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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
Ana Beatriz Bueno Ferraz Costa
Revista Gula: a formação do gosto na construção discursiva
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2009
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP
Ana Beatriz Bueno Ferraz Costa
Revista Gula: a formação do gosto na construção discursiva
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
sob a orientação da Profa Doutora Ana
Claudia Mei Alves de Oliveira.
Mestrado em Comunicação e Semiótica
São Paulo
2009
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Banca Examinadora
_____________________________________
_____________________________________
_____________________________________
Dedicatória
Para Maurício Waldman
ponte segura sobre o abismo
Para os meus pais e avós
que me ensinaram a olhar o horizonte
Agradecimentos
À minha orientadora Profª Drª Ana Claudia Mei
Alves de Oliveira, pela perseverança em me
acompanhar na busca da construção dos
muitos sentidos ao longo desse trabalho.
À Anamelia Bueno Buoro,
pela insistência nos caminhos da semiótica.
Aos colegas e amigos de discussão do CPS,
pelos encontros fecundos.
Aos professores e colegas da PUC,
pelas aprendizagens ao longo dos cursos.
À equipe da revista Gula, pelo carinho e
prontidão para disponibilizar os exemplares.
À Cida, pelas informações valiosas e apoio
fundamental nos trâmites burocráticos.
Ao Pantufa e à Pituca que cautelosamente
vigiaram meus livros durante toda a pesquisa.
Ao CNPQ pelo apoio financeiro.
Resumo
A pesquisa intitulada "Revista Gula: a formação do gosto na construção
discursiva” visa compreender como são construídos os discursos contemporâneos
sobre alimentação e como estes são elaborados de modo a formar os gostos dos
sujeitos. A referência teórica desse estudo é a semiótica discursiva, especialmente
suas contribuições para uma sociossemiótica do gosto, com o estudo dos hábitos e
dos estilos de vida. Assim sendo, tal estudo pensa como a comunicação midiática
sobre a alimentação constitui os valores socioculturais na qual se insere. O objeto de
análise foi eleito dentro do universo das capas da revista Gula, desde o seu início
até o final de 2008. A escolha acatou uma linha cronológica: a primeira capa
(Especial de Estreia); a capa da edição que comemora seu primeiro aniversário
(Gula 12), a capa de 150 (cuja chamada de capa é a própria gula), fechando
com a edição comemorativa de 15 anos. Assim, percorrendo tais edições, busca-se
estudar como a revista constrói seu discurso ao longo do tempo e como tal discurso
é configurado na sua duratividade, procurando, sobretudo, dar visibilidade aos
valores nela encontrados. Cabe aqui lembrar que tal recorte o exclui referências
às outras edições e nem tampouco às páginas internas das mesmas. Outras capas
e matérias são trazidas ao diálogo, bem como outras publicações da área e os
respectivos contextos culturais, a fim de debater e contrapor-se ao objeto de estudo,
possibilitando a ampliação da reflexão aqui proposta. Considerando que a partir da
década de 1980 passa a ocorrer uma crescente expansão da presença da
gastronomia nas diversas mídias, nossa hipótese central propõe que tal expansão
ocorre a partir da exacerbação da destituição do caráter funcional da alimentação,
passando a configurar como construção estética e de consumo tendo em vista a
criação de prazer e experiências de vida. A pesquisa pode ser dividida em três
momentos. No primeiro momento, reflete acerca do universo da mídia no qual a
revista Gula se insere e nas suas relações contextuais, sociais, históricas e
semanticamente estabelecidas com esse universo. No segundo momento, são
realizadas análises de capas selecionadas da revista Gula buscando compreender
os procedimentos discursivos utilizados na sua comunicação e como esta
publicação se constrói no escopo do universo das revistas de alimentação do Brasil.
No terceiro momento, serão trabalhadas as relações entre os textos estudados, os
universos históricos, sociais e midiáticos, assim como a construção do gosto e dos
estilos de vida presentes no discurso dessa revista e seus pares no Brasil
contemporâneo. Os resultados da pesquisa apontam para uma confirmação da
hipótese apresentada.
Palavras-chave: Revista Gula, gastronomia, sociossemiótica do gosto, regimes de
sentido e de interação, enunciação, sincretismo
Abstract
The dissertation "Gula [Gluttony] Magazine: the formation of taste on
discursive construction" intends to research how food discourses are constituted and
how they are elaborated to form the tastes of contemporary individuals. The
theoretical references are the studies of discursive semiotics, specially the
contributions of the sociosemiotics about taste and the studies of habits and
lifestyles. Therefore this study reflects how the media communication about food
structures sociocultural values on its discourse. The object of analysis has been
elected within the universe of the Gula's magazine covers, since it's beginning until
2008 December. The selection configures a time-line: the first cover (Special
Premiere), the cover at the edition which celebrates its first anniversary (Gula No.
12), the cover at No. 150 (which is called the gluttony), closing with a
commemorative edition of 15 years. Thus, through such editions, we intend to
explore how the magazine structures their discourse trough time, focusing at values
found therein. From the 1980's it is observed an expansion of the presence of the
theme gastronomy at various media. Our central hypothesis infers that this
expansion occurs from the exacerbation of the dismissal of the functional character
of food, configuring aesthetics and consumption functions of food in terms of creating
pleasure and as life experiences. The research can be divided into three stages. At
first, this study reflects about the universe of media in which the magazine and their
contextual, social, historical and semantically relationships are. The second stage is
the analysis of selected covers of Gula, focusing on understanding the discursive
procedures at communication and how it is built in the universe of its peers in
contemporary Brazil. The third, focus on the analysis relationship with history, society
and media, as well as the construction of taste and lifestyles at Gula's discourse and
its peers in contemporary Brazil. The results point to a confirmation of the presented
hypothesis.
Keywords: Gula Magazine, gastronomy, sociossemiotic, meaning and interactions
systems, sincretism.
Sumário
Introdução...........................................................................................................1
1 Os sentidos da gula.....................................................................................23
2 Análises.........................................................................................................39
2.1 A vingança de Gula..........................................................................................50
2.2 O vislumbre do prato.......................................................................................57
2.3 A primeira mordida..........................................................................................67
2.4 A experiência da degustação..........................................................................81
2.5 15 anos de Gula: a celebração de um saber sensível ..................................93
3 Considerações finais.................................................................................103
4 Referências.................................................................................................111
4.1 Referências bibliográficas............................................................................111
4.2 Filmografia.....................................................................................................116
4.3 Periódicos......................................................................................................117
4.4 Outros.............................................................................................................117
Índice de figuras
Figura 1 - René Magritte. A traição das imagens. 1928-9. Óleo sobre tela.
60 x 81 cm. Los Angeles County Museum of Art, Los Angeles..........26
Figura 2 - Capa da revista Gula Nº 150..........................................................27
Figura 3 - Reprodução da pintura de Caravaggio denominada Baco
adolescente ilustra matéria interna da Gula Nº 83...............................35
Figura 4 - Reprodução das quatro capas analisadas....................................41
Figura 5 - Cabeçalho da Gula Nº 144 e Nº 156...............................................45
Figura 6 - Capa da revista Gula Nº 150...........................................................55
Figura 7 - Esquemas para leitura da capa da revista Gula Nº 150...............60
Figura 8 - Esquema para leitura da capa da revista Gula Nº 150.................61
Figura 9 - Esquema para leitura da capa da revista Gula Nº 150.................62
Figura 10 - Capa da revista Gula - Edição de Estreia....................................65
Figura 11 - Esquema para leitura da capa da revista Gula - Edição de
Estreia........................................................................................................70
Figura 12 - Esquema para leitura da capa da revista Gula - Edição de
Estreia........................................................................................................71
Figura 13 - Capa da revista Gula Nº 12 (primeiro aniversário).....................79
Figura 14 - Capa da revista Gula Nº 176 (celebração de 15 anos)...............91
Figura 15 - Capa da revista Gula Nº 15.........................................................104
Figura 16 - Capa da revista Gula Nº 72.........................................................104
Figura 17 - Capa da revista Gula Nº 103.......................................................104
Figura 18 - Capa da revista Gula Nº 176.......................................................107
Figura 19 - Capa da revista Gula Nº 161.......................................................107
Figura 20 - Capa da revista Gula Nº 97.........................................................107
Índice de tabelas
Tabela 1.....................................................................................................................51
1
Introdução
A sede ensina a beber a todos os animais,
mas a embriaguez só pertence ao homem.
Henry Fielding
Toda pesquisa nasce de um percurso pessoal assim como de inquietações
que encontram ressonância em um corpo social. A gênese dessa dissertação não é
diferente. O percurso que sempre me conduziu para as cozinhas e aos afazeres
culinários justificou-se também por uma forte inquietação social. Amplamente
divulgadas, as campanhas contra a fome sempre ressurgem nas mais variadas
épocas e lugares. Ainda que atualmente os desenvolvimentos da técnica permitam
uma produção de alimento suficiente para toda a humanidade, sabe-se que por
razões políticas, sociais, históricas e culturais, muitos não têm o que comer ou estão
subnutridos. No clássico Geografia da fome, Josué de Castro nos alerta:
Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao
problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco
conhecimento que se tem do problema em conjunto, como um complexo de
manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais. (1965,
p. 14)
Assim, mais do que uma questão econômica ou de capacidade produtiva, a
alimentação pode e deve ser vista por seus diferentes ângulos: biológico, social,
econômico e cultural. O terror da fome e a inquietação em relação a própria
sobrevivência, constitui tema tocante para a humanidade. Não é portanto sem um
2
motivo claro que os discursos construídos sobre tais temas também exercem
fascínio sobre nós. Até mesmo para poder atuar sobre as crises alimentares é
preciso compreender a alimentação não no seu aspecto mais técnico, mas
sobretudo cultural. Isto é, no que toca as escolhas de cada indivíduo e como tais
escolhas estão inseridas e afetam a sociedade. Comer pode ser uma atividade
corriqueira, quase banal. Entretanto, qual dentre nós não têm em sua memória uma
comida preferida? Quem não se lembrará de um jantar ou almoço especial? Quem,
em suas lembranças da infância, não guardará o sabor de um biscoito, um doce, um
prato inigualável? A questão do gosto e das vivências em torno da mesa confundem-
se com a própria identidade. Assim sendo, quais são as referências presentes no
mundo partícipes de nossas escolhas pessoais? Como tais escolhas são
construídas e/ou influenciadas pela sociedade?
A alimentação, em vista de se colocar muito além do aspecto nutricional, não
pode ser entendida apenas como uma ação humana garantidora da sobrevivência.
Muito embora concordemos com Câmara Cascudo no seu dizer que “O estômago é
contemporâneo, funcional ao primeiro momento extra-uterino. Acompanha a vida,
mantendo-a na sua permanência fisiológica.” (2004, p. 7), alimentar-se
humanamente não é o mesmo que ingerir uma quantidade necessária e suficiente
de alimentos para sobreviver. Se fosse dessa maneira, ou melhor, quando assim
acontece, parece que carecemos de humanidade. Aqui cabe recordar o filme
Soylent Green
1
onde num futuro trágico de escassez, toda alimentação humana
resume-se a pequenas bolachinhas verdes em formato de hóstia, uma espécie de
ração animal simbolizando a condição sub-humana na qual as personagens dessa
ficção se encontram. Tal “ração” parece ser suficiente para o sustento do organismo,
mas não o é do ponto de vista da humanidade e, consequentemente, das relações
sociais envolvidas no alimentar-se.
Seres humanos são animais singulares. Não somos onívoros, como
também, no exercício de nossa “onivorocidade”, exercemos escolhas cotidianas:
comeremos este ou aquele alimento, com tal ou qual tempero, feito dessa ou
daquela maneira, por fulano ou beltrano, servido nesse ou naquele prato,
comeremos acompanhado ou sozinho e assim por diante. As relações estabelecidas
1 Filme “Soylent Green”, diretor Richard Fleischer, 1973.
3
no tocante à alimentação são regidas por costumes, regras, tabus, preconceitos,
prescrições religiosas, etc. Constatamos assim toda uma complexidade cultural que
envolve os fazeres em torno da alimentação.
Segundo podemos ler no Dicionário Aurélio, “alimento” é “1.Toda substância
que, ingerida por um ser vivo, o alimenta ou nutre. 2. Mantimento, sustento,
alimentação. 3. Aquilo que faz subsistir, que conserva alguma coisa. 4. Aquilo que
estimula, fomenta alguma coisa; alento, fomento.”(FERREIRA, 1980, p. 85). O
Dicionário Houaiss, diz que “alimento” é “toda substância digerível que sirva para
alimentar ou nutrir” e ainda por derivação “aquilo que mantém, que sustenta; tudo o
que pode concorrer para a subsistência de alguma coisa; tudo o que concorre para
desenvolver as faculdades intelectuais e morais” (HOUAISS, 2009). o Dicionário
Caldas Aulete nos aponta como definição de “alimento” como “Aquilo que é ou
contém substância(s) que um organismo necessita assimilar para continuar vivo ou
para crescer”, ou “Aquilo que é ou pode ser ingerido por um animal (ou preparado
por humanos para ser ingerido) para fornecer as substâncias de que o organismo
necessita”, “Aquilo que mantém ou garante a continuidade de algo, de um processo”,
e ainda “Aquilo que, assimilado do exterior, permite o desenvolvimento de algo”
(CALDAS AULETE, 2008).
Ou seja, “alimento” é aquilo que nos mantém vivos, uma necessidade humana
vital. Como tal, articula-se como um eixo de relações sociais, determinando
posições de grupos e dos indivíduos e tomando parte nos discursos. Mas, até que
ponto a nossa fisiologia está inserida na alimentação? Posicionando a alimentação,
em seu stricto sensu, conforme dissemos, como aquilo que nos sustenta,
alimentar-se necessariamente vai muito além da simples ingestão de substâncias
nutritivas. É a escolha entre comer e não-comer que muitas vezes nos salienta as
características peculiares de determinadas culturas, ou como nos diz sucinta e
sabiamente Brillat-Savarin: “Diz-me o que comes e eu te direi quem és.”(1995,
p. 15)
2
.
2 Variação do preceito evangélico "dize-me com quem andas e eu te direi quem és", esta frase está
presente em A fisiologia do gosto (1995), livro clássico do célebre gastrônomo Anthelme Brillat
Savarin (1755-1826).
4
Nesse sentido, essa pesquisa volta-se para os aspectos que norteiam as
escolhas alimentares. É comum ouvirmos dizer que entre as muitas características
culturais de um grupo, a que mais se prolonga e é mais difícil de alterar são os
hábitos alimentares. Rapidamente o estrangeiro ou imigrante buscará compreender
a língua do país em que se encontra, também adere sem muita dificuldade ao uso
das vestimentas, regras de cordialidade, etc. Todavia estranha e muitas vezes sofre
no próprio corpo o confronto com a comida estrangeira que lhe parece demasiado
condimentada ou insossa, áspera ou gelatinosa... Seus descendentes muitas vezes
não lembram as histórias ou a língua de seus ancestrais. No entanto, guardam
com estranha precisão os sabores que permite assegurar o vínculo com
determinada identidade cultural. Podemos dizer que o oposto também parece ser
verdadeiro: nos tornamos um pouco italianos, japoneses, chineses, franceses
quando incluímos essas cozinhas no nosso cotidiano culinário. Ao ingerirmos um
alimento, tal como nos rituais antropofágicos, adquirimos em nosso corpo e como
parte de nosso paladar, um fragmento material da outra cultura e com ele, algumas
de suas qualidades.
Conforme vimos acima, o termo “alimento” em sua acepção dicionarizada,
parece não dar conta da multiplicidade de ações humanas envolvidas na
alimentação. Se buscamos outras palavras relacionadas à alimentação utilizadas na
linguagem coloquial, poderemos então perceber uma ampliação das significações
possíveis para o termo. Vejamos, por exemplo, a palavra “comer”:
Comer V. t. d. 1. Introduzir (alimentos) no estômago, pela boca, mastigando-
os e engolindo-os; tomar. 2. Fig. Gastar em comida. 3. Dilapidar, dissipar,
desbaratar, consumir. 4. Acreditar facilmente em; admitir sem exame (dito
ou fato mentiroso). 5. Destruir, consumir. 6. Omitir, suprimir, roer. 7.
Absorver, tragar, consumir. 8. Omitir, suprimir. 9. Roubar, furtar. 10. Eliminar
(uma ou mais pedras do adversário, no jogo de damas ou de xadrez). T. i.
11. Provar, experimentar. 12. Considerar, tomar, ter. 13. Tomar alimento.
14. Alimentar-se. 15. Causar comichão ou prurido. 16. Lucrar, cometendo
fraude; roubar. P. 17. Mortificar-se, consumir-se.(FERREIRA, 1980, p. 442)
O Dicionário Houaiss, diz:
Verbo transitivo direto e intransitivo
1. Ingerir alimento(s) ou tomar por alimento; alimentar-se 2. tragar, engolir,
trazer para dentro de si 3. (fig) experimentar, provar 4. ouvir
embevecidamente; beber 5. apossar-se do que não lhe pertence; roubar,
5
defraudar, espoliar 6. nos jogos de xadrez e dama, eliminar ou ganhar (uma
ou mais pedras do adversário) 7. passar por (algo) sem vê-lo; omitir, pular 8.
eliminar ou suprimir parte de; cortar 9. pronunciar mal ou indistintamente;
suprimir (sílabas etc) 10. fazer transcorrer; preencher 11. corroer aos
poucos; carcomer, desgastar, gastar 12. fazer esquecer; expungir, obliterar
13. gastar com dissipação; esbanjar 14. levar a cabo (uma tarefa, uma ação
etc.) em pouco tempo 15. ser submetido a, sofrer (punição) 16. bater,
espancar 17. suportar a dureza, o sofrimento; aguentar 18. causar comichão
ou coçar 19. ocorrer, acontecer (ger. algo indesejável ou calamitoso) 20.
acreditar piamente em 21. possuir sexualmente; seduzir 22. sentir-se
tomado por paixão forte, corrosiva, por sentimento exaltado; mortificar-se,
enfuriar-se, roer-se 23. driblar 24. qualquer substância digerível us. na
alimentação ou nutrição. (HOUAISS, 2009)
Já Caldas Aulete nos aponta a seguinte definição:
v. 1. Ingerir (alimento), introduzindo na boca, mastigando e engolindo 2.
Alimentar-se (de); fazer refeições 3. Provar, experimentar (comida ou tipo de
comida) 4 [td.: Comeu toda a mesada (em balas).] 5 Provocar desgaste ou
destruição de; CORROER. 6 Consumir ou gastar rapidamente (dinheiro,
tempo etc.). 7 Suprimir; deixar de incluir (sílabas, palavras) 8 Lud. Excluir
(peça do adversário) no xadrez, no jogo de damas. 9 Experimentar
sentimento intenso (raiva, ódio, solidão etc.) 10 Causar comichão ou
prurido 11 Fig. Acreditar facilmente em; aceitar sem crítica (fato ou dito
inverídico); ENGOLIR. [td.] 12 Fig. Obter proveito, lucrar (ger. por meios
ilícitos). 13 Tabu Ter relação sexual com. 14 Considerar, julgar. 15
Roubar, furtar, surrupiar. 16 Consumir (veículo) muito (combustível);
BEBER 17 Pop. Esp. Em futebol, basquete, futsal etc., driblar, fazer finta
em (jogador adversário) 18 Bater, castigar, espancar. (CALDAS AULETE,
2008)
A partir dessas outras definições dicionarizadas é possível perceber um
universo maior de abrangência semântica na palavra “comer”, dentre as quais, os
universos de sentido relacionados com o fisiológico, econômico, crenças,
conhecimento, sexualidade e, ademais, com a morte ou extinção de coisas ou
pessoas. Estes e muitos outros sentidos podem ser evidenciados numa simples
palavra relacionada ao tema da alimentação. Se numa palavra singular como esta
são encontradas tantas relações semânticas - conforme a utilização do termo - o que
não dizer do conjunto de um texto que tenha por tema a “alimentação”? Este não
teria também, por extensão, um conjunto de sentidos a serem estudados? Como
poderíamos compreender a construção dos sentidos da alimentação na
contemporaneidade?
6
Evidentemente, tal pergunta é da mais ampla abrangência. Certamente os
sentidos são tão múltiplos quanto a própria humanidade. Tomaremos então o estudo
dos sentidos construídos sobre o tema alimentação nas revistas de culinária.
Levando-se em consideração que as revistas são partes de um sistema de
comunicação que constroem um conjunto de visões formadoras pertencentes a
nossa cultura, tais publicações colocam-se como objetos portadores de voz de uma
parcela específica da sociedade sobre um tema igualmente específico.
No mundo contemporâneo a culinária e a gastronomia
3
estão cada vez mais
presentes na vida da “sociedade da informação” tal como chamam uns ou
“sociedade do espetáculo”, como chamam outros. Essa presença midiática
insistente do tema nos mais diversos meios pode ser percebida numa pesquisa na
internet, num olhar sobre as bancas de revistas, num “zapear” da televisão, no
cinema, etc. Por exemplo, no site “Google”
4
, uma conhecida ferramenta de buscas
na rede mundial de computadores, podemos encontrar essa forte presença da
alimentação na mídia. Um outro exemplo ilustrativo foi a inauguração da livraria
Mille Foglie (em janeiro de 2003, em São Paulo, capital): uma livraria especializada
em gastronomia com um acervo de mais de três mil títulos disponíveis sobre o
assunto, fato fato que per se ilustra a quantidade de material editado existente sobre
o assunto.
Na televisão, os programas de culinária fazem parte da programação desde
muito tempo, como atesta a fama de Ofélia, até hoje citada e consultada nos seus
livros como uma referência dos saberes culinários. Em muitos dos canais abertos
encontramos programas de culinária, dos quais alguns se destacam na grade, sendo
menção obrigatória o “Mais Você” (Rede Globo), com a apresentadora Ana Maria
Braga e os programas “Mulheres” e “TV Culinária” (TV Gazeta), este último
apresentado por Palmirinha Onofre. Ao observarmos as diversas grades de
3 Embora as duas palavras possam ser tomadas como sinônimas, observamos que uma
diferenciação clara entre elas no seu uso nas mídias. As revistas e programas chamados de
“culinária” ou “culinários” procuram mostrar os procedimentos gerais dos fazeres e técnicas da
cozinha. os termos “gastronomia” e “enogastronomia” referem-se sobretudo à arte do bem
comer, a uma técnica culinária mais requintada ou especializada e indica um fazer de maior valor,
sendo realizado por profissionais da área.
4 Busca realizada no site <http://www.google.com.br>, pesquisa na Web, resultado de
aproximadamente 1.450.000 para “culinária” em 0,05 segundos. a palavra “alimentação”
7
programação semanal
5
das emissoras, percebemos uma forte presença desses
programas ao longo da semana, especialmente de segunda a sexta-feira ou de
terça-feira à sábado, sendo geralmente apresentados no início da manhã ou no meio
da tarde, permitindo assim aos telespectadores realizar as receitas mostradas no
almoço ou no jantar daquele mesmo dia. Nos canais abertos, essa presença do
tema ocorre não nos programas específicos voltados para a culinária e
gastronomia, como também aparece incorporado em quadros dentro em programas
de jornalismo ou de variedades. Um exemplo marcante é o programa “Hoje em dia”
da Rede Record
6
que tem como um de seus apresentadores o chef de cozinha Edu
Guedes e o programa “Todo seu”, apresentado por Ronnie Von na TV Gazeta.
Observando os canais de televisão a cabo, notamos que a presença do tema
da alimentação é ainda mais difundido, com uma gama considerável de programas
voltados para a gastronomia e a culinária. Montados enquanto espetáculos, contam
com a presença de chefs de cozinha, cozinheiros e cozinheiras profissionais e
amadores, assumindo os mais diversos formatos: desafios gastronômicos, reality
shows, informativos sobre dieta e emagrecimento, competições entre
telespectadores, etc.
Um inventário desses programas inclui: FitTV Dr. Dieta, Medicina de Peso,
Peso Perdido, Chef a domicílio, Um jantar de mestre, Buquê e Bufê (do canal
Discovery Home & Health
7
); Em casa com Jamie Oliver, Magros X Obesos, Você é o
que você come, Para sempre verão com Nigella, Cozinhar é simples, O Show de
culinária de Jamie Oliver, A deliciosa China de Kylie Kwong, Truques de Oliver,
Menu Confiança, Mesa para Dois, BemStar (do canal GNT
8
), Perder para ganhar (do
canal Discovery People + Arts
9
), A volta ao mundo em 80 sabores, Anthony
Bourdain: sem reservas, Gourmet surrealista, Kylie Kwong: receitas de família, Ásia:
sabor e cultura, Histórias com sabor, À minuta, Com sabor e tempero, Comidas
resultou em 780.000 respostas em 0,05 segundos. Para o termo “gastronomia” encontra-se
2.640.000 respostas em 0,09 segundos. A pesquisa foi realizada no dia 18 de junho de 2005.
5 As informações sobre a grade de programação das emissoras foram coletadas a partir dos sites
oficiais das mesmas e tomando por referência a grade semanal de segunda-feira à domingo de
uma mesma semana.
6 Informação disponibilizada no site <http://www.rederecord.com.br/programas/hojeemdia/>, acesso
em 05 de janeiro de 2009.
8
exóticas, Drinques & Cidades, Turismo culinário, Desafio coquetel, Cozinha Chic (do
canal Discovery Travel & Living
10
).
Outro dado representativo desta tendência é a quantidade crescente de filmes
enfocando o tema nos últimos anos, a saber: A comilança (La grande Bouffe, Marco
Ferreri, 1973, França/ Itália), O jantar (La cena, Ettore Scola, 1998, Itália), Como
água para chocolate (Afonso Arau, 1993, México), A festa de Babette (Babettes
Gaestebud, Gabriel Axel, 1987, Dinamarca), Tempero da vida (Politiki Kouzina,
Tassos Boulmetis, 2003, Grécia), A marvada carne (André Klotzel, 1985, Brasil), O
cheiro de papaia verde (Mui du du Xanh, Tran Anh, 1993, França/ Vietnã),
Ratatouille (Brad Bird, Walt Disney Pictures e Pixar Animation Studios, EUA, 2007),
Simplesmente Martha (Bella Martha, Sandra Nettelbeck, Alemanha, 2001), Sem
Reservas (No Reservations, Scott Hicks, EUA/ Austrália, 2007), Mondovino
(Jonathan Nossiter, França, 2004), Sideways: entre umas e outras (Sideways,
Alexander Payne, EUA, 2004), Super Size Me: A dieta do palhaço (Super Size Me,
Morgan Spurlock, EUA, 2004).
