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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
THAÍS LOBOSQUE AQUINO
A música na formação inicial do pedagogo: embates e
contradições em cursos regulares de Pedagogia da região
Centro-Oeste
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Goiânia
2007
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THAÍS LOBOSQUE AQUINO
A música na formação inicial do pedagogo: embates e
contradições em cursos regulares de Pedagogia da região
Centro-Oeste
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Goiás, para obtenção do título de Mestre em
Educação
Linha de pesquisa: Formação e profissionalização
docente
Orientadora: Profa. Dra. Monique Andries Nogueira
Goiânia
2007
THAÍS LOBOSQUE AQUINO
A música na formação inicial do pedagogo: embates e
contradições em cursos regulares de Pedagogia da região
Centro-Oeste
Dissertação defendida no Curso de Mestrado em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do grau de Mestre, aprovada
em _______ de ____________ de _______, pela Banca Examinadora constituída pelos
seguintes professores:
_______________________________________________________
Profa. Dra. Monique Andries Nogueira
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás
Presidente da Banca
________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Helena Jayme Borges
Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás
________________________________________________________
Prof. Dr. Valter Soares Guimarães
Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás
Ao buscar espaço para a música na Pedagogia lancei
novos olhares e desvendei outras faces de mim mesma...
Talvez seja este o mérito principal de uma educação
inundada pela música: descobrir a si e o mundo com
novas nuances e coloridos originais. Este trabalho é
dedicado a todos que amam e vêem na educação
musical a possibilidade de encontros surpreendentes
consigo próprio, com o outro e com o mundo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço especialmente aos meus pais, Pôncio e Eliana, por dar aos seus três filhos
experiências únicas de carinho, amor, afeto e oportunidades impagáveis de encontros com a
Educação, a Arte e a Música.
À orientadora desta dissertação, Profa. Dra. Monique Andries Nogueira, por seu
empenho e generosidade em fazer desta travessia, ao mesmo tempo, intensa e terna.
A todos os envolvidos com o Mestrado em Educação da FE/ UFG, professores,
funcionários e colegas, pelo constante comprometimento, cada um ao seu modo, para com a
valorização da educação em Goiás e no Brasil.
Às instituições participantes da pesquisa pela disponibilidade em contribuir com
informações e documentos vitais para a consecução dos propósitos deste trabalho.
Ao Hugo e Renata, irmãos e companheiros de jornada, qualquer palavra seria
insuficiente para ilustrar o amor que nos liga e nos nutre.
Não serei o poeta de um mundo caduco
Também não cantarei o mundo futuro
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considere a enorme realidade
O presente é tão grande, não nos afastemos
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade – Mãos dadas
RESUMO
O presente trabalho teve por fim investigar a música na formação
inicial do pedagogo, sob uma perspectiva de análise direcionada
para os cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste. Para
desvelar este fenômeno, mostrou-se necessário examinar a história
da educação musical no Brasil, a trajetória do curso de Pedagogia
no país, os limites e possibilidades de atuação do pedagogo com a
linguagem musical, além de verificar empiricamente através de
análise documental a presença da música no currículo das 76
instituições que oferecem o curso de Pedagogia em regime regular
na região Centro-Oeste. O pedagogo é apreendido como
profissional legal e eticamente responsável pela docência
multidisciplinar na Educação Infantil e séries iniciais do Ensino
Fundamental e, por isto, incumbido do ensino musical nos
respectivos níveis. Assim, acredita-se ser basilar oferecer
preparação em música durante seu processo de formação inicial
para que possa atuar efetivamente com tal área do conhecimento de
modo a democratizá-la nas escolas regulares brasileiras. Ao final da
investigação, é apresentada umapauta e propostas para discussão”
que visa fornecer subsídios para pesquisas e projetos empenhados
em criar novas tônicas para o diálogo multiface entre o pedagogo e
a música.
ABSTRACT
The present work had finally to investigate music in the initial
background of pedagogue, under a perspective of analysis directed
for the regular courses of Pedagogy in Brazilian’s Center-West
region. To discuss this phenomenon, revealed necessary to examine
the history of the music education in Brazil, the trajectory of the
Pedagogy course in this country, the limits and possibilities of
pedagogue practice with the musical language, beyond empirically
documentary analysis verifying through the presence of music in
the curriculum of the 76 institutions that offer the course in regular
regimen in Center-West region. Pedagogue is apprehended as
professional responsible by the teaching to multidiscipline in the
infantile education and initial series of basic education and, for this,
charged of music in the respective levels. Thus, it is fundamental to
offer him preparation in music already during its process of initial
background. To the end, considers a guideline and proposals for
quarrel” that aims to supply subsidies for researches and projects
pledged in creating new tonic about the multifaceted dialogue
between pedagogue and music.
LISTA DE TABELAS
TABELA I
TABELA II
TABELA III
TABELA IV
INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR PARTICIPANTES DA PESQUISA.......
HABILITAÇÕES DOS CURSOS REGULARES DE PEDAGOGIA -
LICENCIATURA DA REGIÃO CENTRO-OESTE....................................................
TÍTULOS DAS DISCIPLINAS OBRIGATÓRIAS LIGADAS À ARTE....................
GRADE CURRICULAR DO CURSO DE PEDAGOGIA DA UNAES PARA
INGRESSANTES EM 2006/ 2......................................................................................
74
77
84
90
viii
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................
ABSTRACT.............................................................................................................
LISTA DE TABELAS.............................................................................................
vi
vii
viii
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CONSIDERAÇÕES INICIAIS..............................................................................
A subjetividade da autora na definição do tema........................................................
A trilha metodológica................................................................................................
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL.....................................
1.1. A educação musical na colônia e a obra jesuítica.............................................
1.2. O desenrolar da educação musical no Império...................................................
1.3. As experiências orfeônicas na Primeira República............................................
1.4. A educação musical no Estado Getulista e a consolidação do projeto
orfeônico.............................................................................................................
1.5. As tendências pró-criatividade da educação musical na Segunda República....
1.6. O Regime Militar e a implantação da Educação Artística................................
1.7. Novas perspectivas para a educação musical no Brasil hoje.............................
INTERFACES DA RELAÇÃO ENTRE PEDAGOGIA E MÚSICA................
2.1. A trajetória do curso de Pedagogia no Brasil: indefinições e ambigüidades ....
2.2. O pedagogo e a música: abertura e possibilidades dialógicas............................
A FORMAÇÃO MUSICAL EM CURSOS REGULARES DE PEDAGOGIA
3.1. Mapeamento dos cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste:
modalidades formativas, habilitações, carga horária e duração................................
3.2. A formação musical em cursos regulares de Pedagogia da região Centro-
Oeste..........................................................................................................................
3.2.1. A formação musical em disciplinas obrigatórias ligadas à Arte.....................
3.2.2. A formação musical em disciplinas obrigatórias específicas..........................
3.2.3. A formação musical em disciplinas optativas.................................................
3.2.4. Análise integrada de modalidades formativas distintas...................................
PAUTA E PROPOSTAS PARA DISCUSSÃO.....................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO....................................................................
01
02
06
11
11
18
21
24
30
32
37
41
41
55
72
75
81
83
88
93
94
96
103
108
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Nenhuma arte exerce sobre as massas uma
influência tão grande quanto a música”
Villa-Lobos (1936).
A intrincada temática Formação e profissionalização docente, em suas diversas
perspectivas e linhas de análise, vem sendo posta em evidência nos debates sobre a
educação escolar brasileira nos últimos vinte anos. Para sua discussão m convergido
estudos acadêmicos, publicações, projetos, programas de cursos de pós-graduação,
encontros, colóquios, seminários. Pesquisadores da área educacional m trabalhando com
o intuito de desvelar os múltiplos aspectos envolvidos com o “ser professor”, mediante a
compreensão interativa entre os saberes, a identidade e a profissionalização subjacentes a
uma prática docente de qualidade. Para a boa educação das crianças e jovens brasileiros é
essencial investir na formação de nossos professores, constantemente apreendida como
frágil. No entanto, mais produtivo do que reafirmar tal fragilidade, é perceber o
alargamento de pesquisas, debates e proposições no sentido de torná-la cada vez mais
significativa em face dos desafios e complexidades da realidade educacional
contemporânea
1
.
Os estudos e encontros se desenrolam no sentido de problematizar a macro-temática
Formação e profissionalização docente com extensa variedade de enfoques. No que diz
respeito, especialmente, ao tratamento da formação inicial do pedagogo
2
no tocante à
linguagem musical - parte integrante da temática maior - a discussão raramente é
dimensionada em sua real importância e, talvez por isto, poucas vezes colocada de forma
organizada e sistemática. um claro paradoxo entre a pequena atenção dada à música na
formação inicial do pedagogo e a freqüente utilização que este profissional faz de recursos
musicais em sua prática pedagógica.
1
No Brasil, vários pesquisadores se detêm no aprofundamento da temática formação de professores. É o caso
de Libâneo (2001 e 2006), Pimenta (1999), Brzezinski (1996), dentre outros.
2
Nesta investigação, o pedagogo é percebido como profissional eticamente comprometido e legalmente
habilitado para a docência, notadamente o magistério multidisciplinar nas séries iniciais da escolarização
(Educação Infantil e quatro primeiras séries do Ensino Fundamental). Conforme determina a Resolução CNE/
CP 1/ 2006 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia: “O
curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de professores para exercer funções de magistério
na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade
Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em outras áreas na quais estejam
previstos conhecimentos pedagógicos” (art. 4º).
O pedagogo lida cotidianamente com a música no ambiente escolar: canta com os
alunos melodias que favoreçam o momento do lanche, da higiene pessoal, da oração;
cantarola com eles determinado trecho musical para que uma brincadeira seja realizada;
prepara-os para que entoem canções em festividades da escola; são, enfim, inúmeras as
situações em que o pedagogo se utiliza de expedientes musicais em sua rotina escolar. A
música é utilizada com finalidades lúdicas, como recurso pedagógico para outra área do
saber, como mecanismo de controle, porém dificilmente trabalhada enquanto disciplina
autônoma dotada de especificidades: objeto de estudo próprio; conteúdos, técnicas,
referenciais e metodologias particulares. A explicação para isto pode levar a um leque de
possibilidades, todavia o problema maior parece residir na insuficiência da preparação
musical em cursos de Pedagogia.
A pesquisa ora apresentada converge, pois, para a discussão da música na formação
inicial do pedagogo, desenvolvendo-se, especificamente, no sentido de compreender a
conjuntura do preparo musical em cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste. O
objetivo principal é delinear um panorama regional do assunto e então propor as bases para
a efetivação de um diálogo consciente e construtivo entre o pedagogo e a música.
Esta parte introdutória, que tem como escopo abrir caminhos para o leitor, deixando
explícitos alguns pontos, problemas e hipóteses, encontra-se dividida de modo binário. No
primeiro tópico, a pesquisadora examina algumas das motivações que a impulsionaram a
empreender o trabalho; seu viés subjetivo justifica a adoção, em alguns momentos, da
escrita em primeira pessoa. No segundo, é apresentada a trilha metodológica percorrida,
bem como a estrutura geral da pesquisa.
A subjetividade da autora na definição do tema
Tarefa complexa precisar a ocasião da escolha do tema trabalhado neste estudo.
Num ligeiro insight, veio à consciência as leituras desafiadoras da disciplina Estética e
Educação, oferecida pelo Mestrado em Educação da Universidade Federal de Goiás e
ministrada pela professora Drª. Monique Andries Nogueira. A disciplina auxiliou
consideravelmente na delimitação do tema e dos recursos metodológicos a serem utilizados,
mas, a bem da verdade, desde o ingresso no programa de pós-graduação - incluindo a
escolha pela linha de pesquisa até o conteúdo do pré-projeto enviado para seleção - a
temática da formação inicial do pedagogo no tocante à linguagem musical se
manifestava, ainda que congregada a outros assuntos.
Uma reflexão mais aprofundada fez relembrar minha atuação profissional como
professora de música para Educação Infantil em um colégio particular de Goiânia. À época,
fiquei duplamente surpresa: primeiro por saber que na referida escola havia tempo
específico para o trabalho com a música nas séries iniciais da escolarização, segundo
quando compartilhei a novidade com alguns colegas do curso de graduação em Educação
Musical. Muitos destes julgavam ser um disparate ministrar música de forma satisfatória no
ambiente da escola regular com várias crianças em sala de aula e, muitas vezes, sem infra-
estrutura e equipamentos adequados. Alegavam ainda o desgaste advindo deste campo de
trabalho, que exigia constante planejamento, criação permanente de atividades pedagógico-
musicais, busca por novos referenciais; desgaste este não recompensado por salário
diferenciado, ou seja, consideravelmente maior àquele recebido nos conservatórios. A
despeito de todos os comentários, resolvi aceitar o desafio por de antemão acreditar na
importância e necessidade de inclusão da música como disciplina na escola regular.
Ademais, parecia interessante experimentar como seria o trabalho em uma instituição em
cuja grade curricular havia tempo específico para o ensino musical.
No decorrer do tempo, foi possível verificar que muito do que foi dito pelos colegas
se confirmava: a prática pedagógico-musical numa escola regular de fato exigia um ritmo
de atuação mais acelerado devido, entre outros, à necessidade de soluções rápidas para
problemas suscitados em situações bastante específicas. Embora o cansaço se fizesse sentir
em certos momentos, não implicava no enfraquecimento do compromisso para com uma
educação musical de qualidade. Assim, minha prática tornava-se cada vez mais desejosa
por novas descobertas, o que levou à leitura de inúmeros livros de educadores musicais
tanto brasileiros quanto estrangeiros, à busca por cursos de curta duração que pudessem
engendrar novas idéias e, também, à experimentação de novas técnicas e metodologias.
Todas estas ações corroboraram para ampliar o meu repertório e, ao mesmo tempo, o
conhecimento musical dos alunos.
Não virtudes marcavam o ensino musical nesta escola. Paralelamente aos
aspectos positivos, existiam outros que incomodavam e, por isto, merecem uma dose de
reflexão. Dentre eles, destaca-se a visão ambígua que a escola tinha da música: ao mesmo
tempo em que a valorizava a ponto de salvaguardá-la como disciplina curricular, não raro
as aulas eram utilizadas para preparar os alunos para festividades. A música era uma vitrine
para a escola o que por si não é negativo, todavia a quantidade de eventos
freqüentemente fazia interromper algum projeto ou conteúdo em andamento. Outra questão
problemática era o isolamento em que me encontrava. Mesmo participando de reuniões
com as professoras regentes de classe, todas graduadas em Pedagogia, quando o assunto
dizia respeito à música, a coletividade sedia lugar à noção de que apenas a professora
especialista poderia contribuir de forma efetiva. Tentativas para encampar algumas
parceiras para discussão não faltaram, mas o pretexto da falta de preparo ceifava qualquer
possibilidade de trabalho conjunto. Também neste momento, a carência da música na
formação inicial do pedagogo perturbava.
A busca pelas circunstâncias que mais fortemente concorreram para a escolha da
temática desta investigação, não pode deixar de lado minha formação inicial. A opção por
realizar concomitantemente o curso de Educação Musical Licenciatura em instrumento
musical: piano e a graduação em Pedagogia fez enxergar com maior clareza os limites e
possibilidades de cada um deles. Neste percurso, a insuficiência de conhecimentos
pedagógicos na Licenciatura em música e a lacuna deixada pelos saberes musicais na
formação inicial dos pedagogos foram aspectos que logo chamaram atenção.
As disciplinas pedagógicas básicas do curso de Educação Musical continuavam
sendo oferecidas pela Faculdade de Educação por professores que não possuíam qualquer
formação musical, inviabilizando o trabalho com as interfaces entre a Pedagogia e a
música. Não era insignificante o número de alunos desinteressados por tais disciplinas,
principalmente pelo fato de estarem distantes das especificidades da educação musical.
Quando da ocorrência de matérias que contemplavam diretamente conteúdos pedagógico-
musicais, ministradas por professores capazes de transitar com maior desenvoltura por entre
as interseções do campo educacional e musical, as aulas tornavam-se mais dinâmicas e o
aprendizado mais significativo. Era um primeiro indício da importância do diálogo
recíproco e permanente entre área pedagógica e o campo musical.
No transcorrer do curso de Pedagogia, uma contradição foi se tornando manifesta:
mesmo com a apreensão consensual da importância da música para a formação dos alunos
das séries iniciais da escolarização, mesmo com sua utilização enquanto recurso facilitador
de aprendizagem pelos próprios professores formadores do curso, não havia nenhuma
disciplina que trabalhasse a música como área do conhecimento vital para a formação e
atuação profissional do pedagogo. O diálogo entre a pedagogia e a música parecia
silenciado no momento da formação inicial do pedagogo. Diante desta constatação, um
questionamento começou a tomar forma: como o pedagogo, profissional responsável pela
docência multidisciplinar nas séries iniciais da escolarização e, por isto, incumbido do
ensino musical poderia lecionar música sem ter tido nenhum preparo para tal?
O que desde então incomoda, perturba e provoca é o consenso aparente da
necessidade de interação recíproca entre música e Pedagogia e, ao mesmo tempo, sua parca
concretização. De modo especial, instiga a hipótese da escassez da música - entendida
enquanto área do conhecimento - em cursos regulares de Pedagogia. Este trabalho, parte da
premissa de que o pedagogo é o profissional responsável pelo ensino musical na Educação
Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental, podendo contar com as contribuições dos
especialistas (licenciados em música) para refletir e redimensionar sua prática. Assim, as
questões que norteiam o trabalho são as seguintes: a música se faz presente na formação
inicial do pedagogo? Em caso positivo, sobre quais mecanismos, quais modalidades, com
que intensidade?
Apesar deste recorte preliminar, uma delimitação ainda mais precisa se fez
necessária. Por isto, a escolha em focalizar cursos de Pedagogia das Instituições de Ensino
Superior da região Centro-Oeste. A pesquisa ora apresentada se propõe a debruçar sobre as
grades destes estabelecimentos com o intuito de constatar a existência (ou não) de
dispositivos curriculares que prevêem o trabalho com os saberes próprios da área musical.
O principal objetivo almejado é averiguar em termos regionais a presença da música
em cursos regulares de Pedagogia. Existem outros objetivos derivados deste primeiro:
compreender em termos históricos a educação musical no Brasil, particularmente em cursos
de formação de professores; analisar as interfaces entre música e Pedagogia mediante a
apreensão da história deste curso e das possibilidades dialógicas entre pedagogos e
especialistas (licenciados em música); verificar empiricamente a formação musical
oferecida em cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste e, por fim, contribuir
com elementos teórico-práticos para debates e propostas que vislumbrem a inclusão da
música na formação do pedagogo, tendo como referência o trabalho permanentemente
colaborativo entre este profissional e os especialistas em música.
Nesta perspectiva, a presente investigação surge como instrumento para fomentar
discussões, na medida em que se aventura a debater alternativas, propor caminhos, além de
analisar com repertório bibliográfico híbrido, tanto da área pedagógica quanto musical, as
inúmeras interconexões da relação entre o pedagogo e a música.
A trilha metodológica
O percurso metodológico ora descrito não foi traçado de modo anterior ao processo
de feitura da pesquisa. Embora tenha havido intenção em projetá-lo antecipadamente, seu
delineamento foi se mostrando legítimo durante o desenrolar, quase sempre sinuoso, do
trabalho. Assim, a escolha por determinado enfoque ou instrumento de coleta de dados não
seguiu uma estrutura pré-estabelecida. O próprio processo de construção da pesquisa
indicava os procedimentos mais adequados e, a este processo, somava-se o estudo da
pesquisadora bem como sua visão de mundo. O caminho percorrido tanto para o recorte do
tema quanto para a definição de aspectos metodológicos não seguiu, pois, uma seqüência
linear, tampouco se mostrava límpido, definitivo. Porém, havia uma constância quanto à
inquietude sobre a formação inicial do pedagogo no tocante à linguagem musical e a
importância em tratá-la com algum subsídio empírico.
A definição da temática - a formação musical oferecida em cursos regulares de
Pedagogia da região Centro-Oeste - trouxe consigo a organização metodológica da pesquisa
em três etapas que embora descritas a seguir de modo seqüencial, a todo o tempo se
entrelaçam. Na primeira, procedeu-se a um levantamento bibliográfico prévio e leitura de
obras selecionadas, que serviram de base para o diálogo com os pressupostos teóricos.
Inúmeros autores contribuíram, cada qual a sua maneira, para as reflexões engendradas e
foram agrupados segundo a relação que possuíam com o assunto de cada capítulo. Esta
etapa permeou toda a construção do trabalho, desde seu planejamento até o arremate final,
caracterizando-se, sobretudo, pela explanação teórica das temáticas desenvolvidas,
conforme realizado com primazia nos capítulos 1 e 2.
No capítulo 1, a intenção é verificar, por meio de uma investigação histórica
abrangendo desde os primórdios da colonização até os dias atuais, o desenrolar da educação
musical no Brasil, com especial ênfase naquela oferecida em cursos de formação de
professores. Nos vários momentos analisados, foram apontados aspectos relativos à
educação de modo geral e a episódios relevantes da história da música. Por isto, lançou-se
mão de autores do campo educacional, da área musical, como também de documentos
oficiais: leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e regulamentações/ decretos que
tratam da educação básica em seus diversos níveis. Nesta parte, o material bibliográfico
selecionado foi composto, principalmente, por livros, artigos da Revista da Abem
3
,
dissertações de mestrado e documentos legais. A utilização de referenciais das duas áreas se
justifica pelo objetivo em realizar uma análise ampliada da educação musical, ou seja,
inserida no contexto mais geral dos ideais e propostas educacionais de cada período.
O capítulo 2 se orienta no sentido de examinar a trajetória do curso de Pedagogia no
Brasil, bem como debater a relação entre o pedagogo e a linguagem musical. Assim,
debruça-se sobre as interfaces da multideterminada interação entre a Pedagogia, com todas
suas especificidades, e a música. Para cumprir a contento o que se propõe, é dividido em
duas partes principais: na primeira são descritos embates e polêmicas enfrentados pelo
curso de Pedagogia desde sua criação e que permanecem gerando indefinições quanto à
identidade do profissional nele formado; na segunda são colocadas em pauta problemáticas
relacionadas ao exercício musical do pedagogo, além de discutido o papel do especialista
em música e a possibilidade da parceria entre ambos no ambiente escolar. Na construção
deste capítulo foram utilizadas fontes secundárias livros, artigos, dissertações, teses - e
também fontes primárias como leis, decretos, pareceres e resoluções.
Simultaneamente ao tratamento deste material teórico, foi iniciada a segunda etapa
metodológica do trabalho cujo caráter é eminentemente empírico. Para averiguar a presença
da música na formação inicial do pedagogo, escolheu-se como universo da pesquisa cursos
de Pedagogia em regime regular na região Centro-Oeste. Importante não perder de vista
que, freqüentemente, recorria-se à leitura do referencial teórico para oferecer mais
subsídios, enriquecendo as considerações tecidas. Tal etapa está locada no capítulo 3 que
além de pormenorizar as informações obtidas junto às referidas instituições, dispõe-se a
refletir sobre elas.
Para a delimitação do universo da pesquisa, foi necessário responder de forma clara
a três questionamentos principais: em primeiro lugar, por que a Pedagogia? Segundo, por
que somente cursos em regime regular? E por fim, por que a região Centro-Oeste? A opção
em deixar de lado cursos de Normal Superior, mesmo com a determinação do decreto
3
Fundada em 1991, a Associação Brasileira de Educação Musical (ABEM) é uma entidade nacional, sem fins
lucrativos que além de congregar profissionais da área, organiza, sistematiza e sedimenta o pensamento
crítico, a pesquisa e a atuação na área da educação musical. Ao longo de seus dezesseis anos, a ABEM vem
promovendo encontros, debates e a troca de experiências entre pesquisadores, professores e estudantes da
educação musical dos diversos níveis e contextos de ensino do país (site da Abem). A entidade publica
periodicamente a Revista da Abem, uma revista científica que tem como objetivo divulgar a pluralidade de
conhecimento em educação musical, com contribuição de autores das diversas regiões brasileiras e também de
pesquisadores internacionais.
3.554/ 2000
4
, foi motivada pelo fato do curso de Pedagogia ter se firmado como lócus
privilegiado para a formação de docentes destinados aos níveis iniciais da escolarização,
fato confirmado pelas recentes deliberações das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
curso (Resolução CNE/ CP 1/ 2006). O foco em graduações com regime regular foi
proposto porque aqueles de caráter emergencial (licenciatura de curta duração) respondem
a uma necessidade momentânea, são aligeirados e nem sempre estão ajustados ao perfil
almejado para o curso de Pedagogia. Finalmente, o recorte espacial na região Centro-Oeste
se justifica por questões de ordem pessoal: toda a trajetória profissional da pesquisadora se
deu na região, inclusive o programa de pós-graduação que originou esta pesquisa. Outro
aspecto considerado foram as conclusões do estudo desenvolvido pelo professor Sérgio
Figueiredo (2004) em 19 universidades brasileiras situadas nas regiões Sul e Sudeste. Com
o mesmo objetivo geral analisar a formação musical oferecida em cursos de Pedagogia
esta pesquisa pode funcionar como um contraponto, confirmando ou refutando as
proposições do autor e, assim, contribuindo para traçar um panorama nacional do assunto.
O meio utilizado para a coleta de dados foi a análise documental centralizada nas
grades curriculares dos cursos e em informações disponibilizadas no site de cada instituição
entre maio e setembro de 2006. A propósito, a coleta de dados foi realizada via internet,
devido à grande extensão territorial do universo da pesquisa. O primeiro passo foi acessar o
site do Ministério da Educação (MEC), onde se constatou a existência de 76 instituições
oferecendo cursos regulares de Pedagogia. Destas, 56 disponibilizaram grades curriculares
em seus próprios sites ou as enviaram à pesquisadora via e-mail. No primeiro item do
capítulo 3 são detalhados dados gerais sobre os cursos e suas respectivas grades, tais como:
modalidades formativas, habilitações, carga horária e duração. Este panorama é importante
para visualizar em linhas gerais a organização dos cursos e suas propostas de formação.
Com estes apontamentos, restava definir quais critérios seriam adotados para
averiguar a presença ou não da música nos cursos. Antes de qualquer esclarecimento a este
respeito, é preciso deixar manifesto que o objetivo é apurar dispositivos curriculares que
contemplem a música enquanto área do conhecimento. Neste sentido, mostrou-se pertinente
desconsiderar utilizações disseminadas da música, pois seu emprego esporádico enquanto
4
Segundo o decreto 3.554/ 2000 que nova redação ao § do art. do Decreto 3.276 de 6 de
dezembro de 1999 e que dispõe sobre a formação em nível superior de professores para atuar na educação
básica: “A formação em nível superior de professores para a atuação multidisciplinar, destinada ao magistério
na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental, far-se-á, preferencialmente, em cursos
normais superiores”.
meio para não implica num preparo musical significativo para os alunos (futuros
pedagogos).
A busca seguiu com o intuito de pinçar atividades/ propostas/ disciplinas que
contivessem em seus títulos terminologias ligadas à Arte de modo geral e aos saberes
musicais, isto porque nos recentes documentos oficiais a música está localizada enquanto
uma das modalidades do campo artístico
5
, devendo ser contemplada em qualquer ensino de
Arte. O diálogo entre as informações disponibilizadas nos sites das instituições, as grades
curriculares dos cursos e as leituras realizadas até então fez emergir três modalidades de
formação musical em curso: disciplinas obrigatórias ligadas à Arte, disciplinas obrigatórias
específicas e disciplinas optativas. O segundo item do capítulo 3 as discute individualmente
em termos quantitativos e qualitativos e, em momento subseqüente, analisa-as de forma
integrada. Isto para responder à questão central do trabalho: a música enquanto área do
conhecimento se faz presente nos cursos de Pedagogia ora investigados?
