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UNIVERSIDADE DE MARÍLIA UNIMAR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
JAQUELINE MARIA BERTONCINI TOPPAN
“AMOR & CIA”
A MÍDIA CINEMATOGRÁFICA COMO RECURSO
DIDÁTICO NO ENSINO DA LITERATURA.
Ensino Fundamental (2º ciclo) e Médio
MARÍLIA
2009
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JAQUELINE MARIA BERTONCINI TOPPAN
“AMOR & CIA”
A MÍDIA CINEMATOGRÁFICA COMO RECURSO DIDÁTICO NO
ENSINO DA LITERATURA.
Ensino Fundamental (2º ciclo) e Médio
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação da Universidade de Marília (Unimar)
para obtenção do Título de Mestre em
Comunicação.
Área de Concentração em Mídia e Cultura: Linha
de Pesquisa Ficção na Mídia.
Orientadora: Profª Drª Ana Maria Gottardi
MARÍLIA
2009
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Universidade de Marília
Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Reitor Dr. Márcio Mesquita Serva
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-graduação
Pró-reitora Profª Drª Suely Fadul Villibor Flory
Coordenadora: Profª Drª Rosângela Marçolla
NOTAS DA BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
Jaqueline Maria Bertoncini TOPPAN
AMOR & CIA”: A MÍDIA CINEMATOGRÁFICA COMO
RECURSO DIDÁTICO NO ENSINO DA LITERATURA
Ensino Fundamental (2º ciclo) e Médio
Data da defesa: _______/________/___________
Banca Examinadora
Profª. Drª. Ana Maria Gottardi UNIMAR - Marília
Avaliação:________________________________Assinatura:______________
Profª. Drª. Elêusis Mirian Camocardi - UNIMAR - Marília
Avaliação:________________________________Assinatura:______________
Profª. Drª. Heloisa Helou Doca UNIMAR- Marília
Avaliação:________________________________Assinatura:______________
Dedico esse trabalho a minha mãe, meu exemplo, minha luz.
Que sempre esteve ao meu lado, nos sonhos e pesadelos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Nossa Senhora, minha protetora e guia, pela oportunidade concedida e
pelas pessoas que colocou em meu caminho durante esse trajeto, que apesar de
muito desejado, não foi fácil trilhar. .
Meu marido e filha: Maire e Fernanda, pela paciência e compreensão nas horas de
nervosismo, ansiedade, aflição e angustia. Fer, meu de coelho”, que tanto me
auxilia em tudo na minha vida, que me ensinou o significado de ser mãe.
Meus pais: Niuro e Maria, por acreditarem em mim sempre. Certamente sem minha
mãe, não teria conseguido chegar até aqui.
Meus irmãos: Ângela e Júnior, por todo o apoio que sempre me deram, inclusive a
idéia inicial, An , devo a você. E Jú por ser minha inspiração sempre.
Bê, obrigada pelo incentivo inicial, sem ele não teria conseguido.
A Profª. Drª. Ana Maria pelo carinho, dedicação e paciência que me dedicou no
decorrer da orientação. A Profª. Drª. Elêusis pelo acolhimento, não inicial, mas
durante todo o curso. A Profª. Drª. Heloisa, pela prontidão com que aceitou em fazer
parte desse trabalho. E a todos os professores que me mostraram uma nova
maneira de ver o mundo, “através do olhar da câmera” Muito obrigada.
“Uma literatura é a melhor justificação duma nacionalidade -e muitos anos passarão antes
que ela acredite que são os homens de letra que dão a um país a sua posição e o seu valor na
civilização; que um soneto pode salvar uma nação do esquecimento; e que, se ainda hoje se fala de
Roma, é isso devido às odes de um sujeito que no seu tempo não foi senador, nem banqueiro, mais um
simples bon vivant, e que se chama Horácio.”
Eça de Queiroz
RESUMO
O presente trabalho tem como proposta analisar o filme Amor & Cia. (1998), dirigido
por Helvécio Ratton, com roteiro adaptado por Carlos Alberto Ratton, da novela
Alves & Cia., de Eça de Queiroz. O estudo realiza uma comparação entre a obra
literária original e a obra fílmica adaptada, cujo objetivo é verifica como ocorre o
diálogo entre as duas obras. Para tanto, analisam-se as especificidades da
linguagem cinematográfica, uma estrutura sincrética que envolve uso da câmera,
planos, seqüências, cenário, luz, figurino, diálogos, música, procurando demonstrar
a maneira como os recursos da linguagem literária foram transpostos para a
linguagem cinematográfica. A análise enfatiza ainda as metáforas e símbolos
utilizados no roteiro para criar índices e sugestões que enriquecem a narrativa
fílmica. O filme é uma adaptação livre, que transpõe a história de Lisboa para a
cidade de ..São João Del Rey , em Minas Gerais, mas que mantém a crítica social, a
sátira e o humor refinado do autor português. Finalmente, com o estudo desta
transcodificação de uma narrativa literária para a linguagem fílmica, propõe-se a
utilização de filmes com roteiros baseados em livros, como um recurso didático para
despertar o interesse dos alunos para a leitura das obras literárias focalizadas.
Palavras-chave: Literatura. Cinema. Adaptação fílmica. Sátira. Recurso Didático.
ABSTRACT
This work has as an aim to analyse the movie Amor & Cia. (1998) , directed by
Helvecio Ratton , with the adapted script by Carlos Alberto Ratton, from the novel "
Alves & Cia, by Eça de Queiroz. There's a comparison between the original work and
the adapted movie, with the objective of analysing how the dialogue between both
works happened. Therefore there's an analyses of the particularity of the movie
language, a structure that involves the use of the camera , perspectives, sequences,
scenery, light, dressing , dialogues, music, trying to show the way in which the
resources of the literary talk were adapted into the movie talk. This study emphasizes
the metaphors and symbols used on the script to create lists and suggestions to
enrich the movie talk. The movie is a free adaption, that transfers the history from
Lisbon to the city of Sao Joao De Rey, Minas Gerais, maintaining the social criticism,
the satire and the refined humor of the Portuguese author. Finally, with this study, it’s
set out the using of movies based on novels as a motivation for the reading of them.
Key - words: Literature. Cinema. Adaptation movie. Satire.
Lista de Ilustrações
Figura 1- Eça de Queiroz p.15
Figura 2 - Alves & Cia, o livro p.17
Figura 3 - Representação gráfica comparativa p.27
Figura 4 - Cenas do filme Capitu (1968) p.32
Figura 5 - Cenas do filme Dom (2003) p.33
Figura 6-- Cartazes de apresentação do filme Amor & Cia p.35
Figura 7 - Capa do filme p.40
Figura 8 - (Alves) Marco Antônio Barroso Nanini p.41
Figura 9 - (Ludovina) Patrícia Gadelha Pillar p.41
Figura 10 - (Machado) Alexandre Borges p.41
Figura 11 - (Neto) -Rogério Cardoso p.42
Figura 12 - (Carvalho) Claudio Mamberti p.42
Figura 13 - (Medeiros) Ary França p.42
Figura14 - (Margarida) Maria Sílvia p.42
Figura15- (Aprígio) Nelson Hannequim Dantas Filho p.42
Figura 16 - (Abílio) Ruy Resende p.42
Figura17 - Fachada antiga p.45
Figura 18 - Retrato de Ludovina p.46
Figura 19 Bastidores p.46/ 47
Figura 20- Esquema1 p.51
Figura 21- Esquema 2 p.52
Figura 22- Seqüência do trabalho, cena externa do escritório. p.54
Figura 23- Seqüência do flagrante p.55
Figura 24- Seqüência do flagrante p.55
Figura 25- Seqüência da audição de piano p.56
Figura 26- Seqüência da traição p.58/59
Figura 27- Seqüência da traição p. 60
Figura 28- Seqüência da tentativa de suicídio p.61
Figura 29- Seqüência da solidão p.63
Figura 30- Seqüência da tentativa de afogamento p.65/66
Figura 31-seqüência da solidão p.67
Figura 32- cena do quarto p.68
Figura 33- Cenas do filme Amor & Cia p.68
Figura 34- Cenas do filme Amor & Cia p.70
Figura 35- Cenas do filme Amor & Cia p.71
Figura 36- Cenas do filme Amor & Cia p.72
Figura 37- Cenas do filme Amor & Cia p.74
Figura 38- As rosas vermelhas p.75
Figura 39- As maçãs p.76
Figura 40- O tringulo amoroso p.77
Figura 41- Representação gráfica do suposto triângulo amoroso p.77
Figura 42- O triângulo amoroso p.78
Figura 43- Representação gráficas do suposto triângulo amoroso p.78
Figura 44- O triângulo das maçãs p.79
Figura 45- A tríade formada pelas crianças p.80
Figura 46- Esquema na tríade das crianças p.80
Figura 47-O xale preto cobrindo o retrato de Lulu p.80
Figura 48-O relógio parado p.81
Figura 49- Os dados, a sorte está lançada p.81
Figura 50- A pulseira p.82
Figura 51- Alves em frente ao dossel p.82
Figura 52- Alves observa a carne ser cortada p.83
Figura 53- Indice do caos p.84
Figura 54- A volta a vida p.84/85
Figura 55-Triângulo final: Alves ao centro p.85
Figura 56- O esquema do triângulo final p.85
Figura 57- Alves dando ordens aos empregados p.93
Figura 58- Alves e Machado no escritório p.95
Figura 59-. Seqüência em que Alves pega o folhetim escondido p.96
Figura 60- Alves e Machado ouvem Lulu ao piano p.96
Figura 61- O triangulo: Alves, Ludovina e Machado p.97
Figura 62- O sonho de Alves p.98/99
Figura 63-. Alves num cabaré p.101
Figura 64- Alves encontra Lulu e Machado juntos p.105
Figura 65- Alves e o médico p.106
Figura 66- Alves num ataque de furia p107
Figura 67- Atitude zombeteira dos amigos p.108
Figura 68- A suposta gravidez p.110
Figura 69-Ludovina e o filho p.111
Figura 70-Final da narrativa fílmica p.114
Sumário
INTRODUÇÃO 12
1 PERCURSO ENTRE NOVELA E OBRA CINEMATOGFICA 14
1.1 Alves & Cia.:contexto da obra original 17
1.1.1 Alves & Cia: resumo da obra 24
1.2 Adaptação 25
1.3 Contextualização da obra fílmica 34
1.3.1. Ficha técnica 40
1.3.2. Elenco 41
1.3.3. Sinopse 43
1.3.4. Premiações 43
1.3.5. Bastidores da filmagem 44
2 AMOR & CIA: ALGUNS ASPECTOS DA LINGUAGEM FÍLMICA______ 48
2.1. Movimentos de câmera, enquadramentos, planos e angulações _ 52
2.2. Iluminação, cenografia e figurinos: atmosfera ______ 64
2.3. Metáforas, símbolos e índices: 72
2.3.1. O vermelho 73
2.3.2. O triângulo _ 76
2.3,3 .Os índices de caos e outros _ 80
2.4. Trilha sonora 86
3 NOVELA E FILME: APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS 92
3.1. Um paralelo entre as obras por meio do personagem Alves _ 92
3.2. Enfoque literário e fílmico: Ironia, Humor, Paródia, Carnavalização 101
3.3 Acréscimos ou supressões de personagens e fatos 108
3.4. Os diferentes finais 111
Considerações Finais 115
Referencias______ 118
Anexo 125
12
Introdução
Este estudo surgiu de nossa experiência didática, quando, ao lermos a
novela de Eça de Queiroz, Alves & Cia, obra pouco conhecida do autor, nos
deparamos com um texto satírico, que faz uma contundente crítica à sociedade
portuguesa da época, pelo viés da comicidade. A leitura da novela levou-nos ao
filme Amor &Cia, uma adaptação da narrativa de Eça, com roteiro e direção de
Helvécio Ratton. Pensamos num estudo comparativo, que evidenciasse as relações
intermidiáticas, literatura e cinema, tendo em vista um objetivo pedagógico que
seguisse o caminho inverso da nossa leitura: lembrar as produções fílmicas como
um recurso didático para despertar o interesse dos alunos por narrativas literárias
transcodificadas para o cinema, ao mesmo tempo que os alunos do Ensino
Fundamental (2º ciclo) e Médio comecem a entender as técnicas cinematográficas
utilizadas numa adaptação ou na mudança de linguagem.
Portanto, este estudo objetiva analisar as interfaces de um mesmo tema em
mídias diferentes. Enfoca a questão da adaptação” de linguagens, de um modo
geral, e, especificamente, a transformação da linguagem literária na linguagem
fílmica, começando com as questões referentes ao roteiro.
Para o desenvolvimento da análise, utilizaremos o método dedutivo, que vai
do geral para o específico. Esclarece-nos Duarte e Barros (2009; p.45) a partir de
teorias gerais ou de longo alcance, o pesquisador estabelece relações com o seu
objeto específico de pesquisa de forma lógica, relacional e aplicativa.”
A análise vai incidir principalmente sobre a linguagem cinematográfica,
apresentando as estratégias e técnicas utilizadas para compor a narrativa fílmica,
evidenciando recursos como: focalizações da câmera, planos, seqüências,
iluminação, trilha sonora e outros. Isso nos obrigará a um extenso levantamento
bibliográfico sobre a arte e técnica cinematográficas, que nunca antes
trabalhamos com cinema.
No primeiro capítulo, faremos um levantamento do percurso da novela de
Eça até o filme de Ratton, contextualizando cada uma das obras separadamente.
Para tanto buscaremos fundamentação em diversos teóricos e estudiosos sobre Eça
de Queiroz, localizando a obra Alves & Cia na trajetória do autor, entre outros
Quando tínhamos verbos Frases, citações e pensamentos de Eça de Queirós, de
13
Marcelo Rollemberg (org.) (2000). Da mesma forma, pesquisaremos textos a
respeito do filme de Ratton, que poderão nos revelar os bastidores da criação de um
filme, principalmente no livro: Helvécio Ratton: o cinema além das montanhas, de
Pablo Villaça (2005). como apoio teórico para estabelecer as relações entre as
duas linguagens, destacamos: Conjunções - Disjunções- Transmutações: da
literatura ao cinema e à TV, de Anna Maria Balogh (2005), bem como A Theory of
Adaptation, de Linda Hutcheon (2006).
no segundo capítulo, mergulharemos na linguagem cinematográfica,
explorando os movimentos da mera, os enquadramentos, a iluminação, a
atmosfera, a música e, por fim, as metáforas e símbolos. Contamos com o auxilio de
teóricos para desvendarmos essa linguagem: A linguagem Secreta do Cinema, de
Jean-Claude Carrière (1995); Roteiro de cinema e televisão : A arte e a técnica de
imaginar, perceber e narrar uma estória, de Flávio Campos (2007); Literatura no
cinema, de João B. de Brito (2006); Cinematizações: idéias sobre literatura e
cinema, de Renato Cunha (2007); A linguagem cinematográfica, Marcel
Martin(2007); Ensaio sobre análise fílmica, de Francis Vanoye e Anne Goliot Lètè
(2006); A música do filme: tudo que você gostaria de saber sobre a música de
cinema, de Tony Berchmans (2006); entre outros.
No último capítulo, faremos uma análise comparativa entre as obras fílmica e
literária, procurando evidenciar pontos de aproximação ou de distanciamento entre
elas, tentando mostrar até que ponto a narrativa fílmica mantém o enfoque irônico e
satírico da novela de Eça. Utilizaremos para embasar nossos estudos, os seguintes
teóricos: Uma Teoria da Paródia (1985) e Teoria e Política da Ironia (2000), ambos
de Linda Hutcheon; Ironia e humor na literatura, de Lélia P. Duarte (2006); A arte da
adaptação: como transformar fatos e ficção em filme, de Linda Seger (2006);
Palavra e imagem: leituras cruzadas, de Ivete L.C. Walty (2000); Paródia, Paráfrase
e Cia, de Afonso R. de. Sant’Anna (2006); entre outros.
A passagem de um código para outro pode levar o leitor/espectador a
descobrir novos prazeres, novas linguagens, imagens inesquecíveis, mas para tanto
é imprescindível que as obras sejam apreciadas cada uma em sua linguagem. Por
outro lado, no trabalho pedagógico, a atração exercida pela linguagem sincrética do
cinema, com imagens, luzes, cores e sons, pode servir de motivação que leve à
leitura das obras literárias correspondentes.
14
1 PERCURSO DA NOVELA À OBRA CINEMATOGFICA.
O autor de Alves & Cia, José Maria Eça de Queiroz nasceu em Portugal, no
vilarejo de Póvoa do Varzim., em 25 de novembro de 1845.
No ano de 1861, entrou para a Universidade de Coimbra. se envolveu
com Antero de Quental e seu grupo, participando ativamente da implantação do
Realismo em Portugal. Após formar-se em advocacia, passa a escrever para jornais.
No ano de 1872, inicia sua carreira como cônsul, fora de Portugal. Primeiro
vai servir em Havana, Cuba, depois na Inglaterra. Em 1886, Eça casa-se com Emilia
de Castro Pamplona, com quem teve quatro filhos. A partir de 1888 torna se cônsul
em Paris, onde morre em 1900, aos 55 anos, deixando uma das mais importantes
obras de toda a Literatura Portuguesa.
Suas primeiras obras impressas (1865-1871) eram textos em prosa poética,
intitulados Notas Marginais, publicados no jornal Gazeta de Portugal. Nesta
primeira fase, Eça era fortemente influenciado pelo Romantismo, sofrendo influência
de Baudelaire. Apresenta obras com construções simples
. Mais tarde, Eça passa a produzir uma literatura de cunho realista- naturalista
recheada de metáforas, comparações, ironia, sarcasmo destrutivo, em que mostrava
certo anticlericalismo. As obras que marcaram essa fase foram: As Farpas, O Crime
do Padre Amaro e O Primo Basílio. Nela retrata a burguesia lisboeta em toda sua
promiscuidade. Nesse período sofreu influência de Balzac, responsável pelo
movimento realista na França e de Gustave Flaubert, cuja obra apontou-lhe os
caminhos de saída da literatura romântica. Madame Bovary foi o exemplo
apresentado por Eça na conferência do Cassino Lisbonense.
Balzac, com efeito, é o meu mestre...ele é com Dickens, certamente,
o maior criador na arte moderna. Mas é necessário não ser ingrato
para com a influência que tem no realismo Gustavo Flaubert o seu
estilo, a sua profunda ciência dos temperamentos tem feito na arte
contemporânea uma revolução importante. Eu procuro filiar-me
nestes dois grandes artistas: Balzac e Flaubert...Isso bastará para
fazer compreender as minhas intenções e a minha
estética...(ROLLEMBERG, 2000, p.77)
15
Entre os anos de 1888 a 1900, considerada fase de sublimação artística,
vemos um escritor com uma preocupação moral diferente. Suas críticas o mais
humanizadas, é mais otimista, tem mais cautela com os temas. Notamos certa
nostalgia, uma maturidade maior. Nesse momento, Eça de Queiroz escreveu, entre
outras, A Cidade e as Serras e A ilustre Casa de Ramires.
¹Fig. 1- Eça de Queiroz (1845-1900)
Alves & Cia, novela publicada no início do século XX, tem como pano de
fundo a sociedade lisboeta do século XIX
. Tamm o recorrente, o triângulo
amoroso, aparece nas obras: O Primo Basílio, Os Maias, A Tragédia da Rua das
Flores e finalmente em Alves & Cia.
Essa obra, diferentemente das outras, é uma divertida sátira, com o
objetivo de reduzir o orgulho masculino e a falsa moralidade portuguesa da época.
O que Eça pretende denunciar em Alves & Cia é a sobreposição de motivos menos
nobres para sufocar um escândalo que seria condenado pela moral vigente: Lulu
retorna ao lar em busca do conforto e luxo. Alves e Lulu se revestem do caráter
prático: alívio pelo regresso da ordem doméstica.
___________________
¹Figura retirada do site: http://esbatalha.ccems.pt/romanicas/11ano/11ano_indice.htm
16
O bem estar financeiro engole outras pretensões e preocupação com a
honra ou a moral.
Como é próprio da novela, a narrativa é composta por personagens planos,
ou seja, sem grande intensidade interior, tendo seu foco nas peripécias da trama,
que definem e moldam suas vidas.
Eça, um autor detalhista, de acordo com a estética realista a que pertence,
compõe o cenário de forma que o leitor consegue visualizar até os pormenores da
composição, como podemos observar neste trecho:
Mas ali, naquele gabinete onde nunca dava o sol, assombreado
pelos altos prédios fronteiros, havia uma frescura que as persianas
verdes, corridas, envolviam numa penumbra repousada; e o verniz
das duas cadeiras- a dele e a do sócio- a esteira que cobria o chão, o
repes verde bem escovado das cadeiras, uma moldura de Luanda, a
alvura lustrosa dum grande mapa na parede, tinham um ar de
arranjo, de ordem, que punha no gabinete um repouso, uma frescura
maior. (QUEIROZ, 1952, p.18 ,19).
Ao ler a obra de Eça, o diretor Helvécio, que estava em busca de um tema
para seu próximo filme, vislumbrou a possibilidade de criar uma obra fílmica, talvez
motivado por um texto que semelhava, em seus detalhes, notas para um roteiro
cinematográfico. Assim comenta ele no livro Helvécio Ratton : o cinema além das
montanhas:
-Helvécio você leu Alves e Cia., do Eça de Queiroz? Foi com esta
pergunta que surgiu Amor & Cia., meu terceiro longa metragem. A
indagação foi feita por Leonardo Magalhães Gomes, tio de Simone,
que me apresentou ao conto que o escritor português deixara
inacabado e que acabou sendo encontrado por seu filho em um baú,
tempos depois de sua morte. (VILLAÇA, 2005, p.333)
Era uma obra literária rica em detalhes, com um tipo de humor que
chamou sua atenção. Outro fator foi tamm o tema, uma possível traição, o que
poderia tornar-se um excelente argumento para seu próximo filme. Notou que as
críticas contidas na novela sobre a sociedade lisboeta da época, em muito
17
condiziam com as que poderiam ser dirigidas às atitudes do povo mineiro,
principalmente no interior do estado de Minas Gerais.
Apesar de ser uma obra de Eça de Queiroz, não haveria muitos problemas
em comprar os direitos de adaptação, pois ela é considerada pela crítica como uma
obra “menor” , pouco conhecida.
Surge assim a idéia de criar Amor & Cia., um filme baseado na obra de
Eça de Queiroz , Alves & Cia.