Paralelamente, para além destes títulos amplamente divulgados, outras
produções menores, documentários e entrevistas isoladas transitam frequentemente
pelo universo midiático, contribuindo para a difusão do tema.
Isto posto, a questão que nos inquieta aqui é compreender qual o motor
dessa profusão recente de produções sobre alimentação e mais especificamente, do
aporte sobre gastronomia apresentado pelas mais diversas mídias. Cabe-nos
indagar o porque desse incremento de espaço nos diversos discursos midiáticos
nesse momento da história humana. Afinal, vivemos numa sociedade na qual uma
de suas características marcantes é a presença das mídias como parte de uma
sociedade de mercado e caracterizadora de uma cultura. É o que atesta Olgária
Matos na sua conferência “Modernidade e mídia: o crepúsculo da ética”:
7 Informação disponibilizada no site <http://www.discoverybrasil.com/programacao-de-tv/?type=
day&country_code=BR>, acesso em 05 de janeiro de 2009.
8 Informação disponibilizada no site <http://globosat.globo.com/gnt>, acesso em 05 de janeiro de
2009.
9 Informação disponibilizada no site <http://www.discoverybrasil.com/programacao-de-tv/?type=
day&country_code=BR>, acesso em 05 de janeiro de 2009.
9
Pode-se dizer que nosso tempo é “pós-humanista”. O par conceitual
civilização-modernização diz respeito a uma cultura que assim pode ser
caracterizada: cientificismo, isto é, aquiescência sem crítica à Ciência e
suas práticas, [...]; adesão à ideia de progresso linear e contínuo, ao
redimensionamento da razão em sentido tecnológico, abrangendo a
economia e a política. [...] modernização e modernidade dizem também
respeito à sociedade de massa, do consumo, do espetáculo e à exaltação
do mercado como sucedâneo da busca da felicidade. (MATOS, 2005)
Esse período chamado pela filosofa de pós-humanista, está caracterizado
pelo quantificável, pelo que pode ser traduzido por processos industriais,
predomínio do consumismo e a um continuum cuja lógica prende-se a uma
idealização descolada do que poderíamos chamar de “mundo da vida”, referenciado
pelos recursos naturais. Igualmente diz respeito a um modelo cultural no qual
estamos inseridos, dizendo respeito às formas que se dão ver e compreender pela
via midiática, articuladas ao consumo e exaltando o mercado como valor. Como
analisar o papel dessa exaltação do mercado e do consumo presentes nas mídias,
assim como na sua atuação - recentemente mais incisivas - no que diz respeito a
algo tão fundamental para as culturas e à vida humana quanto à alimentação?
A pergunta que aqui se postula diz respeito ao sentido criado pela
espetaculização de algo cotidiano e fundamental à existência humana, uma
interpretação inédita decorrente da hegemonia de um novo padrão de compreensão
da realidade, que relacionado diretamente com o surgimento da sociedade
contemporânea, legitima um modo de vida que teria desvencilhado a humanidade de
todos os tipos tradicionais de ordem social, mudança entendida como sendo sem
precedentes (GIDDENS, 1991, p. 14 et seq.).
Contrapondo a cultura tradicional à modernidade, percebemos uma mudança
referente à função que altera a construção dos valores sociais. Greimas nos fala
sobre a fechadura dogon:
A descrição da fechadura dogon é exemplar. Eis aqui uma coisa do mundo,
entre outras, que tem uma utilidade evidente: fechar a casa. Mas ela é
também uma divindade protetora da moradia e, ademais, uma obra muito
bela. Participando das três dimensões da cultura – funcional, mítica, estética
–, a coisa torna-se assim um objeto de valor sincrético. Dotado de memória,
coletiva e individual, portador de significação com facetas múltiplas que
10 Informação disponibilizada no site <http://www.discoverybrasil.com/programacao-de-tv/?type=day
&country_code=BR>, acesso em 05 de janeiro de 2009.
10
tecem redes de complexidade com outros objetos, pragmáticos e cognitivos,
o objeto insere-se na vida de todos os dias agregando-lhes espessura.
(2002, p. 84)
A espessura conferida à vida de todos os dias na comunidade dogon é
construída pelo arranjo da dimensão estética, mítica e funcional enquanto portador
dos valores dessa cultura, postura esta que no mundo tradicional africano, assim
como numa ampla constelação de sociedades tradicionais, articulam solidamente
estas dimensões entre si e isto, de modo inextricável (HAMPATÉ-BÃ, 1976 e LEITE,
1984).
Na modernidade esse arranjo é alterado na medida em que uma
dissociação entre essas dimensões ou ainda, uma sobreposição de uns sobre
outros. Nossa hipótese central infere que a expansão da presença da gastronomia
nas diversas mídias ocorre a partir do esvaziamento do caráter funcional da
alimentação, pelo qual esta passa a configurar-se como construção estética e de
consumo em termos da criação de prazer e enquanto experiência de vida
11
.
Se por um lado o tema da presença da alimentação nas diversas mídias é
fascinante, por outro, é de extrema complexidade. Uma grande parte dos livros e
reflexões foram escritos por autores em sua fase já madura, materializando,
algumas vezes, esforços de toda uma vida. Exemplo destacado é o livro de Câmara
Cascudo História da Alimentação no Brasil
12
, organização de estudos e anotações
elaboradas por esse autor e finalmente organizadas em livro após muitos anos de
pesquisa. Entre os estudos de semiótica discursiva encontramos algumas análises
interessantes voltadas aos fazeres alimentares propriamente ditos, destacando-se o
texto La soupe au pistou ou la construction d'un objet de valeur de Greimas (1983), o
livro O gosto da gente, o gosto das coisas (1997) editado por Eric Landowski e José
Luiz Fiorin, as análises realizadas por Jacques Fontanille (2006) sobre a cozinha de
11 Cabe notar aqui que o descolamento da interação entre as várias dimensões da cultura também
pode ajudar a explicar a epidemia de obesidade apontada pelos segmentos de saúde de diversos
países, na medida em que o alimento, não mais entendido culturalmente na sua esfera funcional,
dela se desliga e passa a ser tomado como puro prazer - função estética - independentemente de
suas características funcionais.
12 A primeira edição do livro é da Editora Nacional em 1967/1968, seguida por uma edição em 1983
pela Editora Itatiaia e a terceira edição, a que se encontra atualmente no mercado, é publicada
pela Editora Global, tendo sido lançada em 2004.
11
Michel Bras assim como tantos outros trabalhos realizados por semioticistas e
apresentados em colóquios, seminários e congressos.
O primeiro imenso desafio que se coloca ao pesquisador é realizar um recorte
de seu corpus diante desse tema instigante e vasto. No tocante a esta proposta de
pesquisa, o recorte definidor de limites espaços-temporais escolhidos buscou dar
conta do tema na mídia impressa.
Tal escolha não acontece isoladamente. Não por outra razão senão pelo fato
de que pensar o estudo da mídia impressa delimita um período histórico de interesse
que ganha força a partir da modernidade, ao mesmo tempo em que o tema da
alimentação se estende por toda a história da humanidade. Tendo em vista a
questão da alimentação na mídia impressa, entendemos ser pertinente o destaque
de um tempo construído a partir da modernidade e que atua na definição da
atualidade. O cotejamento destes dois tempos: um extenso e outro demarcado,
pode permitir um olhar mais profundo na busca da compreensão dos valores
contemporâneos.
A opção por esta referencia-se numa modificação sobre a noção de mundo
ocorrida a partir da década de 1980, conforme aponta Eugênio Trivinho:
Entretanto, uma mudança de monta nos dados empíricos, processos e
tendências da experiência humana, em especial daquela vinculada ao
universo do outrora chamado capitalismo estruturalmente periférico, foi
verificada (mais acentuadamente) a partir da década de 80. (2001, p. 94)
A alteração aludida pela citação coincide com o incremento do tema da
gastronomia nas diversas mídias a partir dessa década, que se consolida nas
décadas subsequentes. Trata-se de uma nova realidade marcada por um novo
dinamismo de mote mundial configurado nas mídias. Portanto, o estudo destas no
período acima destacado evidencia aspectos relacionados com uma nova forma de
estruturação do mundo e seus inevitáveis rebatimentos para com o tema da
alimentação.
Quanto à delimitação espacial, as escolhas tomam por referência a vivência e
a acessibilidade a um espaço determinado, de modo a permitir uma pesquisa
12
coerente. Assim, uma primeira circunscrição refere-se ao Brasil, espaço no qual se
desenvolve esta pesquisa. Não como deixar de citar as questões colocadas pela
globalização, transfigurando espaços e tempos
13
produzindo uma fluidez de
fronteiras e culturas, inferência esta intensamente percebidas tanto no espaço
mundial em termos da contemporaneidade em seu sentido mais amplo, quanto no
espaço brasileiro.
Nesse sentido, buscaremos apontar ao longo das análises a interação dos
diversos espaços figurantes da cena pós-moderna, sobretudo as estruturações
destes espaços enquanto construtores de valores. Para tal, lançamos mão de um
conceito-chave desenvolvido por Trivinho, o conceito de glocal, que segundo o
autor, pode ser entendido como:
(...) nem exclusivamente global, nem inteiramente local, misto de ambos
sem se reduzir a tais –, tendência mediática de magnitude ainda pouco
apreendida e investigada, que sintetiza e, ao mesmo tempo, ultrapassa as
suas duas bases constitutivas, assim como os seus respectivos derivados, a
globalização ou o globalismo (econômico ou cultural) e os regionalismos ou
localismos. A contar por seu caráter intrinsecamente transnacional, trata-se
de um processo civilizatório que arruína, em essência, o conceito de
sociedade, tradicionalmente recortado por fronteiras específicas.
(TRIVINHO, 2007, pp. 20 e 21)
A partir do processo civilizatório característico da pós-modernidade apontado
na citação acima, podemos entender que a mídia deixa de materializar uma relação
direta de oposição ou complementaridade entre dois espaços delimitados
socialmente. As relações entre espaços constroem-se agora de modo diverso,
estabelecendo um terceiro termo, híbrido entre dois espaços aqui e alhures,
denominado glocal. Na dissolução de tais oposições e justaposições, cabe
considerar os diferentes matizes e colorações que a construção do glocal tem nos
diversos lugares.
13 Sobre a questão espaço-tempo podemos estabelecer ainda uma série de outras relações entre
diferentes espaços e tempos, por exemplo: a) o tempo da mídia, o tempo de veiculação na mídia e
o tempo de leitura do texto midiático; b) o tempo da alimentação historicamente configurado, o
tempo fazer alimentar, do comer e do cozinhar, o tempo do tema alimentação na mídia; c) o
espaço midiático, o espaço do tema alimentação na mídia, e assim por diante. Ver também Denis
Bertrand e Jacques Fontanille, La fleche brisee du temps (2006).
13
Ainda que exista uma dissolução de fronteiras, cabe lembrar que ela não se
da mesma maneira em todos os lugares. Em assim sendo, tomando por
referência o espaço brasileiro, dito nacional, buscaremos compreender a construção
deste espaço glocalizado não apenas como mais uma construção identitária única,
de um estado-nação brasileiro, tal como se fazia pouco, mas buscando
compreender como se sua construção com base nos dinamismos referendados
glocalmente configurando cruzamentos e intersecções com os outros lugares, eles
também, glocalizados.
Para o recorte do corpus, a fim de efetuar uma escolha dentre as diversas
mídias nas quais o tema da alimentação se faz presente foi necessário realizar
outras delimitações. Uma pontuação inicial diz respeito à complexidade do objeto e a
possibilidade de serem obtidos conhecimentos teóricos suficientes em termos de
análise durante o período da pesquisa. Isto posto, foram excluídos a televisão, o
cinema, o rádio e a internet. Por outro lado, em favor das mídias mais próximas de
estudos anteriores (particularmente em razão da minha graduação em Filosofia), nos
quais o texto verbal é privilegiado e devido ao campo de atuação profissional, a área
de Estética (permitindo um estudo relacionado ao texto visual ou plástico). Por essas
razões, a escolha recaiu sobre a mídia impressa e os seus textos verbais e visuais.
Na sequência, um segundo critério fundamenta-se pela acessibilidade tanto
do público de um modo geral, quanto do pesquisador. Deste modo foram, por
exemplo, descartados os livros. Embora numerosos e interessantes, os preços
poderiam constituir-se num impeditivo para a pesquisa, sem contar que o público
para o qual são destinados também ficaria restrito a uma parcela exígua da
população brasileira. Nesta ordem de especulações, a escolha ficaria direcionada
para as propagandas impressas, colunas em jornais e revistas especializadas.
As propagandas impressas
14
foram as primeiras a serem descartas nessa
triagem. Numa observação inicial, percebemos que embora existam em quantidade
assombrosa, voltam-se preferencialmente para o mercado, com o fito de informar
seu público. Do ponto de vista do uso do discurso, apresentam repetições e uma
14 Impressos dizem respeitos a folders e flyers comumente distribuídos nos restaurantes, ruas ou
residências com informações sobre o cardápio e seus preços.
14
homogeneidade em termos de exploração verbo-visual. as colunas de
gastronomia nos jornais são fragmentos isolados dentro do discurso dessa mídia.
Comumente apresentadas com destaque num caderno especial, de modo geral,
constroem-se como blocos isolados dentro de um todo maior que é o jornal. Nossa
escolha privilegiou portanto, as revistas de culinária.
Em face do colocado e por possibilitarem a testagem das hipóteses que
elencamos, as revistas de culinária se mostraram suficientemente afinadas com as
questões propostas na pesquisa. Dentre outros motivos: seus preços variam
bastante e abrangem um público diversificado; são encontradas em todo o território
nacional; podem ser colecionadas com certa facilidade; por fim, existe a
possibilidade de se encontrar números atrasados com algum esforço.
Devemos igualmente considerar, lembrando a história das revistas, que estas
surgem como um sucedâneo dos livros. Conforme nos diz Thomaz Souto Corrêa:
A primeira de que se tem notícia embutia o conceito de que revista é
sinônimo de variedade. O objeto era igual a um livro, mas com assuntos
variados, ainda que reunidos sob um mesmo tema [...] Enquanto os livros
tratavam e geralmente tratam de um mesmo tema, a revista inovou, ao
tratar de um mesmo tema com assuntos variados. (2006).
Curioso é o fato de termos um objeto suficientemente diversificado dentro de
um tema específico, que em sua gênese histórica a revista assume o papel de
informar variedades, realizando um tratamento dos assuntos de modo menos
aprofundado em comparação com o realizado nos livros sobre o mesmo assunto.
Apesar de historicamente ter se caracterizado por colecionar variedades de temas,
observamos hoje uma ampliação das revista segmentadas. Ainda assim, podemos
compreendê-la como uma derivação dos livros onde os assuntos o construídos e
oferecidos para um público menos afeito aos conhecimentos aprofundados sobre
determinado tema.
Se entendermos que uma revista nasce das buscas de um grupo social sobre
determinado tipo de informação e/ ou conhecimento, essa mesma sociedade e seus
valores revelam-se nesse organizar de informações, mostrando-se nessa
15
publicação. Podemos entender essa inter-relação no discurso construído de acordo
com o que nos diz Landowski, quando o autor se refere ao discurso político:
[...] Além e aquém das opções atinentes à superfície lexical e estilística,
independentemente mesmo dos valores veiculados, tratar-se-á, para nós,
antes de tudo, de dar conta do discurso do ponto de vista da sua
capacidade de “agir” e “fazer agir”, moldando e, na maior parte dos casos,
modificando as relações entre os agentes que envolve a título de parceiros
linguísticos. Desse ponto de vista, o caráter político de um discurso, oral ou
escrito, não poderia ater-se apenas, nem mesmo prioritariamente, ao fato de
que ele “fala de política” (critério semântico), mas depende muito mais do
fato de que, ao fazê-lo, realiza certos tipos de atos sociais transformadores
das relações intersubjetivas (critério sintáxico e pragmático), estabelece
sujeitos “autorizados” (com “direto à palavra”), instala “deveres”, cria
“expectativas”, instaura a “confiança”, e assim por diante. (1992, p. 10)
Assim, compreender a construção do discurso veiculado numa revista
especializada em gastronomia poderá revelar a construção das relações instauradas
no seu discurso compreendendo como se dão as escolhas alimentares de
determinados grupos sociais e seu posicionamento dentro do corpo social.
Analogamente, o discurso gastronômico realiza ele também certos tipos de atos
sociais transformadores das relações intersubjetivas, estabelecendo igualmente
sujeitos autorizados, instalando fazeres, expectativas, gostos, etc. Cabe-nos
descobrir nas análises quais são esses fazeres, expectativas e gostos e, como estão
instalados no texto. Nesse âmbito, o desvelamento das estratégias discursivas e dos
regimes de sentido empregados pelas revistas ao construir um saber, um fazer e um
sentir sobre um determinado tema, poderá nos levar a compreender as relações
sociopolíticas desse grupo no tocante ao tema referido.
A escolha final do corpus elegeu a revista Gula, que se destaca no mercado
editorial em seu gênero como referência editorial de um “como fazer”, principalmente
quando a compararmos com outras revistas do mesmo segmento editorial, tais
como: Claudia Cozinha, Alta Gastronomia, Água na Boca, Mesa Pronta, Prazeres da
mesa etc. Consequentemente, a escolha da revista como objeto de pesquisa
justifica-se pelo fato de configurar um veículo diferenciado no mercado editorial de
revistas voltadas para a alimentação. Essa publicação diferencia-se das revistas
classificadas como “revistas de culinária”, pois coloca-se enquanto “revista de
gastronomia” ou ainda “a primeira revista de enograstronomia do Brasil”. Conforme
16
apontamos inicialmente (nota de rodapé 3), os termos culinária e gastronomia
indicam posições diferentes na área da alimentação. As definições dos dicionários
Caldas Aulete (2008), Aurélio (1980) e Houaiss (2009) sobre o termo culinária
referendam-no como a arte de cozinhar ou o conjunto de pratos de uma localidade
região ou país, enquanto o termo “gastronomia” alude tanto aos conhecimentos
necessários para a preparação dos pratos como também a arte de bem comer, o
prazer de apreciar pratos finos, segundo as mesmas fontes.
Ainda que se trate de uma diferenciação sutil, podemos dizer que
gastronomia indica um fazer elaborado vinculado a um determinado valor, ao passo
que culinária coloca-se como um termo de maior amplitude e menos vinculado a um
valor qualificante. Cabe notar que o termo enograstronomia apresentada-se
dicionarizado apenas no dicionário Caldas Aulete (2008) e diz respeito ao
“conhecimento de vinhos e bebidas”, embora sua significação seja facilmente
compreendida pelo público interessado em culinária, pois indica uma interação entre
os saberes da enologia e da gastronomia, o uso do termo pela mídia é também mais
recente.
Segundo Brillat-Savarin gastronomia é “um ato de nosso julgamento, pelo
qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas
que não têm essa qualidade” (1995, p. 15), ou ainda em outro momento, ele define:
A gastronomia é o conhecimento fundamentado de tudo o que se refere ao
homem, na medida em que ele se alimenta.
[...]
O assunto material da gastronomia é tudo que pode ser comido; seu
objetivo direto, a conservação dos indivíduos; e seus meios de execução, a
cultura que produz, o comércio que troca, a indústria que prepara e a
experiência que inventa os meios de dispor tudo para o melhor uso. (1995,
pp. 57-58)
O escopo da gastronomia vai assim muito além de listar receitas.
Obrigatoriamente deve inserir na sua pauta a cultura, o comércio, a indústria e tudo
o mais que possa estar de uma forma ou outra ligado a alimentação humana.
Tomando essa definição de gastronomia não teríamos nenhuma publicação
estritamente gastronômica, que as publicações periódicas no mais das vezes
acabam por voltar-se para um ou outro aspecto dessa conceituação. Todavia, o
17
próprio autor de Fisiologia do Gosto não segue tão rigorosamente sua definição,
narrando ao longo do livro experiências diversas ora tratando de um aspecto, ora de
outro.
Ao observamos as diversas revistas de culinária
15
presentes no mercado
brasileiro, notamos que as publicações que se definem vinculadas a gastronomia ou
a enograstronomia procuram se diferenciar das revistas de culinária tanto na sua
forma como no conteúdo. As revistas que se identificam com o termo culinária
voltam-se quase que exclusivamente para a coletânea de um receituário de
determinados pratos, muitas vezes agrupados por temas que podem ser uma
categoria de comida (doce, salgado, massas, etc), ingredientes (frango, legumes,
carne, etc), o tempo de preparo (1, 5, 10 ou 15 minutos, normalmente voltadas para
comidas de rápida execução), a quantidade de comensais (uma pessoas, duas
pessoas, festas), a dificuldade de execução (fáceis, muito fácil, elaboradas etc) e até
mesmo o eletrodoméstico necessário (liquidificador, forno, fogão, panela de pressão,
congelados). Na sua maioria, essas publicações ditas de culinária, buscam formatar
um receituário de acordo com a proposta apresentada e muito raramente agregam
outras informações relativas ao comer ou aos aspectos culturais dos alimentos. Em
contrapartida, as revistas de gastronomia ou enograstronomia procuram agregar à
seleção do receituário informações históricas, matérias especias sobre os
ingredientes, críticas de restaurantes, informações técnicas sobre os utensílios
culinários, depoimentos de especialistas na área entre outras. E assim, constituem-
se como material privilegiado para a pesquisa em vista de congregarem diversos
aspectos sobre a alimentação em seu discurso.
Observa-se assim que o uso que se faz dos termos culinária e gastronomia
no contexto das publicações traça uma clara diferenciação entre elas, onde as
voltadas para a culinária preocupam-se menos com a apresentação e mais com
informação do receituário e as revistas de gastronomia, para os aspectos culturais
buscando construir um conhecimento para além do receituário
16
.
15 Tal observação foi realizada comparando-se os textos explícitos presentes na capa ou nos
editoriais das revistas Claudia Cozinha, Claudia na Mesa, Alta Gastronomia, Água na Boca, Menu,
Prazeres da Mesa, Ana Maria Receitas, Receitas da Palmirinha e Receita Minuto.
16 Notamos que essa mesma diferenciação entre os termos culinária e gastronomia parece ocorrer
também em outras mídias, como internet e televisão.
18
A revista Gula, escolhida como objeto de nossas análises é uma das
primeiras publicações do gênero a se estabelecer no mercado numa duratividade
mais alongada, disputando espaço com publicações tradicionais e chegando até
mesmo a sobrepujar algumas publicações do mercado editorial do segmento de
culinária e gastronomia. A publicação indica uma posição de interlocutor privilegiado
ao colocar-se como revista de enogastronomia, situando-se no lugar daquele que
detém os saberes sobre os alimentos e os vinhos, sobre seus contextos culturais,
informando sobre a história e a cultura relacionados ao alimento apresentado,
indicando como e quando servir aquele prato, para quem se destina, em qual
ocasião, etc.
Comparando-a com seus pares da área de gastronomia
17
trata-se de
publicação dotada de maior duratividade e, ainda que sua circulação esteja
concentrada na região sudeste do país
18
, possui uma abrangência maior no território
nacional em relação as publicações equivalentes. Esta localização aponta também
para o poder de irradiação cultural que essa região tem sobre as outras regiões do
país e de outros países, na medida em que há, conforme tão bem aponta Trivinho,
um “embaralhamento dos mundos” (2001, p. 93). Como tal, é possível observar que:
O primeiro mundo, por exemplo, não é mais um bloco nacionalmente
demarcável e inviolável, um alhures total, exterior, vale dizer, não se projeta
mais na forma de um povo como “o” do primeiro mundo. Sua referência
deixou de ser o marco geográfico rígido, na forma acabada de uma nação
exclusiva, fora da qual o resto pertenceria ao leque que vai do segundo ao
quarto mundos, também supostamente expressos como totalidades
nacionais. E, mais, ele não repousa somente na extensão, no território;
encarna-se, não raro, no desejo, no olhar, no comportamento, no tipo de
relação com as coisas, na linguagem ordinária e assim por diante. O
primeiro mundo estilhaçou e, com isso, relativizou-se. Nessa perspectiva,
ele bem pode ser milhares de nós, na América Latina, por exemplo. (2001,
p. 95)
Desse modo, na medida em que a espacialidade fragmentada dos diferentes
atores políticos e sociais aponta para uma demarcação de classe não mais a partir
de um aspecto político-espacial (com o centro irradiador reconhecido por “primeiro
17 Prazeres da Mesa, Alta Gastronomia e Menu.
18 Tiragem média de 60.000 exemplares, sendo que 64% são assinantes e 36% adquirem nas
bancas, distribuídos da seguinte forma: região sul 12%, sudeste 76%, nordeste 5%, norte 2%,
centro-oeste 5% (fonte IVC - setembro/2003).
19
mundo” sendo construído pela sua posição geográfica no planeta), o
reconhecimento de um centro irradiador e de referência passa a se dar por meios
mais sutis, determinado por escolhas linguísticas, culturais, de gostos, etc.
Assim, as escolhas cotidianas ganham peso político, na medida em que são
indicativos de poder e de posição social, além de denotar adesão a este ou aquele
aspecto sociopolítico. Escolhas tão triviais como a preferência por determinado
tratamento gráfico numa publicação ou certo tipo de alimento, levando em
consideração igualmente os aspectos restritivos determinados pelo preço de venda,
posicionam politicamente os sujeitos das escolhas no corpo das relações sociais. O
que antes era denotado pela espacialidade
19
, agora é construído por relações mais
complexas e mais difusas.
