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UNIVERSIDADE DO EXTREMO SUL CATARINENSE – UNESC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CURSO DE MESTRADO EM EDUCAÇÃO
HENRI FERNANDO BISCHOFF
O ESTILO DE PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA:
REFLEXÕES SOBRE AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DA
FORMAÇÃO MÉDICA
CRICIÚMA, OUTUBRO DE 2009.
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HENRI FERNANDO BISCHOFF
O ESTILO DE PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA:
REFLEXÕES SOBRE AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DA
FORMAÇÃO MÉDICA
Dissertação de Mestrado com linha de pesquisa em
“Educação e Produção do Conhecimento nos
Processos Pedagógicos”, apresentada a Banca
Examinadora do Programa de Pós-Graduação -
PPGE, da Universidade do Extremo Sul Catarinense
UNESC, para obtenção de Título de Mestre em
Educação.
Orientador: Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva.
CRICIÚMA, 10 DE NOVEMBRO DE 2009.
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HENRI FERNANDO BISCHOFF
O ESTILO DE PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA: REFLEXÕES SOBRE
AS BASES EPISTEMOLÓGICAS DA FORMAÇÃO MÉDICA
Dissertação de Mestrado aprovada com conceito A
pela Banca Examinadora do Programa de Pós-
Graduação PPGE, para obtenção do Título de
Mestre em Educação, da Universidade do Extremo
Sul Catarinense UNESC, com linha de pesquisa
em “Educação e Produção do Conhecimento nos
Processos Pedagógicos”.
Criciúma, 10 de novembro de 2009.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Prof. Ademir Damásio – Coordenador do Curso
______________________________________________________
Dr. Ilton Benoni da Silva – Orientador
______________________________________________________
Dr. Luiz Roberto Ageo Cutolo – Examinador externo/UFSC
_____________________________________________________
Dr. Vidalcir Ortigara – Examinador /UNESC
O que percebemos como impossibilidade é somente
o incongruente com nosso estilo de pensamento
habitual.
LUDWIK FLECK
AGRADECIMENTOS
À minha esposa Kica, linda e fiel companheira que sempre acreditou e
apoiou esse empreendimento e que forneceu todo suporte necessário para que ele
fosse possível. Ela conseguiu transformar vaidade e adorno em coisas não fúteis.
Às minhas filhas Laura e Helena, pela paciência em compreenderem o pai
ausente em dezenas de finais de semana que não podíamos sair para passear
porque o “papai tinha que ficar fazendo o trabalho..”.
Aos meus pais e ao meu irmão que me mostraram o caminho a ser
seguido: “os estudos”.
Aos meus colegas de mestrado que me ajudaram nessa feliz etapa de
minha vida em voltar a ser estudante novamente.
À professora Fábia Liliã Luciano, por ser a primeira a perceber a
importância do tema deste trabalho, por ser minha primeira orientadora quando eu
nada sabia e por ter abraçado a idéia quando ninguém acreditava na mesma. Fábia,
muito obrigado!
Aos professores Ademir Damázio e Vidalcir Ortigara que “desmontaram”
minha base epistemológica de verdade científica. A maior surpresa foi descobrir que
existiam outras verdades além daquela que me foi ensinada na faculdade de
medicina.
Ao meu amigo primeiro e que depois veio ser meu orientador, prof. Ilton
Benoni da Silva, ao qual tenho grata satisfação. Obrigado pelas observações, pelo
modo bachelardiano que concebe ciência, pelas preciosas noções dadas a respeito
de inter-relação de saberes e pelo exemplo de pessoa ética, centrada e determinada
que você é.
Ao meu amigo e co-orientador prof. Luiz Roberto Ageo Cutolo, que
aceitou me orientar nas questões relativas ao Fleck e pela simpatia, carinho e
interesse que demonstrou em relação ao meu trabalho.
Aos meus amigos entrevistados, Aloísio, Laércio, José Eustáquio, Telmo,
Fournier e Adriana, e tantos outros colegas que incomodei nos congressos falando a
respeito de medicina estética. Através de suas preciosas observações foi possível a
coleta dos dados necessários a essa pesquisa.
Aos pacientes de medicina estética que me mostraram ao longo de 15 anos a
importância de suas queixas e que mudaram meu modo de conceber e praticar
medicina.
RESUMO
BISCHOFF, Henri Fernando. O Estilo de Pensamento em Medicina Estética:
reflexões sobre as bases epistemológicas da formação médica. 2009. 204 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade do Extremo Sul Catarinense -
UNESC, Criciúma.
Esse estudo verifica se o estilo de pensamento da medicina estética é distinto do
estilo de pensamento da medicina tradicional. A investigação foi realizada a partir da
análise dos diferentes discursos presentes em documentos explicitadores dos
processos formativos em ambas as áreas. Trata-se de pesquisa teórico-conceitual,
que analisa conteúdos documentais e entrevistas pessoais, procurando identificar
sinais teóricos que evidenciem essa suposta ruptura nos discursos examinados. A
epistemologia sociológica comparada de Ludwik Fleck (1896-1961) foi utilizada
como referencial de análise privilegiando-se a categoria Estilo de Pensamento. Os
resultados apontaram que os dois estilos de pensamento são semelhantes, com
currículos baseados em modelos flexnerianos de concepções biologicistas, tecnicista
e fragmentários com forte influência da tradição. Os professores, em sua grande
maioria, não foram preparados para o exercício da docência. Contudo, o estilo de
pensamento da medicina estética apresenta postura mais aberta à
interdisciplinaridade de saberes e demanda mudanças em sua prática operativa
devido ao deslocamento do foco de atuação médica que é desviado da profundeza
dos órgãos à manifestação superficial da forma estética. Daí depreende-se que os
processos formativos da medicina estética, embora tenham em sua base
epistemológica elementos similares aos da medicina tradicional, encaminham-se
para a zona fronteiriça de inter-relação com as demais áreas de saber relacionadas
à saúde estética do indivíduo (como fisioterapia, cosmetologia, nutrição, educação
física e enfermagem estética), que não representam apenas cuidados médicos, mas
que tem potencial de articulação com eles. A perspectiva sociológica da formação de
conhecimentos, a qual ressalta a importância da prática social e seus determinantes
histórico-culturais como elemento principal na formação de novos discursos e o
modo como eles se formam a partir da inter-relação de saberes é apresentada como
recurso importante aos professores que procuram incentivar o pensamento crítico
como tal.
Palavras-chave: Educação. Formação Médica. Conhecimento. Estilo de
Pensamento. Medicina Estética.
ABSTRACT
BISCHOFF, Henri Fernando. The Style of Thought in Aesthetic Medicine:
reflections on the epistemologics basis of the medical formation. 2009. 204 f.
Dissertation (Education Master) - Universidade do Extremo Sul Catarinense -
UNESC, Criciúma.
Starting of estimated that the aesthetic medicine demand a proper style to practice
medicine was carried through study to verify if the style of thought of the aesthetic
medicine is distinct of the style of thought of the traditional medicine to identify the
different conceptions to characterize the paper of these conceptions in the processes
of medical formation. The inquiry was carried through from the analysis of the
different styles of thought in aesthetic medicine and traditional medicine by a
conceptual research, study of curricular grating and personals interviews. Compared
sociological epistemology of Ludwik Fleck (1896-1961) was used as referencial of
analysis having privileged the category Style of Thought. The results had pointed
that the two styles of thought are similar with curriculum based on flexnery models of
fragmentary, tecnicist and biologycist conceptions with strong influence of the
tradition. Almost whole professors had not been prepared to teach. However, the
style of thought of the aesthetic medicine seems more open for interdisciplinarity and
demand changes in operative practical due to displacement of the focus of medical
performance that is deviated from deepening to superficial manifestation of the
aesthetic form. With the results was made reflections about contemporary discussion
of the medical education.
Key words: Education. Medical training. Knowledge. Style of Thougt. Aesthetic
Medicine.
RESUMEN
BISCHOFF, Henri Fernando. El estilo del pensamiento em Medicina Estética:
Reflexiones a respeto de las basis epistemológicas de la formación médica. 2009.
204 f. Dissertación (Maestria en Educación) - Universidade do Extremo Sul
Catarinense - UNESC, Criciúma.
A partir del presupuesto que la medicina estética demanda un estilo propio de
platicar la medicina fue hecho estudo para verificar si el estilo de pensamiento de la
medicina estética es distinto del estilo de pensamiento de la medicina tradicional
visando la identificación de las diferentes concepciones existentes para la
caracterización del papel de estas concepciones en los procesos de formación
medica. La investigación fue hecha a partir de la análisis de los diferentes estilos de
pensamiento presentes en medicina estética y tradicional por medio de pesquisa
conceptual, estudo de la grade curricular y entrevistas personales. La epistemología
sociológica comparada de Ludwik Fleck (1896-1961) fue utilizada como referencial
de análisis con privilegio de la categoría Estilo del Pensamiento. Los resultados
apuntaran que los dos estilos de pensamiento son semejantes con currículos
basados en moldes flexnerianos de concepciones biologicistas, tecnicista y
fragmentarios con fuerte influencia de la tradición. Los maestros, en su gran
mayoría, no fueran preparados para el ejercicio de la docencia. Todavía, el estilo de
pensamiento de la medicina estética apunta por una postura más abierta a la
interdisciplinaridad de los saberes y necesita cambios en su manera de operar
debido al descocamiento de los focos de actuación médica que está desviado de la
profundidad de los órganos a la manifestación superficial de la forma estética.
Considerando los resultados encontrados si hice reflexiones relativas a la discusión
contemporánea a respeto del tema de la educación medica.
Palavras Claves: Educación. Formación Médica. Conocimiento. Estilo del
Pensamiento. Medicina Estetica.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Formação do Estilo de Pensamento Predominante. ............................... 35
Figura 2 – Os três fatores formadores do conhecimento. ......................................... 51
Figura 3 – Transformação do Estilo de Pensamento ................................................ 59
Figura 4 – Objeto fronteiriço relacionado aos cuidados estéticos das diversas
especialidades médicas. ......................................................................................... 167
Figura 5 – Formação do EP da ME por constituição de objeto fronteiriço (“creole
zone”) com as especialidades ................................................................................. 168
Figura 6 – O crescimento e desenvolvimento do EP da ME dentro dos demais
EP da MT gera situações de conflito em cada zona fronteiriça. .............................. 169
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Critérios Definidores do Estilo de Pensamento ..................................... 26
Quadro 2 – Pesos aconselhados por Votré Beauté para uma mulher de 1,60 m. .. 113
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ASIME Associação Internacional de Medicina Estética.
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
CFM – Conselho Federal de Medicina.
CP – Coletivo de Pensamento.
CREMESC – Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina.
EP – Estilo de Pensamento.
FMUSP – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
ME – Medicina Estética.
MEC – Ministério de Educação e Cultura.
OMS – Organização Mundial de Saúde.
MT – Medicina Tradicional.
PG – Pós-Graduação.
SBME – Sociedade Brasileira de Medicina Estética.
SEME – Sociedade Espanhola de Medicina Estética.
SUS – Sistema Único de Saúde.
TI – Tráfego de Ideias.
UTI – Unidade de Tratamento Intensivo.
UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.
UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina.
UNESC – Universidade do Extremo Sul Catarinense.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 14
CAPÍTULO I
O PROBLEMA DE PESQUISA: ESTILO DE PENSAMENTO E FORMAÇÃO
MÉDICA ............................................................................................................ 17
CAPÍTULO II
A EPISTEMOLOGIA DE LUDWIK FLECK ........................................................ 33
2.1 O Conhecimento como Produto Histórico Social ........................................ 34
2.2 A Formação do Conceito ............................................................................ 36
2.3 Discussões sobre a Formação do Conceito................................................ 43
2.4 Coletivo de Pensamento: A Ciência como resultado de Linhas Coletivas
de Pensamento ................................................................................................. 49
2.5 O Estilo de Pensamento - O olhar orientado como categoria principal na
formação do conceito ........................................................................................ 54
2.6 Os Fatores de Transformação do Estilo de Pensamento ........................... 58
CAPITULO III
ESTILO DE PENSAMENTO NA MEDICINA TRADICIONAL ............................ 64
3.1 A Formação do Estilo de Pensamento no Curso de Formação em
Medicina ........................................................................................................... 66
3.1.1 O Peso da Tradição Presente na Faculdade de Medicina na Formação
do Estilo de Pensamento .................................................................................. 68
3.1.2 O Papel da Faculdade na Formação do Estudante de Medicina ............. 71
3.1.3 A Formação do Professor de Medicina .................................................... 74
3.2 O Olhar Orientado da Medicina Tradicional ................................................ 81
3.3 As Concepções “Corpo-Organismo”, “Vida-Morte” e “Saúde-Doença”
para a Medicina Tradicional .............................................................................. 89
3.4 O Estilo de Pensamento na Medicina Tradicional – Síntese Recorrente .. 101
CAPÍTULO IV
O ESTILO DE PENSAMENTO DA MEDICINA ESTÉTICA ............................ 109
4.1 Transformações Histórico-Culturais Precípuas ao Surgimento da
Medicina Estética ............................................................................................ 110
4.2 Investigação dos Elementos Constituintes do Coletivo de Pensamento
da Medicina Estética ....................................................................................... 123
4.3 O Trinômio Instituição–Professor–Estudante de Medicina Estética .......... 132
4.4 O Olhar da Medicina Estética orientado à Superfície ............................... 136
4.5 Os Conceitos Corpo-Organismo, Saúde-doença e Vida-Morte na
Medicina Estética ............................................................................................ 141
4.6 Delimitação do Estilo de Pensamento da Medicina Estética .................... 154
4.7 O Surgimento de um Novo Estilo de Pensamento: O Conceito de Objeto
Fronteiriço ....................................................................................................... 165
4.8 A Medicina Estética como Campo de Especialidade Médica.................... 170
4.9 A Medicina Estética como Profissão ......................................................... 171
4.10 Síntese Recorrente sobre o Estilo de Pensamento da Medicina
Estética ........................................................................................................... 175
CAPITULO V
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 181
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 195
APÊNDICE A: O ESTILO DE PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA:
REFLEXÕES SOBRE A BASE EPISTEMOLÓGICA DA FORMAÇÃO MÉDICA .... 203
APÊNDICE B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DO
PARTICIPANTE ...................................................................................................... 205
APRESENTAÇÃO
Este trabalho surgiu de uma inquietação do autor ao praticar Medicina
Estética (ME) ao longo de quinze anos. O mesmo percebeu uma necessidade de
deslocamento de sua base epistemológica em medicina, pois, para praticar a ME,
havia necessidade de modificar o olhar médico, a relação médico-paciente, lidar com
pessoas não-doentes e, a mesmo, o ato de cobrança de honorários por
procedimento o curativo. Essa modificação levou-o a refletir se os demais
médicos, que começavam a praticar medicina estética, também sentiam
necessidade de modificar a maneira de pensar a prática de medicina, o modo de agir
e se relacionar com o paciente, colegas e sociedade.
Diante desta inquietude passou a indagar-se: Será que essas
mudanças significam a instauração de um “novo estilo de pensamento” (EP)
presente na ME e, será que esse novo estilo é capaz de repercutir nos processos
formativos pedagógicos em medicina? Sendo assim, haverá ou não, resistência de
setores mais conservadores da medicina tradicional (MT) para a especialidade ser
reconhecida?
Desse modo, empreendeu-se estudo para verificar se a ME possuía EP
distinto ou semelhante ao EP da MT. Na posse desse resultado, ampliou-se o
debate para saber se, na presença de EP distinto entre esses dois discursos, a ME
representaria ruptura ou não com o modo de pensar médico tradicional. Na hipótese
dos dois EP serem semelhantes, procurou-se analisar que reflexões poderiam ser
extraídas do resultado.
Contudo, para entender o surgimento da ME foi necessário compreender
que condições históricas possibilitaram o seu aparecimento. Que mudanças a
sociedade contemporânea necessitou sofrer para que houvesse condições de
fecundidade a ME? De modo que se buscou em Ludwik Fleck (1896-1961) o suporte
teórico necessário para buscar respostas a estas indagações. Fleck é considerado
pioneiro na abordagem construtivista, interacionista e sociologicamente orientada
para a ciência; estudou as práticas de laboratório e investigações enfocadas no
crescimento, estabilização e difusão de conhecimento científico (LÖWY, 2004).
Apoiada na epistemologia sociológica fleckiana, a pesquisa passou a
15
delimitar os estilos de pensamento da medicina tradicional e da medicina estética. A
principal categoria estudada na investigação foi o estilo de pensamento presente
nesses dois discursos. No entanto, foi preciso buscar as categorias secundárias
necessárias ao entendimento da categoria principal. O diálogo com os demais
autores serviram de suporte para a delimitação das mesmas.
Finalmente, após a delimitação das categorias estudadas, foi possível
apontar resultados e tecer elaborações concernentes à Educação Médica.
Desse modo, o capítulo I apresenta a questão norteadora do trabalho, as
categorias a serem estudadas, bem como as estratégias metodológicas.
O capítulo II presta-se à sistematização dos estudos sobre a
epistemologia de Fleck (1986). Foram apresentadas e discutidas as categorias:
estilo de pensamento, coletivo de pensamento e olhar orientado, com privilégio da
categoria estilo de pensamento que serviu como base interrogativa ao objeto de
estudo.
Para analisar o EP da MT, o capítulo III aborda a temática do estudo
inicialmente pelo peso da tradição presente na faculdade de medicina na formação
do EP A pesquisa insere o trinômio estudante-professor-instituição do curso de
graduação de medicina como principal elemento formador do EP da MT. A formação
do olhar orientado do estudante de medicina é desenvolvida, para, em seguida,
estudar as concepções de corpo-organismo, vida-morte e saúde-doença na MT.
Com o entendimento destas categorias e de acordo com a epistemologia fleckiana,
chega-se ao momento da caracterização do EP da MT.
O capítulo IV pesquisou o EP de ME. Para isso, estudou-se o surgimento
da ME pelo entendimento das transformações histórico-culturais que modificaram os
modelos normativos da sociedade contemporânea. A chegada do movimento ao
Brasil e sua prática foram pesquisados pelo viés de entrevistas com professores e
estudantes de ME. Na posse destas informações, se investigou os elementos
constitutivos do coletivo de pensamento (CP) da ME. O trinômio estudante-
professor-instituição de ME foi debatido. Especial atenção foi dada ao estudo do
olhar orientado à superfície corporal desenvolvido na ME, haja vista a importância
deste tema para o entendimento do EP da mesma. As categorias corpo-organismo,
saúde-doença e vida-morte foram pesquisadas sob a perspectiva da ME. Enfim, por
meio desse percurso, chega-se ao momento da definição do EP presente na ME. Os
16
critérios definidos por Cutolo (2001) para definição e entendimento do EP são
utilizados e debatidos um a um.
Finalmente, o capítulo V confronta as categorias encontradas na MT e na
ME para verificar a possibilidade de existência ou não de EP diferentes entre os
discursos. É nesse capítulo que, baseado nos resultados e conclusões do trabalho
realizado, se extrai as reflexões sobre processos formativos da Educação Médica. E,
no final do capítulo, se apresenta as considerações finais sobre a pesquisa do tema
abordado com as conclusões, limitações e propostas sugeridas pelo autor.
CAPÍTULO I
O PROBLEMA DE PESQUISA: ESTILO DE PENSAMENTO E FORMAÇÃO
MÉDICA
Um novo saber que pretende instalar-se dentro de um estilo de
pensamento predominante necessita transpor muitos percalços. Por outro lado, ele
se presta para o estudo da sua influência nos processos pedagógicos da formação
de novos conhecimentos. Sob esse ângulo, a medicina estética pode ser exemplo
disso. Stegmüller (1977, p XII), em seu prefácio da segunda edição de seu livro A
Filosofia Contemporânea ilustra essa questão:
Em nossa investigação, as dificuldades de tal compromisso talvez sejam
maiores do que em outras áreas, porque uma mudança nas opiniões
filosóficas refere-se não apenas a uma substituição de hipóteses antigas por
novas, um abandono de supostos conhecimentos em favor de outros juízos,
tidos agora por verdadeiros, mas implica em algo mais radical: uma
alteração de toda a maneira de colocar e ver as coisas frente aos chamados
problemas filosóficos. Toma-se consciência de novas dimensões de
questões, antes não percebidas; o que se tinha como evidente surge
repentinamente como obscuro e questionável; o problema – o que é e o que
não é discutível sob o ponto de vista filosófico é considerado agora de
maneira diferente de antes. Deslocam-se todas as ênfases de sentido e
valor, atingindo o próprio conceito de filosofia
.
Essa pesquisa analisa quais as possíveis diferenças nas bases
epistemológicas entre ME e MT presentes nas concepções pedagógicas do ensino
do curso de medicina. Por decorrência, essa situação pode gerar conseqüências
alternativas para os processos pedagógicos do ensino de medicina ao provocarem
possíveis mudanças no modo de agir médico e da prática da medicina. Será
necessário modo distinto do tradicional para transmissão e execução do
conhecimento do novo tipo de saber?
Como a pesquisa interroga as bases epistemológicas da ME em
relação à MT presentes em processos formativos dos profissionais da área, lança
perguntas apoiada nas noções epistemológicas de Ludwik Fleck desenvolvidas em
sua principal obra, escrita em 1935: La Génesis y el Desarrollo de um Hecho
Científico, que permitem compreender e analisar como ocorre o processo
18
de instauração, extensão e transformação do EP de determinado campo do saber.
Quando Ludwik Fleck nasceu, em 1896, sua cidade natal era Lenberg
e pertencia ao Império Austro-Húngaro. Depois da Primeira Guerra integrou a
Polônia independente e o nome mudou para Lvov. (em 1945 foi soviética e hoje está
na Ucrânia sendo chamada de Lwiw). Filho de ricos comerciantes judeus, Fleck
estudou medicina na Universidade de Lvov. Formou-se em 1920 e especializou-se
em microbiologia com o professor Rudolf Weigl, um especialista mundial em tifo,
doença que matou milhões na Europa Oriental, cuja vacina foi desenvolvida por
Fleck dentro dos campos de concentração nazista.
Nos anos 1920, Fleck publicou artigos em revistas médicas e começou a
explorar a filosofia da medicina, a partir da sua experiência como pesquisador. No
primeiro, em 1927, contrariando a opinião geral vigente na época, disse ser
impossível atribuir doenças infecciosas (sua especialidade) a uma única causa.
Os anos 1930 conheceriam, mas não reconheceriam, uma ideia
exatamente na contramão do pensamento da época, anunciada ao mundo a partir
do próprio título do livro publicado em 1935 na Alemanha: Gênese e
Desenvolvimento de um Fato Científico. Seu autor, o pesquisador polonês Ludwik
Fleck, provocava o Círculo de Viena afirmando que o fato científico poderia ser
elaborado e compreendido à luz de sua gênese e desenvolvimento, retirando-lhe o
espaço privilegiado de construto formal para reinseri-lo no campo humanístico de
uma construção levada a cabo por comunidades de pesquisadores. Na década
seguinte, aquele título exerceria irresistível fascínio sobre Thomas Kuhn.
Fleck falava pouco a respeito do livro publicado sobre a filosofia da
ciência. uma vez mencionou ter enviado um artigo para uma revista científica
inglesa, e rejeitado. Dois outros jornais também o devolveram. A quarta e última
negativa chegou a um pesquisador chamado Klingberg depois da morte de Fleck,
em 1961, vítima de infarto do miocárdio. Fleck foi sepultado em Nes Tziona, em
Israel. No dia seguinte, o necrológio no jornal “Novini Kurier” era uma pequena nota
com uma foto dele.
Mas, por acaso, o trabalho filosófico de Fleck teve nova oportunidade
sendo conhecido pelo ocidente. Em 1949, o doutorando em física Thomas Kuhn
procurou na biblioteca da Universidade de Harvard livros que sustentassem sua
hipótese em um estudo sobre a história da ciência. A nota de rodapé de um dos
19
livros citava apenas o título do livro de Fleck. Isso bastou para despertar sua
curiosidade, pois sua pesquisa era precisamente sobre o assunto. Ele descobriu
Fleck através de citação do artigo de Hans Reinchenbach Experience and Prediction
(Chicago, 1938, p 224). O que mais impressionou Kuhn não foi o que Reinchebach
escreveu, mas o título da citação feita por ele a respeito do trabalho citado: Gênese
e Desenvolvimento de um Fato Científico escrito por Ludwik Fleck em 1935. Kuhn
reconheceu imediatamente que, um livro com aquele título, falava exatamente dos
conceitos que estava refletindo na época. Ele encomendou a obra, leu-a do começo
ao fim lutando contra o alemão e ficou impressionado. Kuhn acredita que o
pensamento de Fleck auxiliou a esclarecer a dimensão sociológica da ciência e
levou-o a escrever, em 1962, sua obra mais importante: A Estrutura das Revoluções
Científicas. A teoria desenvolvida por Kuhn em seu famoso livro lembra o trabalho de
Fleck em vários aspectos.
Por exemplo, se realizarmos um paralelo entre o pensamento de Fleck
(1986) e Kuhn (1987), será possível notar ideias coincidentes a esse respeito:
1 O conceito kuhniano paradigma - que é a macro teoria aceita de
forma geral por toda comunidade científica - é semelhante ao conceito fleckiano
estilo de pensamento (FLECK, 1986, p 123, 148, 191).
2 O conceito comunidade científica de Kuhn (1987) - conjunto de
cientistas que compartilham um mesmo paradigma e realizam a mesma atividade
científica - é parecido com o coletivo de pensamento de Fleck (1986, p 149).
3 A ciência normal é para Kuhn (1987), o período durante o qual se
desenvolve a atividade científica baseada no paradigma, podendo ser comparada
com o período clássico do conceito de ciência fleckiano (FLECK, 1986, p 55).
4 O conceito kuhniano anomalia pode ser comparado ao conceito
fleckiano de complicações (FLECK, 1986, p 28). Eles se baseiam que, em
determinadas ocasiões, o paradigma não é capaz de resolver todos os problemas
(que podem persistir ao longo de anos, ou séculos). Neste caso, o paradigma é
posto em cheque gradualmente. Começa-se a questionar se ele é o marco mais
adequado para resolução de problemas ou se deverá ser abandonado. Então, é
quando se estabelece a crise, que supõe a proliferação de novos paradigmas que
competem entre si tratando de impor-se como enfoque mais adequado.
5 Finalmente, para Kuhn (1987), se produz uma revolução científica
20
quando um dos novos paradigmas substitui o paradigma tradicional. A cada
revolução o ciclo inicia de novo e o paradigma que foi instaurado origem a novo
processo de ciência normal. Para Fleck (1986, p 189), cada variação do estilo de
pensamento, de forma similar ao que ocorre com as mutações kuhnianas, contém
algo repentino e revolucionário que o converte em algo semelhante a uma fase que
se encerra. O entendimento entre partidários de EP diferentes é impossível; “as
palavras não podem traduzir e os conceitos não têm nada em comum com os
nossos”. Porém, essa ruptura revolucionária, ao contrário de Kuhn (1987), não é o
tema central dos estudos de Fleck (1986), mas a instauração e desenvolvimento dos
estilos de pensamento, que são os momentos em que melhor se percebe a evolução
da ciência.
De acordo com Schäfer e Schnelle (1986b, p 24), Fleck compartilhou com
Wittgenstein, Popper e muitos outros autores de sua época, o emprego da psicologia
gestáltica para a crítica do conceito positivista do fato. Porém, o mais interessante e
original em Fleck, para esses autores, consiste em descobrir no olhar orientado ao
EP a constituição essencialmente coletiva de toda a investigação, o que o levou a
rechaçar a concepção individualista da mesma.
Ao longo do livro La Génesis y el Desarrollo de un Hecho Científico, Fleck
(1986) descreve a progressão do conceito de sífilis até culminar com o
desenvolvimento da reação de Wassermann, utilizada para seu diagnóstico. Por
meio de incursão histórica (utilizada como apoio metodológico) introduz elementos
de sociologia à epistemologia e conduz o leitor à compreensão das principais
categorias: Estilo de Pensamento e Coletivo de Pensamento.
O interesse no pensamento de Fleck (1986) não é somente teórico, mas
também em sua formação médica. Ele aplica as categorias e as faz operar na
análise de um problema médico importante: a progressão do conceito de sífilis
desde sua origem até chegar ao conceito etiopatogênico atual baseado na reação
de Wassermann utilizada para diagnóstico sorológico da enfermidade. Seu
pensamento e ideias relativas ao estilo de pensamento (EP) e coletivo de
pensamento (CP) possibilitam a utilização dessa epistemologia como fundamento de
pesquisa no ensino da saúde. Além disso, conforme Delizoicov (1999), também
pode ser empregado no estudo de vários tipos de comunidades científicas e inter-
relações nos processos de produção de conhecimento científico. Assim, a
21
epistemologia fleckiana é perfeitamente adaptável em investigações em outras áreas
de saúde e, em conseqüência, para ensino de profissionais de áreas afins.
Outro aspecto importante do uso da epistemologia fleckiana nessa
investigação é a indicada por Cutolo (2001, p 47), em que a teoria de conhecimento
proposta por Fleck parece mostrar-se mais apropriada quando se estuda a
“convivência” de diferentes Estilos de Pensamento. Torna-se mais adequada,
inclusive, para estudar aspectos mais amplos de grupos sociais historicamente
localizados.
Fazendo considerações sobre compreensões e práticas estabelecidas
pela ciência médica, Fleck (1986, p 23) introduz conceitos denominados estilo de
pensamento e coletivo de pensamento. Ele afirma que o ato de conhecer é atividade
ligada a condicionantes sócio-culturais de sujeitos pertencentes a determinados
coletivos de pensamento. Este coletivo pode ser entendido como a comunidade de
indivíduos que compartilham práticas, concepções, tradições e normas. Cada CP
possui maneira singular de ver e manter relação com o objeto de conhecimento,
determinados pelo EP que possui.
Estilo de pensamento pode ser definido como “a tendência da
comunidade a uma percepção seletiva e a correspondência mental e utilização
prática do percebido (FLECK, 1986, p 155). Ele é a resultante dos pensamentos
coletivos da comunidade de investigadores. Por isso, para o autor, em ciência, a
verdade é ideal impossível de atingir, porque os investigadores se encontram
presos em pensamentos coletivos conformados a determinado EP Ele considera
que o desenvolvimento de ideias científicas não é unidirecional e o consiste em
mera acumulação de nova informação, mas também em derrubada de ideias
antigas.
A presente pesquisa intenciona realizar investigação epistemológica do
EP presente entre MT e ME procurando delimitar suas semelhanças ou diferenças,
para poder extrair reflexões aos processos formativos da educação médica. Desse
modo, pretende estudar a epistéme desse discurso a partir das categorias fleckianas
que melhor se adéquam a esse trabalho: estilo de pensamento, coletivo de
pensamento e olhar orientado. Alguns pesquisadores brasileiros realizam estudos de
temas relacionados à Educação, com o auxílio do referencial fleckiano que
estabelece a articulação de considerações históricas de saberes associada à análise
22
epistemológica da produção de conhecimento.
Dentre eles, Cutolo (2001) realizou tese de estudo sobre Estilo de
Pensamento em Educação Médica no currículo do curso de graduação em medicina
da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Lima (2003) desenvolveu tese
sobre Estilo de Pensar em Educação Médica Homeopática, e Da Ros (2000) teceu
caracterizações sobre produção acadêmica em programas de pós-graduação do
Brasil. Delizoicov (2004) focou Saúde Pública; Slongo (2004) analisou a Educação
em Ciências e Slongo e Delizoicov (2006) pesquisaram o Ensino de Biologia.
Também, para análise de surgimento de campos de saber, que se
relacionam com compreensão de determinados fatos científicos, o uso da
epistemologia fleckiana tem possibilitado caracterização da gênese histórico-
epistemológica dos conhecimentos produzidos. São exemplos os seguintes
trabalhos: A tese de Leite (2004) e o trabalho de Leite; Ferrari; Delizoicov (2001)
tiveram como foco os estudos de Mendel e a origem da Genética; Delizoicov (2002)
e Delizoicov et al (2004) analisaram a origem do modelo de circulação sanguínea
humana; Scheid et al (2005) e Scheid (2006) analisaram trabalhos de equipes
interdisciplinares que culminaram com a proposição do DNA e origem da Genética
Molecular.
Além desses, destacam-se trabalhos de pesquisadores que, no Brasil,
têm se fundamentado em Fleck para realizar estudos e pesquisas de temas
educacionais sobre: Formação de Professores (DELIZOICOV, 1995; LIMA, 1999,);
tese sobre Educação Ambiental (LORENZETTI, 2007), Estudos e teses sobre
Relações do Currículo com a Formação Profissional (BACKES, 1999; CUTOLO;
DELIZOICOV 1999; CUTOLO, 2001; KOIFMAN, 1996; NOGUEIRA, 2003; LIMA,
2003; PFUETZENREITER, 2003).
Essa dissertação enfoca objetivo diferente, pois pretende discutir
concepção de ensino de medicina por meio da análise dos EP presentes na MT e
ME, ou seja, sob perspectiva de movimento derivado da própria medicina, no caso, a
ME. Em estudos prévios realizados por pesquisadores do ensino de ciências da área
de saúde baseados na epistemologia fleckiana, especialmente a medicina (Cutolo,
Da Ros, Delizoicov), nota-se ausência de estudos epistemológicos referentes à
23
relação de especialidade médica (regionalidade) com MT (totalidade)
1
. No entanto,
encontra-se nos estudos de Cutolo (2001, p 67) algo que chama atenção:
Optei também pela supressão do que poderiam ser considerados Estilos de
Pensamento, outros que não desenvolvidos de forma regular nas escolas
médicas. Merecem, no entanto, investigação posterior com profundidade:
Acupuntura, Homeopatia, Medicina Antroposófica, etc.
A ME no Brasil estava em seu início na época em que foi realizada a tese
de Cutolo (2001), porém ele ressaltava a importância da realização de
investigações posteriores com profundidade dos estilos de pensamento que não são
desenvolvidos de forma regular nas escolas médicas. Hoje, dentre os citados, a ME
poderia ser acrescentada.
Para Fleck (1986), na relação de especialidade médica (regionalidade)
com MT (totalidade) o indivíduo, ao participar de vários CP distintos e ao mesmo
tempo, atuará como veículo que permite tráfego de idéias (TI). Porém, ao participar
de CP semelhantes existirão conflitos de idéias que, ou provocam paralisação do
pensamento (conformismo) ou provocam aparecimento de EP especial entre ambos.
Desse modo, fica evidente o papel de Fleck (1986, p 157) nesse trabalho. Essa
possibilidade de formação de “estilo de pensamento especial” entre médicos
atuantes em área estética poderia ser chamada “EP em Medicina Estética?” Sua
diferença com o EP em MT se apresenta como questão principal do trabalho, para
procurar saber se é estilo diferente ou semelhante de pensamento:
Se os estilos de pensamento são muito distintos, então, podem manter-se
afastados um do outro dentro do mesmo indivíduo, enquanto que, o
contrário, ao tratar-se de estilos de pensamento semelhantes, não é tão
facilmente possível uma separação dos mesmos, pois o conflito que se
estabelece entre estilos de pensamento estritamente relacionados, torna
impossível sua co-existência dentro do indivíduo e condena a pessoa à
improdutividade ou a criação de um estilo de pensamento especial entre
eles.
Nessa investigação, o pensamento de Fleck (1986) não é base
explicativa, mas interrogativa. Isto é, sua epistemologia constitui-se instrumental de
análise para interrogar sobre o EP em Medicina Estética. Não pretende analisar todo
pensamento de Fleck (1986), pois isso exigiria esforço teórico superior ao trabalho.
1
Conforme Fleck, isso se constitui relação esotérica com exotérica”, a ser abordada no próximo
capítulo.
24
Tem intenção de utilizar alguns temas apresentados por Fleck (1986) que permitam
iluminar o campo da pesquisa para buscar as categorias estudadas. Esse autor
fornecerá ferramentas (categorias), que possibilitem confrontar os dois discursos,
ajudando a perguntar a possibilidade de existência de EP distintos entre ME e MT.
Por essas razões, foi tomada a Medicina Estética como exemplo de CP esotérico,
para estudar relações e trocas “inter-coletiva” e “intra-coletiva” de ideias entre ME e
MT, visando observar existência ou não de relação conflituosa entre ambos EP que
reflitam sobre os processos de formação médica.
Em síntese, o problema central do estudo é pesquisar se existe ou não
EP distinto entre MT e ME, de modo a permitir reflexões sobre discursos relativos a
processos formativos educacionais da medicina. Isso permitirá perguntar se a ME
implica mudanças na MT, ou o contrário: se na MT, especificamente dentro da
faculdade de medicina, encontram-se elementos formadores do EP da ME que dêem
conta da procura dessa prática pelo recém-formado. Conforme Cutolo (2001, p 64-5)
é a faculdade que fornece condições para o estudante optar pela especialidade
pretendida:
É durante o curso de graduação que se escolhe que prática médica será
absorvida como atividade profissional. A escola exerce, portanto, forte
influência na opção da Residência Médica e, conseqüentemente, a
especialidade médica.
Fleck (1986, p 69) indica que para dar início a essa investigação é
necessário definir primeiramente o método epistemológico. Para isso, ele inaugura
nova metodologia denominada epistemologia sociológica comparada: método de
pesquisa historicista que visa perceber maiores detalhes concretos e mais relações
necessárias para formação de conceitos ou fatos científicos. Para o autor, referindo-
se à história das ideias, os conceitos necessitam ser investigados, como resultados
de desenvolvimento e coincidência de linhas coletivas de pensamento:
Todo o conhecido foi, em todos os tempos e na opinião de seus autores
respectivos, sistemático, provado, aplicável e evidente. Todos os sistemas
estranhos a esse conhecido, para os empiristas, eram contraditórios,
indemonstráveis, inaplicáveis, fantásticos ou místicos. Não é chegada a
hora de assumir uma visão menos egocêntrica, mais geral e falar de
epistemologia comparada?
A principal categoria epistemológica fleckiana estudada no presente
25
trabalho é a categoria estilo de pensamento presente em ME e MT. Contudo, Fleck
(1986) observa que, para melhor definição desse conceito, é necessário percorrer o
caminho traçado pelas categorias secundárias para alcance do objetivo. Isso é
necessário, pois o conceito de EP é bastante abrangente e tem sido motivo de
debates entre pesquisadores que estudam Fleck, conforme explica Cutolo (2001, p
52):
Fleck utiliza-se do termo e faz com que seus leitores o entendam através de
seu discurso, mediante o uso de exemplos, onde, talvez a categoria se
justifique por si. Não se arrisca, no entanto, em formatar com precisão o que
significa Estilo de Pensamento. Da Ros (1999) afirma que Estilo de
Pensamento pode ser mais bem entendido dentro do contexto do objeto em
estudo, deve ser construída a sua estrutura específica junto com a
construção do objeto. É provável que esta tenha sido a motivação de Fleck
ao escrever o livro, desenvolvendo sua teoria através de um estudo de caso
sobre a sífilis.
Cutolo (2001, p 55) diz que a categoria Estilo de Pensamento existe
enquanto estrutura, mas é uma estrutura que possui elementos constituintes que
podem não ser específicos para todos os distintos objetos de estudo. Estes
elementos e propriedades é que, sim, podem ajudar a definir o objeto. Portanto, não
parece que ocorra a construção da categoria associadamente com a construção do
objeto, mas a definição de quais elementos ou propriedades da categoria podem ser
utilizados para o objeto de pesquisa em questão.
Na obra de Fleck (1986) encontram-se vários elementos que caracterizam
EP
2
. Cutolo (2001, p 56) encontrou 40 elementos classificadores que foram
reclassificados em grupos maiores e mais gerais, pois estabeleciam coerência e
similaridades:
A título de exemplo, destacarei alguns: modo de ver (p 13, 15, 18, 20);
forma de conceber problemas (p 67, 85); sistema fechado de crenças (p 51,
74, 89, 90, 101); corpo de conhecimentos (p 48, 61, 144); ponto de vista (p
75-95); algo que molda a formação (p 81, 94); linguagem específica (p 87,
90, 100, 107, 129); estilo técnico e literário do sistema do saber (p 145),
significador aos conceitos (p 146); como determinante de fatos (p 148);
condicionador e formulador de verdade (p 146); memória social (p 47, 94);
disciplina ou ciência independente (p 61); determinado
psico/sócio/historicamente (p 48, 144); direcionador da observação (p 134,
145).
Usando critérios definidos por estudos anteriores na obra de Fleck (1986),
2
Para estudos detalhados da definição de EP, ver páginas 21,23-5, 47,85-6, 95, 111, 129, 131, 139,
141, 144-5, 148 e 191 do livro La Génesis y el Desarrollo de um Hecho Científico de Ludwik Fleck
(1986).
26
Cutolo (2001, p 57) sintetizou o reagrupamento em 5 grandes grupos (Quadro1), que
o possibilitaram definir EP Mais tarde, em artigo publicado em 2006, Cutolo
acrescentou um sexto grupo por entender que era necessário para os propósitos de
sua análise.
Pode-se, de certa forma, compreender EP como:
Quadro 1 – Critérios Definidores do Estilo de Pensamento
1. Modo de ver, entender e conceber;
2. Processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação;
3. Determinado psico/sócio/histórico/culturalmente;
4. Que leva a um corpo de conhecimentos e práticas;
5. Compartilhado por um coletivo
6. Com formação específica
Fonte: Cutolo (2006)
Evidentemente, esta síntese omite algumas características relevantes
encontradas na monografia de Fleck (1986), mas Cutolo (2001, p 58) considerou-as
específicas para a proposta inicial de sua tese. Ele entende que as características
descritas possuem articulação potencial, não ocorrem isoladamente, podendo ser
tomadas como elementos fundamentais constituintes do EP, de modo que essa
pesquisa se valerá destas características ao entendimento do EP
Entretanto, ao analisar o presente trabalho, Cutolo indica ser a quinta e
sexta característica como mais importante aos propósitos dessa investigação, pois
elas referem-se ao EP compartilhado por um coletivo com formação especializada,
no caso a ME. Ele entende que a unidade social da comunidade de cientistas de um
campo determinado de saber constitui a grande legitimação do EP Não existe EP se
não houver um coletivo de pensamento que o sustente. Logo, é pela análise do CP
da ME que se poderá entender seu EP
Fleck (1986, p 81) diz que “a elaboração de teorias que procurem dar
conta do conceito deverá, necessariamente, ser baseada em valores histórico-
culturais”. Portanto, essa pesquisa seguirá a metodologia proposta por Fleck (1986)
denominada epistemologia sociológica comparada.
27
Trata-se de novo método epistemológico inaugurado por Fleck (1986) que
permite perceber maiores detalhes concretos e mais relações necessárias para a
formação do conceito ou fato científico. Permite relacionar as ideias atuais as do
passado, traçando linhas de conexão entre ambas para compreensão do estágio
atual do conhecimento. Portanto, para explicar a existência de um EP na ME, deve
ser levada em consideração, além das relações históricas, as conexões sócio-
cognoscitivas que influenciarem seu conceito. Para esse pensador, ao referir-se à
história das ideias, os conceitos necessitam ser investigados como resultados do
desenvolvimento e da coincidência de linhas coletivas de pensamento.
Por meio dessa metodologia, o trabalho contextualizará, inicialmente, os
condicionantes histórico-culturais possibilitadores das proto-ideias que influenciaram
as ideias científicas formadoras do EP formado pelo CP especializado em ME. Após
essa contextualização, ele entrecruzará discursos resultantes das proto-ideias entre
si, as conexões ativas, com a percepção de que cada qual tenha um EP próprio,
para verificar a resultante da possível existência ou não de disputa entre eles. Da
mesma forma, analisará as teorias que procuram refutar esses discursos, as
chamadas conexões passivas fleckianas. Destarte, por meio de demarcação e
tematização das categorias singularizadas por Fleck (1986), resultantes do
entrecruzamento das teorias com as conexões ativas e passivas, chegará o
momento da instauração do EP relativo ao CP determinado.
Após essa fase e consoante à linha de raciocínio, se estudará o período
de extensão do EP onde inicia o que Fleck (1986. p 55, 76) denomina classicismo,
momento que tudo concorda com a teoria quanto maior o entrecruzamento de ideias
concordantes ao estilo, se estabelecendo a chamada harmonia de ilusões (p 74-75)
3
. Mais adiante começa a fase de exceções (p 28, 77), em que se fazem notar as
falhas da teoria e as exceções passam a ser valorizadas. E, finalmente, com o
entendimento dessas categorias, se introduz o conceito de coletivo de pensamento
modo pelo qual Fleck (1986, p 149)
4
, indica o caminho sociológico de formação de
verdades conformadas ao EP
Em síntese, a epistemologia sociológica comparada fleckiana pode assim
ser resumida (o detalhamento de cada tópico será desenvolvido no capítulo II):
3
Referente à harmonia de ilusões ver também p 29, 32, 79, 85, 89 e 133 da obra de Fleck (1986).
4
Para análise detalhada da categoria coletivo de pensamento ver páginas 23, 86-8, 90-1, 101, 110,
129, 131, 139, 147 e 149 da obra de Fleck (1986).
28
1 – Perspectiva historicista: os conceitos necessitam ser investigados
como resultados do desenvolvimento e da coincidência de algumas linhas
de coletivos de pensamento;
2 São notadas regularidades específicas: as fases clássicas e de
exceções em um conceito;
3 – Considerar que algumas ideias aparecem antes das suas razões
racionais e são delas independentes são proto-ideias: fatores
subjetivos e emocionais que cumprem importante papel na formação
do conceito;
4 Saber que o entrecruzamento de algumas correntes de ideias pode
produzir fenômenos especiais. Pesquisar esses fenômenos resultantes
e definir sua influência no estilo de pensamento (especial atenção a
este tópico foi dado, pois a ME poderia ser apenas um fenômeno
especial resultante das ideias que se inter-relacionam e não um novo
estilo de pensamento de medicina);
5 Quanto mais sistematicamente esteja construído um ramo de saber,
e que seja mais rico em detalhes e em conexões com outros ramos de
saber, tanto menor será a diferença de opiniões entre elas. Percebe-se
um detalhe importante à investigação: se a ME apresenta opiniões
diferentes em relação às opiniões da MT, será que esta última não
estará tão sistematicamente construída e nem conectada tão bem com
os demais ramos de saber, a ponto de permitir tais diferenças?
5
6 Investigar como as concepções e ideias confusas passam de um
estilo de pensamento a outro, emergem de proto-ideias gerais
espontaneamente e como se mantêm, graças à harmonia de ilusões,
na forma de estruturas persistentes;
7 Considerar o significado limitado de um experimento concreto frente
ao conjunto da experiência nesse campo, pois no futuro seu resultado
poderá ser considerado uma casualidade ou erro;
8 – Não seguir o critério lógico sistemático para tecer considerações
5
Essa condição seria motivo de uma nova pesquisa que pretendesse como hipótese, desvendar as
razões pelas quais a MT não está se relacionando tão bem com as demais áreas da saúde e demais
disciplinas, fazendo com que não haja consenso de ideias em suas bases epistemológicas No
entanto, por não ser objetivo da investigação, a pergunta foi lançada como incentivo à realização de
novos trabalhos nessa área.
29
sobre o processo cognitivo na formação do estilo de pensamento. Ele
é um conjunto incontrolável lógico-formalmente resultante da aquisição
de faculdades físicas e psíquicas, da acumulação de certa quantidade
de observações e experimentos e da habilidade e ação recíproca de
seus componentes em moldar e transformar os conceitos;
9 Analisar as conexões ativas e passivas (a serem estudadas nesta
pesquisa) e suas interconexões para elaboração do conceito;
10 Obter amostra significativa de dados, pois nenhuma epistemologia
especulativa possuirá razão de ser, se for resultado de uma dedução a
partir de uns poucos exemplos;
11 Considerar os resultados do empirismo, suas provas objetivas e suas
construções lógicas, como parte integrante do processo de formação
do conceito.
A fonte da investigação e campo central de análise serão os documentos
pedagógicos explicitadores de processos de formação médica e os discursos
presentes nas linhas de pensamento investigadas.
Para caracterização do EP da MT essa investigação irá se valer do
pensamento de dois pesquisadores que discutem o ensino da medicina no Brasil. O
primeiro, Ernesto Lima Gonçalves (2002) é professor de medicina da USP e
escreveu o livro Médicos e Ensino da Medicina no Brasil. É de sua obra que se
pesquisou o trinômio professor-estudante-instituição de medicina. Luiz Roberto Agea
Cutolo (2001) é professor de medicina da UFSC e doutor em educação e
desenvolveu tese baseada na epistemologia fleckiana intitulada - Estilo de
Pensamento em Educação Médica: Estudo do Currículo do Curso de Graduação em
Medicina da UFSC. Suas ideias foram fundamentais para a definição do EP da MT.
Estes dois autores foram escolhidos porque seus pensamentos, na concepção do
autor da pesquisa, ilustram com propriedade as assertivas levantadas nessa fase da
investigação. Sempre que necessário, se utilizou de ideias e proposições de outros
autores para melhor caracterização dos conceitos estudados. Dentre eles, valeu-se
do pensamento de Foucault (1980) O Nascimento da Clínica para o estudo do
olhar orientado da MT e conceito de morte, Canguilhem (1977) Ideologia e
Racionalidade nas Ciências da Vida, Canguilhem (1990)–O Normal e o Patológico
para o estudo dos conceitos corpo-organismo e saúde-doença, Luz (2004) – Natural-
30
Racional-Social para a síntese do estudo destes conceitos. Outros autores
serviram de apoio para melhor caracterizar a ideia daqueles apresentados até aqui e
serão abordados ao longo do capítulo. Sempre que necessário, se utilizou do
pensamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) – Código de Ética Médica e do
Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina (CREMESC)
Acórdãos e Deliberações – para definição do pensamento oficial da MT.
Para o estudo historicista do surgimento da ME, foi necessário investigar
as proto-ideias formadoras do EP da ME pelos condicionantes histórico-culturais da
época do seu surgimento. Assim, buscou-se em Gilles Lipovetsky (2007), em seu
livro A Felicidade Paradoxal - Ensaio sobre a Sociedade de Hiper-consumo e em
Georges Vigarello (2006), no livro História da Beleza os dados necessários para
esse propósito. A história do surgimento da ME, foi pesquisada em Legrand e
Bartoletti (1993) - Manuel Pratique de Medicine Estetique - que aborda detalhes da
história da ME e sua prática.
Por ser um campo novo de saber, a ME não possui vasta literatura ou
fontes de informações como a MT. Por essa razão, para pesquisar o EP da ME, se
entrevistou professores e estudantes de ME para, sob a ótica fleckiana, buscar
pistas que mostrem o EP dominante. Em razão disso, foi realizada entrevista semi-
estruturada com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Estética (SBME)
Aloísio Farias de Souza; o vice-presidente da SBME Laércio Gomes Gonçalves; o
presidente da Regional Sul da SBME Telmo Morsch dos Reis e o presidente do
Capítulo Brasileira de Cirurgia e Medicina Estética José Eustáquio Ribeiro. Como
representantes estrangeiros da ME, foram entrevistados o médico francês Pierre
Fournier presidente da Sociedade Francesa de Medicina Estética e a médica
colombiana Adriana Sanchez Romero, recém formada (2008) no Curso de s-
Graduação em Medicina Estética. Documentos expedidos pela SBME também foram
analisados.
O estilo de pensamento presente na Medicina Tradicional e na Medicina
Estética se caracteriza como fundamento de estudo do presente trabalho, cujo
problema reside na questão central:
que reflexões para a Educação Médica podem ser extraídas pelo
estudo dos Estilos de Pensamento da Medicina Tradicional e da
Medicina Estética?
31
Os resultados dessa investigação poderão contribuir para a Educação
Médica se, ao descobrir estilos de pensamento conflitantes nos coletivos de
pensamento médico da MT e ME, permitirem utilizá-los para:
a) Benefício do estudante: evitando que fique imobilizado, improdutivo ou
impossibilitado de criar estilo de pensamento especial entre ambos,
mas, ao contrário, mantenha postura crítica de discernimento;
b) Benefício do professor: auxiliando entender os desdobramentos e
manejo de relação conflituosa entre saberes semelhantes.
