
pelo tempo de revelação), o muito pobre material de iluminação da época, as nossas
necessidades expressivas. Ou seja, depois de testes puxados sobre o gamma, a
escolha de um que convinha ao tipo de fotografia (ligeiramente mais alto do que o
“normal”) e fontes de luz apropriadas às locações (Catálogo da Mostra Luz e
Movimento — A fotografia no cinema brasileiro, Caixa Cultural do Rio de Janeiro,
janeiro de 2007).
7
Como se vê, Aronovich diz que Person tinha inspiração neo-realista e que,
com isso, ambos partiram para o esforço de trabalhar dentro das limitações, o que
7
Tentei inúmeras vezes entrar em contato com Aronovich através dos cinematógrafos Affonso Beato e
Carlos Ebert, seus colegas da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC), da qual faço parte, mas o
excesso de trabalho deste grande fotógrafo não permitiu uma resposta a tempo de ser incluída nesta
dissertação de mestrado. Nos dias que antecederam a impressão desta dissertação, troquei e-mails com
Aronovich, que solicitou material da época da filmagem, pois, infelizmente, não tinha nenhuma foto ao
lado de Person nem dos sets. Enviei algumas reportagens escaneadas — inclusive a da festa de
encerramento da filmagem, na casa de campo de Ana Esmeralda e Mário Audrá, onde estavam a esposa
e a filha de Aronovich (ver Capítulo 2) —, e ele agradeceu bastante emocionado.
10
6
comprova o grande esforço de produção para atingir os fins sem sacrificar as
propostas estéticas do filme.
8
1.11. A repercussão antecipada
Antes, muito antes da estréia no Olido, a organização da produção de São
Paulo Sociedade Anônima já chamava a atenção do meio cinematográfico e da
imprensa. Basta destacar as palavras de David E. Neves no Diário do Comércio de 26
de março de 1965: “A ousadia é tanto externa como imanente ao filme. Recém-
chegado da Europa, desconhecendo as reais condições da produção cinematográfica no
Brasil arma quase de imediato um plano de produção que redundará no seu filme.”
David Neves chega a destacar o press-book (assim mesmo, em inglês),
distribuído pela produção, o que parecia uma novidade para este tipo de produção.
Isso se repetiria na reportagem já citada da revista Visão de 11 de junho de
1965, com dados sobre a produção, no texto “São Paulo vista sem retoque” (ver
Capítulo 4). Sem assinatura, a revista abre com o seguinte parágrafo:
Os meios cinematográficos do Rio e de São Paulo tiveram sua atenção despertada
para o filme São Paulo Sociedade Anônima, que numa exibição particular
impressionou pelo tratamento ousado, pela forma dinâmica e moderna e pelo fato de
ser a primeira incursão sobre o problema urbano da capital paulista. A grande
protagonista do filme é a cidade de São Paulo, com seus edifícios, o lufa-lufa de sua
população, a vida noturna e a atmosfera cinzenta. Rodado em 88 ambientes
8
Para futuros pesquisadores, deixo a ficha que está publicada no catálogo da Mostra Luz e
Movimento. “Equipe — Diretor de Fotografia e operador de câmera: Ricardo Aronovich; Assistentes
de câmera: Hugo Kusnetzoff e João de Almeida, Eletricista: Ede Aguiar; Maquinista: José de
Almeida; Fotografia still: Hugo Kusnetzoff. Equipamento — Câmera Cameflex janela 1:1.66; Lentes
Cooke; Fotômetro Spectra (Luz incidente) e Spotmeter Pentax IV; Filtros Vermelho, Amarelo e Verde
— somente nas externas. Negativo/Laboratório — Suporte original 35mm; Suporte final 35mm;
Negativos utilizados P&B XX-Kodak; Laboratório Rex Filme S.A. São Paulo; Processos
laboratoriais: Levemente puxado; Gamma 0,70. Para mais informações técnicas sobre o método de
trabalho de Ricardo Aronovich, recomendo seu livro Expor uma história: a fotografia no cinema,
publicada pela editora Gryphus como parte da coleção ABC — Associação Brasileira de
Cinematografia, da qual ele faz parte.
10
7
diferentes na cidade e nas praias de São Vicente, São Paulo S. A. exigiu o
deslocamento diário de sua equipe, de bares para restaurantes e boites, de
residências para escritórios e fábricas (São Paulo vista sem retoque, Visão, 11 jun
1965, p. 63).
Ainda de acordo com a reportagem, o filme teria custado Cr$ 600 milhões.
Como já disse, em um país que viveu sucessivos surtos inflacionários, fica
difícil estabelecer valores exatos para o custo de produção e lançamento de um filme.
A seguir, nos Quadros 8 e 9, os cálculos da atualização monetária. Como
visto acima, na questão do orçamento, há fortes discrepâncias.
Quadro 8
Correção pelo IGP-DI (FGV) do custo de São Paulo Sociedade Anônima segundo a
revista Visão de junho de 1965
Dados básicos da correção pelo IGP-DI
Data inicial junho de 1965
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 600.000.000,00
Dados calculados
Índice de correção no período 30.199.961,9264939x10E6
Valor percentual correspondente 3.019.996.092,6493900x10E6 %
Valor corrigido na data final R$ 6.589.080,00
Fonte: http://www.portalbrasil.net/igp.htm.
Quadro 9
Correção pelo IPC-SP (Fipe) do custo de São Paulo Sociedade Anônima segundo a
revista Visão de junho de 1965
Dados básicos da correção pelo IPC-SP
Data inicial junho de 1965
Data final agosto de 2008
Valor nominal Cr$ 600.000.000,00
Dados calculados
Índice de correção no período 87.575.568,1885464x10E5
Valor percentual correspondente 8.757.556.718,8546400x10E5 %
Valor corrigido na data final R$ 1.910.700,00
Fonte: http://www.portalbrasil.net/ipc.htm.
Vamos relembrar: de acordo com a lista de acionistas, o filme teria custado em
algo entre R$ 2 milhões e 800 mil e R$ 9 milhões e 300 mil, o que seria um orçamento
108
atual intermediário. Por estes dados da revista Visão, o orçamento teria ficado entre R$
1 milhão e 900 mil e quase R$ 6 milhões e 600 mil. Na média entre estes valores, é
possível sugerir que o filme custou algo em torno de R$ 5 milhões, atualizados.
Figura 39. Relatório de distribuição de ganhos de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato
Magalhães Gouvea)
109
É importante lembrar que alguns sócios não entraram com dinheiro. Caso de
Mário Audrá, que ofereceu estúdios e equipamentos de sua produtora Maristela, e do
próprio Luiz Sérgio Person, que fez sua parte em trabalho. Várias locações também
não tiveram custo. Pelas lembranças de Renato Magalhães Gouvea e Glauco Mirko
Laurelli, pelo menos algumas foram: o apartamento de Carlos e Luciana e o
escritório e fábrica de Arturo Carracci (empréstimo de Luiz Person, pai de Luiz
Sérgio); a casa dos pais de Luciana (empréstimo de um dos acionistas).
Carros por empréstimo também foram utilizados. Caso do Kharman Ghia
roubado nas seqüências finais, que pertencia ao produtor Renato Magalhães Gouvea.
Da mesma maneira, foi usada a estratégia de merchandising, uma prática atual, na
qual o nome aparece em troca de um favor. Foi o caso da já citada casa de chá, onde
Ana e Carlos fazem a refeição (e o prato com o logotipo do estabelecimento aparece
em primeiro plano no início da cena) ou da placa no terreno da futura fábrica
Carracci, que foi feita e instalada pela empresa Novelli, cujo nome aparece em
destaque. Segundo Glauco, este merchandising foi conseguido pelo próprio Person
com um amigo que fazia parte da família proprietária da Novelli.
Estes custos não estão contabilizados no resultado final, o que faz deduzir que
o filme tenha custado algo em torno de R$ 5 milhões.
De acordo com a Revista do Geicine de 1961, citada por Simis (2008, p. 235),
a receita de bilheteria dos filmes brasileiros chegava a cerca de Cr$ 180 milhões.
Pelos cálculos da época, feitos por Geraldo Mayrink, na já citada matéria da
Revista de Cinema de Belo Horizonte, um filme que tivesse aceitação média poderia
lucrar Cr$ 150 milhões. Já um sucesso de bilheteria ultrapassaria Cr$ 200 milhões.
Se avaliarmos que São Paulo Sociedade Anônima custou Cr$ 600 milhões,
como afirma a revista Visão, este valor nunca foi alcançado. O produtor ainda guarda
cartas e documentos que mostram renegociações com juros e correção monetária
para alguns sócios. Entre os mais interessantes está um relatório de distribuição de
ganhos, feito pela Sòcine (ver Figura 39, na página anterior), que, infelizmente, não
tem data. Provavelmente é de 1966. Note-se os gastos com telefonemas e telegrama
para a Bulgária, para onde acabou sendo exportado. Mas chamo a atenção para a
cláusula 14, onde está estipulada a porcentagem a ser auferida pela Sòcine: 2%,
conforme cláusula 4ª, parágrafo 2º do contrato de participação. Infelizmente, sem
110
data, não consigo a tabela de conversão de valores. Outra curiosidade é a regravação
da banda sonora internacional, um cuidado só tomado por produtoras sérias.
9
1.12. A estratégia de divulgação nas palavras do produtor
Em depoimento para mim, gravado em março de 2008, o produtor Renato
Magalhães Gouvea explicou a estratégia até o lançamento do filme. Aqui faço um
rápido resumo de suas palavras.
Como já escrito, produtor e diretor combinaram fazer o primeiro lançamento
no exterior. Já no Brasil, uma das estratégias foi a de conseguir o apoio do governo
do Estado de São Paulo. Gouvea era amigo do secretário de Cultura, Turismo e
Esporte, o radialista Blota Jr., e de sua esposa, Sonia Ribeiro, presidente da
Sociedade Pestalozzi — entidade apoiada pela Construtora Magalhães Gouvea. Com
isso, conseguiu patrocínio para trazer atores norte-americanos que estavam
9
A título de curiosidade, o Prêmio Governador de Estado, entregue em 1966 para os filmes de 1964 e
1965, no Teatro da Record da rua da Consolação, foi acompanhado por cheques aos vencedores. Luiz
Sérgio Person ganhou Cr$ 250.000,00 pelo argumento e mais Cr$ 250.000,00 pelo roteiro de São
Paulo Sociedade Anônima. Ricardo Aronovich ganhou os mesmos Cr$ 500.000,00 pela direção de
fotografia do filme de Person e pelo de Ruy Guerra, Os fuzis. Já Glauco Mirko Laurelli levou Cr$
250.000,00 pela montagem no filme da Sòcine. Pelos índices da FGV, Cr$ 250 mil significariam hoje
por volta de R$ 1.792,78; pelos da Fipe, algo em torno de R$ 486,58. Na mesma solenidade,
ganharam Flávio Tambellini pela produção do filme O beijo, Anselmo Duarte pela direção de Vereda
da Salvação, Reginaldo Farias como autor dos filmes Selva trágica e O beijo, Rodolfo Mayer como
ator em Viagem aos seios de Duília, Fernanda Montenegro pela sua atuação em A falecida, o maestro
Diogo Pacheco pela música de Vereda da Salvação, Joana Fomm como atriz coadjuvante de Crime de
amor e Nelson Xavier como coadjuvante em Os fuzis. Além disso, foi dada a Menção Honrosa para o
produtor Thomaz Farkas, pelos documentários Memórias do cangaço, Viramundo, Subterrâneos do
futebol e Escola de samba. Esta lista mostra um breve painel do que se produzia em cinema no Brasil.
Entre todos eles, certamente São Paulo Sociedade Anônima e Os fuzis e o documentário Viramundo,
de Geraldo Sarno, são os que tiveram maior sobrevida para a crítica e os estudiosos, assim como para
futuros cineastas. A falecida, de Leon Hirszman, também considerado um clássico, não tem a mesma
repercussão (nem é considerado a maior obra do cineasta), enquanto O beijo e Vereda da Salvação
ficaram como filmes datados. Confesso que nunca tinha ouvido falar de Viagem aos seios de Duília,
de Carlos Hugo Christensen, adaptado por ele e Orígenes Lessa e baseado na obra de Aníbal
Machado. No elenco, também estava Nathalia Thimberg.
111
participando de um Festival de Cinema no Rio de Janeiro. E, apesar do filme citar
textualmente a Volkswagen, conseguiram o apoio da Simca Chambord, uma das
marcas estrangeiras que havia se instalado em São Paulo. Foram emprestados 20
automóveis com motorista para que os convidados circulassem pela cidade.
Duas emissoras de televisão transmitiram a festa de pré-lançamento: Record e
Tupi. O apresentador Murilo Antunes Alves, da TV Record, transmitiu ao vivo do
palco do cine Olido. A equipe da TV Tupi recebia os convidados na sala de espera,
com entrevistas ao vivo. Na platéia, um canhão de luz — que Gouvea imitou do
Olympia de Paris — girava o foco entre o público para que o apresentador do palco
fizesse perguntas. Era um marketing agressivo para o cinema nacional da época, como
comprova o balão com a propaganda do filme que ficou suspenso por uma semana no
largo do Paissandu, centro da cidade. “Então, no dia da estréia, foi uma enchente. Aí
ficou um mês no Olido, sempre lotado. E aí que a Columbia deu o golpe”.
O produtor recorda-se que ele e Person tiveram uma grande dúvida sobre a
distribuição do filme. A primeira opção seria entregar para a empresa de Aníbal
Massaini, da Cinedistri, uma das maiores distribuidoras brasileiras. Mas como
queriam lançá-lo no exterior, optaram pela Columbia.
Não sabíamos que eles iam nos passar uma rasteira. Era o senhor Paulo Fuchs, o
diretor no Rio de Janeiro. Ele se interessou muito. O nosso erro foi deixarmos o Aníbal
Massaini, que era nosso amigo, e estava distribuindo os filmes brasileiros. Foi o nosso
erro. Assinamos um contrato que dizia que se o filme, depois de uma semana, não
atingisse determinado público, eles podiam tirar de cartaz. Pois ele lança esse filme no
Rio de Janeiro, no final de novembro, sem avisar, sem propaganda, sem nada. Aí que
percebemos o golpe. Foi num cinema na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Isso
foi uma bomba completa. Porque a gente contava com aquela receita do Rio de
Janeiro. E o Rio de Janeiro, nada. E com isso, conseguimos apenas devolver o dinheiro
para as pessoas que tinham financiado. Mas não deu lucro nenhum (depoimento de
Renato Magalhães Gouvea, concedido ao autor em 7 abr 2008).
Para compensar os acionistas, Gouvea diz que foi ao diretor cultural do
Itamarati e contou a história do atraso da remessa da cópia do filme para o Festival
de Pesaro. Com isso, o Ministério das Relações Exteriores encomendou o
documentário Esportes no Brasil, para mostrar as vitórias do Brasil nas Copas de
1958 e 1962, no tênis com Maria Ester Bueno, no boxe com Éder Jofre, entre outros.
112
Person não teve interesse em dirigir. O filme acabou sendo realizado por Maurice
Capovilla e é, até hoje, inédito para o grande público. A proposta é que o filme fosse
distribuído entre as embaixadas brasileiras pelo mundo. Mas Gouvea não sabe se isso
de fato aconteceu. Ele tem uma cópia e deve doá-la para a Cinemateca Brasileira.
1.13. A seqüência de festivais e mostras internacionais
Cópias de São Paulo Sociedade Anônima foram legendadas em três línguas,
conforme material de arquivo de Renato Magalhães Gouvea (páginas datilografadas
para posterior digitação), que eu mesmo conferi: em inglês, com o título São Paulo
Co. Ltd.; em francês, como São Paulo Societé Anonyme; e em espanhol, como San
Pablo Sociedad Anónima.
Não se sabe ao certo para quais países foi exportado. Uma nota da alfândega
comprova que foi enviado para a Bulgária.
Depois, o filme passou a ser exibido em mostras do Cinema Novo. Assim foi
em Cannes, ainda em 1965, e na Alemanha, em 1966, onde participou da
Retrospektive Filmhistorische Vorführungen der Internationalen Filme Festispiele
Berlin. Em artigo para o boletim do evento, intitulado “Cinema Novo”, David E.
Neves descreve os filmes da retrospectiva e cita, entre outros, Rio 40 graus (1955), de
Nelson Pereira dos Santos, Cinco vezes favela (1962), de Joaquim Pedro de Andrade,
Miguel Borges, Carlos Diegues, Marcos Farias e Leon Hirszman, Os cafajestes (1962),
de Ruy Guerra, e O desafio (1965), de Paulo César Saraceni. Para o filme de Person,
guarda as seguintes palavras: “Ein bezeichnender Fall dafür ist Luiz Sergio Persons
São Paulo S. A. (São Paulo Anonyme Gesellschaft; 1965): ein Mann in einer ganz
persönlichen Krise, die nirgends motiviert wird, keine soziale Ursache hat” (em
tradução livre, “Um caso significativo é São Paulo Sociedade Anônima, de Luiz Sérgio
Person: um homem, em crise personalíssima, sem rumo e sem motivação social”).
Depois de Pesaro e Berlim (ainda em 1965), São Paulo Sociedade Anônima
seguiu carreira internacional. Seu próximo e último festival foi em Acapulco, no
México, onde também foi premiado. De acordo com o jornal O Globo, de 6 de
dezembro de 1965, o filme brasileiro recebeu distinção especial “pela busca de nova
linguagem de expressão cinematográfica”. O nome do prêmio era Cabeza de Palenque.
113
Desta viagem, também participaram os atores Walmor Chagas e Eva Wilma, assim
como Luiz Sérgio Person e o produtor-executivo, Nelson Mattos Penteado.
A partir daí, teve inicio a uma extensa participação em mostras. No exterior,
foi o caso de Cannes, em 1971. E de Reseña de las Reseñas, organizado pela
Cineteca Nacional do México em 1987, para apresentar os filmes mais importantes
que foram premiados entre 1958 e 1968. Em 1998, o filme foi apresentado numa
mostra de cinema brasileiro organizado pelo Museu de Arte Moderna (Moma) de
Nova York.
Aqui no Brasil, participou de todas as retrospectivas que são organizadas
sobre a cinematografia nacional, inclusive as mostras comemorativas sobre os 70, os
80, os 90 e os 100 anos do cinema brasileiro, que foram iniciadas pela Embrafilme.
Até os dias de hoje — e como já antecipara a introdução da entrevista de O
Pasquim —, o primeiro filme de Luiz Sérgio Person é eleito pela crítica como um
dos dez melhores da história do cinema brasileiro. Em 2008, o crítico Cléber
Eduardo escreveu para o site da revista Paisà que o filme havia subido na lista dos
preferidos. O motivo seria uma nova geração de críticos que já não tem compromisso
com o “cinemanovismo” e, também, o crescimento de votantes oriundos da cidade de
São Paulo.
114
115
Capítulo 2
PROMOÇÃO:
o filme visto pela imprensa
Primeiro de maio de 1964. O primeiro Dia do Trabalho já sob o regime
militar. E o primeiro dia de trabalho da equipe de filmagem de São Paulo Sociedade
Anônima.
Uma impressionante série de notas e de reportagens acompanhou todo o
processo de filmagem de São Paulo Sociedade Anônima, desde as assinaturas dos
contratos dos atores até as cenas que ocuparam espaços públicos, como a praça da
República. O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Última Hora (São Paulo),
Última Hora (Rio de Janeiro), Notícias Populares, A Gazeta, A Gazeta Esportiva,
Diário de S. Paulo, Diário Popular, Diário da Noite, Diário Carioca, Diário de
Notícias, O Dia (São Paulo), Correio da Manhã, Jornal do Brasil, O Globo e as
revistas Cinelândia, Claudia, Visão e Contigo, entre outras, deram grande destaque
para todo processo de filmagem.
Para melhor compreensão do método utilizado pela assessoria de imprensa da
Sòcine, sugiro a consulta ao Anexo 5, que traz o release de três páginas com vários
temas a serem abordados pelos jornalistas, assim como fotos de divulgação com
texto no verso.
Antes de apresentar uma seqüência cronológica destas notas, inicio por uma
reportagem que saiu em uma revista que, infelizmente, não consegui identificar.
Provavelmente foi publicada entre julho e agosto de 1964, logo após o encerramento
da filmagem. Chamo a atenção porque, apesar de não levar a assinatura de um
crítico, demonstrava certa insatisfação da maioria dos espectadores com os temas
recorrentes do cinema nacional. A grande reportagem, com quatro páginas e cinco
fotos (ao lado de uma propaganda da revista Destino, que publicava fotonovelas)
trazia um texto bem interessante, com a manchete “SÃO PAULO S. A. — O FILME
DA GENTE ANÔNIMA”.
11
6
São Paulo é o cenário do primeiro filme brasileiro a retratar objetivamente as
condições de vida nas grandes cidades, rompendo, portanto com o cinema novo — que
tem dado preferência aos assuntos regionais, principalmente o Nordeste — mas ao
mesmo tempo fazendo parte do cinema novo pelos seus recursos de filmagem
(tomadas ao ar livre, iluminação direta, câmara na mão) e pelas suas intenções (o
máximo de seriedade com o máximo de simplicidade). [...] O DRAMA DE CADA
UM. A ação transcorre entre 1957 e 1961, durante o surto industrial automobilístico
que deu a São Paulo o apelido de Detroit brasileira. É um retrato panorâmico de certas
características da classe média paulista, que tem seus próprios problemas, mas que, no
fundo, não deixa de pertencer à extensa classe média brasileira, espalhada pelo resto
do país. Esse tipo de pessoas vinha sendo ignorado pelo cinema brasileiro, ao contrário
do que sempre aconteceu em outros países, voltados principalmente para o típico
homem-comum. Um rápido exame da história do cinema brasileiro nos mostra que a
classe média nunca foi motivo de interesse dramático. Nossos filmes de asfalto, com a
possível exceção de Amei um bicheiro (1953), contam histórias policiais (Mulheres e
milhões, Assalto ao trem pagador) ou tratam de problemas morais de gente muito rica
(A ilha). A maioria do povo, porém, não pratica assaltos nem é muito rica; num certo
sentido, as populações das cidades não vêem nenhuma relação entre suas vidas e as
que o cinema brasileiro lhes tem mostrado.
Na seqüência, contava a experiência profissional de Person e do elenco, para
finalizar: “É esse grupo que espera ter começado uma nova tendência do cinema
brasileiro, o filme urbano.”
11
7
Figuras 40 e 41. Revista revela o “clima” do filme de Person (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
2.1. Notas e reportagens em série
Como observei no inicio da dissertação, a primeira delas, no dia 10 de abril,
em O Estado de S. Paulo, anunciou o início das filmagens para dia 25 de abril (ver
Figura 1 na Introdução). Mas logo a seguir, no dia 1º de maio, corrigiu a informação
(ver Figura 43, mais adiante).
• 12 de abril de 1964. O Estado de S. Paulo. Uma coluna de arte reunia notas
sobre diferentes áreas, do IV Festival de Cinema da Argentina até a exposição de Di
Cavalcanti no Museu de Arte Contemporânea (MAC).
Novo filme começará a ser rodado na cidade. Trata-se de São Paulo Sociedade
Anônima, do cineasta Luiz Sérgio Person, antigo aluno do Centro Experimental do
Cinema Italiano, que terá como intérpretes principais Eva Wilma, Ana Esmeralda,
Walmor Chagas e Otelo Zeloni.
118
• 23 de abril de 1964. Última Hora. Coluna Rádio & TV, de Ari Torres.
Marisa Reynaud (ex-Woodward) não aceitou a proposta de Sergio Person para
filmar “São Paulo Sociedade Anônima”. Um dos motivos: seu contrato com a
televisão. 64 vai ser o ano desta moça.
• Sem data. O Estado de S. Paulo. Coluna Cinenotícias.
SERGIO PERSON apresentou anteontem à imprensa o elenco de “São Paulo S/A”.
Nela, Valmor [sic] Chagas estréia como protagonista, ao lado de Eva Vilma [sic].
• Sem data. Diário de S. Paulo. NOVO FILM PARA EVA WILMA.
Acompanhado de foto da atriz com o produtor Renato Magalhães Gouvea, o jornal
anunciava (ver Figura 42, a seguir):
Eva Wilma, a querida estrela do canal 4, onde atua ao lado de seu marido John
Herbert em “Alô Doçura”, acaba de firmar contrato com a Socine Produções
Cinematográficas para interpretar o principal papel de “São Paulo Sociedade
Anônima”, comédia de costumes que tem como pano de fundo a metrópole
paulistana e os problemas humanos criados pela situação econômica e social da
cidade que mais cresce no mundo. Vemos no flagrante o momento da assinatura do
contrato em que Eva Wilma é assistida por Renato Magalhães Gouvêa, diretor de
produção da Socine Produções Cinematográficas. Eva Wilma estará quarta-feira, às
17,30 horas no conjunto Metropolitano, no Mon Drinks, recepcionando a imprensa
numa entrevista coletiva onde serão apresentados o elenco e os planos de trabalho de
mais esta produção do cinema brasileiro.
119
Figura 42. Divulgação toma conta dos jornais (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
120
• 1º de maio de 1964. O Estado de S. Paulo. INÍCIO HOJE DE NOVA FITA
PAULISTA. Uma coluna comprida, com uma foto de Person na Itália, de terno e
carregando uma câmera de filmar, praticamente “inaugurava” a produção do filme.
Com uma pequena informação errada: o primeiro longa de Person foi finalizado e
assinado por outro diretor. E ainda confundia o papel de Carlos, ao chamá-lo de
“play-boy”, talvez pelo fato de trazê-lo acompanhado por três mulheres.
Nova fita paulista será iniciada hoje: ‘São Paulo S/A’, produção da “Socine Produções
Cinematográficas”, de Nelson Matos Penteado e Renato Magalhães Gouvêa. A fita
marca a volta de Luiz Sérgio Person ao nosso País e à direção de longa-metragem.
Person anos atrás havia realizado uma comédia — “Um Marido para Três Mulheres”
— com Ronald Golias, a falecida Maria Vital e Augusto Machado Campos. Este filme
não chegou a ser lançado e, tempos depois, o jovem realizador seguia para um estágio
no Centro Experimental de Cinema em Roma, onde teve oportunidade de fazer parte
de um grupo orientado pelo diretor Luigi Zampa e, mais tarde, de realizar um
documentário de curta-metragem intitulado “Il Ladro”, que aliás trouxe consigo para
apresentação em nossos cineclubes. Em “São Paulo S/A.”, Luiz Sérgio Person é
também autor da história e do roteiro. A fita terá fotografia do argentino Ricardo
Aronovitch, assistência cenográfica, de maquilagem e indumentária a cargo de Jean
Laffont e a montagem entregue ao experimentado técnico e realizador Glauco Mirko
Laurelli. A história gira em torno das andanças de um candidato a “play-boy”, papel
que foi entregue ao ator teatral Walmor Chagas. Será “rodada” em 45 locais
autênticos, entre estes o João Sebastião Bar, rua Augusta etc. Eva Wilma, a espanhola
Ana Esmeralda e a estreante Darlene Glória (garota-propaganda da TV carioca) serão
as mulheres na trajetória do herói. Outros intérpretes: Otelo Zeloni, Osmano Cardoso,
Georges Mantner, Cecília Rabelo. Possivelmente ainda Ingrid Thomas e, no papel de
um operário, o ator Sergio Hingst.
121
Figura 43. Jornal anuncia o começo das filmagens de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
122
• 7 de maio de 1964. A Gazeta Esportiva. ANA ESMERALDA VOLTA AO
CINEMA “ESTRELANDO” “SÃO PAULO S. A.”. Uma enorme foto de Ana
Esmeralda, promocional, numa pose de balé, dava um destaque para o filme de
Person (ver Figura 44, a seguir). Na mesma página, o jornal de esportes diz que “a
película mais aplaudida no Festival Cinematográfico de Cannes foi a norte-
americana ‘Uma batata, duas batatas’, primeira obra de Larry Peerce”. Também
publicava a negativa de Federico Fellini dirigir filmes nos Estados Unidos, depois de
ter ganhado o Oscar de melhor filme estrangeiro por 8 e ½, e trazia uma lista de
filmes “interditados e apreendidos” pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas.
Entre eles, Vida, paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e Noturnas de prazer.
Entre os protagonistas principais escolhidos para estrelar o filme “São Paulo
Sociedade Anônima” destacamos o nome de Ana Esmeralda, conhecida atriz do
cinema espanhol, radicada no ambiente cinematográfico paulistano, onde é figura de
proa da 7ª arte. Dirigido por Luiz Sergio Person, jovem cineasta que voltou
recentemente da Itália, onde cursou o Centro Experimental de Cinematografia e
dirigiu vários documentários. “São Paulo Sociedade Anônima” é um filme que usa a
cidade que mais cresce no mundo como pano de fundo para acontecimentos que
dramatizam aspectos característicos da metrópole paulistana. Com efeito, a cidade é
tão vedeta, no filme, quanto Ana Esmeralda, Eva Wilma, Otelo Zeloni, Walmor
Chagas e Darlene Glória, o quinteto de frente no elenco de mais esta produção
nacional, ora em fase de início de rodagem. Com efeito, para comemorar este evento
é que Ana Esmeralda, em nome do elenco de “São Paulo Sociedade Anônima”
reuniu ontem o colunismo de cinema da praça para um coquetel que aconteceu no
“Mon Drink”, na Galeria Metropolitana, quando Luiz Sérgio Person expôs à crônica
de São Paulo os planos de trabalho de mais esta realização do cinema brasileiro.
123
Figura 44. Divulgação destaca o trabalho de Ana Esmeralda (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 7 de abril de 1964. Jornal não identificado.
Durante o coquetel que marcou o inicio das filmagens de “São Paulo S. A.”,
realizado anteontem aproveitamos uns instantes para um papo com Otelo Zeloni que
desempenhará destacado papel na película. Perguntamos-lhe se tinham fundamento
os boatos segundo os quais deixaria o Canal 7, transferindo-se para outra emissora
da capital. O conhecido ator respondeu-nos que não e explicou. Aproxima-se o fim
de seu contrato com a Record, daí a história toda, mas o mesmo será renovado. E
para o próximo período Zeloni já começou a trabalhar, traduzindo um seriado
italiano que interpretará e produzirá. É a história de um homem comum, na luta do
dia a dia, vivendo situações diversas.
124
• 7 de abril de 1964. Notícias Populares. FILME.
Em coquetel simples realizado na tarde de ontem no barzinho Mon Drink, do Centro
Metropolitano de Compras, as estrelas Eva Wilma, Darlene Glória, uma moça
encantadora, Ana Esmeralda e os astros Walmor Chagas e Zeloni apresentaram os
planos do filme “São Paulo S/A” que o diretor Luiz Sérgio Person começou a rodar
em nossa cidade.
• 12 de abril de 1964. A Gazeta Esportiva. DARLENE, QUE COMEÇOU
NO TEATRO DE REVISTA, É AGORA DA TV E DO CINEMA.
Darlene Glória, a bonita loira que enfeita hoje este nosso cantinho teatral, depois de
se firmar no teatro de revista, abrir caminho na televisão, partindo, agora, para uma
carreira também no cinema, ao firmar contrato para formar no elenco da película que
já começou a ser rodada em nossa Capital, sob o título “São Paulo S. A.”, que reúne
em seu elenco nomes de projeção no mundo artístico nacional como: Walmor
Chagas, Eva Wilma, Ana Esmeralda e Otelo Zeloni.
• 14 de abril de 1964. Diário da Noite. Coluna Movietone. WALMOR
CHAGAS CONTRATADO PARA ESTRELAR “SÃO PAULO SOCIEDADE
ANÔNIMA”.
“São Paulo S/A” é um filme que se desenvolve ficticiamente entre os anos de 1957 e
1961, tendo como “background” o impulso industrial ocasionado pelo surgimento de
fábricas de automóveis e indústrias de autopeças. Dentre os personagens criados por
Luiz Sérgio Person ao escrever a história, um deles se ajusta perfeitamente a Walmor
Chagas, figura de proa do elenco do Teatro Cacilda Becker. Por isso, os responsáveis
pela Socine Produções Cinematográficas não mediram esforços para contratar o jovem
ator, conseguindo-o conforme vemos na foto acima, no momento da assinatura do
contrato em que Walmor é assistido pelo produtor do filme, sr. Renato Magalhães
Gouvêa, que se inicia nas lides cinematográficas com esta realização do jovem diretor
Luiz Sérgio Person, autor de vários documentários na Itália, onde cursou o Centro
Experimental de Cinematografia. “São Paulo S/A.” já está sendo rodado, tendo como
ambiente ruas e locais pitorescos da Capital paulistana.
125
• 15 de abril de 1964. A Gazeta Esportiva. Em nota que descreve a carreira de
Otelo Zeloni no teatro, o jornal diz que Zeloni iria estrear em julho no Teatro Cacilda
Becker, “vivendo um dos principais personagens do filme São Paulo S. A.”. Uma
foto com Eva Wilma encabeça a pequena reportagem.
• 17 de abril de 1964. Folha de S. Paulo. Ilustrada. GLÓRIA NO CINEMA.
Darlene Glória, estrela de TV da Guanabara, aparece no flagrante acima, ao lado do
produtor Renato Magalhães Gouvea, assinando o contrato para sua participação no
filme “São Paulo S. A.” que está sendo rodado nas ruas da capital paulista por Luiz
Sérgio Person e sua equipe. Jovem, loura e esbelta, Darlene Gloria promete fazer
carreira no cinema, conforme vêm demonstrando os copiões das primeiras cenas já
realizadas ao lado de Walmor Chagas e Otelo Zeloni.
• 19 de abril de 1964. Diário da Noite. SÃO PAULO É CENÁRIO DE
OUSADA PELÍCULA NACIONAL. Em meia página, com duas fotos de Walmor
Chagas deitado na cama com Ana Esmeralda e na praia com Darlene Glória, o jornal
destacava as filmagens da equipe de Person.
Hoje é comum ao paulistano encontrar na rua Barão de Itapetininga, praça Ramos de
Azevedo ou rua São Luís uma equipe de cinegrafistas ocupada na faina de realizar
uma película que, sem ser um documentário, procura dramatizar aspectos
característicos da metrópole paulistana. Por isso, São Paulo é um dos personagens
principais de “São Paulo Sociedade Anônima”, filme cujo argumento, roteiro e
direção são de Luiz Sérgio Person, jovem diretor formado no Centro Experimental
Cinematográfico de Roma, onde realizou vários documentários bem recebidos pela
crítica do Velho Mundo. Desenrolando-se ficticiamente entre os anos de 1957 e
1961, o filme tem como “leitmotiv” o desenvolvimento industrial ocasionado pelo
surgimento das fábricas de automóveis e indústrias de autopeças. Um dos
personagens, diretor de indústria, procura identificar-se com a cidade em que vive e
compreender as razões da sua existência. É ele interpretado por Walmor Chagas, que
tem a felicidade de contracenar com Ana Esmeralda, renomada atriz espanhola, e
Darlene Glória, uma novata egressa da televisão onde era figura de proa nos shows
cariocas. Os três vivem audaciosas cenas de amor nas quais o diretor exigiu o
máximo de realismo, atingindo às raias do insólito pela audácia e coragem com que
obrigou os personagens a retratarem momentos de incontida paixão.
12
6
• 19 de abril de 1964. A Gazeta Esportiva. “SÃO PAULO S. A.”. UMA
PRODUÇÃO QUE IRÁ RETRATAR A METRÓPOLE PAULISTANA, COM
WALMOR CHAGAS, DARLENE GLÓRIA, JOHN HERBERT, EVA WILMA,
OTELO ZELONI E ANA ESMERALDA. Apesar do deslize de colocar o então
marido de Eva Wilma no elenco do filme, o jornal publicava uma foto de Darlene e
Walmor na cena em que a personagem Ana visita a mãe.
Walmor Chagas e Darlene Glória participam das primeiras filmagens já realizadas
de “São Paulo Sociedade Anônima”, película que Luiz Sérgio Person está rodando
nas principais ruas de nossa Capital, já que São Paulo tem importante participação
no enredo deste filme atrevido e insólito que procura retratar na tela aspectos
característicos da metrópole paulistana. O surto industrial e de prosperidade causado
pela implantação da indústria automobilística e de autopeças gera os conflitos
humanos e emocionais de “São Paulo Sociedade Anônima”, um filme que desde já
começa a despertar a curiosidade do paulistano, pois raro é o dia que não
encontramos sua equipe em plena faina de trabalho nas ruas da cidade que mais
cresce no mundo.
• 25 de abril de 1964. Diário da Noite. “SÃO PAULO SOCIEDADE
ANÔNIMA”. A legenda de uma foto de Walmor e Darlene no trem informa que seus
personagens vivem um “amor proibido” (ver Figura 45, a seguir).
Em “São Paulo Sociedade Anônima”, película que Luiz Sérgio Person está rodando
nas ruas da Capital paulistana, Walmor Chagas e Darlene Glória representam dois
jovens apaixonados que vivem um amor proibido. Não obstante os problemas de sua
situação não legalizada e a necessidade de se refugiar para viver os momentos de
amor, o tédio da vida quotidiana os domina inteiramente, constituindo motivo para a
ação dramática criada pelo diretor neste filme que aborda os problemas surgidos
numa cidade grande como São Paulo com a repentina prosperidade formada pelo
surto da indústria automobilística e fabrica de autopeças. Além de Walmor Chagas e
Darlene Gloria, Eva Wilma, Ana Esmeralda e Otelo Zeloni participam da trama
dramática deste filme, cujo roteiro e argumento, além da direção, são de autoria de
Luiz Sérgio Person, jovem recém-chegado da Itália, onde cursou o Centro
Cinematográfico Experimental de Roma.
12
7
Figura 45. Noticiário destaca as filmagens do filme de Person (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• Sem data. Jornal não identificado. EVA É MULHER DE WALMOR EM
“SÃO PAULO S/A”. Com uma grande foto dos cinco atores no escritório de Renato
Magalhães Gouvea, após assinarem os contratos, a notícia também anunciava o
início da filmagem.
Walmor Chagas é um rapaz desanimado. O tipo do paulistano nascido depois de 30,
cansado de trabalhar, de viver, de lutar por uma melhoria de situação financeira, sem
tempo para dedicar a outras atividades que não sejam seu trabalho, comer, dormir e
correr. Mas Walmor só é desanimado em “São Paulo Sociedade Anônima”. Fará o
principal papel do filme cujo elenco foi apresentado em um coquetel. Segundo seu
diretor, Paulo [sic] Person, “São Paulo S/A” pretende transferir para São Paulo o
centro cinematográfico do Brasil, pois “cinema brasileiro está sendo feito do Rio
para cima, principalmente na Bahia”.
O FILME
O argumento é do próprio Sergio e o elenco é completado por Eva Wilma (esposa de
Walmor no filme), Zeloni (industrial enriquecido com uma fábrica de autopeças),
Darlene Glória (moça que quer ficar rica de qualquer maneira) e Ana Esmeralda. O
filme retrata a vida de São Paulo de 57 a 61, época do grande progresso da indústria
automobilística. Não tem pretensão de levar qualquer mensagem — seu diretor
preocupou-se “unicamente em mostrar a vida da classe média paulistana, em uma
visão panorâmica”. A fita será produzida pela Socine Produções Cinematográficas,
companhia recém-fundada, e as filmagens iniciam-se brevemente.
128
• 4 de junho de 1964. Última Hora (Rio de Janeiro). Coluna Cine-Ronda, de
Luiz Alípio de Barros. Em meio a muitas informações sobre filmes brasileiros —
inclusive o lançamento de Deus e o diabo na terra do sol —, um pequeno destaque:
A bonita Darlene Glória da TV carioca, em São Paulo, fazendo um dos papéis de “São
Paulo Sociedade Anônima”, fita que está sendo dirigida pelo jovem Sérgio Person.
• 7 de junho de 1964. Diário Carioca. SÃO PAULO S. A. O beijo entre
Walmor e Darlene, deitados na grama, é destacado no jornal do Rio de Janeiro. A
legenda traz a ficha técnica do filme (ver Figura 46).
O título é justamente “São Paulo Sociedade Anônima”. Filme que vai ser
apresentado em outubro, pois ainda está sendo rodado. A produção é da Socine
Filmes, de Renato Tavares de Magalhães Gouvêa e a direção de Luiz Sérgio Person.
Trabalham no filme Ana Esmeralda, Eva Wilma, Walmor Chagas, Zeloni e a
película faz o lançamento da ex-vedeta Darlene Glória, uma das mais bonitas caras
da televisão. A foto é uma seqüência de “São Paulo S. A.”, com Walmor e Darlene.
Figura 46. O sensualismo em São Paulo Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
129
• 9 de junho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio Loyola. Com as mesmas informações da edição carioca, o jornalista traz uma
notícia mundana.
Sergio Person jantando com o diretor do Oficina, José Celso M. Correia. Este parti
em outubro para a Europa, em bolsa de estudos.
• 10 de junho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Show & Gente, de
Jô Soares. O humorista da televisão e do cinema brincava com dois filmes
paulistanos.
DARLENE GLÓRIA está fazendo beicinho, porque ela não gosta desta foto sua e eu
a publico. É cena de “São Paulo Sociedade Anônima”, um filme de Person. Darlene
é da televisão carioca e um sucesso atualmente.
DO MEU CADERNINHO PRETO: Depois de “Noite Vazia”, Khouri ainda não
sabe o nome que dará ao seu primeiro filme. Talvez opte por “Dia Cheio”.
Figura 47. Jô Soares faz provocação com Darlene Glória (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
130
• 18 de junho de 1964. Diário da Noite (1ª edição). Coluna Movietone. ANA
ESMERALDA É ESTRELA DE “SÃO PAULO S. A.”.
“Estrela” de primeira grandeza no cinema espanhol, onde já foi a heroína de mais de
duas dezenas de filmes, Ana Esmeralda está outra vez no Brasil, onde tem seu lar,
pois é casada com o produtor de cinema brasileiro Mario Audrá Jr. A bela estrela
espanhola está interpretando um dos principais papéis femininos de “São Paulo S.
A.”, uma produção da Socine — Produções Cinematográficas dirigida por Luiz
Sérgio Person. A figura que vive é de uma jovem intelectual, sempre insatisfeita, à
procura de algo de novo, que talvez se chame amor. “São Paulo S. A.” está sendo
rodada nas ruas, fábricas e logradouros públicos da Paulicéia, devendo estar pronta
para exibição em fins de outubro do ano corrente. Na foto, Ana Esmeralda, em uma
das cenas de “São Paulo S. A.”, filmada no interior de um museu, tendo como fundo
um dos famosos quadros de Lazar Segall.
• 22 de junho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. O destaque do jornalista era para o filme Selva trágica, de
Roberto Farias, que tinha sido convidado para participar do Festival de Veneza. E
entre as notinhas, mais uma chamada sobre as filmagens.
Person ativo na filmagem de “São Paulo Sociedade Anônima”. Na sexta-feira,
organizou animado “réveillon” na buate “Vogue”. Não para se divertir. É uma cena
da fita. Ele deveria, inicialmente, rodá-la no “Snobar”, mas os espelhos
atrapalhavam muito. Pensou depois no “L’Amour” e terminou na “Vogue”, ali na
Praça Roosevelt.
• 25 de junho de 1964. O Dia (São Paulo). Coluna Quem Comanda é Eva, de
Paula Léia. A seção dedicada à moda destacava o filme de Person (ver Figura 18, na
Introdução).
MODA E CINEMA. Pela primeira vez na história do cinema brasileiro, um nome da
alta costura prepara um guarda-roupa inteiro para ser usado por três estrelas em um
filme. O nome da alta costura é Tomaso, e o filme “São Paulo S. A.” e as estrelas
são Eva Wilma, Ana Esmeralda e Darlene Glória, três tipos diferentes tanto física
como mentalmente. Com seu espírito criador, Regina Tomaso apreendeu cada
131
característica dos personagens vividos pelas três interpretes de “São Paulo S. A.”
criando trajes especialmente adequados às figuras por elas vividas, respectivamente
uma jovem casadoira da classe média, uma intelectual que deposita no amor suas
melhores perspectivas de vida e uma cavadoura de ouro, decidida a fazer carreira
sem olhar os meios.
• 25 de junho de 1964. A Gazeta. Legenda de foto:
Eva Wilma e Walmor Chagas em “São Paulo S. A.”, película que Luiz Sérgio
Person anda rodando nas ruas da Capital. Walmor interpreta um jovem ambicioso,
momentaneamente desiludido com a vida. A cena focalizada na foto narra o
encontro de Walmor com Eva numa escola de inglês.
Figura 48. Todos os jornais repercutem as filmagens de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
• 26 de junho de 1964. Diário da Noite (1ª edição). Coluna Zig-Zag. UM
TRAVELING PARA UMA CENA DE “SÃO PAULO S. A.”. Legenda de foto:
Muito esforço e horas de cuidadosa preparação são necessários para a realização de
uma tomada de cena de um filme, que às vezes na tela tem duração mínima. Para
fazer um “traveling” (câmera andando) os esforços são redobrados, conforme se vê
nesta foto tomada durante a preparação de uma das cenas de “São Paulo S. A.”,
132
realização da Socine Produções, realizada dentro de uma fábrica de automóveis. Os
dois longos trilhos de madeira compensada servem para evitar o balanço do carrinho
da câmera, que deslizará sobre eles, para dar uma vista panorâmica do interior de
uma fábrica de automóveis. O diretor Luiz Sérgio Person e o diretor de fotografia
Ricardo Aronovich, com seus assistentes, nesse momento já estão quase prontos
para a ordem de “Ação!”.
• 27 de junho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola.
Pela segunda vez no cinema brasileiro, um nome da alta costura preparou um
guarda-roupa inteiro para ser usado por três estrelas em filme. Ele é Tomaso, e o
filme é “São Paulo S. A.”. As estrelas são Eva Wilma, Ana Esmeralda e Darlene
Glória, três tipos que diferem entre si. Regina Tomaso apreendeu cada característica
dos personagens vividos pelos interpretes criando trajes especialmente adequados às
figuras por elas vividas; Eva Wilma, uma jovem de classe-média; Ana Esmeralda,
uma semi-intelectual, que deposita no amor suas melhores esperanças e Darlene
Glória, uma cavadoura de ouro, decidida a fazer carreira sem olhar os meios.
• 27 de junho de 1964. Folha de S. Paulo (edição matutina). Legenda de foto:
“SÃO PAULO S/A” — Vivendo a figura torturada de Hilda, jovem semi-intelectual
que deposita suas melhores esperanças no amor, Ana Esmeralda volta a filmar no
Brasil, depois de longa ausência, pois esteve na Espanha onde fez teatro e duas
películas. “São Paulo S/A”, da Socine Produções, sob a direção de Luiz Sérgio
Person está sendo rodado nas ruas e fábricas desta capital. O entrecho mostra um
panorama da nossa sociedade atual.
• 1º de julho de 1964. A Gazeta. Uma foto na vertical, com uma mulher de
corpo inteiro, cabelos negros arrumados, vestido, écharpe e bolsa na mão, como se
fosse personagem de coluna social, acompanha um pequeno texto:
“SÃO PAULO S. A.” — Ana Esmeralda, estrela do cinema espanhol, radicada
entre nós, tem um dos principais papéis em “São Paulo S. A.”, da Sócine Produções,
sob a direção de Luiz Sergio Person.
133
• 2 de julho de 1964. Última Hora. Numa espécie de making of, a edição de
domingo do jornal paulista comandado por Samuel Wainer ocupou quase duas
páginas, com grandes fotos, para mostrar a filmagem de algumas cenas. O texto vale
ser transcrito na íntegra por mostrar o linguajar do período (“arranha-céus”, “cimento
armado”). E as manchetes informavam: CÂMARA FAZ “STRIP-TEASE” DOS
ARRANHA-CÉUS. UM FILME REVELA O OUTRO LADO DE SÃO PAULO
(ver Figura 49, a seguir).
Colocar uma cidade inteira dentro de uma fita de cinema. Reproduzir os locais, os
tipos, os sons e ruídos, a vibração e o crescimento de uma capital como São Paulo,
sem ser laudatório, nem demagogo. Reproduzir uma vila de quase cinco milhões de
habitantes, a mais importante do País, um emaranhado complexo de problemas sociais.
Colocar em hora e meia de celulóide três camadas sociais, através de diferentes
personagens. O filme é “São Paulo Sociedade Anônima”; o diretor é Luiz Sergio
Person. Nada menos que 82 ambientes são retratados pela câmara de Ricardo
Aronovich, um “cobra” da fotografia. São Paulo foi condensada, reduzida, sintetizada;
é a primeira película que enfrenta o gigante de cimento armado. O que existe atrás da
fachada, dos arranha-céus, da vida fútil e fácil, da noite e do movimento. “S.P. S/A” é
a cidade colocada nua diante do espectador. UH-REVISTA surpreendeu uma
filmagem no coração verde da cidade: a Praça da República. Atores: Walmor Chagas e
Eva Wilma. E os curiosos habituais observando.
134
Figura 49. Reportagem de duas páginas sobre um set (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 3 de julho de 1964. Diário Popular. A divulgação das filmagens cercou
várias áreas, e não apenas a cinematográfica e/ou de rádio e televisão. Além de
notícias nas Colunas Sociais, destaque para informações em seções de moda. Foi o
que publicou o Diário Popular, de São Paulo:
E falando de cinema, aqui está mais uma notícia relacionada com ele e a moda. Pela
primeira vez na história do cinema brasileiro, um nome da alta costura prepara um
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guarda-roupa inteiro para ser usado por três estrelas em um filme. O nome da alta
costura é Tomaso, o filme “São Paulo S/A” e as estrelas são Eva Wilma, Ana
Esmeralda e Darlene Glória, três tipos diferentes, tanto física, como mentalmente.
Com seu espírito criador, Regina Tomaso apreendeu cada característica das
personagens vividas pelas três intérpretes desse filme, criando trajes especialmente
adequados para elas. Um dos papéis é o de uma jovem casadoira da classe média, o
outro o de uma intelectual e o terceiro, o de uma cavadoura de ouro, decidida a fazer
carreira sem olhar os meios.
• 3 de julho de 1964. Última Hora (Rio de Janeiro). Coluna Cine-Ronda, de
Luiz Alípio de Barros. O texto começa por um estudo da Comissão Estadual de
Cinema de São Paulo para aplicar a “lei da obrigatoriedade no território paulista”.
Segundo o jornal, “os cinemas de SP não estão cumprindo a lei. Na verdade, somente
no Rio a coisa está sendo levada a sério”. E no meio de citações de filmagens de O
beijo, de Flávio Tambellini, O círculo perfeito, do professor Leonel Moro (rodado
em Paranaguá, Florianópolis, Curitiba, Vila Velha e na Rodovia do Café) e Vereda
da Salvação, futuro projeto de Anselmo Duarte, uma pequena informação:
Eis o elenco (nomes principais) de São Paulo Sociedade Anônima, que Luiz Sérgio
Person está realizando nas fábricas, ruas, etc. de SP, contando a história de um
homem da classe média, suas lutas, seus amores: Eva Wilma, Ana Esmeralda,
Darlene Glória, Walmor Chagas e Zeloni.
• 4 de julho de 1964. O Dia (São Paulo). Encabeçando uma coluna, a foto de
Walmor Chagas e Darlene Glória no trem que os leva para visitar a mãe da
personagem Ana, num hospício e/ou casa de repouso e/ou leprosário no interior do
estado. O título e o subtítulo usam as expressões usuais para definir a capital
paulistana: FILMANDO OS ARRANHA-CÉUS DA PAULICÉIA. WALMOR
CHAGAS NO ELENCO DE “S. PAULO S. A.”.
Luiz Sergio Person é o responsável pela filmagem de “São Paulo Sociedade
Anônima”, película que, a par da história-romance nela contida, oferecerá uma
ampla visão da grandiosidade arquitetônica da capital bandeirante. Muitas cenas já
foram tomadas nas ruas mais importantes da nossa metrópole, bem como se focaliza,
13
6
no referido filme, a prosperidade da indústria automobilística local, cujas atividades
exigem milhares de operários especializados. Não ficou esquecido o lado elegante
da vida paulistana, já que as estrelas Eva Wilma, Ana Esmeralda e Darlene Glória se
apresentarão, através de seus papéis, na referida película, vestindo modelos
especialmente criados para elas. Walmor Chagas é o ator principal de “São Paulo
Sociedade Anônima”. Ele e Darlene Glória, ambos na foto acima, dominam os
episódios dramático-românticos do filme.
• Sem data. Diário da Noite. Coluna Movietone. WALMOR CHAGAS COM
UMA SÓ PORTA ABERTA: A DO SUICÍDIO. Foto do personagem Carlos, de
perfil, usando terno. Como já discutido na “Introdução”, o desespero do protagonista
é tratado como fato real. Com um título de sentido dúbio, o ator é colocado como
possível suicida.
Há momentos na vida de um homem em que tudo parece perdido. A família, o
emprego, os amigos. A única porta que parece estar aberta é a do suicídio. Carlos
(Walmor Chagas) sente-se muito tentado a dar esse passo desastroso, quando tudo se
turva a seu redor. Isso acontece no filme “São Paulo Sociedade Anônima”, da
“Socine Produções”, com direção e história de Luiz Sérgio Person.
Figura 50. Walmor Chagas é propositadamente “confundido” com Carlos (arquivo Renato Magalhães
Gouvea)
13
7
• 10 de julho de 1964. O Estado de S. Paulo. EM FINS DE FILMAGEM.
Com uma enorme foto de Eva Wilma deitada na cama e Walmor Chagas largado no
chão, na cena em que ele chega embriagado e inicia o processo de separação, o
tradicional jornal paulistano noticiava:
Aproximam-se de seu término as filmagens de “São Paulo, S. A.”, a nova realização
do cinema paulista, produzida por Renato Magalhães Gouvêa, escrita e dirigida por
Luís Sérgio Person e fotografada por Ricardo Aronovich, o mesmo de “Os Fuzis”.
Eva Wilma, Walmor Chagas (foto), Ana Esmeralda, Darlene Glória e Otelo Zeloni
são os intérpretes centrais.
Figura 51. Até o fim das filmagens é anunciado nos jornais (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 10 de julho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. O texto informa que o filme Deus e o diabo na terra do sol havia
138
sido elogiado pelo jornal Le Monde, durante o Festival de Cannes. E, linhas à frente,
dava uma rápida notícia sobre o filme de Person:
O fim da filmagem de “São Paulo, Sociedade Anônima” se dará brevemente. Por sinal
que o fotógrafo Ricardo Aronovich, superelogiado em Berlim, também estava lá.
• 11 de julho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. Depois de informar que a atriz Helena Ignês, “loira madrinha de
Cine Ronda e uma das atrizes de maior futuro do teatro brasileiro prepara-se para rodar
três filmes, sendo um na Bahia e dois no Rio de Janeiro”, o colunista voltou a noticiar:
Apenas mais uns takes e Person dará por terminadas as filmagens.
• 12 de julho de 1964. Diário de S. Paulo. A reportagem é de página inteira e
traz três fotos. Do lado esquerdo, em corpo inteiro, Eva Wilma encara a câmera. Do
lado direito, a foto dela na cama, com Walmor deitado no chão. E no pé da página, a
cena em que ambos andam de lambreta. Assinada simplesmente por Donatella, a
matéria traz o bombástico título: FRACASSO NO CASAMENTO.
Eva Wilma, a querida estrelinha de “Alô Doçura” continua a trilhar sua carreira com
imenso sucesso. Seu talento, aliado à simpatia e beleza, fazem com que sua fama
diante do público se mantenha sempre como a de uma estrela de primeira grandeza.
Eva brilha tanto em São Paulo, como no Rio e em todo Brasil. “Boeing-Boeing”
estreou no Rio de Janeiro e foi sucesso absoluto. Em nossa capital, o fato repetiu-se.
Não se satisfazendo com sua atuação em teatro e televisão, Eva enfrenta também as
câmaras de cinema. Atualmente, ela está empenhada na filmagem de “São Paulo S.
A.”, filme que está sendo rodado sob a direção de Luís Sergio Person.
“LUCIANA”
A personagem vivida por Eva Wilma diante das câmaras é a de uma moça chamada
Luciana; moça de poucas ambições, descendente de família modesta e cujo sonho é
casar-se e ter filhos. Deseja um marido trabalhador e com possibilidade de lhe
assegurar um futuro tranqüilo. É sincera a seu modo, e seus objetivos simples e válidos
confundem-se com os problemas de Carlos (Walmor Chagas), seu marido. Carlos vive
o drama vivido por todos os burgueses do século XX: tédio, conflitos inesgotáveis,
insatisfação pela vida. E é justamente na mulher que Carlos vê a personificação de
139
uma parte da mentira e do tédio que o atormentam, de onde surgirão, inevitavelmente,
conflitos entre os dois, seguindo-se a impossibilidade de continuar juntos. O
rompimento apresentará mais tarde a possibilidade de apaziguamento, apresentando
apenas uma falta de objetivos e determinação melhores.