Todavia, as escolhas dos sujeitos não são realizadas desprovidas de certos
tipos de tensão. Imersos no mundo, os sujeitos estão a todo momento fazendo e
refazendo suas escolhas. Tomemos as escolhas alimentares: elas precisam ser
realizadas diariamente, não havendo como recair sobre cada uma delas uma
reflexão pausada. Neste sentido, estas são construídas, como muitas outras, no
embate com o mundo e a partir de um aporte de conhecimentos sensíveis e
inteligíveis a respeito dela. Observemos o que pondera Greimas:
Balzac, que amava as mulheres, deixou admiráveis retratos das grandes
damas em trajes de gala. É mais difícil, entretanto, encontrá-las descritas
em seus “exercícios”, por exemplo, no momento em que estão se vestindo:
programa extremamente complexo com tudo o que ele implica de reflexões,
de ajustes, de hesitações. Vestir-se é coisa séria e toda a inteligência
sintagmática é empregada neste ato: eis aí uma sequência de vida “vivida”
como uma sucessão ininterrupta de escolhas e que conduz pouco a pouco à
construção de um objeto de valor. (2002, p. 75)
O vestir-se é coisa séria porque nele estão implicadas escolhas e a
consolidação de tais escolhas corresponde um determinado valor. Imaginemos a
situação de um sujeito numa banca de revista, ele hesita, revira algumas páginas,
passeia o olhar pelo espaço, deixa-se olhar os objetos que ali estão a sair dali
tendo comprado uma delas ou nenhuma... Muitos de nós experimentamos
19 Por exemplo, é de amplo conhecimento as relações de oposição entre os países do hemisfério
norte e sul com a assunção do norte tido como “rico” e do sul como “pobre” (cf. DELPEUCH,
1990).
20
algumas das sensações que estão envolvidas numa situação semelhante de
hesitação e escolha. Num mundo onde parecem existir cada vez mais opções,
especialmente no que tange ao universo ligado ao consumo, como as publicações
se constroem para tocar seus leitores e agir na construção de suas escolhas? Como
descrever e interpretar essas ações da mídia impressa? O que os discursos dessas
publicações nos apresenta sobre seu público?
Ora, as capas de revista são as que primeiro se fazem presentes aos olhares
dos leitores, pois seu modo de presença coloca o todo na parte, sendo elas,
portanto, as escolhidas para a nossa análise. Tomando-se um universo das capas
da revista Gula desde o seu início até o final de 2008, selecionamos quatro
delas para apresentar nessa dissertação. A escolha seguiu uma linha cronológica
que parte da primeira capa (Especial de Estreia); seguindo para a capa da edição
que comemora seu primeiro aniversário (Gula 12), passando pela capa de 150
(cuja chamada de capa é a própria Gula) e fecha com a edição comemorativa de 15
anos (Gula 176). Assim, percorrendo tais edições buscaremos estudar como a
revista constrói seu discurso ao longo do tempo e como tal discurso é configurado na
sua duratividade , procurando, sobretudo, dar visibilidade aos valores nela
encontrados. Cabe aqui lembrar que tal recorte não exclui a referência às outras
edições e nem tampouco às páginas internas das mesmas. Outras capas e matérias
são trazidas ao diálogo, bem como outras publicações da área e os respectivos
contextos culturais, a fim de debater e contrapor-se ao objeto de estudo,
possibilitando a ampliação da reflexão aqui proposta.
A presente pesquisa se organiza a partir dos referenciais teóricos da
semiótica discursiva, buscando compreender por meio das análises das capas
selecionadas os valores postos em circulação nelas. O primeiro capítulo intitulado
Os sentidos da Gula busca apresentar a perspectiva teórica em relação ao objeto de
estudo, detendo-se especialmente sobre os múltiplos sentidos da palavra gula
enquanto marca da publicação. O segundo capítulo apresenta as análises de quatro
capas selecionadas dividida em quatro subcapítulos A vingança de Gula, voltada
para a análise do subtítulo da publicação; O vislumbre o prato, sobre a revista Gula
150; A primeira mordida, sobre a Gula Edição de Estreia; A experiência da
21
degustação, sobre a Gula 12; e 15 anos de Gula: a celebração de um saber
sensível, sobre a Gula 176. Por fim, o terceiro capítulo chamado Considerações
finais, como o próprio nome diz, articula as análises apresentadas nos capítulos
anteriores buscando ampliar suas reflexões dando a ver o percurso narrativo
estabelecido pela revista ao longo do tempo.
23
1 Os sentidos da gula
A palavra é metade de quem a pronuncia
e metade de quem a ouve.
Michel Montaigne
O poema não é feito dessas letras
que eu espeto como pregos,
mas do branco que fica no papel.
Paul Claudel
Os pressupostos da teoria Semiótica discursiva gerados a partir dos
desenvolvimentos da Linguística Estrutural serão os fundamentos teóricos utilizados
nessa pesquisa. É a partir do Cours de linguistique générale
20
proferido pelo linguista
suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) que a compreensão da linguagem como
sistema e a função comunicativa tem origem. Ducrot e Todorov afirmam a este
respeito: “a língua, segundo Saussure, é fundamentalmente (e não por acidente ou
degeneração) um instrumento de comunicação” (2001, p. 26). É assim, a partir da
exposição das ideias de Saussure sobre a língua que os pesquisadores passaram a
realizar indagações concernentes a função comunicativa dos sistemas linguísticos. A
compreensão da linguagem como estruturada a partir de uma organização
considerada inerente à elas, é também derivada desta noção central acima
explicitada. Consequentemente, um sistema passa a ser entendido pelos linguistas
do seguinte modo:
20 Publicação póstuma realizada em Paris (1916) por alunos de Saussure a partir de três cursos
proferidos por ele em Genebra entre 1906 e 1911.
24
[...] para Saussure, as operações necessárias à determinação de uma
unidade (linguística) pressupõem que a referida unidade seja relacionada
com outras e recolocada no âmbito de uma organização de conjunto. [...] os
elementos linguísticos não têm nenhuma realidade independentemente de
sua relação com o todo. (DUCROT; TODOROV, 2001, pp. 26 e 27)
Os elementos linguísticos são assim compreendidos a partir de suas relações
com o todo. Assim sendo, a linguagem é entendida como uma estrutura relacional
cujos elementos são interdependentes. A língua natural passa a ser estudada não
apenas como um arranjo de sons emitidos, mas sobretudo como a organização
desses sons de modo a produzir sentido. A apreensão construída inicialmente pelo
linguista suíço em seus estudos sobre a língua natural também será utilizada mais
tarde pelos semioticistas no estudo de outros sistemas.
A teoria Semiótica desenvolvida por Algidars-Julien Greimas a partir de sua
obra Semântica Estrutural parte dessas concepções teóricas saussurianas.
Conforme nos explica Fiorin:
O projeto semiótico filia-se à tradição saussuriana. De um lado, tem por
objeto não o significado, mas a significação, isto é, um conjunto de relações
responsáveis pelo sentido do texto. Postula que o sentido não é algo
isolado, mas surge da relação. Só há sentido na e pela diferença. Assim, os
efeitos de sentido percebidos pelo falante pressupõem um sistema
estruturado de relações. Por conseguinte, a Semiótica não visa
propriamente ao sentido, mas a sua arquitetura, não tem por objetivo
estudar o conteúdo, mas a forma do conteúdo. Em termos mais simples,
poder-se-ia dizer que a Semiótica deseja menos estudar o que o texto diz
ou por que diz o que diz e mais como o texto diz o que diz. (FIORIN, 1999)
É, portanto, a arquitetura constitutiva do texto que deverá ser contemplada
numa análise semiótica. Buscaremos então compreender como os textos elaboram
seus sentidos a partir de sua estruturação. Na abordagem semiótica o plano de
expressão
21
não está restrito apenas aos sons ou as palavras, mas inclui outras
estruturas de manifestação passíveis de expressarem os significados do plano do
conteúdo. Ainda segundo Fiorin (1999):
21 O plano da expressão pode ser de diferentes naturezas: verbal, gestual, pictórico, etc; e é a
expressão linguística do plano do conteúdo. Segundo Fiorin “Discurso é uma unidade do plano de
conteúdo, é o nível do percurso gerativo de sentido em que formas narrativas abstratas são
revestidas por elementos concretos. Quando um discurso é manifestado por um plano de
expressão qualquer, temos um texto.”. (FIORIN, 2005, pp. 27-41)
25
(A Semiótica) Postula que o conteúdo pode ser analisado separadamente
da expressão, uma vez que o mesmo conteúdo pode ser veiculado por
diferentes planos de expressão (por exemplo, uma negativa pode ser
manifestada pela palavra não ou por um gesto da cabeça ou do indicador).
É, por conseguinte, uma teoria geral dos textos, quer se manifestem
verbalmente, visualmente, por uma combinação de planos de expressão
visual e verbal, etc.
A abordagem de diferentes planos de expressão permitirá ao pesquisador
estudar os significados tanto de textos verbais quanto como de textos visuais, bem
como poderíamos pensar numa abordagem de um texto “gustativo”. Na medida em
que é possível realizar uma análise do plano da expressão de elementos gustativos
ao longo de uma refeição
22
. Muito embora não seja esse o intuito do presente
trabalho.
Cabe ainda lembrar que a construção da significação não se dá numa relação
direta (ou representacional) do mundo. Como pondera Landowski (2005):
efetivamente muito tempo que se sabe que a significação não procede
de relações diretas entre a linguagem e o mundo (entre as «palavras» e as
«coisas») mas que ela toma forma na interação entre co-enunciadores. É
somente ao enunciar ao fazer surgir sentido por seus atos semióticos,
qualquer que seja sua natureza (falar ou gesticular, ou, ao invés, suspender
o gesto, o movimento ou a fala) que os sujeitos se constroem eles
próprios, construindo o mundo enquanto mundo significante.
Por conseguinte, é na enunciação que a significação ocorre, na medida em
que os sentidos são dados numa relação de interação entre sujeitos. Na sequência,
é a partir da enunciação enunciada que poderemos desvelar a construção desses
sentidos, tanto buscando entendê-los enquanto construídos por um destinador
quanto na sua relação com o destinatário. Como avalia Fiorin:
Considerado como totalidade, o discurso é constituído pela enunciação.
Será, então definido como um processo semiótico e, por conseguinte,
englobará os fatos (relações, unidades, operações, etc.) situados no eixo
sintagmático da linguagem [...] (2002, p. 30)
22 Roland Barthes fala sobre a banalização da percepção alimentar em 30 de março de 1977, em um
dos seminários que deram origem à obra Como viver junto, afirmou O problema das
simbolizações alimentares mereceria, por si só, uma enciclopédia. Cheguei a pensar nisso, por
reação contra a comercialização unilateral dos livros de cozinha ´modernos´, que capricha numa
dietética dada como ‘racional’ e parece ignorar completamente que ainda existem, em nossos
dias, uma simbólica e um ritual dos alimentos.” (Apud Cult, 2006, p. 26)
26
Um texto não poderá ser considerado como um corpo definido a partir do
código, mas enquanto uma totalidade definida a partir de seu sentido. Desse modo,
um texto é entendido como um todo organizado de sentido delimitado por dois
espaços de não-sentido. O exame das correlações entre os planos da expressão e
do conteúdo é tomado para compreender-se a construção dos sentidos nos textos,
na medida em que a homologação do plano da expressão com o plano do conteúdo
permite o desvelamento dos sentidos construídos no texto.
Tendo por texto as capas da revista Gula, faz-se necessário considerar a
singularidade construída pelo sincretismo de linguagens presente nelas. Cabe
recordar que o texto sincrético não traz em si apenas uma soma ou uma
justaposição de dois ou mais textos. Ao invés, configura uma hibridação das
linguagens realizando uma nova construção. Nesta via de entendimento, é
perfeitamente possível compreender o texto sincrético como um terceiro texto
passível de ser decomposto em dois ou mais textos diferentes, de acordo com cada
uma das linguagens, mas cujo sentido é composto na relação entre os sentidos
construídos nos diferentes textos, nas suas intertextualidades e intratextualidades.
Isso é visível nas obras de
arte, pois sua construção muitas
vezes explora os limites da própria
construção da linguagem. Por
exemplo, em A traição das imagens,
pintura de René Magritte, texto
visual e verbal são colocados um
“contra” o outro. Nessa obra o
artista torna visível uma construção
da significação gerada na
combinação de texto verbal “Ceci n
´est pas une pipe” e texto visual (a
imagem pintada do cachimbo), estabelecendo uma combinação irônica entre uma e
outra, somadas ainda ao título da pintura “A traição das imagens” (Foucault, 1968).
Essa imagem relaciona-se com as revistas na medida em que ambas trabalham com
Figura 1 - René Magritte. A traição das imagens.
1928-9. Óleo sobre tela. 60 x 81 cm. Los Angeles
County Museum of Art, Los Angeles.
27
o uso da linguagem sincrética para produzir efeitos de sentidos em seus leitores. No
caso da obra de Magritte, ironia e estranhamento.
Se tomarmos como exemplo uma
capa da revista Gula, vemos que as
diferentes linguagens visual, verbal e
espacial estão configuradas de modo a
construir um sentido estabelecido numa
relação entre elas. Um aspecto marcante
é a apresentação de um mesmo discurso
em instâncias linguísticas diferentes, por
exemplo a reiteração do sentido
construído no texto verbal sendo
reforçado como uma figura do texto
visual. Por exemplo, na revista de
150, enquanto no verbal escrito lemos a
respeito da gula, a visualidade apresenta
fotografias de alimentos.
Esse é um padrão usualmente recorrente nas publicações periódicas. Isto
porque a repetição dos temas nas diferentes linguagens procura comunicar o tema
central do qual se fala a fim de elidir qualquer ambiguidade do texto e deixar claro o
tema da publicação. Em Gula, tal como em outras revistas de culinária e
gastronomia, encontramos com frequência fotografias e desenhos de alimentos na
capa, retomando o tema tratado pela revista. A diferenciação entre umas e outras se
dá a partir de nuanças construídas no plano da expressão de modo a configurar uma
identidade da revista.
Os textos da semiótica sincrética devem ser tratados na sua totalidade de
significação e não numa apreensão segmentada, evitando realizar uma análise de
cada linguagem em separado, conforme nos diz Jean-Marie Floch no Dicionário de
Semiótica:
As semióticas sincréticas (no sentido de semióticas-objeto, ou seja, das
magnitudes manifestadas que dão a conhecer) se caracterizam pela
Figura 2 - Capa da revista Gula Nº 150
28
aplicação de várias linguagens de manifestação [...] as semióticas
sincréticas constituem seu plano de expressão e mais precisamente, a
substância de seu plano de expressão com os elementos dependentes das
várias semióticas heterogêneas. Se afirma assim a necessidade e a
possibilidade de abordar esses objetos como “todos” de significação....
(FLOCH, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 233)
23
A multiplicidade de planos de expressão do texto sincrético também indica
uma outra questão, conforme apontado por Ana Claudia Oliveira:
Só o fato de um plano da expressão apresentar-se sincretizado é sinalizador
de escolhas do enunciador para a manifestação de conteúdos ao
enunciatário. Explicitam-se modos de apreensão e de procedimentos
estésicos que o enunciatário, assim como o destinatário na sua captura, é
levado a articular para (re-)construir o que vê, fala, ouve, tateia, aspira,
saboreia, sente corporalmente em movimentos com o corpo todo, além dos
de seu intelecto com o qual o sensível mantém passagens abertas, o que é
indicativo do contexto ou situação que constrói o sincrético em nossas
relações comunicativas. Convivemos com atuações englobantes dos
sentidos nas nossas apreensões do todo partitivo sincrético, uma totalidade
de sentido.(2009, p. 90)
Assim, a enunciação construída a partir do sincretismo por si significa
uma adesão à construção de um simulacro do mundo da vida, ou da semiose do
mundo natural, em que a estesia como procedimento de aproximação é patente.
Isso porque, a semiose do mundo natural não nos é dada num único sistema
linguístico: uma vez imersos no mundo, a nossa experiência nos coloca em sistemas
sincréticos de muitos níveis, inter e intra-sistemas. Ao mesmo tempo em que
saboreamos um alimento, ouvimos uma música ao fundo, lemos um texto e somos
incomodados pelo latidos de um cão. Igualmente vemos o sol, sentimos o aroma de
um assado, vemos sua cor dourada, provamos seus sabor e percebemos a
suculência da carne. Estes são alguns dentre outros inúmeros exemplos vivenciados
cotidianamente. Desse modo, construir um texto sincrético é um um modo de dizer
mais próximo das experiências sensíveis dos destinatários.
23 Tradução livre da versão em castelhano do Dicionário de Semiótica do verbete escrito por Jean-
Marie Floch que segue Las semióticas sincréticas (en el sentido de semióticas-objetos, es decir, de
las magnitudes manifestadas que dan a conocer) se caracterizan por la aplicación de varios lenguajes
de manifestación. (...) las semióticas sincréticas constituyen su plano de expresión y más
precisamente la sustância de su plano de expresión con los elementos dependientes de varias
semióticas heterogéneas. Si afirma así la necesidad – y la posibilidad – de abordar esos objetos como
“todos” de significación ....”(FLOCH, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 233)
29
A escolha pelo sincretismo aponta assim, para um querer fazer do destinador
em que a estesia tem papel fundamental na medida em que esta é capaz de
estabelecer uma relação mais direta entre a construção discursiva e o mundo do
destinatário por aproximação das experiências vividas deste último. Devemos
lembrar também que a alimentação envolve uma construção complexa entre
inteligível e sensível onde aspectos técnicos são conjugados com um refinamento
sensorial. Assim, a escolha pelo sincretismo de linguagens não é banal, na medida
em que reforça nas estratégias enunciativas empregadas um fazer que busca um
arranjo significante entre diversas linguagens.
A revista a qual tomamos como ponto central de análise tem como chamariz o
fato de possuir um nome bastante peculiar: Gula. Outras revistas do setor chamam-
se Água na boca, Mesa Pronta, Menu, Claudia Cozinha, Alta Gastronomia etc.,
relacionam-se a aspectos menos conceituais no que diz respeito à culinária. O nome
Gula faz referência direta ao universo místico judaico-cristão e não uma imagem
culinária posta em evidência, mas muito mais um jogo de linguagem inscrito na
cultura contemporânea e em diálogo com sua história e sua tradição. Em assim
sendo, ao ler o título da revista algo mais que se relaciona para além ao universo
estritamente culinário, é o que denota os sentidos da palavra “gula” .
Do latim, “Gula, æ (ghulla), s. f.” designa “Esôfago, goela, garganta; pescoço.
Fig. Gula” (FARIA, 1962, p. 436 e BLUTEAU, 1712-1728, p. 676), no português
predomina o sentido figurado, “Gula, s. f. Glutonaria; excesso na comida e bebida;
grande amor a boas iguarias.” (FARIA, 1962, p. 436) e “o vício de comer e beber em
demasia” (BLUTEAU, 1712-1728, p. 676); “gula” também designa um dos sete
pecados capitais, segundo Bluteau “[...] comeres proibidos, como fizeram nossos
primeiros pais, que abrindo a boca ao pomo vedado, deram no mundo entrada a
todos os infortúnios” (1712-1728, p. 676). Percebemos então que o sentido original
da palavra “gula” migra da denotação das partes do corpo para a ação humana a
elas relacionada, primeiro à ação de engolir, seguida da ação de muito comer e, por
derivação, ao ato moral na nomeação de um pecado.
Em quais dos sentidos da palavra gula insere-se Gula? Sem dúvida ela se
propõe como objeto uma revista com um título a ser lido e ser visto. Deste modo,
30
indica a presença de um corpo, não à goela, mas ao olho e à mão que e
manuseia a revista, referindo-se também ao corpo no comer e no beber. Mas não o
corpo fisiológico, necessitado de nutrição, mas sim a um corpo outro, que come e
bebe além dos aspectos nutricionais, portanto colocando-se além da justa-medida e
apontando para um aspecto menos funcional da alimentação. Desse modo
poderíamos pensar que se inscreve no aspecto dos excessos ou, ao menos, numa
visão de nutrição que leva em consideração o prazer; bem como indica uma ação
moral pecaminosa. Em suma, inscreve-se numa cultura historicamente determinada.
A fim de entendermos a palavra título da publicação cabe compreender
melhor a concepção de gula enquanto pecado. A própria revista, em algumas
matérias internas de suas edições aponta para essa filiação do nome da revista e a
noção de pecado. A noção de pecado capital tem sua gênese no escopo cristão
medieval, a começar por São Gregório Magno que enumerou oito pecados capitais,
entre eles a “ventris ingluies”. Na acepção dos antigos, a voracidade tinha seu lugar
no ventre. É o vazio do ventre que gera uma boca voraz. Pela semântica da palavra
gula temos a instauração da ausência como vetor dos fazeres da gula, é assim
culturalmente estabelecido, a partir da própria história da concepção de gula, que o
título da revista se coloca no mercado.
A história dos pecados capitais remete aos males que regem outros males,
uma outra elaboração histórica medieval. Vejamos o que nos diz o professor Jean
Lauand sobre os pecados capitais:
Enquanto os dez mandamentos estão enunciados na Bíblia, a doutrina dos
pecados capitais é uma elaboração de pensamento, que é fruto, como diz o
novo Catecismo da Igreja Católica, da "experiência cristã" (...). Essa
experiência é originariamente a dos padres do deserto, que, na radicalidade
de sua proposta, foram realizando uma tomografia da alma humana e
descobrindo, em suas profundezas, as possibilidades para o bem e para o
mal. [...] o monaquismo originário buscava testar os limites antropológicos,
no corpo e no espírito (os limites do jejum, da vigília, da oração etc.). Nesse
quadro, surgiu a doutrina dos pecados capitais... “(2004)
A gula coloca-se então entre as construções culturais do ocidente cristão,
relacionando-se com pensadores ilustres da escolástica, de um cotidiano onde os
sacrifícios tinham lugar como aspecto marcante da religiosidade, particularmente
31
com Tomás de Aquino, autor da noção mais difundida dos sete pecados capitais. O
conceito de pecado é estabelecido como aquele que define uma transgressão
intencional de um mandamento divino:
A transgressão intencional de um mandamento divino (…) não é a
transgressão de uma norma moral ou jurídica, somente a transgressão de
uma norma que se considera imposta pela divindade. O reconhecimento do
caráter divino de uma norma ou a intenção de violar-la, são os dois
elementos deste conceito que se confunde com os de culpa, delito, erro,
etc., que expressam a transgressão de uma norma moral ou jurídica.
(ABBAGNANO, 1991, p. 894)
24
Assim, ao trabalhar com o conceito de gula como pecado instaura-se uma
concepção onde uma divindade posta, divindade esta que dita regras para a vida
e pune àqueles que não as cumprem, seja pela ira divina seja pelos sentimentos
despertados ao transgredir a regra, conforme vimos acima, culpa, delito, erro. Sendo
que a regra estabelecida pela divindade possui natureza diferente daquela
estabelecida socialmente e/ou politicamente, sua transgressão é mais grave, pois à
divindade cabe a potência de punir implacavelmente.
Os pecados capitais o considerados aqueles males morais capazes de
engendrar inúmeros males menores, por isso a denominação de capital, numa
analogia ao corpo humano onde caberia a cabeça possuir ascendência sobre o resto
do corpo. Para Tomás de Aquino, o vício capital é aquele que: “dá lugar a outros
vícios como causa final dos mesmos, ou seja, enquanto tem um fim tão desejável
que, levados por esse desejo do mesmo, os homens se sentem atraídos a pecar de
diversos modos
25
. Na sua obra Suma Teológica, na questão 148, onde o pensador
trata do pecado da gula, considera:
A gula não é toda apetência de comer ou beber, senão somente a
desordenada. Chamamos de apetência desordenada aquela que se aparta
da ordem da razão, na qual consiste o bem da virtude moral. Por isso
24 Tradução livre do original: “La transgresión intencional de un mandamiento divino. (...) no es la
transgresión de una norma moral o jurídica, sino la transgresión de una norma que se considera
impuesta o establecida por la divinidad. El reconocimiento del carácter divino de una norma y la
intención de violarla, son los dos elementos de este concepto mismo se confunde con los de
culpa, delito, error, etc., que expresan la transgresión de una norma moral o jurídica.
(ABBAGNANO, 1991, p. 894)
25 Tradução livre do original: “da lugar a otros vicios como causa final de los mismos, es decir, en
cuanto que tiene un fin tan deseable que, llevados por el deseo del mismo, los hombres se sienten
32
chamamos pecado o que se opõe a virtude. Assim, é evidente que a gula é
pecado.
26
Assim sendo, a gula é pecado ao contrapor-se à razão, pois esta é
considerada o esteio das virtudes morais, portadora da luz. Não seria pois sem
motivo que no jargão popular diz-se “perdeu a razão” para àquele que pratica algum
ilícito ou rompe alguma regra socialmente estabelecida. Percebe-se desde então um
jogo de sentidos colocado no título da revista, dado que stricto sensu gula traz em si
um valor negativo, de transgressão de normas divinas, de pecado e erro. No
entanto, ao se ler Gula na capa de uma publicação presente nas bancas, certamente
o sentido ali posto não é o denotativo.
A figura de linguagem colocada é a da ironia. Segundo Per Aage Brandt no
Dicionário de Semiótica, ironia é:
(…) uma mudança de sentido das palavras por contrariedade ou
contradição, outras vezes consideradas como uma figura de pensamento
[…], é um ato de linguagem de dissimulação transparente, ou seja, um
procedimento de enunciação complexo (desembreado-embreado) no qual
um destinador do discurso trata de transmitir a um destinatário uma
mensagem implícita cujo sentido é diferente (muitas vezes contrário ou
contraditório) da mensagem explicitamente manifestada.
27
(BRANDT, in.
GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 149)
A definição de ironia diz que esta é o uso de uma palavra com o sentido de
seu contrário ou contraditório. Isso é claramente percebido na revista. Em sua capa
a palavra gula surge numa acepção de valores não negativos, aqui ela deve ser
entendida euforicamente pois, ao invés de enfatizar um sentido de culpa, erro, delito
em relação ao comer, busca construir um sentido de afirmação do comer e do prazer
de comer.
atraídos a pecar de diversos modos.” Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte II – II ae (Secunda
secundae), Questão 148 – A Gula.
26 Tradução livre do original: “No es gula toda apetencia de comer o beber, sino sólo la desordenada.
Y llamamos apetencia desordenada a la que se aparta del orden de la razón, en el cual consiste el
bien de la virtud moral. Por eso llamamos pecado a lo que se opone a la virtud. Así, es evidente
que la gula es pecado.” Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte II II ae (Secunda secundae),
Questão 148 – A Gula.