A pesquisa aqui empreendida implica, portanto, projeto de ser ao mesmo
tempo histórica e crítica, na medida em que trata, fora de qualquer outra intenção, de
determinar as condições de possibilidade do surgimento da ME e suas
consequências sobre a formação médica. Valendo-se do pensamento de Foucault
(1980), busca expressar aquilo que não pretende enquanto pesquisa: não pretende
se posicionar favorável a um discurso contra outro, ou contra determinado discurso
específico.
Ela não é escrita por uma medicina contra outra, ou contra a medicina, por
uma negação da medicina. Trata-se de um estudo que tenta extrair da
espessura do discurso as condições de sua história. O que conta nas coisas
ditas pelos homens, não é tanto o que teriam pensado aquém ou além
delas, mas o que desde o princípio as sistematiza, tornando-as, pelo tempo
afora, indefinidamente acessíveis a novos discursos e abertos à tarefa de
transformá-los (FOUCAULT, 1980, p XVIII).
Fleck (1986, p 110), em relação aos propósitos desta investigação, diz
que:
O propósito desta exposição não é o de enfrentar as concepções de ontem
com as de hoje, ou as da elite de investigação contra as dos livros textos.
Erra-se completamente se falarmos de tais concepções de acordo com o
estilo, reconhecidas por um coletivo de pensamento completo e aplicadas
com benefício – em termos de verdade ou erro. Foram superadas não
porque eram falsas, mas porque o pensamento se desenvolve. Tampouco
permanecerão como nossas concepções, pois não haverá um final para o
desenvolvimento do saber.
Cabe reforçar que esse trabalho não visa ser um estudo sobre a
epistemologia de Ludwik Fleck, tampouco pretende ser uma pesquisa sobre
Medicina Estética; elas são ferramentas utilizadas para lograr êxito no objetivo que
visa debater Educação nos Cursos de Graduação em Medicina. Importante frisar
32
que não se encontra atualmente (2009) a versão em português da monografia de
Fleck (1986) estudada, por isso a tradução da versão espanhola para português foi
realizada pelo autor da pesquisa, não sendo, portanto, tradução oficial.
Diante de toda essa problemática, as respostas que se busca as
inquietações do autor não poderão ser obtidas sob um olhar apressado. Se
necessária a fundamentação na obra de Ludwik Fleck para a busca das mesmas.
Assim, será abordado no próximo capítulo o exame do pensamento de Fleck acerca
dos assuntos referidos focando, principalmente, os conceitos formadores do estilo de
pensamento predominante.
CAPÍTULO II
A EPISTEMOLOGIA DE LUDWIK FLECK
O capítulo anterior apresentou o tema central da pesquisa, que permitiu
lançar perguntas sobre formação médica a partir da análise de discursos sobre
esses processos a partir do surgimento da ME. Nesse capítulo, a intenção é
apresentar parte da literatura estudada, para fins de fundamentação teórica do
estudo, apoiada na perspectiva fleckiana de produção do conhecimento. A principal
categoria epistemológica da pesquisa é a categoria estilo de pensamento em
medicina estética e medicina tradicional. Porém, conforme alerta Fleck (1986, p 98),
para definição mais exata desse conceito será necessário percorrer o caminho
traçado pelas categorias secundárias, que conduzam aos fatos geradores do
conceito. Para isso, Fleck (1986, p 69, 85) utiliza seu método epistemológico de
investigação denominado epistemologia sociológica comparada.
O motivo da escolha deste pensador como referencial teórico desta
pesquisa foi porque Fleck aplica as ferramentas de sua epistemologia na análise de
um caso médico. Além de filósofo, ele foi médico e pesquisador. Foi ele que
descobriu a vacina da febre tifóide (quando trabalhava nos campos de
concentração). Suas noções epistemológicas de análise do conhecimento estão
baseadas na perspectiva sociológica de formação de saberes, sendo, portanto,
aplicável aos propósitos desta pesquisa. Para a análise do surgimento do EP da ME
é necessário recorrer aos determinantes históricos da época, para o seu melhor
entendimento. A epistemologia de Fleck (1986) permite perceber maiores detalhes
dos conceitos que não poderiam ser analisados dessa forma pelo método lógico-
empirista.
A análise da epistemologia de Fleck (1986) se dará inicialmente pela
caracterização da importância de se conceber o conhecimento como produto
histórico-social. Logo após, se estudará o processo de formação dos conceitos.
Partindo-se de proto-ideias que são rudimentos da teoria encontrados no passado,
se investigará como estas se transformam em conexões ativas e passivas até a
formação do que Fleck (1986) denomina fato.
34
Na sequência se analisará os conceitos coletivos de pensamento e estilo
de pensamento, bem como, os conceitos secundários necessários ao entendimento
destas categorias. O processo relativo à transformação do estilo de pensamento é
apresentado em seguida, chegando-se, ao final do capítulo, na síntese do método
epistemológico fleckiano de investigação dos conceitos.
2.1 O Conhecimento como Produto Histórico Social
Para Fleck (1986, p 61) é muito difícil, senão impossível, descrever
corretamente a história de um campo do saber. Ela se compõe de muitas linhas de
desenvolvimento de ideias, que se cruzam e se influenciam mutuamente. Todas elas
devem ser representadas, inicialmente, como linhas contínuas e depois, em segundo
momento, com todas as conexões estabelecidas entre elas. Por último, é necessário
traçar, simultânea e separadamente, a direção principal do desenvolvimento, tomada
como linha mediana idealizada. Conforme ele explica, é como se quiséssemos
reproduzir por escrito e com fidelidade ao desenvolvimento natural, uma
conversação muito animada, em que várias pessoas falam simultaneamente,
tentando impor sua voz sobre as demais, sobre certa ideia comum que vai se
cristalizando.
Necessita-se interromper constantemente a continuidade da linha de
pensamento que se vai descrevendo, para introduzir outras linhas que são
produzidas ao longo do traçado. Amiúde, é necessário deixar em suspenso a linha
principal de desenvolvimento para explicar certas conexões e, por último, grande
quantidade de material deverá ser omitido para manter a linha principal idealizada.
Logo, um esquema mais ou menos artificial, passa a ocupar o lugar da descrição de
uma interação dinâmica entre os conceitos. Fleck (1986, p 62) encerra dizendo que
a única coisa segura é que nada está definitivamente encerrado.
Em síntese, a epistemologia sociológica comparada de Fleck (1986, p 61-
62) é aquela que objetiva:
Representar as linhas de desenvolvimento de idéias.
Estabelecer conexões entre elas (cruzamento de idéias).
35
Traçar entre os tópicos anteriores, a direção principal do movimento
que é comparado a uma linha mediana na qual as idéias gravitam
6
(Figura 1).
Figura 1 – Formação do Estilo de Pensamento Predominante.
Fonte: Ilustração do autor da pesquisa baseado no pensamento de Ludwik Fleck (1986).
Fleck (1986, p 67), ao fazer considerações gerais sobre o significado da
história de um saber, acentua que não há nenhum erro absoluto ou nenhuma
verdade absoluta. Não é possível, querendo ou não, liberar-se de um passado que,
com todos seus erros, segue vivo em conceitos herdados, nas formas de conceber
problemas, em programas de ensino formal, na vida diária, na linguagem e nas
instituições. Não existe nenhuma generatio spontanea dos conceitos, eles são
determinados por conceitos antepassados. Para o autor, o passado é muito mais
perigoso (ou é perigoso) quando os laços com ele se mantêm inconscientes ou
desconhecidos.
6
O Estilo de Pensamento que procuramos é essa linha mediana que define o rumo das ideias.
36
Neste sentido, a presente investigação procura encontrar o estilo de
pensamento em ME e MT através do método sociológico fleckiano, buscando
perceber maiores detalhes e relações necessárias para encontrar conceitos
formadores do estilo de pensamento predominante entre os dois saberes. Para
pesquisar a história das ideias formadoras desses conceitos, é necessário
desenvolver cruzamentos, confrontos e coincidências de ideias entre as linhas
coletivas desses pensamentos. Definido o método, se utilizará as ferramentas
fleckianas para definir os conceitos secundários, até se chegar ao conceito principal
que é o Estilo de Pensamento em ME e MT.
2.2 A Formação do Conceito
Fleck (1986, p 43) inicia sua obra com uma crítica aos empiristas lógicos
sobre o que é um fato para eles: “Fato é aquilo que é fixo, inquestionável, o
permanente e independente da opinião subjetiva do investigador”. Ele começa a
crítica a essa teoria do conhecimento dizendo que a mesma comete uma falha
fundamental ao tomar em consideração, quase exclusivamente, fatos comuns da
vida cotidiana ou da física clássica, como os únicos seguros e dignos de
investigações. Desta forma, se produz, no começo da investigação, uma evolução
ingênua que tem como consequência a superficialização dos resultados.
O autor (1986, p 43) afirma termos perdido a possibilidade de conseguir
conhecimento crítico do mecanismo cognitivo, considerando assegurado, por
exemplo, que a pessoa normal tem dois olhos. Isso para nós é tão evidente que
deixa de ser problemático. o sentimos mais nossa atividade nesse ato cognitivo,
mas somente nossa passividade total frente a uma força independente que
denominamos existência ou realidade.
Por essa razão, Fleck (1986, p 44) diz que os fatos comuns da vida
cotidiana são, a princípio, pouco apropriados para investigação epistemológica. Da
mesma forma, os fatos físicos clássicos carregam consigo o inconveniente de se
estar acostumado a eles na prática e no excessivo aproveitamento teórico. Ele
acredita que um fato novo, cujo descobrimento ocorreu pouco tempo e que,
37
todavia, não foi considerado em todos seus aspectos epistemológicos, é o que
melhor se adapta aos princípios da investigação sem prejuízos.
Relacionado ao conceito fato”, Fleck (1986, p 147-49) conclui que, no
campo do conhecimento, o sinal de resistência, que se opõe à livre arbitrariedade do
pensamento, é nomeado fato”. Este sinal de resistência tem como característica
pertencer a um coletivo de pensamento, pois todo fato tem tripla relação com o
coletivo de pensamento:
Todo fato necessita situar-se em linha com os interesses intelectuais
do seu coletivo de pensamento, pois a resistência somente é possível
onde existem aspirações a metas;
A resistência necessita possuir eficácia como tal dentro do coletivo de
pensamento e deve fazer-se presente em cada componente como
coerção de pensamento e também como forma diretamente
experienciável;
O fato necessita ser expresso no estilo do coletivo de pensamento.
O fato, definido por Fleck (1986, p 147) como sinal ou aviso de resistência
no coletivo de pensamento, contém a gama completa de distintos tipos de
constatações possíveis, desde as queixas de dor de uma criança que se choca
contra algum objeto duro, passando pelas alucinações de um enfermo, até o
complicado sistema das ciências. Um fato nunca é totalmente independente de
outro:
Os fatos se apresentam como amálgamas mais ou menos relacionados, de
avisos individuais ou como sistema de saber que obedece a leis próprias.
Por isso, cada fato repercute sobre outros e, cada câmbio, cada
descobrimento, exerce influxo sobre terreno virtualmente ilimitado. Um
sistema desenvolvido até converter-se em sistema de saber harmônico
possui a propriedade de cada fato novo cambiar harmonicamente ainda
que só o seja minimamente – todos os fatos anteriores.
Desse modo, se forma a engrenagem de fatos inter-relacionados em
todas as direções, que se mantém em equilíbrio mediante interação contínua. Esta
rede entrelaçada confere solidez ao mundo dos fatos e cria o sentimento de
realidade fixa e existência independente do mundo. Quanto menos interconectado é
o sistema de saber, mais mágico é, menos estável e mais capacidade prodigiosa
tem sua realidade, sempre segundo o estilo de pensamento (FLECK,1986 p 148-
38
149).
Assim como Fleck (1986) utiliza o descobrimento da reação de
Wassermann como fato relevante sobre o conceito formador do estilo de
pensamento da sífilis, essa pesquisa escolheu um acontecimento novo e atual em
medicina, o qual se refere à questão do surgimento da medicina estética e seus
desdobramentos sobre os conceitos formadores do estilo de pensamento médico.
De modo que, com base no pensamento de Fleck (1986), ainda é prematuro afirmar
que a ME representa um “fato” no sentido fleckiano do termo, pois para isso, será
necessário investigar se:
1 A ME esem linha com os interesses intelectuais de seu CP, o qual
possui metas e aspirações? Por exemplo: o grupo de médicos que pratica
ME possui metas comuns, tais como exercer a ME de forma reconhecida?
Existe interesse na formação de associações, conselhos, código de ética
e cursos de formação em ME? Existem pesquisas fomentadas pelos
interesses da ME?
2 A ME possui eficácia dentro do CP e está presente em cada
componente como coerção de pensamento? Por exemplo: existe
treinamento do olhar dirigido para a forma física do paciente?
obediência à coerção de pensamento ensinada nos cursos de ME por
parte dos estudantes?
3 A ME está sendo expressa no EP do CP? Por exemplo: existem
congressos, simpósios e encontros específicos de ME? Existem
equipamentos e medicamentos de uso exclusivo voltados para a prática
da ME?
Contudo, cabe perguntar: como se origina um fato? Como surgem os
conceitos atuais? Como surgiu o conceito de medicina estética? Para responder de
que forma surgiu o atual conceito de sífilis, Fleck (1986, p 45) inicia conceituando o
EP predominante anterior àquele fato. Ele contextualiza historicamente, desde o
conceito primitivo, as transformações ocorridas ao longo dos séculos e os
desdobramentos que originaram outros conceitos, a partir da confusão inicial
existente que enquadrava todas as doenças de pele como sífilis. Fleck (1986, p 48-
55)
situa ainda, os determinantes políticos da época: guerras, fomes e catástrofes
naturais, que espalharam a sífilis e a tornaram de interesse público e político para
39
injeção de capital interessado no desenvolvimento rápido de pesquisas. Além disso,
contribuíram para a formação do estilo de pensamento da época: influências da
astrologia e conveniências religiosas que taxavam a doença como castigo divino:
Em resumo, as epidemias ofereceram a base da investigação (os
treponemas), a calamidade publica originou o interesse, a astrologia e
religião como ciências dominantes, produziram o ânimo místico - atitude
psicossocial que, durante séculos, segregou os enfermos e, por conseguinte
taxou sífilis como mau venéreo, emocionalmente acentuado. O estigma de
fatídico e pecaminoso perdura até hoje.
De acordo com Fleck (1986, p 55), tal fundamentação psico-sociológica e
histórica da ideia era tão forte, que foram necessários 400 anos até que avanços
científicos em outros campos fossem suficientemente importantes para completa
distinção definitiva entre as enfermidades. Esta tendência à persistência de ideias
demonstra que não foram as denominadas observações empíricas que levaram a
cabo a construção e fixação da ideia, mas, em primeiro lugar, a influência de fatores
especiais ancorados profundamente na tradição e na psicologia.
A segunda ideia foi proveniente dos médicos empiristas e da forma que
utilizavam os remédios farmacológicos (mercúrio). Desse modo, geraram-se duas
entidades nosológicas: a ético-mística e a empírico-terapêutica.
Nenhum destes enfoques se completava de forma consequente, porém,
apesar de mutuamente contraditórios, foram mesclados entre si. Teoria e
prática, apriorismos e empirismos permaneceram amalgamados não
segundo as regras da lógica, mas da psicologia. Nesta totalidade, o
empirismo perdeu significativo terreno ante o embuste do apriorismo
emocional (FLECK, 1986 p 54).
Por essas razões, o conceito sífilis permanecia incompleto e
indeterminado. Os dois caminhos eram contraditórios e incompletos, motivo pelo
qual este conceito era demasiado variável, estava pouco entrelaçado no tecido do
saber da época para ser uma realização definitiva, para possuir existência objetiva e
firme, para aparecer como indubitável fato real (FLECK, 1986, p 55).
Nesse ponto, Fleck (1986, p 57-58) pontua alguns erros que impediam o
conceito de estabelecer-se mais firmemente: a claridade intelectual do quadro da
enfermidade ficava velada ao não levar em conta fatores importantes. Não se
prestou nenhuma atenção à diferenciação entre enfermidades venéreas com
sintomatologia sistêmica e aquelas que não tinham essa clínica ou a apresentavam
40
em raras ocasiões (gonorréia). Outros problemas permaneciam insolúveis e não
eram explicados pelas duas teorias: a sífilis hereditária, os enigmas da sífilis latente
e de reaparição da enfermidade ou a relação com tabes dorsalis, paralisia
progressiva, lúpus e escrofulose.
Fleck (1986, p 59-62) cita a aparição de experimentos e observações
sobre inoculações e imunidade. No entanto, seria errôneo crer que esses
experimentos, por mais lógicos que tenham sido concebidos, proporcionassem o
resultado correto. Eram significativos como embriões de novo todo, entretanto
não tiveram valor como prova. Essas experimentações foram crescendo, porém o
problema permaneceu suspenso até a segunda metade do séc. XIX, quando se
descobriu a etiologia e patogenia da doença.
Para chegar ao conceito atual (etiopatogênico da sífilis), Fleck (1986 p 64)
lembra que para caracterizá-lo interessou a relação existente entre sífilis e reação de
Wassermann, porém ele pode ser definido por outras afirmações que se conectem
com outros conceitos. Fleck (1986) objetivou a investigação do conceito atual de
sífilis elegendo a reação de Wassermann como categoria principal ao estudo da
formação desse conceito, no entanto lembra que outras categorias poderiam ser
utilizadas para o mesmo propósito.
Desse modo, o método dessa pesquisa, por meio da escolha de uma
categoria principal como forma de estudo dos conceitos formadores do EP em
medicina, está de acordo com o método fleckiano de produção de conhecimento.
Interessa a relação do EP entre ME e MT como base epistemológica da formação
médica.
Ao se contemplar os diversos conceitos de sífilis existentes até o séc.
XVIII - O mau venéreo, o empírico-terapêutico e o experimental-patológico
(dualistas, unitários, identitários) - unicamente sob o aspecto de sua estrutura formal
e independentemente das conexões histórico-culturais, parece tratar-se meramente
de disputa acerca de uma definição convencional. Esses conceitos tinham por base
as observações, até em experimentos e nenhum pode ser declarado falso (FLECK,
1986, p 54).
Para Fleck (1986, p 55), no início da conceitualização existe certa
liberdade que, posteriormente, uma vez efetuada a eleição do conceito vencedor,
deixam de constituírem-se conceitos e se convertem em conexões necessárias para
41
se chegar ao conceito. Por isso, é necessário entender melhor a relação entre
conexões e estilo de pensamento.
De acordo com Fleck (1986, p 21) existem conexões que estão abertas à
escolha, denominadas conexões livres, e outras que resultam obrigatórias. Na
economia do pensamento, para eleger entre as conexões ativas livres, deve-se levar
em conta a condicionalidade histórico-cultural da suposta eleição epistemológica. O
século XV não tinha a liberdade necessária para mudar o conceito ético-místico da
sífilis por um científico-natural e patogênico. Existe uma conexão de estilo entre
muitos senão todos conceitos de uma época, baseada em influxo recíproco. Por
isso, se pode falar de um estilo de pensamento que determina o estilo de cada
conceito. A história ensina que podem produzir-se fortes disputas sobre a definição
dos conceitos. Isto demonstra que o critério histórico é a medida pela qual, perante
convenções de conceitos iguais, no ponto de vista lógico, outorga valores similares,
e isto, independentemente de razões utilitárias de qualquer tipo.
Fleck (1986, p 92), ao introduzir o critério histórico para formação do
conceito, entende ciência como atividade concreta ao longo do tempo e que, em
cada época histórica, apresenta peculiaridades e características próprias -
Perspectiva Historicista. Dessa forma, ele opõe-se ao Círculo de Viena de filosofia
neopositivista, em que a ciência é entendida como atividade completamente racional
e controlada - Perspectiva Formalista. Nessa investigação foi eleito o critério
historicista para estudar a formação do estilo de pensamento nas duas correntes
médicas.
Não obstante isso, na eleição do EP é possível observar regularidades
histórico-específicas no curso do desenvolvimento das ideias, melhor dizendo;
fenômenos gerais característicos da história do conhecimento que se fazem
evidentes ao epistemólogo. Por exemplo, muitas teorias vivem duas épocas:
primeiro a clássica, em que tudo é curiosamente concordante ao EP predominante e,
depois, a segunda fase de complicações, na qual as exceções começam a se
fazer notar (Fleck, 1986, p 76-77).
Fleck (1986, p 53, 61, 157) lembra também que, para construção do EP,
algumas ideias aparecem antes das suas razões racionais e são totalmente
independentes delas. Acrescenta-se que o entrecruzamento de algumas correntes
de ideias pode produzir fenômenos especiais que permite
refletir, aqui, se a noção
42
corrente de necessidade estética (que leva os indivíduos procurarem tratamentos
estéticos de variadas natureza) produziu, antes da formação das bases racionais da
ME, fenômenos especiais de transformação do EP que possibilitaram o
aparecimento da ME.
Assim, quanto mais sistematicamente esteja construído um ramo de saber
e mais rico em detalhes e conexões com outros ramos, tanto menor será a diferença
de opiniões entre ele. Para melhor entendimento do significado destas conexões,
Fleck (1986, p 56) denomina conexões passivas as condições especiais para o
conteúdo cognitivo que o são explicadas pela história ou psicologia (individual ou
coletiva), por isso parecem relações reais, objetivas e verdadeiras. Elas o podem
existir sem a presença das conexões ativas, pois não sobrevivem sozinhas ao
conceito porque não o engloba: elas são ideias objetivas que procuram refutar
partes da teoria. Em relação às conexões ativas livres, Fleck (1986, p 29) diz que
elas são entrecruzamentos de teorias entre si, cada qual com seu estilo de
pensamento e, que disputam a eleição do EP dominante explicador do conceito. Ao
contrário das conexões passivas, elas são carregadas de influência histórica e
psicológica (subjetiva).
Como auxílio na compreensão do significado dessas conexões, Fleck
(1986, p 97), apesar de achar o termo inadequado, refere-se às conexões passivas
como objetivas e as conexões ativas, como subjetivas. Ele considera as conexões
passivas como sendo refutações a teoria que não possuem influência da história
presente, pois são concepções apriorísticas baseadas no senso comum (e não em
validades universais),
7
que são as proto-ideias: “As proto-ideias são concepções
apriorísticas ao conceito baseadas no senso comum histórico que funcionam como
pautas diretrizes do desenvolvimento do conhecimento” (FLECK, 1986, p 28).
Percebe-se em Fleck, ao contrário de Kant (2006, p 116), que a
fundamentação do critério de verdade é baseada no historicismo e não em verdades
universais: “o conhecer não é um processo individual de uma teórica ‘consciência
geral’, mas, o resultado de uma atividade social, que o estado de conhecimento
de cada momento excede a capacidade de qualquer indivíduo” (FLECK, 1986, p 93).
O conhecimento é fruto do coletivo e de sua prática social e não de uma razão
7
Não confundir com o a - priori da razão privilegiada fundamentado em validades universais
independentes das influência históricas e culturais (KANT, 2006, p 72).
43
universal apriorística.
Fleck (1986, p 56) demonstra o significado limitado de um experimento
concreto frente ao conjunto da experiência nesse campo, formada com
experimentos, observações, faculdades e transformações conceituais, inclusive, um
heróico “experimento crucial” não prova nada, pois o resultado no futuro poderá ser
considerado mera casualidade ou erro. Por isso, a importância de se diferenciar
experimento de experiência, interpretando-se experimento como simples sistema de
perguntas e respostas. Experiência é concebida como o complexo processo de
treinamento intelectual, baseado em ação recíproca entre o conhecimento, o já
conhecido e o por conhecer.
Por fim, em relação às conexões ativas e passivas, Fleck (1986, p 57)
explica que a aquisição de faculdades físicas e psíquicas, a acumulação de certa
quantidade de observações e experimentos e a habilidade para moldar e transformar
os conceitos forma, definitivamente, um todo incontrolável lógico-formalmente, em
que a ação recíproca de seus componentes impede qualquer consideração lógica
sistemática do processo cognitivo. Desta forma, o conceito engloba sempre as
conexões ativas e passivas e suas interconexões iniludíveis. Portanto, nenhuma
epistemologia especulativa possuirá razão de ser, se for resultado de uma dedução
a partir de uns poucos exemplos. Existirá ainda, muito campo a descobrir e
investigar empiricamente no processo de conhecimento.
2.3 Discussões sobre a Formação do Conceito
Para investigação dos conceitos formadores do estilo de pensamento de
certo campo de saber, o epistemólogo fleckiano analisará, conforme as etapas
discutidas anteriormente, todos os conceitos e as relações com aquele campo de
saber. Desse modo, adquire condições de concluir o provável conceito dominante.
Schäfer e Schenelle (1986a), no prefácio intitulado Los Fundamentos de La Visión
Sociológica de Ludwik Fleck de la Teoria de la Ciencia da versão espanhola do livro
de Fleck (1986), afirmam que, por meio da investigação da gênese do conceito de
sífilis, ele
demonstrou que as concepções de ciência moderna são também produtos
44
surgidos historicamente e que não podem ser entendidos sem recorrência ao seu
desenvolvimento histórico. As concepções científicas não se baseiam meramente
em observações do material empírico, mas também em ideias cuja gênese se
encontra no passado remoto.
Como instrumento explicativo da conexão entre as concepções atuais do
conceito com sua origem histórica, Fleck (1986, p 70-72) introduziu o conceito de
proto-ideia ou pré-ideia. Desta forma, denominou as concepções surgidas no
passado que continuam existindo, apesar de todas as variações do estilo de
pensamento. Ao ligarem-se as épocas atuais os elementos de conhecimento das
épocas anteriores, as concepções antigas perdem seu contexto originário e são
interpretadas de forma distinta pela nova época, de acordo com o estilo de
pensamento. Conforme Schäfer e Schnelle (1986a, p 28), o valor que essas
concepções têm para cada época consiste em que seu conteúdo se entende sempre
de maneira renovada, de modo a adquirir uma função heurística e reguladora da
investigação. Em relação às proto-ideias, devemos considerá-las como esboços
histórico-evolutivos das teorias atuais e necessitamos compreender sua gênese de
forma sócio-cognitivamente.
Não se pode, neste contexto, considerar as coisas como simplesmente
dadas. Nenhum investigador isolado, mesmo que armado do melhor laboratório e
dos mais variados instrumentos técnicos e intelectuais, nunca poderia chegar a
separar todos os diversos quadros em torno de determinado problema, da totalidade
de problemas que se apresentam distingui-los das complicações e agrupá-los em
uma unidade. Fleck (1986, p 25) destaca a importância da organização das
comunidades científicas em torno do conceito.
Somente mediante comunidades de investigação organizadas, fomentadas
pelo saber e interesse popular e mantidas durante gerações, é possível
alcançar a meta. Neste caso, o treinamento, os meios técnicos e a forma de
colaboração dos investigadores os levam sempre aos caminhos do
desenvolvimento histórico do conhecimento. Portanto, não é possível, de
nenhuma maneira, cortar os laços com a história.
Por outro lado, ele não concorda com a ideia que o objetivo único ou
principal da teoria do conhecimento consista na comprovação da consistência dos
conceitos e suas conexões, estando descoladas de legitimação científica, provas
objetivas e de construções lógicas, reconhecendo a importância do empirismo.
45
Porém, ele acusa os empiristas quando afirmam que todo conhecido foi, em todos os
tempos e na opinião de seus autores respectivos, sistemático, provado, aplicável e
evidente. Todos os sistemas estranhos a esse conhecido, para os empiristas, eram
contraditórios, indemonstráveis, inaplicáveis, fantásticos ou místicos. Na história das
ideias, para Fleck (1986), os conceitos necessitam ser investigados como resultados
do desenvolvimento e da coincidência de algumas linhas de coletivos de
pensamento.
Igualmente como as estruturas sociais, cada época possui concepções
dominantes, residuais do passado e germens do futuro. Uma das tarefas primordiais
da teoria comparativa do conhecimento, seria investigar como as concepções e as
ideias confusas passam de um estilo de pensamento a outro, emergem
espontaneamente de proto-ideias gerais e como se mantêm, graças ao que Fleck
(1986, p 75) denomina harmonia de ilusões, na forma de estruturas aparentemente
perenes. Somente por meio de comparação e investigação dessas relações
poderemos começar a compreender nossa época.
8
Toda teoria atravessa primeiro uma época de classicismo, na qual se
vêem fatos que encaixam perfeitamente nela, e outra de complicações, na
qual começam a apresentar-se as exceções. A fase do classicismo é
caracterizada pela fase da harmonia de ilusões. Existe, nessa fase, uma
tendência a encobrir as exceções. Existe uma tenacidade em tentar
explicar as exceções, a conhecida tarefa de conciliação. O grau mais ativo
da tendência à persistência de ideias constitui a ficção criativa, isto é, a
realização mágica das ideias, o interpretar que se tem cumprido os próprios
sonhos científicos (FLECK, 1986, p 76, 79).
Desse modo, Fleck (1986, p 81) critica novamente os empiristas ao
afirmar que toda tentativa de legitimação de uma proposição concreta como única
correta, tem somente valor limitado, pois está atada, inexoravelmente, a um coletivo
de pensamento. Não se pode formular, em termos lógicos, nem o estilo de
concepções, nem as destrezas técnicas necessárias para cada investigação
científica. Portanto, a legitimação tão somente é possível onde não é mais
necessária, a saber: entre pessoas que compartilham as mesmas concepções
intelectuais e, especialmente, a mesma formação modelada conforme um
determinado estilo de pensamento.
8
Fleck (1986) nos indica, portanto, que a compreensão dos desdobramentos ocorridos entre a ME e
MT só será possível por meio de comparação e investigação das relações entre elas.
46
Essa afirmação de Fleck (1986) é bastante forte e merece maior
discussão: a persistência de ideias é tão arraigada em valores culturais que, mesmo
diante de toda evidência, os pesquisadores se encontram presos às suas
convicções histórico-conceituais e psicológicas. Fleck (1986, p 80-81) exemplifica
que encontrou nos atlas de anatomia e tratados ginecológicos do passado, figuras
bem ilustrativas, porém nenhuma natural. Todas haviam sido visivelmente retocadas,
todas eram esquemáticas, quase simbólicas e fiéis ao que o livro ensinava, porém
não à natureza real conhecida hoje. Todas estavam condicionadas a cultura da
época:
Nos livros de anatomia dos séculos XVII e XVIII se encontrava esboços de
um grafismo extraordinário dos nervos e dos vasos sangüíneos, plasticidade
que seria inútil buscar nos livros atuais. No entanto, este grafismo tinha uma
característica especial. Os esqueletos não apresentavam meros ossos,
tampouco um sistema ósseo, porém expressões de um simbolismo emotivo:
simbolizavam a Morte e portavam espadas, foices e outras insígnias
próprias de arado. As figuras dos músculos pareciam mártires e outras
figuras tinham também posturas patéticas. Os rostos o tinham a
expressão vazia dos cadáveres ou os cortes esquemáticos das ilustrações
anatômicas modernas; eram rostos grandiosos e cheios de expressão. Os
fetos pareciam Cupido com uma postura gentil que não corresponde com a
postura encolhida dos embriões (FLECK, 1986, p 185).
Fleck (1986, p 189) deduz, portanto, que a concepção das ilustrações
anatômicas como “imagem-sentido” (ideogramas) se faz tanto mais evidente quanto
mais estranho seja o estilo de pensamento dos autores pertencentes a épocas
distantes. Nessas representações antigas se uma linguagem esquemática de
signos, quase nada de realismo. A diferença entre um destes estilos de pensamento
estranhos e o moderno não reside simplesmente no maior conhecimento atual. Eles
sabiam mais daquilo que, em sua particular realidade, tinha um valor maior que o
presente.
Entretanto, sob essa perspectiva, Fleck (1986, p 75) afirma que na história
do conhecimento científico não existe nenhuma relação lógico-formal entre as
relações e suas provas: as provas se acomodam as concepções como as
concepções as provas. Além disso, as concepções não são sistemas lógicos, por
mais que aspirem a sê-lo, senão unidades fiéis a um estilo que ou se desenvolvem
como tal, ou se fundem junto com suas provas em outras unidades:
Uma declaração de princípios, uma vez que é publicada, se constitui em
parte das forças sociais que formam os conceitos e criam hábitos de
pensamento, e determina, junto com outras declarações de princípios, o que
47
“não pode se pensar de outra maneira”. Mesmo que a ataque, o homem
cresce e se forma imerso em sua problemática que, circulando dentro da
sociedade, reforça seu efeito social. Estes princípios se convertem em
realidade evidente que condiciona outros atos de cognição posteriores.
Emerge, desse modo, um sistema fechado, harmônico, dentro do qual já
não se pode seguir o rastro da origem lógica de cada elemento individual
(FLECK, 1986, p 84).
Assim, para Fleck (1986, p 85) toda declaração de princípios deixa atrás
de si a solução ou o problema, mesmo que esse último seja somente a racionalidade
do próprio problema. Sua formulação já contém metade da solução. Qualquer exame
futuro deve retornar às vias de pensamento existentes. O futuro o estará nunca
totalmente livre do passado - tanto esse tenha sido normal ou anormal a não ser
que rompa com ele como resultado das leis características de sua estrutura de
pensamento particular.
9
Desse modo, para Fleck (1986 p 32) a harmonia interna do estilo de
pensamento, sua tendência à persistência e a estrutura do CP são, do ponto de vista
sociológico, duas faces da mesma característica. A delimitação pelos especialistas
de um campo de problemas dentro da generalidade científica, bem como,
estabelecimento de pequeno círculo esotérico que se distingue dos não-iniciados em
torno dele, supõe o primeiro núcleo de identidade do CP Ao redor do mesmo, se
instala um círculo exotérico maior, formado pelos laicos formados, que participam do
saber científico. Entre as duas esferas, se inter-relacionam formas específicas de
comunicação:
A base do saber exotérico é a confiança na competência dos especialistas
esotéricos. O saber exotérico simplifica, deixa à margem os detalhes e
generaliza com o propósito de fazer-se compreender ao laico.
Reciprocamente, o saber esotérico depende do exotérico, pois, este último,
representa para ele a opinião popular e lhe serve como fonte de
legitimação.
A dependência intelectual é fundamental para relação entre membros da
comunidade científica, pois se baseia em “solidariedade intelectual ao serviço de
uma idéia supra-pessoal”. Fleck (1986, p 154) constata que toda comunidade de
pensamento intra-coletiva está dominada por um sentimento de dependência
especial.
9
Originando a transformação do estilo de pensamento (FLECK, 1986), ou também a chamada
revolução científica (KHUN, 1987).
48
A estrutura geral do coletivo de pensamento proporciona que, a
comunicação intelectual intra-coletiva produza, por razões sociológicas [...] o
reforço das criações intelectuais. A confiança dos iniciados, a dependência
destes, com respeito à opinião pública e a solidariedade intelectual, dos
membros que pertencem à mesma categoria e estão a serviço da mesma
ideia, o forças sociais orientadas ao mesmo fim, que criam uma atitude
comum especial, a qual fornece aos produtos intelectuais, uma solidez e
impregnação estilística cada vez mais forte.
Por meio deste processo de configuração e estabilização como entidade
social, Fleck (1986, p 79) diz que os CP formam sistemas de idéias que aspiram
esclarecer seu campo objetivo formando o EP predominante. Quanto mais forte é o
EP, mais influente é seu poder sobre os membros do coletivo. Se chegar a lograr
tanto poder de sugestão a ponto de fazer seus membros abandonarem seus
pressupostos originais, então constrói a harmonia de ilusões. Assim, não parece
estranho a produção quase que forçada, do êxito necessário para manutenção da
estrutura coletiva, que os fatos contraditórios o afastados, ou, simplesmente,
reinterpretados de forma que encaixem com o estilo, e, os exemplos contrários, são
tomados como dificuldades iniciais que podem ser resolvidas em fase posterior.
Todo experimento conduzirá a uma confirmação e, com isso, um reforço do estilo de
pensamento.
Com cada detalhe acrescentado, com cada novo fato descoberto, o
sistema de ideias demonstra sua pretensão à validade. Da mesma forma que o
coletivo desenvolve sua estabilidade, o estilo de pensamento e o sistema de ideias
buscam a tendência à persistência frente a toda oposição. “A tendência à
persistência dos sistemas de ideias demonstra que se necessita, até certo ponto,
considerá-los como unidades, estruturas independentes, marcadas por um estilo”
(FLECK, 1986 p 85).
Discutiu-se até aqui, o todo fleckiano de análise da formação do
conceito. Com base nesse entendimento é necessário prosseguir o estudo de sua
epistemologia. Será apresentado a seguir o estudo da categoria coletivo de
pensamento.
49
2.4 Coletivo de Pensamento: A Ciência como resultado de Linhas Coletivas de
Pensamento
Fleck (1986, p 23) define coletivo de pensamento como sendo a unidade
social da comunidade de cientistas de um campo determinado. Esse coletivo é
formado por pressuposições (proto-ideias) carregadas de sentimento subjetivo que
irão influenciar na elaboração dos conceitos. Essas pressuposições estão de acordo
com um estilo sobre o qual o coletivo constrói suas teorias. Fleck (1986, p 24, 91)
concebe a ciência como um processo essencialmente coletivo. Ele diz que o coletivo
de pensamento é o resultado da ação recíproca dos indivíduos. Porém, o coletivo de
pensamento consiste em distintos indivíduos e tem, assim mesmo, sua forma
psíquica particular e suas leis especiais de comportamento. Como entidade é
inclusive mais estável e mais conseqüente que o chamado indivíduo, que sempre
está baseado em impulsos contraditórios.
A vida anímica do indivíduo humano contém elementos incongruentes,
dogmas de e de superstição, provenientes dos distintos complexos
individuais. Kepler e Newton, que tanto contribuíram à concepção moderna
da natureza, eram pessoas com uma atitude básica ritual-religiosa e as
ideias de Rousseau sobre a educação tiveram uma existência mais real no
coletivo de pensamento do que na sua própria vida.
Portanto, a epistemologia comparada fleckiana (1986, p 85) não
considera o conhecer como a relação bilateral entre sujeito e objeto - entre o
cognoscente e o objeto a conhecer. O estado do conhecimento de cada momento
constitui fator fundamental para todo novo conhecimento, o terceiro componente da
relação. Do contrário, ficaria sem explicação como poderia surgir um sistema de
ideias fechado e impregnado de um estilo e porque encontraríamos no passado
rudimentos desse saber que, nessa época, não poderiam estar legitimados por
nenhuma razão “objetiva” e que permaneceriam somente como proto-ideias.
Tais relações históricas e “estilizadas” (conformadas a um estilo) dentro
de um saber indicam que existe inter-relação entre o conhecido e o conhecer. Para
Fleck (1986, p 86), o conhecido condiciona a forma e a maneira do novo
conhecimento, e este conhecer expande, renova e sentido novo ao conhecido.
Por essa razão vale relembrar que:
50
[...] o conhecer não é um processo individual de uma teórica “consciência
geral”, mas, o resultado de uma atividade social, já que o estado de
conhecimento de cada momento excede a capacidade de qualquer
indivíduo. Assim, poderemos dizer que conhecemos algo se
suplementarmos essa afirmação com em um estilo de pensamento
determinado existente em determinado coletivo de pensamento. (grifo de
FLECK)
A partir dessas reflexões o autor dessa pesquisa interroga-se,
recorrentemente, se por tratar-se de uma nova forma de praticar medicina, a ME
poderá representar uma exceção – (ou anomalia kuhniana, se assim se quiser
denominar) estando o EP predominante na MT a produzir obstáculos à sua
instauração. Por outro lado, pode ser que nada disso esteja ocorrendo, pois, de
acordo com a epistemologia fleckiana, as proto-ideias do EP da ME estão
fundamentadas lá no pensamento coletivo médico tradicional. Desse modo, as ideias
formadoras da ME estão impregnadas do EP da MT e sofre sua influência. Assim, a
ME poderá não representar ruptura com o pensamento tradicional.
Fleck (1986, p 87-88) continua seu pensamento assinalando que os 3
fatores que participam do conhecer o indivíduo, o estado atual de conhecimento
coletivo e o objeto, ou realidade objetiva (o que está por conhecer) não são algo
como entidades metafísicas: também eles são investigáveis, ou seja, estão
relacionados entre si de outras maneiras (Figura 2). Eles consistem em que, por
uma parte, o coletivo se forma por indivíduos e, por outra, que a realidade objetiva
se pode decompor em sequências históricas de ideias pertencentes ao coletivo. No
entanto, se pode eliminar, do ponto de vista da epistemologia comparada, um fator
ou até mesmo dois, mas nunca o coletivo de pensamento. Embora o coletivo de
pensamento se componha de indivíduos, não é seu simples somatório.
51
Figura 2 – Os três fatores formadores do conhecimento.
Fonte: Fleck (1986, p 87).
Para Fleck (1986, p 87) o indivíduo raramente tem consciência que o
estilo de pensamento exerce uma coerção absoluta sobre seu próprio pensamento
e, qualquer oposição, sequer é pensável. Dessa forma, conhecer implica a
existência de coletivo de pensamento, o qual tem nos indivíduos a parte subjetiva e
na realidade, a objetiva. Porém, o real é sempre interpretação cognitiva de acordo
com o estilo de pensamento. Portanto, conhecer significa, principalmente, constatar
os resultados impostos por certas pressuposições dadas. As pressuposições
correspondem às conexões ativas e formam a parte do conhecer que pertence ao
coletivo. Os resultados obrigados equivalem às conexões passivas e formam o que
se percebe como realidade objetiva. O ato de constatação (atividade cognitiva) é a
contribuição do indivíduo.
Para ele (1986, p 88), a existência do estilo de pensamento se faz
necessária, e, inclusive, imprescindível na construção do conceito de coletivo de
pensamento. Aquele que eliminar o coletivo de pensamento necessitará introduzir
juízos de valor ou dogmas de na teoria do conhecimento e chegará, ao invés de
uma epistemologia comparativa geral, a uma especial e dogmática.
Desse modo, de acordo com o autor, quando se dirige atenção ao
aspecto formal das atividades científicas, não se pode deixar de observar sua
estrutura social. Nota-se um esforço organizado do coletivo, que abarca a divisão de
52
trabalho, colaboração, trabalho de preparação, ajuda técnica, intercâmbio recíproco
de ideias, polêmica, etc. Muitas publicações levam o nome de vários autores que
trabalham conjuntamente e nos trabalhos científicos está citado, quase sempre, a
instituição e seu diretor. Existem hierarquias científicas, grupos, seguidores e
opositores, sociedades, congressos, revistas periódicas e acordos de intercâmbio.
Um coletivo esotérico (especializado) bem organizado é portador de um saber que
supera muito a capacidade de qualquer indivíduo daquele coletivo.
Por essas razões, Fleck (1986, p 89, 151) acredita que o conhecimento
representa a atividade mais condicionada socialmente da pessoa e o conhecimento
é a criação social por excelência: “uma descoberta é um sucesso social”. Na mesma
estrutura de linguagem do conhecimento há uma filosofia característica da
comunidade, inclusive, uma simples palavra pode conter uma filosofia complexa. A
esse respeito, Fleck (1986, p 89) lança uma pergunta: A quem pertencem estas
filosofias e teorias? Para ele, os pensamentos circulam de indivíduo a indivíduo,
transformando-se cada vez um pouco, pois cada indivíduo estabelece diferentes
relações com eles. Em sentido estrito, o receptor não entende nunca o pensamento
na mesma maneira em que o emissor tentava fazer-se entender. Depois de uma
série de ditas transformações não fica praticamente nada do conteúdo original.
De quem é o pensamento que segue circulando? Obviamente de nenhum
indivíduo concreto, senão de um coletivo. Mesmo que os conhecimentos, do ponto
de vista original, sejam verdadeiros ou falsos, concretamente entendidos ou mal
entendidos, se movem, em todo caso, dentro da comunidade e o polidos,
reformados, reforçados, ou debilitados. Eles passam a influenciar outros
conhecimentos, na formação de novos conceitos, concepções e hábitos de
pensamento. Depois de uma série de voltas dentro da comunidade, o conhecimento
costuma voltar essencialmente modificado, ao seu primeiro autor e este também o
de maneira completamente distinta e não o reconhece como dele próprio, ou de
outro modo o que ocorre mais freqüentemente crê haver realizado um
descobrimento original.
Gumplowicz (apud FLECK, 1986, p 93) assegura que “o maior erro da
psicologia individual é a presunção de que a pessoa pensa”. Deste erro deriva a
eterna busca da fonte do pensar no indivíduo e das razões porque as pensa assim e
não de outra forma. Os teólogos e os filósofos contemplam este problema e inclusive
53
oferecem conselhos sobre como a pessoa deveria pensar. Fleck (1986, p 93)
entende isso como uma cadeia de erros, pois o que realmente pensa na pessoa não
é de nenhuma maneira, o indivíduo mesmo, senão a sua comunidade. A fonte de
seu pensar não está nele, mas no círculo social em que vive e na atmosfera social
que respira. A pessoa não pode pensar de outra maneira, pois sua mente está
estruturada de modo determinado devido à influência do círculo social que a rodeia.
Logo, a fonte do pensamento não é intra-subjetiva, mas intersubjetiva.
Fleck (1986) estendeu ao máximo a concepção de pensamento ligado à
sociologia. É no coletivo de pensamento que as novas ideias são engendradas.
Assim, o progresso da ciência, os avanços tecnológicos, as novas fronteiras a serem
descobertas, estão, invariavelmente, conectadas a linhas de pensamento coletivas.
Logo, não conseguimos pensar de maneira genuína, pois todas as ideias que
pensamos ser originais foram concebidas no coletivo do pensamento social. Assim,
se pode imaginar que a formação da ME estava sendo desenvolvida muito antes
do seu surgimento. Desse modo, Fleck (1986) desqualifica, de certa maneira, o
mérito dos pioneiros ou precursores da teoria.
Para Schäfer; Schenelle (1986a, p 20) é claro que cada indivíduo possui
uma realidade própria, todo grupo social dispõe, também, de uma realidade social
determinada e espefica. Portanto, o conhecer, enquanto atividade social, está
unido aos condicionantes sociais dos indivíduos que o buscam ou o transmitem.
Cada saber forma, consequentemente, seu próprio EP, com o qual, compreende os
problemas e os orienta de acordo com seus objetivos. Mas, a eleição dos problemas
determina a forma de ver específica na observação do objeto. Para Fleck (1986, p
126), a verdade conhecida é, portanto, relativa ao objetivo pré-fixado do saber.
Uma vez que, o conhecer está ligado aos seus pressupostos culturais e
sociais, o mesmo também, influi reciprocamente sobre a realidade social.
Como produto de uma atividade conectada a grupos sociais, o mesmo
segue as suas leis próprias, na mesma medida que as organizações sociais,
colocando limites à atividade cognitiva posterior das pessoas ligadas a ele.
“Nem ao sujeito, nem ao objeto pertence uma realidade independente; toda
existência se baseia na ação recíproca e é relativa”.
Com a afirmação de Fleck (1986, p 126.): “o conhecer é produto de uma
atividade conectada a grupos sociais” pode-se imaginar que a ME não é uma criação
teórica, mas que se constituiu a partir da prática social de um determinado coletivo
de pensamento segundo seus pressupostos culturais e sociais.
54
Desse modo, para Fleck (1986, p 95), em ciência, a verdade é um ideal
impossível de atingir, porque os investigadores se encontram presos a pensamentos
coletivos. Fleck (1986, p 21) aborda, reiteradamente, a questão da verdade relativa
condicionada sociologicamente e conformada ao estilo de pensamento atual: “a
verdade conhecida é relativa ao objeto pré-fixado do saber”. Essa formulação, como
muitas outras, têm um caráter enérgico porque o autor pretende deixar claro que não
se pode conseguir a aquisição de uma “realidade absoluta”, nem sequer acercar-se
dela, pois à medida que o conhecer avança, transforma inevitavelmente a realidade.
2.5 O Estilo de Pensamento - O olhar orientado como categoria principal na
formação do conceito
Fleck (1986, p 145) refere estilo de pensamento como “um perceber
orientado com a correspondente elaboração intelectiva e objetiva do percebido”. É
caracterizado por pontos comuns de problemas que interessam ao coletivo de
pensamento, pelos juízos que o pensamento coletivo considera evidentes e pelos
métodos que emprega como meio de conhecimento. O estilo de pensamento
também pode ser acompanhado por estilo técnico e literário característicos ao
sistema de saber. Ao pertencer a uma comunidade, o estilo de pensamento coletivo
experimenta o reforço social (que corresponde a todas as estruturas sociais) e está
sujeito a desenvolver-se através das gerações. Ele exerce coerção sobre os
indivíduos e determina “o que não se pode pensar de outra forma”. Épocas
completas são regidas por esta coerção de pensamento.
Cutolo (2008), em seus estudos, sintetizou 6 características que o
possibilitaram definir e compreender o EP Pela importância, vale relembrá-las:
1 – Modo de ver, entender e conceber;
2 – Processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação;
3 – Determinado psico/sócio/histórico/culturalmente;
4 – Que leva a um corpo de conhecimentos e práticas;
5 – Compartilhado por um coletivo
6 – Com formação específica.
55
De acordo com Fleck (1986, p 110-111), todo ato de cognição supõe, em
primeiro lugar, constatar que conexões passivas seguem de forma necessária a um
grupo determinado de pressuposições ativas. A análise de como se trocam essas
pressuposições se consegue somente por meio da investigação do estilo de
pensamento. O EP, sugerido na introdução de qualquer ciência e que chega até
os menores detalhes das ciências especializadas, exige a utilização de um método
de abordagem sociológico na teoria do conhecimento. Todo fato científico é,
evidentemente, dependente do estilo de pensamento.
Schäfer e Schnelle (1986b, p 29), em seu trabalho Cognition and Fact
apoiados no pensamento de Fleck, partem do pressuposto que, a teoria do
conhecimento individualista, leva a uma concepção fictícia e inadequada do
conhecimento científico. A ciência é algo realizado cooperativamente por pessoas;
por isso se deve ter em conta, de forma preferencial, apesar das convicções
empíricas e especulativas dos indivíduos, as estruturas sociológicas e as convicções
que unem entre si os cientistas. As trocas inter-coletivas alteram o senso das noções
e trazem novos significados constituindo-se em fontes de novas idéias. Fleck (1986,
p 156) completa afirmando: “Desta forma os três componentes do ato de cognição
são inseparavelmente conectados. Entre o sujeito e o objeto existe uma terceira
coisa, a comunidade”.
Como instrumentos conceituais para compreender esta qualidade do
conhecer, Fleck (1986, p 191) cunha os conceitos de coletivos de pensamento e
estilo de pensamento. O primeiro designa a unidade social da comunidade de
cientistas de um campo determinado; o segundo, as pressuposições consoantes
com um estilo sobre aquelas que o coletivo constrói seu edifício teórico.
O coletivo de pensamento de uma comunidade científica produz um olhar
orientado
10
(também chamado de olhar dirigido), uma disposição para o perceber
10
Fleck (1986) utiliza o termo alemão Gestaltsehen, que tem por tradução: Gestalt = forma, figura,
configuração e Sehen= ver. Portanto, Gestaltismo = ver os fenômenos biológicos e psicológicos como
conjuntos que constituem unidades autônomas, manifestando uma solidariedade interna e possuindo
leis próprias; nenhum dos elementos pode pré-existir ao conjunto. Logo, o termo correto seria ver a
forma da maneira vista pelo conjunto, porém, a tradução espanhola do livro de Fleck traduziu o termo
como ver formativo, o qual se repete em todos os estudos realizados por
outros autores que
utilizaram a versão espanhola da obra de Fleck revisados nessa pesquisa. Mas, a
versão inglesa
do
mesmo livro (Fleck, 1979, p 92), traduziu o termo como the developed direct perception of a form “a
desenvolvida percepção direta de uma forma”, termo mais aproximado do termo original em alemão.