Assim feito, chegou-se à última etapa, onde os resultados foram discutidos em
caráter conclusivo. Neste ponto, sobressaiu a reflexão cruzada dos dados emergidos quando
da investigação histórica da educação musical no Brasil, da intrincada trajetória do curso de
Pedagogia, das interfaces entre o pedagogo e a música e, finalmente, das considerações
oriundas da pesquisa com os cursos de Pedagogia em regime regular da região Centro-
Oeste. Como fruto desta análise interativa, ousou-se indicar propostas que visam
redimensionar a formação musical para pedagogos.
Esta última etapa foi dividida em dois momentos: o da proposição da “pauta e
propostas para discussão” no capítulo 4 e a tessitura de reflexões últimas sobre o estudo nas
Considerações Finais. Embora conclusiva, esta parte é entendida menos em seu aspecto
finalizador e mais na perspectiva de situar idéias que venham contribuir para novas
análises, possíveis e necessárias, das múltiplas interfaces da interação entre o pedagogo e a
música.
5
Segundo o PCN - arte, “no transcorrer do ensino fundamental, o aluno poderá desenvolver sua competência
estética e artística nas diversas modalidades da área de Arte (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro)...” (p.
53).
CAPÍTULO 1
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MUSICAL NO BRASIL
“A educação, bem compreendida, não é apenas uma
preparação para a vida; ela própria é uma
manifestação permanente e harmoniosa da vida.
Assim deveria ser com todos os estudos artísticos e,
particularmente, com a educação musical, que
recorre à maioria das principais faculdades do ser
humano”
Edgar Willems (1970).
Este capítulo realiza uma síntese histórica da educação musical no Brasil desde os
primórdios da colonização até os dias atuais, com especial enfoque para o ensino musical
ministrado em escolas regulares e cursos de formação de professores. Para tal, mostrou-se
necessário apontar aspectos relativos à educação de modo geral, mencionar alguns
episódios emblemáticos da história da música brasileira, além de expor o ensino musical
em escolas especializadas.
É proposta uma divisão em sete itens, em consonância com os principais momentos
históricos do país, a saber: o período colonial, o Império abrangendo o primeiro e o
segundo reinado, a Primeira república, o Estado Novo, o período democrático, o Regime
Militar e a atualidade. Importante não perder de vista que estes períodos, embora tratados
com alguma diferenciação, estão de todo modo entrelaçados, afinal,
... a divisão em períodos históricos de todo um fértil e complexo produzir é, no
fundo, apenas um artifício. Cômodo, escolar e necessário, ele serve basicamente
para apaziguar o furor classificatório que, em maior ou menor grau, a todos
atinge (...). Mas pensar apenas através de esquemas pode levar ao encobrimento
de toda uma gama de variáveis e de contradições que não se acomodam aos
rótulos predeterminados (...) o cortar ‘em fatias’ um processo tem seus aspectos
positivos. Como o de flagrar o processo ‘congelando’ o seu movimento, algo
que pode funcionar como uma radiografia de um organismo vivo. (J. Jota de
Moraes, 1983, p. 11).
1.1 A educação musical na colônia e a obra jesuítica
A história da educação musical no Brasil remonta ao século XVI, início da
dominação portuguesa na então colônia de Santa Cruz. Obviamente não se está esquecendo
do fato de que antes dos colonizadores havia grupos de diferentes nações indígenas que
promoviam processos de educação musical; todavia, nosso foco aqui é o ensino formal da
música ocidental.
Quando chega à nova terra em 1549, o governador-geral Tomé de Souza traz
consigo diversos jesuítas
6
liderados por Manuel da Nóbrega. Em apenas 15 dias, os
inacianos estabelecem na recém fundada cidade de Salvador uma “Escola de ler e
escrever”. É apenas o início das intensas atividades educacionais e culturais desenvolvidas
pela ordem religiosa até 1759, ano em que foi expulsa do Brasil pelo marquês de Pombal.
A ação dos jesuítas junto à colônia foi notadamente multiface, ou seja, dirigida a
vários grupos sociais com finalidades diversas. O vigor de seus feitos se estende ao plano
religioso, político, econômico, educacional, musical, envolvendo índios, colonos, mestiços,
negros, homens, crianças, dominados e dominadores. Embora pluridirecionadas, as
atividades dos inacianos tinham como motor principal a disseminação do catolicismo, de
forma a acampar novos fiéis.
No Brasil, concentraram-se especialmente na catequização indígena e na
constituição de uma estrutura educacional organizada e capaz de formar moral e
religiosamente seus educandos. Atingiram êxito tanto na evangelização maciça dos índios
como também no controle da e da moral dos habitantes da nova terra, na educação dos
filhos dos colonos, na formação de novos sacerdotes e da elite intelectual brasileira. Não foi
fácil a empreitada para a realização destes propósitos. De um lado, esbarravam com os
nativos que tinham língua e costumes desconhecidos, por vezes, hábitos de causar espanto
ao olhar europeu. Por outro, deparavam-se com os colonizadores aventureiros que aqui
chegavam sem suas famílias, com maneiras rudes e posturas que, segundo os próprios
religiosos, eram por demais levianas.
O trabalho com os indígenas exigiu que muitos jesuítas aprendessem a língua tupi-
guarani, “de início torna-se tão comum falar em tupi – conhecida como ‘língua geral’ – que
é usada até no púlpito” (ARANHA, 1996, p. 100). Ao empreender viagens por grande parte
do território brasileiro, o padre José de Anchieta (1534-1597) percebe a necessidade de
aprender a nova língua chegando inclusive a organizar uma gramática sobre ela, intitulada
Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil. O tupi passa a ser utilizado no
6
A Companhia de Jesus (em latim, Societas Iesu), cujos membros são conhecidos como jesuítas, foi instituída
em 1540 por um grupo de estudantes da Universidade de Paris comandados por Inácio de Loyola. Fundada
para combater a Reforma Protestante, segue à risca as determinações do Concílio de Trento ficando
conhecida, principalmente, por seu trabalho missionário e educacional. Seu primeiro colégio é criado em 1548
na cidade de Messina (Itália).
falar rotineiro, durante as celebrações religiosas, em textos destinados à catequese. A
evangelização dos nativos requeria dos inacianos, afinal, uma atuação mais flexível,
diferente daquela desenvolvida nos colégios europeus. Além da mudança na língua, apenas
num momento inicial, diga-se de passagem, outro expediente se mostrou importante: a
música. Segundo Loureiro (2003),
Entre os recursos utilizados destaca-se a música, em virtude da forte ligação dos
indígenas com essa manifestação artística. Eram eles músicos natos que, em
harmonia com a natureza, cantavam e dançavam em louvor aos deuses, durante a
caça e a pesca, em comemoração a nascimento, casamento, morte, ou festejando
vitórias alcançadas (p. 43).
A música, além de cativar mais facilmente os índios possibilitando uma
aproximação entre eles e os catequizadores, fazia com que fixassem melhor e de maneira
que lhes parecessem menos impetuosos os dogmas cristãos. As canções utilizadas eram, em
geral, hinos religiosos monódicos baseados no cantochão, estilo ainda praticado na Europa
da época. As músicas também permeavam os Autos, representações teatrais caracterizadas
por monólogos musicados aos quais são acrescidas, posteriormente, coreografias. Os Autos
possuíam caráter religioso e moral, eram enredados pelo canto e representados tanto por
índios quanto pelos padres em palcos improvisados dentro ou próximos às igrejas.
A ação dos jesuítas é muito forte com os curumins (columins ou culumins), filhos
dos índios. Por serem crianças, o processo de aculturação parece menos complexo e a
aceitação das normas estabelecidas é aparentemente mais natural. É igualmente forte a
intervenção dos inacianos junto aos filhos dos colonos. Interessante observar que, de início,
colonizados e colonizadores eram educados em uma mesma instituição escolar,
compartilhando o mesmo ambiente educativo. A este respeito, Freyre acrescenta,
Um outro traço simpático, nas primeiras relações dos jesuítas com os culumins,
para quem aprecie a obra missionária não com olhos devotos de apologeta ou
sectário da Companhia mas sob o ponto de vista brasileiro da confraternização
das raças: a igualdade em que parece terem eles educado, nos seus colégios dos
séculos XVI e XVII, índios e filhos de portugueses, europeus e mestiços,
caboclos arrancados às tabas e meninos órfãos vindos de Lisboa. (...) Terá sido
assim a vida nos colégios dos padres um processo de co-educação das duas raças
a conquistadora e a conquistada: um processo de intercâmbio cultural entre os
filhos da terra e os meninos do reino (apud Aranha, p. 102-103).
No entanto, a tendência que se seguiu foi a de separar índios de colonos. Os
primeiros passam a integrar as missões, agrupamentos liderados pelos jesuítas com objetivo
de afastar os índios das antigas lideranças, convertê-los ao cristianismo e protegê-los dos
colonos ávidos por escravos. Neste ambiente, a música prospera. Os jesuítas cantam,
dançam e encenam com os índios, chegando a ensinar a eles até mesmo a prática de
instrumentos musicais tipicamente europeus: flauta, cravo, órgão, fagote, viola, charamelas,
trombetas e baixões.
Aos filhos dos colonos, classe que compõe a elite local, é reservada uma educação
mais ampla para além da Escola de ler e escrever”. Tal educação se desenvolve segundo
padrões europeus, é de caráter humanista e submete-se às determinações da Ratio
Studiorum
7
. São criados três cursos: letras humanas; filosofia e ciência (ou artes); teologia e
ciências sagradas. Aranha (1996) aponta um dado interessante: “em alguns colégios, como
o de Todos os Santos, na Bahia, e o de São Sebastião, no Rio de Janeiro, são também
oferecidos outros dois, de artes e teologia, já de grau superior” (p. 101).
A música permeava várias atividades desenvolvidas pelos jesuítas no cotidiano
escolar. O canto, em estilo cantochão, mostrava-se útil para cativar os alunos fortalecendo-
lhes a fé. Música, moral e religião caminhavam de mãos dadas, potencializando-se
mutuamente. Além de perpassar a rotina escolar dos níveis mais adiantados, a música
passou a integrar o currículo das “Escolas de ler e escrever”. A importância da matéria no
processo da catequese e na formação moral dos educandos justificava sua implantação.
Loureiro (2003) menciona a criação de uma cartilha, denominada Artinha, usada pelos
mestres nas aulas de iniciação musical.
Frente ao panorama exposto, é possível conjecturar que os jesuítas “foram os
primeiros professores de música européia no Brasil” (KIEFER, 1997, p. 11). Primeiros,
porém não únicos visto que a eles se juntam os Mestres de Capela
8
advindos de Portugal ou
criados aqui na nova terra. Estes últimos estabelecem escolas domiciliares onde se ensina
música, latim e outras matérias consideradas essenciais. Eram verdadeiros conservatórios
onde os meninos se alimentavam, viviam e aprendiam.
Aos negros, os jesuítas deram atenção reduzida. Aranha (1996) afirma que “as
mulheres encontram-se excluídas do ensino, da mesma forma que os negros, cujos filhos
nunca despertaram o interesse dos padres, como acontecia com os curumins” (p. 115).
7
A Ratio Studiorum (Esquema de Estudos) consiste num plano pedagógico elaborado pelos jesuítas,
promulgado como Lei geral da Companhia em 1599. Estabelece os studia superiora e os studia inferiora. Os
studia supeiora eram ministrados àqueles cujas aspirações se direcionavam para o sacerdócio ou para as
carreiras liberais. Aos primeiros eram oferecidos estudos de filosofia, com exegese, moral e cauística. Aos
segundos, filosofia, com aulas de ciências exatas. Os studia inferiora correspondem ao atual ensino
secundário, abrangendo disciplinas como: retórica, humanidades, gramática superior, gramática média e
gramática inferior.
8
São músicos responsáveis pela prática musical de um conjunto, a Capela, subsidiado pela igreja ou por
particulares (reis, nobres, aristocratas). Os mestres, além de organizarem todo o conjunto, compõem, regem,
tocam e, por vezes, se incumbem da afinação dos instrumentos.
Segundo a mesma autora, somente os mulatos começam a reivindicar espaços na educação.
A este respeito, é emblemático o episódio que ficou conhecido como “questão dos moços
pardos” em 1689: os jesuítas haviam proibido o ingresso de mestiços em seus colégios,
porém tiveram que revogar a proibição em virtude de interesses relacionados com os
subsídios que recebiam.
Embora excluídos ou discriminados do sistema educacional regular, os negros e
mestiços foram importantes músicos no período. Kiefer (1997) atesta que “o emprego do
negro escravo como músico era costume que se observa pelo período colonial afora” (p.
14). Para prepará-los é criada uma escola de música para filhos de escravos, ainda no
século XVIII na fazenda de Santa Cruz próxima à cidade do Rio de Janeiro. A escola era
mantida pelos jesuítas e consistia numa espécie de conservatório. Andrade (1987) esclarece
que nela foram formados músicos, instrumentistas e cantores muito talentosos, que
chegaram a surpreender Dom João VI, Marcos Portugal e Neukomm quando aqui chegaram
já no início do século XIX.
O poder econômico, político e ideológico dos jesuítas, exercido sobre todas as
camadas sociais, passa a preocupar o governo. Atos violentos são engendrados no sentido
de intimidá-los: um exemplo é a destruição de uma oficina tipográfica construída por um
padre jesuíta no Rio de Janeiro. Por todo o século XVIII, crescem as ações de hostilidade
contra a Companhia que termina expulsa do país em 1759. Quando de sua partida, Azevedo
afirma que possuía “25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários, sem contar os
seminários menores e as escolas de ler e escrever, instaladas em quase todas as aldeias e
povoações onde existiam casas da Companhia” (apud Aranha, 1996, p. 134).
A estrutura educacional dos inacianos é desmantelada e, de imediato, não é
substituída por outra. Somente uma década depois, o marquês de Pombal resolve organizar
o sistema de educação da colônia. Após uma série de medidas incoerentes e fracionadas, é
implantado em 1772 o ensino público oficial tendo como princípio as aulas régias de
disciplinas isoladas em detrimento do curso de humanidades oferecido anteriormente pelos
jesuítas. O novo modelo educacional, considerado renovador, acrescenta ao currículo aulas
de línguas modernas, desenho, aritmética, geometria, ciências naturais, em consonância
com o ideal de educação iluminista em voga na Europa. Paralelamente às escolas religiosas
mantidas por outras ordens (carmelitas, franciscanos, beneditinos, mercedários...), as quais
se estabeleceram antes mesmo da expulsão da Companhia de Jesus, surgem as escolas
leigas.
Embora tenha havido intenção em modernizar o ensino na colônia, o que se
percebeu foi a dispersão dos colégios, falta absoluta de uniformidade no ensino, despreparo
profissional dos professores geralmente mal remunerados e uma preservação dos preceitos
da tradição jesuítica. Além disto, as decisões eram lentas e raramente aplicadas à medida
que o centro administrativo estava no reino, em Portugal. Aranha (1996) conclui que, neste
momento, “a educação está à deriva” (p. 135).
A música continua fazendo parte do cotidiano das escolas, tanto leigas quanto
religiosas, como meio para inculcar valores morais e, em várias delas, como forma de
propagar os dogmas cristãos. A este respeito Loureiro (2003) acrescenta que ... a música
continua presente com forte conotação religiosa, muito ligada às características e formas
européias, conotação esta que se faz presente em toda a produção musical do período
colonial” (p. 45).
A chegada da família real em 1808 imprimiu mudanças significativas na vida do
Brasil-colônia, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, sede do governo, que precisou
adaptar-se às novas demandas geradas pelo rei D. João VI e sua corte. Nesta cidade,
instaurou-se um grande processo de modernização que, no campo cultural, determinou a
criação de várias instituições. Ainda em 1808 foi criada a Imprensa Régia; em 1810, a
biblioteca, futura Biblioteca Nacional com 60 mil volumes trazidos pelo rei. O Jardim
Botânico abriu seus portões em 1808 e, em 1818, foi inaugurado o Museu Real, depois
Museu Nacional. Pouco antes, em 1813, foi a vez do Real Teatro São João construído por
particulares com aprovação régia.
Um fato relevante para o campo das Artes, em 1816, foi a vinda da missão cultural
francesa
9
, contratada pelo rei para incrementar as atividades artísticas no país. Sobre seus
efeitos, Borges (1999) declara: “a missão foi importante para o país (...). Se de um lado
possibilitou o acesso a novas perspectivas artísticas, não se pode negar que ignorou os
sentimentos nativistas e desprezou o artista brasileiro” (p. 40).
Logo que se firmou no Brasil, D. João VI implementa medidas destinadas à
educação, especialmente a de nível superior, objetivando atender às necessidades que se
mostraram mais urgentes. Vários cursos foram criados e instituições erigidas para ministrá-
los, dentre elas está a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (1816), transformada em
9
A missão cultural francesa chega ao Brasil com representantes de várias modalidades artísticas: Joaquim
Lebreton, chefe da missão e pintor; Nicolau Antônio Taunay, pintor; Augusto Maria Taunay, escultor; João
Batista Debret, pintor; Augusto Montigny, arquiteto; Carlos Simão Pradier, gravador; Sigismund Neukomm,
compositor, organista e mestre de capela.
1820 em Real Academia de Pintura, Escultura e Arquitetura Civil e depois Academia de
Artes (precursora da Escola Nacional de Belas Artes).
No campo musical, são várias as realizações do rei, uma delas é a formação da
Capela Real cujo primeiro Mestre de Capela foi Padre José Maurício
10
. A instituição
contava com duas orquestras principais: uma erudita com aproximadamente 150 músicos e
outra que tocava e cantava músicas populares e era composta por negros. Segundo Kiefer
(1997) “o regente não poupava dinheiro com a música da Capela Real” (p. 48), convidando
musicistas de renome internacional para se unirem ao conjunto em longas temporadas, além
de freqüentemente solicitá-la para apresentações em festas religiosas, comemorações
familiares e políticas.
À época de D. João, a ópera passa a ocupar um lugar de destaque na movimentada
vida social carioca, freqüentá-la era sinônimo de elegância, bom gosto e prestígio social. Os
concertos, dos quais as óperas consistiam o principal repertório, multiplicaram-se incitando
o aparecimento de algumas sociedades recreativas com a finalidade de oferecê-los aos seus
associados, como foi o caso da Assembléia Portuguesa que além da música cultivava a
dança e o jogo.
Outro dado importante do período é o crescimento do número de professores
particulares de música, responsáveis por preencher a lacuna deixada pela ausência de
escolas especializadas. O piano figura como instrumento da moda com rápida difusão entre
as famílias mais abastadas. Símbolo de distinção tocá-lo sinalizava pertencer à família
tradicional e ter boa educação. Para Borges (1999), “ali estava o símbolo de que a família
era dada à cultura e de que ascendera a um degrau superior na educação e nas finanças, uma
vez que o piano, devido a seu alto custo, tamanho e dificuldade de remoção, se tornava
acessível apenas aos que tinham posses” (p. 33).
1.2 O desenrolar da educação musical no Império
Com a Independência em 1822, torna-se imperativo oferecer ao país um suporte
jurídico. Com este objetivo é formada, em 1823, a Assembléia Constituinte que, para o
10
José Maurício Nunes Garcia nasceu no dia 22 de setembro de 1767 no Rio de Janeiro e veio a falecer em 18
de abril de 1830, na mesma cidade. Filho de pais mulatos revelou muito cedo sua predileção pela música.
Tocava vários instrumentos e compôs cerca de 400 obras, na maioria sacras, das quais restaram pouco mais de
duzentas. Seu estilo composicional assemelha-se ao de músicos europeus da primeira metade do século
XVIII.
campo educacional, deixa explícita a aspiração por um sistema nacional de instrução
pública. Tal anseio é transformado em lei, mas não chega a se materializar. A Assembléia é
dissolvida por D Pedro I em 1823 mesmo e ele próprio nos idos de 1824 outorga a nova
Constituição. Para a educação, conserva o princípio da liberdade de ensino sem restrições e
a intenção de instrução primária e gratuita a todos os cidadãos.
Ainda no campo educacional, duas medidas parecem importantes no tempo do
Império. A primeira delas é a lei de 1827 que em seu artigo primeiro determina a criação de
escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugarejos; resolução com diminutos
resultados objetivos. A outra, esta sim com conseqüências manifestas, é o Ato Adicional de
1834, uma emenda à Constituição que decreta a descentralização do ensino dando à coroa a
incumbência de gerir e regular o ensino superior e às províncias a responsabilidade sobre as
escolas elementares e secundárias. Sobre os efeitos do ato, Aranha (1996) afirma que “a
descentralização impede de vez a unidade orgânica do sistema educacional, com o
agravamento de deixar o ensino elementar para a incipiente iniciativa das províncias, com
suas múltiplas e precárias orientações” (p. 152).
As atenções imperiais decaem sobre o nível de ensino superior. Nesta direção, são
criados mais cursos para formar militares, engenheiros, médicos, economistas, químicos,
juristas. Tais cursos, por vezes transformados em faculdades, são ministrados em institutos
isolados com restrita intercomunicação entre si, não havendo empenho para convertê-los
em universidades. De modo geral, destinam-se aos filhos da aristocracia e de uma classe
média emergente, o que reforça o caráter elitista da educação brasileira na época.
Os ensinos secundário e elementar ficam a cargo das províncias, sendo praticamente
nulo o cuidado federal para com eles. Ambos são desarticulados entre si, “não
vinculação entre os currículos dos diversos níveis, aliás, nem propriamente currículo
devido à escolha aleatória de disciplinas, sem qualquer exigência de se completar um curso
para se iniciar o outro” (ARANHA, 1996, p. 154).
Sobre o ensino elementar, pouco a dizer. A elite educa seus filhos em casa
mediante a ação de preceptores, aos demais segmentos são oferecidas poucas escolas que se
restringem à instrução elementar: ler, escrever e contar. O nível secundário é, inicialmente,
ministrado por professores particulares e, depois, nos liceus provinciais; possui caráter
propedêutico e objetivos relacionados prioritariamente com a preparação dos jovens para a
faculdade. A falta de recursos é uma constante, impedindo a concretização das mais
diversas realizações: construção de escolas, preparação e boa remuneração para os
professores. Vale lembrar que além dos liceus provinciais, continuam a existir escolas
privadas tanto leigas quanto religiosas.
Acontecimento importante é a fundação, em 1837, na cidade do Rio de Janeiro, do
Colégio D. Pedro II destinado a servir como padrão de ensino para todo o país. Loureiro
(2003) menciona que a música estava presente no currículo desta instituição. Aliás, é
interessante considerar que no Colégio D. Pedro II a música nunca deixou de ser disciplina
escolar. Mesmo sob a égide da lei 5.692/71, que será pormenorizada adiante neste trabalho,
a música continuou a ser ministrada independente da determinação oficial que tornava
obrigatória somente a Educação Artística, a qual, na maior parte dos colégios, tratava
apenas das artes plásticas. Loureiro (2003) destaca também que no Colégio Caraça, dirigido
pelos padres lazaristas e situado em Minas Gerais, o currículo incluía o ensino de música e
cantochão. Muitos educandários femininos apresentam, além do canto, o ensino de algum
instrumento musical, considerado indispensável às moças das classes dominantes.
Um episódio singular a respeito da música em instituições escolares é a aprovação
da Lei Couto Ferraz de 1854, que determinava a inclusão nos currículos do Desenho Linear
e de Noções de Música e Exercícios de Canto. Assim como outras medidas educacionais do
período, fica sem efetivação.
No período imperial ocorre a fundação das primeiras Escolas Normais do país, em
Niterói (1835), Bahia (1836), Ceará (1845) e São Paulo (1846). Os cursos são, em geral, de
nível secundário e possuem duração de dois anos. Segundo Aranha (1996), “o ensino é
formal, distante das questões teóricas, técnicas e metodológicas relacionadas com a atuação
profissional do professor, além de funcionar de maneira precária e irregular” (p. 155). A
música se fez presente como disciplina em muitos deles, Loureiro (2003) declara que “a
função da música nas instituições que formam professores revela-se eminentemente
disciplinar, uma vez que as canções apontavam modelos a serem imitados e preservados,
objetivando, fundamentalmente, a integração do jovem à sociedade” (p. 49).
Embora a música se fizesse presente tanto em instituições de formação de
professores quanto em outras de nível secundário, havia problemas quanto ao preparo e
atuação pedagógico-musical do professor. Muitos deles acabavam por utilizar o canto como
forma de introduzir hábitos sociais, preparar para participação em cultos religiosos,
controlar os alunos, pois, com a música, as imposições de qualquer ordem pareciam menos
duras e sua absorção mais natural. Neste contexto, a letra desempenhava um papel
preponderante tornando-se a guia principal para o desenrolar das atividades. Os elementos
próprios da música, como a melodia e o ritmo, eram escamoteados e a educação musical
tornou-se, sobretudo, pragmática com finalidades que se distanciavam das questões
musicais.
Para atender aos reclames da classe dominante no sentido de um ensino musical
formal a cargo do governo, é fundado em 1841 o Conservatório de Música do Rio de
Janeiro, hoje Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua criação foi
precedida por um movimento marcado por publicações de manifestos em jornais e pressões
abertas da classe burguesa. O primeiro diretor e idealizador da instituição foi Francisco
Manuel da Silva (1795-1865), autor do hino nacional brasileiro. Para ele “essa escola
deveria ser organizada com uma sólida base pedagógica. assim ela cumpriria seu papel,
incentivando vocações musicais, formando professores e favorecendo a educação do povo
para o gosto musical” (LOUREIRO, 2003, p. 50).
O Conservatório foi inicialmente financiado pelo fundo de loteria, segundo atesta o
Decreto 238 de 27 de novembro de 1841. Seu funcionamento foi precário, à medida que
os recursos destinados jamais se mostraram suficientes. Ainda em 1841 muda de nome
transformando-se em Escola Nacional de Música, em 1855 passa a integrar a Escola de
Belas-Artes e tem seu currículo acrescido por aulas rudimentares de música, solfejo, canto,
órgão e cordas. Cerra suas portas devido à insuficiência de condições materiais para
funcionamento e à morte de seu fundador, sendo reaberto somente em 1872 sob a direção
de Leopoldo Miguéz (1850-1902).
O movimento em prol da criação do Conservatório fez aparecer outras instituições
similares de cunho particular. Kiefer (1997) menciona o Liceu Musical idealizado por um
grupo de professores, cuja inauguração se igualmente em 1841. Outro exemplo mais
tardio, em 1889, é a tentativa do compositor Domingos da Rocha Mussurunga em fundar
um conservatório na Bahia. Chega a mostrar seu plano a algumas autoridades federais, mas
não consegue apoio para levar a cabo seu intento.
Em 1848, aporta no Brasil D. José Amat fugindo de perseguições políticas em sua
terra natal, a Espanha. Grande apaixonado pela música e com boa formação começa
atuando como professor de canto. Seu entusiasmo e paixão pelas manifestações musicais
brasileiras o levaram a fundar a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional em 1857.
Contando com o apoio de associados importantes como Francisco Manuel da Silva e do
próprio governo imperial, estréia em 17 de julho de 1857.