Figuras 52 e 53. Grande reportagem faz “jogo de palavraspara misturar ficção e realidade (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
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• Julho de 1964. Revista Cinelândia. Coluna Fora de Foco, de Zenaide
Andréa. O texto fala do convite para os filmes Selva trágica, de Roberto Farias, e Os
fuzis, de Rui Guerra, participarem do Festival de Veneza. Mas, na carona da notícia
internacional, o destaque era para uma enorme foto de meia página do elenco de São
Paulo Sociedade Anônima. O diretor e o produtor-executivo, apesar de aparecerem,
não são citados:
O produtor Renato Magalhães Gouvêa, da Socine Filmes, reuniu os intérpretes da
mais recente realização paulista para um drink de comemoração do término das
filmagens. No flagrante, ladeando Renato Gouvêa, Eva Wilma, Darlene Glória,
Zeloni, Ana Esmeralda e Walmor Chagas.
• 13 de julho de 1964. A Gazeta. No melhor estilo das colunas sociais, o
encerramento da filmagem ganhou página dupla no suplemento do jornal. E numa
mistura de confraternização entre profissionais e familiares, publicou fotos de
diferentes pessoas, como a mulher de Ricardo Aronovich, Helena, dos pais de
Person, Isaura e Luiz, do casal de Alô doçura, John Herbert e Eva Wilma, de Liba
Frydman e Helga Von Sydow, de Ede Aguiar, de João Batista de Almeida, Francisco
Norberto Noronha e José de Almeida, de Jean Laffont e Hugo Kusnetzoff, de
Ramires Holanda, de John Herbert Buckup Jr. e Luiz Roberto Audrá (filho de
Marinho Audrá, com uma arma de brinquedo), do próprio Marinho Audrá, de Vivien
Patricia Buckup e Andréa Aronovich, respectivamente filhas de Eva Wilma e Helena
Aronovich, de Ricardo Aronovich, brindando com taças de vinho com o assistente de
direção, Pedro Rovai, e, finalmente, no alto da página, de Luiz Sérgio Person ao lado
de Cláudio Petraglia, Ana Esmeralda Audrá e Renato Magalhães Gouvea. O
cozinheiro Fernando Navarro também mereceu uma foto. O local foi a chácara Vila
Esmeralda, ao ar livre. O título e o texto dizem tudo: ALMOÇO OFERECIDO POR
ANA ESMERALDA E MARINHO AUDRÁ.
Pessoal do cinema paulista reunido. Comemorava-se o encerramento das filmagens
de “São Paulo S. A.”. Na mesa, uma deliciosa e atraente “Paella Valenciana”
preparado com carinho por Fernando Navarro. Em volta da mesa, astros, cineastas e
convidados. Pena que não puderam comparecer Darlene Gloria, Walmor Chagas e
Zeloni, também astros em “São Paulo S. A.”. A fita retrata a pequena burguesia
141
paulista no avento da indústria automobilística. É uma película totalmente paulista,
coisa que não acontece desde 1930, quando foi filmada “Sinfonia de uma cidade”.
Por isso, a comemoração foi dupla. Muita animação na Chácara Vila Esmeralda.
Figura 54. Até a festa de encerramento de filmagem ganha reportagem de duas páginas. Na foto
principal, a confraternização entre diretor e produtor (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 17 de julho de 1964. Diário da Noite (2ª edição). BRASIL DESCOBRE
ANA ESMERALDA. Texto de Hilton Viana. Fotos de Arnaldo Laganaro. A
reportagem, também de página inteira, retrata momentos da vida caseira de Ana
142
Esmeralda. Mas já adianta alguns comentários analíticos sobre o filme. Abaixo,
trechos da matéria:
“São Paulo Sociedade Anônima” é o nome da película que Luiz Sérgio Person
terminou de rodar há poucos dias na Capital. A fita é integrada apenas por grandes
nomes. [...] O filme foi rodado em tempo recorde e brevemente estará nas telas de
todo Brasil. Além da contribuição que dá para a sétima arte, marca o retorno de Ana
Esmeralda ao cinema nacional. [...] Ana Esmeralda já está há alguns anos entre nós.
Sua primeira vinda ao Brasil ocorreu em 1954, num festival cinematográfico. Nessa
ocasião, ela conheceu o produtor brasileiro Mário B. Audrá Junior. [...] Voltou em
1955 para rodar “Quem matou Anabela”. [...] Em seu país, já foi estrela de mais de
quinze filmes, devendo retornar no próximo ano, para fazer a versão
cinematográfica de “Yerma”, de Garcia Lorca. [...]
O FILME
Em “S. Paulo Sociedade Anônima”, Ana Esmeralda faz o papel de Hilda, uma
personagem contraditória e da qual Carlos, personagem interpretado por Walmor
Chagas, procurar aproximar-se em diversos momentos, constatando uma divergência
profunda e divergente entre eles. Intelectual, espontânea nas ações triviais ou
elevadas, Hilda procura e encontra o amor sem o qual, dentro de seu temperamento
arrebatado e romântico não via saída para a solidão. Pela psicologia da personagem
não poderia ter sido melhor a escolha da interprete. Ana Esmeralda, ou por instinto,
ou por experiências armazenadas, dará à personagem Hilda todas as “nuances” para
torná-la atraente e profunda. Pois é assim que também sentimos a personalidade da
bela atriz espanhola.
• 20 de julho de 1964. Diário Popular. Uma notinha, acompanhada por foto e
texto sobre o filme de Mazzaropi, Fuzileiro do amor, destacava o trabalho do diretor
de fotografia.
“SÃO PAULO S. A.” — Beleza e funcionalidade valeram a Ricardo Aronovich
palavras elogiosas pela fotografia de “Os Fuzis” no Festival de Cinema que está
sendo realizado em Berlim Ocidental, transformando-o em cartaz internacional
como “cameraman”. Nascido na Argentina, Aronovich ligou-se ao cinema portenho,
participando de alguns dos melhores filmes realizados nestes últimos anos. No
Brasil, fixou-se facilmente e já está em seu segundo filme, que será “São Paulo S.
A.”, sob a direção de Luiz Sérgio Person que joga com um elenco no qual se
destacam Eva Wilma, Ana Esmeralda, Walmor Chagas e Otelo Zeloni, entre outros.
143
• 21 de julho de 1964. Diário da Noite. ELOGIADO EM BERLIM
CAMERAMAN DO FILME “SÃO PAULO S. A.”. Acompanhado da foto de Eva
Wilma deitada no chão do apartamento, primeira seqüência do filme, com a câmera no
chão e o diretor de fotografia usando o fotômetro, o texto praticamente reproduzia a
reportagem acima, do Diário Popular, o que demonstra ter sido uma notícia distribuída
por agência noticiosa. Em vez de “cinema platino”, fala em “cinema portenho”.
• 21 de julho de 1964. Folha de S. Paulo (edição matutina). Ao lado de foto e
legenda sobre o filme Copacabana Palace, produção italiana filmada no Rio de
Janeiro e que estava sendo lançada no Cine Paissandu, o diretor de fotografia
ganhava novo destaque.
“São Paulo S/A” — Ricardo Aronovich é hoje um cartaz internacional como
“camara”. Ainda recentemente foi citado em Berlim pela beleza e funcionalidade da
fotografia de “Os Fuzis”. Nascido na Argentina, esteve sempre ligado ao cinema de
seu país. Vindo para o Brasil, em “São Paulo S/A” está no segundo filme. Na foto, o
fotógrafo, em companhia de Luiz Sérgio Person, prepara uma cena da nova
realização do cinema nacional.
Figura 55. Person e Aronovich são retratados em destaque (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
144
• 22 de julho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. Destaque para a atriz Isabella, que estava para filmar O desafio,
de Paulo César Saraceni. Além de falar do lançamento de Seara vermelha para o
segundo semestre, misturava uma informação técnica com outra mundana.
“São Paulo, Sociedade Anônima” já em fase de laboratório. Person desaparecido da
noite. Trabalhando.
• 23 de julho de 1964. Diário Popular. Nota curta com foto. Mais uma vez,
sob o pretexto de elogiar o diretor de fotografia, uma maneira de chamar atenção
para o filme que só seria lançado no ano seguinte. Na mesma coluna de filmes,
destaques para as exibições na cidade de A pantera cor-de-rosa, com Peter Sellers e
Claudia Cardinale, Cavalheiro sob medida, com Cantinflas e, para o cinerama do
Cine Comodoro, As sete maravilhas do mundo.
RICARDO ARONOVICH, que fez fotografia de “Os Fuzis”, responde por esse
detalhe na filmagem de “São Paulo S. A.”, que está sendo rodada nesta Capital. O
conhecido “camara” argentino aí aparece com o produtor e diretor Luiz Sérgio
Person preparando uma cena de “São Paulo S. A.”, em cujo elenco (entre tanta gente
conhecida) estão Eva Wilma, Ana Esmeralda, Walmor Chagas e Otelo Zeloni.
• 25 de julho de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. Manchete: CENSURA DE SÃO PAULO ENCHE O PICUÁ. O
jornalista comenta que o departamento paulista não obedecia a ordens da Censura
Federal de Brasília e, por conta própria, transformava certificados de censura livre
em censura para 18 anos, cortava cenas de filmes e até retirava fotos promocionais
das ante-salas dos cinemas. Entre os atingidos, L’ape regina (exibido aqui como
Leito conjugal) e A abelha-mestre, de Marc Ferreri. É interessante lembrar que, no
ano seguinte, o filme de Person seria censurado para 18 anos, o que provocou muitos
pedidos e protestos do diretor e do produtor. Mas o destaque deste dia estava numa
enorme foto da praia (cena de Walmor e Ana Esmeralda), acompanhado da legenda:
145
Figura 56. Mais um destaque para o trabalho do diretor de fotografia de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 2 de agosto de 1964. O Dia (São Paulo). “SÃO PAULO S. A.” UM
DOCUMENTO DA GRANDEZA PAULISTANA. Legenda de foto:
A cena acima foi tomada pelos cineastas Ricardo Aronovich e Luiz Sérgio Person,
quando das primeiras filmagens de “São Paulo S. A.”, película que promete
apresentar, num imponente conjunto, o fabuloso progresso da Cidade que mais
Cresce no Mundo. A par do espetáculo mostrando o febril movimento urbano da
Paulicéia, seus majestosos edifícios e seus recantos pitorescos, o filme contém uma
bela história romântica, no desempenho dos conhecidos artistas Eva Wilma, Ana
Esmeralda, Walmor Chagas e Otelo Zeloni. A direção de “São Paulo S. A.” é de
Luiz Sérgio Person.
• 10 de agosto de 1964. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. O colunista começa informando que o marechal Castelo Branco,
então presidente do Brasil, era fã dos filmes de Maurice Chevalier. Segue dizendo
que o distribuidor Livio Bruni estava fazendo um bom trabalho para o lançamento de
14
6
Deus e o diabo na terra do sol, na cidade de São Paulo, já que no Rio o filme ia bem
de público. E, nas notas rápidas, avisa:
Sergio Person já está pensando em sua nova fita “Homem lobo do homem”. O papel
principal está entre Eva Wilma e Itala Nandi.
• 25 de agosto de 1964. Jornal do Brasil. A DURA CIDADE. A enorme foto
mostra Carlos e Ana caminhando no porto de areia. O texto procura um ar poético
para a filmagem.
Mostrando os caminhos da grande cidade, indiferentes aos homens que os cruzam ,
tentando escapar das angústias do dia-a-dia, São Paulo Sociedade Anônima, dirigido
por Luís Sérgio Pearson [sic], leva ao cinema brasileiro os cenários convulsos das
grandes metrópoles, onde os homens se entrechocam não com a agressividade da
paisagem, mas com a indiferença dos passantes e da arquitetura orgulhosa.
• Agosto de 1964. Revista Cinelândia. EM CASA COMO NA TV. A
reportagem destacava o casal John Herbert e Eva Wilma, que contracenavam no
programa Alô doçura e na peça Boeing-Boeing. Além disso, dá informação sobre o
fim da filmagem de São Paulo S. A.
• Agosto de 1964. Revista Cinelândia. Coluna Fora de Foco, de Zenaide
Andréa. Na mesma edição que a reportagem citada anteriormente, a coluna traz uma
grande foto do elenco do filme Noite vazia, de Walter Hugo Khoury, na cena em um
restaurante japonês. Mas, no alto, a foto de Carlos e Ana à beira-mar, destacando o
“idílio” entre os personagens e afirmando que o filme de Luis Sérgio Pearson [sic]
era marcadamente realista.
• Agosto de 1964. Revista Contigo. “SÃO PAULO S. A.” NÃO PODE
PARAR. A reportagem de Gilberto Menna Barreto acompanhou a filmagem da cena
91 do roteiro de Person, a do pedido de casamento de Carlos para Luciana. E
descreve o que presenciou.
147
Figura 57. Revista Contigo diz que São Paulo Sociedade Anônima faz radiografia da classe média
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Eva Wilma e Walmor Chagas estão sentados bem próximos um do outro. Eva tem a
fisionomia tranqüila e um ar de expectativa. Walmor, parecendo um pouco mais
constrangido, pronuncia as primeiras palavras, pesando-as cuidadosamente: trata-se
de um pedido de casamento, dirigido aos pais da moça, no outro canto da sala. Por
cima, as luzes estrategicamente dispostas. Na frente, a câmara, o emaranhado de
148
fios, o silêncio, a presença atenta do Diretor Person. Filma-se a cena 91 de “São
Paulo S. A.”, titulo inspirado para a história de uma cidade.
Em seguida, traz trechos de uma entrevista com Person.
“Procurei fazer um retrato o mais autêntico possível da classe média paulistana,
através de cinco personagens que condensam alguns dos fatores marcantes da
burguesia de São Paulo”. Explica que o título foi sugerido por amigos e exprime
aquilo que o filme irá mostrar: o mundo paulistano e suas características
inconfundíveis. E a conclusão: “Não é otimista, pois há uma certa melancolia, uma
vaga nostalgia na história. Tratei de mostrar coisas que ainda não haviam sido
registradas pelo cinema nacional”. Depois deste esclarecimento, Person declara-se
um admirador dos cineastas de vanguarda franceses e italianos, notadamente Alain
Resnais e seu filme “Muriel”.
• 30 de agosto de 1964. Jornal do Brasil. Coluna Letreiro, de Miriam
Alencar. Entre várias notinhas rápidas sobre cinema nacional, inclusive a de que
Lima Barreto iria dirigir um filme chamado Joana, baseado na lenda do boto, a
jornalista carioca destacava o possível lançamento do filme de Person, que acabaria
ocorrendo apenas no ano seguinte.
Luis Sérgio Person prepara-se para lançar este mês seu filme São Paulo Sociedade
Anônima, destinado, segundo ele, a firmar o cinema urbano do País.
• 13 de outubro de 1964. Correio da Manhã. Coluna Cinema, de Sérgio Augusto.
Promete muito São Paulo Sociedade Anônima, filme de Luiz Sérgio Person, jovem
cineasta de 28 anos, ex-aluno do Centro Sperimentale di Cinematografia, admirador de
Resnais, Godard e Fellini, autor de um curta-metragem (Al Ladro), que, segundo os que
já viram o copião, investe sobre o desprezado cinema urbano, moderno, contraditório,
sem os costumeiros apelos do marginalismo social mas fazendo, meio pequeno burguês
de São Paulo um filme que também será social quanto mais profundos se mostrarem os
problemas individuais quase desconhecidos neste ano de 1964.
149
Figura 58. Crítico diz que filme de Person é boa promessa (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 1964 (sem dia e mês). O Dia. “SÃO PAULO S. A.” — DRAMA DA VIDA
URBANA PAULISTANA. Com a foto de Hilda morta na cama, o jornal dizia que
era “uma história dramática, filmada em lugares pitorescos da Paulicéia”.
Figura 59. O suicídio volta a ser tema na imprensa (arquivo Cinemateca Brasileira)
150
• 27 de outubro de 1964. Folha de S. Paulo. “SÃO PAULO S/A”. Uma
pequena foto de Carlos e Hilda no centro da cidade vinha acompanhada de uma
curiosa legenda, que contava um argumento diferente para o protagonista Carlos.
O diretor Luis Sergio Person lançará brevemente nas telas paulistanas o filme “São
Paulo S/A”, drama que narra a história de um moço que pretende ajudar a mulher
que amou. A interpretação da película nacional, rodada nesta capital, está a cargo de
Ana Esmeralda e Walmor Chagas. A realização é da Socine Produções.
Figura 60. Nota ajuda na divulgação do filme (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 19 de março de 1965. Jornal do Brasil. O HOMEM E A ANGÚSTIA EM
SÃO PAULO S. A. As fotos de Carlos e Arturo Carracci ao lado de garotos que
atiram pedras, e de Carlos e Ana se beijando a beira-mar foram acompanhadas de um
texto que descreve a ação do filme.
151
Figura 61. A angústia dos personagens de São Paulo Sociedade Anônima foi tema recorrente na
imprensa (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
152
• 3 de maio de 1965. Tribuna da Imprensa. Coluna Cinema, de Marcello
Torres. ITAMARATI SOLUCIONA FESTIVAIS. O jornalista escreve que a
Comissão de Seleção de Filmes do Ministério das Relações Exteriores indicara Vereda
da Salvação para o Festival de Berlim, com São Paulo Sociedade Anônima como
segunda opção. Ao mesmo tempo, O beijo, de Flávio Tambellini, iria para o Festival
de Locarno. Mas o filme de Person só iria se tivesse a aquiescência do produtor.
É verdade que o interessantíssimo filme de Luis Sérgio Person recebeu um convite
direto para ir ao Festival de Pesaro, Itália, especializado em filmes [alternativos?
Cópia com texto difícil de identificar]. Há chance também de programação na Seção
Informativa de Berlim.
• 7 de maio de 1965. Última Hora (Rio de Janeiro). Coluna Cine-Ronda, de
Luiz Alípio de Barros. BRASIL E FESTIVAIS. O jornalista destacava a indicação
do governo brasileiro.
O Itamarati, como já foi noticiado, indicou “Vereda da Salvação”, de Anselmo
Duarte, como representante oficial do Brasil no Festival de Berlim (de 25 de junho a
7 de julho), colocando como uma espécie de reserva, tendo em vista a escolha da
própria seleção do Festival, a película do jovem realizador Sérgio Person “São Paulo
S. A.”. Acontece que Person, ao que se fala, prefere levar seu filme ao Festival de
Pesaro, Itália, uma nova mostra cinematográfica destinada a reunir trabalhos de
realizadores novos.
• 6 de junho de 1965. O Estado de S. Paulo. FITA PAULISTA AGRADA
EM PESARO. A agência Reuters informava que o filme de Person havia sido bem
recebido no que chamou de “Festival de Filmes de Vanguarda”. E trazia uma
interessante declaração:
O diretor do filme, Luiz Sérgio Person, declarou que o progresso do cinema no
Brasil é prejudicado pelo reduzido número de filmes estrangeiros importados, o que
torna particularmente difícil aos brasileiros verem todas as películas importantes e
de alta qualidade produzidas no mundo de hoje.
153
• 7 de junho de 1965. Última Hora (Rio de Janeiro). Última Hora (São
Paulo). O Globo. A Notícia. Notícias Populares.
• 8 de junho de 1965. O Estado de S. Paulo.
Praticamente todos os jornais brasileiros — alguns, inclusive, na primeira
página — noticiaram o Prêmio do Público na Mostra do Novo Cinema de Pesaro.
Todos usaram o noticiário da France Presse, que destacava o voto dos espectadores,
assim como o Prêmio da Crítica, que foi dado por representantes de 15 países.
• 18 de setembro de 1965. A Gazeta Esportiva. SÃO PAULO S. A.: CORPO
E ALMA DA METRÓPOLE ESTARÃO NA TELA. Uma foto do auditório da
Fundação Cásper Líbero destacava mais uma projeção do filme de Person para um
público de formadores de opinião. Lá estava toda a diretoria da Fundação, dos jornais
do grupo e da TV Gazeta, assim como membros do governo estadual, da Sociedade
Pestalozzi e a equipe do filme, inclusive o relações públicas da Sòcine, Orpheu
Paraventi Gregori.
• 22 de setembro de 1965. Notícias Populares. “SÃO PAULO S/A” DE
PERSON. A foto era com Ana Esmeralda. Mas o texto destacava o trabalho do
diretor e sua carreira entre cinema e televisão.
Segundo o diretor, “São Paulo S/A” é um painel dramático que constata certas
características e condições da classe média de São Paulo, através dos amores, do
trabalho e da angústia que envolvem os personagens principais.
• 23 de setembro de 1965. A Gazeta. “SÃO PAULO, SOCIEDADE ANÔNIMA”.
Grande foto de Carlos e Hilda, com destaque para lançamento beneficente.
• 25 de setembro de 1965. A Gazeta Esportiva. “SÃO PAULO SOCIEDADE
ANÔNIMA” — FILME QUE RETRATA A VIDA E OS DRAMAS DA NOSSA
GRANDE PAULICÉIA. Com foto de Carlos e Ana deitados à beira-mar, a grande
legenda reproduzia o texto ufanista sobre as qualidades do filme de Person, por se
tratar de um tema atual.
154
• 27 de setembro de 1965. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. No alto, a foto de Carlos em seu carro. E a dica do lançamento no
dia 29, com direito a coquetel no Clube Paulistano. Curiosamente, logo abaixo, uma
foto de Darlene Glória completamente nua, mas em cena de Um ramo para Luisa.
Para protestar contra a tentativa da censura em cortar algumas cenas do filme,
Darlene ameaçou desfilar nua em frente ao Cine Rian, no Rio, onde estava
acontecendo o Festival Internacional do Filme.
• 28 de setembro de 1965. Diário da Noite. AMANHÃ A ANTE-ESTRÉIA DE
“SÃO PAULO SOCIEDADE ANÔNIMA”. A foto de Carlos e Ana no trem está logo
abaixo de um texto que aponta para o trabalho do produtor Renato Magalhães Gouvea.
A reportagem diz que foram selecionados “nada menos do que 25 atores profissionais” e
que o próprio produtor teria selecionado o ator Walmor Chagas. E o jornal também faz
confusão sobre a encomenda que teria feito a Person. Vamos ao texto.
A REALIZAÇÃO
Quase todas grandes cidades brasileiras já foram mostradas através do cinema,
faltava somente a grande metrópole paulista fundada pelos jesuítas Anchieta e
Manuel da Nóbrega no dia santificado a São Paulo (devido o dia foi batizado como
São Paulo), que 400 anos depois iria tornar o maior centro industrial-comercial de
toda a América Latina. Foi então que o produtor Renato Magalhães Gouvea decidiu
produzir um filme (longa-metragem) sobre a vida quotidiana do paulistano, com
uma história cheia de amor, “suspense” e dinamismo que pudesse revelar todo o
espírito empreendedor da grande cidade tida por muitos como a cidade que mais
cresce no mundo.
A HISTÓRIA
Para escrever uma história sobre São Paulo, não é difícil, mas uma história “épica”
do grandioso desenvolvimento industrial-econômico não seria muito fácil. Foi então
que o escritor-diretor Luiz Sérgio Person aceitou o cargo de escrever os argumentos
para a Socine Produções Cinematográficas, a fim de que a grande produtora pudesse
realizar o filme “São Paulo S/A”. Luiz Sérgio escolheu (para a história) os anos de
1957 e 1961, anos do grande desenvolvimento automobilístico brasileiro. Embora
não sendo um documentário achou que deviam ser incluídos no enredo do filme os
lugares aprazíveis de São Paulo, bem como a maneira como os paulistas se entregam
ao divertimento e também os grandes setores comerciais com suas grandes lojas de
variedades. Tudo isso Luiz Sergio colocou na história em forma dramática, num
155
relato real daquilo que São Paulo sempre teve e sempre terá: “sua população que
ama, que sofre, que luta e que trabalha na busca de um futuro melhor”.
Figura 62. Até jornais cariocas repercutem em muitas notas e reportagens o lançamento de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
15
6
• 28 de setembro de 1965. A Gazeta Esportiva. SÃO PAULO S. A. UM
FILME VIBRANTE E REALISTA. Com esta manchete ufanista, o jornal destacava
a história de São Paulo.
“São Paulo Sociedade Anônima” é a história da nossa cidade que hoje conta com 5
milhões de habitantes. Mas não é a história de Anchieta, das bandeiras, e dos
bandeirantes austeros, desbravadores do sertão. “São Paulo S/A” conta a história de
hoje. Da vida que se leva atualmente na cidade. É a história da luta diária da classe
média paulistana, da vida de trabalho e correria que a gente enfrenta hora por hora,
minuto por minuto. Uma história vibrante, diferente, que segue em ritmo rápido,
agitado, que não para nunca, como a maravilhosa cidade de São Paulo.
• 29 de setembro de 1965. Diário Popular. ANA ESMERALDA EM PAUTA,
OUTRA VEZ. A foto era da personagem Hilda no baile de carnaval, ao lado de um
figurante mascarado. A legenda dizia que a distribuição do filme era da Columbia
Pictures, com estréia naquele dia.
Figura 63. A atriz espanhola Ana Esmeralda teve destaque no lançamento de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
157
• 29 de setembro de 1965. Diário Popular. SORRISO DE ESMERALDA. Na
mesma edição da nota citada logo acima, o jornal fazia outro destaque para a atriz
que interpretava Hilda. A foto de primeira página é enorme, mas a legenda destacava
o coquetel que seria oferecido no Clube Paulistano para os atores de Hollywood.
Para assistir à ante-estréia desta noite, deverão chegar a São Paulo diversas figuras
que participaram do Festival Internacional do filme, na Guanabara, entre os quais
Troy Donahue, Beverly Adams, o ator grego Selhillis Gilliallis (principal
personagem de “América, América”), Lino Nucciche, chefe da delegação italiana ao
festival e, talvez, Claudia Cardinale. Embora sua presença tivesse sido anunciada, o
“Tarzan” Mike Henry não virá. Os artistas visitantes chegarão depois do almoço, por
via aérea.
Importante: a partir desta data, toda a imprensa concentrou-se no lançamento
de São Paulo Sociedade Anônima. Foram mais de 30 notas, reportagens, dicas em
colunas sociais e até mesmo nos jornais sensacionalistas e esportivos. Assim como a
atriz italiana Claudia Cardinale, o diretor Vincent Minelli também foi aguardado,
mas não veio. Sobre os atores americanos, os destaques foram: a vontade de
conhecer uma macumba; a afirmação de que o Rio de Janeiro seria uma capital
mundial de cinema; a apresentação de um baile de debutantes no Clube Paulistano; o
encontro bem-humorado com o polêmico governador Ademar de Barros, que os
recebeu no Palácio do Governo; e elogios ao filme de Luiz Sérgio Person.
Com tudo isso, a promoção estava garantida — e a expectativa de sucesso de
público idem. Uma promoção que não parou nem com o filme já em cartaz, e que
prosseguiu com coquetéis por lugares de cultura de São Paulo.
• Setembro de 1965 (sem dia no recorte). A Gazeta Esportiva. “SÃO PAULO
S. A.” — FILME PAULISTA PREMIADO NA EUROPA, ENTRA EM CARTAZ
NO CINE OLIDO. Com foto de Carlos e Arturo Carracci na fábrica da Volkswagen,
a legenda dizia que era um “filme excepcional” e “premiado na Europa”:
Este filme retrata o mundo das fábricas, dos arranha-céus, da indústria automobilística,
o mundo das pessoas que vivem e sofrem dentro de uma grande cidade.
158
• 30 de setembro de 1965. Última Hora (São Paulo). Coluna Cine-Ronda, de
Ignácio de Loyola. Nas notinhas rápidas, o jornalista destacava.
1) Foi um sucesso ontem a “avant-première” de “São Paulo S/A”, no cine Olido.
Quem promoveu foi Soninha Ribeiro, com renda para a Sociedade Pestalozzi. O
pessoal, depois, esticou no Paulistano onde se formou uma grande mesa com os
artistas norte-americanos que vieram especialmente para essa noite.
2) Quem está no Brasil, desde segunda-feira, é a bonita e simpática Hiltrude, noiva
de Luis Sergio Person.
• 2 de outubro de 1965. O Estado de S. Paulo. GRANDE LANÇAMENTO
NACIONAL. A foto de Walmor Chagas, com jaleco da Volkswagen e ao lado de um
operário da empresa alemã, até poderia sugerir que era o lançamento de um carro.
Mas o jornal paulista rasgava elogios na legenda.
Com “São Paulo S. A.”, o importante lançamento de hoje nos cines Olido e
Regência, o cinema brasileiro marca um novo tento. Realmente, estamos diante de
uma obra brilhante, inteligente e polêmica — um dos dois ou três melhores filmes
que produzimos nos últimos tempos.
Figura 64. O Estado de S. Paulo acompanhou todos os passos de São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
159
• 2 de outubro de 1965. Diário da Noite. “SÃO PAULO SOCIEDADE
ANÔNIMA”: OS PESADELOS DA CIDADE GRANDE. A foto de Carlos no carro
é acompanhada da legenda sobre “a vida, o trabalho, a correria, as frustrações, o ócio
e a busca de aventuras e do amor”.
• 21 de outubro de 1965. A Gazeta Esportiva. COCKTAIL EM
HOMENAGEM À CINEMATOGRAFIA PAULISTA. Nota sobre o encontro
promovido pela Sociedade Amigos da Cinemateca no Edifício Itália, com
homenagem ao filme de Person e a Memória do cangaço, de Paulo Gil Soares, com
produção de Thomaz Farkas. Além disso, foi inaugurada a exposição Comics, na 8ª
Bienal de São Paulo.
• 3 a 9 de outubro de 1965. Revista Intervalo. SÃO PAULO S. A. — GENTE
DE TV FAZ CINEMA PREMIADO. A revista especializada em televisão destacava
a presença de atores de televisão no filme de Person e o fato do próprio diretor ter
trabalhado na TV Paulista, em três funções diferentes. A divulgação do filme, desta
forma, alcançava todos os veículos.
Eva Wilma, estrela da novela Fatalidade, Zeloni, do elenco da TV Record, Walmor
Chagas, galã de A outra e o próprio realizador da fita, Luiz Sérgio Person, que foi
um pouco de tudo — ator, adaptador e diretor — da TV Paulista, entre 1955 e 1958.
São Paulo S/A, segundo as palavras de apresentação do próprio realizador, é um
filme dirigido à grande maioria urbana do povo brasileiro, porque fala um pouco de
cada uma dessas pessoas, de suas vidas, de gente e fatos que conhecemos e dos
quais ouvimos falar. Um registro polêmico e até mesmo violento de seus valores
reais e contraditórios, seus contrastes e seus desajustes.
160
Figura 65. A extinta revista Intervalo, especializada em televisão, destaca os atores e o diretor, que já
tinha trabalhado em TV (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
• 28 de novembro de 1965. Jornal do Brasil. Coluna de Miriam Alencar.
ACAPULCO REÚNE OS MELHORES.
Está em pleno andamento o Festival de Acapulco, isto é, a VIII Resenha Mundial
dos Festivais Cinematográficos, que se realiza atualmente no México. O Festival,
que não é de natureza competitiva, está apresentando em sua programação oficial 24
filmes de longa-metragem representando 14 países, que obtiveram prêmios nos dez
festivais de caráter competitivo internacional [...] SÃO PAULO S/A. A exibição de
São Paulo Sociedade Anônima foi realizada na quarta-feira passada. Embora o
Festival não seja de natureza competitiva, o filme causou ótima impressão, devido às
suas qualidades artísticas e técnicas. A delegação brasileira ao Festival é chefiada
pelo Adido Cultural da Embaixada Brasileira no México, Prof. Valter Wey, e
integrada por Luis Sérgio Person, diretor do filme; Moniz Viana, crítico; Eva Vilma,
Valmor Chagas e Zeloni, atores de São Paulo S/A [reproduzo os nomes conforme
constam do texto].
• 28 de novembro de 1965. Jornal do Brasil. Em outra coluna, na mesma
edição, Miriam Alencar comentava os filmes brasileiros que estavam em cartaz no
Rio de Janeiro. Dizia que o destaque de estréia era Vereda da Salvação, de Anselmo
161
Duarte, ator, diretor e roteirista que também estaria em outros cinemas com as
reestréias de O pagador de promessas e As pupilas do sr. reitor, onde trabalhou no
roteiro e na interpretação. Outro que entrava em circuito era Entre o amor e o
cangaço, com Geraldo Del Rey e Rejane Medeiros. E finalmente destacava:
Outros nacionais que devem continuar: o excelente São Paulo Sociedade Anônima,
de Luis Sergio, e Society em baby-doll, de Luis Carlos Maciel e Valdemar Lima. No
setor estrangeiro, uma reapresentação válida é Oito e Meio, de Federico Fellini, que
quando de sua estréia, permaneceu apenas, inexplicavelmente, uma semana em
cartaz. Volta agora no Paissandu.
Vale relembrar que o filme de Person estava em cinco cinemas cariocas:
Vitória, Copacabana, Miramar, América e Riviera.
• 6 de dezembro de 1965. O Globo. “SÃO PAULO S. A.”. Uma pequena nota
destacava a distinção especial “em busca de nova linguagem de expressão
cinematográfica” que o filme recebeu no Festival de Acapulco.
2.2. Rápida conclusão
Estes foram os textos principais publicados na imprensa brasileira entre os
anos de 1964 e 1965. Quatro anos depois, em 8 de dezembro de 1969, o filme foi
relançado no famoso cine Belas Artes, na avenida Consolação, em São Paulo, com
direito a muitos anúncios de jornais que estimulavam: “Está chegando a hora de ver
ou rever SÃO PAULO S. A.”
A sessão se chamava “ESPETÁCULO POLÊMICA CULTURA”. Neste
período, Person já havia realizado O caso dos irmãos Naves, o que provocava grande
destaque entre jornalistas. Ou seja, um caso de marketing que se prolongava.
162
Figuras 66 e 67. Publicidade, em rodapé de página de jornal, sobre relançamento de São Paulo
Sociedade Anônima, em 1969 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
163
Figura 68. São Paulo Sociedade Anônima ganha nova campanha publicitária ao ser exibido no cine
Belas Artes, especializado em filmes de arte (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
164
165
Capítulo 3
PERSONALIDADE & PERSONAGENS DE PERSON
Ser artesão em cinema não é nenhuma coisa do
outro mundo. Dentro de determinadas
circunstâncias qualquer um pode vir a sê-lo. Para
mim não significa nada (Depoimento de Luiz
Sérgio Person ao Cineclube do Centro Dom
Vital, São Paulo, 1965).
3.1. A questão urbana na vida de Person
Se o senhor não tá lembrado / Dá licença de contá / Ali
onde agora está esse adifício arto / Era uma casa véia /
Um palacete assobradado / Foi ali, seu moço / Que eu,
Mato Grosso e o Joca / Construímo nossa maloca / Mas
um dia, nóis nem pode se alembrá / Veio os home c’as
ferramenta / O dono mandô derrubá / Peguemo todas
nossas coisa / E fumo pro meio da rua / Preciá a
demolição / Que tristeza que nóis sentia / Cada tauba
que caía, doía no coração / Mato Grosso quis gritá, mas
em cima eu falei / Os home tá com a razão, nóis arranja
outro lugá / Só se conformemo quando o Joca falô /
Deus dá o frio conforme o coberto / E hoje nóis pega as
paia / Nas grama dos jardim / E pra esquecê nóis
cantemo assim: / Saudosa maloca, maloca querida /
Dim dim donde nóis passemo / Dias feliz de nossas
vida / Cas, cas, cas, cas (Adoniran Barbosa, Saudosa
maloca).
Nada melhor do que a clássica música de Adoniran para descrever o
urbanismo paulistano dos anos 1950-60-70. É a cidade do concreto avançando,
especulando, expulsando. E para abrir este debate sobre a personalidade e os
personagens de Person em São Paulo Sociedade Anônima, utilizo-me de um texto do
arquiteto e urbanista da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
16
6
São Paulo (FAU-USP), Nabil Bonduki para a revista Communicare, da Faculdade
Cásper Líbero (cf. Bonduki, 2005). Trata-se de uma série de artigos sobre a
urbanização no Brasil pós-golpe de 64; traz interessantes análises sobre os conjuntos
habitacionais que surgiram no País e engendraram monstros como o conjunto
habitacional Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e a implantação do Banco Nacional
da Habitação (BNH) pelo governo militar, para tentar resolver o problema da
moradia. Segundo Bonduki, foi o “mais acelerado processo de urbanização que
ocorreu no mundo na segunda metade do século XX. Entre 1950 e 2000, a população
urbana brasileira vivendo em cidades com mais de 20 mil habitantes cresceu de 11
milhões para 125 milhões”.
Dados do IBGE comprovam que a população urbana brasileira saltou de
12.880.182 pessoas para 123.076.830 entre 1940 e 1996, enquanto a população rural
ficou equilibrada, de 28.356.133 para 33.993.332, entre homens e mulheres. Entre
1940 e 1960, época retratada em São Paulo Sociedade Anônima, a população do Brasil
quase dobrou, ao passar de 41.236.315 para 70.070.457 habitantes, e mais do que
dobrou nas áreas urbanas: de 12.880.182 para 31.303.034 pessoas (ver Quadro 10).
Quadro 10
População residente, por situação do domicílio e por sexo
Brasil
1940-1996
Anos
Total Urbana Rural
Homens Mulheres Homens Mulheres Homens Mulheres
1940 20.614.088 20.622.227 6.164.473 6.715.709 14.449.615 13.906.518
1950 25.885.001 26.059.396 8.971.163 9.811.728 16.913.838 16.247.668
1960 35.055.457 35.015.000 15.120.390 16.182.644 19.935.067 18.832.356
1970 46.331.343 46.807.694 25.227.825 26.857.159 21.103.518 19.950.535
1980 59.123.361 59.879.345 39.228.040 41.208.369 19.895.321 18.670.976
1991 72.485.122 74.340.353 53.854.256 57.136.734 18.630.866 17.203.619
1996 77.442.865 79.627.298 59.716.389 63.360.442 17.726.476 16.266.856
Fonte: Bonduki, 2005.
A capital paulistana estava no centro desta explosão, depois de séculos de
crescimento modesto. De acordo com o livro Capital da solidão, de Roberto Pompeu
de Toledo, São Paulo era uma cidade provinciana e sem importância até meados do
século 19. Por volta de 1860, estava no ranking como a décima terceira cidade do
país, menor do que Niterói, São Luis do Maranhão e até de Cuiabá. Fatores como a
16
7
passagem da linha de trem de Campinas para o porto de Santos, levando café, e a
abertura de uma das primeiras faculdades do País, a de Direito, no largo de São
Francisco, entre outros fatos, provocaram o início do crescimento. O título da obra,
que une “capital” com “solidão”, é uma pérola para demonstrar a dificuldade de
comunicação em São Paulo. O livro só segue até o início dos anos 20 do século 20,
quando a cidade entra em ebulição (cf. Toledo, 2003).
Em São Paulo, uma imagem que não pára, Rubens Machado Jr. escreve:
O que salva a cidade de São Paulo desta transcendência batismal meio incômoda
seria a sua moderna e selvagem certeza do progresso, garantindo a perda dos
vínculos com qualquer tradição ou origem, devida ao seu ritual de fundação há mais
de quatro séculos (Machado Jr., 2002, p. 59).
De qualquer maneira, de acordo com os pensadores Caio Prado Jr. e Gilberto
Freire (em citação de Rubens Machado), a cidade sempre teve a vocação para um
futuro de crescimento, já que buscava as riquezas do interior do País e não se
deslumbrava com o universo da corte portuguesa. Daí a feliz oposição de Freyre
entre cortesão e cidadão:
Isolados do oceano pela Serra do Mar, os paulistanos, como mostrou Caio Prado Jr.,
voltavam-se desde o início para as rotas do interior do continente, distinguindo-se da
formação tradicional de toda cidade brasileira que, sendo litorânea, integrava-se
diretamente como porto à metrópole d´além-mar. Essa diferença matricial somada à
instalação ulterior, no século XIX, pelo Império, da Faculdade de Direito, visando à
formação de elites no planalto, permitiu a Gilberto Freyre conceituar o paulistano como
um brasileiro cidadão, opondo-se ao tipo litorâneo, cortesão (Machado Jr., 2002, p. 62).
Curiosamente, pouco antes da chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930,
e da Revolução Constitucionalista promovida pelos paulistas, dois filmes registraram
o crescimento de São Paulo e as dádivas e dúvidas da cidade moderna: Fragmentos
da vida, de José Medina, e São Paulo, a sinfonia da metrópole, dos húngaros Rudolf
Lustig e Adalberto Kemeny, ambos de 1929.
Em depoimento para o programa São Paulo em 4 Tempos, da TV
Comunitária (2004), a professora de arquitetura da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), Regina Meyer, afirmou que
168
“nos anos 50, a cidade de São Paulo entrou em efervescência. Foi a década da
agitação urbana, da presença da classe operária, da chegada do grande capital. A
indústria automobilística chega através do plano de metas de Juscelino e nós
aumentamos em 1.105% o número de automóveis em 10 anos [...]. Aquilo que foi
pensado nos anos 20, concretizou-se em 30 e 40 e explode nos anos 50” (São Paulo
em 4 tempos, TV Comunitária, 2004).
No mesmo programa, o cineasta Carlos Reichenbach ressaltou que “o filme
de Person retrata a perversão desse progresso”.
De certa maneira, Person andou na contramão do cinema brasileiro que se
fazia na época — pelo menos dos filmes que eram considerados mais experimentais,
de arte, contra a “indústria” que tentava copiar Hollywood (caso da Vera Cruz) e
cultuados como cinema social. Utilizou-se dos melhores recursos técnicos de forma
profissional, também adotou um jeito diferenciado de contar uma história — sem se
esquecer da comunicação e do público — e fez um filme de montagem que já nasceu
assim no seu roteiro. Trata-se de um olhar sobre uma cidade especial, que cresce de
forma inédita no Brasil e ganha contornos internacionais.
Ismail Xavier relembra que, na época, havia reclamações contra o Cinema
Novo que buscava suas fontes nos sertões e nas favelas e, com a implantação da
ditadura, foi beber na fonte da literatura, para tentar evitar a censura. Por isso, nos
idos de 1960, surgiu uma resposta para mostrar a cidade de onde vinha tanto o
“realizador” como o “público”. E estes filmes buscam mostrar “o mundo mesquinho,
conservador, arrivista” de uma classe média que ainda não se enxerga: “A grande
síntese desta abordagem é São Paulo S/A (Luis Sergio Person, 1965), que focaliza
personagens do mundo da pequena indústria na era do desenvolvimentismo à JK no
clima neurótico da grande cidade” (Xavier, 2001, p. 62)
Xavier relembra filmes posteriores, como Opinião pública (1967), documentário
de Arnaldo Jabor, e Bebel, garota propaganda (1967), de Maurice Capovilla, e Anuska,
manequim e mulher (1968), de Ramalho Jr., obras ficcionais que tratam do universo da
emergente publicidade (que também quase foi alvo de ironia do próprio Person, em um
roteiro que escreveu em parceria com o dramaturgo Lauro César Muniz).
Pode-se dizer que começava, de forma lenta, uma tradição que agora no inicio
do século XXI se mostra mais firme, com filmes como O invasor (2002), de Beto
Brant, O príncipe (2002), de Ugo Giorgetti, A Via Láctea (2007), de Lina Chamie,
169
Não por acaso (2007), de Philipe Barcinski, A casa de Alice (2007), de Chico
Teixeira, O signo da cidade (2007), de Carlos Alberto Ricceli e até mesmo Linha de
passe (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas, só para citar alguns. Segundo
Rubens Machado Jr., uma tradição criada em parceria com filmes como Moral em
concordata (1959), de Fernando de Barros, Imitando o sol (1964), de Geraldo Vietri,
e Noite vazia (1964), de Walter Hugo Khoury, que apresentavam “problemas sociais
diferentes daqueles que o Cinema Novo vinha construindo num Brasil imaginário
centrado principalmente nas contradições do campo” (Machado Jr., 2007, p. 70).
Um dos segredos de Person, no primeiro longa-metragem que de fato assinou,
foi ter ido à essência do cotidiano paulistano. Tal qual uma crônica oportuna, ele
percebeu os gestos e as atitudes dos cidadãos de sua própria cidade. Num
depoimento reproduzido pelo jornal Estado de Minas, no dia 24 de setembro de
1967, quando lançava O caso dos irmãos Naves em Belo Horizonte, o diretor fez
uma lembrança a São Paulo Sociedade Anônima: “O filme era, para mim, um longo
processo de raciocínio executado através da observação do comportamento da classe
média de nossa cidade que, aos trancos e barrancos, não consegue sair de si mesma e
passivamente aceita o seu destino estéril.” Trata-se de uma observação que pode ser
contestada, por trafegar entre o pessimismo e o realismo — mas que traz em si a
grande atualidade do filme para uma cidade que atravessou violento processo de
crescimento, com forte explosão imobiliária, e em menos de 50 anos mais do que
dobrou de tamanho (espaço físico) e população.
3.2. A versão 1 da Lauper
Luiz Sérgio Person fez parte deste processo de urbanização acelerada, do qual
se assumiu como testemunha em várias entrevistas. Sem entrar na seara psicanalítica,
é interessante reunir depoimentos e artigos que permeiam o assunto.
Em depoimento para Luiz C. Oliveira, no Jornal do Brasil (28 de novembro
de 1965), Person reconhecia:
De fato meu pai é um homem que enriqueceu com o surto industrial paulista, na
década passada. Ele sempre gostou de diamantes e, hoje, fabrica instrumentos que
levam diamantes. Mas Arturo é baseado, mesmo, em outras pessoas. Há diversos
170
fabricantes de peças em São Paulo, conhecidos por todos, cuja carreira foi idêntica à
do personagem do meu filme.
Dois anos depois do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, quando já
trabalhava na estréia de O caso dos irmãos Naves, Person ainda era instado a falar
sobre o “seu” papel dentro do filme. Foi o que aconteceu na entrevista para Alfredo
Sternheim, na revista Filme Cultura: “Conquanto eu negue a afirmação de muitos
críticos — que de certa forma eu teria feito um filme autobiográfico — admito que
sem esse ‘background’ da minha vida não teria havido São Paulo S.A.” (Sternheim,
1967, p.18-21).
Poucas pessoas conviveram tanto com Luiz Sérgio Person como o montador
Glauco Mirko Laurelli. Foram sócios em vários empreendimentos: Lauper Filmes
(iniciais de Laurelli e Person), tanto na produção de longas e curtas, como na de
comerciais; distribuidora de filmes RPI — Reunião de Produtoras Independentes, de
curta duração; Auditório Augusta, onde montaram muitas peças. Foram parceiros até
numa lancha que usavam em São Vicente, e que também se chamava Lauper. Mas,
principalmente, eram amigos.
Glauco, que tinha intimidade com a família, conta que a primeira opção dos
pais de Person era chamá-lo de Luiz Carlos. Mas a mãe, Isaura, não queria confundi-
lo com o líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB), Luis Carlos Prestes — e daí o
nome Luiz Sérgio.
No primeiro depoimento que gravei com Glauco, foi lembrada a aproximação
do filho com o pai, Luiz Person.
Glauco Mirko Laurelli — Tem muitas cenas que foram filmadas no escritório
onde o Person trabalhou com o pai. Porque o filme tem muita coisa da vida do
Person, da vivência do Person. O pai tinha uma indústria de ferramentas de
diamantes, ali na Água Branca. O escritório tinha até uns operários. Era a
Person-Bouquet. O pai era francês e era sócio de um francês. Todas as coisas
dos operários, inclusive o negócio de esconder os operários, eu desconfio que
talvez tenha acontecido no escritório do pai. O escritório do Zeloni era o
escritório do pai dele.
— E o nome “Agonia?”
GML — Eu lembro do nome, mas isso foi quando estava elaborando. Isso não
acompanhei. Acho que a maior parte ele elaborou quando trabalhou na firma
171
do pai, de onde foi tirando todos os dados e, na Itália, ele finalizou. Person
sempre teve este filme na cabeça. E tem outras cenas que aconteceram com o
próprio Person. É o caso da cena em que o Walmor quebra os champanhes na
frente da casa da Eva Wilma. Nós íamos todos os fins de semana para a praia.
Eu tinha uma lambreta e descia a serra do Mar. Lá a gente esquiava. E no
Guarujá ele arrumou uma namorada sueca e, depois de um jantar, ele tomou
um pileque e fez a cena igualzinha. Foi a cena que ele colocou no filme. O
Person também quebrou um champanhe. Como nos outros filmes. No caso do
Cassy Jones, o magnífico sedutor, a história da mãe é verdadeira, é a mãe
dele. Este filme é até dedicado à mãe dele, dona Isaura, que era uma pessoa
muito divertida, muito engraçada. Era a coisa da supermãe!
Ainda na época do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, na já citada
conversa com Orlando Fassoni, da Folha de S. Paulo, em outubro de 1965, Person
confirmou que seu primeiro filme só podia ser aquele e que tudo parecia um grande
desabafo pessoal:
“São Paulo S/A” nasceu de uma vontade muito antiga de fazer cinema com uma nova
visão que tive de minha nova cidade, dos seus e dos meus problemas, ao sair daqui, em
1961, e permanecer dois anos e meio fora do país. É um filme muito pessoal, onde se
chocam conflitos particulares com preocupações sociais. É, sobretudo, um filme de
libertação: não me sentiria capaz de fazer outro filme antes desse.
Pouco antes de falecer, no famoso programa na TV Cultura, Person contou
como tinha sido sua experiência na TV Tupi, onde dirigiu teleteatro a convite de
Antunes Filho, e explicou para o telespectador quais eram suas experiências:
[...] trabalhei em indústria, fui vendedor de uma fábrica que então nesse momento
meu pai iniciava. De uma oficina mecânica passou a ser uma fábrica e eu comecei a
viver por dentro da indústria automobilística, o desenvolvimento da indústria
automobilística em São Paulo. Eu trabalhava com a Volkswagen, com a Mercedes, a
Willys, sem querer eu estava adquirindo o material básico do meu primeiro longa-
metragem oficial, importante, que seria o São Paulo S.A. Foram alguns anos de
vivência no meio não-artístico, um meio completamente afastado daquilo que me
fascinava na infância — o cinema, o teatro. Até que chegou um ponto que eu não
agüentei mais isso e então fui para a Europa, pretendendo apenas passar três meses e
fiquei dois anos e meio lá. Foi quando eu escrevi, enquanto cursava essa escola de
172
cinema em Roma e trabalhava como assistente de diretores italianos, eu escrevi o
meu primeiro longa-metragem, São Paulo S.A. (Labaki, 2002, p. 27).
3.3. A versão dos parceiros
O futuro parceiro de Person no roteiro de O caso dos irmãos Naves, Jean-
Claude Bernardet, também reconhece alguns pontos de semelhança entre o
personagem Carlos e o diretor de São Paulo Sociedade Anônima. Ele gravou um
longo depoimento para a dissertação de mestrado de Marco Antonio Bin.
Eu concebo isso dentro da linha autobiográfica que o Person tenha visto no Carlos,
uma possibilidade de sua própria vida. Não que ele tenha tido essa vida. Ele não
teve. Mas que ele tenha visto o adolescente que ele foi e que poderia evoluir nesta
direção. Eu tenho essa impressão, e o Carlos acaba seguindo os passos, nem sempre
satisfeito, mas acaba seguindo, galgando degraus na carreira, mas ao mesmo tempo
não aceitando isso, mas também não criticando, não reagindo à altura, e a panela
acaba explodindo (Bin, 1998, Apêndice 5, item 5.1).
Posteriormente, em gravação para Marina Person no documentário Person,
Jean-Claude Bernardet confirma: “Eu sinto muito o Person no Carlos. O Carlos é o
terror do Person. Eu acho que o Carlos é um pouco o que o Person pensou e a revolta
do Person contra aquilo que ele poderia ter sido. Afinal de contas, aos 50 ele poderia
ter se tornado um empresário.”
A tal “panela” que explode também foi apontada por Carlos Reichenbach na
crítica que escreveu para a Folha de S. Paulo em 1996, por ocasião de mais uma
mostra com as obras de Person. “Carlão”, como é conhecido entre seus colegas de
cinema, diz que Person foi um artista e profeta que anteviu grande parte das coisas
que viriam a seguir — principalmente a partir do golpe militar de 1964 —, como a
geração do milagre econômico, o conformismo e o cinismo da sociedade brasileira. E
o cineasta completa: “Como analisou o crítico e analista Jean-Claude Bernardet,
Carlos, em seu fracasso ao tentar se manter à margem do processo, na sua
indiferença afetiva e existencial, tem os braços abertos ao fascismo. Como penitência
para sua impotência, o termo recomeçar...”
173
No citado documentário, Bernardet confirma Carlos Reichenbach, ao dizer
que Person foi das poucas vozes da época que não se surpreendeu com o regime
militar que viria a controlar o país por longos anos.
Cláudio Petraglia, em seu depoimento para o Projeto Memória, da
Embrafilme em parceria com o MIS, também declara sentir semelhanças:
O Walmor era uma transposição dele mesmo com mais alguns pedaços de amigos.
Ele resolveu fazer uma Deusa Chiva. Era uma cabeça com várias pernas de várias
pessoas. Mas, vamos dizer, o fio condutor era o Person. O Walmor Chagas ali é o
Person. É um filme, vamos dizer, baseado nele mesmo; é a primeira catarse de um
grande diretor.
Petraglia vai mais além e comenta outra personalidade artística que teria
ajudado na inspiração:
O Person teve uma paixão violenta, furiosa mesmo, pela Maysa [Maysa Monjardim,
famosa cantora] e vice-versa. Tem algumas frases, inclusive, que foram vividas na casa da
Sofia Rosenhause nos fins de semana no Sumaré [bairro de classe média alta paulistana].
No documentário Person, de sua filha Marina, Regina Jehá, apesar de não tê-
lo conhecido no período de São Paulo Sociedade Anônima, afirma acreditar nesta
visão: “Ele foi um pouco Carlos. A única coisa é que Carlos não conseguia
recomeçar e ele sempre recomeçava com a maior energia, a maior força.”
Ao escrever a crítica do filme, após a Mostra de Pesaro, o jornalista Ugo
Casiraghi, do jornal L’Unitá, faz a mesma associação entre Person e Carlos, assim
como o curioso parentesco entre São Paulo e Milão, duas cidades industriais. Diz que
Person “ha studiato anche in Itália, e a San Paolo ha lavorato in una grande fabbrica”
e afirma que o “boom disordinato” que o filme introduz acentua a crise do
protagonista, em vez de resolvê-la.
Ricardo Aronovich, que o conheceu num breve encontro no Rio de Janeiro,
conforme palavras de Renato Magalhães Gouvea, impressionou-se com a
objetividade — que pode ser traduzida por profissionalismo — do jovem diretor.
São palavras que ecoam e se repetem no documentário Person, o que,
acredito, comprova a forte personalidade do diretor.
174
Ele era muito sério e muito diferente do pessoal de Cinema Novo, lá do Rio. Na
verdade, tinha saído do Centro Sperimentale, tinha uma outra visão, uma outra
linguagem. Tinha uma capacidade de conhecimento técnico, importante para a
época, o que não impede que a gente tenha brigado muito, em certos lugares aqui de
São Paulo, porque ele pedia coisas impossíveis.
As “brigas”, se é que se pode chamar assim, já que um set de filmagem é
cercado de variados “interesses” (som, enquadramento, interpretação, direção de arte,
etc.), foram confirmadas por Gouvea, que me relatou sobre as reuniões que faziam
antes das filmagens. O produtor acha que isso era natural pela inexperiência do diretor,
e que também teria acontecido com o ator Otelo Zeloni, mais experiente, que não
gostava de determinadas cenas. Gouvea cita especificamente a do restaurante alemão:
com ironia, Zeloni teria dito que aquela cena lhe garantiria “um prêmio em Cannes”.
3.4. A versão de fora
No pequeno estudo que publicou em 1966, por encomenda de Ismail Xavier,
João Silvério Trevisan, outro cineasta, discute o realismo que São Paulo Sociedade
Anônima consegue atingir, e “especula” sobre a própria angústia do autor — e que é
transferida para o espectador:
Person, dono de uma idéia antiga, continuou corajosamente e decisivamente as
histórias sem fim. Situou o homem onde êle temia se situar. Seu personagem é um
eterno insatisfeito, porque está justamente no inferno temido. Nada mais amargo. O
espectador já não sai do cinema a falar dos outros, sai falando de si mesmo
(Trevisan, 1966, p. 14).