O autor da pesquisa acredita que o termo olhar formativo foi mal traduzido, por isso, utilizará o termo
olhar orientado significando perceber a forma desenvolvida e orientada pelo EP predominante. o
56
orientado e para a elaboração correspondente do percebido.
Segundo Fleck (1986, p 23), esse olhar orientado (gestáltico) percebe de
maneira confusa e caótica em sua fase inicial. Somente após o treinamento, esse
olhar descobre a forma do objeto segundo o EP predominante, mas, ao descobrir a
forma, conformado a esse estilo de olhar, torna-se impossível perceber o objeto de
uma forma diferente, ou até mesmo, de voltar a perceber a forma confusa e caótica
do princípio.
O observar (perceber algo), no campo do conhecimento, resulta de duas
maneiras (embora existam formas intermediárias): em primeiro lugar, como
um olhar confuso inicial e, depois, como o ver a forma (Gestaltsehen) direto
e evoluído. O olhar orientado direto e evoluído não é, portanto, um olhar
ingênuo, mas também algo que é possível através de uma introdução
teórico-prática e certa experiência no campo. Somente os iniciados e
aqueles que tenham adquirido à práxis necessária, têm essa capacidade
para o observar em sentido científico. Simultaneamente ao aumento dessa
habilidade produz-se uma perda da capacidade de poder ver coisas que
contradizem esse olhar orientado adquirido, logo, a disposição para
perceber de forma orientada é adquirida à custa de perda do poder de
perceber o heterogêneo.
Esse processo aparece primeiro como mudança de significado dos
conceitos e como uma reformulação do problema, depois como uma acumulação da
experiência coletiva, ou seja, o surgimento de uma disposição especial para um
perceber orientado e uma elaboração específica do percebido (FLECK. 1986, p
167-168).
Para Fleck (1986, p 191), essa atitude especial é que origina a disposição
para cada estilo de pensamento. Essa atitude se expressa como culto comum a um
ideal, ao ideal da verdade, clareza e exatidão objetiva. É formado pela fé, em que o
venerado será alcançado somente além, quiçá no infinito, no futuro; pela exaltação
de oferendar o seu serviço; de um determinado culto ao heroísmo e de uma
determinada tradição. Este seria o aspecto básico do ânimo comum, no qual vive o
coletivo de pensamento científico. Nenhum iniciado pode afirmar que o pensar
científico está desprovido de sentimento. Segundo esse pensador, tampouco
podemos discutir que essa atitude concreta não somente influencia na forma do
trabalho, mas também, nos resultados. Revela-se, assim, a disposição para um
termo utilizado por Fleck (1986) olhar estilizado será considerado como o olhar conformado pelo
EP e será mantido.
57
perceber orientado.
Fleck (1986, p 191-192) lembra, portanto, que o saber não é possível por
si mesmo, mas sim, sob a condição de certas presunções sobre o objeto. Estes
pressupostos não podem ser compreensíveis a priori, mas somente como produto
histórico e sociológico da atuação de um coletivo de pensamento.
Em síntese, como visto anteriormente, a partir de certos estudos
bacteriológicos próprios, Fleck (1986, p 23) pôde provar que não existe algo como o
observar livre de pressupostos. Sempre estão implicadas decisões e, sobretudo,
hábitos próprios do EP que medeiam à constatação das características do
observado. Para ele o observar livre de pressuposições não é possível. Em seu
ataque frontal ao conceito de “fato” dos empiristas, o autor utilizou a psicologia
gestáltica. Por isso, opina Fleck (1986, p 188), a disposição para o perceber
orientado constitui a raiz de todo EP O olhar gestáltico é uma atividade do estilo de
pensamento. Contrariamente, o olhar confuso carece de estilo, está desorientado e
é caótico; falta-lhe o fixo, o fato. Esse olhar orientado é a categoria principal
formadora do estilo de pensamento, segundo Fleck (1986). Como o objetivo da
investigação é a pesquisa do estilo de pensamento entre ME e MT, deve-se dar
atenção especial a essa categoria, investigando-a entre os dois saberes.
Contudo, os fatos, ou a realidade, não são coisas que se oferecem de
maneira simples e diretamente, mas que necessitam o aparecimento de uma relação
específica do percebido com o coletivo de pensamento. O percebido necessita ser
sentido (experimentado) no coletivo de pensamento como um suporte, uma
resistência contra o olhar arbitrário, e necessita, também, aparecer perante o
membro do coletivo de pensamento como forma direta a experimentar. Esse sinal de
resistência tem como característica, o pertencer a um coletivo de pensamento
possuindo estilo de pensamento pré-determinado por esse coletivo (FLECK, 1986, p
23-24).
Nesse momento da investigação começa-se a perguntar: Como são
produzidas, com esta tendência natural à persistência e estabilidade das ideias, as
mudanças e a dinâmica da investigação científica, característicos da ciência
moderna? Em outras palavras: como pode haver transformações fundamentais do
estilo de pensamento? Fleck (1986) fornece respostas a essas questões explicando
como pode haver tais transformações.
58
2.6 Os Fatores de Transformação do Estilo de Pensamento
Todo cientista pertence, além do seu CP específico, pelo menos ao
coletivo exotérico geral do mundo cotidiano; porém, normalmente, é membro de
outros CP científicos e o-científicos. Estas direções opostas dos indivíduos não
ficam a margem do trabalho científico, mas, pelo contrário, convergem na
comunicação do pensamento coletivo. A assimilação da informação recebida pelos
membros do coletivo produz os estímulos necessários para a transformação do EP
“Toda circulação inter-coletiva de idéias, tem, por conseqüência, um deslocamento
ou transformação dos valores dos pensamentos” (FLECK, 1986, p 155-156).
Nessa afirmação descobre-se uma tese sobre o funcionamento da
linguagem e sobre a relação entre os enunciados lingüísticos e seu significado, que
contém uma das ideias mais interessantes de Fleck (1986, p 34). Para ele, o
significado da linguagem é uma instituição, que não apenas possibilita (mediante
seu correto entendimento) uma comunicabilidade e, com ela, a reprodutibilidade dos
conhecimentos científicos, mas que possui também, por sua compreensão
(deslocamento do significado) inerente a toda comunicação, uma função positiva no
desenvolvimento da ciência.
A linguagem ideal dos empiristas lógicos deveria evitar, mais precisamente,
esses deslocamentos do significado. A invariabilidade do significado é um
postulado do empirismo lógico. Por isso, a transgressão deste postulado é
necessária, não somente para a linguagem ordinária, mas, igualmente para
a linguagem da ciência. Os deslocamentos do significado dos conceitos,
presentes na circulação intra-coletiva do pensamento, podem ser tão
grandes que impossibilitem um entendimento entre os membros de coletivos
surgidos um a partir do outro, no curso da história (FLECK, 1986, p 157).
A comunicação dos resultados da investigação científica, que é realizada
por encargo ou interesse público, exige uma exposição compreensível dos mesmos,
a qual implica em uma tendência ao exotérico. Essa popularização pertence, em
certa medida, a ciência especializada e Fleck (1986, p 34) atribui-lhe uma importante
função, apesar de ser pouco valorizada pela consciência do investigador. “Na
popularização se manifesta o sentido comum, a personificação do coletivo de
59
pensamento da vida cotidiana; que tem que ser considerada como o doador
universal para muitos coletivos de pensamento especiais (FLECK, 1986, p 155-
156).
A expressão apresentação popular da ciência não é ideal, porque
aparenta uma apresentação vulgar dos resultados científicos, pois, segundo Fleck
(1986, p 163), tais conceitos populares detêm um papel importante para a ciência.
Assim, quando são produzidas as mudanças teóricas dentro do coletivo de
pensamento, tomam-se concepções que provém do mundo da vida cotidiana, para
explicar a nova identificação de objetos ou de campos objetivos. Ademais, a
possibilidade de descobrimentos novos, somente é produzida quando é diminuída a
repressão sobre o pensamento, bem como quando se modifica o significado dos
termos ao fazerem-se visíveis outras possibilidades de significado na circulação
intra-coletiva do pensamento: nestas mudanças se busca, quase sempre, a
concepções exotéricas populares. (Figura 3).
Figura 3 – Transformação do Estilo de Pensamento
Fonte: Ilustração do autor da pesquisa baseado no pensamento de Ludwik Fleck (1986).
O EP predominante (linha tracejada) presente no rculo esotérico científico (círculo maior) sofre
influência das idéias populares dos círculos exotéricos (círculos menores) a que pertencem cada
investigador. Através do tráfego de idéias, essas concepções influenciam a comunidade científica
fazendo com que a linguagem científica se modificando e incorporando traços da linguagem
popular que são transformadas em linguagem científica. Assim, o EP vai se transformando até
provocar uma ruptura com o EP anterior.
60
Pode-se imaginar que as mudanças históricas culturais dos tempos atuais
(a serem abordadas no capítulo IV), as quais modificaram a relação do indivíduo
com o corpo, aumentaram sobremaneira a procura por procedimentos que visavam
melhoramentos estéticos corporais. Essas mudanças podem haver exercido
influências sobre o círculo médico esotérico fazendo com que esse sofresse as
influências da sociedade (círculo exotérico), de modo que modificasse suas
concepções relativas à sua prática. Não obstante isso, o CP médico passa a se
tornar mais sensível às transformações e necessidades sociais, oportunizando,
assim, a formação gradativa da ME.
Fleck (1986, p 83) diz que cada variação do estilo de pensamento, de
forma similar ao que ocorre com as mutações, contém algo repentino e
revolucionário que o converte em algo similar a uma fase que se encerra. O
entendimento entre os partidários de EP diferentes é impossível, “as palavras não
podem traduzir e os conceitos não têm nada em comum com os nossos” (FLECK,
1986, p 89). Chama atenção que, em 1935, antes de Kuhn, Fleck (1986, p 123)
empregou pela primeira vez a palavra “paradigma”.
Estes fatos, que podem se valer como paradigma de muitos
descobrimentos, podem se resumir da seguinte maneira: a partir de
pressuposições falsas e de experimentos iniciais irreprodutíveis, surgiu um
importante descobrimento depois de muitos erros e rodeios.
Epistemologicamente, o problema é insolúvel do ponto de vista
individualista. Se quisermos que um descobrimento seja investigável, é
necessário fundamentá-lo sob uma perspectiva social. (grifo do autor da
pesquisa)
A concepção de ciência para Fleck (1986, p 20) é na forma de um
constructo essencialmente coletivo. Ele vai mais além ao afirmar que, somente
concebendo-se o trabalho científico como o trabalho de um CP, pode-se
compreender que surjam resultados concretos dos esforços de investigação, pois
geralmente as hipóteses propostas no início de uma investigação não levam a
nenhum resultado e os objetivos imaginados inicialmente não chegam a se
materializar.
Uma atividade deste tipo poderá ser finalizada somente por um coletivo,
cujos componentes, trabalhando sobre uma base comum, ensaiam modificações
individuais. Geralmente são esforços improdutivos, porém, o grupo continua
61
ensaiando outras modificações daquelas hipóteses que possuem uma maior chance
de sucesso. Por isso, Fleck (1986, p 26-7) caracteriza a marcha da investigação
como uma linha em zig-zag, balizada pelas casualidades, passos em falso e erros.
Epistemologicamente falando, os investigadores vão transformando lentamente as
bases originárias de seus trabalhos.
[...] transformações essas que lhes passam despercebidas a eles mesmos,
quando contemplam retrospectivamente o caminho seguido, pois, as
transformações do conteúdo concebido instala-se sem que o indivíduo
perceba. Uma vez alcançado o resultado e completada a sua elaboração
teórica atual, a investigação parece haver seguido um caminho retilíneo que
leva diretamente da primeira formulação do problema até a solução
provisória do mesmo.
Nesse pensamento de Fleck (1986, p 26) está implícita uma crítica a idéia
de progresso, que ainda não havia sido estudada em toda a sua profundidade. O
progresso do conhecimento consiste, para o autor, no desenvolvimento coletivo
incessante do estilo de pensamento. Este desenvolvimento produz um
descolamento dos pressupostos estabelecidos sobre o objeto de investigação e,
portanto, não é um progresso no sentido linear e cumulativo da palavra, pois não
nenhuma base objetiva para que, determinado EP, possa ser qualificado como mais
importante que outro. Este desenvolvimento (progresso) do EP ocorre por meio de
três etapas: instauração, extensão e transformação do estilo de pensamento. O
saber se modifica segundo o EP.
Portanto, quando ocorre uma ruptura no estilo de pensamento, não
poderemos fazer nunca uma comparação quantitativa do saber dos distintos
estilos de pensamento. O saber modifica-se com o deslocamento das
pressuposições e aparecem coisas novas. Ao mesmo tempo, outras coisas
não podem “saber-se”, posto que o desenvolvimento do estilo de
pensamento possibilitasse que se perdessem as bases que as sustentavam.
(FLECK, 1986, p 28).
Apresentou-se até aqui as principais ideias do pensamento de Ludwik
Fleck (1986). Sua filosofia relativa ao caráter historicista do conhecimento é a linha
condutora de sua epistemologia. Foram apresentadas as principais categorias desse
autor: fato científico, caráter histórico do saber, proto-ideias, conexões ativas e
passivas, tráfego de ideias, olhar orientado, coletivo de pensamento, estilo de
pensamento, período clássico do estilo de pensamento, período de exceções do
62
estilo de pensamento, tendência à persistência de ideias, harmonia de ilusões,
círculo esotérico, círculo exotérico, fatores de transformações do estilo de
pensamento e progresso da ciência.
Fleck (1986) servirá como base interrogativa a essa pesquisa. Ele fornece
as pistas que contribuirão no entendimento dos processos que podem estar
ocorrendo entre a ME e MT. Esse pensador persegue o projeto de uma análise do
fato científico pela perspectiva sociológica, ou seja, o conhecimento o é fruto de
uma investigação solitária, mas resultado do trabalho de um coletivo de
pesquisadores conformados a um estilo de pensamento. Assim, a démarche da linha
de pensamento para investigação da elaboração de um conceito ou fato científico de
Fleck (1986) pode assim ser esquematizada:
1 Condicionantes históricos culturais que levem à necessidade de
elaboração do conceito;
2 Coletivos de Pensamentos: comunidade de investigadores que
possuem interesses comuns e que procuram encontrar explicações aos
conceitos ou fatos científicos;
3 Elaboração de teorias que procuram dar conta do conceito (sempre
baseadas em valores históricos culturais);
4 – Conexões ativas: entrecruzamentos de teorias entre si, cada qual com
seu estilo de pensamento e que disputam a eleição do EP dominante
explicador do conceito;
5 Conexões passivas (livres de influência histórica ou psicológica, por
isso parecem reais e objetivas): são concepções de idéias que procuram
refutar as teorias;
6 Instalação do Estilo de Pensamento: resultado do entrecruzamento
das conexões ativas com as passivas em determinado CP Importância
do olhar orientado;
7 – Extensão do Estilo de Pensamento:
a) Período clássico - tudo concorda com a teoria quanto maior for o
entrecruzamento de ideias concordantes. Fase da harmonia das
ilusões,
63
b) Período de complicações: começa-se a notar as falhas da teoria.
Tentativa de explicar as exceções ou de tentar resolvê-las
posteriormente;
8 Elaboração de novas teorias que procuram dar conta do conceito
(sempre baseadas em valores histórico-culturais). Influências do tráfego
de ideias entre o círculo esotérico e o círculo exotérico sobre os
pesquisadores;
9 – Transformação do Estilo de Pensamento: resultado do tráfego de
ideias entre o círculo esotérico e o círculo exotérico sobre os
pesquisadores que vai transformando o EP
Antes de dar prosseguimento ao caminho da investigação das principais
categorias encontradas entre a ME e a MT, o autor da pesquisa observou no
pensamento de Fleck (1986, p 161) um ponto que considerou importante: “a
possibilidade de descobrimentos novos somente é produzida, quando é diminuída a
repressão sobre o pensamento. É quando um CP foge do olhar gestáltico orientado,
que diminui sobre si a repressão ao seu pensamento”. A hipótese de a ME
representar um CP que desloca seu pensamento do olhar orientado tradicional
percebendo de forma diferente o modo de sua prática, não poderá ser descartada.
Por fim, é sempre sob o ponto de vista sociológico do fazer ciência, que
Fleck (1986) ajuda a indagar sobre as questões a serem pesquisadas. Logo, é sob
uma perspectiva sociológica, histórica e cultural que se irá desenvolver nos próximos
capítulos, a busca das categorias fleckianas na MT e ME. O confronto dessas linhas
de pensamento epistemológicas, distintas ou semelhantes, servirá como base de
reflexões pedagógicas no ensino da medicina.
CAPITULO III
ESTILO DE PENSAMENTO NA MEDICINA TRADICIONAL
O capítulo anterior revisou as principais ideias formadoras do pensamento
de Ludwik Fleck (1986). Ele utiliza como método epistemológico de investigação dos
conceitos formadores de fatos, a epistemologia sociológica comparada que permite
perceber maiores detalhes acerca de determinado fato ou conceito que se pretende
analisar a partir da perspectiva sociológica de formação do conhecimento.
11
Para
ele, toda verdade científica é fruto de linhas coletivas de pensamento. Tais coletivos
de pensamento reúnem-se em torno de um eixo de ideias predominantes que
formam o que Fleck (1986) denomina Estilo de Pensamento
12
. O EP é a base sólida
na qual se assentam todas as ideias contidas naquele coletivo de pensamento
determinado.
13
A fase de extensão do EP é caracterizada por dois períodos: o período
clássico onde todas as ideias concordam com o EP a tal ponto de embotar a
capacidade cognitiva dos pesquisadores, formando a assim chamada harmonia das
ilusões. E o período de exceções em que as ideias que não concordam com o EP
começam a ser notadas e o CP procura achar explicações às mesmas tentando
concordá-las com o EP
14
Cada CP tem seu EP próprio e estão inseridos dentro de
um círculo especializado de investigadores chamados por Fleck de círculo
esotérico
15
. Para ser admitido em um círculo esotérico, o investigador necessita
orientar (ou estilizar) seu olhar para que ele passe da confusão caótica dos
conceitos em que se encontra para um perceber orientado, um olhar estilizado que
enxerga a realidade objetiva conformada ao EP predominante
16
. Fleck se utiliza da
psicologia Gestalt para explicar essa forma de perceber orientado que, após
treinamento, não consegue mais enxergar a realidade de outra maneira, nem
11
Fleck (1986, p 1 8, 22-4, 27, 81, 88, 90, 95, 144-6).
12
Id. (p 61, 75, 134, 136, 144-5).
13
Id. (p 21, 23-5, 47, 85-6, 95, 111, 129, 131, 139, 141, 144-5, 148, 191).
14
Id. (p 28-9, 32, 55, 74-7, 79, 85, 89, 133).
15
Id. (p 32, 38, 152, 161, 163, 165).
16
Id. (p 2-3, 84, 94, 131, 138-9, 147, 149).
65
mesmo aquela em que se encontrava antes de ser admitido ao coletivo de
pensamento (FLECK, 1986, p 37, 138-139).
Dessa maneira Fleck (1986, p 86-88), ao contrário de Kant (2006, p 115-
122), conclui que não existem verdades absolutas ou universais, mas apenas
aquelas construídas coletivamente. Desse modo, Fleck (1986, p 93) acredita que
não conseguimos pensar genuinamente, pois somos produto histórico, sociológico e
cultural de uma comunidade. Todo pensamento é fruto das ideias coletivas que
emergem do tecido social e se inserem dentro das comunidades científicas.
Destarte, a ciência é uma forma de pensamento coletivo especializado que procura
dar conta dos fatos científicos por meio de um EP próprio. Porém, para Fleck
(1986)
17
todo cientista participa de seu círculo esotérico especializado e também de
círculos exotéricos sociais laicizados em sua vida pessoal. Dessa interação entre os
círculos esotérico e exotérico a que pertence o cientista, circulam tráfegos de ideias
que acabam modificando a linguagem científica entre os pesquisadores. Essa
linguagem sofre influências do círculo exotérico popular e modifica, paulatinamente,
a linguagem de seus termos por meio de novos significados adquiridos
18
. Dessa
forma, percebemos a maneira pela qual o EP começa a transformar-se (Fleck, 1986,
p 33, 163, 165).
O mais interessante nisso tudo é que Fleck (1986, p 86-88, 144-146)
atribui ao coletivo, e o às descobertas pessoais, o mérito de transformar o EP
Não obstante isso, Fleck (1986) desqualifica, de certo modo, o papel atribuído pela
história aos precursores e pioneiros das descobertas científicas. Fleck (1986, p 146-
147) finaliza seu pensamento afirmando que a ciência é o corolário das
investigações coletivas. A verdade é um sucesso quando vista na história do
pensamento e dentro de seu contexto momentâneo; é uma coerção de pensamento
marcado por um estilo.
O objetivo deste capítulo, a partir daqui, é delimitar na MT, a principal
categoria fleckiana eleita como objeto de análise desta pesquisa, que é o estilo de
pensamento predominante e suas características. A trajetória a ser percorrida,
orientada por Fleck (1986), se fundamentará pela pesquisa teórico-conceitual que
investigará esse conceito. O esforço por caracterizar os possíveis elementos
17
Id. (p 61, 153, 157, 168).
18
id. (p 33, 73-4, 100, 150, 156, 158, 162, 165).
66
constituintes do EP da ME será empreendido no capítulo IV.
3.1 A Formação do Estilo de Pensamento no Curso de Formação em Medicina
Para iniciar análise sociológica do conhecimento de determinado estilo de
pensamento é necessário investigar o processo pelo qual o estilo de pensamento é
transmitido ao seu coletivo de pensamento. O primeiro coletivo de pensamento
médico, antes do contato com o paciente, é aquele formado pelo professor, o
estudante e a faculdade de medicina. O estudo do EP predominante na MT
demanda entender a formação desse conceito desde os primeiros anos do curso de
medicina. A partir desta perspectiva (iniciando a investigação do conceito EP na
faculdade de medicina), o autor da pesquisa iniciará a trajetória de sua investigação.
Assim, será possível encontrar alguns dos principais conceitos formadores do EP
predominante na MT.
Após a caracterização do coletivo de pensamento médico e seguindo sob
a ótica fleckiana, se analisará os meios pelos quais vai se formando o olhar
orientado do estudante de medicina dentro do CP, o EP predominante e o tráfego de
ideias entre as áreas da saúde e as outras áreas de saber. Após essa etapa, a
pesquisa buscará a definição dos principais conceitos com os quais o médico
trabalha na prática. Dentre eles, destacam-se os conceitos corpo-organismo, vida-
morte e saúde-doença da MT como os que melhor caracterizam o EP médico. As
políticas vigentes de saúde pública também serão enfocadas para servirem de
suporte ao entendimento das categorias estudadas.
Para entender a problemática instituição-professor-estudante de medicina,
apoiou-se, além de Fleck (1986), em pensadores contemporâneos que discutem o
pensamento médico nos cursos de graduação, dentre eles: Ernesto Lima-Gonçalves
(2002), Luiz Roberto Agea Cutolo (2001) e Madel Therezinha Luz (2004).
Ernesto Lima Gonçalves (2002) é médico professor, administrador da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e criador do projeto
Centro de Desenvolvimento de Educação Médica - CEDEM - daquela instituição,
que o dirigiu por mais de 10 anos. Em relação a esse autor, Adib Jatene, no prefácio
67
do livro de Lima Gonçalves Médicos e Ensino da Medicina no Brasil (2002), relata
que sua atuação junto a outras faculdades de medicina do Estado de São Paulo
contribuiu, não para expandir, mas também para aprimorar as propostas
pedagógicas, buscando uma graduação cada vez mais de acordo com os avanços
científicos e tecnológicos de um lado e as demandas de uma imensa população
marginalizada e carente do outro.
Luiz Roberto Agea Cutolo (2001) é médico pediatra, Doutor em Educação
e professor do Mestrado em Saúde da UNIVALI. Cutolo (2001) é pesquisador e
executa estudos do currículo dos cursos de graduação em medicina baseado,
principalmente, no pensamento de Ludwik Fleck. Sua Tese de Doutorado intitulada
Estilo de Pensamento em Educação Médica Um Estudo do Currículo de
Graduação em Medicina da UFSC (2001) foi utilizada como suporte teórico às
questões referentes ao estudo do Estilo de Pensamento da Medicina Tradicional sob
a ótica fleckiana.
Madel Therezinha Luz (2004) é Doutora em Sociologia pela Universidade
de Lovaina e Professora Titular em Sociologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Realizou estudos sobre o papel social construtivo que tiveram certas noções
de duas disciplinas científicas que não possuem, aparentemente, um fio
teórico/conceitual condutor que as ligue a medicina e a sociologia no processo
de desenvolvimento histórico da sociedade moderna capitalista e da racionalidade
científica que a caracteriza. Ela escreveu o livro Natural, Racional, Social razão
médica e racionalidade científica moderna o qual descreve uma visão evolucionista e
organicista partilhada pela medicina e sociologia. A mesma surpreendeu-se que
noções como patologia e desvio fossem úteis às duas disciplinas, assim como as de
evolução e ordem (e seus contrários), visões claramente positivistas.
Por essas razões, foram escolhidos esses autores como auxílio ao
entendimento dos assuntos pedagógicos ligados a formação médica. Para o estudo
do conceito fleckiano de olhar orientado no curso de graduação em medicina, se
apoiou, além de Fleck (1986), em Lima-Gonçalves (2002), Cutolo (2001), Luz (2004),
Foucault (1980), Canguilhem (1977 e 1990) e Stegmüller (1977). Eles também
serviram de auxílio para pesquisa dos conceitos corpo-organismo, saúde-doença e
vida-morte. Como dito, outros autores foram referidos ao longo do capítulo como
68
suporte ao entendimento de determinados conceitos com o intuito de melhor
esclarecimento.
3.1.1 O Peso da Tradição Presente na Faculdade de Medicina na Formação do
Estilo de Pensamento
Para Fleck (1986), o EP predominante é avesso as novidades que
pretendem se instalar nos processos de aprendizagem. Fleck (1986, p 31, 110),
relaciona essa questão com o peso da tradição como fator social influente nos
processos de aprendizagem. Ele distingue ainda 3 tipos de fatores sociais que
interferem em toda atividade cognitiva:
1 – O peso da formação – Os conhecimentos se compõem, na sua
maioria, do aprendido e não do novo. Porém, deve-se ressaltar que, de
acordo com Fleck (1986), em toda circulação de conhecimento durante o
processo de aprendizagem é produzido de uma forma imperceptível, um
deslocamento do conteúdo cognitivo. O conhecimento que circula não é
exatamente o mesmo do doador para o receptor; o conhecimento se
transforma ao passar para outra pessoa;
2 A carga da tradição Todo conhecer novo está conformado pelo
conhecido;
3 A repercussão da sucessão do conhecer O que foi formulado em
forma de concepção limita o campo das concepções construídas em torno
dela.
Em decorrência disso, Lima-Gonçalves (2002, p 208) afirma que qualquer
reforma curricular encontrará sempre resistências por parte do corpo docente e, de
certa forma discente, devido ao peso da tradição formada pelo corporativismo.
Lima Gonçalves (2002, p 160) acredita que um dos elementos capazes de
influenciar a estruturação do currículo corresponde aos determinantes institucionais.
Dentro desse conjunto, o fator mais importante talvez seja a tradição: trata-se de
expressão que resume um conjunto de fatores, em particular, dificuldade para a
mudança e acomodação ao tradicionalmente estabelecido, em que papéis e horários
69
vêm ajustados ao programa de vida de cada personagem. Para ele, não é difícil
perceber que, quanto mais antiga a instituição, tanto maior será o peso da tradição,
ainda que não explicitado. A escola médica, de acordo com o autor, talvez seja a
instituição em que mais claramente se coloca, mesmo diante da opinião pública em
geral, a tríplice função da universidade, a saber: o ensino, a pesquisa e a extensão e
prestação de serviços à comunidade.
Segundo Lima Gonçalves (2002, p 206), a faculdade de medicina da
Universidade de São Paulo - FMUSP vivenciou, em dois momentos de sua trajetória,
o que significa a tradição como obstáculo às inovações que visam ao
aperfeiçoamento institucional. Em 1968, foi implantado, com autorização dos órgãos
deliberativos da Faculdade, um curso médico paralelo ao que se desenvolvia e
que continuaria intocado. O novo curso propunha a adoção de critérios inovadores
em sua estrutura curricular e na metodologia de seu desenvolvimento. Nessa linha, o
novo curso adotado pela FMUSP foi denominado “experimental”.
O curso evoluiu com grande animação de seus docentes, capazes de
despertarem acentuada motivação nos estudantes. Mas o peso da tradição mostrou-
se presente e, em 1976, a Congregação da Faculdade deliberou que o curso
experimental seria gradualmente desativado e seus estudantes aos poucos
incorporados ao corpo discente do curso “tradicional” da FMUSP, estabelecendo o
que se denominou de curso “unificado” da Faculdade. Em momento posterior, na
década de 1980, amplo e profundo trabalho de revisão curricular foi desenvolvido
por grupo numeroso de docentes da FMUSP por determinação da direção da
Faculdade. Desse trabalho resultou o projeto de “reorientação curricular”, aprovado
pela Congregação da Faculdade, em 1983, e implantado a seguir. O projeto
resgatava algumas propostas do curso experimental, particularmente a adoção do
ensino por meio de “blocos por sistemas orgânicos”. A proposta definia que o ensino
clínico dos grandes sistemas do organismo seria completado pelo ensino paralelo e
específico da morfologia, fisiologia, farmacologia, anatomia patológica e
fisiopatologia (LIMA GONÇALVES, 2002, p 207).
Tratava-se de formulação desafiadora, aponta o autor, cujo sucesso
exigia, por certo, uma coordenação forte e dedicada por um docente muito
comprometido. Menos de dez anos depois, sem que tivesse havido a possibilidade
de uma avaliação sistematizada, novo trabalho de reformulação foi realizado, com
70
rejeição de inovações de “complexa execução”, retornando-se ao modelo tradicional,
por certo mais simples e de mais fácil desenvolvimento.
Esse exemplo demonstra o peso da tradição médica corporativa como
resistência às propostas pedagógicas inovadoras.
Cutolo (2001, p 108) analisando a faculdade de medicina da Universidade
Federal de Santa Catarina UFSC, verificou que os objetivos a serem alcançados
ao término da execução do curso médico são:
O curso de graduação em medicina propôs-se formar profissional que
possua conhecimentos adequados para enfrentar a realidade com atitude
crítica e criativa, de maneira que possa junto com outros profissionais de
equipe de saúde atuar num mundo dinâmico e em permanente evolução,
visando à promoção, recuperação e reabilitação da saúde do paciente,
família e comunidade, objetivando formar um profissional capaz de
identificar as bases da conduta do ser humano, seu desenvolvimento e a
sua função normal. (UFSC, 2000 Apud CUTOLO, 2001, p 108).
Cutolo (2001, p 137) afirma que nova proposta curricular para a UFSC
desponta com algumas novidades em termos de estrutura. O curso dico ganha
mais um semestre de internato, perfazendo um total de dois anos, e a estrutura
disciplinar cede lugar à estrutura modular.
Ele lembra que, naquela época, essa nova proposta ainda não estava em
fase de execução e, portanto, ficava impossível, entrevistar os docentes que
ministrariam estas aulas, bem como ter acesso a um plano de ensino detalhado. Em
relação ao que poderia ser chamado de mudança de grade curricular sem mudança
de currículo, Cutolo (2001, p 139) afirma que: “[...] são fadadas ao insucesso aquelas
reformulações educativas que não correspondem, reflexamente, a rearranjos
efetivos na prática médica”.
Para Cutolo (2001, p 140), devemos ter clareza de que mudança
curricular é um empreendimento muito maior do que reforma da grade curricular.
Implica em processo que contextualize e historicize a formação e a prática médica;
implica em planificar e refazer prioridades educacionais; estabelecer objetivos claros
e, então, estabelecer estratégias. Cutolo (2001) não refere se essa planificação e
reformulação das prioridades educacionais necessárias às mudanças curriculares
estariam conformadas ou não ao EP predominante na MT. Baseado nas razões
apresentadas, o autor dessa pesquisa acredita que sim. Elas apenas representam
71
acomodações e rearranjos ao EP vigente e o ameaças propriamente ditas que
poderiam mudar os conceitos atuais.
A maioria dos conhecimentos está composta por aquilo que é conhecido,
o conhecer novo está conformado ao pré-estabelecido e as novas concepções estão
limitadas pelo formulado. Desse modo, novos saberes que procurem estabelecer-se
dentro desse estilo de pensamento, como é o caso da medicina estética, encontram
na tradição da instituição os primeiros obstáculos à instalação.
É claro que não se pode esquecer a influência da atuação médica em
hospitais, consultórios e clínicas na formação do EP médico. No entanto, baseado
nas afirmações apresentadas, é de se esperar que a faculdade de medicina seja
responsável por grande parte dos valores formados pelo EP predominante em MT.
3.1.2 O Papel da Faculdade na Formação do Estudante de Medicina
Lima Gonçalves (2002) lembra a importância em frisar que a faculdade de
medicina desempenha papel fundamental no desenvolvimento de valores morais,
técnicos e científicos na formação do estudante, uma vez que este está saindo da
adolescência e entrando na idade adulta. Isso não ocorre nos cursos de Pós-
Graduação, nos quais o estudante entra como adulto formado com seus valores
éticos, sociais e morais estabelecidos. Esse fato é importante para essa
investigação, pois demonstra que o estudante de medicina estética que chega ao
curso de PG, está impregnado pelo EP da MT, pois sofreu sua influência durante
toda a graduação acadêmica. Desse modo, importa notar que, muito provavelmente,
o ponto de partida do estilo de pensamento da medicina estética é o próprio estilo de
pensamento da medicina tradicional. Para Lima-Gonçalves (2002), quanto maior for
a tensão experimentada pelo estudante, tanto mais provável será que ele se apegue
com tenacidade a sua forma inicial de comportamento, muitas vezes com prejuízo ao
seu processo de aprendizado. As relações humanas dentro de uma instituição ou no
seio de uma classe fazem diferença nessa aprendizagem, o que permite a Lima-
Gonçalves (2002, p 219) deduzir que o melhor clima para o estudante se projetar
como pessoa é o de franca aceitação de sua personalidade.
72
Lima Gonçalves (2002, p 227) destaca algumas situações enfrentadas
pelo estudante capazes de inquietá-lo, dentre elas, sua idade. Não se trata apenas
da sua inclusão em alguma faixa etária, importante por si mesma, mas também do
processo de amadurecimento que o estudante desenvolveu anteriormente. No caso
do estudante de medicina, tal processo inicia-se na adolescência, quando a opção
profissional é feita precocemente. Neste caso, o jovem não hesita em sacrificar
horas ou dias de sua adolescência, sabendo que irá enfrentar a alta barreira que o
vestibular da universidade brasileira apresenta, tendo em vista o projeto futuro que
ele terá escolhido. As outras situações seriam: no plano científico, o acúmulo de
conhecimentos a aprender ou registrar e, no plano social, a colaboração atuante que
a comunidade exige. Essas podem ser as razões, segundo a opinião de Lima
Gonçalves (2002), pelas quais o estudante de medicina parece ser “mais maduro” do
que seus colegas da universidade que optaram por outros caminhos.
Alguns desses fatores de ansiedade prendem-se a elementos formais do
processo educacional que o estudante participa. O primeiro deles refere-se ao
currículo médico, no que diz respeito às disciplinas que o compõem, cada qual com
peculiaridades que podem desestabilizar em grau mais ou menos intenso o
estudante. É certo que o laboratório de anatomia não pode ser eliminado
simplesmente porque sua freqüência pode gerar tensão, mas o professor necessita
lembrar que as visões e odores, que não mais o atingem, talvez despertem no
estudante um mecanismo de defesa emocional. O primeiro contato com o doente
pode chocar o jovem estudante, na medida em que envolve uma invasão da
intimidade de uma pessoa com quem se encontra pela primeira vez; não se trata
apenas de obter informações de caráter reservado, mas o exame clínico introduz o
problema da exposição do corpo humano, em paradoxal conflito com a noção
habitual de recato e pudor
19
(LIMA GONÇALVES, 2002, p 219, 221).
Outras vezes, contudo, não se trata de conteúdo curricular, mas da
maneira como é desenvolvido ou apresentado. É certo que, em conseqüência do
fantástico crescimento da massa de conhecimentos disponíveis, tal currículo tornou-
se extremamente complexo, o que gera, com freqüência, disputa pelo espaço na
grade horária entre os vários departamentos, com repercussão sobre os estudantes.
19
Segundo Canguilhem (1977), nessa fase já está incutido no estudante o olhar profundo da MT, pelo
qual o médico transpassará a forma externa do paciente para adentrar nas profundezas da intimidade
da doença.
73
Igualmente intrínseco ao processo, está o fator de ansiedade vinculado ao sistema
de avaliação adotado, em particular os aspectos relativos à freqüência, ao tipo, ao
clima em que se realizam as provas e as avaliações. Muitas vezes, o professor
esquece que o processo de avaliação o julga exclusivamente o estudante, mas o
próprio ensino e, no fundo, ele próprio (LIMA GONÇALVES, 2002, p 219-220).
Não obstante isso, o interesse do estudante pelo “outro” também vai
diminuindo por meio da fraca formação humanista da faculdade de medicina mais
interessada na abordagem tecnocêntrica e biologicista, conforme explica Cutolo
(2001, p 187-188):
[...] a compaixão e o altruísmo presentes nos estudantes recém admitidos
nos cursos médicos vão se diluindo com o passar dos anos até a formatura.
A supervalorização da tecnologia ocorrida na medicina aproximou o
paciente das máquinas e o afastou dos médicos. A anamnese e o exame
físico têm sido gradativamente substituídos pelo procedimento. Os
procedimentos, por sua vez, tornam o ato médico caro e excluem grande
parcela da população. A formação humanista é deficiente, sendo a ênfase
predominantemente tecnocêntrica. A compreensão da dimensão humana
tem sido abandonada nos cursos de medicina, dificultando o entendimento
psicossocial do paciente e sua comunicação com ele.
Em todo esse ambiente vai se desenvolvendo o Estilo de Pensamento da
Medicina Tradicional, um estilo baseado em evidências científicas, que aprofunda o
olhar na procura da doença, que necessita dar conta de grande quantidade de
conhecimentos apresentados em uma grade curricular extensa na qual, para Fleck
(1986, p 153), o estudante não desenvolve ou não possui tempo para desenvolver
um espírito crítico perante tudo que lhe é apresentado.
A introdução em um campo de conhecimento é mais uma doutrinação que
um estímulo do pensamento crítico-científico. O tempo de aprendizagem
tanto na ciência como na indústria, arte ou a religião caracteriza-se por
uma sugestão de idéias puramente autoritárias. “Toda introdução didática é,
portanto, um conduzir-inserido, uma suave coerção” Essas relações
especiais de dependência são fundamentais para um coletivo de
pensamento. Um exemplo é a relação do mestre com o discípulo, que é o
reflexo da relação da elite com as massas, onde uma das partes confia nos
expertos e, a outra, depende da opinião pública. Desta maneira, a
comunidade formada pelos iniciados por essa forma, adquire um sentimento
de solidariedade intelectual.
A tradição, a formação e o hábito são, segundo Fleck (1986, p 131), os
fatores que “dão origem a uma disposição a perceber e atuar conforme um estilo, de
forma dirigida e restrita”. Conseqüentemente, é essa tradição que o estudante
74
receberá para sua formação até o desenvolvimento de hábitos médicos
conformados ao EP existente. Qualquer desvio desses três fatores irá gerar reação e
oposição conservadora frente ao novo.
Concordando com Fleck (1986), pode-se afirmar que a coerção exercida
pelo curso de medicina sobre o estudante, embota sua capacidade crítica frente ao
EP dominante. Essa sugestão de idéias autoritárias reprime o questionamento do
modo de pensar medicina. No entanto, é esse estudante, reprimido em seus anos
acadêmicos, que irá tornar-se médico e fazer parte dos órgãos reguladores do
exercício da profissão, do corpo docente dos cursos de medicina, corpo clínico dos
hospitais, de consultórios e de postos de saúde. Tornando-se, da mesma forma que
foi reprimido e impedido de tecer questionamentos sobre seus ensinamentos,
intolerante frente a questionamentos de sua autoridade, juízo ou do EP do qual faz
parte.
3.1.3 A Formação do Professor de Medicina
Para Lima Gonçalves (2002, p 225), sobre o professor de medicina pesam
algumas responsabilidades: oferecer ao estudante conhecimentos básicos e
possibilidades para desenvolvimento de habilidades técnicas; criar condições para o
pensamento crítico; conscientização das necessidades do doente e da comunidade;
contribuir para a formação da escala de valores que presidirá a execução de suas
atividades. Ao lado disso, ele precisa dispor de adequada postura pedagógica e
abordagem didática; necessita conhecer todos instrucionais que possam
enriquecer o aprendizado com organização mental e clareza expositiva.
Contudo, para Lima Gonçalves (2002, p 226), ao professor não basta ter
conhecimento profundo do processo educacional, mas igual qualificação quanto ao
comportamento humano. Dessa forma poderá compreender e aceitar que lhe cabe
conseguir, por suas maneiras e palavras, despertar interesse autêntico em seus
estudantes, em sua condição de pessoas autônomas e livres que têm passado,
presente e futuro, talentos e necessidades especiais, lares, famílias e amigos,
qualidades e defeitos pessoais.
75
Conforme esse autor (2002, p 235), o professor de medicina não foi
preparado em sua formação para o magistério. Para cumprir sua tarefa de educador
é preciso o professor estar consciente de alguns elementos básicos da docência
universitária. De um lado, o reconhecimento da importância indiscutível de que se
reveste, nesse campo, a pesquisa. Não apenas porque ela é atraente, porque é
lógica e especializada, mas também porque é ela que traz ao docente recompensa
acadêmica mais rápida. Mas também o reconhecimento de que a radicalização
dessa visão acarreta a convicção de que o ensino é apenas um subproduto em sua
atividade de professor, em lugar de ser a importante atividade independente que ele
é na realidade.
Em outras situações, particularmente nas áreas clínicas, muitas vezes os
professores se afastam rapidamente do hospital de ensino, em busca de sua
atividade particular, delegando sua função docente a jovens iniciantes
despreparados e sem experiência para o ensino (LIMA GONÇALVES, 2002, p 228-
29).
Preocupado com o tema, Cutolo (2001, p 188-89) relaciona alguns
problemas existentes no curso de medicina que podem explicar o desinteresse do
médico em ser “professor de medicina”. Ele acrescenta que “a postura do docente é
a do médico que dá aula e não a do professor de medicina”:
O regime de docência com dedicação exclusiva é algo pouco comum nas
escolas médicas durante o ciclo clínico. Uma menor dedicação à carreira
docente está relacionada com um maior êxito financeiro e a um maior
conformismo com a infra-estrutura disponível na escola. certo
descompromisso com a questão pedagógica, um baixo interesse na
discussão e solução de problemas relativos ao ensino médico e uma
resistência muito grande em relação às mudanças. Os baixos salários não
incentivam a dedicação exclusiva. Os professores de medicina tendem a
optar por atividades mais lucrativas. Os que assumem, vivem situação
financeira desmotivadora e vêem restritos os acessos a congressos e
aquisição de material bibliográfico. Os professores são mal remunerados,
insuficientemente treinados e pouco motivados para interagir com os
estudantes. O critério de admissão, freqüentemente, passa a ser a
capacitação técnica específica. Supõe-se que uma vez habilitado sobre o
conteúdo, se está habilitado a ensiná-lo. Um bom médico não é
necessariamente, um bom professor.
Tais comportamentos decorrem sem dúvidas a Lima Gonçalves (2002, p
230), de uma armadilha que a universidade e os professores que nela atuam
prepararam para si mesmos: basta ver o peso que se atribui à análise de currículo
76
na ocasião de um concurso e à atividade docente que um professor desenvolve ao
longo dos anos. Com tantos aspectos discordantes e até conflitantes de sua
personalidade, entende-se que esse professor seja uma figura discutida. A plena
capacitação para exercer as tarefas complexas que o processo ensino-
aprendizagem supõe, exige, muitas vezes, o que muitas universidades vêm
realizando: a avaliação do desempenho do docente de medicina.
A concepção do que está sendo exigido como capacitação do docente
vincula-se, quase invariavelmente, ao seu desenvolvimento didático-pedagógico,
privilegiando os aspectos técnico-instrumentais. A partir dessa postura empirista
prioriza-se o “como ensinar” desarticulado de uma visão mais ampla dos problemas
sociais, políticos e culturais do contexto educativo. Por esse caminho não se leva em
conta todos os aspectos fundamentais da pedagogia: filosóficos, científicos e
técnicos para valorizar mais realçadamente o último, que constitui exatamente a
didática. O panorama, dessa maneira, torna-se estreito e o processo fica
empobrecido pela carência de aportes que correntes filosóficas e teorias da
aprendizagem poderiam estar acrescentando (LIMA GONÇALVES, 2002, p 233).
Para Lima Gonçalves (2002, p 234), quando a atividade docente se
desenvolve no contexto amplo da universidade, tais carências podem ser atenuadas
com a convivência de docentes de variada origem e formação. Mesmo aqui, é
possível surpreender as diferenças decorrentes de estrutura de personalidade e de
formação cientifica e cultural. Surgem, dessa maneira, aqueles que mais
marcadamente se dedicam à pesquisa, por inclinação pessoal apoiada em formação
científica consistente. Tal como comparecem os que preferem apenas reproduzir o
conhecimento sistematizado, porque lhes falta embasamento científico ou porque se
trata de postura menos comprometedora e desgastante. No caso da escola médica,
a regra é a não convivência dos docentes com outras áreas da universidade e dos
saberes universitários. Quase sempre, aliás, mais do que ausência de convivência,
ocorre uma falta de co-existência do docente médico com os integrantes dos demais
setores da universidade. Daí que, como regra geral ressalvada as exceções, o
docente médico é um competente especialista da sua área, mas um conhecedor
pobre das outras áreas que configuram o saber humano. Cutolo (2001, p 198)
constata uma quase ausência de interdisciplinaridade no curso de medicina:
77
Apesar da complexidade e das diferentes variáveis que envolvem o
processo saúde/doença, não existe integração interdisciplinar. Não
diálogo entre as disciplinas de caráter clínico biomédico, não há diálogo com
os diferentes profissionais da área da saúde e nem, tão pouco, com os
diferentes saberes como sociologia, antropologia e psicologia.
O autor sustenta que o eixo articulador fundamental da educação médica
é a interdisciplinaridade. A complexidade do processo saúde-doença deve ser
tratada como categorias interdisciplinares. Somente a investigação coletiva com
produção coletiva pode permear a solução de problemas que envolvem a saúde e a
doença. Aos estudantes de medicina deve ser dada a oportunidade de interagir com
estudantes de outras áreas da saúde e outras áreas do saber para o seu
crescimento profissional e pessoal. Agravando o quadro, Cutolo (2001, p 199-200)
cita como exemplo, o ciclo básico do curso de medicina da UFSC, completamente
dissociado das necessidades médicas do ciclo clínico:
As disciplinas do ciclo básico são agrupadas de forma a desenvolver suas
próprias potencialidades autônomas. São ensinadas como ciências muito
bem delimitadas em seu campo, com vida própria e importância que se
justifica em si. Não se busca a especificidade do conhecimento básico
aplicado à clínica. Em geral, os professores não têm formação clínica, o
biomédicos, bioquímicos, farmacêuticos, biólogos, ou seja, com
conhecimento restrito da clínica. Como conseqüência, seus ensinamentos
são, de forma geral, desconectados de importância clínica. Outras
especificidades do ciclo básico dão conta de que ele não tem
responsabilidade direta sobre o paciente, trabalham em currículos isolados
e desenvolvem pesquisa básica. A planificação dos programas e seus
conteúdos são feitos isoladamente, sem o desejável diálogo quanto às
necessidades do ciclo clínico. Não há comunicação entre os coletivos
envolvidos nos diferentes ciclos.
A esse quadro, Lima Gonçalves (2002, p 235) acrescenta outra
peculiaridade do docente médico, em comparação com os colegas de outras áreas
da universidade: estes últimos se aproximaram do ambiente universitário com a
intenção e a decisão formada de se inserirem no trabalho docente. É o caso do
professor de direito, de engenharia, de línguas ou artes. Mas não é esse
necessariamente o caminho do professor de medicina. Alguns deles atendem a
convites de professores mais graduados e começam por imitar os mais avançados.
A originalidade da docência médica é a existência de outra via de acesso,
representada pela inserção do profissional nos quadros do corpo clínico do hospital
de ensino. Aqui é que o médico descobre, pela convivência com os estudantes, as
ricas possibilidades que a docência lhe oferece.
78
Porém, Lima Gonçalves (2002, p 236) adverte que qualquer que seja a
porta de entrada na docência, o que se caracteriza é uma espécie de denúncia: o
professor de medicina não foi preparado, em sua formação, para o exercício do
magistério superior. O problema, contudo, não se limita a área dica, porque em
todos os territórios do ensino superior brasileiro, com exceção daqueles que supõem
licenciatura, é deixada de lado a exigência da capacitação pedagógico-didática para
o exercício da docência. É verdade que, no caso da medicina, ainda existe uma
possibilidade representada pela existência obrigatória na pós-graduação médica de
disciplinas de “pedagogia médica” e “didática especial”, tal como é a denominação
contida nos textos legais. Trata-se, entretanto, de exigência que é apenas
excepcionalmente, desenvolvida com seriedade nos currículos de s-graduação de
nossas escolas. Mesmo na melhor das alternativas tal procedimento estará voltado
para as gerações futuras de professores de medicina, o que, para o autor, já é lucro.
Diante de tudo isso, Lima Gonçalves (2002, p 229) examina a pessoa do
professor. Segundo o autor, os médicos são pessoas para quem o sucesso é
importante. Tiveram boas médias em sua classe nas escolas, têm bom nível
intelectual, mas principalmente ambição pessoal acima da média. Quando se
dedicam à carreira acadêmica, se acrescentam as exigências que a universidade
formula, de avaliações e concursos sucessivos, outras tantas oportunidades para
que a necessidade de sucesso se confirme. Esse panorama existencial, se não
justifica, pelo menos explica a arrogância e o desinteresse identificados em sua
pesquisa realizada na FMUSP
Cutolo (2001, p 186) acrescenta a esse quadro o problema gerado pela
formação docente ser especializada: a imagem de indivíduo e o entendimento de
seus problemas passam a ter origem topográfica. O indivíduo é encarado de forma
cartesiana como o resultado da soma das partes.
A presença de superespecialistas nas escolas médicas é algo
absolutamente necessário, embora o seu campo de atuação devesse ser
prioritário nos programas de residência médica. Um aspecto que deve ser
ressaltado é que a especialização amplia a base cognitiva da ciência
médica, fato necessário. O desenvolvimento científico e tecnológico ocorrido
na área médica reforça o aparecimento dos especialistas, mas é
indispensável que docentes generalistas representem modelos de
identificação para o médico geral que desejamos preparar. O professor
superespecialista acaba sendo um exemplo a ser seguido: alguém
profissionalmente e economicamente bem sucedido com conhecimento
profundo em área específica.
79
Cutolo (2001, p 190) observa ainda que os critérios expostos pelos
professores de medicina para a opção da carreira paralela docente são os mais
variados. Alguns, porque gostam de mostrar aos outros como se faz ou como se
domina um conteúdo. Outros se sentem obrigados a fazer o que fizeram com eles,
ensinar. Outros gostam de estudar e sentem-se estimulados com a docência para
fazê-lo. Alguns acreditam que buscaram a carreira docente por justificação em seus
currículos pessoais.
Ele afirma que é com esse professor que o estudante de medicina se
depara e submete-se para aprender a medicina tradicional. E dentro dessa
problemática, dentro desse coletivo de pensamento de corpo docente médico
universitário, que o estudante vai apropriando-se e envolvendo-se com o estilo de
pensamento da medicina tradicional. Nesse isolamento das demais áreas do saber,
o estudante sabe que vai atuar em uma profissão extremamente exigente em seu
exercício diário e, em tudo quanto representa a necessidade de permanente
atualização. Toda essa bagagem de valores é transmitida ao estudante de medicina
que vai treinando suas habilidades técnicas e aprofundando seu olhar médico
orientado. Desse modo, ele irá aprendendo a adquirir postura adequada ao estilo de
pensamento predominante.