Os objetivos da companhia se estendiam para a apresentação de concertos, bem
como para o incremento de composições brasileiras mediante o pagamento de direitos
autorais, atitude bastante inovadora para o momento. A mais, investia no aperfeiçoamento
dos artistas brasileiros e na formação de novos intérpretes, donde se depreende que seus
propósitos eram também pedagógicos. A companhia não durou muito tempo, sendo
substituída pela Ópera Lírica Nacional, também dirigida por D. José Amat, com as mesmas
finalidades almejadas pela primeira e cujo fechamento se em 1864, principalmente
porque “os obstáculos que se antepunham ao surgimento de uma ópera nacional (pela
língua e pelo assunto) eram múltiplos e extremamente difíceis de vencer” (KIEFER, 1997,
p. 82).
1.3 As experiências orfeônicas na Primeira República
Com a queda da monarquia em 1889, começa a entrar em cena o período
republicano. Finalmente aprovada em 1891, a nova constituição instaura o governo
representativo, federal e presidencial, tornando o Brasil uma República Federativa Liberal.
No âmbito da educação, a descentralização do ensino é reafirmada com alguns ajustes: a
União passa a se responsabilizar pelo ensino secundário além do superior e os estados se
encarregam da instrução fundamental e profissional. Assim como no Império, o sistema
educativo encontra-se fracionado, pois o nível elementar continua a cargo dos estados e a
receber menor atenção que os subseqüentes. Outro ponto da nova constituição é o
estabelecimento do ensino laico nas instituições públicas, gerando reações negativas da
Igreja Católica que chegou a acusar o governo de ser ateu.
A Primeira República vê despontar intelectuais e educadores profissionais
especialmente voltados para as questões da educação e que, com o intuito de redimensioná-
la, empreendem freqüentes debates. Os encontros, seminários e simpósios organizados a
partir de então se constituem campos férteis para o embate de teorias muitas vezes
contrastantes, propiciando às várias correntes - positivismo, socialismo, ecletismo,
anarquismo e escolanovismo - ganharem força e adeptos. Como fruto de toda esta
efervescência seria fundada mais tarde, em 1924, a Associação Brasileira de Educação
(ABE) que organizava conferências sobre várias temáticas educativas em todo o país.
Ao final do século XIX, assinalam-se duas vertentes principais no ensino musical: a
educação formal dentro de estabelecimentos educativos instituídos e a informal praticada
fora deles. A educação formal acontece prioritariamente nos conservatórios com o objetivo
de “preparar eficazmente indivíduos para o desempenho de funções específicas, como atuar
na Igreja e no teatro” (LOUREIRO, 2003, p. 52). Nesta época, foram abertas muitas
instituições como o Conservatório de Música de Belém, cujo primeiro diretor foi Carlos
Gomes (1836-1896); em 1906 é criado o Conservatório Dramático Musical em São Paulo.
O Conservatório de Música do Rio de Janeiro, transformado em Instituo Nacional de
Música, passa a oferecer ensino profissionalizante na área. Sobre a abrangência social
destas instituições, Oliveira (1992) chama atenção que “a educação musical era para
poucos, porque o Conservatório não atendia à demanda da sociedade que crescia
enormemente” (p. 37).
O ensino informal acontecia fora de instituições legalmente estabelecidas, em
ambientes diversos, principalmente nas casas dos professores ou dos alunos e intentava
preparar músicos para atuar em ambientes não-formais, como em salões e festas da alta
sociedade. Segundo Loureiro (2003), esta modalidade de ensino “colaborou para promover
um intenso e agitado movimento musical, expressão diferencial das últimas décadas do
século XIX” (p. 53).
No campo das artes, um acontecimento chama a atenção por seu caráter de ruptura
com o que era até então hegemônico no universo artístico brasileiro: a transplantação de
modelos europeus. O evento em questão é a Semana de Arte Moderna
11
, ocorrida no Teatro
Municipal de São Paulo em 1922. Além de mostrar novas tendências artísticas, o
movimento clamava pela necessidade de uma arte nacional baseada em valores tipicamente
brasileiros e desligada de influências européias. Neste período, repleto de agitações, os
artistas brasileiros percebem a urgência em abandonar os modelos estéticos do século
anterior, ainda muito apreciados em nosso país, para dar lugar a um estilo completamente
novo. Buscavam uma identidade própria e a liberdade de expressão, experimentando
diferentes caminhos sem definir nenhum padrão.
Toda a semana culminou na incompreensão e completa insatisfação de muitos que
foram assisti-la. Interessante é constatar que o movimento gerou conseqüências profundas,
11
Os principais membros da Semana foram, na literatura, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Ronald de
Carvalho, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Plínio Salgado, Sérgio Milliet, Afonso Schimidt e
Graça Aranha. Na música, Heitor Villa-Lobos, Guiomar Novaes e Ernâni Braga. Na pintura, Anita Malfati, Di
Cavalcanti e, na escultura, Victor Brecheret.
até mesmo o ensino de arte foi colocado em xeque. Para Loureiro (2003) a proposta
renovadora da Semana de Arte Moderna trouxe novas maneiras de entender o fazer
artístico, propondo uma redefinição do ensino da arte, contestando todo aquele que não
considerasse a expressão espontânea e verdadeira da criança” (p. 54).
No início do século XX, chegam ao Brasil idéias de importantes pedagogos
musicais estrangeiros influenciados pelo movimento escolanovista, dentre eles destacam-
se: Jacques Dalcroze (1865-1950), França; Zóltan Kódaly (1882-1967), Hungria; Edgar
Willems (1890-1978), Bélgica; Carl Orff (1895-1980), Alemanha e Violeta Gainza,
Argentina. Tais educadores musicais percebem na Arte e, em especial na música, o
potencial de desenvolver a imaginação, a intuição e a inteligência da criança mediante a
livre expressão.
Inspirado no pensamento de Dalcroze, João Gomes Júnior inicia um importante
movimento com objetivo de reorganizar o ensino de música nas escolas regulares de São
Paulo. Durante a Primeira República, o ensino musical como disciplina escolar esteve
presente no currículo de escolas públicas, principalmente no nível elementar e nas escolas
normais. Gomes Júnior, então professor da Escola Normal de São Paulo (futuro Instituto
Caetano de Campos), desenvolve um novo modelo para o ensino musical baseado no canto
coletivo polifônico com ou sem acompanhamento instrumental. Nesta direção, atua Carlos
Alberto Gomes Cardim que antes, em 1910, estabelece esta modalidade de ensino em uma
escola pública de São Paulo. Em parceria, Cardim e Gomes Júnior escrevem o livro O
ensino de música pelo método analítico, publicado em 1915, onde expõem detalhadamente
o método que desenvolveram.
Não se pode perder de vista que outros educadores participaram do movimento para
o ensino baseado no orfeão no estado de São Paulo, é o caso de Lázaro Rodrigues Lozano,
professor na Escola Complementar e Normal de Piracicaba; Fabiano Lozano, também
professor da Escola Normal de Piracicaba e organizador de diversas apresentações
orfeônicas nesta cidade e João Baptista Julião, colaborador de Gomes Junior, com papel
expressivo no movimento pela criação do Orfeão dos Presidiários na Penitenciária Modelo
de São Paulo. Sobre o movimento, Lemos Júnior (2005) destaca:
Mesmo que o ensino de Canto Orfeônico não tenha se expandido nas escolas
brasileiras nas décadas de 1910 e 1920, o ensino de Música esteve presente nas
três primeiras décadas do século XX, principalmente nas escolas primárias e
normal. No entanto, no ensino secundário, este ensino estava ausente dos
programas escolares. Somente no início da década de 1930 que o ensino de
Canto Orfeônico tornou-se oficialmente uma disciplina obrigatória no ensino
secundário, mais especificamente para o curso ginasial, graças à atuação de
Villa-Lobos junto ao Governo Brasileiro, que além de apresentar as diretrizes do
ensino do Canto Orfeônico na escola, preocupou-se com a formação de
professores qualificados para tal empreitada. (p. 2).
A nova maneira de se ensinar música encontrou espaço fecundo nas instituições
educacionais regulares de São Paulo nas décadas de 1910 e 1920. A posição do governo
paulista era realmente favorável ao ensino musical em escolas públicas. Assim, a música
crescia em importância no currículo escolar, entretanto é na década de 30 que tal iniciativa
ganha ressonância e alastra por todo o país. Neste impulso, é decisiva a adesão de Villa-
Lobos cujos feitos no campo do ensino musical atingem proporções excepcionais.
1.4 A educação musical no Estado Getulista e a consolidação do projeto
orfeônico
Eleito pelo voto indireto, Getúlio Vargas sobe ao poder em outubro de 1930
tornando-se chefe de um governo provisório. Permanece no cargo por quinze anos, ou seja,
até 1945 quando é então deposto. Em consonância com a visão centralizadora do novo
governo, em novembro de 1930 é criado o Ministério da Educação e Saúde, que teve como
primeiro ministro Francisco Campos. A fundação do novo órgão foi de importância
singular para a implementação de reformas educativas em âmbito nacional e para a
organização da universidade nos moldes que a concebemos hoje: unificada e dedicada tanto
ao ensino quanto à pesquisa.
No intervalo em que foi ministro, de 1930 a 1932, Francisco Campos propôs
decretos que em conjunto foram responsáveis por uma reforma principalmente no ensino
superior e secundário. No plano do ensino superior estabeleceu as bases do sistema
universitário: maior autonomia didática e administrativa, relevo para a pesquisa, difusão da
cultura e empenho com o retorno das ações acadêmicas para a comunidade. Para o ensino
secundário imprimiu um currículo seriado, o ensino em dois ciclos (fundamental de cinco
anos e complementar de dois), de modo a romper com a tradição propedêutica deste nível
escolar. Gustavo Capanema, seu sucessor, realiza reformas via decretos-leis que agrupados
compõem as Leis Orgânicas de Ensino
12
. O curso secundário passa a ser composto pelo
ginásio com duração de quatro anos e colegial de três, dividido em clássico e científico.
Durante todo o período subsistem embates entre o pensamento educacional do
governo, da igreja e de alguns educadores liberais que lançam em 1932 o Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova. Liderado por Francisco de Azevedo e assinado por mais 26
educadores, o documento parte do princípio da “escola única” e defende o ensino público,
gratuito, obrigatório, leigo e sem distinção de sexo. Em contraposição, a Igreja Católica
enfatiza o papel da escola privada, reivindica a presença do ensino religioso no currículo e
propõe uma educação sexista. A ênfase ao ensino privado é talhada na Constituição de
1937 que sugere a liberdade da iniciativa particular, atenuando o dever do estado como
educador.
Durante o Estado Novo, a presença da música enquanto disciplina no currículo das
escolas regulares cresce em importância e abrangência. Logo em abril de 1931, é baixado o
decreto 19.980 (parte da reforma Francisco Campos) que em seu artigo terceiro
determina a obrigatoriedade da aula de música para as três primeiras séries do curso
fundamental
13
. Em prol desta conquista se destaca a figura de Villa-Lobos cujo projeto de
ensino musical foi simpático aos ideais governistas. Segundo Martins (1992), “o carisma do
compositor, aliado ao ‘espírito’ cívico-patriótico da época estabeleceu durante mais de uma
década um modelo musical para as escolas do país. Este modelo trouxe profundas
repercussões que se prolongaram por quase meio século” (p. 11).
O ensino musical proposto por Villa-Lobos (1887-1959) tinha como base o canto
orfeônico e visava a musicalização das massas escolares. As disciplinas implantadas nas
escolas variavam em nomenclatura - Música, Canto, Canto Orfeônico, Metodologia da
12
As Leis Orgânicas de ensino são compostas por diversos decretos-leis assinados de 1942 a 1946. Dentre
eles podemos destacar em 1942 a Lei Orgânica do Ensino Industrial e a Lei Orgânica do Ensino Secundário.
Em 1943, a Lei Orgânica do Ensino Comercial e em 1946, após a queda de Vargas, a Lei Orgânica do Ensino
Primário, a Lei Orgânica do Ensino Normal e a Lei Orgânica do Ensino Agrícola.
13
Art. Constituirão o curso fundamental as matérias abaixo indicadas, distribuídas em cinco anos, de
acordo com a seguinte seriação:
1ª série: Português - Francês - História da civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais -
Desenho - Música (canto orfeônico).
série: Português - Francês - Inglês - História da civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e
naturais - Desenho - Música (canto orfeônico).
série: Português - Francês - Inglês - História da civilização - Geografia - Matemática - Física - Química -
História natural - Desenho - Música (canto orfeônico).
série: Português - Francês - Inglês - Latim - Alemão (facultativo) - História da civilização - Geografia -
Matématica - Física - Química - História Natural - Desenho.
5ª série: Português - Latim - Alemão (facultativo) - História da civilização - Geografia - Matemática - Física
- Química - História natural - Desenho. (grifo meu)
Música - porém, o programa era comum e centralizado em torno de três eixos principais:
canto e solfejo, teoria musical e audição fonográfica. Souza (1992) considera que tal ensino
se relacionava com objetivos sócio-políticos, sintetizados em conceitos como coletividade,
disciplina e patriotismo. As noções de coletividade e disciplina eram suscitadas pelo caráter
mesmo do canto orfeônico: coletivo e uniforme e também pelo que Villa-Lobos
considerava ser a “força socializadora da música”. O canto não era individual, mas sim de
um grupo que em conjunto buscava atingir finalidades comuns, “os orfeões representavam
a idéia de uma sociedade em miniatura na qual cada cidadão mantinha um papel, que se não
fosse bem desempenhado, interferiria na harmonia do grupo” (LEMOS JÚNIOR, 2005 p.
52). O terceiro conceito, o patriotismo, foi crucial para o desenvolvimento desta
modalidade de ensino e graças a ele foi possível a implantação da disciplina em nível
nacional. Ao discorrer sobre o teor de seu projeto, Villa-Lobos substancia: “o Canto
Orfeônico, praticado pelas crianças e por elas propagado até os lares, nos dará gerações
renovadas por uma bela disciplina da vida social, em benefício do país, cantando e
trabalhando e, ao cantar, devotando-se à pátria” (apud LOUREIRO, 2003, p. 59).
Interessante observar o descompasso entre as tendências educacionais emergentes e
os ideais da educação musical villalobiana. À época, a proposta da Escola Nova ganhava
impulso e adeptos como uma reação ao que se convencionou denominar “pedagogia
tradicional”. O movimento apregoava ser a educação um elemento indispensável para a
construção de uma sociedade democrática, daí a exigência por uma escola única,
obrigatória e gratuita. Escola vista não como uma preparação para a vida, mas como a
própria vida e com funções voltadas para potencializar a reconstrução permanente da
experiência e do aprendizado dos alunos. Era forte a idéia do respeito à individualidade do
educando mediante a valorização das ações próprias de cada um, o que levou a uma
renovação radical das técnicas e metodologias pedagógicas utilizadas até então. Estes
preceitos em nada sintonizam com os valores de disciplina e coletividade, tão vitais para a
educação musical de Villa-Lobos.
Além das finalidades patrióticas, disciplinadoras e socializadoras, a proposta
villalobiana tencionava formar um público apreciador da música brasileira que passava por
profundo processo de ressignificação estética e formal. Não podemos esquecer que Villa-
Lobos foi destaque na Semana de Arte Moderna e lutava com afinco em favor da
emancipação e difusão da música brasileira. Por isto, o repertório do novo ensino incluía
canções folclóricas, cantigas brasileiras, sem contar é claro com hinos que exortavam o
nacionalismo. Não eram esses os únicos sons ouvidos e entoados nas classes, pois no
programa constavam também canções regionais e tradicionais tanto brasileiras quanto
estrangeiras, além da audição e estudo de obras dos seguintes períodos da música: clássico,
romântico, época contemporânea e moderna.
Devido ao seu potencial formador, o ensino musical recebeu grande atenção do
governo e a música tornou-se um dos principais veículos do novo regime. No ensino de
Villa-Lobos, objetivos políticos e pedagógicos se entrelaçam e parecem estar de tal forma
imbricados e equacionados que ordená-los em termos de importância seria no mínimo um
ato imprudente. Loureiro (2003) comenta sobre a interação entre eles,
Esse projeto político musical, cujas bases estavam comprometidas com o
nacionalismo da era Vargas, trazia consigo, além do objetivo social, o lado
político-pedagógico ao instituir nas escolas públicas o canto orfeônico como
prática cívico-musical. Sabe-se, entretanto, que a intenção era fazer com que
todos os alunos, principalmente os da rede pública, participassem cantando, da
exacerbação nacionalista que então reinava no país (p. 57).
O apoio governamental acrescido à criação da Superintendência de Educação
Musical e Artística (Sema) fez a proposta villalobiana atingir proporções nunca vistas na
esfera escolar. Enquanto tomou frente na direção da Sema, de 1932 a 1944, Villa-Lobos
colocou em prática um plano de ação pluridimensional para o ensino do canto orfeônico,
estabelecendo diretrizes para sua prática e implementando medidas como: a criação de um
curso para a formação de professores especializados na disciplina, de um orfeão para cada
escola, organização de bibliotecas e discotecas e realização de grandes espetáculos
orfeônicos.
As apresentações contavam com um sem número de crianças, uma massa coral
extremamente volumosa. Loureiro (2003) destaca que um dos espetáculos, sediado no
estádio de futebol do clube Vasco da Gama, chegou a reunir 40 mil vozes infanto-juvenis e
mil bandas de música. Villa-Lobos regeu todo o conjunto do alto de uma plataforma de 15
metros. Os episódios propulsores para a realização das apresentações quase sempre diziam
respeito às grandes datas da pátria”: Dia da Bandeira, Dia do Trabalho, Independência do
Brasil, do Pan-americanismo. Eram verdadeiras vitrines para o deleite do país e
contribuíam para a exaltação dos sentimentos de coletividade, disciplina e patriotismo. Para
muitos autores, esses grandes espetáculos lembravam as manifestações fascistas européias
que gozavam da simpatia de Vargas.
Villa-Lobos tinha uma preocupação constante quanto à preparação dos professores
para ministrar o canto orfeônico nas escolas. Em 1932 são criados o Curso de Pedagogia de
Música e de Canto Orfeônico e o Orfeão dos Professores do Distrito Federal. À época, a
Universidade do Distrito Federal (UDF) oferecia o curso de Formação de Professores
Secundários de Música e Canto Orfeônico. Villa-Lobos constava em seu quadro docente
ocupando a cadeira de conteúdos musicais.
Em novembro de 1942 é a vez da fundação do Conservatório Nacional de Canto
Orfeônico, por meio do decreto-lei 4.993. Subordinado ao Departamento Nacional de
Educação do Ministério da Educação e Saúde tinha como objetivos além de formar
professores de música para o magistério do canto orfeônico nas escolas primárias e
secundárias, estudar e elaborar as diretrizes para sua prática, promover pesquisas
musicológicas com intuito de restaurar obras brasileiras e gravar em discos os hinos
patrióticos e canções populares a serem cantadas pelas crianças em todo o país.
As ações em defesa da formação de professores incluíam cursos de caráter mais
abrangente, entretanto os mais freqüentes eram aqueles aligeirados com carga horária
reduzida e programas compactos. A este respeito, Loureiro (2003) pontua,
Fazia parte do projeto de canto orfeônico a especialização de professores para
sua prática e a formação em breve espaço de tempo, de novos professores.
Visando à divulgação do canto coletivo nas escolas brasileiras deixou-se de lado,
na fase inicial do projeto, a formação de profissionais altamente qualificados.
Dessa forma, atendendo às diretrizes da Sema, foram criados, em diversos
estados, órgão filiados para a implantação e divulgação do projeto visando à sua
prática em todo país (p. 60).
A insuficiência numérica de docentes para o ensino do canto orfeônico fez com que
a formação de professores fosse encarada como uma necessidade emergencial. Neste
sentido, a Sema cria nos anos 30 o curso de Pedagogia da Música e de Canto Orfeônico e
outros rápidos com duração de um mês. Estes aconteciam no período de férias em muitas
capitais do país e atendiam a professores oriundos das escolas normais que, num curto
espaço de tempo, recebiam aulas de música e eram considerados aptos a ministrá-las em
qualquer parte do país.
Outro importante feito da Sema foi a organização de um detalhado programa de
canto coletivo para orientar os professores, que continha hinos patrióticos e escolares
obrigatórios a serem praticados indistintamente em todas as escolas brasileiras. Além disso,
possuía um repertório de canções folclóricas, o Guia Prático, para ser trabalhado nas
instituições. Os professores poderiam adotar processos e métodos próprios, mas não deviam
fugir às diretrizes básicas para não comprometer a unidade de ação.
Em 1946, o Canto Orfeônico sofre um processo de reformulação idealizado pelo
ministro Raul Leitão Filho, “isto mostra que o ensino de Canto Orfeônico não ocorreu
apenas durante o período do Estado Novo. O apoio eminente de Villa-Lobos ao ensino de
Música na escola continuou independente da política adotada no país” (LEMOS JÚNIOR,
2005, p. 27). Todavia, a queda do Estado Novo acrescida da dificuldade de implantação do
projeto arrefece o movimento. As dimensões do país tornavam difíceis a prática unificada
do canto e a formação dos professores. Mesmo com tentativas modernizadoras engendradas
pela Sema, a prática do canto nas escolas regride. Segundo Loureiro (2003),
O declínio do canto orfeônico nas escolas tem raízes mais profundas. A queda de
Vargas e o fim do Estado Novo põem termo às manifestações de mobilização de
massa típicas das ditaduras nazi-fascistas. A ênfase atribuída pelo governo
Vargas ao canto orfeônico nas escolas se deve (...) ao reconhecimento de seu
potencial formador. Mais que isso, a presença de escolares em cerimônias
públicas, cantando hinos e músicas que celebravam a grandeza do país, ajudava
a criar a imagem de um povo saudável e disciplinado, de um povo unido em
torno do projeto conduzido pelo Estado Novo. O país se democratizara e para
isto era necessário eliminar tudo aquilo que pudesse ser associado ao regime
autoritário. Nesse processo, embora o canto orfeônico continuasse presente
como disciplina, no currículo das escolas, ele não possuía a mesma
importância (p. 63).
À época, vários educadores musicais fazem críticas contundentes às ações
villalobianas buscando novas tônicas para o ensino musical no país. Souza (1992) destaca
as ações de Pereira, Fagundes e Guaspari. Pereira defendia a música utilizada com
fins em si mesma e não como meio, neste sentido o relevo para questões cívico-patrióticas
pouco ou nenhum valor possui. Segundo o autor, as aulas de música precisariam se basear
em conceitos musicais específicos e preparar para a educação musical nas escolas de
música. Com outro olhar, Fagundes chamava a atenção para necessidade da aula de música
estimular o potencial criador das crianças, pontuando ainda sobre a possibilidade de seu uso
como auxiliar terapêutico para indisposições nervosas. Guaspari ponderava a importância
em se racionalizar o ensino de música e evidenciava a riqueza da atividade lúdica para
crianças pequenas. Salientava o predomínio de processos antiquados no ensino musical, em
desarmonia com as exigências próprias do espírito infantil.
Embora o projeto de Villa-Lobos seja hegemônico no período, ele não foi o único.
Entre os anos de 1938 e 1939, Mário de Andrade elaborou um plano para a criação de um
órgão federal responsável por estudar o folclore musical brasileiro, além de propagar e
desenvolver a música erudita nacional. Magdalena Tagliaferro propôs em 1940 a
reorganização do ensino musical especialmente na Escola Nacional de Música, o antigo
Instituto Nacional de Música, que é incorporado à Universidade do Brasil. Liddy
Chiaffarelli Mignone e Antônio Pereira desenvolvem a metodologia da iniciação
musical direcionada para a formação do futuro músico. Diverge em essência da proposta de
Villa-Lobos - voltada para as massas escolares - mas com ela guarda algumas similaridades
como, por exemplo, a sintonia com o contexto político do país e o emprego de um
repertório com forte conotação nacionalista.
1.5 As tendências pró-criatividade da educação musical na Segunda República
Conhecido como Segunda República, o período de 1945 a 1964 marca o retorno do
regime democrático. O povo torna a eleger seus governantes pelo voto direto e uma
esperança tácita de que o país progrida de forma acelerada. A Constituição de 1946 adota a
postura liberal-democrática e o Brasil é definido como República Federativa. Em 1948, o
ministro Clemente Mariano apresenta o anteprojeto da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a
qual após longas e inflamadas discussões, é enfim aprovada em 1961, treze anos depois.
Segundo Aranha (1996) “quando a lei 4.024 é publicada em 1961, se encontra
ultrapassada. Embora fosse uma proposta avançada para a época da apresentação do
anteprojeto, envelhece no correr dos debates e do confronto de interesses” (p. 204). A nova
lei não altera a estrutura de ensino definida na reforma Capanema, mas traz algumas
novidades como a aceitação da pluralidade de ensino e a extensão do financiamento público
às escolas privadas. Neste momento, são criados o Conselho Federal de Educação (CFE) e
os Conselhos Estaduais de Educação (CEE).
No campo do ensino musical, o canto orfeônico continua a ocupar o currículo das
escolas regulares, mas aos poucos vai perdendo espaço para o movimento da criatividade,
que estabeleceu uma nova maneira de fazer, pensar e ensinar a música. A proposta de
iniciação musical gestada anteriormente por Liddy Chiafarelli e Antônio Pereira ganha
força devido ao alinhamento com as tendências pró-criatividade. Sobre a coexistência do
canto orfeônico e a nova proposta, Loureiro (2003) comenta,
Diante dessa situação, não pôde ser evitado o choque desse novo discurso com o
canto orfeônico. A adesão dos professores de música à nova proposta para o
ensino de música deveu-se ao fato de o canto orfeônico não apresentar a
mesma eloqüência dos anos anteriores e a uma maior identidade com a nova
metodologia, uma vez que não exigia de seus professores, inseguros e pouco
preparados, um conhecimento específico (p. 64).
O momento instituiu como palavras de ordem a criatividade, a liberdade de
expressão, a improvisação e o desenvolvimento da sensibilidade da criança. Havia uma
busca constante pelo novo, não raro as várias linguagens artísticas eram fundidas.
Acreditava-se no processo como mérito principal do ensino, atenuando assim a importância
ao produto realizado. Era dado grande valor à espontaneidade criativa do aluno, visto como
centro da prática educativa. Como se pode observar, é nítida a influência dos ideais da
Escola Nova no movimento.
Os professores de música das escolas públicas regulares se sentem aliviados pela
diminuição do controle rigoroso da Sema e, ao mesmo tempo, sofrem com a falta de uma
assistência sistemática. Muitos continuam a utilizar a metodologia do canto orfeônico em
suas aulas por motivos vários: possuir um relativo domínio de sua prática, acreditar na
relevância dos valores subjacentes a esta modalidade de ensino, contar com material
apropriado para o desenrolar das atividades. Para outros, a carência na formação justifica a
adesão à nova proposta que ao valorizar a criatividade, a livre expressão, acaba por não
exigir do professor domínio de conteúdos próprios da área musical. De maneira geral,
Loureiro (2003) percebe uma postura conservadora dos professores tanto de escolas
públicas regulares quanto aqueles dos conservatórios e escolas de música. Estes últimos
permanecem ligados aos padrões tradicionais europeus dos séculos XVIII e XIX com apelo
irrestrito pela música e práticas pedagógogico-musicais do passado. Sendo assim, “com
exceção de algumas escolas consideradas de vanguarda, as demais se mantiveram omissas
às novas propostas que surgiram para a educação musical” (LOUREIRO, 2003, p. 65).