1.1. Alves & Cia: contexto da obra original.
¹Fig. 2- Alves & Cia, o livro
Em Alves & Cia, publicado em 1925, Eça de Queiroz faz críticas à sociedade
burguesa de Portugal do século XIX, a respeito da situação das mulheres e das
relações entre sociedade /dinheiro / casamento.
Apresentando uma estrutura linear, a narrativa conduz o leitor a
determinadas conclusões. Os personagens são apresentados no decorrer da
história, ocorre o fator dramático que quebra a unidade harmônica e a partir deste
ponto, o personagem central parte em busca da reconquista do equilíbrio.
___________________
¹ Foto do livro Alves & Cia.
18
O tema é recorrente nas obras de Eça de Queiroz, o triângulo amoroso; aliás
, tema recorrente da época realista, que enfocava a dissolução da instituição do
casamento. Em Alves & Cia, a situação envolve Alves, sua esposa Ludovina e seu
amigo e sócio Machado.
Entretanto, o tratamento difere das outras obras cujos temas se
assemelham, como “O Crime do Padre Amaro”(1875), “O Primo Basílio” (1878), Os
Maias” (1888), com enfoque trágico, em que Eça sempre pune as mulheres, nas
duas primeiras matando-as no final.
Em Alves & Cia, a esposa de Godofredo, Lulu, não só não morre como é
perdoada. Apesar das semelhanças da intriga, este desfecho torna-se uma diferença
crucial entre esta e as outras obras que tratam do adultério, pois evidencia a
diferença de tom entre elas, que passa do sério para o jocoso.
Com enfoque voltado para a
sátira, ironia e humor, a novela mostra diversas
facetas de uma mesma história, diferentes ângulos, cada uma sob o olhar de um
personagem, o que muitas vezes provoca contradições absurdas em situações que
levam o leitor ao riso.
Portanto, a ironia e o humor são colocados de tal forma que pretendem levar
o leitor não a ver a verdade, mas sim, a perceber que a verdade e a realidade
dependem da perspectiva de quem as vê
.
Eça de Queiroz, em Alves & Cia, nos mostra que nem sempre o ser humano
é capaz de gestos drásticos, de mudanças radicais. Mas que é muito mais comum a
tendência a acomodar-se a situações conhecidas. .Podemos verificar este
pensamento, ao lermos o trecho abaixo, que se refere ao desfecho da situação
vivida pelo protagonista Alves, segundo seu próprio pensamento:
Tinha estendido os braços compassivos à mulher culpada e ao
amigo desleal; e com este simples abraço, fizera para sempre da sua
mulher uma esposa perfeita, do seu amigo um coração fiel. E agora
ali estavam, todos juntos, lado a lado, honrados, serenos, felizes,
envelhecendo de camaradagem no meio da riqueza e da paz
(QUEIROZ, 1952, p.183).
Desta forma vemos que o personagem Alves conclui que, depois de
passado tanto tempo, sua atitude não poderia ter sido mais acertada, sentindo-se
19
feliz e realizado com sua “antiga” rotina de volta. Confirmando assim que é muito
mais fácil acostumar-se ao que se conhece do que aventurar-se por novos
caminhos.
Ao que tudo indica, esta novela foi escrita na segunda metade do século
XIX. Nesse período, as grandes empresas solidificaram e se ramificaram por
diversas partes da Europa, ocorrendo também a expansão do movimento dos
operários que, da mesma forma que as indústrias, atravessaram fronteiras.
A Revolução Industrial havia provocado muitas mudanças na Inglaterra e em
diversos países. A mentalidade da sociedade européia da época passava por
transformações profundas, devido ao impacto causado pela evolução das ciências
físicas e biológicas e mais ainda em decorrência da ascensão da civilização
industrial.
As cidades cresciam rápida e desordenadamente, os antigos camponeses
agora se transformavam em operários urbanos. Com isso, também a vida cultural
sofria profundas mudanças. Cidades como Paris, Londres, Viena tornaram-se
centros de um intenso processo criativo.
Esse período foi marcado tamm por modificações provocadas pelo
surgimento de diversos meios de comunicação, que facilitavam o acesso às
informações. Com isso as pessoas passaram a conhecer novas formas de cultura e
diferentes modos de vida.
Portugal, no entanto, estava à margem desse processo. A industrialização
havia sido prejudicada por diversos fatores, entre eles as invasões infringidas pelo
exército de Napoleão e a fuga da família real para o Brasil. Vivia das glórias do
passado, com poucas indústrias, alto índice de analfabetismo e sem uma elite
intelectual, restando-lhes somente as glórias coloniais.
Surge nesse cenário um grupo de estudantes, uma geração de jovens
intelectuais que se concentravam em Coimbra e que passaram a reagir contra o
atraso em que o país se encontrava. A par do que se passava na Europa, esta nova
geração resolve assumir uma postura crítica, denunciando o atraso e a decadência
econômica e social em que Portugal vivia. Como nos mostra Eça: “Portugal é um
país que todos dizem rico, povoado por gente que todos sabem pobres
(ROLLEMBERG, 2000).
Neste clima, as relações literárias se tornavam mais impessoais, os ideais
da objetividade científica eram valorizados, o rompimento com o modo romântico de
20
ver o mundo tornou-se inevitável. As artes, até então regidas por idealizações
românticas, sofrem mudanças, a partir da nova maneira de abordagem: “o mundo
visto como ele é”.
O Romantismo passa a ser um sinônimo desse atraso; a idéia era incorporar
à literatura uma nova maneira de mostrar o que de fato ocorria na sociedade.
Na França, tem início uma nova corrente no campo das artes, o Realismo.
Este, voltado para a análise da sociedade de forma crítica, opõe-se ao Romantismo.
Ocorre a mudança do belo e ideal para o real e objetivo.Conforme nos esclarece
Lopes:
Oposto aos ideais românticos de supervalorização dos sentimentos,
do idealismo exacerbado e dos ideais burgueses, que tinham no
matrimônio seu ponto alto, o Realismo emprestou novas cores aos
romances. (LOPES, 2004, p.485).
Era preciso mostrar o que nunca ninguém ousara antes, a sociedade de
forma real, com seu cotidiano entediante, o adultério, a falsidade, o egoísmo
humano, a subordinação do homem simples aos poderosos, enfim tudo aquilo que
realmente compõe a sociedade humana
.
A nova visão da sociedade procura ser objetiva, mostrando as falhas de
comportamento do ser humano, repleto de problemas e limitações.
Assim, os personagens se identificam com pessoas reais, do dia a dia,
representam um patrão, um empregado, um marido ou qualquer outro tipo de
pessoa, que permita estabelecer um elo entre a ficção e a realidade, personagens
que representam uma crítica real à sociedade às quais pertencem.
O escritor passa a se preocupar em fazer da literatura um meio pelo qual a
sociedade pudesse tomar consciência da realidade e reagir de modo a modifi-la,
sem deixar a criatividade de lado.
A literatura passa a ser um objeto de denúncia, sobre o que havia de errado
na sociedade da época. Assim, escreve Lopes:
Propondo-se uma rigorosa análise dos fatos, valorizando a
observação e o pensamento crítico sobre a vida, a nova proposta era
21
uma literatura que se aproximasse mais da realidade, mostrando que
as coisas não eram assim tão bonitas e denunciando o caráter
idealizado das obras românticas (LOPES, 2004, p.485).
A nova arte deveria mostrar a realidade, mesmo que isso implicasse expor
toda a sordidez humana, pois somente assim seria feito um diagnóstico real e claro
dos meios sociais da época para desta maneira, promover a “cura”.
A literatura não seria somente distração, prazer, entretenimento e riso. Ela
teria o importante papel de provocar mudanças. Era nesse papel que os autores da
época estavam apostando.
Nesse contexto literário e social, Eça de Queiroz teve fundamental
importância, pois suas diversas produções “são os grandes painéis realistas da
sociedade portuguesa da época, perpassados de sátira e fina ironia (FARACO,
2003.p.53).
Sua obra, nessa fase realista, tece críticas violentas à vida social
portuguesa, denunciando a corrupção do clero, a hipocrisia dos valores burgueses,
com um mapeamento da alta sociedade composta por figuras relacionadas à
política, ao governo, às finanças. Critica a família portuguesa, cujos princípios morais
e religiosos se rendem ao status social, transformando a sociedade em um palco
para grandes representações. Assim, Eça define:
O que queremos nós com o realismo? Fazer o quadro do mundo
moderno, nas feões em que ele é mau, por persistir em se educar
segundo o passado: querendo fazer a fotografia, ia quase a dizer a
caricatura, do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico,
explorador, aristocrático, etc., e apontando-o ao escárnio,à
gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático- não é
uma arte. É um auxiliar poderoso da ciência revolucionária
(ROLLEMBERG, 2000, p. 103).
Mais tarde, passa a produzir uma literatura mais amena. Escreve sob fina
ironia, que constrói através de mensagens de duplo sentido, que o leitor pode
interpretar de diversas maneiras.
22
Segundo Duarte, L.(2006), Eça é especialista em jogar com os desejos e
fantasias do ser humano, mostrando como este se presta ao exercício da sedução e
do poder.
Com isso, o autor quer mostrar que a realidade o existe, ela depende da
forma como uma história é vista, do ponto de vista pelo qual ela é focada.
Foi neste cenário que muitas obras foram escritas por Eça de Queiroz, entre
elas, sem data certa, os manuscritos ainda inacabados de “Alves & Cia” encontrados
por seu filho José Maria, muitos anos após sua morte, em 1924. Eles estavam
guardados na célebre mala de ferro de seu pai, com rios outros originais tamm
inéditos. Podemos verificar, segundo as próprias palavras de José Maria, como ele
encontrou a obra:
Eram cento e quinze folhas soltas, sem título nem menção de data...
Pelo formato do papel, pela letra, pela pouca extensão e sobretudo
pelo assunto, inclinei-me primeiro a que o manuscrito fizesse parte
do largo plano inicial das Cenas da Vida Portuguesa , o que datava a
novela entre 1877 e 1889. Contudo, isto era apenas uma suposição
(QUEIROZ, 1952, p.7).
Pelas características literárias que os manuscritos apresentavam, José
Maria julgou que fizessem parte dos títulos que formariam “as cenas da vida
portuguesa”, projeto de Eça que se encaixava nos princípios realistas de análise
crítica da sociedade.
Pelo formato da obra, um pequeno romance que fosse a pintura da
vida contemporânea em Portugal, Lisboa, Porto, províncias, políticos,
negociantes, fidalgos, advogados, médicos, todas as classes, todos
os costumes (QUEIROZ, 1952, p. 8 , 9).
Enfim, seria uma novela curta, de dramas e interesses rapidamente
contados sobre um segmento da vida social portuguesa.
Por todos estes aspectos, pode-se dizer que esta novela, faz parte da fase
realista/naturalista de Eça de Queiroz, em que se observam críticas à sociedade
23
burguesa de Portugal, porém, bem mais amenas que outros títulos, Duarte,L.
nos revela como seria esta fase literária:
Realismo que não pretende em casmurra seriedade, fazer a
anatomia do caráter e a crítica do homem. Mas que acrescenta a
essa fase combativa inicial a percepção de que o ser humano tem
motivações internas capazes de determinar a sua reação diante da
realidade. (DUARTE,L. 2006, p.201).
Observa-se enfim, nesta narrativa, um Eça mais irônico que agressivo, que,
abandona a postura de representar a sociedade com valores certos e errados e
passa a um jogo mais sutil, deixando ao leitor, a responsabilidade da verdade,
dependendo da maneira com que se “olha” a obra. Eça, conforme observa Duarte, L
Começa a brincar realmente com os sentidos e a considerar a
verdade e os significados como relativos. Deixando de lado as lições
e abandonando o pragmatismo, sai da posição de sábio e de mestre
e, valorizando a ambigüidade, acentua o aspecto lúdico de sua
literatura, revelando a perspectiva de que é impossível afirmar um
sentido definitivo, dado o caráter fluido da linguagem (DUARTE, L.
2006, p.169).
Alves e Cia traduz de forma ímpar, o que representaria a sociedade da
época, sua moral premonitória de que, após as grandes desgraças e tristezas a vida
volta a sua rotina habitual, porém , em momento algum o autor abandonou a leveza.
Assim como as grandes paixões, arrebatadoras, que poderiam, em um gesto
impulsivo, modificar o mundo, mas que ao final de um tempo, acabam, e o que resta
é a boa e velha rotina.
Podemos supor que o escritor tamm modificou seu arrebatamento ao
criticar a sociedade, tornando-se bem mais ameno. Mais que isso, dando
oportunidade para os personagens agirem com dinamismo.
A novela segue de acordo com os ditames da estética da época, que era
mostrar a realidade, mesmo que isto implicasse em expor todo o lado sórdido da
sociedade humana. Desta maneira seria feito o diagnóstico claro, real, dos meios
sociais da época.
24
Podemos observar o exposto através da atitude do protagonista Alves,
quando vai comprar o presente para dar à esposa:
[...]veio-lhe a grande idéia de levar um presente para Lulu. Pensou
num leque. Mas depois decidiu-se logo por uma pulseira que vira
havia dias, numa vidraça de ourives. Era uma serpente mordendo o
rabo, com dois olhos de rubis. Este presente tinha uma significação:
a serpente simbolizava a eterna continuidade, a volta regular dos
dias felizes, alguma coisa que vai sempre girando num rculo de
ouro. Somente receava que a jóia fosse cara. Mas não: apenas cinco
libras; e como, enquanto ele a examinava, o ourives afiançara que,
na spera vendera igual à Sr.ª. Marquesa de Lima, não hesitou
mais, pagou logo (QUEIROZ,1952, p. 28).
Mais que seduzido, o protagonista se deixa levar pelo poder, ele compra
para a esposa a mesma jóia que uma Marquesa havia comprado, numa clara
demonstração de esnobismo ou de subserviência ao poder, de fascínio pela
nobreza.
O texto nos revela claramente o poder do glamour da nobreza,
influenciando e encantando o cidadão comum. Desta forma, Eça mostra a
sociedade e suas ramificações, o ser humano em busca de poder, ou de ostentar
poder, entre tantas outras coisas.
Alves & Cia, enfim, traduz-se como uma novela cheia de passagens com
interpretações variadas, numa atmosfera de crítica através da sátira e da ironia,
que podem ser claramente observadas ao longo dos nove capítulos que
compõem a obra original.
1.1.1. Alves & Cia: resumo da obra
O protagonista Godofredo da Conceição Alves, um próspero comerciante,
no dia do aniversário do quarto ano de casamento, surpreende a esposa e o cio
Machado trocando carícias.
A partir daí, Alves passa a elaborar os mais incríveis planos para a
vingança, para lavar sua honra com sangue.
25
Porém, os padrinhos de duelo, seus amigos pessoais, acabam dissuadindo-
o de cada uma dessas idéias, com argumentos ao mesmo tempo fortes e fingidos,
como no caso das cartas que Alves encontrou no armário da esposa; a princípio o
próprio pai de Lulu, Neto, diz que as mulheres escrevem coisas “sem tom nem
som...” . Uma clara menção a vida fútil com que a mulher é vista. Mais tarde seus
amigos completam dizendo que o que estava escrito nas cartas eram meras
lembranças de passeios feitos por eles, nada mais que isso. Enfim, Alves acaba
concordando com as respostas ouvidas. Vence a forte e convincente necessidade
de ter sua cômoda vida de volta.
Com o passar do tempo, Alves se reconcilia com a esposa e, mais tarde, a
amizade entre ele e o sócio começa a renascer.
Machado se casa, enviúva, casa-se novamente e ao final, trinta anos se
passaram.
A firma prosperou e os três seguem unidos, e o que passou, ficou
esquecido. Alves não se cansa de dizer como é feliz por não ter se precipitado:
“que coisa prudente é a prudência” (QUEIROZ, 1952, p.182).
1.2 Adaptação
A relação entre cinema e literatura vem desde os primórdios da sétima arte,
muitos filmes foram adaptados de romances e contos famosos, muitos escritores de
renome trabalharam como roteiristas, desde F. Scott Fitzgerald e William Faulkner,
entre os mais antigos, até, mais recentemente, Paul Auster. Realmente, é uma
parceria que tem tido muito sucesso, levando muitos espectadores, pelo interesse
despertado pelo filme, à leitura da obra original.
E, mais recentemente, esta relação passou a receber particular interesse por
parte dos estudiosos e críticos de arte.
Esse estudo passou por um primeiro momento que se preocupava quase tão
somente com a relação de semelhança ou diversidade entre a narrativa fílmica e a
literária que servira de base á adaptação. Posteriormente, o foco mudou, e as
análises passaram a evidenciar como se realizava a transformação do código
26
literário para o digo cinematográfico, ou seja, a preocupação com a
transcodificação midiática.
Quando falamos em adaptação, estamos falando em processos de
intertextualidade. Citando Linda Hutcheon, que ao falar de adaptação tem em
mente um processo muito mais amplo do que apenas a adaptação fílmica de
obras literárias, pois além de prática bastante antiga, realiza-se entre os mais
variados tipos de arte e de mídia (Hutcheon, 2006). Lembramos aqui
Shakespeare a beber em inúmeras fontes como a História clássica e inglesa, a
mitologia grega, os ditos populares; poetas a se inspirarem em quadros,
esculturas e peças musicais, como Jorge de Sena nos livros de poemas
Metamorfoses e Arte de Música; ou como cita a autora, as realizações recentes
da televisão, da mídia eletrônica, os experimentos virtuais, que reciclam matérias
em novas composições (Id, p. XI).
Assim, criar uma estrutura narrativa eficaz é comum à literatura e ao cinema.
De acordo com Cunha, para elaborar uma narração, três etapas são fundamentais: a
elaboração, a execução e a exibição; uma está diretamente ligada à outra. Um
exemplo prático seria o escritor, que elabora; o narrador, que executa e o leitor, a
quem cabe a recepção.
Cunha segue em seu pensamento:
[...] o discurso cinematográfico se delineia também a partir dessas
três etapas. Ali a elaboração se liga ao roteirista e ao diretor: o
primeiro cria e organiza a estrutura do roteiro, possibilitando pela
palavra as diversas formas de tradução imagéticas; o segundo
realiza, por meio da construção do olhar, a escritura fílmica.Fazem
parte ainda dessa fase os atores, que dão vida aos personagens ao
incorporá-los...já a execução se atrela a câmera narradora,
condutora do olhar construído pelo diretor...Por fim, , a exibição
requer a presença patente do espectador, que, à semelhança do
leitor literário , irá ver, perceber, captar, “ler” a imagem , ou seja,
particularizá-la, transfigurada ou não, no espaço e no tempo que o
filme pode lhe proporcionar (CUNHA, 2007,p 29,30).
Portanto, muitas são as semelhanças entre literatura e cinema, no que
tange à narrativa. Para uma melhor compreensão do que foi dito, Cunha (2007,
p.320) apresenta o seguinte esquema:
27
Livro
Filme
Elaboração
Escritor
Roteirista/Diretor
Construtor
Execução
Narrador
Câmera narradora
Condutor
Exibição
Leitor
Espectador
Captador
Literatura
Cinema
Fig. 3 Representação gráfica comparativa entre linguagem literária e fílmica.
Esta comparação, no entanto, não pretende igualar as duas formas de
linguagens; pelo contrário, propõe somente uma comparação entre as semelhantes
etapas na criação de cada uma, visto que ambas são narrativas.
Importante também lembrar que a literatura tem como ponto de partida a
imaginação; ao ler um texto, uma obra, o leitor cria imagens mentais para as
palavras lidas, uma transcodificação. no cinema, a imagem es na tela, ela já
foi imaginado pelo diretor, o espectador passa a dividir a “imaginação” com o criador.
Como vimos, a literatura e o cinema caminham lado a lado; isto não significa
que uma adaptação seja algo simples, de fácil resolução. Podemos observar, de
acordo com as palavras de Avellar:
O que tem levado o cinema à literatura não é a impressão de que é
possível apanhar uma certa coisa que está num livro- uma história ,
um diálogo, uma cena- e inseri-la num filme, mas, ao contrário, uma
quase certeza de que tal operação é impossível. A relação se
através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde
cada poeta estimula o outro a inventar livremente, a improvisar, a
fazer exatamente o que acha que deve fazer. (AVELLAR, 1994 apud
PELLEGRINI, 2003. p.124).
Até aqui, adaptar parecia ser quase um caminho natural da literatura, porém,
existem muitos fatores que fazem desta arte um grande desafio, um hipertexto.
Segundo Genette, as adaptações fílmicas se caracterizam como traduções
intersemióticas, em que diferentes tipos de escritas se fundem e se contrapõem na
construção de uma nova escrita. Genette caracteriza um texto “B” (hipertexto) a um
texto anterior “A” (hipotexto), no qual este último se enxerta, porém sem se
caracterizar como um comentário. Para o teórico, a derivação pode ser descritiva ou
28
intelectual, onde um metatexto “fala” de outro texto. Mas pode ser ainda de outra
espécie, quando um texto não fala diretamente de outro, porém não existe sem ele,
e dele se origina por meio de um processo de transformação
Segundo Robert Stam, as adaptações fílmicas podem ser definidas como
hipertextos, derivados de hipotextos preexistentes, que podem ou não se referir de
forma explicita à obra original, porém são transformados através de seleção,
ampliação, concretização e efetivação da mesma.
Ao adaptar uma obra literária, o roteirista ideparar com situações em que
será necessário pensar, repensar e conceituar e, por fim, retirar a essência que ele
julgar importante para a criação de uma nova obra através da escolha do melhor
ângulo, aquele que melhor possa representar a obra original.
Xavier (2003) nos revela que a fidelidade ao original não é mais o grande
fator de peso crítico, o que deve ser levado em conta é a apreciação do filme como
uma nova experiência, com sua linguagem e forma próprias.
Salvo as obrigações assumidas em contratos, não existe nenhuma
regra que diga que você não pode usar a sua imaginação ao
trabalhar o material original. Na verdade, a adaptação é um novo
original, onde o adaptador busca o equilíbrio entre preservar o
espírito do original e criar uma nova fórmula (SEGER, 2007, p.26).
Ao escrever um roteiro, o diretor e ou roteirista i reestruturar as ações
dramáticas existentes no universo literário. Eles terão que pensar de que forma
transformarão as palavras em imagens. Narrador, personagem, tempo, espaço, a
princípio pertencem ao universo literário.