Cutolo (2001, p 191) afirma que a relação professor/estudante no
processo ensino/aprendizagem dá-se de forma empirista. Segundo ele, o modelo
empirista implica que o conhecimento está contido no professor e o estudante é um
receptador sensorial deste conhecimento. No modelo apriorista, o conhecimento
deve ser despertado no estudante. No modelo construtivista o conhecimento é
processado e construído na relação professor-estudante. Valoriza-se o
conhecimento a priori do estudante e o conhecimento esotérico
20
do professor. O
conhecimento não se transmite, mas se constrói.
De acordo com Cutolo (2001, p 191), em sua maioria, os professores-
médicos trabalham suas aulas de forma expositiva, procedimento passivo, onde o
professor exterioriza conteúdos adquiridos que devem ser imitados.
Consequentemente, o método de avaliação busca aferir a soma de conteúdos
assimilados. Na tentativa de superação do empirismo, algumas escolas propõem o
20
Esotérico entendido na concepção fleckiana (conhecimento especializado).
80
método de Aprendizado Baseado em Problemas
21
. Sugere-se que o professor se
torne um tutor, um facilitador e trabalhe com um número reduzido de estudantes
(quatro a oito), aplicando-lhes um problema clínico teórico. Porém, após analisar
diversos autores que estudaram tal todo, Cutolo (2001) encontrou ausência de
uniformidade. Alguns descrevem a ocorrência de modelos híbridos de PBL com o
tradicional. Outros, dizem que não ocorrem diferenças significativas, sob o ponto de
vista humanístico, entre estudantes educados pelos PBL e pelo modo tradicional.
Diferenças podem ser percebidas apenas nos primeiros anos em favorecimento ao
PBL. Ferreira (apud CUTOLO, 2001, p 186), afirma não conhecer indicadores que
comprovem impacto significativo do PBL sobre o médico.
Diferentemente da educação baseada em problemas, cuja ênfase é na
solução de situações com respostas terapêuticas adequadas a uma série de
problemas, Cutolo (2001, p 193) explica que tem sido apontada a alternativa da
problematização, que “[...] aplicada ao contexto da saúde enfatiza o processo de
reflexão e análise sobre os problemas de saúde desde suas várias perspectivas e
em toda a sua complexidade”. A educação problematizadora, onde o conhecimento
é construído processualmente, parece mais promissora para Cutolo (2001, p 194),
pois possibilita a compreensão diferenciada do processo saúde/doença. A ideia de
problematizar os conteúdos do curso médico busca superar o conceito educacional
baseado na reprodução e incorporação de conhecimentos pelo modelo que
possibilita uma tomada de atitude crítica, analítica e reflexiva frente aos problemas
de saúde e suas resoluções.
Contudo, diante de todas essas propostas inovadoras do método de
ensino-aprendizagem em medicina, Cutolo (2001, p 194) conclui que elas não
representam mudanças ao EP predominante, mas apenas reformas do existente:
Novos enfoques pedagógicos são bem-vindos, mas o que se deve
considerar, agora, não é o método em si, mas quais as possibilidades do
método para se entender saúde-doença dentro de sua complexidade
dialética. PBL com enfoque apenas biologicista não constitui mudança, mas
reforma.
Destarte, o que está em jogo o são modificações nas concepções do
EP da MT que Cutolo (2001), de certa maneira, antecipa denominando-o como
21
Problem-Based Learning (PBL)
81
biologicista mas apenas reformas que, segundo Fleck (1986), tentam conformar-se
ao EP predominante ou, conforme Kuhn (1987) são apenas peças que tentam se
encaixar no quebra-cabeça do paradigma dominante.
3.2 O Olhar Orientado da Medicina Tradicional
Ao longo dos seis anos da graduação acadêmica, o estudante de
medicina é submetido a um treinamento do olhar. “Olhar que investiga, olhar que
pergunta, olhar que rege, olhar que julga. Olhar que se lança na profundeza do
corpo doente para procurar seu objeto: a lesão causadora da doença” (FOUCAULT,
1980, p 143).
Esse tópico procura estudar o processo pelo qual foi se aprofundando o
olhar da medicina. Um olhar que partiu da superfície do corpo para buscar na
intimidade dos órgãos a lesão causadora da doença para ali operar mudanças. Esse
é mais um aspecto que merece análise detida e atenta porque a partir dele pode ter
ocorrido, conforme veremos no próximo capítulo, uma modificação na forma de olhar
na ME. O olhar do médico esteta partiu de suas bases formativas da profundeza do
corpo para olhar a superfície que é apresentada a esse olhar. Valores como forma
estética, aparência, textura, tônus e vitalidade que não são tão valorizados na MT
têm, na ME, importância.
Para Foucault, conforme seu pensamento no livro O Nascimento da
Clínica (1980, p 100-101), esse olhar médico tradicional, além de localizar a lesão,
determina o diagnóstico provável (porque a medicina trabalha com o provável), para
diante de uma hipótese provável, ordenar um tratamento. Olhar que, diante de um
diagnóstico, se vê no dever de: ou curar, ou aliviar ou amparar o sofrimento humano.
Olhar que se angustia diante da responsabilidade de agir.
Mas o olhar médico, além disso, se organiza de modo novo. Primeiramente,
não é mais o olhar de qualquer observador, mas o de um médico apoiado e
justificado por uma instituição, o de um médico que tem poder de decisão e
intervenção. Em seguida, é um olhar que não está ligado pela rede estreita
da estrutura (forma, disposição, número, grandeza), mas que pode e deve
apreender as cores, as variações, as ínfimas anomalias, mantendo-se
sempre à espreita do desviante. Finalmente, é um olhar que o se
82
contenta em constatar o que evidentemente se dá a ver; deve permitir
delinear as possibilidades e os riscos; é calculador.
O ensino médico treina o olhar. Esse é o olhar orientado para Fleck (1986,
p 144-145), o qual afirma que o coletivo de pensamento de uma comunidade
científica produz um olhar estilizado, uma disposição para o perceber orientado e
para a elaboração correspondente do percebido que é o estilo de pensamento. De
acordo com esse pensador, o olhar orientado (gestáltico) percebe de maneira
confusa e caótica em sua fase inicial. Somente após treinamento, esse olhar
descobre a forma do objeto, porém, ao descobrir a forma conformada a esse estilo
de olhar (olhar estilizado), torna impossível perceber o objeto de uma forma
diferente, ou até mesmo, de voltar a perceber a forma confusa e caótica do princípio.
Esse olhar orientado ensinado ao estudante na graduação e aprofundado
na pós-graduação (a qual especializa o olhar em uma determinada especialidade) é,
conforme Fleck (1986, p 151), adquirido no ensino tradicional com muito pouco
espírito crítico. O estudante “recebe” as informações, classifica-as e, segundo o
olhar orientado, elenca um roteiro mental racionalizado de patologias olhadas
internamente que servirão como ferramenta ao diagnóstico.
O estudante de medicina recebe aulas teóricas nas primeiras fases do
curso na própria faculdade como: anatomia, histologia, bioquímica, parasitologia,
microbiologia, estudos estatísticos, fisiologia, farmacologia, entre outras. Nas fases
posteriores entra em contato com o paciente nas enfermarias do hospital-escola.
Começam os estudos clínicos, onde, a beira do leito o professor explica o “casode
vesícula, a apendicite, a pneumonia, a esquizofrenia, o câncer. Foucault (1980, p 95)
lembra que o médico (geralmente rico) tem no hospital, o espaço que permite
realizar um contrato com o paciente (geralmente pobre), onde este último, em troca
da cura dos seus males, cede seu corpo como objeto de análise ao aprendizado
para o médico: “a dor como espetáculo ao olhar”. O homem, sujeito (médico) passa
a ser seu próprio objeto (paciente), onde, através do olhar refinado, penetrante,
inquiridor, extrai a doença dos seus recônditos mais ocultos à superfície do olhar.
[...] mas, olhar para saber, mostrar para ensinar não é violência muda, tanto
mais abusiva que se cala, sobre um corpo de sofrimento que pede para ser
minorado e o manifestado? Pode a dor ser espetáculo? Pode e mesmo
deve pela força de um direito sutil que reside no fato de que ninguém está
só, e o pobre menos do que os outros, que só pode receber assistência pela
mediação do rico. Visto que a doença só tem possibilidade de encontrar a
cura se os outros intervêm com seu saber, seus recursos e sua piedade,
83
pois existe doente curado em sociedade, é justo que o mal de uns seja
transformado em experiência para os outros; e que a dor receba assim o
poder de se manifestar. Os dons benéficos vão mitigar os males do pobre,
de que resultam luzes para a conservação do rico (FOUCAULT, 1980, p 96).
Foucault (1980, p 71) vai mais além ao afirmar que, reciprocamente,
delineia-se para o rico a utilidade de ajudar os pobres hospitalizados: pagando para
tratá-los, pagará inclusive para que se conheçam melhor as doenças que podem
afetá-lo; o que é benevolência com respeito ao pobre se transforma em
conhecimento aplicável ao rico. O hospital aí encontra em regime de liberdade
econômica, a possibilidade de interessar ao rico; a clínica constitui a inversão
progressiva da outra parte contratante; ela é, por parte do pobre, o interesse pago
pela capitalização hospitalar consentida pelo rico. O hospital universitário torna-se
rentável para a iniciativa privada a partir do momento em que o sofrimento que nele
vem procurar alívio é transformado em espetáculo. Aprender acaba por pagar,
graças às virtudes do olhar clínico. “Modo de ensinar e dizer, que se tornou maneira
de aprender e de ver”.
Em acordo ao tema, Lima-Gonçalves (2002, p 65) explica que a prática
médica desenvolve-se por meio de uma relação sujeito-objeto, em que o médico
(sujeito), encarregado de executar a ação, dirige seu ato ao doente (objeto), sem
opinião e sem vontade. Para o autor, a medicina atual é dotada de complexa
aparatologia e busca olhar o que acontece no interior do paciente com a mais alta
resolução possível. Existe verdadeira reificação dos mecanismos do olhar. Buscam-
se os grandes centros médicos, não somente pela capacidade do profissional, mas
sim, por aquela instituição que possua o equipamento mais moderno. A tecnologia
do olhar profundo está totalmente inserida no conceito médico atual, derivando daí,
sua prática operativa. O diagnóstico passa a significar a busca da melhor imagem
interna possível.
O médico, de sua parte, tem a tendência a associar-se à máquina, com os
olhos nas informações cada vez mais minuciosas que ela pode oferecer,
capazes de enriquecer e facilitar seu trabalho, confirmando ou rejeitando a
hipótese diagnóstica formulada inicialmente. Alguns, movidos às vezes por
uma curiosidade lúdica, ou interesses de outra natureza, de que participam
os lobbies” da indústria farmacêutica e de equipamentos médico-
hospitalares, vinculam-se fortemente ao uso de fascinantes e misteriosos
equipamentos de última geração (LIMA-GONÇALVES, 2002. p 66 grifo do
autor da pesquisa).
84
Esse pensador adverte que, nos últimos anos, a medicina foi acometida
por uma força avassaladora de tecnologia, com suas máquinas sofisticadas e suas
técnicas complementares de execução. A ampla divulgação que os meios de
comunicação oferecem ao público sobre o alcance desses avanços tecnológicos faz
com que os próprios doentes se interessem por sua utilização, apresentando-se,
agora voluntariamente, como material de pesquisa.
Diante desse quadro, Lima-Gonçalves (2002, p 66) alerta sobre o risco
que a relação médico-paciente possa transformar-se agora numa relação objeto-
objeto, em que o médico tende a desvalorizar sua participação no discernimento,
submetendo-se a “conselhos” e a “sugestões” que a máquina pode oferecer. Nesta
situação, a tecnologia, criada originalmente para servir o médico, passa a querer ser
servida. Frente esse debate, ele percebe a necessidade de resgatar na prática
médica a relação sujeito-sujeito, em que duas pessoas se encontram numa situação
de desnível emocional e de competência médica, mas colocando-se cada uma como
sujeito capaz de pensar, de opinar e agir. Para Lima-Gonçalves (2002, p 66) é óbvio
que humanismo e tecnologia não são necessariamente antagônicos, podendo até
ser complementares. O mau uso de um e de outra é que pode colocá-los em
oposição, quando o ideal seria conseguir o hibridismo de uma tecnologia
humanizada.
Esse humanismo citado pelo autor, que a prática médica deve se revestir,
não é conquista de um dia, nem se reveste de caráter definitivo; trata-se, pelo
contrário, de verdadeira postura profissional a ser cultivada e estimulada a todo o
momento, diante de circunstâncias diferentes e de numerosos obstáculos. Dois
deles merecem consideração especial à Lima Gonçalves (2002, p 64-65). O primeiro
é o desafio que a prática da medicina é hoje, mais do que nunca, influenciada por
uma visão estreitamente vinculada aos sucessos da ciência e que modernamente se
fundamenta num duplo enfoque da concepção mecanicista cartesiana: de uma
parte, o funcionamento dos seres vivos é equiparado ao de uma máquina e, de
outra, a proposta de que a resposta às perguntas sobre os fenômenos biológicos
encontra-se nos níveis mais elementares da matéria. Nessa visão, o doente é
reduzido a uma soma de genes, moléculas e enzimas, atribuindo-se emoções,
85
sentimentos e crenças a ações moleculares ainda não descobertas, sujeitas às
mesmas leis físico-químicas que regem a existência da matéria.
Essa atitude reducionista, contida no desafio que está sendo considerado,
pode ser concebida no contexto de diferentes molduras, conforme o autor. Uma
delas é a abordagem biológica, sempre possível: o ato médico é, então, levado em
conta apenas em relação a seus aspectos cognitivo e operativo, a partir
essencialmente de conhecimentos e habilidades que o médico possa ter adquirido
em seu período de formação acadêmica. São deixados de lado aspectos afetivos,
éticos e sociais, omitindo-se o reconhecimento de que os elementos cognitivos e
operativos, em si mesmos, não esgotam as possibilidades de atuação do médico,
diante das necessidades de seu doente.
O outro desafio colocado a frente do humanismo médico por Lima-
Gonçalves (2002, p 66) corresponde a referida tendência à dominação
tecnológica, cada vez mais visível e hoje até palpável. Parte-se da realidade de que
a desconsideração do doente no momento da abordagem clínica é hoje uma postura
generalizada: o médico o paciente muitas vezes como simples meio de obtenção
de resultados de toda natureza, não apenas os de caráter financeiro. No mundo
acadêmico, que compreende os hospitais de ensino, os resultados referidos são
principalmente vinculados à avaliação dos resultados da conduta terapêutica
adotada, a qual tende a ser identificada de maneira numérica, quantificada. O
doente representa, nessas circunstâncias, o material de pesquisa cujas reações,
expressas em cifras dos resultados dos exames complementares, são definidoras do
sucesso ou do malogro do tratamento escolhido.
Cutolo (2001, p 189), concorda com isso ao afirmar que a formação
humanista é deficiente, sendo a ênfase predominantemente tecnocêntrica. A
compreensão da dimensão humana tem sido abandonada nos cursos de medicina,
dificultando o entendimento psicossocial do paciente e sua comunicação com ele.
Essa ênfase dada pelo modelo flexneriano
22
para a atividade laboratorial, seus
22
Relatório Flexner: Livro escrito no início do século XX, aplicado integralmente no Brasil a partir da
década de 1950. O mesmo foi reflexo da proeminência que a visão cartesiana de enfermidade
alcançou no final do século passado. Seu principal objetivo era a legitimação ou validação da
“medicina científica”. Além do forte interesse das grandes indústrias, havia evidente movimento
corporativo através da Associação Médica Americana (AMA), cujo objetivo era tornar hegemônica a
medicina científica, opondo-se a ameaça dos homeopatas e dos que acreditavam que a medicina
antes de ser uma ciência, era a arte de curar. Com o Relatório Flexner, muitas escolas foram
fechadas, inclusive as destinadas para os negros; houve uma diminuição dramática do número de
86
dados “objetivos” e quantificáveis e o entendimento mecanicista em relação à
doença, tem afastado o médico da arte de curar. Ele acredita que o tema do
humanismo em medicina deve ser trabalhado no espaço curricular por todas as
instâncias acadêmicas:
Creio ser o humanismo um tema transversal, que pode ser mais efetivo se
trabalhado como cotidiano do espaço curricular, no dia a dia das relações
possíveis (professor-estudante, professor-professor, estudante-estudante,
professor-estudante-paciente), não apenas disciplinarmente.
Foucault (1980, p 121), de forma criteriosa, analisou minuciosamente a
história do nascimento da clínica. Por meio dessa arqueologia dos saberes, ele
descobriu que o olhar médico se deslocou da superfície do corpo até sua intimidade
com o avanço histórico do desenvolvimento da clínica. No princípio, ver o espaço era
ver o corpo, que partiu da superfície ao órgão e, mais recentemente, deste ao tecido.
Criou-se uma linguagem própria para dizer o que foi visto. Esse autor procurou
verdades (saberes) na profundeza do olhar. Estudar o processo pelo qual ocorreu
esse deslocamento do olhar é importante nessa pesquisa para o entendimento dos
caminhos que levaram a medicina concentrar esforços em procurar olhar a
intimidade dos órgãos e o caminho inverso pelo qual a medicina estética está
percorrendo.
Ele denominou proto-clínica, ou medicina classificatória, a medicina do
século XVIII. De clínica a do final do século XVIII e anátomo-clínica a medicina do
século XIX até a atual. Por meio de análise histórica ele explica a trajetória do olhar
que partiu da superfície do corpo até localizar a doença na intimidade dos tecidos:
São ao mesmo tempo os privilégios de um olhar puro, anterior a toda
intervenção, fiel ao imediato, que ele retoma sem modificar, e os de um
olhar equipado com toda uma armadura lógica que exorciza desde o início a
ingenuidade de um empirismo não preparado. É necessário descrever agora
o exercício concreto de tal percepção (FOUCAULT, 1980, p 121).
No período da medicina classificatória o método estava no discurso. Para
Foucault (1980, p 65) a função da clínica era apenas pedagógica, não produzia
saberes. A doença tinha uma natureza, uma essência. Classificava-se a
vagas. A escola médica passou a ser uma área freqüentada pela classe média alta (CUTOLO, 2001,
p 87).
87
manifestação da doença pelos sintomas. Não se via a doença, mediava-se esse
olhar pelos sintomas. A doença não era deduzida pelo corpo (que o era visto),
mas por seus sintomas.
Esta proto-clínica é mais do que um estudo sucessivo e coletivo de casos;
deve reunir e tornar sensível o corpo organizado da nosologia. A clínica nem
será, portanto, aberta a todos, como pode ser a prática cotidiana de um
médico, nem especializada, como no século XIX: nem é o domínio fechado
daquilo que se escolheu para estudar, nem o campo estatístico aberto do
que se está votado a receber; ela se fecha sobre a totalidade didática de
uma experiência ideal. Não tem obrigação de mostrar os casos, seus pontos
dramáticos e seus acentos individuais, mas de manifestar em um percurso
completo o círculo das doenças. É constituída de tal modo que nela se
encontram reunidos “os casos que se parecem mais próprios para instruir”.
Antes de ser o encontro do doente com o médico, de uma verdade a
decifrar com uma ignorância, e para poder sê-lo, a clínica deve formar,
constitucionalmente, em campo nosológico inteiramente estruturado.
No nascimento da clínica (FOUCAULT, 1980, p 65), a ruptura com a
medicina classificatória não se por uma ruptura histórico-linear. Ela vai se
formando gradativamente, em que ver e dizer tem coincidências. Os sintomas agora
não são essências, mas signos (ser) da doença. Os sintomas são a própria doença.
Olhar para os sintomas é olhar para a doença; produz conhecimento. Ver um corpo
é dizer um ser da doença. Não se pergunta mais sobre a essência da doença. Fala-
se da doença em um corpo que é visto e produz saber. Desaparece a total diferença
entre sintoma e doença. A doença não é mais uma natureza oculta, obscura,
incognoscível e intangenciável:
O olhar clínico tem esta paradoxal propriedade de ouvir uma linguagem no
momento em que percebe um espetáculo. Na clínica, o que se manifesta é
originariamente o que fala. O olhar da observação e as coisas que ele
percebe se comunicam por um mesmo Logos, que é, em um caso, gênese
dos conjuntos e, no outro, lógica das operações (FOUCAULT, 1980, p 123).
Mas é na medicina anátomo-clínica que Foucault (1980, p 141) observou
a grande ruptura em relação à situação antiga: Morgagni analisou o órgão, Bichat
estabeleceu relação entre sintomas e tecidos. Agora se pergunta sobre doença no
interior do órgão (por essa razão se começam abrir os cadáveres). A leitura do corpo
é diagonal: procura a doença na transversalidade dos tecidos. Nesse momento é
que aparecem os estudos sobre a fisiologia do órgão. O conceito de doença é
estabelecido como forma patológica da vida.
88
Com Brossais (apud FOUCAULT, 1980, p 221-222) mudam-se as noções
de espaço. A doença localiza-se no ponto de fixação da causa irritante do
organismo. O lugar do acontecimento da doença é onde o corpo a combate; ela
caracteriza-se como a batalha do corpo com o agente. A febre e a inflamação são
manifestações de acontecimento desta batalha entre corpo e agente etiológico. A
doença nada mais é que um movimento complexo dos tecidos em relação a uma
causa exterior. É uma alteração orgânica. Agora, nesse momento, ver é mais
importante que dizer. O espaço é somente a sede do acontecimento. A prática
médica determina o saber científico e não o saber científico que orienta a prática.
Contudo, essa prática não é descolada de conceituação: ela muda historicamente o
sentido de dizer; produz saberes que não são científicos, linguagem própria, olhar
próprio, espaço próprio e conceitos próprios (doenças). Modifica-se o olhar: o ver se
antecipa ao dizer. O saber é resultante da observação de cada caso, o tipo de
agente, o histórico, o local de ataque. O saber (diagnóstico) é resultante da soma
dos olhares: história clínica, exames laboratoriais, radiologia, exames de alta
complexidade.
A partir de então, o olhar médico pousará em um espaço preenchido
pelas formas de composição dos órgãos. O espaço da doença é, sem
resíduo nem deslizamento, o próprio espaço do organismo. Perceber o
mórbido é uma determinada maneira de perceber o corpo. Acabou o tempo
da medicina das doenças; começa uma medicina das reações patológicas,
estrutura de experiência que dominou o século XIX e até certo ponto o
século XX, visto que, não sem modificações metodológicas, a medicina dos
agentes patogênicos nela vi se encaixar. A partir de 1816, o olho do
médico pôde se dirigir a um organismo doente. O a - priori histórico e
concreto do olhar médico moderno completou sua constituição.
Relacionado à questão do olhar médico orientado, Canguilhem (1977),
em obra intitulada Ideologia e Racionalidade nas Ciências da Vida, diz que o nível
de objetividade em que é legitimada a oposição do normal e do anormal deslocou-
se, sem dúvida, da superfície para as profundezas, do organismo desenvolvido para
o germe, do macroscópico para o ultramicroscópico. Mas para tornar possível essa
objetividade foi preciso abrir a linguagem a todo um domínio novo, que Foucault
(1980, p 226) descreve:
[...] a correlação perpétua e objetivamente fundada entre o visível e o
enunciável. Definiu-se então um uso absolutamente novo do discurso
científico: dizer o que se vê; mas uso também de fundação e de constituição
89
de experiência - fazer ver, dizendo o que se vê; foi, portanto, necessário
situar a linguagem médica neste nível aparentemente muito superficial, mas,
para dizer a verdade, profundamente escondido, em que a fórmula de
descrição é ao mesmo tempo gesto de desvelamento. E este
desvelamento, por sua vez, implicava, como campo de origem e de
manifestação da verdade, no espaço discursivo do cadáver: o interior
desvelado”.
Dessa maneira, se podem entender as razões que levaram a medicina a
criar toda uma tecnologia do olhar. O olhar médico não é um olhar desarmado. É um
olhar profundamente embasado em equipamentos que desvelam a doença e criam
uma linguagem própria. Toda ação médica está voltada para desvendar o
diagnóstico. A própria palavra “descobrir” conduz a algo que está coberto, algo que
necessita ser trazido à luz, de modo que o ponto de inflexão epistemológico da
medicina esbaseado em conduzir o olhar médico ao ponto que ordena a práxis
médica.
Ora, se o olhar da medicina estética retorna da profundeza à superfície do
corpo, muda-se todo o modo de praticar a medicina. O solo epistemológico em que
está plantada a medicina tradicional se modifica. Isso são pistas que permitem
começar entender e elaborar algumas reflexões sobre o estilo de pensamento
predominante em medicina tradicional e medicina estética, contudo, ainda são
insuficientes para as conclusões que se pretende com esse trabalho.
Para dar continuidade nessa demarcação e tematização das categorias
que singularizam o estilo de pensamento em medicina tradicional e estética e
mantendo-se sempre atentos ao confronto de ambas, importa estudar a concepção
de corpo-organismo, vida-morte e saúde-doença.
3.3 As Concepções “Corpo-Organismo”, “Vida-Morte” e “Saúde-Doença” Para
a Medicina Tradicional
O caminho investigativo adotado busca aproximar as concepções que
originaram o EP da MT. Essa aproximação iniciou pelo coletivo de pensamento
médico: instituição, professor e estudante. Pelo peso da tradição, dos saberes
médicos adquiridos e dos valores subjetivos transmitidos, tais como peculiaridades
90
específicas do docente, do estudante, da faculdade e do hospital escola, é possível
compreender o modo pelo qual é realizada a introdução de um novo pretendente ao
coletivo de pensamento médico.
Foi estudada a forma pela qual se deu o aprofundamento do olhar médico
que partiu do externo, do evidente, da superfície ao íntimo, ao profundo e interno,
originando nova linguagem de dizer o que armada de tecnologia especializada
em descobrir a lesão causadora da doença.
Mas o que é doença? Por conseguinte, o que é saúde? Saúde significará
vida e doença morte? A doença somente se aloja no corpo ou nele se origina?
Corpo e organismo são a mesma coisa para a MT? Como se originaram esses
conceitos formadores do estilo de pensamento médico? Entender a concepção de
corpo-organismo, vida-morte e saúde-doença presente no CP médico é necessário
para compreensão do EP predominante da MT.
De acordo com a epistemologia sociológica comparada fleckiana, método
adotado para investigação dos conceitos na pesquisa, é necessário entender a
evolução histórica dos conceitos desde seus fundamentos enquanto proto-ideias que
serviram como base de transformação do EP predominante na época estudada até o
conceito atual. Para isso será necessário investigar as correntes de ideias que eram
aceitas na época e o modo como elas se modificaram. O estudo dos conceitos
corpo-organismo, vida-morte e saúde-doença partirá da época do Renascimento até
os tempos atuais. Além de Fleck (1986), os principais autores pesquisados são:
Canguilhem (1977), Foucault (1980), Luz (2004) e Cutolo (2001). Todos esses
autores compartilham com Fleck (1986) uma visão sociológica da história dos
conceitos. Além disso, Cutolo (2001) desenvolveu tese baseada na epistemologia
fleckiana. Luz (2004) realizou tese baseada nos estudos de Foucault e este, por sua
vez, teve como orientador de sua tese o próprio Canguilhem. Não obstante isso,
Fleck, Canguilhem e Cutolo são médicos e Luz é socióloga investigadora de temas
relacionados à medicina.
Fleck (1986, p 18-20), vê na medicina duas particularidades que se fazem
perceptíveis na peculiaridade de suas concepções científicas frente às das outras
disciplinas científico-naturais. A primeira consiste que na medicina o conhecimento
não está dirigido à regularidade, às manifestações “normais”, mas precisamente ao
que se afasta da norma, aos estados de enfermidade do organismo, de modo que a
91
formulação de regularidades nos fenômenos da enfermidade, a delimitação de
entidades nosológicas, só é possível em um alto grau de abstração a partir da
observação de cada caso individual. Assim, as conceitualizações em medicina são
amiúde do tipo estatístico. A segunda particularidade consiste que a meta
cognoscitiva da medicina não é, primordialmente, a extensão do saber em si mesmo,
mas outra muito mais pragmática: o domínio de tais estados patológicos. As
concepções, os modelos e os princípios, ou seja, tudo o que conta para o
aclaramento teórico das observações da enfermidade, está sujeito a permanente e
imediata necessidade de êxito. De modo que, frequentemente, as afirmações
abstratas se revelam insuficientes em medicina. Estas particularidades da medicina
condicionam determinadas características do pensamento médico. As entidades
nosológicas estabelecidas são, em grande medida, fictícias, pois entre o saber dos
livros e as observações reais se abre um grande espaço. Este é o ponto em que
Fleck (1986, p 19) questiona o conceito de fato dos empiristas lógicos.
A enormidade de particularidades nos estados concretos de enfermidade
obriga a variação constante das concepções médicas. Naturalmente, o
desenvolvimento do saber médico se guia, em primeiro lugar, pelos padrões
explicativos existentes até o momento, tentando formular “subtipos” das definições
de enfermidades estabelecidas. Como prova disso, Fleck (1986) assinala o número
enorme de nomes utilizados em medicina aos quais se antepõe os prefixos para e
pseudo. Contudo, problemas do tipo novo, novos quadros de enfermidades, não
podem, devido à necessidade de êxito, à exigência de solucionar-los, serem inscritos
nas formas e pseudo-formas estabelecidas para essa enfermidade. Obrigam,
portanto, à formulação de novas definições da enfermidade. Porém, a direção que
caminha esse desenvolvimento não depende somente das novas observações
realizadas. Têm um papel muito maior fatores que, do ponto de vista lógico, seriam
considerados “imponderáveis” e que poderiam ser agrupados como
“pressuposições” intuitivas dos novos problemas e ideias. Porém, esta “intuição”
poderá ter suas raízes no desenvolvimento anterior da medicina, com que as novas
definições da enfermidade crescem a partir de seus antecessores históricos.
Entretanto, a medicina, como em outras disciplinas, também procura
estabelecer relações causais para explicar seus fenômenos. Porém, essa tentativa
provoca dificuldades maiores neste campo do que em outros, como, por exemplo, a
92
biologia. Fleck (1986) diz que uma enfermidade depende em cada momento
concreto de duas variáveis inter-relacionadas: a enfermidade em si e o organismo
afetado. Em outras palavras, a enfermidade se desenvolve com o tempo e com isso
modifica as funções vitais do organismo, e que apresentam, assim mesmo, um curso
temporal próprio e específico. Por isso, a suposição de que as relações entre as
observações dos estados de enfermidade possam ser concebidas satisfatoriamente
como desenvolvimentos unidimensionais não se sustenta, pelo menos na medicina.
Um estado de enfermidade tem que ser considerado desde distintos ângulos. Se em
outras disciplinas como, por exemplo, com o atomismo na química ou com a
energia na física é possível a formulação de um princípio que abarque a totalidade
da disciplina, na medicina não existe a possibilidade de uma consideração unitária.
A necessidade de concepções distintas dos fenômenos da enfermidade conduz à
incomensurabilidade de suas idéias teóricas. Por essas razões pode-se depreender
que nesse ponto Fleck (1986) refuta a idéia de concepção vitalista em medicina
(entendida como concepção unitária).
Fleck (1986, p 20) o pensar médico em uma tensão permanente entre
o desejo de unificação teórica, que é possível conseguir-se por meio da
abstração, e a necessidade de concretizar as afirmações, o que obriga a
multiplicidade de explicações e embasamentos opostos. O saber dico é como
uma corrente sem fim em que certas ideias metódicas e pensamentos diretrizes
acabam formando pontos de vista dominantes, porém, estas são sempre meras
concepções específicas e temporais que se transformam dinamicamente em novas
orientações.
Em resumo, o autor analisa a estrutura interna de uma disciplina.
Reconhece na práxis do investigar e explicar médicos a gênese dos critérios
específicos de cada época. Nos processos de aparição e desaparecimento destas
orientações dominantes tanto uma sucessão como uma coexistência de critérios
conceituais incomensuráveis historicamente entrelaçados.
Também Cutolo (2001, p 196) considera importante entender a
concepção do conceito saúde-doença, pois o mesmo está imbricado na questão
educacional médica: “O núcleo da questão educacional médica concentra-se na
concepção saúde/doença que a escola médica e seus integrantes docentes
possuem.”
93
Da Ros (2000, p 08) buscou na Organização Mundial de Saúde (OMS) o
conceito de saúde:
O conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), embora,
atualmente, objeto de críticas, diz que ela é o completo bem estar, físico,
mental e social, e o somente ausência de doença. As críticas são feitas
em maior número em relação ao primeiro enunciado – o completo bem
estar. Não existem dúvidas na discussão teórica atual no que diz respeito a
ser a saúde algo com dimensão física, mental e social. E é justamente por
essa abrangência de definição que se constata que saúde diz respeito, no
mínimo, a áreas tão distintas em termos de conhecimento, como a biologia
(o físico), a psicologia (o mental), e a sociologia (o social), simultaneamente.
O que poderia estar engendrado nesse conceito de completo bem estar?
A necessidade estética do sujeito encontraria aí espaço?
Luz (2004) explica que os conceitos de vida, morte, saúde e doença, tal
como são conhecidos atualmente, progrediram através dos tempos. O deslocamento
epistemológico e clínico da medicina moderna, de uma arte de curar indivíduos
doentes para uma disciplina das doenças, supõe uma passagem histórica de vários
séculos, que se inicia no Renascimento, do final do século XV ao início do século
XVI. O corpo humano, morfologicamente visto como um grande engenho, cujas
peças se encaixam ordenadamente para funcionar como uma máquina dá origem ao
mecanicismo, o qual nunca será superado pela medicina moderna: o mecanicismo
será um traço constitutivo da racionalidade médica moderna.
De acordo com Canguilhem (1977, p 74), até 1650, a concepção de vida
estava ligada ao vitalismo, o qual afirmava que a vida dependia de um princípio de
natureza espiritual ou de uma energia vital. A partir desta data, a proliferação nas
línguas latinas e saxônicas, de termos derivados de órgãos (organização,
organizado, orgânico, organismo) é indício de esforço coletivo tendente à elaboração
de nova concepção de vida: a vida como forma organizada.
Com Descartes (apud CANGUILHEM, 1977, p 75) o corpo e a natureza
foram identificados as leis do movimento e da sua conservação. Toda a arte,
inclusive a medicina, é certa forma de construção de máquinas. Ele abole as
diferenças entre organização e fabricação. Daí surge o conceito mecanicista da vida
e começa-se a comparar o homem, seu corpo, o organismo vivo a uma quina
bem montada. A identidade entre alma e vida foi negada, portanto, passou-se a
considerar possível que a mesma matéria corpórea, em certas formas de
94
organização, teria condições de mover-se ou de desenvolver-se por si. Destarte o
vitalismo perdeu seu espaço à concepção mecanicista da vida.
Não há mais motivos para duvidar de que o corpo animal seja uma máquina
hidráulico-pneumática a fogo, e que o impulso lhe seja fornecido por
explosões semelhantes a chamas, do que daqueles cuja alma é ocupada
por princípios quiméricos, tais como almas divisíveis, naturezas plásticas,
espécies intencionais, ideias operadoras, princípios hilárquicos e outros, que
nada significam se não os transformarmos em mecânicos (LEIBNIZ, 1710,
apud CANGUILHEM, 1977, p 80).
Mas, toda quina necessita a regulação. Lavoisier (apud
CANGUILHEM, 1977, p 81) foi um dos primeiros a comparar as propriedades da
máquina biológica aos efeitos de um dispositivo de estabilização e regulação
mecânicas. O recurso ao termo regulador assimila a máquina animal a um motor e
não somente a um complexo de ferramentas e maquinismos.
Segundo Vigarello (2006, p 110), esse conceito regulador da respiração e
circulação introduzido por Lavoisier repercutiu nas concepções de corpo a partir do
século XVIII até a Revolução Industrial. “Mais o peito é grande, mais os pulmões têm
extensão e capacidade, mais o ar absorvido é importante, mais a vida parece
reforçada (LAVOISIER apud VIGARELLO, 2006, p 110)”. Os pulmões se tornaram
bruscamente um “motor”, princípio de fogo e de energia, como os sucessos de
Lavoisier se empenham em demonstrar: “O aparelho da respiração é o agente do
calor animal”.
A amplitude torácica põe em foco bruscamente inquietações ou esperanças:
os alarmes se acumulam no início do século XIX sobre os peitos tísicos de
formas “muito” restritas, condenados à “dificuldade respiratória e à
sufocação”. Elas se acumulam na silhueta do velho, seu esgotamento
especifico interpretado como esgotamento respiratório: é a imagem de um
desabamento do tórax cuja “dilatação transversal” é julgada “quase nula”
nos mais velhos. Novos cálculos são feitos para determinar fraqueza: o
perímetro do peito, por exemplo, bem reduzido nas crianças das fabricas em
quem Villermé, pela primeira vez, põe um fio verificador em seus estudos de
1840. A “medição”, gesto simples que poderia existir muito tempo,
identifica bruscamente curvaturas e relevos.
Esse conceito de regulação da vida foi importante para servir de base ao
pensamento de Comte, onde regular algo significa comandar ou controlar algo.
Pensando o organismo simultaneamente como economia, Charleton (apud
CANGUILHEM, 1977 p 82), na dedicatória da sua Oeconomia Animalis compara
95
alguns aspectos do organismo a sociedade: “A ordem moral tem, como a ordem
física, os seus reguladores; de outro modo, há muito que teriam deixado de existir as
sociedades humanas, ou talvez nunca tivessem existido”. Daí duas constantes no
pensamento de Comte (1934, p 89) que utilizava muito a palavra regular e regulador
na sua concepção de vida:
1 É o exterior que regula o interior: “[...] o estado da vida supõe, pela
sua natureza, uma harmonia fundamental entre o organismo que o
comporta e o meio em que se realiza”.
2 A história humana passa pelo desenvolvimento ordenado da
existência humana. O progresso é somente o desenvolvimento da ordem.
[...] deveis conceber a sociologia como composta de duas partes essenciais:
uma estática, que constrói toda a teoria da ordem; a outra dinâmica, que
desenvolve a doutrina do progresso. Estas duas metades da sociologia se
acham profundamente ligadas entre si em virtude de um princípio geral
estabelecido pelo positivismo para religar por toda parte o estudo do
movimento ao da existência: o progresso é o desenvolvimento da ordem
grifo de Comte (COMTE, 1934, p 246-247).
Canguilhem (1977, p 117) relata que Bichat, no início do século XIX,
introduz uma importante distinção nos fenômenos vitais: o estado de saúde e o
estado de doença. Daí a existência de duas ciências distintas, a fisiologia, que se
ocupa dos fenômenos do primeiro estado e a patologia que tem como objeto os do
segundo. Para Bichat (apud CANGUILHEM, 1977, p 117-18), “saúde é a vida no
silêncio dos órgãos”. É o estado no qual as funções necessárias se realizam
insensivelmente ou com prazer. No estado de saúde não sentimos os movimentos
da vida, todas as funções se realizam no silêncio. Para ele, estamos muito bem
quando não sentimos nenhum mal. A própria dor, todavia, faz conhecer a
importância da saúde quando somos privados dela.
Esse entendimento, conforme Canguilhem (2005, p 36), se a partir de
uma concepção biologicista do corpo, concepção essa derivada do mecanicismo dos
órgãos. Essa perspectiva biologicista foi decorrente, segundo o autor, dos avanços
tecnológicos da medicina que permitiram compreender melhor a “máquinahumana
como a harmonia dos órgãos biológicos formadores do corpo. Em sua obra O
Normal e o Patológico (1980, p 135), Canguilhem relaciona os termos normal e
patológico com saúde e doença:
96
[...] se o normal não tem a rigidez de um fato coercitivo coletivo, e sim a
flexibilidade de uma norma que se transforma em sua relação com
condições individuais, é claro que o limite entre o normal e o patológico
torna-se impreciso. No entanto, isso o nos leva à continuidade de um
normal e de um patológico idênticos em essência salvo quanto às
variações quantitativas - a uma relatividade da saúde e da doença bastante
confusa para que se ignore onde termina a saúde e onde começa a doença.
Segundo Luz (2004, p 122-23), o sistema classificatório das morbidades,
conduzido pelos médicos do Renascimento e da Época Clássica, busca seu modelo,
em termos de observação (sistemática, ordenatória, empírica) e de modo de pensar
as doenças (classificatório, agindo também por analogias e metáforas de
similaridades) nas disciplinas da botânica e, depois, da história natural. Esse sistema
terá como efeito, no nível do saber, transformar a medicina num discurso disciplinar
sobre a doença. Em vez de teorizar sobre saúde, vida ou cura, questões que se
tornarão progressivamente, até o século XVIII - com a “superação” do vitalismo -
metafísicas, a medicina tematizará cada vez mais as entidades mórbidas. Os
clínicos talentosos procurarão, no leito dos doentes ou ao microscópio do século
XVIII, as evidências que apontam para esta ou aquela doença.
Patológico, segundo Ferreira (1999, p 701), é derivado do termo pathós
que significa doença. Doença, para o autor, é a denominação genérica de qualquer
desvio do estado normal. Para Canguilhem (1999, p 136-37), se o normal para um
ser vivo é viver em um meio em que flutuações e novos acontecimentos são
possíveis, pode-se dizer que o estado patológico ou anormal não é conseqüência de
ausência de qualquer norma. A doença é ainda uma norma de vida, mas uma norma
inferior, no sentido que não tolera nenhum desvio das condições em que é válida,
por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser-vivo doente está
normalizado em condições bem definidas, e perdeu a capacidade normativa, a
capacidade de instituir normas diferentes em condições diferentes. A doença é abalo
e ameaça à existência.
Por conseguinte, a definição de doença exige como ponto de partida, a
noção de ser individual. A doença surge quando o organismo é modificado
de tal modo que chega a reações catastróficas no meio que lhe é próprio.
Isso se manifesta não apenas em certos distúrbios funcionais, determinados
segundo a localização do déficit, mas de um modo muito geral; isso porque,
como acabamos de ver, um comportamento desordenado representa
sempre um comportamento mais ou menos desordenado de todo o
organismo.
97
Obtém-se, dessa forma, uma dupla objetivação: do corpo humano, que se
torna a sede das doenças, e das doenças que se tornam entidades patológicas.
Para Luz (2004, p 123-24) não é por acaso que as bases da clínica moderna são
exatamente a anatomia e a patologia. Também não é ocasional que o modelo
explicativo do adoecer tenda, na medicina moderna, cada vez mais, para a metáfora
da invasão, num contexto de batalhas sucessivas, na guerra entre as enfermidades
e o organismo humano, que tem por limite, sempre recuado, a história individual e
coletiva dos seres humanos, no espaço e no tempo. A medicina é a grande aliada do
homem nesta guerra sem fim. E aliado da medicina moderna em todas as batalhas
será, cada vez mais, o remédio. A medicina insistirá, na intervenção medicamentosa
como forma de derrotar a doença.
Assim, a observação, a descrição e classificação das doenças no corpo
humano constituem o objeto fundamental de conhecimento da medicina moderna.
Por outro lado, o conhecimento anatomopatológico dos órgãos, tecidos e sistemas
componentes do organismo humano, enquanto sede das doenças é também objeto
de conhecimento, uma vez que é neste organismo que trabalham as doenças e o
conhecimento que sobre elas se constrói. A questão epistemológica fundamental
ressaltada por Luz (2004, p 128) é que:
[...] a medicina, tornando-se uma ciência das doenças, vivendo da morte,
transforma a questão da vida e do homem vivo, embora doente numa
questão metafísica, portanto supérflua para o conhecimento. Não
considerando a questão da vida em termos teóricos do saber e da prática
clínica, a medicina aos poucos verá na observação dos indivíduos doentes,
homens vivos, uma fonte de confusão, de desconhecimento.
Essa ruptura epistemológica, segundo a autora (2004, p 131), originou a
impessoalidade da forma de tratar o doente pelos médicos. A disciplina das doenças
é, portanto, parte integrante e produtiva da racionalidade moderna. Por meio das
categorias de: doenças, entidade mórbida, corpo doente, organismo, fato patológico,
lesão, sintoma, etc., elaboradas no período clássico, a medicina instaurar-se-á como
um discurso sobre objetividades, discurso que institui a doença e o corpo como
temas de enunciados positivos, científicos. Por outro lado, excluirá como questões
positivamente tematizáveis a vida, a saúde, a cura. A saúde passará a ser vista não
como afirmação da vida, mas como ausência de uma patologia. A “cura” será
98
substituída pela cessação de sintomas, sobretudo dos sintomas principais, ou
“chaves” de uma doença. É assim, da eliminação da doença no corpo dos
indivíduos, que nasce a saúde da medicina moderna.
Por outro lado, no que tange a medicina alavancar reformas sociais, Luz
(2004, p 135) objeta dizendo que:
Certamente, as propostas médicas sociais mais radicais, que implicam
transformação das relações entre a sociedade e os indivíduos, ou a
natureza, ou as coisas materiais nos seus fundamentos sociais, políticos,
econômicos e institucionais, ficam sem resposta, ou são derrotadas, no
confronto com a racionalidade da ciência das doenças. Tanto suas
concepções como suas propostas políticas são consideradas, nos debates
acadêmicos e nas publicações científicas, como preocupações externas à
razão médica, fora da esfera de competência e dos objetivos da medicina.
Para o núcleo central e dominante da racionalidade da disciplina das
doenças, a medicina tem por objeto o conhecimento, e por objetivo o
combate das doenças, individuais ou coletivas, e o a reforma da
sociedade.
Atualmente, Luz (2004, p 131) afirma que o conceito de saúde passou a
ser visto na medicina moderna não como afirmação da vida, mas como ausência de
uma patologia. Mas, em que consiste para as ciências biológicas um ser vivo? Para
a biologia (e, por conseguinte, para a medicina moderna) o conceito atual de ser vivo
compreende toda organização que possua em seu interior a presença da molécula
de ácido desoxirribonucléico. Assim, importa entender como se chegou até esse
conceito.
Desde a antigüidade os fenômenos da vida têm sido caracterizados com
base em sua capacidade de replicação. Menegotto (1982, p 08), Doutor em Biologia
da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, diz que, em 1963, Francis Crick,
cientista que descobriu a estrutura do ácido desoxirribonucléico (DNA), afirmou que
as duas propriedades fundamentais da matéria viva o: complexidade e seleção
natural. Para ele, o ser vivo é sempre muito complexo. Durante a evolução da terra o
ambiente sofreu grandes mudanças. O ser vivo submetido a estas mudanças
poderia ou não adaptar-se a elas. Se todos os seres vivos fossem iguais, uma
mudança nociva poderia afetar a todos, todavia, se fossem diferentes, com diferente
capacidade de adaptação, alguns poderiam resistir, evoluindo assim a vida. Desta
maneira, a seleção feita pela natureza (seleção natural) permitiu a evolução dos
seres vivos. Ao nível molecular, para que ocorra esta seleção natural, é preciso:
replicação o ser complexo originar mais seres complexos; mutação os novos
99
seres complexos serem um pouco diferentes; versatilidade os seres complexos e
diferentes devem ser capazes de se adaptarem ao meio em que vivem.
Para o estudo da evolução histórica desse conceito, Menegotto (1982, p
09), descreve como se deu a história do mesmo desde o século XVIII aos tempos
atuais. Segundo o autor, no século XVIII, se observava em plantas e animais, ao
microscópio, pequenas estruturas semelhantes, em forma de vesículas ou esferas,
que foram denominadas células.
Em 1838, os pesquisadores Schleiden e Schwann, reafirmam a ideia de
constituição celular dos seres vivos (teoria celular). A observação de seres
vivos como bactérias, traz novos conhecimentos, pois estas bactérias não
apresentam estrutura celular típica. Em 1861, Schultz e Huxley lançam a
ideia de que a célula seria constituída de uma substância chamada
protoplasma. Hertwig, em 1892, afirma que ser vivo era todo aquele que
possuía protoplasma. Esta teoria é mais geral que a teoria celular, pois
organismos em que a estrutura celular não se manifesta claramente, sendo,
porém, constituídos de protoplasma.
Porém, conforme o autor, essa teoria era insuficiente para englobar os
vírus no conceito de vida, pois eles não continham protoplasma, no entanto,
reproduziam-se. Por muito tempo foram dadas as mais variáveis explicações para os
vírus. Alguns os consideravam como não vivos; outros como seres de transição
entre a matéria não viva e a matéria viva. Em 1953, de acordo com Menegotto (1982
p 09), os cientistas americanos Francis Crick e James Watson descobriram a
estrutura molecular do DNA - ácido desoxirribonucléico -, uma descoberta que, na
época, segundo Crick, apenas um pequeno grupo "pensou que poderia ser
interessante". Em artigo publicado na revista Nature em 25 de abril de 1953, Crick e
Watson explicaram que o DNA tem uma complexa estrutura helicoidal que "sugere
de imediato a possibilidade de um mecanismo de cópia para o material genético". Os
cientistas descobriram então que a estrutura em dupla hélice do DNA resolvia
perfeitamente a questão da replicação dos genes, anterior a divisão celular.
Menegotto (1982, p 10) afirma que o estudo dos seres vivos revela
sempre a presença dessa substância complexa, a nucleoproteína (DNA). Essa
descoberta se revelou como a base da genética moderna e seu conhecimento é
empregado em campos tão distintos como a investigação de crimes a agricultura.
Portanto, segundo Menegotto (1982), ser vivo é todo ser que apresente em sua
constituição nucleoproteínas formadoras de DNA.
100
Relativo ao conceito morte, Ferreira (1999, p 1369) afirma que morte
significa o fim da vida. A morte distingue o ser vivo da existência bruta. Foucault
(1980, p 226) localiza na estrutura em que se articulam o espaço, a linguagem e a
morte o que se chama em suma o método anátomo-clínico a condição histórica
de uma medicina que se e que recebemos como positiva. Positiva porque a
doença se desprende da metafísica, do mal com quem, séculos, estava
aparentada, e encontra na visibilidade da morte a forma plena em que seu conteúdo
aparece em termos positivos. “Foi quando a morte se integrou epistemologicamente
à experiência médica que a doença pôde se desprender da contra natureza e tomar
corpo no corpo vivo dos indivíduos”.
Esse autor (1980, p 227) relaciona a morte à experiência da finitude do
homem, sendo essa seu limite e sua possibilidade de objeto de ciência:
É, sem dúvida, decisivo para a nossa cultura que o primeiro discurso
científico enunciado por ela sobre o indivíduo tenha tido que passar por este
momento da morte. É que o homem ocidental pôde se constituir, a seus
próprios olhos, como objeto de ciência, só se colocou no interior de sua
linguagem, e só se deu, nela e por ela, uma existência discursiva por
referência à sua própria destruição: da experiência da Desrazão nasceram
todas as psicologias e a possibilidade mesma da psicologia; da colocação
da morte no pensamento médico nasceu uma medicina que se como
ciência do indivíduo. E, de modo geral, a experiência da individualidade na
cultura moderna está talvez ligada à morte: dos cadáveres abertos de Bichat
ao homem freudiano, uma relação obstinada com a morte prescreve ao
universal sua face singular e à palavra de cada um, o poder de ser
indefinidamente ouvida; o indivíduo lhe deve um sentido que nele o se
detém. A divisão que ela traça e a finitude, cuja marca ela impõe, ligam
paradoxalmente a universalidade da linguagem à forma precária e
insubstituível do indivíduo.
Depreende-se daí, para Foucault (1980, p 228) a medicina oferecer ao
homem moderno a face obstinada e tranqüilizante de sua finitude: a saúde substitui
a salvação:
Nela, a morte é reafirmada, mas, ao mesmo tempo, conjurada: e se ela
anuncia sem trégua ao homem o limite que ele traz em si, fala-lhe também
deste mundo técnico, que é a forma armada, positiva e plena de sua
finitude. Esta experiência está ligada a um esclarecimento das formas da
finitude, de que a morte é, sem dúvida, a mais ameaçadora, mas também a
mais plena.