A personalidade forte de Person é notada até por quem não o conheceu. É o
caso do crítico, pesquisador e professor Carlos Augusto Calil, que, como diretor-
executivo da Cinemateca, organizou uma mostra sobre o cineasta no Museu da
Imagem e do Som de São Paulo, em 1988. Na abertura do catálogo, Calil intitulou
seu texto “Luiz Sérgio Pessoa”. Vale a pena ler na íntegra:
175
Não lembro de tê-lo visto em vida. Acho mesmo que jamais nos encontramos, o que
deve ser verdade, pois era impossível ignorar sua pessoa. A vitalidade que dele
emanava não admitia neutralidade nem cerimônia. Seu comportamento era de
domínio público, acompanhado com admiração pelos lances de ousadia que ia
acumulando. A trajetória, feita de movimento contínuo, recusava o risco previsível
e, principalmente, o alvo seguro. Buscava uma geometria imperfeita e intuitiva, à
maneira do toureiro na arena. O prazer está na ciência com que se enfrenta o perigo,
mais do que no ato de subjugar a fera. Um jogador generoso, que distribuía fichas
aos amigos para estimular neles a coragem de propor blefes ao destino. O gosto
infantil de desarrumar e o sorriso inteligente do duelista. Esta personagem pertence
ao século XVIII. A morte prematura o confirma. Passou pelo cinema brasileiro
como uma ventania e pagou o preço de sua incoerência. São Paulo S. A. e os Naves
são testemunhas de um talento incontido nos limites impostos por seu tempo. Que
ele, como poucos, soube afrontar.
3.5. A versão 2 da Lauper
No livro da coleção Aplauso (da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo)
que lhe é dedicado, Um artesão do cinema, Glauco Mirko Laurelli, o montador e
editor de São Paulo Sociedade Anônima devota vários capítulos a Person, inclusive
sobre seu trágico falecimento. Em seus depoimentos para Maria Ângela de Jesus,
reverbera o que me disse em duas entrevistas. No capítulo A morte de Person, narra
como foi a tragédia e explica como funcionava a sociedade e a amizade (“quase um
irmão para mim”) entre eles:
O que ele tinha de loucura, eu tinha de pé no chão [...] Person, ao mesmo tempo em
que era uma pessoa muito divertida, tinha esse lado mais difícil. Muitas vezes ele
tinha atritos com os próprios atores. E se ele se cansava de alguém, queria se ver
logo livre dessa pessoa. Era o jeito dele.
Como pretendo explicar no capítulo sobre a desmontagem & remontagem de
São Paulo Sociedade Anônima, levei o DVD do filme para o apartamento de Glauco.
Ao perguntar sobre o corte para a morte de Hilda, ele puxou o assunto para a
personalidade de Person.
17
6
Glauco Mirko Laurelli — Agora, o que estou achando, assistindo agora, é que o
personagem do Walmor é muito do Person. Acabamos de ver o jeito de Carlos
falar e me lembrei do Person. Person não era nenhum anjo [ri]. Por isso que eu
acho que as brigas com a Darlene. O Person era uma pessoa que estava muito
bem no trabalho e, de repente, queria eliminar alguém da vida dele. Isso ele
fazia mesmo. Eu nunca tinha feito esta ligação. Assistindo agora, vejo que era
bem o jeito dele de ser!
3.6. A chave burguesa e católica
Person foi casado duas vezes. A primeira, com a alemã Hiltrud Holzherr, que
conheceu em Paris, durante sua estada européia. Estavam noivos quando filmou São
Paulo Sociedade Anônima, e ela teve uma pequena participação, como atriz em O
caso dos irmãos Naves.
Para a realização desta dissertação, decidi não fazer entrevistas diretas, nem
com a primeira nem com a segunda esposa de Person, Regina Jehá, que conheceu
depois de São Paulo Sociedade Anônima, assim como com suas filhas Marina e
Domingas, que só o conheceram na primeira infância. Não quis me influenciar pela
proximidade, e, de qualquer maneira, muito do material que poderiam fornecer já
está no documentário Person.
Person nasceu e cresceu na Lapa paulistana e, mais tarde, morou na rua
Fortunato, no bairro da Vila Buarque, de classe média, onde filmou trechos de São
Paulo Sociedade Anônima. Sua educação foi em escolas religiosas, como o Colégio
São Bento. Como era comum entre famílias de classe média que tinham de optar
entre poucos cursos superiores, como Engenharia, Medicina, Administração e
Direito, Person entrou na Faculdade de Direito da USP, em 1954, no largo de São
Francisco, mas abandonou o urso no último ano, sem se formar. Mais tarde, deu
aulas de cinema na Escola Superior de Cinema São Luiz.
Segundo Marina, o pai dele, Luiz Person, era filho de imigrante, estudou na
França durante a juventude e retornou ao Brasil aos 18 anos, quando abriu uma
fabrica de apetrechos náuticos — o que, certamente, despertou a paixão do diretor
por barcos. Outro negócio do pai de Person foi com garimpos de diamante no estado
17
7
de Mato Grosso. Ao retornar a São Paulo, abriu uma pequena oficina que se
transformou numa fábrica de ferramentas industriais com ponta de diamante, na qual
Person chegou a trabalhar. A mãe dele, Isaura Miranda Person, era descendente de
portugueses e trabalhava como fiscal do Imposto de Renda. Os bisavôs paternos
eram franceses, e do lado materno havia uma mestiçagem de origem nórdica. Mais
exatamente na Suécia, onde, segundo Marina, o sobrenome Persson — com dois “s”
— é tão comum como Silva no Brasil.
Marina Person diz que seu pai falava inglês, mas não dominava a língua. Já o
francês e o italiano, falava e escrevia com fluência. Por influência de seu tempo na
Itália, chamava o próprio pai de “Luigi”, apelido adotado pelas filhas.
Nestas poucas palavras, é possível notar a educação católica de classe média
que Luiz Sergio Person teve. De certa forma, aí pode estar uma chave para se
entender as angústias e culpas dos personagens, até mesmo de Arturo Carracci, que
troca este dilema pelo desafio de ser um vencedor.
A “angústia” de Carlos tem a ver com o tipo de educação da culpa que cerca a
sociedade católica. Tanto que o filme se chamaria Agonia. Como protagonista,
comanda uma série de “expiações” para “narrar” os problemas de suas parceiras: 1)
Luciana é uma moça “direita”, que só quer casar dentro dos padrões católicos; 2)
Ana, apesar da suposta alegria de viver, vive em culpa pela mãe que mora no asilo;
3) Hilda, que vive em busca do amor perfeito, comete suicídio por não suportar a
falta de superação após a perda do marido.
Em tudo, uma palavra-chave: arrependimento, que está presente em todas as
orações cristãs ou judaicas — especialmente na hora da confissão — e que, na
verdade, tem um sentido artístico.
A etimologia ensina que a palavra significa “modificação de parte de uma
pintura feita pelo próprio artista durante sua execução e subseqüentemente coberta
com tinta. O arrependimento, que na pintura a óleo se torna parcialmente visível com
o transcurso do tempo, quando a tinta se torna transparente devido a uma mudança
física na camada de óleo de linhaça quando este envelhece”. Em inglês, pentimento;
second thoughts; repentance; ghost. Em espanhol, arrepentimiento; pentimento;
pintura soterrada. Em francês, repentir; pentimento.
1
1
Cf. Dicionário de termos artísticos. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1998.
178
A própria história de São Paulo, a capital, é cercada pelos símbolos
religiosos. Em determinado período colonial, sua geografia era marcada pelas
fronteiras do Pátio do Colégio (jesuíta), largo de São Bento (beneditinos) e largo de
São Francisco (franciscanos). E foi daí que surgiu sua expansão. Curiosamente, por
ser uma “Cidade do Trabalho”, não há um santo padroeiro, como acontece no Rio de
Janeiro, que declara feriado o dia de s. Sebastião. O próprio apóstolo s. Paulo é
pouco conhecido pelos paulistanos, e sua imagem não circula. Afinal, a fundação
está ligada a José de Anchieta, o jesuíta que batizou a cidade.
Se Manhattan (1979), de Woody Allen, tornou-se “fotografia” oficial de
Nova York, muito é pelo sotaque judeu — e principalmente pelo seu humor também
carregado de culpa — que o filme tem. Já São Paulo Sociedade Anônima é o retrato
de “culpas” e da necessidade de cumprir um destino que parecia previamente traçado
para a cidade. É o retrato da indústria em explosão, da construção de “arranha-céus”
(como se dizia na época), do trabalho como finalidade, da impessoalidade nos
relacionamentos, dos bordões do tipo “uma cidade que não pode parar”, do símbolo
de locomotiva da economia brasileira, da busca de um status semelhante ao
American way of life. No bojo disso tudo, o crescimento e o fortalecimento da classe
média que quer subir na vida. E no comando desse processo, a nova burguesia, que
finalmente tomava o lugar dos grandes plantadores de café, até aquele momento o
produto impulsionador da economia brasileira. Os chamados “barões do café” eram
substituídos pelos “capitães da indústria” — como Arturo Carracci chega a se auto-
intitular na cena da sauna. O quanto há de culpa católica nesta burguesia que
“explora” os trabalhadores?
Ironicamente, a canção preferida de Carlos é A favela, de Heckel Tavares, que
narra o desespero de um homem abandonado pela mulher. Nesta época, a realidade
da favela já ameaçava a realidade social brasileira, embora a intelectualidade carioca
ainda cantasse a união entre o morro e a vida urbana, entre o samba e a MPB,
especialmente a Bossa Nova.
A primeira vez que Carlos canta a música é na “festinha” na casa de Luciana,
logo após o encontro dos dois. A letra, no roteiro, está da seguinte maneira:
— “E outro dia eu fui lá em cima na favela,
oi, e ela, oi, não estava... Por isso
179
eu ando pelas ruas da cidade vendo que
a felicidade foi a vida que passou...
e a favela que era minha, que era dela,
só deixou muitas saudades, porque o res-
to ela... le-vou...
Nesta cena, Luciana diz que a música era coisa de velho, e Carlos se diz um
“velho”. Já no final do roteiro, consta:
140-) INTERIOR DO AUTOMÓVEL — NOITE
447
Carlos guiando.
Canta baixinho, num murmúrio:
— “E outro dia eu fui lá em cima na Favela,
oi, e ela, oi, não estava...[riscado à mão]
por isso eu ando pelas ruas da cidade
vendo que a felicidade
foi a vida que passou...”
Na mesma entrevista a Luiz C. Oliveira, no Jornal do Brasil, citada no início
deste capítulo, é o próprio Person quem menciona a palavra “culpa”, ao discutir os
destinos dos personagens com o entrevistador: “[...] não concordo com a sua
afirmação de que eu mostro a ascensão para a burguesia, a sua brutalidade, a
desumanidade da cidade, mas no fundo minha condenação é inútil, é quase minha
culpa. Eu não condeno, eu mostro e tenho consciência.”
O próprio título da entrevista tem o tom da provocação e da questão da auto-
recriminação: “Person e a má consciência da burguesia.”
Alguns pensadores, como Ismail Xavier (no artigo da revista Sinopse) e
Rubens Machado Jr. (em Imagens brasileiras da metrópole), classificam a
personagem Ana como “garota de programa”.
“Ressentido, (Carlos) é agressivo com as mulheres e tende a desprezar a
figura com quem se relaciona, seja a garota de programa, seja a sua própria esposa”
(Xavier, s/d, p. 19).
O que as duas amantes despertam em Carlos parece ser à primeira vista o hábito
extraconjugal como uma espécie de apanágio do sucesso profissional. Mas apenas
180
Ana se encaixa nesta categoria, se afigurando como a garota de programa que
solicita dos amantes o brilho da afirmação econômica e do prestígio exemplificados
no seu patrão, Arturo (Machado Jr., 2007, p. 73).
Não concordo com tais avaliações. No inicio do filme, Ana apenas namora
Carlos, reconhece que precisa de dinheiro, mas em nenhum momento deixa claro que
o relacionamento é “remunerado”. Da mesma maneira, transforma-se em amante de
Arturo Carracci. Mas isso não significa “fazer programa” como se recebesse
pagamento em troca de sexo. Um de seus objetivos, de fato, é ajudar a amiga em
busca de uma oportunidade na televisão. “Garota de programa” é uma expressão dos
anos 1990, uma forma amena para classificar “prostituta”. Eu preferiria designá-la
como uma pessoa em busca de ascensão social (nos anos 2000, diz-se “alpinista
social”), mesmo que através de um casamento de oportunidade. Ou, para usar a
expressão de uma das reportagens, uma “cavadoura de ouro” (Diário Popular, de 3
de julgo de 1964). Por ironia, Ana é, isso sim, “garota-propaganda” da marca de
autopeças Carracci. E, a partir desse período, muitas mulheres ficaram
estigmatizadas pela classificação de “manequim e modelo” (até mesmo pelo cinema,
como no filme Anuska, manequim e mulher, em que o próprio Person atua), que a
sociedade tradicionalista utilizava para impedir o acesso a determinados lugares de
“classe” — ao contrário das “misses”, que participavam de concursos de beleza, mas
precisavam provar a sua “pureza” (e , observe-se, eram estimuladas pelas famílias).
Avaliação semelhante foi feita por Roberto Tadeu Noritami, em sua
dissertação de mestrado (cf. Noritami, 1997), quando sugere a “prostituição” de Ana.
Ana vive no hedonismo. A única cena em que a vemos trabalhando é quando está
desempenhando o papel de garota-propaganda (divulgando peças vestida de maiô),
isto é, uma atividade associada à falta de qualificação e, em alguns casos, a um certo
tipo de prostituição (Noritami, 1997, p. 96-97).
Creio que se trata de uma afirmação preconceituosa e, apesar de enunciada
nos anos 1990, típica do período retratado em São Paulo Sociedade Anônima. Ser
“garota-propaganda” é, e sempre foi, uma profissão como qualquer outra. E vestir-se
de maiô está longe da pornografia. Marilyn Monroe já havia posado nua para a
Playboy. Nem é preciso citar os atuais padrões, em que o trabalho como “modelo”
transformou-se numa carreira digna e de grande visibilidade, em escala internacional,
181
embora este status tenha ficado mais forte a partir dos anos 1980, com nomes como
Luisa Brunet, até o começo do século XXI, com Giselle Bündchen. Ou será que
homens posando de calção de banho seriam “prostitutos”? Nos anos 1970, o goleiro
Leão, do time de futebol Palmeiras, teve sua foto estampada em outdoors para uma
marca de cueca e foi muito criticado. Mas pelo pudor vigente, não por ter se tornado
um “prostituto”. Hoje em dia, atletas das Olimpíadas aparecem nus em calendários
promocionais. Neste sentido, Ana poderia ser considerada uma libertária, no estilo
Leila Diniz, que não temia amar vários homens ao mesmo tempo. Aliás, ser atriz
também era considerado imoral pelos padrões de “moral e civismo” dos anos
anteriores aos de 1960, caso de “prostituição” — especialmente se as “moças”
dissessem palavrões ou mostrassem partes do corpo.
Da mesma maneira, tanto Xavier como Machado Jr. classificam Hilda (e
também Ana, por Machado Jr.) como “amante”, do que discordo. Hilda não está
casada quando vai para a cama com Carlos no hotel e no apartamento de praia. E,
neste segundo ambiente, chega a dizer que ele não é seu amante. Assim como o
“turco”, como Hilda se refere ao dono do apartamento. Ali, seu personagem mostra-
se como uma mulher liberada, o que prenuncia a liberação sexual dos anos 1960,
muito mais do que uma pessoa em busca de favores de amantes. Só para lembrar, a
montagem de vai-e-vem nunca coloca as três mulheres no mesmo período. Portanto,
ao estar casado, Carlos não trai Luciana (a não ser no diálogo em off entre ele e Ana,
quando está guiando uma lambreta com Luciana na garupa, o que não delimita o
tempo em que ambas as ações ocorrem).
São detalhes que modificam a forma de se olhar para os personagens e o
próprio enredo. Acredito que um estudo sobre este tema pode trazer boas
informações sobre costumes e hábitos da época (para reforçar, de caminhadas pré-
golpe militar por civismo e bons costumes).
3.7. A questão do melodrama
melodrama. [De mel(o)+drama.] S.m. 1. Teatr.
Gênero dramático originário da França, no qual
os diálogos são entremeados de música, e que se
desenvolveu a começar do séc. XVIII,
182
principalmente graças ao dramaturgo italiano
Pietro Metastasio (1698-1782). 2. Teatr. Peça
demasiado sentimental e romântica, com
situações e diálogos turbulentos e pomposos,
mas de caracterização escassa e superficial. 3.
Teatr. Peça teatral de má qualidade. [Sin., nessas
acepç.: drama sentimental, e (deprec.) drama
lacrimoso.]. 4. Mús. Composição que se destina
a dar realce a uma pantomima ou comentar o
comportamento cênico de um personagem (Novo
Aurélio — O Dicionário da Língua Portuguesa /
Século XXI. Editora Nova Fronteira. 1999).
O termo “melodrama” cercou alguns comentários sobre São Paulo Sociedade
Anônima. O adjetivo “melodramático” pode ter diferentes significados, conforme sua
acentuação seja para elogiar, seja para denegrir.
Foi o que aconteceu depois da apresentação do filme, em março de 1965, cuja
projeção foi acompanhada pelo professor, crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet,
conforme depoimento gravado para Marco Antonio Bin.
Person tinha uma admiração enorme por Rossellini, e alguma coisa que as pessoas
do Cinema Novo criticavam no filme, por exemplo, quando houve a pré-estréia do
filme no Cine Santa Rosa, no Rio, as pessoas absolutamente não gostaram. Eu me
lembro muito bem que o Alex Viany na saída dizia: “não, este filme não é tão ruim
assim”, e justificava, “é um pouco melodramático etc.”. Esse aspecto melodramático
era uma coisa que o Person defendia [...] a idéia da trajetória individual é uma coisa
que para o Person era importante (Bin, 1998, Apêndice 5, item 5.1.).
Aqui cabe um parêntese. De fato, tempos depois, com o filme já lançado,
Alex Viany elogiou São Paulo Sociedade Anônima. Ignácio de Loyola, que
reproduziu o elogio na sua coluna da Última Hora de São Paulo, declarou que “um
dos críticos mais esclarecidos do Rio, Alex Viany, deu cinco estrelas”, justificando
com as seguintes palavras do crítico e cineasta ainda antes do lançamento em circuito
comercial carioca:
Luis Sérgio Person fez um filme realmente perturbador. Dirão certamente que
imitou Alain Resnais em seu estilo narrativo: eu prefiro dizer que ele empregou bem
183
os recursos mais eficientes do cinema moderno, aproveitando-os para transmitir
brilhantemente o que tinha a dizer sobre a sorte do homem sem classe dentro do
gigantismo aniquilador da maior cidade do Brasil subdesenvolvido.
Viany foi além. Na Última Hora do Rio de Janeiro, do dia 16 de junho de
1965, disse que talvez tivesse sido a estréia mais inteligente e imaginosa de toda
história do cinema brasileiro.
Legítimo representante do Cinema Novo, São Paulo S/A é, para mim, o filme mais
moderno e ousado que se produz no Brasil desde Deus e o Diabo na Terra do Sol, de
Glauber Rocha. E, tratando de uma temática urbana, da classe média e da burguesia
industrial paulista, abre novas perspectivas, novos caminhos, para esse cinema que,
apesar de imberbe, tantos problemas já levantou em torno da miséria do interior
esquecido e das favelas que ela faz crescer nos grandes núcleos populacionais.
A palavra melodramática também foi utilizada pelo cineasta Gustavo Dahl,
mas não em tom depreciativo. Na coluna Lettre de Rio, edição 168 da revista
Cahiers du Cinéma, de julho de 1965, Dahl falava nos primeiros filmes de Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirzsman, Walter Lima Jr., Luiz Carlos Maciel e, é óbvio,
de Luiz Sérgio Person, celebrado pelo seu prêmio em Pesaro. Aproveitava para
decretar 1965 como o ano da morte definitiva de uma etiqueta “Cinema Novo”. E
dizia: “D’un ton volontairement mélo, le film n’est pas sans quelques incertitudes de
goût, mais c’est un remarquable témoignage” (em tradução livre, “Com um tom
propositalmente melodramático, o filme tem momentos de gosto duvidoso, mas é um
testemunho marcante”).
Depois de premiado na Prima Mostra Internazionale del Nuovo Cinema
alguns críticos bateram na mesma tecla do “dramático” (conforme vimos no capítulo
anterior). Giancarlo del Re, do Il Messagero, ressaltou que era um filme
convencional, do gênero dramático e, “diciamolo, ‘fumettistico’ [fotonovelesco]”.
Comparar um filme a uma “fotonovela” é jogar a obra na vulgarização, é recriminar
o recurso de vender revistas para fazer chorar o público desavisado, por meio de
sentimentos simplórios. Já outro crítico, que não consegui identificar, assim como o
jornal, foi mais forte, ao aplicar o selo “melodrama”, enquanto o jornalista Ugo
Casiraghi, L’Unitá, órgão oficial do Partido Comunista Italiano, fazia a repetida
184
comparação com Antonioni, mas em tons de demérito, por se utilizar de uma chave
muito “romântica”.
Person certamente leu estas críticas, porque estava em Pesaro, acompanhado
pelo produtor Renato Magalhães Gouvea, que guarda os recortes dos jornais.
Mas como disse Jean-Claude Bernardet, o próprio Person não tinha problema
com o “melodrama”. Tanto que, num depoimento registrado por Salvyano Cavalcanti
de Paiva, teria dito:
Trata-se de um registro romanceado, de um melodrama barato que recobre uma
visão crítica de valores e contradições de uma realidade muito vizinha ao espectador
mediano de cinema, tal qual ela se apresenta num dado momento histórico: o surto
da indústria automobilística (Paiva, 25 nov 1965, s/p).
Segundo Paiva, a intenção melodramática é favorável ao filme:
Nas intenções do autor (porque se trata de um autêntico filme-de-autor) são os
problemas da classe média paulistana, suas convenções e limites humanos, o que
São Paulo S.A. focaliza. Não é um panegírico, nenhuma diatribe — nem menos um
documentário. Teria Person obtido sucesso com sua pesquisa, sua indagação? A
nosso ver, completo (Paiva, 25 nov 1965, s/p).
Não creio que o filme seja um melodrama, embora utilize determinados
recursos para explorar esta chave — caso da primeira cena, em que Carlos joga
Luciana ao chão, seguida pela apresentação com uma música exagerada e pelo
diálogo posterior em que ela implora, deitada no chão do apartamento, “Não vá
embora, Carlos, não vá...”, e ele responde: “É como um câncer...”
Em São Paulo Sociedade Anônima, as angústias e procuras do protagonista não o
levam a encontrar uma saída, como seria a proposta natural de um “cinema industrial”.
Após o suicídio de Hilda, por exemplo, Carlos poderia encontrar seu caminho natural: de
forma tranqüila, render-se à Luciana. Ou, por outro lado, romper com a esposa de uma
forma organizada, demitir-se da fábrica de Arturo (de quem quase ficaria sócio,
conforme anúncio na cena da sauna quando a informação de um dinheiro do pai de
Luciana deixa Carlos irritado) pegar o próprio carro, um ônibus, um trem ou um avião e
“pirar”, expressão que usa na discussão final com sua esposa. Mas não: Person propõe a
ruptura total, a quebra dos parâmetros, inclusive com uma transgressão não-natural, o
185
roubo de um carro. Como escreve Xavier (s/d, p. 18): “Carlos não encontra
compensação na vida doméstica, como em melodramas de final feliz”. Ou seja, o
chamado “happy end” que caracteriza grande parte dos filmes de Hollywood.
Este é um tema que também pode ser objeto de estudo por outros
pesquisadores. Por isso, não vou me aprofundar excessivamente. Mas vale notar e
anotar algumas discussões que têm sido feitas na virada do milênio, e que se
distanciam do olhar dos anos 60, quando o fato de ser melodrama gerava muito
preconceito por parte de determinada crítica determinista e engajada (ver palavras de
Glauber Rocha sobre o drama pequeno-burguês da personagem Luciana, que quer
levar o marido a viver num sistema medíocre).
Em O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson
Rodrigues, Ismail Xavier se debruça sobre o tema em vários artigos compilados de
publicações anteriores. No capítulo “Melodrama ou a sedução da moral negociada”,
ele afirma que “a combinação de sentimentalismo e prazer visual tem garantido ao
melodrama dois séculos de hegemonia na esfera dos espetáculos” (Xavier, 2003, p.
89). Isso significaria que o cinema como o concebemos, é tão orgulhoso de seus
efeitos especiais como o teatro popular do século XIX.
Xavier cita, por exemplo, as reapropriações feitas por cineastas tão diferentes
como Spielberg e Lucas, na reviravolta que promoveram em Hollywood a partir da
metade dos anos 1970, assim como Fassbinder, Resnais, Ken Loach e até James
Cameron, em Titanic (1997). E usa como referência o livro The melodramatic
imagination, de Peter Brook, que, segundo ele, teria ampliado as reflexões sobre as
ligações entre o gênero e a indústria do audiovisual.
Flexível, capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um imaginário que
busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível, quando ela parece ter perdido seus
alicerces. Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige
uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e nos sentimentos
“naturais” do indivíduo na lida com dramas que envolvem, quase sempre, laços de
família (Xavier, 2003, p. 89; grifos no original).
É neste sentido que, acredito, Person não temia a palavra melodramática,
inclusive na utilização de música quase operística, nas margens do exagero.
18
6
No roteiro original, cena 2, descreve o tipo de sonoridade que espera para o
início, como acompanhamento:
Diversos planos muito rápidos do amanhecer de São Paulo, principalmente nos
bairros populares e industriais. Bondes e ônibus que passam cheios. Correrias, entrada de
fábricas. Em todos os planos, uma grande quantidade de gente que se movimenta,
ocupando densamente o quadro. Sobre estas imagens entram os demais títulos do filme.
Uma música hurlante (tipo canções de Luciano Berio cantadas por Cathy Berberian) alterna-
se com a melodia e a letra simples de “FAVELA” (Heckel Tavares).
A mescla comprova o ecletismo de Luiz Sérgio Person, que não temia misturas.
2
A música final de São Paulo Sociedade Anônima foi composta por Cláudio
Petraglia, certamente inspirada em Beria, e os trechos de Favela não foram inseridos
no inicio do filme.
Person não temia os relacionamentos conflituosos, a exacerbação dos
interesses individuais sem ligar para a “vontade coletiva”. É que, pelo contrário,
segundo suas próprias palavras, utiliza-se de um momento histórico, uma pequena
revolução econômica e social de um lugar, para representar o drama de pessoas que
poderiam ajudar na auto-identificação do espectador, sua meta final.
Dois anos depois do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, Person
ainda se sentia instado, provocado, estimulado, a repensar o assunto. Em um
depoimento para o jornal O Estado de Minas (ver Anexo 3), discute com os
“críticos” que sorrateiramente — porque não escreviam — teriam falado mal do
filme. E até usa a palavra “dramalhão”, que é uma forma sub-reptícia de se acusar
2
O nome do primeiro compositor é, de fato, Luciano Beria (1925-2003). Italiano, foi dos primeiros a
experimentar métodos não ortodoxos para produzir sons a partir de vozes e de instrumentos. É
conhecido por ter introduzido elementos teatrais e sons não musicais nas suas partituras. Tem obras
líricas e de fácil compreensão, bem no estilo italiano, e experimentou a música eletrônica. Foi casado
com a cantora Cathy Berberian (1925-1983) e se mudou para os Estados Unidos em 1951 (cf.
http://agnazare.ccems.pt/EB23EMUS/compositores/compositores_a_z/compositores_a_z_b.htm). Já
Heckel Tavares (1896-1969), alagoano, foi pianista, regente e folclorista e sempre misturou o erudito
com o popular. Por isso, compôs desde canções populares, como Favela, até poemas sinfônicos como
Demônio de cabelo encarnado. Heckel também fez letras e músicas para o filme Ganga Bruta (1933),
de Humberto Mauro, o que pode ter servido de inspiração para Person.
18
7
algo de “melodramático”. Ou seja, o “Grande Drama” escondido por trás de certa
modernidade que ninguém conseguia negar. Disse Person:
Quando apresentei S.P.S.A., dentro e fora do Brasil, a par do sucesso de público e
uma série de críticas favoráveis, não faltou quem dissesse que eu havia feito um
filme acadêmico, pseudomoderno, um dramalhão camuflado por uma complicada
estrutura narrativa que visava despistar a sua mediocridade. Houve mesmo quem me
acusasse, e gente de uma certa consideração, de haver dado um certo acento
alienado, niilista, insignificante ao final do filme. Isso, se de fato aconteceu,
contrariou as minhas mais modestas pretensões.
Como se vê, Person se apegou, e muito, às críticas dos jornais italianos que
foram recortadas e trazidas pelo produtor Renato Magalhães Gouvea (ver Anexo 4).
3.8. A vontade de ser ator
Não dá para dizer que Luiz Sérgio Person foi um ator frustrado. Afinal, sua
carreira na profissão foi espaçada e pequena. No caso de cinema, apenas quatro
longas. E, mesmo assim, em prólogo e/ou capítulo de filmes — todas participações
pequenas. Talvez tenha sido mais uma vontade de estar perto dos amigos e dos sets
de filmagem — e quando já estava consagrado pelos seus dois filmes mais
marcantes, São Paulo Sociedade Anônima e O caso dos irmãos Naves.
Fez, por exemplo, o primeiro episódio, “Fabricante de bonecas”, do filme O
estranho mundo de Zé do Caixão, de José Mojica Marins. É preciso muita atenção
para encontrá-lo no meio deste filme de terror. Foi em 1967.
Em 1968, ao lado de Sérgio Hingst e Berta Zemel, entre outros, trabalhou no
filme do crítico Rubem Biáfora, O quarto.
No mesmo ano, teve uma participação em Anuska, manequim e mulher, de
Francisco Ramalho Jr. No elenco, Francisco Cuoco e Ruthnéia de Moraes.
Sua última experiência foi no prólogo de um filme de seu ex-aluno de cinema na
Escola Superior de Cinema São Luís, Carlos Reichenbach. Era uma obra ainda da fase
inicial de “Carlão” na chamada “Boca do Lixo” e levava o título de Audácia, a fúria dos
desejos (1970).
188
Mas Person “nasceu” ator para as artes, um desejo que, segundo ele mesmo,
em depoimento para a atriz Joana Fomm, no célebre programa da TV Cultura, vinha
desde os 12 anos de idade. Aos 15, em um concurso lançado pelo extinto jornal O
Tempo, chegou a disputar uma vaga para a peça Massacre, de Emanuel Ròbles. Entre
150 candidatos, passou no teste de interpretação e ficou entre os 35, ou 36,
concorrentes. A peneira final determinou cinco finalistas, Person entre eles, ao lado
de Serafim Gonzales. Mas uma mudança de produção transferiu a estréia para o Rio
de Janeiro. “Eu tinha 15 anos apenas e meus pais não deixariam, não deixavam, que
eu interrompesse os estudos e fosse para o Rio de Janeiro ser ator.”
Em 1955, encena peças teatrais em casa de amigos. E pela Companhia de
Comédias de Odilon Azevedo, no Teatro Municipal de Campinas, participa da peça
Vamos brincar de amor.
3
Determinista e determinado, o diretor de São Paulo Sociedade Anônima
declarou para Joana Fomm:
Isso foi bom num certo lado, o teatro saiu ganhando, eu depois fiz algumas outras
experiências como ator. Trabalhei como ator profissional de teatro, trabalhei como
ator de televisão, contracenei com uma grande amiga, Cacilda Becker, com Maria
Fernanda, mas realmente também a televisão saiu ganhando, porque eu era um
péssimo ator.
Não sei se é o caso de comentar, mas sua “grande amiga” Cacilda Becker foi
casada com o ator Walmor Chagas. Dona de uma companhia, Person foi revelado
pelo Grande Teatro Cacilda Becker, programa que encenava peças exibidas às
segundas-feiras pela TV Record.
Na mesma época, formaria o Teatro Paulista de Câmara, com Antunes Filho e
Flávio Rangel.
Nos anos 1970, retornou para este universo. Montou uma casa de espetáculos,
o Auditório Augusta, e traduziu e dirigiu peças. Mas não só não atuava como
continuava a se auto-ironizar como ator. De acordo com uma reportagem da Última
Hora de São Paulo, no dia 9 de janeiro de 1976, logo após sua morte, Person teria
dado uma entrevista para a jornalista Regina Penteado, em 1973, quando lançou El
Grande de Coca-Cola. E nela, se ironizava: “Sou um canastrão tão grande que
3
Cf. http://br.share.geocities.com/adudabr/luiz_person.htm.
189
quando estou dirigindo e mostro como quero que os atores digam alguma coisa, fico
abismado com o resultado.”
Paulo Goulart e Laerte Morrone, atores que trabalharam na montagem da
peça Orquestra de senhoritas, confirmam isso em depoimento gravado pelo Projeto
Memória do MIS/Embrafilme (10 de junho de 1986). Morrone assim descreve:
E tem que contar também como é que ele (Person) explicava para o Paulo (Goulart),
como é que o Paulo tinha que se comportar como mulher [...] Porque ele era
canastrão, ele era ruim demais. Ele declamava de uma maneira tão ridícula e ele
dizia: “Não é assim que tem que ser, Paulo?”. E o Paulo: “É... é verdade” (irônico).
Mas a gente não tinha coragem de rir na cara dele. A gente dizia: “Pára, Person,
você é muito canastrão”. E ele dizia: “Eu sei, Eu sou canastrão desde a época da
minha juventude”.
3.9. As diferentes interpretações de um personagem
Ainda sob o impacto da 1ª Semana do Cinema Brasileiro que aconteceu no
Distrito Federal em 1965, o então crítico Rogério Sganzerla escreveu o artigo
“Brasília, uma perspectiva” para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo.
Foi no dia 18 de dezembro. E lá, além dos filmes, o futuro cineasta comentou os
seminários e debates que marcaram a Semana que, depois, viria a se transformar em
Festival. Um deles tratava justamente da questão da interpretação no cinema
brasileiro — fato que demonstra o debate sobre personagens já no primeiro filme de
Person. Escreveu Sganzerla:
Falando sobre a problemática artística, o crítico Jean-Claude Bernardet pôde
desenvolver uma interessantíssima tese, em que a história do nosso cinema é revista
em função de personagens. Depois de referir-se ao maniqueísmo de obras primitivas e
especialmente da “chanchada”, Jean-Claude observou a complexidade crescente dos
personagens desde “O Grande Momento”, relato fiel da vida urbana de São Paulo, até
“Bahia de Todos os Santos”, retrato psicológico de personagens ambíguos. A seu ver,
os três personagens-chave são: o Antonio das Mortes, de “Deus e Diabo na Terra do
Sol”, Carlos de “São Paulo S.A.” e Augusto Matraga da fita homônima; para defini-los
190
perfeitamente seriam necessárias páginas e páginas. Esperemo-las, já que Jean-Claude
Bernardet promete escrever um livro sobre o assunto.
Dois anos depois, duas frases de Jean-Claude Bernardet em seu Brasil em
tempos de cinema causaram (e ainda causam) polêmica. A primeira é um paralelo
entre o personagem Carlos, interpretado por Walmor Chagas, e Antonio das Mortes,
com o ator Mauricio do Vale no filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de
Glauber Rocha.
Em relação a Antonio das Mortes, Carlos é um passo à frente: a oscilação entre dois
pólos sociais, que caracteriza a galeria das mais significativas personagens do
cinema brasileiro, desapareceu; essa ambigüidade havia de resolver-se à medida que
os cineastas se aproximassem da problemática da classe média. A oscilação, todavia,
não se resolveu por uma escolha consciente. Justamente, não houve escolha, não
houve elaboração de um projeto. Carlos é levado no caminho aberto pela grande
burguesia. No entanto, sendo Carlos uma personalidade dramaturgicamente fraca,
Antonio das Mortes permanece com a última palavra (Bernardet, 1967, p. 109).
A partir daí, Bernardet conclui que a verdadeira personagem do filme de
Person acaba sendo a própria cidade de São Paulo na época do rush automobilístico.
Na outra frase polêmica, afirma que o tema escolhido por Person tem a maior
importância, mas a entrega e a falta de contestação do personagem contra os
mecanismos do capitalismo e da alta burguesia levam-no a uma atuação passiva:
“Em sua indefesa total, Carlos tem os braços abertos para o fascismo” (Bernardet,
1967, p. 111). Em pelo menos um momento, Bernardet teve oportunidade em negar a
primeira e revalidar a segunda das afirmações.
No depoimento que gravou para a dissertação de mestrado de Marco Antonio
Bin, em 1998, apresentado na PUC de São Paulo, Bernardet disse:
Eu discordo totalmente da expressão dramaturgicamente fraco. Pode-se dizer que o
Carlos seria um personagem psicologicamente fraco, mas ele não é
dramaturgicamente fraco porque é ele que carrega o filme todo [...] Eu estou
trabalhando muito com roteiros, dando aulas de roteiros, e essa palavra
“dramatúrgica” ou “dramaturgia”, eu estou usando com um cuidado maior do que
aquele que eu tinha quando escrevi Brasil em tempo de cinema [...] Sobre Carlos ter
191
os braços abertos para o fascismo, é uma afirmação que eu tenderia a manter (Bin,
1998, Apêndice 5, item 5.1).
A crise na construção do personagem de Carlos é corroborada, embora com
outro olhar, por João Silvério Trevisan, que, ainda em 1966, analisou a estrutura
realista de São Paulo Sociedade Anônima. Trevisan escreveu que a busca pelo
realismo de Person tem erros e acertos. Que personagens e situações são concretas e
armam o “jogo” (palavra dele) em torno do personagem principal e o constroem para
o espectador. Mas apesar de destacar a força do método, critica o que chama de
“entulhos” e garante que há falhas em momentos importantes:
Se Carlos vem como resultado de um condicionamento social, Person não conseguiu
ir até o fim. É sintomático que o principal personagem da fita acabe sendo a própria
São Paulo. Carlos sofre da intromissão exagerada (ou da imaturidade) do
pensamento que o criou. Personagem de classe média possui fortes tinturas de
intelectualismo pouco motivado, de dramas interiores impostos de fora. Assim,
permanece uma certa arbitrariedade no desencadeamento daquela “doença” urbana.
Acho possível que o drama de Carlos pudesse se fundar nos três personagens
básicos que o rodeiam (Trevisan, 1966, p. 15).
Já Rubens Machado Jr., que procura pesquisar, analisar e estudar o espaço
urbano dentro dos filmes em geral, não vê nem a obra, nem a cidade, nem o
personagem sob este aspecto. E, ao dedicar parte de sua tese de livre-docência a São
Paulo Sociedade Anônima, é categórico: “Na reconstituição do seu itinerário de
desejos figura uma São Paulo habitada por divergentes perspectivas contidas na
experiência de um só personagem — o que faz de Carlos o mais denso e espesso
paulistano do cinema” (Machado Jr., 2007, p. 72-73).
Vale notar que o professor e pesquisador não diz que a forma de interpretar
de Walmor Chagas criou um “personagem” denso e espesso. Mas, sim, um
“paulistano”. Ou seja, uma pessoa de carne e osso, um reflexo da “minha cara” (digo
do espectador), alguém que já vi na rua e com quem posso já ter conversado. É como
se a população da capital paulista finalmente conseguisse um espelho para se refletir.
E, por conseqüência, a própria cidade onde vive, com as paisagens e logradouros
onde cada cidadão está acostumado a olhar.
192
É curioso que o próprio Person colocava as coisas dessa maneira. Em
entrevista para o jornalista Vladimir Herzog — que, na década de 1970, foi preso e
assassinado na cela da polícia política brasileira, fato que as autoridades tentaram
mostrar como suicídio — o diretor explicou como via o seu personagem principal.
De acordo com Herzog, na revista Claudia de setembro de 1965, coluna O Assunto
É..., o comentário a seguir de Person foi feito com certa amargura.
Carlos é um personagem-símbolo. É o paulista classe-média, abúlico e apático [...]
Não me preocupei com o operário ou o marginal, nem com o grande industrial ou a
chamada alta-sociedade. Trato apenas daquela camada média — de burguesinhos
que, como eu, vivem aquilo tudo.
No mesmo estudo de Machado Jr. (2007), o autor reverbera suas ressalvas
pelo que considera a falta de uma crítica especializada brasileira sobre formas de
atuação, uma carência antiga e persistente. Um problema que, também acredito,
precisa ser resolvida urgentemente e que espero contribuir.
3.10. As diferentes interpretações das “interpretações”
São Paulo Sociedade Anônima é o tipo de filme que se presta a variadas e
diferentes interpretações — no sentido ambíguo do termo. Neste trecho, fui buscar os
comentários e críticas que foram feitas sobre o trabalho dos atores, que renderam
alguns prêmios para Eva Wilma, como protagonista, e melhores atores coadjuvantes
(ou secundários, como se dizia na época) para Otelo Zeloni e Darlene Glória.
Acredito que seu gestual, assim como a mise-en-scène e até mesmo seus figurinos
podem ser contemplados com uma análise baseada nas técnicas de interpretação.
Jean-Claude Bernardet, que para descrever São Paulo Sociedade Anônima
debruçou-se sobre duas cópias, uma em 16 mm e a outra em 35 mm, por empréstimo
da Embrafilme, em 1986, ressalta que esta forma de filmar (e também montar) é
resultado de uma necessidade de valorizar a interpretação:
Uma das principais características do modo de filmar de Person/Aronovich neste
filme é a mobilidade de câmera: ela se desloca constantemente para acompanhar os
193
movimentos dos personagens, faz correções para captar as reações dos atores. A
câmera e a montagem estão a serviço dos personagens, do seu comportamento
psicológico, do ambiente em que se encontram, e da evolução do enredo. Só
excepcionalmente as imagens adquirem uma significação imediatamente metafórica,
como nos planos de ondas que batem as rochas (seq. 7), a alteração de luz que
silhueta Hilda sobre uma vista de São Paulo (seq. 51), os reflexos da paisagem
paulistana na vidraça do apartamento de Carlos e Luciana, e mais um ou outro
momento. Senão, a estética do filme é realista, e metáforas e significações gerais nos
vêm sendo transmitidas pela mediação dos ambientes, das situações e do
comportamento dos personagens (Bernardet, 1987, p. 5-6).
Como dizem Bernardet e Trevisan, São Paulo Sociedade Anônima busca o
realismo, apesar de algumas cenas terem doses de dramaticidade poética. Além das
citadas pelo primeiro, relembro do passeio de Ana, caminhando no porto de areia
com Carlos (e pergunta sobre “O que é aquilo, Carlos?”), ou de Hilda, na contraluz
do prédio da Bienal do parque do Ibirapuera, quando falava sobre a pintura de Lasar
Segall e Pablo Picasso e da guerra.
Como é possível ver na seqüência de reportagens que acompanharam as
filmagens e seu lançamento (Anexo 6), estes atores vinham da TV e do teatro e
tinham pouca — ou nenhuma — experiência em cinema (exceção para a mais
tarimbada de todas, Ana Esmeralda). Em entrevistas para o filme Person —
posteriormente usadas na íntegra do DVD de São Paulo Sociedade Anônima
Walmor Chagas e Eva Wilma reforçam esta falta de experiência como motivo para
superempenho. Em rápido depoimento, Walmor, por exemplo, revela um pouco do
estilo de dirigir de Person.
4
4
No material bruto do depoimento para o documentário Person, de Marina Person, Raul Cortez fala
sobre o processo de direção de atores durante O Caso dos irmãos Naves: “Ele tinha uma coisa de levar
você quase ao desespero para conseguir ter uma verdade. Eu lembro que quando eu cheguei para
filmar ele colocou a câmera num close direto. Ele já tinha pedido para eu deixar a barba por fazer. E
fez uma das coisas que eu mais gosto do cinema: ele atrás da câmera ia dizendo o que eu deveria
expressar no meu rosto. E eu me senti tão à vontade, e ele ia dizendo: agora passe isso. Ou passe
aquilo. Agora pense em uma coisa. Ou pense em outra. E eu fazia, na verdade, o que o Joaquim, que
era meu personagem, que estava totalmente catatônico [...] Tem cenas que eu lembro que a gente foi
para o campo. Muito difícil, muitas vezes a gente sentia dores físicas, fazendo aquilo. Demoramos
muito tempo para filmar.”
194
Para a primeira cena de São Paulo Sociedade Anônima, a briga no
apartamento, o ator diz ter perguntado para o diretor sobre qual o estado emocional
do personagem: “Por que ele (Carlos) entra na sala e dá um bofetão na mulher?”
Segundo Walmor, Person respondia: “Vai e faz. Tá querendo muita explicação,
Walmor. Faz.”
5
Se hoje o rosto de Walmor Chagas virou o “cartão postal” de São Paulo, é de
se notar que ele não foi premiado por isso. Mas os críticos destacaram sua atuação.
Caso de Paulo Perdigão no Diário de Notícias: “De Walmor Chagas recebe Carlos
uma fisionomia perfeita, num desempenho que, se alça as mais expressivas já
registradas em filme brasileiro por sua absoluta contenção e rigor.”
Perdigão procura analisar um pouco mais e chega até a direção de Person, que
teria buscado “pesquisa de detalhe, pequenos gestos e ligeiras reações emocionais,
compondo e ornamentando os traços dos personagens — ao mesmo tempo, vítima,
testemunha e juiz da ação dramática”. O critico elogia Eva Wilma, por ter se saído
bem com uma personagem “difícil”, e também Darlene Glória, apesar de considerar
fraca a personagem Ana, por causa de suas contradições. Já Ana Esmeralda e Otelo
Zeloni simplesmente “sobressaem”, segundo Perdigão.
No Diário do Comércio, David E. Neves também destaca a direção de Person
e amplia os elogios para a interpretação de Walmor Chagas e de Eva Wilma, que
5
Infelizmente, duas biografias publicadas pela coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, perdem a grande oportunidade de registrar a opinião de Walmor Chagas e Eva Wilma
sobre a direção de atores feita por Person. Em depoimento para a escritora Edla Van Steen, Eva
Wilma dedica apenas quatro pequenos parágrafos para contar amenidades — como a placa que Person
teria colocado no portão do sítio em que morava: “Cuidado! Cachorro bravo e dono doido.” Em
seguida, assim como Walmor, deslumbra-se com o fato de ter conhecido o cineasta Luiz Buñuel, no
Festival de Acapulco, para em seguida dizer que o diretor de São Paulo Sociedade Anônima a
convenceu a esquiar nos braços de um professor (cf. Van Steen, 2006, p. 66). Já Walmor Chagas, em
depoimento para o cineasta Djalma Limongi Batista, com quem filmou Asa Branca, um sonho
brasileiro (1980), afirma com todas as letras que a única falha do elenco do filme de Person foi a
escolha de Ana Esmeralda. Para o papel, Walmor defendia a própria mulher, Cacilda Becker, que
“com aquela voz rouca, aquele rictus neurótico no rosto anguloso, todo seu gestus inigualável do
maior talento de todos os tempos entre os atores do Brasil — ela seria a intérprete perfeita para a
resposta individualista e suicida, à cidade de São Paulo”. Em seguida, Walmor chega a afirmar que foi
convidado pessoalmente por Glauber Rocha para o papel de Paulo Martins em Terra em Transe, que
acabou sendo interpretado por Jardel Filho (cf. Batista, 2008, p. 47-48).
195
chama de “irrepreensível e comovente”. O crítico e diretor carioca vai buscar
referências na narrativa cinematográfica, na qualidade dos planos, na montagem
acertada, nos climas que o filme transmite, mas não tem medo em dizer que o grande
momento está na atuação — especialmente na “volta ao presente”, quando surge a
briga do casal principal:
A narrativa é feita em planos-seqüência e depende exclusivamente do desempenho
dos atores, por ele apenas transmitindo seu conteúdo ao espectador (a música só
entra em sua parte final, para consagrá-la definitivamente). Não temo em colocar
este momento como um dos maiores em toda a história do nosso cinema.
Ignácio de Loyola, na Última Hora, faz algumas ressalvas, inclusive para o
roteiro que não explicaria as razões da rebeldia do personagem Carlos e do texto que
não ajuda a entender algumas ações. Loyola também faz restrições a Darlene Glória
e Ana Esmeralda (“aparecem razoavelmente”), e exalta Eva Wilma, que “construiu
seu personagem, foi ao fundo, tirou o que podia da menina bitolada que vê
casamento como carreira, ou profissão, bem de acordo com o personagem burguês”.
Mas o destaque é para Walmor Chagas, que se impunha no cinema depois de carreira
bem-sucedida no teatro. O comentário, que hoje pode parecer ingênuo, traz dois
atributos óbvios do ator: “Fotografa bem, sabe falar.”
Alfredo Sternheim, em O Estado de S. Paulo, garante que “Eva Wilma tem
aqui a melhor atuação de toda a sua carreira. Momentos como os finais — quando a
heroína se surpreende com a decisão do marido — a confirmam como uma das nossas
melhores atrizes”. E, o mais importante, é que a mostrava o caráter humano, dócil e
acomodado de Luciana, “sem nunca resvalar para a pieguice gratuita, quando esse
perigo estava latente”. Segundo S. (Sternheim), Ana Esmeralda tem presença grave e
soturna, que combina com o fatalismo da personagem. Já os personagens masculinos
são tratados apenas como eficientes. Ao lembrar a segurança de Walmor Chagas no
palco, “com o mesmo uso de voz extremamente cerebral”, Sternheim faz críticas:
Todo esse excessivo racionalismo nas entonações e nos gestos, que no teatro
funciona, mas que no cinema se torna artificial, não se coaduna com o estado de
espírito angustioso e incerto de Carlos. Por isso seu desempenho resulta
inconveniente, sobretudo quando a fita lembra que o herói tem de vinte e cinco a
trinta anos de idade.
19
6
Pelo menos uma das críticas italianas também afirma que a interpretação era
excessivamente teatral. Por outro lado, a direção de atores é ponto nevrálgico na
análise de Salvyano Cavalcanti de Paiva para o Correio da Manhã. O crítico diz que
Person “se colocou no ponto de vista do ensaiador tolerante e o resultado compensou”.
Garante que os personagens Carlos, Luciana e Hilda têm tratamentos adequados por
seus intérpretes, na hora de mostrar angústia e calor dramático, e chega a apostar na
dificuldade em dirigir Darlene Glória, naquele momento uma atriz em ascensão na
televisão, que vinha com jeito de “starlet”, conforme a expressão da época:
De Darlene Glória soube Person extrair — talvez com trabalho árduo — alguns dos
momentos melhores do seu filme, inclusive os poéticos, como aquele do banho de
chuveiro, em rodopio — aquelas elipses, e aquelas panorâmicas circulares que o
subconsciente do autor fixou e cuja fonte é Jean-Luc Godard. E talvez os momentos
mais sensuais e mais vulgares, a demonstrar um grande futuro da loura atriz.
Como voz única, Salvyano impressionou-se com a construção do tipo de
Arturo Carracci, que seria complexa:
A construção do tipo de Zeloni é a mais fascinante porque é a mais complexa, e o
autor vira, mesmo, personagem: é o italiano que veio fazer a América, o quadradão
burguês do moral esquematizada dentro do desenvolvimentismo a qualquer preço e
com a hipocrisia semelhante à dos falsos moralistas da deflação salvadora.
Uma das críticas mais fortes foi escrita por M. Aurélio Barcellos, em um ensaio
para Filme 66, publicação da Federação Gaúcha de Cineclube, em 1966, quando o
filme foi lançado em Porto Alegre. Person chegou a dar uma entrevista para o autor do
texto. Ao estudar os “tipos” que constroem o universo de São Paulo Sociedade
Anônima, Barcellos busca referências no marxismo — inclusive para citar o próprio
Marx e o historiador Georg Lukács. Em A tipologia em S. Paulo S.A., diz que uma das
fraquezas (ou “elemento enfraquecedor”, segundo ele) do filme é de “tipificar” os
personagens para construir um tratado de sociologia, mas sem conseguir um alcance
crítico para a “verdadeira” realidade social. Dos cinco personagens apresentados pelo
filme, o crítico gaúcho diz que apenas Carlos tem contornos realistas e não tipificado,
ou seja, não caricatural. Para Barcellos, a culpa estaria no fato do diretor ter
“matematizado” o itinerário sem ter uma “mira” para apontar a arma.
19
7
Neste sentido, Person teria criado um “germe” que se espalhou na criação do
filme: “Foi resultado de uma planificação pré-elaborada, não uma conseqüência
imprevista brotada a partir do desenrolar da filmagem. E o filme, durante a sua maior
parte, obedece inflexivelmente a esta disposição do realizador.”
Quase como na chave apontada por Jean-Claude Bernardet — de que o
personagem Carlos teria “os braços abertos para o fascismo” —, Barcellos
argumenta que ele se aliena a ponto de não perceber os motivos de sua verdadeira
angústia, a engrenagem do capitalismo. Mas acredita que o diretor era o culpado por
este erro, que, depois, alcançaria a própria visão do público.
A dispersividade (que começa no cineasta e termina no espectador) surge como
resultado imediato da proliferação excessiva das situações que envolvem Carlos e
determinam a sua reação [...] Elaborado com base no flash-back, “São Paulo S/A.”
se enclausura em si mesmo porque Person trunca a possibilidade de um
processamento dialético na existencialidade de Carlos (condutor do filme).
É interessante notar que esta crítica não chega aos atores e, por todo tempo,
culpa Person por suas idas e vindas, e até mesmo pelo fato de ter quebrado a
linearidade da história.
Para encerrar este item, quero dizer que o filme de Person me provoca um
forte sentido sobre a arte de interpretação. O diretor nunca escreveu nada sobre
métodos e estilos que o estimulassem. Nem Actor’s Studio nem Stanislavski. Muito
menos a atual onda do cinema brasileiro em se contratar “preparadores de atores”,
uma prática iniciada em Pixote (1981), de Hector Babenco, e difundida por Cidade
de Deus (2002), de Fernando Meirelles, embora muito mais para não-atores e/ou
pessoas comuns que retratam seu mundo social. Não sei o que Person ministrava nas
classes da Escola Superior de Cinema São Luiz, onde foi professor de cinema. É
sabido que não gostava de teorias cinematográficas. Diz isso na entrevista para a TV
Cultura. E José Mojica Marins, em depoimento para Marina Person, no
documentário Person, garante que seu amigo e parceiro chegou a rasgar um livro
sobre teoria de cinema que ele, o autor-ator de Zé do Caixão, carregava.
Para mim, resta imaginar como ele passava os sentimentos para os atores.
Especialmente para Carlos, o único dos personagens que não tem a chamada “vida
198
anterior” que inspira os roteiristas a escreverem um papel ou os atores a descobrirem
a “alma” de quem vão interpretar.
Cabe ressaltar: sabemos que Ana tem uma mãe no asilo de leprosos.
Chegamos a vê-la, nos assustamos com seu silêncio e seu sorriso enigmático, a total
falta de contato entre mãe e filha. Qual a sua origem? Foi de família rica que perdeu
tudo? Ou sempre foi pobre?
Hilda conta a história de seu marido, do relacionamento intenso que tiveram,
da tentativa de morar no campo, da falência da fazenda após uma plantação perdida e
da briga que teve com a sogra. Tudo leva ao suicídio.
Junto com Arturo Carracci, Luciana é que tem a história mais completa.
Conhecemos seus pais, seu irmão, sua casa de infância e juventude, até mesmo que
nível educacional atingiu, seu pensamento sobre o futuro e a falta de vontade em
criar um filho na carência.
E Carracci, o único com sobrenome, conta da chegada de seu pai ao Brasil,
que deu “murro em ponta de faca” para estar onde está. Também somos apresentados
para sua esposa e para seus filhos, somos levados ao sítio no interior do estado. A
estrutura de seu personagem é tão forte, que Person chegou a pensar em escrever
uma história posterior a São Paulo Sociedade Anônima, em que Carracci entraria em
crise durante o milagre econômico e estaria em desespero por causa de sua amante,
precisamente Ana, com quem manteve o relacionamento extraconjugal.
Sobre Carlos, nada. Ele apenas diz que “abandonou o escritório” e aceitou o
chamado das multinacionais que se instalavam no País. Nada de pais, nada de
irmãos. Apenas Carlos... O Carlos que NÃO se relaciona com o filho — que, aliás,
não tem nome nem sobrenome. E de quem chega a tratar, no “diálogo em off” com
Luciana, no inicio do filme, apenas como “filho”.
O final de São Paulo Sociedade Anônima revela todos os recursos de um
roteiro bem escrito. Por que Carlos resolve roubar um carro? Por que não foge no seu
“fusquinha”? Por que não pega um trem? Talvez a vontade de ser preso ali mesmo,
na própria cidade.
O “crescendo” musical após o furto, seus gritos de “Adeus, São Paulo!” nos
levam a imaginar o grande final, a apoteose. Finalmente, a libertação. Para o
espectador que “torceu” por isso, grande solução. Mas o segredo do roteiro está na
surpresa final. Grande silêncio. Carlos dorme. Um encontro com um homem
199
simpático que roça um mirante no alto da serra do Mar. A carona e a conversa
cúmplice com o caminhoneiro, sobre o ato de fumar. O filme, nos instantes finais,
fica calmo. Não há pressa. Não há música incidental. Ele nos joga de volta para a
realidade. E aí sim, com cenas documentais, filmadas dentro de uma cabine, a
multidão sai da tela e entra na platéia, como a famosa cena do trem dos primeiros
filmes dos irmãos Lumière. Mas ficamos sem saber se ele voltou para Luciana, se
retornou para a Autopeças Carracci, se vai se encontrar novamente com Ana, se... Ou
vai “pirar” ali mesmo, dentro de São Paulo?