33
Mas qual seria então o sentido eufórico ou disfórico referido na inserção da
palavra gula como nome de uma publicação? Seria então um elogio aos pecados e
uma incitação as regras morais do ocidente cristão? Note-se: essa publicação não
se propõe como vanguarda ou “demolidora” de padrões morais, muito pelo contrário,
propõe falar a respeito da gastronomia, ou da arte construída sobre os fazeres
alimentares ao longo do tempo e, portanto, de uma tradição alimentar. Nesse
sentido, a revista Gula preza a tradição (inclusive a dos alimentos da religiosidade
judaico-cristã brasileira, conforme podemos ver nos números que comemoram
Páscoa, Natal etc.), inscrevendo-se na tradição e com ela fazendo coro.
O contraponto ao pecado é a virtude. Segundo Aristóteles, pensador chave
para a compreensão da religiosidade medieval, em Ética a Nicômano, virtude pode
ser entendida como um hábito que faz o homem bom e permite fazer bem sua
própria tarefa. Tal é a concepção da ética clássica, adotada por grande parte dos
pensadores estoicos chegando até a modernidade. A virtude para Aristóteles
consistia também em encontrar a justa-medida, esta última entendida como o
intermediário entre excesso e carência
28
. Tampouco é esse o sentido da palavra
posta na capa da publicação. Não se trata também de elogiar uma justa-medida no
comer.
A divindade afrontada na ação de pecar pela gula para Tomás de Aquino é
um deus cristão medieval e punitivo, tal acepção de deidade perde força ao longo da
história. Gula poderia assim ser entendida como uma afronta a esse deus medievo,
autoritário e punitivo. Se Gula contrapõe-se ao deus medieval, instala-se assim na
modernidade e dialogo com outras divindades e até mesmo, com uma outra ideia de
divino.
Cronos (ou Júpiter) devora seus próprios filhos, Dionísio (Baco) rege
alegremente o cultivo da vinha, das festas e da embriaguez; Deméter (Ísis, Ceres ou
27 Tradução livre do verbete em que Per Aage Brandt diz: [...] un cambio de sentido de las palabras
por contrariedad o contradicción, otras veces considerada como una figura de pensamiento [...], es
un acto de lenguaje de disimulo transparente, es decir, un procedimiento de enunciación complejo
(desembragado-embragado) en el cual un destinador de discurso trata de transmitir a un
destinatario un mensaje implícito cuyo sentido es diferente (a menudo contrario o contradictorio) al
del mensaje explícitamente manifestado.” (BRANDT, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 149)
28 Interpretação a partir de Aristóteles, Ética a Nicômano, II, 6. e Abbagnano, verbete Virtude (1991,
p. 1191).
34
Cibeles) cuida da agricultura, apenas para citar algumas entidades mitológicas mais
conhecidas. Nem todas essas divindades entendem o ato de muito comer e beber
como uma afronta, muito pelo contrário, Dionísio refestela-se e é comemorado no
excesso e na embriaguez de seus leais súditos, Cronos é o devorador e Ceres tem
por dádiva a abundância. Algumas dessas figuras podem ser encontradas nas
reportagens da revista, seja no texto verbal seja no texto visual.
Os deuses gregos e romanos foram considerados como seres demoníacos a
partir da hegemonia da Igreja durante longos períodos da história, tanto quanto
haviam sido sagrados em tempos antigos. Estas divindades terminaram relegadas
aos campos, daí a terminologia “pagão”, segundo Pauli:
Enquanto as cidades, principalmente as maiores, se haviam tornado cristãs,
a zona rural persistiu em suas anteriores tradições. Dali a mudança do
sentido do termo latino paganus (= pagão), morador do pagus (= pago,
aldeia, campo), para significar simplesmente o não cristão. (1997, pp. 7270
e 165).
Como contraposição ao fascínio exercido por eles e como forma de fazer
frente a tal encantamento, os que antes eram deuses passavam a ser
compreendidos como demônios
29
. Dionísio talvez seja um dos exemplos mais
marcantes dessa transformação, primeiro festejado, depois execrado. Todavia, a
“queda” desses seres mitológicos para a condição diabólica não os fez perder seu
encantamento.
Na revista Gula o título instaura um dizer irônico, pois se por um lado remete
a um Deus da tradição judaico-cristã tão referendada na sociedade brasileira
(reforçada ainda no subtítulo da revista que se refere à vingança e do qual
trataremos adiante), por outro elege o prazer do livre comer dionisíaco e da
abundância de Deméter. De um lado remete à cartilha de um Deus medievo que
rege os banquetes de Páscoa e Natal
30
e por outro se anima com um alegre
29 Muito embora haja uma diferenciação sutil de sentidos a respeito das palavras diabo, demônio e
outras similares, no presente trabalho iremos tomá-las como sinônimas sem nos determos em tais
diferenciações mais teológicas.
30 Como exemplos ilustrativos estão: a edição 102 chama-se “Especial Páscoa”, as edições 41 e
77 apresentam receitas de bacalhau no mês de março, alimento considerado tradicional para
celebrar a festividade; a edição 85 chama-se “Especial de Natal”, a 16 chama-se “Edição de
Festas” e traz como chamada principal na capa a frase “Quem celebra o Natal exige peru”; a 181 é
35
demônio dionisíaco incitador da embriaguez e dos prazeres do corpo. Mas tentemos
compreender melhor a quais deuses e demônios essa publicação reza que a
publicação é de outro tempo e, por assim dizer, tempo de outros deuses.
Na sua inserção numa tradição de bem comer, a publicação não o faz por um
excesso orgiástico, no sentido em que a revista é regida pelo discurso verbal da
racionalidade filiada à química da gastronomia contemporânea
31
. A publicação
propõe não um fazer dionisíaco e desregrado, embora em alguns momentos, para
despertar no corpo determinada sensibilidade flerta com tais prazeres, parecendo
por eles buscar.
O banimento de Dionísio para o limboo leva consigo Deméter. Tal deusa é
sempre visível na necessidade de abundância. Abundância alimentar sempre foi
considerada um símbolo de riqueza assim Deméter, deusa da fertilidade da terra e
protetora da agricultura acaba sempre por
permanecer, ainda que à sombra e ao lado
das novas tecnologias de cultivo a fim de
promover a fartura das mesas. Gula não
cultiva Deméter, mas a respeita. Não é
acaso que volta e meia surge ao longo da
revista referências aos produtores rurais e
aos agronegócios.
O titã Crono, depois que Urano e
Gaia profetizaram que seria destronado por
um dos filhos, passou a devorar os filhos
imediatamente depois do nascimento. Crono
não se mostra dessa maneira na revista,
mas a publicação com ele dialoga. A
imagem de Crono é assustadora, por aquilo
“Bolos de Natal”; a 145, “Árvores de Natal”; a 157 é “Panettone”, entre muitos outros números ao
longo dos anos que fazem referências diretas ou indiretas a essas festividades religiosas.
31 Tal filiação é visível especialmente na cozinha de Ferran Adrià, chef catalão, considerado o melhor
do mundo atualmente, em que os pratos são elaborados num “laboratório” e recorre à sofisticados
processos químicos para alterar molecularmente os alimentos a fim de que se transformem de
sólidos em líquidos, vapores, géis etc. Vide Gula Nº 104 e 161.
Figura 3 - Reprodução da pintura de
Caravaggio denominada Baco adolescente
ilustra matéria interna da Gula Nº 83.
36
que representa e revela. Esse titã é a voracidade do tempo, ícone da modernidade
na imagem do fastfood é também a imagem do poder e da fome, banida da face
visível da revista, mas presente no universo cultural na qual se insere.
Assim, o título de Gula parece revelar uma relação com a tradição, com o
pecado, com o Deus medieval envelhecido no seu poder de punir, com Deméter,
mãe da riqueza, com Dionísio nas suas vinhas e tenta contrapor-se a Crono, numa
tentativa de não ser por ele devorado. Essa contraposição à Crono pode ser
compreendida também como a uma contraposição ao um comer apressado, premido
pelo tempo urbano em sua velocidade crescente. Ou talvez ainda, a um comer que
busca se contrapor a esse comer apressado, corriqueiro e quase insensível. Sobre
essa questão cabe lembrar um movimento social chamado Slow Food
32
que busca
fazer frente a um estilo de vida que destaca a alimentação rápida um de seus
ícones.
Porém, se a revista não incorpora os valores tradicionais ao utilizar o nome
Gula e o subtítulo Comer bem é a melhor vingança ironicamente, ao mesmo tempo
reafirma sua atualidade como referência na medida em que são palavras fortes na
cultura para serem eleitas como título da revista. Podemos nos perguntar qual é o
sentido da gula de Gula, que uma distância do universo de origem da palavra,
mas ainda assim existe uma referência clara a um universo de valores religiosos.
Consideramos que se a escolha do nome da revista busca filiá-la a uma tradição,
vinculando-a aos valores de uma parcela da sociedade brasileira cuja religiosidade
foi sendo transformada ao longo dos anos, ela também atende aos valores próprios
da atualidade. Tais valores podem ser percebidos na contrariedade estabelecida
entre o sentido histórico da palavra gula e o sentido atualizado pela uso na revista
de enograstronomia.
Sabemos que Gula não toma o sentido estrito da palavra gula como sentido
construído no seu discurso. No entanto, mostra explicitamente que conhece a
origem da palavra apontando para esse sentido estrito
33
. Assim, parece buscar o
32 O Slow Food é tratado na edição de Gula 148, numa entrevista com Carlo Petrini, italiano,
fundador desse movimento internacional. Foi lançado por um manifesto endossado por
representantes de 15 países em 9 de novembro de 1989. (http://www.slowfood.com/)
33 Isso é especialmente visível na matéria “O pecado da gula” na edição de número 150.
37
resgate de um valor do passado para o presente, mas o faz de modo a alterar esse
valor ao retirá-lo do discurso religioso e colocá-lo em circulação no mercado por
meio da mídia impressa. O escopo no qual está inserido o sentido da palavra gula
como título da publicação é, em conformidade com o que colocamos, o do mercado
editorial da atualidade.
O sentido da palavra gula nos dias atuais não pode ser entendido no seu
aspecto religioso, ainda que tenha no discurso religioso a sua origem. A ironia é
instaurada não tanto por aspecto de oposição em relação à virtude como
poderíamos supor num primeiro momento, mas antes, como contrariedade,
indicando a ausência de um ethos sinalizado, de uma moral dogmática instituída
como dominante e construída como gestora social.
Seria ingênuo entender a ironia de Gula em seu título como uma afirmação da
virtude, visto que junto ao esvaziamento moral do aspecto pecaminoso há também
um esvaziamento da virtude como seu contrário complementar. A publicação nem
condena o pecado, nem exalta a virtude. A suspensão de juízo que perpassa a
narrativa de Vilém Flusser em A história do diabo, livro em que trata dos sete
pecados capitais numa perspectiva pós-moderna (2005), deixa claro que a ironia
posta nos dias atuais não é construída sobre uma contraposição de valores, mas
numa relação menos radical e, podemos dizer, de maiores sutilezas, onde de um
lado existe a presença dos valores e de outro a ausência dos mesmos.
Nesse mundo cambiante a noção de pecado e virtude também é volátil.
Assim, podemos perceber a ironia de Gula como um jogo de sentidos que ora
coloca-se na contraposição histórica entre pecado e virtude (dois opostos
claramente estabelecidos), ora na contraposição contemporânea entre valores e não
valores (ou novos valores), numa relação de contrariedade.
39
2 Análises
O problema da interpretação consiste
na dificuldade psicológica da imparcialidade verídica.
Câmara Cascudo
Figura 4 - Reprodução das quatro capas analisadas
43
Nesse momento buscaremos analisar as revistas selecionadas.
Primeiramente pretendemos compreender como é construído o sincretismo de
linguagens nas capas da revista Gula, tendo em vista o desenvolvimento de um
estudo sobre as estratégias enunciativas empregadas por essa publicação. O
entendimento do uso do sincretismo constitui parte fundamental da pesquisa em
andamento na medida em que as revistas são construídas, conforme dissemos,
numa relação estreita entre textos verbais escritos e textos visuais. Mais do que
apenas utilizar a construção discursiva de um e de outro, o estudo do sincretismo
permite apreender a complexidade do todo, como se este fosse um terceiro texto
constituído pela integração dos dois primeiros.
Foi ressalvado anteriormente, nas revistas de culinária e de gastronomia a
construção sincrética é complexa e a articulação entre textos visuais e verbais criam
discursos singulares, muitas vezes compondo a própria identidade da revista. A
utilização do sincretismo pela revista Gula destaca-se como modo de construção
discursiva no segmento de revistas especializadas, pois inicia um uso diferenciado
dos textos visuais e verbais estabelecendo um novo modelo entre as revistas desse
segmento. Isto posto, realizaremos a análise do texto capas de Gula na sua
especificidade enquanto texto sincrético e tendo sua significação construída numa
totalidade composta de duas linguagens. Para tal análise, nos deteremos num
primeiro momento sobre o plano da expressão, na medida em que o sincretismo
nele é constituído.
Iniciaremos nossa análise a partir da superfície manifestada em estado bruto,
segundo a terminologia empregada por Greimas, coberta de regiões plages
indiferenciadas. Ou seja, será a partir de uma primeira delimitação, àquela que
estabelece o sentido entre duas regiões de não-sentido (OLIVEIRA, 2004, pp. 82-
92)
34
. No caso de nossa capa, é a materialidade mesma do objeto, seu formato
retangular vertical que estabelece os primeiros limites composicionais de um todo
34 O sentido é assim tomado como a descontinuidade configurada numa continuidade. A noção de
valor também é construída nessa mesma relação entre descontinuidade e continuidade.
Estabelecendo as relação de contradição e contrariedade segundo o modelo semiótico podemos
desenhar o seguinte diagrama:
Valor/Descontínuo Desvalor/Contínuo
Não-desvalor/Fragmentação Não-Valor/Relação
44
passível de ser apreendido como texto. Tal recorte, embora parecendo um
preciosismo descabido, não o é na medida em que poderíamos tomar a apreensão
do objeto num outro recorte, por exemplo, o da banca de revista. Neste caso, o texto
seria o todo da banca em contraposição à cidade e assim por diante. Ainda ressalta
Greimas, é o olhar leitor (ou a intenção do produtor) que constitui o sentido ao ser
capaz de apreender certas regiões (plages) isolando e discriminando, ou seja,
fazendo delas uma "superfície cheia” (GREIMAS Apud OLIVEIRA, 2004, pp. 82-92).
A apreensão dos elementos constituintes de sentido na mídia impressa é
produto de uma semiose composta pela visualidade e sendo assim compreendidos
como formantes figurativos. Sobre os formantes figurativos Greimas esclarece:
[...] O crivo de leitura, de natureza semântica, solicita por conseguinte o
significante planar e, assumindo feixes de traços visuais, de densidade
variável, aos quais constitui em formantes figurativos, dota-os de
significados, transformando assim as figuras visuais em signos-objetos. O
exame mais acurado do ato de semiose mostraria bem que a principal
operação que o constitui é a seleção de certo número de traços visuais e
sua globalização, é a apreensão simultânea que transforma o feixe de
traços heterogêneos num formante, vale dizer, numa unidade do significante
que pode ser reconhecida, quando enquadrada no crivo do significado,
como a representação parcial de um objeto do mundo natural. (GREIMAS
Apud OLIVEIRA, 2004, p. 82)
Enquanto construtor do sentido do texto, cabe ao leitor a eleição dos feixes
significantes, na medida em que, conforme reitera Denis Bertrand “A leitura consiste
em antecipar-lhe a existência e em atualizar, nos encadeamentos e elipses do texto,
os elementos sêmicos que serão compatíveis com ela.” (BERTRAND, 2003, p. 190).
São assim os elementos sêmicos - feixe de traços heterogêneos atualizados
pela leitura - os constitutivos dos formantes. No texto plástico, os formantes podem
ser compreendidos em categorias plásticas, a saber, categorias cromática (pictural),
categoria eidética (gráfica) e categoria topológica (espacial). Tais categorias
constituem o nível fundamental da forma do significante.
Voltando ao nosso recorte, nomeado “capa”, seu feixe de traços visuais pode
ser apreendido enquanto uma estrutura retangular vertical constituída por papel
impresso em policromia. Ao olharmos as capas de 12 edições da revista do
45
número 144 até a de número 156 (de outubro de 2004 a outubro de 2005), podemos
perceber no plano da expressão e no plano do conteúdo algumas recorrências na
capa de Gula. Trataremos inicialmente dessas repetições configuradoras da
identidade da revista, para depois trabalhar com as especificidades da capa
escolhida.
A primeira repetição observada é a marca do enunciador dado pelo título
“Gula” apresentado na parte superior da página, seguido logo abaixo pelo site
“www.gula.com.br” e pela frase-slogan “Comer bem é a melhor vingança”. Acima do
código de barras após o título da revista está a assinatura do destinador “Editora
Peixes”. Na vertical ao lado do “a” encontra-se o código de barras, número do ISSN,
data, número da edição e preço. As fontes utilizadas no título também são mantidas
como marcas identitárias da revista.
A construção da identidade dessa revista se pela repetição, ou seja, “a
identificação será uma operação, assumida por um observador, consistindo no
reconhecimento da coerência dos diversos papéis sucessivos assumidos por um
mesmo ator”, conforme nos diz Jacques Fontanille no Dicionário de Semiótica
(FONTANILLE, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 135)
35
. O recurso da repetição
como elemento de construção da identidade de uma marca ou revista é muito
comum nas propagandas de modo geral e nas revistas em particular. A revista Gula
insere-se assim, como mais uma publicação a utilizar um recurso tradicional da
35 Tradução livre da versão castelhana do Dicionário de Semiótica onde o colaborador Jacques
Fontanille escreve: la identificación será una operación, asumida por un observador, consistente
en el reconocimiento de la coherencia delos diversos roles sucesivos asumidos por unmismo
actor” (FONTANILLE, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 135).
Figura 5 - Cabeçalho da Gula Nº 144 e Nº 156.
46
repetição do cabeçalho construído por um retângulo horizontal localizado na parte
superior do retângulo vertical da capa
36
, mantendo um padrão comum nas revistas
utilizado para diferenciá-las e demarcar sua identidade singular, buscando deste
modo construir sua marca. Em Gula, a singularidade construída pode ser percebida
no texto verbal denotativo do nome da revista, na topologia
37
dos textos verbais e
visuais, especialmente nome e fotografia de capa e no cromatismo do título sempre
em contraste com o fundo.
Outro recurso muito utilizado nas capas dessa publicação é a reserva de
verniz UV
38
nas letras do título, bem como na fotografia da capa, enquanto o restante
do papel não recebe este tratamento. Na edição 141 fica evidente a presença do
verniz aplicado num recorte da fotografia de um frango assado. Em outras edições,
de acordo com a fotografia utilizada, o recurso da reserva de verniz fica menos
evidente, embora sempre crie um efeito de luz, produzindo brilho tanto no título,
como criando um efeito de destaque do prato presente na fotografia e assim chama
a atenção do enunciatário-destinatário. Porém, cabe lembrar sobre o efeito
produzido, salvo exceções, que este não se revela facilmente ao leitor menos atento.
O sentido do tato é aguçado no uso de um papel diferenciado, a capa é
impressa em papel Couché Image Mate 145 g/m2 e o miolo da revista em papel
Couché Kromma Gloss 80 g/m2, ambos produzidos pela Ripasa. O papel utilizado é
considerado um papel nobre em se tratando de periódicos, em geral esse tipo de
papel é utilizado em livros e produtos de maior perenidade. Conforme nos diz Ana
Claudia de Oliveira:
Quando abalado pelo evento sensível, que exerce no seu fazer o papel de
um outro, essa outridade toca invasoramente o sujeito: “O tato se situa entre
as ordens sensoriais mais profundas, ele exprime proxemicamente a
intimidade optimal e manifesta, sobre o plano cognitivo, a vontade de
conjunção total.” (Da Imperfeição, p. 36). Essa vontade com um propósito
tem pois um modo próprio de concretização e: “(...) o tato, a mais profunda
36 Algumas revistas de vanguarda destacam-se por “desobedecer” esse padrão editorial de colocar o
nome da publicação num retângulo superior horizontal optando por utilizar o nome na vertical (Cf.
BUORO, 2006).
37 Semioticamente entenderemos por topologia a regulação da disposição das configurações
plásticas no espaço bi ou tridimensional (cf. verbete “Topológica” escrito pelo colaborador Félix
Thurlermann in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 263)
38 A reserva de verniz é um recurso tecnológico recente e tem sido considerado “moda entre os
profissionais do mercado gráfico. Nesses últimos anos o recurso da reserva de verniz tem sido
47
das sensações a partir das quais se desenvolvem as paixões do ‘corpo’ e da
‘alma’, visa, no final de contas, a conjunção do sujeito e do objeto, única via
que conduz à ‘esthésis’” (Da Imperfeição, p. 85). A esthésis já é
significação. (2003)
Assim, o sentido criado pelo tato ao destinatário da revista produz uma
sensação profunda e cria uma significação diferenciada no toque macio do papel e
na gramatura que oferece resistência e convida o destinatário não a contatar a
revista em uma leitura mais mansa, mas a guardá-la para com ela manter contato e
interação. Do mesmo modo, o verniz engendra uma exploração visual pelo brilho e
tátil por ser mais liso, construindo um sentido de refinamento e sofisticação,
reiterando um sentido de excesso que perpassa a construção dos sentidos da gula.
O sentido do tato também é evocado por Tomás de Aquino ao se referir ao pecado
da gula: “Por isso é correto incluir entre os vícios capitais a gula, que se ocupa dos
deleites do tato, que são muito importantes entre os deleites”
39
. Não como deixar
de ressalvar, o tato desperto pela configuração material da revista também constrói
sentido na sua relação com o texto verbal na significação do título da mesma.
A tipografia utilizada para escrever o título “Gula” possui formas bastante
arredondadas, com traços remetendo a uma forte modulação, serifas adnatas,
abertura pequena, alto contraste e eixo racionalista
40
, consistindo um diferencial o
terminal marcadamente circular que pode ser observado na letra a final do título
Gula, remetendo a um estilo encontrado na família de fontes Fleichmann
(BRINGHURST, 2005, pp. 142 e 249). Uma aparência ao mesmo tempo elegante e
informal pode ser percebida no desenho dessa fonte. A elegância pode ser atribuída
à definição das letras, na serifa adnata e na abertura pequena. Por sua vez, a
informalidade pode ser percebida nas linhas curvas que levam o olho do enunciador
a realizar voltas, criando uma leitura/escrita próxima da letra cursiva, do fazer
manual da caligrafia elaborada que exige um movimento circular na escrita das
letras. Fazer manual esse também característico dos diversos fazeres propostos
amplamente utilizado em capas de livros e revistas como um diferencial capaz de produzir um
sentido de riqueza, dado que sua utilização é considerada refinada pelo valor mercadológico
superior ao verniz comum.
39 Tomás de Aquino, Suma Teológica, Parte II II ae (Secunda secundae), Questão 148 A Gula,
tradução livre da versão em castelhano do seguinte trecho: “Por eso es correcto incluir entre los
vicios capitales a la gula, que se ocupa de los deleites del tacto, que son muy importantes entre
los deleites”.
48
pela revista, num voltear característico do mexer os alimentos nas panelas, também
volteando o braço. Outro aspecto reiterado é a forma das letras configurando um
grande peso que marca a presença da forma redonda, da força, da solidez e da
consistência.
uma clara alternância de traços finos e delicados com uma volumetria nas
hastes cuja passagem entre uma e outra é atenuada pela sinuosidade,
particularmente visível na base da letra “g” e na curvatura inferior da letra “u”. Esta
última possui uma serifa unilateral estabelece uma ligação suave com o “l” que logo
é sucedido pelo “a” ornamentando e volumoso. Assim, iniciando a leitura do título
“Gula” pelo alto do “g” maiúsculo o olho desce e segue até o “u” onde realiza uma
subida e uma descida seguida de outra descida até encontrar o “l” onde sobe e
desce até chegar ao “a” final. Com exceção do “G” todas as outras letras são
minúsculas, embora ocupem quase 2/3 da altura da letra maiúscula, revelando uma
hierarquia e criando na letra “G” um sentido de boca que se abre e fecha, se
alimentando com as letras subsequentes do restante da palavra. No entanto, este
alimentar não ocorre avidamente, mas num tempo medido pelo espaçamento entre
as letras “u”, “l” e “a” que, nas suas curvas mais suaves e na sua horizontalidade,
remetem não a um devorar do “G”, mas ao saborear lento, remetendo à degustação.
O fazer manual apresentado na escolha da fonte, nas curvas realizadas pelo olho do
enunciatário-destinatário da revista é renovado pelo significado da palavra escrita
“Gula”, que imediatamente remete à significação da gula com sua relação ao que é
redondo, gordo, guloso, obeso, pelo mexer as panelas, manusear as massas e
outros ingredientes culinários, pelo “lamber os dedos”, como se a tinta farta utilizada
na tipografia vazasse aos dedos do leitor, tal como um alimento úmido.
Quase que imediatamente à leitura do título, lemos logo abaixo algumas
informações adicionais, o endereço do site em letras minúsculas, a frase-slogan,
seguido do código de barras e da logomarca da editora. Todos esses elementos
formam um bloco que corresponde ao título da revista que se repete quase
invariavelmente em todas as edições analisadas. Assim, logo abaixo do “g”
maiúsculo do título e tomando toda a sua largura, lemos “www.gula.com.br”. A fonte
40 Para maiores informações sobre os termos utilizados para a descrição da fonte ver Robert
Bringhurst, Elementos do estilo tipográfico (2005, pp. 18-21 e 352-365).
49
utilizada para dar o endereço do site é sem serifa, todo em minúsculas, como é
característico dos endereços virtuais e possui uma aparência bem mais leve se a
compararmos com as outras fontes presentes no cabeçalho. Essa leveza, dada pela
linha mais fina e pelas letras minúsculas, relaciona-se com a agilidade da internet e
identifica o texto verbal ali escrito como sendo algo de mais moderno, mais leve e
mais rápido do que os apresentados no material impresso, também constrói o bloco
informativo sem promover um destaque que poderia gerar a migração de uma mídia
para outra.