Talvez esteja localizada a importância filosófica da aparatologia
médica e a própria medicina moderna: a figura da morte é atenuada pela imagem
101
dos equipamentos: a morte não é mais deparada frontalmente ao homem, antes
disso, ele é hospitalizado, submetido aos aparelhos e, nesse labirinto de canos e
tubos aliviamos nossa consciência frente à morte: se nosso paciente, se nosso
familiar, se nós mesmos, estamos diante de uma Unidade de Tratamento Intensivo
(UTI), estamos diante da morte, mas uma morte técnica, racionalizada, na qual
nossa esperança está nas “mãos dos médicos” que lidam com essas quinas. Na
UTI temos aquela sensação de impotência ao entrarmos em um avião e nada
podermos fazer a não ser confiar que a racionalidade técnica do piloto e do
equipamento resulte positivamente em sucesso. A morte é sublimada pelos boletins
diários, pela reação do paciente ao tratamento, por sinais de melhoras ou pioras que
vão-nos preparando para o encontro da morte. A morte, ao acontecer, sob essas
circunstâncias, apenas desfecha algo montado. Nosso espírito estava
preparado, estava inebriado pela racionalidade cnica. Todos os rituais da
modernidade foram cumpridos, e, assim, tanto o morto, a família e a medicina,
cumpriram com seu papel esperado de cada um nos tempos atuais.
Mas, ai daquele que, subitamente, falece em casa, ou em qualquer local,
fora do hospital: “Não teve tempo de chegar ao hospital, não se pôde fazer nada”.
Lidar com a morte significa internar no hospital, entregar a outrem a nossa
responsabilidade de lidar com a morte. Pouquíssimas pessoas, apesar da facilidade
de acesso às informações ou cursos especializados, sabem fazer manobras de
primeiros-socorros, ou reanimação cardíaca, ou, até mesmo, a simples manobra de
Heimelich para engasgamentos. Ver o sangue nos assusta e nos paralisa: aquela
artéria que esguicha ao ser acidentalmente lesionada poderia, com uma simples
compressão manual, ser estancada, mas, em geral, não é isso que as pessoas
fazem: simplesmente deixam o paciente sangrando volumes preciosos e vitais,
enquanto ligam para a ambulância!
3.4 O Estilo de Pensamento na Medicina Tradicional – Síntese Recorrente
Canguilhem (1990, p 19-23) afirma que o pensamento dico oscilou, na
história da medicina, entre duas concepções: uma ontológica, outra dinâmica. A
102
primeira concepção é organicista, localizadora, mecanicista em termos de
causalidade e que, ainda hoje, é predominante apesar das oscilações históricas das
teorias dicas. É a concepção ontológica da doença. A outra concepção é
naturalista, na maioria das vezes vitalista: a concepção dinâmica supõe um equilíbrio
ou harmonia das “forças vitais” no homem, e seu desequilíbrio é a doença. A doença
não está localizada em alguma parte do homem ou fora dele, mas é desequilíbrio em
busca de um novo ponto de equilíbrio. Porém, essa última concepção não é a
predominante na racionalidade médica.
A partir do postulado ontológico da vida, e da saúde como equilíbrio das
forças vitais, fica sem espaço, na conceituação vitalista da doença, a
questão dos sintomas como expressão do patológico e a determinação do
normal como ausência de patologias. A normalidade deve ser definida pela
normatividade do ser vivo que deve ser buscada em critérios positivos de
normalidade. Entretanto, na racionalidade médica moderna, o objeto do
conhecimento é a patologia, tomada como realidade positiva, e o objetivo da
clínica é o combate e a eliminação dessa realidade. É, portanto, o vitalismo
que está deslocado diante desta racionalidade. É para ele que não há
espaço epistemológico (CANGUILHEM, 1990, p 63-66).
Com efeito, apesar de ser derrotada e superada pela ciência médica no
estilo de pensamento médico moderno, a tendência vitalista não deixou de ter
adeptos na teoria e na prática, assumindo também, por sua vez, formulações
diversas, em momentos diversos, e em campos disciplinares distintos: na
homeopatia, na acupuntura e na medicina ortomolecular.
Assim, as concepções de medicina existentes são: o mecanicista e
vitalista (esta última foi superada pela primeira) as quais foram abordadas
anteriormente. Porém, inseridos na concepção mecanicista, se pode encontrar no
trabalho de Cutolo (2001) três modelos subdivididos:
1 Para ele (2001, p 79-80), o modelo biologicista, no qual a teoria do
germe pode sacramentar a visão biológica da doença que vinha de
certa forma, sendo construída:
É inegável a contribuição dos anatomistas do século XIX. Pinto descreve a
farta literatura sobre anatomia surgida na segunda metade do século XIX,
bem como o desenvolvimento de técnicas de preparações anatômicas. A
teoria da célula desenvolvia-se com igual eficiência e, ainda em 1839,
Schleiden (1810-1882) e Schwann (1804-1881) consideraram o corpo como
uma colônia de células. A fisiologia desenvolvida por Claude Bernard (1813-
1878) trouxe à luz a noção de que as atividades processadas no organismo
ocorriam mediante um equilíbrio complexo de reações químicas. Os
103
médicos estavam recém descobrindo os laboratórios e os mesmos tomavam
cada vez mais lugar no campo da medicina. Microscópios tornaram-se
fortes armas médicas. “Para ser fisiologista, se deve viver no laboratório”.
(BERNARD apud PINTO, 1986, p 156). As conseqüências desta nova
maneira de ver e entender a doença puderam ser sentidos profundamente
na prática médica e na educação médica.
2 O modelo higienista é apresentado por Cutolo (2001, p 71) da
seguinte forma:
E é dentro desta noção que surge a Higiene Pública, abrangendo controle
das condições físicas e materiais do meio capaz de interferir na saúde e na
doença. O campo da Higiene Pública restringe-se às condições fatoriais
(multifatoriais) que envolvem o fato de adoecer, não se sustenta em bases
da estrutura econômica com repercussões sociais. O caráter de intervenção
era fortemente higienista, preventivista, entendendo saúde/doença como
possível de ser abordado com medidas locais de origem multifatorial
simples. Preocupações com a qualidade da água, com a higiene, prevenção
de acidentes, iluminação, aquecimento, ventilação, aleitamento materno,
vestuário, foram importantes e inovadores para a época; mas os propósitos
sociais da polícia médica tornaram-se ultrapassados e, até mesmo,
reacionários.
3 O modelo social que tem como princípios básicos assim sintetizados
por Cutolo (2001, p 77):
a) A saúde do povo é um objeto de inequívoca responsabilidade da
sociedade e do Estado.
b) As condições econômicas e sociais têm um efeito importante sobre a
saúde e a doença e tais relações devem ser submetidas à investigação
científica.
c) Se a sociedade tem a obrigação de proteger a saúde de seus membros e,
admitindo-se que as condições econômicas e sociais têm um efeito
importante sobre a saúde e a doença, logicamente conclui-se que devem
ser tomadas providências no sentido de promover a saúde e combater a
doença e que as medidas concernentes em tal ação devem ser tanto sociais
quanto médicas
Cutolo (2001, p 78), em relação ao conceito de medicina social, afirma
que:
O conceito de Medicina Social não está restrito ao seu aspecto genético
(relação pobreza/doença). Entende-se que doença é mediada e
determinada socialmente, com aspectos culturais, antropológicos, históricos,
políticos e econômicos. O campo da sociologia aplicada à medicina tem se
constituído e se organizado, mas conquistado pouco espaço.
104
Cutolo (2001, p 182-83), realizou investigação destes três modelos
existentes no corpo docente do curso de medicina da UFSC, categorizando-os
como:
[...] biologicista o professor superespecialista, que dá suas aulas no hospital,
que fundamenta seus conteúdos numa visão mecanicista e biológica, que
atende a demanda individual, tem uma visão fragmentada do ser humano,
enfatiza a doença e mobiliza sua atenção a práticas curativas. Caracterizei o
professor higienista-preventivista como aquele que se sustenta teoricamente
em conceitos multicasuais, trabalha com variáveis, tem uma noção
importante de meio, na nese da doença e na manutenção da saúde, e
concentra sua prática na prevenção e higiene. O professor médico-social
sustenta sua prática no entendimento da doença e saúde enquanto
processo determinado socialmente, produto da estrutura econômica e sua
atenção não é individual, mas junto a comunidades.
Após análise criteriosa destes modelos, Cutolo (2001, p 183) conclui, em
relação ao estilo de pensamento hegemônico em medicina, que:
Procurei mostrar que o biologicismo é a visão dominante, hegemônica, que
permeia os Estilos de Pensamento que seguem uma lógica que os
legitimou, o Modelo Biomédico do Relatório Flexner. Que esta concepção,
apesar de hegemônica, não é única, convive com outros estilos
caracterizados pelas concepções preventivista e médico-social. (grifo do
autor da pesquisa)
Até esse momento, apoiados no pensamento de Fleck (1986), Lima-
Gonçalves (2002), Cutolo (2001), Luz (2004), Foucault (1980), e Canguilhem (1977,
1990, 2005), estudou-se a elaboração da categoria EP da MT. Empreendeu-se essa
trajetória por meio da busca das noções formadoras desse conceito.
Desde o Renascimento, o pensamento médico oscilou, na história da
medicina, entre duas concepções: a mecanicista, concepção ontológica da doença
que é ainda hoje predominante e que foi criada por Descartes, o qual comparou o
funcionamento do organismo a uma máquina; e a naturalista, na maioria das vezes
vitalista: concepção dinâmica que supõe um equilíbrio ou harmonia das “forças
vitais” no homem. (CANGUILHEM, 1990, p 19-23).
Essa visão mecanicista cartesiana, segundo Luz (2004, p 16, 120-121),
foi aprimorada por Comte no desenvolvimento de sua filosofia social positiva. Ele
relacionou a normalidade como estado de evolução e ordem e a anormalidade como
patologias e desvios. O conceito de regulação da vida significou ao pensamento
comtiano, comandar ou controlar algo. Este modelo mecanicista ainda não foi
105
superado até hoje pela medicina moderna; é traço constitutivo da racionalidade
médica moderna.
Cutolo (2001, p 183) encontrou três subdivisões no modelo mecanicista: a
biologicista, a higienista e a social. Em sua investigação ele concluiu que o
biologicismo é a visão dominante, hegemônica, que predomina no EP da MT.
Porém, essa forma de saber, esse EP mecanicista (biologicista) se apresenta de
forma peculiar em um coletivo de pensamento médico que se isola e está isolado
das outras áreas dos saberes. É um estilo de pensamento que, conforme Lima-
Gonçalves (2002, p 236) circula em forma de coerção em:
a) Um estudante emocionalmente sensibilizado;
b) Um professor com pobre formação didática – pedagógica;
c) Uma instituição fortemente carregada por elementos da tradição.
É no peso da formação, na carga da tradição e na repercussão da
sucessão do conhecer, que a instituição de ensino médico cumpre papel de primeira
grandeza na constelação do saber médico. É na faculdade, no final de sua
adolescência, que o estudante de medicina, após longo e exaustivo exame
classificatório, começa a lidar com volumosa quantidade de conhecimentos médicos,
relacionar-se com pacientes, com os professores e com a comunidade. Ele é
submetido a um EP médico que não permite juízo crítico diante da imensa
quantidade de tarefas a serem cumpridas. Os professores, segundo Lima Gonçalves
(2002, p 236), não obstante seus anseios por reconhecimento possuem formação
técnica especifica, porém despreparo pedagógico. A eles cabe a tarefa de construir
valores éticos, ao mesmo tempo de oferecer aos estudantes os conhecimentos e
técnicas necessárias à formação médica autônoma e inteligente. Diante de tudo
isso, o estudante, assim como o professor, aparta-se dos outros cursos impedindo,
dessa maneira, a inter-relação dos saberes
23
constituindo-se ilha isolada da vida
universitária.
Dentro desse EP o estudante de medicina equipa, aparelha e orienta seu
olhar médico para descobrir a doença no interior dos tecidos. Esse olhar está
interessado no desvelamento da intimidade da doença. Ao lidar com os conceitos de
saúde-doença e vida-morte, o estudante de medicina, o corpo apenas como sede
23
Inter-relação dos saberes compreendida conforme Silva (1999).
106
da doença, de modo que se preocupa apenas com ela, esquecendo o humanismo,
as queixas subjetivas e passando a tratar o paciente de forma impessoal.
O olhar médico orientado espreocupado em dirigir-se às profundezas
do ser para, no nível celular, encontrar o diagnóstico da doença. Esse olhar
médico se arma a cada dia com mais e mais tecnologia que permita enxergar mais
profundamente e que revele à superfície, a doença escondida nos recônditos
internos. Nada poderá interferir nesse olhar médico que se dirige às entranhas dos
órgãos e tecidos, já que, uma vez treinado para diagnosticar desordens orgânicas do
paciente, não tolerará que algo interfira nesse ato.
O EP médico adquirido na formação médica em forma de coerção do
pensamento impede a capacidade crítica do estudante de questionar o
conhecimento dado. De sorte que, após adquirir o EP mecanicista, biologicista e
homogêneo, o médico tem dificuldade de enfrentar o heterogêneo. Assim, não é
difícil entender o modo conservador e tradicional, pelo qual o médico mantém sua
conduta, de modo que a manifestação estética da forma corporal, o sentimento de
querer atingir um bem-estar individual, ou a tentativa de pertencer a um grupo social,
pela posse de traços e contornos corporais condizentes com os modelos e padrões
existentes, são questões consideradas secundárias no EP da MT, pois não
caracterizam manifestação de doença. A importância dada ao corpo do paciente
pela MT é somente aquela que localiza neste o sítio da doença a ser tratada.
O EP formado na graduação médica perdura pela vida profissional do
médico: ele constitui-se em EP que está apoiado em verdades empíricas,
demonstráveis, evidentes e quantificáveis, em detrimento das manifestações
subjetivas do paciente que o podem ser ponderadas nem medidas no EP
dominante. Contudo, isso não significa que não sejam objetivas e passíveis de
conhecimento.
Em síntese, pelo caminho teórico embasado, fundamentalmente, nas
ideias destes pensadores, percebe-se que o EP predominante na medicina é
carregado de tradição e autoridade, característicos de um EP encontrado de forma
semelhante na religião e na formação militar. Os dados levantados apontam para um
EP mecanicista (de concepção biologicista), que concebe o organismo como
máquina em funcionamento constituída por agregado de células que obedecem a
uma ordem dentro de uma normalidade. A doença é manifestação de desvio da
107
normalidade e constitui ameaça a ser combatida. Assim como a doença é vista como
ameaça, as ideias que não concordam com esse EP (por exemplo, o vitalismo)
também são tratadas como desvios da normalidade, impedidoras do progresso e,
portanto, passíveis de repressão.
Porém, é preciso considerar que esse EP da MT é que permitiu à
medicina ser uma das instituições mais confiáveis pela sociedade, à frente da
política, religião e poder judiciário. O Código de Ética Médica tem, em seus
princípios fundamentais, sua atenção voltada, quase que exclusivamente, à defesa
da saúde do paciente:
Art. 1º. A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser
humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de
qualquer natureza.
Art. 2º. O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser
humano, em beneficio da qual deverá agir com o máximo de zelo e o
melhor de sua capacidade profissional (CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA
– CFM, 2006).
As Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Medicina instituídas
pelo Conselho Nacional de Educação do MEC em 2001 apontam em seu artigo 5º.
Item X que a formação do médico tem por objetivo dotar o profissional dos
conhecimentos requeridos para o exercício de várias competências, dentre elas
exercer a medicina utilizando procedimentos diagnósticos e terapêuticos com base
em evidências científicas e utilizar adequadamente recursos semiológicos e
terapêuticos validados cientificamente, contemporâneos, hierarquizados para
atenção integral a saúde. Essa postura de formação médica privilegia a concepção
biologicista dos problemas médicos confirmando os achados dos autores utilizados
nessa pesquisa.
Por meio desse exercício teórico, foi possível visualizar vários elementos
que indicam uma postura médico-pedagógico intrínseca, que é demonstrada no EP
predominante de forma conservadora. De modo que é possível encontrar razões
para acreditar que a medicina é uma instituição que mantém seu EP relativamente
inalterado ao longo dos tempos e que parece se mostrar intolerante, de certo modo,
a novas ideias contrárias a esse estilo, como pode ser o caso da medicina estética.
Para isso, importa delimitar o estilo de pensamento predominante no coletivo de
108
pensamento dos médicos que praticam medicina estética. Esse será o objetivo do
próximo capítulo.
CAPÍTULO IV
O ESTILO DE PENSAMENTO DA MEDICINA ESTÉTICA
Em continuidade ao estudo, passa-se agora às interrogações sobre o
estilo de pensamento presente na medicina estética. Inicia-se a tematização, de
modo especial, pela noção da medicina estética como produto histórico dos tempos
atuais. Após essa contextualização, delinear-se-á o trinômio estudante-professor-
instituição nos cursos de formação em medicina estética. Desse modo, será possível
entender a transformação do olhar orientado inicialmente da superfície ao profundo
para o sentido inverso no estudante de medicina estética. Os conceitos saúde-
doença, vida-morte e concepção de corpo-organismo na medicina estética servirão
ao entendimento do EP da ME.
As características a serem pesquisadas para o entendimento do EP
presente na ME serão aquelas referidas por Cutolo (2001, p 58) na Tabela 1 dessa
pesquisa, que serão uma a uma analisadas. Para relembrá-las:
1 – Modo de ver, entender e conceber;
2 – Processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação;
3 – Determinado psico/sócio/histórico/culturalmente;
4 – Que leva a um corpo de conhecimentos e práticas;
5 – Compartilhado por um coletivo;
6 – Com formação específica.
Após essa análise, se estudará o conceito de constituição de objeto
fronteiriço a partir da inter-relação de saberes como forma de entendimento do
surgimento da ME a partir das disciplinas que lidam com estética corporal. Assim,
após esse percurso, será possível chegar-se ao entendimento do EP presente na
ME. Para dar início a esse caminho se faz necessário saber como as
transformações histórico-culturais ocorridas a partir do século XX modificaram os
modelos normativos da sociedade contemporânea.
110
4.1 Transformações Histórico-Culturais Precípuas ao Surgimento da Medicina
Estética
Para se lançar perguntas relativas ao objeto da pesquisa é necessário
estudar como se deu o processo de aparecimento da ME até os tempos atuais. Esse
capítulo pretende situar o contexto histórico existente que possibilitou a adoção de
novos modelos normativos da sociedade, os quais favoreceram o surgimento da ME.
O resgate histórico deste contexto permite melhor entendimento das questões
levantadas, pois, conforme Fleck (1986), ao tecer considerações sobre o significado
da história do saber, não se pode, querendo ou não, libertar-se de um passado que
com todos os seus erros segue vivo em conceitos herdados, nas formas de
conceber os problemas, nos programas de ensino formal, na vida diária, na
linguagem e nas instituições. Para o autor, o passado é muito mais perigoso ou
melhor, é perigoso quando nossos laços com ele se mantêm inconscientes ou
desconhecidos. Contudo, é necessário lembrar que a ME não é somente produto da
história, mas fruto das descobertas científicas realizadas na área, interesses
econômicos e motivações políticas de grupos interessados em seu desenvolvimento
(REIS, 2008).
Porém, para relacionar essa recorrência ao presente histórico, é
necessário atualizar esse debate contextualizando o tempo presente. Para o êxito
nessa etapa, importa alargar o limite teórico, buscando a contribuição de outros
pensadores, que permita estabelecer relações com o pensamento de Fleck (1986) e,
mais do que isso, que aproximam-se das assertivas do autor da pesquisa. Portanto,
para auxílio da elaboração das considerações sobre as transformações históricas
que modificaram os modelos normativos de beleza e de necessidades do sujeito na
atualidade embasar-se-á no pensamento de autores que tematizam,
especificamente, a questão da estética corporal atual. Por conseguinte, se deteve,
mais particularmente, na obra de dois investigadores que realizam estudos sobre as
transformações histórico-culturais contemporâneas e que repercutem na forma dos
cuidados estéticos corporais do homem. O motivo da escolha desses dois
pensadores foi porque eles fazem parte do grupo que mais se aproxima, no
entendimento do autor da pesquisa, das questões relativas ao assunto levantado
111
nesse capítulo.
O primeiro, Georges Vigarello, é historiador da estética do corpo e de
suas representações, professor na Universidade de Paris-V e diretor da Escola de
Altos Estudos em Ciências Sociais. Em História do Belo (2006), além de analisar o
conceito do belo ao longo dos séculos, Vigarello demonstra como os ideais de
perfeição se deslocaram seguindo as transformações sociais, políticas e culturais de
cada época.
O outro pesquisador estudado é Professor da Universidade de Grenoble
da França, Gilles Lipovetski. O pensamento desse filósofo pode ser encontrado em
diversos trabalhos que tem realizado, dos quais o principal intitula-se A Felicidade
Paradoxal Ensaio sobre a Sociedade de Hiperconsumo (2007), no qual aborda,
especificamente, a sociedade de consumo.
Para o entendimento da problemática do surgimento da ME, pela reduzida
quantidade de material específico a esse assunto, foi necessário, escolher um
parâmetro de pesquisa que pudesse “dar conta” da problemática abordada. Apesar
de não constituir referências preferenciais, por não serem, muitas vezes,
investigadores, optou-se como fonte teórica, por meio de pesquisa conceitual e de
entrevistas pessoais, por alguns pioneiros estrangeiros e brasileiros da história do
surgimento da Medicina Estética. A opinião de estudante recém formado em ME
também serviu como auxílio.
Para base explicativa da gênese da ME, como produto histórico atual, é
necessária a compreensão dos novos modelos normativos da subjetividade
contemporânea que não são mais vinculados a carga da tradição. Para Vigarello
(2006, p 181) e Lipovetski (2007, p 11), esses novos modelos surgiram com as
transformações histórico-culturais iniciadas no culo XX e que se estendem a
hoje. Essas transformações provocaram mudanças nos padrões estéticos corporais
atuais.
Vigarello (2006, p 112) interpreta que, a história das transformações do
que agrada e desagrada na forma física, numa determinada cultura e em uma
determinada época, foi modificada nesse período. Ele afirma que, a beleza não
cessou de destacar os indivíduos; ao mesmo tempo, sempre traduziu as oposições
entre os grupos sociais, os gêneros, as gerações. “Objeto inquieto ou glorioso do
espelho, a beleza é um reflexo de nossa sociedade”. Essa beleza muda além dos
112
próprios efeitos da moda. Ela abarca as grandes dinâmicas sociais, as rupturas
culturais, os conflitos inter e intra-subjetivos.
Conforme o autor (2006, p 195), as mudanças de cultura afetaram o
próprio gênero da beleza. O ideal muito valorizado de uma mulher-aparato, de
acolhimento ou de inatividade, não pode ser mais o mesmo, por exemplo, quando se
altera o estatuto de beleza do feminino em que se afirmam as belezas ativas, da
iniciativa, do trabalho abalam-se as velhas dependências do feminino. O gênero
não precisa mais codificar a beleza num mundo que projeta divisões de trabalhos e
estatutos. Os indícios de perfeição física enfim mudam, afastando-se,
definitivamente, do sonho da beleza absoluta prometida no limiar da Modernidade,
sobretudo do Renascimento, em que se buscavam sinais do gesto divino.
A certeza de uma fixidez estética se afasta, ainda mais, com o lugar
crescente dado ao indivíduo no mundo contemporâneo: a busca de belezas
singulares, tão marcantes como exclusivas. O embelezamento ganha
importância mais do que nunca, sobretudo, o que permite reconstruir a
aparência: a maquiagem, em que Baudelaire assinalava uma maneira de
“inventar a si próprio”. Os cuidados, os produtos, as cirurgias de hoje que
permite cada um revelar, sempre melhor, sua própria personalidade: O
artifício adquiriu uma importância central, aguçando as singularidades,
variando as possibilidades, transformando em “beleza para todos” aquilo
que, até então, parecia revelar natureza ou exceção.
No período entre guerras, as palavras reto, linha e simples se
acotovelavam nos livros de moda. Os ímpetos verticais se conjugavam nos
delineamentos do corpo. As pernas, alongadas em sílfide, deslocavam a relação dos
membros: “coxas longas e nervosas” sistematicamente associadas à linha magra”.
Indício disso é aquele que mostrava que a altura do à cintura, durante muito
tempo conservado no dobro da do tronco, nas revistas de moda do século XIX,
atingia agora o triplo desta altura nas mesmas revistas (VIGARELLO, 2006, p 144).
Para o autor (2006, p 145), essas linhas femininas não são apenas jogos
de imagens ou de palavras. Elas adquirem força entre as duas grandes guerras.
Elas prolongam uma busca: concorrer com a masculinidade no mercado de trabalho.
A mulher moderna não necessita mais possuir curvas sinuosas ou excesso de peso,
mas sim silhuetas magras, retas e ágeis para o trabalho. Uma “nova mulher” surgiria
destes perfis mais ativos.
113
[...] ilusão de ter conquistado direitos. Pelo menos o de recusar o espartilho.
Portes não mais apertados. Valisére prende os seios para que estes não
atrapalhem o serviço feminino. A linha convence, mesmo se a realidade da
libertação é evidentemente mais complexa na banalidade dos dias.
De acordo com Vigarello (2006, p 151), os índices se aguçam, as relações
se comprimem mais severos do que antes: o nível do peso não é mais apenas
equivalente ao dos centímetros acima do metro: 60 quilos por 1,60 metro; é inferior:
55 quilos ou 57 quilos para 1,60 metro. O rebaixamento do peso se acelera depois
da depressão de 1929 (Tabela 1).
Quadro 2 –
Pesos aconselhados por Votré Beauté para uma mulher de 1,60 m.
Janeiro de 1929 60
Abril de 1932 54
Agosto de 1936 53-52
Fonte: Vigarello (2006. p 151)
Importa observar a adequação da necessidade em diminuir o peso em
tempos de crise econômica. Novamente se observam que os modelos normativos da
sociedade representam menos tradução de vanguarda ou inovações autênticas de
fenômenos de distinção individual, do que necessidades impostas pelo capital. Fleck
(1986, p 147) considera isso como conexões passivas refletindo sobre o EP
predominante que age sobre forma de suave coerção. A verdade de uma época não
é mera convenção, mas, se vista sob perspectiva histórica, é aquela predominante
na história do pensamento e, “dentro de seu contexto momentâneo, é uma coerção
de pensamento marcada por um estilo”.
De sorte que, pela ótica fleckiana, não se pode dizer que os modelos
antigos de beleza eram melhores por não refletir necessidades de trabalho feminino,
ou que os atuais são de vanguarda por adotar símbolos de mulheres emancipadas e
trabalhadoras. o ideais para seu momento histórico. Importa é manter postura
crítica de discernimento das reais motivações históricas que levaram a adoção deste
ou aquele modelo.
Vigarello (2006, p 115) relata que aparecem as mulheres “socialistas,
divorcistas e literatas”. A novidade da sociedade aparece como uma consciência
mais aguda de tipos diferentes com suas regiões geográficas, suas posses, suas
114
posturas. É o inverso de uma conformidade. Maneira nova de evocar as figuras e as
belezas. “A parisiense, qualquer que seja, pertenceria a todas as classes da
sociedade. Ela introduz uma liberdade inédita, referência mais imaginada do que
realizada, sem dúvida, porém apta a agir sobre a estética e a atração”.
O autor (2006, p 149-50) diz que esse novo modelo ideal de corpo
feminino tem consequência sobre as imagens comedidas: ele mistura vigor e
magreza. Os efeitos musculares se juntam aos efeitos da carne: “o que faz a beleza
é o corpo magro e musculoso que se movimenta com leveza.”
Colette sugere uma vinca comum “molhada, grande e com jeito de rapaz,
mas fina com longos músculos discretos.” Montherlant sugere uma
mademoiselle Pleméur “transfigurada pelo porte atlético”. O corpo feminino
faz parte pela primeira vez da manifestação fisiológica da atividade: músculo
visível, elástico, exercitado, propriedade até então exclusiva do homem.
Chanel, nos anos 1930, insiste: “a beleza não é denguice”.
Contudo, para Vigarello (2006, p 195), essa busca pelos novos padrões
estéticos produz um quadro um tanto mais complexo, onde o bem-estar individual
parece consagrado como finalidade dominante, busca interminável instalada no
coração de nossa sociedade; ideal oferecido também como acessível e obrigatório
24
.
Isso torna inevitável e sempre mais aguçado, o confronto entre normas individuais e
normas coletivas, a dificuldade mais real para alguns de poder atingir a beleza
(normatizada) implicitamente adotada como modelo. Um exemplo disso é a magreza
traduzindo leveza, mobilidade, penhor de domínio e adaptabilidade. “O mal-estar
pode surgir de repente onde o bem-estar se impõe como último critério. A promessa
de beleza inventada por nosso mundo instala um desassossego secretamente
difuso”.
Vigarello (2006) enfoca, pela primeira vez, a necessidade de poder pela
estética. Na forma de domínio sobre o outro através da estética corporal, o indivíduo
destaca sua singularidade. Ao mesmo tempo, a questão da dominação gera
desconforto naqueles indivíduos que não conseguem atingir os modelos normativos
de beleza. O entendimento dessa forma de poder de sugestão pela estética
constitui, sob ótica fleckiana, “círculo exotérico” importante da ME. Podemos ampliar
24
Vigarello (2006) acusa a obrigatoriedade de uma parcela significativa da sociedade em seguir os
padrões estéticos atuais. Isso propiciou solo fecundo ao surgimento da ME.
115
esse debate perguntando se esses indivíduos “dominados” procuram buscar na ME
uma forma de resolver essa questão.
Concorde a isso, Lipovetski (2007, p 12) afirma que o final do século
passado e os primeiros anos deste século o caracterizados, no ocidente, por
importantes mudanças ideológicas, sociais e culturais, que têm como origem os
avanços científicos e tecnológicos da ciência. É a época da abrangência global de
técnicas de dominação da natureza, dominação do homem sobre o homem e
reificação do chamado “mercado”.
Para Lipovetski (2007, p 44-45), o mercado capitalista, baseado no lucro,
necessita do consumo das mercadorias e serviços oferecidos ao consumidor. Ele
necessita de operários adequados às funções requeridas. Mas o operário que
produz é o consumidor que compra. O homem do mundo globalizado parece estar
formado, educado e adaptado ao consumo ilimitado. A era do hiperconsumo
começou quando, as antigas resistências culturais caíram e quando, as culturas
locais não constituíram freios aos gostos pela novidade. Chegou o tempo em que,
as esferas da vida social e individual são de uma maneira ou de outra,
reorganizadas de acordo com os princípios da ordem consumista.
Revela-se, ao menos parcialmente, quem se é como indivíduo singular, pelo
que se compra, pelos objetos que povoam o universo pessoal e familiar,
pelos signos que se combinam “à minha maneira”. Numa época em que as
tradições, a religião, a política são menos produtoras de identidade central,
o consumo encarrega-se cada vez melhor de uma nova função identitária.
Na corrida às coisas e aos lazeres, o Homo consumericus esforça-se mais
ou menos conscientemente em dar uma resposta tangível, ainda que
superficial, à eterna pergunta: quem sou eu?
Conformadas a essas transformações, o autor (2007, p 53) nota a
evolução das demandas e dos comportamentos relacionados à saúde. Ele afirma
que, entre 1980 a 1995, as despesas médicas dobraram seu valor, fruto de maior
desenvolvimento de procedimentos e aprimoramento de técnicas, melhores
equipamentos para a medicina e uma sociedade preocupada com saúde que é
consumidora de serviços médicos.
O Homo consumericus está cada vez mais voltado para o Homo sanitas:
consultas, medicamentos, análises, tratamentos, todos esses consumos dão
lugar a um processo de aceleração que não parece ter fim. Paralelamente,
os espíritos são invadidos todos os dias um pouco mais pelos cuidados com
a saúde, os conselhos de prevenção, as informações médicas: não se
116
consomem mais apenas medicamentos, mas também transmissões, artigos
de imprensa para o grande público, páginas da Internet, obras de
divulgação, guias e enciclopédias médicas. Eis a saúde erigida como valor
primeiro e aparecendo como uma preocupação presente quase em
qualquer idade: curar as doenças não é suficiente, agora se trata de intervir
a montante para desviar-lhe o curso, prever e prevenir o futuro, mudar os
comportamentos em relação às condutas de risco, dar provas de “boa
observância”.
Lipovetski (2007, p 54) afirma que a inflação crescente das demandas dos
cuidados preventivos junto ao avanço das despesas de saúde, são fenômenos que
mostram a que ponto um estilo de pensamento baseado apenas na distinção torna-
se pouco operante, incapaz que é de explicar um consumo crescente centrado
apenas no indivíduo, em sua saúde e sua conservação
25
. Nada de lutas simbólicas e
de vantagens de distinção: apenas a vigilância higienista de si, os medos
hipocondríacos, o combate médico contra a doença e os fatores de risco. A forma
antiga das rivalidades por status é deslocada por uma angústia crescente
relacionada ao corpo e à saúde.
Diante disso, se pode lançar uma pergunta: Será que essa angústia
crescente relacionada ao corpo e à saúde, pode ser um dos motivos, pelo qual a
sociedade procurou (mais que em outras épocas) serviços e cuidados estéticos,
dentre eles, a Medicina Estética?
Para Lipovetski (2007, p 54-55), uma saúde transformada em religião
26
demanda informar-se sempre mais, consultar os profissionais, vigiar a qualidade dos
produtos, limitar os riscos, corrigir os bitos de vida, retardar os efeitos da idade,
passar por exames, fazer revisões gerais. Os comportamentos contemporâneos
mostram que, no presente, o corpo é considerado como uma matéria a ser corrigida
ou transformada soberanamente, como um objeto entregue à livre disposição do
sujeito.
As cirurgias estéticas, as procriações in vitro e o consumo de psicotrópicos,
com vista à “gestão” dos problemas existenciais, ilustram, sem nenhuma
ambigüidade, essa relação individualista com o corpo. Daí em diante, os
sujeitos querem escolher seu humor, sua forma física, sua saúde, seu lazer,
para assim, controlar sua experiência cotidiana, tornando-se senhores de
seus problemas individuais e, até, de seu envelhecimento, ao tentarem
25
Lipovetski (2007), quando afirma que o fenômeno da distinção torna-se inoperante, está se
referindo ao fato que o consumo cria nova função identitária, nivelando as classes e os grupos
sociais.
26
E, como em todas as religiões, existem os excessos e fanatismos, que também podem ser
observados em pessoas obcecadas por beleza.
117
retardar a ão do tempo. Para alcançarem seus propósitos, fazem uso de
medicações, mercadorias, serviços e cuidados profissionais, cujo consumo
não cessa de crescer.
Lipovetski (2007, p 56-57) acrescenta que junto a essa questão, observa-
se a notável expansão das cnicas destinadas não apenas a conservar e alongar a
vida, mas também a melhorar a “qualidade de vida”, a resolver, cada vez mais,
problemas de existência cotidiana, tanto dos mais jovens quanto dos mais idosos.
Sono, ansiedade, depressão, bulimia, anorexia, sexualidade, beleza, desempenhos
de todos os tipos, em todos os domínios, as ações medicamentosas e cirúrgicas são
mobilizadas de maneira crescente. Na sociedade de hiper-consumo, a solução dos
males, a busca da felicidade, se abriga na intervenção técnica, no medicamento, nos
amparos químicos e nas próteses.
Sobre esse assunto, Vigarello (2006, p 167) observa que mais capitais
são mobilizados com vistas à conservação e ao controle da vida pela tecnociência.
Sintonizado a tudo isso, prospera a ideia que a beleza se constrói pela técnica e os
materiais. Acrescenta-se a isso uma certeza no século XX: a ciência renova a
estética. Ela reforça a sensação de domínio.
27
[...] multiplicando as imagens de laboratório, as de microscópios e aparelhos
cromados. As substâncias cujos nomes revolucionam a biologia dos
primeiros decênios do século XX assombram a cosmetologia dos decênios
seguintes. O olhar sobre as glândulas endócrinas e as vitaminas
transformou o imaginário dos tegumentos, o olhar sobre a radioatividade
transformou o imaginário dos tecidos, mesmo desprezando possíveis
perigos. Os seios caídos depois de um déficit ovariano e as peles
enrugadas depois de um déficit tireoidiano renovam explicações e produtos.
Os cremes vitaminados se oporiam ao acinzentamento das peles; os
cremes hormonais, ao seu envelhecimento; minúsculas partículas
radioativas proporcionariam luminosidade e firmeza. A química industrial se
soma à mutação dos materiais: seus corantes sintéticos provocam a quase
invenção do batom de lábios e dos vernizes.
Vigarello (2006, p 169), em relação aos procedimentos estéticos, diz que
o recurso cirúrgico confirma a presença de uma ciência tornada esperança de
metamorfose: semelhante à “varinha de fadas” surge o procedimento estético. Uma
cirurgia com propósitos puramente estéticos se junta à cirurgia reparadora. A
insistência de certos anúncios sobre a “extinçãodas rugas obtidas “sem operação”
27
Novamente Vigarello (2006) relaciona o uso da estética para produzir domínio (ou poder, conforme
Foucault).
118
confirma, ao contrário do que propõem, a insensível presença nos imaginários de
uma nova magia técnica.
Assim, embasado nesta breve leitura dos pensamentos de Vigarello
(2006) e Lipovetski (2007), elaborou-se reflexões sobre as mudanças dos modelos
normativos da sociedade (dentre eles, o modelo de beleza), ocasionados pelas
transformações histórico-culturais recentes. O conceito de corpo modificou-se nesse
período. A valorização do ideal de mulher aparato, acolhedora e passiva muda para
novos valores: pragmáticos e ativos. Percebeu-se a necessidade de modificar os
modelos de beleza do corpo feminino, por modelos mais adaptados ao mercado de
trabalho. As medidas e o peso reduzem, agilidade e força muscular são valorizadas,
liberdades de movimentos e indumentária masculinizada transformam a “princesa”
do renascimento, em proletária do século XX.
Do mesmo modo, o controle da natalidade por meio dos
anticoncepcionais, associado aos ideais “feministas” de igualdade facilitou o trabalho
feminino. Todas essas transformações produziram solo fecundo à necessidade de
técnicas e artifícios que adaptassem, principalmente, o corpo feminino a esse novo
modelo. Pode-se depreender daí que essa dinâmica social serviu como circulo
exotérico na medicina tradicional influenciando, por tráfego de ideias,
transformações no estilo de pensamento.
Nas revisões de literatura e análises realizadas até aqui não se identificou
dados referentes à influência da mulher contemporânea sobre o estilo de
pensamento da medicina tradicional, porém, com base nos dados levantados até
esse momento, pode-se depreender que o médico da segunda metade do século XX
não mais podia contar com uma esposa submissa, mas exigente de cuidados que se
adequassem as novas necessidades sociais. Mais mulheres têm acesso às
faculdades de medicina e, com elas, novas necessidades interferem como tráfego de
ideias na graduação médica. É de se esperar que os pacientes encontrassem nos
consultórios médicos profissionais mulheres mais sensíveis as novas necessidades:
nas psiquiatras, o suporte psicológico para questões referentes à culpa em ficar
menos tempo com os filhos devido ao trabalho; na ginecologista, as respostas às
questões ligadas a liberdade sexual e controle da natalidade, na endocrinologista, o
emagrecimento; na dermatologista, o paciente pôde exprimir melhores anseios
ligados ao antienvelhecimento, assunto, até então, considerado fútil aos médicos
119
com formação tradicional.
A cirurgia foi uma das últimas especialidades ocupadas pelas mulheres na
medicina, área até então reservado aos homens. Dentro da cirurgia, as mulheres se
especializaram também em cirurgia plástica. Não existem estudos que mostrem se
esse fato influenciou no maior desenvolvimento da cirurgia estética dentro da cirurgia
plástica até então reparadora. Pode-se depreender que sim, se não diretamente,
pelo menos de forma indireta como círculo exotérico.
Assim, livre da religião e de valores baseados na tradição, a sociedade de
consumo é movida por necessidades materialistas. Suas causas não são baseadas
no desejo de distinção social, mas sim, conforme Lipovetski (2007) no cruzamento
de dois fatores: a) a oferta técnica e mercantil ilimitada e, b) o indivíduo com
igualdade de direitos nas sociedades democráticas. Esses dois fatores são
geradores de hiperconsumo de mercadorias e serviços que representam afirmação
do sujeito “merecedor” de objetos e serviços: autonomia, saúde, bem-estar,
diversão, beleza e demais necessidades controladas pelo mercado gerador de
necessidades e pelo consumo do indivíduo.
Em síntese, apoiado no pensamento de Vigarello (2006) e Lipovetski
(2007), viu-se que o final do século XVIII até os primeiros anos deste século
caracterizaram-se por transformações ideológicas, sociais, políticas e culturais. Uma
delas foi o aumento da demanda por trabalho feminino pela necessidade econômica.
Essas transformações modificaram os modelos normativos de beleza, porque,
conforme Vigarello (2006), esta é um reflexo de nossa sociedade. Ele explica que
tais modelos não se restringem apenas aos efeitos da moda, mas estão imbricadas
nas grandes dinâmicas sociais, nas rupturas culturais, nos conflitos inter e intra-
subjetivos. Os ideais clássicos de perfeição foram substituídos por modelos
adaptados a uma sociedade capitalista que vive mais, se comunica melhor, trabalha,
produz e é consumidora de bens e serviços.
Da mesma forma, Lipovetski (2007), entende que o capitalismo depende
do consumo ilimitado de bens. Para que o consumo prospere é mister que os bens
sejam revestidos de novidades, para permitirem a atração de maior número de
consumidores. Assim, em benefício do consumo, as barreiras culturais e da tradição
necessitaram ser rompidas, pois poderiam resistir à instalação de novidades. O
mercado de consumo passou a regular todas as camadas sociais, todas as
120
fronteiras culturais, raciais e religiosas dos povos; ele supera, a mesmo, os
conflitos individuais e coletivos, nivelando a sociedade pelo consumo de mercadorias
e serviços.
O autor complementa dizendo que o indivíduo cumpre papel importante
na sociedade capitalista, pois é denominado “consumidor”, o qual ocupa lugar de
destaque na dinâmica do consumo. Nem ideologias ou luta de classes: o proletário
do século XXI tem no seu bem-estar, individual ou familiar, sua finalidade dominante.
Essa busca de bem-estar é confundida com busca de conforto através do consumo,
ou seja, os valores próprios como auto-estima, tradições familiares são superados
pela necessidade de bens, o que gera conflitos entre normas individuais e normas
coletivas, pois nem todos conseguem ter acesso aos ideais de conforto e beleza,
instalando-se verdadeira frustração individual, por não se conseguir atingir o modelo
adotado. Nesse ponto, torna-se importante para o sujeito destacar-se, enquanto
singularidade, para superação das suas frustrações. Os recursos tecnológicos
atuais
28
oferecem possibilidades, para a grande maioria dos indivíduos atingirem
essa superação.
Finalizando, importa lembrar que a intenção dessa etapa da pesquisa é
contextualizar o momento histórico para permitir o entendimento do aparecimento da
ME. Não se pretende fazer “psicanálise” do sujeito ou adentrar por outras sendas
que não sejam o entendimento da ME para pesquisar o EP dominante. Também não
foi objetivo analisar a totalidade da obra desses autores, nem muito menos, fornecer
respostas prontas referentes a esse assunto. Ela se fez elemento importante, uma
vez que permitiu a compreensão de desdobramentos que podem ter possibilitado o
surgimento da ME. Feita essa contextualização inicial do momento histórico importa
estudar, complementarmente e de modo mais especifico, como se deu o surgimento
da ME. Ele se torna elemento importante na caracterização e entendimento do EP
predominante (determinado psico/sócio/histórico/culturalmente).
Segundo Legrand e Bartoletti (1993, p 17), a Medicina Estética surgiu nos
anos 1970 através de esforços dos médicos Jean Jacques Legrand (França), Carlo
Bartoletti (Itália) e o médico belga Michel De Lune, os quais fundaram, em 1973, a
Sociedade Francesa de Medicina Estética. Seus objetivos eram agregar em uma
28
Dentre eles os recursos tecnológicos da ME.
121
especialidade, diversos saberes relacionados a melhoramentos médicos estético-
corporais. Assim, desde a fundação, percebe-se nos objetivos da ME um caráter
multidisciplinar, pois que não se originou de especialidade única.
Nascia, então, a ideia de formação de Sociedades Nacionais de Medicina
Estética. Seu exemplo foi rapidamente seguido pela criação das Sociedades Belga,
Italiana e Espanhola de Medicina Estética. Estas entidades sentiram, desde o início,
a necessidade da adoção de normas de conduta e comportamento científico
homogêneas. Criou-se, na França, a Union Internationale de Médicine Esthétique
(UIME), a qual engloba, atualmente, diversas sociedades nacionais, tais como:
França, Bélgica, Itália, Espanha, Tunísia, Marrocos, Portugal, Luxemburgo, Suíça,
Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela, Polônia, Estados Unidos,
Rússia, Romênia, México e Kasaquistão.
O movimento encontra receptividade e espalha-se rapidamente pelo
ocidente [até chegar ao Brasil, conforme Souza (2005)], pois atendia as
necessidades estéticas formadas por uma sociedade ávida em consumir esse tipo
de cuidado em seu corpo. Uma parcela significativa de médicos passou a migrar da
sua especialidade original para a ME atraídos pela possibilidade de remuneração
mais vantajosa. No Brasil, o fenômeno representa preocupação em determinados
setores da MT, como aqueles responsáveis pelas especializações médicas -
Comissão de Especialização do CFM
29
.
Mas, afinal, o que define Medicina Estética? A obra de Legrand e
Bartoletti (1993, p 25) diz que Medicina Estética é o resultado da aplicação do
conhecimento profissional do médico na promoção e proteção da saúde, cuidados
estéticos e do bem-estar, medicina preventiva e práticas que retardem a ação do
tempo no ser humano. Essa atividade reflete interesses comuns entre um grupo
profissional especializado, a sociedade, e a indústria relacionada a esses
interesses
30
.
Na ata (denominada Libro Blanco de La Medicina Estética) da Assembléia
Geral de Constituição da Sociedade Espanhola de Medicina Estética – SEME (1997,
p 5), encontra-se a seguinte definição: “Definimos la Medicina Estética como la
práctica médico-quirúrgica que aplica las técnicas necesarias, que se especifican a
29
As razões dessa preocupação poderiam estar fundamentadas no temor da falta de profissionais em
áreas pouco atraentes sob o aspecto econômico?
30
Isso fornece pistas dos interesses envolvidos que ajudaram a promover a expansão do movimento.
122
continuación, para la restauración, mantenimiento y promoción de la estética, la
belleza y el bienestar”.
Conforme a SEME (1997, p 6-7), desde a antigüidade, com algumas
variações de épocas e países, se tem aplicado técnicas para a manutenção e
promoção da estética e beleza feminina e masculina. Em geral, e até o século XIX,
esses cuidados eram empíricos. A aplicação destes cuidados se realizou
historicamente por profissionais de distintos graus de formação. Durante os
primeiros decênios do culo XX, uma série de fatores se combinou para formar um
corpo de doutrina de conhecimentos médicos referentes ao saber e fazer relativos à
estética e beleza, fazendo com que a prática estética fosse, cada vez mais, área
especializada médica. São eles, entre outros:
1 O fato de muitas especialidades médicas tratarem afecções estéticas,
em especial dermatologia, endocrinologia, otorrinolaringologia, cirurgia
plástica, especialidades relacionadas com inestetismos mamários, etc.;
2 As cnicas relacionadas com a estética se complexificaram a tal
ponto que requisitaram conhecimentos, tanto de suas bases técnicas,
como de sua aplicação clínica, que somente podiam possuir profissionais
devidamente licenciados em medicina;
3 A elevação do nível de vida fez com que grande parte da população
solicitasse cuidados estéticos de profissionais mais qualificados;
4 O prolongamento da vida proporcionou uma base clínica importante,
ao aumentar o número de pessoas afetadas por inestetismos. Muitas
delas, com outras patologias médicas, necessitavam precauções
especiais ao aplicar cuidados estéticos;
5 A responsabilidade legal dos atos praticados, dado o grau de
tecnicismo da ME só podia ser assumido por um médico.
Para Reis (2008), a ME preenche a lacuna deixada pelos procedimentos
cirúrgicos que não atendia determinadas patologias estéticas que podiam ser
tratadas por meio de procedimentos não-cirúrgicos. Para ele, a ME surgiu como área
de interesse de várias especialidades que, de alguma forma, trabalhavam com
estética, mas que não tinham foco na ME.
123
4.2 Investigação dos Elementos Constituintes do Coletivo de Pensamento da
Medicina Estética
Conforme referido por Cutolo (2001, p 55): “a categoria Estilo de
Pensamento existe enquanto estrutura, mas é uma estrutura que possui elementos
constituintes que podem não ser específicos para todos os distintos objetos de
estudo”. Estes elementos e propriedades é que ajudam na definição do objeto.
Portanto, a definição de quais elementos ou propriedades da categoria que podem
ser utilizados para o objeto de pesquisa em questão é fator essencial para a
investigação.
Cutolo (2009 comunicação pessoal) disse ser mais adequada aos
propósitos dessa investigação, a procura por elementos indicativos que demonstrem,
na ME, características de formação de CP especializado, tais como: formação de
sociedades, congressos, simpósios, publicações, cursos de formação e demais
aspectos que caracterizem círculo de formação esotérico em torno da ME. Esses
elementos caracterizaram um estilo de pensamento compartilhado por um CP de
formação especializada, como é o caso da ME. Logo, é pela análise do CP da ME
que se poderá entender seu EP
4.2.1 – A Medicina Estética no Brasil.
Cutolo (2001, p 64) ressalta, na quarta característica ao entendimento do
EP “[...] que leva a um corpo de conhecimentos e práticas”, a importância da prática
como forma legitimadora do Estilo de Pensamento. O Estilo de Pensamento
estrutura o princípio da prática de trabalho do coletivo de pensamento. A prática da
ME pelos médicos deu-se no Brasil muito antes da chegada de cursos de formação
na área.
Com a expansão do movimento, a ME chega ao Brasil nos anos 1980,
através do médico capixaba Aloísio Farias de Souza. Em entrevista pessoal, ele
lembrou que a partir de 1984, em viagens pela Europa, participando de congressos,
o mesmo, juntamente com sua esposa (também médica), passou a se interessar por
temas de Medicina Estética, a qual era um campo novo e representava um desafio
124
para ambos. Na França, conheceu o médico Legrand, e Bartoletti na Itália.
Estimulado por eles, fundou a Sociedade Brasileira de Medicina Estética em 1987.
Em 22 de setembro de 1988, foi realizada reunião para estabelecimento dos
estatutos da nova sociedade médica, a qual teve seu ingresso na UIME, aprovado
em 1989. Naquele mesmo ano, foi realizado no Rio de Janeiro, o Congresso
Ibero-Americano de Medicina Estética, considerado então o primeiro evento da
SBME. Em 1991 ocorreu o 1º. Congresso Internacional de Medicina Estética no
Brasil com apoio da UIME, o qual foi o primeiro fora do Continente Europeu.
Com o crescimento do movimento no Brasil, a partir dos anos 1990, um
grande número de médicos de diversas especialidades passou a migrar para uma
única área: a ME. Contudo, existia dificuldade de acesso a informação médico
esteta. Segundo Reis (2008), o profissional era quase autodidata. Necessitava
buscar fora do país os conhecimentos necessários para sua formação. Na
graduação médica, Reis (2008) lembra que na disciplina de cirurgia plástica, a qual
tinha dois créditos, a ementa apresentava dez encontros, dos quais, nove foram
dedicados à cirurgia reparadora e apenas um encontro foi dedicado à estética. O
autor não recorda ter havido alguma outra aula que abordasse assuntos
relacionados à estética nas demais disciplinas em todo o seu curso de medicina.