Além das questões formais, como câmera, música e montagem, trata-se de
um solução muito feliz para um roteiro que é cheio de idas e vindas. Havia o risco do
melodrama. Havia o risco da incompreensão. Assim como o risco da submissão do
protagonista a todos os seus desafios. Mas Carlos decide recomeçar...
Para encerrar, é importante dar a palavra ao próprio diretor — e daí a
importância de resgatar e trazer à luz os depoimentos e entrevistas que deu. Como este,
para os cineclubistas do Centro Dom Vital, em que comenta os falsos finais do filme:
Eu tinha ainda a salientar que, para mim, o filme tinha a importância do final, que é onde
todas as coisas apresentadas buscam uma solução de crítica positiva do que é mostrado.
Eu faço, por exemplo, dois finais falsos, conscientemente. Até a música, quando a briga
entre o Walmor e a Wilma em que ele a joga no chão, parece ser o final: que ele enfim se
libertou e que parte para uma solução libertadora. Logo em seguida, nós o vemos
fazendo um ato gratuito de revolta, roubando um Kharman-Guia na praça Roosevelt.
Novamente nós acreditamos numa outra saída: uma saída romântica. Vai com esse carro,
ou vai se atirar do alto de uma montanha ou enfim ele vai parar não sei onde, no Rio de
Janeiro. Mas não acontece nada. Ele simplesmente adormece. Para então voltarmos ao
verdadeiro final, que é o retorno dele à cidade e a submissão dele ao meio que o envolve.
O final tinha então a intenção de levar o espectador à perplexidade, atitude positiva e
capaz de levar à ação. (SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA. Entrevista com
Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 23).
Como disse, para o espectador pode ter surgido outra chance para Carlos. Mas
o próprio diretor salienta que o protagonista submete-se “ao meio que o envolve”.
Ismail Xavier, em seu texto para Sinopse, toma a relação homem-máquina
como paradigma para a angústia de Carlos e sua repetição do refrão “recomeçar”,
“mil vezes recomeçar”, em contraponto ao “aceitar” que o protagonista coloca como
200
opção de vida pessoal e profissional. Seria como o espaço público transformado em
linha de montagem e que, a meu ver, foi muito bem ironizado em Tempos modernos
(1936), de Charles Chaplin, mas sob a veia cômica. O desafio é o relógio, o tempo
certo entre o descanso e o emprego, entre o trabalho e o lazer. E a necessidade de
enriquecer, como disse Person no Centro Vital,
em que o valor do individuo é medido pela sua conta bancária, num meio em que
tudo cai debaixo de convenções e mediocridades, em que o amor é substituído pela
concepção mais vulgar, simplesmente a do casamento, e que o indivíduo, enfim,
tende a acreditar na necessidade de ser aquele o seu caminho e seguir vida afora as
mesmas etapas iguais às dos milhões de outros homens como ele — o personagem
de São Paulo S.A. se debate: se angustia, se desnorteia, vacila diante de tudo
(SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA, Entrevista com Person sobre “São
Paulo S. A.”, [1965], p. 20).
Xavier explora esta questão do tempo moderno e principalmente urbano, para
descrever as dores de um personagem que não consegue se libertar em nenhuma das
frentes que ele mesmo abre, seja no casamento da vida particular, seja no emprego da
vida profissional. Acrescento que nem mesmo a possibilidade de virar sócio, de virar
chefe de si mesmo, o agrada. Pior: o irrita, porque é como se fosse uma dádiva de
uma pessoa que considera “burra” (apesar de ser mãe de seu filho). Da mesma
maneira que o crítico do jornal italiano L’Unità escreveu na época, Xavier afirma
que nem mesmo os anos JK, com seu salto econômico, conseguiram resolver os
problemas do mundo do trabalho, ou seja, de seus questionamentos e irregularidades.
Ou como declarou Person para a platéia de cineclubistas do Centro Dom
Vital, “são as pequenas coceiras que só o exame atento e profundo poderia acusar o
câncer”. Aliás, o nome da doença que é falada por Carlos logo no inicio do filme: “É
como se fosse um câncer”. Escreve Ismail Xavier:
O tempo é o pesadelo, tal como vemos na tradição da cidade-máquina desde o filme
Metropolis, de Fritz Lang, que destacava esta tortura do relógio num tom
expressionista que não é propriamente a opção de Person. São Paulo S/A, sendo
realista, não leva o tema da robotização ao paroxismo, mas insiste na sensação de
ultrapassamento, na dor do trabalho industrial e sua administração, solo de
experiência a contaminar todos os aspectos da vida (Xavier, 2006, p. 20).
201
Num diálogo entre Ismail e Person, seria possível colocar assim a resposta do
diretor — de fato falada no depoimento citado acima:
[Carlos] Nunca é capaz de desvendar a estrutura que o envolve nos males. Sua
posição, como a de todos os inconscientes indivíduos de seu meio, é a de um
moralista suburbano. Nunca vê o conjunto ou não quer ver as peças que deram
origem ao defeito essencial do motor. Sua moral é compulsiva e mesquinha, ou
ainda tristemente, inútil.
Na época do lançamento, o filme recebeu críticas a respeito da linha de
conduta de Carlos. Assim como as palavras de defesa do próprio diretor:
Reprovam-me, por exemplo, desde as primeiras leituras do roteiro, de ter dado a um
personagem de classe média e ignorante uma angústia que é própria de um indivíduo
de outro nível social. Eu não concordo totalmente com essa taxação imperativa.
Afinal, eu não era obrigado a fazer um personagem Standard que não tivesse assim
nenhum deslize (SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA, Entrevista com
Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 21).
O que Person queria dizer é que era contra a padronização, principalmente em
termos ideológicos, sobre como o individuo era e como deveria ser retratado, de
acordo com cada classe social. É importante ressaltar, mais uma vez, que havia um
conceito de época sobre filmes engajados, que levassem à conscientização das
camadas desfavorecidas de todo mundo, desde o “camponês” do interior até o
“proletariado” dos novos centros urbanos. Neste sentido, de acordo com alguns
(inclusive o jornalista do jornal comunista italiano), Carlos precisaria acordar para esta
realidade, tomar consciência das agruras por que passava, quem sabe denunciar seu
patrão, talvez conscientizar os empregados explorados em vez de trancá-los no
banheiro. Por outro lado, deveria enfrentar sua esposa e abrir seus olhos para um novo
mundo que surgia. Caso dos filmes do CPC, inclusive o embrião de Cabra marcado
para morrer, documentário finalizado em 1984, feito por Eduardo Coutinho, sobre a
tentativa de fazer um filme de ficção em 1964, com agricultores de verdade que iriam
representar sua própria história (a filmagem foi surpreendida pelo golpe militar, e a
equipe teve que se dispersar e pôr-se em fuga). Ou os do Cinema Novo, que
apontavam para esta chave: patrão é patrão, empregado é empregado; e assim, mesmo
202
de forma esquemática, deveriam ser retratados. Para Person, um dilema. O individuo
era um universo em si. Ele até poderia concordar com algumas coisas, “mas quando se
trata de literatura, de uma obra de ficção, eu penso que é permitido ao autor interpretar
de uma maneira mais livre, a conduta de um indivíduo” (SOCIEDADE AMIGOS DA
CINEMATECA, Entrevista com Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 20-21).
Person chega a contar sobre uma projeção de São Paulo Sociedade Anônima
que fez para os alunos do Colégio São Domingos, durante a qual se escondeu na
parte de trás da sala. Houve um debate sobre se o filme tocava em assuntos sociais ou
individuais. Com exceção de apenas uma pessoa, todos o consideraram social. Na
visão do diretor, era um subjetivismo da época e, talvez, da necessidade de se buscar
o tal conflito social. Diz que
talvez o filme não tenha sido claro demais e eu não tenha conseguido colocar como
eu queria, dentro do plano social em conjunto, todos os dados necessários. Mas eu
acho que isso é um problema que envolve muitos e muitos problemas das formas de
expressões empenhadas, digamos, “engagé” (SOCIEDADE AMIGOS DA
CINEMATECA, Entrevista com Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 22-23).
Ou seja, o engajado que ficou faltando para o seu lado. Mas relembra a
primeira apresentação da peça Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht: o autor
considerava que o público de Berlim iria se espelhar nos personagens e
acontecimentos e, com isso, atacá-lo pela ironia. Mas o efeito foi contrário: “Essa
platéia de colarinho duro, ao ver a peça, riu e se divertiu enormemente com a obra.
Isso é um fato histórico” (SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA, Entrevista
com Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 23).
3.11. A cara de São Paulo
Muitos personagens de filmes transformaram-se em verdadeiros símbolos de
algumas cidades. Woody Allen, principalmente em Manhattan, será sempre citado
em retrospectivas ou reportagens. A comparação pode ser esquiva ou forçada, já que
o diretor-ator de fato existe. Mas será que Jean-Paul Belmondo não é o retrato de
Paris por causa de O acossado (1960)? Os exemplos são inúmeros, e aqui reforço
203
que Carlos, de Walmor Chagas, ficará para a história como o grande nome
paulistano, mesmo em comparação com Paulo Villaça em O bandido da luz
vermelha (1968).
Mas afinal, o que são personagens reais e personagens de ficção?
José Américo Motta Pessanha, no capítulo “O sono e a vigília”, no livro-
coletânea Tempo e história, lembra o pensador Perelman que escreveu:
O historiador não é um romancista, não inventa sua personagem. Alexandre, César
ou Napoleão verdadeiramente existiram, sabemos quando nasceram e como
morreram, os elementos que conhecemos deles são inúmeros, mas o papel do
historiador é organizá-los, relacionando-os à personagem, ao seu caráter, a seus
projetos, a suas intenções. Porque de fato existiu, Napoleão se distingue de James
Bond (Pessanha, 1992, p.51).
Na seqüência de sua carreira, Luiz Sérgio Person foi buscar dois personagens
que de fato existiram e sobre quem tinha tomado consciência através de uma
reportagem de jornal de 1957. Falo dos irmãos Naves, de Minas Gerais, que tinham
sido vítimas de uma injustiça policial dos anos 1940. Raul Cortez viveu Joaquim
Rosa Naves (1907-1948) e Juca de Oliveira interpretou Sebastião José Naves (1902-
1964). Nem Person nem os atores os conheceram, o que, certamente, transformaria a
forma de interpretá-los.
Pela história real, Person tinha condições diferentes de fazer um laboratório,
de elaborar um processo de trabalho para retirar dor, medo, desespero, angústia,
solidão e ódio. Afinal, era um retrato da vida real que tinha brotado de uma
reportagem de jornal de 1957 — e que Person guardou e mostrou para seu co-
roteirista, Jean-Claude Bernardet —, assim como um livro que foi escrito pelo
advogado defensor dos irmãos Naves, João Alamy Filho.
Person foi explicito na época do lançamento ao separar o que seria uma obra
de “ficção” e a realidade:
O que Jean-Claude Bernardet e eu queríamos, ao escrever o argumento, não era
atingir a ficção, nem ficar no simples documentário. Nosso desejo era,
objetivamente, dar ao espectador, o resultado de uma reflexão em torno de fatos e
documentos reais [...] Nada foi inventado. Apenas demos forma cinematográfica e
reconstituímos os fatos que melhor esclarecessem o mecanismo. Queríamos um
204
filme seco, simples, direto, sem heróis. Mas, ao mesmo tempo, um filme de idéias,
de comunicação, de calor humano que não tornasse árido o nosso propósito (Um
depoimento de Person, O Estado de Minas, 24 set 1967, s/p).
Se Perelman escreveu que, ao contrário de James Bond, Napoleão de fato
existiu, o fato é que Joaquim e Sebastião Neves “viveram” duas vezes.
3.12. O ator de cinema
Paulo Emilio Salles Gomes aprofunda-se nesta questão, quando afirma em A
personagem de ficção: “A personagem de ficção cinematográfica, por mais fortes
que sejam suas raízes na realidade ou em ficções pré-existentes, só começa a viver
quando encarnada numa pessoa, num ator” (Gomes, 2005, p. 114).
Paulo Emílio acredita que este processo ocorre, normalmente, com atores que
conhecemos muito bem e que já fazem parte de um processo de imaginação coletiva.
Por isso, ressalta a diferença entre o teatro — origem de Walmor Chagas, por
exemplo — e o cinema. Na tela, os atores seriam “iguais a si mesmos”:
Dentro da ordem de pensamentos aqui expostos, podemos admitir que no teatro o
ator passa e o personagem permanece, ao passo que no cinema sucede exatamente o
inverso. Nas sucessivas encarnações através de inúmeros atores, permanece a
personagem de Hamlet, enquanto no cinema quem permanece através das diversas
personagens que interpreta é Greta Garbo (Gomes, 2005, p. 114).
Mas, ao seguir no exemplo de Garbo, o próprio Paulo Emílio reconhece que o
raciocínio não é exato e “o que persiste não é propriamente o ator ou a atriz, mas essa
personagem de ficção cujas raízes sociológicas são muito mais poderosas do que a
pura emanação dramática” (Gomes, 2005, p. 114).
É interessante notar que logo na abertura do filme, Person delimita que se
trata de uma ficção. Ou seja, um alerta para que não se confunda com documentário
e/ou (auto-)biografia. Com a legenda, Person poupa seu personagem principal de
fazer esta delimitação — apesar de, em seguida, fazê-lo dizer que “faz cinco anos”.
Não se pode declarar que a narrativa seja feita a partir de Carlos. Ate porque o
205
diálogo inicial se dá entre Carlos e Luciana, mesmo que separados na cena (ele na
rua e ela deitada no apartamento).
A dúvida seria: quem vai contar a história? Logo vemos que é sobre a vida de
Carlos, apesar de não termos uma narrativa em palavras como diz Paulo Emílio ao
citar a versão cinematográfica de Rebeca (Gomes, 2005, p. 110).
Cinco anos não caracterizam grande mudança física, de rosto, de cenário de
uma cidade, de moda entre os transeuntes, de comportamento, enfim, de “tempo
passando”. E talvez a maior dificuldade de Person tenha sido deixar claro que o
personagem usava roupas diferentes para facilitar a falta de ordem em que as cenas
acontecem. Apesar do branco e preto da fotografia, é possível perceber as mudanças
nos tons dos ternos de Carlos — uma estratégia de leitura para o espectador intuir:
“tempo foi e o tempo voltou” — assim como nas variações de humor conforme a
atriz e o ator com quem contracena.
Este é outro desafio que merece ser mais bem estudado, numa análise à parte,
sobre o controle que Carlos precisa ter para não confundir seus relacionamentos —
principalmente porque as intérpretes femininas nunca se encontram e Carracci
contracena com Luciana e Ana, mas sempre em cenas separadas. O próprio Person
tinha uma explicação para suas opções estéticas, conforme suas palavras na
conferência que deu no Centro Dom Vital.
Acredito na medida em que se pode ser autor de cinema e não simplesmente um
pesquisador esteta, o problema do estilo pessoal nasce das próprias idéias que se quer
exprimir; e a força dessas idéias dará o estilo, e até mesmo os vários estilos de um
mesmo realizador. Tudo é válido: expressionismo, “antonionismo” — e essa liberdade
é um dos grandes trunfos do cinema moderno, pelo menos sob o aspecto formal.
Por isso, é possível dizer que a estratégia de Luiz Sérgio Person, através da
sua estrutura, tinha um quê de pós-moderno.
David Harvey, em Condição pós-moderna, relembra que a pós-modernidade
já podia ser encontrada em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Suas palavras, a
meu ver, têm alguma sintonia com a estrutura armada por Person:
Flaubert, por exemplo, explora a questão da representação da heterogeneidade e da
diferença, da simultaneidade e da sincronia, num mundo em que tanto o tempo como
o espaço estão sendo absorvidos sob as forças homogeneizantes do dinheiro e da
20
6
troca de mercadorias. “Tudo deve soar simultaneamente”, escreveu ele; “deve-se
ouvir o mugir do gado, o murmúrio dos amantes e a retórica dos funcionários ao
mesmo tempo” (Harvey, 1994, p. 239).
E citando o pensador D. Bell (em The cultural contradictions of capitalism),
Harvey completa:
Incapaz de representar essa simultaneidade com o efeito necessário, Flaubert
“dissolve a seqüência ao fazer cortes que avançam e recuam, e, no crescendo final
para uma cena de Madame Bovary, justapõe duas seqüências, numa fase única, para
alcançar o efeito unificado” (Harvey, 1994, p. 239).
Person, que ouviu alguns comentários negativos sobre a condução de seu
protagonista, também revela, no depoimento já citado, que
tinha que conflitar, que criar condições para condução do entrecho. Ora, conquanto
eu não esteja totalmente satisfeito com essa solução, sou franco em dizer que prefiro
mil vezes essa que eu escolhi à colocação, por exemplo, de um personagem lúcido,
consciente, em contraposição ao personagem do Walmor Chagas. Uma
contraposição que servisse de expressão critica positiva. Não. Se eu tivesse de
refazer o filme, eu não escolheria uma solução deste tipo. Quanto a uma visão de
conjunto dos problemas que eu mesmo não tenha dado, penso que é uma impressão
bastante subjetiva (SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA, Entrevista com
Person sobre “São Paulo S. A.”, [1965], p. 22).
3.13. Outros atores, outro filme
Assim como um montador diferente modificaria o filme, como no Capítulo 3,
os atores e a equipe técnica anteriormente escolhida por Luiz Sérgio Person teria
transformado completamente o resultado de Agonia, como ainda se chamava. A
20
7
começar pelo diretor de fotografia, que, segundo o pré-projeto guardado nos arquivos
de Renato Magalhães Gouvea, seria o artista plástico Wesley Duke Lee.
6
Da mesma maneira, o diretor de produção seria Camilo Sampaio, com
passagens por filmes como Cidade ameaçada (1960), de Roberto Farias,
Absolutamente certo (1957), de Anselmo Duarte, Mistério na ilha de Vênus (1960),
de Douglas Fowley, The fisherman and his soul (?), de Charles Guggenheim, A
morte comanda o cangaço (1961), de Carlos Coimbra e Mulheres e milhões (1951),
de Jorge Ileli. Da equipe técnico-artística, os únicos nomes que já constavam eram de
Glauco Mirko Laurelli para a montagem (apesar de não ter seu currículo no pré-
projeto) e Cláudio Petraglia para a música.
Já para os cinco atores do elenco, apenas Darlene Glória e Otelo Zeloni
constavam. A justificativa para o papel de Arturo Carracci era de que o ator ajudaria na
divulgação do filme. Naquele momento, ele interpretava a peça Os ossos do barão, de
Jorge Andrade. Segundo o texto, provavelmente de Person, era o ator ideal: “pela sua
naturalidade, simpatia e afinidades de origem com o personagem, um filho de imigrantes
italianos que prospera em São Paulo com o ‘Boom’ da indústria automobilística, Zeloni
seria uma das chaves do sucesso artístico e de bilheteria do filme”.
Darlene Glória, a Ana, por outro lado, era destacada como “promessa”: “Atriz
de televisão, atualmente integrando o conhecido programa ‘Noites de Gala’. Trata-se
do lançamento da atriz em cinema, sendo que nos testes já efetuados Darlene
demonstrou excepcionais qualidades para o desempenho do papel.”
Pelas notícias posteriores de jornais, é possível conferir que o nome de
Darlene Glória teve um grande destaque na divulgação.
Para o papel de Carlos, Person chegou até cogitar em realizar uma “seleção
aberta” para se descobrir o ator ideal: “O personagem mais difícil e complexo do
filme; ainda não foi escolhido, estando porém em cogitações diversos elementos
como Tarcísio Meira, Francisco Cuoco, John Herbert ou a alternativa de se lançar
previamente um concurso visando sua escolha dentre os elementos que se
apresentarem.” Como se vê, poderiam ter sido três galãs em ascensão naquele
momento, todos com fortes vínculos com a televisão. Curiosamente, um deles era
6
Wesley Duke Lee é assim apresentado: “DIRETOR DE FOTOGRAFIA: WESLEY DUKE LEE,
desenhista e fotógrafo de renome internacional fará sua estréia profissional no cinema a que já se
dedicou com diversos curtas-metragens experimentais.”
208
John Herbert, casado com Eva Wilma. Os dois faziam muito sucesso com a série Alô
doçura (na TV Tupi, de 1954 a 1964), inspirada em I love Lucy, estrelada por Lucille
Ball e Desi Arnaz.
E Eva Wilma acabou levando o papel de Luciana, que estava destinado para
Itala Nandi, atriz do Teatro Oficina comandado por José Celso Martinez Correia, que
seria o assistente de direção de Person. Na época, Itala estava no elenco de Os
pequenos burgueses, de Máximo Gorki, e, segundo o diretor, “fazia grande sucesso.
Sua escolha não é definitiva ainda, em virtude de compromissos que o grupo tem no
Rio na mesma época prevista para o início da rodagem do filme”.
Finalmente, Hilda. Desde sua concepção, Person objetivava uma atriz com
algum prestígio internacional. Por isso, apontava o nome da argentina Elida Gay
Palmer, que se casara com o diretor de teatro Alberto D’Aversa e se mudara para São
Paulo. O diretor escreveu que ela tinha protagonizado filmes de sucesso na Argentina
— cita Un guapo del ‘900 (1960), de Leopoldo Torre Nilsson — e defendia: “Sua
inclusão no ‘Cast’, além da ótima identificação artística com o personagem, poderá
facilitar a venda do filme para o mercado argentino e latino-americano, um dos
nossos objetivos comerciais encarados com certo otimismo depois do êxito de ‘A
ilha’ nessas platéias”.
Como nota Glauco Mirko Laurelli em depoimento para mim, Person tinha
visão de negócio. Por isso, a escolha de Ana Esmeralda. Aqui, só havia trabalhado
em Quem matou Anabela? (1956), de Dezso Ákos Hamza, com produção do Estúdio
Maristela, de seu marido Mário Audrá. Além de ser ótima atriz e intérprete ideal para
o personagem Hilda, acabou sendo uma estratégia para tentar alcançar o cenário
internacional — o que acabou não acontecendo.
Pelo que vimos, elenco e equipe técnica de São Paulo Sociedade Anônima
foram formados para atingir o principal objetivo do produtor e do diretor: público. A
fotografia e a montagem, com padrão impecável, aliaram-se com os atores, que
provocavam forte impacto com o público. Como sempre dizia Person, o importante
era não se esquecer da comunicação.
209
3.14. O mistério do acidente
De súbito, numa curva da estrada,
tudo foi suspenso.
E agora só penso neste incenso.
De lembranças que transformam
a dor em lágrimas...
E na cidade, agora mais anônima,
o desespero em saudade...
(Francisco Luiz de Almeida Salles, no Jornal da
Tarde, pouco após a morte de Person).
Pouca gente dispõe-se a falar sobre a morte de Person. Eu mesmo demorei a
descobrir que ele não guiava o carro na hora do acidente, como muitos ainda
acreditam. Talvez por saber que ele havia bebido naquela noite. Os jornais da época
também não descreveram o acidente, assim como o documentário Person, de sua
filha Marina, que passa por cima de detalhes. Até mesmo a suspeita de atentado pelo
governo militar chegou a ser levantada. Um boato típico dos “anos de chumbo”. Só
fui saber o que de fato aconteceu no livro Um artesão do cinema, que reúne uma
série de depoimentos de Glauco Mirko Laurelli.
No começo de janeiro, a peça em cartaz no Auditório Augusta era Lição de
anatomia, um dos maiores sucessos da casa teatral que a dupla “Lauper” havia
criado. Na noite de 6 de janeiro de 1976, Person fez um percurso típico da classe
artística do período. Depois da peça, foi ao restaurante Piolim, que também ficava na
rua Augusta, e, na seqüência, ao Eduardo’s, perto do Teatro Cultura Artística, no
centro de São Paulo. Entre os amigos, lá estava o diretor de teatro Antunes Filho.
Segundo Glauco, Person já tinha bebido bastante, e um rapaz (que não era “amigo”,
como chegou a ser publicado nos jornais da época, mas alguém que, provavelmente,
queria se aproximar dele) ofereceu-se para guiar seu carro até o sitio de Itapecerica
da Serra, onde morava com a mulher, Regina Jehá, e as filhas pequenas, Marina e
Domingas. Já era a madrugada do dia 7. Numa tentativa de ultrapassagem na rodovia
Régis Bittencourt, que liga São Paulo ao sul do País, o rapaz (de quem Glauco não dá
o nome) bateu num ônibus que vinha em direção contrária. Person ficou desfalecido,
e aquele que havia se oferecido como motorista no carro do próprio diretor fugiu.
210
A edição da Última Hora de São Paulo do dia 9 de janeiro de 1976 descreve
que os dois estavam no “fusca” de Person e que “o motorista tirou o carro para a sua
esquerda, mas não impediu que o ônibus colhesse o fusca pela direita, exatamente
onde se encontrava Luis Sérgio”.
O pai de Person, Luiz, que havia passado a noite no sitio, viu o carro
acidentado logo pela manhã, quando voltava para a capital. Mas não acreditou que
era do filho. Ligou para Glauco, que mandou o motorista da Lauper conferir. O
jornal comprova as palavras de Glauco. Antes de transportado para São Paulo,
Person foi levado a um hospital de Taboão da Serra (cidade vizinha da capital), onde
a polícia reteve seus documentos:
O motorista — que ninguém conseguiu identificar (apesar de seu nome constar na
ficha de ocorrência) — feriu-se apenas levemente. Em estado mais grave, Luis
Sérgio Person foi enviado para o Hospital das Clínicas, onde teria dado entrada por
volta das nove horas da manhã de terça-feira. Detalhe é que os documentos todos de
identificação ficaram com a polícia, motivo pelo qual Person deu entrada no HC
como um desconhecido (Desce o pano – Falta um artista inquieto no cenário
brasileiro: Person. Última Hora, 09 jan 1976, sem assinatura, s/p).
Glauco Mirko Laurelli fez uma maratona por delegacias e hospitais,
conseguiu o laudo no hospital de Taboão e finalmente chegou ao Hospital das
Clínicas, onde seu amigo estava inconsciente e em estado grave. A Última Hora
publicou que ele “tinha o pulmão afetado, uma veia do coração rompida pela pressão
de uma costela e uma bexiga atingida”.
Morreu naquela noite, às 23 horas.
Dias depois, Glauco localizou o rapaz que dirigia o carro na hora do acidente
e foi atrás dele com um tio de Person, o advogado e militar Reynaldo Miranda: “Ele
morava com a mãe na rua Santo Antonio. Fomos até lá e ele estava enfaixado e
bastante assustado. Contou-nos que só havia tentado ajudar o Person a ir para casa.
Acreditamos na sinceridade do rapaz. Não fizemos nada. Foi uma tragédia, uma
fatalidade” (depoimento ao autor de Glauco Mirko Laurelli).
Cerca de 250 pessoas compareceram ao enterro, que chegou a ser filmado,
como demonstram imagens do documentário Person. Luiz Sérgio Person está
enterrado no túmulo da família, no Cemitério do Araçá, na avenida Doutor Arnaldo,
211
na cidade de São Paulo, ao lado de sua mãe, Isaura Miranda Person, e de seu pai,
Luiz Person.
3.15. Pequeno apêndice: as palavras de dois amigos
Ignacio de Loyola (repito: como assinava) e Millôr Fernandes foram dois
amigos de Luiz Sérgio Person. Nada tão íntimo como Glauco Mirko Laurelli e
Cláudio Petraglia, ou tão ligados profissionalmente em inicio de carreira como
Antunes Filho e José Celso Martinez Correa.
As duas crônicas que reproduzo a seguir demonstram dois lados do cineasta.
O paulista Loyola, jornalista e crítico que mais escreveu sobre São Paulo
Sociedade Anônima, convivia com ele na noite boêmia paulistana. Já o carioca
Millôr foi amigo nas suas passagens também boêmias pelo Rio de Janeiro. Chegou a
colaborar com inúmeras piadas no filme Cassy Jones, o magnífico sedutor, e o
convidou para escrever em O Pasquim. Ambos falam de lembranças da vida
particular — e que se tornam públicas por revelarem um pouco mais do
temperamento do diretor que gostava de bar e de mar.
A de Millôr foi publicada em primeiro lugar na revista Veja, em 1969,
quando escrevia artigos com o título “Retratos 3X4 de alguns amigos 6X9”. Foi
reproduzida no livro Trinta anos de mim mesmo (cf. Fernandes, 1972, p. 181) e no
catálogo do Museu da Imagem e do Som, em 1988, sobre a Mostra L. S. Person.
A de Loyola saiu na Última Hora (São Paulo), de 9 de janeiro de 1976.
Neste espaço, considero importante reproduzir os textos sentimentais que
escreveram em situações distintas.
a) Millôr Fernandes
Noite no mar em Ubatuba
Debaixo do céu preto, sem estrelas — choveu fininho o dia inteiro — só uma
luz solitária na distância. Um poste com uma lâmpada fraca, num ancoradouro. Não
212
sei de onde vim nem onde vamos atracar. Sou homem de praia, não sou homem de
mar. Fui ao outro lado da costa, de automóvel, pra pegar a pequena lancha junto com
meu amigo. Apenas por solidariedade, senão ele teria que fazer a viagem, uma meia
hora, sozinho.
Mas estamos chegando, missão cumprida. Ele diminui a marcha — o barco
balança um pouco mais sobre as ondas levemente revoltas —, logo corta o motor, e
vamos nos aproximando da plataforma de cimento que faz, em U, um abrigo náutico.
‘Não vai dar’, diz meu amigo. ‘Está cheio’. Realmente o ancoradouro está cheio de
pequenos barcos que impedem a aproximação. ‘Temos de dar uma nadada até lá’, diz
ele, jogando uma pequena âncora no fundo. Por essa eu não esperava. Sou homem de
praia, não sou homem de mar — repito com meus botões. Olho o poste iluminado à
distância — trezentos metros? — e multiplico-o por dez, dada a escuridão que
envolve tudo, por mais dez pelo fato de termos bebido bastante durante a tarde e por
mais dez pelo meu nado absolutamente medíocre. É longe paca. Mas noblesse oblige,
estamos de calção e ao meu amigo a distância parece coisa à toa. É homem de mar,
não é homem de praia. Se atira, eu me atiro, noblesse oblige mesmo. Eu na frente, ele
atrás, claro que não por inferioridade, mas por proteção. Meu crawl magnífico não
agüenta cinco minutos. E vou mesmo de cachorrinho, prolhosh, prolhosh, o poste se
afastando um metro a cada três que nado. Porém um dia se chega. A plataforma já
está a vinte metros, sinto que a água é rasa, e fico em pé — só pra, com horror,
enterrar as pernas até o meio das canelas. O fundo é lama pura. Tenho mesmo que
nadar até bater no cimento e subir, extenuado. Luiz Sérgio Person percebeu tudo, dá
uma risada amistosa e zombeteira e, quando chegamos de volta ao grupo de amigos,
em sua casa, passa o resto da noite me enchendo o copo e saudando um herói.”
b) Ignácio de Loyola Brandão
A crônica que não consegui escrever para Person
No meio da tarde, na quarta-feira, recebi um telefonema do Albino, chefe de
reportagem de ‘O Globo’:
— Você sabe alguma coisa a respeito de Person?
213
— Não, nada. Por quê? Precisa falar com ele?
— Não, sofreu um acidente. Está nas Clínicas, em estado grave. Queria entrar
em contato com pessoas que o conhecessem.
Dei alguns nomes ao Albino e pedi que me ligasse, se soubesse de mais
alguma coisa. Não me ligou.
Person morreu às onze da noite. Fui ler no jornal, de manhã, no táxi, a
caminho da editora.
Fomos muito ligados, Person e eu, em determinadas fases de nossas vidas.
Era 1965 e tínhamos muito em comum. Ele namorava uma ex-namorada minha.
Estávamos com a mesma idade, 29 anos. Éramos fascinados por São Paulo como
tema para livros e filmes. E ele estava lançando ‘São Paulo S.A.’, uma fita urbana,
enquanto eu lançava ‘Depois do Sol’, um livro urbano.
Conversamos muito, todas as noites. Eu, de certo modo, invejava o seu curso
de cinema no Centro Sperimentale, invejava sua carreira em cinema. Nosso mundo
era a imediação da praça Roosevelt: o Redondo, o Gigetto, o Ferro’s, o Copan (onde
a namorada morava), na própria praça, então uma grande extensão mal asfaltada, o
cine Bijou.
Em pleno corre-corre (jornais, rádio e televisão), nós dois tínhamos um plano
combinado: ‘Nossa temática, a cidade, é semelhante. Quando você falar do filme toca
no livro. Quando eu falar do livro, toco no filme’. E assim fazíamos. Um sábado,
estivemos juntos num programa de Sônia Ribeiro, na TV Record. Sentados em mesas
próximas, um badalando a obra do outro. No fim do programa ele veio me gozar:
— O que é isso? Sentado em mesa de cantor de ie-ie-ié?
O cantor de ie-ie-ié era Roberto Carlos, que estava também lançado um
compacto novo e ainda não era famoso.
Deixei o jornal, mudei para revista, mudei o ritmo de vida. Desencontrei-me
de Person. A gente se via ocasionalmente. A última vez que o vi foi num avião da
Ponte Aérea. Viemos juntos do Rio. Durante uma hora ele falou de seus planos de
teatro. Contou, principalmente, das dificuldades que estava encontrando para adaptar
‘A Hora dos Ruminantes’ para o cinema. Era um desafio e ele queria vencer.
Perguntou se eu, algum dia tinha olhado o livro em termos de filme. Eu não tinha.
‘Às vezes numa conversa a gente encontra a chave’.
214
Ele não encontrou. Os planos ficaram incompletos. Quando morre um amigo é
triste. Mais triste ainda é quando morre um amigo e criador, com o talento do Person.
Esta é uma crônica que não sei como terminar. Já foi difícil começar.
Eu queria falar muita coisa do Person. Do que ele representava para o cinema
paulista. E não consegui. Mas eu vou publicar, assim mesmo, uma crônica frustrada.
De alguém em estado de choque. E em pane. Uma crônica incompleta, como os
planos de Person.”
215
Capítulo 4
PALAVRA CRÍTICA COMENTADA & ILUSTRADA
4.1. Person nas votações dos melhores
Neste capítulo, apresento, comento e ilustro as críticas (e comentários de
críticos importantes, mesmo que curtos) onde São Paulo Sociedade Anônima foi
analisado e/ou citado. A maioria dos artigos históricos está escaneada — algumas das
imagens está com má qualidade, devido à condição dos originais. Se avançássemos
no tempo e chegássemos até as revistas eletrônicas, encontraríamos artigos como o
de Paisà, que mostra a participação do filme de Person nas freqüentes listas sobre os
melhores do cinema brasileiro desde os anos 1960. Uma eleição que já começara na
época, como consta na introdução da famosa entrevista de Luiz Sérgio Person para a
“patota” de O Pasquim e onde, desde o começo do século 21, São Paulo Sociedade
Anônima tem ganhado posições, enquanto outros filmes perdem sua força entre
jovens críticos.
Não sei se há alguma importância neste tipo de votação. Afinal, mudam as
gerações e também na virada de milênio O poderoso chefão, de Francis Ford
Coppola, retirou a hegemonia de mais de 50 anos de Cidadão Kane, de Orson
Welles, um filme que dentro do próprio Estados Unidos não levou um Oscar sequer.
Seis listas dos “melhores”, entre 1968 e 2001, marcavam a hegemonia de
cinco primeiros lugares desde 1980 — Deus e o diabo na terra do sol, Terra em
transe, Vidas secas, Limite e O bandido da luz vermelha, embora a ordem sempre
mudasse. Segundo o crítico Cleber Eduardo, “essa hierarquia foi estabelecida pela
segunda lista nesse período de 33 anos, organizada por Moacy Cirne, e engessou o
olimpo canônico nacional desde então” (Eduardo, 2008). Nos últimos anos, o
primeiro filme de Luiz Sérgio Person — e não o de que ele mais gostava, O caso dos
irmãos Naves — entrou na lista dos cinco.
21
6
4.2. Os lançamentos paralelos de 1965
Até mesmo as resenhas foram favoráveis ao filme de Person.
Acho interessante situar o leitor dentro das opções que o mercado oferecia ao
público brasileiro de 1965.
Na mesma semana do lançamento paulista de São Paulo Sociedade Anônima,
aconteciam várias estréias na capital: três filmes japoneses (Bandoleiros de Osaka,
Vendaval de uma ida e Japão Paraíso), dois americanos (Miragem e Brigada nua),
um produção argentina (A mão na armadilha) , uma inglesa (007 contra Goldfinger)
e uma italiana (Zorikan, o exterminador). Já na introdução das resenhas, o jornal O
Estado de S. Paulo de 3 de outubro de 1965, em página não-assinada, comemorava o
lançamento de São Paulo Sociedade Anônima, “uma das melhores e mais brilhantes
realizações do cinema brasileiro [...] uma fita que em hipótese alguma pode ser
perdida”. Ao lado, duas fotos em igual proporção: da briga entre Carlos e Ana e da
atriz Elsa Daniel, que estava no filme argentino (mas não aparece no recorte).
Figura 69. Programação de cinema de O Estado de S. Paulo destaca São Paulo Sociedade Anônima
(arquivo Renato Magalhães Gouvea)
21
7
Abaixo, o jornal trazia a ficha técnica completa (desde a distribuidora
Columbia Pictures até os atores coadjuvantes) e um comentário repleto de elogios:
Um dos mais importantes eventos de toda a existência do cinema brasileiro. Ao lado
do ambivalente mas também excepcional “O Desafio”, de Paulo César Saraceni, que
vimos no “Mercado de Cinema” realizado à margem do I Festival Internacional da
Guanabara, eis aqui um dos mais significativos, poderíamos mesmo dizer, dos mais
sintomáticos filmes-depoimento da moderna Sétima Arte brasileira. A ação passa-se
no tempo do recente surto da indústria automobilística. Este, porém, é um simples
pano de fundo, um incidente, uma casualidade diante do principal, que é a
experiência “angry” do personagem vivido por Walmor Chagas e, é também, a do
diretor-autor Luiz Sérgio Person. Essa rebeldia não evidencia a essencialidade ética,
nem a fundamentação ou as vivências da de, por exemplo, “Liberdade sem
Esperança”, de Sugawa, celulóide com o qual “São Paulo S/A” tem muitos pontos
de contacto. Examinando-se melhor, veremos tratar-se de uma rebeldia movida mais
pelo intelectualismo e pela atitude. Mas que, ainda assim, não invalida o
brilhantismo da obra, nem a inquietante revelação de cineasta que nela tem Person.
Valioso ainda pela fotografia de Ricardo Aronovich, pelo surpreendente domínio
que o diretor evidencia ter para as cenas de grande figuração (desde talvez “Osso,
Amor e Papagaios” não víamos nada melhor), pela montagem de Glauco Mirko
Laurelli e pela segurança extraída ao elenco. “São Paulo, S/A”, realmente, é mais
um êxito do cinema brasileiro e paulista. Uma película obrigatória.
Achei interessante trazê-la na íntegra, porque foi, certamente, escrito por um
dos críticos de O Estado de S. Paulo. A comparação com os filmes de Saraceni e de
Sugawa, dois ícones da época, demonstra a necessidade de ressaltar as qualidades do
filme de Person. Assim como o destaque que deu para o domínio da movimentação
de câmeras e atores, em cenas ambiciosas, o que valeu a citação para um dos
clássicos do cinema paulista, realizado em 1957 por Carlos Alberto de Souza Barros
e César Memolo.
Da mesma maneira, destaco os filmes brasileiros que disputavam a atenção
com São Paulo Sociedade Anônima. Na reportagem “Brasília: uma revelação”, em O
Estado de S. Paulo de 18 de dezembro, o jornalista João Marschner comentava as
premiações da 1ª Semana do Cinema Brasileiro e apresentava o que, segundo ele, era
a opinião da crítica:
218
Um filme excepcional, A hora e vez de Augusto Matraga; três revelações, Menino do
Engenho, São Paulo S.A. e A Falecida; três filmes regulares, Vereda da Salvação, Crime
de Amor e Society em Baby Doll e três obras medíocres, Grande Sertão, História de um
crápula e Um ramo para Luiza. O que é um balanço bastante razoável.
Os filmes foram dirigidos, respectivamente, por Roberto Santos, Walter Lima
Jr., Luiz Sérgio Person, Leon Hirzsman, Anselmo Duarte, Rex Endsleigh, Luiz
Carlos Maciel, Geraldo e Renato Santos Pereira, Jece Valadão e J.B. Tanko. Acredito
que este tipo de informação permite observar o que se produzia no Brasil além dos já
famosos do Cinema Novo, caso, principalmente, de Os fuzis, de Ruy Guerra e O
desafio, de Paulo César Saraceni. Uma produção eclética que se misturava com
filmes que caíram no esquecimento, como Um dia qualquer, de Libero Luxardo,
produzido pela Lux Filmes de Belém do Pará, ou Diabo de Vila Velha, de Armando
Miranda, uma co-produção entre paulistas e paranaenses.
Outro filme feito fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro foi Phobus, o ministro
do diabo, de Luiz Renato Brescia, produção de Três Corações, Minas Gerais, que não
foi terminada —, assim como não se completaram os cariocas Arrastão — amantes do
mar, um Eastmancolor de Antoniel D’Omerson, e Ethel, de Eduardo Sidney. Ao todo,
foram 41 filmes, sendo apenas dois documentários: Arigó — fenômenos do espírito do
Dr. Fritz, um Eastmancolor paulista de Virgilio Teixeira, e Morte por 500 milhões, de
Antonio Orelana, com produção de Primo Carbonari.
Entre os diretores que sempre estiveram no patamar mediano entre público e
crítica, vale destacar O beijo, de Flávio Tambelini, Grito de guerra, de Olney
Alberto São Paulo, e Canalha em crise, de Miguel Borges. No mesmo ano em que
era premiado pela montagem de São Paulo Sociedade Anônima, Glauco Mirko
Laurelli também lançava Meu Japão brasileiro, produzido pela P.A.M. Filmes.
Os dados fazem parte do levantamento da produção de longa metragem brasileira
entre 1908 e 1978 (volume 1), feita por Araken Campos Pereira Júnior e publicado pela
Editora Casa do Cinema Ltda., com sede em Santos, litoral de São Paulo.
Com a reunião deste material, acredito contribuir para a melhor compreensão
do pensamento que cercava os idos de 1964-1965.
219
4.3. Críticas e “críticas”
Pode-se dizer que a primeira critica — ou, melhor, comentário, sobre a
criatividade estética e ideológica de São Paulo Sociedade Anônima foi escrito por
um dos analistas mais respeitados do Brasil, Antonio Moniz Vianna, que publicava
seus textos no poderoso jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro. Padrinho de
futuros críticos, como Sérgio Augusto e Paulo Perdigão — aprendizes que muitas
vezes assinavam sua coluna, como David E. Neves fazia no espaço de Glauber
Rocha no Diário do Comércio, também do Rio —, Vianna deu a manchete “Força
nova no cinema brasileiro”, o que parece um jogo de palavras com o Cinema Novo,
que o severo crítico carioca, amante do cinema norte-americano, não apreciava. E,
mesmo tendo escrito o texto apenas um mês depois que o filme estava realizado, já
deveria ter informações sobre sua realização.
Na fase atual de experiências do cinema brasileiro, o primeiro longa-metragem de
Person poderá surgir como uma nova força até agora desprezada pelos círculos do
“cinema novo”: é um filme que não procura no exotismo regionalista sua razão de
ser, pois tenta realizar-se como um cinema de observação urbana, mostrando alguns
dos principais problemas brasileiros concentrados da vida atribulada de uma das
metrópoles do país (Vianna, 13 ago 1964, s/p).
A mesma sensação parece ter sido passada para o futuro cineasta Mauricio
Gomes Leite, que buscava um lugar à sombra do Cinema Novo. Foi numa edição do
segundo semestre de 1964 da Revista de Cinema, publicação bimestral editada em
Belo Horizonte. Num texto de fôlego e sem interrupção, ele assim termina o
comentário sobre o fim das filmagens:
[...] e agora o mais importante é que LSP, de costas, na extremidade do banco
durante o cerco da praça, à esquerda Walmor Chagas, acaba de rodar em 60 dias a
primeira tentativa de um cinema brasileiro urbano, moderno, contraditório, sem os
costumeiros apelos do marginalismo social mas fazendo, no meio pequeno burguês
da cidade que mais cresce no mundo, um filme que também será social quanto mais
profundos se mostrarem os problemas individuais quase desconhecidos neste ano
confuso de 1964, que poderá ser, para o cinema brasileiro, também o ano SPSA, ou
seja, uma nova escolha da câmera para um velho impasse (Leite, 1964, p. 37).
220
Figura 70. Texto do jovem crítico e futuro cineasta, Maurício Gomes Leite, em revista especializada
de Minas Gerais (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
4.4. Person e o Cinema Novo
Curiosamente, um dos primeiros cineastas-críticos a citar — e apenas citar,
sem analisar — São Paulo Sociedade Anônima foi Glauber Rocha, que, já em janeiro
de 1965 — ou seja, muito antes de seu lançamento oficial, na Mostra do Novo
221
Cinema, em Pesaro, Itália, entre 29 de maio e 6 de junho — publicava duas linhas
sobre o filme de Person em seu texto “Uma estética da fome”. Foi uma tese
apresentada durante debates sobre o Cinema Novo que acompanhavam uma
retrospectiva do Cinema Latino-Americano em Gênova, Itália. O texto-manifesto foi
originalmente publicado no número 3 da revista Civilização Brasileira, em julho de
1965. Entre parênteses, Glauber escreveu:
(O Cinema Novo, por isto, não fez melodramas: as mulheres do Cinema Novo
sempre foram seres em busca de uma saída possível para o amor, dada a
impossibilidade de amar com fome: a mulher protótipo, a de Porto das Caixas mata
o marido; a Dandara de Ganga Zumba foge da guerra para um amor romântico;
Sinhá Vitória sonha com novos tempos para os filhos; Rosa vai ao crime para salvar
Manuel e amá-lo em outras circunstâncias; a moça do padre precisa romper a batina
para ganhar um novo homem; a mulher de O desafio rompe com o amante porque
prefere ficar fiel ao seu mundo burguês; a mulher em São Paulo S.A. quer a
segurança do amor pequeno-burguês, e para isto tentará reduzir a vida do marido a
um sistema medíocre [grifo meu]).
Certamente, Glauber teria “ouvido” falar do filme, como já o fizera com
Limite, de Mário Peixoto, que criticou sem tê-lo visto. Uma das hipóteses é a
participação do diretor de fotografia, Ricardo Aronovich, que já tinha feito Os fuzis,
de Ruy Guerra (e pode ter passado informações sobre as filmagens), ou até a leitura
de seu roteiro e/ou de ter olhado os copiões. Conforme a coluna Cinema do Correio
da Manhã do dia 13 de outubro de 1964, escrita pelo jornalista e crítico Sérgio
Augusto (ver Capítulo 2), o copião da montagem do filme já teria sido visto por
pessoas do meio cinematográfico, que se impressionaram com investimento sobre “o
desprezado cinema urbano, moderno e contraditório”.
4.5. São Paulo versus Rio de Janeiro
São Paulo Sociedade Anônima estreou oficialmente no Rio de Janeiro em
novembro de 1965, um mês depois de São Paulo. É de se notar que, neste período, a
rivalidade entre as cidades era bastante acentuada.
222
Cláudio Petraglia, autor da música, faz esta lembrança no depoimento que
gravou para o projeto de memória da Embrafilme com o MIS:
Foi uma repercussão difícil porque o Rio de Janeiro é o Rio de Janeiro e eles têm
os grandes “mandarins” do cinema que de uma certa forma podam os paulistas. A
receptividade que São Paulo S.A. teve no Rio, pra mim, foi incrível porque era
difícil. Eu me lembro de eu e o Luiz Sérgio irmos correr os cinemas do Rio — ele
estreou São Paulo S.A. no Cine Vitória — e a gente ia dar gorjeta pro cara botar o
áudio um pouquinho mais alto porque o pessoal relutava realmente em ver um filme
paulista, do jeito que São Paulo S.A. é. Era mais difícil naquela época do que talvez
fosse hoje.
Em sua coluna Cine-Ronda, da edição paulista do jornal Última Hora do dia 27
de novembro de 1965, Ignácio de Loyola comentou o “sucesso” do filme no Rio de
Janeiro e aproveitou para reproduzir algumas críticas, como as de Salvyano Cavalcanti
de Paiva, no Correio da Manhã, de Ely Azeredo, no Jornal do Brasil, e de Alex
Viany, sem citar o jornal. Tanto que iniciava com as seguintes palavras: “Está
estourando no Rio de Janeiro o filme de Luiz Sérgio Person, “São Paulo S.A.”. É uma
vitória total de um novo cinema paulista que quebra assim um tabu: vencer no Rio.”
1
1
Sem querer me estender sobre o assunto, mas só para lembrar este espírito da época, vale dizer que
Paulo Emílio Salles Gomes escreveu sobre o antipaulistismo de Glauber Rocha, que considerava a
cidade como “ruim”. Conforme Salles Gomes, em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento (São
Paulo: Paz e Terra, 2001), o cineasta baiano até dizia que São Paulo era responsável pelo fracasso do
filme Gimba e que não tinha e nunca poderia ter cinema. Gimba, presidente dos valentes, de 1963, foi a
única experiência em cinema do diretor de teatro Flávio Rangel (cf. Enciclopédia do Cinema Brasileiro,
de Fernão Ramos e Luiz Felipe Miranda, São Paulo, Editora Senac, p. 287). O roteiro foi baseado em
peça de teatro homônima que Gianfrancesco Guarnieri escreveu para o grupo de teatro Arena.
223
Figura 71. Os jornais anunciam a boa recepção carioca para São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Cinemateca Brasileira)
De qualquer maneira, Person sentia que havia certo isolamento, certo
distanciamento e, principalmente, certo individualismo no cinema paulista. Foi o que
disse em 1967 para o crítico e cineasta Alfredo Sternheim. Para provar sua tese, diz
que Mazzaropi e Khoury representavam duas vertentes opostas, mas de boa
224
convivência. Um popular e outro hermético. E aproveitava, mais uma vez, para tirar
seu nome do “clube” do Cinema Novo.
Filme Cultura — Como se coloca no panorama cinematográfico brasileiro?
Luiz Sérgio Person — Eu e todos os realizadores paulistas nos encontramos, de
uma forma ou de outra, isolados. Marcamos, assim, uma característica do cinema em
São Paulo: cada um tem um cinema desvinculado do outro. Cada filme paulista
marca uma atitude diferente diante do cinema. Falo isso pensando, por exemplo, em
um filme atual do qual vi trechos recentemente. Aliás, esse filme tem um título
bastante significativo diante dessa idéias de isolamento: é À margem, de Oswaldo
Candeias [...].
Filme Cultura — Você se considera integrado no “Cinema Novo”?
Luiz Sérgio Person — Eu poderia dizer num tom meio sério, meio brincadeira, que
vejo como um caso engraçado sem muito sentido, essa necessidade de
enquadramento. Não posso dizer que faço parte de um grupo, essa é a verdade.
pessoas que necessitam de uma religião, de uma idéia gregária para sobreviverem. O
próprio cinema que faço, o meio em que vivo de certa forma contrariam a idéia de
me considerar “cinema novo” ou “velho”. De fato, concordo, meu primeiro filme foi
encampado pelo “cinema novo”. Mas — aí eu discordo — o “cinema novo”, seja
pelo que realizou ou pelo que deixou de realizar, negativa ou afirmativamente, o fez
com grande alarde, representando um momento importante de determinada época de
aprimoramento cultural no Brasil. Acho que sem o “cinema novo”, sem essa idéia
inicial de “cinema novo”, dificilmente colocaríamos em discussão ampla no Brasil o
problema do cinema, quebrando a dissociação cultural que havia. Hoje, a certa
distância da efervescência de então, pode se ver que houve uma injusta
supervalorização de certos filmes que nada tinham de novo ou notável e que só pela
ebulição reinante, pela promoção, é que ganharam destaque. Além do mais, acho
que o “cinema novo”, pelo menos como aquele movimento inicial, não existe.
4.6. Comentários sobre as críticas da época
Como comentei no Capítulo 3, em março de 1965 houve uma projeção no Rio
de Janeiro de São Paulo Sociedade Anônima (numa sala que não consegui
identificar). Além de vários críticos, como Alex Viany, estava lá o professor, crítico
e roteirista Jean-Claude Bernardet. E quem certamente participou desta sessão,
225
mencionada por Bernardet, foi o também crítico e cineasta David E. Neves (como
assinava). Ele começava a sua coluna no Diário do Comércio, edição de quinta-feira,
do dia 18 de março de 1965, em tom de exaltação.
Senhoras e senhores, a maior revelação do cinema brasileiro em 1965 nos vem de
São Paulo, de um jovem realizador que acaba de terminar seu primeiro filme ao qual
tivemos o prazer de assistir duas vezes na maratona cinematográfica em que se
constituiu, para nós, a noite de segunda-feira (Neves, 18 mar 1965, s/p).
Figura 72. Crítica I de David E.Neves (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
22
6
Em seguida, destacava um “progresso” na arte de fazer cinema em São Paulo.
Ao nosso ver Luiz Sérgio Person é muito mais digno de louvores na medida em que
ele conseguiu transformar repentinamente (e bem) uma das estruturas mais arcaicas
da produção cinematográfica — a paulista. o Paulo S/A é por esse e por outros
motivos um filme histórico, hoje tão importante no desenvolvimento do cinema
brasileiro, quanto, por exemplo, foi Barravento de Gláuber Rocha ou Vidas secas de
Nelson Pereira dos Santos (Neves, 18 mar 1965, s/p).
No dia 19 de março, David Neves partia para uma análise mais estrutural.
Figura 73. Crítica II de David E. Neves (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
22
7
Sobre o filme de Person, Neves encontra o chamado “sentimento”: “O
interessante é que a fita não esconde seu intimismo nem quer fazê-lo (essa é a sua
verdadeira premissa), mas consegue através dele momentos da maior objetividade e
do mais comunicável calor humano” (Neves, 19 mar 1965, s/p).
Não tenho a data exata do texto em que o crítico Ely Azeredo reverberava o
elogio sobre um filme feito dentro de uma capital industrial. Foi em sua coluna no
Segundo Caderno, do jornal O Globo, onde trabalhava antes de se transferir para o
Jornal do Brasil. É interessante que o filme tenha sido apresentado primeiro no Rio de
Janeiro, talvez como maneira de encontrar eco na então capital do cinema brasileiro.
É um filme urbano — avis rara, portanto, em um cinema atacado de cangaceirismo
crônico e reformista panfletário agudo. E, no panorama no cinema urbano, foi
escolher seus personagens na classe média, geralmente desprezada como tema até
por cineastas que dela saíram. O filme pretende ser “principalmente” um painel
dramático sobre “certas características e condições da classe média de São Paulo”.
Anos depois, na abertura da entrevista de Person para O Pasquim (edição
205, 5 a 11 de junho de 1973), na época do lançamento de Cassy Jones, Azeredo foi
citado como um dos críticos que menos gostava do cinema engajado da época. Seu
nome abre a introdução:
Há seis anos, Ely Azeredo profetizou: Só as próximas realizações de Luiz Sérgio
Person dirão se este realizador paulista é um artista não-comprometido com formas
ideológicas e estéticas ou se, não resistindo à gravitação dominante no cinema
brasileiro mais empenhado, aderirá às coordenadas do Cinema Novo (“Cacá
Diegues e Jabor justificam seus filmes como os uruguaios justificaram comer
cadáver!” [Luiz Sérgio Person], O Pasquim, 5 a 11 jun 1973, p. 10).
E concluía-se:
Person não aderiu. Depois de o Paulo S.A. (1965), tido como um dos melhores
filmes de todos os tempos (ou dos anos 60), e de uma oportuna versão de O caso dos
irmãos Naves (1967), Person fez tudo para tranqüilizar o inquieto e
anticinemanovista crítico do Jornal do Brasil (“Cacá Diegues e Jabor justificam
seus filmes como os uruguaios justificaram comer cadáver!” [Luiz Sérgio Person], O
Pasquim, 5 a 11 jun 1973, p. 10).
228
4.7. O olhar paulistano da crítica
Em São Paulo, o jornalista e futuro romancista Ignácio de Loyola Brandão,
que só assinava Ignacio de Loyola, publicou textos em três edições seguidas em sua
coluna Cine-Ronda, na edição paulista de Última Hora, jornal de Samuel Wainer.
Foram nos dias 13, 14 e 15 de março de 1965. Na primeira, descrevia a ação.