Neste processo de construção de um filme, as palavras começam a tomar
forma por meio das imagens que o diretor e o roteirista imaginam para determinada
cena.
Portanto, toda a ação que a cena puder revelar como nos relata Seger,
permitirá ao espectador desvendar importantes informações sobre a obra.
O filme consegue comunicar, a um tempo, informações da
história, dos personagens, idéias, imagens e estilos... Em um filme,
uma única cena bem feita é capaz de levar a ação adiante, revelar
29
personagens, explorar o tema, e construir uma imagem. em um
livro, em geral, uma cena ou mesmo um capitulo inteiro conseguem
se concentrar em apenas uma dessas áreas... vemos somente o que
o narrador nos mostra naquele momento em particular (SEGER,
2007, p. 34).
Esta possibilidade se justamente porque a narrativa literária é linear,
enquanto a narrativa fílmica é sincrética, ou seja, ela funde vários elementos em um
só. Um exemplo seria a leitura das cartas encontradas no armário de Lulu por
Alves, as expressões demonstram sua dor, acompanhada pelo cenário, que exibe
propaganda de uma loja que diz O luto elegante”, e pela música, ou seja, vários
elementos sincréticos em uma única cena, demonstrando toda a dor sentida pelo
protagonista., sobre esse aspecto, Campos nos diz:
Adaptar implica recompor uma narrativa a partir de sua trama
principal, manter as tramas secundárias mais importantes, manter
tema e premissa, bem como a essência dos perfis dos personagens
centrais. Transpor uma estória para outro lugar ou tempo, mudar o
estilo, as estratégias ou o formato da narrativa original... (CAMPOS,
2007, p.299).
Mesmo se a idéia for manter os valores expressos no livro, provavelmente
este será contextualizado de maneira a atender às mudanças sociais vigentes, por
mais fiel que a adaptação seja à obra original.
Neste aspecto, é fundamental pensar a que público esta adaptação pretende
atingir. Isto implica em fazer escolhas, o que na obra original é mais importante a
ponto de permanecer na obra adaptada e o que deverá ser cortado.
Muitas vezes essas escolhas não o simples, a obra original pode ser
repleta de tramas e personagens ricos, cheios de possibilidades e opções. outras
vezes, é necessário fortalecer a trama original, acrescentando personagens e
entrelaçando novas tramas ao enredo. Seger relata o fato de que os filmes, assim
como os livros, apresentam ponto de vista. Assim segue:
30
Os filmes, como os livros, também apresentam um determinado
ponto de vista. Porém, para determinar a quem pertence o ponto de
vista apresentado, o roteirista deve fazer perguntas diferentes das
que o escritor faz. O roteirista em geral pergunta: “Até que ponto eu
me encontro apenas no universo de um determinado personagem,
mostrando somente cenas desse personagem em particular? Até que
ponto eu trabalho mais como um narrador onisciente, distribuindo o
foco entre os demais personagens? (SEGER, 2007, p.43,44).
A visão do diretor, por seu lado, deve determinar o ponto de vista com o qual
a história será narrada, obedecendo às suas intenções, à filosofia de sua obra.
Assim, se na obra original, o ponto de vista é o do personagem principal,
numa obra adaptada, o ponto de vista pode ou não ser o desse personagem; isto vai
depender tão somente das intenções da obra fílmica em questão.
Não é comum um filme terminar da mesma forma que a obra originária. O
que vemos com mais freqüência são inícios e finais diferenciados, geralmente
extraídos de algum ponto da história que melhor se adaptaria a determinado intuito
da obra fílmica.
Muitas vezes, é preciso que a obra adaptada seja fortalecida através da linha
dramática, ou seja, da história principal. É necessário uma boa história, contada de
forma clara, dinâmica, para que o filme consiga prender a atenção do público, do
inicio ao fim.
Esse fortalecimento conta com o apoio, além do enredo, de todos os
envolvidos na obra. Por meio do pensamento de Campos, destacamos o papel do
narrador:
Numa filmagem, os personagens se materializam nos atores, e o
narrador, principalmente, nos instrumentos de captação de imagem e
de som, a câmera e o microfone. Sendo mera, o narrador verá os
pontos de foco de sua atenção- o personagem age, o objeto que
define o momento, a sombra que prenuncia ou oculta. Sendo
microfone, ele ouvirá apenas ou mais intensamente os sons de seus
pontos de foco. Narrador é bisbilhoteiro que zanza pela massa da
estória e fuça os pontos de foco que considera relevante, a fim de
narrar, o que bisbilhotou para os espectadores [...] (CAMPOS, 2007,
p.83)
31
Durante a leitura de um livro, o narrador ajuda a perceber as ligações
existentes em cada detalhe, com informações que unem a história, através de idéias
que se conectam. O tempo é fluente, transita entre presente, passado e futuro, sem
que isto interrompa o fluxo da história.
Nos livros, o narrador coloca-se entre nós e a história, o que nos
ajuda a entender e interpretar os fatos. Quando assistimos a um
filme, somos observadores objetivos das ações. Vemos aquilo que
nos é dado (SEGER, 2007, p.37).
nas obras fílmicas, os fatos estão acontecendo diante de nossos olhos, a
preocupação é maior com o que vai acontecer, com o clímax da história, do que com
os fatos passados. O espectador vive junto com o personagem a história, momento
a momento.
O narrador pode ser, entre outros personagens, a câmera, uma legenda,
uma voz em off. De forma explicita, ou nem tanto, o narrador sempre estará
presente para auxiliar o espectador a compreender a história. Ele conduzirá, muitas
vezes, introduzindo o espectador para este ou aquele foco para o qual pretende
chamar a atenção, que de diferentes maneiras irá compondo a narrativa.
Nesse contexto, observa-se que o filme se liberta do livro e passa a ter vida
própria, e é dessa forma que deve ser compreendido: uma nova experiência, com
novas formas e significados.
Essa transposição de linguagens pode ser fiel, equivalente ao livro ou não,
seguindo seu próprio sentido. A equivalência entre a palavra e a imagem, o silêncio
e o som, ritmo musical e escrito varia de acordo com o estilo de cada um. Pellegrini
comenta:
O lema deve ser “ao cineasta o que é do cineasta, ao escritor o que é
do escritor”, valendo as comparações entre livro e filme mais como
um esforço para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e
o assume como ponto de partida, não de chegada (PELLEGRINI...
[et al], 2003, p. 62)
.
32
Uma mesma história pode ser contada de diversas maneiras, cada versão
se utiliza de uma adaptação diferente. Os personagens podem ser mais ou menos
importantes no enredo, tornar-se mais reveladores ou mais misteriosos, de acordo
com a vontade e intenção do roteirista na hora de adaptar o texto.
Um bom exemplo disto são as adaptações da obra Dom Casmurro, de
Machado de Assis. Podemos ver diferentes versões de uma mesma obra original.
¹Fig.4- Cenas do filme Capitu(1968).
A primeira adaptação foi Capitu, em 1968 , do diretor Paulo Cesar Saraceni,
um filme com uma narrativa melancólica que evidencia a visão do personagem
Capitu, e cujo tema central é a traição.Praticamente uma paráfrase do livro. Os
olhos “dissimulados e oblíquos” de Capitu, olhos traidores, o mar como momento
revelador amor, ciúme.
No ano de 2003, o diretor Moacyr Góes
, lança o filme Dom;sob o ponto de
vista de Bento, o filme evidencia não a traição, mas sim o ciúme doentio do
personagem. Dom é uma obra livre, estilizada, independente. No entanto, não foge
da visão central do livro, o ciúme que cria uma suposta traição.
___________________
¹ Cenas do filme Capitu retiradas do site : www.entrefilmes.blogspot.com.
33
De certa forma, nesta última adaptação, percebemos a influência das
alterações do tempo em relação à visão da obra, pois o diretor situa a trama na
época contemporânea.
Sob esta visão, o filme termina de forma inesperada, dando ênfase à nova
leitura da família e da conduta, acima de tudo, às mudanças de valores que
ocorreram nesta área no espaço de tempo entre a obra original e a adaptada.
¹Fig. 5 Cenas do filme Dom (2003).
Cabe ao roteirista encontrar o fio da história, e adaptá-la, de acordo com a
proposta do diretor, avaliando e identificando as linhas de ações existentes, e
através delas, criar outras, se necessário, para que o filme possa ter uma boa trama,
que envolva o espectador em cada cena.
[...] adaptação como uma transcrição de linguagem que altera o
suporte lingüístico utilizado para contar a história. Isto equivale a
___________________
¹Cenas do filme Dom retiradas do site :www.adorocinema.com.
34
transubstanciar, ou seja, transformar a substância, já que uma obra é
a expressão de uma linguagem. Portanto, que uma obra é uma
unidade de conteúdo e forma, no momento em que tomamos o seu
conteúdo e o exprimimos noutra linguagem, foosamente estamos
dentro de um processo de recriação, de transubstanciação.
(COMPARATO, 1995, p. 330).
Cada texto tem que se firmar por suas próprias características, o que faz de
cada um, dentro de suas especificidades, único, singular. Assim:
Um bom filme é aquele cuja história segue em direção clara, bem
definida. Sua história evolui sempre em direção ao clímax, e todas as
cenas, ou pelo menos a maioria delas, fazem com que a ação
avance nessa direção. Um bom filme também é aquele cuja história
possui várias dimensões ou camadas de significados. Ao mesmo
tempo em que comove o público, a história também revela os
personagens e desenvolve os temas. (SEGER, 2007, p.103).
A história fílmica necessita de uma série de acontecimentos que lhe dêem
um início, meio e fim. Para tanto, os fatos terão que estar interligados entre si. E ao
final, é preciso que o público perceba o sentido da história, que tenha a sensação de
que percorreu todos os labirintos da trama e encontrou a saída.
Cada obra segue de forma original, tanto a literária quanto a fílmica, se o
diálogo existe, resiste, persiste, desde o aparecimento do cinema, é porque ambas
se beneficiam de suas ilusões, que nada mais são do que novas formas de se
expressar.” (CUNHA, 2007.p.63). Ao final percebemos que essa relação, que vem
desde os primórdios do cinema, não se esgota nunca
1.3. Contextualização da obra fílmica.
35
¹Fig. 6- Cartazes de apresentação do filme Amor & Cia.
Helvécio acreditou que o enredo de Alves & Cia poderia ser muito
explorado, pois possui um tema universal e atemporal.
Para compor Amor & Cia., baseia-se na novela de Eça de Queiroz e, após
desenvolver o argumento, entrega-o a Carlos Alberto Ratton, seu irmão,com quem
já havia trabalhado em outros filmes, para que ele pudesse escrever o novo roteiro.
Ratton já havia percebido que a Lisboa do século XIX se assemelhava em
muito a São João Del Rey do mesmo período. De pequena cidade interiorana,
passava por transformações com a chegada da ferrovia, transformando-a em uma
cidade próspera e luxuosa.
___________________
¹ Figuras retiradas do site : www.adorocinema.com
36
Logo vi que o tipo de humor presente no conto permitia facilmente
uma adaptação da história para Minas Gerais, que os pontos que
Eça criticava na burguesia portuguesa eram bastante semelhantes
ao que se observava (e ainda se observa) no interior do Estado
(VILLAÇA, 2005, p.333).
Mais que isto, Helvécio, um mineiro que conhecia bem os costumes de sua
terra, sabia que até hoje é forte a ligação com o passado nas cidades históricas de
Minas; a tradição faz parte da vida de seus moradores.
Dessa maneira, o filme mantém a época da narrativa literária, meados do
século XIX, e modifica o espaço, de Lisboa para São João Del Rey.
O título do filme difere do livro, de “Alves & Cia.” para “Amor & Cia.”,
remetendo-nos a uma “possível sociedade amorosa”, pois a expressão abarca tanto
a sociedade no amor, como no negócio.
Amor & Cia. ressalta o aspecto da ambigüidade da narrativa fílmica, que
sugere o adultério, mas não o explicita.
Outro fator que muito atraiu o diretor foi o humor e a ironia de Eça, que
poderiam ser muito explorados no filme. Porém seria necessário ter sutileza, pois
não queria alterar o tom da narrativa:
Eça utilizou-se dos recursos discursivos para, com ardil, induzir o
leitor- como foi induzido o protagonista- à desconstrução da idéia de
adultério, em Amor & Cia., Ratton pontilhou de símbolos as cenas do
filme, justamente para realçar a idéia de solidez do triângulo, dando
indícios de que o adultério de fato existiu, e quiçá, ainda tivesse
voltado a se estabelecer (CUNHA, 2007, p.96).
Não só a ironia e o humor, mas também as metáforas e símbolos que, assim
como Eça explorou na obra literária, tamm Ratton o fez na obra fílmica.
O diretor procurou manter as criticas presentes na obra literária. Como por
exemplo, o papel da mulher na sociedade. Ela era ociosa e, sem ter o que fazer em
seu dia a dia, procurava os romances como uma forma de passar o tempo. Também
a hipocrisia presente na burguesia, cuja grande preocupação era manter as
aparências da família a qualquer preço.
37
Apesar de o filme seguir em harmonia com a novela de Eça, utilizando-se
por vezes de diálogos, dando mostras que o diretor Ratton buscou manter ao
máximo a fidelidade ao estilo de narrar do autor português, este, porém, não deixou
de dar seu toque particular a alguns fatos, e sempre que achava pertinente
modificava a narrativa. Deste modo é criado o roteiro do filme.
Amor & Cia. é um filme que está sempre oscilando entre o drama e a
comédia, o que representa um desafio para o diretor. Se não houver
um equilíbrio cuidadoso entre estes extremos, o risco de diluir o
drama e enfraquecer a comédia, falhando nos dois campos
(VILLAÇA, 2005, p.353).
Era chegada a hora de checar as possibilidades da filmagem no lugar
escolhido, quais os arranjos necessários para que ela pudesse acontecer. Mais
ainda, era preciso encontrar lugares, mobílias, utensílios e tudo mais para
reconstituir a época a ser representada na tela.
Helvécio, como bom mineiro, sabia que era hábito dos moradores manterem
peças antigas em casa, por isso acreditou que seria cil montar o cenário
necessário. E assim foi, por meio do auxilio de familiares e amigos, começaram a
aparecer jogos de sala de jantar e todo tipo de peça para compor o cenário do
século XIX.
Amor e Cia. é um filme que mostra, na tela, um luxo maior do que
aquele que poderia ter sido comprado com nosso médio orçamento,
Isto se deve não apenas à boa administração dos recursos, mas
também à colaboração dos habitantes da cidade que cederam vários
objetos usados em cena... (VILLAÇA, 2005, p.336).
Mais um ponto resolvido, agora era necessário uma atenção especial à
cidade; muitas locações foram realizadas em prédios tombados pelo patrimônio
histórico, porém para tanto eram necessárias algumas restaurações, que a equipe
fez para que tudo saísse de forma a não comprometer as locações de época.
38
Para descobrir como era São João Del Rey no final do século 19,
contratei uma pesquisadora que me forneceu vastas informações
sobre os usos e costumes do período... Enquanto isso, Clóvis Bueno
e Vera Hamburguer realizaram suas próprias pesquisas a fim de
definirem o visual que a rua principal teria no filme. Consultaram
jornais da época e chegaram inclusive a resgatar nomes de lojas
famosas, como “O luto elegante”, que acabaram aparecendo na tela.
(VILLAÇA, 2005, p.341, 342).
Tamm as fachadas precisavam ser restauradas, algumas cenas externas
deveriam mostrar uma cidade que transportasse o espectador a meados do século
XIX. Para tanto não poderia haver nada que não pertencesse a essa época. Foram
necessárias diversas modificações, e entre outras coisas, a remoção de sinais de
trânsitos a troca de fachadas de lojas e novas pinturas.
Durante os dois meses que trabalhamos em São João Del Rey, a
população foi simplesmente adorável. Chegamos a utilizar cerca de
300 habitantes locais como figurantes... Era lindo ver aquela multidão
usando roupas de época e passeando pelas ruas que, transformadas
, pareciam ter parado no fim do século XIX . Era como se tivéssemos
viajado no tempo (VILLAÇA, 2005, p.344).
Para que tudo ficasse da forma como havia idealizado, o diretor escalou os
atores: a princípio chamou Patrícia Pillar para dar vida a Ludovina, ela havia
trabalhado em outro filme seu, portanto ele conhecia seu trabalho e sua maneira de
compor um personagem. Diz ele sobre a atriz:
Temos uma parceria de trabalho muito forte. Além de ser uma
excelente atriz, Patrícia é muito inteligente e leal, jamais deixando de
questionar, criticar ou provocar quando julga ser necessário
(VILLAÇA, 2005, p.347).
De seu lado Patrícia Pillar diz ter buscado inspiração, para compor
Ludovina, na personagem Luísa de O Primo Basílio. Isto porque seu papel no livro é
bem reduzido, enquanto no filme, o comportamento ambíguo da personagem o
tom à trama.
39
Foi da própria Patrícia a idéia de convidar Marco Nanini para o papel de
Alves. Escolha esta que foi imediatamente acatada pelo diretor, que acreditou ser
perfeita.
Ter um ator como Marco Nanini em seu filme é um luxo absoluto. O
rigor com o qual ele se entrega ao trabalho é admirável, pois estuda
o personagem à exaustão: o roteiro que ele carregava para cima e
para baixo tinha uma infinidade de marcas azuis, vermelhas e
amarelas, além de diversas anotações espalhadas por todo o texto.
Ele analisava com profundidade cada emoção, cada diálogo e cada
movimento do Alves... (VILLAÇA, 2005, p.347, 348).
Um personagem complexo, assim é Alves. Era necessário que, apesar de
todas as cenas cômicas, o caísse no ridículo; portanto, ele teria que manter a
dignidade apesar de tudo. A escolha do ator foi perfeita para a obra; ele deu a Alves
toda a carga necessária de drama e comicidade.
A escolha de Alexandre Borges para o papel de Machado, apesar de não ser
ele ainda muito conhecido na época, teve como foco o fato de ser um ator de
personalidade marcante, pois, caso contrário, ficaria apagado diante de Marco
Nanini e Patrícia Pillar. E não foi diferente a escolha dos demais atores, todos eles
escolhidos por suas particularidades e métodos de trabalho.
Os personagens mantêm os mesmos nomes da obra literária; o que muda
na obra fílmica é o nome da firma. Agora o nome do sócio figura na sociedade Alves
& Machado, sugerindo-nos uma possível mudança de relacionamento, uma
proximidade maior entre eles.
Helvécio Ratton produz Amor & Cia.com outra linguagem e outro
código, realizando um filme saboroso, que não se esgota como
objeto de prazer, mas é também um texto de humor e de gozo sobre
o orgulho e a fragilidade do ser humano (DUARTE, 2006, p. .204)
Sem querer condenar nenhum personagem, Helvécio produz uma narrativa
em que eles não são nem totalmente inocentes nem totalmente culpados. Busca a
40
visão de Eça, para mostrar as pessoas da maneira como são, sem contudo julgá-
las.
Tudo acertado, hora de começar a rodar o filme!
¹Fig. 7. Capa do filme.
.3.1 Ficha Técnica
Título Original: Amor & Cia.
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 99 minutos
Cor: Colorido
Recomendação: 14 anos
Ano de Lançamento:
Brasil- 30 de Outubro de 1998.
Argentina (Mar Del Plata Film Festival)-17 de Novembro de 1998.
Portugal: 07 de Maio de 1999.
Estúdio: Quimera Filmes
___________________
¹Capa retirada do site: www.adorocinemabrasileiro.com.br
41
Distribuição: Riofilme
Direção: Helvécio Ratton
Roteiro: Carlos Alberto Ratton, baseado em livro de Eça de Queiroz
Produção: Simone Magalhães
Música: Tavinho Moura
Fotografia: José Tadeu Ribeiro
Desenho de Produção: Vera Hamburger
Direção de Arte: Clóvis Bueno
Figurino: Rita Murtinho
Edição: Diana Vasconcellos
Brasil/Portugal 1998.
1.3.2 Elenco
Fig. 8 (Alves)
Marco Antônio Barroso Nanini, natural de Recife, PE.
Fig.9 (Ludovina)
Patrícia Gadelha Pillar, natural de Brasília, DF.
Fig. 10 (Machado)
Alexandre Borges Corrêa, natural de Santos, S.P.
42
Fig. 11 (Neto) -
Rogério Cardoso Furtado, natural de São Paulo.
Fig. 12 (Carvalho)
Claudio Mamberti, natural de Santos, SP
Fig. 13 (Medeiros)
Ary França, natural de São Paulo.
Fig. 14 (Margarida)
Maria Sílvia, natural de São Paulo.
Fig. 15 (Aprígio) -
Nelson Hannequim Dantas Filho, natural do Rio de Janeiro.
Fig. 16 (Abílio)-
Ruy Resende" ou "Rui Rezende".
___________________
As fotos do elenco foram retiradas dos sites: www.adorocinemabrasileiro.com.br
,
www.oyo.com.br e do próprio filme Amor & Cia.
43
1.3.3 Sinopse
Brasil, São João Del Rey, final do século XIX, onde vive Alves (Marco
Nanini), um próspero negociante, casado com Ludovina (Patrícia Pillar). No dia do
quarto aniversário de casamento, Alves vai pra casa mais cedo para comemorar. Ao
chegar, descobre sua amada esposa nos braços de seu sócio e amigo Machado
(Alexandre Borges). Furioso, Alves expulsa a mulher de casa e desafia o sócio para
um duelo mortal. Uma história que tinha tudo para terminar em tragédia transforma-
se em uma comédia fina, onde amor e negócios se misturam com muito humor.
A cidade histórica de São João Del Rey, Minas Gerais, é o cenário perfeito
para a requintada reconstituição de época do filme.
Amor & Cia, uma adaptação livre da obra de Eça de Queiroz, Alves & Cia,
conta a história de um homem traído, um coração dividido entre a paixão e a honra.
Uma comédia romântica que poderia se passar em qualquer lugar, em qualquer
época.
1.3.4. Premiações
O filme Amor & Cia. recebeu prêmios e indicações a prêmios:
- Recebeu duas indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil, no ano de 2000, nas
seguintes categorias: Melhor Filme e Melhor Ator (Marco Nanini).
- Ganhou três prêmios no Festival de Brasília, no ano de 1998, nas seguintes
categorias: Melhor Filme, Melhor Atriz (Patrícia Pillar) e Melhor Desenho de
Produção. .