A tendência para a renovação é, entretanto, irrefreável. Em 1948, o professor e
artista plástico Augusto Rodrigues cria a Escolinha de Arte do Brasil no Rio de Janeiro.
Com o intuito de disseminar uma educação criadora, inserindo a atividade artística no
processo educativo, a instituição adota como princípios: a crença na criatividade inerente a
cada indivíduo, a deferência à liberdade de expressão, o entendimento da prática artística
como elemento indispensável para o desenvolvimento equilibrado do educando. A
escolinha opunha-se claramente ao ensino de música em moldes tradicionais e, aos poucos,
foi se propagando pelo país: em 1958, eram vinte em funcionamento em todo o Brasil.
Outra instituição de caráter inovador foi criada por Liddy Chiaffarelli Mignone em 1952. O
Centro de Estudos de Iniciação Musical acoplado ao Conservatório Brasileiro de Música
contestava posturas consideradas antiquadas e clamava pela necessidade em abandonar o
velho”.
Durante o final dos anos 40 e no transcorrer das décadas de 50 e 60 o que se percebe
no plano do ensino musical é o embate de tendências absolutamente divergentes. Se por um
lado o canto orfeônico resiste dando seus últimos suspiros de vida, por outro as tendências
baseadas na criatividade começam a alçar vôos cada vez mais ousados. A recusa ao
convencional e o rompimento com o estabelecido demolem as barreiras entre as várias
linguagens artísticas que tendem no momento posterior a se fundirem numa prática. A
arte passa a ser valorizada, sobretudo, como forma de expressão humana e questões
relacionadas com o rigor técnico e científico são provisoriamente relegadas para segundo
plano. Neste contexto, a música se curva aos sentimentos, à liberdade e o ensino musical se
restringe a práticas intuitivas, supervalorizando o potencial criativo do aluno.
1.6 O Regime Militar e a implantação da Educação Artística
O golpe militar de 1964 impõe ao país uma nova conjuntura política, econômica,
social e educacional. A ditadura é imposta sob o pretexto de livrar o país da corrupção e do
comunismo, mas acaba por instituir o governo do arbítrio, a ausência do estado de direito e
a perda do poder de participação e crítica do povo brasileiro. Devido ao seu potencial
ideológico, a educação recebe atenção especial do governo militar que em 11 de agosto de
1971 sanciona a lei 5.692 responsável por fixar normas para o ensino de primeiro e
segundo graus. A LDB 4.024/61 não é revogada, porém sofre alterações determinantes
para a transição de um modelo legal com motivos liberais para outro com tendências
claramente tecnicistas.
O sistema de ensino passa a ser organizado em dois níveis: de primeiro grau com
duração de oito anos e de segundo grau com duração de três ou quatro anos, é normatizada
ainda a modalidade do ensino supletivo. Dentre as novas medidas da lei 5.692/71,
destacam-se: a extensão da obrigatoriedade escolar de quatro para oito anos (ensino de
primeiro grau), a legitimação do princípio de continuidade ao determinar a passagem
necessária e seqüencial de uma série para outra tanto no quanto no grau, o
estabelecimento da terminalidade ao considerar que ao final de cada nível o aluno estaria
capacitado a se inserir no mercado de trabalho. A nova lei traz algumas proposições
produtivas, das quais a maioria se mostra inoperante. Seu ideal é tecnicista e a proposta de
formação está diretamente relacionada com o preparo de capital humano, ou seja, com o
treinamento do aluno para sua inserção eficiente na cadeia produtiva. Após analisá-la,
Aranha (1996) conclui que “a reforma não foi um fracasso como trouxe prejuízos
inestimáveis para a educação brasileira” (p. 215).
Para deliberar sobre o ensino de terceiro grau é promulgada a lei 5.540/68 que
determinava, dentre outros, a extinção da cátedra, a integração de faculdades em
universidades para facilitar o uso técnico e proveitoso dos recursos materiais e humanos, a
criação do sistema de créditos, a divisão em departamentos e a negação da autonomia
universitária. Segundo Aranha (1996), em tal reforma “o viés tecnocrático se sobrepõe ao
pedagógico” (p. 214).
A lei nº 5.692 em seu artigo sétimo assim estabelece: “será obrigatória a inclusão de
Educação Moral e Cívica, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos
dos estabelecimentos de e graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-
Lei n. 369, de 12 de setembro de 1969” (grifo meu). A obrigatoriedade da Educação
Artística no ensino de primeiro e segundo graus trouxe alterações substanciais quanto ao
ensino da arte e da música na escola regular. Sua inclusão no currículo, longe de significar
um entendimento sobre a importância da Arte na formação integral do indivíduo, soou
como uma concessão à tradição humanística da educação brasileira.
A recém-criada disciplina abarcava as artes plásticas, artes cênicas, desenho e a
música, com objetivo de sensibilizar o aluno para as artes desenvolvendo seu gosto pela
fruição. Contudo, a fusão de várias modalidades artísticas em umadisciplina incorreu na
diluição dos conteúdos específicos de cada linguagem ou até mesmo em sua exclusão do
espaço escolar. Ao trazer como palavras de ordem a integração e a polivalência, a Educação
Artística representou a consolidação dos ideais propostos pela tendência pró-criatividade.
Neste sentido, Penna (2004a) afirma:
... difundia-se, portanto, um enfoque polivalente, marcado pelo
experimentalismo, que levava ao esvaziamento dos conteúdos próprios de cada
linguagem artística. Desse modo, a lei 5.692/71 vem oficializar a ‘pró-
criatividade’, tendência que dominava, de fato, a prática pedagógica escolar
(p. 22).
Mais uma vez é possível observar o desafino entre os valores educacionais em voga
no período e aqueles difundidos pela educação musical. A perspectiva tecnicista lançada
pelos organismos oficiais no final da década de 60 e início dos anos 70 pressupunha uma
prática pedagógica altamente controlada e dirigida pelo professor. O aluno era reduzido a
um indivíduo que reagia aos estímulos de forma a corresponder às respostas esperadas pela
escola para ter êxito e avançar. Seus interesses e processos particulares não eram
considerados e a atenção que recebia era para ajustar seu ritmo de aprendizagem ao
programa que o professor deveria implementar. Esta concepção é bastante adversa da
tendência pró-criatividade que norteou a nova disciplina Educação Artística, impregnando-
a de valores como criatividade, liberdade de expressão e espontaneísmo artístico.
Devido à ausência de profissionais com o perfil polivalente requerido pela
disciplina, criam-se cursos de formação de professores. Em 1973, são legalmente
estabelecidos os cursos de licenciatura em Educação Artística, divididos em curta e longa
duração. O de menor duração, licenciatura de grau, capacitava para o exercício
profissional neste nível de ensino, sendo uma modalidade de licenciatura curta. Aquele com
carga horária estendida, licenciatura plena, combinava uma instrução geral com
habilitações específicas em artes plásticas, artes cênicas, música e desenho. De maneira
geral, os cursos objetivavam formar o professor que atuaria com todas as áreas artísticas no
espaço escolar. Era uma aspiração incongruente porque aos egressos da licenciatura curta
faltava uma formação mais aprofundada e aos da licenciatura plena a exigência soava
ambígua, contrastando com a formação específica oferecida ao cabo do curso. Requeria-se
deles, ao mesmo tempo, um processo de especialização em nível acadêmico e outro de
generalização no plano da prática pedagógica escolar.
Nestas circunstâncias, a problemática da formação irrompe com ímpeto. Como
formar um profissional apto a trabalhar, no mínimo satisfatoriamente, com todas as
linguagens artísticas na escola regular? possibilidade de esta formação produzir o efeito
desejado? Atualmente existe um consenso sobre a inviabilidade em se formar o educador
artístico. Ainda que sua preparação se em cursos de nível superior de longa duração, é
presunçoso esperar dele um domínio regular nas diversas modalidades artísticas. A
dificuldade para concebê-lo se agiganta mais quando observamos a carência de uma
formação artística contínua durante toda a Educação Básica. O educador artístico é, em
última análise, um profissional irrealizável, inabilitado a trabalhar satisfatoriamente com
todas as modalidades artísticas sem incorrer no alijamento das peculiaridades próprias de
cada uma delas.
Cabe aqui um breve parêntese: antes mesmo da criação dos cursos de Educação
Artística, a Escolinha de Arte do Brasil organizava cursos destinados à formação de arte-
educadores, o primeiro deles recebeu a alcunha de Curso Intensivo de Arte na Educação
(Ciae). Durante alguns anos, a instituição foi a única a desenvolver programas de
treinamento para arte-educadores e a mantê-los de forma permanente através de convênios.
Segundo Loureiro (2003), “a escolinha vai exercer grande influência na organização dos
cursos de licenciatura voltados para o ensino de educação artística” (p. 71).
Todo o esforço para formar o educador artístico polivalente mostrou-se vão porque
a própria noção de educador artístico é estéril. Na prática escolar, o que se observou foi o
privilégio dado às artes plásticas em detrimento das demais linguagens. A música quando
não escamoteada do currículo ou usada como pano de fundo para a expressão plástica e
teatral era trabalhada tendo por base o espontaneísmo expressivo. O despreparo dos
professores contribuiu para que o ensino musical incorresse em práticas recreativas e
lúdicas, distantes de questões propriamente musicais. Os conteúdos e técnicas
característicos desta linguagem foram esvaziados, praticamente desconsiderados.
Embora a inclusão da Educação Artística demonstre uma possibilidade da inserção
da música no currículo revela, outrossim, a abertura a qualquer uma das linguagens
artísticas ou todas concomitantemente ou apenas uma ou, ao extremo, nenhuma delas. As
pesquisas apontam, entretanto, o domínio das artes plásticas “de modo que, em muitos
contextos, arte na escola passa, pouco a pouco a ser sinônimo de artes plásticas ou visuais.
E isso persiste até os dias de hoje...” (PENNA, 2004a, 22).
Vale a pena polemizar a que se deve a hegemonia das artes plásticas em detrimento
da música nas escolas regulares desde a promulgação da lei 5.692/71. Dentre as
inúmeras razões sobressai a postura do próprio educador musical que, em regra, prefere
dedicar-se exclusivamente ao ensino de música nos conservatórios, preterindo a educação
musical na escola regular
14
. A predileção pelos conservatórios é explicada por serem eles
ambientes especializados, de antemão propulsores da prática musical, além de valorizados
14
A este respeito é de grande valor a pesquisa realizada por Penna (2002) junto aos professores de Arte nas
escolas públicas da grande João Pessoa PB. Dos 160 professores com formação em Educação Artística que
ministram a disciplina Arte no ensino fundamental, 102 possuem habilitação em Artes Plásticas e apenas 4 em
Música. No ensino médio, o número de professores com habilitação em Música totaliza 5, contra 24 com
formação em Artes Plásticas. Outra pesquisa esclarecedora neste sentido, realizada por Nogueira (1994),
aponta que dos 428 professores de Educação Artística da rede estadual de ensino de Goiânia, apenas 3 são
habilitados em música: dois licenciados em Educação Artística (habilitação Música) e o outro graduado em
Música (bacharelado). Embora os dados sejam provenientes de estudos localizados, tornando inadequada uma
generalização, eles refletem a situação vivenciada por muitas outras regiões brasileiras.
socialmente. São espaços protetores onde a tradição é consagrada e diferem da escola
regular à medida que esta requer do educador musical uma postura de enfrentamento, de
luta e, até mesmo, de conquista do espaço da música enquanto campo do saber com objeto
de estudo, metodologias e conteúdos próprios.
A escola regular é o palco da multiplicidade e do desafio e o educador musical
parece não estar preparado para atuar nele. As causas desta inaptidão se devem, em grande
medida, à formação inicial nas escolas/ faculdades de música que parecem relutar em
admitir a escola regular como espaço de trabalho e, em conseqüência, não preparam seus
alunos para atuar neste ambiente tão peculiar. A formação precisa ser redimensionada,
“necessidade de se repensar os cursos de formação do professor, buscando baseá-los em
uma concepção de música mais abrangente, de modo a sustentar uma nova postura
pedagógica...” (PENNA, 2002, p. 18). De modo amplo, é necessário questionar o
descompromisso de todos - educadores musicais e universidades - para com a Educação
Básica e a escola regular.
A propósito, é preciso atentar para a formação musical oferecida nos conservatórios,
bem apartada do perfil enfocado pela arte-educação. Os conservatórios, muitas vezes, se
mantêm incólumes às várias transformações pelas quais passam o ensino de música e
permanecem investindo no padrão tradicional técnico-profissionalizante. O acesso, salvo
louváveis exceções, continua restrito a uma pequena parcela da população familiarizada
com processos artístico-musicais ou àqueles que possuam “dom”. O projeto de formação é
freqüentemente centralizado na música erudita do passado, havendo uma dificuldade forte
em acompanhar tendências composicionais renovadoras. É extrema a ênfase dada às
questões técnicas, as quais desvalorizam o fazer musical em muitos momentos. Em franca
oposição ao modelo da arte-educação, a prática pedagógica centra-se no professor e na
transmissão de conteúdos.
Em síntese, não raro os conservatórios se constituem em espaços de reprodução de
uma tradição celebrada como um mito. O profissional formado terá grande dificuldade
em atuar fora dos ambientes previamente concebidos como as salas de concerto ou o ensino
no interior do próprio conservatório. As escolas regulares dificilmente serão consideradas
enquanto campos de atuação. Por isto, o desafio persiste quanto à formação de professores
de música empenhados num projeto de democratização do ensino musical, que não pode
prescindir de uma ação competente no universo da Educação Básica.
1.7 Novas perspectivas para a educação musical no Brasil hoje
A década de 80 assiste ao término da ditadura e ao avanço progressivo do processo
de redemocratização do país, com marco na eleição do primeiro governo civil após 20 anos
ditatoriais. Tancredo Neves é eleito pelo voto indireto, resquício do regime autoritário, à
revelia dos movimentos populares em prol das diretas já. Contudo, não chega a assumir o
cargo e em seu lugar toma posse o vice José Sarney. O anseio por uma nova constituição é
expresso e determina a formação de uma Assembléia Nacional Constituinte cujos trabalhos
se estendem de fevereiro de 1987 a outubro de 1988 quando é enfim promulgada a nova
Constituição. A Carta Magna de 1988 tenciona pôr fim aos vestígios formais do regime
autoritário e avança no sentido de garantir aos cidadãos direitos sociais e políticos. Logo
em seu artigo quinto estabelece Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Intitulada “Da educação”, a seção I do capítulo III é integralmente dedicada aos
assuntos educacionais. O primeiro artigo da seção, de número 205, dispõe A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. No transcorrer da seção
determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; Ensino
Fundamental obrigatório e gratuito; extensão progressiva do ensino obrigatório e gratuito
ao nível médio; acesso ao ensino obrigatório e gratuito como direito público subjetivo;
atendimento em creches e pré-escolas para crianças com idade inferior a seis anos; gestão
democrática do ensino público; valorização dos profissionais do ensino; liberdade do
ensino à iniciativa privada; autonomia universitária.
Após a aprovação da Constituição em 1988, restava edificar uma lei complementar
que tratasse das diretrizes e bases da educação nacional. O processo de tramitação da nova
LDB contou com a concorrência de dois projetos. O primeiro resultou de um amplo debate
envolvendo não somente a Câmara Federal como também a sociedade civil representada
por entidades sindicais, científicas, estudantis e de segmentos da área da educação ouvidos,
sobretudo, durante o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Foi aprovado pela
Câmara Federal em 1993 e ao chegar ao Senado teve como relator o senador Cid Sabóia,
por isto ser conhecido como Substitutivo Cid Sabóia. Em fase final de aprovação, é
suplantado pelo projeto apresentado por Darcy Ribeiro que contava com o apoio do
governo e do ministro da educação. A segunda versão deste projeto constitui a base do
texto da lei aprovada e promulgada em dezembro de 1996.
Em consonância com o proclamado pela Constituição de 1988, a LDB 9.394/96
determina em seu artigo 2 “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho”. Com o intuito de estabelecer diretivas para a Educação Básica, orientar os
currículos e conteúdos mínimos visando a assegurar uma formação basilar comum em todo
o território brasileiro, o Ministério da Educação (MEC) lança o Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN)
para o Ensino Fundamental e médio. Nunca é demais lembrar que tais documentos têm
efeito norteador e não possuem formalmente um caráter obrigatório.
No que concerne ao ensino de Artes, a LDB em seu artigo 26, parágrafo segundo
prevê “o ensino de arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis
da Educação Básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. O
RCNEI em seu terceiro volume designado Conhecimento do mundo traz propostas para a
prática do movimento, das artes visuais, da música, da linguagem oral e escrita, da natureza
e a sociedade e da matemática. Para o Ensino Fundamental, o PCN de Arte que além de
caracterizar a área, seus objetivos e conteúdos, descreve quatro modalidades artísticas -
artes visuais, dança, música e teatro – a serem contempladas no universo escolar. No ensino
médio, a Arte é uma disciplina potencial da área Linguagem, Códigos e suas Tecnologias
que compõe a base nacional comum. Às modalidades do Ensino Fundamental é acrescida a
de artes audiovisuais.
Os vários termos legais e normativos de âmbito nacional contemplam a arte e,
especificamente, a música em suas considerações, “surge, assim, uma oportunidade para a
área valorizar e legitimar as aulas de música nos currículos escolares” (CERESER, 2004, p.
29). Não obstante, Penna (2004a) pondera que:
... as decisões quanto ao tratamento das várias linguagens artísticas ficam a cargo
de cada estabelecimento de ensino (...) essa flexibilidade permite que as escolhas
das escolas não contemplem todas as linguagens, o que é bastante provável,
diante da carga horária de Arte, em geral muito reduzida, e ainda pela questão da
disponibilidade de professores qualificados e os critérios financeiros de
contratação situação similar à que a prática da Educação Artística enfrentava,
em muitos espaços, quando da vigência da Lei 5.692/71 (p. 25).
A legislação é marcada por uma maleabilidade que se aproxima da incerteza. A
música ocupa um lugar potencial assim como acontece com as demais linguagens artísticas,
mas nãogarantia de sua presença na prática escolar. Assim como acontecia na Educação
Artística, a música permanece subordinada ao campo maior da Arte e nenhuma norma legal
a torna obrigatória, efetivamente, no espaço escolar. Mais uma vez, é grande a
responsabilidade dos educadores musicais que precisariam levar em conta a escola regular
enquanto campo importante de atuação para efetivar uma educação musical de caráter mais
abrangente. Enfim, soluções carecem ser criadas para garantir a presença da música na
Educação Básica quer seja junto aos próprios educadores musicais quer seja na busca de
caminhos alternativos.
Ainda que o ensino musical permaneça à margem da escola regular, não podemos
desconsiderar algumas iniciativas que, mesmo isoladas, tentam levar a efeito a música
como disciplina permanente no currículo. A experiência advinda de tais práticas pode
auxiliar na construção de novas propostas e novas possibilidades de intervenção e alcance
do ensino musical
15
.
Além da inexistência de normatização que estabeleça a obrigatoriedade de fato,
contribuem para a ausência do ensino sistemático de música no ambiente escolar um
melhor entendimento sobre o papel da música na formação da criança e do jovem, um
direcionamento que dê à educação musical identidade de saber escolar e, destacadamente, a
formação de professores em termos quantitativo e qualitativo que levem adiante esta
missão. A problemática da formação vem sendo trazida à baila por várias pesquisas
(PENNA, 2002 e 2004; NOGUEIRA, 1994 e 2002; BELLOCHIO, 2001 e 2003;
FIGUEIREDO, 2004; CERESER, 2004) cujas investigações situam-se na interseção entre a
educação e a música. Questionam a carência quantitativa de profissionais especializados
aptos a ministrá-la na escola regular e até mesmo se suas formações acadêmicas conseguem
dotá-los de habilidades para fazê-lo. Junto às indagações encontram-se propostas e ações
15
Loreiro (2003) cita cinco experiências produtivas neste sentido: na Didá Escola de Música, em Salvador; no
Centro Educacional Daruê Malungo na cidade do Recife; o projeto “Música na Escola”, parceria entre a
Secretaria Municipal do Rio de Janeiro e o Conservatório de Música Brasileira; na Escola Estadual Sandoval
Soares de Azevedo, que funciona dentro da área da Fundação Helena Antipoff na cidade de Ibirité (MG) e o
projeto “Música na Escola” implantado pela Secretaria do Estado de Minas Gerais nas escolas públicas da
rede estadual sobre o qual a autora debruça suas análises.
que fazem crer na possibilidade de uma inserção produtiva e sistemática da linguagem
musical como área do saber no currículo da Educação Básica.
Uma proposição interessante, repleta de polêmica e controvérsias, sobressai: aquela
sobre formar musicalmente o pedagogo, um profissional generalista apto a lidar com as
mais diferentes áreas do saber, e também com a música, se bem preparado, na Educação
Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental
16
.
Loureiro (2003) aponta que “apesar de todas essas dificuldades, o momento é de
mudança, sendo propícia a retomada da música nas escolas” (p. 77). Consciente do quadro
desolador da música no universo escolar torna necessário uma tomada de atitude, de
enfrentamento convicto e fundamentado para que o ensino musical não seja silenciado nas
escolas regulares. Privar crianças e adolescentes de uma formação musical significa
despojá-los dos prazeres e gostosuras da experiência estético-musical, destituí-los da
compreensão crítica dos processos envolvidos com a construção da música e, em última
instância, lançá-los inadvertidamente no mundo pernicioso da Indústria Cultural.
16
Sobre esta proposta o item dois do capítulo seguinte irá se debruçar.
CAPÍTULO 2
INTERFACES DA RELAÇÃO ENTRE PEDAGOGIA E MÚSICA
“Pretendemos apenas que se ensine a todos a
conhecer os fundamentos, as razões e os objetivos de
todas as coisas principais, das que existem na
natureza como das que se fabricam, pois somos
colocados no mundo, não somente para que façamos
de espectadores, mas também de atores”
João Amós Comênio - Didática Magna (1632).
O presente capítulo busca potencializar o diálogo entre a Pedagogia e a música,
debatendo de modo específico a relação entre o pedagogo e a linguagem musical. O
objetivo último é trazer elementos que demonstrem as possibilidades de enriquecimento
recíproco: o pedagogo incrementando a linguagem musical nas séries iniciais da escola
regular e a música fortalecendo sua formação, identidade e prática profissional. Assim,
mostrou-se necessário uma divisão binária: a primeira parte, tratando da história da
Pedagogia no Brasil, é vital para a compreensão dos desafios enfrentados pelo curso; a
segunda põe em destaque as várias perspectivas da relação entre o pedagogo e a música em
seu campo de trabalho peculiar (séries iniciais da escolarização) e durante sua formação
inicial.
2.1 A trajetória do curso de Pedagogia no Brasil: indefinições e ambigüidades
A história do curso de Pedagogia no Brasil é intrincada, repleta de polêmicas que
vão desde a discussão sobre o perfil do profissional a ser formado até o questionamento do
próprio estatuto epistemológico da ciência pedagógica. O processo responsável por sua
legitimação vem se constituindo num emaranhado de propostas divergentes, contrastantes,
muitas vezes, inconciliáveis.
O curso foi instituído no Brasil por intermédio do Decreto-Lei nº 1.190 de 4 de abril
de 1939, que ordenava sobre a organização da Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil. Nesta ocasião, foram criadas no interior da instituição seções
fundamentais de Filosofia, Ciências, Letras, Pedagogia e uma especial, a de Didática. A
Seção de Pedagogia organizou o curso homônimo com duração de três anos destinado à
formação dos bacharéis, técnicos em educação”. A especial estabelecia o curso de
Didática, em um ano, dedicado a formar profissionais para o exercício do magistério.
Àqueles que concluíssem o bacharelado era conferido o diploma de bacharel em Pedagogia;
ao realizarem, em continuidade, o curso de didática, recebiam o título de licenciado para as
disciplinas incluídas no curso anterior
17
. Aos licenciados em Pedagogia também era
concedido o registro para lecionar Matemática, História, Geografia e Estudos Sociais no
primeiro ciclo do ensino secundário.
Tal estruturação deu origem ao modelo conhecido pela fórmula “3+1”, ou seja, três
anos de bacharelado aos quais se sobrepõe mais um para a licenciatura. Ao analisá-lo,
Martelli e Manchope (s.d) concluem que “esta organização curricular baseava-se na
separação bacharelado - licenciatura, causando a dicotomia entre dois elementos
componentes do processo pedagógico: o conteúdo e o método, a teoria e a prática” (p. 3).
Como bacharel, o pedagogo poderia ocupar o cargo de técnico em educação criado
pelo Ministério da Educação. Sua destinação profissional não parecia muito clara, exceto a
oferecida pelo ministério, e o mercado de trabalho não auxiliava na solução da
problemática à medida que não revelava per si as ocupações próprias e específicas deste
novo profissional. Neste sentido, à carência na caracterização do bacharel era acrescida a
inexistência de um campo profissional que o demandasse.
Com o título de licenciado, o curso Normal (magistério em nível secundário)
constituía-se seu mais importante campo de atuação profissional, embora não exclusivo. À
época, segundo Lei Orgânica do Ensino Normal - Decreto-Lei, 8.530/46, qualquer
graduado poderia se incumbir de lecionar neste curso. Desta forma, nem mesmo com a
licenciatura, o pedagogo encontrava um campo de trabalho que lhe fosse peculiar.
Em vista disso, pode-se perceber que a indeterminação quanto à identidade do curso
de Pedagogia se manifesta desde sua criação, em virtude duplamente da ausência de um
perfil formativo bem delineado e de um campo de trabalho que demandasse seus egressos.
Parece complicado entender o invento de um curso que não tem claro quem deseja formar,
para que formar e para onde encaminhar. Nesta direção, Bissoli da Silva (1999) assinala: “o
17
As matérias do bacharelado eram: Complementos de Matemática, História da Filosofia, Sociologia,
Fundamentos Biológicos da Educação, Psicologia Educacional, Estatística Educacional, História da
Educação, Fundamentos Sociológicos da Educação, Administração Escolar, Educação Comparada, Filosofia
da Educação. Para concluir a licenciatura dever-se-ia cursar as disciplinas: Didática Geral e Didática Especial.
curso foi instituído com a marca que o acompanharia em todo seu desenvolvimento e que
se constitui até hoje no seu problema fundamental: a dificuldade em se definir a função do
curso e, conseqüentemente, o destino de seus egressos” (p. 63).
Para atender aos dispositivos da LDB 4.024/61, em 1962 o Conselho Federal de
Educação (CFE) lança a segunda regulamentação para o curso de Pedagogia, o Parecer
CFE 251/62 relatado pelo então conselheiro Valnir Chagas. O novo documento introduz
pequenas alterações perfazendo um retoque tênue sobre a legislação anterior.
No início dos anos 60 havia um questionamento explícito acerca do curso de
Pedagogia no Brasil; indagações sobre sua existência e pertinência foram trazidas à baila: a
Pedagogia possui conteúdo particular? É apropriada a formação de profissionais da
educação pelos moldes vigentes? A LDB 4.024/61 estabelecia que o ensino primário
deveria ser ministrado por egressos do curso normal (art. 52) enquanto o ensino médio -
ginasial e colegial - exercido por professores formados nas Faculdades de Filosofia,
Ciências e Letras (art. 59).