Figura 74. Crítica I de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
A fita foi projetada à 0,30 hora de segunda-feira, no Ipiranga. A exibição comercial
será pela Cinedistri dentro de um mês. Esta noticia a respeito de “São Paulo, S.A.” é
229
redigida sem que ainda eu tenha colocado e ordem a série de idéias que me
ocorreram, durante a produção. A primeira afirmação é: Person abre o caminho
urbano paulista. A ele cabe a primazia de colocar personagens de São Paulo dentro
da estrutura de São Paulo. Homem citadino, Person é um indivíduo preocupado com
os problemas desta cidade que no filme assume um aspecto devorador (Loyola, 13
abr 1965, s/p).
Na segunda, Loyola comentava a parte técnica.
Figura 75. Crítica II de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
E na terceira, passava para a crítica, já que dizia estar sob impacto da projeção.
230
Figura 76. Crítica III de Ignacio de Loyola (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Ao contrário do que afirma, o filme só foi lançado no segundo semestre,
depois de participar do Festival de Pesaro, e pela Columbia Pictures (ver Capítulo 1).
Loyola, que havia registrado as filmagens desde seu inicio, com pequenas
notinhas (ver Capítulo 2), não perdia tempo em provocar os cineastas do Rio de
Janeiro e já iniciar uma polêmica com o Cinema Novo.
231
Seguro ao que quer dizer, Person deu um verdadeiro baile em toda a turma do
cinema novo principalmente na “genialidade” dos meninos cariocas que falam
muito, têm na mão todos os meios de promoção, fazem pouco e, na maior parte,
fazem mal. O formal requintado que não convenceu em Vereda da Salvação
(também ainda inédito ao grande publico) está explorado até as ultimas
conseqüências, em função restrita de uma história em o Paulo, Sociedade
Anônima (Loyola, 15 abr 1965, s/p).
Mais no estilo de reportagem, sem assinatura, mas com doses de análises, a
revista Visão, de 11 de junho de 1965, voltava a destacar o cinema filmado nas
cidades que, segundo eles, era uma novidade que São Paulo Sociedade Anônima
“inaugurava”.
Figura 77. A revista dá os primeiros números de custos de São Paulo Sociedade Anônima (arquivo
Renato Magalhães Gouvea)
232
Os meios cinematográficos do Rio e de São Paulo tiveram sua atenção despertada
para o filme São Paulo Sociedade Anônima, que numa exibição particular,
impressionou pelo tratamento ousado, pela forma dinâmica e moderna e pelo fato de
ser a primeira incursão sobre o problema urbano da capital paulista (São Paulo vista
sem retoque, Visão, 11 jun 1965, p. 63).
Ainda em julho, o participante brasileiro oficial do Festival de Berlim foi
Vereda da Salvação, de Anselmo Duarte. Mas, como convidado especial, já que não
poderia concorrer por causa do prêmio em Pesaro, São Paulo Sociedade Anônima
recebeu um forte destaque de Novais Teixeira, que cobria o Festival para o jornal O
Estado de S. Paulo. Novais não poupou críticas ao que chamou de confusão da
história, do excesso de idas e vindas, dos malabarismos da montagem. Mas dava um
toque favorável final, como forma de consolação, não sem antes deixar alguma
maldade para o restante dos cineastas:
Em conclusão, Person possui uma câmara que vê e sabe ver. O balanço de sua fita
não é, pois, negativo. Pelo contrário, dentro no estado atual do cinema brasileiro,
Person mostra certa maturidade de direção e razoável conhecimento de ofício
cinematográfico, predicados esses não muito correntes no Brasil cinematográfico de
hoje (Teixeira, 6 jul 1965, s/p).
Em outubro, mês do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima na capital,
O Estado de S. Paulo iniciava uma série de artigos e críticos sobre o filme de Person.
As críticas foram iniciadas no dia 6, pelo cineasta Alfredo Sternheim, que assinava
apenas “S.”. A primeira saiu na página 12 do primeiro caderno. Ele comentava a
estrutura do roteiro, que considerava falha. Atacava “apelos popularescos” como as
cenas “da bebedeira do herói” e a “visita dos fiscais federais à fábrica”, entre outras,
que considerou como “realismo artificial”. Por outro lado, S. elogiava o lado
documental do filme e de não ter mostrado as mazelas da cidade de forma populista.
E, principalmente, a forma de dirigir de Luiz Sérgio Person.
Enquanto que o roteiro nem sempre ajuda a obter o realismo pretendido pelo atual
cartaz dos cines Olido e Regência, já com a direção finalmente sucede o contrário.
Person, nessa sua estréia, que pode ser considerada como das mais promissoras de
todo o cinema brasileiro, tentou e conseguiu extrair de São Paulo o máximo de
funcionabilidade dramática.
233
Figura 78. Crítica de Alfredo Sternheim (arquivo Cinemateca Brasileira)
234
O Suplemento Feminino de O Estado de S. Paulo do dia 8 de outubro de
1965 seguiu ecoando numa rápida crítica de cabeça de página, acompanhada de
muitas fotos. A assinatura era de Thomaz Souto Corrêa, jornalista que depois viria a
ser um dos mais influentes do Brasil e se tornar vice-presidente da Editora Abril.
Por ser um filme tão fielmente paulista, “São Paulo S/A” consegue ser um filme
universal. Na verdade é um dos poucos exemplos no cinema brasileiro de uma
realização que consegue atingir um nível técnico e um nível artístico de categoria, já
que — com raras exceções — ou se consegue uma coisa, ou outra. Ao mesmo tempo,
seu diretor — Luis Sérgio Person — demonstra domínio completo da técnica de
direção e isso — convenhamos — é raro. Rejubilemo-nos (Corrêa, 8 out 1965, s/p).
No dia 9 de outubro, o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, um dos
mais respeitados cadernos de cultura do Brasil, começou a publicar suas críticas. E
quem assinou primeiro foi o rigoroso Francisco Luiz de Almeida Salles. O crítico
jornalista, que já era amigo e parceiro de Luiz Sérgio Person, ambos freqüentadores
do bar do Museu de Arte de São Paulo, era mais um que analisava o filme a partir de
um “olhar paulistano”. Num texto arguto, Salles buscava as raízes do cinema de
autor, criticava maneirismos e superficialidades de muitos diretores e abria a coluna
com um título que entraria para a história da crítica cinematográfica: “Em louvor de
Person”.
Em louvor de Person quero tecer meus ditirambos críticos, e em louvor da minha
cidade quero assinalar que, pela primeira vez, a vejo captada, apesar da sua difícil
recusa ao registro. Temo, apenas, que o que há de paulistano neste filme não seja
prontamente assimilado pelas audiências estrangeiras. Mas, de qualquer forma, eis
uma obra de autor, a primeira obra de autor no plano do cinema urbano paulista.
Começamos, recentemente, a enfrentar a face do país, com uma severidade e uma
emoção que deu ao nosso cinema moderno categoria internacional válida. Nada se
ocultou, porque não se fazia obra de exportação, mas de participação e de
conhecimento (Salles, 9 out 1965, p. 5).
235
Figura 79. Crítica de Luiz Francisco Almeida Salles (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Não demorou para que um jovem jornalista e futuro cineasta também se
debruçasse sobre o filme e escrevesse duas enormes páginas em O Estado de S. Paulo.
Seu nome era Rogério Sganzerla, que também publicou uma entrevista com Person
(ver Anexo 3). As críticas, intituladas “Filmar São Paulo I” e “Filmar São Paulo II”,
saíram nas edições de 16 e 23 de outubro de 1965, quando o filme já estava em cartaz.
23
6
Figura 80. Crítica I de Rogério Sganzerla (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
23
7
“São Paulo S/A” constitui, desde 1960, o primeiro passo não provinciano do cinema
paulista. O ritmo trepidante dos rolos iniciais, o verismo de muitas situações, a
desenvoltura da montagem e a elegância de uma “mise-en-scène” européia fazem da
estréia de Person um acontecimento inédito entre nós. Luiz Sergio Person é o
primeiro cineasta paulista a romper com o complexo de “honestidade” que esconde a
mediocridade da maioria de nossas produções (Sganzerla, 16 out 1965, p. 5).
Figura 81. Crítica II de Rogério Sganzerla (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
238
Em sua segunda crítica, que chamava de artigo, Sganzerla lançava a teoria de
que o filme também inaugurava uma forma diferente de usar elementos documentais.
No artigo anterior perguntei se a solução para o cinema paulista seria o
documentário-ficção. O filme de Person tenta-nos a dizer que sim: apesar de
artesanalmente difícil, talvez seja econômica e esteticamente mais viável essa
solução do que os compromissos ditados por uma produção pretensiosa e pelo
estúdio (Sganzerla, 23 out 1965, p. 5).
Nos arquivos da Cinemateca Brasileira encontra-se uma crítica de H. Didonet
que é apontada como sendo de O Estado de S. Paulo. Mas a diagramação não condiz
com o tradicional jornal paulistano. À mão, está rabiscada a palavra O Dia – Porto
Alegre, que pode ser a fonte real. De qualquer forma, com ressalvas para o personagem
Carlos, o crítico fez elogios no dia 11 de novembro:
Figura 82. Crítica de H. Didonet (arquivo Cinemateca Brasileira)
239
Luiz Sérgio Person mostra domínio de linguagem, provando também elogiável espírito
de pesquisa da realidade, que tanta falta faz hoje no meio de tanto escritores de
fantasia descabelada. Mas, infelizmente, Luiz Sérgio não tem ainda um mundo
espiritual concatenado de idéias densas e básicas, e por isso não estruturou bem seus
personagens, notadamente Carlos. Carlos é um personagem fundamentalmente
medíocre, mas demonstra, contrastantemente, grande vivacidade de espírito, e não tem
suas crises pessoais devidamente fundamentadas (Didonet, 11 nov 1965, s/p).
O Diário de S. Paulo do dia 7 de outubro foi, entre todos os jornais, o que
mais criticou São Paulo Sociedade Anônima. Arley Pereira, interino da coluna Bossa
a Bossa, chega a afirmar que Person faz “chantagem emocional” com o público, ao
colocar “cenas e diálogos de um proposital mau gosto, para despertar no espectador
menos prevenido, medo de parecer retrógrado se não aceitá-los”. E afirmava: “É um
processo de chantagem intelectual”. E não parava por aí.
Tendo assimilado, com rara facilidade, formas de expressão descobertas pelos maiores
cineastas industriais da atualidade (Antonioni, Resnais, Malle, Sugawa), não parece
entretanto Person ter, como todos estes, preocupações sobre os grandes problemas
humanos, [as quais sentisse] necessidade de transmitir em imagem cinematográfica. Pelo
contrario, parece antes de mais nada ter sido sua vontade... fazer cinema [...] Assim, o
que vemos em “São Paulo S.A.”, em matéria de niilismo, incomunicabilidade,
desencanto, revolta e inconformismo, nunca parece uma problemática que Luis Sérgio
Person sinta mais unicamente de que toma ele uma atitude intelectualizada de
preocupado com tudo isso. Se procurarmos a ver a fundo o que Person tinha de verdade
para comunicar, ele não o tinha muito e, por este lado, não chega “São Paulo S.A.” a ser
um filme muito significativo (Pereira, 7 out 1965, s/p).
240
Figura 83. Crítica de Arley Pereira (arquivo Cinemateca Brasileira)
241
E, finalmente, Paulo Emílio Salles Gomes.
Anotações manuscritas sobre São Paulo Sociedade Anônima estão
depositadas na Biblioteca da Cinemateca Brasileira, em São Paulo (ver Figura 84, a
seguir). Ali é possível perceber o método usado pelo intelectual paulistano ao
“anotar” cenas e enredos dos filmes. Aqui, faço uma pequena anotação. No dia 14 de
abril de 1973, no Jornal da Tarde, no artigo “Uma paródia e uma novela de tevê:
dois filmes brasileiros”, Paulo Emilio dizia que tinha um sentimento ambíguo sobre o
recém-lançado Cassy Jones, mas ressaltava:
Luiz Sérgio Person realizou obras de que gostei muito e que revejo com interesse.
São Paulo S.A. e Os irmãos Naves. Cada vez que aponta um novo filme seu, minha
expectativa é grande e aumenta quando sou informado de que ele vai ensaiar um
gênero novo. Não acho razoável exigir de Person que permaneça nos caminhos que
abriu tão brilhantemente com seus dois primeiros filmes, mas devo confessar que
suas incursões no terror e no pastiche das aventuras rurais não me conquistaram
(Gomes, 1986, p. 269).
Figura 84. Anotações de Paulo Emílio Salles Gomes sobre os personagens de São Paulo Sociedade
Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
242
4.8. De volta ao Rio de Janeiro
O Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, publicou sua critica no dia 25 de
novembro de 1965. Assinada por Salvyano Cavalcanti de Paiva, não há uma só
ressalva, a não ser para a comissão de seleção do “Festival de Brasília” (de fato, 1ª
Semana do Cinema Brasileiro), que teria ignorado o filme.
Figura 85. Crítica de Salvyano Cavalcanti de Paiva (arquivo Cinemateca Brasileira)
243
Eis aqui um filme insólito, vigoroso de enredo e direção, gritando a plenos pulmões
a maioridade do cinema brasileiro. É o melhor filme nacional depois de Deus e o
diabo na terra do sol. E o que a obra de Glauber Rocha representa como
interpretação da realidade agrária num tempo determinado, precisamente os tempos
dos coronéis, jagunços e beatos, o chamado Brasil da República Velha — São Paulo
Sociedade Anônima representa o processo da realidade urbana brasileira na fase da
industrialização acelerada, do desenvolvimento e do pano que dominou o país de
1957 a 1961. É pelo menos uma das maneiras de ver esta realidade, e certamente das
mais válidas (Paiva, 25 nov 1965, s/p).
No Jornal do Brasil, num misto de crítica e entrevista com Person, o
jornalista e escritor Luiz C. Oliveira comentava que “acho São Paulo S.A. um bom
filme, embora não goste tanto dele como você [Person]. Ele [o filme] mostra a vida e
o complexo industrial perdida e um pouco falsa pelo excesso de consumo ao
operariado em ascensão”.
Figura 86. Crítica “Person e a má consciência da burguesia” (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
244
O próprio entrevistado reconhecia que fazia parte da engrenagem e que o
cinema fazia parte do complexo industrial. Portanto, desta maneira, poderia ajudar o
povo na elevação do seu nível de vida. E concluía: “O que é feio nele, o é na
realidade e eu gosto disto” (Oliveira, 28 nov 1965, s/p).
Neste período, Paulo Perdigão (critico que depois escreveu durante muitos anos
para O Globo, produziu livros e roteiros e programou filmes para a TV) publicava suas
críticas no Diário de Notícias. E gostou tanto de São Paulo Sociedade Anônima que
também o focalizou em duas partes, começando no dia 30 de novembro.
Num período em que a tragédia rural se define e se solidifica (“Vidas Secas”, “Deus
e o Diabo na Terra do Sol”), o filme de Person ganha novas dimensões e maior
significado exatamente por descortinar, a esse mesmo cinema, uma paisagem
diferente, fecunda e ampla, até aqui só explorada sem legítimas bases culturais, de
forma vacilante, inadequada ou postiça. O contraste com “Noite Vazia” é violenta e
inevitável. De tudo que a obra de Khoury distorcia e falsificava, a título de uma
filosofia de imitação que só expressa um arremedo provinciano vem arrancar “São
Paulo S.A.” autenticidade documental, motivação dramática e análise crítica,
ampliando esses elementos para o âmbito sociológico, que os recolhe e os fortalece
(Perdigão, 30 nov 1965, s/p).
Figura 87. Crítica I de Paulo Perdigão (arquivo Cinemateca Brasileira)
245
Com o título “São Paulo: a tragédia do homem-multidão”, o crítico José
Wolf, do Jornal do Comércio, elogia o filme e faz uma longa análise quase
psicanalítica sobre o personagem Carlos, sobre o qual se concentra.
Figura 88. Crítica de José Wolf (arquivo Cinemateca Brasileira)
24
6
Talvez nenhum filme brasileiro anterior a SÃO PAULO S/A. tenha trazido à tela um
“close-up” tão carne-sangue do homem-multidão, automatizado, devendo enfrentar
todos os dias-e-horas a mesma rotina, a mesma monotonia, como o filme-
depoimento desse jovem cineasta Luis Sérgio Person [...] Creio que SÃO PAULO
S/A. não seja apenas um depoimento-angústia contra a geração nascida sob o signo
do surto industrial-automobilístico paulista. O espectador mais consciente advinha
logo de início que para além do drama aparente se desenrola outro — uma espécie
de contraponto oculto ou de estranha ressonância, onde nós nos encontramos
também (Wolf, 5 dez 1965, s/p).
4.9. Fora do eixo
De Porto Alegre, onde São Paulo Sociedade Anônima foi lançado (como
comprovam prestações de contas da viagem do diretor para a capital do Rio Grande
do Sul), o conhecido crítico Goida escreveu fortes elogios, que depois seriam
publicados num livro reunindo seus textos para o jornal Zero Hora.
Se Person não chega a mostrar um caminho, se Carlos não parte para algo mais
corajoso, a fita, entretanto, não se frustra. Gostamos dela como assim está. Ela faz
pensar, faz-nos partir para uma profunda reflexão a respeito do drama de Carlos, que
é o drama de todo brasileiro consciente, procurando fugir de sua alienação por
qualquer caminho [...] Formalmente, a fita de Person é notável. Somam-se os bons
momentos; seria pequeno nosso espaço para enumerarmos todos os seus acertos
(Goida, 1998, p. 72).
Também de Porto Alegre, veio a crítica e uma entrevista com Person feita por
cineclubistas. Os textos foram publicados na revista Filme 66 e M.Aurélio Barcellos
procurou ser bastante duro com São Paulo Sociedade Anônima. Ao citar o pensador
marxista Georg Lukács e o próprio Karl Marx — que, segundo ele, teria escrito que “a
máquina está inocente das misérias que provoca” —, Barcellos procura apontar os defeitos
dos personagens, especialmente a passividade de Carlos, a partir de um viés sociológico.
De maneira geral, tolerante demais Person deixa escapar aquilo que sabemos ser a
causa fundamental da alienação do seu personagem, a motivação do seu conflito
24
7
interior e a mola da sua acometida contra os demais: a infra-estrutura do processo
que comanda a corrida da indústria paulista (Barcellos, 1966, p. 21).
Figura 89. Primeira de três páginas da revista Filme 66 (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
248
Por isso, Barcellos não encontra justificativa para os embates entre os
personagens, como se eles precisassem surgir de uma consciência política e social. O
crítico ainda cobra uma “postura de ação e reflexão dirigidas à ambiência externa ao
homem”, como se Carlos pudesse se tornar num contestador. Argumenta que Person
poderia ter criado alguém menos manipulado pelo meio capitalista. Acredito que este
tipo de crítica deva ter sido muito comum na época, mesmo que não publicada, por
determinado tipo de linha de esquerda, representada especialmente pelo Centro
Popular de Cultura (CPC), pelos estudantes da União Nacional dos Estudantes (UNE)
e por facções marxistas de tendências e partidos políticos. Caso, inclusive, da crítica do
jornal L’Unità, ligado ao Partido Comunista Italiano (ver Figura 92 na página 253).
4.10. Ainda Cinema Novo
No segundo semestre de 1966, um ano após o lançamento de São Paulo
Sociedade Anônima, o jovem crítico Ismail Xavier organizou um caderno para
registrar um Ciclo de Cinema Brasileiro promovido pelo Grêmio Politécnico da USP.
Além de publicar os textos “Cinema — arte do século XX”, a “A arte do filme” e
“Breve história do cinema brasileiro”, em parceria com Fernando Albino, Ismail
Xavier informa na abertura que aquele Ciclo era parte de uma luta “para que o
Cinema Novo no Brasil não se torne um movimento de efêmera duração, mas seja o
início de uma verdadeira cinematografia brasileira”. O Ciclo exibiu filmes como
Estranho encontro (1958), de Walter Hugo Khoury, Meus oito anos (1956), de
Humberto Mauro, Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, Pedreira de S. Diogo
(1962), de Leon Hirzsman, A quinta-feira do senhor X (sem data no catálogo), de
Miguel Ângelo e Peter Overback, Garrincha, alegria do povo (1962) e Couro de
gato (1962), de Joaquim Pedro de Andrade, Vidas secas (1963), de Nélson Pereira
dos Santos, Memórias do cangaço (1965), de Paulo Gil Soares, Auto da vitória de
Anchieta (sem data no catálogo), de Geraldo Sarno, e São Paulo Sociedade Anônima,
de Luiz Sérgio Person.
Considero importante apresentar todos os filmes exibidos, pois mostra a
distancia temática dos dois filmes paulistanos. E para destacar o texto publicado no
caderno do Ciclo, escrito pelo estudioso e realizador João Silvério Trevisan. Ele, que
249
assina apenas “J. S. Trevisan, discute sobre o realismo no cinema, apresenta
propostas sobre todos os filmes exibidos, e faz ponderações contra (ressalvas) e a
favor (bem mais) de São Paulo Sociedade Anônima. Trevisan analisa a questão dos
personagens (ver Capítulo 3), do crescimento da cidade como uma “interpretação”
forte, de sua criação sob a ótica realista, de sua estrutura realista, e conclui:
Mesmo com todo esse rol de hesitações e algumas pretensões vanguardistas na
linguagem, Person não se perdeu. A própria estrutura narrativa vem, porventura,
expressar certa cumplicidade (não confusão) do relacionamento de Carlos com a
cidade. Também a música, quase operística e empolada situa-se dentro de tal
contexto e resulta positiva ao frisar o clima de perda e desencontro desta terrível
mais real fase do nosso capitalismo industrial. São Paulo S/A. acaba sendo a
experiência mais completa em direção ao realismo no cinema brasileiro. E,
positivamente, deu-se um grande avanço no caminho.
E em qual realismo se enquadraria São Paulo Sociedade Anônima?
Robert Stam, no capítulo “O texto realista clássico” de Introdução à teoria do
cinema faz um jogo de palavras entre os movimentos estéticos cinematográficos, o
que demonstrariam as variantes sobre o tema:
[...] o “surrealismo” de Buñuel e Dali; o “realismo poético” de Carné/Prévert; o
“neo-realismo” de Rosselini e De Sica; o “realismo subjetivo” de Antonioni [...]
O termo “realismo” também remete aos debates sobre o “cinema clássico” e o
“texto realista clássico”. Esses termos denotam um conjunto de parâmetros
formais envolvendo as práticas de montagem, de trabalho de câmara e de
sonorização que promovem a aparência de continuidade espacial e temporal
(Stam, 2006, p. 164-166).
4.11. A crítica italiana em Pesaro
Se houve surpresa geral pela escolha dos espectadores, em votação direta,
alguns críticos não se surpreenderam com a qualidade de São Paulo Sociedade
Anônima. Jornais de toda Itália estavam lá. Os recortes que pesquisei foram feitos
pelo próprio Renato Magalhães Gouvea, em sua estada em Pesaro. Nesta condição de
250
pessoa diretamente interessada, mas não pesquisadora, não havia de preservar o
nome do jornal ou mesmo o dia da publicação. Mas a variedade é grande e atinge
nomes como Corriere della Sera, Il Messagero, L’Unitá, Il Tempo, Il Popolo,
Momento Sera, L’Avvenire D’Italia e Voce Adriatica.
Como já observei, o enviado especial do Corriere della Sera, que assinava
apenas A. S., tratou São Paulo Sociedade Anônima desta maneira:
Figura 90. Crítica do jornal Corriere della Sera (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
251
Il pubblico che ogni sera ha riempito la platea del teatro Rossini ha invece scelto um
film brasiliano, São Paulo S.A. di Luiz Sergio Person, oscillante fra la ripetizione di
esperienze europee (alienazione, scusate e incapacita di inserirsi in un contesto
industriale), e la tentazione di strizzare un occhio al pubblico. La critica non s’è
scomposta ma in platea il calcolo di Person ha trovato credito.
Em longo texto, num jornal não identificado (ver Capítulo 1), Aldo Scagnetti, em
6 de junho de 1965, apôs o subtítulo “Alienazione” e escreveu:
Dall’atmosfera di New York a quella di San Paulo, la città industriale del Brasile,
americanizzata e angosciosa, nel film “Sao Paulo Spa” di Luiz Sergio Person, um
giovane che ha studiato regia in Itália, al centro sperimentale. Ritorna il tema
dell’alienazione e dell’integrazione della cattiva coscienza della società dominante
industriale e commerciale della metropoli. Attraverso il ritratto di um giovane in crisi,
che tenta di liberarsi dell’ingranaggio di uma vita assurda, senza, ala conclusione,
riuscirci. Um velleitario, insomma, questo Carlos che, dopo alcune esperienze
sentimentali finite male è costretto ad accettare indeciso e stanco, il meccanismo
borghese nel quale vive, sposando uma ragazza perfettamente integrata e mettendosi a
lavorare com un immigrato italiano, unito a una donna ricca, un edonista senza
scrupoli negli affari (pezzi di ricambio per auto). Uma più potente crisi porta il
giovanotto ad abbandonare la famiglia, a rubare um auto, cercando disperatamente uno
sbocco lontano dalla città. Ma il gesto non serve a nulla e Carlos ritorna a San Paolo,
enorme cimitero di macchine, di frustrazioni, di solitudine. Il film de Person getta um
occhio ad Antonioni ed uno alla casseta, muovendosi fra pagine solide ed altre
effettistiche (la crisi del giovane nella notte di Capodanno, l’abbandono della moglie,
ad esempio, di gusto dubbio), mostrando, tuttavia, nell’insieme che il regista há qualità
di sciolto narratore, da non sviluppare in direzione dell’imitazione dei maestri ma nel
senso di um approfondimento dei particolari caratteri (qui a volte schematici) di uma
città come San Paulo cosi diversa nel clima e negli abitanti dagli ambienti venuti
avanti com il registi del “cinema nuovo”.
O jornal local Voce Adriatica, sem assinatura, destacou a surpresa da votação
e atacou o prêmio do júri popular:
Per il lungometraggio il premio del pubblico à andato al film brasiliano “Sao Paulo
S.A.” di Luiz Sergio Person, um filmescope, che potrebbe entrare bene in un circuito
252
normale, anche se non con grande successo, verso il quale evidemente il pubblico
non há colto il punto debole: qualche anno addietro il film sarebbe stato
accettabilissimo specialmente per un’opera prima; ma oggi il film pecca
sensibilmente: una “scopiazzatura”, a volte quasi pedissequa (la ricostruzione
barocca di allegria vuota di massa ad esempio) di Fellini soprattutto per i due suoi
ultimi film; da aggiungere anche che l’imitazione è spesso superficiale , c’è a tratti
disordine e confusione. Anche se non tutto male, certo non era fra i primi dei film
presentati in questi giorni.
Figura 91. Jornal faz restrições ao filme de Person (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Na opinião de Ugo Casiraghi, para o jornal comunista L’Unità, o problema
estava na falta de crítica social:
253
Figura 92. O jornal critica a falta de crítica social do filme (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
Noi siamo perfettamente d’accordo com tutti i colleghi che hanno votato “I diamanti
della notte” di gran lunga l’“opera prima” più significativa e geniala della rassegna.
Ma non ci sorprendiamo affato che gli spettatori abbiano scelto invece um film
come il brasiliano “San Paolo società anonima”, il quale si presenta con la
254
caratteristiche di un buon prodotto di confezione media, commerciale, senza com ciò
trascurare qualche utile indicazione sociale. Il regista Person, che ha studiato anche
in Italia, e a San Paolo ha lavorato in una grande fabbrica ci offre il caso di un
técnico dell’industria automobilistica, che si vede circondato da donne spinte
dall’interesse (compres la moglie) e si trova a prestar la propria opera al servizio di
uno speculatore italiano completamente privo di moralità. San Paolo è, per il
Brasile, quel che Milano è per l’Italia; e il “boom” disordinato e fittizio nel quale il
film ci introduce , non risolve la crisi dell’onesto protagonista, bensì la accentua.
Con una serie di ricordi, la vicenda ricostruisce i rapporti del malincomico eroe con
tre donne, la migliore delle quali è, in fondo, quella che si uccide. Diciamo che si
tratta di una trasposizione dei temi di Antonioni in uma chiave molto romanezca.
Em mais um dos recortes sem identificação, o texto também não traz
assinatura. Mas o problema da alienação continua:
Il film di Luiz Sergio Person (degli altri abbiamo già parlato nei giorni scorsi) si
distacca dal più recente cinema brasiliano, quello sanguigno, vigoroso, violento dei
Rocha e Pereira Dos Santos: è un film “urbano”, che abbandona l’ormai tradizionale
“sertao” per penetrare nelle città, per indagare il “miracolo” industriale e riproporre,
in chiave antonioniana, il problema dell’alienazione e del deserto dei sentimenti.
Purtroppo, mentre il “sertao” ci rivelava um mondo nuovo e affascinante nella sua
esplosiva disperazione, questa indagine cittadina ci ripete um “leit-motiv” senza
dubio autentico, ma ormai logoro: il torto di Person forse è quello di avere studiato a
Roma, e di essere stato influenzato dal cinema occidentale. E i suoi limiti, per ora,
sono palesi soprattutto nella direzione degli attori che recitano ancora ubbidendo al
canoni più vecchi e più teatrali. L’incomunicabilità non si esprime com um volto
particolarmente sofferente, o con gesti melodrammaticamente sconsolati, ma si
manifesta con uno squilibrio interiore, che viene a galla impercettibilmente, quasi
per um trasalimento dell’animo.
255
Figura 93. Jornal italiano contrapõe os filmes rurais do Cinema Novo com a obra urbana de um
jovem cineasta brasileiro que estudou em Roma (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
25
6
No jornal L’Avvenire D’Italia, de Bolonha, o crítico G. B. Cavallaro revela o
aperto da votação e chega a comparar São Paulo Sociedade Anônima com Noite
vazia, apenas para falar de uma mesma matriz, a “crise da burguesia industrial”.
La critica, come era ampiamente prevedibile, ha assegnato il primo premio al
cecoslavaco “Diamanti nella notte”; invece il pubblico (il paziente e fedele pubblico
pesarese, che non ha mai protestato, cha ha accettato film buoni e film cattivi,
tradutrici capaci e meno capaci, e tutto larmamentario delle cuffte, e gli orari
faticosi di questa rassegna) si è vendicato alla fine con un verdetto a sorpresa, dando
il primo premio al brasiliano “São Paulo S.A.” di Luiz Sergio Person, um film
proieattato nel pomeriggio di venerdi e che non pareva dovesse rientrare nella rosa
dei candidati. “São Paulo” ricorda in parte l’altro film brasiliano visto a Cannes,
“Noctes vacias”. É il problema della borghesia, del senso della sua vita, della
frustrazione erótica e del velleitarismo, nella attesa di uma rivoluzione che rimane
solo allo stato di sogno e di pigro álibi. In termini cinematografici, è il ricalco, più o
mene fedele, di Fellini, Antonioni e Godard, ma in contesti ingenuamente
spettacolari e in culture arretrate. Il pubblico, dopo aver assegnato a “São Paulo” il
voto índice di 3,22, há dato 3,21 al francese “L’amour à la mer” di Guy Gilles
(proiettato ieri), e 3,11 all’americano “Andy” di Richard Sarafian.
O jornal Momento Sera, com assinatura de Antonio Troisio, fez um balanço
positivo da Mostra Internacional que reuniu 25 filmes de ficção e 10 documentários,
todos em primeira direção. O jornalista fez questão de ressaltar que o filme de Person
— “un’opera degna e ben fatta” — só ganhou do seu concorrente francês L’amour à
la mer, de Guy Gilles, por um centésimo dos votos. Pelo texto, Troisio preferia o
filme francês, de um diretor com apenas 22 anos.
O jornal Il Tempo fez uma breve biografia “italiana” de Person:
Lo spoglio delle schede per i lungometraggi ha dato infatti uma graduatoria che vede
al primo posto Sao Paulo S.A. del brasiliano Luiz Sergio Person, ventinove anni,
attore e regista di TV, già assistente di Luigi Zampa nel film Anni ruggenti,
produttore e regista di due cortometraggi Al Ladro (firmato com Cláudio Rispoli e
scelto per rappresentare l’Italia ai Festival di Venezia e Bilbao nel 1962) e
L’ottimista sorridente, Sao Paulo S.A. è il suo primo lungometraggio ed è questa di
Pesaro la prima volta che viene presentato al pubblico. L’indice di gradimento del
pubblico ha collocato quindi al secondo posto il film francese L’amour à la mer
25
7
dell’ex attore (anche lui) Guy Gilles, e al terzo l’americano Andy di Richard
Sarafian, autore di numerosi cortometraggi.
Figura 94. O jornal destaca os estudos de Person em Roma (arquivo Renato Magalhães Gouvea)
O jornal Il Popolo, como já comentado no Capítulo 1, onde está o recorte
escaneado, diz que é um belo filme e que sua estética abre portas para se tratar de assuntos
258
como moral e construção de uma nova sociedade. O jornalista Pompeo de Angelis apenas
critica a inutilidade de algumas cenas. Mas, como discutimos na Introdução, destaca que o
suicídio da personagem Hilda é o grande motivo que leva Carlos a buscar na memória a
origem de sua crise:
Il film brasiliano dedicato al boom industriale della città di San Paolo partecipa al
mondo estetico del due film precedenti, solo che la storia raccontata ha una
dimensione di luoghi precisi, di date esatte, di uma realtà sociologicamente esistente.
Il protagonista è um giovane tecnico che si fa strada nell’industria automobilistica
della sua città, ma senza essere convinto del mito del benessere che impera in questo
ambiente. Il suicídio di una donna che aveva amato anni prima è l’occasione per
tornare indietro com la memoria, e com ciò egli spiega a se stesso che moralmente
non può accettare il meccanismo del benessere che lo trascina. Decide di fuggire,
ma, accorgendosi che la sua fuga non può risolvere niente, torna indietro. In questo
caso la memoria serve a chiarificare il presente, a verificare la morale di uma vita. Il
film brasiliano, tagliato debitamente di alcune sequenze inutili, è un bel film e
soprattutto è utile ad indicarci come la nuova estetica possa essere applicata anche a
temi morali, quali la construzione di una determinata società.
4.12. Trabalhos acadêmicos sobre São Paulo Sociedade Anônima
Encontrei três dissertações de mestrado e um capítulo de tese de livre-
docência ou sobre São Paulo Sociedade Anônima ou sobre Luiz Sérgio Person.
Em 2007, Rubens Machado Jr. apresentou, no concurso para livre-docência
na Escola de Comunicação e Artes da USP, Imagens brasileiras da metrópole: a
presença da cidade de São Paulo na história do cinema. Nesta tese, inseriu um texto
que havia escrito para a Divisão de Artes Contemporâneas do Centro Cultural São
Paulo, “São Paulo vista pelo cinema: ensaio sobre a representação do espaço urbano”
(1992), que ganhou o título “São Paulo vista pelo cinema moderno: da década de 50
à de 80”. Além de São Paulo Sociedade Anônima, Machado Jr. faz um
impressionante trabalho de análise sobre o “relacionamento” câmeras e metrópoles,
com grande destaque para a cidade de São Paulo. Nesta radiografia, reflete sobre
filmes como O grande momento (1958), de Roberto Santos, e Moral em concordata
259
(1059), de Fernando de Barros, para depois entrar no cinema marginal de Ozualdo
Candeias, nos filmes politizados de João Batista de Andrade e experimentais de
Rogério Sganzerla, além de trafegar com facilidade pelos primórdios do cinema
paulistano, entre 1899 e 1954. O autor explica que procurou “enxergar esta São
Paulo cinematográfica” (Machado Jr., 2007, p. 2).
No texto específico sobre São Paulo Sociedade Anônima (Machado Jr., 2007,
p. 72-75), descreve os acontecimentos do filme, procura apontar as contradições,
angústias e sofrimento dos personagens para, ao final, dizer que este “tédio” na
cidade grande fazia parte de uma tendência da cinematografia, no que chama de “o
spleen proporcionado pela experiência de estímulos continuadamente repostos até o
ponto de sua saciedade tornar-se mecânica” (Machado Jr., 2007, p. 75).
Em 1997, Roberto Tadeu Noritami defendeu a dissertação de mestrado Uma
alternativa urbana dentro do Cinema Novo para o Departamento de Sociologia da
FFLCH-USP. O capítulo IV (p. 79-109) é totalmente dedicado para o filme
paulistano, onde “[...] a cidade se torna personagem, mas não como documentário
[...] É através das vidas de sujeitos individuais que São Paulo, metrópole, aflora em
toda sua dinâmica”. Noritami consegue fazer uma análise muito pertinente da
estrutura da obra, assim como estabelecer um paralelo entre os ritmos da cidade e os
personagens. Com um olhar focado na sociologia, busca revelar como a multidão faz
parte do enredo, o que considera “inaugural na seara cinematográfica brasileira.
Inaugural porque, longe do simples ‘pano de fundo’, o filme insere o foco narrativo
(o protagonista), e conseqüentemente o espectador, no vórtice das ruas abarrotadas”.
Em 1998, Marco Antonio Bin dissertou sobre A São Paulo de Person: uma
análise socioespacial do filme São Paulo S.A. na PUC-SP. Bin explica, na introdução
de seu texto: “Person nos oferece a espacialidade paulistana como mundo de fundo
participante da narrativa, transformando-nos em testemunhas de uma cidade em
transição, motivada pela então recente instalação da indústria automobilística.”
Apesar do título, a dissertação de Bin não alcança um olhar novo sobre o filme. Sua
maior pesquisa está na entrevista que fez com Jean-Claude Bernardet e na
comparação que estabelece entre os personagens Roquentin e Carlos, entre os
protagonistas criados por Jean-Paul Sartre, em A náusea, e Luiz Sérgio Person, em
São Paulo Sociedade Anônima. Bin também tenta delinear uma trajetória de Person e
compará-la com a do personagem Carlos.
260
Em 2006, Candida Maria Monteiro Rodrigues da Costa defendeu Em busca de
Luiz Sérgio Person: um cineasta na contramão — 1960-1976, para a PUC-RJ. Trata-se
de uma obra sobre a múltipla trajetória artística do diretor de São Paulo Sociedade
Anônima. A autora levanta a questão da importância da ideologia e dos debates
sociológicos nos anos 60 — e a função de determinadas obras artísticas neste contexto.
São Paulo S.A. é vigoroso justamente porque revela que as vítimas do capitalismo não
são somente as camadas desfavorecidas da sociedade, conforme assinala Gustavo Dahl
em conversa transcrita por Alex Viany: “A miséria na cidade, mesmo que seja um décor,
é muito mais difícil de explicar do que a miséria do Nordeste. O Nordeste é uma região
depauperada; São Paulo é uma região rica e, no entanto, nos letreiros de São Paulo S.A.
há uma favela. Como, então explicar essa favela numa região rica? Há toda uma
problemática, que é a problemática do neocapitalismo”. O modelo adotado na nossa
industrialização vai obrigar o país a um eterno recomeçar (Costa, 2006, p. 44).
O trabalho de Candida Costa baseia-se no documentário Person,
especialmente as entrevistas realizadas pela diretora Marina Person. Neste sentido,
não tem uma pesquisa elaborada, no máximo buscando referências na entrevistas já
conhecidas do diretor, tanto para O Pasquim, como na TV Cultura. E por abordar a
obra cinematográfica completa de Person, não trata com a devida atenção cada um
dos filmes. Ao mesmo tempo, comete inúmeras imprecisões históricas e traz dados
equivocados, o que não me cabe aqui comentar. Deixo registrado apenas que a autora
afirma que Person produziu São Paulo Sociedade Anônima. O diretor só viria a se
transformar em produtor a partir de O caso dos irmãos Naves.
A grande lacuna em todas as pesquisas sobre o filme em questão é que o nome
de Renato Magalhães Gouvea nunca é citado: segundo suas próprias palavras, ele nunca
foi ouvido — a não ser por jornalistas, em entrevistas dos jornais da época.
Além das teses em questão, nada consta no livro Person por Person, organizado
por Amir Labaki, nem no documentário Person, de Marina Person. Acredito que São
Paulo Sociedade Anônima é um filme de produção, semelhante a alguns do Cinema
Novo nos quais o papel desempenhado por Luiz Carlos Barreto foi fundamental para
suas realizações. Talvez aí esteja embutido certo preconceito contra a presença
organizacional de empresários num ramo considerado “artístico”. Especialmente depois
da experiência frustrante da Vera Cruz, que tentou focar no lado econômico do cinema
brasileiro, mas errou no alvo. Foi esta lacuna que procurei preencher.
261
Capítulo 5
PROPOSTA DE DESMONTAGEM & REMONTAGEM
Como Carlos é movido do exterior, sem dinâmica
própria, ele não controla o enredo do filme,
esfacela-se, e a ordem cronológica é subvertida.
Todo São Paulo S. A. (salvo as seqüências finais)
é um retrospecto no interior do qual o tempo é
tratado acronologicamente. Se o espectador
consegue perceber em linhas gerais a evolução
cronológica da vida de Carlos, nos pormenores
não é possível. Na primeira parte do filme,
sobretudo, o tempo é caótico, a evolução temporal
é substituída por uma sucessão de fragmentos de
ação cuja apresentação nos dá uma impressão de
simultaneísmo (Bernardet, 1978, p. 109).
5.1. Por dentro do filme
Jean-Claude Bernardet é o crítico, o pesquisador e o cineasta que mais e
melhor se aprofundou na estrutura e, portanto, na montagem e edição (como assinou
Glauco Mirko Laurelli) de São Paulo Sociedade Anônima.
Em livro, trabalhou na tradução de A significação no cinema, de Christian
Metz, e, na transposição da “Análise sintagmática de um filme” proposta pelo autor,
sugeriu (e foi aceito) fazê-la sobre a primeira obra de Person. Bernardet escreveu que
o filme devia ter determinadas características que tornassem a sua análise didática
em relação ao método” (Metz, 1972, p. 246). Para isso, precisaria ter uma grande
quantidade de segmentos autônomos, mas, ao mesmo tempo, não ser muito
“moderno” — e citou a obra de Godard, por exemplo, como de difícil aplicação. Ao
mesmo tempo, necessitava uma narração “suficientemente problemática” — e São
Paulo Sociedade Anônima se enquadrava nesta exigência. O argumento do tradutor
para o autor é que o filme Adieu Philippine, de Jacques Rozier, da versão original do
262
livro, era desconhecido do público brasileiro. O método em questão está no capítulo
5.5 de Metz (1972), que se intitula “A grande sintagmática da faixa-imagem”.
Também em livro, publicou São Paulo S/A: o filme de Person descrito por
Jean-Claude Bernardet (cf. Bernardet, 1987). Trata-se de uma obra original, porque
não transforma o roteiro em romance. O autor literalmente descreve as cenas e
obviamente se aproveita da montagem do filme para que isso aconteça.
Também escreveu um subcapítulo sobre São Paulo Sociedade Anônima no
livro Brasil em tempo de cinema (cf. Bernardet, 1978).
Em cinema e vídeo, utilizou cenas da obra de Person em duas “montagens
livres” que realizou: o vídeo Sobre anos 60 (1999), para a série Panorama, produzida
pelo Itaú Cultural, que enfoca a história do século XX através das décadas; o filme
São Paulo, sinfonia e cacofonia (1994).
Eu o cito, porque o próprio acadêmico e cineasta mexeu com imagens do
filme, mudou sua ordem, misturou cenas das caminhadas de Carlos com outros
filmes, colocou-as em outra realidade, trocou e inseriu narrações e, portanto, fez uma
espécie de “desmontagem”, assunto de que vou tratar mais à frente.
Numa entrevista para os organizadores da mostra A Montagem no Cinema,
promovida em 2006 pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), com curadoria do
cineasta Eugênio Puppo e do professor Arthur Autran, que resultou num caderno com
ensaios, filmografias e perfis, Jean-Claude Bernardet explicou o processo de seu filme:
Um problema que a Maria Dora Mourão — montadora do São Paulo, sinfonia e
cacofonia — e eu enfrentamos em diversos momentos foi o seguinte: não estávamos
montando um filme de antologia, não se tratava de falar da percepção de São Paulo
para Luiz Sérgio Person ou Rogério Sganzerla, era necessário que a montagem, o
conjunto audiovisual, tivesse autonomia e que esse filme se diferenciasse dos vários
filmes de onde provinha o material (Catálogo da Mostra A Montagem no Cinema,
CCBB, 2006, p. 35).
Na remontagem que acompanha esta dissertação, ocorre exatamente o
contrário. Foi como se eu pudesse propor a Luiz Sérgio Person e a Glauco Mirko
Laurelli um novo sentido para sua obra. Como se dissesse: “Olhem aqui como pode
ficar bom e mais compreensível — embora menos estimulante.”
263
Apesar da importância destas obras de Jean-Claude Bernardet, não vou
discutir a montagem de São Paulo Sociedade Anônima a partir delas, porque não faz
parte do escopo do meu projeto.
5.2. Um pouco de teoria
Antes de entrar na minha proposta de “remontagem”, lembro as palavras de
Luiz Adelmo F. Manzano na sua dissertação de mestrado para a USP, de 1999,
publicada posteriormente pela Perspectiva: “A construção fílmica, no sentido de
decupagem e montagem, associa-se à memória na (des)construção de um sentido, e o
esmiuçamento deste processo de percepção torna-se fundamental para a realização
cinematográfica” (Manzano, 2003, p. 38).
Manzano faz análises da integração som-imagem a partir das teorias de, entre
outros, Merleau-Ponty, Hugo Munsterberg, Sergei Einsenstein e Jean Mitry, a quem
recorre para fazer a seguinte pergunta: “E como ocorre o processo de (des)construção
junto ao espectador?” Manzano responde:
Segundo Jean Mitry, é possível ordenar as percepções do espectador e entender os
meios de expressão. O cinema pode ordenar as percepções do espectador,
possibilitando não só que sua imaginação funcione mas que também que um
pensamento seja transmitido. Dentro de um filme, constrói-se uma nova realidade, um
novo mundo. Começa a surgir aqui uma diferenciação entre a esfera da vida e da arte
(Manzano, 2003, p. 41).
Ao escreverem que a montagem era a última etapa de um processo, Eduardo
Leone e Maria Dora Mourão também defendem que faça parte de um conjunto:
Com isso, queremos dizer que a montagem é a articulação de três etapas distintas: a
escritura do roteiro, que também chamaremos de peça cinematográfica, a realização,
que também chamaremos de encenação da peça, e a seleção e organização dos
planos, buscando uma aproximação estrutural com o roteiro; a isso também
chamaremos de montagem propriamente dita (Leone & Mourão, 1993, p. 15).
A montagem é importante? Certamente sim.
264
Embora Eduardo Escorel lance uma pequena provocação, ao escrever o
ensaio “(Des)importância da montagem” para o mesmo caderno do CCBB citado
acima. Diz o montador e cineasta: “Montar ou editar consiste em escolher e justapor.
Apenas isso. É uma operação simples, comum a toda linguagem. No cinema, não é
diferente. Quem se exprime por meio da linguagem cinematográfica seleciona e
combina imagens e sons.”
Para questionar sua importância, Escorel cita o cineasta russo Andrei
Tarkovski, que não acreditava que o filme fosse criado durante este processo. E
relembra que um dos responsáveis por este “equívoco” (o da sua “importância”) foi
Orson Welles, numa entrevista feita por André Bazin, Charles Bitsch e Jean
Domarchi para o Cahiers du Cinéma em 1958, quando vaticinou que
a única direção de real importância é feita durante montagem. [...] a montagem não é
um aspecto, é o aspecto. Dirigir um filme é uma invenção de pessoas como vocês:
não é uma arte [...]. O essencial é a duração de cada imagem, o que segue a cada
imagem: é toda a eloqüência do cinema que se fabrica na sala de montagem (Bazin,
2005, p. 139-140).
Ao relativizar o poder da montagem, Escorel garante que não a considera
irrelevante. Com efeito, contesta o “tudo” ou “nada” defendido por Sergei
Einsenstein no ensaio “Montagem”, que escreveu em 1938 e que está no livro O
sentido do filme, com o título “Palavra e imagem” (cf. Einsenstein, 2002, p. 13)
Creio que, no roteiro de Luiz Sérgio Person, já é possível encontrar o “sentido
da montagem”: os planos são bem encadeados, a estrutura é firme, os cortes de cena
ou mudança de ordem foram delineados com antecedência (mesmo que tenham sido
alteradas na hora da filmagem), a decupagem parece irrepreensível, não só pelo
apuro técnico, como pelo respeito que houve ao cronograma de produção. Como diz
Escorel, no citado caderno do CCBB, “a partir do momento em que é decidido como
cada plano será filmado, a bem dizer, a montagem já começou [...] É uma montagem
prospectiva que poderá ser ratificada ou não depois da filmagem”.
David Neves — hoje chamado “líder afetivo” do Cinema Novo e diretor de
filmes como Mauro, Humberto (1964), Memória de Helena (1969), Lúcia
MacCartney (1970), Muito prazer (1979), Luz del Fuego (1981), Fulaninha (1985) e
Jardim de Alah (1988) — fez algumas observações ao analisar São Paulo Sociedade
265
Anônima após uma apresentação especial no inicio de 1965, no Rio de Janeiro. Para
ele, os vícios estariam mais no argumento do que na decupagem. E que vícios seriam
esses? Segundo Neves, certa imaturidade do diretor, por não saber apresentar o
personagem corretamente. Solução resolvida na hora da montagem:
A aparência inicial de São Paulo S/A é a de um filme com diversas tonalidades, uma
colcha de retalhos, um instrumento destinado a favorecer uma gama variada de
exercícios de estilo. Nem por isso o filme se ressente dessa característica, e o que
surge é justamente o efeito inverso, isto é, uma dialética renovadora que aproxima
os elementos desagregados, dando ao todo uma força e uma unidade especiais (São
Paulo S/A (II), Diário do Comércio, 26 mar 1965, p. 6 ).
Voltarei ao assunto mais adiante, ao apresentar a proposta de remontagem.
5.3. As três fases de São Paulo Sociedade Anônima
Luiz Sérgio Person participou das três fases de seu filme. A partir das
entrevistas que deu na época, conclui-se que criou o argumento baseado em
experiências por que passou no ramo industrial. Em entrevista para Orlando Fassoni,
na Folha de S. Paulo de 19 de outubro de 1965, diz que aceitou sugestões de amigos
(sem dizer quais), mas que desenvolveu o roteiro sozinho, entre sua ida para Roma e
a volta para São Paulo.
Embora eu tenha escrito o argumento sozinho, não pude dispensar a colaboração de
muitos amigos, que me ajudaram a dar mais unidade e interesse ao contexto. A
adaptação oferecia um grande problema: fazer a cidade participar torná-la um
verdadeiro personagem dentro do filme. Comunicar, devolver ao espectador, em
forma de cinema, uma realidade que lhe é vizinha, circundante, mostrar essa
realidade sob um crivo de crítica e reflexão. Acredito que o problema foi resolvido.
Mas o caminho é longo. Penso que São Paulo, a sociedade anônima que tentei
desvendar, merece ainda outros registros e muitos outros enfoques. A nossa
literatura ainda se encontra no estágio de aguda alienação. Poucas são as obras que
realmente se preocupam em indagar sobre a nossa maneira de vida, direta.
26
6
Em 1986, Cláudio Petraglia, autor da música de São Paulo Sociedade
Anônima, gravou um depoimento para o projeto de memória da Embrafilme com o
Museu da Imagem e do Som, sobre Luiz Sérgio Person. E confirmou sua
participação informal no roteiro: “Eu participei do primeiro roteiro do São Paulo S.A.
e depois eu dizia: ‘Acho que aqui deveria ser assim e tal’. Ele me pediu o bolero que
foi feito para a Darlene Glória e foi assim uma coisa conjunta.”
Person dirigiu o filme sozinho e acompanhou sua montagem, embora,
segundo seu montador, não o tempo todo. Glauco garante que o diretor não mexia na
moviola. Repito: ao se analisar o roteiro com cuidado, é fácil perceber que a estrutura
de montagem estava toda nele. As passagens de tempo, os jogos entre os
personagens, o vai-e-vem constante, tudo estava lá. Obviamente, houve a inserção de
cenas intermediárias, documentais, que não poderiam constar do roteiro original. É o
caso do desfile cívico, que foi um flagrante de produção. No roteiro está assim:
10) RUA MARCONI — EXT. FIM DE TARDE
23-24-25-26
Bancários em greve passam com cartazes de reivindicações. Na frente vai uma
banda de música. Carlos procura um meio de atravessar a rua. Cruza. A banda de música e
os bancários. Carlos encontra Ana que sai de um edifício. Ana diz quase de sopetão
[segue
diálogo].
No roteiro de filmagem, está manuscrito: “Não — Campanha de Educação
Cívica. ‘O civismo vencerá’.”
No roteiro original, arquivado na Cinemateca, é possível conferir o panfleto
que foi distribuído na época, com anotações de Person.
26
7
Figura 95. Folheto de campanha cívica, anotado por Person e anexado ao roteiro de São Paulo
Sociedade Anônima (arquivo Cinemateca Brasileira)
268
Certamente, a cena foi escrita antes do golpe militar de 1964. Uma passeata
de verdade seria muito difícil de encontrar, por ocasião das filmagens. E o custo de
centenas de figurantes sem dúvida inviabilizaria a produção. Além disso, não soaria
como uma “ficção-documentário”, nas palavras posteriores de Rogério Sganzerla.
Por isso a cena da marcha do movimento pelo civismo brasileiro soa tão oportuna.
Por outro lado, a escrita original do roteiro já prevê uma das seqüências mais
difíceis para a compreensão do espectador. Trata-se da cena 61, onde está escrito:
61) ESTRADA DE INTERLAGOS — EXT. DIA.
A estrada num domingo ou feriado, com grande tráfego. Carlos numa Lambretta.
Luciana atrás segurando-se a ele pela cintura. A CAM. segue em TRAV. acompanhando a
Lambretta. Luciana recebe o vento no rosto com satisfação, alegre. Carlos está meio
absorto. Aos poucos, entra a voz de um diálogo entre êle e Ana
[segue diálogo em que
Carlos propõe que voltem a se encontrar, apesar do casamento futuro].
Isso se passa minutos antes do pedido de casamento. Por algum motivo,
Person colocou o diálogo de Carlos com Ana, que ainda não tinha voltado para a sua
vida como garota-propaganda da fábrica de Arturo. A montagem, assim, se permite
uma licença poética.
Confesso que foi a cena mais difícil de reinserir na nossa proposta de
remontagem. Precisamente porque estava totalmente fora de tempo e de lugar.
Pouco antes, no roteiro, Person colocou uma observação para cinco cenas:
55) SAÍDA DO INSTITUTO CULTURAL — EXT-DIA ; 56) CENTRO DA CIDADE —
EXT — DIA; 57) ATRÁS DA ESCOLA CAETANO DE CAMPOS — EXT-DIA; 58)
LANCHONETE PELICANO OU SALADA PAULISTA — INT — NOITE; 59) PACAEMBU —
EXT — DIA ; 60) SAÍDA DO ESTÁDIO.
A observação de Person era a seguinte:
A estrutura definitiva destas últimas 5 seqüências deverão ainda ser melhor
estudadas, tendo em vista mostrar aspectos da vida comum da cidade nas horas de lazer,
onde o paulistano despende igual dose de energia para se divertir ou passar o tempo,
mergulhado numa grande densidade coletiva do mesmo modo que nos dias de trabalho. É
269
uma tomada de contacto com a vida de São Paulo, dentro da qual, juntos, Luciana e Carlos
procuram inserir-se.
O que interessa aqui é a questão da “montagem no roteiro”, “montagem na
filmagem” e “montagem na montagem”, como querem Eduardo Leone e Maria Dora
Mourão, e também Eduardo Escorel.
Outra anotação feita à mão por Person, tanto pode ter sido escrita durante a
filmagem ou na hora da montagem. Falo da troca de lugar entre duas cenas: a)
quando Carlos esguicha água em Ana, no cais; e b) quando os dois passeiam num
porto de areia. A primeira “subiu”, a outra “desceu”, mas seguiram em seqüência.
Para finalizar estes comentários sobre o roteiro original de Person, lembro das
cenas que envolvem a Corrida de São Silvestre, a única com material comprado.
Eram originais de um cinejornal de Primo Carbonari. A seqüência foi montada como
estava no roteiro, inclusive com alternâncias de Carlos ao carro. Mas a mão de
Glauco lhe deu uniformidade e ritmo. A seqüência foi destacada na época pelo
crítico Francisco Luiz de Almeida Salles:
Nada mais paulistano — e é lamentável que a percepção dessa peculiaridade não
possa ser fácil a platéias estrangeiras — do que a fuga desesperada de Carlos ao
longo da vida noturna de São Paulo, ao mesmo tempo em que se processa a corrida
de São Silvestre (Salles, 9 out 1965, p. 5).
Leone e Mourão também explicam que o processo de um montador só pode
ser iniciado a partir das significações da história a ser contada. E estas significações
envolvem movimentos, dimensões, gestualidade, cromatismo etc.