- Ganhou dois prêmios no Festival de Cinema Brasileiro de Miami ( Brazilian
Film Festival of Miami 1999), nas seguintes categorias: Melhor Ator (Marco Nanini) e
Melhor Trilha Sonora
- Ganhou o prêmio de Melhor Filme Latino-americano, no 2Festival de Cinema
de Mar Del Plata, no ano de 1998.
44
1.3.5. Bastidores das filmagens
Uma filmagem repleta de curiosidades, a começar pelo fato de não
conseguirem o mobiliário necessário para compor o cenário da época. Ratton,
que acreditava ser fácil encontrar esses itens na cidade de São João Del Rey ,
ficou surpreso com a informação passada por Clóvis Bueno, diretor de arte, de
que não havia objeto algum disponível, e assim, deveriam recorrer aos antiquários
de São Paulo e Rio.
Este fato iria encarecer e muito o filme, Ratton então, desconfiou que
Clovis estivesse sendo vítima da desconfiança do povo mineiro. Voltou a Minas e
recorreu a alguns parentes, solicitando ajuda:
Pouco depois, coisas começaram a aparecer: pianos fabulosos,
salas de jantar imensas, objetos lindíssimos e uma infinidade de
outros itens[...] Amor & Cia, é um filme que mostra, na tela, um luxo
maior do que aquele que poderia ter sido comprado com nosso
médio orçamento (VILLAÇA, 2005, p.336).
Como haveria cenas externas, era necessário tamm que a cidade
estivesse em perfeitas condições para a filmagem, coisa que infelizmente não
estava. Por meio de um grande fabricante de tintas, conseguiram doação
suficiente para pintar não as fachadas que seriam utilizadas nas filmagens ,
mas para as demais tamm. O curioso é que as outras fachadas foram
pintadas anos depois.
A fachada de uma loja que aparece no filme O Luto Elegante”, realmente
existiu, segundo apuraram as pesquisas feitas pelo diretor de produção e
desenhista.
45
Fig.17- Fachada antiga
Outro fato curioso envolve o retrato de Ludovina, especialmente pintado
para o filme. O artista foi José Maria Vargas. Durante todo o tempo de filmagem o
quadro ficou na parede da casa de Alves. No final das gravações Ratton voltou
para Belo Horizonte deixando Simone encarregada de desmanchar e enviar as
peças do cenário.
O quadro, após algumas exibições durante a divulgação do filme, seria
dado a Patrícia Pillar. Qual não foi a surpresa de Ratton quando Simone ligou e
avisou que o quadro havia desaparecido.
Alguém havia roubado o retrato de “Ludovina” em sua última noite
na casa de “Alves”. Ainda fomos à rádio da cidade e anunciamos o
desaparecimento, pedindo que ele fosse devolvido, mas nunca mais
o vimos, o que sempre me deixou bastante chateado (VILLAÇA,
2007, p.343).
O retrato de Ludovina que contribuiu para a atmosfera do filme, em várias
tapas. Fazendo parte da decoração da casa de Alves, a princípio o retrato é
trabalhado como algo alegre, passando ao espectador uma sensação de
tranqüilidade, harmonia. Num outro momento, muda totalmente o estilo
trabalhado; quando coberto com o xale preto representando o luto vivido por
46
Alves após a suposta traição de sua esposa, passa ao espectador uma atmosfera
oposta, agora ele lembra o sentimento de dor, o sofrimento vivido pelo
protagonista. O espectador sente a amargura de Alves.
Fig. 18-Retrato de Ludovina.
Muitas outras coisas foram necessárias para que a cidade ficasse com o
aspecto de cidade do final do século XX. Os habitantes participaram em muitas
etapas como figurantes. Segundo relata Ratton:“Era lindo ver aquela multidão
usando roupas de época e passeando pelas ruas que, transformadas, pareciam
ter parado no fim do século XIX. (VILLAÇA, 2007, p.344).
Podemos observar algumas cenas dos bastidores do filme Amor & Cia:
(a)- Ratton filmando. (b) Dirigindo Alexandre e Patrícia.
47
(c) Com Nanini, revendo uma cena. (d) Com José Tadeu Ribeiro.
¹Fig. 19-Bastidores
___________________
¹ Figuras retiradas do livro O cinema além da montanha: Helvécio Ratton ( Villaça, 2005, p.
340,345, 365).
48
2 . AMOR E CIA: ALGUNS ASPECTOS DA LINGUAGEM FÍLMICA.
Ao assistir a um filme, o espectador não imagina todo o processo que
ocorreu até o momento da exibição e quais foram as etapas necessárias para que
tudo estivesse da forma como ele, espectador, está assistindo. A linguagem
cinematográfica envolve todo um conjunto de recursos que envolve roteiro, imagens
em movimento, jogos de câmera, enquadramentos, efeitos de iluminação, uso da
cor, trilha sonora, diálogos, figurinos, cenários, montagem, a competência do diretor,
a capacidade interpretativa e o carisma dos atores, enfim, um complexo de fatores
que devem coordenar-se perfeitamente para o sucesso do resultado final.
De qualquer forma, por meio da linguagem cinematográfica pode-se dar vida
a seres, ver o pensamento, o sonho, ter encontros e desencontros fantásticos, que
de outra maneira o seria possível. Possibilita colocar o passado diante de nós, ou
mostrar uma idealização do futuro. É por isto e muito mais que essa linguagem é
incomparável, parecendo recriar a realidade com impressionante veracidade.
Entretanto, lembremos com Umberto Eco que “todo o universo que o cinema
transcreve já é universo de signos”, e que diante de uma realização cinematográfica,
estamos no círculo determinante dos códigos, e o filme não mais
se manifesta aos nossos olhos como a representação milagrosa da
realidade, mas como uma linguagem que fala outra linguagem
preexistente, ambas interagindo com os seus sistemas de
convenções” (ECO, 2005, p.144)
Além disso, não se pode esquecer que o cinema, além de ser uma arte, é
uma indústria que deve apresentar resultados lucrativos para manter-se, de modo
que a questão dos recursos financeiros para a produção de um filme é essencial e
pode influir de maneira decisiva no processo de criação de uma obra fílmica.
Assim, quando tratamos da adaptação de uma obra literária para o cinema,
sabemos que todo um processo complexo que envolve essa transposição de
linguagens, e muitas vezes os recursos captados influenciam diretamente,
principalmente em filmes do tipo de Amor& Cia, filmes de época, de produção muitas
vezes dispendiosa. Além dessa questão da produção, quando pensamos na
49
transcodificação midiática, trazemos novamente as palavras de Eco, quando afirma
a respeito da linguagem fílmica:
[...] essa riqueza contextual faz do cinema indubitavelmente um tipo
de comunicação mais rico do que a fala, porque no cinema, como
no sema icônico, os diversos significados não se sucedem ao longo
do eixo sintagmático, mas aparecem conjuntamente presentes e
reagem alternadamente, fazendo brotar várias conotações.
Acrescente-se, a seguir, que a impressão de realidade causada pela
tríplice articulação visual complica-se com as articulações
complementares do som e da fala...De qualquer maneira, basta que
nos detenhamos na existência da tríplice articulação: e o choque é
tão violento que, diante de uma convencionalização mais rica, e
portanto uma formalização mais flexível que as demais, julgamos
encontrar-nos diante de uma linguagem que nos restitui a realidade.
(ECO, 2005, p.149-150)
Assim, entendemos que Eco comenta a superioridade da linguagem
cinematográfica em relação à linguagem escrita, na recriação especular da
realidade, pelo seu caráter sincrético, apresentando signos que se manifestam
conjuntamente por meio do enquadramento. Este poder de comunicação envolve o
espectador de tal maneira, que muitas vezes, as emoções fluem de forma
avassaladora, criando uma cumplicidade entre narrativa fílmica e espectador,
sentindo-se este como parte dos acontecimentos do filme. mesmo filmes que se
tornam marcos divisórios na vida de muitas pessoas, por seu sonho ou realidade,
alegria ou tristeza, enfim, pela própria magia de sua linguagem.
Carrière
observa que os cineastas perceberam a grandeza do cinema desde
seus primórdios, o quanto a imagem é marcante, universal. Um filme pode ser
apresentado às mais diversas platéias, a povos de todos os cantos do mundo, cada
qual com suas peculiaridades, mesmo assim ele será compreendido, porque a
linguagem do cinema é universal.
Quase no começo da aventura, os cineastas perceberam que a
memória da imagem pode, às vezes, ser mais forte e duradoura do
que a de palavras e frases. Lembramos o corpo branco de uma
mulher, ou um incêndio a bordo de um transatlântico vermelho, de
forma muito mais precisa e, provavelmente, mais vívida, do que
palavras que descrevam mais ou menos satisfatoriamente aquele
50
corpo, ou aquele navio em chamas. Estamos de qualquer modo,
lidando com um outro gênero de memória, completamente diferente,
que pode ser partilhada por povos diversos, não importa a ngua
que eles falem.( CARRIÈRE,1995, p.21)
Para Martin ( 2007,p.21), também não é diferente o elemento que constitui a
base da linguagem cinematográfica, ou seja, a matéria prima fílmica é a imagem,
como havia sugerido Carrière. Portanto, ao analisarmos um filme, é necessária
uma detalhada observação das imagens que o constituem, para penetrarmos na
complexidade de sua estrutura dessas imagens.
Ao considerarmos a questão da adaptação de um texto literário, ressaltamos
a importância da criação do roteiro, que, se tentarmos uma comparação entre
imagem e palavra, por mais que o roteirista busque o equivalente imagético da
significação do conceito literário, veremos a impossibilidade de tal coisa, pois a
palavra designa um conceito genérico, ou seja, podemos construir este conceito de
acordo com nossa vincia, com nosso imaginário, nossa práxis social. De seu lado,
a imagem visual tem significação precisa e limitada; vemos aquilo que está diante de
nossos olhos, não podemos supor ser outra coisa, o há como modificar ou
construir um significado diferente daquilo que estamos vendo.
Ao analisarmos um filme, ou parte dele, devemos olhar quadro a quadro,
cena a cena, muitas vezes no todo; não percebemos certas particularidades que são
fundamentais para o desenrolar de um enredo.
Nesta análise é preciso um envolvimento em que o observador deve olhar,
ouvir, examinar cada detalhe do filme, criando hipóteses para refletir sobre cada
fragmento do objeto estudado, relevando a importância dos detalhes, que darão o
tom ao filme. De acordo com Vanoye:
Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido
científico do termo, assim como se analisa , por exemplo, a
composição química da água, decompô-lo em seus elementos
constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar,
destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente
“a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do
texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto de elementos
distintos do próprio filme. (VANOYE, 2006, p.15).
51
Portanto, além da imagem, devemos observar também qual a atmosfera
construída por meio da iluminação, da música., do figurino usado que compõe uma
época, os cenários, enfim tudo que ao final dá ao filme um valor único.
Xavier, de forma mais técnica, nos revela que a decomposição de um filme
passa pelo processo de alise desde a menor parte até o todo. Explica:
[...] um filme é constituído de seqüências- unidades menores dentro
dele, marcadas por sua função dramática e /ou pela sua posição na
narrativa. Cada seqüência seria constituída de cenas - cada uma das
partes dotadas de unidade espaço-temporal. Partindo daí, definamos
por enquanto a decupagem como o processo de decomposição do
filme (e portanto das seqüências e cenas) em planos. O plano
corresponde a cada tomada de cena, ou seja, a extensão de filme
compreendida entre dois cortes, o que significa dizer que plano é um
segmento contínuo de imagens (XAVIER, 2005, p.27).
O filme Amor & Cia segue uma estrutura narrativa: apresentação dos
personagens, seguida pela ação dramática, o problema- que leva o personagem
principal a uma mudança de atitude, e por fim ao desenlace.
Podemos representar esta estrutura da seguinte maneira, conforme
esquema apresentado na aula de “Fundamentos da Linguagem Cinematográfica”
(28/09/2007), pelo Prof. Dr. Antonio Manuel dos Santos Silva:
Seqüência(s) inicial(s) Seqüência(s) medial(s) Seqüência(s) final(s)
Geralmente em
equilíbrio. A busca do equilíbrio perdido.
A volta do equilíbrio.
Motivo dinâmico que provoca a mudança, o desequilíbrio.
Fig.20- Esquema 1
52
Se aplicarmos este esquema ao filme Amor & Cia.” poderemos
compreender melhor o que ele representa Assim:
Fig.21- Esquema 2
2.1. Movimentos de câmera, enquadramentos, planos e angulações
Para uma melhor compreensão de alguns aspectos da linguagem fílmica,
analisaremos alguns fragmentos do filme Amor & Cia, através de seus elementos
visuais plásticos: seus ângulos, planos, enquadramentos e o movimento da câmera.
Esclarecendo um pouco sobre esses elementos:
Ângulos: correspondem ao ponto de vista tomado pela câmera ao filmar as
figuras fílmicas. Martin (2007, p.40) vai mais além e esclarece:“ Quando o são
diretamente justificados por uma situação ligada à ação, ângulos de filmagem
excepcionais podem adquirir uma significação psicológica precisa”. Ou seja, além
da ação, de acordo com a angulação podemos muitas vezes compreender a reação
psicológica do personagem ou da cena naquele instante.
Plano: é a unidade mínima do filme, fragmento do filme que corresponde
entre o começo e o fim de uma tomada de câmera feita de uma só vez.
Alves, Ludovina e
Machado
. As s
eqüências
iniciais vão do prólogo
até o motivo dinâmico.
O fim dos relacionamentos:
desde o motivo dinâmico, até
o momento da reconciliação.
A volta do
equilíbrio
As cenas
Geralmente em
equilíbrio.
A vida feliz que Alves
acreditava ter.
A traição: Lulu e
Machado
A busca do equilíbrio perdido.
Alves tenta encontrar uma maneira
de vingar
-se. Mas, por fim
acaba
por aceitar a mulher e o amigo de
volta.
Alves, Machado
e Ludovina.
53
Enquadramento: é a imagem que aparece no visor da câmera, as figuras que
compõem o quadro fílmico. Sobre enquadramento, podemos observar o que diz
Aumont:
Enquadrar é, portanto, fazer deslizar sobre o mundo uma pirâmide
visual imaginária ( e as vezes cristalizá-la). Todo enquadramento
estabelece uma relação entre um olho fictício o do pintor, da
câmara, da máquina fotográfica e um conjunto organizado de
objetos no cenário: o enquadramento é pois ,... uma questão de
centramento / descentramento permanente, de criação de centros
visuais, de equilíbrio entre diversos centros, sob a direção de um
“centro absoluto”, o cume da pirâmide , o Olho. (AUMONT, 1993,
p.154).
Por fim temos o movimento da mera, que tem função no ponto de vista da
expressão fílmica. Pode ser descritivo, quando mostra um cenário, dramático que
revela a atitude de um personagem, que pode ser ameaçadora ou subjugada, ou
ainda os constantes movimentos da mera que, a todo momento, podem modificar
o ponto de vista do espectador sobre uma determinada cena.
Analisemos a seguir, algumas seqüências do filme, em que esses aspectos
serão ressaltados em determinados quadros:
a) Seqüência do trabalho, cena do escritório:
Fade in¹, à partir da tela escura, gradualmente vai clareando e começa a mostrar o
exterior, dia, rua em frente ao escritório. O plano inicia-se com o som de uma música
instrumental que aos poucos vai diminuindo e começamos a ouvir o barulho das
pessoas e dos cavalos. Podemos observar tamm, o enquadramento da cena
subseqüente:
A câmera começa filmando o topo do prédio, descendo
em um movimento
de cima para baixo (a), e abre na fachada do armazém, mostrando a movimentação
do escritório.
___________________
¹Fade in : do inglês significa surgir, aparecer.
54
(a)
(b)
(c)
Fig.22 Seqüência do trabalho, cena externa do escritório.
Os funcionários trabalham descarregando caixotes de madeiras com
mercadorias de uma carroça e levando-as para dentro do barracão.
tamm outras pessoas passando pela rua, dando a idéia de uma rua
movimentada,.em um ¹desenquadramento
(b) , ou seja, nosso olhar fixa-se na lateral
e não no centro do quadro lmico; em seguida passando para o ²triângulo duplo
cêntrico, as figuras aparecem enquadradas em dois triângulos,e as vértices se tocam
no centro do quadro fílmico.
É através da angulação, a forma com que a câmera desce horizontalmente,
e aos poucos vai revelando o cenário (c), que quadro a quadro, percebemos a
grandeza dos negócios, o quanto a Alves & Machado é uma firma importante.
___________________
¹Desenquadramento: através da pimide visual imaginária, enquadrar ao lado
.(AUMONT, 2001,p.158).
²Triângulo duplo cêntrico: as figuras inscrevem-se em dois triângulos, cujas vértices se tocam no centro do
quadro fílmico.
55
b) Seqüência do flagrante, cena da rua:
Inicia-se com um enquadramento em triângulo duplo cêntrico (a), podemos
observar que em seguida muda o foco e passa para o ¹ triângulo simples (b), em que
os atores se encontram no centro do quadro fílmico e termina com o afastamento da
câmera, descentralizando o personagem e mostrando um pouco mais do cenário
(ª)
(b) (c)
Fig. 23 Seqüência do flagrante, cena da rua.
A câmera movimenta-se acompanhando Alves pelas ruas, enquanto ele
segue lendo a carta que encontrou no armário de Lulu. Esta seqüência tem um teor
dramático, faz parte da mudança que ocorre na vida do personagem:
a) (b)
Fig.24 - Seqüência do flagrante, cena da rua.
56
A mera vai narrando a história ora se aproximando (a), ora se
afastando (b), revelando toda sua angústia e sofrimento, seu desespero diante das
palavras contidas nas cartas.
A mudança na expressão de seu rosto, sua forma de andar revela-se
patética, cambaleante, segue humilhado pelas ruas, incrédulo.
Vemos, através da narrativa lenta, pesada da câmera, a mudança do
personagem: sua expressão, sua ausência, como se nada existisse a sua volta,
ele e as cartas, revelando a profunda angústia que o domina.
a) Seqüência da audição de piano, cena da sala.
(a)
(b)
(c).
Fig.25 Seqüência da audição de piano, cena da sala.
Esta é uma das seqüências iniciais, abre em fade in, e termina em ¹fade out,
ou seja, abre clareando e ao final da seqüência vai escurecendo, até a totalidade.
___________________
¹Fade out : do inglês desvanecer, desaparecer, apagar.
57
O enquadramento é cêntrico a principio, em triângulo simples (a). Torna-se
excêntrico (b), depois, cêntrico novamente, em triângulo simples (c).
A câmera acompanha o personagem, é ela quem narra a história. Esta
seqüência mostra um personagem feliz, seguro; a câmera fixa, move-se lentamente,
seguindo seus passos silenciosos, de forma a não atrapalhar a música vinda do
piano.
O protagonista mostra-se um homem decidido, seguro, feliz, amável e
amado. Admira sua esposa, é possível perceber o quanto ele se envaidece diante
dela, quase como se fosse um troféu, algo que conquistara e agora tinha orgulho em
mostrar.
A mera segue narrando, através de movimentos e enquadramentos, que
revelam e ocultam os fatos, de acordo com as indicações do roteiro.
Quando um diretor decide o que deve ou não estar mais visível em uma
cena, ele está trabalhando com enquadramento. É através dele que podemos ver
em primeiro plano apenas detalhes de um objeto, ou pessoa ,ou mesmo, um lugar.
Ratton comenta de que forma utilizou alguns planos:
E, em Amor & Cia., utilizamos alguns longos planos para transmitir
idéias e sensações que talvez se perdessem em seqüências com
muitos cortes. Logo no início do filme, por exemplo, acompanhamos
Alves enquanto ele entra em sua casa, sobe as escadas, pendura o
chapéu, guarda a bengala, o relógio, caminha por um corredor e
finalmente Ludovina através do vidro bisotê- e não fizemos corte
algum, o espectador começa a ficar tenso, sabendo que algo vai
acontecer com aquele personagem. (VILLAÇA, 2005, p. 355.)
Abaixo, a seqüência longa, citada pelo diretor Ratton, em que observamos
com clareza toda a mudança de fisionomia, a tensão que passa a dominar as cenas
que a princípio começara de forma suave, alegre. A mera acompanha cada
movimento, cada expressão, revelando aos poucos, todo o conflito sentido pelo
personagem
Nesta seqüência, podemos observar diversos tipos de planos, que como nos
esclarece Martin:
58
Planos são pedaços de filmes entre duas ligações com a
proximidade ou o distanciamento da mera O tamanho do plano ( e
conseqüentemente seu nome e seu lugar na nomeclatura cnica) é
determinado pela distância entre a câmera e o objeto e pela duração
focal da cena utilizada. (MARTIN, 2007 p.37 ).
Entre eles: plano médio (a,e,f,j,l ), plano americano (b,c,d,m) e plano
aproximado
(g,h,i).
(a)
(b)
(c) (d)
(e) (f)
(g)
(h)
59
(i)
(j)
(l) (m)
Fig. 26 Seqüência da traição, cena da casa.
Nesta seqüência, a mera trabalha o tempo todo diretamente focada no
ator. É por meio das atitudes de Alves (Marco Nanini) que sentimos que algo vai
acontecer; desta forma, sua atuação é fundamental para criar o suspense.
A mudança na fisionomia do personagem, captada pela câmera, mostra a
passagem da alegria à incredulidade. Esta seqüência revela ao personagem a
suposta traição de sua esposa e seu melhor amigo e sócio, portanto é carregada de
dramaticidade. Quando a câmera vai focalizando o rosto de Alves, ela demonstra
que deste ponto em diante, a postura, a atitude, a carga dramática do personagem
irá mudar drasticamente.
Portanto, é principalmente por meio do movimento de câmera,
enquadramento, plano e angulação, que a imagem fílmica é moldada e composta.
a) Seqüência da traição, cena do quarto.
A princípio, em Plano de Detalhe
(a), a mera focaliza o objeto no chão. No
quadro seguinte, o personagem é focalizado de cima para baixo, diminuído diante da
situação
(b).
60
Esta sensação, que o personagem está de certa maneira inferiorizado está
relacionada à forma com que a cena foi filmada, mais precisamente está ligada ao
tipo de ¹angulação da cena.
(a)
(b)
Fig.27 Seqüência da traição, cena do quarto.
Num plano bem mais alto está Ludovina; Alves ajoelhado, diminuído, como
que em súplica, aponta-lhe as cartas que acabara de encontrar.