Não obstante, era corrente a idéia de que o professor primário deveria se formar em
nível superior e os técnicos em educação, em estudos posteriores ao da graduação. Valnir
Chagas não discordava de tais deslocamentos, porém considerava-os factíveis apenas no
futuro. Defendendo a idéia de permanência do curso, o conselheiro passa a trabalhar no
sentido de fixar seu currículo mínimo e duração. Na modesta tentativa de delimitar o
profissional a ser formado, o parecer aponta para o técnico em educação ou especialista em
educação, um bacharel cujas funções se relacionavam à realização de tarefas não docentes
no espaço escolar, além de estabelecer a licenciatura que respondia à preparação de
professores para o magistério de disciplinas pedagógicas no curso normal
18
. Diferentemente
do esquema anterior, licenciatura e bacharelado deveriam ser cursados concomitantemente,
em cursos com duração média de quatro anos. Com isto, intentava-se suprimir o fosso entre
as duas modalidades formativas, tão característico do modelo “3+1”. Todavia, Brzezinski
(1996) aponta que:
18
O currículo mínimo do bacharelado era fixado em sete matérias, cinco obrigatórias e duas opcionais. As
obrigatórias eram: Psicologia da Educação, Sociologia (Geral, da Educação), História da Educação, Filosofia
da Educação, Administração Escolar. As opcionais deveriam ser selecionadas entre: Biologia, História da
Filosofia, Estatística, Métodos e Técnicas da Pesquisa Pedagógica, Cultura Brasileira, Educação Comparada,
Higiene Escolar, Currículo e Programas, Técnicas Audiovisuais de Educação, Teoria e Prática da Escola
Média e Introdução à Orientação Educacional. Para concluir a licenciatura o aluno deveria cursar Didática e
Prática de Ensino.
Seria impossível ocorrerem momentos de concomitância, se as disciplinas de
didática e prática de ensino eram acrescentadas ao bacharelado para formar o
licenciado na etapa final do curso de pedagogia. Então, por ‘um passe de
mágica’, com apenas duas disciplinas, o bacharel se transformava em professor
licenciado” (p. 57).
Apesar destas pequenas modificações permanecem os impasses quanto à imprecisão
do curso, à indefinição dos seus objetivos, à falta de delimitação e regulamentação do
mercado de trabalho para seus egressos. Embora o campo da docência tenha sido mais bem
esboçado quando se coloca a licenciatura para formar professores de disciplinas
pedagógicas do curso normal, a continuidade da invasão deste nicho por profissionais de
outras áreas revela a não-exclusividade de atuação do pedagogo, tornando ainda difusa sua
identificação profissional. No que tange ao campo de trabalho do técnico em educação, o
parecer não faz nenhuma referência direta. Chega a oferecer algumas pistas como a
execução de tarefas não-docentes, mas está longe de estabelecer com clareza sua área
particular de atuação.
Interessante ponderar que o parecer inicia fixando o currículo mínimo para a
Pedagogia sem lançar mão de elucidar o perfil do profissional a ser formado e tampouco
considerar a existência de um campo de trabalho que o requeira. Ao se afastar, ainda que
com alguma habilidade destas questões, o parecer revela sua esterilidade e, por
conseguinte, a fragilidade da Pedagogia, um curso “longe de conseguir alguma afirmação
social” (BISSOLI DA SILVA, 1999, p. 65-66).
Em 1969, Valnir Chagas propõe uma nova conformação para o curso de Pedagogia
cumprindo os dispositivos da Lei Federal 5.540/68, a Lei da Reforma Universitária. O
Parecer CFE 252/69 fixa os currículos mínimos e a duração, além de traçar os objetivos
fundamentais do curso, a saber, o preparo de professores para o ensino normal e de
especialistas junto às áreas de orientação, administração, supervisão e inspeção escolar.
Diante disto, estabelece um currículo bipartido composto por uma base comum de
disciplinas destinadas à fundamentação pedagógica geral e outra diversificada para atender
às exigências peculiares das recém-criadas habilitações específicas
19
. Mesmo com diversas
19
A base comum é composta pelas seguintes matérias: Sociologia Geral, Sociologia da Educação, História da
Educação, Psicologia da Educação, História da Educação, Filosofia da Educação e Didática. Quanto à parte
diversificada, a estrutura é:
para a habilitação em Orientação educacional: Estrutura e Funcionamento do 1
o
grau, Estrutura e
Funcionamento do Ensino de 2
o
grau, Princípios e Métodos de Orientação Educacional, Orientação
Vocacional e Medidas Educacionais;
para a habilitação em Administração escolar: Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1
o
grau, Estrutura e
Funcionamento do Ensino de 2
o
grau, Princípios e Métodos de Administração Escolar e Estatística Aplicada à
Educação;
modalidades de formação, prevê um só diploma de licenciado. O documento parece
resolver os principais impasses enfrentados pela Pedagogia à medida que deixa claro o
profissional a ser formado, ajusta ao perfil estabelecido uma estrutura curricular compatível
e aparentemente põe fim à dicotomia entre licenciatura e bacharelado ao decretar, dentre
outros, uma titulação única a todos os seus concluintes. Martelli e Manchope (s.d)
salientam, entretanto, que
A concepção dicotômica, característica do currículo anterior, continuava
presente na nova estrutura do curso, apenas sobre uma outra forma de
organização curricular. Sua essência preconizava a intensa especialização de
funções e de formação de técnicos, correspondentes às exigências da divisão
social do trabalho. (...) O curso baseado nas habilitações formava o profissional
especıfico para áreas também específicas, contribuindo para a fragmentação e a
divisão do trabalho pedagógico... (p. 5; grifo das autoras)
O Parecer CFE 252/69 evidencia seu viés pragmático ao instituir as habilitações
e, com elas, a noção de correspondência direta e imediata entre currículo e tarefas a serem
desenvolvidas pela profissão. Seguindo a nova estrutura, o graduando deveria cursar as
matérias do ciclo básico num primeiro momento e logo em seguida se encaminhar para a
modalidade que lhe aprouvesse. Podia cursar até duas delas ao mesmo tempo e ainda
retornar futuramente para a obtenção de outra (s). Tanto ao Conselho Federal de Educação
quanto às Instituições de Ensino Superior era facultado o direito de criar novas habilitações,
adequadas às necessidades próprias de cada contexto.
Além de especialista em uma ou mais áreas educacionais, qualquer pedagogo estaria
apto a atuar como professor do ensino normal, ministrando as disciplinas da base comum e,
também, as específicas do ciclo profissional. A formação justaposta do professor e do
especialista num curso permitiu a coexistência de duas tendências em princípio
inconcordáveis, uma generalista e outra tecnicista (BISSOLI DA SILVA, 1999). A primeira
era atendida quase que exclusivamente quando da formação geral e a segunda, durante o
processo de especialização. A fragmentação decorrente desta estrutura é manifesta, gerando
uma visão reducionista porque parcial da ação educativa escolar.
para a habilitação em Supervisão escolar: Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1
o
grau, Estrutura e
Funcionamento do Ensino de 2
o
grau, Princípios e Métodos de Supervisão Escolar e Currículos e Programas;
para a habilitação em Inspeção escolar: Estrutura e Funcionamento do Ensino de 1
o
grau, Estrutura e
Funcionamento do Ensino de 2
o
grau, Princípios e Métodos de Inspeção Escolar e Legislação do Ensino.
para a habilitação em Ensino das disciplinas e atividades práticas dos cursos normais, as matérias: Estrutura
e Funcionamento do Ensino de 1
o
grau, Metodologia do Ensino de 1
o
grau, Prática de Ensino na Escola de 1
o
grau (Estágio).
Soma-se às funções descritas, o magistério para as séries iniciais do primeiro grau,
que “tenha se reconhecido também, nesse momento, o direito de seus diplomados ao
magistério primário” (SCHEIBE, 2006, p. 181). O parecer compactua com a máxima
“quem pode o mais pode o menos”, ou seja, quem prepara o professor para o ensino
primário tem condições de atuar neste nível de ensino. Por outro lado, reconhece a carência
formativa dos pedagogos para a realização desta prática. O impasse é resolvido mediante a
determinação da obrigatoriedade em cursar certas disciplinas para a aquisição do direito.
O novo modelo de formação qualificava uma gama diversificada de profissionais
cujas atuações dar-se-iam em campos exclusivos e diferentes entre si. A tentativa em
conjugar perfis tão variados em um só curso deu à Pedagogia um aspecto pretensioso: o
parecer superestimava suas funções. A este respeito, Bissoli da Silva (1999) comenta que
“como resultante da precipitação das especialidades pedagógicas para a graduação, ocorreu
o ‘inchaço’ do curso de Pedagogia, no que se refere à diversidade de profissionais a serem
formados. São por demais ambiciosas as pretensões impostas a ele...” (p. 60).
A variedade dos profissionais formados trouxe à tona novas problemáticas. O
caráter específico de cada habilitação fez crer na necessidade de vários pedagogos em cada
escola, o que era inviável quer seja pelas precárias condições econômicas da maioria das
escolas brasileiras, quer seja pela divisão do trabalho pedagógico gerado por tal situação.
Outro ponto refere-se a uma contradição: ao mesmo tempo em que o mercado encontrava-
se definido (o inspetor se incumbiria da inspeção; o administrador, da administração e
assim por diante) o pedagogo ainda enfrentava problemas em ocupá-lo à medida que a
especialização em nível de graduação em muito restringia seu campo de trabalho.
Acrescenta-se ainda, o fato de que “as redes de escola de e graus acabaram
absorvendo pouco da grande quantidade de professores e especialistas formados pelo curso
de Pedagogia” (BISSOLI DA SILVA, 1999, p. 68).
A idealizada abolição da dicotomia entre licenciatura e bacharelado não chegou às
vias de fato. Era um contra-senso a criação de habilitações visando formar especialistas e a
taxação do título de licenciado aos seus concluintes. A questão da identidade profissional
foi outro ponto crítico enfrentado pelo curso ao preparar pedagogos tão plurais: quem era
afinal o pedagogo? Qual elemento lhe conferia identidade enquanto tal?
Paradoxalmente, os aspectos que pareciam resolvidos pelo Parecer CFE 252/69
se transformaram em seu calcanhar-de-aquiles. A divisão entre bacharelado e licenciatura,
o campo de trabalho, a identidade do egresso permaneceram questões ainda irresolutas,
carentes de encaminhamentos mais produtivos. No momento subseqüente, várias forças se
constituiriam no sentido de apontar novas direções para o curso de Pedagogia no Brasil.
Ao final da década de 70, irrompe uma forte mobilização de estudantes
universitários, professores, órgãos e entidades educacionais, visando intervir nas decisões
sobre a conformação do curso de Pedagogia e das demais Licenciaturas. Instala-se um
clima de efervescência na comunidade universitária, expresso pela disseminação de
encontros, seminários, conferências e produções teóricas sobre o assunto. Em 1978,
acontece o I Seminário de Educação Brasileira na Universidade de Campinas, decisivo ao
ensejar uma reação organizada tendo em vista repensar os estudos pedagógicos em nível
superior. Nesta ocasião, um consenso acerca da necessidade em estender o debate por
todo o país.
No ano de 1980, a PUC de São Paulo organiza a I Conferência Brasileira de
Educação (CBE) cujos trabalhos se orientaram no sentido de desencadear uma mobilização
nacional para intervir nos rumos do processo. A partir de então é criado o Comitê Nacional
Pró-Reformulação dos Cursos de Formação de Educadores ramificado em comitês
regionais espalhados em diversos pontos do país. O Comitê Pró-Participação na
Reformulação dos cursos de Pedagogia e Licenciatura, regional de São Paulo, produz em
1981 uma “Proposta Alternativa para a Reformulação dos cursos de Pedagogia e
Licenciatura (Anteprojeto)” que condensava as principais proposições do comitê. A
proposta possuía um forte teor provocativo, propiciando o aquecimento do debate e a
ampliação das bases do movimento.
Dois anos depois, a Comissão Nacional de Reformulação dos Cursos de Formação
do Educador (CONARFCE), formada em substituição ao Comitê Pró-Participação na
Reformulação dos cursos de Pedagogia e Licenciatura, lança uma proposta intitulada
“Documento Final”. Nela, a docência é firmada como a base da identidade de todo
educador. Ademais, é concebida a base comum nacional, ou seja, um núcleo comum de
estudos para os cursos de formação de professores objetivando a compreensão das questões
educacionais brasileiras. No que concerne à Pedagogia, é notório o fortalecimento do curso,
tornando improcedente o questionamento quanto à sua existência.
À medida que a Pedagogia se fortalece enquanto curso, o impasse a respeito da
identidade do pedagogo passa a ser assumido de maneira explícita. Bissoli da Silva (1999)
explica que “a recuperação da idéia da Pedagogia enquanto curso trouxe em seu bojo a
recuperação, também, da questão da identidade do pedagogo” (p. 83). O debate passou,
pois, a se orientar para a explicitação de questões referentes à identidade da Pedagogia
como campo de conhecimento. Afinal, mostrava-se imperativo delimitar a dimensão
teórico-epistemológica da ciência pedagógica para então estabelecer a identidade do curso e
construir uma estrutura curricular compatível. Os diversos grupos do interior do movimento
concluíram alertando para a importância em dar continuidade às discussões, com o intuito
de aprofundar o entendimento sobre o tema.
Durante a década de 80 e em momentos subseqüentes continuam a acontecer
encontros nacionais para o aprofundamento das discussões, onde inúmeras alternativas são
postas em conflito. Ao longo de todo o processo, coexistem, não harmonicamente,
propostas com fundamentos inconcordáveis. É o caso daquela defendida por José Carlos
Libâneo, Selma Garrido Pimenta e outros tantos educadores que consideram a Pedagogia
como um campo de conhecimento sobre a educação em sua totalidade e historicidade, com
identidade e problemáticas próprias.
Nesta concepção, o trabalho pedagógico e o trabalho didático não são tomados
como sinônimos, pois o primeiro está relacionado à atuação profissional em um amplo
leque de práticas educativas, enquanto que o segundo constitui-se numa forma peculiar que
o trabalho pedagógico assume em sala de aula. Sendo assim, a base de um curso de
Pedagogia não pode ser a docência. Todo trabalho docente é trabalho pedagógico, mas nem
todo trabalho pedagógico é trabalho docente (...). A pedagogia é maior que a docência”
(LIBÂNEO, 2006, p. 157).
Em conformidade com esta idéia basilar, a defesa da formação do pedagogo
stricto sensu diferente do profissional docente, estabelecendo dois cursos distintos no
interior das Faculdades de Educação: o de Pedagogia e o de Licenciatura para a formação
de professores. Embora discutida e apoiada por um considerável número de professores, tal
proposta não foi encampada pela direção do movimento à medida que “implica total
discordância do mote do movimento de reformulação dos cursos de formação de
educadores, herdado dos pareceres de Valnir Chagas: ‘a base da identidade profissional do
educador é a docência’” (LIBÂNEO, 2001, p 31)
Importante mencionar que atentas às novas determinações do momento histórico,
no início da década de 1980, várias universidades efetuaram reformas curriculares de modo
a formar não mais o especialista segundo a legislação vigente, mas sim professores para
atuar na educação pré-escolar e nas séries iniciais do ensino de primeiro grau.
Durante a década de 90, a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da
Educação (ANFOPE), sucessora da CONARFCE, desloca a centralidade das discussões de
temas específicos do curso de Pedagogia para aqueles relacionados com a formação dos
educadores em geral. O conceito de base comum nacional é dilatado e passa a envolver “a
defesa de uma política global de formação dos profissionais da educação que contemple
formação inicial, carreira, salário e formação continuada” (SCHEIBE e AGUIAR, 1999,
p. 6; grifo das autoras). A bandeira da base comum nacional se transforma em instrumento
de luta contra a degradação da profissão docente, sendo “poderoso referencial para garantir
a igualdade de condições de formação em oposição à concepção de igualdade de
oportunidades originária da nova concepção de eqüidade tão enfatizada no novo glossário
da pós-modernidade...” (FREITAS, 2002, p. 3; grifo da autora). Contudo, o deslocamento
do debate é apenas provisório, pois “a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, aprovada em 1996, ao introduzir alguns indicadores visando a formação de
profissionais da Educação Básica, trouxe novamente o curso de Pedagogia à pauta das
discussões e, com ele, a questão de sua identidade” (BISSOLI DA SILVA, 1999, p. 85).
A nova LDB 9.394/96 contém três artigos especialmente polêmicos quanto à
formação dos profissionais da educação. O artigo 62 estabelece a formação de docentes em
nível superior tanto em universidades quanto nos Institutos Superiores de Educação, porém
admite a formação em nível médio na modalidade Normal para o magistério da Educação
Infantil e quatro primeiras séries do Ensino Fundamental. O artigo 63, ao explicitar as
características dos Institutos Superiores de Educação, traz à cena o curso Normal Superior
destinado à formação de docentes para Educação Infantil e primeiras séries do Ensino
Fundamental. E, por fim, o artigo 64 fixa duas instâncias para a formação do especialista:
em curso de graduação em Pedagogia ou na pós-graduação, a critério da instituição de
ensino. Não menos controverso é o artigo 87 que institui a chamada década da educação
(1997-2007) e em seu parágrafo quarto prevê, ao final de 10 anos, a admissão exclusiva de
professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço.
A partir destas determinações legais, o curso de Pedagogia mais uma vez sua
identidade abalada. A docência, considerada como base da identidade do pedagogo pelo
movimento de professores, parecia expropriada da Pedagogia e revertida para o curso
Normal Superior, especialmente constituído para formar professores para os níveis
preliminares do ensino. À Pedagogia restava a formação dos especialistas, o que soou como
um retrocesso às conquistas e argumentos do movimento de educadores. A criação de um
novo lócus de formação, os Institutos Superiores de Educação, deu margem a disputas
acirradas, pois seria um ambiente afastado da universidade e, por conseguinte, extirpado de
reflexões aprofundadas sobre as ciências da educação e de todo o caldo cultural
característico do espaço universitário. Ao analisarem os efeitos de tais medidas, Scheibe e
Aguiar (1999) ponderam:
Com isso, foram dadas as condições para uma nova formatação dos cursos de
licenciatura e de pedagogia, com sérias implicações para a formação
qualificada de professores e demais profissionais da educação. No caso do curso
de pedagogia, rompe-se, na prática, com a visão orgânica da formação docente
que vinha sendo construída no país nas últimas décadas. Acentua-se, por
imposição legislativa, a dicotomia entre a formação para atuar na educação
infantil e séries iniciais do ensino fundamental e a destinada às séries finais
desse nível de ensino e do ensino médio. Impõe-se tal dicotomia no interior do
locus de formação dos profissionais da educação, além de se atribuir aos
institutos a prerrogativa da formação dos professores no setor privado. Com isso,
aplaina-se o caminho para o esvaziamento do curso de pedagogia e para o
sucesso das propostas que visam dele retirar a base da docência, transformando-
o na prática em um bacharelado. (1999, p. 7; grifo das autoras).
que se considerar que a LDB embora omita a docência como fundamento da
Pedagogia, não a proíbe, abrindo espaço para encaminhamentos múltiplos quanto aos seus
projetos de formação. Ao mesmo tempo em que o curso se estabelece legalmente (art. 64),
sua identidade difusa e indefinida. É neste contexto de incertezas que se inicia a
elaboração de novas diretrizes curriculares para o curso de Pedagogia no Brasil. Vale
lembrar que até o momento, o curso se submetia à legislação da década de 60, possuindo
como diretriz oficial aquela elaborada em 1969.
Para alavancar o processo, o Ministério da Educação (MEC) promulga o Ofício
Curricular 014/98, solicitando às Instituições de Ensino Superior o encaminhamento de
propostas para auxiliar na elaboração de novas diretrizes para o curso de Pedagogia. O
material enviado pelas instituições serviu como ponto de partida para os trabalhos da
Comissão de Especialistas do Ensino de Pedagogia que além de analisá-lo cuidadosamente,
estendeu o convite para sugestões às demais entidades ligadas ao assunto. Após longo
exercício de análise e síntese, a Comissão fez divulgar em 6 de maio de 1999 a Proposta de
Diretrizes Curriculares. O documento foi bem acolhido pela comunidade acadêmica
devido ao caráter democrático de sua construção, também por seu conteúdo estar em
consonância com as principais idéias defendidas pela ANFOPE e, em parte, por considerar
e contemplar no que se refere às funções do curso os inúmeros posicionamentos em
conflito. A proposta é abrangente ao abrir possibilidade de atuação do pedagogo em áreas
tradicionais e emergentes do campo educacional.
No mesmo ano, no dia 9 de novembro, é aprovado pala Câmara de Educação
Superior (CES) do Conselho Nacional de Educação (CNE) o Parecer CNE/CES 970 que
discorre sobre o curso Normal Superior, bem como sobre a habilitação para magistério em
Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental nos cursos de Pedagogia. O
próprio conteúdo do parecer, ao tratar do Normal Superior e de habilitações no interior da
Pedagogia, demonstra divergência com relação às idéias construídas pela Comissão de
Especialistas. O documento retirou a possibilidade da Pedagogia ter como fundamento a
formação de docentes para as séries iniciais do Ensino Fundamental e para a Educação
Infantil, convertendo tal função para o Normal Superior.
O parecer foi recebido com indignação por parte das entidades educacionais e
acadêmicas, especialmente pela ANFOPE. Não foi menor a repulsa oriunda da Comissão
de Especialistas que chegou a enviar carta à CES através da qual comunicou sua objeção à
nova proposta, apontando o desconhecimento da matéria em discussão por parte de seus
elaboradores. A mobilização aparentemente surtiu efeito quando do agendamento da
matéria para debate no Conselho Pleno (CP) no dia 7 de dezembro do ano corrente.
Entretanto, uma manobra mudou os rumos dos acontecimentos. Um dia antes da
reunião, em 6 de dezembro, foi lançado o Decreto Presidencial 3.276/99, determinando
que a formação destinada ao magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino
Fundamental far-se-ia exclusivamente no curso Normal Superior (art. 3, § 2º). Nem é
preciso dizer sobre o repúdio por parte das entidades ligadas à educação quanto a este
decreto. As manifestações foram intensas e resultaram na criação do Fórum em Defesa da
Formação de Professores
20
, com forte caráter representativo.
Frente às pressões desencadeadas, é publicado o Decreto nº 3.554, de 7 de agosto de
2000, o qual relativiza o anterior ao substituir o termo exclusivamente por
preferencialmente. A partir de então a Pedagogia pôde recuperar a função do preparo de
docentes, todavia não é considerada como lócus preferencial para tal. A comunidade
acadêmica e científica, representada por suas respectivas entidades e pelo recém-criado
20
O fórum foi composto, inicialmente, por 11 entidades, quais sejam: ANDES/SN, ANFOPE, ANPEd,
ANPAE, ABT, CEDES, Comissão de Especialistas de Ensino de Pedagogia, Fórum de Diretores das
Faculdades/Centros de Educação das Universidades Públicas Brasileiras, Fórum Paulista de Educação
Infantil, Fórum Paulista de Pedagogia e Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.
Fórum em Defesa da Formação de Professores, não se contentou com esta ligeira alteração
e luta até hoje para derrubar o decreto nº 3.256/99.
Em 2003, o CNE indicou uma Comissão Bicameral composta por membros da
Câmara de Educação Superior e da Câmara de Educação Básica com o intuito de definir as
Diretrizes Curriculares para o Curso de Pedagogia. Inicialmente, a comissão se incumbiu de
analisar as diversas contribuições enviadas ao CNE nos últimos anos. Em seguida, no mês
de dezembro, promoveu uma audiência pública, onde ficou clara a diversidade de posições
em conflito. As divergências diziam respeito ao perfil do pedagogo a ser formado, à
estruturação curricular do curso, o grau a ser conferido, ao próprio entendimento do campo
epistemológico da Pedagogia. Com a consciência da dificuldade de seu encargo e da
necessidade de um amplo e democrático debate, a comissão lança uma primeira versão do
Projeto de Resolução para análise da comunidade educacional que, em resposta, remeteu ao
CNE uma variedade de críticas e sugestões. Após todo o processo, é aprovado em 13 de
dezembro de 2005 o Parecer CNE/CP 05/2005, encaminhado para homologação no MEC
em 20 de dezembro do referido ano.
O Parecer CNE/CP 02/2005 fixa a docência como a base da formação do pedagogo
cuja titulação será exclusivamente a de licenciado.
Art. - O curso de Licenciatura em Pedagogia destina-se à formação de
professores para exercer funções de magistério na Educação Infantil e nos anos
iniciais do Ensino Fundamental, nos cursos de Ensino Médio, na modalidade
Normal, de Educação Profissional na área de serviços e apoio escolar e em
outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos. (BRASIL,
2005).
O documento lista ainda uma ampla gama de atividades próprias do exercício do
magistério, que levaram ao alargamento do conceito de ação docente. A docência é tomada
como “docência ampliada” (não seria uma concessão às críticas de Libâneo e Pimenta?), já
que não se limita apenas ao processo de ensino-aprendizagem em sala de aula, englobando
a gestão escolar, o planejamento, a execução, a coordenação, o acompanhamento e a
avaliação de projetos educativos não-escolares e, ainda, a produção e difusão do
conhecimento científico e tecnológico do campo educacional, em contextos escolares e não
escolares (art. 4, parágrafo único). Kuenzer e Rodrigues (s.d) fazem uma crítica ácida
quanto à excessiva quantidade de habilidades requeridas ao novo profissional formado pelo
curso. Segundo as autoras,
... no afã do atendimento a todas as vozes dissonantes da opção escolhida, ao
tempo que o Parecer define um foco restrito a uma única possibilidade de
qualificação, representativa de uma forma específica de concepção do que seja a
Pedagogia, amplia demasiadamente o perfil, do que resulta a ineficácia práxica
da proposta, pois o que está em tudo não está em lugar nenhum, constituindo-se
desta forma uma aberração categorial: uma totalidade vazia (p. 5).
O parecer também trata da estrutura do curso que, respeitadas as diversidades
regionais e a autonomia de cada instituição, necessariamente deve ser composta por um
núcleo de estudos básicos, objetivando a análise e reflexão sobre a literatura e realidades
educacionais; um núcleo de aprofundamento e diversificação de estudos, voltado para as
áreas de atuação priorizadas pelo projeto pedagógico das instituições e um núcleo de
estudos integradores, responsável pelo enriquecimento curricular mediante a participação
em eventos e atividades extra-curriculares. A carga horária estabelecida é de 3.200 horas,
das quais 2.800 são dedicadas à atividades formativas, 300 ao Estágio Supervisionado e
100 à atividades teórico-práticas em áreas específicas de interesse dos alunos.
Após examinar o parecer, o MEC concluiu sobre a necessidade de uma adaptação,
especificamente no artigo 14 devido à contradição evidente entre ele e o proposto pelo
artigo 64 da LDB. O artigo 14 assim dizia A formação dos demais profissionais da
educação, nos termos do art. 64 da Lei 9.394/96, será realizada em cursos de pós-
graduação, especialmente estruturados para este fim, abertos a todos os licenciados”. Em
suma, extinguia a formação de especialistas no curso de Pedagogia. Após reexame, a
Comissão divulga o Parecer CNE/CP 03/2006 que dá nova redação ao artigo.
Art. 14. A Licenciatura em Pedagogia nos termos do Parecer CNE/CP 5/2005
e desta Resolução assegura a formação de profissionais da educação prevista no
art. 64, em conformidade com o inciso VIII do art. 3º da Lei nº 9.394/96.
§ Esta formação profissional também poderá ser realizada em cursos de pós-
graduação, especialmente estruturados para este fim e abertos a todos os
licenciados.