Não existe o acaso na montagem; todos os elementos constitutivos de um plano,
enquadrado a partir da intenção do diretor, são passíveis de uma leitura ideológica
pelo espectador, e serão reforçados, ou não pela relação criada pelo corte. Assim, o
corte poderá reforçar ou atenuar determinadas relações, dependendo das
necessidades surgidas na narrativa (Leone & Mourão, 1993, p. 57).
Utilizo-me deste parágrafo, porque nossa proposta de montagem traz um
novo olhar sobre o filme. Em vez da “desconstrução cronológica”, a “construção na
270
ordem do tempo” proposta pela legenda inicial: “Os episódios dêste filme são
fictícios e ocorrem entre 1957 e 1961.”
Ou seja, quem assistir à nova montagem pode ter outra relação, outra leitura,
outra postura diante do filme, do enredo e de seus personagens.
5.4. A repercussão da montagem
Agora, destaco as críticas que a montagem de Glauco Mirko Laurelli recebeu
na época do lançamento de São Paulo Sociedade Anônima. Sua montagem-edição
ganhou três prêmios, que estavam entre os mais importantes do País: o Saci, o
Governador do Estado de São Paulo e o Cidade de São Paulo.
Além disso, acumulou boas críticas de todos os lados, sempre com elogios
paralelos para a fotografia de Ricardo Aronovich.
De São Paulo, Ignácio de Loyola alertava que muita gente já tinha feito
restrições para o trabalho de Glauco como diretor. E que a partir de São Paulo
Sociedade Anônima entendia-se que o seu “métier” (palavras dele)
é na sala de montagem, frente à moviola [...] Glauco tem o sentido profundo do
valor de cada fotograma e acompanha a idéia do autor (a seqüência em que Ana
Esmeralda é encontrada morta e Walmor tem visões rápidas do personagem
dançando alucinadamente; instante excelente que filmado com o negativo do som,
que não oferece gamas intermediarias e apenas o preto e o branco, resultou
belíssima) (Loyola, 15 abr 1965, s/p).
De Porto Alegre, o critico Goida usava a mesma palavra, “nervosa”, que
Glauco Mirko Laurelli repetiu nos dois depoimentos que me deu (ver Anexo 2):
“Excepcional a montagem de Glauco Mirko Laurelli, conseguindo dar à película um
ritmo notável e atraente; nervoso e moderno” (Goida, 1998, p. 72).
Do Rio de Janeiro, Salvyano Cavalcanti de Paiva destacava a opção do diretor
Luiz Sérgio Person em seguir o ritmo de seus personagens, também na montagem:
Para ser coerente e consciente, ele aplica a montagem mais simples — uma outra
vez realçado do monólogo do personagem-pivô, ou em relato onde a imagem virtual
antagonizada ou abstrai a imagem oral e o seu método funciona: jamais o enredo se
271
perde em cogitações que não as propostas desde o início, jamais o autor se aliena
(Paiva, 25 nov 1965, s/p).
Entre todos os críticos, Salvyano Cavalcanti de Paiva foi o que mais se
debruçou sobre o tema — e, por isso, me estendo na citação, já que ele também adota
a palavra “nervosa” para comentar a montagem:
O ritmo nervoso da primeira metade, a narrativa simultânea de episódios que se
entrecruzam num vai-vem admirável, a evocar um passado mais recente e um
passado mais remoto, a deslanchar um presente angustiado do personagem central, a
antecipar o final anticlimático (que já estava no começo), tudo concorre para
estabelecer de imediata comunicação com o público, interessado na trama,
identificado com os seres humanos que transitam na tela. [...] O emprego da sintaxe
ultrapassa o correto, lembra a fúria inovadora e iconoclasta — sem os desabafos
ultrajantes para os tradicionalistas e também sem a construção apenas chocante dos
modernistas literários de 22, por exemplo. A rigor, da linguagem sóbria nasce a
beleza e o encanto de São Paulo S.A.; Luiz Sérgio Person soube contornar os perigos
de uma incontinência verbal que levaria o mais descuidado a uma veemência
negativa (Paiva, 25 nov 1965, s/p).
H. Didonet volta a falar no jogo entre equipe, com destaque para a montagem:
É que soube cercar-se de bons auxiliares: o montador Glauco Mirko Laurelli mostra
estar maduro para arcar com grandes oportunidades no cinema brasileiro; R.
Aronovich é digno de ser o iluminador de qualquer grande cineasta de fama
mundial; Walmor Chagas, que a novela televisionada vai estereotipando, prova que
é um valor inaproveitado no cinema nacional (Didonet, 11 nov 1965, s/p).
O cineasta e crítico David E. Neves, que escreveu dois artigos seguidos sobre
o filme, faz pequenas ressalvas, mas para o roteiro: “Na parte inicial, que pode
representar inclusive a fase de imaturidade de Carlos, o filme sofre um pouco em
virtude de certos vícios oriundos mais do argumento do que propriamente da
découpage. Há momentos de alto nível e outros mais fracos.”
O então crítico e futuro cineasta Rogério Sganzerla, por outro lado, diz que,
por ser de estréia, é um filme complexo e exigente para o espectador comum. Afinal,
sua narrativa tem muitos personagens e locações, assim como variadas ações. E que
por isso é baseada em “estruturas de tempos e cortes elípticos”. E não tem medo de
272
apontar o dedo para um artista: “Glauco Mirko Laurelli realizou uma das mais
brilhantes montagens do nosso cinema, cuja energia provém do luxo avassalador
daqueles elementos” (Sganzerla, 16 out 1965, p. 5).
Já sem citar o nome do montador — ou dela falar explicitamente — o crítico
S., como assinava Alfredo Sternheim, destaca que a forma sobrepunha-se ao
conteúdo em muitas situações, mas sem invalidar os méritos:
Mesmo essa condição de exercício formal — dos mais brilhantes que o cinema
brasileiro apresentou nos últimos anos — já bastaria para justificar a nossa
admiração por este lançamento da Columbia Pictures, que oferece também um ritmo
fluente, dinâmico, bem de acordo com a agitação desta cidade, e um acabamento
técnico-artístico de nível internacional (Sternheim, 6 out 1965, p. 12).
Meses antes, quando o filme participara como convidado do Festival de
Berlim, Novais Teixeira foi mais duro e, em O Estado de S.Paulo, chegou a se referir
a “vícios” de aprendiz — embora considerasse um bom filme e uma primeira obra:
Nesta sua primeira grande-metragem verifica-se em especial, a aplicação do
estudante e o desejo bem compreensível de mostrar aos seus do Brasil tudo quanto
sabe e aprendeu. Assim, por exemplo, a montagem é um alarde ofegante de exibição
no corte, ritmo e variedade às vezes expressiva, outras vezes necessária e outras
desnecessárias. No roteiro escrito é bem clara e feliz a linha do pensamento do autor,
mas, em seu desenvolvimento e tratamento cinematográficos o relato mostra-se um
tanto embrulhado e confuso. Person nem sempre soube esquecer o muito que
aprendeu e o impressionou (Teixeira, 6 jul 1965, s/p).
Para finalizar (e contrariar o dito logo acima), reproduzo as palavras de
Francisco Luiz de Almeida Salles:
O filme se desenvolve em linhas paralelas, concorrentes e confluentes, armando um
tecido rico de colocações humanas reveladoras. Apesar da complicada estrutura, não
incide Person, ajudado pela mão segura do montador Glauco Laurelli, em
formalismos exteriores. Para traduzir o máximo do corpo e do espírito da cidade,
como núcleo do drama, precisava orquestrar a aventura do personagem com todo o
universo urbano envolvente (Salles, 9 out 1965, p. 5).
273
5.5. Por dentro da montagem
Foi para saber como a história de São Paulo Sociedade Anônima aconteceu
diante da moviola que procurei Glauco Mirko Laurelli em duas ocasiões. Na primeira
vez, no Teatro Frei Caneca, no shopping de mesmo nome, onde ele trabalhava como
administrador. Na segunda, em seu próprio apartamento, na praça da República, onde
assistimos juntos ao DVD do filme. Entre as duas conversas, apenas uma mudança
nas respostas. Da primeira vez, disse que não se lembrava de ter visto o roteiro do
filme; da segunda, repetiu que tudo estava no roteiro e que, portanto, seguira a ordem
das claquetes, das filmagens, do material que vinha da rua — o que é natural na
linguagem dos montadores; “roteiro” pode significar a ordem das cenas que
chegavam, a tal separação em rolos, já que nada é filmada em ordem cronológica.
— O Person acompanhava a montagem?
Glauco Mirko Laurelli — Não o tempo todo. É impossível ficar o tempo todo. Eu
fazia e depois mostrava. Mas fui seguindo o material que chegava. E no São
Paulo S.A. existem algumas seqüências que não foram filmadas por ele. Por
exemplo, a do Ano Novo foi comprada do Primo Carbonari. Era material que
usava para os cinejornais. Era uma coisa meio malfeita, ou melhor, meio
comercial, de propaganda. Lógico que eu, como montador, tenho o meu estilo
de montador nervoso. Tenho uma agilidade de seqüências. Pra mim é difícil
montar como os filmes do Walter Khoury — que são maravilhosos —, mas são
aquelas seqüências muito lentas... Eu gosto da tesoura, cortando, fazendo
criar. Então o filme deu para fazer isso. E com ele eu ganhei dois prêmios, o
Saci e o Governador do Estado [Glauco esqueceu o Prêmio Cidade de São
Paulo].
— Quero me aprofundar na montagem. O filme é cheio de vai-e-vem. Sei que
isso já tinha no roteiro. Você gostava dessa estrutura?
GML — Eu não me lembro de ter seguido o roteiro. Este que você me mostrou,
estou vendo pela primeira vez. Posso até ter lido, mas eu seguia o material que
vinha das filmagens. Eu seguia apenas a numeração. Não me lembro de ter
invertido ordem, seqüência, coisas assim.
— Quanto tempo durou a montagem?
GML — Um mês e meio, mais ou menos. Foi trabalhoso. Depois, tinha a
parada para a dublagem. Foi mais um período de um mês. E aí com os
274
diálogos já montados, eu passava para um corte ainda não final, mas que dava
toda a seqüência do filme. E depois, aos poucos, vinham todas as divisões
para dar o corte. Porque os diálogos ajudam a fazer as passagens. Pra mim,
isso é importante. Você monta durante tanto tempo, um mês e meio montando
aqueles quilômetros de filme, de repetições, e precisa de distanciamento.
Figura 96. Manuscrito de Person com sugestões de montagem para Glauco (arquivo Cinemateca
Brasileira)
— Você se lembra se ele filmou muito, se gastou bastante negativo?
GML — Ele gastou bastante [filme]. Tinha bastante material filmado.
— E esta cena longa no Ibirapuera, com Carlos e Hilda?
GML — Não tive como passar a tesoura... [ri]
— Duas coisas: quando tem estes cortes documentais da cidade — tipo
velhinha pedindo esmola ou carro passando — vocês conversavam bastante
sobre isso?
275
GML — Todo este material foi filmado separadamente. E eu usava para fazer
uma pontuação. Eu colocava instintivamente e se o Person não quisesse, eu
tirava depois. Era uma pontuação para separar as cenas.
Cláudio Petraglia, autor da música, confirma como foi a presença de Person
na sala de moviola:
Eu me lembro que na montagem do São Paulo S.A., que foi feita pelo Glauco — e
eu estava sempre presente — a gente expulsava o Luiz Sérgio da montagem e
dizíamos: “Você não pode se meter” porque ele ficava aflito porque ele queria, já na
primeira montagem, já ter a montagem final; quando a gente estava realmente
colocando as coisas no lugar para depois ajustar e fazer a montagem (Caderno
Embrafilme/MIS, Depoimento de Cláudio Petraglia sobre Luiz Sérgio Person, 13
maio 1986, p. 7, Hemeroteca da Cinemateca D 155).
No caso da trilha sonora, Petraglia confirmou que fez as músicas
posteriormente.
Uma pequena anotação manuscrita pelo próprio Person no final de um “plano
de produção” revela o seguinte:
NOTA: Na verdade foram rodados + de 600 takes e na 1ª montagem o filme tinha
2,35 minutos — 2ª 2,5 ou 2,10 e finalmente 1,47.
Já na introdução do livro São Paulo S.A.: o filme de Person, Jean-Claude
Bernardet revela seu método para descrever, de forma simplificada, o enredo — e diz
que são “cerca de 879 planos”. De certa maneira, trata-se de uma “pequena
remontagem em texto”, porque o roteiro foi “reduzido” de 155 seqüências do roteiro
de filmagem para 61 seqüências no livro. Bernardet explica o motivo:
Considerando que a divisão em seqüências pode ter algo de arbitrário, se procurou
um recorte que correspondesse a unidades dramáticas relativamente grandes. Por
exemplo, a seq. 56 poderia estar subdividida em três seqüências. No entanto,
preferiu-se juntar num bloco único cenas muito diferentes, porque nos pareceu que
estas cenas representavam uma espécie de balanço final que Carlos faz da sua vida
no momento mais agudo da crise, e neste sentido a seq. 51 representa uma unidade
dramática (Bernardet, 1987, p. 5).
27
6
O cineasta Carlos Reichenbach, ex-aluno de Person na Escola Superior de
Cinema São Luiz, acredita que o processo de realização ajuda o filme a avançar no
tempo, cada vez mais moderno, e a não ficar datado como acontece com muitas
obras elogiadas num período e criticadas em épocas posteriores. Num artigo para a
Folha de S.Paulo, em 19 de abril de 1996, escreveu o seguinte:
Para narrar as seqüelas do processo perverso e desordenado que assolou a metrópole
de 1957 a 1961, Person lança mão de todos os expedientes do cinema moderno:
narrativa fragmentada, cortes secos e abruptos, vozes contrastantes em off, elipses,
grafismo, alteração proposital do diafragma na mesma cena e a mistura ostensiva do
documentário na ficção. Enfim, tudo que em mão menos hábeis e de talento
homeopático se confunde com maneirismo, afetação ou modismo. Não foram
poucos os filmes marcantes de juventudes que depois se revelaram medíocres, ou no
mínimo datados.
Então voltemos mais um pouco para Person. Em entrevista para a revista
Filme 66, da Federação Gaúcha de Cineclubes, no primeiro semestre de 1966, a
dupla de entrevistadores, que assinavam E. S. e M. B., observou que São Paulo
Sociedade Anônima tinha uma aceleração no ritmo que ajudava a prender o
espectador. Person aproveitou para atacar a lentidão, tanto na direção, como na
montagem. E foi claro na opinião sobre um dos maiores cineastas italianos do
período, Michelangelo Antonioni, considerado um ícone na história mundial:
Eu acho que um recurso cinematográfico que já está bastante desgastado, aceite-se
ou não, é o das narrativas lentas. É um fenômeno psicológico interessante. É por isso
que eu não recomendo Antonioni (embora goste de dois dos seus filmes). O que
acontece nesse caso é que, mesmo saindo do cinema detestando o filme, fica-se
sempre com uma idéia de sedimentação da imagem na memória, em função da sua
vagarosidade. Mas isso, repito, é um recurso fácil de que eu procuro fugir. Porque é
muito mais difícil de algo ser gravado num ritmo acelerado, como acontece em “São
Paulo S/A”.
Person também afirma que pensou em montar o filme com maior duração:
“Aliás, esse filme teria durado duas horas e vinte. Mas, por razões comerciais, eu me
vi na contingência de cortar seqüências inteiras. Seria demais para o público.”
277
Fazendo a soma de cenas filmadas e seqüências montadas, certamente o filme
teria material para isso. Mas, como me disse Glauco Mirko Laurelli, as sessões de
cinema da época, anos 1960, eram bastante rígidas: 14:00h, 16:00h, 18:00h, 20:00h e
22:00h. Um desafio comercial muito grande tentar quebrá-las. Principalmente para
uma pessoa como Person, que tinha noção do negócio.
5.6. Por dentro da remontagem
Nas mãos de Maria Dora Mourão, Eduardo Leone, Luiz Adelmo F. Manzano
e Eduardo Escorel, a montagem de São Paulo Sociedade Anônima seria
completamente diferente da realizada por Glauco Mirko Laurelli. Parece óbvio. Mas
não é tão simples.
Escorel, por exemplo, escreveu no já citado boletim do CCBB:
As inúmeras visões do acervo reunido são um esforço para tentar compreender qual
a melhor opção para selecionar e ordenar aquele material concreto. Qual o momento
ideal para iniciar e terminar cada plano. Como combinar cada imagem com a
seguinte. À primeira vista, pode parecer que há muitas alternativas. Na verdade, em
cada caso, para cada equipe de montagem confrontada com a tarefa de dar forma a
um material bruto, trata-se de descobrir qual é a solução correta. A decifração terá
sido tão mais exitosa quanto mais se aproximar dessa solução. Outra equipe, diante
do mesmo material, poderia chegar a outras opções, e é razoável supor que resultaria
um filme diverso. Para uma mesma equipe, no entanto, entre todas as variantes que
ela for capaz de engendrar, apenas uma se aproximará ou, idealmente, se igualará ao
potencial expressivo máximo daquelas imagens e sons.
Para a atual dissertação, optei em refazer a montagem, ou seja, remontar e
não desmontar, e quebrar toda a estrutura de flashbacks que, aliás, já constavam no
roteiro original. Por quê?
Em primeiro lugar, para saber se o filme se sustentaria. E, para mim, a obra
segue inteira com a nova estrutura. Em segundo lugar, para seguir os parâmetros
estabelecidos pelo próprio autor, que coloca o letreiro inicial para explicar que a
história se passa entre 1957 e 1961 e o próprio personagem principal, Carlos, que
diz: “Creio que faz cinco anos. No começo era Ana, apenas Ana.”
278
Portanto, por que não descobrir se as interpretações, a continuidade, os
figurinos, os cenários, a fotografia, os sons e a música, os efeitos e especialmente o
roteiro tinham uma ordem lógica?
Para o fim do filme, sugeri acrescentar o poema de Vinicius de Moraes que
constava do roteiro original, quando ainda se chamaria Agonia.
A minha proposta levanta duas hipóteses ao novo espectador.
1) Se gostou do filme com a nova montagem, isso o torna melhor?
2) Se prefere a versão original, o que será que a construção do vai-e-vem, da
agilidade, do desrespeito à cronologia tem a ver com o nosso jeito de olhar o cinema?
Como desafio, recordo que dois grandes clássicos do cinema poderiam
enfrentar esta remontagem: Cidadão Kane (1941), de Orson Welles, e Terra em
transe (1967), de Glauber Rocha.
Antes de passar para a descrição das cenas propostas no DVD, quero ressaltar
que a questão de montagem e de edição é recorrente na minha vida profissional. Em
televisão, fiz programas experimentais na Abril Vídeo, na primeira tentativa da
editora de mesmo nome de ingressar na televisão (com a compra do horário nobre da
TV Gazeta de São Paulo, entre 1983 e 1984), assim como na TV Bandeirantes (em
1985) e na TV Cultura (1986-1987-1988). Em alguns casos, foi em ficção, mas,
principalmente, em jornalismo — o que me permitia trabalhar a edição. Foi o caso do
programa Olhar Feminino, que teve três edições especiais, e do teleteatro Lucy
Puma, uma gata da pesada, que reunia músicos e rappers como atores (Skowa,
Gigante Brazil, Thayde, DJ Hum, Marisa Orth, Theo Werneck, Nazi, entre outros) e
propunha que as câmeras saíssem dos estúdios.
Como realizador de cinema, escrevi e dirigi dois curtas, Ondas (1986) e
Branco & Preto (1988), produzidos pela Superfilmes, que me deram o prazer de
fazer exercícios de montagem ao lado do profissional Renato Neiva Moreira. No
segundo filme, inclusive, nós aplicamos o método da desmontagem. Ou seja,
pegamos o copião e montamos de forma totalmente diferente do original. No
lançamento na sala de cinema do Museu de Arte de São Paulo (Masp), projetamos
este copião mudo na parede de concreto, acompanhado por uma banda de música que
tocava ao vivo (bateria, baixo acústico e guitarra), conforme as cenas se passavam. A
experiência foi repetida no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, só que desta
vez mais radical: sem som. Este curta-metragem fez parte de um projeto
279
interrompido. Seus 15 minutos seriam integrados no longa-metragem chamado Norte
& Sul cujo roteiro já estava incluído num concurso da Embrafilme na época em que o
órgão foi extinto pelo governo Collor. O longa-metragem teria cinco personagens
principais. No curta-metragem, de 15 minutos, acompanhamos o sonho de uma delas,
Beatriz, interpretado por Bete Coelho. Ou seja, suas cenas em “branco e preto”
(como diz o nome) seriam planejadas e montadas para se integrarem ao longa-
metragem. Seria uma nova versão desta pequena obra de ficção.
Ao contrário de muita gente, gosto de assistir a filmes fora da ordem. Muitas
vezes entro no cinema na metade da sessão, para, a partir de seu final, tentar entender
como o diretor começou a história. Em filmes de TV, então, isso é mais radical, porque
posso ver várias vezes, sempre a partir do mesmo ponto. É um método anárquico, mas
que dá grandes prazeres estéticos, além de possibilidades diferentes de análises.
Também acredito que o olhar do “novo espectador” (do final do século XX,
início do XXI) está mais habituado com este tipo de linguagem que, ao longo do
primeiro centenário do cinema (que muito se inspirou na literatura, caso de D. W.
Griffith em Charles Dickens e de Sergei Einsenstein em Gustave Flaubert), sofreu
influências da publicidade, do jornalismo, da televisão, da música (até de videoclips,
que durante um tempo foram a referência de muitos filmes) e, principalmente, das
mídias digitais. A produção não é mais de cinema, mas audiovisual. As influências
são globalizadas. Internet, blogs, celulares — tudo significa uma diminuição não
apenas do tempo, mas também do espaço, do tamanho da tela, o que certamente
muda o jeito de se olhar, de se observar e de se sentir. A avalanche de imagens da
sociedade pós-moderna nos obriga a buscar compreensão sobre as coisas, muito
rapidamente. Curiosamente, um dos anúncios de São Paulo Sociedade Anônima,
publicado nos jornais paulistanos durante seu lançamento fazia um alerta
sintomático: “Importante: assista desde o início.” (ver Figura 33 no Capítulo 1).
5.7 A estrutura da remontagem
A montagem proposta por mim e realizada por Ana Maria Braga, editora de
vídeos e comerciais, seguiu a seguinte seqüência:
280
1) PAN do apartamento para a cidade (sem aparecer a cena da briga entre Carlos e
Luciana), direto para letreiro de “Sòcine apresenta”, com cenas da cidade. Documentais.
2) Carlos caminha na rua e, em off, diz “faz cinco anos. Naquele tempo era Ana...”.
3) Desfile do Movimento Cívico, com banda. Documentais.
4) Ana que diz a Carlos que não pode passear, que “... tem de visitar a mãe...”.
5) Carlos e Ana no porto de areia.
6) Carlos e Ana remam no barco.
7) CENAS INTERCALADAS: Banho de esguicho.Ana sai na lancha. Carlos na praia.
Afogamento de um banhista. Ana chega na praia. Tapas e beijos.
8) Carlos olha para a câmera e diz: “Eu pensava que gostava de Ana, que queria viver como
um filme mexicano.”
9) Ana e Carlos no restaurante. Ela canta “Soy pecadora...”. Anoitece. Ele briga com ela.
10) Cena de trem a caminho do asilo onde mora a mãe de Ana.
11) Asilo com mãe de Ana.
12) Cena de trem na volta para São Paulo.
13) Cena de passagem
14) Cenas de hotel com Hilda (saguão e quarto)
15) Carlos com Hilda no MAC, diante de obras de Lasar Segall.
16) Caminhada dos dois pelo parque do Ibirapuera.
17) Carlos com Hilda no apartamento do “Turco”, em São Vicente.
18) Carlos com Hilda na praia. Entram e brincam na água.
19) Carlos com Hilda, como motorista, em alta velocidade.
20) Carlos e Hilda descem um morro, correndo. Ela diz: “Eu preciso amar, Carlos. Eu devo
encontrar alguém.” Plano da represa de Guarapiranga.
21) Cenas alternadas da montagem de carros da Volkswagen. Narração em off de Carlos:
“Entrei na Volks” e apresenta o personagem Arturo através da janela do escritório.
22) Planos de fora da fábrica, com operários saindo. Documentais.
23) Primeira aula de inglês. Encontro com Luciana.
24) Primeira caminhada de Carlos e Luciana na praça da República. Ao fundo, o edifício do
Terraço Itália ainda em construção.
25) Fim de festa na casa de Luciana. Amigos saem e Carlos canta “Favela”. Conversam
sobre idades: “Tenho só 22 anos”, diz Luciana, “e você é um velhinho de 25.”
26)
Art
uro e Carlos jogam pedras num barranco, ao lado de crianças. Carlos pede dinheiro,
porque perdeu o emprego da Volks. Arturo oferece emprego.
27) Várias cenas: Luciana e Carlos passeiam, vão ao cinema e entram no ônibus.
28) Carlos e Luciana andam de lambreta na estrada, mas em off o diálogo é com Ana.
29) Carlos dança com Luciana.
30) Eles chegam na casa de Luciana e brigam. Fim de namoro.
31) Cena da fábrica de Arturo, sem diálogo, sem off.
32) Segunda aula de inglês. Tentativa de retomar o namoro.
281
33) Segunda caminhada de Carlos e Luciana na praça da República.
34) Cenas de rua. Documentais.
35) Reencontro de Carlos com Hilda que diz: “Casei. Sou feliz.”
36) CENAS INTERCALADAS: Centro de São Paulo e Corrida de São Silvestre.
Documentais. Carlos fala ao telefone no bar. Pai de Luciana e ela também falam.
37) CENAS INTERCALADAS: Cenas da Corrida de São Silvestre; Carlos, no carro.
38) Cenas de letreiros de bares e boates. Documentais.
39) Baile de réveillon. Mulher “paquera” Carlos.
40) Carlos chega de carro diante da casa de Luciana. Grita e quebra champanhes.
41) Casa de Luciana. Pedido de casamento. Carlos diz: “Já estou com 26 para 27 anos.”
42) Escritório de Arturo, que dá parabéns a Carlos e recebe pedido de dinheiro.
43) Fotos de casamento e plano do carro que sai, puxando latas.
44) Luciana abre cortina do apartamento do casal e dá mamadeira ao bebê. Salto claro de
tempo. Carlos se arruma para ir para a fábrica, apesar de ser domingo.
45) Arturo e Carlos na estrada. Arturo fala do crescimento de São Paulo. E chegam no
terreno da futura fábrica.
46) Dentro do carro, famílias de Carlos e Arturo cantam.
47) Sítio de Arturo. Crianças brincam.
48) Carlos conserta gerador.
49) Cena de jantar no sítio.
50) CENAS INTERCALADAS: Jantar no sítio; Carlos caminha na frente da Sé. Em off, fala
dos sonhos de Luciana. Também em off, Luciana fala da felicidade. A luz apaga.
51) Carlos encontra Hilda na rua.
52) Carlos caminha pelo corredor do prédio de Hilda.
53) Carlos almoça e toma café. Hilda fala do marido e diz: “Pessoal e intransferível.”
54) Fiscais do Ministério do Trabalho na fábrica de Arturo.
55) Carlos sobe para escritório e não vê Ana com um publicitário.
56) Arturo sai e confraterniza com fiscais.
57) Carlos se reencontra com Ana no escritório.
58) Carlos e Arturo na sauna.
59) Carlos, Arturo, Ana e amiga no restaurante alemão. Cenas de casais que dançam.
60) C
ENAS INTERCALADAS: Carlos no carro e cenas da cidade. Documentais.
61) Corredor cheio no prédio de Hilda.
62) Carlos entra no apartamento com policiais e conversa com delegado.
63) CENAS INTERCALADAS: Carlos conversa com delegado. Hilda morta na cama. Hilda
dança num baile de carnaval. Hilda e Carlos ao lado do lago do Ibirapuera e na praia.
64) Carlos ouve um pregador religioso na Praça da Sé.
65) Carlos caminha e fala sobre o que aconteceu “há quatro anos”.
66) No escritório da fábrica, Carlos se encontra com Arturo e Ana.
67) Caminhada sobre o viaduto do Chá. Carlos fala: “Recomeçar.”
282
68) Documentais da cidade.
69) Carlos chega bêbado: “Não quero mais ver você.” Carlos cai e Luciana traz um copo.
70) CENAS INTERCALADAS: Corredor de Hilda e imagens dela na cama, morta.
71) Carlos e Luciana brigam no apartamento.
72) IMPORTANTE: Cena inicial conforme montagem original. Câmera vai para varanda.
73) Câmera do alto mostra Carlos saindo do prédio.
74) CENAS INTERCALADAS: Carlos na rua “conversa” com Luciana no apartamento.
75) Carlos rouba carro no pátio de estacionamento.
76) CENAS INTERCALADAS: Carlos no carro. Luciana caminha na fábrica e na rua.
77) Carlos sai pela estrada e canta “Favela”. Cenas de faróis.
78) Carlos dorme num mirante da estrada. Trabalhador se aproxima.
79) Carlos pega carona no caminhão. Placa mostra direção de São Paulo.
80) Cenas da cidade de São Paulo. Texto: “Recomeçar”.
81) Poema Agonia, de Vinicius de Moraes, sobe sobre imagens de transeuntes que
caminham na direção da câmera.
5.8 Anotações sobre o tempo na montagem
Os episódios dêste filme são fictícios e ocorrem entre 1957 e 1961.
A legenda inicial de São Paulo Sociedade Anônima já traz um racionalismo
muito forte. É como se o diretor dissesse:
“— Você já sabe qual é o espaço, a cidade de São Paulo, e agora lhe informo
o tempo.”
Além disso, deixa claro que se trata de uma obra de ficção, para que o
espectador não acredite que tudo aquilo, de fato, teria acontecido. Um alerta para
desavisados. E mais: que são episódios. Portanto, que não tem uma só história.
No roteiro original, o texto era mais explícito ainda:
Os episódios dêste filme alternam-se fictíciamente em São Paulo, de 1957 a 1961.
Além de definir a data, o local, de ser uma ficção, de ser em episódios, Person
queria dizer, também, que “os episódios alternam-se”, ou seja, que não se
apresentavam em ordem cronológica. É como se tentasse explicar o processo de
montagem final para o grande público. Como disse há pouco, é como se o espectador
283
precisasse de algumas informações para compreender sua estrutura. E, por isso, os
anúncios de jornal pediam que a platéia “assistisse desde o início”. Como alguém
pode compreender a obra, se perder estas informações iniciais?
Logo em seguida, seu personagem de ficção entra em ação e não diz: “Faz
cinco anos”. Carlos diz: “Eu creio que faz cinco anos. Naquele tempo era só Ana...
Eu pensava que gostava de Ana...”
É uma forma imprecisa, talvez herdada dos contos de fada, do “era uma
vez...”. E a determinação do tempo está por todo lado. Caso, por exemplo, de Lewis
Carroll, que abre o capítulo 6 de Alice no País das Maravilhas da seguinte maneira:
“Durante um ou dois minutos ficou diante da casa...” (cf. Carroll, 1977).
Um ou dois? Por que não três? Talvez pelo fato de ter um coelho que viva
correndo atrasado...
Num de seus textos clássicos, Confissões, santo Agostinho questiona se “...a
eternidade é incomparável se confrontada com o tempo que nunca pára?” .O próprio
santo Agostinho tenta responder:
Na eternidade, ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca
é todo presente. Esse tal verá que o passado é impelido pelo futuro e que todo o
futuro está precedido de um passado, e todo o passado e futuro são criados e
dimanam d’Aquele que sempre é presente (Santo Agostinho, 1999, p.319-320).
No universo de todo filme, é possível dizer que existe uma eternidade. Que o
tempo não pára com os créditos finais. E que a história continua a se desenrolar na
cabeça e na consciência de cada espectador.
Mas creio que o filme pode ter continuidade hoje, na imaginação do que
poderia ter ocorrido com o(s) personagem(ns). Ou ainda através de documentários
que vivem relembrando os lugares onde se filmou.
A renovação de um filme é feita a cada momento, conforme o ponteiro do
relógio avança. Por outro lado, este tipo de trabalho encontra novos ecos nas novas
versões que surgem de algumas obras. Um exemplo clássico é ¡Que viva México!
(1932), que ganhou diferentes montagens, mas nenhuma feita pelo próprio diretor,
Sergei Einsenstein.
Ou, por outro lado, para ser mais radical na manipulação de uma obra de arte,
basta conferir o que o cineasta Peter Greenaway fez sobre uma clássica pintura de
284
Rembrandt. Segundo o caderno Mais! da Folha de S. Paulo de 23 de julho de 2006,
ele a transformou numa instalação onde os “espectadores” podem ouvir os sons dos
animais, o burburinho das pessoas, o ruído do vento etc. Ou seja, é o contrário de —
e ao mesmo tempo a mesma coisa que — congelar imagens de um filme e apresentá-
la como seqüência de fotos.
Em A idade da terra (1980), Glauber Rocha fez um filme sem letreiro final,
sem a palavra “Fim”. E queria que as latas com os trechos do filme não fossem
numeradas, para que o projecionista escolhesse a ordem de projeção da obra. Com o
advento do DVD e de novas tecnologias, a obra aberta em literatura encontrou seu
correspondente cinematográfico. Também como exemplo, o documentário Nélson
Freire (2003), de João Moreira Salles, oferece a opção de o espectador assistir ao
filme com diferentes montagens.
Em São Paulo Sociedade Anônima, este tipo de reação do público pode ser
encontrada até mesmo quando algum tipo de “desastre” acontece. Caso das duas
histórias que ouvi de dois participantes. Glauco Mirko Laurelli, por exemplo, fala de
uma história contada pelo próprio Person: “Uma vez ele me contou de um Festival
aonde uma senhora ia fazendo a tradução simultânea do filme durante a projeção. E
como o filme é muito agitado, ela se perdia, e o Person morria de rir.”
A outra história me foi narrada pelo produtor Renato Magalhães Gouvea,
sobre uma projeção privada — aliás, diz que foram muitas —, que organizou para
um empresário que gostava de fazer reuniões culturais.
Eram três rolos [...] Só que na hora de projetar, a pessoa responsável trocou o
segundo rolo pelo terceiro. Como o filme tem muito vai-e-vem, ninguém percebeu.
Quando eu percebi, já tinha rodado 15 minutos do terceiro rolo no lugar do segundo.
Parar e recomeçar ia virar a maior misturada. Aí eu disse para um amigo: “Você
interrompe pouco antes de chegar ao fim do filme, mete o segundo rolo e seja o que
Deus quiser.” E quando terminou o segundo rolo, saiu um debate. Sem aparecer a
palavra “Fim”. Foi uma discussão enorme.
Enfim, como concordam todos, montar faz parte de todas as etapas de um
filme. O roteirista que escreve e reescreve, o diretor que filma e refilma, o montador
que monta e remonta e, finalmente, o espectador que assiste ao filme em
determinadas condições que o levam a dar uma opinião sobre o resultado final.
285
CONCLUSÃO
Sampa ou Sampaulicéia: São Paulo S/A ainda é
seu filme mais cultuado, expressão capital da
expressão urbana. A cidade como personagem.
Um clássico que alguns irão rever, uma obra-
prima que outros irão conhecer. Sorte de todos...
(Jairo Ferreira, em O Estado de S. Paulo, 6 julho
de 1988, p. 3, Segundo Caderno, ao comentar a
Mostra L. S. Person no Museu da Imagem e do
Som de São Paulo).
Um título pode dizer muita coisa.
Assim que descobri o arquivo do produtor de São Paulo Sociedade Anônima, até
então desconhecido por pesquisadores e estudiosos, fiquei na dúvida entre dois nomes
para esta dissertação: “Arqueologia de um filme” ou “Radiografia de um filme”.
O primeiro me remetia a uma busca nas origens, a uma escavação de um
material bruto que desde 1964-65 está muito bem guardado e zelado, mas escondido
do grande público. Lá estão notas fiscais, documentos, cartas, projetos, planilhas e
muito mais, além de um acervo de imprensa que eu necessitaria de anos para reunir.
Afinal, teria de percorrer arquivos de órgãos de imprensa, sendo que muitos já
deixaram de existir (caso, por exemplo, da revista Intervalo ou dos jornais dos
Diários Associados).
Venceu o título “Radiografia de um filme”. O motivo é até estético:
radiografia remete à fotografia, a base do filme que une fotogramas para criar uma
imagem em movimento. Na radiografia, tiramos uma chapa em negativo dos nossos
próprios órgãos internos. É nela que descobrimos possíveis manchas ou doenças ou
se estamos bem de saúde.
Na arqueologia, outros sítios deveriam ser visitados, inclusive para comparar
culturas e civilizações – um desafio que pode ficar para um possível doutorado, ao
encontrar outro filme, meio ou gênero que mereça o mesmo tratamento – caso de O
invasor (2001), de Beto Brant, que chegou a ser objeto de estudo no início do meu
curso de mestrado.
28
6
Com o Raio-X, pude (ou pelo menos tentei) “revelar” ou “dissecar” uma obra
e procurei fazê-la pelos dois lados que cercam a produção cinematográfica: o
econômico-administrativo e o artístico.
O cinema, conforme o conhecemos desde a sua invenção, no século 19, é uma
arte industrial por excelência. Sim, é possível fazer um filme com pouco dinheiro —
mas não sem nenhum. Sim, é possível montar uma ópera, por exemplo, mais cara do
que um filme. Mas não dá para fazer um filme mais barato do que o show de um
músico apenas com seu violão ou de um pintor apenas com uma tela, tintas e pincel.
O filme envolve uma complexidade de fatores que outras artes não possuem e jamais
será artesanato pela complexidade de equipamentos que necessita. Não falo de preço.
Afinal, na era digital a dependência tecnológica até se ampliou.
Comecei tentando demonstrar que São Paulo Sociedade Anônima foi um
exemplo de produção, divulgação e marketing, que teve uma estrutura de
administração inspirada em grandes empresas, que captou dinheiro entre
investidores, que organizou seu organograma e seu cronograma de forma
diferenciada para os padrões do cinema brasileiro da época e que poderia ter se
transformado em modelo para produtores, diretores, distribuidores e demais
profissionais do setor cinematográfico.
Não sou apenas eu que afirmo isso. Ao longo da dissertação, reproduzi as
palavras de vários jornalistas que já apontavam para este “exemplo”. Basta citar Loyola
e Fassoni. Basta buscar críticas de Neves e Perdigão. O papel da imprensa, de certa
forma, também foi radiografado, principalmente no seu relacionamento com o cinema
brasileiro. O material levantado revela o espírito de um período específico e assim o
reflete: expressões como arranha-céu e Paulicéia, ambições como ser a maior cidade do
mundo, movimentos cívicos em marcha pelas ruas, problemas com a censura...
Mas isso não bastava. Era preciso também, radiografar o lado artístico, o
processo de criação, o modus operandi de um diretor que despontava num
conturbado cenário brasileiro e mundial. Neste sentido, optei em desconstruir o
objeto de estudo para melhor compreendê-lo. Enfim, fazer a sua análise para chegar
na síntese através da minha proposta de remontagem que acompanha a dissertação.
Da mesma maneira, considero uma “interpretação” esta ilustração abaixo,
publicada na Folha de S. Paulo, coluna de Barbara Gancia, em 8 de junho de 2008,
sob o significativo título de Janela Indiscreta, conhecido filme de Alfred Hitchcock.
28
7
Na verdade, uma demonstração de que a cena inicial de São Paulo Sociedade
Anônima tornou-se um retrato de São Paulo, através desta imagem da briga entre
Carlos e Luciana, filmada atrás da janela. O curioso é que nem precisa creditar o
filme de Person para saber que dele se trata.
Figura 97. Ilustração de Adams Carvalho para Folha de S. Paulo (arquivo do autor)
288
Da mesma maneira, o rosto do personagem de Walmor Chagas, como já disse
durante a dissertação, virou cartão postal da cidade — como provam, inclusive, as
fotos usadas para decoração externa do novo prédio da ECA-USP, misturadas com
cenas dos filmes O bandido da luz vermelha, com Paulo Villaça, O grande momento,
com Gianfrancesco Guarnieri e da novela Beto Rockfeller, com Luiz Gustavo.
As palavras que escrevo agora também são baseadas no pouco que pude
conhecer de uma pessoa que admiro artisticamente. Acho importante colocar dessa
maneira, porque foi um dos fatores que me levaram a desenvolver a pesquisa.
Posso até dizer que aqui faço uma espécie de “homenagem”. O principal
motivo é que Person foi um multimídia, como o chamei em um dos intertítulos (e
assim também o definiu o crítico e cineasta Jairo Ferreira na mesma reportagem
usada como epígrafe desta Conclusão, à p. 285, do jornal O Estado de S. Paulo).
Adoraria tê-lo conhecido. Provavelmente o vi pessoalmente no Auditório
Augusta, especialmente na apresentação da peça El Grande de Coca-Cola, dirigida
por ele, e que assisti várias vezes. Assim como Orquestra de senhoritas — isso foi
muito antes de conhecer São Paulo Sociedade Anônima. Ou seja, eu o “descobri”
pela sua obra teatral no Auditório Augusta — que, aliás, também merece um estudo.
Minha busca por Person pode ter se inspirado na “sua” própria busca, ao se utilizar
de todos os meios e gêneros, como sempre acreditei e procurei praticar. Começou no
teatro, editou uma revista, foi para a televisão, seguiu para o cinema, entrou na
indústria metalúrgica, voltou para o cinema, ingressou na publicidade, retornou ao
cinema, recomeçou no teatro...
Como diria Carlos: “Recomeçar, recomeçar sempre...”.
Na véspera de completar a primeira década dos anos 2000, a batalha do cinema
brasileiro continua a mesma de sempre. E Person, se vivo fosse, provavelmente estaria
na mesma trincheira: na busca de “comunicação” com o público.
O próprio cinema anda em busca de si mesmo e, principalmente, de sua essência,
para saber como sobreviver. Hoje em dia, experimenta-se o 3D para levar o espectador e
vivenciar as cenas com mais realismo ou ilusão. Por outro lado, compactam-se imagens
para serem enviadas via internet. Cinematógrafos ainda discutem sobre o fim do
processo químico e a expansão da exibição eletrônica, o que interfere no próprio
processo do “fazer cinema”. Por exemplo: neste ano de 2009, inspirado no tombamento
do tango como gênero musical universal e eterno, o próprio diretor de fotografia de São
289
Paulo Sociedade Anônima, Ricardo Aronovich, faz uma campanha junto com os colegas
de profissão da Associação Brasileira de Cinematografia (ABC) pelo tombamento do
negativo e do processo fotoquímico de captação.
Eles também debatem se se deve ou não usar várias câmeras num filme. A
questão, além de técnica, é artística: no que isso interfere no ato de filmar? O que
modifica no relacionamento entre atores?
Mas o que isso tem a ver com São Paulo Sociedade Anônima?
A resposta é: a sua atualidade.
Como tentei demonstrar, a narrativa do filme prossegue atual, porque já
nasceu no roteiro. Porque prosseguiu através de um método profissional de
realização. Porque encontrou unidade na sua edição, montagem e finalização. Porque
conseguiu se vender para o público e para a crítica especializada.
Ao propor a remontagem, como já escrevi na Introdução, não considero que o
filme fica pior ou melhor, se ganha ou perde empatia com o público ou melhora a sua
comunicação por transformar a história em algo cronológico e racional. Não. É
apenas uma proposta alternativa que outros filmes, numa época de obra aberta,
podem ter. Talvez tenha sido essa a vontade de Francis Ford Coppola, ao lançar a
versão Redux (2001) de seu Apocalipse now (1969). Ele inseriu 53 minutos de cenas
que tinham ficado de fora por pressão dos executivos de Hollywood — que não
queriam um filme longo. Agora, está com 197 minutos — mais de três horas! Além
disso, lançou um DVD com extras, onde faz uma narração sobre o bombardeio e
queimada do reduto dominado por Kurtz, o personagem de Marlon Brando. Na época
do lançamento do filme, em Cinemascope, as imagens do bombardeio chegaram a
ser usadas para os créditos do final do filme —, o que levou o público a uma grande
confusão (“houve ou não a destruição final ?”) e a posterior retirada na versão 35mm.
Ou seja, um filme pode ter diferentes versões, na minha opinião.
Como tema, tal qual Apocalipse now, São Paulo Sociedade Anônima chega a
ser profético. Person teve a percepção de olhar para o lado, para o vizinho, para o
parente mais próximo, para o seu quintal. No meio da crise pessoal do protagonista,
assistimos a um processo sócio-econômico que hoje assusta a uma cidade como São
Paulo, como a qualquer metrópole. Ao refletir sobre essa realidade, soube usá-la
como pano de fundo, como pretexto de encenação, para privilegiar o drama dos
indivíduos que viviam na época. Como afirmaram alguns críticos e estudiosos, São
290
Paulo virou personagem. O pretexto era a indústria automobilística. E, por trás, a
especulação imobiliária, o crescimento desordenado, o início das favelas (como
notou Alex Viany) e o grande número de carros que, hoje, 2009, assusta especialistas
em urbanismo e trânsito. Como apontei num certo momento da dissertação, a cena
documental da retirada dos trilhos dos bondes marca a opção definitiva de São Paulo
e do Brasil pelos veículos movidos a gasolina.
Person percebeu o que estava acontecendo à sua volta. Sua cidade se
modificava. Industrializava-se de forma acelerada. Mudava os hábitos e costumes. Era
necessário. Num período em que o movimento do Cinema Novo dominava os debates
artísticos e intelectuais, São Paulo Sociedade Anônima foi festejado por encontrar uma
temática urbana, uma avis rara, como escreveu Ely Azeredo ou uma “nova força no
cinema brasileiro” como destacou Antonio Moniz Vianna — ambos, anote-se, que
deram apoio, mas depois se voltaram contra os cineastas liderados por Glauber Rocha.
Mesmo cineastas do movimento, como David E.Neves, saudaram a chegada de um
novo diretor que mostrava domínio da gramática cinematográfica e segurança na
direção. Este é apenas um dos temas que procurei apontar para futuros estudos.
Já na fase de finalização da dissertação, Marina Person me mostrou, em
DVD, trechos do filme Les carnets brèsiliens (1966). Trata-se de um documentário
em quatro partes, com uma hora de duração cada, realizado pelo francês Pierre Kast,
que retrata diferentes situações da cultura brasileira: capoeira, música, arquitetura e
cinema, onde entrevista jovens diretores brasileiros. Em uma filmagem na cobertura
de um prédio no Rio de Janeiro, Kast conseguiu o que parecia imponderável. Reuniu
nomes como Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Walter Lima
Jr. e Paulo César Saraceni, ao lado de dois paulistas: Walter Hugo Khoury e Luiz
Sérgio Person (ambos, aliás, falando um francês impecável). A narração em off
coloca em seqüência as cenas campesinas de Deus e o diabo na terra do sol com as
imagens urbanas de São Paulo Sociedade Anônima.
Aqui cabem dois paralelos: Person ainda era tratado como aliado do Cinema
Novo, fato que depois, em muitas entrevistas, fez questão de negar. Por outro lado, sua
narrativa urbana era sempre alinhada pelos críticos com o cinema de Khoury, embora
separada pela introspecção dos personagens e crise existencial que este diretor procurava
imprimir em seus filmes. Sganzerla foi um dos que teve esta percepção.
291
Sganzerla, aliás, que saudou o filme de Person como uma novíssima
perspectiva para todo o cinema paulista, que saía da crise da Vera Cruz, e lançou o
tema “ficção-documentário” como uma ótima solução para o cinema brasileiro (ou,
como escreveu Ignacio de Loyola, o filme de Person era “quase um
semidocumentário”). Talvez em São Paulo Sociedade Anônima estivesse o germe de
O bandido da luz vermelha (1968), um filme que se inspira em fatos reais e mistura
cenas e narrativas em off documentais. Curiosamente, logo no seu segundo filme,
Person abandona o tema urbano e vai para o interior do Brasil. Em O caso dos
irmãos Naves (1967), mostra a injustiça da justiça brasileira e o faz baseado em fatos
reais, numa espécie de “documentário ficcional”.
Para completar, parafraseio uma frase muito conhecida, quase chavão, e
atribuída a Glauber Rocha.
Em São Paulo Sociedade Anônima, assim como em Irmãos Naves, Person
filmou com um roteiro bem estruturado na cabeça, uma equipe técnica que soube
misturar a câmera na mão com o tripé e os travellings em trilhos e, principalmente,
com um esquema de produção e divulgação como alma do produto.
Ao longo do meu texto, procurei apresentar algumas conclusões. Tanto para o
que ainda é possível refletir em São Paulo Sociedade Anônima, como nas possibilidades
de sua continuação. A remontagem em forma mais tradicional é um desafio ao passado.
A possível refilmagem do roteiro, com adaptações no enredo, seria outra para o futuro.
Assim como o próprio Person pensou em dar sobrevida a dois personagens. Outra
proposta que posso fazer é de utilizar os personagens de antes e criar um novo filme com
o filho de Carlos — que como no livro e filme S. Bernardo (Graciliano Ramos adaptado
por Leon Hirzsman) é uma criança sem nome...
Isso não teria fim.
FIM
292
ou:
Na eternidade, nada passa, tudo é presente, ao passo
que o tempo nunca é todo presente. O passado é
impelido pelo futuro e todo futuro está precedido
dum passado [...] E todo passado e futuro são
criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente
(Santo Agostinho, 1999, p. 320).
293
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300
301
Anexo 1
PRÉ-PROJETO DE PERSON
Projeto original de Luiz Sérgio Person (assinado por ele ao final) e Nélson Mattos
Penteado, apresentado para Renato Magalhães Gouvea.
302
303
304
305
(O texto reproduzido a seguir, de “1951.” até “... diretor-assistente.”, é parte
da biografia do montador Glauco Mirko Laurelli.)
30
6
30
7
308
309
309
Anexo 2
ENTREVISTAS
Renato Magalhães Gouvea, Glauco Mirko Laurelli e Ana Esmeralda.
Com o produtor RENATO MAGALHÃES GOUVEA – 7 de abril de 2008.
RMG – Eu começo dizendo o seguinte: na época, a gente só chamava o filme de São
Paulo Sociedade Anônima. Não gostava do S.A. porque dava uma conotação de
empresa. A gente gostava de Anônimo no título porque queria dizer: gente que não
existe.
NM – Este foi o único filme que você produziu?
RMG – Depois eu produzi apenas mais um – mas para fechar a conta do São Paulo
Sociedade Anônima. O filme teve algumas características. Eu não era do meio, mas
tinha um grande amigo, o Nélson Mattos Penteado, que era amigo do Luiz Sérgio
Person, que tinha chegado da Itália. E o Nélson disse: Renato, você tem tantas
ocupações no campo da arte, eu gostaria de mostrar para você o roteiro de um amigo
meu, para você dar uma lida. Se você gostar, quem sabe isso vai se transformar num
filme. Ele fez um curta-metragem na Itália, chamado Al Ladro, que ganhou prêmio.
Eu nunca tinha lido um roteiro na vida. E eu li. Uma coisa que pouca gente sabe é
que o título era Agonia. Li e no dia seguinte falei pro Nelson que tinha achado uma
coisa muito sem graça. E ele contou isso ao Person. Ai o Person disse para ele: Eu
gostaria de conversar com o Renato, porque tenho de contar para ele qual é o
trabalho do diretor. O diretor é que pega isso, como se fosse uma súmula só, e vai
contar qual é a idéia que ele tem de cada uma daquelas cenas. Quem sabe, ele se
interessa. Combinei e ele foi à minha casa, junto com Nélson Penteado. Chegaram às
sete da noite e saíram às sete da manhã. Quando ele saiu, vi que faltava todo o creme
chantilly do bolo. Era uma coisa muito interessante. E disse que ia tentar organizar
um grupo para nós fazermos uma Sociedade Limitada e fazermos o filme. Era uma
época de cinema em que artista nenhum, ator nenhum, conseguia receber o dinheiro.
Nós estávamos em pleno final das Chanchadas, com algumas tentativas de Cinema
Novo, mas a reclamação dos bancos que financiavam, é que nunca conseguiam
receber o dinheiro de volta. Eu me dava com dirigentes de bancos e eles me
alertavam: Não fale em cinema. Cinema é uma coisa que você põe o dinheiro, o
sujeito diz que vai dar, que retorna, mas aqui está tudo no vermelho. Fui em vários
bancos e todos disseram que não iam financiar de jeito nenhum. Ai eu pensei: vou
expor isso para alguns amigos e vamos fazer uma empresa Limitada. Telefonei para
alguns amigos, inclusive o Pietro Maria Bardi – que eu conhecia porque já
freqüentava o Museu de Arte de São Paulo – e o Bardi entrou com X, outro entrou
com Y... E assim foi. O único que não entrou com dinheiro, mas ficou sócio da
Sòcine foi o Mario Audrá, que era dono da Cinematográfica Maristela. Ele entrou
com estúdios e equipamentos, com a parte técnica dele. E ele era casado com a Ana
Esmeralda, que tinha conhecido quando ela veio dançar flamenco nas comemorações
do 4º Centenário de São Paulo, em 1954. E a primeira coisa que pedi ao Person é que
me apresentasse aos atores: Quero conversar com eles, saber quanto querem ganhar,
porque quero fazer uma coisa planejada. Olha aqui a prova. [obs: Renato puxa fotos
de uma caixa]. Quero fazer uma coisa totalmente diferente. Quero que esse pessoal
receba semanalmente. Então ele deu o grupo todo e fiz uma reunião no escritório da
Construtora, que eu tinha na época, junto com meu irmão, que era engenheiro. O
escritório ficava na rua Barão de Itapetininga e estávamos construindo o Edifício
310
Itália. O que eu fiz naquela época foi o planejamento dos gastos. Porque o pessoal de
cinema, na época, estava acostumado a furar. E chegava no meio, acabava o
dinheiro. Eu, que fazia a parte administrativa e financeira de uma Construtora, sabia
exatamente o que ia gastar. Ficou tudo dentro do orçamento. Eu recebi os atores, um
por um, para saber quanto queriam ganhar. Isso começou a repercutir muito bem na
crítica, com o pessoal que escrevia sobre cinema. Ninho, você está me fazendo voltar
50 anos. Quem escrevia muito era o Almeida Salles, no Estadão, o Ignácio Loyola
Brandão, na Última Hora, o Delmiro Gonçalves, que depois foi assassinado. Sei que
todos se interessaram pela novidade, pela maneira de se fazer um filme. E os atores
se entusiasmaram porque receberam semanalmente, o que era, na época,
extraordinário. Muito bem. Faltava ainda preencher algumas lacunas. Por exemplo:
quem seria o diretor de fotografia? Ai o Person me disse: Está passando pelo Rio de
Janeiro, um dos maiores do mundo, Ricardo Aronovich. Ele era argentino, mas
morava na Europa, e ia passar dois dias no Rio. Fomos ao Hotel Leme, conversamos,
e consegui convencê-lo a não ir para a Argentina, mas vir passar dois meses em São
Paulo para fazer o filme. Ele topou. E aí o Person disse que só queria filmar em dias
que não tivesse muito sol, que tivesse uma atmosfera meio sombria para São Paulo.
Ele topou também. E aí vieram os outros. O Cláudio Petraglia, meu amigo, que fez a
música. O Zeloni, que era experiente. Mas era o primeiro filme da Eva Wilma, o
primeiro filme do Walmor Chagas...E começamos o filme desse jeito, sabendo que
tinha dinheiro em caixa. Formei uma empresa chamada Sòcine. Aí fizemos o filme
numa correria louca porque só tínhamos dois meses, ou dois meses e meio, não
lembro bem. Tanto que o final do filme era para ser um pouco diferente. Queríamos
filmar de helicóptero a cena do caminhão voltando, uma cena aérea. E São Paulo, na
época, só tinha dois helicópteros. Quando o Walmor acorda dentro do caminhão, esta
cena era para ser cortada com imagens aéreas. O caminhão entrando e se perdendo
no meio do tráfego. Então tivemos de mudar o final para aquela cena do viaduto, em
que nós montamos uma casinhola de trabalhador, com um furo, o Aronovich lá
dentro, e ninguém sabia que estava sendo filmado. Por isso que o pessoal vem em
direção à câmera e desvia na última hora, sem perceber. Ficou assim, com ele
narrando ‘Recomeçar, recomeçar’, com o povo passando... Outra curiosidade é que o
carro Kharman Guia, usado na cena anterior, em que Carlos rouba um carro, era
meu. O Nélson Penteado, que virou produtor executivo, capotou quando trazia o
carro de volta da Serra. Destruiu totalmente. Por sorte, ele só quebrou um braço.
NM – Como vocês conseguiram que a Volkswagen deixasse o personagem Carlos
usar o uniforme da empresa e filmar lá dentro?
RMG – Foi curioso porque nós mandamos o roteiro e os alemães ficaram super
felizes. E não perceberam o tom de crítica do filme. Afinal, era um funcionário
corrupto que não fazia o controle de qualidade como deveria. Fui eu quem foi falar
com os alemães da Volks.