A habilidade com que a câmera vai mostrando este sentimento, a forma
como passamos a -lo, tudo nos é revelado através dos movimentos da mera
diante de cada ação do personagem.
b) Seqüência da tentativa de suicídio, cena do trem
Nesta seqüência, temos diversos planos: inicialmente, um plano de conjunto
(a), o protagonista anda sobre os trilhos de um trem em direção a uma ponte. Em
seguida, um plano médio (b), em que o rosto de Alves é focalizado, logo após em um
plano de detalhes (c), seus pés caminhando sobre os trilhos.
A câmera abre em um plano de grande conjunto
(d) e podemos dimensionar o
lugar onde Alves se encontra.
___________________
¹Angulação:ponto de vista tomado pela câmera ao filmar. Pode ser .frontal, lateral, oblíqua,
plongée,etc,( VANOYE,2006, p.37)
61
(a)
(b) (c)
(d) (e) (f)
(g) (h) (i)
(j)
Fig. 28 Seqüência da tentativa de suicídio, cena do trem.
Em seguida Alves é focalizado de baixo para cima, a distância entre ele e o
fim da ponte é mínima, temos a sensação de que está exaltado, pronto para pular.
62
Este tipo de filmagem é chamada de ¹contra plongée (e).Na cena seguinte, uma
inversão, agora é um ²plongée (f), Alves é focalizado por cima dos ombros, vemos
abaixo um rio, todo o peso do momento trágico está sobre ele.
Novamente seu rosto é focalizado de frente(g), percebemos o medo, ele não
tem coragem bastante para seguir em frente.
De repente, a câmera abre em plano médio
(h, i), vemos ao fundo uma
locomotiva que se aproxima. O restante é filmado em plano americano, em um
enquadramento cêntrico
(j).
Nesta seqüência é possível observar a intenção de Alves e também sua falta
de coragem para seguir adiante com seu plano.
Nesta cena em questão, o ator enfrentou realmente o perigo que vemos na
tela, a seqüência o foi filmada com um dublê mas com o próprio Marco Nanini. O
diretor comenta como a cena foi feita, quais os riscos, e a satisfação em -la
concluída:
A seqüência do trem envolveu muitos riscos. Era importante que o
espectador percebesse que Alves estava em um momento de
extrema fragilidade, considerando a possibilidade de suicidar-se.
Deprimido, o sujeito caminha por um trilho erguido sobre um abismo
e contempla a idéia de saltar dali- até que, no melhor estilo Eça de
Queiroz, uma locomotiva surge de repente e Alves percebe que,
afinal de contas, não quer morrer e agarra-se apavorado na estrutura
da ponte enquanto os vagões passam a centímetros de distância de
seu corpo. Para criarmos a sensação de medo, era importante que o
espectador pudesse perceber que o personagem estava mesmo em
uma situação e, como eu queria mostrar o rosto de Nanini para
capturar suas expressões, decidi ater-me ao real e usar uma linha de
trem, uma locomotiva e uma ponte verdadeira. O problema era
convencer o maquinista a acelerar o trem.( VILLAÇA, 2005, p. 359,
360).
Ao vermos a cena, podemos realmente sentir a intensidade do medo que o
personagem, e também o ator, sentiu no momento em que a locomotiva passa por
___________________
¹ Contra plongée: o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva abaixo do vel
normal do olhar. (MARTIN, 2007, p.41).
²Plongée : filmagem de cima para baixo.(MARTIN, 2007, p.41).
63
ele. Nesta passagem, o ator precisa ter muita confiança em si e nas marcações
feitas pelo diretor, nada pode dar errado, Ratton comenta como a cena foi feita:
É claro que tínhamos feito testes, ensaiado com o trem ( não tão
rápido) e calculado a distancia ideal para posicionarmos a câmera.
Mas era impossível não sentir medo- especialmente o Nanini
agarrado a uma viga a metros de altura do chão, enquanto um trem
em alta velocidade passava ao seu lado, fazendo toda ponte
estremecer violentamente. ( VILLAÇA, 2005, p. 361).
Sob o viés do olhar da câmera, observamos que, quadro a quadro, ângulo a
ângulo, vai desfiando a narrativa fílmica diante dos ansiosos espectadores.
Não podemos deixar de comentar a atuação do ator, Marcos Nanini. Através
de sua interpretação: sua fisionomia, seus gestos, postura, tudo nele nos transmite a
dor, o desespero, o pavor do personagem diante de cada cena vista. Tamm com a
mesma intensidade nos passa a alegria, a satisfação, o orgulho.
Porém, também é preciso ressaltar a perspicácia do diretor ao perceber que
algo poderia surgir na cena. Ratton, percebendo a entrega do ator, deixa a cena
prosseguir, mesmo esta não estando em total concordância com os ensaios, pois
um certo improviso certamente poderia abrilhantar ainda mais o trabalho. Como
podemos observar nas cenas seguintes, toda a emão que o personagem vive no
momento, pode ser sentida nas expressões do ator:
Fig. 29 Seqüência da solidão, cena do cabaré.
64
Assim, Ratton comenta a cena:
Outro longo plano que fizemos representou uma opção corajosa do
ponto de vista técnico e narrativo e exigiu do Nanini uma
concentração absurda, pois ele teria que se entregar totalmente ao
personagem e, assim, manter-se atento à marca estabelecida com a
câmera. A cena em questão é aquela em que Alves abraça a
prostituta em um cabaré e esta começa a cantar. Tudo tinha que
encaixar: a música, o movimento da mera e a emoção do ator.
Enquanto a moça cantava, fazíamos um travelling que lentamente
aproximava Alves do espectador- mas Marco Nanini, sendo o ator
maravilhoso que é, foi além e, pegando todos de surpresa, começou
a chorar no colo de sua companheira de cena. Quando finalmente
cortamos, eu (como toda a equipe) estava emocionadíssimo e , sem
dizer nada, me aproximei de Nanini e o beijei.(VILLAÇA, 2005,
p.356.)
Filmes são feitos para contar uma história, narrar. Ao analisarmos
fragmentos de um filme, percebemos que a linguagem cinematográfica diz respeito,
entre outros aspectos, aos elementos visuais e plásticos, entre eles:
enquadramento, planos, cenas, seqüência, angulações e movimento. Por meio
desses elementos a composição de um filme vai acontecendo e dando forma a uma
nova obra.
2.2. Iluminação, cenografia e figurinos: atmosfera
Ao analisarmos a iluminação, a cenografia, o figurino e a trilha sonora de
uma cena, perceberemos qual a atmosfera que este fragmento fílmico quer revelar.
Não se pode falar em atmosfera de um filme como um todo. Isto porque a
atmosfera que predomina em uma cena pode não ser a mesma da cena, ou
seqüência seguinte.
No filme Amor & Cia. onde se alternam drama e comédia, emoções e humor,
podemos perceber com clareza a constante mudança de atmosfera.
Se, por um lado, a atmosfera intensifica a correspondência emocional entre
a narrativa e o telespectador, por outro lado, será o espaço onde o personagem se
65
encontra, seu figurino, a música de fundo, o décor, juntamente com a atitude do
personagem, que irão criá-la naquele determinado momento.
E o espectador sentirá a emoção que o momento propõe, como nos
esclarece Seger:
A atmosfera cria nas pessoas uma resposta emocional. ... a
atmosfera romântica e nostálgica foi conseguida através da pouca
iluminação, mobília em suaves tons de rosa, e música ambiente bem
baixa. A atmosfera do local induz à tranqüilidade, mas ao mesmo
tempo incentiva a conversa. As escolhas dos delicados tons de rosa
e da música suave contribuíram para criar não apenas um estilo
vitoriano, mas uma atmosfera vitoriana. (SEGER, 2007, p. 193).
Portanto, Seger deixa clara a necessidade de todo o envolvimento dos
elementos fílmicos não específicos na composição da atmosfera, que i criar no
espectador a emoção necessária para compreender o processo pelo qual o
personagem está passando naquele momento.
Não podemos deixar de observar, porém, as relações que o espectador tem
com o mundo, como ele projeta estas cenas em sua mente, de acordo com sua
atenção, percepção e realidade, principalmente cenas que não tenham uma
mensagem explícita.
Observemos a seqüência seguinte, em que Ludovina parece querer se
afogar propositadamente:
66
Fig. 30 Seqüência da tentativa de afogamento, cena do mar.
Pela postura, pela forma de encarar o mar, de se deixar levar por ele, a
maneira de abandonar a sombrinha na areia, todos estes fatores levam o espectador
a perceber a intenção do personagem em não voltar mais. Também a mera, que
se afasta, deixando o personagem cada vez mais distante, sugere isto. Assim,
podemos perceber a intenção do personagem, porém não necessariamente
compreender o porquê dessa atitude.
Outra maneira de revelar a atmosfera de uma seqüência, é através de
elementos sonoros e visuais. A atmosfera lmica está diretamente ligada aos
elementos do filme, são perceptíveis ao expectador, estão no foco de seu olhar ou
ainda se sua atenção.
Na cena seguinte, percebemos que a iluminação, o mobiliário, o vestuário,
são todos elementos que criam a atmosfera dessa seqüência.
Ao observarmos tal seqüência em que o personagem Alves está em casa, à
noite, percebemos que ele é dominado pela solidão: a iluminação e a música
contracenam com sua tristeza. A luz fraca, quase escuridão, reflete os pensamentos
e sentimentos sombrios do personagem, enquanto a música acompanha sua tristeza
em um ritmo lento, carregado. O espectador pode sentir a dor que o personagem
sente ao olhar para a mobília
(a), todo o peso da traição da esposa. Em seguida,
Alves ilumina o retrato de Ludovina
(b), observa-o cuidadosamente e, incapaz de
suportar a visão da esposa, cobre o quadro com o xale preto (c) que horas antes ela
usava, em um claro sinal de luto (d).
67
(a)
(b)
(c) (d)
Fig.31 Seqüência da solidão, cena da sala..
uma perfeita interação entre a atmosfera interior do personagem e a
atmosfera exterior do cenário. Tudo no filme leva o espectador, neste momento, a
“abstrair” junto com o personagem a tristeza que o domina, por meio da iluminação,
da música e da atitude do personagem. Portanto, a atmosfera da cena passa a
exprimir algo abstrato, como a tristeza, tornando-se essencial para a compreensão
do filme.
na cena subseqüente, vemos a luz forte e clara envolver os personagens.
Além da luz, tamm o cenário não tem nada que demonstre a angústia e a
incerteza vivida pelos personagens nesse momento. O figurino mostra um pouco a
atmosfera que a luz e o cenário encobrem. O xale preto é um indício de que as
coisas não estão tão bem, porém a certeza está na atitude, na postura dos
personagens.
68
Fig. 32 cena do quarto.
Nesta cena é a atitude dos personagens que revela a atmosfera do filme.
Podemos perceber pelo olhar de Alves, pelo distanciamento dos personagens,
separados pela cama impecavelmente arrumada, a tensão do confronto entre
marido e mulher.
A iluminação constitui um fator decisivo para a criação da expressividade da
imagem (MARTIN, 2007, p.56). Além de expor o cenário, é fundamental para a
atmosfera; lançando mão da iluminação e de suas possibilidades expressivas,
podem-se criar ambientes românticos, de suspense, fantásticos, entre inúmeras
outras possibilidades:
Nas próximas cenas, a iluminação tem forte poder sugestivo, a luz incide
sobre o personagem de maneira natural, revelando a fisionomia do ator naquele
momento de tanta dor
(a).
(a). (b)
Fig.33 Cenas do filme Amor & Cia..
69
A iluminação interna cria, juntamente com o cenário, todo o clima do
momento. É perceptível, quando o personagem sobe as escadas, que ele deixa a
“luz” e caminha em direção à escuridão (b).
Nesta cena, como em outras mais no filme, podemos sentir a magia da luz e
da sombra sobre o cenário, de forma a criar a atmosfera que o diretor deseja passar
ao espectador naquele momento. Mais uma vez, Martin nos esclarece:
O papel diabólico e misterioso das sombras não estaria fundado na
angústia ancestral do homem diante da escuridão? A tela parece
devolver à vida todos os mitos milenares da luta do homem contra as
trevas e seus mistérios, do eterno confronto entre o bem e o mal.
Por outro lado, a preferência dos diretores pelas luzes violentas e as
sombras profundas pode ter suas origens no fato de que se
encontram assim recriadas na tela as condições e a ambientação do
próprio espetáculo cinematográfico: obscuridade, fascinação da luz,
universo fechado e protetor, esse clima maravilhoso e infantil que
constitui o meio, essencialmente regressivo ( isto é , voltado para a
interioridade e a contemplação), da hipnose fílmica. (MARTIN, 2007,
p.60).
Ao longo do filme, podemos observar que o diretor jogou muito bem com a
alternância entre luzes e escuridão, criando um espetáculo muito intenso e ao
mesmo tempo leve e agradável, misturando a sátira, o dramático e a ironia.
Ainda mais, pelo jogo da iluminação, muitas coisas podem ser antecipadas,
basta um olhar mais atento, uma compreensão maior sobre a linguagem fílmica e
poderemos desvendar ações futuras, ou pelo menos, perceber que alguma coisa
está para acontecer.
o cenário consiste no conjunto de materiais arquitetônicos ou
volumétricos e espaciais que formam o ambiente, o lugar da ação. Podem ser reais,
ou seja, existem independentemente do filme, ou construídos para determinada
filmagem, em um ambiente fechado ou em um ambiente aberto.
Sua função é descritiva, ele serve para representar um espaço, o ambiente
que foi imaginado para determinada cena. Muitas vezes os cenários auxiliam na
composição de um personagem, esclarecendo se ele é rico, instruído, intimista,
egocêntrico, etc. Muito podemos observar sobre o personagem pelo cenário que o
cerca.
70
Observemos um pouco mais sobre o cenário, a forma como ele se compõe
com os outros elementos, criando a atmosfera fílmica:
Nesta primeira cena, podemos ver o cenário externo articulando-se com o
sofrimento de Alves; enquanto lê as cartas que encontrou no armário de sua esposa,
o personagem vai passando por diversos lugares, entre eles pelo cartaz de
propaganda de uma loja que diz: “O luto elegante”
(a). A atmosfera no momento era
mesmo de luto, o sentimento de Alves era realmente como se acabasse de ficar
viúvo, de modo que o cenário compõe-se perfeitamente com os sentimentos do
personagem, ainda que o tom satírico que perpassa por todo o filme assume na
contradição luto X elegante.
(a)
(b)
(c)
(d)
Fig.34 Cenas do filme Amor & Cia.
Na outra cena, vemos um cenário pré-existente
(b), independente do filme,
também exterior. Alves está chegando a sua casa para fazer uma surpresa para a
esposa, quando cruza com um casal todo vestido de preto. Podemos entender como
um indício de que no futuro, algo não muito bom pode vir a acontecer, criando uma
atmosfera de expectativa para as cenas seguintes
.
71
Já no cenário interno, como dos quadros c e d, .vemos a riqueza de detalhes
de época que participam dos interiores, tanto da casa de Alves como de seu
escritório.
Do mesmo modo, nas cenas que ressaltamos a seguir, o requinte de
detalhes usados para compor o cenário da casa, em dois momentos bem diferentes
na vida do personagem, evidenciando com clareza a turbulência de emoções que o
protagonista vive no desenrolar das peripécias dramáticas do enredo: o figurino, os
objetos, a organização, a composição do personagem, todos estes aspectos o
reveladores.
(a)
(b)
Fig.35 Cenas do filme Amor & Cia.
Nestas cenas, podemos ver dois ambientes totalmente diferentes, ambos
interiores e cuidadosamente criados para elas: no primeiro (a), observamos Alves
almoçando em sua sala, tem a roupa impecável, a sala tamm es da mesma
maneira. no segundo (b), vemos a degradação da casa , do personagem, e,
conseqüentemente, de sua vida.
Verificamos atmosferas totalmente diferentes em um mesmo ambiente, a
conseqüência da ação dramática estampada no cenário e no figurino.
Os figurinos, ligados ao meio de expressão dos filmes, devem destacar as
atitudes dos personagens na cena. Nas cenas a seguir, vemos a importância do
72
figurino na composição do personagem, revelando cada momento que vive na
narrativa fílmica:
(a)
(b)
Fig. 36 Cenas do filme Amor & Cia.
Podemos notar a radical mudança no visual do personagem(a). Ele passa a
“vestir” o momento vivido, não pelas roupas como também pela aparência física,
cujas imagens falam por si só: a roupa desleixada do segundo momento, a barba
por fazer, o desarranjo da mesa, a expressão debochada
(b).
2.3. Metáforas, símbolos e índices:
Em nossa vida, é comum nos depararmos, a todo momento, com metáforas,
mbolos e índices, que estão presentes em todos os lugares, fazendo parte do
nosso cotidiano. Na arte não poderia ser diferente, estão presentes tanto na arte
literária como na cinematográfica.
Em uma narrativa, funcionam como elementos de antecipação, como
indicadores do ponto de vista pelo qual ela deve ser enfocada, do tema que ela
pretende tratar, ou qual questão será suscitada.
A simbologia tem papel relevante, segundo Chevalier e Gheerbrant (2007,
XII); além dos mitos antigos, temos o surgimento de novos, criando outros símbolos ,
e os símbolos são o centro da vida imaginária, revelam os segredos do nosso
inconsciente.
73
O mbolo personifica o que ainda está por vir na narrativa ficcional, agindo
como mecanismo de antecipação, vinculando-se ao suspense, imaginamos o que
vai ¹acontecer. Assim, perceber esses mbolos nos permite compreender melhor as
narrativas ficcionais.
Tais recursos simlicos estão em grande evidência no filme que analisamos,
desde o início, as seqüências estão recheadas de metáforas e símbolos. Podemos
nos deliciar procurando-os, em cada cena, Cunha comenta:
A cena inicial apresenta sem rodeios, o cerne da condução
simbólica do filme: a tríade. Alves, sua esposa e seu sócio brindam à
amizade, aos negócios e ao amor do casal. Na mesa três cálices de
vinho e, significativamente, três velas acesas (CUNHA, 2007, p.97).
2.3.1. O vermelho
O vermelho está presente em todos os povos,em cada um com um significado.De
acordo com o Dicionário de símbolos:
Não povo que não tenha expressado-cada um à sua maneira-
essa ambivalência de onde provém todo o poder de fascinação da
cor vermelha, que leva em si, intimamente ligados, os dois mais
profundos impulsos humanos: ação e paixão, libertação e opressão;
isso, as bandeiras vermelhas que tremulam ao vento do nosso
tempo o provam! (CHEVALIER;GHEERBRANT, 2007, p.946).
Na seqüência subseqüente , Alves bate a mão na taça de vinho e a derruba
(a). A esposa logo diz: “Sinal de mau agouro” ; Machado, mais que depressa, cobre
com um lenço
(b) o vinho derramado sobre a toalha e diz: vinho derramado sinal de
fartura”.
Segundo o citado Dicionário de Símbolos (2007, p.956,957,958), muitos são
___________________
¹Em teoria da literatura, a esse índice do que está por vir dá-se o nome de prolepse.
74
os significados do vinho , entre eles estão “a cólera de Deus”, os prazeres
profanos”, além da noção de que ele contém a “verdade”. Resta saber se tais
significados estão contidos nas palavras de Machado ou de Lulu.
O vinho lembra também Épicuro, epicurismo, estoicismo, desprezo pelos
males físicos e morais, que nos remete ao significado de viver o momento presente
Resignadamente; o carpe diem horaciano (Horácio, poeta latino). E é de modo
resignado que Alves leva sua vida após a traição.
Machado rapidamente coloca um lenço branco sobre o vinho
(c), e, ao final o
lenço está todo encharcado de vermelho(d), .maculando a toalha branca, numa
simbologia evidente de que as coisas o continuarão como antes. A pureza foi
maculada, e mesmo que Machado tentasse esconder, ela veio à tona, manchando
também o lenço:
(a)
(b)
(c) (d)
Fig. 37- Cenas do filme.
Não podemos negar , as cenas “falam” , a mancha está de volta, não foi
possível esconder, da mesma forma que a situação entre eles, que brevemente vi
à tona.
Além disso, pela semelhança com o sangue, há um sugestão de tragédia e
morte, que termina por não se realizar, justamente porque o tom predominante da
75
narrativa é satírico. Seguindo esta vertente humorística, a tragédia não acontece, o
duelo não se realiza por motivos cômicos, evocados pelos amigos
Em outra cena, colocam-se em evidência, numa focalização em detalhe,
rosas vermelhas:
Fig.38- As rosas vermelhas
Segundo o Dicionário de Simbólos:
Encontram-se estes dois elementos componentes da cor rosa, o
vermelho e o branco, com seu valor simbólico tradicional, em todos
os planos, do profano ao sagrado, na diferença atribuida às
oferendas de rosas brancas e de rosas vermelhas, assim como na
diferença entre as noções de paixão e de
pureza...(CHEVALIER;GHEERBRANT, 2007, p.789).
O vermelho e a flor rosa (símbolo da efemeridade da vida), dois importantes
elementos simbólicos para a representação do filme. Segundo o citado dicionário: “o
vermelho escuro é noturno, fêmea, secreto e, em última análise , centrípeto,
representa não a expressão , mas o mistério da vida...alerta, seduz, encoraja,
provoca, inquieta.” (Chevalier e Gheerbrant, 2007,p. 944). Neste clima, segue a
trajetória dos nossos personagens.
A flor rosa representa:
76
O amor paradisíaco está comparado por Dante ao centro da rosa: Ao
centro de ouro da rosa eterna, que se dilata, de grau em grau, e que
exala um perfume de louvor ao sol sempre
primaveril[...](CHEVALIER;GHEERBRANT, 2007, p.789).
Seria esse o amor que Ludovina queria despertar ao enviar para o escritório
as rosas vermelhas, ou apenas, de forma ingênua alegrar o ambiente de trabalho do
marido.
2.3.2. O triângulo
Na cena abaixo, vemos Alves carregando maçãs, três maçãs vermelhas. A
maçã está ligada a diversas esferas simbólicas: transgressão, pecado, discórdia.
Por sua forma esférica representa o mundo, os desejos terrestres, a proibição
enunciada, um alerta para o homem sobre a predominância desses desejos,
segundo Chevalier e Gheerbrant (2007).