§ Os cursos de pós-graduação indicados no § deste artigo poderão ser
complementarmente disciplinados pelos respectivos sistemas de ensino, nos
termos do Parágrafo único do art. 67 da Lei nº 9.394/96.
O novo conteúdo admite a formação dos especialistas em cursos de Pedagogia,
porém não fica claro como isto deve ocorrer. A obscuridade, para não dizer contra-senso,
fica mais explícita quando observamos o artigo 10, o qual propõe a extinção progressiva
das habilitações no referido curso. A despeito desta e algumas outras contradições, as
Diretrizes Curriculares Nacionais são instituídas em 15 de maio de 2006 através da
Resolução CNE/CP nº 1/2006.
Sobre o curso Normal Superior, a resolução menciona no artigo 11 a possibilidade
em revertê-lo para Pedagogia, “as instituições de educação superior que mantêm cursos
autorizados como Normal Superior e que pretenderem a transformação em curso de
Pedagogia e as instituições que oferecem cursos de Pedagogia, deverão elaborar novo
projeto pedagógico, obedecendo ao contido nesta Resolução”. Neste sentido, embora
respaldado por inúmeros decretos e pareceres, o Normal Superior não conquistou o estatuto
como lócus de formação para docentes destinados aos níveis iniciais da educação. Segundo
Triches (2006),
... o Curso Normal Superior criado no Instituto Superior de Educação e
faculdades para formação de professores de Educação Infantil (EI) e Séries
Iniciais do Ensino Fundamental (SIEF) não ganhou força suficiente para se
colocar como modelo de formação, permanecendo como modelo a formação
docente no curso de Pedagogia” (p. 11).
Kuenzer e Rodrigues (s.d) corroboram com este entendimento e acrescentam sobre
o Normal Superior que “apesar de legalmente constituído, esse curso não ganhou
legitimidade na comunidade acadêmica e fora dela” (p. 7).
No que concerne às Artes, a Resolução CNE/CP nº 1/2006 deixa expressa, no inciso
VI do artigo 5, que o pedagogo deve estar apto a “aplicar modos de ensinar diferentes
linguagens, Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Geografia, Artes,
Educação Física, de forma interdisciplinar e adequada às diferentes fases do
desenvolvimento humano” (grifo meu). Quando explicita a estrutura do curso e,
especificamente as áreas a serem contempladas pelo núcleo de estudos básicos, demonstra a
exigência quanto ao trabalho didático com conteúdos relativos à Língua Portuguesa,
Matemática, Ciências, História e Geografia, Artes e Educação Física (artigo 6, inciso I,
alínea i; grifo meu). A Arte é, pois, percebida enquanto campo de conhecimento necessário
para a formação do Pedagogo ao lado de disciplinas tradicionalmente reconhecidas em
importância.
Após a análise histórica do tortuoso processo de constituição da Pedagogia no Brasil
desde sua criação em 1939 até o momento atual, um dado fica evidente: a permanência da
indefinição do curso e, pior, a dificuldade quase instransponível em superá-la. As diversas
forças em conflito continuam enérgicas na defesa de seus princípios, todavia o mesmo
vigor não é sentido quando solicitadas a ouvirem umas às outras, a reverem alguns dos seus
eixos fundamentais ainda que em benefício do próprio curso. Enquanto permanecerem
inauditas, alheias a uma tentativa de consenso, o curso de Pedagogia continuará incerto,
vago, genérico.
Não que o debate e as discussões sejam prejudiciais, pelo contrário, são
indispensáveis numa sociedade democrática, plural e particularmente quando da definição
de linhas estruturais para um curso tão diversificado quer seja por seu vasto alcance
territorial, quer seja por suas amplas funções como é a Pedagogia. O penoso é discutir
sem abertura, sem possibilidade de ampliar ou mudar posições. Como defensores da
Pedagogia sabemos a importância e necessidade de um diálogo construtivo, que
constantemente reestruture convicções enraizadas e que como síntese aponte para caminhos
novos e transformadores.
2.2 O pedagogo e a música: abertura e possibilidades dialógicas
A análise histórica da educação musical no Brasil, realizada no capítulo anterior, fez
emergir uma constatação importante: de que a música freqüentemente marca presença no
universo da escola regular brasileira, porém com objetivos próprios de cada tempo/ espaço/
instituição escolar, em diferentes intensidades, de vários modos, ora devido a
determinações legais, ora pela consciência de suas contribuições para o desenvolvimento
dos alunos. Em menores proporções, foi possível verificar a música em cursos de formação
de professores para Educação Infantil e primeiras séries do Ensino Fundamental, presença
que também se relaciona com objetivos e concepções das instituições formadoras, bem
como com documentos oficiais que determinam (ou não) a música nestes cursos.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional lei 9.394/96 regulamenta o
ensino da arte como disciplina obrigatória nos vários níveis da Educação Básica (art. 26,
parágrafo 2º) e o PCN Arte acrescenta que tal disciplina deve ser contemplada tendo em
vista as especificidades das diferentes linguagens (artes visuais, dança, música e teatro), de
acordo com a realidade de cada escola: “não são definidas aqui as modalidades artísticas a
serem trabalhadas a cada ciclo, mas são oferecidas condições para que as diversas equipes
possam definir em suas escolas os projetos curriculares” (p. 55).
A música apresenta-se duplamente diluída: primeiro dentro do campo maior da arte,
depois como modalidade artística que pode (ou não) ser trabalhada segundo as aspirações
de cada escola. A música constitui-se em conteúdo curricular potencial e sua efetivação no
espaço escolar passa a depender de inúmeros fatores, inclusive da existência de
profissionais comprometidos com o ensino musical na escola regular.
Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia
acontece algo similar. Segundo o documento, o pedagogo precisa estar apto a trabalhar
didaticamente conteúdos da arte, entendida como campo de conhecimento imprescindível
em sua formação inicial. A preparação em arte deveria pressupor o conhecimento dos
conteúdos, métodos e especificidades próprios de cada modalidade artística - música,
teatro, dança e artes visuais - mas a regulamentação não é clara neste sentido. A música está
dissolvida na área da arte, é conteúdo curricular potencial cuja materialização depende das
intenções da instituição formadora e da existência em seu quadro docente de profissionais
devidamente capacitados para ministrá-la.
São atividades comuns nas escolas, especialmente na Educação Infantil e séries
iniciais do Ensino Fundamental, ouvir música na entrada, na saída, no recreio, em
festividades e também cantar durante o lanche, em momentos de higiene pessoal, em uma
eventual oração ou numa brincadeira. Segundo Souza et al. (2002), a prática da música na
escola pode ocorrer com várias finalidades, das quais destacam-se: como terapia; como
auxiliar no desenvolvimento de outras disciplinas; como mecanismo de controle; como
prazer, divertimento e lazer; como meio de transmissão de valores estéticos; como meio de
trabalhar práticas sociais, valores e tradições culturais dos alunos e, por fim, como
disciplina autônoma. De acordo com a autora, os primeiros motivos, que tomam como
suporte valores extrínsecos da educação musical, parecem imperar. A música é
fundamentalmente percebida como recurso, por vezes é reconhecida como área do
conhecimento, mas mesmo quando isto acontece grande dificuldade em delineá-la em
termos de conteúdos, metodologia e referenciais particulares. Desse modo, Souza et al.
(2002) concluem:
... a música parece ser valorizada pelo que ela possui de comum com outras
disciplinas em relação a metas e objetivos gerais do processo educacional. Isso
sugere que a música não parece se justificar por seu caráter único, como área do
conhecimento, disciplina ou conteúdo curricular específico ... (p. 70).
Loureiro (2003) também verifica a presença da música permeando as mais diversas
atividades e, por outro lado, seu silenciamento enquanto disciplina autônoma na escola
regular. A autora defende que o necessário enfrentamento deste paradoxo deve ser
precedido do entendimento sobre o papel e significado do ensino musical na educação
escolar: ... embora a música esteja presente no cotidiano da escola, questões precisam ser
esclarecidas para entendermos o porquê da ausência do ensino sistemático da música e do
lugar que ela vem ocupando no cenário educacional brasileiro” (p. 13). O próprio
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI/ MEC) confirma essa
realidade: “a música, no contexto da Educação Infantil vem, ao longo de sua história,
atendendo a vários objetivos, alguns dos quais alheios às questões próprias dessa
linguagem” (1998, p. 47).
De fato, para inserção da música como disciplina curricular ou como área do
conhecimento no projeto pedagógico das instituições escolares, inúmeras questões precisam
ser explicitadas tanto sob a forma de discussões, quanto em termos de propostas e
encaminhamentos de ordem legal e institucional. É preciso, por exemplo, ter clara a
especificidade da educação musical escolar: seus conteúdos, objetivos, metodologia.
Interessantes também são algumas experiências localizadas que instituíram a música como
área do conhecimento específica e que muito podem contribuir para novas ações, quer
sejam restritas a um contexto educacional específico, quer sejam com proporções mais
alargadas, até mesmo nacionais.
Igualmente importante é a existência de profissionais aptos a ministrar o ensino
musical escolar, ou seja, capazes de desenvolver um trabalho relevante, integrador e
produtivo com a música no ambiente desafiador da escola regular. Segundo Mateiro (2003),
“a Lei 9.394/96 não estabelece, no que se refere ao ensino de música, como ele
efetivamente se concretizará e quem será o profissional responsável por tal área do
conhecimento” (p. 34). A LDB 9.394/ 96 por ser uma lei nacional e por isto mesmo
abrangente não comporta o esclarecimento deste tipo de minúcia. O cerne da idéia da
autora é a necessidade em elaborar algum dispositivo que deixe explícito o profissional
responsável pelo trabalho com a música nos diversos níveis da educação básica, o que
ainda inexiste.
Para o trabalho musical junto à Educação Infantil e séries iniciais do Ensino
Fundamental, a indefinição supracitada suscita, basicamente, duas possibilidades: a ação do
especialista em música (licenciado em música)
21
ou do pedagogo (habilitado a trabalhar
21
Os cursos que formam os licenciados em música funcionam com inúmeras nomenclaturas e diversificadas
habilitações. A título de exemplo, na região Centro-oeste existe: Licenciatura em Música; Música
Licenciatura com habilitação de Educação Musical; Educação Musical Licenciatura com habilitação em
canto, instrumento musical (piano, violão, violino, viola, violoncelo, contrabaixo, flauta transversal, clarineta,
fagote ou trombone) ou ensino musical escolar.
com todas as disciplinas nos referidos níveis escolares). Neste campo, são ferrenhas embora
recentes as discussões sobre qual destes profissionais deve ensinar música para os anos
iniciais da escolarização. Atento a estes desdobramentos, Figueiredo (2004) alerta sobre “a
necessidade da área de educação musical assumir também a discussão da formação de
professores para as séries iniciais sejam eles especialistas ou não” (p. 55). O debate, tendo
em vista as interfaces existentes entre a educação musical e a Pedagogia, também precisa
ser extensivo aos envolvidos com esta última área, de modo que as decisões sejam tomadas
no plano democrático de um diálogo construtivo.
Diante deste quadro, emergem questões polêmicas como: afinal, quem deve
ministrar o ensino de música: o especialista ou o pedagogo? Quais os limites e as
possibilidades da ação de cada um destes profissionais? A formação que possuem permite a
eles uma atuação eficaz no ensino de música na escola? É possível um trabalho conjunto
entre especialistas e pedagogos no espaço escolar? Assumir, debater e posicionar-se diante
destes questionamentos torna-se crucial para a efetiva presença da música na escola regular,
que depende duplamente da atuação e da formação do profissional para ministrá-la.
Ao realizar entrevistas com professores e membros da administração escolar das
séries iniciais do Ensino Fundamental visando responder à indagação sobre quem deve
ministrar música neste nível, Souza et al. (2002) constataram que:
... para a maioria das professoras e membros da administração escolar
entrevistados, as aulas de música nas séries iniciais deveriam ser ministradas por
um professor especialista (...), argumentando que a música é uma área de
conhecimento específico, uma disciplina com contornos próprios e, como tal,
deve ser ensinada por profissionais específicos (p. 73).
Nesta direção, Cereser (2004) defende a necessidade de preparar professores
especialistas em música para atuar direta e efetivamente nos contextos pedagógico-musicais
escolares. Segundo a autora, a formação oferecida pelas universidades não condiz com o
que os licenciados vão encontrar na realidade escolar e, por isto, deve ser revista numa
perspectiva mais crítica, com uma concepção mais abrangente acerca do professor de
música. Cereser conclui fazendo um chamamento contundente:
... uma grande necessidade, neste momento, de nós, educadores musicais,
fortalecermos o espaço escolar (...). É preciso formar e inserir os licenciados
nesses espaços de modo que consigam interagir com as concepções atuais de
educação, de educação musical, de música, de escola e de currículo. Além disso,
devem saber de forma competente e fundamentada, defender e valorizar a
inserção da música no currículo escolar em todos os níveis da educação básica;
devem também, ter conhecimentos pedagógico-musicais para proporcionarem
aos seus alunos experiências musicais de maneira complexa e significativa
(ibid., p. 29).
Em pesquisa realizada com coordenadores e professores de música/ artes em cursos
de Pedagogia, Figueiredo (2004) constatou opiniões divergentes daquelas trazidas por
Souza et al. (2002). Ao discutir os resultados, o autor menciona que “o professor
especialista para os anos iniciais foi considerado pela grande maioria dos entrevistados
como sendo um profissional inadequado, pois contribui para a fragmentação curricular” (p.
58).
Muitos professores, gestores, pedagogos e educadores musicais acreditam na
suficiência da ação do especialista em música junto às séries iniciais da escolarização. Isto
porque a Educação Básica é real campo de trabalho para os egressos da licenciatura em
música que, ademais, possuem formação específica e dominam conteúdos, métodos e
referenciais próprios da educação musical. Por outro lado, vários professores e
pesquisadores apontam o trabalho solitário do especialista que, devido as particularidade de
sua área, deixa de partilhar experiências, trocar idéias com os colegas, tornando sua prática
desvinculada dos demais conhecimentos desenvolvidos pelo pedagogo em sala de aula.
Neste sentido, Bellochio (2001) provoca: “bastam 45 minutos de aula de música semanais,
de modo desarticulado dos demais conhecimentos que estão sendo trabalhados pelos
professores, para potencializar a educação musical na escola?” (p. 45).
Outro ponto problemático do exercício do especialista nas séries iniciais da
Educação Básica, diz respeito a uma questão de ordem conjuntural: seu pequeno
compromisso para com este espaço de trabalho. Em pesquisa realizada com licenciados em
música de instituições públicas de ensino superior do Rio Grande do Sul, Cereser (2004)
chegou a um quadro alarmante, que embora localizado reflete a situação de muitos destes
profissionais no Brasil. Segundo dados colhidos pela autora, 71,42% atuam como
professores de instrumentos e apenas 14,28% como professores de música (musicalização,
iniciação musical, educação musical). Dos 35,71% que afirmaram atuar nas escolas
regulares, somente 40% estão em sala de aula, os demais atuam em atividade extra-classe
como oficinas, corais, bandas. A autora atribui este descompasso principalmente à maneira
como os especialistas são preparados nos cursos de licenciatura, afirmando:
... os licenciados apontam que o curso não os está preparando de forma adequada
para o trabalho com a realidade pedagógico-musical na escola, mas para com
uma “realidade” onde os alunos “gostam” e “querem” ter aulas de música (...).
Ao receberem esse tipo de preparação, que pressupõe o trabalho com crianças
que gostam de música, a prática dos licenciados dentro da realidade escolar,
onde nem todos “gostam de música”, transforma-se, muitas vezes em uma
experiência frustrante. Dessa forma, poderá ocorrer desinteresse em atuar no
contexto escolar dentro da sala de aula (ibid, p. 33).
Pesquisas demonstram que os licenciados em música relutam em admitir a escola
regular como campo de trabalho seu (NOGUEIRA, 1994; PENNA, 2002, 2004b;
CERESER, 2004). A prática pedagógico-musical a ser implementada nas salas de aula
deste espaço requer do profissional um compromisso diferenciado, muitas vezes maior
daquele demandado pelas escolas de música especializadas. De início, o licenciado precisa
sensibilizar os alunos para o “gostar de música”, através de propostas pedagógicas e
metodológicas adequadas ao contexto escolar e sua clientela. Necessita, também, saber
lidar com a freqüente falta de recursos materiais, cuja importância é sabida para o trabalho
musical, mas que, ao mesmo tempo, não pode invalidá-lo, exigindo do profissional a busca
de saídas criativas.
A escola regular é fundamentalmente o palco do desafio e, como tal, solicita do
especialista uma postura de enfrentamento, de luta em prol da formação geral e musical do
educando, em favor da democratização da cultura e, especialmente, para que a música
ocupe o lugar que lhe é devido, sendo reconhecida e valorizada como disciplina autônoma
no currículo escolar. Nada disto pode ser feito sem um sério envolvimento do professor
para com o projeto pedagógico da escola, para com os alunos e com uma proposta
democratizadora de educação musical.
É lugar comum atribuir à pequena penetração do especialista em música na escola
regular, a preparação insuficiente recebida durante sua formação inicial. Isto de fato
acontece, também porque muitos professores dos cursos superiores não conhecem o
funcionamento por nunca terem atuado em escolas regulares. Além disto, vale lembrar que
os demais licenciados – em matemática, física, letras e todos os outros - não são preparados
para atuar na Educação Infantil, nem nas séries iniciais, por que seria diferente com os
licenciados em música?
Acrescido ao problema da formação inicial, está o da formação continuada e do
próprio compromisso dos especialistas para com o ensino musical escolar. Neste sentido,
faz urgente o envolvimento de todos universidades, professores formadores, licenciados,
pesquisadores, gestores e coordenadores dos cursos para reconhecer a importância do
trabalho musical junto à escola regular rompendo o círculo vicioso, por um lado, da
reduzida presença da música na escola e, por outro, da tendência de preferência pela
atuação profissional em escolas de música especializadas, o que resulta em um
descompromisso da área com a escola regular de Educação Básica” (PENNA, 2004b, p.
10).
Ainda que houvesse uma forte mobilização da classe profissional dos educadores
musicais que viesse a resolver satisfatoriamente os problemas acima mencionados, uma
questão estrutural inviabilizaria a concretização da música ministrada por especialistas: a
carência de professores com formação específica em número e disponibilidade suficiente
para o exercício em todos os níveis da Educação Básica. A título de exemplo, na região
Centro-Oeste existem 75 universidades que oferecem a licenciatura em Pedagogia e apenas
3 que dispõem de cursos para formar licenciados em música para atuação em toda a região,
seja em conservatórios, escolas especializadas particulares e públicas, ou ainda em escolas
regulares (MEC, 2006). Existem localidades onde tal índice é ainda mais incongruente e
outras que dispõem de mais cursos, mas mesmo nestas o número de especialistas está longe
de ser suficiente para suprir o exercício em todas as classes da Educação Básica.
Portanto, é preciso buscar novos caminhos para o ensino de música nas escolas
regulares brasileiras, redimensionando a figura do profissional que deve ministrá-lo.
Nesta direção, estudos e pesquisas que buscam alternativas eficazes para esse
contexto escolar [educação básica] (...), que apontam possibilidades para ampliar
a presença da música nas escolas, por intermédio dos professores das séries
iniciais do ensino fundamental, através da inclusão da música nos cursos
superiores de Pedagogia e/ ou do trabalho conjunto do professor com formação
específica e dos professores das séries iniciais (PENNA, 2002, p. 18).
A atuação como docente em todas as áreas da Educação Infantil e séries iniciais do
Ensino Fundamental é atribuição legalmente estabelecida para o pedagogo (art. 4º,
Resolução CNE/ CP 1/ 2006). Cabe a ele a prática educativa com as diversas linguagens
utilizadas pelas crianças, adolescentes, jovens, adultos e o trabalho didático com todos os
conteúdos pertinentes aos primeiros anos de escolarização: língua portuguesa, matemática,
ciências, história, geografia, educação física e artes em suas quatro modalidades: teatro,
dança, artes visuais e música (art.; inciso I; alíneas e,i; Resolução CNE/ CP 1/ 2006).
Dessa forma, sim a determinação legal de que para os anos iniciais, a música deve ser
ensinada pelo pedagogo.
Apesar disto, são vários os limites deste profissional no tocante ao ensino musical
escolar. Corrobora para tal, a insuficiência da formação inicial, o não investimento em
cursos de formação continuada visando à preparação artística em geral e à preparação
musical em particular e uma defasagem em termos de conhecimento musical específico,
fruto de todo o processo de escolarização deste professor, que provavelmente o privou de
uma educação musical sistemática. É mais um círculo vicioso a ser rompido: carência
formativa que solapa a música do contexto da escola regular, que contribui para novas
carências formativas.
Figueiredo (s.d) faz uma análise importante da formação inicial do pedagogo no que
se refere à música. De modo geral, percebe que a preparação musical tem sido superficial e
insuficiente para habilitá-lo a trabalhar com a música na escola. Segundo informações
trazidas pelo autor, as disciplinas relacionadas à arte/ música não oferecem bases seguras
para sua utilização na escola. Além disto, uma ausência importante de profissionais da
música atuando em cursos de Pedagogia. Outro empecilho verificado pelo autor diz
respeito ao fato de muitos pedagogos, assim como muitos licenciados em música,
acreditarem na necessidade de talento para aplicar questões artísticas e musicais em suas
classes. Esta concepção coloca a arte e a música numa espécie de limbo acessível apenas a
alguns poucos privilegiados. Importante é que tal visão já vem sendo questionada e até
mesmo revertida tanto por educadores musicais quanto por pedagogos comprometidos com
um projeto não elitista e não excludente de cultura, de arte e de ensino.
Como fruto de suas pesquisas, Souza et al. (2002) constatam que muitos pedagogos
apreendem como utópico o trabalho didático com todas as áreas, incluindo a música, no
universo escolar. Assim, embora se percebam enquanto formadores generalistas, não
acreditam na viabilidade prática do seu fazer. As autoras polemizam este entendimento
argumentando que “talvez não seja uma situação utópica, apenas uma situação que exige
iniciativas e investimentos” (ibid., p. 75).
O mapeamento dos limites do pedagogo para o ensino musical escolar não pode
levar ao descrédito quanto ao seu potencial em exercê-lo. A constatação de algumas das
problemáticas advindas da relação entre o pedagogo e a música é importante quando não se
torna um fim, mas um meio para novos debates, ações e propostas que visem redimensionar
a formação e a atuação deste profissional no que se refere à linguagem musical. Enfim,
embora consciente da necessidade de superação de certos impasses, acreditamos na
viabilidade do pedagogo, se bem preparado, em realizar a educação musical nas séries
iniciais da escolarização. Neste sentido, concordamos com Bellochio (2001):
É nesse horizonte de conhecimento dos processos educativos que entendo a
importância do professor de SIEF [séries iniciais do ensino fundamental]
ensinando Música, com limites, mas com possibilidades concretas de mediação
de uma formação humana maior de seus alunos... (p. 46).
A prática profissional do pedagogo caracteriza-se por seu caráter multiface à medida
que pressupõe o trabalho didático com conteúdos, métodos e processos avaliativos de
diferentes disciplinas. O pedagogo exerce um fazer profissional generalista e integrador
objetivando, fundamentalmente, o desenvolvimento plural dos seus alunos nos campos
cognitivo, afetivo, cultural, artístico... Sua capacidade em promover o entrelaçamento entre
diferentes áreas do saber escolar, sem perder de vista as particularidades de cada um delas,
possibilita que o ensino musical seja pensado tanto em seu caráter específico quanto com as
relações inter e transdisciplinares com outros conhecimentos. Deste modo, ministrada por
pedagogos, a música tem maior possibilidade de transcender a apenas uma aula semanal
desvencilhada dos demais conteúdos trabalhados com os alunos, tornando-se elemento, ao
mesmo tempo, autônomo e integrador do projeto pedagógico da escola.
Para que isto aconteça são necessários investimentos: “é preciso investir nas
capacidades e possibilidades de desenvolvimento musical do professor das séries iniciais”
(SOUZA et al., 2002, p. 76). Os esforços podem se concentrar em várias frentes, inclusive
na formação musical do pedagogo, cuja defesa tem se constituído em motivo de muitas
pesquisas da área de educação musical. A este respeito, Beaumont (2004) argumenta sobre:
... a necessidade de que a formação musical esteja inserida no contexto atual de
reflexão crítica e de propostas consistentes de formação de professoras e
pedagogas/ os. Esses cursos poderiam trabalhar de modo que os saberes e
práticas musicais docentes sejam incorporados aos processos de formação (p.
53).
Também Bellochio (2003) pondera que,
... é preciso possibilitar formação em educação musical, ao professor unidocente,
por meio de atividades práticas e teóricas, acreditando na sua possibilidade de
trabalhar da melhor forma possível junto a seus alunos. É claro que existem
limites, sobretudo quanto ao domínio do conhecimento musical. A lógica de que
não se ensina o que não se sabe também é evidente, o que implicaria ao
unidocente saber muita música (...) Se quisermos que a educação musical,
efetivamente, passe a fazer parte de nossas salas de aula, parece-me que o
conhecimento acerca da área é de fundamental importância para este profissional
(p. 20-21).
Munir o pedagogo de conhecimento musical torna-se imprescindível para seu
trabalho didático com a música nas séries iniciais da escolarização; para sua constituição
profissional que, multifacetada, presume o aprendizado de conteúdos pedagógicos,
psicológicos, sociológicos, filosóficos, culturais, artísticos e musicais; e, não obstante, para
sua formação pessoal.
Para ensinar é preciso conhecer e ainda transformar o conhecido em algo passível de
ser compreendido por outro. Desse modo, para ensinar música, o pedagogo necessita saber
os conteúdos, processos, métodos e referenciais próprios da educação musical, além do que
realizar a transposição didática de todo este aparato, transformando-o em conhecimento que
possa ser apreendido pelos alunos. O professor precisa conhecer e trabalhar
pedagogicamente com atividades próprias da área como, por exemplo, a experimentação
musical, o canto, a apreciação, a produção de ambientações sonoras, composições/
improvisações e até mesmo utilizar grafias musicais não convencionais, para citar algumas
possibilidades.
A base da identidade do pedagogo, em conformidade com a lei e as concepções do
movimento de educadores, é a docência em vários campos do saber para a Educação
Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. Sua identificação profissional advém, pois,
da multiplicidade de conhecimentos adquiridos durante seu processo formativo e ao longo
do seu fazer. Ambos, ambivalentes, requerem abrangência e profundidade. Seguindo o
raciocínio, quanto mais vasto for seu repertório, quanto mais profundamente conhecer, mais
competente tende a ser sua prática e melhor delineada sua feição de professor/ pedagogo.
Nesta acepção, o conhecimento musical também se mostra como facilitador “da
compreensão dos processos de ensino e aprendizado” (MATEIRO, 2003, p. 35-36),
podendo contribuir para uma prática pedagógica reflexiva e para “o alavancar de novos
processos de compreensão relativos à profissão do professor” (BELLOCHIO, 2001, p. 42).
Além disto, a formação em música constitui-se em rica experiência pessoal para o
pedagogo que conhecendo seus processos estruturais e formais desenvolve uma nova
relação com o que ouve. As obras (eruditas ou populares) começam a passar por uma
audição mais ativa e crítica, por uma escolha mais seletiva. Ao desenvolver a percepção
musical, a criticidade com o que “gosta” ou não de ouvir, ao se envolver em atividades de
criação e improvisação, o pedagogo percebe mais claramente seu potencial inventivo, vital
para um exercício docente transformador e reflexivo que pode encontrar na arte e na
música, fonte de inspiração e razão de ser.