NM – E o título original, Agonia?
RMG – Esse nome caiu logo. Já na primeira reunião, o Person disse que era um
nome provisório. E quando ele falou São Paulo Sociedade Anônima, só tivemos uma
pequena dúvida porque naquela época, tinha uma peça em cartaz chamada Santa
Marta Fabril S.A., no TBC. Então ficou a dúvida se nós estaríamos copiando. Mas
daí, dissemos: “Não, o deles é S.A., o nosso é Sociedade Anônima”.
NM – E como é relembrar disso tudo?
RMG – Muito bom. Porque nestes anos todos, ninguém, nunca fui citado como
Produtor do filme. Nem por quem escreveu um livro sobre o Person. Eu não sei
311
como é hoje. Mas na época, o Bardi recebia amigos como Vitório de Sica, e o papel
do Produtor era fundamental. Não por vaidade minha. Mas para dizer que aqui no
Brasil acontecem essas coisas. Faz mais de 20 anos que eu não abria estas pastas que
estou lhe mostrando. Está sendo muito bom.
NM – E como foi organizada a divulgação?
RMG – A primeira coisa que imaginei foi lançar o filme lá fora, no exterior. Porque
isso poderia ajudar no lançamento daqui. Lançando aqui, não ajudaria em nada em
lançar lá fora. Naquele período, havia uma confusão muito grande sobre o que era
Cinema Novo, Nouvelle Vague. E ia haver um Festival de Nouvelle Vague na cidade
de Pesaro, na Itália. E seria lá não só porque o músico Rossini tinha nascido lá, mas
porque era a cidade do então ministro da Cultura da Itália. Fomos ao Itamarati e
conseguimos que eles apoiassem. Foi o único filme brasileiro que foi para o Festival
[na verdade, Mostra] do Novo Cinema, onde ganhou Grande Prêmio do Público. Mas
vou lhe contar uma história. O Itamarati não mandou a cópia, como combinado. Ou
melhor, mandou com atraso. Telegrama para cá, saiu, não saiu. E só faltava o nosso
filme para passar por uma pré-seleção para saber se, de fato, o filme era Novo
Cinema. O filme chegou dois dias depois da triagem. E lá fui eu, com o Person, falar
com o Pasolini, que estava dirigindo o Festival [Mostra], para ver se ele conseguia
reunir o pessoal apenas para ver São Paulo Sociedade Anônima. E ele fez isso. E
quando o filme passou pela pré-seleção, eles disseram: é Novo Cinema. Então
começou o Festival e assistimos a quase todos os filmes. Até que de repente, num
restaurante, vem um garçom e disse para nós: Vocês ganharam o Prêmio do Público.
E lá fomos nós para o Teatro Rossini para recebê-lo. Imediatamente, isso teve uma
repercussão em toda a Europa porque foi a primeira vez que um Festival dava este
tipo de prêmio e quem tinha ganhado era um brasileiro. Imediatamente recebemos o
convite do Festival de Berlim. Mas lá não podíamos concorrer porque já tínhamos
sido premiados. E vieram outros convites, como o Festival do México.
NM - E aqui no Brasil?
RMG - Vou contar uma estratégia. O secretário de Cultura, Turismo e Esporte do
Estado de São Paulo, na época, era um grande amigo meu, o radialista Blota Jr.. E eu
tinha muito contato porque a mulher dele era presidente da Sociedade Pestalozzi, que
nós, da Construtora Magalhães Gouvea, minha e do meu irmão, ajudávamos muito.
Então fui a ele e contei do filme, que retratava São Paulo etc e tal. E disse que estava
passando pelo Rio de Janeiro, uma comitiva de atores de Hollywood, atrizes como
Nancy Covak, Meri Welles, o Troy Donahue, na época popular no Brasil por causa
do filme O Candelabro Italiano o ator que fazia o Tarzan... E perguntei se ele não
conseguiria trazer este pessoal para vir para a estréia do São Paulo Sociedade
Anônima. O Blota Jr. telefonou para uma das empresas estrangeiras que tinham se
instalado em São Paulo, a Simca Chambord, e pediu 20 automóveis com motorista
para que esse pessoal circulasse pela cidade e visse a estréia no cine Olido, que era o
maior cinema da cidade. Foi o Harry Stone, representante da Motion Pictures do
Brasil, que os trouxe para cá. São Paulo já tinha duas televisões: a Record e a Tupi.
Como o Blota Jr. era da Record, ele conseguiu o Murilo Antunes Alves, grande nome
da TV, para ficar no palco. E a Tupi ficava recebendo as pessoas na sala de espera,
com entrevistas ao vivo. Fizemos uma grande promoção pelo fato de termos trazido
os atores do Rio de Janeiro. Consegui alguns jantares com pessoas importantes,
como na casa do Victor Simonsen, empresário muito importante na época, tudo isso
para fazer uma promoção inédita. E fizemos uma coisa inédita também na rua, que
foi um balão enorme, com a propaganda do filme, que foi instalado no Largo
312
Paissandu, e lá ficou por uma semana. Então no dia da estréia, foi uma enchente. A
estréia foi no dia 27 de setembro de 1965 e foi em benefício da Sociedade Pestalozzi.
Outra coisa inédita foi um canhão de luz – que eu imitei do Olympia de Paris – onde
o foco ia girando, até focar em alguém da platéia e o Murilo Antunes Filho fazia
perguntas para esta pessoa – inclusive os convidados de Hollywood. Foi um
lançamento como nunca havia acontecido no Brasil. Se não me engano, o cinema era
para quatro mil pessoas. Um sucesso total. E a crítica adorou: o Almeida Salles
escreveu dois artigos seguidos sobre o filme. O Ignácio Loyola Brandão escreveu
cinco artigos seguidos. Todos os críticos colocando no máximo. E aí ficou um mês
no Olido, sempre lotado. E aí que a Columbia deu o golpe.
NM – Como isso aconteceu?
RMG – Eu e o Person tivemos uma grande dúvida sobre a distribuição do filme. Se
seria o Massaini ou se seria a Colúmbia, que representava todos os filmes americanos.
Concluímos que para fazer algo internacional, era melhor a Columbia. Não sabíamos
que eles iam nos passar uma rasteira. Era o senhor Paulo Fuchs, o diretor no Rio de
Janeiro. Ele se interessou muito. O nosso erro foi deixarmos o Aníbal Massaini, que
era nosso amigo, e estava distribuindo os filmes brasileiros. Foi o nosso erro.
Assinamos um contrato que dizia que se o filme, depois de uma semana, não atingisse
determinado público, eles podiam tirar de cartaz. Pois ele lança esse filme [no Rio] no
final de novembro de 1965, sem avisar, sem propaganda, sem nada. Aí que
percebemos o golpe. Foi num cinema na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Isso
foi uma bomba completa. Porque a gente contava com aquela receita do Rio de
Janeiro. E o Rio de Janeiro, nada. E com isso, conseguimos apenas devolver o dinheiro
para as pessoas que tinham financiado. Mas não deu lucro nenhum.
313
NM – E a Columbia, nunca se interessou em lançar o filme nos Estados Unidos?
GML – Nunca. Nós fomos muito ingênuos na hora de assinar o contrato. Deveríamos
ter ficado com o Massaini. Porque eles não ajudaram em nada no lançamento
internacional. Se eles ainda tivessem o crédito para o lançamento do Festival da
Itália, coisa assim, mas não fizeram nada. Porque só procuramos o distribuidor
quando já tínhamos ganho o prêmio.
NM – Houve alguma compensação para eles?
RMG - Só conseguimos algum dinheiro no outro filme que produzi, para pagar a
conta do São Paulo Sociedade Anônima. Fui ao Itamaraty, ao Diretor Cultural, e
contei a história do atraso da remessa da cópia do filme para Pesaro. E pedi para eles
nos compensarem de alguma maneira. O homem se tocou e perguntou se tínhamos
algum argumento de filme para realizar. O Person não queria dirigir, mas o Maurício
Capovilla poderia. É um filme inédito chamado ‘Esportes no Brasil’, pois naqueles
anos, o Brasil tinha ganho cinco campeonatos mundiais, em diferentes modalidades:
o futebol, tênis com Maria Esther Bueno, Manuel dos Santos na natação, Éder Jofre
no boxe e outro que não me recordo . O filme custou uns 40 mil reais, de hoje em
dia. A Sòcine produziu, o Itamaraty pagou e conseguimos, assim, reembolsar nossos
sócios do São Paulo Sociedade Anônima. O filme foi enviado para as Embaixadas do
Brasil pelo mundo, mas acho que nunca foi projetado. Porque ele mostra como era
impossível, pelas péssimas condições sociais, o Brasil ter atletas – com exceção da
Maria Esther Bueno que era da alta-sociedade. O filme, Esportes no Brasil, só passou
uma vez no Brasil, como complemento, no Cine Marajá. E foi com este dinheiro do
Itamaraty que nós liquidamos as contas com todos os financiadores do São Paulo
Sociedade Anônima. Daí quiseram que eu fizesse outros filmes, mas eu dizia que não
era a minha, que eu deveria continuar nas artes plásticas. Estas foram as curiosidades
a respeito do filme. Aí, chegou a hora do prêmio Saci, no Teatro Municipal. Aliás,
naquele ano, ganhamos todos os Sacis. De direção, de produção, de montagem, de
música, de roteiro, de fotografia. Tudo, todos os sete Sacis. E eu recebi o meu das
mãos da atriz Bibi Ferreira.
NM – No Brasil, o filme chegou a ser bem distribuído?
RMG – Não. São Paulo, depois Rio, depois Brasília, que também não teve nada de
forte porque a cidade estava começando [Não há registro de lançamento em Brasília.
Talvez o produtor tenha se confundido com alguma apresentação para o Itamarati].
Curiosamente, a maior repercussão do São Paulo Sociedade Anônima acontece nos
últimos 10 anos. Já bem depois do falecimento do Person [Posteriormente à
entrevista, no próprio arquivo de Renato Magalhães Gouvêa, encontrei a prestação de
contas de Luiz Sergio Person, numa viagem para Porto Alegre, onde o filme também
foi lançado].
314
NM – Como foram as filmagens? O Person cumpriu bem o roteiro?
RMG – Vou lhe dizer uma coisa importantíssima do filme. O Ricardo Aronovich
ajudou muito a fazer este filme. Em certas cenas em que ele dizia, nas nossas
reuniões, que iriam ficar muito melhores se fizéssemos de determinada maneira,
assim ou assado. Ele ajudava muito e dizia: Isso não vai ficar bom assim. Você se
lembra da cena do Walmor Chagas indo de lambreta para Interlagos em que ele vai
com a Eva Wilma? Foi ele que bolou a câmera na camionete, filmando da frente. E
ele fazia travellings incríveis, com a câmera na mão, sem trilho nem nada. Na cena
da Praça da República, por exemplo, ele fez na mão. E todo mundo pensa que foi no
trilho. E deu um trabalho danado para segurar aquela multidão lá ao fundo, enquanto
o Walmor e Eva caminham até o ônibus.
NM – E no relacionamento com os atores?
RMG – Quem tinha algumas restrições em determinadas cenas era o Otelo Zeloni,
que era o mais experiente deles todos. Na cena do restaurante alemão, por exemplo,
ele ficava gozando: Com esta cena, vou ganhar um prêmio em Cannes. É que ele não
gostava da interpretação da menina que a gente tinha arrumado para fazer uma ponta,
amiga da Darlene Glória. E o Person tinha muita insegurança. O que era normal
porque era seu primeiro longa-metragem.
NM – Mais alguma coisa?
RMG – Agora vou lhe contar uma coisa muito engraçada e curiosa. Havia um sujeito
que gostava de fazer reuniões culturais. Ele era um médico e reunia, uma vez por
mês, pessoas para assistirem a um filme. E nós passamos o São Paulo Sociedade
Anônima em muitos lugares como este. Eram três rolos. E na sessão desse indivíduo,
levamos o nosso filme. Lá estava o Almeida Salles. A idéia era se discutir depois.
Era uma véspera de Natal e lá fomos nós. Só que na hora de projetar, a pessoa
responsável trocou o segundo rolo pelo terceiro. Como o filme tem muito vai-e-vem,
ninguém percebeu. Quando eu percebi, já tinha rodado 15 minutos do terceiro rolo
no lugar do segundo. Parar e recomeçar, ia virar a maior misturada. Aí eu disse para
um amigo: Você interrompe pouco antes de chegar no fim do filme, mete o segundo
rolo e seja o que Deus quiser...E quando terminou o segundo rolo, saiu um debate...
Sem aparecer o fim... Foi uma discussão enorme...
315
Com GLAUCO MIRKO LAURELLI. 19 de março de 2008. Bastidores do
Teatro Frei Caneca, São Paulo, onde ele estava como administrador.
NM – Como o Person lhe apresentou o roteiro? Você se lembra como ele o escreveu?
GML – Fui amigo do Person muito antes do filme. Já freqüentava a casa dele, ia ao
apartamento da família em São Vicente, éramos amigos e, inclusive, eu levei ele para
o cinema. Ele fez papéis (como ator) na Cinematográfica Maristela . A gente estava
sempre ligado. Conheci o Person quando ele foi fazer uma entrevista com o Osvaldo
Sampaio, o diretor de Sinhá Moça, que fez vários trabalhos na Vera Cruz. Eu estava
trabalhando com o Osvaldo no apartamento dele na Praça Marechal Deodoro e o
Person foi lá para fazer uma entrevista para uma revista que estava fazendo, chamada
Seqüência. Aí ficamos amigos. Ele escrevendo sobre cinema e eu já trabalhava há
alguns anos. Depois eu fui pra Itália. Tive uma bolsa e fui estudar no Centro
Experimental. A gente sempre se correspondia. Um dia, ele foi morar com uma tia
em Paris. Daí, resolveu também fazer o Centro Experimental, em Roma. Mas não
nos encontramos porque eu já estava de volta. E por coincidência, foi morar no
mesmo lugar que eu, ficou amigo dos meus amigos. A idéia do São Paulo S.A., ele já
tinha desta época. Já começou a escrever, foi elaborando o roteiro enquanto estava lá.
Quando ele voltou, eu estava trabalhando ou como assistente de direção ou como
montador. Ou mesmo como diretor porque já estava dirigindo filmes com o
Mazzaropi. E o Person conseguiu financiamento para fazer o filme, com um sócio,
que era o Nélson Penteado, que depois foi diretor de produção. E ele fez o filme. Na
época, eu trabalhava na Gravasom, um estúdio que era da ex-Maristela, que tinha
acabado. A Gravasom tinha todo equipamento para fazer dublagem, uma coisa que
eu iniciei fazendo para filmes para a televisão. Lá tinha moviola. Então, o filme São
Paulo S.A. foi montado lá. Eu sempre estive em contato com o filme, mas só fui
montador. O Renato Magalhães Gouvea é que era o produtor.
NM – Então o roteiro foi criado lá na Itália???
GML – Acho que foi um grande processo. Não acompanhei porque tinha muitas
atividades profissionais. Eu não acompanhei a filmagem. Sabia, tinha notícias, mas
não de forma profissional. Nesta época, nós já tínhamos um barco, uma lancha em
São Vicente, onde o pai dele tinha um apartamento. Aliás, a lancha se chamava
Lauper – de Laurelli e Person –, nome que depois virou a nossa firma. Tivemos a
lancha Lauper 1, Lauper 2...Esta era nossa convivência. Depois, o São Paulo S.A. foi
todo montado na Gravasom. Eu lia todos os roteiros que montava, mas não me
prendia a isso. Trabalhava mesmo com o material filmado. Nos 30 ou 40 filmes que
montei, não seguia exatamente o roteiro. Quando chegavam os copiões, eu colocava
em ordem das claquetes, nas seqüências que eu tinha.
NM – E o Person acompanhava a montagem?
GML – Não o tempo todo. É impossível ficar o tempo todo. Eu fazia e depois
mostrava. Mas fui seguindo o material que chegava. E no São Paulo S.A., existem
algumas seqüências que não foram filmadas por ele. Por exemplo, a seqüência do
Ano Novo foi comprada do Primo Carbonari. O material que ele usava para os
cinejornais. Era uma coisa meio mal feita, ou melhor, meio comercial, de
propaganda. Lógico que eu, como montador, tenho o meu estilo de montador
nervoso. Tenho uma agilidade de seqüências. Pra mim é difícil montar como os
filmes do Walter Khoury – que são maravilhosos – mas são aquelas seqüências muito
lentas... Eu gosto da tesoura, cortando, fazendo criar. Então o filme deu para fazer
isso. E com ele eu ganhei dois prêmios, o Saci e o Governador do Estado.
316
NM – Quero me aprofundar na montagem. O filme é cheio de vai-e-vem. Sei que
isso já tinha no roteiro. Você gostava dessa estrutura?
GML – Eu não me lembro de ter seguido o roteiro. Este que você me mostrou, estou
vendo pela primeira vez. Posso até ter lido, mas, na época, eu seguia o material que
vinha das filmagens. Eu seguia apenas a numeração. Não me lembro de ter invertido
ordem, seqüência, coisas assim.
NM – Quanto tempo durou a montagem?
GML – Um mês e meio, mais ou menos. Foi trabalhoso. Depois, tinha a parada para
a dublagem. Foi mais um período de um mês. E aí com os diálogos já montados, eu
passava para um corte ainda não final, mas que dava toda a seqüência do filme. E
depois, aos poucos, vinham todas as divisões para dar o corte. Porque os diálogos
ajudam a fazer as passagens. Pra mim, isso é importante. Você monta durante tanto
tempo, um mês e meio montando aqueles quilômetros de filme, de repetições, e
precisa de distanciamento. Afinal, você tem de escolher entre várias cenas filmadas,
três ou cinco seqüências da Eva Wilma, por exemplo, então depois era bom dar uma
parada para a dublagem. Porque naquela época – não sei como é hoje – você
desmontava toda a montagem para fazer os anéis para a dublagem. Depois quando
remonta tudo, já coloca a fala, embora ainda não esteja certo o corte, você já tem
uma outra visão. Eu já tinha outra visão, não estava mais preso ao que tinha feito. O
segundo corte já vinha mais modificado. Este era meu método de trabalho. E sempre
de acordo com o diretor como era o caso do Person, que não ficava lá. Depois vem a
parte da música que foi feita depois. Na maioria dos filmes que já fiz, a música vinha
com a montagem quase definitiva. No caso aí, era o Cláudio Petraglia, nosso amigo
até hoje. Foi tudo feito já dentro do tempo. Ainda sem os letreiros, mas com os
tempos certos da montagem. Foram compostas e gravadas já dentro destes tempos.
Geralmente, nos filmes que montei, eu mostrava já com o corte quase definitivo. Eu
só usava os compassos para fazer uma ou outra mudança. Aí que entravam os
chamados ruídos de estúdio, gravamos portas, passos e a outra trilha de ruídos
gravados, trânsito, buzina, várias trilhas para fazer a mixagem. Fusão entre ruídos de
sala, de rua, de música e tudo mais.
NM- O começo do filme é impressionante. Você só ouve um sussurro de uma briga...
GML – Aquela cena foi filmada no apartamento dos pais do Person. Na época, ele
morava com os pais, ali perto do Largo Santa Cecília. Do terracinho ele pegou, com
o vidro fechado, a briga lá de dentro.E tem muitas cenas que foram filmadas no
escritório onde o Person trabalhou com o pai. Porque o filme tem muita coisa da vida
do Person, da vivência do Person. O pai tinha uma indústria de ferramentas de
diamantes, ali na Água Branca... O escritório tinha até uns operários. Era a Person -
Bouquet. O pai era francês e era sócio de um francês. Todas as coisas dos operários,
inclusive o negócio de esconder os operários, eu desconfio que talvez tenha
acontecido no escritório do pai. O escritório do Zeloni era o escritório do pai dele.
NM – E o nome Agonia?
GML – Eu lembro do nome, mas isso foi quando estava elaborando. Isso não
acompanhei. Acho que a maior parte ele elaborou quando trabalhou na firma do pai,
de onde foi tirando todos os dados e, na Itália, ele finalizou. Person sempre teve este
filme na cabeça.E tem outras cenas que aconteceram com o próprio Person. É o caso
da cena em que o Walmor quebra os champanhes na frente da casa da Eva Wilma.
Nós íamos todos os fins de semana para a praia. Eu tinha uma lambreta e descia a
Serra do Mar. Lá a gente esquiava. E no Guarujá ele arrumou uma namorada sueca e
depois de um jantar, ele tomou um pileque e fez a cena igualzinha. Foi a cena que ele
317
colocou no filme. O Person também quebrou um champanhe. Como nos outros
filmes. No caso do Cassy Jones, o Magnífico Sedutor, a história da mãe é verdadeira,
é a mãe dele. Este filme é até dedicado à mãe dele, dona Isaura, que era uma pessoa
muito divertida, muito engraçada. Era a coisa da super-mãe!
NM – E você se lembra como o São Paulo S.A. foi de público quando foi lançado?
GML- Eu vou ser sincero: não me lembro nem onde foi lançado. Na época, eu
trabalhava muito em outros projetos. Por exemplo, teve um período em que fui fazer
o filme sobre o livro do Jorge Amado, Seara Vermelha, e fiquei seis meses no sertão
da Bahia. Nem me lembro do lançamento.
NM – Mas se lembra se foi bem de público?
GML – Ah, isso sim. O filme foi muito bem. E foi vendido para o exterior também.
O Person agitava bastante. Foi apresentado em alguns Festivais fora. Uma vez ele me
contou de um Festival onde uma senhora fazia a tradução simultânea durante a
projeção. E como o filme é muito agitado, ela se perdia e ele morria de rir.
NM – Tem alguma coisa a mais que você queira falar?
GML – Não. Mas tem um depoimento interessante que eu dei num livro que o
Arquivo do Estado publicou sobre a minha obra, dentro da coleção Aplauso.
NM – Então para completar: na época, muita gente falava que o Person era do
Cinema Novo, que o filme fazia parte do movimento. O que você tem a dizer sobre
isso? O que o pessoal do Cinema Novo falou na época?
GML – Não. Apesar de ter sido até sócio de algumas pessoas do Cinema Novo, eu
nunca tive muita ligação com este tipo de política. Eu e o Person estávamos sempre
inventando coisas. Por exemplo: pensamos em ter uma distribuidora de filmes
brasileiros, a RPI, para que não entregássemos para as distribuidoras americanas. E
fizemos esta distribuidora, onde reunimos uma porção de diretores, de produtores,
aqueles independentes. Fizemos reuniões no escritório na Rua do Triunfo, lá na Boca
do Lixo. Mas foi a única ligação que eu tive. É que o Person tinha outra coisa: ele
pensava comercialmente. Tanto é que ele dividiu. Nós produzimos! Tanto é que ele
pensava em fazer séries, como foi o caso do Cassy Jones, em que ele pretendia
transformar num produto. Era uma comédia sem pretensões porque ele dizia que
queria também o lado comercial. E o Person tinha a frustração do outro filme que
queria fazer que era A Hora dos Ruminantes.
Com GLAUCO MIRKO LAURELLI . 23 de abril de 2008. Apartamento do
montador de São Paulo Sociedade Anônima.
[Assistimos ao filme juntos, em DVD, e Glauco comentou algumas cenas. Começa
pela abertura, no apartamento de Carlos e Luciana. Glauco afirma que ficava na rua
Fortunato que pertencia à família de Person].
NM- Você se lembra alguma coisa sobre toda esta abertura? Essa mistura de
pobreza-riqueza, imagem aérea de São Paulo...
GML- Isso tudo já fazia parte do roteiro. E na época eu segui o roteiro na montagem.
Nas minhas montagens, eu lia o roteiro, separava o material e seguia o que estava lá.
E assim foi feito.
NM – Logo em seguida à abertura, tem uma jogada para trás. O personagem Carlos
volta cinco anos, inclusive muda o terno. Você se lembra dessa jogada com o tempo?
GML- Mais uma vez, é uma questão de roteiro. Aquela narração de Carlos
explicando a história.
318
NM – E os seus cortes? Como você vê seus cortes re-olhando hoje? Você trabalhava
em moviola, sem os recursos de hoje.
GML - Eu acho boa. Eu gosto (ri) desse ritmo que tem, de mudanças. Tem outros
filmes que montei que não tinham flashbacks e eu transformei na montagem.
Cheguei a mudar toda estrutura de filmes, incluindo flashbacks. Nesse filme, eu
segui o roteiro. Não me lembro de ter trabalhado com o texto na montagem. O
Person vinha acompanhar de vez em quando, mas não ficava todo o tempo, não.
NM – Aquela música inicial do Cláudio Petraglia já tinha na montagem?
GML – Não, não existia nada. Só foram colocadas depois, a não ser as canções
normais, de ambiente. Isso foi gravado posteriormente, não tinha nem na filmagem
nem na montagem. E nada de som direto. Tudo foi dublado. E a única voz que foi
dublada (obs: por outra atriz) foi da Ana Esmeralda, porque ela tem um sotaque, ela é
espanhola, apesar de falar perfeitamente o português. Ela veio nos anos 50 pro
Brasil, casou com o Mário Audrá, mas até hoje tem o acento [sotaque]. Ela foi
dublada e daqui a pouco, ouvindo a voz, vou me lembrar de quem é...
GML – As cenas de praia foram filmadas na ligação entre Santos e São Vicente,
onde o pai dele (Person) tinha um apartamento que, inclusive, eu freqüentava muito.
Eu trabalhava na empresa onde o filme foi sonorizado e toda sexta-feira, quando
terminava o trabalho, eu descia (para o litoral) numa lambreta que eu tinha. Inclusive
depois nós tivemos uma lancha, juntos...
NM – Era a lancha do filme?
GML- Não, não era esta. A lancha se chamava Lauper, assim como nossa empresa,
uma ligação entre nossos sobrenomes, Laurelli e Person. Inclusive têm várias cenas
que aconteceram nas nossas vidas, em Santos, São Vicente e Guarujá, que você
encontra no São Paulo S.A.. Deixa seguir o filme que eu conto...
NM – Você se lembra se ele filmou muito, se gastou bastante negativo?
GML – Ele gastou bastante. Tinha bastante material filmado.
NM – Eu li num dos roteiros que o Person chegou a anotar que o filme tinha duas
horas e meia.
GML – Não, não. Isso não aconteceu. Naquele tempo, havia o padrão das sessões de
cinema que eram duas, quatro, seis, oito e dez horas. Além disso, ainda tinha de
entrar um cinejornal, um trailer. Então os filmes tinham de ter uma hora e 45 ou 50
minutos. Raramente um filme chegava a duas horas de projeção. Lógico que a
primeira montagem ficava maior. Depois é que ia cortando, reduzindo, tirando
fotogramas, dando mais ritmo. E ia se enquadrando ao tempo necessário. Deve ter
saído bastante coisa. Mas não lembro de cenas totalmente excluídas.
NM – Quem dirigiu a dublagem?
GML – Ele (Person) acompanhou muito. Mas não me lembro de ter participado...
NM – Acabamos de assistir a cena dos tapas de Carlos em Ana, na praia. Uma
montagem rápida, com cortes secos. Como você fez?
GML – Eu tinha filmagens de vários ângulos. Era uma cena difícil. Foi uma coisa de
montagem mesmo. Fui cortando e aproveitando todos os enquadramentos. E depois
corta para o mar para fazer a passagem.
NM – E esta cena no restaurante, entre Ana e Carlos?
GML – Foi na Galeria Metrópole, atrás da Biblioteca Mário de Andrade, tinha
cinema lá, tinhas muitos bares. Era no primeiro andar, com vista para a rua São Luís.
O bar se chamava Mon [onde foi feita uma entrevista coletiva com a equipe do
filme], era uma casa de chá, drinques...
319
NM – Até aqui, neste momento em que assistimos, foi tudo em cima da personagem
da Darlene Glória... E agora tem uma virada, onde Carlos encara a câmera, como se
conversasse com o espectador. Isso não era muito hábito no cinema, não fazia parte
das regras clássicas. Você gosta disso?
GML- Gosto. Fazia parte da estrutura do roteiro. Isso já começa nas cenas iniciais
quando ele (Carlos) sobe a rua perto do Edifício Martinelli e conversa com a câmera.
Agora eu queria explicar o seguinte: o Person, antes da realização desse filme,
trabalhou com o pai, na (empresa) Person - Bouquet. O pai era francês, de família
francesa. A firma fazia rebolo com diamante, para lixar, estas coisas. Eles
compravam diamantes em Minas. Era uma indústria de rebolo. Que aparecem,
inclusive, muitas filmagens feitas no escritório desta firma. Foi nesse período que ele
conheceu toda esta engrenagem e as fábricas. Todas as ligações que teve com
vendedores, compradores, técnicos e pessoas que usou para falar sobre as indústrias
de automóveis.
NM – Até aqui, dá para ver momentos em que a montagem é muito rápida...
GML – Aliás, todos os meus filmes tem uma montagem muito nervosa. Filmes com
tomadas muito longas me deixavam nervosos.
NM – E o Person concordou com tudo.
GML – Sem dúvida.
NM – Ele comentava sobre filmes que o inspiravam?
GML – Não, não falava. Agora, ele trabalhou na Itália, fez filmes, foi assistente de
direção, teve muito contato, teve aulas, apesar de Centro Experimental da Itália não
ter muitas aulas, pois os professores já eram aposentados, não exerciam mais a
profissão. Eram mais palestras. Esporadicamente tínhamos alguma palestra com
cineastas como Antonioni. Portanto, tínhamos conhecimento de filmes da época.
NM – Mas ele não citava nenhum especificamente.
GML – Não.
NM – Uma curiosidade: o Person sabia mexer na moviola?
GML – Não, ele nunca tocou na moviola...Agora vou lhe contar uma curiosidade. O
Pedro Rovai foi assistente de direção. E nestas cenas que acontecem na Praça da
República, apesar de serem de épocas diferentes no filme, foram feitas no mesmo
dia. Neste dia, tinham dois jovens argentinos, bonitos até, e ficaram vendo as
filmagens, que eram complicadas. Apesar de Walmor Chagas e Eva Wilma não
serem muito conhecidos, era preciso separar a multidão, evitar o barulho. Então,os
dois jovens começaram a ajudar e ficaram amigos do Pedro Rovai
e,conseqüentemente, meus amigos, pois a gente freqüentava o restaurante Porta do
Sol, ali em frente ao Museu de Arte, na 7 de abril, no edifício dos Associados. Estes
rapazes trabalhavam aplicando uma tinta nos vidros, nas janelas, para ficarem tipo
Ray-Ban. E estes rapazes resolveram ir para a Europa. E nós fizemos um jantarzinho
para ajudá-los na viagem. E lá começaram a ver filmagens. Tempos depois, um deles
se casou com uma milionária americana e se mudou para Porto Rico. O outro era o
Hector Babenco que também foi figurante lá na Itália.
NM – E o diretor de fotografia, Ricardo Aronovich, era argentino também. Você teve
algum contato com ele?
GML – Só assim, em pequenos contatos. Não trabalhei junto com ele.
NM – Uma pergunta para morador: logo após a cena do namoro de Luciana, corta
para morte de Hilda. Um entre tantos saltos radicais.
GML – Como já disse, estava no roteiro. E para mim não é estranho. Agora, o que
estou achando, assistindo agora, é que o personagem do Walmor é muito do Person.
320
Acabamos de ver o jeito de Carlos falar e me lembrei do Person. Person não era
nenhum anjo (ri). Por isso que eu acho que as brigas com a Darlene...O Person era
uma pessoa que estava muito bem com alguém no trabalho e, de repente, queria
eliminar da vida dessa mesma pessoa. Isso ele fazia mesmo. Eu nunca tinha feito esta
ligação. Assistindo agora, vejo que era bem o jeito dele de ser...
NM – Um comentário: uma cena de morte corta para um delírio.
GML – Estas cenas de carnaval, eram apenas dois ou três planos. E eu fui cortando e
colocando os flashes na cabeça dele (Carlos). Eu gosto.
NM – Então vamos ouvir a voz da Hilda para que você possa identificar quem
dublou Ana Esmeralda.
GML – A voz da Ana Esmeralda é da atriz Cacilda Lanuza, que na época era mulher
de Cláudio Petraglia. Na época, ela dublava muitos filmes.Um comentário: por
conhecer muito a Ana Esmeralda, que tem uma voz mais quente, e a Cacilda tinha
uma voz mais metálica, me lembro que na época eu não gostava muito... Mas
enfim...
NM – E esta cena longa no Ibirapuera, com Carlos e Hilda?
GML – Não tive como passar a tesoura (ri)...
NM – Duas coisas: quando tem estes cortes documentais da cidade – tipo velhinha
pedindo esmola ou carro passando – vocês conversavam bastante sobre isso.
GML – Todo este material foi filmado separadamente. E eu usava para fazer uma
pontuação. Eu colocava instintivamente e se o Person não quisesse, eu tirava depois.
Era uma pontuação para separar as cenas.
NM – A segunda coisa nada tem a ver com o São Paulo S.A., mas vocês deviam se
dar muito bem quando tiveram uma empresa e fizeram centenas de comerciais, onde
a linguagem exige.
GML- Sim, dava certo . Os comerciais com 30 ou 60 ou 15 segundos, exigem isso.
Eu montava todos os filmes. Dava certo a ligação entre os dois temperamentos.
Apesar de meu nervosismo na montagem, eu era mais equilibrado. Deu certo.
Discutimos algumas vezes, mas nada muito sério.
NM – Curioso como o personagem do Zeloni demora para acontecer no filme. Ele
aparece no início mas só fala na metade do filme.
GML – É isso mesmo, uma estratégia interessante que também vem do roteiro.
NM – Outra curiosidade de montagem é a ida de trem, com Carlos e Ana, indo pro
asilo. E em vez de, na seqüência, colocar eles de volta, há uma cena de briga com
outra personagem. Isso era totalmente normal para vocês?
GML – Não me lembro se foi imposição dele...Repito: tudo estava no roteiro.
NM – E as cenas da corrida de São Silvestre?
GML – Foi tudo trazido pelo Primo Carbonari, que fazia os cinejornais da época. Foi
difícil porque tinha de ter o mesmo padrão de laboratório, de fotografia. E para estar
na mesma linguagem de montagem, foi complicado inserir. Mas acho que ficou
bonito.
NM – Esta cena em que o Carlos quebra as garrafas de champanhe, na virada do ano,
me parece um ponto de virada.
GML – Sim, e esta cena aconteceu com o Person lá em São Vicente, para onde a
gente ia todo fim de semana. Teve uma época em que ele namorou com uma sueca,
muito bonita, e ele tomou um pilequinho, não com este exagero do filme, mas
aconteceu exatamente. E acho que o Walmor Chagas está muito bem nesta cena. E
esta coisa de sempre me lembrar o Person. Ele fazia essas coisas.
321
NM – E esta cena do carro, muito bem filmada, com bastante gente dentro, até
mesmo um cachorro.
GML – Acho muito boa. Está muito bem filmada. Imagino a dificuldade de se filmar.
Inclusive, as laterais, não sei como conseguiram porque as câmeras eram grandes na
época. E tem uma curiosidade. A música que o Zeloni diz para a filha não cantar é
Giovenesa, considerada um hino fascista, usada pelos seguidores de Mussolini.
NM – É uma citação interessante porque logo em seguida, o personagem de Walmor
Chagas canta o Hino a Bandeira, num clima de constrangimento.
GML – Já esta cena da sauna do hotel Danúbio foi feita com gelo seco. Foi meio
complicado de filmar. Mas me parece um resultado muito bom.
NM – Uma dúvida sobre a cena de casamento de Carlos e Luciana: por que a opção
por foto?
GML – Acho que filmar um casamento seria longo e acho que ele não tinha saco de
encher uma igreja... E ele preferiu fotografar. Uma opção de produção, uma decisão
econômica... E também seria uma coisa meio chata, de detalhar, ter padre, platéia... E
três ou quatro fotos resolveram o assunto. O resultado é bom.
NM – Como foi rever o filme?
GML – Fazia muito tempo que não via. É um filmão. Eu gosto muito também de O
Caso dos Irmãos Naves.
NM – O próprio Person também preferia O Caso dos Irmãos Naves.
GML - Foi um filme que acompanhei mais. Fiz toda a produção, a montagem. Tenho
uma ligação maior. Acompanhei toda a filmagem.
NM – O ritmo de montagem é parecido.
GML - Montagem muito ágil também. A cena de tortura. Tem essa coisa narrativa
também. A estrutura é parecida.
NM – E o tino de produção de Person, como era?
GML – Muito bom. Na cena em que o personagem de Zeloni vai mostrar o terreno
da futura fábrica para o personagem de Walmor, a placa mostra o nome da empresa
Novelli, que nada cobrou. O Novelli era muito amigo nosso. Ele conseguia estas
coisas, como o escritório da fábrica que foi filmado na rua Guaicurus, na Lapa, sede
da fábrica do pai de Person. E no caso de Ana Esmeralda, foi uma jogada bem
pensada. Além de esposa do produtor Mário Audrá, um dos acionistas do filme, Ana
era uma atriz espanhola muito conhecida internacionalmente, com mais de 15 filmes.
Isso poderia ajudar na carreira internacional de São Paulo S.A..
Com ANA ESMERALDA. 8 de maio de 2008. Estúdio de Flamenco da atriz e
bailarina.
NM – Como era o jeito do Person dirigir?
ANA – Um diretor maravilhoso. Foi uma pena ter morrido tão jovem Ele tinha uma
sensibilidade muito grande. Não havia dúvidas para ele. Bastante decidido e grande
amigo. Sabia o que queria. Poderia ter sido um grande diretor internacional. Tinha
uma visão de cinema moderno tremenda.
NM – Ele falava alto ou conversava baixo com vocês?
ANA – Muito gentil, sempre com delicadeza, sempre procurando tirar de nós o mais
possível. E não usava o roteiro. Quando chegava, já tinha tudo na cabeça. Sabia onde
colocar a câmera.
NM – Vamos lembrar de uma cena específica, feita no Ibirapuera.
322
ANA – É uma cena muito bonita do São Paulo Sociedade Anônima. Porque meu
papel era de uma mulher muito internacional e, ao mesmo tempo, muito triste. Muito
culta, porém amarga pela solidão. Um papel muito dramático. Eu também gosto da
cena que acontece pouco antes de Hilda morrer. Foi filmada num apartamento real,
inclusive usando o corredor. É muito bonito quando ela diz: Pessoal e Intransferível.
Daí eu fico no contra-luz. Acho linda.
NM – Suas filmagens demoravam muito ou eram rápidas?
ANA – Tudo muito tranqüilo. Ele sabia o que queria de cada ator e filmava rápido. E
não gritava.
NM – Como ela a relação entre Person e equipe, especialmente com Ricardo
Aronovich, o fotógrafo.
ANA – Apesar de muito jovem, ele ‘sacava’ da gente o mais possível. Sem gritar,
falava direto: “quero esta ‘bruma’, este sentimento...”
NM – O produtor Renato Magalhães Gouvea me falou que foi uma filmagem muito
organizada, que não teve problema, atores e equipe recebiam semanalmente. Você
confirma?
ANA – De produção, não me lembro. Mas entre atores nunca houve problema. As
filmagens marcadas para determinados dias sempre aconteciam como previsto. Tudo
muito programado para não tumultuar as seqüências.
NM – É interessante porque são três mulheres que nunca se encontram.
ANA – De fato, não havia relação entre as mulheres. Comigo foi muito intenso.
Porque me parece que o meu personagem e o do Walmor são os dois tipos mais
parecidos, naquele mundo, naquele momento, naquela São Paulo... São duas pessoas
muito solitárias. Apesar dele se casar, era uma pessoa muito solitária. Eram dois
tipos muito sozinhos neste mundo que então se chamava de Grande São Paulo. Se era
assim na época, imagine agora...
NM – É curioso porque você disse há pouco: São Paulo Sociedade Anônima. Era
assim que se falava na época?
ANA – Sim, a gente falava São Paulo Sociedade Anônima?
NM – Você se lembra do lançamento? Chegou a viajar?
ANA – Não. Sinceramente não me lembro do comentário do público. Mas não
cheguei a viajar. Só me lembro que a repercussão foi muito boa. Inclusive, no Estado
de S. Paulo, muito tempo depois, fez uma crítica muito boa dizendo que o filme
continuava atual.
NM – E como foi a sua escolha?
ANA – Eu não queria fazer. Foram eles, Person e Mário, que me convenceram. Era
um papel pequeno, mas muito intenso e que teve muita repercussão no público.
Depois gostei muito de ter feito. Inclusive a morte de Hilda foi muito bonita. Aquilo
chocou muita gente. Era talvez a mulher que Carlos gostaria de ter se casado. Era a
mulher para ele. Por isso, sempre se lembrava dela. Inclusive na cena que foi feita
em Santos - São Vicente, em que estamos no apartamento, e ela fala do turco que lhe
pagava, aquilo foi muito bonito. Lembro até hoje desta filmagem, apesar de passado
tanto tempo. Muito marcante. Aliás, uma coisa muito interessante é que todo o filme
foi feito em cenários reais. Nada de estúdio.
NM – Você foi dublada por causa do seu sotaque espanhol. Você acompanhou a
dublagem?
ANA – Não. Não acompanhei. Mas acho que ficou maravilhosa. Quem fez foi a
Cacilda Lanuza. Ficou até melhor do que minha voz. Foi muito bacana.
NM – Em que parte da Espanha você nasceu?
323
ANA – Do sul. Os meus pais eram de Granada. Depois, fui criada em Sevilha e já
grande fui para Madri. Aqui para o Brasil vim como representante da Espanha
durante os festejos do Quarto Centenário de São Paulo.
324
Ao lado de Nelson Mattos Penteado (à esq.) e Renato Magalhães Gouvea, Ana Esmeralda assina
contrato para interpretar Hilda em São Paulo Sociedade Anônima.
325
Anexo 3
PALAVRA DE PERSON:
entrevistas e depoimentos do diretor
Este anexo apresenta a íntegra de algumas entrevistas, textos e depoimentos de Luiz
Sérgio Person pesquisados nesta dissertação.
Texto datilografado por Person para uma apresentação do filme São Paulo
Sociedade Anônima. A cópia está depositada na Sociedade Amigos da
Cinemateca Brasileira. 1965. Cineclube do Centro Dom Vital, São Paulo.
Gostaria de ler algumas notas para colocar os debates num plano mais orientado. Eu
preferiria conduzir a discussão num plano de idéias. Certos pequenos detalhes a
respeito de técnicas e outras curiosidades a respeito do filme não seriam interessantes
já que se trata de um cineclube e, portanto, de gente realmente interessada em
cinema.
Também, sob o aspecto formal, eu tenho uma certa idéia. Quanto à forma e o estilo,
tenho uma opinião. Ser artesão em cinema não é nenhuma coisa do outro mundo.
Dentro de determinadas circunstâncias qualquer um pode vir a sê-lo. Para mim não
significa nada. Prefiro então que discutamos as idéias expostas pelo filme. Minha
formação cinematográfica me prende à necessidade de comunicação com o
espectador a quem, principalmente, o filme se destina.
Eu respondi a uma pergunta sobre certas influencias de estilo em meu filme.
Respondi que não tive influência de Resnais, Antonioni, Fellini e outros. Acredito na
medida em que se pode ser autor de cinema e não simplesmente um pesquisador
esteta, o problema do estilo pessoal nasce das próprias idéias que se quer exprimir; e
a força dessas idéias dará o estilo, e até mesmo os vários estilos de um mesmo
realizador. Tudo é válido: expressionismo, “antonionismo” – e essa liberdade é um
dos grandes trunfos do cinema moderno, pelo menos sob o aspecto formal.
No decorrer da história moderna, o homem burguês se libertou de algumas das mais
repressivas formas de autoridade, mas cada vez mais se submete a uma autoridade, a
um poder anônimo, tornando-se instrumento de um conformismo voraz que o impede
de agir e de pensar como uma entidade autônoma, atitude essa única possível de lhe
permitir uma autêntica visão da realidade moral e econômica que o cerca.
Pretendi fazer de São Paulo S.A. um depoimento contra alguns dos mecanismos que
conduzem ao conformismo: a automatização do indivíduo dentro da sociedade como
a nossa, recém-alçada ao plano de sociedade industrial que, na área econômica, ainda
não está subordinada ao bem estar do próprio homem mas que faz dele apenas um
dente de sua engrenagem. Daí decorre a perda do relacionamento autêntico de meu
personagem com as pessoas e coisas que o cercam. Daí provém sua inútil e
desesperada luta por uma saída que, por ser tentada e procurada através de soluções
artificiais e inócuas e não como fruto de uma atividade espontânea e consciente. Os
objetivos de meu protagonista não são aqueles que ele escolheu e sentiu livremente.
Uma sociedade feita de ganâncias, cujo índice qualitativo do indivíduo se mede pela
escada do sucesso ou não do indivíduo; em que o valor do individuo é medido pela
sua conta bancária, num meio em que tudo cai debaixo de convenções e
mediocridades, em que o amor é substituído pela concepção mais vulgar,
simplesmente a do casamento, e que o indivíduo, enfim, tende a acreditar na
326
necessidade de ser aquele o seu caminho e seguir vida afora as mesmas etapas iguais
às dos milhões de outros homens como ele – o personagem de São Paulo S.A. se
debate: se angustia, se desnorteia, vacila diante de tudo. Daí decorrem duas coisas
terríveis: primeiro, é a perda de sua identidade. No fim, quando Carlos se submete a
Luciana, dando os primeiros passos dentro do casamento, chega mesmo a acreditar
que seus propósitos, seus objetivos, são aqueles mesmos – trabalhar com Arturo e ter
filhos com Luciana. De tal forma é ele impressionado que já acredita ter ele próprio
feito essa escolha, que ele mesmo decidiu por isso.
O segundo fato terrível que advém dessa situação é que, ao vislumbrar a
decomposição e pressentir que caiu no erro dos demais e que, finalmente, está
inserido na lista dos homens sérios como lhe diz o Arturo (Zeloni), sua angústia, sua
rebeldia fica de acordo com a compleição social de todos aqueles dominados pelos
mesmos problemas. Ele não tem mais, mergulhado como está em sua condição
burguesa, nenhuma possibilidade crítica realmente válida. É então que ataca pelos
flancos, nos sintomas comezinhos, que nunca denunciam um mal maior. São as
pequenas coceiras que só o exame atento e profundo poderia acusar o câncer. Nunca
é capaz de desvendar a estrutura que o envolve nos males. Sua posição, como a de
todos os inconscientes indivíduos de seu meio, é a de um moralista suburbano.
Nunca vê o conjunto ou não quer ver as peças que deram origem ao defeito essencial
do motor. Sua moral é compulsiva e mesquinha, ou ainda tristemente, inútil.
Já recebi diversas críticas a respeito da linha de conduta de meu personagem. E
também às conclusões e observações apresentadas por mim. Reprovam-me, por
exemplo, desde as primeiras leituras do roteiro, de ter dado a um personagem de
classe média e ignorante, uma angústia que é própria de um indivíduo de outro nível
social. Eu não concordo totalmente com essa taxação imperativa. Afinal, eu não era
obrigado a fazer um personagem Standard que não tivesse assim nenhum deslize.
Existe uma tendência, inclusive, de se padronizar (e isso eu falo assim em termos
ideológicos: o individuo é assim, dentro de cada classe ele só reage assim). Eu
concordo em termos, mas quando se trata de literatura, de uma obra de ficção, eu
penso que é permitido ao autor interpretar de uma maneira mais livre, a conduta de
um indivíduo.
Mais do que tudo isso ainda, foi uma opção que eu fiz no tratamento da história. Eu
tinha que conflitar, que criar condições para condução do entrecho. Ora, conquanto
eu não esteja totalmente satisfeito com essa solução, sou franco em dizer que prefiro
mil vezes essa que eu escolhi à colocação, por exemplo, de um personagem lúcido,
consciente, em contraposição ao personagem do Walmor Chagas. Uma contraposição
que servisse de expressão critica positiva. Não. Se eu tivesse de refazer o filme, eu
não escolheria uma solução deste tipo. Quanto a uma visão de conjunto dos
problemas que eu mesmo não tenha dado, penso que é uma impressão bastante
subjetiva. Dizem alguns que o problema fica muito no plano do individual, no
particular. Eu não sei realmente se isso é verdade, ou se é uma impressão causada por
uma série de fatores muito correlatos e que não estão totalmente ligados ao filme. Fiz
uma projeção especial no juizado de menores, onde houve uma reunião de vinte e
tantas moças e três professores do colégio São Domingos. Eu fiquei atrás, sem que
ninguém soubesse. Após a projeção, à pergunta se o problema era social ou
individual, responderam todas, menos uma apenas, responderam que o problema é
social. Isso conto, apenas para demonstrar que há um determinado subjetivismo
difícil de se afastar no problema da crítica de um filme. E, se existe alguma polêmica
a esse respeito, talvez mesmo o filme não tenha sido claro demais e eu não tenha
327
conseguido colocar como eu queria, dentro do plano social em conjunto, todos os
dados necessários. Mas eu acho que isso é um problema que envolve muitos e muitos
problemas das formas de expressões empenhadas, digamos, ‘engagé’. Eu gostaria de
lembrar um fato curioso da Ópera dos Três Vinténs: quando Brecht escreveu, ele
estava convicto de que a sociedade berlinense a quem a peça era apresentada, iria se
ver ali retratada e criticada, fuzilada pela peça. E o resultado foi outro: essa platéia de
colarinho duro, ao ver a peça, riu e se divertiu enormemente com a obra. Isso é um
fato histórico.
Eu tinha ainda a salientar que, para mim, o filme tinha a importância do final, que é
onde todas as coisas apresentadas buscam uma solução de crítica positiva do que é
mostrado. Eu faço, por exemplo, dois finais falsos, conscientemente. Até a música,
quando a briga entre o Walmor e a Wilma em que ele a joga no chão, parece ser o
final: que ele enfim se libertou e que parte para uma solução libertadora. Logo em
seguida, nós o vemos fazendo um ato gratuito de revolta, roubando um Kharman-
Guia na praça Roosevelt. Novamente nós acreditamos numa outra saída: uma saída
romântica. Vai com esse carro, ou vai se atirar do alto de uma montanha ou enfim ele
vai parar não sei onde, no Rio de Janeiro. Mas não acontece nada. Ele simplesmente
adormece. Para então voltarmos ao verdadeiro final, que é o retorno dele à cidade e a
submissão dele ao meio que o envolve. O final tinha então a intenção de levar o
espectador à perplexidade, atitude positiva e capaz de levar à ação.
A perplexidade do espectador que até ali viu toda uma apologia quase dos valores
aos quais ele está ligado e que, de repente, vê isso se virar completamente contra ele.
Do aspecto desagradável desse final é que eu esperava a atitude crítica e positiva do
espectador em relação ao filme. As seqüências finais, para mim e pelo que eu pude
constatar junto aos espectadores, principalmente nas sessões de público no cine
Olido, em tudo contradizem o espectador e o arremessam com impacto diante
daquela realidade cotidiana que lhe é devolvida já não mais sob o verniz e a
complacência aparente, mas debaixo de um crivo de reflexão e sufocação de que eu
tentei sugerir a ele a necessidade de sair, de escapar, redenção essa que
evidentemente não acontece ao protagonista, já que ele, basicamente, não tem as
condições mínimas requeridas para a sua libertação.
Alguns falam ou perguntam se o filme é pessimista. Há diversos modos de encarar o
pessimismo. Eu poderia, por exemplo, dizer que sim, que o filme é pessimista, mas
pessimista em relação a quê? E me sinto voltado à minha época. E para mim o
cinema não é simplesmente um meio de contemplá-la tacitamente. Nesse sentido, a
indagação que procurei fazer de alguns dos aspectos dos problemas que envolvem e
atingem a nossa sociedade não tinha em mente acomodar compor-se com ela no
‘status quo’ irremediável, o que já por si equivale a dizer não ser essa uma visão
pessimista que eu tenho das coisas. Se o personagem ao final retorna a São Paulo e,
ao que tudo indica, para recomeçar a sua vida nos moldes idênticos à anterior, não é
por minha vontade, pelo meu ceticismo ou pela minha aceitação. Eu tinha que
constatar isso e obrigar o espectador a refletir sobre essa condição humana
indesejável mas verdadeira. Como eu tratei o filme, eu joguei apenas com as cartas
do personagem, daquela sociedade que o envolvia, das pessoas com as quais ele
convivia. Eu não vi como indicar caminhos ou apontar soluções. E essa possibilidade
de uma outra perspectiva é uma hilação que eu acho que seria possível se nós
tivéssemos num outro estágio de público aqui no Brasil. Por isso eu, temendo a
demagogia, preferi permanecer no plano onde o filme termina.
328
Entrevista para Orlando Lopes Fassoni. Folha de S. Paulo. 19/10/1965.
Título: Person diz que o cinema novo é superado por incentivadores
“Vou deixar um pouco o cinema e dedicar-me, agora, ao teatro. Pretendo fazer uma
peça, que terá o titulo “Oh, que Delícia de Guerra!”, um musical inglês de Jonh Little
Wood, e que poderá ser encenada este ano” , disse o diretor cinematográfico Luís
Sergio Person em entrevista exclusiva à FOLHA DE S. PAULO.
Person é o realizador de “São Paulo S/A.”. É um dos mais jovens diretores do nosso
cinema. Foi ator, adaptador, direto de TV entre 1955 e 1958, quando abandonou o
cinema para se dedicar à industria. Em 1961 estudou no Centro Experimental de
Cinematografia de Roma, concluindo curso de direção foi o produtor e diretor de “Al
ladro”, documentário selecionado para representar a Itália nos festivais de Veneza e
Bilbao de 1962, obtendo o prêmio de qualidade do governo italiano. Para o Centro
Experimental de Cinematografia escreveu e dirigiu o curta-metragem musical “L’
Ottimista Sorridente”. No Brasil, lançou-se com “São Paulo S/A.”, quem vem
conquistando o público paulistano.
CINEMA NOSSO
Perguntando sobre como encara o cinema nacional dentro no panorama
internacional, respondeu: “O Brasil tem hoje um cinema reconhecido e admirado no
exterior, principalmente na França e na Itália. Apesar dos poucos filmes exibidos
regularmente nesses países, encontramos ressonâncias e ganhamos alguns dos mais
importantes prêmios cinematográficos. À primeira vista isto poderia causar
estupefação, pois, mesmo aqui dentro de nossa casa o publico em geral – e refiro-me
ao publico classe média, grande consumidor dos centros urbanos – olha com certo
desdém o filme nacional e nele vêem mais um subproduto incapaz de fazer frente ao
estrangeiro”.
Se analisarmos bem os móveis psicológicos dessa atitude além de algumas válidas
razões intrínsecas à própria mediocridade de uma grande maioria de filmes de um
passado recente, veremos que os motivos dessa posição se aproximam, sendo
resquícios de uma opinião em voga à tempos a respeito de qualquer outro produto
manufaturado brasileiro: “é industria nacional, não presta!”. Com a aceleração do
processo industrial do país esse espírito derrotista perdeu seu vigor. Contudo, o nosso
cinema, que economicamente ainda se encontra numa fase precária, reivindica e
obtém merecidamente reputação internacional. É para mim a mais importante
manifestação da nova e autentica cultura brasileira. Infelizmente, para que o nosso
cinema estabeleça afetiva comunicação com o publico, é preciso que muita coisa
ainda seja feita. Isso não depende só da boa qualidade dos nossos filmes, mas, de um
complexo de fatores impossíveis de serem analisados sem algum estudo. Vale a pena
lembrar, entretanto, que, em situação análoga, o cinema neo-realista italiano do após-
guerra obteve seus primeiros grandes sucessos no exterior e só mais tarde encontrou
plena aceitação dentro da Itália”.
CINEMA NOVO
Luis Sergio Person diz que o cine-verdade, proveniente do estilo de reportagem
televisiva, notadamente europeu, constituiu-se num movimento de renovação que
teve seu valor e sua época. “o Brasil, cuja cinematografia eclode, superando modelos
e modismos, não se deterá, creio eu, no estilo do cine-verdade. Seu destino me
parece ser mesmo a televisão. O cinema novo, entendido em modo restrito como o
movimento carioca que originou “ Deus e o Diabo na Terra do Sol” e outros filmes
brilhantes, acha-se superado pelos seus próprios incentivadores. Entendido em forma
329
ampla como verdadeiro cinema de autor, voltado à realidade do país, preocupado
com o nosso povo e o seu destino cultural e social, é a forma mais viva e apaixonante
de cinema que, por si só justifica o tremendo esforço que é fazer filme sério no
Brasil.”
Person aduziu algo sobre a participação do autor numa obra de arte. Afirma que em
“São Paulo S/A”, em cartaz na cinelândia, realizou uma obra de equipe, e não
somente sua. “Foi um trabalho em plano dividido, como cada elemento participando
de sua máxima importância. Cabe selecionar a excelente participação de Renato
Magalhães Gouveia, produtor e Nélson Penteado, produtor executivo, que deram a
mim uma colaboração decisiva, principalmente pela crença deles no interesse da
película e sabendo que precisava de liberdade de ação para realizar o que queria”.