Fig. 39- As maçãs
Além do simbolismo da maçã vemos a simbologia do número “três”, o
triângulo. Logo no início do filme aparece um castiçal com três velas, imagem que,
considerando a vela como símbolo da vida humana, aponta para os três seres
77
envolvidos na trama, Alves, Ludovina e Machado. Assim, o “três” representaria o
possível triângulo amoroso entre eles.
Fig. 40 - O triângulo amoroso.
O relacionamento entre eles poderia ser graficamente representado pelo
triângulo, apontando para a possível traição:
Fig.41- Representação gráfica do suposto triângulo amoroso:Lulu, Alves e Machado.
Não são poucas as cenas em que podemos encontrar um índice sobre o
triângulo amoroso. Ao contrário, este índice está em muitos lugares, basta um olhar
Ludovina
Alves
Machado
78
mais atento. Na cena abaixo, Lulu é representada pelas rosas que enviou ao
escritório para alegrar o ambiente:
Fig.42-O triângulo amoroso.
Fig.43- Representação gráficas do suposto triângulo amoroso:
as rosas (Lulu), Machado e Alves.
Na cena subsequente, Alves derruba as maçãs que ao cair, acabam
formando um triângulo, reforçando mais uma vez simbologia do triângulo:
As rosas
(Ludovina)
Machado
Alves
79
Fig. 44- O triângulo das maçãs.
Mais uma vez, podemos recorrer ao Dicionário de Símbolos, que nos dará
uma outra visão da maçã:
A maçã é simbolicamente utilizada em diversos sentidos
aparentemente distintos, mas que mais ou menos se aproximam: é o
caso do pomo da Discórdia, atribuído pelo herói Páris; dos pomos de
ouro do Jardim das Hespérides, que o frutos de imotalidade; da
maçã consumida por Adão e Eva: da maçã do Cântico dos Cânticos
que representa, ensina Orígenes, a fecundidade do Verbo divino, seu
sabor e seu odor. Trata-se, portanto, em todas as a circunstãncias,
de um meio de conhecimento,mas que ora é fruto da Árvore da Vida,
ora da Árvore do conhecimento do bem e do mal: conhecimento
unificador, que confere a imortalidade , ou conhecimento
desagregador, que provoca a queda. (CHEVALIER; GHEERBRANT;
2007,p. 572).
Tamm Cunha nos esclarece um pouco mais sobre a maçã:
Ela é discórdia, pois corresponde ao desentendimento do casal e dos
sócíos; é pecado, porque a infidelidade conjugal é luxúria , além do
mais, provoca a queda, uma vez que Alves , depois de cair
literalmente de quatro para apanhar as frutas, será arremessado ao
fundo do poço.(CUNHA, 2007,p.100).
Em outra cena, Ludovina observa algumas crianças brincando na areia.
Podemos claramente constatar a tríade, desta vez representada pelas crianças,
conforme nos revela a figura subsequente:
80
Fig 45- A tríade formada pelas crianças
menino
menino menina
Fig. 46- Esquema na tríade das crianças.
2.3.3 Os índices de caos e outros
Além do triângulo, também encontramos outros índices, como nas imagens
abaixo:
(a) (b)
Fig.47-O xale preto cobrindo o retrato de Lulu.
81
Nessa sequência, Alves ilumina o quadro(a), o castiçal que antes estava
aceso, agora está apagado, num claro sinal de rompimento. Alves cobre o retrato de
Ludovina com um xale (b), que pouco ela usava, num ato de luto.O personagem
sentia-se em luto, pois,naquele momento, sua esposa havia morrido para ele.
Outro índice pode ser visto na cena seguinte: o relógio da sala, sempre
funcionando pelas mãos diligentes de Lulu, que servia como referência para Alves
acertar seu relógio pessoal, agora estava parado; Alves não sabia como fa-lo
voltar a funcionar. Em correspondência metafórica, assim como sua vida, o relógio
também parou.
Fig. 48-O relógio parado.
.
Nesta outra cena, Alves está no quarto, pensando em como irá se vingar do
traidor. Abre uma gaveta, pega dois dados e joga; sua sorte está lançada. Aparecem
os números dois e três; para ele, um aviso de que dos três, somente dois ficarão
vivos, Ludovina e um deles.
Fig. 49- Os dados, a sorte está lançada.
82
Tamm o presente que Alves compra para Ludovina, uma pulseira de ouro
em formato de uma cobra mordendo o próprio rabo, é pleno de sugestões: de um
lado, representando um círculo contínuo, alude ao mito do eterno retorno, o que
pode ser um índice do final feliz, a volta dos bons momentos; por outro lado, não
esqueçamos que a serpente, desde Adão e Eva, é mbolo da tentação para o
pecado, da incitação para a traição, consistindo num índice da situação que Alves,
logo em seguida, enfrentará em casa:
Fig. 50- A pulseira
Na sequência em que Alves vai ao encontro dos padrinhos do duelo, há uma
passagem muito pida, porém muito significativa: Alves pára diante do dossel da
cama de Medeiros e, se observarmos atentamente, poderemos notar que o adorno
forma um desenho de chifres sobre sua cabeça:
Fig 51- Alves em frente ao dossel.
83
A cortina emoldurando com cornos a cabeça de Alves, lembrando a palavra
“corno” da linguagem chula que, em nossa cultura, designa o homem enganado pela
esposa. Assim, esta cena está em perfeita harmonia com a atmosfera do momento
vivido por Alves.
Outra cena , simbólica e satírica, está ligada à comida. Ao ver Medeiros cortar
a carne mal passada do jantar
(a), não consegue deixar de associá-la ao fato de que,
no dia seguinte pode ser a sua carne que estará sangrando após o duelo com
Machado. O forte movimento de repulsa de sua expressão e gestos, denuncia
claramente a imagem que o domina seu pensamento
(b):
(a)
(b)
Fig. 52- Alves corta a carne mal passada.
Não podemos deixar de falar sobre os índices de caos, índices que mostram
a degradação do personagem: antes um homem altivo, cheio de poder, que andava
e agia com imponência, bem cuidado e bem vestido, depois da suposta traição, vai
rapidamente degradando-se fisicamente, abandonando os negócios, perdendo o
domínio da própria vida. Nas cenas seguintes podemos observar o quanto o
personagem se degradou após a partida da esposa. Ele perdeu o interesse em
cuidar até mesmo da aparência
(a), vivendo num total desleixo pessoal (b).
As companhias mudaram (c): vemos Alves numa ceia com o boêmio Medeiros
e prostitutas. Sua casa imergiu em um caos total, perdeu o respeito das criadas: no
84
último quadro, podemos notar uma barata passeando em cima do prato(d), com
restos de comida, possívelmente do dia anterior.
(a)
(b)
(c) (d)
Fig. 53- índices do caos
A retomada da vida anterior tamm vem acompanhada por atitudes
simbólicas: Nas cenas subsequentes, Alves toma um banho, faz a barba
(a) e veste-
se de forma adequada.Em seguida, tira o xale que cobria o retrato de Ludovina(b):
(a) (b)
85
(c))
(d)
Fig. 54- A volta à vida.
O relógio de sua casa volta a funcionar(c), Lulu está de volta e com ela a
vida(d).
Nas cenas finais, os três personagens voltam a se reunir, mas agora Lulu
não está mais entre os dois: Alves está no meio, separando os supostos traidores.
Domina a cena o som do sino, símbolo de união, de celebração, anunciando o novo,
representado pelo batismo do filho de Alves e Ludovina:
Fig.55- Triângulo final:Alves ao centro.
Fig.56- Esquema do triângulo final.
Ludovina
Machado
Alves
86
Assim, com este novo esquema, retoma-se o equilíbrio inicial, com o retorno
do amor e da amizade, com a volta da felicidade e do entendimento que marcava a
relação das personagens. A cena final confirma o espírito satírico que direciona
tanto a narrativa de Eça como o filme de Ratton, numa clara sugestão de que o filho
tanto pode ser de Alves como de Machado, podendo finalizar com as irônicas e
jocosas palavras que intitulam uma comédia de Shakespeare: All’s well that’s ends
well¹.
2.4 Trilha sonora
Imaginar um filme sem som, sem diálogos, sem ruídos, sem música é algo
para nós praticamente anacrônico, a não ser como uma curiosidade dos primórdios
do cinema.
Muitas foram as modificações desde que o cinema surgiu. Entre elas está o
som, que passou a fazer parte do filme somente a partir de 1926 (Martin,
2007:p.108). Com o som, muitas mudanças surgiram na estrutura narrativa,
trazendo a necessidade de profissionais para atuar nessa nova fase
cinematográfica.
E da mesma forma que para nós é difícil imaginar um filme sem som,
registro de um espectador das primeiras sessões dos irmãos Lumière, em que ele
comenta, no ano de 1896, o estranho silêncio vindo das telas.:
Tudo se desenvolve sem que ouçamos o ranger das rodas, o barulho
dos passos ou qualquer palavra. Nenhum som, nenhuma nota de
sinfonia complexa que acompanha sempre o movimento da multidão.
Sem barulho, a folhagem cinzenta é balançada pelo vento e as
silhuetas das pessoas condenadas a um perpétuo silêncio. Seus
movimentos são plenos de energia vital e tão rápidos que mal são
percebidos, mas seus sorrisos nada têm de vibrante. Ver-se-ão seus
músculos faciais contraírem, mas não se ouve seu riso. (COSTA,
2007; p.10).
___________________
¹ Tradução nossa: Tudo está bem se acaba bem.
87
Os realizadores dos filmes na época do cinema mudo precisavam utilizar
diferentes artifícios para que o espectador compreendesse o que desejavam
transmitir. A falta de som, de diálogo, deixava um espaço difícil de ser preenchido,
conforme esclarece Martin:
Amputada de uma dimensão essencial, a imagem muda precisava
fazer-se duplamente significativa. A montagem assumia então um
papel considerável na linguagem fílmica, pois era-se obrigado a
intercalar constantemente no enredo explicativos destinados a
fornecer ao espectador o motivo daquilo que seus olhos viam. Se,
por exemplo, o diretor desejava mostrar os operários deixando a
fábrica no fim da jornada de trabalho, via-se na obrigação de
intercalar na cena um primeiro plano da sirene da brica soltando
vapor. Ou então, se quisesse fazer “ouvir” um pianista tocando
Debussy, devia introduzir o plano de uma folhagem ou de águas
tranqüilas. A imagem tinha então que assumir sozinha uma pesada
tarefa explicativa além de sua significação própria: intercalação de
planos ou montagem rápida destinadas a sugerir uma impressão
sonora. (MARTIN, 2007; p.113).
Portanto o som, mesmo naquela época, era de fundamental importância. O
silêncio só tem sentido relacionado ao som; somente na pausa do som é que
conseguimos perceber e compreender o silêncio. De outra forma, ele não faz
sentido, deixa um vazio a ser preenchido.
As músicas faziam parte do cinema, mesmo na fase do cinema “mudo”,
quando os filmes traziam uma trilha sonora como acompanhamento.
Mas não era música de filme, no sentido exato da palavra, pois o principio
de correspondência rigorosa entre imagem e som ainda não era realizado
tecnicamente, nem reconhecido esteticamente”, conforme esclarece Martin (2007;
p.120). A música, nessa época, era produzida por um pianista ou uma orquestra,
que ficava na sala de projeção, e deveria seguir as imagens, através de partituras ou
somente de descrições de como se deveria fazer em determinada cena.
Com a introdução do som no cinema, a música ganha alma, ela passa a
fazer parte da representação, ao lado do personagem. Compõe com ele o momento
sentimental vivido. A música que é escrita especificamente para um filme, servirá
para acompanhar um personagem, para descrever um lugar, ilustrar uma cena, uma
seqüência; enfim, a música tem o poder de mexer com os sentimentos dos
88
espectadores, torna-se parte do filme de forma unívoca, auxiliando-o em sua
narrativa.
Mais ainda, ela pode substituir sons reais, realçar a importância dramática
do momento, dar suporte psicológico ao personagem, a fim de fornecer ao
espectador o fator necessário para a compreensão da cena, para obter o melhor da
imagem. Parafraseando Rubens Ewald Filho (BERCHMANS, 2006; p.12)., uma boa
trilha sonora passa o clima do filme, e isso pode ser expressado através de uma
única canção.
A importância da trilha sonora ao lado de todos os outros elementos de um
filme pode ser esclarecida de acordo com Berchmans:
A música de cinema carrega em si um mistério e um poder difíceis de
descrever. Talvez seja o elemento do cinema mais complexo de se
avaliar. É impalpável. É invisível. É abstrato. É pura emoção. E a
musica muitas vezes passa despercebida. Mas basta retirá-la de um
filme para se notar a sua real significância (BERCHMANS, 2006;
p.15,16).
Ao compor uma música para um determinado filme, o compositor trabalha ao lado
do diretor e do roteirista. Ele icompor em função das imagens, motivo pelo qual,
na maioria das vezes, a música é composta por último, quando o filme está na
fase final de edição. então o músico irá, de acordo com as instruções do diretor,
que engloba o estilo, o clima, o objetivo, entre outras coisas, compor a música.
Sobre esse processo, cedamos a palavra a Berchmans:
Durante o processo de composição da música original de um filme,
um momento em que a música é apresentada ao diretor antes de
ser gravada...Assim o diretor ouve a composição, sugere
modificações, orienta e argumenta seus pontos de vista aque se
chegue a um acordo do que se espera do score ¹. Nem sempre esse
processo é simples e rápido. Normalmente em relacionamentos
longos entre diretor e compositor, essa fase tende a ser mais fácil, já
__________________
¹score (do inglês), a tradução literal é “partitura”, porém seu significado no texto cinematográfico
é “ musica original do filme. Berchmans, 2006.
89
que ambos conhecem bem as habilidades artísticas um do outro
(BERCHMANS, 2006; p.167).
Depreendemos, pois, o quanto é importante o entrosamento entre diretor e
compositor, para que a música possa sair de forma desejada.
Para analisar a música do filme Amor & Cia desde sua criação, a começar
pela escolha do compositor, recorremos às palavras do diretor:
Esta complexidade no tom de Amor & Cia. deveria, claro, ser refletida
em sua trilha e, para desempenhar esta tarefa, convidei o Tavinho
Moura, cujas experiências com Carlos Alberto Prates Pereira em
Perdida (1976), Cabaret Mineiro (1980) e Noites do Sertão ( que
produzi em 1984) haviam me convencido de seu imenso talento, não
apenas como músico, mas como compositor de cinema (VILLAÇA,
2005;p.354).
Observamos que o diretor Helvécio Ratton tinha um envolvimento com o
compositor Tavinho Moura de outros trabalhos, e também que ele o escolheu pela
capacidade como compositor de obras cinematográficas; isto certamente foi
fundamental.
A escolha não podia ter sido mais acertada, a música complementa,
engrandece o filme. Mais uma vez é o próprio diretor quem comenta este fato:
Como eu esperava ele não me desapontou. Sua trilha era
incrivelmente densa, indo do humor ao drama, passando pela
opereta. E, para gravar os temas, Tavinho mostrou uma pequena
orquestra de câmara especialmente para o filme, usando os
instrumentos para pontuar a ação (como na cena em que Alves
segue Ludovina)... Na cena do duelo, sugeri que Tavinho adotasse
um estilo meio Piazzolla, pois, como aquilo era apenas um sonho do
Alves, nada seria melhor para se refletir neste fato do que o tango,
que combina tragédia e farsa de maneira inigualável. Porém somente
um compositor com recursos é capaz de lidar com todas estas
possibilidades- e Tavinho Moura é um dos melhores (VILLAÇA,
2005; p.354).
A música em questão tem o mesmo nome do filme Amor & Cia e faz parte do
CD Cruzada, lançado no ano de 2001, pela Lapa disco.
90
Tamm compõe a trilha sonora um Lundu, Isto é Bom, de Xisto de Paula
Bahia (Salvador-BA, 5 de setembro de 1841 - Caxambu - MG, 30 de outubro de
1894), considerado como um dos pioneiros da música popular brasileira; também no
teatro foi personalidade marcante. O lundu foi adaptado para a cena em que Alves
vai até um cabaré, para espantar a solidão. Durante a cena, ao fundo, ouve-se a
canção de Xisto Bahia, cujo tom é de nostalgia, de saudade do passado.
Outra música, esta cantada pela personagem Ludovina, “Tão Longe de mim
distante”, de Carlos Gomes, que também pontua o sentimento dos personagens no
decorrer do filme. Na abertura do filme, Ludovina canta a primeira parte desta
música ao piano:
Tão longe, de mim distante,
onde irá, onde irá teu pensamento.
Tão longe, de mim distante,
Onde irá, onde irá teu pensamento. Se esqueceste,
Se esqueceste,
Se esqueceste o juramento
Quem sabe se és constante?!
S'inda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora
Da saudade, da saudade agro tormento.
A segunda parte, Ludovina canta no único flash back do filme , quando Alves
está no Cabaré e começa a lembrar-se da esposa cantando. Ela canta a segunda
estrofe, que está perfeitamente em harmonia com a atmosfera da cena, cuja função
evocativa é o saudosismo:
Quisera saber agora
Se esqueceste,
Se esqueceste,
Se esqueceste o juramento
Quem sabe se és constante?!
S'inda é meu teu pensamento
Minh'alma toda devora
Da saudade, da saudade agro tormento.
Vivendo de ti ausente,
Ai meu Deus,
Ai meu Deus, que amargo pranto!
Suspiros, angústia e dores
São as vozes, são as vozes do meu canto
91
Quem sabe Pomba inocente
Se também te corre o pranto
Minh'alma cheia d'amores
Te entreguei já neste canto.
Ao final, os personagens Alves (Nanini) e Ludovina (Pillar) cantam em dueto a
canção, dando ainda mais emoção à interpretação.
A música do filme, Amor & Cia foi ajustada às ações do personagem Alves.
Cada passo que o personagem dá é envolvido pela música; ela acompanha a
atmosfera do momento: hora apressada e alegre, hora devagar e melancólica,
sempre seguindo o estado emocional do personagem.
Podemos enfim concluir com as palavras de Costa e Robalinho (2007; p.21):
o som “convida os espectadores a ouvirem os filmes além de vê-los, e assim
descobrir em sua metade sonora aspectos que fazem enriquecer seus modos de
contar história”.
As escolhas, no caso do filme Amor & Cia foram realmente muito especiais,
tanto a instrumental, quanto as outras musicas que compõem a trilha do filme, que
apesar de não terem sido compostas para o mesmo, fizeram enriquecer ainda
mais a narrativa fílmica.
92
3 NOVELA E FILME: APROXIMAÇÕES E DIVERGÊNCIAS
Uma prática comum nos dias de hoje, a adaptação de obras literárias para
o cinema, a cada dia ocupa mais espaço na produção fílmica e nas salas de
projeção. Há um entrelaçamento entre filme e obra literária, o que acaba por
valorizar as obras fílmicas e difundir as literárias, que em nossa cultura ainda
necessitam de muita divulgação.
A adaptação feita por Ratton manteve a época, século XIX, porém o espaço
da narrativa é modificado: de Lisboa, Portugal, para o Brasil, São João Del Rey, em
Minas Gerais.. O tom de crítica, humor e ironia que caracterizam o estilo das obras
de Eça de Queiroz, é mantido na obra fílmica.
Sob o viés das peripécias do personagem Alves, traçaremos um paralelo
entre obra original e obra fílmica, ou seja, novela e filme.
3.1. Um paralelo entre as obras por meio do personagem Alves.
A narração de Eça em Alves & Cia. é envolvente, dinâmica, o leitor
encontra uma história que o surpreende. Muito mais sutil, aborda temas sociais
sem tragédias, ao contrário, com muitas pitadas de humor e ironia.
a construção da narrativa fílmica por Ratton, transformou e amplificou
algumas características da obra original para as telas. Cunha esclarece:
Se em Alves & Cia., Eça utilizou-se dos recursos discursivos para
com ardil, induzir o leitor como foi induzido o protagonista- à
desconstrução da idéia de adultério, em Amor & Cia, Ratton
pontilhou de símbolos as cenas do filme, justamente para realçar a
idéia de solidez do triângulo, dando indícios de que o adultério de
fato existiu e, quiçá, ainda tivesse voltado a se estabelecer. È certo
que os símbolos, como se verá, também aparecem na narrativa
literária, no entanto, com outro propósito e com muito menos
intensidade do que no filme (CUNHA, 2007; p.96).
93
A obra literária, logo no início, revela-nos um personagem sério,
responsável, prático, porém acomodado, como o pai: ”Ele, Godofredo, fora sempre
de natureza indolente, como o pai, que, por gosto, se fazia transportar duma sala
para outra numa cadeira de rodas (QUEIROZ; 1952 p.22)”.
Da mãe recebeu o nome, a influência para estudar no colégio dos jesuítas,
também herdou o gosto pelo teatro, pela literatura: dramalhões e incidentes
violentos.
Alves sempre foi moralmente correto, consta que, nem mesmo antes do
casamento, teve um romance ou uma ligação amorosa qualquer.
Atencioso com a esposa Ludovina, provedor generoso, cuidando da casa
como “um pássaro cuida do ninho”, podia ser considerado um homem de respeito,
honrado, preocupado com a opinião dos outros.
Na trama cinematográfica, nas primeiras cenas, o personagem aparece
como um homem imponente, altivo, enérgico nos negócios e com os empregados.
Fig.57 Alves dando ordens aos empregados.
Se tomarmos esta cena por base, imaginaremos um personagem seguro,
dotado de uma personalidade forte, dominante, que sabe impor sua vontade, sem se
importar com opiniões alheias.
No trabalho, representava a solidez, a responsabilidade, cabendo ao sócio
Machado o progresso, a ousadia.
94
Alves não podia deixar de confessar que se na firma ele
representava a boa conduta, a honestidade doméstica, a vida
regular, a seriedade de costumes, Machado representava a finura
comercial, a energia, a decisão, as largas idéias, o faro do negócio
(QUEIROZ; 1952 p. 22).
Aos 37 anos, tinha uma vida confortável, uma bela esposa, boa situação
financeira, posição social de destaque, uma firma próspera e um sócio que o
completava no trabalho.
Na vida pessoal, articulada pela esposa Ludovina, uma bela mulher, tudo
corria na mais perfeita ordem.
[...] era um homem prático, vendo a vida pelo seu lado material e
sério. Ficara-lhe, contudo na alma um fundo de sentimentalismo
romântico, que não queria morrer; assim gostava de teatro, de
dramalhões, de incidentes violentos. Lia muitos romances, as
grandes ações, as grandes paixões exaltavam-no, e sentia por vezes
capaz dum heroísmo ou duma tragédia. Mas tudo isto era vago,
quase inconsciente, movendo surdamente no fundo do coração [...]