Ao notar a necessidade de formação de novos médicos capacitados a
praticar ME, em 1997, foi criado pela SBME o Curso de Pós Graduação Lato
Sensu em Medicina Estética autorizado pelo MEC, na Faculdade Souza Marques de
Medicina, no Rio de Janeiro. Segundo Souza (2005), como havia, mais de 10
anos, dicos praticando a ME no Brasil, alguns de seus colegas foram convidados
a participar da montagem do curso que também foi criado em São Paulo, Porto
Alegre e Salvador após certo tempo, respeitando a mesma grade curricular.
Em 1998, de acordo com Ribeiro (2006), em virtude do pedido de
instalação de Curso de Pós–Graduação em ME na capital mineira ser indeferido pela
SBME, ele funda, com a ajuda de outros colegas, novo Curso de Pós Graduação em
ME e inaugura nova sociedade de ME: o Capítulo Brasileiro de Medicina e Cirurgia
Estética. Atualmente, existem essas duas sociedades de medicina estética no Brasil,
as quais são responsáveis pelos cursos de Pós Graduação da especialidade no
país.
125
Segundo Zakabi (2007, p 120), até 2007, calculava-se que havia três mil
médicos trabalhando em clínicas de estética espalhadas pelo Brasil, o dobro do que
existia cinco anos. No início da década de 1990, os profissionais que se
dedicavam aos tratamentos estéticos eram quase todos, dermatologistas ou
cirurgiões plásticos, especialidades de alguma forma voltadas a beleza. Agora, eles
representam 30% do total. Setenta por cento dos médicos que praticam ME
migraram de outras especialidades médicas. O principal motivo que levou os
médicos a procurarem a medicina estética, no entanto, foi um só: nessa área, a
remuneração é mais atraente.
De acordo com o autor (2007, p 121), a maioria dos médicos brasileiros
necessita se desdobrar em vários empregos. Cerca de 60% deles atendem
pacientes de planos de saúde, que lhes pagam entre 29 e 42 reais por consulta
realizada e 70% trabalham, pelo menos parte do tempo, em hospitais da rede
pública. Um cirurgião que cobra 5000 reais por uma cirurgia, receberá apenas 400
reais, se o mesmo procedimento for realizado através de um plano de saúde e, 115
reais se for feito no hospital público do Sistema Único de Saúde - SUS
31
.
Para Romero (2008) a ME é um mercado em plena expansão e parece
ser interessante tanto do ponto de vista profissional quanto financeiro.
Tradicionalmente, muitos médicos costumam se especializar em mais de uma área,
mas, em geral, elegem especialidades próximas ao seu campo de atuação. O
ortopedista se especializa em fisiatria; o ginecologista, em reprodução humana, e
assim por diante. O médico normalmente busca as especializações, para se tornar
um profissional mais qualificado, dentro de seu campo de atividade. Mas esse
movimento significativo de todas as especialidades para a ME, está sendo um
fenômeno ímpar (CFM, 2006).
Segundo a SBME (2006), a ME vem desempenhando seu papel na saúde
coletiva, e, apesar de não ser reconhecida como especialidade, ela não pode ser
colocada como uma área de atuação, uma vez que o profissional que nela atua
necessita possuir conhecimentos de várias disciplinas da medicina como:
dermatologia, endocrinologia, cirurgia e clínica médica.
31
Percebe-se que a oportunidade de melhores rendimentos com a ME, associada à política de má-
remuneração médica na MT, constituiu motivo de forte demanda de profissionais médicos para essa
área específica.
126
4.2.2 – O Curso de Pós-Graduação em Medicina Estética no Brasil.
Na continuidade da delimitação e entendimento do EP presente na ME,
estudar a escola onde o médico esteta estudou se faz elemento importante aos
propósitos desta pesquisa.
Para Cutolo (2001, p 61) a escola desempenha um papel fundamental na
introdução a um novo Estilo de Pensamento. É durante o treinamento que o futuro
componente de um coletivo de pensamento aprende como perceber a realidade de
acordo com seu específico Estilo de Pensamento. Fleck (1986, p 151) testemunha a
importância na formação na disposição do ver estilizado ressaltando que “toda
introdução didática é, literalmente um “conduzir-dentro” ou uma suave coerção.”
De acordo com Cutolo (2001, p 64) “o local onde o docente estudou pode,
de certa forma, dar pequenos indícios de seu Estilo de Pensamento”. Da Ros (2000)
demonstrou a importância da instituição nos desdobramentos dos Estilos de
Pensamento. É durante o curso de graduação que se escolhe que prática médica
será absorvida como atividade profissional. A escola exerce, portanto, forte
influência na opção da Residência Médica e, consequentemente, a especialidade
médica.
Diante disso, Cutolo (2001, p 65) assinala um ponto que converge para o
problema anterior. Como os Estilos de Pensamento se manifestam no momento
didático-pedagógico? De que maneira a escola médica e seus constituintes expõem
seus Estilos de Pensamento e exercem a coerção de pensamento para o ver
orientado e estilizado?
Cutolo (2001, p 61) entende que ensinar é introduzir em um Estilo de
Pensamento e aprender é entrar em um Estilo de Pensamento. A coerção de
pensamento exercida pelos professores direcionada à aquisição do conhecimento
pelo estudante, através de um olhar estilizado (o ver orientado), dá-se através de
suas práticas didáticas, ou, melhor dizendo, através do currículo em seu sentido
mais amplo. Daí, a importância do estudo da forma como a ME é ensinada nos
cursos de PG para a identificação do seu EP
Conforme Pereira (2007, p 8), o curso de Pós-Graduação em Medicina
Estética da Sociedade Brasileira de Medicina Estética tem a finalidade de ensinar,
divulgar e valorizar a ME no Brasil. É por meio do curso que o médico adquire o
127
conhecimento teórico e desenvolve a capacidade prática fundamental para atuar
nesta área. Segundo ele, é uma etapa em que “a teoria e a prática se fundem” e o
profissional se torna apto a exercer a ME de forma correta e segura.
Ele tem a oportunidade de participar de protocolos de pesquisas, conhecer
as diversas técnicas de tratamento e avaliar os diferentes equipamentos
disponíveis. Além disto, o profissional tem a possibilidade de acompanhar
as diversas etapas de um tratamento e avaliar os resultados obtidos. É uma
fase importante para desenvolver uma visão ampla da Medicina Estética e
se integrar a um grupo de médicos que têm os mesmos interesses.
De acordo com Reis (2008), o curso de s-Graduação em Medicina
Estética da SBME – Regional Sul de Porto Alegre é um curso em espelho do mesmo
curso realizado pela Fundação Educacional Souza Marques do Rio de Janeiro, ou
seja, 60% do mesmo é ministrado pelos mesmos professores daquela escola.
Segundo o autor, as diretrizes do curso o fornecidas pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. A SBME em conjunto com
a Fundação Educacional Souza Marques ministra atualmente (2009) os Cursos de
Pós-Graduação em Medicina Estética nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo,
Minas Gerais, Bahia, Paraná e Rio Grande do Sul.
Segundo o autor, o estudante ingressa por meio de processo seletivo
anual com prova de conhecimentos médicos, análise de currículo e entrevista
pessoal. O diploma de graduação médica é obrigatório para ingresso. O curso tem
duração de dois anos com 780 horas/aula divididas em parte teórica e prática. A
parte teórica é realizada em dez módulos mensais de duração de três dias cada,
com caráter full- imersion. Desse modo, são realizados, ao longo de todo o curso,
vinte encontros de três dias (sessenta dias no total) em que é ministrado o conteúdo
teórico do curso. Para a parte prática, os estudantes são divididos em grupos de dez
e participam dos ambulatórios de dermatologia estética, obesidade, celulite, gordura
localizada, escleroterapia, ambulatório de laser, procedimentos cirúrgicos
minimamente invasivos, implantes, toxina botulínica e ambulatório de triagem. São
realizados quatro módulos bi-mensais, de duração de sete dias cada, em caráter full-
imersion. Assim, ao longo do curso, o estudante participa de oito módulos de sete
dias (cinqüenta e seis dias no total) para realização da parte prática do curso. As
avaliações são teóricas e práticas. A média mínima exigida é sete.
128
Na estrutura do curso em Porto Alegre, segundo Reis (2008), o estudante
conta com biblioteca, 2 auditórios, 3 ambulatórios, sala de triagem, sala de
procedimentos, estúdio fotográfico e sala de estudos. Trinta por cento dos
professores do curso têm mestrado ou doutorado e são remunerados em cento e
vinte e cinco reais por hora-aula ministrada. De acordo com o autor, todo o curso
atende as exigências fornecidas pelo MEC para cursos de Pós-Graduação Lato
Sensu.
Relativo aos estudantes que procuram tais cursos, conforme Reis (2008),
eles eram, inicialmente, profissionais formados em outras áreas médicas, porém,
atualmente, a grande maioria são estudantes egressos diretamente da faculdade de
medicina sem especialização em outras áreas.
Os objetivos gerais do curso são:
Capacitar o estudante na compreensão do estudo clínico das principais
funções orgânicas do organismo;
Identificar os conceitos e princípios básicos em Medicina Estética;
Aprofundar o conhecimento técnico dos diversos tratamentos estéticos
em condições normais e patológicas e conhecer as suas causas e
seus mecanismos;
Correlacionar a prática da Medicina Estética como meio de promoção
da saúde e prevenção de doenças.
O currículo desenvolvido no curso de PG em ME como dito, se divide em
vinte módulos teóricos e oito módulos práticos ao longo dos dois anos do curso.
Nesses dulos são abordados dezoito temas relacionados à educação e prática
em medicina estética.
No primeiro módulo são desenvolvidas disciplinas voltadas para a história
da ME, aspectos éticos, relações com outras especialidades e treinamento
psicológico em ME. No segundo dulo são desenvolvidas disciplinas relativas à
didática no curso superior. o terceiro módulo aborda a bioestatística, etapa
importante para o desenvolvimento de pesquisas dentro da área. O quarto módulo é
inteiramente dedicado à pesquisa científica. Estudo dos conceitos, métodos e
elaboração de trabalhos científicos. São debatidos conhecimentos referentes à
elaboração de pesquisa científica em grupo. O quinto módulo é dedicado à
anestesia em ME.
129
É somente a partir do sexto módulo que o estudante tem contato com
disciplinas relativas especificamente a ME. Do sexto ao décimo sétimo módulo são
ministradas disciplinas referentes ao envelhecimento cutâneo, a obesidade,
endocrinologia estética, dermoestética, cirurgia estética, sistema veno-linfático em
ME, laser, celulite, cosmiatria, implantes, peelings, sistema pilo - sebáceo, etc.
O décimo oitavo módulo prepara o estudante para a saída do curso e seu
enfrentamento com o mercado de trabalho. São desenvolvidas disciplinas referentes
à administração e finanças de uma clínica de medicina estética. As implicações
legais e estratégias de defesas também fazem parte deste módulo. E, por último,
encerra-se o curso com noções sobre o futuro da profissão e novas perspectivas.
O décimo nono e o vigésimo módulo são módulos de avaliação do
estudante. Na verdade eles não obedecem ao critério linear apresentado no
currículo. São sempre os últimos módulos de cada ano.
O projeto pedagógico do curso de PG em ME da SBME, segundo Souza
(2005), apresenta os aspectos práticos da organização do curso, baseando-se nas
Diretrizes Curriculares do MEC, buscando uma melhoria constante da qualidade do
ensino, da pesquisa e da extensão na área.
Perguntado se, atualmente, o curso consegue “dar conta” da demanda e
das exigências do mercado, Reis (2008) acredita que sim, que o mesmo fornece
formação bastante extensa na área, mas que no futuro o modelo a ser seguido se
o de residência médica.
4.2.3 Realização de Congressos, Simpósios e Jornadas de Medicina
Estética.
Outro aspecto que, segundo Cutolo (2001, p 64) também contribui para o
esclarecimento do Estilo de Pensamento inclui a forma como o seu coletivo de
pensamento se organiza em entidades e se encontra em congressos (...
compartilhado por um coletivo). A organização em entidades associativas pode de
alguma forma, oficializar a aceitação e a cumplicidade entre os membros do coletivo
de pensamento. Além do que, existem condições mínimas no que diz respeito à
formação do recém iniciado para que ele seja aceito em sua respectiva entidade.
130
Segundo Souza (2005), a SBME realiza anualmente o Congresso
Brasileiro de Medicina Estética em junho. Cada regional da SBME realiza no mínimo
um simpósio anual. Elas são responsáveis pela organização de cursos de
atualização em determinada área estética, que são realizados conforme a
necessidade. A UIME realiza o Congresso Mundial de Medicina Estética a cada dois
anos em um de seus países membros. De modo que, no Brasil, a SBME promove
um congresso nacional e seis congressos regionais a cada ano.
Conforme Ribeiro (2006), o Capítulo Brasileiro de Medicina e Cirurgia
Estética é filiado a Associação Internacional de Medicina Estética ASIME, que
possui sede em diversos países americanos e europeus. O mesmo apresenta de
forma semelhante à SBME, congressos internacionais, nacionais e regionais durante
o ano, bem como encontros e jornadas de atualizações.
4.2.4 – Pesquisa em Medicina Estética nos Cursos de Pós-Graduação
O EP, de acordo com Cutolo (2001, p 58) leva a um corpo de
conhecimentos e práticas por seu CP que acabam legitimando-o. A presença de
pesquisa dentro de um CP constitui forte indício de EP próprio.
De acordo com Reis (2008), desde o primeiro ano o estudante da pós-
graduação é obrigado a apresentar um trabalho científico por ano, além da
monografia de conclusão. Existe apresentação de Temas Livres nos congressos
realizados, onde são apresentadas pesquisas realizadas pelos congressistas. Os
melhores Temas Livres são publicados na revista periódica da sociedade.
4.2.5 – Publicações em Medicina Estética
Atualmente encontra-se Tratados de Medicina Estética, Livros de
Técnicas em ME, Apostilas Didáticas fornecidas pelos cursos de pós-graduação,
publicações em periódicos nacionais e internacionais. A SBME publica
bimestralmente o Jornal Informativo da SBME o qual apresenta, além das noticias
próprias da SBME, um artigo técnico que aborda algum assunto científico da área. A
ASIME publica o South American Journal of Aesthetic Medicine, o qual é uma
publicação cientifica quadrimestral que aborda exclusivamente temas relacionados a
131
ME. A LMP Editora, de São Paulo, busca novos autores na área de medicina
estética e publica, a cada ano, mais livros voltados a ME. Seus últimos livros (2008)
foram Medicina e Cirurgia Estética no Consultório, Fio de Sustentação, Bioplastia e
Preenchimento e Cosmetologia.
4.2.6 – Indústria voltada para a Medicina Estética
De acordo com Cutolo (2001, p 58), a disposição para um sentir seletivo
leva a uma ação consequentemente dirigida e uma elaboração correspondente do
percebido. Teorias, modelos, métodos, técnicas, instrumentos são alguns dos
produtos e meios para a ação dirigida. De modo que a verificação da existência de
instrumentos destinados a ME também pode, de acordo com o autor, justificar a
quarta característica da definição do EP (... que leva a um corpo de conhecimentos e
práticas).
Dezenas de equipamentos estão voltados atualmente para a ME. Todos
os tipos de lasers, os quais removem pêlos, promovem rejuvenescimento, retiram
manchas e tatuagens, tratam acne, rugas, cicatrizes e varizes. Aparelhos de
carboxiterapia para celulite, estrias e flacidez, eletroestimulação russa,
videodermatoscópios, pistolas para mesoterapia, aparelhos de radiofreqüência,
termoterapia, endermologia, pressoterapia, drenagem linfática, ultrassom,
crioterapia, hidroterapia, fototerapia, cromoterapia, etc.
A indústria cosmética tem mostrado avanços consideráveis na área
cosmecêutica com o acréscimo de princípios ativos comprovados cientificamente. A
indústria farmacêutica também tem sua atenção voltada para a medicina estética
desenvolvendo substâncias preenchedoras de rugas, medicamentos
antienvelhecimento, drogas injetáveis para a queima de gordura e tratamento de
celulite, esclerose de varizes, etc.
Em cada congresso da especialidade se observa aprimoramento do
instrumental cirúrgico com confecção de cânulas para bioplastia, cânulas de
lipoaspirações com as mais diversas pontas, cânulas para introdução de fios de
sustentação facial mamária glútea, pinças cirúrgicas desenvolvidas a partir de
observações técnicas de médicos e pesquisadores que requisitam tais instrumentais
e prontamente são atendidos.
132
Em síntese, se observa como elementos constituintes de coletivo de
pensamento da ME a sua presença no Brasil, a existência de cursos de PG Lato
Senso em ME reconhecidos pelo MEC, realização de congressos, simpósios,
jornadas de atualizações de caráter internacional, nacional e regional, a realização
de pesquisas na área, a presença de publicações científicas como livros, tratados e
periódicos, bem como o interesse da indústria voltada para a área estética. Tais
elementos, segundo Cutolo (2001), expressam um saber especializado que formam
o círculo esotérico em torno da ME. É esse CP que, segundo o autor, dá sustento ao
EP da ME.
4.3 O Trinômio Instituição–Professor–Estudante de Medicina Estética
4.3.1 – A Instituição da Medicina Estética:
A medicina estética tem como instituição regulamentadora de sua prática,
as sociedades de medicina estética, uma vez que não possui, ainda,
reconhecimento como especialidade médica pelo CFM. O curso de PG em ME é a
porta de entrada para a prática da mesma. Segundo Reis (2008), ainda não existe
uma entidade normativa legalizada, por isso é difícil a regulamentação da formação.
Assim não é possível que a SBME cerceie a formação de outros cursos de
formação. O autor acredita que, no futuro, com a regulamentação, a SBME irá ser a
responsável pelos cursos e com isso, de certa maneira, ela irá impedir a formação
de cursos que não atendam os requisitos exigidos pela área. No entanto, por fazer
parte de área de atuação dica, a ME está subordinada ao CFM e aos Conselhos
Regionais de Medicina.
Todos os cursos de PG em ME são realizados em instituições privadas.
Não existem cursos em instituições públicas. Assim, os candidatos necessitam pagar
pelos mesmos. O custo médio do curso é em torno de novecentos reais mensais.
Segundo Souza (2005) e Reis (2008), as regionais da SBME que oferecem PG em
ME possuem ambulatórios que atendem a população carente sem cobrar por esses
serviços. De acordo com os autores, essa é uma maneira da ME alcançar as
133
camadas sociais que não possuem condições de pagar por esse serviço. Contudo,
apesar de não haver pagamento em dinheiro, de certa forma o serviço está sendo
pago pelo paciente ao oferecer-se como instrumento de trabalho ao estudante da
PG. O autor não encontrou nenhum tipo de atendimento assistencial em ME fora dos
cursos de PG. A ME não é paga pelo SUS.
4.3.2 O Professor de Medicina Estética:
Conforme Souza (2005), Ribeiro (2006) e Reis (2008), trinta por cento dos
professores dos cursos de PG em ME possuem mestrado ou doutorado. Em geral,
são profissionais da área que são convidados a ministrar aula teórica ou prática
acerca de determinado tema que possuem maior experiência. Todos possuem
clínica privada e não dependem das aulas ministradas para seu sustento. Recebem
(2009), em média, cento e vinte e cinco reais por hora/aula e não têm dedicação
exclusiva à docência em ME. Perguntado sobre a formação didático-pedagógica dos
professores que não possuem mestrado ou doutorado, Souza (2005) afirma que os
mesmos ministram suas aulas de forma pragmática, ou seja, baseados em sua
experiência pessoal.
Observou-se nas entrevistas realizadas e nas visitas empreendidas aos
cursos de PG certa preocupação em não vincular professores comprometidos com
algum produto comercial para evitar a promoção nas aulas ministradas aos
estudantes do determinado produto. No entanto, em congressos da especialidade o
autor não observou em nenhuma das exposições termo de não comprometimento
comercial no início das apresentações como determina o CFM, o que pode
configurar falta de isenção nas informações transmitidas em congressos.
4.3.3 O estudante de Medicina Estética:
De acordo com Gonçalves (2005), os primeiros estudantes de ME foram
os próprios pioneiros que se interessaram pelo tema e buscaram no exterior o
conhecimento necessário para a prática da ME. Reis (2008) afirma que todos
necessitavam, de certa maneira, ser autodidatas para construírem os pressupostos
básicos do saber estético. Com a instalação dos cursos de PG, ocorreu considerável
134
procura dos mesmos por médicos especialistas em outras áreas.
Após a Constituição de 1988 (universalização da saúde), Gonçalves
(2005) afirma que, a socialização da medicina descaracterizou a figura do médico,
considerado profissional liberal: “[...] Foi um baque na classe médica. Lembro-me de
um administrador de hospital que, em uma reunião com os médicos, disse: os
insatisfeitos podem sair porque, para nós, é mais fácil achar médicos para trabalhar
do que faxineiros!
De acordo com esse autor, o descontentamento da classe médica gerou
condições de possibilidade desses profissionais virem a atuar em outra área que não
a sua especialidade de origem. Nesse contexto, a ME representou alternativa para
esse propósito. De modo que, inicialmente, grande massa de médicos especialistas
procurou os cursos de PG em ME.
Outro motivo para a procura da ME, segundo o autor, foi que os
profissionais viram na ME uma forma de complementaridade de sua especialidade
original. Os ginecologistas e obstetras são os médicos que lidam diretamente com a
mulher e a ME possibilita ampliar sua atuação pós-parto. Passaram a utilizar os
conhecimentos adquiridos na ME para tratar os inestetismos ocasionados pela
gravidez, tais como estrias gravídicas, cloasmas, celulites, flacidez e gorduras
localizadas em suas pacientes. Os dermatologistas não queriam tratar apenas
dermatoses de pele. Eles passaram a oferecer ao seu paciente tratamento
antienvelhecimento cutâneo. Os cirurgiões plásticos procuraram complementar sua
técnica na ME na busca de tratamentos minimamente invasivos que a sociedade
reclama para si sem o inconveniente do afastamento do trabalho.
Uma surpresa para Gonçalves (2005), que é um dos responsáveis pela
admissão de estudantes na PG da SBME, foi uma médica patologista, professora da
USP, a qual nunca lidou com pacientes, mas sim com lâminas em laboratório,
procurar o curso de PG em ME e hoje é uma excelente dica esteta e patologista
atuante. Para o autor, dificilmente os psiquiatras que procuram a PG concluem o
curso. O autor acredita que falte aos psiquiatras a sensibilidade e delicadeza manual
necessária para executar os procedimentos estéticos. Isso gera resistências e
dificuldades para esses profissionais que não conseguem concluir o curso. A ME
exige uma prática de manuseio do paciente estranha aos psiquiatras.
135
Atualmente a procura pelos cursos de PG em ME é maior por estudantes
egressos da graduação médica sem especialização. Para Gonçalves (2005), o
direcionamento desses candidatos para a ME pode estar relacionado com o próprio
destaque da ME no cenário médico e econômico. Porém, o autor refere à
necessidade de maiores estudos para avaliar o perfil cio-cultural desses
estudantes e suas motivações para a prática da ME.
Romero (2008) é médica colombiana recéms-graduada em ME. Iniciou
a praticar ME antes de realizar o curso de PG devido seu contato com tratamentos
para gordura localizada. Indicada por colegas, a mesma realizou o curso de PG em
ME para aprimoramento e capacitação profissional. A mesma praticava medicina
geral e viu, na ME, forma de ascensão econômica. Sua expectativa em relação ao
curso de PG era ter uma base cientifica e não somente empírica. Por parte dos
professores percebeu grande conhecimento, trajetória e experiência. Essa
experiência dos professores auxiliou-a a tratar complicações e como prevení-las.
Perguntada a respeito das possíveis diferenças entre a ME e a MT,
Romero (2008) afirma que a MT não aborda temas relacionados à estética. Não se
ensina estética nos cursos de medicina. A dermatologia do curso de graduação foi
somente a dermatologia patológica. A cirurgia plástica foi predominantemente
reparadora e de grandes queimados. Segundo a entrevistada, a MT descuida muito
da parte emocional do paciente. “Uma pessoa tem que se sentir bem. Gera
depressão e baixa auto-estima sentir-se mal consigo mesmo. Não se gostar é ruim
para a pessoa. Com a ME as pessoas melhoram muito a auto-estima
32
.”
Indagada a respeito do modelo didático-pedagógico de ensino do curso
de PG por meio de módulos, Romero (2008) entende que estudar em módulos é
bom para os médicos que necessitam trabalhar enquanto realizam o curso. Contudo,
ela surpreendeu-se com a quantidade de conhecimentos ministrados e não tinha
noção da quantidade de disciplinas que eram necessárias para a prática da ME. Não
obstante isso, a carga de informações aumenta a cada ano. De sorte que a mesma
concorda que, talvez, no futuro, a ME necessite ser ensinada por meio de curso de
residência médica.
32
A crítica que se faz é a importância em relativizar a imponderabilidade do sujeito em definir sua
auto-estima e a ME como promotora desse bem estar.
136
A entrevistada conclui seu pensamento com uma denúncia: na Colômbia
existem esteticistas não médicas que injetam silicone industrial para aumento de
glúteos com conseqüências catastróficas nas pessoas que se submetem a esse tipo
de procedimento. As autoridades colombianas nada fazem a respeito, pois essas
pessoas não são médicas, não têm sua profissão regulamentada. Por isso a
necessidade dos médicos ocuparem o espaço da estética, segundo a autora.
4.4 O Olhar da Medicina Estética orientado à Superfície
Dando continuidade ao caminho que aproxima as concepções que
originaram o EP da ME segundo as categorias fleckianas, essa etapa da pesquisa
tem como objetivo estudar como se deu o deslocamento do olhar orientado do
médico esteta do profundo ao superficial.
Como não se busca respostas prontas, nem prematuras ou infundadas,
cabe aqui fazer a pergunta sob a ótica fleckiana, de forma sempre renovada, a
respeito do estilo de pensamento predominante na ME. Podem ser percebidas
algumas pistas que começam a indicar o caminho a seguir. E, sendo assim, procura-
se, conforme Fleck, orientar a linha de pesquisa norteando-a por questões relativas
à Educação, ou seja, os processos de formação médica. Para isso, seguindo esse
pensador, se está estudando o processo de formação de um novo conhecimento,
um novo saber, instalado no seio da medicina, com seus desdobramentos sobre os
processos pedagógicos do ensino médico. Coloca-se à frente, de forma sempre
evidente, o problema pedagógico central da pesquisa que é a influência do novo
estilo de pensamento da ME como fator de interferência ou não, nos discursos
formadores do EP da MT, de modo que, para dar prosseguimento a essa tarefa, o
autor da pesquisa, com base nas questões levantadas até aqui, tece algumas
considerações a respeito do deslocamento do olhar orientado do médico esteta e as
práticas derivadas com formação de linguagem própria que caracterizam EP próprio
da ME.
Cutolo (2001, p 58), em relação à primeira característica do EP (modo de
ver, entender e conceber), compreende que seja o “ver orientado” estilizado, uma
137
das condições sine qua non para o entendimento de EP A disposição para um sentir
seletivo é sistematicamente enfatizada por Fleck (1986) como básica na sustentação
de um estilo; chega, por vezes, a afirmar que a disposição para o perceber orientado
constitui seu principal componente.
Derivada da medicina tradicional e não negando a sua origem, a ME
desloca o olhar profundo, anatomopatológico, o olhar etiológico, que procura
diagnóstico de alterações e reações orgânicas ao invasor externo ou desarmonia
interna (doenças), para as repercussões superficiais. A manifestação e a implicação
do desarranjo interno, profundo, à superfície da pele. A estética, privilégio da forma,
da apresentação ao olhar, imbrica-se no modo como o médico olha o espaço do seu
objeto (da desordem interna para a manifestação externa, do oculto para o
evidente). A medicina estética é fruto dessa transformação do olhar.
Nos seis anos de academia o estudante de medicina aprende a orientar, a
formar seu olhar médico ao interior do corpo, do órgão, da célula, para lá encontrar a
doença, o distúrbio, a disfunção: o diagnóstico. Na posse do mesmo, o médico
procura a solução do diagnóstico: o tratamento. Nessa síntese – diagnóstico e
tratamento – baseia-se toda a medicina.
Pelas análises realizadas a aqui, é possível afirmar que a medicina
estética mostrou duas grandes descontinuidades na epistéme médica: aquela que
deslocou o olhar médico do superficial ao profundo, do visível ao invisível, que
buscava nas profundezas do corpo o diagnóstico. Semelhante ao descrito por
Foucault (2002, p 314-315), a ME realiza:
[...] um movimento que faz revolver a análise, reporta o visível ao invisível
para depois alçar de novo dessa secreta arquitetura em direção aos sinais
manifestos, que são dados à superfície dos corpos. Porque era preciso
apreender na profundidade do corpo as relações que ligavam os órgãos
superficiais àqueles cuja existência e forma oculta asseguravam as funções
essenciais; para voltar-se ao visível: a forma estética do indivíduo.
Com seu olhar estilizado, originalmente direcionado ao profundo, o
médico esteta necessita orientar o olhar à superfície. Mas agora, esse olhar que vê a
forma manifesta não é um olhar desinteressado ou incauto, mas sim um olhar que
conhece e perscruta o profundo e que nele (no profundo) intervém, o modifica, para
que melhor se manifeste na superfície do visível. Torna-se um olhar que tem poder
de transformação.
138
Esse deslocamento do olhar médico provoca a segunda alteração: o
médico não trata mais o diagnóstico, a doença, o distúrbio; mas passa a tratar o
indivíduo, o homem que está a sua frente. Aquele olhar profundo do passado não
levava em conta as particularidades da superfície, ou seja, a manifestação, a
apresentação e a interpretação subjetiva do paciente. Tampouco importava se o
paciente fosse branco ou negro, calvo, enrugado ou obeso: a doença tinha uma
fisiopatologia, um modo de ser e de se conduzir, que independia dessa ou daquela
particularidade na forma física do sujeito. O olhar dico estava preocupado em
diagnosticar a doença e investigava sua localização, seu espaço e sua atuação na
intimidade dos órgãos. Daí o senso comum apelidar esse olhar como o frio olhar do
médico. Agora isso não é mais possível, pois qualquer intervenção efetuada pelo
médico esteta deverá, invariavelmente, ser levada em consideração a opinião do
indivíduo, suas expectativas, seus propósitos.
Que modificações tiveram que ser efetuadas na maneira de olhar e agir
do médico esteta? Treinado para intervir de maneira prática, objetiva, com sua
ferramenta de trabalho alojada no interior do indivíduo, mas que, por um processo
de individualização e objetivação da doença, não era o próprio indivíduo, sujeito
passivo do ato médico que tornava seu próprio corpo objeto da prática médica, mas
que era distinto do sujeito. O homem sujeito tornava-se objeto do trabalho médico.
No terceiro ano, depois de longo período de estudo livresco, o estudante
de medicina se frente ao doente, em cuja intimidade ele precisa penetrar. No
quinto ano, no internato, a responsabilidade aumenta diante da necessidade de
formular hipóteses diagnósticas e propor soluções terapêuticas. Essa “apropriação”
do corpo do sujeito para tornar-se objeto não deixa de causar certo
“constrangimento” entre o sujeito médico que invade e o objeto paciente que se
deixa invadir, logo, é preciso revestir-se de uma armadura ética e impessoal para
que, em nome de uma neutralidade subjetiva do médico, possa ele trabalhar nas
profundezas do ser. Ora, esse trabalho deverá ser realizado o mais rápido possível
para que, em nome do alívio do sofrimento, o médico possa sair desse
constrangimento brevemente. Daí toda uma cultura médica voltada a resolver, tratar,
operar, curar o doente de uma vez por todas. O relacionamento médico-paciente é
sempre cordial e eventual, porque ao deparar-se com a figura do médico o paciente
sabe que sua intervenção será de certa forma, invasiva. Por isso, tanto por parte do
139
médico, como por parte do paciente, parece haver um acordo tácito que implica em
relacionamentos breves e de pronta solução.
Pode-se afirmar que, muito provavelmente, esteja a razão da procura
por grandes centros médicos que possuam os melhores e mais modernos aparelhos
de alta resolução que permitam um olhar diagnóstico profundo para solução rápida e
definitiva do problema. Também a procura por superespecialistas que, muitas vezes,
camuflados por sua qualificação técnica, agem com indiferença ao sujeito, uma vez
que sua função é agir no meio interno do paciente para que seu trabalho seja
justificado.
Com a medicina estética invertem-se todas essas relações. Todo seu
treinamento para intervir no meio interno é agora utilizado para o melhoramento da
superfície da forma. Não é mais possível objetivar uma doença profunda descolada
do sujeito, pois agora, toda intervenção será realizada na visibilidade do indivíduo e,
por conseguinte, não poderá ser efetivada sem a interferência do usuário da forma.
Modifica-se toda uma dinâmica da relação médico-paciente: o médico não é mais o
possuidor do conhecimento secreto ao leigo, pois ele age num espaço que é familiar
tanto ao especialista quanto ao leigo: o espaço visível.
Portanto, a relação travada entre médico-paciente passa a ser deslocada.
O motivo da queixa não é, na maioria das vezes, uma patologia ou enfermidade que
está molestando o paciente, mas sim, uma insatisfação estética com seu próprio
corpo que está saudável. Um médico treinado para lidar com corpos doentes, com
UTI, tubos e sondas, agora no seu consultório uma senhora preocupada com a
celulite das suas pernas. A impressão de estar ganhando dinheiro de pessoas não-
doentes é inevitável. Aquele médico que foi treinado para salvar vidas e a receber
um justo honorário por seu feito, agora necessita aprender a receber pagamento por
procedimentos que não dizem respeito a atos da saúde física conforme o que ele
havia aprendido.
Outra mudança na relação dico-paciente observada deverá ser
realizada no conceito de tempo de tratamento: todo ato médico era realizado com
regime de certa urgência, pois, afora muitas vezes haver o risco real e iminente de
vida, nas outras ocasiões eletivas sempre havia o constrangimento da invasão
médica no organismo. No campo da estética, na grande maioria das vezes, o
paciente não está preocupado com o fator tempo, ou de r termo na relação com o
140
médico. O conceito de cura não encontra mais espaço na estética porque ele o
existe de fato; somente na bagagem cultural herdada pelo dico. O conceito de
cura desloca-se para o de melhoramento.
Para Reis (2008) o que pôde ser melhorado poderá ser melhorado
novamente. Ou seja, o cliente (e não mais paciente) retorna ao consultório para
novas intervenções. A celulite jamais poderá ser curada, apenas melhorada em seu
aspecto e, essa melhora é extremamente subjetiva e dependente da perspectiva do
sujeito portador da mesma. O cliente, antes do médico, sabe que sua melhora é
temporária e que ele deverá, periodicamente, retornar para a clínica para nova
intervenção. A visão de um tratamento de beleza em que o cliente paga
semanalmente o salão de beleza para melhorar suas unhas é difícil de ser adaptado
pelo médico em seus tratamentos médico estéticos. Aquela visão de resolver
definitivamente o problema nunca deixará de existir na consciência do médico
neófito.
Esses dois fatos nortearam as práticas médico-estéticas resultando em
procedimentos clínico-cirúrgicos superficiais minimamente invasivos. Procedimentos
estéticos que permitem ao paciente não abandonar suas práticas diárias, sem
hospitalização, com custos menores, associados a um momento histórico profícuo
que atende aos interesses de uma sociedade ansiosa por cuidados estéticos que
satisfaçam seus propósitos particulares. Associe-se a isso uma classe profissional
descontente com as suas condições impostas de trabalho e se tem um campo
fecundo ao desenvolvimento da medicina estética (REIS, 2008).
Ribeiro (2006) entende que esse deslocamento do olhar provocou uma
modificação da prática médica tradicional. Ao olhar a superfície do corpo, a medicina
estética altera gradualmente a forma de operar conforme a medicina tradicional. O
binômio normal-patológico é agora relacionado ao agente agressor externo ou
interno que modifica ou altera a forma externa do organismo na sua qualidade ou
quantidade e não mais a homeostase interna do organismo.
De acordo com o autor, essa transformação encontra obstáculos à sua
instalação, pois ao apresentar uma forma de olhar, de falar e operar diferente da
tradicional encontra resistências.
141
4.5 Os Conceitos Corpo-Organismo, Saúde-Doença e Vida-Morte na Medicina
Estética
Será que o deslocamento do olhar orientado do médico esteta faz com
que a medicina estética lide com os conceitos corpo-organismo, saúde-doença e
vida-morte sob outra perspectiva? Para buscar tal resposta é necessário entender
como se deu a evolução histórica conceitual destas categorias.
Kleber Prado Filho é Doutor em Sociologia e professor do Departamento
de Psicologia da UFSC e trabalha com conceitos como corpo e corporeidade sob
perspectiva histórica, política, social e estética do sujeito. Publicou trabalho intitulado
O Corpo Problematizado de uma Perspectiva Histórica-Política (2008) o qual serviu
como referencial teórico para a caracterização do conceito corpo-organismo da
sociedade contemporânea, pois sua visão da relação estética do sujeito com seu
corpo se fez elemento importante aos propósitos desta pesquisa. Para o estudo das
categorias saúde-doença e vida na medicina estética utilizou-se como fonte teórica o
pensamento de Foucault (1984), Carvalho (1995), Mendes (2008) e as entrevistas
realizadas com os médicos estetas Aloísio Farias de Souza (2005), Pierre Fournier
(2006) e Telmo Morsch dos Reis (2008). Para o estudo da estética da morte utilizou-
se a obra de Torres (1979), A Estética na Medicina. Ele é médico membro da
Academia Nacional de Medicina e realiza estudos filosóficos sobre temas
relacionados à estética médica fundamentando-se em autores clássicos.
Para Prado Filho (2008, p 01), o corpo objeto tradicional das modernas
ciências médicas é o corpo biológico, natural, sede de processos fisiológicos, solo
firme, positivo, onde se instala a doença; entretanto, em termos sociais, ocorre certa
estetização da qual ele tem sido alvo contemporaneamente. Tomando-se a medicina
como saber e prática milenar, nota-se que se trata, na verdade, de vários corpos e
de várias corporeidades, correlativos de "medicinas" diversas ao longo da história. O
corpo posto como objeto para o saber médico ao tempo de Hipócrates não é o
mesmo corpo dos "fluidos" e "vapores" que se coloca para a medicina medieval,
que, por sua vez, não é o mesmo da medicina moderna, na qual predomina a
concepção biológica e anatomofisiológica.
Para esse autor, um profissional médico, como sujeito histórico, tem
142
acesso a certo "corpo" entendido como objeto das suas intervenções e da
produção de saber que decorre da sua prática a partir de um conjunto histórico de
conceitos e enunciados coerentes a respeito deste volume sobre o qual trabalha, ou,
da noção de corporeidade que predomina neste tempo. Também os sujeitos
comuns, objetos dos saberes e práticas médicas, relacionam-se com seus próprios
corpos e com outros corpos a partir de uma corporeidade histórica à qual estão eles
mesmos sujeitados. Os corpos modernos encontram-se presos a uma normatividade
sustentada em argumentos científicos uma corporeidade de ordem biológica,
anatomofisiológica e sexual, além de estarem sujeitos ainda à norma relativa à
"sanidade mental".
Por outro lado, conforme Prado Filho (2008, p 02), mesmo dentro da
modernidade, que não é linear nem homogênea, se observa desníveis de
abordagem: a medicina atual muito tecnológica concebe o corpo e com ele se
relaciona de forma muito diferente de como procedia 50 ou 100 anos atrás. Para
exemplificar: as preocupações dietéticas e estéticas, que ganham ênfase nas
práticas e saberes médicos contemporâneos, dizem respeito a um corpo não
desligado de uma corporeidade completamente diferente daquele que era objeto
de intervenção médica na primeira metade do século XX. Vale lembrar que a cirurgia
estética – intervenção voltada a fins puramente estéticos – surge nos Estados
Unidos na passagem dos anos 1950 para 1960, e que se acentua no final do século
XX toda uma preocupação em torno de regulação dietética do corpo visando a mais
saúde, vida e longevidade, mas também mais beleza, juventude, prazer e
intensidade.
Assim, de acordo com o autor, como a medicina tem sua história, os
corpos também têm a sua, e no cruzamento destas duas histórias encontram-se e
por vezes rivalizam diferentes práticas e concepções correlativas de diferentes
corpos e corporeidades. Deve-se notar que a medicina do início do século XX
trabalhava com uma corporeidade mais integrada e aplicava sobre os corpos um
conjunto de práticas igualmente mais integradas do que as da medicina
contemporânea, que trabalha com uma corporeidade bastante fragmentada e
fragmentária. Não se trata de dizer que a medicina de 100 anos atrás fosse melhor
do que a atual, tampouco de simplesmente supor um "progresso" da especialização
médica nesta explosão das especialidades da medicina contemporânea. O culo
143
XX e esta passagem ao XXI mostram, à medida que o campo do saber médico se
diversifica, fragmenta e super-especializa, o corpo: objeto correlato de suas
intervenções concretas e das suas práticas históricas de produção de conhecimento,
o qual se fragmenta a ponto de se perguntar hoje por sua "unidade", uma vez que
este é um enunciado básico ligado a certa "independência" homeostática e
fisiológica que caracteriza a individualidade dos corpos: seus ritmos particulares,
suas taxas, necessidades, respostas e comportamentos singulares.
Para Prado Filho (2008, p 08), a modernidade, que é o tempo do capital,
valoriza economicamente os corpos, investindo-os de produtividade, porque precisa
de grandes massas de corpos aptos para o trabalho e ao mesmo tempo dóceis ao
poder. A especialização do trabalhador, sua capacitação profissional, o
aprimoramento do gesto, o aperfeiçoamento do ritmo e a formação de uma
resistência física capaz de garantir oito a doze horas diárias de produção exigem um
minucioso investimento de poder no corpo, que é realizado pela aplicação das
"disciplinas" sobre ele. A modernidade não apenas disciplina corpos individuais, ela
também produz corpos coletivos. A urbanização das cidades, a edificação do
Estado, a estruturação institucional e a formação econômico-produtiva da sociedade
e a organização e especialização do trabalho são exemplos do disciplinamento de
corpos sociais conforme uma racionalidade utilitária, capitalista.
Conforme abordado anteriormente, Vigarello (2006, p 151) analisou,
com muita propriedade, como modificaram os ideais e modelos de corpos femininos
na contemporaneidade. O ideal de mulher aparato e acolhedora foi modificado para
corpos mais esguios, com menores medidas, mais hábeis ao trabalho (Tabela 2).
Mas entre estes corpos – "organismos" – sociais que se formam na
história ocidental, um, que emerge em meados do século XVIII, interessa de maneira
especial a Prado Filho (2008, p 05) e também à medicina, à política e à economia:
trata-se do surgimento das populações como objetos de regulação e intervenção de
governo. As biopolíticas modernas estratégias e ões concretas do biopoder
objetivam uma produção da vida, da força e da potência dos corpos das populações
conforme taxas, índices, padrões, normas e estatísticas diversas, o que implica o
desenvolvimento de saberes e a formação de uma "ciência de Estado" – a estatística
e uma "medicina de Estado": a medicina social. Acontece nesse momento uma
medicalização do corpo da sociedade e dos dispositivos de poder, implicando a
144
formação de um tipo de governo que visa sempre mais aumentar, intensificar e
normalizar a saúde e a vida das populações e de cada um dos indivíduos; e é quase
desnecessário acrescentar que se acentua contemporaneamente esta
medicalização e este governo médico sobre a vida, tendo-se em conta a correlativa
acentuação de preocupações e cuidados de ordem dietética e estética, em torno de
uma produção da saúde e da beleza do corpo e da própria subjetividade ou
identidade individual.
Tratada de forma panorâmica a questão da produção política e
econômica dos corpos, Prado Filho (2008, p 10) passa ao problema da sua
produção estética, entendendo-se que, assim como se modificam historicamente as
condições concretas de produção social, política e econômica dos corpos,
modificam-se de forma igualmente histórica as condições da sua estetização. É
quase desnecessário dizer que, cada tempo tem sua própria estética e que, as
concepções e padrões estéticos mudam ao longo da história, basta notar que o
século recém-findo foi muito rico em diversidade estética, fazendo literalmente
desfilar na passarela da mídia sucessivas modas, recorrências, modismos, variados
padrões corporais, e também tecnologias, muitas delas médicas, de produção e
modelização dos corpos segundo uma estética corporal que se modifica
historicamente.
Conforme apontado pelo autor, verifica-se no final do século XX uma
intensificação de preocupações de ordem estética e dietética, mostrando a formação
de certa cultura, um ethos, um modo de vida e de relação com os outros, que
implica, correlativamente, o desenvolvimento de um modo de relação do sujeito
consigo mesmo: uma forma de relação ética e estética. Pode-se afirmar, de modo
geral, que cada sociedade tem sua própria "cultura de si", composta por modos
específicos de relação do sujeito consigo mesmo isto é o que se pode chamar de
"experiência histórica" de um sujeito concreto.
De acordo com Prado Filho (2008, p 12), considerando-se que as
relações do sujeito com o próprio corpo ao nível da estética do corpo e da própria
existência são de ordem ética, deve-se lembrar que a ética moderna, além de
racionalista e utilitarista, é profundamente individualista, e que no final do século XX
este individualismo se exacerba num narcisismo sem igual na história do Ocidente.
Mostra disso é o crescimento acelerado do número de academias de "cultura física"
145
nas sociedades urbanas contemporâneas, crescimento que beira certo "culto ao
físico", característico da "cultura de si mesmo" nestas sociedades, voltada para uma
modelização plástica do corpo atendendo a um modelo mecânico-fisiológico-
disciplinar, centrado na repetição exaustiva do movimento. Estas são condições de
possibilidade para o nascimento de um culto ao corpo na cultura ocidental, que em
sua exacerbação transforma-se no que o autor chama de "corpolatria". Este culto
contemporâneo ao corpo, que se intensifica no final do século XX, passa não
apenas pelas academias, mas também pelas dietas e regimes alimentares, por um
disciplinamento dos hábitos diários de saúde, e ainda pelos consultórios médicos e
salas de cirurgia. Articula-se deste modo todo um conjunto de cuidados dietéticos,
hábitos sistemáticos de saúde e restrições corporais diversas, a um exercício físico
mecânico, disciplinado, objetivando uma produção de músculos segundo uma
estética modelizadora, minuciosa, combinando procedimentos de produção de
saúde e práticas de produção estética. É neste domínio comum, situado nas
fronteiras da saúde com a estética, que se forma esta "ditadura estética" sob a qual
se vive hoje em dia esta obrigação contemporânea de ser bonito e saudável. Tal
exigência estetizante funciona ao nível daquilo que se no corpo, sua plástica, sua
forma e apresentação, mas também em termos daquilo que não se e faz
funcionar o corpo a sua fisiologia expressa em taxas, índices, médias e
normas
33
.
Esta corpolatria referida pelo autor implica uma ética ou um tipo de
relação consigo mesmo em que o sujeito se estetiza conforme padrões e normas
médicas, de saúde, e ainda, segundo padrões e normas estéticas, sociais; e existe
um componente de ascetismo envolvido nessas condutas: tanto na academia quanto
no campo dos cuidados dietéticos e com a saúde, a aplicação de disciplinas e
restrições multiplicada em exercícios sistemáticos acaba produzindo prazer e bem-
estar físico e psicológico, proveniente destas práticas de vigilância e controle do
próprio corpo. Portanto, esta estetização de si mesmo não se restringe a mera
produção corporal – ela contempla ainda todo um conjunto de exercícios e trabalhos
sobre si mesmo, voltados a uma estetização da própria existência, das formas de
subjetividade e dos modos de ser, implicando fazer-se bonito aos olhos dos outros,
33
Aqui se pode lançar a seguinte pergunta: Como o médico da ME lida com isso? Ele tem formação
para compreender essa “corpolatria”? Como deve ser sua educação/formação para produção de uma
outra ética?
146
fazer do seu corpo e da sua vida uma obra de arte a ser admirada. Neste sentido
pode-se caracterizar a experiência subjetiva contemporânea da qual somos todos
sujeitos como "estética da subjetividade", implicando uma "produção de si por si
mesmo" referida a padrões éticos, estéticos e morais.
Para Prado Filho (2008, p 13), algumas questões fundamentais se
colocam então ao nível das relações do sujeito consigo mesmo hoje, ou dos modos
contemporâneos de subjetivação: como intensificar e melhorar a saúde e a vida e ao
mesmo tempo a apresentação e a beleza? Tendo-se como o pano de fundo o
capitalismo, onde predomina a forma mercadoria, outra pergunta se impõe: como
valorizar o corpo e a si mesmo nesta sociedade? Do ponto de vista desta indústria e
do mercado, cabe também perguntar: que corpos se quer produzir? Para que fins?
Com que recursos? Conforme quais padrões? A que custo? Problemas bastante
atuais, em aberto, cujas respostas provocam desconforto, mas que, conforme o
autor precisam ser enfrentados, tendo em conta os limites – elásticos – de produção,
manipulação, modelagem, investimento e "fetichização" dos corpos hoje disponíveis.
Afirmou-se anteriormente que as sociedades ocidentais contemporâneas
desenvolveram toda uma tecnologia e uma maquinaria de produção de corpos
envolvendo recursos e fins diversos, e a medicina, como saber e poderosa
tecnologia de intervenção e transformação dos corpos que é não pode ficar fora
deste movimento histórico e deste promissor mercado. Por que não voltar-se para
fins estéticos? Por que não atender aos desejos estéticos dos sujeitos em relação à
produção dos seus próprios corpos e da sua felicidade? Neste campo de
problematização desenvolve-se na segunda metade do século XX a medicina
estética como disciplina voltada a uma produção estética dos corpos, situada nas
fronteiras da saúde com a estética corporal.
Prado Filho (2008, p 15) conclui lembrando que a aplicação de
tecnologias políticas, como também estéticas e médicas de produção de corpos e
subjetividades, não apenas se encontra presa às suas próprias possibilidades de
caráter cnico e científico, mas é ainda limitada por padrões éticos, históricos, de
caráter social e profissional. Portanto, trata-se de práticas poderosas que devem ser
objeto de regulação social e estão sujeitas a um reconhecimento e uma validação
147
social, para além de critérios meramente técnicos ou científicos
34
.
Em seu livro Modernidade Líquida (termo que o autor usa em lugar de
“pós-modernidade”), Zygmunt Bauman (2001, p 79) afirma que, com a efemeridade
das instituições, das tendências econômicas e dos parâmetros sociais, o único bem
verdadeiramente real e durável que o indivíduo tem em seu horizonte imediato é o
próprio corpo e isso nunca foi tão verdadeiro como nos anos 2000 em que o corpo
também é negócio, sensualmente, mas não sexualmente falando. Por extensão, o
corpo e o indivíduo são os valores dos anos 2000. A individualidade quer se afirmar
no mar descentralizado da contemporaneidade e, com o auxílio da tecnologia, cria
uma própria narrativa fragmentada da própria vida e destrói as noções estabelecidas
de intimidade e privacidade, entre esfera pública e privada. Uma geração inteira se
acostumou a uma existência virtual tão intensa quanto sua contraparte no mundo
concreto. Nesse contexto atual, a ME surge como parte desta contemporaneidade
para realizar seu papel.
Por outro lado, Fournier (2006) afirma que a saúde não é somente o
silêncio dos órgãos, ou seja, a ausência de doenças, mas um estado de bem estar
completo: físico, mental e social. Para isso, para que haja saúde, necessita haver
equilíbrio. Equilíbrio, simetria e proporção. De modo que, saúde tem a ver com
beleza. Porque beleza é equilíbrio. A beleza é harmonia entre volume e forma, ou
melhor, a beleza é equilíbrio entre o conteúdo e o continente. A beleza é um
conjunto de formas e proporções que nos prazer e admiração. Ela provoca em
nós uma emoção estética agradável aos olhos, um sentimento de admiração. Para
alguns, segundo o autor, a beleza é um fenômeno visual. A beleza é uma
combinação de qualidade, tal como forma, as proporções, a cor no visual humano ou
em outros objetos que alegram a vista. A beleza o existe por si só, ela existe na
consciência dos que a vêem. Se algo alegra a vista de uma pessoa, isto é belo para
ela. Se a mesma coisa não agrada outra pessoa, isto não é belo para esta outra
pessoa. Portanto, não é o que é belo que nos agrada, o que nos agrada é chamado
beleza.