INFLUÊNCIAS
O diretor brasileiro assentou que sofre algumas influências de mestres como Alain
Resnais e Frederico Fellini e que o ator, quando bom ator, sempre se eleva, ao
representar, no mesmo plano de diretor, compreendendo suas intenções e deixando
de ser como em filmes comuns, apenas um ser autônomo.
Falou de sua película, premiada em Pesaro, na Itália: “São Paulo S/A” nasceu de uma
vontade muito antiga de fazer cinema cm uma nova visão que tive de minha nova
cidade, dos seus e dos meus problemas, ao sair daqui em 1961 e permanecer dois
anos e meio fora do país. É um filme muito pessoal, onde se chocam conflitos
particulares com preocupações sociais. É, sobretudo, um filme de libertação: não me
sentiria capaz de fazer outro filme antes desse.”.
Sobre a adaptação disse: “Embora eu tenha escrito o argumento sozinho, não pude
dispensar a colaboração de muitos amigos, que me ajudaram a dar mais unidade e
interesse ao contexto. A adaptação oferecia um grande problema: fazer a cidade
participar torná-la um verdadeiro personagem dentro do filme. Comunicar, devolver
ao espectador, em forma de cinema, uma realidade que lhe é vizinha, circundante,
mostrar essa realidade sob um crivo de crítica e reflexão. Acredito que o problema
foi resolvido.Mas o caminho é longo. Penso que São Paulo, a sociedade anônima que
tentei desvendar, merece ainda outros registros e muitos outros enfoques. A nossa
literatura ainda se encontra no estágio de aguda alienação. Poucas são as obras que
realmente se preocupam em indagar sobre a nossa maneira de vida, direta.Mas,
acredito que os jovens autores paulistas já têm consciência bastante deste problema e
daqui por diante não serão poucas as manifestações literárias, teatrais e
cinematográficas que, sob o prisma atual, seguirão o caminho já esboçado por Mario
de Andrade e Alcântara Machado.Ao cinema paulista cabe um lugar de imenso
relevo e liderança nessa fase renovadora”, concluiu.
Entrevista para Rogério Sganzerla. O Estado de S. Paulo. 23/10/1965.
Título: Luiz Sergio Person fala sobre o cinema e o mundo moderno
-- No decorrer na história, o homem burguês libertou-se de algumas das mais
ostensivas formas de autoridade. Atualmente, submete-se a uma nova autoridade, a
um poder anônimo, que vem torná-lo instrumento de um conformismo voraz. É
impedido de pensar e agir como entidade autônoma, a única atitude que lhe permite a
visão autêntica da realidade moral e econômica que o envolve. Entendi fazer de “São
Paulo S/A” um depoimento contra alguns dos mecanismos que conduzem à
automatização do indivíduo numa sociedade como a nossa, recém-chegada ao plano
de uma sociedade industrial. A maquinaria econômica ainda não está subordinada ao
330
bem-estar do próprio homem: faz dele um dente da engrenagem. Daí decorre a pedra
de um relacionamento autentico do meu personagem com as pessoas e coisas que o
cercam, daí sua inútil e desesperada busca de uma saída. Procurada e tentada através
de soluções artificiais, realmente liberadora, ela provocará fracassos absolutos.
-- Diga-me, Person: há profundas diferenças entre suas pretensões e o resultado final
nesta primeira longa-metragem?
-- Se há, também parece-me que existem controvérsias. Prefiro-me abster-me de
polêmicas. Em todo caso posso acrescentar com grande satisfação, em face das
reações, que o meu filme raramente foi objeto de indiferença, especialmente quando
às idéias, que tentei expor. Mesmo os mais preocupados com o seu aspecto formal
não deixaram de mencioná-las de um modo ou de outro. Sem querer instalar-me
numa posição cômoda, acho que isso pressupõe um resultado positivo. Acredito na
importância da participação do cinema brasileiro em nossa realidade – e isto o filme
parece suscitar.
-- Acho perfeitamente visível a ascendência “italiana” do seu cinema. Fellini, Petri...
A preocupação pelo meio-ambiente, relacionada com um personagem central, a
desintegração do espaço e tempo em função exclusiva desta personagem, a expressão
de uma angústia social... ou sociológica...
-- Seja por minha formação cinematográfica, seja por necessidade de expressão e
comunicação com o espectador – a quem principalmente o filme se destina – eu não
poderia deixar de revelar influências diversas como as de Resnais, Fellini, Antonioni
e outros. O que em nenhum momento me preocupou. Acredito que na medida que se
pode ser autor no cinema, e não simplesmente um pesquisador ou esteta, o problema
de um estilo pessoal nasce das próprias idéias que se quer exprimir. Será a forma
dessas idéias que dará o estilo ou mesmo os vários estilos de um mesmo realizador.
Contraponto, narrativa linear, corte rápido, “flashbacks”, plano-sequência,
expressionismo, antonionismo – tudo é válido. Uma das maiores qualidades do
cinema moderno é não ser purista, que quer dizer: ser livre.
-- Os “flashbacks”: tem por intuito revelar o personagem ou uma situação social? O
seu intuito...
-- Têm por função as duas coisas: primeiro, uma economia na estrutura narrativa,
pois o acumulo de fatos que o filme pretende mostrar dificilmente suportaria uma
seqüência linear de acontecimentos. Segundo, porque se prestava melhor do que
qualquer outra solução para acompanhar os múltiplos desnorteios e vacilações do
personagem principal.
-- Não sei, mas a mim o filme parece pessimista...
-- Há diversos modos de encarar o pessimismo. Aqui entra um problema de difícil
debate numa simples debate entrevista. De chofre eu diria que sim, que o filme é
pessimista. Mas, pessimista em relação a quê? Sinto-me debruçado sobre minha
época e para mim o cinema não é apenas um meio de contemplá-la silenciosamente.
Tentei investigar alguns dos problemas que afligem nossa sociedade, compondo-se
com ela num “status quo” irremediável – o que por si equivale a dizer não ser esta
uma visão pessimista das coisas. Se o personagem retorna a São Paulo e ao que tudo
indica, recomeça sua vida em moldes idênticos ao anterior, não é por minha vontade,
pelo meu ceticismo ou minha aceitação do fato. Mas tinha que constatar e obrigar o
espectador a refletir sobre essa condição humana, indesejável mais real. Não
competia ao filme apontar soluções, indicar um caminho melhor, revelar nova
perspectivas. Seria pura demagogia.
331
Entrevista para Luiz C. Oliveira. Jornal do Brasil. 28 /11/1965.
Título: Person e a má consciência da burguesia.
“Estou na cidade grande e sou um homem na engrenagem”.
Carlos Drummond de Andrade
-- Para mim o cinema é a melhor maneira de expor problemas, de mostrar ao homem
o que ele realmente é, um ser formado por uma série de fatores estranhos à sua
personalidade, a seus desejos, a si mesmo e que só toma consciência dos fatos muito
tarde e, por isso, se submete. Eu não prego nada, exponho, me disse há alguns dias
Luiz Sérgio Person, diretor de São Paulo S.A., durante um almoço muitas vezes
adiado, no qual o principal prato foi o cinema em si, os motivos pelos quais julgo o
seu filme o mais honesto já feito sobre São Paulo e um dos melhores do novo cinema
brasileiro e porque discordo de algumas de suas idéias sobre o cinema – indústria e
arte.
Person – que protesto fazer São Paulo S.A. exatamente como ele foi feito
“com todas as influências de Resnais, de Godard, de Fellini e do modo como acaba”
– apenas conta que não crê na possibilidade de o cinema, pelo menos num futuro
próximo, mudar alguma coisa:
-- Cinema, como diz Gustavo Dahl, e eu gosto sempre de citar essa frase, é a
má consciência da burguesia e é exatamente por esse motivo que eu não gosto de
muita coisa que você ex-crítico, gosta em cinema. O Visconti de depois de La Terra
Trema, de Il Lavoro, de Il Gattopardo, de Rocco e seus irmãos, tudo isto, por
exemplo. Eu acho falso o sujeito condenando a aristocracia ou qualquer outra coisa
de um modo nostálgico, como se estivesse dizendo: “Vejam como a burguesia é
nociva e está desaparecendo, mas como eu sinto falta dela”.
-- Está certo, você discorda. – continuou o diretor – para você IL Lavoro é um
ato de consciência social, mas eu ainda prefiro a brutalidade de Francesco Rossi e a
sua ausência de falsidade.
-- Person, para mim, que gosto muito de seu filme, o personagem de Carlos
nada mais é do que o de um homem rendido à burguesia, incapaz de se libertar da
sua situação, do seu condicionamento, das facilidades da vida que é um surto
industrial que lhe proporcionou. Por isso ele volta para Luciana, imperfeita, incapaz
sequer de emprestar um sentimento de validez ao seu sacrifício, como gente. No
fundo Carlos – o dente de uma engrenagem segundo você – aspira ao
aburguesamento e a tornar-se um sargento da indústria, como Arturo.
O diretor de São Paulo S. A. discorda, rebate o argumento com outros e
aponta um fato a seu ver indiscutível no filme: “Carlos volta sem saber por que; ele é
um derrotado inconsciente, como inconsciente é a sua fuga e pouca a sua percepção
dos fatos que o rodeiam esmagam”.
A uma pergunta, Person ri e admite:
-- De fato meu pai é um homem que enriqueceu como surto industrial
paulista, na década passada. Ele sempre gostou de diamantes e, hoje, fabrica
instrumentos que levam diamantes. Mas Arturo é baseado, mesmo, em outras
pessoas. Há diversos fabricantes de peças em São Paulo, conhecidos por todos, cuja
carreira foi idêntica à do personagem do meu filme. Por isso, e por muitas coisas mas
não concordo com a sua afirmação de que eu mostro a ascensão para a burguesia, a
sua brutalidade, a desumanidade da cidade, mas no fundo minha condenação é inútil
é quase minha culpa. Eu não condeno, eu mostro e tenho consciência.
332
Luiz Sérgio Person não pretende continuar “explorando a temática de São
Paulo”. No momento almeja fazer um filme sobre o episódio dos irmãos Naves –
condenados por um crime que não haviam cometido e cujo verdadeiro culpado
apareceu mais de 20 anos após os irmãos terem sido presos. Um deles morreu na
cadeia, o outro ganhou uma indenização do Estado e comprou um caminhão.
-- Este filme – conta Person – mostrará a possibilidade de lutar com as armas
legais contra a injustiça e a brutalidade. Não será político, como você pensou, mas
apenas humano e sério. Você é mineiro, mas é horrível a visão mineira e de parte da
sociedade do País sobre os casos dos irmãos Naves e outros idênticos. Você pode não
acreditar, mas o advogado deles – um sujeito honesto que lutou pela liberdade dos
dois até o esgotamento de todos os meios possíveis – me disse, quando o conheci que
a prisão foi uma maneira de os dois irmãos se santificarem e que isso não aconteceria
não fosse a injustiça.
-- Talvez você esteja certo ao dizer que eu faço, como Carlos, parte da
engrenagem, mas o cinema faz parte do complexo industrial e, assim, ele poderá
ajudar o povo, até na elevação do seu nível de vida. Por isso eu acho São Paulo S.A.
um bom filme, embora, não goste tanto dele como você. Ele mostra a vida e o
complexo industrial perdida e um pouco falsa pelo excesso de consumo ao
operariado em ascensão.
O que é feio nele, o é na realidade e eu gosto disto.
Entrevista para E.S. e M.B. . Revista Filme 66 (Porto Alegre). Publicação da
Federação Gaúcha de Cineclubes filiados. Primeiro semestre de 1966.
Título: O cinema moderno não deve concentrar-se numa opção de forma.
“São Paulo S/A”, que obteve o prêmio de público num recente festival realizado na
Itália, marca início de uma nova fase para o cinema brasileiro. Concentrando a ação
do filme na cidade de São Paulo, Person medita os influxos e as conseqüências da
máquina industrial no homem moderno. Diz Person: “Na verdade procurando evitar
um método que me levasse a uma tipologia de personagens, procurei o máximo de
exemplificação do homem paulista. Houve, realmente, uma concentração nos
personagens. Daí eles, às vezes, aparecem como tipos que, racionalizados, sugerem
idéias sintéticas. Assim, cada um deles tem uma significação especial, uma função
predeterminada no filme, ainda que eu não tenha fixado rigorosamente,
minuciosamente, o seu itinerário em cena. Aliás quando me perguntaram, por
exemplo, em que personagem repousa o meu ponto de vista, repondo que nenhum
deles é o porta-voz do autor. Minhas opiniões estão dispersas pelo filme, pelos
personagens e pelo cenário, a cidade de São Paulo uma das principais figuras do
filme”. Comentamos, então, que um negativismo bastante acentuado parecia toldar o
final da fita, impedindo uma possibilidade de crítica do autor. “Não, na verdade
aquele fim, na aparência não é o suficiente para uma verificação crítica de minha
parte. Já fui mesmo acusado de ter construído um filme por demais pessimista, mas o
que eu desejava, terminando o filme daquela forma, era como que coagir o
espectador a uma atitude perplexidade que o levasse a reflexão. Se eu lhe desse uma
possibilidade, abrindo uma brecha para a solução da angústia do meu personagem
Carlos (Walmor Chagas), eu creio que a reflexão não se efetuaria. Não haveria
motivação, provocação de parte do filme. Chego mesmo a dizer que eu não faria este
filme, não fosse pelo seu final porque é a partir daí que se processará o debate”.
333
Discordamos de Person , a essa altura objetando que o ideal seria que Carlos
questionasse durante o transcorrer da ação. Não que ele tomasse tal atitude no plano
racional, mas sim imerso na sua situação e nos seus termos. Porque nos parece que,
durante grande parte do filme, é a solução exterior ao personagem que funciona.
Dessa forma (a câmera solucionando pelo personagem) a interioridade desses
personagens é embaciada, obscurecida. “Isso, evidentemente, - responde Person –
leva o filme a uma certa dualidade: por um lado ele é interiorizador, por outro é
objetivo. De fato, uma questão que não foi bem equacionada no filme, é essa. De um
lado eu busco mostrar a interioridade de Carlos, sua angústia etc., de outro,
aparecem, num plano mais geral, o problema do seu marginalismo face a grande
cidade: isso implicou numa certa dicotomia que não encontra bem seu justo termo”.
“Em São Paulo Sociedade Anônima, continua Person, uma questão que tem
preocupado muita gente, é o da elucidação de certos símbolos que a fita contém.
Olha, eu confesso que não gosto das coisas obscuras. Procurei mesmo subtrair todo o
simbolismo que apelasse para a sutileza, se bem que eles estavam presentes, em
dados momentos. Vocês a pouco falavam da agressividade, da quase selvageria,
daquela parece do apartamento de Ilda diante da qual se coloca Carlos quando a
encontra morta. E’ um exemplo, sem dúvida. Mas por outro lado, há uma série de
alegorias muito simples, quase chãs, como é o caso da fábrica onde Carlos trabalha.
Note-se que, no geral, o filme mostra um homem sufocado por uma engrenagem
industrial ofensiva que o angustia. E note-se também que esse mesmo homem
trabalha numa fábrica de engrenagens e isso muitas vezes rouba no filme o seu
equilíbrio linear. Mas eu não me preocupei com isso”.
Luiz Sérgio fala então do seu estilo: “O estilo, para mim, vem sempre determinado
pelas idéias, porque me afasta daqueles cineastas que procuram uma linguagem pura.
E’ justamente aí que eu vejo uma das características fundamentais, dominantes, do
moderno cinema: ele não dele concentrar-se rigidamente numa opção que forma
prefixada. Verifica-se, por exemplo, que passo de plano seqüência, para seqüências
de cortes rápidos, abruptos, daí para planos resnaisnianos, diria, e assim por diante.
Isso advém do fato de que eu não faço decupagem, em absoluto. Muitas vezes eu me
dirigi aos locais de filmagem, com toda a equipe, sem saber mesmo de que maneira
ia tomar as cenas. E as soluções todas, eu as encontrei no momento. É o caso da
seqüência em que Darlene Glória visita a sua mãe no asilo. Aqueles travellings de
afastamento e aproximação, foram todos “intuídos” naquele instante. Isso porque eu
sempre procuro uma adequação ao cenário que vou filmar. Assim, é a recordação do
carnaval de Ilda – resnaisnianas, como eu chamo -, o refinamento antonionesco de
certas cenas na mesma Ilda, e etc. Embora, é claro, eu tenha obedecido ao argumento
quase que fielmente.
Observamos então, que “São Paulo S/A”, possui uma aceleração no ritmo que prende
o espectador sobremaneira: “eu acho que um recurso cinematográfico que já está
bastante desgastado, aceite-se ou não, é o das narrativas lentas. É um fenômeno
psicológico interessante. É por isso que eu não recomendo Antonioni (embora goste
de dois dos seus filmes). O que acontece nesse caso é que, mesmo saindo do cinema
detestando o filme, fica-se sempre com uma idéia de sedimentação da imagem na
memória, em função da sua vagarosidade. Mas isso, repito, é um recurso fácil de que
eu procuro fugir. Porque é muito mais difícil de algo ser gravado num ritmo
acelerado, como acontece em “São Paulo S/A”. Aliás, esse filme teria durado duas
horas e vinte. Mas, por razões comerciais, eu me vi na contingência de cortar
seqüências inteiras. Seria demais para o público”.
334
No plano nacional, Person vê com bons olhos o voltar-se do cinema novo para os
centros urbanos. Como já havia declarado à imprensa, crê estar nas grandes cidades a
possibilidade de desenvolvimento do cinema brasileiro.
Luiz Sérgio Person pretende continuar realizando, mas observa que os problemas de
produção (financiamento) num país subdesenvolvido como o Brasil, são quase
insuperáveis. “Se eu realizasse esse filme hoje, por exemplo, teria que despender o
dobro da verba gasta na época. Isso que ela foi baixíssima se levarmos em conta a
quantidade de filme usado, o pagamento dos atores, da equipe técnica, etc.”
Nos disse ainda Person que, mesmo tendo obtido sucesso de público (e, portanto
financeiro) o produtor de “São Paulo S/A” não continuará empregando capital na
produção de filmes. Num país de instabilidade econômica como o nosso, afirma, o
emprego de capital na nascente “indústria” cinematográfica brasileira pode parecer
temeridade, principalmente quando o filme tem pretensões que transcendem o
simples âmbito do comércio.
“De qualquer forma, acredito que o nosso cinema tenha dado a arrancada inicial
mórmente agora que esta sendo muito acreditado no exterior, na Europa
principalmente. Com sinceridade, não esperava o prêmio que “São Paulo S/A”
recebeu na Itália. Isso, sem dúvida, é um atestado de que já temos, no Brasil uma
meia dúzia – não diria de “bem intencionados” porque não gosto do termo – mas,
uma mesma dúzia de cineastas realmente capacitada a fazer um grande cinema
nacional”.
Luiz Sérgio Person quando de sua estada em Porto Alegre cumpriu um exaustivo
roteiro de programações que visavam o lançamento de seu filme; entrevistas,
sessões especiais, etc. extremamente cansado no seu último dia em nossa capital,
Person, demonstrando uma boa vontade e um espírito de colaboração
verdadeiramente extraordinários, concedeu-nos uma longa entrevista a respeito do
cinema brasileiro, seus fundamentos e perspectivas, da qual (e por questões
técnicas) publicamos apenas uma parte, justamente aquela que se relaciona mais
diretamente por seu filme “São Paulo S/A”.
Entrevista para Alfredo Sternheim. Revista Filme CulturaAno l – Nº 5. Julho-
Agosto, 1967 (durante o lançamento do filme O Caso dos Irmãos Naves).
Título: Person e o Cinema Paulista
Filme Cultura – Como se coloca no panorama cinematográfico brasileiro?
Luiz Sérgio Person – Eu e todos os realizadores paulistas nos encontramos, de uma
forma ou de outra, isolados. Marcamos, assim, uma característica do cinema em São
Paulo: cada um tem um cinema desvinculado do outro. Cada filme paulista marca
uma atitude diferente diante do cinema. Falo isso pensando, por exemplo, em um
filme atual do qual vi trechos recentemente. Aliás, esse filme tem um título bastante
significativo diante dessa idéias de isolamento: é A Margem, de Oswaldo Candeias.
Todo autor, aqui, busca um tipo de cinema que consciente ou
inconscientemente leva a uma pesquisa, a uma temática diversa de outro realizador.
Não há – eu não diria uma unidade – mas, uma cera equivalência de idéias, de
aspirações, alguma coisa que pudesse ser o elemento comum de definição do cinema
paulista. Todos eles o são na medida em que se encontram marginalizados e através
dessas individualidades diversas, de objetivos contrários, formam um todo. A
Margem, por exemplo, é um filme inesperado, totalmente diverso de tudo o que já se
fez aqui em São Paulo, da mesma forma que São Paulo S.A., creio e alguns outros.
335
Enfim cada filme traz uma amostra de isolamento, cada realizador tem
características próprias de realização. Se quisermos verificar isso através de dois
exemplos de continuidade com propósitos totalmente opostos, temos os casos de
Mazzaropi e Khouri, um a procura de faturamento, atendendo a um gosto do público,
o outro como expressão máxima de um cinema individualista, de preocupação
existencial e estilística. O Khouri, além de manter-se sempre fiel à mesma temática,
procura levá-la as últimas conseqüências formais. E nesse sentido à medida que vier
a dar um passo, corre o risco de desligar-se de seu público.
Através desses dois exemplos, encontramos uma ausência de correspondência
em outros filmes que aqui se realizam. Mazzaropi não tem nenhum seguidor,
nenhum outro tipo de filme que se aproxime dele. Se alguém parte para uma
realização comercial, não há equivalência com Mazzaropi. A prova é José Mojica
Marins. Seu gênero é o “horror”, mas, a intenção de realizador é a busca de um
cinema comercial.
Faço parte desse isolamento que há em São Paulo e mesmo nos mais ativos,
“tipo khouri” ou “tipo comercial”, dão assim o tom do cinema paulista. E veja que
tudo isso se reproduz até em curta-metragens como Perto do Coração Selvagem,
onde deveria haver uma influência de Khouri. Mas não há. A não ser a presença de
um intérprete de suas fitas, Mário Benvenuti, não há nada que se configure como
correspondência do cinema de Khouri, embora seja de seu ex-assistente Maurício
Rittner. E tomando a trajetória de Benvenuti, o veremos em A Margem, uma fita e
um trabalho totalmente opostos aos outros. Trata-se de uma película estranhíssima.
Filme Cultura – Existe alguma relação entre O Caso dos Irmãos Naves e São
Paulo S.A.?
Luiz Sérgio Person – Primeiro, existe uma série de elementos. Afinal são do mesmo
realizador, há o mesmo tipo de preocupação, como encarar o modo de filmar. Nesse
sentido há uma grande correlação entre as duas fitas que se libertam de um aparato
técnico, de filmagem em estúdio por exemplo, que caracteriza aquilo que eu chamo o
falso surto industrial, buscando em vez disso um cinema de meios técnicos
reduzidos, de filmagem “in loco”, enfim, um cinema sem a “entourage” industrial
que caracteriza os mesmo filmes “pós – Vera Cruz” e que hoje praticamente só
persiste em Khouri. Até mesmo a produção da nova fita de Biáfora, O Quarto, ao
que consta totalmente diversa de Ravina.
Portanto, nesse sentido há realmente uma correlação. Mas, a preposição
inicial é totalmente oposta. São Paulo S.A. é um filme feito de uma experiência
pessoal, de ambições e frustrações individuais. Conquanto eu negue a afirmação de
muitos críticos – que de certa forma eu teria feito um filme autobiográfico – admito
que sem esse “background” da minha vida não teria havido São Paulo S.A. O filme
nasceu de uma vivência justamente dos anos em que eu estive afastado do cinema, da
TV e do teatro. Foi num contado com a atividade industrial da cidade que tomei os
elementos para fazer a fita.
O Caso dos Irmãos Naves parte de um fato, uma situação, de um
ambiente, totalmente estranhos a mim. O caso me impressionou vivamente em 1956,
a primeira vez que li algo sobre o assunto antes mesmo de pensar em fazer São
Paulo S.A.. Jamais esta história teria relação com o filme que agora foi realizado, se
tivesse sito feito antes. Seria então mais ou menos um relato policial, um suspense.
Ao contrário do meu filme anterior, esse tem uma objetividade essencial. O Naves é,
assim, uma abstração de todo o conteúdo subjetivo; anseio e frustrações individuais
deixam de existir. Ao contrário de São Paulo S.A., não há personagens condutores.
336
Há uma inversão de estrutura, completa. Há mesmo uma obsessão de inversão, de
reviravolta estrutural.
Várias vezes fui acusado de oportunista, como se fosse ao gosto do momento,
como se fizesse cinema de acordo como o gosto vigente, como se eu fosse alguém
sem idéias próprias de cinema, de definição pessoal como cineasta. Talvez a
mudança de São Paulo S.A. para O Caso dos Irmãos Naves era eu poder chegar à
comédia. Estava mais interessado na comédia do que no filme sobre Roberto Carlos.
A meu ver, morre frustrado o cineasta que não faz comédia e musical.
Filme Cultura – Você se considera integrado no “Cinema Novo”?
Luiz Sérgio Person – Eu poderia dizer num tom meio sério, meio brincadeira, que
vejo como um caso engraçado sem muito sentido, essa necessidade de
enquadramento. Não posso dizer que faço parte de um grupo essa é a verdade. Há
pessoas que necessitam de uma religião, de uma idéia gregária para sobreviverem. O
próprio cinema que faço, o meio em que vivo de certa forma contrariam a idéia de
me considerar “cinema novo” ou “velho”.
De fato, concordo, meu primeiro filme foi encampado pelo “cinema novo”.
Mas – aí eu discordo – o “cinema novo”, seja pelo que realizou ou pelo que deixou
de realizar, negativa ou afirmativamente, o fez com grande alarde, representando um
momento importante de determinada época de aprimoramento cultural no Brasil.
Acho que sem o “cinema novo”, sem essa idéia inicial de “cinema novo”,
dificilmente colocaríamos em discussão ampla no Brasil o problema do cinema,
quebrando a dissociação cultural que havia.
Hoje, à certa distância da efervescência de então, pode se ver que houve uma
injusta supervalorização de certos filmes que nada tinham de novo ou notável e que
só pela ebulição reinante, pela promoção, é que ganharam destaque. Além do mais,
acho que o “cinema novo”, pelo menos como aquele movimento inicial não existe.
Equipe de O Caso dos Irmãos Naves – Produção: Lauper Filmes Ltda, M.C.
Produção de Distribuição Cinematográfica Ltda. * Distribuição: M.C. e P.D.C. *
Produtores: Glauco Mirko Laurelli, Luiz Sérigo Person * Direção: Luiz Sérgio
Person. * Argumento e Roteiro: Jean – Claude Bernadet e Luiz Sérgio Person. *
Documentado no livro “O Caso dos Irmãos Naves”, de João Alamy Filho. *
Fotografia e câmera: Oswaldo de Oliveira. * Edição de montagem: Glauco Mirko
Laurelli. * Direção de arte: Sebastião de Souza e Person. * Assistente de direção:
Sebastião de Souza. * Gerente de Produção: Sérgio Ricci. * Elenco: Anselmo
Duarde, John Hebert, Juca de Oliveira, Raul Cortez, Sérgio Hingst, Lélia Abramo,
Cacilda Lanuza, Júlia Miranda, Hiltruz Helz, João Quincas, Milton de Lima Filho. *
Filmado em branco e preto, película Gevapan 36. * Laboratório : Rex Filme S.A. *
Som: Odil-Fono-Brasil.* Projeção: 92 minutos.
[Numa entrevista de 2006, para o site Estranho Encontro, o crítico e cineasta Alfredo
Sternheim contou duas curiosidades sobre as entrevistas que fez com dois ícones do
cinema paulistano].
EE – Ainda na esfera jornalística, você teve participações antológicas na revista
“Filme Cultura”. Duas me marcaram em especial: as entrevistas com o Luiz Sérgio
Person e com o José Medina. O que você lembra dessas pessoas durante as
entrevistas, como elas interagiam, qual era o clima no ar?
AS – Duas grandes pessoas. O Person era exuberante, sério e divertido ao mesmo
tempo. Me arrependo, por um equívoco meu, de não ter dado atenção à
possibilidade de ser assistente dele em “São Paulo S/A”. Fiz uma confusão, achava
337
que outra pessoa, antipática, era ele. O Medina, sinto orgulho de ter colaborado
para uma pequena fase de brilho em sua velhice. Foi encantador. Almoçamos juntos
e depois fiz a entrevista em sua casa na rua França Pinto, onde morava com os
netos. Um sujeito alegre, um grande cineasta, seu “Fragmentos da Vida”, de 1929, é
maravilhoso.
Depoimento para Estado de Minas. 24/09/1967 (durante o lançamento do filme O
Caso dos Irmãos Naves em Belo Horizonte).
Título: Um depoimento de Person.
Quando apresentei S.P.S.A., dentro e fora do Brasil, a par do sucesso de público e
uma série de críticas favoráveis, não faltou quem dissesse que eu havia feito um
filme acadêmico, pseudo-moderno, um dramalhão camuflado por uma complicada
estrutura narrativa que visava despistar a sua mediocridade. Houve mesmo quem me
acusasse, e gente de uma certa consideração, de haver dado um certo acento
alienado,niilista, insignificante ao final do filme. Isso, se de fato aconteceu,
contrariou as minhas mais modestas pretenes. A crítica presente ao Primeiro
Festival Internacional do Novo Cinema, realizado na Itália em 1965 (onde o filme
ganhou o prêmio do público), na maioria constituída de jornalistas não
especializados e uma capela de ‘connaisseurs’ do cinema jovem, salvo poucas
exceções, atacou o filme quando não o premiou com calculada indiferença. Para
quem, como eu àquela época, dormia com o pensamento voltado a qualquer crítica
do tipo pretensamente moderno, isso foi realmente um pesadelo. Não se faz
impunemente um filme de idéias, visando conquistar o grande público. Sobretudo
quando essas idéias vêm revestidas de uma aparente banalidade, quando não se foge
da banalidade para explicar o que é banal. O filme era para mim um longo processo
de raciocínio , executado através da observação do comportamento da classe média
da nossa cidade que, aos trancos e barrancos, não consegue sair de si mesma e
passivamente aceita o seu destino estéril. O final, ou melhor, as cenas finais do filme,
continham a conclusão desse processo. Os falsos finais do filme em que são jogadas
e devolvidas falsas soluções, até a apresentação do verdadeiro final em que não há
solução pela ausência de condições ao personagem, constituíam-se em que um
raciocínio desenvolvido, reduz-se aos seus elementos principais e deveria então ser
capaz de transmitir ao espectador, mediante a emoção nele suscitada, a longa
trajetória dos acontecimentos, uma compreensão de sua própria situação, da sua
própria incapacidade. Felizmente, trocando em miúdos, parece que isso foi
compreendido por uma parte do público, o que me fez não desanimar e continuar
insistindo no meu modo de entender e fazer filmes. É assim mesmo que vejo o
cinema. Um cinema cujo tempo presente seja a sua matéria e o seu fim. Um cinema
até anti-estético se for o caso, um cinema anti-eterno (pois o tempo não está para
catedrais góticas!), um cinema voltado à realidade presente, destinado a servir à
realidade presente sem moralismos de segunda ordem.
Há um bom tempo já, minha atração pelo cinema não tem mais nada de fetichista,
como ao surgir vinte anos atrás. Tenho 31 anos, uns dez pelo cinema. Em princípios
de 1958, já havia dirigido um filme de longa-metragem. Desiludido com essa
primeira experiência de direção, creio que durante uns dois anos nem freqüentei
cinema. Veio a Itália.Em dezembro de 61, com uma câmera debaixo do braço e
alguns colegas que recém haviam entrado comigo no Centro Experimental de
Cinematografia, eu filmava pelas ruas de Roma, um curta-metragem. Era o
338
reinício.O primeiro passo em busca da autenticidade, de outra concepção de cinema,
ou seja, da vida.
Ao retornar da Europa em fins de 1963, encontrei uma outra realidade
cinematográfica no país. Meus anseios e possibilidades se integraram a essa nova
fase em que um cinema verdadeiramente brasileiro deixava de ser uma soma de fatos
ocasionais, de atitudes isoladas e começava a ganhar a dimensão de conjunto.
Embora já escrito na Itália, S.P.S.A. nasceu ai. É produto dessa nova fase.
Dificilmente tomaria, em outras circunstâncias, forma e vida assim como é.
De lá para cá, toda uma nova geração está fazendo filmes com uma certa
continuidade. Firmou-se uma autonomia fundada no cinema de autor, na afirmação
do realizador cinematográfico que, mesmo com possíveis reveses de toda sorte, não
voltará atrás. O ‘cinema-indústria’, o ‘cinema de papai’ felizmente está perdendo
terreno em nosso país.
Este ano, teremos mais de vinte filme de longa-metragem já feitos ou iniciados por
estreantes! É preciso ter consciência e pleno aproveitamento desse fato novo. Temos
de ganhar a batalha do público conquistando o mercado brasileiro.
Todavia, para que não sobrevenham severas frustrações, temos que atentar
seriamente para um determinado ponto: ‘a comunicação’. A certa altura da
efervescência do cinema novo brasileiro, falou-se muito em comunicação, no desejo
de encontrar-se com o público, mas na verdade continuou-se a fazer filmes para os
amigos, para a crítica, para os festivais (sobretudo para estes!), relegando-se a um
segundo plano o espectador comum a quem os filmes deveriam destinar-se, sendo
que em muitos casos, talvez isso se deu pelo temor inconsciente de confundir a
válida comunicação com o mero sucesso comercial. A comunicação com o público
deve ser afrontada com todos os riscos, sem medo de eventuais falências artísticas,
de certo modo irrelevantes no momento. O uso íntegro e extremo da sinceridade
pode ser o elemento detonador capaz de desfazer equívocos e o uso dessa sinceridade
deve ser exuberantemente aplicado ao presente em que vivemos. Em conexão estreita
com a nossa vida, com a nossa gente, com os problemas (ou distrações) que nos
cercam.
Há em uma parte de nossos teóricos e cineastas uma preocupação exacerbada pela
modernidade que deve ser melhor entendida, não pode vir desacompanhada de
sinceridade se quisermos fazer filmes que penetrem realmente em nosso público. No
Brasil, como em vários países em que recentemente surgiu um cinema jovem, como
Argentina e México, para citar dois exemplos próximos, procurou-se uma
modernidade de expressão que desamparada da respectiva sinceridade, sempre se
revelou postiça, em desacordo com uma possível realidade que se procurou
interpretar.
Sob esse aspecto, quase todo o cinema estrangeiro é estranho ao nosso, quando não é
também enganador.Em se tratando de modernidade,o que por aí, camuflado de
moderno, geralmente são filmes de um romantismo ultrapassado, cujas convenções e
clichês se escondem debaixo de um formalismo cintilante.
E muito de nossos teóricos e cineastas embriagados de ‘modernidade’ engolem a
pílula! O que explica o sucesso de Godard e o sutil desprezo por Francesco Rosi,
autêntico e incomparável mestre do cinema moderno.
Um cinema encravado em sua época! Um cinema em acordo ou desacordo com
ela, mas um cinema sincero a respeito dela! Questões de estilo e de influências
devem ser postas de lado. Em matéria de linguagem, o novo cinema brasileiro deve
adotar o vale-tudo. Quando se trata de exprimir idéias e comunicar essas idéias
339
eficientemente ao público, não se deve ter pudores de paternidade, nem medo de
parecer ‘out-of-date’. Por exemplo, se eu devo visualizar uma cena e dar a melhor
eficácia ao seu significado, não fico hesitações do tipo ‘isso pode parecer Buñuel’,
‘aquilo vai ficar Resnais’. Pelo contrário, conscientemente recorro a este ou aquele
filme, aproveito este ou aquele movimento de câmera, e misturo sem nenhum
constrangimento qualquer estilo, qualquer cinema. Filmar tem muito de uma ação
coletiva. O que é mais eficaz é o que conta. O estilo, um modo próprio, alguma coisa
a dizer, quanto se tem, sinceramente aparece. Um cinema jovem, um cinema que tem
e precisa dizer muito a respeito de sua época, só se deve preocupar com soluções
formais na medida em que elas possam servir à eficácia da comunicação. O resto é
formalismo entorpecedor !
“O caso dos Irmãos Naves” é assim, mais do que o anterior um filme de encontro. A
coerência comigo mesmo. Uma coesão íntima entre tudo o que penso e a necessidade
de transmiti-lo. Há muito que estou cansado de uma problemática de sentimentos, de
um cinema que por mais que contorne, cai sempre na ênfase amorosa. Um cinema
voltado a uma ordem de temas em que o problema do outro, a descoberta do próximo
tende sempre a se afunilar em torno de um esquema quase único, o do conflito
amoroso - sentimental – passional – carnal ou intelectual (como o introduziu de certa
forma Antonioni a partir de “L’ AVENTURA”). Essa temática, em todas as suas
variantes e disfarces, os melhores possíveis (“PIEROT LE FOU”) em particular a sua
especificação sutil ou concreta como problemática sexual, não leva a nada, não
satisfaz um propósito autenticamente moderno e renovador. A exploração
sistemática, concentrada, de um cinema fixado sobre o ponto de sensibilidade
máxima da ansiedade individual contemporânea, conduz quando muito a uma
exasperação da forma cinematográfica, a uma renovação de aparências sem nada de
substancialmente novo em extensão e profundidade.
Para mim, é tarefa precípua de nosso cinema sair do circulo restrito, dessa relação
minimizadora do mundo atual, com conflitos próprios de nossa civilização. É preciso
entrar em cheio em nossa realidade, desbastados enfim com a poeira ‘fin de siécle’,
romântica e obsoleta.
Se isso for logrado a par da aspiração sincera de comunicação, estaremos dando
verdadeiramente um grande passo em direção ao cinema presente que será, entre
tantos meios, uma via para o futuro aperfeiçoamento em profundidade do homem e
de suas condições de existência.
[O texto prossegue com observações sobre O Caso dos Irmãos Naves. Person afirma
que foi buscar uma história real do passado mas que tinha tudo a ver com o presente.
Diz que há filmes de ficção que ganham da realidade. E que tanto ele como o co-
roteirista, Jean-Claude Bernardet, em vez do documentário, optaram por dar forma
cinematográfica aos documentos, que nada foi inventado, e que permaneceram fiéis
até mesmo aos locais, para oferecer “um filme seco, simples, sem heróis e sem
brilho” e que fosse “um filme de idéias e de comunicação com o público”].
340
341
Anexo 4
PRORROGAÇÃO S.A.
Ou:
E se a Autopeças Carracci tivesse sobrevivido até o Milagre Econômico?
A LIVRE INICIATIVA
1) Música frenética, ruídos de sirene de fábrica e fundo de cidade.
Um plano de visão megalopólica de São Paulo. (Stock-shot de S.P.S/A.). Planos
diversos de fábricas modernas, estacionamentos de indústrias automobilísticas
repletas de veículos.
Planos em movimento de trechos da via Dutra e da via Anchieta. Entra off, o
discurso de Arturo.
ARTURO (off) -... O futuro tá aqui, meu velho, é a indústria
que vai decidir... São nossas máquinas, nossos tratores, nossos
automóveis, é tudo isso que dá força ao Brasil...Quem pensava
que este país podia produzir automóvel de uma hora para
outra?... Quem pensava que da noite pro dia, assim, de repente,
a gente ia ter mais de duas mil fábricas de AUTOPEÇAS
fabricando parafuso, carburador, maçaneta, tudo feito no Brasil
para carro brasileiro... Quem pensava, que acreditava na força
da LIVRE INICIATIVA BRASILEIRA?
QUEM? ... HEIN? .... RESPONDA? ....VAMOS!
Corte rápido para CLOSE de Arturo ar contrafeito, interrogando o espectador e
depois respondendo a si mesmo:
ARTURO – Pois é... Aqui tá um deles... É, eu mesmo, Arturo
Carracci, simples mecânico que depois de muito jeitinho pra cá
e muito jeitinho pra lá, umas vibrações pra cima, outras pra
baixo, e muito trabalho, mais muito mesmo, se tornou aquilo
que na época se chamou um “genuíno” EMPRESÁRIO
BRASILEIRO... um daqueles milhares que entraram pelo
cano...Um dos que foi na onda do MADE IN BRAZIL, FOR
BRAZIL ... sem ZZZZZZZ.
CORTE rápido para:
2) SALA DE REUNIÕES – INT. DIA
Arturo,em pé, na cabeceira da mesa de reuniões, confere uma lista de clientes e
interroga seus vendedores, sentados diante dele. As perguntas e respostas são
rapidíssimas.
ARTURO – Silva Jardim AUTOPEÇAS?
VENDEDOR UM – Não compra.
ARTURO Moto-Partes CACIQUE?
VENDEDOR DOIS – Só vende.
ARTURO – TABAJARA Peças e Motores?
VENDEDOR TRÊS – Compra mas não paga.
ARTURO – Marcelo Silva e Irmão?
VENDEDOR QUATRO- Não compra nem paga.
342
ARTURO- Moto peças ESTRELA?
VENDEDOR UM – Só compra importado
ARTURO Peças PIRATINI?
VENDEDOR DOIS– Só compra da concorrência estrangeira.
ARTURO Ubayara Peças?
VENDEDOR TRÊS – Só compra da concorrência estrangeira.
Arturo faz uma leve pausa como se arriscasse perguntar a seguinte. E depois
pergunta quase soletrando:
ARTURO – E a... PINKERTON POWER PARTS
CORPORATION?
VENDEDOR QUATRO – Só revende PINKERTON
POWER PARTS CORPORATION.
CORTE rápido para:
3) ALMOXARIFADO – FÁBRICA DE AUTOPEÇAS - INT . DIA
Arturo conferindo um livrão e fichas de estoque junto a um funcionário do
almoxarifado e outro homem com ar de puxa-saco que é o seu gerente.
Agitado, Arturo joga para o ar as fichas que já conferiu. Os outros dois aparam as
mesmas enquanto ele repete números:
ARTURO – 250 eixos PH3... 489 eixos de curva ZJD5, 757
tipos NHS temperado... 948 tipo WQR sem tempero... 3.584
engrenagens SJKL série 2.083? 3.584 engrenagens SJKL série
2.083, não é possível! Não é possível... 46.067 engrenagens
LSD, tipo F, série 48 – 093 ... não dá! Não dá! NÃO DÁ PÉ!
... Tô arruinado! ... Tô arruinado! Parou tudo! PAROU!!
Arturo joga todas as fichas para o ar e sai desabaladamente do almoxarifado.
4) USINAGEM – FÁBRICA DE AUTOPEÇAS – INT. DIA
TRAVELLING – Arturo caminhando em meio às máquinas e operários. Fala
sozinho, jeito alucinado, repetindo números e nomenclaturas que são abafadas pelo
barulho das máquinas. Ao fundo, a uma boa distância dele, caminha apressado o
gerente puxa-saco.
Quando Arturo passa adiante de um operário que manobra uma prensa, nota que o
indivíduo faz um gesto estranho a seu respeito para um outro colega. Arturo pára
mais adiante e se volta para averiguar do que se trata. O operário com as duas mãos,
referindo-se a Arturo, quer demonstrar que ele está meio - gira e para os dedos juntos
à cabeça parecendo o final do gesto uma indicação de corno.
Furioso Arturo avança para o operário. Início de briga. O gerente puxa-saco acode.
Seguram-se os contendores. “Deixa disso. Deixa pra lá.” , é o que se pode perceber
no meio da confusão. Talvez com o auxílio de outrem, o gerente segura Arturo com
força e incisivamente lhe diz qualquer coisa ao ouvido. Arturo esmorece e se afasta
rápido e raivoso, seguido do gerente.
5) ESCRITÓRIO DE ARTURO – INT. DIA
343
Arturo irrompe no escritório recompondo-se da briga, bufando.
Logo atrás dele, frenético, o gerente brada com voz semi-melíflua:
GERENTE – SUICÍDIO! ....SUICÍDIO! ... Simplesmente
suicídio! ...É isso que eles querem! É isso mesmo ...só faltava
um escândalo desse pra piorar de vez a situação...Devendo
cinco meses de salários atrasados, sem dar o aumento
prometido, devendo pra Deus e todo mundo você tem que ficar
quieto, Arturo...Você não pode abrir a boca...
Tem que ficar quieto!
Arturo não se contém. Remexe os papéis que estão em cima da sua mesa, brada, dá
murros:
ARTURO – A paciência tem limite! Não agüento mais! Não
agüento! Vou botar fogo em tudo! Querem ver a minha ruína?
Então vai ser a ruína de todo mundo! Boto fogo e me suicido...
Mas antes mato alguém! Ah, isso mato! Mato mesmo! Aquele
filho da mãe, por exemplo, aquele não escapa! Vai junto
comigo! Vai mesmo!
Com as mãos crispadas de ódio, Arturo inflama mais:
ARTURO – EU ESGANO ELE! EU ESGANO ELE!
ESGANO!
Um toque de telefone deixa Arturo em suspenso. Quase bêbado ele atende:
ARTURO: Alô!
Arturo transfigura-se. Sua fisionomia adquire um ar cordial e servil à medida que
fala:
ARTURO: Alô...Martins? ... Como vai? Como tem passado?
Sua senhora vai bem?... E as crianças?
CORTE
6) SALA DO GERENTE DE UM BANCO – INT. DIA
GERENTE – Vai pro pau, Carracci... vai pro pau! Dessa vez
vai mesmo... a paciência tem limite! O contínuo tá aqui do meu
lado pra levar os títulos pro cartório, a diretoria já autorizou!
7) ESCRITÓRIO DE ARTURO – INT. DIA
A fisionomia falsamente alegre de Arturo desmonta-se. Ele se torna grave e
suplicante ou mesmo pretensamente ofendido:
ARTURO – Martins, num brinca! Num brinca, Martins!
Gozação tem hora. O dia hoje já tá de amargar e logo voe
ainda vem de susto pra cima de mim? Logo você, o melhor
gerente de bando, o melhor amigo, o mais sábio compreensivo
propulsor da minha indústria: o que há Martins? Até você quer
me apunhalar: até tu Brutus?
344
8) SLA DO GERENTE DE UM BANCO – INT. DIA
GERENTE- Brutus uma pinóia! O discurso num ta
funcionando mais, Carracci. São 45 dias que você diz a mesma
coisa. Dessa vez não sou eu...é a diretoria. A diretoria exige!
E-XI-GE, entendeu?
Martins num gesto seco faz menção de bater o telefone.
9) ESCRITÓRIO DE ARTURO – INT. DIA
Arturo recebendo no ouvido o choque da batida do aparelho do outro.
O seu gerente está em frente, impassível. Os dois se entreolham um instante.
Arturo demonstra que não sabe mais o que fazer. Tenta remexer alguns papéis. Rasga
um talão de cheques.
O gerente, com voz firme, atitude diversa das anteriores, fala:
GERENTE – O Mr. Thompson voltou a insistir. Quer almoçar
com você...Hoje ainda, se possível.
Nova ira de Arturo se levanta como se quisesse investir sobre o outro.
ARTURO – Se você me fala mais uma vez nesse gringo , com
ou sem salário atrasado, com ou sem título no pau, EU
ESGANO VOCÊ TAMBÉM!!...Num têm almoço! Num tem
conversa! Minha fábrica eu num vendo pra eles, num vendo!
Cheguei até aqui sozinho. Dei murro em ponta de faca pra
chegar onde estou! Sou livre de fazer o que eu quero,
entendeu? Sou livre! E sou mais brasileiro que coe devia ter
vergonha na cara de me propor esse negócio! Tenho brio!
Tenho orgulho! Foi com estas mãos que construí tudo isso pra
deixar pros meus filhos, não vai ser agora por causa de mais
uma crise que eu vou entregar tudo de mão beijada pros
estrangeiros! Não entrego, não! Eu sou de ferro, meu velho, e
sou livre pra fazer o que bem quiser! Sou livre! A crise passa!
A fábrica fica comigo!
Novo toque de telefone. Arturo interrompe a frase que ia dizer a seguir. Pela sua
atitude depreende-se que deseja que o outro atenda ao telefone. Segundo toque. O
gerente atende. “Alô...um momento”. Faz um sinal para Arturo indicando que ele já
sabe de quem se trata. Arturo atende:
ARTURO: Pronto.
10) APARTAMENTO DE ANA – INT.DIA
Recostada na cama ou num sofá, Ana fala em tom pausado, sensual e vulgar ao
mesmo tempo; sem mais delongas:
ANA – Já avisei, Arturo... Já avisei... Quem avisa amigo é...
Dou escândalo. Dou um daqueles que daqui a cem anos você
vai se lembrar... Você me conhece.
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Ana apanha uns carnês e outras contas da cabeceira e, balançando os papéis, continua
suas ameaças:
ANA – Tão todas aqui na minha mão...A quinta prestação do
VOGUE, a sexta da máquina de lavar roupa, a décima quinta
da quinzena dos tapetes, sabe qual é, não? Aquela de quando a
gente mandou botar carpete no apartamento em que você
achou que economizava pagando assim...Além, disso o
imposto predial já venceu até com multa... E olha, de jeito vou
ficar sem telefone. Acabaram de avisar que agora cortam
mesmo. Você que sabe. Manda agorinha, agorinha, o dinheiro
todo ou a guerra vai começar...Tchau.
Ana bate o telefone.
11) ESCRITÓRIO DE ARTURO – INT.DIA
Com um cigarro na boca, fumegando que nem locomotiva, lívido e perplexo, Arturo
parece contar nos dedos os números e importâncias que Ana lhe relatou pelo
telefone. Permanece com o olhar distante. Procura alguma idéia. Por fim, fala meio
para si, meio para o gerente:
ARTURO- O telefone...O telefone...Preciso dar um jeito pelo
menos no telefone...Sem telefone ela vem aqui...OU VAI LÁ
EM CASA!...Vai dar o maior bolo. Minha família! Meus
filhos! Não! Que escândalo! Preciso dar um jeito, preciso dar
um jeito no telefone! No telefone, pelo menos!
Mudando bruscamente de atitude, Arturo pergunta com displicência para o gerente:
ARTURO – Quanto é que você tem no bolso?
O gerente se espanta :
GERENTE - QUEM!? EU?!...Você tá pensando que vou dar o
último dinheirinho que me resta pra pagar o telefone de sua
amante? Ta ficando louco?
Arturo se levanta e levanta para o gerente a fim de lhe tirar o dinheiro na “marra”. O
outro começa a se esquivar. Arturo se torna cada vez mais ameaçador.
ARTURO – Vamos... Num tem conversa...Vai me dar esse
dinheiro aí....Vai me dar! Eu preciso desse dinheiro!
GERENTE – Chega pra lá, Arturo...Chega pra lá...Você
enlouqueceu... Chega pra lá...Quem dá escândalos agora sou
eu...quem....
Os dois volteiam pela sala. Louco, demente, furioso, Arturo persegue o gerente que
chega a passar por cima da mesa. Finalmente Arturo agarra o gerente num abraço
estrambótico. Os dois se debatem. Ou por efeito de cócegas, ou por inclinação
pederástica, o gerente começa a soltar uns gritinhos meio-histéricos. Os dois
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agarrados e Arturo tentando arrancar o dinheiro do gerente. Corte. Escancara-se a
porta.
Surge a mulher de Arturo com um filho ao colo e mais dois colocados a sua saia. Um
deles chora. Diante do que vê, a mulher explode num tom vulgar:
MULHER – QUE VERGONHA! QUE VERGONHA! Agora
até cum home...! Num bastava a secretária! Que vergonha,
meu Deus! O mundo tá perdido!
Os dois homens imobilizados na estranha posição. A mulher avança. Arturo solta o
gerente. A mulher lhe vira um violento tabefe. Arturo reage e levanta o braço para
impedir o segundo. Tenta impor a sua autoridade:
ARTURO – Péra aí, Domingas! Alto lá. Assim também não.
Que bobagem é essa! Para de dizer besteira na frente das
crianças...
Arturo recompõe-se e procura um revestimento de dignidade:
ARTURO – É esporte! Agente tava praticando um esporte
novo...Um esporte japonês que vai na base do grito e do
amarra aqui, dá lá...
Para salvar a situação o gerente acrescenta:
GERENTE – É sim, dona Domingas. A senhora ta fazendo mal
juízo...
MULHER – Mal juízo, é? Eu bem que desconfiava do teu
jeito, rapaz! Depois a gente vai acertar as contas. Vim aqui por
outra coisa agora. Olha o teu filho, Arturo, olha bem pra ele.
Arturo se volta assustado para o filho que não para de chorar. A mulher continua:
MULHER – Vâmo, conta pro teu pai o que te aconteceu lá na
escola, conta pra ele.
Arturo se abaixa para abraçar o menino, pressuroso e aflito:
ARTURO- O que foi, filhinho, o que foi? Te bateram? Te
maltrataram? O que foi que te fizeram? Conta pro papaizinho,
vamos, conta!
Em meio ao berreiro o menino consegue falar:
MENINO - ...Chamaram você de caloteiro...disseram que você
é caloteiro...caloteiro...
Arturo se levanta indignado
ARTURO - CALOTEIRO?! EU!? Me chamaram de
caloteiro?! Quem foi que disse isso que eu mato, quem foi?
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A mulher num deboche corta a onda do marido:
MULHER - O colégio inteiro, seu idiota! O colégio inteiro
porque o menino hoje não pôde entrar na aula. Alguém
assoprou que você não paga as mensalidades há mais de três
meses...Caiu no ouvido das crianças...gozaram teu filho...e
você me escondeu tudo, tudo! Você num toma jeito mesmo,
Arturo!
Nova atitude de brio e indignação de Arturo. Mais veemente ainda:
ARTURO – Vou lá tomar satisfações! Isso não vai ficar assim!
Vocês vão ver, meu filho! Vou lá agora! Acabo com aquele
colégio vagabundo! Vou!
Arturo, antes do fim da última fala, faz menção de querer sair. Para a fala no meio,
de boca aberta. Fica paralisado. O braço levantado no ar. Entra a música sensual e
ritmada.
Porta do escritório. Com uma estola imitação – Vison – está postada no batente a
figura loira e vagabunda de Ana, agitando ao som da música o maço de contas e
carnês.
Outro flash de Arturo na mesma posição anterior. Sobre a música, entra o som
estridente da sirene da fábrica. Vai sumindo a música. Fica só a sirene e entra num
crescendo o coro compacto de:
CÔRO: (OFF) - ... GREVE! GREVE! GREVE! GREVE!
O grupo enfrente a Arturo torna-se perplexo. Ninguém se mexe nem sabe o que
fazer. Até mesmo Ana permanece indecisa e surpreendida.
Arturo vê no crescente clamor da greve a sua tábua de salvação. Abaixa lentamente o
braço e olhando para a CÂMERA começa a esboçar um sorriso, numa expressão de
alívio. O grito compacto dos operários cresce até dominar a faixa sonora:
CORO (OFF) - ... GREVE! GREVE! GREVE! GREVE!
De Arturo, corta para:
12) USINAGEM – FÁBRICA DE AUTOPEÇAS – INT.DIA
PANORÂMICA ou TRAVELLING – A fábrica deserta.
O coro some lentamente, sem que se veja ninguém no cenário.
13) SALA DE REUNIÕES – INT.DIA
Arturo, à cabeceira da mesa, acaba de assinar um documento e passa o papel para
frente.
Diante dele então quatro homens estanhos, trajes não-brasileiros, com óculos
escuros. O papel é examinado por todos. O último termina de olhá-lo e coloca
finalmente de uma pasta enquanto sorri e diz para Arturo:
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HOMEM – Enfim, Arturo, você se convenceu de que o que é
bom para nós... é bom para você.
Arturo tem uma expressão cômica e ao mesmo tempo cética de assentimento, como
se dissesse “e como...”
Os homens se levantam e saem sem dizer nada.
Arturo fica diante da mesa vazia, de olhar vazio. Apalpa a tábua da mesa como se
quisesse fazer alguma coisa ou tomar uma resolução. Suas intenções parecem
esvaziar-se. Por fim, Arturo apanha o telefone que está numa mesinha ao lado. Disca
um número. Atendem. Ele começa a falar:
ARTURO – Tudo ok...Sim, claro...ok...o Mr. Thompson
acabou de sair daqui...é...até que são simpáticos...A principio
parecia difícil...mais não...O mundo é um só...boa
gente...precisa ver como é que eles se despediram...hein? É... é
uma boa idéia...Aonde?...Que engraçado! O Mr. Thompson
um dia quis me convidar pra ir lá... às onze? Eu te apanho...
Ok, baby. Tchau...
Arturo desliga o telefone.
14) NIGHT-CLUB MOUSTACHE – INT.NOITE
Ritmo frenético de ié ié ié.
Arturo e Ana dançando alegremente.
FIM
349
Anexo 5
PROMOÇÃO:
fotos e textos de divulgação
Material para a imprensa sobre São Paulo Sociedade Anônima
350
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352
353
354
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