Gula é não somente o nome da revista, é também uma construção complexa
e patêmica posta em uma única palavra. Conforme foi mencionado anteriormente,
gula é a ação do comer gerada pelo vazio do ventre, para além de ser a ação de
comer é um comer quantificado e qualificado. No discurso, as ações são indicadas
pela narratividade construída no texto. José Luiz Fiorin explica que a narratividade é
“uma transformação situada entre dois estados sucessivos e diferentes. Isso
significa que ocorre uma narrativa mínima, quando se tem um estado inicial, uma
transformação e um estado final.” (2005, p. 27). Assim, como a palavra gula
apresenta uma ação e sendo ação configura-se como um ato de transformação
entre um estado e outro. Temos assim um percurso que estabelece um estado inicial
de um sujeito que traz um vazio no ventre (estado de ausência) e que busca suprir
esse vazio por meio do alimento na ação de comer. Esse comer é um comer
qualificado e, portanto, modulado. A ação transformadora da gula modifica o sujeito
pelo alimentar-se de modo quantitativo e qualitativo tendo um estado final do sujeito
completo, em conjunção com o objeto de valor boa comida em quantidade. Assim
temos a narratividade de base
41
da gula sinteticamente em: um sujeito que realiza
uma ação (comer) em relação a determinados objetos (comida) com determinadas
qualidades (comida diferenciada) e de determinado modo (bem comer, comer muito,
comer com fartura).
41 Segundo Denis Bertrand: “[...] o programa narrativo constitui a operação sintáxica elementar da
narratividade. Ele garante a transformação de um enunciado de estado inicial (o sujeito está
disjunto do objeto, por exemplo) em um enunciado de estado final (o sujeito está conjunto com o
objeto) pela mediação de um enunciado de fazer. A estrutura de um texto narrativo apresenta uma
arquitetura complexa de programas, que podem ser repetidos (de revés em revés para chegar ao
êxito, marcando assim a dificuldade da prova), intercalados (um programa pode ser suspenso ou
desviado pela realização de outros programas), hierarquizados (a realização de um programa “de
base” pode exigir, para se cumprir, a realização de programas intermediários, ditos “de uso”).
(2003, pp. 302, 303).
50
2.1 A vingança de Gula
Acompanhando a largura das letras do título,da revista Gula no espaço das
letras “u”, “l” e “a” encontra-se a frase-slogan “Comer bem é a melhor vingança”.
Esta frase também está em fonte sem serifa, mas toda ela aparece em maiúsculas,
destacando-a do site, com maior importância e relacionando-a de modo direto ao
nome da publicação. Ela aparece suprimida nas edições de N° 147 e 151. Em
edições mais antigas, anteriores à uma reformulação gráfica da revista
42
, ela era
apresentada com a mesma fonte do título. A partir da reformulação editorial da
publicação a escolha da tipografia é alterada, buscando-se substituir uma tipografia
de influência barroca ou rococó por fontes de maior leveza e menor ornamentação.
Desse modo, nas capas anteriores à reformulação editorial havia uma identificação
direta entre o título e a frase colocada abaixo dele, enquanto que após as
alterações, houve uma alteração dessa identificação entre frase e título, realizada
pela escolha de tipografias diferenciadas. Observamos que nas edições posteriores
à reforma editorial uma maior visibilidade do título e uma atenuação da força da
frase, pela diferenciação da tipografia.
Ao colocar essa frase após o título sem pontuação, a mesma configura-se
como subtítulo da revista. O enunciador de Gula estabelece uma relação de
identidade entre os dois termos, numa operação de delegação de voz entre “Gula” e
“Comer bem é a melhor vingança”. Logo, temos como significação predominante da
palavra “gula” uma noção que está voltada para uma ação de“comer bem” conforme
apontamos no quadro abaixo. Todavia, também reitera um estado patêmico ao
inserir a figura da “vingança” como equivalente ao “comer bem”, e por derivação, à
42 A partir da edição de 103 a revista passa a ter um formato menor e as fontes são modificadas
para um tipo gráfico mais suave. Na revista de Nº 128, no editorial Dias Lopes explicita a mudança
“Enfim, gostaríamos de ressaltar que, nesta edição, consolida-se a reformulação gráfica da revista,
orquestrada há nove meses pelo criativo editor de arte Ken Tanaka.” (p. 10).
51
própria gula. Estabelecemos então as seguintes relações de identidade num jogo de
palavras presente no texto verbal:
Tabela 01
Título Frase-slogan
Gula Comer bem é a melhor vingança
Gula Comer
Gula Comer bem
Gula é a melhor
Gula vingança
Gula (pecado) vingança (pecado)
A vingança também é uma palavra possuidora de uma narratividade nela
inscrita. Eis o que nos diz Greimas ao analisar a vingança:
A vingança se encontra definida como “querer, desejo de se vingar” [...]
sendo “uma ação” e assim ela pode ser considerada de duas maneiras:
- como a “compensação moral do ofendido pela punição do ofensor”,
- ou como a “punição do ofensor que compensa moralmente o ofendido”
o que é um modo um pouco pesado de dizer que a ação em questão
concerne a dois sujeitos e busca restabelecer entre eles o equilíbrio
perturbado com a ofensa (e, acrescentemos, da decepção). Vemos portanto
que não se trata de uma simples liquidação da falta que situa o PN
43
ao
nível da circulação dos objetos de valor, mas de um acordo entre sujeitos,
onde um deve “compensar moralmente” e o outro “punir”. (1983, p. 241)
44
43 No Dicionário de Semiótica, Greimas entende a narratividade como “um princípio mesmo da
organização de qualquer discurso narrativo (identificado, num primeiro momento, com o figurativo)
e não-narrativo”. Mais adiante complementa: “O reconhecimento de uma organização discursiva
imanente (ou da narratividade, em sentido amplo) coloca o problema da competência discursiva
(narrativa) [...] competência essa que pode ser considerada um pouco metaforicamente como
uma espécie de inteligência sintagmática cujo modo de existência, à maneira da “língua”
saussuriana, seria virtual)”. Ao final sintetiza: “No projeto semiótico, que é o nosso, a narratividade
generalizada liberada do sentido restritivo que a ligava às formas figurativas das narrativas-
ocorrências é considerada como o princípio organizador de qualquer discurso. Como toda a
52
Enquanto o ato de comer é absolutamente individual, a vingança estabelece a
necessidade de uma relação social entre sujeitos. Ao compor uma identificação
entre “gula”, “comer” e “vingança” temos uma rede de relações de ações, qualidades
e quantidades postas nesse jogo discursivo. Se comer é ato corriqueiro e usual, a
gula é um comer diferenciado em quantidade e qualidade, tanto um como outro são
atos que colocam numa relação entre sujeito e objeto, comensal e comida. a
vingança insere nessa relação um componente tensivo ao inserir na esquema um
terceiro sujeito que, conforme visto em Greimas, possui um percurso próprio de
reparação ou compensação moral de uma falta realizada por outrem.
A inserção da palavra vingança no escopo do discurso de Gula estabelece
uma narratividade na qual um sujeito, que se encontra num estado de ofendido, ou
seja, de alguém que sofreu algum dano, procura uma reparação moral desse dano
por meio do “comer bem”, punindo com isso o seu ofensor. Ademais, o estatuto
qualificativo da vingança é também definido como “melhor” na afirmação da frase
“Comer bem é a melhor vingança”. Assim, as ações de “comer bem” e “gula” não
são identificadas como reparadoras de um dano, mas igualmente são colocadas
como a melhor forma de realizar essa reparação moral. Existe então um indiscutível
sancionamento positivo da ação da “gula” e do “comer bem”.
A sanção positiva em relação ao comer pode ser atribuída a duas vozes
distintas, a primeira do próprio destinador/enunciador que a ver, pela leitura do
texto verbal, sua posição eufórica em relação a gula explicita no subtítulo. A
segunda voz que se coloca é a de uma generalidade, de um grupo social. Isto
porque a frase “Comer bem é a melhor vingança” não é uma criação exclusiva dos
editores da revista, mas uma versão de um ditado popular atribuído aos bascos que
dizia “Viver bem é a melhor vingança” que, depois de certo tempo, foi adaptada
pelos amantes das iguarias para “Comer bem é a melhor vingança” (cf. CARLOS,
semiótica pode ser tratada seja como sistema, seja como processo, as estruturas narrativas
podem ser definidas como constitutivas do nível profundo do processo semiótico” (GREIMAS;
COURTÉS, 1989, p. 294-297)
44 Tradução livre do trecho: “La vengeance s'y trouve définie soit comme « besoin, désir de se
venger » - ce que nous avons déjà examiné -, soit comme « une action » et alors elle peut être
considerée de deux manières:
- comme le « dédommagement moral de l'offensé par punition de l'offenseur »,
53
p. 2006). Assim sendo, a voz emprestada do adágio popular insere na publicação
uma sanção positiva da própria sociedade em relação ao “comer bem”.
- ou comme la « punition de l'offenseur qui dédommage moralment l'offensé »,
ce qui est une façon un peu lourde de dire que l'action en question concerne deux sujets et
cherche à rétablir entre eux l'équilibre pertubé à la suite de l'offense (et, ajouterons-nous, de la
déception). On voit pourtant tout de suite qu'il ne s'agit pas d'une simple liquidation du manque qui
situerait le PN au niveau de la circulation des objets de valeur, mais d'une affaire entre sujets, dont
l'un doit être « dédommagé moralment » et l'autre « puni ».(1983, p. 241).
Figura 6 - Capa da revista Gula Nº 150
57
2.2 O vislumbre do prato
Após a leitura do título, o olho do destinatário é levado a um retângulo vertical
de fundo branco acompanhando na largura a mesma altura das letras minúsculas do
título. A largura do retângulo é bastante próxima da largura da letra “l” do título.
Dentro deste retângulo, virando a revista, podemos ler: “ISSN 0104-6306”, em letras
maiúsculas, abaixo destes números está o desenho do código de barras com seus
respectivos meros e abaixo deste, lemos: “Abril 2005 nº 150 ano 12 R$ 9,90”,
nessa mesma distribuição de maiúsculas e minúsculas, bem como na ausência de
pontuação. São informações de mercado que reiteram o valor da revista presente no
mercado editorial brasileiro. As letras dessas informações estão sem serifa, com a
exceção do ISSN que aparece com serifa. A ausência de pontuação determina um
ritmo rápido de leitura, sendo que o espaçamento entre os blocos informativos
realiza a tarefa de distinguir as informações dando clareza à leitura.
Acima do retângulo vertical onde vemos o código de barras, entre o espaço
vertical do topo do “g” maiúsculo e das outras letras do título em minúscula podemos
ver a logomarca da editora, escrito em letras maiúsculas embaixo do desenho da
logomarca o texto verbal “Editora Peixes”. O desenho da logomarca compõe-se de
um círculo de fundo branco com um “x” vazado no lado esquerdo que acompanha a
cor de fundo da capa. A imagem do “x” vazado aparece-nos como o formato da
cauda estilizada de um peixe. A palavra “editora” aparece menor que a palavra
“peixes”. Esta última ocupa toda a largura do círculo do desenho da logomarca,
enquanto a palavra “editora” ocupa uma área um pouco menor. Um novo sentido é
aqui estabelecido se tomamos a simbologia da figura do peixe relacionado aos
primeiros cristãos e o contraponto que é estabelecido com o nome da revista gula
na sua acepção religiosa, conforme dissemos, um dos setes pecados capitais.
Este enunciador delega voz para o título Gula, que por sua vez delega voz para o
subtítulo, as chamadas de reportagem e, especialmente, para a fotografia.
58
Tais delegações de vozes engendram efeitos de sentido que mudam da
distância ou objetividade apresentada na figura da logomarca da editora, num
crescente de proximidade para com o enunciatário, nas figuras do título, subtítulo até
chegar a uma relação de co-presença, na figura da fotografia do alimento.
A imagem fotográfica colocada na capa é de extrema importância para a
construção da significação desse texto sincrético; a força do texto visual é utilizada
numa estratégia de manipulação por tentação
45
na capa da revista. É ela quem irá
determinar o cromatismo da capa, conforme pudemos notar ao avaliar diversas
edições. É sempre o texto da fotografia que determina o cromatismo do fundo, do
título, as variações cromáticas da logomarca do destinatário entre branco ou preto,
conforme o contraste, e a cor das outras letras presentes na capa. Esse cromatismo
também acompanha a sazonalidade da revista. Neste caso, uma edição
comemorativa traz os tons de amarelo, ouro e vinho, além do branco e do preto.
Numa outra edição, por exemplo, a de 146, edição de réveillon, as cores variam
entre os tons de branco, prata e verde-amarelado com alguns textos verbais em
preto. Vale ressaltar a importância desta fotografia da capa, pois ela sempre
ressurge no miolo da revista sem outros textos sobrepostos seguida de sua receita,
como reportagem central. Esta interpolação leva o destinatário a reencontrar a oferta
realizada na capa, numa estratégia de manipulação por tentação cujo programa
narrativo se realiza ao folhear a revista.
O destinador da revista Gula é modalizado por um querer-fazer com que o
destinatário efetue a compra da revista, para isso, constrói um discurso
manipulatório pretendendo modalizar o destinatário no seu “querer”. Para tal, o
enunciador apresenta um discurso de manipulação por tentação, onde é oferecido
ao enunciatário um prato de comida colorido e brilhante, numa debreagem
45 Segundo FIORIN: “[...] Quando o manipulador propõe ao manipulado uma recompensa, ou seja,
um objeto de valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer alguma coisa, dá-se uma tentação.
Quando o manipulador o obriga a fazer por meio de ameaças, ocorre uma intimidação. Se o
manipulador leva a fazer manifestando um juízo positivo sobre a competência do manipulado,
uma sedução. Se ele impele à ação, exprimindo um juízo negativo a respeito da competência do
manipulado, sucede uma provocação” (2005, p. 30).
59
enunciativa
46
que coloca o enunciatário numa relação eu-tu, aqui e agora em relação
ao actante: a fotografia do alimento.
Esse percurso gerativo de sentido
47
de capa foi descrito até o momento na
configuração da identidade da revista, ele particulariza-se na capa da edição de
150. O bloco do título aparece na sua forma padrão conforme descrito
anteriormente. No entanto, logo acima do título da revista aparece uma frase
“INSCREVA-SENO PRÊMIO GULA / BRASTEMP 2005 CHEF REVELAÇÃO”, que
visibilidade e convida o destinatário a um fazer conjunto com os fazeres da
revista. Aqui, o percurso gerativo se do título que delega voz a imagem de um
prato de macarrão – um Ombrichelli ao molho de pato, por Giancarlo Marcheggiani.
Na fotografia, a comida apresenta-se sobre um prato branco com filete
dourado na borda e com dois talheres voltados para o fundo da imagem. Os talheres
possuem cabos que parecem ser de marfim enquanto o restante do talher parece
ser de prata. O prato onde repousa o alimento, por sua vez, está colocado sobre o
que parece ser um tecido em tons de bege, branco e um leve dourado, ao fundo vê-
se uma verticalidade num tom marrom-acobreado que dialoga com a cor acobreada
do molho de pato incorporado ao macarrão. O queijo (parmesão) salpicado sobre o
alimento cria um efeito de luminosidade pelo cromatismo mais claro do queijo em
relação à massa e ao molho. Toda essa imagem é composta numa variação tonal
que inclui branco, prata, tons de bege, amarelo, marrom, marrom avermelhado e
dourado. Cabe ressaltar aqui o efeito de brilho acentuado da reserva de verniz
comentado no início do texto, nessa imagem o brilho dado tanto pelo cromatismo
como pelo verniz destaca o alimento do resto da imagem e cria um sentido de
umidade e suculência para o alimento.
A imagem ocupa toda a capa, sendo que a figura central o prato de
macarrão está posto na parte inferior da página. Sobre o fundo que se estende
46 Esclarece FIORIN a respeito da debreagem: “[...]é o mecanismo em que se projeta no enunciado
quer as pessoas (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação, quer a pessoa (ele), o
tempo (então) e o espaço (alhures) do enunciado. No primeiro caso (projeção do eu-aqui-agora),
ocorre uma debreagem enunciativa; no segundo (projeção do ele-alhures-então), acontece uma
debreagem enunciva.” (2005, p. 58)
47 O percurso gerativo de sentido é “uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de
receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num
processo que vai do mais simples ao mais complexo. […] Os três níveis do percurso são o
60
aparecem os textos verbais título e chamadas de reportagens - assim como logo
abaixo da figura central também aparecem chamadas de reportagem.
A incidência da luz é posta numa leve diagonal de fora para dentro,
configurando uma luz que parece partir do ambiente de onde olha o destinatário. A
posição do prato é bastante importante nessa fotografia, pois ela se coloca diante do
enunciatário, como se este estivesse à mesa tendo esta comida à sua frente.
Contudo, esse sentido é quebrado pela posição inversa dos talheres voltados para o
fundo da imagem. Nesta construção, tem-se a impressão de estar do “lado de fora”
da mesa, o alimento está posto diante do enunciatário, porém para ter de fato
acesso a esse alimento será necessário dar a volta e posicionar-se do lado “de
dentro” da imagem. Esse movimento fora-dentro manipula o enunciatário por
tentação a “entrar” na revista. A verticalidade do seu formato é contraposta a uma
horizontalidade tencionada com diagonais conforme o esquema da figura 7 abaixo:
Figura 7 - Esquemas para leitura da capa da revista Gula Nº 150
O movimento diagonal tenso também é colocado na relação dentro/fora, entre
aquele que olha a imagem e a imagem que se e numa diagonal na direção do
corpo do leitor na construção topológica dos planos da capa.
profundo (ou fundamental), o narrativo e o discursivo. Em cada um deles existe um componente
sintáxico e um componente semântico.” (FIORIN, 2005, p. 20)
61
A manipulação por tentação é construída na figura do alimento diante de si.
Porém, uma distância está posta entre o actante alimento e o enunciatário, pois
entre este e o alimento encontram-se dois blocos de textos verbais no primeiro
plano. Esses blocos de textos verbais, duas chamadas de reportagens colocadas
logo abaixo do prato de comida e no primeiro plano da imagem, impedem que o
destinatário esteja “dentro” da imagem. A manipulação por tentação se ao se
oferecer um prato de comida ao mesmo tempo em que é colocado um
distanciamento, efetuando-se assim o convite incisivo ao leitor para que entre e
coloque-se do lado “de lá” da mesa.
um jogo posto na topologia dos planos na sua relação com o cromatismo
da capa. Para analisar esse jogo iremos dividir a capa em dois blocos, a saber: o
bloco superior onde está posto o título e uma linha de bloco de textos com
chamadas de reportagem; e um segundo bloco que é composto da figura do prato
de comida e da última linha dos blocos de textos com chamadas para outras
reportagens.
A chamada da reportagem de capa, “O PECADO DA GULA”, ocupa o centro
vertical do retângulo da capa. É o pecado da gula que divide acima e abaixo, divino
e humano. No plano superior, poderíamos chamar de plano “divino” aparecem: o
nome da revista, a comemoração pela edição histórica, a chamada para o índice das
Figura 8 - Esquema para leitura da capa da revista Gula Nº 150
62
melhores receitas, a casa e a mãe que cozinha para os filhos. Respectivamente:
título; box em vermelho com fonte em branco com os dizeres “Gula número 150
Edição histórica”; seguido na horizontal da esquerda para à direita, escrito em
branco e amarelo “Índice das 150 MELHORES RECEITAS já publicadas na GULA” e
“LIÇÃO DE CASA Mães de grandes chefs cozinham para os filhos”. No plano
inferior, o plano “terreno”, ou humano, temos: a comida, o vinho, o cinema, a
educação, as pessoas. Respectivamente: o alimento na sua figuratividade enquanto
texto visual, uma indicação em texto verbal explicitando a autoria do alimento
“Ombrichelli ao molho de pato, por Giancarlo Marchegiani”, e duas chamadas de
reportagens em vermelho e preto “VINHO E CINEMA Selecionamos 41 tintos à base
da uva Pinot Noir, inspirados no filme Sideways” e “AULA DE CHURRASCO Marcos
Guardabassi ensina a arte de assar”.
Percebemos três tempos alternados na
diagramação da capa. O primeiro é o da figura do
prato com alimento; o segundo é o do título; o
terceiro é a chamada da reportagem principal. Esse
ritmo triádico é alternado com outras chamadas
menores chamadas de outras reportagens, a
indicação do número comemorativo, subtítulos e
outras informações. A alternância de um e outro é
dado pela topologia das figuras em tensão com o
cromatismo. Assim, conforme podemos ver no
esquema abaixo, as indicações de número denotam
os pontos de força da imagem. O título, a
reportagem de capa e a figura do prato de comida.
O título e o prato de comida possuem maior
luminosidade e destaque pela cor branca, criando um sentido de primazia e de
primeiro foco – adiantando-se do fundo para frente. A mediação se dá pelo texto que
ocupa a parte central do retângulo da capa e por fim, as chamadas de reportagem
que aparecem no ponto mais baixo do retângulo vertical encontram-se, por outro
lado, mais próximos do leitor pois, estão postos no primeiro plano da imagem.
Figura 9 - Esquema para leitura da
capa da revista Gula Nº 150
63
Todo esse jogo de planos e cores compõe um todo harmonioso. Isto porque é
utilizada uma gama cromática de proximidade no círculo das cores e a composição
acompanha a seguinte escala tonal: branco, amarelo, vermelho, vinho, marrom e
preto.
A palavra gula se encontra repetida seis vezes nesta capa. A primeira
aparece na barra de fundo preto no topo da capa nomeando um prêmio e
convidando o enunciatário a competir, ou seja, modaliza o enunciatário no seu
saber-fazer; a segunda no título; a terceira no endereço do site; a quarta num box de
fundo vermelho e borda branca com fonte branca que indica a edição histórica; a
quinta e a sexta nas chamadas de reportagens. A publicação não fala sobre a gula,
ela é a própria gula na exuberância em que se mostra sucessivamente e
exageradamente.
Ao expor multiplamente seu nome na capa, a revista se coloca no mundo a
partir de seu ponto de vista particular dando-se a ver publicamente como alguém
que fala de si mesmo e nesse falar de si, constrói-se como destinador, enunciador e
enunciado. Segundo podemos conferir a partir da colaboração de Jacques Fontanille
no Dicionário de Semiótica sobre o ponto de vista:
Todo ponto de vista impõe ao enunciatário, instância de recepção, uma
interpretação do enunciado. Sendo enunciatário e enunciador nada mais do
que dois “papéis” temáticos e actoriais do mesmo actante: o sujeito de
enunciação, compreende-se que a competência de observação, segundo o
qual o enunciado inscreve os limites simulados de sua competência
cognosciva, se converte também em uma competência para o enunciatário.
Dito de outro modo, construir um ponto de vista é também construir um
enunciatário enunciado. (FONTANILLE, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p.
209)
48
Assim sendo, ao fazer uma auto-referência e construir um ponto de vista, o
texto proporciona ao pesquisador a possibilidade de realizar uma análise que a
ver a imagem que o destinador desse texto constrói de si mesmo enquanto
48 Tradução livre da versão em castelhano do seguinte trecho escrito por Jacques Fontanille:Todo
punto de vista impone al enunciatário, instancia de recepción, una interpretación del enunciado.
Siendo enunciatario y enunciador nada más que dos “roles” temáticos y actoriales del mismo
actante: el sujeto de enunciación, se comprende que la competencia de observación, donde el
enunciado inscribe los límites simulados de su competencia cognoscitiva, se convierte también en
una competencia para el enunciatario. Dicho de otro modo, construir un punto de vista es también
construir un enunciatario enunciado.“ (FONTANILLE, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 209).
64
enunciador do enunciado bem como ao construir o enunciatário. Esse fazer
discursivo é bastante conhecido dos artistas plásticos na produção de autorretratos,
onde a questão da autoria da própria imagem coloca-se duplamente: a primeira
como imagem a ser retratada e a segunda, nos modos de construção desse retrato,
algo que, na produção e ao ser apreendido, revela as marcas próprias do autor (cf.
SANTOS, 2003). No caso da mídia revista, o lugar próprio de falar de si é
tradicionalmente o editorial, usualmente colocado no interior do periódico. Com isso,
percebemos de início um deslocamento do destinador na figura do enunciador que
sai do seu lugar tradicional e coloca-se explicitamente na capa.
Conforme mostrado na descrição acima, o percurso apresentado nessa capa
de Gula aponta para uma modalização do destinatário. Num primeiro momento,
utilizando uma estratégia de tentação modalizar o querer, para no interior da revista
modalizá-lo no seu saber e no seu fazer.
Figura 10 - Capa da revista Gula - Edição de Estreia
67
2.3 A primeira mordida
Mais uma vez iremos analisar o texto da capa a partir da descrição do plano
da expressão para em seguida nos determos no plano do conteúdo que ele
manifesta. O objeto da presente análise é a primeira edição da revista Gula.
Curiosamente, a publicação estudada possui dois números iniciais, a primeira é a
"Edição Especial Gula Bar" e a segunda, considerada pelos editores como a revista
Gula de número um - por ser a partir deste número que ela se torna uma revista
mensal - é chamada de "Edição de Estréia". O exemplar chamado de "Gula Bar" foi
destinado exclusivamente para as bebidas, caso que não se repetirá até a presente
data como conteúdo de uma revista inteira. Em todos os números subsequentes a
publicação segue o perfil construído na capa chamada de "Edição de Estréia" onde
se alternam matérias sobre bebidas e comidas. Nesse sentido, a análise central do
presente texto tomará como objeto a capa dessa edição por ela caracterizar melhor
a identidade construída no seu percurso da publicação.
Essa capa
49
em particular é apresentada com o predomínio da cor preta sobre
fundo branco, alternados com toques de vermelhos, verdes e amarelos e muito
discretamente, azuis. O título é escrito em preto na parte superior da página sobre o
fundo branco. Abaixo e à direita do título os textos estão escritos em vermelho e pari
passu, existem imagens menores acompanhando-os: a fotografia de um prato, a
imagem de um copo e a fotografia de um grupo de pessoas. Ainda nessa coluna
podemos ver pequenas linhas horizontais em verde estabelecendo três divisões. Do
lado esquerdo, uma fotografia maior de um prato se destaca, tomando a área
correspondente às três divisões do lado direito. Na horizontal inferior da página,
49 Apesar de todos os esforços, essa foi a única reprodução da primeira capa de Gula que
conseguimos até a presente data. Note-se que ela encontra-se recortada na parte direita e devido
à encadernação, não foi possível tornar visível para o leitor o lado esquerdo da capa, muito
embora este lado seja visível no original.
68
construída sobre a largura da capa, vemos uma chamada de reportagem utilizando
fontes também em vermelho.