(QUEIROZ, 1952, p.24).
Alves admirava no cio Machado “as belas maneiras e certos requintes de
elegância” (1952;p. 23), e mais, tinha certo interesse pela vida pouco regrada que o
sócio levava, as noites com amantes em lugares que ele, Alves, jamais pisara.
[...] se as paixões românticas o interessavam, decerto não pensara
nunca em lhe provar o mel ou as amarguras! Não, ele era um homem
casto, amava a sua Lulu; somente gostava de as ver no teatro ou nos
livros. E agora o romance que ele sentia ali, ao seu lado, no seu
escritório, interessava-o. Era como se os fardos, a papelada, se
espiritualizassem com aquele vago perfume de aventura que
emanava do Machado... (QUEIROZ; 1952 p.25).
Alves, apesar de ser honesto e valorizar os bons costumes, não deixava de
apreciar os romances secretos de seu sócio, muitos deles, decerto, com mulheres
casadas; isto, no entanto, não lhe trazia nenhum incômodo.
95
Percebe-se uma certa hipocrisia nas atitudes do tão “correto” Alves, que
pode facilmente aceitar os romances secretos de seu sócio, que fatalmente
envolviam amores adúlteros, e não achar nada de mais nessa atitude, pelo contrário,
até se interessava bastante em saber como andavam os romances.
Estes comportamentos e atitudes dos personagens evidenciam-se tamm
na obra fílmica. Assim, Alves representa a maneira dissimulada com que a
sociedade da época fechava os olhos para as atitudes poucos louváveis, como a
traição, que de certa forma era aceita, e até mesmo incentivada e admirada.
Fig. 58 Alves e Machado no escritório.
Na obra fílmica, temos mais indícios de sua personalidade. Alves pega um
folhetim que manm escondido embaixo dos papéis, com o eloquente titulo A
louca de amor”, revelando um gosto e interesse de cunho bem sentimental,
contrariando a sua aparência de superior altivez.
Alves certamente esconde uma faceta de sua personalidade que pode não
ser assimo segura quanto nos sugere no início, visto a necessidade que sente em
esconder o folhetim e, portanto, não revelar um lado seu do qual parece se
envergonhar
(a).
96
(a)
Fig. 59 Seqüência em que Alves pega o folhetim escondido.
Este gosto pelos enredos amorosos, explica o fascínio que sente pela vida
aventureira do sócio.
Sobre a cumplicidade dos sócios, observamos que na obra fílmica ela é, de
certa forma, mais evidente. Assim, diferentemente da obra literária, em que a firma
tem apenas o nome de Alves”, no filme ela passa a chamar-se “Alves & Machado”,
demonstrando um envolvimento maior entre os sócios.
Podemos notar, nas cenas e seqüências analisadas até aqui, que o filme
segue a linha da obra original. No entanto, diversamente da obra original, a narrativa
fílmica inicia-se com um prólogo, em que o diretor revela muita coisa que está por
vir.
Observamos que o triângulo amoroso está formado logo nas cenas iniciais,
com uma seqüência em que Alves e Machado
(a) observam Ludovina ao piano (b,c):
(a) (b) (c)
Fig.60 Alves e Machado ouvem Lulu ao piano.
97
É possível notar que os dois personagens sentem-se envaidecidos, como se
Ludovina cantasse para cada um, em particular.
Este começo, esclarece-nos Cunha (2007; p.96), apresenta, sem
rodeios, o cerne da condução simbólica do filme: a tríade Alves, sua esposa e seu
sócio brindam à amizade, aos negócios e ao amor do casal.
Fig. 61 O triângulo: Alves , Ludovina e Machado
O conflito tamm se estabelece logo no início da narrativa: Alves, ao
lembrar-se do aniversário de casamento, parte em busca de um presente para
sua esposa. Em seguida segue para casa, quando a encontrará em atitude
suspeita com o amigo. Mais uma vez Cunha nos revela:
[...] o percurso de Alves da loja asua casa, durante o qual apalpa
seguida e ansiosamente o presente comprado, é de extrema
importância no desenvolvimento das duas narrativas a literária e a
cinematográfica-, pois configura a preparação do conflito. O flagrante
é inevitável. Alves, ao chegar a casa, ante , tem a inesperada
visão: Machado e sua adorável Lulu trocando carícias no sofá da
sala. O sócio foge como um menino traquinas. A cena pérfida
instaura o choque , ou seja, a ruptura da trindade.(CUNHA, 2007;
p.99)
98
Alves transforma-se agora, de espectador dos “negociozitos” de Machado,
a vítima deles. O que era motivo de risinhos escondidos torna-se a desgraça de
sua vida.
Ratton prossegue a obra e transpõe rigorosamente para o filme um trecho
do livro, quando Alves negocia com Neto, pai de Ludovina, qual será o destino da
filha. Podemos notar nesse trecho, que Alves acaba sendo extorquido pelo próprio
sogro que, para cuidar da filha e, assim, zelar pela “honra” do genro e de sua firma,
pede a Alves que pague uma pensão. Frágil, sem atitude, ele cede a todas as
chantagens.
Mais uma vez Ratton acerta, como bem analisa Cunha:
[...] ao “aproveitar-se de Eça, acerta mais ainda ao criar novas
situações, que dinamizam e enriquecem a linguagem do filme. Uma
delas é a cena do sonho, toda filtrada por um tom azul, a qual [...]
confirma a idéia do duelo que passava pela cabeça de Alves
(CUNHA, 2007; p,103).
Podemos observar a seqüência mencionada por Cunha, revelando-se a
forma criativa com que o diretor utilizou as possibilidades fílmicas para retratar o
sonho , ou melhor , o pesadelo que Alves teve ao pensar no duelo com Machado:
99
Fig.62 O sonho de Alves
O tom de azul uma dimensão diferente às cenas, como se fosse uma
película que as envolvesse:
Também aqui podemos observar a forte presença do triângulo, que
permeia toda a obra cinematográfica: Alves, Ludovina e Machado.
No filme, a gravidez de Ludovina é evidente, diferentemente do livro:
quando está com seu pai na praia, tenta afogar-se e, quando questionada sobre o
porquê, coloca a mão sobre o ventre e diz apenas que gostaria de sumir. Seu pai
então percebe a gravidez e pergunta quem é o pai, ao que Ludovina responde
categoricamente que o filho é de Alves. Porém Neto, quando ela se afasta, diz: “Ele
não vai acreditar nisso”. Sobre este episódio, Cunha comenta:
Nesta altura é que o filme desvencilha-se do livro, uma vez que não
referencia alguma no texto literário sobre à gravidez de Ludovina.
Mas tudo isso tem sua razão de ser. A narrativa verbal de Queiroz
vai induzir o protagonista à desconstrução do adultério,
estabelecendo um jogo bem urdido, onde a perspicácia do autor
provoca uma ambigüidade que não deixa outra saída para o leitor a
não ser a da própria duvida: terá havido ou não adultério? Na
narrativa visual Ratton, da mesma forma que no texto literário, existe
o intuito do desmantelamento da situação adúltera, que o
100
espectador atento poderá encontrar, na entrelinhas imagéticas, a
resposta- o que o livro não permite (CUNHA, 2007;p.105).
Outro pormenor que, apesar dos significados serem basicamente os
mesmos, difere de uma obra para outra no objeto utilizado, são as cenas com o
relógio e o candeeiro.
Na obra literária, desde que Ludovina se foi ninguém consegue acender o
candeeiro, objeto que tem como significado simbólico a luz da vida de Alves. na
obra fílmica, o que não funciona é o relógio, parado desde que ela se foi,
simbolizando, do mesmo modo que o candeeiro no livro, a vida de Alves que
parou.
Portanto, tanto na obra literária como na fílmica, Ludovina era para Alves a
luz e a razão de sua vida.
Na continuação do enredo, Alves, vendo esgotadas todas as possibilidades
de enfrentar o traidor, procura os amigos Medeiros e Carvalho na esperança de que
eles o ajudem a, finalmente, lavar sua honra. No entanto, o que ocorre é que, por
meio dos argumentos desses amigos, os fatos são desconstruídos.
Eles acabam convencendo-o de que as cartas encontradas eram, na
verdade, referências a passagens de romances, ou seja, a falta do que fazer da
mulher, que a leva à ociosidade e, conseqüentemente, aos maus pensamentos e à
excessiva sentimentalidade. Vemos aqui o diretor a manter a ideologia machista que
perpassa a obra de Eça, pois o escritor dizia que as novelas românticas induziam as
mulheres ociosas ao adultério.
O tempo passa, Alves aparece agora em uma total decadência, tanto física
como moral. Sua vida segue mergulhada no caos, a própria imagem e a postura do
personagem mostram a reviravolta sofrida em sua trajetória. O filme ressalta esse
abandono de forma muito mais contundente, na obra literária ela apresenta-se de
forma mais branda.
Na figura subseqüente, vemos Alves e Medeiros, num cabaré,
acompanhados por prostitutas, nesta cena, Alves, bêbado, é a própria imagem do
abandono, da pessoa que perdeu o rumo e a motivação de viver. É uma dor que não
abranda, ao contrário, quanto mais o tempo passa, mais sua solidão aumenta:
101
Fig. 63. Alves num cabaré.
A necessidade de ter sua esposa de volta, faz o personagem agir de forma
contrária a todas as atitudes que se esperava de um marido traído, tanto na
sociedade portuguesa como na mineira do século XIX.
Assim, também no filme, a carnavalização está presente e, ao final,
podemos olhar o personagem de ângulos diferentes, julgá-lo um apaixonado, um
tolo ou mesmo uma pessoa muito esperta que coloca a situação social acima de
tudo.
Assim confirmando, o que Eça propôs, também Ratton passa a mensagem
de que a verdade depende do modo como a realidade é considerada, depende do
ponto de vista; evidencia também como uma boa argumentação transforma os fatos,
sem esquecermos nunca do enfoque irônico que perpassa por toda a narrativa.
Seja como for, o protagonista retomou tudo o que julgava ser importante em
sua trajetória.
3.2. Enfoque literário e fílmico: Ironia, Humor, Paródia, Carnavalização.
Eça de Queiroz é conhecido pelos textos repletos de ironia e humor, como
em A Relíquia e neste que estudamos Alves & Cia. Assim, esta novela é regida pela
visão satírica, que vira pelo avesso um enredo que se encaminha para a tragédia,
102
transformando-a numa farsa de final feliz, que atua como uma crítica e comentário
da sociedade burguesa de aparências.
Ratton, afirma ter sido este dos principais motivos que chamaram sua
atenção e despertaram seu interesse, levando à escolha da novela de Eça para
servir como base do roteiro do filme que produziria. Justamente por esta razão,
manm e reforça o enfoque satírico na produção fílmica.
A este respeito, Duarte comenta:
A ironia e o humor, usados com grande eficácia na arte literária,
parentes ambos da retórica, fundamentados no dizer algo sem dizê-
lo e na valorização de um receptor capaz de perceber que não se diz
(apenas) o que se diz, distanciam-se entretanto, a partir de seus
objetivos finais. Enquanto a ironia baseia-se em jogos de enganos,
tem geralmente objetivos pragmáticos e pretende afirmar ou
recuperar verdades, o humor brinca com os significantes e desvela
os artifícios do ser humano para se fazer valer, exibindo máscaras e
fingimentos . O humor tem portanto maior alcance , pois mostra que
o ser humano é frágil e risível no seu apego aos significados
preestabelecidos (DUARTE,L. 2006; p.199, 200).
A intenção de Eça era desnudar a hipocrisia da sociedade burguesa de sua
época, preocupada com as aparências, com a riqueza e os bens materiais, e para
isso recorre à ironia, ao humor e á sátira. Quando falamos na ironia de Eça,
entendemos os objetivos da ironia no sentido em que a questão é discutida por
Linda Hutcheon, com afirmações apoiadas em Umberto Eco, e que, apesar de se
referirem ao pós- modernismo e aos dias atuais, cabem perfeitamente para os
romances de crítica social de Eça:
Muitos adversários do s-modernismo consideram a ironia como
sendo fundamentalmente contrária à seriedade, mas isso é um
equívoco e uma interpretação errônea sobre a força crítica da dupla
expressão. Conforme Umberto Eco disse a respeito da sua própria
metaficção historiográfica e de sua teorização semiótica, o “jogo da
ironia” está intrinsecamente envolvido na seriedade do objetivo e do
tema. (HUTCHEON, 1985, p.62)
103
A forte tintura crítica do texto de Eça leva-nos a entender a ironia que o
domina segundo a interpretação de A. W. Schlegel, para quem a ironia sempre
parece ter uma função satírica, moral ou redutiva” (Muecke, 1995, p. 43), do mesmo
modo que o distanciamento crítico configura o que Muecke chama de “postura
arquetípica da Ironia Fechada, que se caracteriza, emocionalmente, por sentimentos
de superioridade, liberdade e divertimento e, simbolicamente, por um olhar do alto
de uma posição de poder ou conhecimento superior” (Id, p.67). Em alguns de seus
romances mais corrosivos, vemos mesmo uma função da ironia que Hutcheon
chama de “atacante ou “assaltante”, numa gradação que varia desde uma carga
afetiva mínima até uma carga afetiva máxima e que ela assim descreve:
A carga negativa aqui chega ao máximo quando uma invectiva
corrosiva e um ataque destrutivo tornam-se as finalidades inferidas
e sentidas da ironia. Em muitas discussões sobre a ironia, essa
parece ser a única função que se leva em conta, especialmente
quando a questão é de apropriabilidade ou, principalmente, de
excesso no seu uso, Contudo, existe o que se poderia interpretar
como uma motivação positiva para “saltar sobre” alguma coisa, não
importa quão vigorosamente, e isso es na função corretiva da
ironia satírica, onde há um conjunto de valores que você tenta
alcançar. (HUTCHEON, 2005, p.83-84)
A novela focalizada em nosso estudo, tem, em particular, um caráter satírico,
com personagens, principalmente Alves, cujas ações beiram a comicidade e cujo
final, na sua acomodação benevolente, adquire um ar burlesco. A novela
caracteriza-se como sátira justamente pela comicidade, pois lemos em Highet: The
final test for satire is the typical emotion which the author feels and wishes to evoke
in his readers. It is a blend of amusement and contempt” ¹(Highet, 1962, p.21).
Desse modo, o tom dessa narrativa de Eça aproxima-se de seu romance A Relíquia,
também envolvido por uma aura de comicidade e narrado em primeira pessoa por
um protagonista que encara as próprias desventuras com uma divertida resignação.
___________________
¹Tradução nossa: : O teste final para identificar a sátira é a típica emoção que o autor
sente e deseja evocar em seus leitores. È um misto de divertimento e desprezo”.
104
Alves & Cia pode mesmo ser vista como uma paródia, se a considerarmos
em relação a outras narrativas de Eça, principalmente o romance O Primo Basílio,
em que uma complicação semelhante, a traição conjugal por parte da esposa, leva a
um final trágico. Assim, lemos em Hutcheon:
A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão,
repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre
o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora,
distância geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto
pode ser apenas bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto
pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva.
(HUTCHEON, 1985, p.48)
Com a clara intenção de despertar nas pessoas o que se passava na
sociedade de seu tempo, Eça se utiliza da ironia e do humor. Escreve uma novela
que além de despertar para as hipocrisias da época, também era capaz de fazer o
leitor rir das situações , por mais difíceis que fossem.
Neste caso fica evidente a intenção jocosa da paródia; entre outros
exemplos, tomemos o trecho em que Alves encontra Ludovina nos braços de
Machado. Este episódio deveria ser uma cena de intensidade dramática, pois, afinal,
ali estavam sua esposa e seu amigo em atitude suspeita. No entanto, não é desta
maneira que ocorre, como podemos perceber da leitura:
Ao estremecer do reposteiro, Ludovina vira-o, e dando um grito,
saltara instintivamente para longe do sofá. Godofredo ouvira aquele
grito, mas não se podia mexer. Sem saber como, achara-se caído
sobre uma cadeira, ao pé da porta, e tremia , tremia como numa
sezão, tomado de frio. Através do rumor de febre que lhe enchia a
cabeça, o deixava sem idéias, ele sentia toda a atrapalhação que ia
dentro da sala: passos fortes pisando o tapete, umas palavras
trocadas, num sopro, com angústia... O ferrolho da porta que dava
para a escada correu; depois , um silêncio...Então, subitamente, a
idéia que eles tinham fugido ambos, restitui-lhe bruscamente as
forças.Um furor apoderou-se dele , e , dum pulo, arremessou-se para
dentro da sala. Mas tropeçou numa pele de raposa que ornava o
limiar e foi estatelar-se ridiculamente sobre o tapete! (QUEIROZ,
1952; p.35,36).
105
Não como levar a sério essa situação, pois a comicidade está presente
em todos os atos de Godofredo, comicidade que se mantém na cena
correspondente do filme:
a)
(b) c)
(d) (e) (f)
Fig. 64 Alves encontra Lulu e Machado juntos
Ao chegar a casa, Alves está sorridente, até podemos dizer patético, como
um adolescente (a). Quando Lulu e Machado, sua primeira reação é esconder-
se(b), como se não acreditasse no que via(c).O humor fica por conta de Machado,
que tenta esconder o rosto com o chapéu
(e). Além disso, Alves, ao tentar entrar na
sala, primeiro não consegue abrir a porta, depois se enrosca nela (f), mais uma
pitada de cômico
Não como levar a sério essa situação, pois o humor e a ironia estão
presentes em todos os atos de Godofredo. Toda a atmosfera cômica está presente
na cena correspondente do filme:
106
Tanto na obra literária como na fílmica, o protagonista, ao buscar ajuda dos
amigos, acaba por ouvir um relato de Medeiros de como conseguiu fugir de um
marido raivoso. Ora, fossem outros tempos, com certeza daria ele tamm
risadinhas às escondidas, mas agora que se encontra na pele de um marido traído,
a situação, para ele, deixa de ser engraçada e passa a ser trágica.
Assim, Eça deixa bem claro que as situações dependem muito do ponto de
vista. Prova disto é o sogro Neto, que consegue tirar proveito da situação e procura
extorquir dinheiro do genro. E, pior ainda, pede que a empregada coloque o
açucareiro de prata nas coisas de Ludovina, pois este foi um presente da família
dela.
Duarte comenta a forma com que Eça conduz a obra, e Ratton se aproveita
das passagens para recriar situações irônicas e cômicas :
[...] valendo-se do dico, da ambigüidade e de uma linguagem
irônica que mais parece uma cortina de fumaça a tirar a nitidez de
contornos como no simbolismo, Ratton , um bom recriador, acentua
esses artifícios do romance. E sabe marcar muito bem o desamparo
de Alves , que também na sua mão é um bom comerciante, mas não
sabe gerir o tempo, nem dar corda no relógio. Nem pode ser
alimentado, pois não tem quem lhe aqueça bem o ovo, a cama ou as
noites vazias (DUARTE,L. 2006; p.202).
As duas obras, literária e fílmica, são compostas de pequenos detalhes
recheados de humor, cada uma em sua especificidade, mas ambas enfatizando o
cômico.
As duas obras, literária e fílmica, são compostas de pequenos detalhes
recheados de humor, cada uma em sua especificidade, mas ambas enfatizando o
cômico.
Ratton contempla-nos com uma outra cena plena de humor, quando Alves
vai ao médico por conta de um machucado nas costelas e faz perguntas sobre os
possíveis ferimentos resultantes de um duelo, como se fosse o caso de um amigo.
107
(a)
(b (c).
Fig. 65 Alves e o médico.
O médico, percebendo que se tratava dele mesmo, mostra todas as terríveis
conseqüências que um duelo pode causar em uma pessoa(a). Porém, esta
explanação é recheada de risinhos furtivos por parte do médico(c), que percebe a
agonia de Alves (b):
Acontece outra passagem mica quando Alves, num acesso de fúria, de
ódio extremo, destrói um travesseiro, onde se vêem os monogramas dele e de Lulu.
Nesta seqüência, a graça pode ser percebida pelo fato de que o personagem, ao
tentar destruir o travesseiro, machuca-se e sente dor, numa alusão a sua “fraqueza”
diante da situação.
Fig. 66 Alves num ataque de furia.
Duarte nos revela um pouco mais sobre a produção filmíca:
108
O filme utiliza um elemento que funcionaria como atualizador do
texto: a criança, que o espectador não chega a saber se é realmente
filha de Ludovina e de Godofredo, pois a conversa dos dois a
respeito disso deixa atrás da porta fechada o ouvintes indiscretos.
Criança que ficaria incomodamente colocada num texto de Eça, em
que a preocupação em denunciar a hipocrisia reinante ao casamento
burguês focalizava crianças resultantes de uniões legítimas ou
adulterinas, lidando com esses frutos, porém, em sua idade adulta .
Essa criança permite a Helvécio Ratton um final feliz para seu filme,
terminado com um tom de esperança que não exclui o humor, mas
ensina a tentar combinar esperteza e generosidade para que se
possa esperar um mundo melhor. Ou então aperfeiçoa a percepção
eciana da gica burguesa, acrescentando um filho/herdeiro a uma
lucrativa transação comercial, em que é preciso usar bem a
prudência para saber quando é necessário conformar-se em perder
[...] Pois o Godofredo de Ratton, muito mais que o de Eça, sabe
ceder e usar o humor para ultrapassar o prazer e chegar ao gozo,
alcançando assim, afinal, como bem comerciante, um lucro maior
(DUARTE,L. 2006; p.2004, 2005).
Nas cenas finais, podemos ver ainda a forte presença da sátira: os amigos
de Alves, seus padrinhos de duelo, durante o batizado da criança, “Godofredo
Antonio”, dão risinhos durante toda a cerimônia, com uma atitude de zombaria,
duvidando da paternidade do amigo, numa comunicação explícita para o
telespectador:
Fig. 67 Atitude zombeteira dos amigos.
109
Enfim, tanto novela como filme, estão recheados de ironia, humor, metáforas
e simbolos, transformando o que seria uma tragédia em obra mica, sem
abandonar a crítica social.
3.3. Acréscimos ou supressões de personagens e fatos.
Resolvido o enredo do filme, é necessário analisar quais personagens
permanecerão, quais serão cortados e se outros serão acrescentados para que a
narrativa se desenvolva de forma satisfatória.