34
Prado Filho (2008) refere-se a uma validação social da medicina estética tão importante quanto à
validação técnica médica. O que o autor talvez desconheça é justamente o contrário: a medicina
estética luta pelo seu reconhecimento como especialidade médica, pois seu reconhecimento e
validade social é realidade há bastante tempo.
148
Daí percebe-se a importância dada à forma, à manifestação do corpo ao
olhar do indivíduo e da sociedade Para o autor, o ser vivo tenta restabelecer sua
forma ao combater a morte. Os filósofos médicos e naturalistas ficaram vivamente
chocados com essa tendência do ser organizado para se restabelecer na sua forma
e para, deste modo, provar a sua unidade, a sua individualidade morfológica.
O melhoramento da superfície corporal é o objetivo de ação do médico
esteta (FOURNIER, 2006). Variadas técnicas foram desenvolvidas para despertar o
sentimento de beleza nas pessoas ao contemplar o corpo. Harmonia, proporções e
correções. Mas, segundo Fournier (2006), nada produz mais emoção do que uma
beleza que desperte o desejo de proteção. Para um adulto aparentar ser belo deverá
comportar traços ou expressões infantis. Por essa razão que as técnicas estéticas
valorizam os preenchimentos das linhas retas para dar uma aparência mais jovem.
Para esse autor, a beleza faz parte da vida, da natureza, e a medicina estética visa
atender essa demanda, não criando ilusões e sim absorvendo essa busca do
homem pela sua saúde e felicidade. Por outro lado, ele observa que a estética do
ser humano também pode ser alterada por vários fatores, configurando uma situação
também de quebra da homeostase, chamada pelos médicos estetas de patologia
estética. Esta, atualmente, consiste numa série de entidades que têm, nas suas
correções ou manejos, o objetivo primordial da ME. Assim, como exemplo da quebra
da harmonia estética humana, Fournier (2006) cita várias situações e suas
possibilidades terapêuticas:
Vinte anos - acne, obesidade, celulite, estrias, tratamento da gordura
localizada e harmonia facial. Vinte a trinta anos - celulite, gordura localizada,
manchas, cicatrizes de acne, estrias (por gravidez ou obesidade), rugas de
expressão (fronte e ''pés-de-galinha''), obesidade, micro varizes nas pernas. Trinta a
quarenta anos - celulite, rugas de expressão, rugas em torno da boca (decorrentes
do bito de fumar), aspecto ''cansado'' da pele (envelhecimento cutâneo), flacidez,
rugas, olheiras e varizes. Quarenta a sessenta anos - rugas (mesmo sem
expressão), sulcos entre o nariz e a boca e entre a boca e o queixo; flacidez da pele
da face, pescoço e corpo (braço e abdome), flacidez nas pálpebras, varizes nas
pernas, manchas nas mãos, deformidades na orelha (pelo uso de brincos pesados).
Acima de sessenta anos - flacidez e envelhecimento da pele do rosto, manchas nos
braços e mãos, rugas.
149
Para Reis (2008), o conceito doença para a medicina estética é a
inadequação estética gerada pela insatisfação estética consigo mesmo. A
insatisfação estética gera todo um mecanismo de inadequação que funciona
negativamente dentro da pessoa e de forma crescente. O indivíduo tenta resolver
seu problema de inadequação objetivamente (pela medicina estética) ou
subjetivamente (pela psiquiatria) como forma de auto-aceitação. Assim, a
longevidade aumentou muito pela medicina e pelas melhores condições de vida da
sociedade e, com ela, a saúde das pessoas. Isso fez com que os pacientes tivessem
vida muito ativa e sua fisionomia externa não condizia mais com sua condição
interna gerando insatisfação pessoal. De acordo com o autor, antigamente as
pessoas iam se aceitando como velhas, pois sua fisionomia externa condizia com
sua saúde interna. Hoje isso não é mais verdade.
Portanto, segundo Reis (2008), o “agente etiológico” da ME é a
insatisfação estética. A “doença” é o sentimento de inadequação estética causado
por esta insatisfação. Por exemplo, se um nariz defeituoso em sua forma não gerar
insatisfação ao paciente, isso não provoca necessidade de correção. O contrário é
que deve ser valorizado e corrigido: um nariz anatomicamente e funcionalmente bem
para os valores aceitos como normais, mas que está gerando uma insatisfação
estética a tal ponto de causar um sentimento de inadequação ao paciente, esse
deverá sim ser corrigido.
Por outro lado, para Foucault (2004, p 107), o conceito estético de vida
partiu desde a antiguidade de uma perspectiva mais ampla para um conceito mais
reducionista, atualmente. O conceito de saúde no cenário greco-romano, não se
estabelecia a partir de variações quantitativas, pelo que era considerado normal,
dentro de uma média estipulada a partir de mensurações. No cenário greco-romano,
a saúde era guiada pelas variações da natureza e se constituía conforme a
percepção individual positiva ou negativa dos elementos do meio. “Entre o indivíduo
e o que o envolve, supõe-se toda uma trama de interferências que fazem que tal
disposição, tal acontecimento, tal mudança nas coisas irão induzir efeitos mórbidos
no corpo; e que inversamente, tal constituição frágil do corpo será favorecida ou
desfavorecida por tal circunstância.”
De acordo com o autor (2004, p 110), variações nas estações climáticas,
nos alimentos, na forma de se exercitar, nas práticas sexuais poderiam provocar
150
desequilíbrios. Determinadas mudanças na comida, na bebida, no modo de
trabalhar, na realização de práticas corporais, nos usos dos prazeres, eram
consideradas como produtoras de determinados efeitos para a saúde de acordo com
a adequação pessoal. Essas transformações contribuíam assim, com a instauração
de uma atenção a si. Havia uma preocupação constante com o estado em que a
pessoa se encontrava e com a intensidade dos gestos que realizava ao comer, ao
beber, ao praticar exercícios físicos ou atos sexuais. A adesão a um regime
contribuía com o desenvolvimento de um viver em consonância com escolhas e
variações estabelecidas pelos cuidados com o corpo.
O regime contribuía com a reação às diversas situações ocasionadas pelas
circunstâncias de cada um, instaurando um ajuste da vida e convidando
àqueles que desejavam observar esses fatores, à formação de uma atenção
constante ao corpo. O regime direcionava-se aos exercícios físicos, aos
alimentos, às bebidas, ao sono e às relações sexuais. Diversas práticas
eram mediadas por um discurso instaurador de cuidados consigo e com os
outros. Um discurso formado por regras capazes de propiciar formas de
relação individual e coletiva. Um discurso que exacerbava a busca por uma
verdade guiada por uma estética preocupada com a vida.
Conforme Foucault (2004, p 111), no discurso do “cuidado de si” do
contexto greco-romano, as singularidades do corpo humano eram consideradas, não
de modo isolado, mas nas relações estabelecidas no seu espaço de vivência. Esse
discurso colocava a disposição uma série de auxílios, que poderiam ser utilizados
em caso de necessidade, colaborando com a constituição de uma relação
autônoma, com a elaboração de novas possibilidades de experimentar a própria
existência, com a oportunidade de dar conta da própria vida.
Após a modernidade, mudam-se os parâmetros metodológicos que
medem saúde. Segundo Mendes (2008, p 04), esses “novos” parâmetros
metodológicos contribuem para que o conceito de saúde, tido como ausência de
doença, atrele-se ao conceito reducionista de estética. Essa associação tem sido
motivo de discussões por visar estritamente à aparência através da aquisição de um
corpo idealizado pela boa forma. Nesse sentido, Mendes (2008, p 05) afirma que a
associação da saúde a estética da magreza tem sido reforçada por alguns cenários
midiáticos e contribuem com o processo de mercadorização da saúde. Esses
discursos propagam um ideal de saúde em vista do consumo de variados produtos,
utilizando como chamariz um padrão específico de estética corporal. Isso é
151
problematizado na obra de Carvalho (1995, p 121): O “mito” da atividade física e
saúde, quando o autor discute a relação entre a atividade física e a sociedade de
consumo, ressaltando que “esta é uma época ´neurotizada`pela ideia da atividade
física como saúde associada à beleza estética como o único caminho para o
sucesso, para a felicidade e para o dinheiro”.
No entanto, conceitos como saúde são trocados pela sociedade
contemporânea por ideais de aptidão. Para Bauman (2001, p 91), os dois termos
saúde e aptidão– são freqüentemente tomados como co-extensivos e usados como
sinônimos; afinal, ambos se referem a cuidados com o corpo, ao estado que se quer
que o corpo alcance e ao regime que se deve seguir para realizar essa vontade.
Tratar esses termos como sinônimos é um erro para o autor, não meramente pelos
fatos conhecidos de que nem todos os regimes de aptidão “são bons para a saúde”
e de que o que ajuda a manter a saúde não necessariamente leva à aptidão. Saúde
e aptidão pertencem a dois discursos muito diferentes e apelam preocupações muito
diferentes. Enquanto que saúde é o estado próprio e desejável do corpo e do
espírito humanos, refere-se a uma condição corporal e psíquica que permite a
satisfação das demandas do papel socialmente designado e atribuído e essas
demandas tendem a ser constantes e firmes. O estado de aptidão, ao contrário, é
tudo menos “sólido”; não pode, por sua natureza, ser fixado e circunscrito com
qualquer precisão. Estar “apto”, para Bauman (2001, p 92), significa ter um corpo
flexível, absorvente e ajustável, pronto para viver sensações ainda não testadas e
impossíveis de descrever de antemão. Se a saúde é uma condição “nem mais nem
menos”, a aptidão está sempre aberta do lado do “mais”: não se refere a qualquer
padrão particular de capacidade corporal, mas a seu (preferivelmente ilimitado)
potencial de expansão.
De sorte que nos tempos atuais confundem-se muito ideais de saúde com
estados de aptidão. Exemplo claro disso vê-se a cada instante nas academias de
ginástica. A ME necessita manter postura de vigilância para o ficar a serviço da
busca de corpos “aptos” e, muitas vezes, não saudáveis.
Por outro lado, relativo à estética da morte, a história mostra a morte
como o final de todo ser vivo. A ciência diz ser ela fenômeno corriqueiro na vida dos
tecidos de todo o ser em vida. Para Torres (1979, p 96), a retirada serena e regular
152
da vida, após intensa luta, tem alguma coisa de belo na sua programação e
execução. O autor descreve a cena a seguir:
A vida se extingue pouco a pouco, ordenadamente, apesar de ter
reconhecido sua derrota, lutando com as últimas reservas, dignamente sem
perder a compostura, em homenagem à dignidade daquilo que o homem foi
em vida. O rosto como que estampa a imagem da visão da Pálida Morte,
torna-se lívido em contraste com a cianose dos lábios e extremidades. Num
simulacro do calor da luta, brota na pele suor frio e denso. A respiração
estridulosa, borbulhante, traduzindo o esgotamento físico da luta,
intercalada de pausas cada vez maiores, como que numa procura de
recuperação de forças para continuar, daquele que já está por terra, e
finalmente a expiração, num último e longo suspiro, misto de alívio e pena.
A dissolução do tônus muscular que se sucede, imprime ao rosto beática
serenidade, o olhar parado e fixo na tradução do assombro da última
revelação ou da esperança que se esvaiu. A distensão muscular em
contraste com a tumultuosa agitação que precedeu, impressão tal de
repouso e inércia do tudo feito e acabado. Em tudo isto muito de trágico
que comove, de belo para quem entende e de sublime para quem imagina e
crê.
Para o autor (1979, p 97) a morte pode assumir aspecto de belo
grandioso quando se relaciona com o dinamismo e ação da vida vivida. É o
espetáculo da morte fecundada pela vida, a síntese da vida no momento em que se
acaba. Assim, o interesse pelo patológico também expressa o interesse pela vida.
No estudo da fisiologia ou da patologia, o fim único é o conhecimento da
manifestação vital. A beleza do patológico, para Torres (1979, p 100), não é
acessível à totalidade dos médicos. Está na proporção da cultura e conhecimento
médico e se instala numa personalidade emocionalmente equilibrada e livre de
preconceitos, características que, conforme o autor, estão presentes no médico
esteta.
O médico, unicamente técnico, não se fixa senão no doente e o distingue
“a moléstia” do “paciente”. O médico esteta, à medida que com solicitude
caridosa, penetra intelectualmente no âmago do doente, tomar forma e
dele se separar uma entidade abstrata, isto é, a moléstia do paciente, em
cuja contemplação se fixa. Passa então da atitude simpática da caridade em
relação ao doente, em que predominam os sentimentos penosos, para uma
atitude contemplativa daquilo que ele mesmo construiu com sua arte.
O médico esteta, segundo o autor (1979, p 101), na atitude
contemplativa de sua criação, sente prazer e alegria ao encontrar harmonia entre o
que é e o que deve ser, ou a solução entre o que é e o que não é. O gozo dico-
estético depende do saber. O saber informa o percebido, no qual a verdade
153
extrínseca subsiste sem dúvida, mas não se encontra nem confirmada nem
acrescida. A verdade intrínseca se reduz a um sentimento de sucesso ou realização,
que não pertence à esfera do conhecimento, mas o que o médico extrai da verdade
médica, o gozo estético. Torres (1979, p 101) transforma de maneira geral, toda a
profissão médica como passível de gozo estético ao referir:
[...] aquele que ainda não experimentou o prazer da contemplação de um
“belo caso”, pode ser um bom médico, pode ter a satisfação do bom
desempenho de um dever profissional cumprido, mas não conhece a
felicidade do exercício de uma verdadeira vocação. O prazer da
contemplação do artista que cria é o prazer de quem penetra na essência
das coisas, ao atingir o conhecimento filosófico, que o verdadeiro
entendimento.
Por fim o autor finaliza sua obra dizendo que “o verdadeiro médico é
sempre, no exercício da medicina, um esteta. um verdadeiro médico é capaz de
compreender a beleza da medicina”.
Em síntese, com base nos resultados levantados, o discurso da ME
também encontra ocasião e justificativa perante a morte. A morte é a síntese do
espetáculo da vida. Sendo produto histórico de nossa época, o discurso da ME tem
por ambição, conformar o indivíduo a uma ordem pré-estabelecida de normalidade.
Minimizando os efeitos deletérios do tempo no homem, a medicina estética tem
como finalidade, prevenir o envelhecimento, prevenindo, em última análise o
defrontar-se do indivíduo com a morte. Também pretende, ao intervir sobre a forma
do homem, reduzindo-a, aumentando-a ou transformando-a, buscar uma
singularidade do mesmo junto à diversidade, o que nada mais é, do que a distinção
e a perpetuação da morfologia desse indivíduo após sua morte. Após a morte, o que
nos vem à lembrança daquele indivíduo é o retrato da sua forma. O rosto, a
aparência, a beleza de seu ser. Mas, ao mesmo tempo em que, a ME serve ao
homem como ferramenta de enfrentamento da morte e de sua perpetuação
enquanto singularidade, por um processo dialético, a mesma conforma esse
indivíduo aos padrões racionais vigentes de forma, de aparência, de normas e
regras de como não envelhecer e de como se diferenciar.
Ao lidar com padrões próprios de uma época, a medicina estética, produto
histórico da prática social, busca suas referências na própria cultura, tornando o
indivíduo mais e mais semelhante aos seus iguais. É ao buscar ser diferente do que
154
é perante os outros, que o indivíduo encontra a sua própria semelhança e aos
demais.
4.6 Delimitação do Estilo de Pensamento da Medicina Estética
Após o estudo das transformações histórico-culturais que modificaram os
modelos normativos da sociedade contemporânea e que permitiram o surgimento da
ME e seus desdobramentos sobre o trinômio estudante-professor-instituição de ME,
procedeu-se a investigação dos elementos constitutivos do CP da ME. O
deslocamento do olhar orientado da profundeza à superfície dos corpos, bem como
as categorias corpo-organismo, saúde-doença e vida-morte serviram de suporte
para a caracterização do EP da ME. Neste momento é possível sua definição e
entendimento.
Iniciar-se-á esta tarefa pelo estudo das seis características do EP
definidas por Cutolo (2001, p 58). A primeira delas é:
1. Modo de ver, entender e conceber.
Não é por acaso que Cutolo (2001, p 58) colocou esta como sendo a
primeira característica do EP, pois Fleck (1986), em toda sua obra, chama a atenção
para a importância do olhar orientado (chamado de ver formativo em algumas
traduções, ou olhar gestáltico) que conduz ao olhar estilizado (já conformado ao EP
predominante):
Em relação à primeira característica (modo de ver, entender e conceber);
compreendo que seja o “ver formativo” estilizado, uma das condições sine
qua non para o entendimento de EP A disposição para um sentir seletivo é
sistematicamente enfatizada por Fleck como básica na sustentação de um
estilo; chega, por vezes, a afirmar que a disposição para o perceber
orientado constitui seu principal componente.
Foi destacado que a ME produz um deslocamento do olhar médico da
profundeza para a superfície do corpo para trazer a tona o evidente, a forma que se
155
desvela ao olhar do observador. É na aparência dos corpos que a ME executa sua
práxis. Toda MT armou seu olhar para procurar da superfície à profundeza a lesão
causadora da enfermidade. Com a ME inverte-se essa relação. A tecnologia é
utilizada na intimidade do oculto para trazer à tona o descoberto e evidente.
Essa inversão instalou um ponto de inflexão epistemológico na prática da
ME que desdobrou uma série de eventos que modificaram seu modo de operação.
De sorte que o olhar orientado da ME é dirigido à superfície, à forma do objeto e
como este se apresenta.
Em um paralelo entre um médico tradicional e um médico esteta, essa
inversão de olhares é mais evidente. Enquanto o primeiro está preocupado em
penetrar e aprofundar seu olhar para o interior do organismo, o segundo se
preocupa em observar como se apresenta esse organismo e sob que aparência. Ao
primeiro, questões relativas à beleza, auto-estima ou inadequação, são secundárias
e a irrelevantes, uma vez que não representam doença para ele. Contudo, ao
segundo, são justamente essas questões fundamentais para que nelas atue e
valorize. Elas geram insatisfação estética que podem conduzir a um sentimento de
inadequação social. São esses conceitos que o médico esteta trabalha. Tentar
corrigir as insatisfações (agente etiológico) para evitar a inadequação (patologia). De
modo que valorizar as queixas subjetivas do paciente torna-se fator imperativo na
prática estética, pois aquilo que pode não ser importante para um indivíduo, para o
outro é. Daí a necessidade de intervenções que, para o médico tradicional, podem
parecer desprovidas de indicação. Exemplo disso é a correção de gorduras
localizadas em um paciente com peso normal. Ao primeiro, indicação em
casos de obesidade severa. Ao segundo, importa a queixa e a imperfeição da forma.
Destarte, o olhar deslocado provoca um modo de entender e de conceber
os problemas bastante distintos daquelas concepções de entendimento da MT. Ele
modifica, até mesmo, a relação médico-paciente a qual é impessoal-objetiva (na MT)
para pessoal-subjetiva (na ME). O paciente não se constitui apenas objeto como na
MT, mas sujeito-objeto onde a pessoa do paciente é valorizada como sujeito
portador de indicações subjetivas e seu corpo é o objeto da prática estética.
2. Processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação.
Relativo a essa característica, Cutolo (2001, p 58) afirma que:
156
A inclusão de uma característica geral de agrupamento no que se refere
“[...] processual, dinâmico, sujeito a mecanismos de regulação [...]” justifica-
se, no sentido de que o Estilo de Pensamento não é estático, dinamiza-se e
processa-se. Tem um movimento, instaura-se, estende-se, vivencia um
período de classismo e complicação, modifica-se. Durante este processo
produz mecanismos de regulação intrínseca, um eficaz sistema de idéias
que regula a harmonia das ilusões e promove coerção de pensamento.
Na trajetória empreendida pela ME pode-se observar esses movimentos.
Se partirmos da hipótese de existir um EP próprio da ME e tentarmos delimitar os
períodos de instauração, extensão e complicação do seu EP, pode-se aferir pelos
resultados levantados na pesquisa, que o período de instauração do mesmo deu-se
no início dos anos 1970 marcados inicialmente pela criação da Sociedade Francesa
de Medicina Estética. O período de extensão do EP da ME seria aquele em que o
movimento se espalhou pelo mundo nos anos 1980 até sua chegada ao Brasil no
final daquela década. Os anos 1990 foram caracterizados pela rápida expansão do
movimento e inauguração de cursos de PG em ME. Foi o período do classismo.
nos anos 2000 se observaram a reação dos setores mais conservadores da MT, os
protestos dos conselhos regionais e federal às tentativas de reconhecimento da
especialidade e a instalação de processos éticos, cíveis e criminais contra os
médicos estetas. Está sendo vivenciado o período de complicações que se estende
até os tempos atuais. É, durante esse intrincado processo, que se produz ideias e
pensamentos dentro do CP de união da classe, lutas pelo reconhecimento e
formação de sociedades.
Por outro lado, o pensamento do médico que pratica ME não pode ser
compartimentalizado ou fragmentado como o fazem os especialistas em
determinado órgão ou sistema. Ele é processual e dinâmico, pois necessita uma
visão geral do paciente. O ME atua em diversos sistemas. Ora ele atua no sistema
vascular para redução de varizes inestéticas ao olhar, ora ele está atuando no
sistema endocrinológico do paciente para que diminua peso e se apresente com
aspecto mais magro. Outras vezes, o médico estará executando pequenos
procedimentos cirúrgicos e necessitará conhecimentos relativos à cirurgia e, em
outras situações, ele estará atuando sobre a pele executando um peeling
rejuvenescedor da aparência senil do paciente.
157
Mas toda essa autonomia para atuar em diversos órgãos e sistemas com
vistas ao melhoramento da aparência externa não é fruto de ousadia ou
inconseqüência. É autonomia adquirida à custa de esforço teórico e prático. É sob
exaustivo treinamento e experiência que ela é adquirida. Ela aumenta a
responsabilidade deste profissional, pois o erro estético é quase que imperdoável.
Essa profissão sofre um poder regulatório importante. Uma das características da
MT que encontra amparo legal no CFM é a ausência de garantia de resultados por
não ser ciência exata. na ME isso não ocorre. Por ser profissão não
regulamentada como especialidade, o profissional que executa ME necessita estar
atento e vigilante. Ele está sendo observado por seus colegas de profissão, pelos
órgãos fiscalizadores e pela sociedade. De modo que, a área estética é uma das
que mais concentra casos de processos éticos profissionais, cíveis ou criminais. O
erro fica estampado no rosto do paciente ou em seu corpo.
Assim, a ME está sujeita a mecanismos de regulação dentre seu próprio
coletivo de médicos estetas, o coletivo da MT, órgãos fiscalizadores como
Conselhos Profissionais, Vigilância Sanitária e sociedade (pacientes, familiares e
ministério público). Tudo isso reforça o sistema de regulação do EP por parte do
coletivo médico esteta.
3. Determinado psico/sócio/histórico/culturalmente:
Cutolo (2001, p 58) descreve que, em relação a outro aspecto, o da
determinação sócio-histórico-cultural, Fleck acredita que o conhecer representa a
atividade mais condicionada socialmente, e que o conhecimento é uma criação
social por excelência. Chega a afirmar que as relações culturais, históricas e sociais
constituem o terceiro fator, o “estado do conhecimento” do tripé da relação
cognoscitiva
Por quetrinta anos não se falava em medicina estética no Brasil? Que
contingências sociais foram modificadas para que hoje a ME seja realidade e não
cause espanto sua prática? Cutolo, debatendo com o autor da pesquisa, disse que a
prática demanda a teoria e não o contrário. Ou seja, é necessário primeiro a práxis
para gerar a necessidade de formulação da teoria. Não foi porque alguém resolveu
trazer a ME ao Brasil que se passou a praticá-la. Ocorreu o contrário: foi-se
buscar conhecimentos relativos a ME por existir condições de possibilidade para que
158
a mesma pudesse ser instalada. Essa pesquisa revisou no início do capítulo as
mudanças nos modelos normativos da sociedade contemporânea que geraram
maior valorização de corpos esguios e conformados as necessidades atuais de
destreza e autonomia, de modo que a sociedade modificou-se e passou a exigir
cuidados médicos estéticos para suas necessidades e propósitos.
Assim, a ME atendeu a um anseio social em um momento histórico que
foi propício a melhoramentos estéticos corporais. Ao se proceder a análise das
condições de possibilidade da ME sob ótica de um economista poder-se-ia dizer que
não havia “mercado” para a ME há trinta anos, pois as necessidades eram outras,
diferentes do momento atual. Não obstante as determinações históricas e culturais
serem abordadas resta lembrar que o EP da ME também foi determinado
psico/sociologicamente.
Fernanda Bruno (2009), psicóloga e professora de pós-graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, assinala a importância
que o ver e o ser visto assumiu na cultura midiática contemporânea. As
subjetividades contemporâneas são, certamente, atravessadas por esse desejo de
ver e de ser visto e encontram no olhar do outro e no ato de se fazer visível um lugar
privilegiado de investimentos afetivos, estéticos, pessoais, sociais, etc. A autora
aponta que é relativamente novo a requisição do olhar do outro para essa dimensão
mais íntima que antes buscava se recolher ou apenas se mostrar a poucos. Cita
como exemplo nos blogs de meninas que se intitulam “annas” (anoréxicas) e “mias”
(bulímicas) e que expõem na Internet uma intimidade que em períodos históricos
anteriores, sobretudo na Modernidade, estava restrita a espaços privados.
Enquanto na Modernidade o olhar do outro sobre os indivíduos
requisitava destes comportamentos e posturas adaptadas, normatizadas, pois esse
olhar sempre encarnava as normas que exigiam que os indivíduos se contivessem
publicamente e acolhesse os limites necessários para a ordem e o convívio social.
Hoje, para a autora (2009, p 04) esse olhar do outro parece representar outro
imperativo ou outro convite, que não vai à direção da contenção, mas da exposição.
Esses o apenas alguns dos aspectos psico/sociológicos que ilustram a
necessidade dos indivíduos pela exposição. De modo que não é difícil imaginar a
existência de uma predisposição psíquica e social para os tratamentos estéticos da
ME.
159
4. Que leva a um corpo de conhecimentos e práticas:
De acordo com Cutolo (2001, p 58), para Fleck a disposição de um sentir
seletivo leva a uma ação conseqüentemente dirigida e uma elaboração
correspondente do percebido. Teorias, modelos, todos, técnicas e instrumentos
são alguns dos produtos e meios para a ação dirigida. Isto, de certa forma, poderia
justificar a terceira característica da definição ([...] que leva a um corpo de
conhecimentos e práticas).
A prática da ME é uma prática médica. É exigido como pré-requisito ao
sujeito praticante da mesma possuir conhecimentos médicos necessários para
efetuar os melhoramentos na superfície da forma, pois sua operação implica em
arranjos mais profundos na pele (são necessárias cirurgias, implantes no
subcutâneo, peelings esfoliativos da epiderme, uso de medicações emagrecedoras e
de antienvelhecimento), do que a simples manipulação da mesma na sua superfície
como o fazem os esteticistas, massagistas, terapeutas e cabeleireiros.
Todo discurso da ME relaciona-se à manifestação estética da forma
superficial. Derivam-se daí as práticas médicas resultantes, denominadas práticas
médico-estéticas que, em sua totalidade, atuam como reparadoras da imagem
externa utilizando-se as ferramentas científicas metodológicas adquiridas na prática
médica tradicional, e, desenvolvimento a posteriori de “novas” práticas médicas
estéticas que, conforme o CREMESC (2005) parece ser readaptações da prática
médica tradicional.
Exemplo disso, o CREMESC (2005) cita que os peelings químicos
utilizados pela dermatologia são empregados com um novo “verniz” na ME, não mais
com o intuito de corrigir as patologias cutâneas como lentigos solares, acne,
discromias, mas, fundamentalmente, com propósitos antienvelhecimentos e anti-
inestetismos. Desloca-se o sentido terapêutico do peeling em patologias cutâneas
para a correção da forma superficial (rejuvenescimento, correção de rugas, manchas
inestéticas). Assim, a indústria lança “novos” peelings, novas fórmulas, que, em
realidade, são melhoramentos, relançamentos, tamponamentos de fórmulas
existentes na medicina tradicional.
Conforme Cecil (2005), a obesidade, classicamente tratada pela
endocrinologia (apesar das endocrinopatias serem responsáveis por apenas 1% de
160
toda a totalidade de obesidade) como controle das desordens metabólicas internas e
suas conseqüentes repercussões no perfil lipídico sanguíneo, com aumento de
colesterol, triglicérides e ácidos graxos, é, agora, tratada por sua desordem estética
manifestada ao olhar do corpo obeso. Não somente a obesidade generalizada é
tratada, mas sim, regionalidades em formas obesas: as gorduras localizadas passam
a ser valorizadas não por uma possível ameaça à saúde, mas por manifestarem
desarranjo estético.
Os conhecimentos adquiridos na medicina tradicional no manejo da
disfunção lipídica interna são utilizados para tratar esteticamente o paciente que se
obeso. Reis (2008) afirma que o olhar transcende o critério anatomopatológico,
pois se ver obeso é, muitas vezes, diferente de ser considerado obeso pelo critério
clínico, onde pacientes são tratados sem possuírem indicação clínica ao tratamento
(lipoaspirações, emagrecimento clínico, spas). Instala-se o primado do olhar sobre o
clínico, valorizando-se a percepção da imagem que está disforme (ou desconforme)
aos padrões culturais daquela sociedade e daquela época.
Assim como o manejo estético clínico da obesidade tem como critério de
validade o olhar e a percepção da mesma, a cirurgia plástica estética valida seus
procedimentos pelo mesmo critério. Não são indicadas apenas as cirurgias
bariátricas com redução do volume do estômago para a obesidade mórbida que põe
risco à vida, ou mamaplastias redutoras de gigantomastias que prejudicam a coluna
torácica. Mas, principalmente, conforme Reis (2008) são indicadas pequenas
intervenções plásticas cirúrgicas com o propósito de melhorar a imagem externa que
se apresenta ao olhar, sem o privilégio da indicação clínica tradicional preocupada
com a correção da disfunção interna que implique dano à saúde física.
Observa-se novamente, ao contrário da medicina tradicional, uma
revalorização das necessidades não apenas físicas do sujeito onde, no critério
clínico, o sujeito (paciente) não é privilegiado, mas sim, o objeto da sua doença
física. São levadas em conta, na ME, aquelas necessidades chamadas subjetivas,
que traduzem os anseios psíquico-sociais do paciente (ROMERO, 2008).
Segundo Reis (2008), as técnicas cirúrgicas são direcionadas para a
remodelação do corpo que será visto. Essas técnicas são dirigidas à subtração, à
adição e à correção da forma “doente”. O excesso de forma a gordura localizada,
a flacidez representando o excesso de pele, o excesso de pêlos são subtraídos do
161
corpo para aproximá-lo ao normal
35
lipoaspirações de gorduras localizadas,
dermolipectomias, lifting faciais e corporais, exérese de tecidos flácidos, implantes
de fios de sustentação ou tensores, aplicação de tecnologia avançada com
aparatologia que vise combater gordura ou pele em excesso; técnicas de depilação
temporária ou definitiva desde a manual até o emprego do laser; manejo
endocrinológico e farmacológico do hirsutismo, sempre com o intuito de diminuir o
excesso da forma.
A análise das disciplinas do curso de s-Graduação em ME da SBME
revele que, para correção das perdas ou carências de forma, a ME tem sua prática
voltada à correção parcial ou total (quantitativa) e temporária ou definitiva
(qualitativa) dessas perdas. São empregados os chamados métodos de implante,
seja de material sintético, seja de material biológico: implantes de próteses para
aumento da forma das mamas, dos glúteos, das panturrilhas, do queixo, do nariz,
dos malares, dos contornos faciais e corporais. Próteses sólidas: como próteses de
silicone, implantes de fios de ouro, fios de polipropileno, fios elásticos; e próteses
líquidas: representadas pelos diversos materiais injetados para aumento de volume
e correção de formas. As rugas representam a perda do colágeno do tecido celular
subcutâneo, sendo reposto por meio de implantes de gordura, colágeno sintético,
ácido hialurônico, polimetilmetacrilato, poliacrilamida, ácido poli-l-lático, entre outros.
A toxina botulínica apresenta uma característica distinta dos demais implantes para
tratamento de rugas: não implanta material, mas relaxa a musculatura formadora da
ruga. Os implantes, qualitativamente, podem ser temporários ou definitivos. Os
implantes temporários têm como característica serem reabsorvidos após um
determinado tempo, dos quais, os principais são: colágeno bovino, ácido hialurônico,
hidroxiapatita e implantes a base de ácido poli-L-lático. Os implantes permanentes
são aqueles não absorvidos pelo organismo sendo que, uns contém esferas de
polimetilmetacrilato, outros, silicone líquido, fios e placas de polipropileno, fios
elásticos siliconizados, próteses de silicone, fios de ouro, próteses metálicas, entre
outros.
Os quadros de alteração qualitativa da forma, o aspecto da pele, a sua
essência alterada; são aqueles onde a pele apresenta-se com alterações:
35
Normatizado aos padrões sócio-histórico-culturais, que, no ocidente, são caracterizados por
exigência exagerada de corpos esguios geradora de padrões estéticos, muitas vezes, inatingíveis,
que possibilitam a permanência da indústria estética.
162
a) de cor: hipercoloração (melasmas)- tratadas com despigmentantes;
diminuição de cor (acromias, vitiligos)- tratadas com dermopigmentação,
estimulantes da melanogênese ou mudança de cor (eritemas, rosáceas)-
tratadas com antiinflamatórios para diminuição da hipersensibilidade.
b) do aspecto: acnes, microtelangiectasias, varizes, celulites, linfedemas;
com seus respectivos tratamentos clínicos especializados específicos.
Com base nos dados analisados (as disciplinas do curso de PG em ME
da SBME) - que são quase a maioria dos procedimentos realizados em medicina
estética percebe-se, de maneira evidente, a preocupação com a forma de
apresentação da imagem corporal. Planificam-se as ondulações, acrescenta-se
forma às depressões, fazendo essa forma ser modificada nas suas alterações ao
olhar. Toda preocupação, mesmo aquelas que têm seu discurso voltado para a
preservação da saúde, e, nas quais, é evidente sua argumentação de validade
científica enquanto ciência preocupada com a saúde (medicina antienvelhecimento,
medicina ortomolecular), encontra-se, no processo de formação de seu discurso, a
preocupação com a imagem corporal (não envelhecer ou retardar o envelhecimento
tem como produto uma imagem mais jovem, ou seja, mais preservada, mais “bela”).
Portanto, a ME, ao deslocar seu foco de visão do interior ao exterior não
realiza sem o devido embasamento teórico-científico necessário a esse
deslocamento, uma vez que os médicos estetas possuem a sua formação
fundamentada no mesmo campo teórico que o médico tradicional. Daí depreende-se
que a ME o possui um discurso vazio, sem significado e acrítico. Ela tem como
ponto de partida a própria MT na qual elabora, constrói um novo objeto, a partir do
deslocamento do olhar.
5. Compartilhado por um coletivo.
A quinta característica empregada por Cutolo (2001, p 58) é a
cumplicidade e compartilhamento do ideal de verdade por um coletivo. A unidade
social da comunidade de cientistas de um campo determinado, a que Schäfer e
Schnelle (1986a, p 23) se referem, constituem a grande legitimação do EP Não
existe EP se não houver um coletivo de pensamento que o sustente. De acordo com
o autor, o campo de conhecimentos em medicina está sujeito de forma contínua a
ideias e métodos que acabam formando pontos de vista dominantes. Neste processo
163
de aparecimento e desaparecimento destas orientações dominantes, pode-se
observar tanto uma sucessão quanto a convivência de estruturas teóricas (Estilo de
Pensamento) distintas e incomensuráveis.
36
Conforme Reis (2008), os médicos que optaram em fazer ME o fizeram
porque gostam de tratar patologias estéticas. Foi uma opção desse grupo de
médicos em realizar esse tipo de procedimento. A vontade de promover
melhoramentos estéticos nos pacientes é compartilhada pelos médicos estetas.
Acho que cada profissional quando escolhe sua profissão escolhe aquilo
que ele quer tratar. Se ele quer resolver hanseníase, ele faz hanseníase. Se
quiser fazer cirurgia, faz cirurgia, se não quer operar para quê fazer
formação em cirurgia? A pessoa que faz cardiologia é porque ela quer tratar
coração e não a pele do paciente. Ninguém fará pediatria se não gosta de
criança! Agora dizer que a medicina estética pegou o “filé” isso não é
verdade, porque o que nós gostamos de tratar é casos de medicina estética.
Eu jamais faria perícia médica, no entanto, existem pessoas que se formam
para ser peritos médicos. Isso é questão de opção. Coisas que as pessoas
escolhem porque se sentem bem fazendo aquilo. Nós não somos
responsáveis pelo o quê as especialidades focalizam. Contudo, o nosso
foco são as alterações estéticas. Nós não temos formação para tratar
hanseníase, até porque isso não nos diz respeito. o se pode fazer tudo,
hoje em dia, pois os campos de saber são muito grandes.
O autor afirma que o grupo especializado que realiza ME tem formação
específica. O profissional necessita realizar cursos de capacitação, pós-graduação,
participação em congressos, etc. De acordo com Ribeiro (2006), no congresso
nacional da especialidade ocorrido no ano de 2005 participaram doze palestrantes
estrangeiros e mais de cento e quarenta palestrantes nacionais. O congresso contou
com mais de um mil e quinhentos participantes. Portanto, o que caracteriza a ME é a
cumplicidade e compartilhamento do ideal de verdade por um coletivo com formação
específica, conforme afirma Reis (2008):
Outro problema é que a medicina estética teve formação inicial muito
autodidata. Não existia formação específica, logo, não havia cursos de
formação. Os médicos tradicionais viam dessa forma os médicos estetas
como charlatães”, pois faziam qualquer curso de fim de semana e
começavam a praticar algo destituído de embasamento cientifico. Com o
passar do tempo, com o crescimento da medicina estética e das escolas de
formação isso foi mudando de forma radical e hoje nós temos cursos de PG
de dois anos com publicações de trabalhos científicos, pesquisas e
congressos. Logo, essa ideia de que o saber da medicina estética não
estava baseado em evidências científicas deixou de existir. Hoje o
36
Do polonês “niewspólmiernosc, traduzido para o inglês como “incommensurability”, talvez a melhor
tradução deva ser “incongruência” – Nota de Cutolo (2001, p 58).
164
conhecimento da medicina estética é baseado em evidência cientifica como
as outras áreas da ciência.
Pode se depreender desta última fala de Reis (2008) “[...] o conhecimento
da medicina estética é baseado em evidencia científica como as outras áreas da
ciência,” que o EP da ME está baseado no empirismo lógico (concepção mecanicista
de caráter biologicista que utiliza os avanços do tecnicismo aos seus propósitos).
6. Com formação específica.
Pelas análises realizadas dos documentos e das entrevistas citados,
pode-se afirmar que o CP da ME possui formação específica. Esses especialistas
buscaram seus conhecimentos e o aprimoramento de sua técnica por meio de
cursos de formação em ME. Dentre eles, o mais completo e com maior carga
curricular é o curso de PG Lato Senso em ME da SBME. Dotado de currículo
extenso que procura, além da habilitação e treinamento profissional tanto teórico
como prático este curso tem mostrado, através de seu currículo, preocupação com
valores éticos, pesquisa e docência. Trinta por cento de seu quadro docente é
formado por professores com títulos de mestres ou doutores.
De acordo com Ribeiro (2006), este curso é licenciado pelo MEC e isto
confere reconhecimento em todo território nacional e nos países em que o Brasil
mantém relação diplomática. De modo que, apesar do CFM não reconhecer a ME
como especialidade, isto não significa que o curso não seja reconhecido. Assim, o
profissional formado em tal curso está, sob o ponto de vista acadêmico, habilitado a
praticar ME. Assim, a ME conta, atualmente, com ensino acadêmico que satisfaz a
demanda do mercado e que, por sua vez, aponta presença de EP próprio.
O fato de haver curso de PG em ME no Brasil indica existência de
coerção de pensamento em torno deste eixo temático por parte de seu coletivo. Ele
denota a presença de um EP que emergiu do vácuo deixado entre as especialidades
que, até certo ponto, eram responsáveis pelas modificações estéticas do ser
humano. A formação de um EP formado pela intersecção de vários saberes afins, e
objeto desta inter-relação, é explicado pelo conceito de objeto fronteiriço a ser
abordado a seguir.
165
4.7 O Surgimento de um Novo Estilo de Pensamento: O Conceito de Objeto
Fronteiriço
Toda a análise produzida até aqui indica fortemente características de
saberes fronteiriços na conformação da ME. De modo mais direto e incisivo, é Cutolo
(comunicação pessoal, 2009) quem sugere a abordagem do conceito objeto
fronteiriço, pois o mesmo se adapta ao entendimento do surgimento do EP da ME
dentro da MT. Desse modo, o estudo desse conceito foi realizado em quatro autores
que discutem o tema. Inicialmente Star e Griesemer (1989), os quais foram os
primeiros a utilizar o conceito. Também, Ilana Löwy (1996), do INSERN de Paris,
tem sido de grande importância no seguimento da obra de Fleck e seus
desdobramentos. Judia e também polonesa, a professora tem formação em biologia
e trabalha com história e sociologia das ciências. Löwy trabalha com o conceito de
objeto fronteiriço em seus trabalhos e seminários. Por fim, entre os autores
brasileiros, Cutolo (2001) vem utilizando o conceito de objeto fronteiriço em seus
trabalhos. Em sua tese, Cutolo (2001) encontrou explicações e ilustrações que
explicam o objeto fronteiriço com muita propriedade. De sorte que o estudo recaiu
especialmente sobre algumas ilustrações de Cutolo (2001) para o debate do
conceito.
De acordo com Cutolo (2001, p 46-7), esta categoria não foi desenvolvida
por Fleck, mas pelos sociólogos de tradição interacionista e suas vertentes em
estudos da ciência. Dentre eles o autor cita Star e Griesemer (1989). Segundo Löwy
(1996), os interacionistas pertencem à tradição construtivista da epistemologia e se
interessam pela complexidade e instabilidade da prática científica e as relacionam
com os diferentes mundos sociais
37
.
Segundo Cutolo (2001, p 47), pode-se entender objeto fronteiriço como
conceitos, cnicas, materiais de domínio de uma área (ou de um coletivo de
pensamento) que possui compatibilidade com outros coletivos. Ou, como prefere
37
Mundo Social é uma categoria da escola sociológica interacionista e possui aproximações com
Coletivo de Pensamento. Como exemplo, LÖWY (1996, p 26) relata a relação de um fato científico
em laboratório com a indústria, clínica, administração pública, mídia, etc. - Nota de Cutolo (2001, p
46)
166
Löwy (1996), uma área de domínio comum, que sofre cooperação de mais coletivos
de pensamento, para a sua compreensão.
Para Cutolo (2001, p 48), o objeto fronteiriço pode se dar de diferentes
formas. O autor descreve abaixo três diferentes formas pelas quais ele pode ocorrer:
Exemplo 1
Neste caso, o objeto circula entre os coletivos de pensamento, é traduzido
e apropriado de forma diferente. A significação modifica-se e o surge uma zona
intermediária.
Exemplo 2
Esta condição ilustra a possibilidade de formação de uma “zona creola”.
Os coletivos de pensamento se socializaram na nova “língua” e uma nova
linguagem, uma nova área, um novo estilo de pensamento forma-se, como
conseqüência da relação cooperativa de dois ou mais coletivos anteriores.
Exemplo 3
167
Pode ser a possibilidade da congruência (comensurabilidade) entre dois
estilos de pensamento permeado pela cooperação intercoletiva de pensamento.
Existe, neste caso, uma zona intermediária da qual dois coletivos se beneficiam.
A categoria objeto fronteiriço possui potencialidades a serem exploradas.
No caso da ME, ela se parece com aquele objeto fronteiriço (“creole zone”), que se
articula com outros Estilos de Pensamento, produto da cooperação intercoletiva. A
endocrinologia possui uma parte de seus saberes voltados para a estética quando
trata a obesidade. a dermatologia tem uma disciplina chamada dermoestética. A
angiologia trata de inestetismos relacionados a varizes e microtelangiectasias. A
cirurgia plástica realiza, além da cirurgia reparadora, cirurgia estética. Assim, destas
quatro especialidades forma-se um objeto fronteiriço entre elas, relacionado aos
cuidados estéticos das diversas áreas (figura 4).
Figura 4 Objeto fronteiriço relacionado aos cuidados estéticos das diversas especialidades
médicas.
Observa-se, na Figura 4, a formação de uma zona limítrofe nas quatro
especialidades (quadrado pontilhado) que possui um olhar estético sobre as
diversas patologias de cada área. Contudo, percebe-se que apesar de tocarem-se,
essas zonas não se fundem. Desse modo, ainda não se formou um novo EP (“creole
zone”), pois não existe autonomia, linguagem própria ou sistema conceitual único.
168
É no amadurecimento destas zonas fronteiriças que se a formação de
novo EP É quando essas zonas se fundem que se começa a possuir uma
“linguagem própria”, ter seus próprios referenciais teóricos; criando seu sistema
conceitual, desenvolvendo seu Coletivo de Pensamento, exercendo coerção de
pensamento. Ou seja, constituindo-se enquanto novo Estilo de Pensamento (figura
5).
Figura 5 Formação do EP da ME por constituição de objeto fronteiriço (“creole zone”) com as
especialidades
Observa-se que o EP resultante é autônomo e sua linguagem é própria. O
CP não é mais o mesmo que o originário, os discursos, a metodologia e a práxis se
tornaram independentes.
Ilton Benoni da Silva (1999) em seu texto Inter-relação: a pedagogia da
ciência afirma que o resultado da inter-relação dos saberes é a formação de um
novo saber diferente daqueles que o originaram. Como exemplo ele cita que da
inter-relação da química com a biologia formou-se uma nova disciplina: a bioquímica
que possui conceitos próprios representando novo saber. Da mesma forma, a ME é
fruto da inter-relação dos saberes médicos que lidavam de certa forma com estética,
mas que não possuíam foco na estética em si. Eles propiciaram as condições de
possibilidade do desenvolvimento de novo saber – a ME.
Cutolo (2009) concorda com o autor da pesquisa de que o crescimento do
EP da ME começa a interferir nos demais EP originários e que isso pode gerar
conflito, como no exemplo da figura 6.
169
Figura 6 O crescimento e desenvolvimento do EP da ME dentro dos demais EP da MT gera
situações de conflito em cada zona fronteiriça.
Em síntese, o EP da ME originou-se por meio da inter-relação de saberes
(proto-idéias) das diversas especialidades que realizavam procedimentos estéticos
em suas patologias específicas, mas que não tinham como foco de interesse a
estética. Exemplo disso foi o escasso número de aulas em toda graduação médica
de assuntos relacionados a tratamentos estéticos (REIS, 2008). Esse fato permitiu a
formação de objeto fronteiriço comum a essas áreas que, com seu amadurecimento,
originou o EP da ME. O mesmo é fruto da relação cooperativa entre as diversas
especialidades que lidavam com estética, no entanto é autônomo em relação às
mesmas, possui linguagem própria e sistema conceitual genuíno. Formou-se um
coletivo de pensamento especializado com formação específica com ideais únicos.
O desenvolvimento do EP da ME (que estava “comprimido” entre os
outros EP) expande o mesmo e passa a influenciar os demais EP da MT gerando
zonas de conflito com as especialidades limítrofes (a ME passa a tratar pacientes
que antes eram tratados pelas especialidades de origem e isso gera conflito
relacionado à reserva de mercado). No entanto, é necessário estudar mais essas
relações. A comparação entre os diferentes estilos de pensamento se dará no
capítulo V.
170
4.8 A Medicina Estética como Campo de Especialidade Médica
Segundo a SEME (1997, p 6), quando se analisa o espectro das
especialidades médicas estabelecidas, pode-se ver que seu surgimento obedeceu a
diferentes motivos:
a) Muitas vezes uma especialidade integra as enfermidades específicas
de um aparelho ou sistema (sistema digestivo, cardiologia,
pneumologia, neurologia, endocrinologia, reumatologia, etc.);
b) Em alguns casos se constitui uma especialidade com patologias
específicas de certas idades (pediatria e geriatria);
c) Uma especialidade pode se constituir especificamente para tratamento
de problemas relacionados com a mulher: obstetrícia e ginecologia;
d) Existem especialidades referidas à utilização técnica de certos meios
diagnósticos: radiologia, medicina nuclear, análises clínicas, anatomia
patológica;
e) E também a aplicação de meios de tratamento específicos: as
especialidades cirúrgicas, farmacologia clínica, reabilitação,
radioterapia;
f) Existem, especialidades sociais: medicina preventiva, medicina do
trabalho, medicina legal e forense, medicina esportiva;
g) Finalmente, em algumas ocasiões, o surgimento de uma especialidade
se deve à aparição de um conceito unificador (diagnóstico ou
terapêutico), que agrupa processos antes divididos entre
especialidades diversas como parece ser o caso da Medicina Estética.
Um exemplo disso é o que ocorreu com a especialidade Oncologia
Médica. Seu processo de constituição como especialidade é interessante, segundo a
SEME (1997), por apresentar similaridades (ainda que com diferenças de conteúdo)
com o que está ocorrendo com a Medicina Estética.
Antes do aparecimento da Oncologia Médica, cada especialidade médica
atendia os cânceres específicos de sua área. No entanto, desde o final da II Guerra
171
Mundial, apareceram dois novos aspectos em relação ao câncer: um novo enfoque
da etiologia e patogenia da enfermidade, que se pôde estudar de modo unitário,
assim como grandes avanços em seu tratamento (quimioterapia, bomba de cobalto e
aceleradores lineares de ortovoltagem, imunoterapia) que obrigaram a realizar o
tratamento do câncer de modo unificado, em forma de protocolos bem estabelecidos
que englobassem diversas técnicas. Desta forma, a Oncologia Clínica se constituiu
como especialidade abarcando uma patologia que anteriormente estava a cargo de
outras especialidades médicas, porém, agora, se agrupava com um critério
unificador de enfoque clínico e terapêutico (SEME, 1997, p 7).
Do ponto de vista conceitual, pode-se considerar que a ME segue modo
similar: existe uma unidade de conteúdo nos tratamentos dos processos que afetam
a estética e a beleza, na sua prevenção e promoção do bem-estar. Isso tem
motivado a aparição de técnicas específicas para diagnóstico e tratamento das
patologias estéticas. Por isso, dentro do campo da ME, tem-se agrupado processos
que antes pertenciam exclusivamente a outras especialidades (endocrinologia,
dermatologia, angiologia, cirurgia plástica), constituindo-se em um campo de
atuação único, delimitando, assim, as afecções que correspondem ao enfoque
clínico da ME. Dessa forma, entende-se que a ME pode estar se constituindo em
campo de saber científico especializado por apresentar, como dito, conceito
unificador (etiológico, diagnóstico e terapêutico), que agrupa processos antes
divididos entre especialidades diversas.
4.9 A Medicina Estética como Profissão
Para analisar as características necessárias para se formar uma nova
profissão, buscou-se em Pereira Neto (1995), sociólogo pesquisador do tema
sociologia das profissões cujo trabalho, A Profissão Médica em Questão (1922):
Dimensão Histórica e Sociológica serviu as respostas procuradas.
Para Pereira Neto (1995, p 600), uma ocupação torna-se uma profissão
quando os responsáveis criam e utilizam sistematicamente um conhecimento geral
acumulado, como solução para problemas colocados pela clientela. Neste sentido, a
172
ME adquire uma relevância particular. Esta profissão traz consigo todo um projeto de
resolução de problemas estéticos da vida dos cidadãos.