Assim,o professor generalista deve receber formação para compreender processos
artísticos no desenvolvimento da atividade escolar, mesmo quando existe o professor
especialista para estas áreas” (FIGUEIREDO, 2004, p. 60). A formação musical não é
apenas pragmática, ou seja, para preparar o pedagogo para o ensino musical nas séries
iniciais da escola regular. De modo amplo, significa um novo olhar sobre a formação
pedagógica e profissional do professor, ou melhor, uma concepção formativa original
visando à constituição de indivíduos mais críticos, sensíveis e criativos.
Depois de explicitada a importância da formação musical para o pedagogo, uma
questão fundamental emerge, desdobrando-se em outras derivadas: como propiciar ao
pedagogo a formação em música? Em que âmbitos/ níveis/ espaços tal formação pode
acontecer? Existem prerrogativas para sua concretização? Como viabilizar uma formação
musical produtiva, ou seja, que forme efetivamente o pedagogo, habilitando-o a trabalhar
com a linguagem musical no cotidiano da escola regular?
Em sua tese de doutorado, Nogueira (2002) propõe algumas alternativas que
possibilitam traduzir a preocupação com a formação cultural - nela inserida a preparação
musical - nos currículos de cursos de formação de professores. Inicialmente, a autora
analisa como possibilidade o próprio professor se incumbir de sua formação cultural, o que
eximiria a instituição formadora de tal tarefa, todavia demonstra que a formação por conta
própria dificilmente acontece. Assim, demonstra como proposta possível, a inclusão de
atividades culturais no currículo - sob o formato de disciplina ou componente curricular
obrigatório - ou ainda a construção de um projeto de curso no qual a formação cultural
permeasse todas as disciplinas e fosse responsabilidade de todos os professores formadores.
Uma outra alternativa, já no âmbito da formação continuada, seria de prevê-la no projeto
político pedagógico da escola onde o pedagogo atua, o que promoveria a formação cultural
tanto dos professores quanto dos alunos.
Figueiredo (2004) também aponta para a necessidade de os cursos de Pedagogia
conferir importância à formação em arte, ainda percebida como forma de entretenimento ou
como facilitadora de aprendizagens de outros conteúdos. Neste sentido, comenta sobre a
carga horária das disciplinas artísticas, que precisariam ser ampliadas e sobre os professores
formadores, fazendo um chamamento para que os profissionais das artes venham a
contribuir de forma efetiva nos cursos de Pedagogia.
Ao tratar de sua experiência, Bellochio (2001) traz considerações importantes sobre
o teor da formação musical voltada aos pedagogos. Para a autora, as disciplinas
relacionadas com a música nos cursos de Pedagogia precisam integrar reflexões e
realizações em educação musical, de modo que os alunos tenham formação tanto teórica
quanto prática. Também enfatiza a necessidade de um exercício colaborativo entre os
graduandos e professores atuantes para que o ensino de música seja guiado por desafios
reais, produzindo saberes concretos frente à complexa realidade educacional. Em outro
texto, Bellochio (2003) demonstra as contribuições da pesquisa em virtude do seu potencial
em impulsionar o pedagogo à novas buscas, à pensar com rigor e seriedade sobre os
problemas concretamente vividos no campo da educação musical escolar.
As propostas para a formação musical do pedagogo são dirigidas principalmente
para o âmbito da graduação, com disciplinas/ projetos que valorizem a música como campo
do conhecimento com contornos próprios e contribuições essenciais para a formação
pessoal e profissional dos alunos (futuros professores): “... penso que seria fundamental que
as experiências estéticas fossem relevantes, que não fossem apresentadas aos alunos
(futuros professores) como acessórias, meros ornamentos no currículo. Elas precisam ter o
mesmo peso de outras disciplinas e atividades, consideradas básicas no currículo”
(NOGUEIRA, 2002, p. 103).
A preparação em serviço ou em cursos para capacitação continuada também é
considerada vital para a formação musical do pedagogo, porém como motor gerador de
novos saberes aliados àqueles internalizados durante o processo de formação inicial.
Neste sentido, o pedagogo e a música precisam construir um laço forte e contínuo para se
potencializarem mutuamente, oferecendo, assim, uma formação integral que desenvolva
holisticamente todo o potencial humano dos alunos das séries iniciais da escolarização.
A aliança entre o pedagogo e a música é ainda mais fecunda quando se torna
tríplice, ou seja, quando do envolvimento de mais um componente: o especialista em
música. A presença mediadora deste profissional é essencial não durante a formação
musical no curso de Pedagogia ou em propostas de capacitação continuada, como também
no momento em que o pedagogo irá atuar com a linguagem musical no cotidiano escolar.
Neste ambiente, ambos podem travar uma relação de parceria que, fruto da troca de
colaborações, tornaria o ensino de música coerente com as peculiaridades do corpus
epistemológico da educação musical, integrado aos demais conteúdos e democratizado nas
classes de Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental.
Alguns pesquisadores mencionam esta aliança, entretanto poucos se detêm em sua
análise. Bellochio (2001) se dispõe a refletir sobre o teor da parceria entre o pedagogo e o
especialista em música, afirmando:
Uma possibilidade que vejo é a da articulação mais consciente, crítica e madura
entre o professor atuante nos anos iniciais da escolarização e os profissionais
especialistas no ensino de Música. Longe de pensar que o professor destes anos
poderá substituir o professor especialista, acredito na construção de um trabalho
mais colaborativo, que possa articular melhor a atuação desses profissionais da
educação na escola (ibid., p. 45-46).
Nogueira (1994) é mais explícita no que diz respeito ao modo como tal parceria se
concretizaria no cotidiano escolar. Segundo a autora,
... toda escola deveria contar com um professor de Música que, além de atuar
diretamente em sala de aula na fase do ensino fundamental, seria o orientador
responsável pela Educação Musical no restante das classes. Caberia a ele
organizar, juntamente com os professores regentes, os procedimentos e os
objetivos a serem alcançados. Poderia ele também ministrar cursos de
aprimoramento para os professores da 1ª fase do ensino fundamental, dando-lhes
noções elementares de Música. Além disso, seria o responsável pela organização
de corpos estáveis tais como corais, pequenos conjuntos instrumentais, bandas
ou fanfarras (ibid., p. 90).
Vecchi (1999) ao descrever suas atividades como educadora artística na pré-escola
de Reggio Emilia em muito contribui para o delineamento da noção de parceria aqui
trabalhada. A educadora descreve as funções do atelier, um espaço localizado no interior da
escola visando incrementar o fazer artístico e discussões sobre a arte. Nele, as crianças
entram em contato com os mais variados tipos de técnica (pintura, desenho, trabalho com
argila) e os professores ao observarem atenta e criticamente o fazer dos alunos colhem
dados para discussões e reflexões futuras. O atelier também se presta a documentar a
produção do alunado, informando ao público os conteúdos artísticos implementados na
escola.
O trabalho com a arte se atenta para as particularidades do universo e do
pensamento infantil. As crianças são a todo o tempo convidadas a observar com atenção a
realidade para representá-la graficamente de modo particular e criativo. Vecchi aponta que
o prazer e a diversão permeiam todas as atividades realizadas pelos alunos que são
estimulados a desenvolver um processo autodirigido de aprendizagem. Outro ponto
importante é a formação de “grupos de companheiros”, nos quais as crianças trabalham de
modo coletivo, isto é, observam, analisam e concluem dialogando com o outro, construindo
e ampliando seus referenciais a partir do confronto de idéias e hipóteses com seus pares.
Cada atelier conta com um atelierista cujo papel é garantir a circulação constante de
idéias e realizações artísticas na escola. O atelierista se incumbe, por exemplo, de conduzir
grupos de discussão (onde dúvidas e problemas concretos enfrentados pelos professores são
debatidos conjuntamente), bem como da coordenação de projetos artísticos, da prestação de
consultoria junto às classes e, inclusive, do trabalho sistemático para a formação artística
continuada dos professores. Em seu exercício como atelierista, Vecchi atesta que se
encontra várias vezes ao dia com os colegas professores. Sua rotina é, basicamente, a
seguinte: no começo da manhã faz uma ronda por todas as salas de aula para se inteirar das
atividades que estão ocorrendo, muitos professores aproveitam para tirar dúvidas ou
solicitar sugestões; no meio da manhã faz outro circuito, agora focando alguma classe onde
esteja acontecendo algo particularmente interessante ou, por vezes, atende a um pedido
prévio para visita; ao final da manhã encontra pelo menos quinze minutos com cada
professor e, com freqüência, reúne todos em um grupo de discussão.
A atuação precípua do atelierista ocorre com o professor, com quem desenvolve um
trabalho cooperativo de aprendizado e de reflexão crítica sobre o fazer e o pensar artístico
das crianças. Também cabe ao primeiro a implementação de programas para a formação
artística continuada, pretendendo ampliar os conhecimentos dos professores sobre a área.
Tanto o atelierista quanto os professores participam ativamente na construção e efetivação
de propostas para o ensino de arte, cada qual com contribuições oriundas de sua formação e
vivência profissional. Assim sendo, é proposto um processo contínuo de comunicação e
troca de idéias que visa, em última análise, ao desenvolvimento de todos (alunos,
professores e atelierista) e, mais ainda, à valorização da educação artística e,
especialmente, das artes visuais como importante área do conhecimento, imprescindível
para a formação integral dos alunos.
Nesta prática colaborativa, cada participante tem clara sua função particular com a
certeza de poder contar com o outro: os professores são responsáveis pela prática
pedagógico-artística junto aos alunos e o atelierista pela gerência democrática da arte na
escola. Isto não pressupõe uma relação hierárquica, mas sim uma estrutura onde cada
profissional tem seu papel definido, envolvendo-se colaborativamente para a consecução de
objetivos comuns. Com esta amplitude e profundidade, o método de trabalho pressupõe a
união, além de uma grande dedicação e vontade de aprender de todos.
A experiência de Vecchi com as artes visuais na pré-escola, lança luz sobre alguns
contornos possíveis da parceria entre o pedagogo e o especialista em música, tendo em
vista potencializar a educação musical em classes de Educação Infantil e séries iniciais do
Ensino Fundamental. Segundo o dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o termo parceria
significa reunião de pessoas para um fim de interesse comum; sociedade, companhia”. De
fato, o trabalho entre o pedagogo e o especialista em música no ambiente escolar precisa ser
construído com base em princípios como a colaboração e a criticidade para que seja
atingido o objetivo comum de proporcionar aos alunos uma educação musical de qualidade.
A noção de colaboração traz consigo uma visão horizontal da relação entre estes
profissionais, ou seja, não diferença de importância ou de valor entre eles. Com suas
respectivas funções, ambos são indispensáveis para o sucesso do projeto de educação
musical na escola. Mas, para isto, é necessária a implementação de um método de trabalho
onde a troca de idéias e experiências seja o fundamento principal, permeando o desenrolar
de todas as atividades. Assim, os profissionais envolvidos precisam enfrentar os conflitos e
possibilidades da parceria, valendo-se do diálogo, do confronto de idéias e do exercício
constante para se chegar a um nível de consenso. A viabilidade e produtividade da parceria
dependerão sempre da troca, que pressupõe uma disposição constante em aprender, em
rever opiniões, em construir propostas acordadas e acreditadas por todos.
A materialização de idéias sobre o ensino musical na escola depende da explicitação
dos papéis próprios dos pedagogos e do especialista em música. Antes de qualquer
consideração a este respeito, é importante deixar expresso que cada contexto, ou seja, cada
realidade escolar conferirá aos profissionais um contorno particular. Aqui, o objetivo é
traçar um esboço, no sentido pictórico do termo, das funções de cada um deles, pois o
traçado definitivo dos papéis serão sempre talhados colaborativamente em cada contexto
escolar.
Na perspectiva da parceria, as atribuições do especialista em música em muito se
aproximam daquelas do atelierista mencionadas por Vecchi (1999). Logo, tal profissional
seria o responsável por garantir uma circulação constante de idéias e práticas musicais na
escola. Sua atuação direta se daria com os professores através da organização de grupos de
discussão, da criação e implantação de propostas para a formação musical continuada, de
prestação de consultoria para solucionar dúvidas e oferecer sugestões. Também poderia se
incumbir da ação imediata com os alunos em oficinas, atividades extra-classe, formando
corais, conjuntos instrumentais, bandas, dentre outros. Caso a escola ofereça níveis
escolares posteriores a séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio o
especialista poderia atuar como regente de classe.
Ao pedagogo caberia o ensino musical nas turmas, isto é, a atuação direta com os
alunos de modo a formar-lhes musicalmente. Tal como previsto pelas normas oficiais, este
profissional seria o docente responsável pela disciplina em classes de Educação Infantil e
séries iniciais do Ensino Fundamental. A construção do plano ou projeto de educação
musical seria tarefa realizada de modo cooperativo pelos pedagogos e pelo especialista em
música. A parceria tem início desde a concepção conjunta dos procedimentos e objetivos,
se fortalece quando da sua concretização e revigora-se na avaliação coletiva dos objetivos
alcançados e no debate de questões para novas propostas e idéias.
Uma faceta especialmente interessante da parceria diz respeito ao fato de
proporcionar a minimização dos limites de cada profissional e, ao mesmo tempo,
potencializar e ampliar suas contribuições. Dito de modo claro, os pedagogos podem
incrementar o entendimento pedagógico do especialista, e este reverter alguma falta de
conhecimento específico dos primeiros com relação à música. É realmente uma forma de
trabalho que valoriza o que cada um tem para oferecer, além de impulsionar novos saberes
e práticas originais.
Para a efetivação do trabalho colaborativo entre pedagogos e o especialista em
música é vital uma visão crítica e reflexiva sobre as interfaces entre a educação e a música.
Igualmente importante é o domínio de conteúdos, metodologias, referenciais e processos
avaliativos próprios da educação musical escolar. Em outras palavras, é necessário que
ambos possuam formação adequada nos respectivos cursos de graduação e em nível de
preparação continuada (em serviço, cursos de curta duração, eventos, pós-graduações).
Portanto, é preciso reverter o panorama dos cursos de licenciatura em música,
responsáveis pela formação inicial do especialista, que, em muitos casos, permanecem
resistindo em considerar a escola regular como campo de atuação profissional, diminuindo
a importância e especificidade do ensino musical escolar. É forçoso mudar a constatação
expressa por inúmeros pesquisadores e dita claramente por Machado (2004) de que “suas
formações não os têm preparado suficientemente para (...) os contextos escolares” (p. 43).
O êxito da parceria e a democratização da educação musical escolar dependem de uma
atuação competente do especialista, que não pode prescindir de uma formação inicial
qualificada.
Os cursos de Pedagogia também precisam se atentar para “... uma concepção de
música mais abrangente, de modo a sustentar uma nova postura pedagógica, comprometida
com a ampliação da experiência musical do aluno” (PENNA, 2002, p. 18). Mais uma vez
reitera-se a defesa em torno da formação em música do pedagogo tanto para fomentar o
trabalho colaborativo com o especialista quanto para um maior desenvolvimento da
educação musical nas escolas regulares brasileiras.
Nos referidos cursos, os conteúdos musicais precisam ser dimensionados de modo
que sejam reconhecidas suas especificidades e contribuições para a formação profissional e
pessoal dos alunos (futuros professores). A inserção da música, sob a forma de disciplina
ou permeando o projeto pedagógico do curso ou em outros formatos, proporcionará a
formação de indivíduos mais sensíveis e reflexivos que, por sua vez, contribuirão para a
formação de outros tantos alunos com referenciais musicais ampliados e, assim, com
capacidade de apreciar mais criticamente a música e o mundo. Justamente sobre a formação
musical oferecida em cursos de Pedagogia, com recorte especial na região Centro-Oeste, se
debruçará o próximo capítulo.
CAPÍTULO 3
A FORMAÇÃO MUSICAL EM CURSOS REGULARES DE PEDAGOGIA
“Com efeito, a música é um tipo de arte com imenso
potencial educativo que a par de manifestação
estética por excelência (...) apresenta-se como um
dos recursos mais eficazes na direção de uma
educação voltada para o objetivo de se atingir o
desenvolvimento integral do ser humano”
Saviani (2000).
No capítulo anterior discutiu-se em termos bibliográficos entraves e perspectivas da
educação musical em currículos de cursos de Pedagogia. Depois de explicitadas as idéias de
autores de referência, bem como a percepção da própria pesquisadora, ficou patente que o
ensino musical no referido curso possui funções múltiplas. Em primeiro lugar, ao munir o
pedagogo de conhecimentos consistentes sobre a educação musical e, assim, habilitá-lo
para uma atuação pedagógico-musical efetiva, estar-se-á contribuindo para a
democratização da música na escola regular. Em segundo lugar, a formação musical,
entendida como uma das várias áreas do conhecimento essencial para o “ser professor”,
concorre para o delineamento da identidade do pedagogo que se baseia no caráter
multifacetado dos seus saberes e fazer profissional. Em terceiro lugar, o ensino musical se
vale para a formação pessoal do pedagogo, tornando-o mais crítico em relação ao que ouve,
mais sensível às manifestações musicais diferentes daquelas do seu repertório, podendo
potencializar até mesmo o despertar para uma prática musical, seja em grupo ou
individualmente, vocal ou instrumental.
Neste sentido, a formação em música oferecida em cursos de Pedagogia pode ter
inúmeros fins, ora circunscritos aos significados e valores intrínsecos da música, ora
relacionados ao desenvolvimento de qualidades que transcendem a questões meramente
musicais. Isto porque, neste trabalho, a música é entendida:
... como dotada de uma dimensão política, como instrumento potencial de
transformação do homem e da sociedade, na medida em que, como as demais
formas de arte, ela contribui para a elaboração de um saber crítico,
conscientizador, propulsor da ação social, assim como para um aperfeiçoamento
ético individual (FREIRE, 1992, p. 14).
Ainda no capítulo anterior, foram descritas algumas possibilidades para a formação
musical do pedagogo: sob a forma de disciplina ou componente curricular obrigatório, em
disciplinas optativas ou ainda perpassando todo o projeto curricular da instituição
formadora. Além da formação nos próprios cursos de Pedagogia, a preparação em
serviço, em cursos de capacitação continuada de curta ou longa duração ou em programas
de pós-graduação. Quanto à formação inicial do pedagogo no tocante à linguagem musical,
temática centralizada nesta pesquisa, cada instituição em sua busca constante para
responder aos desafios educacionais suscitados durante o momento mesmo da prática
pedagógica pode criar formas alternativas para a inserção da música em seu currículo.
Nesta parte do trabalho, o foco se volta para a análise empírica da presença da
música em currículos de Pedagogia, com recorte especial para os cursos regulares
existentes na região Centro-Oeste
22
. Com isto, busca-se averiguar se a música de fato marca
presença em tais cursos, sob quais modalidades (disciplinas obrigatórias, optativas,
permeando todo o projeto pedagógico), com qual freqüência, com que carga horária, se
localizada a uma determinada etapa ou em vários momentos da formação. Enfim, o
objetivo fundamental do capítulo é mapear a realidade da formação musical em cursos de
Pedagogia da região Centro-Oeste, tendo em mente que o panorama ora traçado, embora
localizado, em muito pode contribuir para novos estudos e ações no sentido de potencializar
o ensino musical para pedagogos e, através deles, para os alunos dos primeiros anos da
escolarização. Interessante observar que outras pesquisas co-relatas, como a desenvolvida
por Figueiredo (2004) em 19 universidades da região Sul e Sudeste, também investigam a
formação musical oferecida em cursos de Pedagogia, com o intuito de discuti-la e até
mesmo redimensioná-la.
O primeiro passo para levar adiante este intento, foi consultar o site do Ministério da
Educação (MEC), especialmente a seção da Secretaria da Educação Superior (SESU) que
conta com um sistema de busca de cursos e instituições. Numa primeira exploração, foi
feito o exame de todas as Instituições de Ensino Superior (IES) da região Centro-Oeste:
chegou-se ao número total de 257 estabelecimentos de ensino, dentre os quais 73 ofereciam
o curso de Pedagogia em regime regular. Para validação destes dados, foi empreendida uma
outra busca, por curso, que conduziu à existência de mais duas instituições, sendo que uma
22
Não parece demais lembrar que a região Centro-Oeste é uma das cinco grandes regiões brasileiras
composta por quatro unidades federativas: Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. A
região ocupa 18,86% do território brasileiro, com uma área total de 1.612.077,2 km
2
.
delas possuía dois campi independentes situados em diferentes unidades federativas da
região. Somando-se todas as informações obtidas, atingiu-se o número total de 76
instituições que oferecem o curso de Pedagogia em regime regular na região Centro-Oeste.
Esta quantidade esrelacionada ao espaço de tempo em que foi realizada a pesquisa, entre
maio e setembro de 2006, e em momentos subseqüentes pode ser alterada em virtude da
extinção ou criação de novos cursos.
Após esta coleta prévia, iniciou-se uma procura minuciosa no site de cada uma das
76 instituições, visando encontrar informações gerais sobre os cursos, em especial suas
grades curriculares. Praticamente todos os estabelecimentos disponibilizam dados sobre a
graduação em Pedagogia via internet, em menor número estão aqueles que permitem o
acesso às suas grades. Assim, das 76 instituições foi possível localizar o currículo de 56. O
estado que proporcionalmente mais os disponibilizou foi Goiás, seguido pelo Distrito
Federal, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul (ver tabela I). Importante mencionar que todas
as instituições de todas as unidades federativas foram contatadas via e-mail, onde se expôs
o tema, os objetivos, a importância das informações solicitadas para a continuidade da
pesquisa, além de assegurado um retorno do resultado final.
Tabela I: Instituições de Ensino Superior participantes da pesquisa
Unidades Federativas Quantidade total
de instituições
Quantidade de instituições
com grades curriculares
Valor
objetivo
Valor
percentual
Distrito Federal 19 14 73,7%
Goiás 23 21 91,3%
Mato Grosso 16 10 62,5%
Mato Grosso do Sul 18 11 61,1%
Total 76 56 ___
Fonte: Análise e cruzamento dos dados a partir das grades curriculares dos cursos de Pedagogia da região
Centro-Oeste.
Embora 56 Instituições de Ensino Superior tenham disponibilizado suas grades, o
total de currículos analisados chegou ao montante de 84 devido, dentre outros motivos, à
existência de várias habilitações do curso dentro de uma mesma instituição, o que acaba por
transformar a Pedagogia em Pedagogias, ou seja, cursos com enfoques extremamente
variados e, por vezes, divergentes. Isso ilustra em termos objetivos as inúmeras disputas
que marcaram o curso ao longo de sua trajetória histórica e em momentos recentes,
conforme relatado no capítulo anterior.
Com a posse de informações gerais sobre os cursos e tendo em mãos suas grades
curriculares foi possível verificar aspectos gerais sobre a graduação em Pedagogia num
primeiro momento e, conforme os objetivos peculiares do trabalho, averiguar a presença ou
não da música como área do conhecimento no currículo para a formação do pedagogo.
Assim sendo, o presente capítulo organiza-se em dois tópicos principais: o primeiro tratará
de fazer um mapeamento dos cursos de Pedagogia na região Centro-Oeste, enquanto que o
segundo se deterá especialmente na análise da formação musical proposta ou não por estes
cursos.
3.1 Mapeamento dos cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste:
modalidades formativas, habilitações, carga horária e duração
Este item tem por objetivo tratar de aspectos gerais dos cursos de Pedagogia da
região Centro-Oeste como: modalidades de formação, habilitações, carga horária e duração.
Para tal, será feito o cruzamento dos dados obtidos junto às instituições formadoras e
aqueles trazidos por documentos legais que versam sobre o assunto. Nesta etapa do relato,
achou-se por bem não particularizar, nem identificar os estabelecimentos de ensino, pois a
análise se propõe global, objetivando traçar um panorama regional e abrangente do curso.
De todas as 56 instituições investigadas, apenas duas possuem o curso de Pedagogia
como bacharelado. Uma delas, situada em Goiás, oferece esta modalidade de formação com
duas habilitações: Gestão Organizacional e Tecnologias Educacionais, com o intuito de que
seu egresso esteja apto a exercer atividades de suporte técnico-pedagógico e científico em
escolas, hospitais, indústrias, comércio, organizações não-governamentais e em todas as
equipes multidisciplinares compatíveis com a sua formação. Outra faculdade, sediada no
Distrito Federal, oferece o bacharelado em Pedagogia, deixando a licenciatura para o
Normal Superior, também ofertado pela instituição
23
.
A persistência do bacharelado, apesar de pouco expressiva, parece se justificar tanto
pela trajetória histórica inicial do curso quanto pela defesa contemporânea de Libâneo e
Pimenta (1999) em favor do pedagogo stricto sensu. De qualquer modo, a grande maioria
das instituições forma o licenciado em Pedagogia, titulação única estabelecida desde o
parecer CFE 252/ 69, defendida pela ANFOPE e suas antecessoras nas décadas de 1980
e 90 e reafirmada pelas novas regulamentações. A propósito, as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o curso de graduação em Pedagogia Resolução CNE/ CP 1/ 2006
estabelece que o curso deve conferir ao seu concluinte o grau de licenciado (art. 3º,
parágrafo único), sendo a Pedagogia uma licenciatura. Com esta determinação legal, é
quase certa a extinção, ainda que gradual, da modalidade de bacharelado, o que leva a crer
que as instituições acima descritas devem estar passando por profundos processos de
reformulação.
Se diferenças quanto às modalidades de formação, ao analisar as habilitações
oferecidas pelos cursos de licenciatura em Pedagogia, chega-se a uma diversidade
assustadora. Nas 84 grades curriculares investigadas, foi possível verificar a existência de
34 habilitações, diversas em nomenclatura e essência (ver tabela II). Sobre as habilitações,
os documentos mais atuais contêm contradições evidentes.
A LDB 9.394/ 96 em seu artigo 64 determina que “a formação de profissionais de
educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional,
será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da
instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional”. Desta forma,
apregoa que as habilitações podem ser oferecidas tanto em nível de graduação quanto de
pós-graduação desde que mantida a formação basilar na docência, pois “a experiência
docente é pré-requisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de
magistério ...” (ibid., art. 67, Parágrafo único).
As Diretrizes Curriculares Nacionais, em seu artigo 14, confirmam o conteúdo do
artigo 64 da LDB. Já no artigo 10, em franca contradição, apregoa que “as habilitações em
cursos de Pedagogia atualmente existentes entrarão em regime de extinção, a partir do
período letivo seguinte à publicação desta Resolução”. Em vista destes paradoxos, é
23
Ao revisitar o site deste último estabelecimento, no início de 2007, foi possível verificar a extinção do
bacharelado em Pedagogia e também do Normal Superior, sendo fixada a Licenciatura em Pedagogia para
atender às novas regulamentações das Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso.
possível identificar claramente uma indefinição quanto às habilitações e ao próprio curso de
Pedagogia. O documento parece delimitar o campo de trabalho do pedagogo: exercício da
docência na Educação Infantil, nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em curso Normal
de nível Médio, na Educação Profissional, na área de serviços e apoio escolar e em outras
áreas que prevêem conhecimentos pedagógicos. Todavia, ao considerar a possibilidade de o
curso formar o docente, o inspetor, o gestor, o orientador, o supervisor, dentre outros,
atribui a ele funções demasiadamente amplas e pretensiosas que acabam por tornar ainda
difusa a identidade do profissional formado. Portanto, até os dias de hoje cabe o
questionamento: afinal, quem é o pedagogo?