Os formantes cromáticos escolhidos pelo enunciador dão a ver uma escolha
de elementos clássicos. O contraste entre o preto e o branco, considerados como
acromáticos, são complementados pelo cromatismo dos vermelhos, verdes,
amarelos e azuis. Embora possamos compreender o uso do preto e do branco como
um acromatismo, não é esse o uso que se nessa composição na medida em que
o preto e branco estabelecem um jogo discursivo de caráter individuante. Segundo
Greimas, os formantes cromáticos são isolantes, ou seja, determinam a
integralidade, as apreensões individuantes dos termos (OLIVEIRA, 2003, pp. 82-
92). O preto nessa capa não é utilizado como modalizador da luz, mas como
densidade expressiva na cromia em contraste direto com o branco do fundo, aqui o
preto é massa de cor tanto quanto o vermelho, o verde e o azul. Assim sendo,
podemos compreender as relações de oposição aqui expressas entre preto e branco
como cromáticas. O segundo jogo forte de oposições construídos pelos formantes
cromáticos é o uso do vermelho e do verde. Além do uso menos enfático da
combinação de verde e amarelo.
O preto cromático se dá a ver no título e no subtítulo da revista, numa
pequena imagem na metade vertical direita e no fundo da fotografia do lado inferior
direito. O uso do preto como fundo dessa fotografia estabelece os limites imaginários
de uma coluna que chega sobre ela até a base da frase sob o título. Inicialmente
temos o nome da revista numa horizontalidade reforçada pelo tamanho que ocupa a
largura da página e uma divisão da verticalidade em duas colunas delimitadas pelo
lado inferior da fotografia à direita.
Porém, se tomamos o preto e o branco enquanto matização, eles poderão ser
encontrados na primeira e terceira fotografias da direita e na fotografia à esquerda.
Na primeira fotografia da direita a mancha vermelha é construída num matiz mais
denso embaixo que vai se esvanecendo da metade para cima, tornando muito sutil
os limites superior da mancha vermelha sobre o fundo branco da página. Tal
apagamento cria um efeito de profundidade reforçado pela justaposição do formato
quadrado sobre a mancha circular.
69
a matização dos amarelos, brancos e verdes da grande fotografia à
esquerda está construída de maneira diversa. Nessa fotografia a saturação do
branco é construída numa diagonal ascendente da direita para a esquerda. Destarte,
o prato branco sobre fundo branco é praticamente invisível no lado inferior e vai se
tornando visível, numa matiz de cinza muito claro na direção do título da revista. O
mesmo ocorre com os amarelos e verdes da pasta organizados em um semicírculo.
Essa iluminação cria uma zona de indiferenciações entre fundo branco e as figuras,
realizando um movimento inverso ao da pequena foto à direita, ou, dito de outro
modo, o olho do leitor é levado em um movimento de fora para dentro, se
deslocando do fundo branco para o prato, para a massa e finalmente é atraído para
grande quantidade de preto do título da revista.
Na fotografia do lado inferior direito, na qual aparece um grupo de pessoas, a
matização do branco e do preto constrói uma luminosidade que transita do canto
inferior esquerdo do retângulo horizontal da imagem em direção do canto superior
direito. Temos então, mais um jogo de luz em sentido inverso ao colocado nas
outras imagens. A estruturação desses jogos de luz instaura uma fonte de luz
colocada diante da revista, tomando por referência o mundo natural. Assinale-se que
para que um foco de luz possibilite a iluminação de dois objetos um à esquerda e
outro à direita é necessário que essa luz seja irradiada de um ponto mediano entre
um e outro colocado a certa distância. Assim, poderíamos dizer que o efeito de
luminosidade presente na imagem da esquerda e da fotografia do lado inferior
direito, é produzido por uma fonte que se encontra diante da revista, na posição do
corpo do leitor da mesma.
No entanto, existem mais dois focos de luz, um que parte do “g” do título da
revista e ilumina a imagem em preto e branco que ocupa o centro vertical da capa,
onde o vetor luminoso é indicado numa diagonal descendente que termina dentro da
própria figura; e um outro que parece emanar “de dentro” da revista, iluminando a
primeira imagem do lado direito, conforme foi descrito no parágrafo anterior. Os
jogos de luz posicionam o corpo do enunciatário diante da revista, numa postura de
quem está diante de um objeto observado.
70
A ocupação do preto e a iluminação nas fotografias constroem linhas
diagonais que formam triângulos. O triângulo formado pelas diagonais saídas das
extremidades esquerda da capa e que se encontra na figura do copo ao meio
direciona o olhar do leitor leva o olhar posicionado mais distante, capaz de ver uma
amplidão da esquerda para uma concentração à direita, tal qual um flecha. No
entanto, o olhar do leitor não chega a sair da página pois, duas pequenas linhas
verdes horizontais o instigam a pousar seu olhar na coluna da direita. O ângulo
indicado nesse ponto gera um movimento da esquerda para à direita.
Como formantes eidéticos
50
temos as construções em círculo, semicírculo,
retangulares e quadradas, mas sobretudo os triângulos constituídos de modo mais
50 Formante eidético determina a diferença entre os termos (discrição), segundo Félix Thurlemann no
Dicionário de Semiótica, designa todas as categoria que sirvam para definir uma configuração
plástica no nível da “forma”, tais como, contorno (reto vs curvo), oposição (côncavo vs convexo)
etc. (THURLEMANN, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 82).
Figura 11 - Esquema para leitura da capa da
revista Gula - Edição de Estreia
71
sutil. Aparecem pela luminosidade, pelo recorte diagonalizado na imagem do copo,
nas linhas retas e oblíquas na imagem superior esquerda e no agrupamento
piramidal das pessoas na fotografia do canto inferior. O uso de triângulos variados
direciona o olhar do enunciatário e confere movimento à capa.
A imagem do lado esquerdo se destaca pelo tamanho maior e pelo
cromatismo diferenciado. Fazendo um contorno iniciado na parte superior esquerda,
seguindo para à direita, descendo pela vertical esquerda e dirigindo-se da direita
para à esquerda na horizontal da página podemos ver a predominância de textos
verbais. Na parte central da esquerda vemos tão somente o texto visual destacado,
para o qual o olho do leitor é continuamente imantado, num movimento de ir e vir.
Pequenas linhas horizontais verdes dividem o espaço do lado direito da imagem em
três planos: o superior horizontal com o título da revista; o do meio à direita com uma
Figura 12 - Esquema para leitura da capa da
revista Gula - Edição de Estreia
72
imagem pequena de um copo; e, o inferior direito construído pelo fundo e algumas
figuras da fotografia.
Essa divisão à direita estabelece um ritmo triádico no percurso de leitura e é
alternado por uma segunda construção rítmica mais fluida, dado pelo formante
cromático
51
vermelho e verde que ocupam as áreas do lado esquerdo. Nas três
áreas demarcadas pelas linhas verdes, o formante cromático vermelho aparece: do
lado esquerdo na tipografia, no lado direito na mancha vermelha que faz fundo para
a figura do alimento, logo abaixo apenas à esquerda na tipografia e na terceira área
demarcada, na tipografia centralizada, aparece suavemente em fonte menor
sobreposta à imagem do lado esquerdo e toma a área inferior horizontal novamente
no uso do cromatismo sobre a grafia.
O vermelho é contrabalançado pelo verde, cor complementar no disco das
cores e aqui surgindo como contraponto, nas linhas verdes e nas imagens à
esquerda e na fotografia à direita. Tal configuração do verde que ocupa menos
espaço na capa suaviza e alterna a marcação rítmica do preto e vermelho. A
estruturação de planos pelo cromatismo em preto reforça o ritmo triádico definido
pelas linhas verdes demarcando as áreas, desta feita como construindo uma
alternância com o primeiro. A imagem na qual reconhecemos o copo do “drinque dos
finos e chiques” serve como ponto de apoio ao olhar do leitor. Ela é construída a
meio termo entre a fotografia e o desenho, na medida em que é uma fotografia
modificada, em preto e branco, chega a confundir-se com um desenho. O recorte do
preto ao fundo, indica um ângulo que se projeta para fora dessa imagem e engloba a
imagem da esquerda. A fotografia da “pasta” oferece ao olhar do leitor a pasta em
verde e amarelo organizada num semicírculo sobre um prato sextavado, cuja
diagonal superior reforça a ideia do triângulo na capa. Por outro lado, a diagonal
51 Greimas aponta dois postulados epistemológicos para distinguir as categorias de cromático e
eidético na semiótica, o primeiro faz uma distinção entre cromático e eidético a partir da apreensão
relacional, enquanto o segundo diz que a apreensão de um termo como unidade pressupõe uma
dupla apreensão discrição e unidade. A discrição determina a diferença entre os termos, a
integralidade determina a individualidade. A categoria cromática determina a integralidade, sendo
apreensões individuantes dos termos (GREIMAS, in. OLIVEIRA, 2004, pp. 82-93). No Dicionário
de Semiótica o formante cromático é compreendido como o estudo semiótico da cor que é intuído
por Greimas e desenvolvido por Floch. Segundo Félix Thurlemann no mesmo dicionário, o
formante cromático é construído como uma figura da expressão constituída por traços diferenciais
73
inferior do prato não é vista, dado que a luminosidade faz com que o prato se
confunda com o próprio branco que faz às vezes de fundo da página.
A presença do prato de massa dialoga com a escolha das cores vermelho e
verde, na medida em que são cores tradicionais das cantinas italianas
especializadas nesse tipo de alimentação, por outro lado, a escolha do verde sobre
o amarelo remete as cores da bandeira brasileira. Esse crivo de leitura dado pela
grade cultural na qual o enunciatário está inscrito permite a construção de uma
variedade de sentidos. Conforme já dissemos, formantes figurativos o
compreendidos como feixes de traços visuais dotados de significado, são aqui as
organizações de linhas, formas e cores organizadas no espaço da capa que
permitem ao leitor apreender seus sentidos e os aspectos visuais também presentes
no texto verbal, por outro lado, é a grade cultural na qual está inserido que prove o
universo sobre o qual os sentidos são construídos. Nesse caso, a revista brasileira
dialoga diretamente com a cultura nacional no seu número de estreia ao colocar o
verde e o amarelo num semicírculo sobre um prato sextavado remetendo as formas
e cores da bandeira.
A apreensão do texto sincrético da capa é de natureza plástica, na medida em
que sua figuratividade permite “tornar sensível a realidade sensível” (BERTRAND,
2003, p. 154). Cabe lembrar que o texto verbal também traz em si uma plasticidade,
os efeitos criados pela visualidade do texto são figuras do texto visual, bem como
seu arranjo na diagramação da página. Em assim sendo, o arredondado das letras,
com suas fontes cheias logo no título, dialogam diretamente os ovalados do
macarrão. Nessa capa o olho do leitor circula, digerindo os textos lidos aos bocados.
O texto verbal traz o nome da revista “Gula”, logo abaixo a frase "Comer bem
é a melhor vingança" coloca-se como subtítulo. As letras arredondadas dão ênfase
justapondo os sentidos dos textos visuais e verbais. A gula escrita por Gula é cheia,
em letras redondas e elegantes, com um traçado onde traços finos são alternados
com volteios e sinuosidades (note-se a figura do “v” da palavra “vingança”). Na frase
pertinentes à produção da significação, tendo uma participação constituinte no percurso gerativo
de sentido. Para a apreensão plástica é necessário a apreensão de ao menos um contraste
fundamentado numa categoria cromática. (THURLEMAN, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, pp. 62,
63)
74
logo abaixo o leitor é convocado nas suas paixões, ele poderá vingar-se por meio do
bem comer. Na vertical que se segue do lado direito, lemos as chamadas das
matérias, são elas: "Morango dando sopa e outras gulodices", "Dry Martini, o drinque
cult dos finos e chiques" e "Gula revela os truques dos chefs". As frases reiteram o
fazer proposto pelo enunciador. Podemos vê-los reiterados nas isotopias
52
presentes, primeiro nos dizeres referidos diretamente ao título da revista. Desta feita,
temos a palavra "Gula" no título, "Comer bem" no subtítulo, "gulodices" na primeira
chamada à direita, a repetição do nome da publicação na terceira chamada de
reportagem do lado direito e escrita nos aventais presentes na fotografia dessa
mesma chamada, “gastronômica” na chamada maior ao da página e novamente
“comer” com menos ênfase na legenda da imagem maior do lado esquerdo da capa.
Além do semantismo das palavras desse universo, um outro paralelo a este, a
nomeação dos alimentos: “sopa”, “pasta”, “dry martini”, “drinque”. Tais repetições
delimitam um universo de construção do discurso do enunciador.
Somados as figuras do texto verbal, destacamos as do texto visual, conforme
explicitado anteriormente, na tipografia arredondada no título, mas sobretudo nas
fotografias. Habituados às referências icônicas à semiose do mundo natural, a
fotografia em geral é mostrada nas mídias a partir do “crivo de leitura natural”,
buscam explorar a verossimilhança e similitude da vivência cultural de seu
enunciatário. Assim, na imagem à esquerda apreendemos a figura de um prato de
macarrão com brócolis, elementos presentes no cotidiano cujos formantes se fazem
de fácil apreensão ao leitor. Bem como à direita e abaixo vemos um grupo de
pessoas portanto aventais nos quais lemos “Gula”, todas, seja pela postura, pela
vestimenta, pelos instrumentos ou alimentos que trazem na mão fazem-se ver como
participantes do universo gastronômico. O texto verbal logo acima nos dizer “truques
dos chefs” serve de legenda, dando a ver os “chefs” presentes visualmente na
fotografia. No da página lemos "Mas Bah Tchê! Roteiro para uma viagem
gastronômica ao sul e o abc do churrasco", cuja eleição pelas peculiaridades do
léxico aponta para o universo da tradição gaúcha do sul do Brasil.
52 Isotopia “... designa em semiótica discursiva a permanência de um efeito de sentido ao longo da
cadeia do discurso” (Bertrand, 2003, p. 153).
75
A ocupação das figuras na diagramação da capa estabelece uma leitura que
parte do lado superior esquerdo numa diagonal descendente do lado direito da
mesma. Assim, o título “Gula” em preto é trazido ao primeiro plano, destacando-se
do fundo branco; no segundo plano surge a pequena imagem do copo em preto e
branco, e como plano de fundo, quase infinito, o preto ao fundo da fotografia do
grupo de pessoas. Esse encadeamento de pretos constrói uma diagonalidade
descendente. A diagonal descendente é construída no branco que se deixa ver ao
fundo, entre as figuras, mas também é indiciada numa pequena linha diagonal da
imagem em preto e branco no centro vertical. Essa imagem, além de servir de ponto
de ligação entre as duas extremidades esquerdas que formam o retângulo da capa
da revista, também atua como ponto de alternância que de um lado impulsiona o
olhar na diagonal descendente formada pelo uso do cromatismo em preto, e de
outro, serve de ponto de encontro para duas diagonais brancas, cujo vértice é
sugerido no recorte do branco sobre preto atrás do copo formando um triângulo. Os
jogos construídos pelos formantes topológicos
53
e a espacialidade demarcada pelo
engendramento das figuras do texto criam interesse para o enunciatário e o
direcionam à folhear a revista.
O programa narrativo dessa capa apresenta uma “pasta” servida, no presente
que aparece parcialmente, tal recorte determina uma actorialização numa
temporalidade contínua, onde o prato é oferecido pelo enunciador ao enunciatário,
servindo-o. Reforçando a temporalidade, o texto verbal enuncia “Daqui a vinte
minutos você vai comer esta pasta...”, reiterada ainda pela letra diagonalizada pelo
uso do itálico e das reticências. A duratividade do presente ao futuro próximo está
construída aqui. Outras marcas temporais são percebidas, o tempo verbal no
gerúndio e no presente em “dando” e “revela”, além do “é” na frase “Comer bem é a
melhor vingança”. Tais marcações da temporalidade somadas a imagem em recorte
do prato de massa à esquerda apresentado na vertical, como se o enunciador o
tivesse diante de si na mesa, e a imagem do grupo de pessoas na qual a maioria
delas olha diretamente para o leitor, fazendo com que a relação seja a da presença
do momento apontando para um devir, modalizando o enunciatário em direção a um
fazer enunciado na revista.
53 O formante topológico é aquele que regula “a disposição das configurações constituídas no
espaço planar” (THURLEMANN, in. GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 55).
76
O tempo da capa é também estabelecido pela frase “Daqui a vinte minutos” e
pela imagem do prato que adentra o campo de visão a partir da esquerda. A
conjugação com as diagonais aponta o movimento e junto com o movimento está
também estabelecido um tempo, presente e futuro próximo. O tempo razoavelmente
rápido, o tempo do deslizar do prato com a pasta a ser comida, um tempo de uma
velocidade freada (pela coluna da vertical que oferece outras opções), pelo ato
mesmo de comer e digerir, o tempo da descoberta dos segredos e o tempo mais
estendido da viagem. O tempo de leitura da revista, o tempo de elaboração do prato
apresentado, o tempo da aprendizagem proposta que se inicia com um prato
simples de rápida execução.
A construção de um saber fazer alimentar objeto de valor do programa
narrativo da revista também aparece explícito nos dizeres “Gula revela os truques
dos chefs” e “Roteiro para uma viagem gastronômica ao sul e o ABC do churrasco”.
Essas duas frases remetem diretamente ao um fazer culinário que Gula traz ao seu
leitor, os truques são informações valiosas e pontuais para aqueles que detêm um
saber fazer culinário, o roteiro gastronômico contempla aqueles que buscam não um
saber fazer mas um saber comer, a constituição de um gosto, de um saber
frequentar determinados lugares. Por sua vez, “ABC do churrasco” designa um
saber fazer detalhado para um público leigo no assunto, o passo a passo, denotado
especificamente na expressão “ABC” que remete aos primeiros anos de
escolaridade. Pelo que é possível observar, o discurso da capa da revista não
aponta a sua capacidade de ensinar o seu leitor sobre os fazeres culinários, como
também aponta variadas instâncias e níveis de aprendizagem, contemplando uma
diversidade de público que pode ser aquele que tem uma competência
estabelecida e quer refiná-la, aquele que não tem e quer adquirir, ou ainda, aquele
que busca uma outra competência que não é propriamente saber fazer determinado
prato, mas ser capaz de apreciá-lo.
Podemos dizer que a capa de estreia é apresentada ao leitor como um menu
ou uma carta de restaurante, o posicionamento dos formantes no texto não
imprime um ritmo saltado à leitura como também, o posicionamento do plano na
vertical fazendo pouco uso de estratégias de profundidade fazem com que o
77
enunciatário posicione seu corpo verticalmente diante da capa. Essa espacialidade é
sem dúvida alguma a mais planar quando comparada com outros números que
trabalham com uma grande ilusão de profundidade. Mesmo assim, a espacialidade
da cena criada nos remete à vivência do restaurante. À esquerda está a mesa do
restaurante, reconhecida no seu fundo branco, a tradicional e conhecida toalha de
mesa, o prato branco e o alimento sobre ela. O drinque antecede o prato na
refeição, é mostrado logo acima da horizontal que divide a verticalidade da página,
acompanhando um percurso do olho do leitor sobre a capa. Logo abaixo, os chefs
no seu trabalho que estaria sendo realizado na cozinha do restaurante e aqui
aparece revelado. À esquerda, podemos perceber a instauração do momento
presente, o prato diante do comensal e por fim, a sobremesa no topo da coluna da
direita. Essa leitura é construída não pelo arranjo próprio da capa, mas também
pela experiência do destinatário na mesa do restaurante. A vivência cultural da
refeição com direito a um drinque antes e uma sobremesa depois reforça o aspecto
diferenciado desse momento particular. Não se trata de uma refeição rotineira: é
especial, assim como é o churrasco, comida de celebração na cultura brasileira
54
.
Essa primeira capa de Gula apresenta uma estratégia discursiva ainda
nascente, um posicionamento do corpo do enunciatário um pouco mais distante do
que em outras capas posteriores. Não o uso de recursos de reserva de verniz
para dar ênfase a textos ou fotos, a tipografia acompanha a moda da época com
letras mais rebuscadas, o texto verbal escrito aparece na direita e se sobressai em
relação aos textos visuais.
54 Segundo Bolaffi “É mais do que provável que, tendo o homem aprendido a dominar o fogo, a
primeira forma de consumir a carne não crua foi a dos churrascos e grelhados. Tanto como eram
churrascos ou grelhados as primeiras carnes que sumérios, babilônios, judeus, gregos e romanos
ofereciam aos seus deuses. E é assim que o macho brasileiro classe média anos 90, com seu
abrigo de moleton e seus tênis que mais parecem um carro alegórico, se sente ao preparar o seu
churrasco dominical: um verdadeiro deus!” (2000. p. 253). Em São Paulo e outras cidades do
Brasil é costume oferecer um churrasco com bebida farta para celebrar a cobertura ou construção
da laje da casa que gerou a expressão bastante popular “churrasco na laje” que designa não o
churrasco de celebração da laje, mas também qualquer outro churrasco popular e festivo. Por
necessitar da preparação do fogo num espaço próprio não presente em grande parte das
residências, seja o chão de terra, seja o espaço da laje, do quintal ou da varanda com
churrasqueira, podemos dizer que na cotidianidade o churrasco requer mais tempo para ser
preparado do que as refeições rotineiras do usual fogão à gás ou elétrico e por isso,
preferencialmente será realizado no fim de semana ou nos dias de folga do trabalho acentuando
seu caráter festivo.
Figura 13 - Capa da revista Gula Nº 12 (primeiro aniversário)
81
2.4 A experiência da degustação
A capa da revista Gula 12 é a edição de aniversário da publicação e
comemora o seu primeiro ano. Ainda nascente, a capa traz no título as letras mais
arrendondas e uma maior variedade de cores do que nos anos subsequentes, assim
como na “Edição de Estreia”. Nesse número encontramos a imagem em close
enviesado e posicionada no terço inferior do retângulo vertical delimitado pelo
suporte da revista. Encimado pelo título, o texto verbal constrói uma divisão
horizontal no meio da página e continua numa coluna vertical ocupando o terço
esquerdo da metade inferior. Apesar das cinco chamadas de reportagem presentes,
mais uma vez é o texto visual que se apresenta com maior força.
O destinatário se vê colocado diante de um universo visual intrincado, uma luz
adentra pelo lado direito, o cromatismo em branco das letras negritadas levam o
olho do leitor para cima e por contraste, o faz perceber o fundo. O fundo infinito em
preto destaca tudo que vem a sua frente. O título, num dourado escuro, define o
espaço da cena e equipara-se em peso somente à figura arrendondada logo abaixo.
O prato redondo, do qual se pouco mais de um quarto de seu círculo, traz
sobre si uma torre circular. São vários círculos concêntricos, posicionados uns sobre
os outros e sobre o primeiro círculo do prato o qual é visto parcialmente estão os
círculos menores, cinco no total, e configuram a imagem do alimento. Entre a
sobreposição de círculos e o círculo do prato que serve de base está um segundo
círculo um pouco maior que este e é construído por um molho, um terceiro é
demarcado por um filete rosa e um quarto pela borda decorada do prato. Todos
esses círculos assim sobrepostos criam um efeito de sentido de aproximação e
movimento. O efeito de movimento também é percebido pela posição diagonalizada
da fotografia. O círculo mais próximo do leitor apresenta um elaborado xadrez em
verde e laranja-amarelado.
82
Assim como as duas capas anteriormente analisadas, esta apresenta também
um alimento como destaque. Seus formantes estão postos de modo a manipular o
enunciatário por tentação, levando este último a um fazer conjunto com o enunciador
seguindo o seu programa narrativo. Se tomamos como modelo os regimes de
sentido de manipulação por tentação algo nos escapa nessa enunciação pois, o que
primeiro toca e envolve o enunciatário não é de ordem intelectiva, de uma relação
eu-tu onde eu e tu encontram-se apartados um do outro. A apreensão do sentido é
construída de modo sensível, colocando dois sujeitos em relação direta entre si,
estabelecendo assim uma enunciação que se configura de modo a implicar o fazer
sensível do corpo do enunciatário na enunciação.
Percebemos a partir da análise dos formantes topológicos que o texto visual
prevalece sobre o texto verbal. Sua posição na organização textual aliada as
harmonizações dos formantes cromáticos e eidéticos determinados pelo primeiro
colocam os textos visuais como principal actante das capas, seguidos pelos seus
coactantes, os diversos textos verbais. Essa escolha pela prevalência dos textos
visuais “sobre” o texto verbal não é casual, visto que ela possibilita ao enunciador
um discurso que se relaciona diretamente à semiose do mundo natural bem como se
estabelece como simulacro deste último, instaurando uma outra ordem
comunicacional, onde a apreensão sensível é posta em evidência.
Conforme vimos anteriormente, quando refletimos sobre o sincretismo
percebemos que, ao utilizar várias linguagens, o discurso sincrético articula diversas
ordens sensoriais. Desse modo a construção do simulacro da semiose do mundo
natural se faz apreensível por meio do plano da expressão, sendo este também o
ponto de partida e o plano prevalente para a leitura do discurso sincrético no objeto
analisado. Consequentemente, será necessário recorrer aos modelos semióticos
que dão conta dessas apreensões envolventes.
Tomaremos como base teórica para compreensão dessas relações de
implicação as propostas dos regimes de sentido de união desenvolvidos por Eric
Landowski (2004) e o livro Da Imperfeição (1987) onde Greimas originalmente lança
as bases para o tratamento semiótico do sensível. Tanto um como outro serão
adotados como referência teórica com a finalidade de apreender como se essa
83
enunciação construída de modo a envolver enunciador e enunciatário num fazer
conjunto, engendrado por um fazer-sentir. Conforme nos diz Landowski:
Tradicionalmente, a semiótica narrativa reconhece não mais do que duas
formas de interação: por um lado a “operação”, ou ação programada sobre
as coisas, com base, conforme será visto mais adiante, sobre certos
princípios de regularidade, e de outro a “manipulação” estratégica, que põe
os sujeitos numa relação baseada no princípio geral da intencionalidade.