Esta não é uma tarefa muito simples, existem narrativas literárias
recheadas de personagens fascinantes, mas que não suportam uma transposição
para a obra fílmica, quando se trata de uma adaptação, Seger comenta:
No caso da adaptação, uma vez que os personagens já foram todos
criados, o trabalho inicial do adaptador consiste basicamente em
escolher, cortar e combinar personagens. A partir do momento em
que essas decisões tiverem sido tomadas, o adaptador precisará
contar com as mesmas habilidades necessárias para a criação de
personagens, pois alguns deles terão de ser recriados e
redefinidos. Em algumas histórias, pode ser preciso até mesmo criar
personagens adicionais, para deixar a trama mais clara (SEGER,
2007, p.149).
Assim, torna-se indispensável avaliar a função de cada personagem na
progressão do enredo, verificando quais têm um perfil que possivelmente i
agradar mais, com mais possibilidades de serem aceitos, e aqueles que
possivelmente não farão diferença na trama cinematográfica.
No filme Amor &Cia, o personagem da ir de Ludovina, Terezinha, foi
suprimido. Ela aparece pouco na obra literária, e seu papel não altera a trama da
narrativa fílmica.
110
Diferentemente, temos um acréscimo, o filho de Ludovina. Na obra literária,
pouco se fala sobre este assunto, não dando importância ao fato. Praticamente não
há referência se o filho é ou não dela, como podemos notar no trecho a seguir:
[...] ela contou-lhe a história das esmolas secretas que fazia. Era
uma pobre rapariga que conhecera na Ericeira e que um patife
seduzira e abandonara com duas crianças, uma ainda de
mama(QUEIROZ, 1952;p.170).
Na obra fílmica, a gravidez aparece por duas vezes: primeiramente, é
sugerida quando Ludovina, sozinha na casa de seu pai, deitada sobre a cama,
observa o bracelete que Alves havia comprado e, em seguida, coloca a mão
sobre a barriga e diz “Minha Nossa Senhora, que desgraça”. Com essa atitude,
nós espectadores, ficamos com a suspeita de que o filho é de Machado.
Fig. 68 A suposta gravidez.
Na obra literária, essas passagens não existem, esse acréscimo deu outro
rumo à história, que culminou em um final fílmico diferente do literário. No filme, ao
111
final surge a figura de uma criança, um menino, que o casal, aparentemente
“adota”, para evitar falatório, já que ninguém soube da gravidez de Ludovina.
O nome da criança é a composição dos primeiros nomes de Alves e
Machado, o que deixa ainda mais o espectador na dúvida sobre quem realmente é
o pai da criança.
Fig. 69 Ludovina e o filho.
Os fatos importantes da novela, de maneira geral permanecem na obra
fílmica, a grande diferença está no final, em que Eça de Queiroz avança 30 anos no
tempo, o que leva, por exemplo, Neto à morte. Isto não ocorre na obra fílmica, que
tem o tempo reduzido para pouco mais de um ano.
3.4. Os diferentes finais
A narrativa literária, como dissemos, avança por mais 30 anos, muitas
coisas acontecem, Machado se casa e, ao final de um ano, a esposa morre no
parto. Porém nada se fala a respeito do filho, se ele sobreviveu ou não
Machado, mais uma vez, volta para suas amantes, e assim a vida segue:
112
Os meses passaram depois os anos. A firma Alves & Cia. crescia,
enriquecia. O escritório, agora mais largo, mais luxuoso, com seis
caixeiros... Godofredo estava mais calvo. Ludovina engordava.
Tinham carruagem e no verão iam a Sintra (QUEIROZ, 1952;p.180).
Assim, a novela mostra como a amizade deles conseguiu ultrapassar
décadas, Alves, Machado e Ludovina seguindo lado a lado. Machado casa-se
novamente e muda-se para perto de Alves, como lemos no trecho seguinte:
Vieram viver para perto dos Alves que, agora, tinham mudado para
um palacete a Bueno Aires- e outra amizade nasceu logo entre
Ludovina e a senhora de olhos langorosos. Agora as duas famílias
vivem junto uma da outra, e ao lado uma da outra vão envelhecendo
(QUEIROZ, 1952; p.181).
Eça, em poucas páginas, conta o desenrolar de muitos anos, sem muitos
detalhes, porém o suficiente para que possamos compreender quanto foi duradoura
a amizade entre eles. Evidencia-se nesta narrativa, portanto, o avesso da tragédia
que encerrou os romances O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro; de um
prisma satírico, Eça desenvolve ,de uma tragédia que se anunciava na possível
traição amorosa, um suposto final feliz, repleto de crítica social sim, como não
poderia deixar de ser em se tratando de Eça de Queiroz, porém bem diferente dos
finais de suas obras.
Alves voz à mensagem narrativa quando, por vezes, pensa em sua vida,
concluindo como foi sensata sua atitude, não seguindo seus primeiros impulsos, ou
mesmo seu desejo de vingança:
Se naquele dia, do sofá amarelo, ele se tivesse abandonado a sua
cólera, ou se tivesse persistido depois em idéias de vingança e
rancor, qual teria sido a sua vida? Estaria ainda hoje separado de
sua mulher, teria quebrado sua amizade íntima e comercial com o
sócio; a sua firma não teria prosperado, nem aumentado a sua
fortuna; o seu interior teria sido o dum solteirão azedado, dependente
de criadas, maculado talvez pela libertinagem. Nesses longos trinta
anos que haviam passado, quantas coisas belas teria perdido,
quantos regalos domésticos, quantos confortos, quantos doces
serões de família, quantas satisfações da amizade, quantos longos
113
dias de paz e de honra. A estas horas estaria velho, com a vida
estragada, e aquela mancha do seu passado queimando-lhe sempre
a alma!(QUEIROZ, 1952; p.182).
Notamos que o suposto adultério realmente ficou no passado, e de forma tão
apagada que em nenhum momento Alves se refere ao fato como algo, no mínimo,
desagradável. Pelo contrário, sua fala está voltada o somente para sua atitude,
pelo fato de não ter cometido nenhuma bobagem. Mais uma vez, vemos comoa
comodidade social, o bem estar pesoal falou mais alto.
Ora, no mínimo é curiosa a forma como Eça conduz o personagem: apesar
de todas as possibilidades e pistas da traição terem existido, Alves não se cansa de
agradecer o desfecho do grande acontecimento de sua vida, e sempre utiliza a
frase: -que coisa prudente é a prudência” (QUEIROZ,p.182), uma afirmação
“acaciana” que enfatiza a ironia e a crítica social da novela.
Ratton, considerando as limitações fílmicas, reduz a narrativa para pouco
mais de um ano. Tempo esse necessário para uma gravidez, deixando o expectador
na dúvida sobre a paternidade da criança. Afinal, o filho seria de Machado ou Alves?
Machado não se casa, mas conhece uma moça e fica noivo, demonstrando seu
intuito de superar os acontecimentos anteriores, abandonando as conquistas
amorosas e tornando-se um respeitável homem casado.
Ludovina conta a Alves sobre a criança, porém o faz a portas fechadas,
deixando o espectador sem acesso a essa informação, cabendo a cada um imaginar
o que pode ter acontecido.
O orgulho estampado no rosto de Alves revela um pouco sobre essa
conversa, ele está feliz e realizado o que sugere ser dele o filho, ou pelo menos ter
sido isso que Ludovina contou. Exibe a família como um troféu, orgulhoso, altivo
novamente
(a). Este fato está em harmonia com o final da novela; tamm na obra
fílmica Alves acredita que tomou a resolução correta, e tem a agradecer por tal
atitude.
O que mais difere nos finais literário e fílmico é a importância dada à criança:
o filme termina com seu batizado. Esta seqüência final acentua o aspecto cômico da
narrativa, pois as cenas insinuam a todo momento a confusão entre pai e padrinho.
O batismo de Godofredo Antonio, mostra o retorno do triângulo
(b), diferente da
novela que não mais menciona este fato e os três juntos novamente, lado a lado e
114
com um sorriso enorme estampado em cada face, sem notar o tom de deboche no
olhar dos “amigos” Medeiros e Carvalho(c). Como podemos observar nas cenas
subseqüentes:
(a)
(b)
(c) (d)
Fig. 70 Final da narrativa fílmica.
Alves entusiasmadíssimo comenta com Machado se ele havia reparado
como Ludovina estava radiante, ao que Machado responde: A própria imagem
da felicidade”. Alves continua os comentários e diz: E pensar que quase nos
matamos”; Machado completa : “Por uma besteira à toa”. Ao final deste diálogo,
Alves conclui: Que coisa prudente é a prudência” , e os dois sorriem.
115
Um final perfeito: vence as aparências, o bem estar, a prosperidade
material, até o “amor” é mostrado para que o desfecho fosse realmente de um
conto de fadas: felizes para sempre. Podemos notar em cada passagem a
presença da crítica social. O que Eça queria tanto mostrar, a hipocrisia social da
época, está tamm relatada na obra de Ratton de forma bem clara.
115
Considerações Finais
Fizemos em nosso trabalho um estudo comparativo entre uma novela pouco
conhecida de Eça de Queirós, Alves & Cia, de publicação póstuma, e sua adaptação
para o cinema, no filme Amor & Cia, com roteiro de Carlos Alberto Ratton e direção
de Helvécio Ratton. Assim, foi nosso intento salientar as interfaces de uma mesma
narrativa em mídias diversas, dando especial relevo à obra cinematográfica,
procurando demonstrar os recursos técnicos utilizados para transpor a narrativa da
linguagem literária, em que os significados se sucedem ao longo do eixo
sintagmático para a linguagem fílmica sincrética.
Desse modo, procuramos entrar nas cenas, nos cenários, nos bastidores,
caminhamos com os atores, sentimos a música, vestimos o figurino para viver toda a
atmosfera do filme Amor & Cia. Para isso, muito nos ajudou o livro de Pablo Villaça,
Hevécio Ratton - O Cinema além das Montanhas, que nos colocou numa relação de
grande intimidade com o filme e os detalhes de sua produção.
Apesar de transportar a história de Portugal para o Brasil, de Lisboa para São
João Del Rey, Ratton manteve o teor satírico e o humor da obra de Eça de Queirós,
mantendo a contundente crítica à hipocrisia social que caracteriza a obra original,
adequada tanto à sociedade lisboeta da época do autor, como à sociedade da
cidade mineira focalizada.
Para realizar o estudo comparativo contextualizamos, no primeiro capítulo, as
duas obras separadamente: a novela de Eça, apesar de ser uma obra póstuma, foi
um manuscrito completo deixado pelo autor, o que de resto ressalta no estilo irônico
inconfundível que acidamente expõe as entranhas suspeitas da sociedade; o filme
segue a mesma esteira satírica, enfatizando a comicidade com a escolha do ator
talhado para papéis do gênero, Marco Nanini.
No segundo capítulo, enfocamos a linguagem cinematográfica, propondo-nos
justamente a demonstrar o seu grande poder de comunicação, analisando a
complexidade do código fílmico, detalhando elementos como movimentos de
câmera, enquadramentos, luz, som, diálogos, todo o universo da ação que o cinema
transcreve como uma representação especular da ação humana. Mas nessa análise
tentamos nunca perder o foco da visão comparada, procuramos demonstrar sempre
como esses recursos eram utilizados para transcodificar a narrativa literária.
116
Intentamos tamm ressaltar a eficácia com que o diretor utilizou-se de símbolos e
imagens visuais para sugerir tanto temas e elementos do enredo, bem como
pensamentos e sentimentos dos personagens da novela queirosiana.
No último capítulo, evidenciamos pontos de semelhança e de diversidade
entre novela e filme, concluindo que as diferenças surgem apenas em detalhes do
roteiro, que enfatizam alguns pontos da narrativa literária, com o objetivo de explorar
a mídia utilizada, como na cena do duelo, em que o uso a cor é relevante; ou a
ênfase no filho de Ludovina, de ambígua paternidade, reforçando a idéia de traição e
trazendo uma comicidade marota à cena do batizado, com os dois possíveis pais
sorrindo orgulhosamente ao lado da criança. Mas, como apontamos, o roteiro
manteve-se fiel à mensagem essencial da obra literária, a crítica satírica à hipocrisia
da sociedade burguesa, dominada pelos interesses materialistas, pela preocupação
com a aparência e posição social.
Finalmente, tentamos demonstrar que, na comunicação cinematográfica,
estamos diante de um fenômeno comunicacional complexo, que põe em jogo
mensagens verbais, mensagens sonoras e mensagens icônicas em movimento;
essa riqueza contextual faz do cinema um tipo de comunicação mais rico do que a
escrita, pois os diversos significados aparecem conjuntamente, criando a impressão
de que estamos diante de uma linguagem que nos restitui a realidade. Por esse
motivo, as narrativas fílmicas exercem extraordinário apelo sobre os espectadores,
o que nos fez propor o uso de filmes adaptados de obras literárias como recurso
didático para despertar o interesse pela leitura de obras literárias transcodificadas;
num segundo momento, serviriam também como estímulo a pesquisas para
aprofundamento de temas, contextos históricos, fatos, valores, sentimentos,
realidades, ideologias, enfim, reflexões críticas sobre o mundo.
Particularmente em Amor & Cia, vemos cenas e seqüências dominadas pela
ambigüidade, que nos levam muitas vezes a diferentes conclusões, cenas que
deveriam ser carregadas de drama e que no entanto levam ao riso. Assim, depois
que o protagonista surpreende a mulher e o amigo em atitude suspeita, temos cenas
que o mostram dominado pela raiva e pelo desespero, pensando em duelo e
vingança, alternadas com cenas em que aparece dominado pelo medo dos
possíveis ferimentos, ou até mesmo da morte. Essas cenas seriam um convite a
reflexões e debates sobre assuntos por vezes polêmicos e complexos, que não
raras vezes, fazem parte do cotidiano dos alunos.
117
Além disso, exibir e analisar filmes contribuiria para ampliar o conhecimento
a respeito da linguagem cinematográfica, dando a oportunidade aos alunos de
compreenderem um pouco mais sobre a magia e as dificuldades que envolvem a
produção cinematográfica. Aqui tamm o filme analisado favorece esse enfoque,
com o esclarecedor texto do próprio diretor, que desvenda o complexo trabalho que
se esconde por trás do universo fílmico.
118
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http://www.ftb.br/escritosterra/artigos03.htm>
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Disponível em:<
http://www.filologia.org.br/soletras/1/03.htm>
Acesso em 23 /07/2007 as 22:40
Sites consultados para captação de imagens durante o desenvolvimento do trabalho:
www.adorocinemabrasileiro.com.br
www.adorocinema.com
www.entrefilmes.blogspot.com.
http://esbatalha.ccems.pt/romanicas/11ano/11ano_indice.htm
http://www.oyo.com.br/
Filmografia
AMOR & CIA. Direção: Helvécio Ratton.Roteiro: Carlos Alberto Ratton, baseado em
livro de Eça de Queiroz, Produção: Simone Magalhães/ Quimera filmes. 1998. VHS
( 99 min.)
CAPITU Direção: Paulo Cesar Saraceni, Roteirista(s): Machado de Assis, Paulo
Cesar Saraceni, Lygia Fagundes Telles, Paulo Emilio Salles Gomes Difilm, Warner
Home Vídeo, Produtora(s): Carlos Diegues Produções Cinematográficas, J.P.
Produção e Administração Cinematográfica, LC Barreto Produções
124
Cinematográficas, Produções Cinematográficas Imago, Saga Filmes, Tekla
Filmes.1968, VHS (105 min).
DOM, Direção e roteiro de Moacyr Góes. São Paulo: Produções de Diler &
Associados/ Warner Bros, 2003. DVD- ROM (1h30m)
125
ANEXO
126
LUNDU
O lundu surgiu da fusão de elementos musicais de origens branca e
negra, tornando-se o primeiro gênero afro-brasileiro da canção popular. Realmente,
essa interação de melodia e harmonia de inspiração européia com a rítmica africana
se constituiria em um dos mais fascinantes aspectos da música brasileira.
Situado, pois, nas raízes de formação dos nossos gêneros afros, processo
que culminaria com o advento do samba, o lundu foi originalmente uma dança
sensual praticada por negros e mulatos em rodas de batuque, se fixando como
canção no final do século XVIII.
Assim, a referência mais remota encontrada sobre o lundu-música está na
Viola de Lereno, coletânea de composições de Domingos Caldas Barbosa,
publicada em Portugal em 1798.
O lundu é uma música alegre e buliçosa, de versos satíricos, maliciosos,
variando bastante nos esquemas formais. Muitos de nossos compositores populares
do século XIX fizeram lundus, pertencendo a esse repertório peças de grande
popularidade como no Largo da (Cândido Inácio da Silva), Lundu da
Marrequinha (Francisco Manoel da Silva, autor do Hino Nacional, e Francisco de
Paula Brito), Eu Não Gosto de Outro Amor (Padre Teles) e Onde Vai, Senhor
Pereira de Morais (Domingos da Rocha Mussurunga).
Mas o grande nome do lundu surgiria no final do século XIX na figura do
ator, cantor e compositor baiano Xisto Bahia (1841-1894), São de Xisto Bahia os
lundus O Camaleão, Canto de Sururina, O Homem, O Pescador, A Preta Mina e o
célebre Isto É Bom, música gravada no primeiro disco brasileiro. Com o
aparecimento de outros gêneros afro-brasileiros mais expressivos, o lundu saiu de
moda no começo do século XX.
Xisto de Paula Bahia
Xisto de Paula Bahia, cantor, compositor, violinista, violonista e dramaturgo.
Filho do major Francisco de Paula Bahia e Teresa de Jesus Maria do Sacramento
Bahia, nasceu em Salvador, BA, em 6 de agosto (ou 5 de setembro) de 1841 e
faleceu em Caxambu, MG, em 29 (ou 30) de outubro de 1894.
127
Não chegou a completar o primário. Aos 13 anos freqüentou o grêmio
dramático da Bahia denominado Regeneração Dramática, tornando-se profissional
aos 18 anos.
Paralelamente, aos 17 anos, os baianos já o viam cantando modinhas e
lundus, tocando violão e compondo, tal como Iaiá, você quer morrer?.
Em 1859 apresentou-se com sua bonita voz de barítono como corista em Salvador.
Em 1861 excursionando como ator pelo norte e nordeste do país tocava e cantava
chulas e lundus de sua autoria. Nunca estudou música, foi um músico intuitivo.
Coms pouco, mas o que fez foi de qualidade.
Considerado pelo escritor Arthur de Azevedo o "ator mais nacional que
tivemos", Xisto escreveu e representou comédias da qual destaca-se a sua Duas
páginas de um livro e, apenas como ator, Uma véspera de reis, de Artur de
Azevedo. Em 1880, no Rio, recebeu aplausos de Pedro II, pelo seu desempenho em
Os perigos do coronel. Atuou, além do norte e nordeste, em São Paulo e Minas
Gerais, sempre com sucesso.
Em 1891 transfere-se para o Rio de Janeiro e largando por um ano a carreira
artística, foi escrevente da penitenciária de Niterói.
Casou-se com a atriz portuguesa Maria Vitorina e com ela teve 4 filhos, Augusta,
Maria, Teresa e Manuela.
Doente, em 1893 retirou-se da vida artística dirigindo-se para Caxambu, MG,
onde morreu no ano seguinte. Entre suas canções destaca-se o Lundu Isto é bom:
Foi o autor da primeira música gravada no Brasil, Isto é bom; a gravação original foi
feita na voz de Bahiano em 1902, no selo Zon-O-Phone (alemã), da casa Edison de
Fred Figner, disco nº 10001. Isto é bom parece ter surgido em 1880, numa revista de
teatro para a qual Xisto Bahia colaborou com alguns números musicados
Isto é bom (lundu, 1902) - Xisto Bahia
O inverno é rigoroso / Bem dizia a minha vó
Que dorme junto tem frio / Quanto mais quem dorme só
Isto é bom, isto é bom / Isto é bom que dói...
Se eu brigar com meus amores / Não se intrometa ninguém
Que acabado os arrufos / Ou eu vou, ou ela vem
Quem ver mulata bonita / Bater no chão com o pezinho
128
No sapateado a meio / Mata o meu coraçãozinho
Minha mulata bonita / Vamos ao mundo girar
Vamos ver a nossa sorte / Que Deus tem para nos dar
Minha mulata bonita / Que te deu tamanha sorte
Foi o Estado de Minas / Ou Rio Grande do Norte
Minha viola de pinho / Que eu mesmo fui o pinheiro
Quem quiser ter coisa boa / Não tenha dó de dinheiro
Existe outra versão da música, possivelmente a original:
Iá iá você quer morrer (Lundu) - Xisto Bahia
Iá iá você que morrer / Quando morrer, morramos juntos / Que eu quero ver como
cabe / Numa cova dous defuntos
Isto é bom / Isto é bom / Isto é bom que dóe
A saia da Carolina / Me custou cinco mil reis / Arrasta mulata a saia / Que eu dou
mais cinco e são dez
Isto é bom / Isto é bom / Isto é bom que dóe
Mulata levanta a saia / Não deixa a renda arrastar / A saia custa dinheiro / Dinheiro
custa ganhar
Isto é bom / Isto é bom / Isto é bom que dóe
Os padres gostão de moças / E os solteiros também / Eu como rapaz solteiro / Gosto
mais do que ninguém
Isto é bom / Isto é bom / Isto é bom que dóe.
Fontes:
http://cifrantiga3.blogspot.com/2006/03/isto-bom.html
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/historia-do-carnaval/xisto-bahia.php
http://www.geocities.com
http://www.cinform.com.br/colunistas/?colunista=14&codigo=39280
http://www.cliquemusic.com.br/br/Generos/Generos.asp?Nu_Materia=12
Toppan, Jaqueline Maria Bertoncini
T675a “Amor & Cia” a mídia cinematográfica como recurso didático no
ensino da literatura: ensino fundamental (2º ciclo) e médio./ Jaqueline
Maria Bertoncini Toppan -- Marília: UNIMAR, 2009.
128f.
Dissertação (Mestrado em Comunicação, Mídia e Cultura) Fa-
culdade de Comunicação e Educação, Universidade de Marília, Ma-
rília, 2009.
1. Literatura 2.Cinema 3. Adaptação Fílmica 4. Recurso Didáti-
co I. Toppan, Jaqueline Maria Bertoncini II. “Amor & Cia” a mídia
cinematográfica como recurso didático no ensino da literatura: ensino
fundamental (2º ciclo) e médio.
CDD -- 800
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