Esta aplicabilidade e resolutibilidade não se consolidam abstratamente. O
profissional deve empreender todo um conjunto de estratégias de
convencimento da clientela. A sociedade deve acreditar que apenas o
profissional tem condições de resolver seus problemas. Não é necessário
que ele os solucione. O público precisa continuar acreditando, no entanto,
nesta capacidade. A profissão detém o monopólio sobre determinada
atividade porque persuade a sociedade a crer que ninguém mais, salvo o
profissional, pode fazer este trabalho com sucesso.
O autor (1995, p 603) concebe o peso do conhecimento na configuração
da profissão como algo dinâmico. Para ele, o "crescimento de um novo
conhecimento é fonte para uma nova profissão". Neste sentido, a profissionalização
adquire uma dimensão de processo. Um exemplo, a propósito, pode ser dado com o
ato de parir. Até meados deste século, a ajuda às parturientes era uma atribuição
das parteiras. Aos poucos, foi se constituindo uma área de saber a ginecologia e
obstetrícia que se tornou complexa, sistematizou-se, institucionalizou-se, elitizou-
se e convenceu a clientela da exclusiva jurisdição sobre esta habilidade.
Configurava-se, deste modo, uma especialidade profissional dentro da medicina. As
parteiras foram passando, paulatinamente, a ocupar um papel secundário nesta
tarefa. Situação semelhante é a que está ocorrendo com a ME onde as práticas
estéticas estão deixando de ser praticadas pelas assim denominadas esteticistas,
sendo ocupadas por médicos especialistas em estética.
O domínio do conhecimento, dentro dos marcos teóricos assinalados,
apesar de imprescindível, não é considerado, pelo autor (1995, p 605), um elemento
suficiente para a definição do conceito profissão. A coletividade de pares que a
compõe precisa que a conduta profissional seja padronizada. Assim, os clientes
passariam a ter condições de distinguir, pelo comportamento, se tal ou qual atitude é
ou não compatível com a atividade profissional. A auto-regulação se formaliza por
intermédio de um Código de Ética. Seu objetivo é persuadir o conjunto da profissão
e agir segundo os padrões instituídos coletivamente. Quando for necessário,
métodos coercitivos também estão previstos. Um Código de Ética busca padronizar
a conduta e o relacionamento dos componentes de uma profissão em três níveis:
interpares, com seus concorrentes e com seus clientes. As ocupações, em geral,
prescindem de qualquer código normativo formal para regular sua atividade e
padronizar sua conduta. Neste caso, cabe lembrar que todas as atividades do
173
mundo do trabalho trazem consigo uma ética, que, apesar de informal, regula a
relação entre os componentes de uma mesma ocupação. As profissões, por outro
lado, sobrevivem e conquistam prestígio junto à clientela se conseguem impor
normas aceitáveis pelo conjunto da categoria, institucionalizadas por intermédio de
um código que se torna instrumento de pressão e de persuasão sobre seus
componentes.
Para Pereira Neto (1995, p 610), contudo, não basta dominar certo
conhecimento e submeter-se às regras impostas pela coletividade dos pares. A
profissão deve ser capaz de estabelecer estratégias que busquem conquistar o
monopólio do exercício de sua atividade no mercado de trabalho. Neste sentido, a
profissão se organiza em associações e pressiona o Estado. A distinção entre
ocupação e profissão se impõe. As associações de ocupações se preocupariam
exclusivamente com os problemas relacionados com as condições do exercício do
trabalho (salário, regime de trabalho, férias, condições de trabalho, etc.). As
associações de profissões, além de se ocuparem com este tipo de reivindicação,
comprometem-se ainda com a habilitação e formação de seus futuros integrantes e
com a relação que estabelecem entre si e com seus clientes.
A garantia da manutenção da autonomia é considerada pelo autor (1995,
p 613), parte integrante do processo de conquista de hegemonia da profissão no
mercado de trabalho. Garantindo sua autonomia, o profissional passa a ter
autoridade e liberdade para se auto-regular e atuar em sua esfera de competência.
A autonomia se consolida quando o profissional se torna capaz de decidir as
necessidades de seu cliente, não permitindo que ele imponha seu próprio
julgamento.
Outra dimensão de autonomia associa este conceito à possibilidade de o
profissional julgar a si e a seus procedimentos. Assim, só ele seria capaz de invalidar
o serviço do leigo, comprometer-se com a organização de efetivo controle de
admissão ocupacional, instituir uma educação especializada através da qual a
sociedade possa distinguir o profissional do homem experiente e estabelecer normas
que assegurem competência técnica.
Desse modo, entende-se que a ME constituiu-se profissão, pois de acordo
com a exposição de Pereira Neto (1995) ela apresenta todas as características
citadas:
174
1 Os responsáveis criam e utilizam sistematicamente um conhecimento
geral acumulado, como solução para problemas colocados pela clientela: os
médicos estetas formaram um corpo de conhecimentos científicos que
solucionam os problemas estéticos gerados pela sociedade e que devem ser
realizados exclusivamente por médicos.
2 A coletividade de pares que a compõe precisa que a conduta profissional
seja padronizada. O CP médico esteta executa procedimentos estéticos que
são padronizados, apresentados em congressos, expostos em livros,
ensinados nos cursos de PG e que o executados pela maioria de seus
membros.
3 A profissão deve ser capaz de estabelecer estratégias que busquem
conquistar o monopólio do exercício de sua atividade no mercado de
trabalho. Neste sentido, a profissão se organiza em associações e pressiona
o Estado. A ME é regida pela UIME e ASIME, entidades internacionais com
sede em vários países membros que possuem Sociedades Nacionais
(SBME) e Regionais. A SBME conta com departamento jurídico especializado
em defender a entidade e seus membros contra as ofensas dirigidas por
outras entidades contrárias a mesma. Existe comissão permanente que
pressiona os órgãos competentes para o reconhecimento da especialidade.
Diversos médicos estetas participam dos conselhos regionais de seus
estados e associações médicas disseminando idéias simpáticas ao
reconhecimento da ME. Exemplo disso é o fato do Presidente da Sociedade
Brasileira de Medicina Estética Aloísio Farias de Souza ser, atualmente
(2009), o Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do
Espírito Santo.
5 A garantia da manutenção da autonomia é considerada parte integrante
do processo de conquista de hegemonia da profissão no mercado de
trabalho. Garantindo sua autonomia, o profissional passa a ter autoridade e
liberdade para se auto-regular e atuar em sua esfera de competência. A ME
adquiriu autonomia das demais áreas da saúde e possui EP próprio que não
depende mais das disciplinas geradoras de seu saber.
6 Instituir uma educação especializada através da qual a sociedade possa
distinguir o profissional do homem experiente e estabelecer normas que
175
assegurem competência técnica. O coroamento da profissão é a sua
capacidade de estabelecer educação especializada geradora de normas
reguladoras do exercício da profissão como é o caso dos cursos de PG em
ME.
4.10 Síntese Recorrente sobre o Estilo de Pensamento da Medicina Estética
Por meio da démarche fleckiana e com auxílio dos autores que serviram
de suporte a essa investigação, foi possível caracterizar o EP predominante da ME.
Ele é um modo distinto de ver, entender e conceber problemas relacionados aos
contornos corporais e longevidade do paciente.
O mesmo instalou-se em momento histórico e cultural que demandava
maior cuidado e atenção à forma física que, na existência de um prévio
condicionamento psicológico e social, possibilitou o seu aparecimento. Dito de outro
modo, o EP da ME é um modo de ver, entender e conceber problemas relacionados
a cuidados estéticos corporais, originado de objeto fronteiriço entre as demais áreas
relacionadas à estética, ocorrido por meio de processo dinâmico e que está sujeito a
mecanismos de regulação por parte de seu CP e das demais áreas as quais
interage. O mesmo foi determinado psico/sócio/histórico/culturalmente pelas
mudanças nos modelos normativos da sociedade contemporânea. Esse EP levou a
um corpo de conhecimentos e práticas que não encontra paralelo nas demais áreas
médicas que lidam com estética, portanto é próprio desse EP Esses conhecimentos
foram compartilhados por um coletivo com formação específica que passou a formar
especialistas na área, criando cursos de PG em ME. A presença destes cursos
enriqueceu mais esse saber, pois eles são locais de pesquisas, estudos e práticas
relacionadas a ME.
Contudo, outras categorias, outras formas de ver e entender esse
problema existem, e fogem ao escopo desse trabalho. A intenção do trabalho foi,
desde o início, caracterizar o EP predominante da MT e da ME para verificar se
existem ou não diferenças entre eles, de modo a permitir extrair reflexões para os
processos educativo/
pedagógicos da formação dica. Assim, ao longo desta
176
pesquisa foi possível observar alguns fatos que ajudaram a definir melhor o EP da
ME. Com base nestas observações apresenta-se as reflexões a seguir.
A medicina estética desenvolveu um estilo de pensamento próprio.
Inicialmente, o coletivo de pensamento foi formado pelos médicos pioneiros que
abandonaram suas especialidades de origem e resolveram realizar cursos de
aperfeiçoamento no exterior (SOUZA, 2005). Mais tarde, os próprios estudantes
graduados nas faculdades de medicina, passaram a procurar os cursos de medicina
estética para especializarem-se na área (GONÇALVES, 2005).
Todos esses dicos tinham como local de encontro da classe os
congressos da especialidade. Ali nos congressos, por meio de trocas de ideias, da
adequação a essa ou aquela técnica ou modo de atuar, o estilo de pensamento em
medicina estética foi se consolidando. Uma categoria presente no estilo de
pensamento em ME encontrada em todas as entrevistas realizadas nesta pesquisa
foi “necessidade econômica”. A grande maioria dos médicos que buscaram a ME o
fizeram por motivos econômicos, conforme relatam Souza (2005), Ribeiro (2006),
Gonçalves (2005), Reis (2008) e Romero (2008).
Outra categoria encontrada e que contribui para a configuração dos
elementos constitutivos do novo EP é o de “olhar superficial” em modificação a “olhar
profundo” da MT. Todo médico que se depara com o ato de praticar ME necessita
modificar a forma como aprendeu a olhar o paciente. Em ME não é possível tratar
simplesmente a enfermidade sem levar em consideração a pessoa portadora da
enfermidade: suas expectativas, suas carências, seus medos, suas ansiedades e
seus desejos. Em decorrência, algumas queixas subjetivas não valorizadas pela MT
encontram apoio na ME. Outro fato observado no ensino e na prática da ME foi à
necessidade do profissional obter conhecimentos das diversas áreas da medicina,
dominá-los e aplicá-los com vistas às melhorias na superficialidade do corpo. Ou
seja, aqui (ainda)
38
não se aplica o estilo de pensamento clássico da MT com
saberes fragmentados, no qual o médico se super-especializa em determinada área
e permanece atuando somente na mesma. O profissional de ME necessita saber
endocrinologia para manejar a obesidade, necessita conhecer angiologia para
38
Se coloca o termo ainda, pois o autor entende que, no futuro, a ME se fragmentará em
regionalidades específicas, como nos moldes da MT, devido aos avanços científicos e tecnológicos
que estão ocorrendo na área.
177
tratamento de varizes, cirurgia plástica para procedimentos estéticos cirúrgicos,
dermatologia para melhoramentos na pele, e assim por diante.
Relativo à fragmentação dos saberes médicos e a falta de interação entre
eles, Felix e Cutolo (2005, p 22) afirmam que desde a consolidação da ciência
moderna com Galileu, verificou-se a adoção de um método que a conduziria a um
saber especializado. Contudo foi a filosofia cartesiana que propôs a adoção de um
método analítico, no qual um problema deveria ser decomposto em partes para sua
melhor compreensão. Este procedimento conduziu as ciências ao processo de
especialização, onde o objeto de estudo foi se tornando cada vez mais reduzido,
sem que isso prejudicasse a quantidade de informações obtidas sobre este
conhecido como disciplinaridade. Os campos disciplinares não são estruturas fixas,
mas sim dependem de sua práxis. Desse modo, não são os campos disciplinares
que interagem entre si, mas sim os sujeitos na prática científica cotidiana.
Todo esse processo implicou na perda da noção de totalidade do real,
produzindo uma espécie de “consciência fragmentada”. Dado que a quantidade de
informações se expandiu muito, não havia mais a possibilidade de uma mesma
pessoa apresentar domínio total de todas as áreas do conhecimento. Isso se reflete
nas ciências, quando se verifica que todo o aprofundamento obtido analiticamente
nos permite compreender seu objeto de estudo isolado em si mesmo,
desconsiderando as diversas conexões desse objeto com o restante da realidade.
Por outro lado, existe também preocupação geral de todo o coletivo de
pensamento pela necessidade de reconhecimento da especialidade, para que os
profissionais sintam-se mais qualificados perante a sociedade e entre seus colegas
das demais áreas médicas e, desse modo, poder anunciar na mídia os seus
trabalhos, o que, atualmente, está proibido pelo CFM. Toda essa preocupação é
solidária entre os dicos que praticam ME, o que muitas vezes não é encontrado
nos praticantes da MT. Toma-se como exemplo um caso de um médico esteta que
esteja fazendo progressos em uma área determinada e que alcança sucesso. Na
MT, em geral, tal situação é motivo de ciúme ao profissional bem sucedido, uma vez
que, cientificamente ele não está acrescentando algo novo, ao passo que, onde
seria de se esperar inveja por parte dos colegas de ME por aquele médico, observa-
se justamente o contrário. Existe interesse em aproximar-se daqueles profissionais
em ME que estejam obtendo sucesso em determinada área da especialidade com a
178
finalidade de aprendizado. Portanto, o autor da pesquisa entende que a categoria
solidariedade profissional é maior na ME do que na MT.
Em síntese, o coletivo de pensamento em ME é mais solidário entre os
colegas e observa-se maior circulação de ideias entre as diferentes regionalidades
da mesma, ao contrário do que ocorre na MT. Deriva daí, a formação de um EP
originado de objeto fronteiriço na MT, de concepção biologicista e baseado em
evidências, com olhar orientado ao melhoramento da forma estética superficial do
paciente. Existe co-participação do paciente na enumeração dos problemas a serem
tratados. Os atos são realizados por profissionais fortemente motivados por aspectos
financeiros e que dominam as diversas áreas da medicina em prol de seus trabalhos
estéticos no paciente. Por decorrência, seus conhecimentos estéticos são mais
gerais e não estão ainda tão fragmentados em superespecialidades como é o caso
da MT e que mantêm maior solidariedade entre os colegas de sua profissão.
Para o autor desta pesquisa, o EP da ME, de concepção biologicista, não
representa ruptura com a MT. Pelo contrário, a ME não pretende desligar-se da MT,
até porque uma grande parcela de médicos estetas continua a praticar MT segundo
sua especialidade de origem em seus consultórios. Reis (2008) afirma que toda base
de conhecimentos da ME é baseada em evidências, não descartando o empirismo
como critério de formação de verdades. O que se observa, talvez por ser um
movimento incipiente, é que seus médicos atuam em diversas áreas da ME.
Contudo, se não ruptura é possível a formação de novo EP? Aqui se encontra a
dificuldade apontada por Fleck (1986) na caracterização de EP muito semelhantes
(objeto da pesquisa). A ME o pretende “romper” relações com a MT. Pelo
contrário: ela pretende constituir-se especialidade inserida na MT. Porém, sua
prática demanda conceitos unificados em torno de CP especializado com critérios
próprios. Isso gera um novo modo de praticar medicina que demanda EP que não
pode ser aquele praticado pela MT. Esse é o sentido da “ruptura”: uma mudança
gradual das teorias ao longo dos tempos.
Isso faz lembrar os antigos “clínicos gerais” que atuavam até a metade do
século XX em seus consultórios realizando os mais diversos tipos de procedimentos
tais como: pequenas cirurgias, partos domiciliares, pediatria e puericultura,
cardiologia, pneumologia, nefrologia, psiquiatria, etc. De formação biologicista, esse
médico necessitava possuir uma visão global do paciente e saber atuar em diversos
179
sistemas do mesmo paciente. Com as especialidades desenvolvidas, a figura desse
médico foi desaparecendo e hoje a MT é desenvolvida em regionalidades. De certa
maneira, o médico esteta lembra a figura deste “clínico geral do passado”: porém
“clínico geral da estética”. Ele necessita saber atuar em diversos sistemas do
paciente, pois, como dito, ainda não existem superespecialistas em regionalidades
da ME. Como o futuro chega a passos largos nos tempos atuais, talvez, em breve, a
ME se subdividirá em superespecialidades: médicos que atuem com laser,
médicos que realizam estética facial, outros que realizam estética corporal, e
assim por diante. Isso demonstra que o EP é dinâmico, processual e sujeito a
mecanismos de regulação.
Outro fato observado pelo autor da pesquisa foi perceber maior abertura
do CP médico esteta à integração com as demais áreas de saúde estética não
médicas, como é o caso da assim chamada fisioterapia dermato-funcional
(fisioterapia estética), nutrição clínica, educação física (personal trainer),
enfermagem, esteticistas e salões de beleza. Em visita a médicos estetas para
coleta de dados, foi possível observar que muitos deles trabalham em centros
estéticos (também chamados de spas urbanos) onde trabalham todos esses
profissionais de modo integrado. Muitos centros estéticos são de propriedade de
esteticistas não médicas que atendem sua clientela e aproveitam para agendar
consultas e procedimentos médico-estetas em seus clientes. Perguntados sobre o
porquê de esses médicos atenderem nestes centros a resposta foi unânime: custos
de manutenção de clínica menores e aumento do leque de atendimento com
aproveitamento de clientes das demais áreas estéticas. Da mesma forma observa-se
médicos estetas trabalhando em clínicas de fisioterapia, nutrição, academias de
ginástica e, até mesmo, em salões de beleza (para aplicação de toxina botulínica).
Enfim, destaca-se que o EP da ME tem como valores implícitos uma
medicina conectada ao contexto histórico atual com a inclusão da gênese social dos
inestetismos (doenças para a ME), mas com ênfase em práticas curativas,
biologicismo e vasta utilização dos avanços do tecnicismo. Assim, não se pode dizer
que o EP da ME é genuíno e puro. O termo mais adequado para defini-lo seria de
concepção híbrida. Esse hibridismo é derivado do fato que o EP da ME tem postura
mais aberta do que o da MT, porém não nega a origem desta. Ele leva em conta a
subjetivação dos conceitos com os quais trabalha, mas não abre mão do empirismo
180
e raciocínio lógico. Para melhor entendimento de sua gênese é necessário
considerar o EP da ME como objeto fronteiriço da inter-relação de saberes afins.
CAPITULO V
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base na epistemologia sociológica fleckiana, o apoio dos demais
autores e entrevistas realizadas, estudou-se o estilo de pensamento da medicina
estética e da tradicional. Fleck (1986) afirma que, para o entendimento da ciência, é
necessária a compreensão dos determinantes sociais do período histórico estudado.
Caso contrário, a concepção de ciência que se pode obter de determinada época
sem seus determinantes sócio-culturais é fictícia. A ME não existia há quarenta
anos. Assim, a pergunta recorrente neste trabalho foi: quais são as contingências
sociais que levaram a se falar em ME agora?
Entender o contexto histórico atual e seus desdobramentos sociais foi o
que possibilitou o entendimento do surgimento da ME como possibilidade. Desse
modo, Moreira (2009) em seu artigo a respeito dos primeiros anos deste terceiro
milênio afirma que foram anos que mudaram tudo, e ainda não consenso sequer
em como se deve chamá-los. Mas, no ano que vem (2010), estes primeiros anos
“zero”, “zero - zero”, “dois mil”, ou quiçá como serão chamados, terão se despedido
do horizonte presente, substituído pela primeira dezena do século 21. Foram breves
e intensos estes anos, bem distantes da insignificância anunciada pelo duplo zero de
sua fisionomia. Os anos em que a humanidade compartilhou, temeu, ganhou e
perdeu em grande escala.
Para ele (2009, p 05), décadas teóricos do pós-modernismo
apresentam sua visão do mundo posterior ao declínio das grandes utopias de
emancipação coletiva. Eles fazem análises e antecipações ora catastróficas, ora
desoladas, algumas vezes otimistas, sobre o mundo contemporâneo. Elas incluem o
dissenso, em lugar do consenso como regra geral; a expansão do capitalismo
transacional minando as associações profissionais e classistas regionais; fronteiras
mais permeáveis a capitais, uma prevalência da mercantilização dos valores e das
próprias individualidades; uma descentralização radical da economia. Os anos “00”
não foram aqueles do surgimento desses fenômenos, longe disso, foram apenas
182
aqueles em que esse cenário se consolidou em uma velocidade assombrosa e ao
mesmo tempo o momento em que, prejudicada pela própria velocidade, tal
consolidação foi eventualmente brecada ou sofreu mudanças de rumo.
Penso que esses anos 00 são de transformações, anos que a história não
vai tratar indiferentemente. São anos que demonstraram, na derrota
partidária de George W. Bush, a ineficácia do recurso a violência. Parece ter
se consolidado também a ideia de que a humanidade é maior do que a
cultura.
Para o autor, todas as ideologias avassaladoras da modernidade (o
positivismo, o comunismo, até o nazismo em certa medida), eram ensaios para uma
situação ideal de imobilismo. O triunfo da ciência/do proletariado/da raça ariana
instauraria no mundo uma ordem imutável que não seria mais abalada, algo como o
retrato final da história humana. Pois os anos 00 provaram que a história prefere o
vídeo à fotografia. Moreira (2009, p 05) diz que a imagem definidora dos anos 00 foi
gravada por acidente. Uma equipe francesa captando imagens de um dia comum no
trabalho dos bombeiros nova-iorquinos filmou o exato momento em que um avião se
chocava contra uma das torres do World Trade Center, dando início a um período
turbulento que ainda vivemos. A ação da Al Qaeda (uma organização totalmente
pós-moderna: descentrada, operando em células fragmentárias e sem conhecimento
de fronteiras nacionais) contra as torres e a reação dos Estados Unidos tocaram
fogo numa ensaiada oposição Ocidente cristão x Oriente muçulmano.
As imagens, repetidas a exaustão e evocando incessantemente
comparações com filmes-catástrofes, mostraram que o delirante Baudrillard
não estava exagerando de todo ao falar em real e simulacro. E cindiram
abruptamente o século 21 de seu antecessor, com efeitos que vão da
invasão americana ao Iraque sem o consentimento da ONU (em 2003) até
circunstâncias bem mais prosaicas, como um dos escritores dos anos 1980,
Salman Rushdie, reescrever um livro inteiro – Fúria, de 2003, começou
como uma comédia leve da sociedade nova-iorquina e ganhou o tom
sombrio de um réquiem para uma época que “mudou irreparavelmente”, nas
palavras do próprio autor.
Esta dissertação visou caracterizar o EP predominante na MT e na ME
para saber se os mesmos eram semelhantes ou diferentes. O pressuposto inicial era
que a ME possuía um EP próprio que demandava modificações na concepção
médica e sua prática operativa. A posse destas informações serviu para refletir sobre
183
os processos de formação médica. O referencial teórico foi apoiado nas noções
epistemológicas de Fleck (1986).
O estudo de casos da história da medicina levou Fleck (1986) a um
conceito totalmente novo da investigação científica, pois implantou e abordou
questões novas e permitiu que, as questões conhecidas, adquirissem uma nova
forma. Surge, assim, em Fleck (1986), o problema de como determinar a relação
entre história e teoria da ciência: trata-se de conseguir, mediante a elaboração da
história, enunciados sobre a constituição da ciência, de deduzir a partir do como foi o
como deve ser.
A postura de Fleck (1986) fica bem definida em sua teoria sociológica
comparada do conhecimento: O saber, como agregado de opiniões; sistêmico,
demonstrado, aplicável, evidente, é aceito por todo o coletivo como algo natural.
Porém, o que é considerado como evidente, demonstrado, entre outros, varia em
cada caso e, portanto, necessita análise individual caso a caso. O acréscimo de
conteúdo a essa racionalidade de um estilo de pensamento, será possível, somente,
por investigações comparativas. Fleck (1986, p 98) valoriza a vantagem do seu
embasamento na sua ampla aplicabilidade, que permite “comparar e investigar de
forma uniforme o pensar primitivo, arcaico, infantil e psicótico”, assim como os
distintos coletivos de pensamento científico. Por meio desta teoria comparativa do
conhecimento resulta uma maximalização em comparação com a forma de observar
herdada. Desta maneira, Fleck (1986, p 69) submete o postulado da máxima
experiência à teoria da ciência, o que considera como a lei suprema do pensar
científico. “Um princípio de pensamento que permita perceber mais detalhes
concretos e, mais relações necessárias, merece [...] prioridade”.
Para Parreiras (2006, p 9), a teoria de Fleck parece adequar-se melhor
aos eventos históricos, na medida em que o conceito de estilo de pensamento não
assume um caráter hermético por completo, mas é somente ligeiramente rígido,
permitindo tanto um desenvolvimento vertical do referido campo do
desenvolvimento, quanto à possibilidade de sua transformação substancial.
Contudo, não ruptura, mas uma alteração gradual das teorias ao longo do tempo.
Além disso, para esse autor, o conceito de proto-ideias fleckiano mostra tal
continuidade do conhecimento, de maneira que, a estrutura da teoria fleckiana
constitui-se, por esse motivo, em uma proposta bastante pertinente para a
184
historiografia da ciência, apresentando soluções onde Kuhn, apesar de reiterados
esforços, parece a Parreiras (2006) não alcançar sucesso.
Da mesma maneira, Pfuetzenreiter (2003, p 124-5), assinala que Fleck
mostra por meio da estrutura de uma comunidade científica (a comunidade de
sorologistas) que, ao contrário do que afirmam os críticos as suas ideias, o estilo de
pensamento não poderia se constituir em um obstáculo (obstacle) à percepção
objetiva, ou um mal necessário a ser eliminado demonstrando a importância da
história na formação de um estilo de pensamento específico no âmbito do
conhecimento científico. Fleck (1986) afirma ser impossível imaginar um
conhecimento científico destituído de estilo. É interessante o que Pfuetzenreiter
(2003) observou a esse respeito: Bachelard (1996), dois anos após a apresentação
da monografia de Fleck, iria trabalhar com a questão dos obstáculos em seu livro A
formação do espírito científico. Fleck (1986, p 164), anterior a Bachelard (1996),
menciona o obstáculo do grafismo dos especialistas:
O grafismo de um saber tem um efeito especial. O especialista recorre a
este meio quando quer fazer uma idéia compreensível a outra pessoa ou
quando necessita alguma regra mnemotécnica. Porém, o que era
inicialmente um meio adquire posteriormente o sentido de uma meta de
conhecimento. A imagem logra supremacia sobre as provas específicas e,
amiúde, regressa neste papel novo ao especialista.
Para Fleck (1986, p 68), toda teoria do conhecimento que não faça
investigações históricas e comparativas é apenas um jogo de palavras, uma
epistemologia imaginada:
[...] é ilusão crer que a história do conhecimento tenha tão pouca relação
com a própria ciência como, por exemplo, a história do telefone com o
conteúdo das conversações telefônicas: ao menos três quartas partes dos
conteúdos científicos, ou talvez a totalidade, estão condicionados e é
explicável histórico-conceitual, psicológica e sociologicamente.
Assim, em relação ao EP da medicina tradicional, é possível afirmar que o
mesmo é um EP mecanicista de concepção biologicista, fragmentado, que não abre
mão do empirismo lógico, do tecnicismo e do método analítico. As verdades aceitas
devem estar baseadas em evidência. É um EP baseado em tradição conservadora e
de certa forma fechado, com pouca relação às outras áreas da saúde e que possui
no trinômio instituição-professor-estudante o seu modelo de transmissão. Segundo
185
Fleck (1986), o EP é transmitido na forma de coerção de pensamento e não
oportuniza o pensamento crítico-reflexivo ao mesmo. Para Lima Gonçalves (2002),
os professores de medicina, na sua grande maioria não foram preparados para a
docência.
Essa posição encontra respaldo principalmente na pesquisa de Cutolo
(2001, p 137), que analisou a grade curricular do curso de medicina da UFSC em
1995. Neste trabalho, ele evidenciou uma estrutura flexneriana e o autor comenta
que os valores implícitos são de uma medicina desconectada de um contexto
histórico, com a exclusão da gênese social da doença, com ênfase em práticas
curativas, biologicismo e tecnicismo fragmentário e uma exaltação à prática de
clínica cirúrgica. Denunciou que o Internato era realizado integralmente em
entidades hospitalares, numa supervalorização da assistência secundária e terciária,
essencialmente cnica e descompromissada com as reais necessidades da
população. Na conclusão, argumenta que a hegemonia colocada é sustentada pelas
instituições, pessoas e atitudes que preparam o seu alimento básico, o currículo
oculto; mas que existe a contra-hegemonia e a resistência, à qual Cutolo (2001) se
alinha.
Da mesma forma, pode-se afirmar que o EP da medicina estética foi
originado dentro da MT. Os mesmos valores de tradição conservadora foram
transmitidos aos estudantes de ME na sua graduação. No entanto, por ser novo
campo de saber, as instituições responsáveis pelos cursos de formação em ME são
recentes e não possuem ainda tradição semelhante a MT, de modo que o EP da ME
parece ser mais aberto que o da MT (EP híbrido). Esta abertura deve ser entendida
como uma postura maior para a interdisciplinaridade, maior “desdogmatização dos
saberes”, maior tráfego de ideias entre as outras áreas da saúde e abertura para a
subjetivação dos métodos e decisões. Assim, as queixas subjetivas do paciente são
mais valorizadas na ME do que na MT, de modo que, sentimentos de insatisfação
consigo mesmo, auto-estima baixa e inadequação são valorizados dentro do EP da
ME.
Os cursos de PG em ME possuem o mínimo exigido pelo MEC de
mestres e doutores. Desse modo, foi possível observar que na ME, assim como
ocorre na MT, os professores não se dedicam exclusivamente à docência e não
foram preparados para ela. A experiência e trajetória dos professores são as
186
principais características para o exercício da docência nos cursos de formação em
ME. A motivação que leva um profissional escolher a ME, atualmente, é financeira. A
ME lida com um mercado em expansão.
No currículo do curso de PG em ME da SBME o autor da pesquisa
observou que o mesmo também está baseado em uma estrutura flexneriana com
ênfase em práticas curativas, biologicismo e tecnicismo. O curso é realizado
integralmente nos ambulatórios da sociedade mantenedora do curso em pacientes
carentes, porém nota-se preocupação maior com a formação cnica do estudante
médico e não tanto com as necessidades da população atendida. Não existe
atendimento pelo SUS em ME. Contudo, o currículo aponta algum viés de
preocupação com a interdisciplinaridade (exercício profissional e relações com
outras especialidades, ética profissional, psicologia em medicina estética,
concorrência e implicações legais), formação de docentes (didática do ensino
superior) e pesquisa científica (metodologia, trabalho científico em equipes e
estratégia de estudos).
Ao contrário da homeopatia e da acupuntura, a ME não possui visão
holística do paciente, ou seja, uma visão vitalista do homem. A visão da ME é a
mesma da MT, a visão mecanicista e biologicista. A diferença está em seu foco de
ação que é a superfície do corpo no caso da ME, porém permanece fragmentada em
sistemas. No entanto, vale lembrar que a ME não intenciona romper com a MT. Ela
não representa uma nova forma de fazer medicina. A ME intenciona ser
especialidade médica conformada aos cânones tradicionais da medicina. O curso de
PG tem como objetivo formar médicos especialistas em ME. Apesar de a ME ser
apresentada fragmentada em sistemas nos cursos de PG, o médico esteta necessita
manter visão abrangente do paciente, pois se trata de ciência ainda não super-
especializada, na qual o profissional se especializa somente em um sistema ou
órgão.
A diferença observada no EP da ME em relação ao EP da MT é que, ao
que tudo indica, a ME mantém postura mais aberta à interdisciplinaridade com as
outras áreas da saúde que, de certa forma, estão relacionadas com cuidados
estéticos corporais como é o caso da fisioterapia, cosmetologia, enfermagem,
educação física e nutrição. O médico esteta atua, muitas vezes, em ambientes
interdisciplinares (spas urbanos, academias e salões de beleza). Contudo, vale
187
ressaltar que esta postura aberta à interdisciplinaridade tem suas raízes mais nas
necessidades econômicas do que em interesses acadêmicos.
A ME encontra dentro da MT obstáculos à sua instalação. O embate
travado entre os médicos praticantes da medicina estética com os não praticantes
parece paradoxal ao observador. Pois, se todas as práticas realizadas pela medicina
estética são práticas médicas, porque tanta resistência à sua prática ou ao seu
reconhecimento como especialidade? Deveria a medicina estética não ser
realizada? A sociedade deixaria de necessitar dos cuidados médicos-estéticos? Ou
a mesma deveria ficar à mercê de profissionais não-médicos?
Ao que parece, o critério do debate não está nessas categorias, entre o
deixar ou não deixar de praticá-la ou se deveria ou não ser realizada por médicos.
Ao que tudo indica isso está bem estabelecido. O grande óbice da medicina oficial
às práticas médico-estéticas é justamente ao olhar orientado. A medicina oficial
argumenta que o profissional que a realiza, pinça de cada especialidade os
conhecimentos básicos específicos que são interessantes à sua prática sem se
preocupar com o dar conta de todas as patologias e problemas estudados em cada
especialidade. Nesse ponto cabe transcrever o Acórdão 002/06 do Processo Ético
103/2003 do Conselho Regional de Medicina do Estado de Santa Catarina -
CREMESC, o qual esclarece, com muita propriedade, a opinião da medicina oficial a
esse respeito:
A Medicina Brasileira contemporânea atravessa por algumas
transformações. A incansável busca pela beleza, pelo ser e parecer jovem,
pela melhoria das condições de saúde de uma parcela da população que
consegue alcançar idade avançada, gerou e gera cada vez mais o interesse
de alguns profissionais em se dedicar aos tratamentos estéticos. Vicejaram
desde a década de 90 os cursos de Medicina Estética- cursos estes para
todos os profissionais médicos que conseguirem custear seus pesados
custos. Assim, dentro da Dermatologia, que necessita de pós-graduação de
01 a 02 anos de formação na especialidade com estágios em histopatologia,
micologia, cirurgia dermatológica, alergia dermatológica, hansenologia,
dermatoses tropicais e genodermatoses; estágios em ambulatórios
específicos da especialidade e atendimentos a pacientes hospitalizados.
Dessa especialidade pinça-se apenas o tratamento através de peelings para
rejuvenescimento, o tratamento de estrias, os preenchimentos de rugas e
sulcos naturais, o tratamento da assim chamada celulite, aplicações de
toxina para rugas dinâmicas, o uso do laser, entre outros procedimentos de
caráter estritamente estético. Da cirurgia plástica, com seus cerca de 5 anos
de formação com estágios nas mais diversas áreas de atuação da cirurgia,
pinça-se apenas as lipoaspirações, lipomodulações, blefaroplastias,
dermoabrasões, etc. Da endocrinologia, com sua formação envolvendo
aprimoramento em Clínica Médica e o atendimento às mais diversas
entidades mórbidas de natureza endócrina, pinça-se somente o tratamento
188
da obesidade. Todos esses itens citados e outros tantos são abordados nos
cursos de Medicina Estética, realizados em finais de semana por períodos
de 06 meses. O investimento é alto e o retorno necessita estar assegurado.
A divulgação torna-se necessária para a meta ser alcançada. Neste ponto a
Medicina passa a ocupar um plano secundário e muitos de seus enunciados
éticos são deixados de lado. Não se trata de defender o monopólio de
especialidades, trata-se sim de resguardar o direito do paciente que, ao
procurar melhorar a sua aparência, necessita ter seu tratamento realizado
por profissionais com formação adequada, assegurada por provas de título
de especialidade, reciclagens, programas de educação médica continuada,
etc. Não se pode conceber atalhos quando se trata do bem maior que é a
saúde humana.
Estabelecido esse embate, não podemos estimar quando esse problema
será resolvido, mas podemos extrair algumas reflexões: Está clara a posição do
Conselho Regional de Medicina, órgão fiscalizador do exercício profissional e
defensor dos princípios éticos da medicina, ao afirmar que não se pode conceber
atalhos quando se trata do bem maior que é a saúde humana.
Qual saúde está representada e defendida pelo referido Conselho?
Evidentemente que se trata da saúde orgânica, aquela saúde que, de acordo com
Canguilhen (2001, p 35), está preocupada com: “[...] a vida no silêncio dos órgãos”.
A saúde interna, a saúde do olhar profundo.
É necessário que a medicina oficial apresente uma alternativa viável a
ME que conta da necessidade estética social, na qual o olhar sobre a
necessidade da forma seja valorizado e seja instaurado também pela mesma. Ou
então, diante da impossibilidade de apresentar tal alternativa, considerar o
reconhecimento do discurso da ME como especialidade médica. Continuar olhando
apenas as necessidades orgânicas do indivíduo e fechar os olhos às suas
necessidades estéticas é como dar as costas à realidade social.
Para Reis (2008) cada profissional escolhe aquilo que gosta para exercer
sua profissão. O cardiologista trata coração porque gosta de tratar doenças
cardiológicas. Não existe razão, segundo o autor, em estudar toda dermatologia,
cirurgia plástica, angiologia e endocrinologia para se tratar problemas estéticos
relacionados a essas áreas. Para esse autor, o conhecimento total é impossível.
Não obstante isso, o que se observa é que a MT não tem condições de
dar conta de todos os saberes da ME. Não existe paralelo, em que pese cuidados
estéticos, na MT que se compare ao currículo desenvolvido no curso de PG em ME.
Observa-se ainda um desconhecimento do CREMESC em relação ao curso de PG
em ME quando este afirma que os mesmos são realizados em finais de semana em
189
um período de seis meses, quando, em verdade, são realizados em módulos
semanais durante dois anos. Percebe-se nesse fato, como relata Faviero (2007, p
97) em sua dissertação sobre os Conselhos Profissionais de Saúde, que coexistem
objetivos e interesses encobertos pela manta legal dos Conselhos Profissionais,
motivações ainda não bem conhecidas, mas com alguns pressupostos como:
ampliação do poder político, hegemonia e domínio corporativista.
Com o reconhecimento da ME como especialidade médica por parte do
CFM a mesma teria possibilidade de evoluir mais ainda, pois sendo ministrada em
forma de residência dica com dedicação exclusiva dos estudantes possibilitaria
maior dedicação, pesquisa e enriquecimento do saber. Acolhendo a ME em seu
seio, a MT abre possibilidade para que o princípio de integralidade do indivíduo seja
respeitado (a necessidade estética ser incorporada como necessidade legítima do
indivíduo) e a ME poderá ser oferecida a parcela mais carente da população nos
moldes do SUS. Somente dessa forma a ME poderá aspirar um lugar na graduação
acadêmica.
Porém, se todas essas necessidades estéticas individuais são
procedentes, fazem parte do conceito de saúde e se a ME possui EP próprio e
configura-se como profissão médica, porque a mesma não está regulamentada pelo
SUS?
Felix e Cutolo (2005, p 19-20) afirmam que a criação do SUS,
reconhecendo o direito universal à saúde e tendo como prioridade a atenção
primária, passa a exigir a implementação de um modelo integral capaz de ser
resolutivo em todos os níveis de atenção. Segundo eles, várias têm sido as
iniciativas para que os princípios do SUS integralidade, universalidade, eqüidade,
regionalização, hierarquização, descentralização, participação social ganhem
força.
Dentre estes princípios destaca-se o da integralidade, que por ser um
termo polissêmico, pode adquirir várias interpretações. Esta prevê ação integral ao
indivíduo, como sendo um todo indivisível e integrante de sua comunidade. Reforça
que as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde o devem acontecer
de maneira desarticulada, devendo tratar o indivíduo na sua totalidade. Enfim, o
homem é um ser integral, biopsicossocial e deverá ser atendido com esta visão de
totalidade por um sistema de saúde integral, voltado a promover, proteger e
190
recuperar sua saúde. De sorte que, segundo Cutolo (2009 comunicação pessoal
ao autor da pesquisa), se no futuro ficar provado que a necessidade estética é parte
integrante do conceito de integralidade humana, ou seja, fazer parte da totalidade do
sistema de saúde integral do indivíduo, certamente o SUS pagará pelos
procedimentos estéticos e a ME será reconhecida como especialidade.
A medicina comunitária até o final dos anos 1980 não existia enquanto
especialidade e, atualmente, devido ao interesse social e políticas do Governo
Federal como o Programa Saúde da Família, a medicina comunitária é especialidade
reconhecida pelo CFM e é disciplina obrigatória nas faculdades de medicina
brasileira. Da mesma forma, a ME necessitará ocupar posição de interesse social e
fazer parte das políticas governamentais de estratégias de saúde para pretender
configurar-se como disciplina no currículo da faculdade de medicina.
Em realidade, a MT necessita entender que a ME está se consolidando
como nova profissão. Por essas razões a ME vem conquistando seu espaço dentro
do quadro de profissões e está lutando pelo seu reconhecimento. É uma maneira de
ver e tratar problemas relacionados à estética da forma corporal que conquistou seu
espaço. A ME constituiu-se como saber especializado derivado de demanda social
por necessidade de melhoramentos da forma corporal.
Em resumo, o estudo da EP da ME serviu, com apoio da epistemologia
fleckiana, ao entendimento da instalação de um novo saber médico como objeto
fronteiriço de saberes médicos relacionados à estética. Aos docentes cabe refletir os
processos que permitem condições de possibilidade à formação de novo saber.
Fleck aponta para a perspectiva sociológica da formação do conhecimento. É pelos
condicionantes histórico-culturais de determinada época e sociedade que um saber
é possível. Descobertas isoladas descoladas de seus determinantes históricos não
podem efetuar mudanças no EP hegemônico, elas servirão como proto-ideias de
futuras mudanças. De modo que a formação da profissão médico esteta só foi
possível devido às transformações histórico-culturais que a sociedade
contemporânea está vivenciando.
Dadas as condições sociológicas necessárias à formação do novo saber é
possível sua análise pela comparação sociológica fleckiana. Fleck fornece as
ferramentas para que se analise determinado saber a partir de características que
indiquem presença de coletivo de pensamento esotérico (especializado) em torno do
191
tema. As proto-ideias são pensamentos e descobertas adiante de seu tempo
histórico que permitem questionar o EP predominante, porém, lhes falta os
condicionantes históricos necessários para que elas evoluam de proto-ideias para
conexões ativas que influenciem as conexões passivas existentes. No fluxo e refluxo
de informações, o tráfego de ideias entre os círculos esotéricos e exotéricos, as
conexões ativas tendem a ser explicadas ou refutadas pelas conexões passivas do
EP (no período clássico do EP) ou transformam-se em anomalias, ou exceções. O
sistema coercitivo do EP passa a tornar-se mais aberto e vulnerável à influência das
exceções até chegar o ponto em que o EP se transforma em novo EP
A ME existia como proto-ideia nos anos 1970. Com o aumento das
demandas sociais por estética, fruto das transformações nos modelos normativos da
sociedade contemporânea, as disciplinas dicas que tratavam de estética
(endocrinologia, dermatologia, angiologia e cirurgia plástica) tornaram-se
insuficientes para atender a todas as necessidades estéticas da sociedade. Foi
necessário se formar um CP especializado somente em cuidados estéticos corporais
que se dedicasse integralmente a essa necessidade. Ele partiu de zonas fronteiriças
estéticas das demais especialidades para tornar-se objeto fronteiriço com formação
de EP próprio. O conjunto de sistemas e saberes operados pela ME são auto-
referenciados, ou seja, a visão da ME sobre determinado assunto é diferente da
visão da especialidade original. Exemplo disso é o tratamento para gorduras
localizadas em pacientes de peso normal. A ME leva em conta as insatisfações e
sentimentos de inadequação subjetiva sem ficar obrigada apenas pelas indicações
objetivas da MT. Isso produziu um ponto de inflexão epistemológico na ME que, a
partir do mesmo, a ME passa a conter ideias e saberes próprios da profissão
independente dos saberes originais. Entende-se que o deslocamento da visão
profunda para a superfície produziu um corpo de saberes e técnicas genuínos que
originaram nova profissão.
Esta pesquisa serviu-se de um exemplo ocorrido na medicina (formação
da ME a partir de especialidades médicas tradicionais) para debater temas
relacionados à educação médica. Foi possível analisar a ME desde os seus
determinantes históricos até a instalação de novo saber derivado da troca de ideias
entre as disciplinas que lidavam com objeto comum entendido como cuidados
estéticos. Conceitos como interdisciplinaridade, inter-relação de saberes, tráfego de
192
ideias, zonas fronteiriças são motivo de intenso debate acadêmico na Educação e,
na maioria das vezes, são objeto comum, apesar da denominação diferente: todos
estão relacionados com fluxo e refluxo de ideias entre diferentes disciplinas.
Percebeu-se até aqui que a formação da ME, a qual é fruto dessa inter-
relação de saberes, não se deu porque alguém ou alguma instituição decidiu reunir
um grupo de especialistas da endocrinologia, dermatologia, angiologia e cirurgia
plástica para debater a respeito de assuntos estéticos e decidiu formar novo objeto a
partir destes debates. A inter-relação ocorre sem ser forçada e o papel dos
intelectuais é observar e dar-se conta que o processo está ocorrendo e promover a
reflexão crítica-reflexiva dos estudantes. Isso é referido porque se percebe que,
muitas vezes, temas como interdisciplinaridade são comuns nas universidades. Mas,
não é chamando a química, a biologia, o direito, a medicina e a engenharia para o
debate que se dará o processo de inter-relação de saberes. Cada área falará
somente de si. O que transforma o conhecimento e origina novas ideias desses
debates interdisciplinares é a necessidade e interesse social. Aos educadores cabe
o papel de observadores críticos reflexivos e proponentes de ideias e alternativas
que contemplem a dinâmica da formação do novo saber e suas conseqüências.
Podem-se fomentar debates interdisciplinares para saber a opinião de cada área do
saber, mas sem pretensões de formação de novos conhecimentos a partir destes
debates. Não é possível “forçar” uma interdisciplinaridade. Ela ocorrerá quando for
necessária a sua ocorrência dentro ou fora da academia (como foi o caso da ME).
Assim, sob a ótica fleckiana, partindo-se do estudo do EP da ME, entende-se que
um saber origina-se pelos determinantes sociais e históricos de determinada época
que produz um corpo de conhecimentos especializados de um coletivo de
pensamento próprio. Esse coletivo de pensamento origina linguagem própria e
adquire autonomia de seus atos, pois está regido por um estilo de pensamento que
agrega conhecimentos e técnicas específicas daquele determinado saber.
Em síntese, é a prática social que determina a necessidade de formação
de estilo de pensamento próprio, o qual conduz seus membros a se organizarem em
torno de ideias comuns. Esse estilo fecundo origina saberes especializados que se
organizam em torno de atos próprios de uma profissão. O embate travado com os
demais EP e seu reconhecimento pelas instituições reguladoras dependerá dos
interesses envolvidos enquanto necessidade social e políticas de governo. Aos
193
educadores cabe entender os desdobramentos desse processo em prol do
desenvolvimento da consciência crítica-reflexiva do estudante para aprimorar a
educação do mesmo.
Por fim, cabe mencionar que algumas limitações foram observadas ao
longo deste empreendimento teórico. Esta pesquisa não ambicionou ser um estudo
sobre ME ou sobre epistemologia sociológica fleckiana. Eles serviram de suporte
aos propósitos do autor que foi extrair reflexões sobre educação a partir do estudo
de EP distintos ou semelhantes. O autor serviu-se da ME como exemplo por ser
tema com o qual lida diariamente em sua prática profissional. Por constituir-se saber
recente, encontrou-se muitas dificuldades na obtenção de publicações que abordem
temas relacionados a ME, necessitando realizar entrevistas com especialistas na
área.
Alguns tópicos deverão ser aprofundados em trabalhos posteriores. O
autor pretende continuar a investigação de tópicos pertinentes a essa pesquisa em
uma futura tese de doutoramento onde, além de aprofundar os debates aqui
levantados, o mesmo propõe-se pesquisar com maior atenção os interesses
econômicos e industriais envolvidos no surgimento da ME e sua influência nos
processos de formação médica.
194
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202
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203
APÊNDICE A: O ESTILO DE PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA:
REFLEXÕES SOBRE A BASE EPISTEMOLÓGICA DA FORMAÇÃO MÉDICA
Questionário/entrevista
Prezado (a) Médico (a),
Este questionário pretende colher dados para a confecção de minha dissertação de
Mestrado em Educação. Para tanto, solicito sua contribuição ao tempo em que
asseguramos sigilo e anonimato absoluto de suas informações.
Cordialmente,
Prof. Henri Fernando Bischoff
Prof. Dr. Ilton Benoni da Silva (Orientador)
Parte I – Identificação
Item Descrição
1 Sexo:
a) masculino b) feminino
2 Idade (em anos)
a) abaixo de 22 b) de 23 a 27 c)28 a 32
d)33 a 37 e)38 a 42 f) acima de 42
3 Qual seu envolvimento com a Medicina Estética?
a) sou professor de curso de PG em Medicina Estética
b) sou estudante de curso de PG em Medicina Estética
c) apenas pratico Medicina Estética em meu consultório
Parte II - Enunciação de Conceitos
Questões para serem gravadas
4
Porque optou em realizar ME?
5
Quais eram os determinantes político-sociais da época em que optou pela ME?
6
Qual é o conceito corpo-organismo, saúde-doença e vida-morte para a ME?
7
Que inter-relação existe entre ME e MT?
204
8 Na sua graduação médica foi abordado o tema estética
? Quantas aulas teve
em todo o seu curso sobre estética?
9
Em sua opinião como o médico esteta o paciente? Qual é a visão da ME
para o tratamento das doenças estéticas?
10
Houve mudanças na sua prática médica derivadas de mudanças do olhar
médico?
11
Que diferenças existem em pacientes tratados pela ME e pela MT?
12
Como foi sua PG em ME?
13
Fale sobre o curso de PG em ME.
14
Você acha que o curso de PG em ME deveria ser ministrado em regime de
dedicação exclusiva como nos moldes de residência médica?
15
Dê sua opinião a respeito dos professores do curso de PG em ME.
16
Qual é o perfil do estudante do curso de PG em ME?
17
Existe pesquisa no curso de PG em ME?
18
Qual é o método de avaliação do estudante?
19
Os professores são remunerados?
20
Qual é a porcentagem de professores titulados no curso de PG em ME?
21
Existe formação de sociedades de ME?
22
Existem congressos e simpósios de ME?
23
Em sua opinião quais são as perspectivas para a ME ser reconhecida como
especialidade médica?
24
O que será necessário para a ME ser ensinada na faculdade de medicina?
25
Faça comentários gerais a respeito de ME.
205
APÊNDICE B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO DO
PARTICIPANTE
Estamos realizando uma pesquisa intitulada “O ESTILO DE
PENSAMENTO EM MEDICINA ESTÉTICA: REFLEXÕES SOBRE A BASE
EPISTEMOLOGICA DA FORMAÇAO MÉDICA”.
O (a) Sr (a). foi plenamente esclarecido de que ao responder as questões
que compõem esta pesquisa estará participando de um estudo de cunho acadêmico,
que tem como um dos objetivos Identificar os conceitos formadores do estilo de
pensamento da medicina estética.
Embora o (a) Sr (a) venha a aceitar a participação nesta pesquisa, está
garantido que o (a) Sr (a). poderá desistir a qualquer momento, bastando para isso,
informar sua decisão. Foi esclarecido ainda que, por ser uma participação voluntária
e sem interesse financeiro, o (a) Sr (a) não terá direito a nenhuma remuneração.
Não são conhecidos riscos ou prejuízos em sua participação na pesquisa.
Os dados referentes ao Sr (a) serão gravados, escritos e lhe são
garantidos o sigilo e privacidade, sendo que o (a) Sr (a) poderá solicitar informações
durante todas as fases da pesquisa, inclusive após a publicação da mesma.
A coleta de dados para a pesquisa se desenvolvida através de
entrevistas individuais pelo Estudante regularmente inscrita no Mestrado em
Educação da UNESC, HENRI FERNANDO BISCHOFF (f 48 3433 0145 / 8435
5464), sob a responsabilidade do Orientador Dr. Ilton Benoni da Silva.
Criciúma (SC) ____________ de ________________ de 200___.
Assinatura (de acordo)
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