[…] Mas aqui nos engajaremos sobretudo em mostrar que se quisermos dar
conta de modo menos exaustivo das práticas efetivas de construção do
sentido na interação, faz-se necessário introduzir ao menos um terceiro
regime ao lado dessas duas primeiras configurações, fundamentado na
sensibilidade dos interactantes, este será chamado de “ajustamento”. Resta
ainda observar se a unidade constituída pela articulação destes três regimes
entre si é suficiente, ou se a lógica do modelo ainda pede alguma
complementação. (2005, p. 15)
55
O autor parte dos modelos mais tradicionais da semiótica discursiva para
então propor um terceiro termo chamado “ajustamento” e, posteriormente, tratará
também de um quarto termo, a fim de seguir o modelo de oposições entre contrários
e contraditórios do quadrado semiótico. No “ajustamento”, na medida em que não
são regidas pela lógica do fazer-fazer mas sim, buscam apreender como se dão as
relações de interação, as relações entre os sujeitos não ocorrem mediadas por uma
“intencionalidade”. As relações de interação têm por fundamentação a sensibilidade
dos actantes envolvidos na enunciação. Como nos interessa compreender o
discurso da capa de Gula enquanto uma apreensão sensível, nos deteremos um
pouco mais sobre o regime do ajustamento. Sobre a dinâmica do regime de
ajustamento, Landowski considera que:
[…] Nas interações que são agora do « ajustamento », o ator com o qual
interagimos tem certas características, também pelo fato de que seu
comportamento obedece a uma dinâmica própria. Mas tal dinâmica, pelo
menos no atual estado dos conhecimentos disponíveis, não é redutível,
como nos casos precedentes, às leis pré-estabelecidas e objetiváveis. É, ao
contrário, na interação mesma, em função do que cada participante
encontra, e mais precisamente, como veremos, sente da maneira de agir de
55 Tradução livre do original: Traditionnellemente, la sémiotique narrative ne reconnaît que deux
formes de l'interaction: d'un côté l'« opération », ou action programmée sur les choses, fondée,
comme on le verra, sur certains principes de régularité, de l'autre la « manipulation » stratégique,
qui met em relation des sujets sur la base d'un principe général d'intentionnalité. […] Mais nous
nous attacherons surtout à montrer ensuit que si on veut rendre compte tant soit peu
exhaustivement des pratiques effectives de construction du sens dans l'interaction, il est
nécessaire d'introduire à côté de ces deux premières configurations au moins un troisième régime,
fondé quant à lui sur la sensibilité des interactants: celui de l' « ajustement ». Restera alors à voir si
l'ensemble constitué par l'articulation de ces trois régimes entre eux se suffit, ou si la logique du
84
seu parceiro, ou de seu adversário, que os princípios mesmos da interação
emergem pouco a pouco. (2005, p. 41)
56
Compreendemos então que a dinâmica do ajustamento diz respeito a uma
dinâmica interactancial onde um e outro estão numa relação de união, não
ocorrendo entre eles regra ou lei pré-estabelecidas ou, um caminho apontado para
onde seguir. Ao invés, há no ajustamento uma emergência do sentido construído por
seus atores no próprio ato do discurso e tal construção do sentido do discurso
apreendido pelo sentir se dá, paulatinamente, nas relações de um e outro. Mais
adiante o pesquisador continua:
[…] o ajustamento pressupõe que o parceiro com quem interage é tratado,
qualquer que seja sua natureza actorial (ele pode ser um animal, um avião,
uma paisagem, ou mesmo uma outra pessoa), como um actante sujeito de
direito próprio, e não como uma coisa cujo comportamento é estritamente
programado. (2005, pp. 40-41)
57
Se o ajustamento, segundo argumenta o pesquisador, exige um tratamento
enquanto sujeitos inteiros na relação e não apenas como coisas ou comportamentos
programados, como pode acontecer o regime de ajustamento entre uma revista e
seu leitor? Está claro na citação acima que os sujeitos não são necessariamente
humanos, podendo ser quaisquer actantes desde que a relação se de modo a
escapar da “coisificação” e da programação. A competência dos sujeitos aqui não é
modal, mas é uma competência estésica (2005, p. 41). Vejamos como tal estesia se
dá no nosso objeto de estudo.
O jogo de planos na topologia da capa coloca o corpo do enunciatário numa
determinada relação instaurada pelo discurso do enunciador. O formante topológico
cria um efeito de sentido de um espaço construído em função do arranjo entre os
formantes do texto sincrético. Como numa dança, exemplo caro a Landowski na sua
modèle ainsi ébauché appelle encore quelque complément. (LANDOWSKI, 2005, p. 15).
56 Tradução livre do original: «[…] Dans les interactions qui relèvent maintenant de l'ajustement,
l'acteur avec lequel on interagit se caractérise certes, aussi, par le fait que son comportement obéit
à une dynamique prope. Mais cette dynamique, en tout cas dans l'état actuel des connaissances
dont on dispose, n'est pas réductible, comme dans le cas précédent, à des lois préétablies et
objectivables. C'est au contraire dans l'interaction même, en fonction de ce que chacun des
participants reencontre, et plus précisément, on le verra, sent dans la manière d'agir de son
partenaire, ou de son adversaire, que les principes mêmes de l'interaction émergent peu à peu.»
85
postulação do regime de ajustamento, no percurso narrativo dessa capa o
enunciador oferece o prato ao enunciatário, ao que este responde, segurando a
revista. Ao segurá-la, seu corpo responde sensivelmente ao toque, as formas e
cores presentes nela e realiza um gesto complementar ao da capa, tomando em
suas mãos o que se oferece. A angulação diagonalizada da figura do prato que
contém o alimento, percebida pela suave curva descendente marcada pela
decoração em rosa e pequenos pontos verdes na borda do prato branco indicia o
fazer gestual do enunciador simulando a gestualidade de alguém que serve um
prato a um comensal. O movimento, o focado e desfocado da imagem jogam com o
olho do enunciatário, construindo para ele, uma visão sobre o alimento e uma
posição que ele compreende no seu corpo, ao posicioná-lo de modo a poder ver a
imagem da fotografia do alimento. É a visão que constrange o enunciatário a
posicionar seu corpo de modo adequado ao foco da visualidade apresentada. Ao
posicionar-se, o enunciatário percebe-se segurando a revista, sentindo-se não como
se estivesse segurando a revista, mas no mesmo espaço desta, compartilhando o
servir o próprio prato.
Ao realizar o percurso narrativo indicado na capa, o enunciatário é capaz de
inverter a posição com o enunciador. Por esta via, se antes era servido como
comensal, depois de realizar o percurso narrativo de base, ou seja, depois de tomar
a revista, abri-la, folheá-la,-la e por fim, realizar os programas de uso que doarão
as competências necessárias ao enunciatário, ele será capaz de carregar o prato em
suas os, deixando de ser comensal, tornando-se aquele que serve o prato. O
percurso narrativo de base é mostrado na capa de modo direto e sintético pela figura
do alimento. O sujeito que, seduzido pelas cores e formas da revista, a toma nas
mãos, imediatamente passa a ter nas mãos um prato de comida como realização
figurativizada no presente e como promessa de realização de doação de
competência num futuro próximo.
(LANDOWSKI, 2005, p. 40-41).
57 Tradução livre do original: “[…] l'ajustament suppose que le partenaire avec lequel on interagit soit
traité, quelle que soit sa nature actorielle (car il peut s'agir aussi bien d'un animal, d'un avion, d'un
paysage ou encore, on le montrera, d'une armée ennemie, que d'une autre personne), comme un
actant sujet à part entière, et non comme une chose au comportement strictement programmé.»
(LANDOWSKI, 2005, p. 41).
86
A figuratividade do alimento em questão configura um sentir no momento
presente, a luminosidade que vem “de fora” da cena permite que ela transborde os
limites do suporte material da revista. A ambientação aqui construída não está
apartada do destinatário-enunciatário, ele coabita o mesmo espaço e tempo. O
espaço demarcado pelo posicionamento de seu corpo que carrega o prato de
comida da festa de aniversário de Gula. O tempo é um presente durativo, as texturas
construídas pelas formas e cores seduzem o olhar e fazem querer sentir o gosto
misterioso. A granulação e o brilho suavizado ativam as papilas gustativas que
percebem a umidade, a consistência, a textura do alimento. Dois dos textos verbais
o convocam à coenunciação: “Receitas de Grandes Chefs Para Você Comemorar
Conosco” e “FOIE GRAS, UM LUXO Ao Alcance do Brasileiro”. No primeiro e mais
destacado dos textos verbais, o enunciatário é convocado na sua corporalidade a
servir o prato apresentado como também é a ele dado uma competência modal e
sensível para fazê-lo. O programa narrativo da revista também encontra-se mais
uma vez presente aqui na implicação do outro como aquele que será capaz de fazer.
Quanto ao outro texto verbal, posicionado menor e logo abaixo do primeiro, enuncia
que o brasileiro pode agora tocar o foie gras antes inacessível assim como toca o
prato e o alimento apresentado na capa.
Ainda que o regime da programação esteja presente nas revistas de
gastronomia e seja voltado a construção da competência de um enunciatário que
será modalizado no seu saber fazer, cabe lembrar que o fazer alimentar proposto
por Gula tem por referência não apenas o universo do saber técnico, mas sobretudo
uma competência técnica que leve a construção de um alimento portador de um
gosto refinado voltado ao prazer de comer. Nesse sistema semissimbólico
58
, o
receituário provê as competências modais necessárias para o enunciatário saber
fazer determinados alimentos; porém, traz também uma construção plástica que têm
por referência a construção de um saber sentir. Isso porque, para o fazer
gastronômico não basta apenas seguir uma programação, é necessário algo mais, a
saber: uma sensibilidade própria do corpo capaz de apreciar os múltiplos sabores.
Landowski aponta que:
58 Segundo Oliveira “Na semiose semissimbólica, a significação é construída pelo arranjo
imprevisível das ordenações significantes, que impõem mudanças das operações perceptivas,
instigando os sentidos a participar associativa e interacionalmente das re-articulações significantes
que não seguem o convencional” (2009, p. 96).
87
[...] Com o ajustamento, esses mesmos sujeitos se veem reconhecidos,
sobretudo, enquanto corpos, e mesmo como sensibilidades. A interação
não se fundará mais sobre o fazer crer mas sobre o fazer sentir não mais
pela persuasão, entre as inteligências, mas sobre o contágio, entre as
sensibilidades: fazer sentir o desejado para fazer desejar [... ] (2005, p. 43)
59
A interação proposta em Gula, para além do inteligível, se volta ao sensível,
construído por meio do regime de ajustamento na forma de uma sensibilidade
reativa, explicada por Landowski como sendo “aquela que é construída de maneira
tal que reagem exatamente e mesmo, rapidamente, ao nosso gosto”
60
. É essa
sensibilidade reativa que torna possível ao enunciatário a construção de um sentido
para além do conteúdo programático das receitas presentes na revista, apreciando-a
não somente como “fonte de programas” (receitas detalhadas), mas sobretudo como
objeto portador e configurador de um gosto. É ao sensível e a um saber sentir que
recai a ênfase e o diferencial dos discursos das revistas de gastronomia e de
enogastronomia em comparação com as publicações de culinária, cujo foco recai
apenas sobre um saber-fazer.
Desse modo, podemos observar uma grande preocupação com uma estética
refinada e, por derivação, da presença da arte na revista enquanto doadora de um
valor estético . Na edição de número 12, umas das chamadas diz “O VINHO
ROMANÉE-CONTI Uma Obra-Prima da França”, nessa frase vemos essa referência
do mundo da arte pelo uso da expressão “obra-prima” criando uma correlação entre
uma obra de arte de grande valor estético e o vinho, nesse caso, o Romanée-Conti
da França. Esse é um recurso utilizado amplamente como modo de aproximar dois
universos, o da arte e o da culinária, buscando com isso, conectar o valor cultural
reconhecido das obras de arte com o valor da culinária. Muitas das imagens de
obras de arte presentes na revista, embora não apareçam na capa, estão deste
modo presentes nas reportagens internas, quando não em reportagens especiais.
Para além das relações de justaposição explicitamente colocadas na publicação,
podemos dizer que a construção da revista como um todo procura envolver o seu
59 Tradução livre do original: Avec l´ajustement, ces mêmes sujets se voient recunnu, em pulus, un
corps, et par là même une sensibilité. L´interaction ne se fondera plus sur le faire croire mais sur le
faire sentir non plus sur la persuasion, entre les intelligences, mas sur la contagion, entre des
sensibilités: faire sentir qu´on désire pour faire désirer [...] ” (LANDOWSKI, 2005, p. 43).
60 Tradução livre do original: [...] c´est qu´elles sont construites de manière telle qu´elles réagissent
très exactement, et même trop vite à notre goût [...]” (2005, p. 44).
88
leitor num aprendizado do e sobre o sensível. O programa narrativo da revista visa
um saber comer bem. Neste parecer, é indiscutível que tal saber inscreve-se num
claro juízo de valor ao qualificá-lo como um “comer bem”, ou ainda, como um comer
diferenciado em relação ao que habitualmente se come. Por isso a arte é chamada
como valor qualificativo capaz de construir um aspecto de bom gosto.
A aproximação entre arte e culinária não ocorre somente nas relações
internas onde são mostradas imagens de obras de arte justapostas a imagens de
alimentos, nas reportagens sobre artistas e seus alimentos favoritos, na preferência
gustativa de tal ou qual sujeito destacado da cultura, mas também como fenômeno
cultural onde gastronomia e arte se confundem.
A crescente valorização do fazer alimentar sofisticado ocorre não só no Brasil,
como também em outros países de cultura ocidental. Um destacado exemplo é o
trabalho desenvolvido pelo chef Ferran Adriá em seu restaurante El Bulli, tamanho é
o refinamento e precisão da construção estética proposta pela culinária de Adriá que
ele recebeu o prêmio “Lucky Strike Designer Award” em 2006
61
bem como foi
convidado como criador para participar da 12ª Documenta de Kassel
62
. Podemos
observar especialmente na figura de Ferran Adriá a completa dissolução da fronteira
entre arte e gastronomia. O seu fazer gastronômico impõe-se como um fazer
eminentemente estético e não mais como funcional. Segundo ele mesmo afirma
numa entrevista: “Creio que ter o El Bulli na documenta é um fato histórico, pois pela
primeira vez se descontextualiza um pavilhão, e é revolucionário, porque a cozinha é
finalmente aceita como arte” (DEUTSCHE WELLE, 2007).
Lembramos ainda que Adriá não é o primeiro a objetivar no seu fazer
alimentar o aspecto sensível, historicamente temos outros nomes que podemos citar
na mesma linha aproximativa entre gastronomia e arte, entre eles podemos destacar
a figura de Grimod cujos jantares que mais pareciam obras de ficção tornaram-se
uma referência tanto de exotismo como de aguçadas técnicas culinárias (Cf.
ONFRAY, 1999, pp. 30-61). Outros chefs, gourmants, cozinheiros e diletantes
61 Cabe observar ainda que Adriá é o primeiro chef de cozinha a receber esse prêmio de design.
<http://www.raymondloewyfoundation.com/en/lucky-strike-designer-award/past-winners/winner-
2006.html>.
62 Maiores informações podem ser obtidas no site oficial do evento: <http://www.documenta12.de>.
89
podem ser pinçados ao longo da história ao realizar uma cozinha que se distancia
dos fazeres da alimentação cotidiana ocupando-se de um fazer gastronômico de
sensibilidade diferenciada. Poderíamos dizer que Adriá é o ápice dessa relação
entre arte e gastronomia pois, não destaca-se por suas técnicas calcadas num
controle extremo das propriedades físico-químicas dos alimentos, como também na
sua proposição de utilizar tais técnicas subvertendo o modo natural dos mesmos
como meio de construir uma experiência sensível radicalmente nova. Ao criar uma
alimentação tão apartada das propriedades naturais próprias dos alimentos e ao
mesmo tempo tão elaborada, passa a ser reconhecido no mundo das artes.
A revista Gula no seu primeiro ano apresenta uma parceria explícita entre arte
e gastronomia, bem como articula os saberes das cnicas culinárias onde há uma
culturalização dos alimentos. Se comparamos a edição de estreia com a edão
comemorativa do primeiro ano da revista, vemos claramente que o alimento mostrado
na primeira aparece pode ser considerado mais natural, na medida em que o vemos na
sua forma mais usual, na naturalidade da forma do brócolis por exemplo, muito diferente
do que podemos ver na edição de primeiro ano onde o alimento apresentado tem seus
ingredientes tão transformados que temos dificuldades em identificá-los, são círculos
coloridos, um xadrez elaborado, massas de forma, cor e sabor.
Outro ponto de destaque nessa capa é a referência a uma tradição gastronômica
estrangeira. Nessa capa es presente a França, explicitada no texto verbal, no uso da
ngua francesa para descrever o nome da receita “L'Ambroisie de la Fête”, “Foie Gras,
“Romae-Conti”. Apresenta também o universo da cozinha italiana no “Spaghetti e
traz a vizinha Argentina no texto verbal “DOCE DE LEITE Uma Invenção Argentina.
Todos esses dizeres instauram um alhures que se opõe e complexifica a relação eu-tu,
aqui-agora presente na capa. Há um movimento do enunciador de trazer um mundo
distante para perto do enunciatário. A construção de um glocal onde o estrangeiro e o
raro são postos euforicamente.
Figura 14 - Capa da revista Gula Nº 176 (celebração de 15 anos)
93
2.5 15 anos de Gula: a celebração de um saber sensível
A capa dos quinze anos da revista Gula foi construída de modo a chamar
atenção do leitor sobre a comemoração ali presente. Tanto ao ser vendida nas
bancas como ao ser distribuída para os assinantes foi apresentada de modo
diferenciado, com um suporte de papelão de tamanho maior que a destacava dentre
as outras revistas no mercado. Após a retirada desse suporte ao abrir a embalagem,
analisamos a capa dessa edição. Assim como nas outras análises realizadas,
iremos partir de uma descrição a do plano da expressão para, em seguida,
compreender como se o percurso gerativo de sentido dessa capa. Num primeiro
momento o olhar do leitor é chamado pela grande massa cromática da figura que
ocupa grande parte da área do suporte da capa, concentrando-se na área central
direita do retângulo vertical que o compõe. Essa figura apresenta-se num formato de
um cilindro segmentado por um recorte em ângulo, ela também destaca-se por ser a
única figura em marrom escuro brilhante. Na área segmenta, essa figura possui um
cromatismo em tons de amarelo e bege alternados em listras horizontais contendo
também algumas manchas em marrom escuro. No topo dessa forma cilíndrica
destaca-se um arranjo composto por formas orgânicas, cujos elementos podem ser
interpretados como um pequeno cilindro marrom claro, duas formas amareladas e
ovaladas, um retângulo em marrom escuro, uma outra forma mais próxima de um
losango em amarelo brilhante, dois cilindros muito finos (quase linhas) em marrom
escuro e uma outra forma em tom caramelo em semicírculo. Na base esquerda do
cilindro podemos ver mais duas formas amarelas ovaladas. Percebemos nesse
arranjo uma variedade dos formantes eidéticos, cujos cilindros mais estreitos
parecem se alongar como linhas enquanto as formas ovaladas e o cilindro maior
parecem condensar-se e voltar-se sobre si mesmos, num movimento de contenção.
Podemos dizer que essa variedade de formantes eidéticos é harmonizada por uma
variação menor dos formantes cromáticos dessas figuras. Assim, todos esses
94
elementos cujas formas são variadas possuem como cromatismo tons de amarelo e
marrom, com maior ou menor intensidade de luz.
O conjunto descrito logo acima compõe a figuratividade de um bolo que
possui uma cobertura de chocolate, encimado por um arranjo de um pau de canela,
duas lâminas de avelã, uma lâmina de chocolate, uma folha de ouro, duas favas de
baunilha e uma decoração de caramelo, na base esquerda vemos mais duas lascas
de avelã. O recorte do centro, em forma de prisma, a ver os tons mais claros que
compõem três camadas de recheio e a massa do bolo um pouco manchada pela
cobertura de chocolate.
A figura do bolo domina essa capa, o formante cromático é apresentado com
grande força visual, tanto pelas tonalidades mais vivas como pela área que ocupa.
Numa visada geral, podemos dizer que essa capa é construída pela figura do bolo,
pelo título e pela chamada “Edição especial de 15 anos”, os outros elementos estão
arranjados de modo a construir uma moldura para essas figuras principais. Notamos
também que a moldura não faz a volta completa em torno da figura central do bolo,
mas um formato em “L”, ou mesmo em “U” - se incluirmos o título , mas deixa a
lateral direita “aberta”. A lateral direita apresenta-se vazando ou sendo cortada pelo
suporte, ou seja, o limite é formado pela linha vertical do suporte papel da revista e
não pelo formante eidético ou cromático da figura do bolo. A ausência da moldura
nessa lateral assim como a posição do figura do bolo levam o enunciatário a um
abrir e folhear a revista.
Mais uma vez o reflexo de luminosidade construído pela reserva de verniz UV
confere brilho aos elementos de destaque. Assim, o título, a chamada “Edição
especial de 15 anos” e a figura do bolo são destacados ao possuírem uma
luminosidade maior que as outras áreas da capa que, por sua vez, apresentam-se
mais opacas. No texto verbal o brilho é percebido de modo menos intenso, pois a
tonalidade de dourado utilizada está mais próximo dos tons de cobre e marrom do
que dos amarelos claros. No bolo, o brilho aparece com grande intensidade,
reforçado tanto pela densidade cromática do marrom escuro do chocolate da
cobertura do bolo como pelo contraste com os pontos de luz em branco e nos tons
de dourado, bege e marrom claro dos outros elementos do bolo como as lascas de
95
avelã, a folha de chocolate, a fava de baunilha, o caramelo, a canela e a folha de
ouro. Esta última também estabelece uma relação de contraste com o cromatismo
dourado mais escuro pois, o reflexo de luz sobre sua cor dourada bem próxima dos
tons de amarelo claro é um refletor mais intenso do que todos os outros.
Os contrastes criados pela luz e pelo uso das cores também dão a ver as
relações entre texturas nessa figura do bolo. A cobertura de chocolate escuro
apresenta-se bastante lisa e brilhante, o brilho cria um efeito de sentido de frescor e
umidade no alimento, sendo uma das características mais importantes para aqueles
que trabalham
63
o chocolate. A granulação da massa intercalada pelo recheio do
creme dão a ver essa sucessão que intercala lisos e granulados suaves. Essa
granulação suave da massa cria o efeito de sentido de aeração e leveza, enquanto
que o aspecto liso tanto da cobertura com do recheio criam um efeito de suculência
e maior umidade. A maior umidade, pode ser percebida na cobertura que se deixa
ver no seu cromatismo como que derretendo nas camadas de massa e creme
superiores. O aspecto crocante pode ser visto das duas lascas de amêndoas
colocadas na base esquerda da figura cilíndrica do bolo e nos elementos de
ornamentação no topo do mesmo, novamente lascas de avelã e também no
caramelo que constitui, em si mesmo, a base do crocante
64
.
O olhar do leitor é inicialmente chamado para a grande massa de cor clara do
meio do bolo, a partir desse recorte segue pela linha vertical que forma o vértice do
ângulo, subindo em direção ao conjunto de formas e cores variadas que compõem o
arranjo da decoração do bolo. Nesse arranjo as linhas orgânicas que se destacam
do agrupamento maior conduzem o olhar para o lado esquerdo superior da capa,
numa diagonal até a base da letra “g maiúscula do título. Assim, o olhar do leitor é
deslocado até o texto verbal do título colocado em dourado e em tamanho grande
que ocupa a parte superior do suporte. Ao chegar ao fim da leitura do título realizada
63 “Trabalhar o chocolate” é um termo utilizado pelos profissionais da área e normalmente refere-se
ao processo de derretimento de um bloco mais endurecido utilizando calor e uma espátula própria
para movimentá-lo enquanto derrete. Tal procedimento é muito utilizado na confecção de doces
como nesse caso, de uma cobertura. Ao trabalhar o chocolate o “ponto” correto é dado por uma
temperatura específica conforme o tipo de chocolate. A técnica tem por objetivo fazer com que o
chocolate fique com uma textura lisa, homogênea e brilhante.
64 O crocante é usualmente feito a partir de uma base que contém calda de açúcar (açúcar
caramelizado ou caramelo) que é colocada numa superfície lisa para esfriar e endurecer, sendo
96
na horizontal da esquerda para a direita, o olhar encontra um retângulo vertical
pequeno onde está o código de barras encimado pelo número 15 em dourado. Esse
numeral em tamanho pequeno é apresentado com duas linhas verdes circulares
concêntricas sobre ele e abaixo do mesmo podemos ler a palavra “anos” também
em verde. Esse pequeno detalhe retira o olhar da linha de leitura do título desviando-
o suavemente para cima e fazendo-o descer com rapidez numa vertical descendente
pelo retângulo que contém o código de barras e outras informações sobre a revista
(número do ISSN, data, edição, preço). A rapidez é dada pelo fato dos textos verbais
do pequeno retângulo vertical estarem também na vertical, posição inversa a da
leitura do título e em tamanho pequeno, não permitindo uma leitura imediata. Na
lateral inferior desse retângulo nos deparamos com a logomarca da editora formada
por um pequeno círculo preto tendo uma espécie de “x” vazado e logo abaixo os
dizeres “Editora Peixes”. Mais uma vez, o olhar é atraído pelo cromatismo
contrastante do arranjo colocado sobre a figura do bolo, mas entre a logomarca e a
figura do bolo está, a meio caminho, um texto verbal descritivo “Bolo crocante de
avelã, Buffet Fasano”. Após realizar a leitura desse texto verbal, ou de apenas
constatar sua presença discreta, o olhar do leitor é novamente capturado pelo
cromatismo variado do arranjo decorativo que enfeita a figura do bolo,
especialmente a folha de ouro e as duas fatias de avelã que irão direcionar o olhar
do leitor numa circularidade concêntrica àquela do topo do cilindro da figura do bolo.
Dessa vez em sentido inverso ao da leitura do título, num movimento realizado da
direita para a esquerda chegando a a uma nova área de leitura de textos verbais
constituída pela coluna vertical do lado esquerdo da capa. Com letras também em
dourado e tamanho diferenciado em relação aos outros textos verbais, o topo da
coluna destaca “Edição especial de 15 anos”, numa verticalidade descendente
continuamos a leitura do texto verbal em preto “Adriane Galisteu, Ana Maria Braga,
Boni, Claudia Raia, Ed Mota, Edson Celulari, Malu Mader, Sérgio Viotti, Washington
Olivetto e outras personalidades recordam pratos de Gula”, a fonte escrita em caixa
alta e sem itálico nos dizeres “PRATOS DE GULA” indica o fim do texto da coluna
vertical. Bem ao lado da coluna, à direita, destacam-se duas fatias de avelã, a que
em seguida quebrada formando os fragmentos duros que serão depois misturados a um outro
elemento conferindo textura diferenciada e sabor adocicado. Nessa calda de açúcar podem ser
acrescentados outros ingredientes que modificam o sabor do “crocante”. Crocante também pode
designar quaisquer outros ingredientes de certa dureza que, ao serem mordidos, provocam um
estalo seco.
97
está ao fundo aponta para cima, indicando o texto “15 anos” enquanto a outra figura
da fatia de amêndoa direciona o olhar para esquerda e para baixo onde uma forma
circular é encontrada.
O pequeno círculo ou “olho” como é comumente referido na linguagem
editorial está preenchido por texto verbal apresentado com uma tipografia de peso
maior e convoca o leitor com a chamada “Participe da promoção cultural
Gula/Samsung”. O bloco de textos verbais da coluna vertical ocupa uma forma que
se afunila para baixo até encontrar a chamada no olho. Tal como uma seta, esse
afunilar leva o olhar do leitor ainda mais para baixo fazendo-o encontrar com os
textos apresentados na horizontal que ocupa a largura da página. Os textos verbais
apresentados nessa parte da página estão organizados em três blocos com os
dizeres: “Rogério Fasano fala da modernidade na cozinha”, “Giancarlo Bolla e os
ingredientes que a culinária brasileira assimilou nos últimos quinze anos”,
“Degustação de Porto Vintage 92 o ano oficial do nascimento da revista”. Embora os
blocos de textos estejam todos ocupando a área inferior da largura do suporte, o
tamanho diversificado entre eles constrói uma suave ondulação. Essa ondulação é
reforçada pela circularidade das figuras dos pratos brancos postas ao fundo desses
dizeres, que constituem uma base para a figura do bolo. Esses cinco pratos
circulares sobrepostos uns sobre os outros formam uma espécie de torre ou
pedestal que posicionando o bolo numa altura da base inferior. Por fim, ao da
capa, podemos ler numa única linha reta horizontal um novo chamamento ao leitor
“Inscreva-se no prêmio Gula/Brastemp 2007 – Chef revelação”.
A ilusão de profundidade é construída pelo posição da figura do alimento, do
mesmo modo que ocorre na revista Gula 12 analisada, onde este é colocado
numa posição enviesada em relação ao leitor. Embora a diagonalidade presente na
edição de 15 anos seja menos pronunciada, ela também existe. A sutileza dessa
diagonalidade também cria um efeito de sentido de maior refinamento em relação a
edição comemorativa do primeiro ano. Para além da diagonal da posição da figura
da fotografia do alimento, temos ainda o recorte triangular realizado no bolo que
reforça a construção da espacialidade e do posicionamento do corpo do leitor em
relação a essa capa. A angulação, um pouco maior do que 90º, projeta duas linhas
98
imaginárias para “fora” da capa, inserindo o leitor, mais uma vez, na cena proposta
pelo enunciador. Esse mesmo recorte tem uma outra função, mais objetiva, que é a
de oferecer uma visão clara do recheio do bolo. Com o bloco do título em primeiro
plano e a figura do bolo em último plano um reforço na profundidade da capa,
assim como novamente uma manipulação por tentação, ao afastar o objeto de
valor – “Bolo crocante de avelã, Buffet Fasano” - do enunciatário.
Esse posicionamento do bolo no último plano antes do fundo não reforça a
profundidade, mas também indica para o enunciatário um movimento de fora para
dentro. Esse movimento para dentro se acompanhando uma linha diagonal
indicada pelo recorte triangular do bolo, mais uma vez levando o enunciatário a
entrar na revista. Esse mesmo movimento é reforçado pela moldura em “L” dos
textos verbais, conduzindo a leitura de cima para baixo e da esquerda para a direita.
O arranjo dos formantes dessa edição dão a ver um enunciador bastante
seguro de si e de sua identidade visual. O bloco do título se mantém num
cromatismo dourado e preto sobre fundo branco. A chamada do texto verbal “Edição
Especial de 15 anos” estabelece uma isotopia com o título Gula. A mesma isotopia
do cromatismo é repetida em três blocos de texto no parte inferior horizontal do
suporte, dando destaque aos seguintes textos verbais: “Rogério Fasano”, “Giancarlo
Bolla” e “Porto Vintage 92”. Todos os outros textos verbais estão em cor preta.
Conforme dissemos, essa configuração destaca sobretudo a figura do bolo em
marrom brilhante, o título e a chamada verbal “Edição especial de 15 anos”.
A presença da materialidade dos ingredientes se destaca nessa capa e os
formantes matéricos
65
podem ser apreendidos principalmente no recorte do bolo, na
cobertura de chocolate, no pau de canela e na folha de ouro. A materialidade desses
elementos a ver texturas diferenciadas; no recorte do bolo vemos claramente
65 A conceituação de formante matérico ainda é nova na semiótica tendo sido desenvolvida como
recurso nas pesquisas que tem por objeto as artes plásticas ou objetos do mundo e em que os
formantes cromáticos e eidéticos não se mostraram suficientes para a apreensão dos sentidos
postos no corpus analisado (cf. DIAS, 1997, p. 31). Buscando fidelidade à proposta de Greimas
que nos diz que formante é “a apreensão simultânea de uma seleção de certo número de traços
visuais e sua globalização que transforma tal feixe de traços heterogêneos numa unidade
significante. Ou, uma unidade do significante que pode ser reconhecida, quando enquadrada no
crivo do significado, como a representação parcial de um objeto do mundo natural.” (GREIMAS
Apud OLIVEIRA, 2004, p. 82) , podemos dizer que a materialidade é um formante cujo dado
99
intercaladas duas texturas que se dão pela apreensão conjunta do cromático e do
eidético. Essa capa é particularmente forte em razão da presença dessas figuras
oferecer especial visibilidade a sua materialidade e de valorizá-la enquanto tal.
A fava de baunilha (Vanilla planifolia) é um ingrediente raro no mercado,
somente os cozinheiros mais atentos e sofisticados a adquirem
66
. Em geral, é
utilizado a essência de baunilha como substitutivo do ingrediente natural. O pau de
canela (Cinnamomum zeylanicum) é uma casca de árvore originária do Ceilão e das
Índias Orientais (Costa de Malabar) levemente pungente, de sabor marcante, atribui-
se à canela propriedades estimulantes, digestivas e afrodisíacas. Por sua vez, as
lascas de avelã (Corylus avellana) são outro ingrediente comum no hemisfério norte,
o seu uso indica poder e sofisticação para os brasileiros visto ser um produto
importado e pouco comum no mercado brasileiro de modo geral. O chocolate,
ingrediente originário da América, possui uma longa gama de sentidos em nossa
cultura ocidental, mas ao ingrediente propriamente dito é atribuído qualidades de
estimulante. Muito presente em ocasiões festivas é apreciado por crianças e adultos.
Para os adultos possui um sentido relacionado à sexualidade a ao amor
configurando-se como um ingrediente sedutor. Segundo estudiosos da área dica
ele teria função estimulante na produção de dopamina, que é relacionado ao
sentimento de euforia e felicidade. Por sua vez, a folha de ouro comestível é um
ingrediente pouco usual na culinária brasileira, cujo sentido explícito de luxo e
riqueza não deixa de causar polêmica entre os amantes da boa comida dado que o
mesmo não confere nenhum sabor ao prato, possuindo um efeito exclusivamente
decorativo.
Como em outras edições da revista, muitos dos ingredientes utilizados são de
origem estrangeira, raros e caros para um consumidor de valor aquisitivo mediano,
indicando uma filiação da publicação para com um grupo social para os quais a
configurado na apreensão relacional diz respeito a uma terceira categoria onde discrição (eidético)
e a integralidade (cromático) estão de tal forma conjugadas que não é possível apreendê-los
senão como conjunto de traços, não se referindo a um ou outro isoladamente. Assim, podemos
dizer que o formante matérico se caracteriza por apreender simultaneamente as características de
discrição e integralidade. Textura, consistência e densidade são alguns dos efeitos de sentido
apreendidos a partir do formante matérico.
66 Cerca de 95% dos extratos de baunilha do mundo todo são artificiais pois, a cultura do produto é
dispendiosa e não tem se mostrado competitiva no mercado atual. Ela é originária da América
100
possibilidade de compra desses ingredientes se constitui como um valor. Conforme
já reiteramos diversas vezes, a figura do bolo é o principal elemento dessa capa, um
bolo que se mostra afinado com os valores de requinte e exclusividade da
publicação. Sobre a importância do bolo em nossa cultura, cabe lembrar Câmara
Cascudo sobre a função social do bolo na vida portuguesa:
O bolo possuía uma função social indispensável na vida portuguesa.
Representava a solidariedade humana. Os inumeráveis tipos figuravam no
noivado, casamento (o bolo de noiva), visita de parida, aniversários,
convalescença, enfermidade, condolências. Era a saudação mais profunda,
significativa, insubstituível. Oferta, lembrança, prêmio, homenagem,
traduziam-se pela bandeja de doces. Ao rei, ao cardeal, aos príncipes,
fidalgos, compadres, vizinhos, conhecidos. O doce visitava, fazia amizades,
carpia, festejava. Não podia haver outra delegação mais legítima na
plenitude simbólica da doçura. Completava a liturgia sagrada e o cerimonial
soberano. (2004, p. 302)
Assim, é calcado numa tradição de origem europeia e que se faz presente em
território nacional que Gula celebra seus quinze anos. Evidente que esse bolo
figurado no discurso da revista não é um bolo popular e comum, como demonstram
os ingredientes escolhidos para confeccioná-lo. Outra filiação a essa tradição remota
diz respeito a forma do bolo. Em outro momento Câmara Cascudo relembra:
Meu pai dizia só gostar de bolo que fosse redondo. É realmente a origem do
bolo, bola. Serão os mais antigos quanto à forma, facilitando a divisão
igualitária das fatias. Anuncia anormalidade festeira. Os doces e biscoitos
podem entrar na rotina habitual, mas a presença dos bolos sugere
recepção, visita, novidade social. Comparecem à ceia cerimoniosa ou à
sobremesa do jantar solene. Sempre houve intenção ornamental no
acabamento boleiro. (2004, p. 615)
O que temos aqui pela escolha da forma redonda e pelo arranjo dos
elementos é assim, uma ornamentação elaborada, festiva, digna dos comensais
conhecedores da tradição do bem comer. Essa mesma tradição é mais uma vez
reiterada pelo uso dos pratos de louça branca redondos. A multiplicidade dos pratos
também demonstra que a festa não é de um único sujeito, mas de uma comunidade,
os cinco pratos empilhados que servem de base ao bolo tem função múltipla. Eleva
o bolo, destacando-o, mostra que a festa da revista tem mais de um conviva, pela
Central, Índias Orientais e Norte da América do Sul (cf. UCLA, 2002).
101
quantidade, cinco, também faz referência aos quinze anos, que o numeral quinze
é múltiplo de cinco.
O texto verbal enumerando dez personalidades também os colocam como
convivas da festa, os dez do texto verbal somam-se aos cinco do texto visual e
temos assim os quinze convivas celebrando os quinze anos. O número quinze
aparece no texto verbal tanto na escrita em algarismos como por extenso na
chamada de reportagem “GIANCARLO BOLLA e os ingredientes que a culinária
brasileira assimilou nos últimos quinze anos”. também uma referência ao ano de
nascimento nos dizeres “Degustação de PORTO VINTAGE 92 o ano oficial do
nascimento da revista”, demarcando a passagem do tempo.
A passagem do tempo é mostrada pelas datas, pelos dizeres que exploram a
modernidade em “ROGERIO FASANO fala da modernidade da cozinha”, e surge
também na numeração conforme foi apontado. No texto visual podemos perceber
uma temporalidade na figura do bolo aberto e no empilhar de pratos. A
temporalidade presente nessa capa é euforizada, a sobreposição de elementos cria
um efeito de sentido de acúmulo. Essa passagem de tempo também pode ser
percebida na complementaridade entre essa capa analisada e a de número 161,
onde uma fatia de bolo é apresentada ao leitor.
A capa comemorativa de quinze anos apresenta ainda uma sobreposição
colocada no texto verbal escrito em preto das três blocos de chamadas horizontais
na parte inferior da capa mostram-se estranhas ao leitor. As letras aparecem
remontadas umas sobre as outras, embora não chegue a comprometer a leitura do
texto, a leitura torna-se um pouco confusa pelo entrelinhamento muito próximo,
como se não houvesse espaço vertical suficiente para o texto em preto.
Nessa como nas outras capas analisadas podemos ver uma imagem de um
alimento na capa, reiterando o tema tratado pela revista, bem como criando uma
identidade da revista na medida em que a imagem sempre irá aparecer construída
numa relação de discurso direto com o leitor. A imagem do alimento é apresentada
de modo a capturar o olhar do leitor, numa manipulação por tentação, a fotografia e
a materialidade a propõe como objeto do mundo a ser experienciado pelo leitor,
102
atuando sobre seu corpo. A posição do destinador desde o início fica clara, não se
tratará aqui de um receituário prático, ligeiro ou mesmo frugal, longe do fogão
cotidiano e rotineiro, o enunciatário é convocado a um bem comer capaz de vingá-lo!
3 Considerações finais
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Oswald de Andrade
O discurso construído pela revista Gula na sua duratividade aponta para um
fazer discursivo configurado como um universo que se fecha sobre si mesmo, num
dizer específico sobre a alimentação vista como experiência do prazer alimentar,
realizando autorreferências e excluindo do seu discurso outros aspectos relativos à
alimentação. Observamos que as marcas temporais presentes nas capas da
publicação estabelecem uma circularidade temporal na medida em que acata a
sazonalidade das festas inscritas na cultura brasileira, retomando-as a cada ano. Por
outro lado, o passar do tempo pode ser percebido também pelas escolhas
vinculadas à moda do momento. Assim, como em outras publicações periódicas
percebemos nas revistas mais antigas um ethos próprio da época, embora
facilmente percebido na experiência vivida, tal aspecto é de difícil apreensão teórica
por sua volatilidade intrínseca. Neste contexto, Landowski esclarece “O que a moda
faz advir é uma certa sensação de tempo.”(2002, p. 93). O modo de enunciar,
segundo as escolhas próprias do momento, colocam a revista num tempo
socialmente inscrito e partilhado nas escolhas enunciativas presentes em suas
capas, mas tal inserção social é muito sutil e é percebida a partir de um certo
distanciamento do momento de produção.
A temporalidade no discurso de Gula é uma temporalidade que se inscreve
num presente que se dilata, ora ao futuro ora ao passado, ao recorrer a esses
tempos como recursos de valor de um novo fazer ou de um fazer consagrado.
Ainda assim, a marca temporal mais forte no discurso da publicação é o presente
104
como momento de contato com o leitor e de atualização dos outros tempos inscritos
nela.
Por sua vez, o espaço configurado na publicação pode ser apreendido
inicialmente como o espaço nacional brasileiro, seguido por outros espaços
nacionais reconhecidos pela cultura como portadores de um valor sobre os fazeres
culinários e também por um espaço construído no enunciado na sua construção
plástica.
O diálogo com outros espaços nacionais surge nas capas e nas reportagens
internas e ocorre primeiramente na explicitação dos estados nacionais como
portadores de uma cozinha própria. Se no início da história da revista suas capas
traziam explicitamente a comida estrangeira ou regional, após os seus primeiros
anos, a nacionalidade ou a nomeação do estado nação ou de uma região nacional
– das diversas cozinhas, não são mais demarcadas desse modo. O que observamos
é a presença de múltiplos diálogos entre as diferentes cozinhas configurando a
construção de um local multicultural, estabelecendo uma identidade nacional
cosmopolita. Assim sendo, ocorre uma espécie de desvinculação da revista para
com os diferentes espaços geograficamente demarcados, estruturando por sua vez,
uma relação cultural que incorpora diversas espacialidades difusas aproximando-se
do modo de apreensão e de experiência da espacialidade contemporânea
denominada glocal.
Figura 15 - Capa da
revista Gula Nº 15.
Figura 17 - Capa da
revista Gula Nº 103.
Figura 16 - Capa da
revista Gula Nº 72.
105
Conforme esta última aferição, o glocal construído em Gula tem por pano de
fundo, ou ponto de partida, o espaço nacional brasileiro, como local de origem da
revista, dado que pode ser confirmado com facilidade no texto verbal pelo uso da
língua portuguesa e suas expressões brasileiras. A incorporação de nacionalidades
outras não se como uma alteridade construída em contraposição à brasilidade.
Conforme nos diz Žižek, a particularização do gosto mundial estabelecido pela
modernidade obedece à lógica cultural do capital multinacional: “...já não estamos
lidando com a oposição padrão entre metrópole e países colonizados; uma empresa
global corta, por assim dizer, seu cordão umbilical com a nação-mãe e trata o seu
país de origem como mais um território a ser colonizado.” (DUNKER e PRADO,
2005, p. 32). O que vemos em Gula é um padrão internacional de revista, que tanto
pode ser brasileiro como europeu, norte-americano, etc. O leitor de Gula se
diante de uma revista colocada num espaço geograficamente difuso, onde a
espacialidade nacional brasileira originária de seu discurso é “neutralizada” na
medida em que é construído a partir de um lugar abstrato que convoca os diferentes
espaços (nacionais e internacionais) não identificando um posicionamento de
origem.
Esse posicionamento difuso, cosmopolita e multicultural acaba por instaurar
um ponto de vista de construção da identidade nacional como um outro. Esclarece
ainda Žižek a este respeito:
...o multiculturalismo implica uma distância e/ou respeito eurocêntrico
67
condescendente pelas culturas locais [...] é uma forma repudiada, invertida
e auto-referencial de racismo, um “racismo com distanciamento” “respeita”
a identidade do Outro, concebendo o Outro como uma comunidade
“autêntica” e auto-contida em relação à qual ele, o multiculturalista, mantém
uma distância possibilitada por sua posição universal privilegiada. (DUNKER
e PRADO, 2005, pp. 32-33)
Ao analisar o conjunto das capas de Gula, bem como algumas das
reportagens internas, nos deparamos com construções discursivas que podem ser
interpretadas segundo essa concepção de “autocolonização” de Žižek. Quando uma
determinada cozinha regional é mostrada na revista, o discurso é construído de
forma análoga independente do local de origem do alimento. Assim, podemos ler a
67 Grifo nosso.
106
respeito de um prato tradicional francês ou brasileiro, sendo ambos apresentados de
um modo muito semelhante na publicação, equiparando-os em termos de valor.
Todavia, ao tomar o conjunto das revistas, cabe notar que um eurocentrismo
marcado na publicação, que corrobora a eleição das culinárias francesa e italiana
como fazeres de referência enquanto configuradoras de um saber sobre os
alimentos. Assim, independentemente do local de origem do prato, serão valorizados
aqueles que se adequam aos padrões considerados internacionais. Ao valorar uma
culinária a partir do referencial europeu, o discurso da revista passa a deslocar a sua
territorialidade para um outro lugar, borrando as fronteiras do espaço do qual se
origina.
ainda uma outra espacialidade demarcada pela construção plástica da
revista. O espaço enunciado nas diversas capas se coloca como uma cena que
invade o espaço do leitor, incorporando-o, em muitos casos com o uso de linhas
diagonalizadas e planos enviesados em direção a ele. Tal espacialidade configurada
pela topologia do texto da capa estrutura um espaço construído no discurso que se
sobrepõe ao espaço físico ocupado pelo corpo do leitor. Desse modo, o corpo do
leitor é capturado pela espacialidade da capa, deslocando o sujeito para além da
percepção do espaço próprio que ocupa, realocando-o no espaço do discurso
construído pelo enunciado da revista. Contudo, observamos que as marcas espacias
configuradas pelos formantes plásticos são bastante sutis e permitem ao leitor
“completar” o cenário construído deixando em aberto uma grade cultural ampla para
que ele possa projetar ou incorporar o enunciado da capa na sua própria percepção
do espaço vivenciado.
O enunciatário da revista é assim, um sujeito competente na sua sensibilidade
em relação aos seus apetites, trata-se de alguém que está posicionado diante de um
prato bem cuidado e certamente conhece outras revistas de culinária e gastronomia,
é um sujeito que se interessa pelos prazeres gustativos. Mais do que apenas buscar
um saber técnico, a bem dizer, uma programação detalhada, o enunciatário desta
publicação busca um sentir de maior refinamento. Para ele não basta apenas saber
fazer determinado prato, será preciso também conhecer as relações culturais
inscritas nos ingredientes envolvidos, bem como aproximar-se o mais possível de
107
uma construção harmoniosa para os seus sentidos. Mais do que o saber fazer, é
necessário uma programação que o faça sentir. Os conhecimentos envolvidos dão
conta também de alimentar uma boa conversa durante a refeição. Assim, é todo um
estilo de vida construído a partir de uma estética que a revista constrói.
A revista Gula coloca-se num contraponto em relação as revistas de culinária,
muitas das quais filiadas a uma tradição de revistas femininas. Nesta contraposição,
a publicação voltada para a gastronomia desvincula-se da tradição do fazer
alimentar das donas de casa, desliga-se de um universo onde a cozinha é o domínio
feminino e coloca o fazer culinário como prazer para um sujeito independente de
gênero ou de tradições vinculadas ao gênero. No entanto, ao contrário de algumas
das revistas de gastronomia, Gula não é voltada ao público profissional de cozinha,
como chefs, banqueteiros ou sommeliers. Destina-se isso sim, a um público mais
abrangente que tanto pode ser aquele que deseja aprender a frequentar bons
restaurantes, como aquele que deseja realizar um prato para seus convivas,
tomando o lugar das revistas de culinária mais tradicionais. Ao desvincular a questão
do gênero em relação ao fazer culinário, Gula mostra-se mais próxima da realidade
vivida por seus leitores na atualidade, homens ou mulheres, para os quais os
fazeres culinários não mais se restringem à mulher que cozinha para a família ou ao
homem que tem a culinária por profissão.
Figura 19 - Capa da
revista Gula Nº 161
Figura 18 - Capa da
revista Gula Nº 176
Figura 20 - Capa da
revista Gula Nº 97
108
Podemos perceber ainda como uma outra característica da publicação a
exacerbação do luxo, explicitada pela opção de cromatismos em dourado e prata,
além de refinamentos visuais apontados nas análises individuais das capas. A
revista coloca-se numa posição inicial de formador de gostos, optando por realizar
uma construção em que se estrutura enquanto um sujeito de autoridade em relação
àquilo que diz. O recurso ao argumento de autoridade é amplamente utilizado nas
edições, fazendo uso da citação de nomes de sujeitos famosos na área da culinária,
da arte, da cultura e do público em geral. A configuração desse dizer vai se fazendo
ao longo da história da publicação e pode ser percebido na observação do conjunto
das capas. Vemos, por exemplo, que as primeiras capas buscam dar conta de um
universo alimentar a ser conhecido. Mas, as capas realizadas após a reforma
editorial mostram um conhecimento comum estabelecido em relação aos alimentos
buscando prover, cada vez mais, um refinamento sobre os saberes relativos a
gastronomia, utilizando ingredientes requintados e técnicas mais elaboradas.
É também digna de nota a narratividade inscrita nesse enunciar durativo,
onde as capas se complementam umas às outras. Nesta sequência, temos as
bebidas, os pratos principais, as massas, as sopas e as sobremesas, que no seu
conjunto estabelecem os múltiplos momentos de uma refeição. Numa outra visada,
podemos observar um encadeamento diferente, apresentando garrafas de vinho
fechadas, abertas, sendo servidas ou copos cheios, ou ainda, os diversos
momentos de servir um bolo. Tais arranjos constroem um universo alimentar próprio
apresentado pela revista, vinculado a um fazer sentir, onde o saber comer, a
construção de um gosto e um saber sentir esse gosto estão claramente marcados.
Retomando nossa hipótese central, percebemos que o caráter funcional da
alimentação está ausente no discurso da revista Gula. A publicação apresenta o
alimento enquanto construção estética e de consumo em termos da criação de
prazer e como experiência de vida. Os múltiplos sentidos inscritos em Gula buscam
aguçar os sentidos de seu leitor a tal ponto que ele seja capaz de vingar-se.
A vingança do leitor de Gula está dirigida contra um comer funcional,
tecnocrático, sancionado negativamente no contexto cultural da atualidade enquanto
estritamente provedor da subsistência e regrado pelo saber especializado dos
109
nutricionistas. Ela também poderá se voltar contra qualquer outra ausência de
sentido que o alimento, enquanto experiência de prazer, poderá lhe prover de modo
a reparar a falta de sentido, que alimenta sua gula.
111
4 Referências
4.1 Referências bibliográficas
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4.2 Filmografia
Soylent Green. Diretor Richard Fleischer, 1973.
A comilança (La grande Bouffe). Marco Ferreri, 1973, França/ Itália.
O jantar (La cena). Ettore Scola, 1998, Itália.
Como água para chocolate. Afonso Arau, 1993, México.
A festa de Babette. (Babettes Gaestebud). Gabriel Axel, 1987, Dinamarca.
Tempero da vida (Politiki Kouzina). Tassos Boulmetis, 2003, Grécia.
A marvada carne. André Klotzel, 1985, Brasil.
O cheiro de papaia verde (Mui du du Xanh). Tran Anh, 1993, França/ Vietnã.
Sideways: entre umas e outras (Sideways). Alexander Payne, 2004, EUA.
Mondovino. Jonathan Nossiter, 2004, França.
4.3 Periódicos
“Gula”, editora Peixes, edições mensais entre 1992. e dez./2008
“Alta Gastronomia”, AW Editora, edições mensais entre jan./2005 e dez./2008.
“Claudia Cozinha”, Editora Abril, edições mensais entre jan./2005 e dez./2008.
“Água na Boca”, Editora Três, edições mensais entre jan./2005 e dez./2008.
“Mesa Pronta”, Cesar Tavares Comunicações Ltda., edição trimestral, Jan./Fev./Mar.
De 2005.
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4.4 Outros
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Site: <http://www.rederecord.com.br/programas/hojeemdia/>. Acesso em 05 de
janeiro de 2009
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17 de julho de 2009.
Site: <http://www.slowfood.com/>. Acesso em 15 de julho de 2009.
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