Ainda sobre as habilitações cabe demonstrar a presença contundente daquelas
criadas pelo parecer CFE 252/ 69: orientação educacional, administração escolar,
supervisão escolar, inspeção escolar e ensino no curso Normal. Antes de promulgadas as
diretrizes em 2006, o referido documento norteava os projetos de criação dos cursos, bem
como as idéias ventiladas pela ANFOPE e por importantes pesquisadores como Libâneo,
Pimenta, dentre outros.
Tabela II: Habilitações dos cursos regulares de Pedagogia – Licenciatura
da região Centro-Oeste
HABILITAÇÕES
Formação Docente para Educação Infantil e Séries
Iniciais do Ensino Fundamental
Magistério da Educação Infantil, Anos Iniciais do
Ensino Fundamental e Administração Escolar
Magistério da Educação Infantil, Anos Iniciais do
Ensino Fundamental e Tecnologias Educacionais
Magistério da Educação Infantil, Primeiros Anos do
Ensino Fundamental e Gestão Educacional
Magistério da Educação Infantil, Primeiros Anos do
Ensino Fundamental e Supervisão da Educação
Básica
Magistério da Educação Infantil, Primeiros Anos do
Ensino Fundamental e Magistério no curso Normal
em Nível Médio
Magistério na Educação Infantil Magistério para Educação Infantil e Gestão Escolar
Magistério em Educação Infantil e Administração
Escolar
Magistério das Séries Iniciais do Ensino
Fundamental
Docência para os Anos Iniciais do Ensino
Fundamental
Magistério nas Séries Iniciais do Ensino
Fundamental e Supervisão Escolar
Docência nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental
e Gestão Educacional
Magistério das Séries Iniciais do Ensino
Fundamental e Administração Escolar
Normal Superior – Licenciatura em Séries Iniciais Magistério das Matérias Pedagógicas 2° Grau
Magistério das Matérias Pedagógicas do Ensino Magistério das Matérias Pedagógicas no Ensino
Médio e Supervisão Escolar Médio, Supervisão Escolar e Gestão
Magistério das Matérias Pedagógicas do Ensino
Médio e Supervisão Escolar de Ensino Fundamental
e Médio
Docência nas disciplinas pedagógicas do Ensino
Médio e Gestão da Escola Básica
Supervisão Escolar e Magistério das Matérias
Pedagógicas do Ensino Médio
Magistério para exercício na Educação Básica e em
Supervisão Escolar para exercício na Educação
Básica
Magistério para Educação Especial: Deficiência
Mental
Orientação Educacional
Supervisão Escolar Administração Escolar
Gestão Educacional Gestão Social
Ênfase em Gestão Escolar Orientação Educacional para exercício nas escolas de
1° e 2° Graus
Tecnologias Educacionais Gestão Educacional e Tecnologias Educacionais
Administração Escolar e Supervisão Escolar Orientação Educacional e Supervisão Escolar
Fonte: Análise e cruzamento dos dados a partir das grades curriculares dos cursos de Pedagogia da região
Centro-Oeste.
Conforme se pode observar na tabela II, certas habilitações são pouco precisas,
chegando mesmo a serem confusas. Para citar apenas um exemplo, o magistério para
exercício na Educação Básica e em Supervisão Escolar para exercício na Educação Básica”
implicaria a atuação docente do pedagogo em todos os níveis: Educação Infantil, Ensino
Fundamental e Ensino Médio. Além disto, estaria ele habilitado a atuar como supervisor em
qualquer escola regular. Antes de comentar, uma questão: este profissional é exeqüível?
Parece difícil conceber um pedagogo capaz de atuar em toda a Educação Básica como
docente e/ ou supervisor. Esta dificuldade se agiganta quando da análise do currículo da
instituição que não prevê estudos sobre a Educação Infantil, tampouco o aprofundamento
em conteúdos das diversas áreas do saber: Língua Portuguesa, Matemática, História,
Geografia, Educação Física, Biologia, Química, Artes, dentre outras igualmente relevantes
para o magistério em nível médio. Aliás, nem poderia oferecer formação apropriada em
áreas e para níveis escolares tão diferentes, também porque o curso possui carga horária de
2.800 horas e duração de sete períodos. Ainda que se estendesse sua carga horária e
duração, tal habilitação continuaria improvável por ser incerta, com aspirações
demasiadamente dilatadas e, em última instância, irrealizável.
A existência de tantas habilitações, variadas quantitativa e qualitativamente, parece
comprometer a unidade dos cursos de Pedagogia da região Centro-Oeste. São projetos de
formação com diferenças importantes, com enfoques excessivamente plurais, que visam
formar profissionais com perfis diversos. Mais uma vez, confirma-se a existência de
Pedagogias, que ainda guardam este nome por preverem em suas propostas formativas, em
algum momento, a prática pedagógica e/ ou o exercício em instituições escolares.
Com relação à carga horária, as grades curriculares analisadas sugerem uma
diferença importante: o curso com menor carga horária total possui 2.618 horas, enquanto
que aquele com a maior perfaz 3.840 horas. Ao compará-los, chega-se a uma variação
percentual de aproximadamente 46%, um número realmente expressivo. Segundo o parecer
CNE/ CP 28/ 2001 - que estabelece a duração e carga horária dos cursos de Formação de
Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura, de graduação
plena – carga horária é:
... o número de horas de atividades científico-acadêmica, número este expresso
em legislação ou normatização, para ser cumprido por uma instituição de ensino
superior, a fim de preencher um dos requisitos para a validação de um diploma
que, como título nacional de valor legal idêntico, deve possuir uma referência
nacional comum (p. 2).
Mais da metade das instituições pesquisadas oferece o curso de Pedagogia com
carga horária inferior a 3.200 horas, contrariando a recente determinação fixada pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais que em seu artigo prevê: “o curso de Licenciatura em
Pedagogia terá carga horária mínima de 3.200 horas de efetivo trabalho acadêmico...”.
Conforme expresso pelo parecer CNE/ CP 28/ 2001 e regulamentado pelas novas diretrizes,
a carga horária é determinação a ser cumprida indistintamente por todas as Instituições de
Ensino Superior. Neste sentido, seja para reavaliar seus projetos pedagógicos, seja para
adequar-se a pontos mais específicos dos cursos como a carga horária, muitas instituições
que ofertam a Pedagogia na região Centro-Oeste precisarão reformular seus currículos
muito em breve.
A duração dos cursos pesquisados é outro ponto interessante para análise. A este
respeito, o parecer CNE/ CP 28/ 2001 esclarece:
Duração, no caso, é o tempo decorrido entre o início e o término de um curso
superior necessário à efetivação das suas diretrizes traduzidas no conjunto de
seus componentes curriculares. A duração dos cursos de licenciatura pode ser
contada por anos letivos, por dias de trabalho escolar efetivados ou por
combinação desses fatores [grifo do documento] (p. 2).
A LDB 9.394/ 96 também versa sobre a duração, afirmando que o ano letivo na
educação superior precisa ter no mínimo duzentos dias de trabalho acadêmico efetivo,
excetuando-se o tempo reservado aos exames finais (art. 47). Em seguida, estabelece que
“as instituições informarão aos interessados, antes de cada período letivo, os programas dos
cursos e demais componentes curriculares, sua duração, requisitos, qualificação de
professores... [grifo nosso]” (art. 47, parágrafo 1º). Diferentemente da carga horária, a
duração dos cursos é mais maleável, podendo ser definida pelo estabelecimento de ensino,
o que justifica o fato de as Diretrizes Curriculares Nacionais não tratarem especificamente
do assunto.
Os cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste investigados variam em
termos de duração: alguns se estruturam por semestres/ períodos, enquanto outros por
regime anual. Para promover a presente análise, os dados foram agrupados pensando-se em
semestres, donde foi possível concluir que os cursos em geral variam sua duração de seis a
oito períodos letivos. Muitos se organizam em oito, um número um pouco menor está
disposto em seis, sendo mais raros aqueles estruturados em sete semestres. Devido à
maleabilidade legal, cada instituição pode definir a duração que mais convier aos seus
objetivos e projetos, como também aos seus professores e alunos.
O mapeamento de aspectos gerais dos cursos regulares de Pedagogia da região
Centro-Oeste conduz a um panorama complexo: ao mesmo tempo em que se observa a
imprecisão e pequena unidade entre os currículos em andamento, emerge uma tentativa
promissora das novas diretrizes curriculares em oferecer aos cursos uma identidade mais
bem delineada. Neste entremeio, não se pode esquecer a forte atuação de pesquisadores-
professores, que encampa inúmeros outros educadores, cujas idéias divergem em essência
daquilo preconizado pelas determinações legais.
Este cenário intrincado se expressa nos vários aspectos analisados por esta pesquisa:
modalidades de formação, habilitações, duração e carga horária. Quanto ao primeiro
assunto, a grande maioria dos cursos da região é de licenciatura, mas existem bacharelados
em funcionamento. Este entrave é equalizado pelas diretrizes, que apregoam claramente ser
a Pedagogia uma licenciatura, porém não totalmente resolvido devido à permanência de um
grupo importante de pesquisadores que continuam a defender o pedagogo stricto sensu. No
que se refere às habilitações, a imensa diversidade existente acaba corroborando muito para
a falta de identidade do curso. Sobre elas, as diretrizes se posicionam de forma dúbia,
embora seja possível sinalizar uma tendência em extingui-las. A duração e carga horária
dos cursos de Pedagogia também possuem variações importantes, mas sobre esta última as
diretrizes são incisivas ao decidir como mínimo o cumprimento de 3.200 horas.
Com as informações da pesquisa empírica foi possível, portanto, confirmar a
indefinição da identidade do curso de Pedagogia na região Centro-Oeste. A análise das
normatizações legais conduz, todavia, a uma possibilidade em delinear esta tão sonhada
identidade, pela qual lutam inúmeros profissionais envolvidos com o curso ao longo de toda
sua trajetória histórica. O momento é, pois, de redefinições com chances reais de clarificar
os atributos da Pedagogia, cuja missão basilar definida tanto pelos deslocamentos do
mundo do trabalho quanto pelas regulamentações mais atuais – é a docência, especialmente
para a Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental.
Tendo em vista ser a Pedagogia uma licenciatura responsável pela preparação de
professores para os primeiros anos da escolarização, cabe a análise sobre a formação
musical oferecida em seus currículos. Antes de enveredar discursivamente sobre o tema,
algumas interrogações: esta formação acontece? Em caso positivo: de qual modo? Com
qual freqüência? Pode habilitar o pedagogo a lidar com a linguagem musical no cotidiano
escolar? Na elucidação destes e de outros questionamentos se deterá o tópico a seguir.
3.2 A formação musical em cursos regulares de Pedagogia da região Centro-
Oeste
A busca para averiguar a presença da música em currículos dos cursos regulares de
Pedagogia da região Centro-Oeste se enveredou para várias frentes. Com a posse de
informações básicas sobre os cursos e suas grades curriculares, tentou-se descobrir sob
quais modalidades a música se manifesta como, por exemplo, permeando todo projeto do
curso; como disciplina ou componente curricular obrigatório e ainda como disciplina
optativa.
Antes de qualquer consideração a este respeito, é essencial lembrar que a música,
tanto na LDB 9.394/96 quanto nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de
graduação em Pedagogia, está implicitamente inserida como uma das modalidades da Arte.
A explicitação das quatro linguagens artísticas ocorre nos Parâmetros Curriculares
Nacionais, especificamente no de Arte que em vários momentos as mencionam,
evidenciando a necessidade em se trabalhar com todas, respeitando suas particularidades,
no cotidiano escolar: “a seleção e a ordenação de conteúdos gerais de Arte têm como
pressuposto a clarificação de alguns critérios, que também encaminham a elaboração de
conteúdos de Artes Visuais, Música, Teatro e Dança...” (p. 55).
Nos mais diversos documentos legais analisados, a música é área do conhecimento
que compõe o campo maior da Arte. Assim, para análise da música em currículos de
Pedagogia mostrou-se necessário pesquisar não apenas projetos e/ ou disciplinas com
títulos que contêm terminologias relacionadas ao campo musical, mas também examinar
aqueles que dizem respeito às artes de modo genérico, afinal a música pode estar aí contida.
Logo, a investigação além de contemplar as variadas formas de inserção de conteúdos e
práticas musicais nos currículos, analisa de modo amplo projetos e/ ou disciplinas
associados à Arte, sempre com o claro propósito de encontrar subsídios sobre a música.
Isto esclarecido, a análise das informações coletadas aponta que nenhuma
instituição trabalha com conteúdos artísticos ou musicais perpassando todo o projeto de
curso, ou seja, permeando todas as disciplinas do currículo como incumbência partilhada
pelos professores-formadores. Mais comum é a presença de disciplinas obrigatórias
relacionadas com a Arte ou especificamente com a música: das 56 instituições participantes
da pesquisa, 38 (68%) as prevêem em pelo menos uma de suas grades, enquanto que 18
(32%) não possuem qualquer componente curricular ligado à Arte. Uma outra via de
análise quantitativa aponta que das 84 grades curriculares analisadas, 53 (63%) são dotadas
de disciplinas artísticas e/ ou musicais. Quanto àquelas disciplinas em cujo título verifica-se
claramente nomenclatura do campo musical, o número cai para apenas 3 (3,5%). Embora
este último dado seja revelador, é preciso uma apreciação mais cuidadosa, pois
probabilidade de que a música esteja presente nas matérias ligadas à Arte.
No que se refere às disciplinas optativas com teor artístico, foi possível constatar um
número inexpressivo: pouquíssimas instituições as oferecem; uma das universidades,
todavia, merece destaque por proporcionar a oferta de muitas delas com grande variedade
tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. As disciplinas optativas, como o
próprio nome sugere, podem ou não ser cursadas pelos graduandos dos cursos, não
assegurando de fato a formação artística ou musical de todos os pedagogos. Ainda que
contenham propostas interessantes e até mesmo inovadoras, caso existam isoladamente, em
currículos sem qualquer viés artístico, poucas contribuições tendem a oferecer para a
prática pedagógica artística ou musical dos futuros professores.
Com base nestas informações preliminares, optou-se por dividir o presente item em
quatro sub-itens que tratarão respectivamente: da formação musical em disciplinas
obrigatórias relacionadas à Arte, da formação musical em disciplinas obrigatórias
específicas, da formação musical em disciplinas optativas, por fim da análise cruzada de
todas as modalidades formativas encontradas, com reflexões contundentes sobre a
legitimidade da formação musical em cursos de Pedagogia da região Centro-Oeste.
Inseridos nos três primeiros sub-itens estarão exemplos de instituições de diferentes
unidades federativas da região que desenvolvem propostas de formação artístico-musicais
interessantes. Alguns estabelecimentos de ensino serão identificados, para que seus projetos
formativos sejam reconhecidos e sirvam de inspiração para a busca de novas soluções no
sentido de formar musicalmente os pedagogos das mais diversas localidades brasileiras.
3.2.1 A formação musical em disciplinas obrigatórias ligadas à Arte
Conforme mencionado, 38 instituições da região oferecem disciplinas
obrigatórias relacionadas à Arte ou, especificamente, à música em pelo menos um de seus
currículos. Neste item são focados 35 estabelecimentos de ensino, ou seja, aqueles que
contemplam em suas grades matérias cujos títulos reportam à Arte de modo genérico.
Assim, do total de 53 grades que possuem matérias artísticas e/ ou musicais, são aqui
analisadas 50.
Quanto à nomenclatura, as referidas disciplinas contam com uma grande variedade:
ao todo existem trinta e um títulos diferentes (ver tabela III). A maior parte deles utilizam a
terminologia Arte, em consonância com as mais recentes regulamentações educacionais;
porém aqueles que permanecem utilizando a expressão Educação Artística instituída
pela antiga LDB 5.692/ 71.
É curiosa a relação estabelecida por certos títulos entre a Arte e palavras como
recreação ou jogos, o que sugere uma concepção de Arte basicamente relacionada ao
lúdico, à brincadeira. Neste entendimento, o campo artístico é apreendido de forma
reducionista, ou seja, apenas uma de suas dimensões é posta em evidência relegando para
segundo plano aspectos relativos à cognição, sensibilidade e apreciação. Outra assimilação
que merece ser discutida é a que interliga arte com movimento e/ ou corpo. Aqui, existem
duas possibilidades de interpretação: de que na disciplina estejam previstas questões
relacionadas à dança, uma das modalidades artísticas; ou então de que além da arte ainda
seja presumido o ensino de fundamentos da Educação Física. Caso esta última alternativa
seja verdadeira, a disciplina estará por demais inchada e invariavelmente não conseguirá
atender de forma satisfatória a duas áreas tão diferentes.
Tabela III – Títulos das disciplinas obrigatórias ligadas à Arte
TÍTULOS
Arte-educação Fundamentos Metodológicos do Ensino de Artes e
Educação
Arte e Educação Fundamentos Teóricos e Metodológicos da Arte
Arte e Educação I e II Fundamentos e Metodologia de Artes
Arte Educação Fundamentos e Metodologia do Ensino das Artes
Artes em Educação Fundamentos e Métodos do Ensino da Arte
Educação e Arte Fundamento e Metodologia do Ensino de Arte e
Movimento
Desenvolvimento da Educação através da Arte Fundamento e Metodologia da Arte e do Movimento
Arte e Cultura Brasileira Metodologia do Ensino de Arte e Movimento na
Primeira Infância
Arte na Educação Infantil Metodologia do Ensino de Arte e Movimento nas
Séries Iniciais
Corpo, Expressão e Arte Metodologia do Ensino das Artes e do Movimento
Corporal
Artes e Recreação na Educação Infantil e no Ensino
Fundamental
Metodologia do Ensino de Arte e do Movimento
Corporal nos anos iniciais do Ensino Fundamental
Artes, jogos e recreação Metodologia do Ensino de Educação Artística
Fundamentos da Arte Educação Artística e Recreação
Fundamentos da Arte na Educação Educação Artística, recreação e jogos
Fundamentos de Arte-educação Metodologia do Ensino de 1 grau – Educação
Artística
Oficina Multidisciplinar de Artes
Fonte: Análise e cruzamento dos dados a partir das grades curriculares dos cursos de Pedagogia da região
Centro-Oeste.
Com relação ao período do curso onde estão locadas as disciplinas artísticas, nota-se
uma larga diversidade: em algumas instituições tais disciplinas aparecem no primeiro
período, em outros estabelecimentos acontecem nos semestres finais (7º ou 8º); todavia,
parecem se concentrar ao meio do curso (3º, 4º, ou período). Quanto à carga horária,
as disciplinas ligadas à Arte apresentam entre si variações abissais, indo de 36 a 108 horas,
embora a maioria esteja circunscrita ao intervalo entre 60 e 80 horas.
Vale a pena salientar que das 35 instituições investigadas nesta fase da pesquisa, 32
oferecem apenas uma matéria artística e apenas 3 instituições dispõem de duas, cada, ao
longo de seus currículos. Com todas as informações até então mencionadas, emerge um
questionamento essencial: é possível que apenas uma disciplina de Arte, ainda que possua
carga horária de 108 horas, forme o pedagogo nas quatro modalidades artísticas previstas
pelos documentos oficiais (música, artes visuais, teatro e dança) de modo a habilitá-lo para
o exercício junto aos alunos dos anos iniciais da escolarização? E mais especificamente:
nas disciplinas analisadas há espaço para uma formação musical efetiva?
Com o intuito de oferecer mais subsídios para responder a estas indagações, foi
proposto um exame das ementas ou planos de ensino das disciplinas. Todas as 35
instituições foram contatadas para que enviassem à pesquisadora um dos referidos
documentos, todavia apenas 14 o fizeram. Embora o número pareça reduzido, representa
uma amostra que traz indicativos válidos sobre os conteúdos trabalhados de modo geral e,
particularmente, sobre a formação musical em disciplinas artísticas obrigatórias dos cursos
de Pedagogia da região Centro-Oeste.
A análise das ementas ou planos de ensino aponta que 7 das 14 instituições
contemplam conteúdos musicais em suas disciplinas de Arte. Nas demais, muitas tratam a
Arte de modo genérico, sem mencionar suas linguagens características; outras priorizam o
trabalho com as artes visuais; numa instituição, com disciplina intitulada “Artes, Jogos e
Recreação”, é previsto o trabalho duplo com as Artes e a Educação Física.
Das 7 instituições que apresentam conteúdos musicais, 5 oferecem apenas uma
única disciplina artística, onde a música é contemplada ao lado das demais linguagens da
Arte. Nestas disciplinas, é comum o trabalho interdisciplinar entre música, artes visuais,
teatro, dança e também entre estas modalidades e outras áreas do conhecimento. Suas
cargas horárias variam de 36 a 80 horas, dado que também incita a questão: embora sejam
previstos conteúdos musicais, é possível em tão curto espaço de tempo com tantos outros
conhecimentos para ser atendidos, formar o pedagogo para atuar efetivamente com a
música em seu campo de trabalho?
Dois cursos de duas universidades federais da região possuem propostas diferentes
das instituições acima mencionadas: em seus currículos existem duas disciplinas ligadas à
Arte igualmente intituladas Arte e Educação I” e “Arte e Educação II”. Na Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT), o curso de Pedagogia é uma licenciatura que habilita
para o Magistério das Séries Iniciais do Ensino Fundamental com duração de quatro anos e
carga horária total de 3.760 horas. A estrutura curricular do curso prevê a disciplina “Arte e
Educação I” com carga horária de 60 horas voltada para a fundamentação no campo
artístico, ou como diz a ementa, para “o estudo das questões históricas, filosóficas,
epistemológicas e metodológicas numa abordagem teórico-prática da Arte voltada à
Educação”.
a disciplina “Arte e Educação II”, também com carga horária de 60 horas,
vislumbra unicamente a formação musical que segundo o ementário englobao estudo dos
fundamentos da linguagem musical e suas relações com o processo educacional. A
informação e formação do educador nos diferentes tipos de atuação priorizando os
processos de ensino e de aprendizagem em música nos primeiros ciclos do Ensino
Fundamental”. Até o presente momento é a única disciplina de todas as instituições
participantes da pesquisa, que contempla exclusivamente a formação musical.
A Universidade Federal de Goiás (UFG) é a outra instituição em cuja grade
curricular aparecem duas disciplinas com títulos que reportam à arte. O curso de Pedagogia
desta universidade assume a docência como a base da formação do pedagogo,
especialmente para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental. Sua carga
horária é de 3.120 horas, a serem cumpridas em oito semestres de cem dias letivos cada um.
A disciplina “Arte e Educação I” é oferecida logo ao início do curso, no primeiro semestre,
com carga horária de 72 horas. A leitura de sua ementa faz notar o trabalho com conceitos
fundamentais da Arte e com duas modalidades artísticas: a música e a dança. Sobre a
formação musical, a ementa encadeia os seguintes pontos: A Música na educação.
Percepção e expressão em Música. Apreciação musical. Repertório para Educação Infantil
e anos iniciais do Ensino Fundamental. Música e movimento”. Aí, a descrição sobre os
conteúdos trabalhados é mais explícita e está em sintonia com as particularidades do
conhecimento musical.
A Arte e Educação II”acontece logo em seqüência, no segundo semestre, também
com carga horária de 72 horas. Nela são centralizadas as outras duas modalidades artísticas
expressas pelo PCN de Arte: artes visuais e teatro. O caso específico da UFG traz
contribuições importantes para a inserção da Arte e, especificamente, da música em
currículos de Pedagogia: primeiro, por prever claramente o contato com as quatro
modalidades artísticas; segundo, por respeitar e dar a conhecer as particularidades de cada
uma delas; terceiro, em consonância com os objetivos próprios deste trabalho, por
considerar a importância da formação inicial do pedagogo no tocante à linguagem musical.
Em sua tese de doutorado A formação cultural de professores ou a arte da fuga”,
Nogueira (2002) trata de sua experiência como professora da disciplina Artes e
Recreação” na Faculdade de Educação da UFG entre 1995 e 1998. A mesma professora
participou ativamente da reformulação curricular que deu origem às disciplinas “Arte e
Educação I” e “Arte e Educação II”, sendo por elas responsável até 2006. Segundo
Nogueira (2002), as conseqüências da disciplina então analisada, que tomava a freqüência a
eventos culturais como parte integrante do processo avaliativo, foram:
a efetiva ampliação do universo cultural dos alunos; o surgimento de uma rede
de informações com vistas à elaboração de uma agenda cultural; o movimento
organizado de alunos-trabalhadores, notadamente os do curso noturno,
reivindicando as mesmas oportunidades dadas aos estudantes do período diurno;
a pressão, por parte dos alunos, para que outros professores utilizassem recursos
da Arte e da Literatura (p. 85).
Além destas conseqüências diretas, a autora menciona o fato de continuar
... a encontrar muitos destes alunos depois de formados, em cursos de
especialização, em atividades de extensão, em parcerias com escolas públicas e
privadas. Nestas ocasiões, pude perceber que o que havia sido semeado havia
rendido frutos: muitos destes alunos haviam se tornado profissionais mais
abertos, mais ricos, plenos de idéias. Destacavam-se em seus locais de trabalho
justamente por terem referenciais mais amplos, por se comunicarem com seus
alunos de forma diferenciada e por estarem sempre trazendo para a comunidade
escolar formas sensíveis de apreender o real (ibid.,p. 85-86).
Diante do quadro ora esboçado sobre a formação musical em disciplinas
obrigatórias cujos títulos reportam à Arte de modo abrangente, é possível traçar algumas
constatações. Em geral, o trabalho com a Arte está circunscrito a uma única disciplina, com
carga horária reduzida, o que soa como uma concessão ao determinado tanto pela LDB
9.394/ 96 quanto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em
Pedagogia. A Arte parece concebida como área do conhecimento supérflua, até mesmo
desnecessária, diferentemente de outras ciências humanas previstas na formação do
pedagogo como a psicologia, sociologia, filosofia, cujo status é inegável. Neste contexto,
salvo raras exceções, a música encontra-se diluída, extirpada de seu corpus epistemológico
característico. Via de regra, o pedagogo formado por cursos de Pedagogia da região Centro-
Oeste, não está sendo preparado suficientemente para atuar com a música nas séries iniciais
da escolarização.
3.2.2 A formação musical em disciplinas obrigatórias específicas
Este item se detém na análise de instituições da região Centro-Oeste que oferecem
disciplinas obrigatórias com títulos relacionados especificamente à formação musical. Dos
56 estabelecimentos de ensino que enviaram suas grades, apenas três dispõem, em pelo
menos um de seus currículos, de disciplinas que trazem nomenclaturas musicais em seus
respectivos títulos. As instituições são as seguintes: Instituto Luterano de Ensino Superior
de Itumbiara (ILES), situado na cidade de Itumbiara em Goiás; a Universidade Federal da
Grande Dourados (UFGD) em Dourados, Mato Grosso do Sul e, por fim, o Centro
Universitário de Campo Grande (UNAES), de Campo Grande, também no Mato Grosso do
Sul.
O ILES oferece o curso de Pedagogia com duas habilitações: Formação de
Professor para Magistério em Educação Infantil e Formação de Professor para Magistério
das Matérias Pedagógicas do Ensino Médio, Supervisão Escolar e Gestão. Apenas a matriz
curricular da primeira habilitação que possui carga horária total de 2.852 horas e duração
de sete semestres conta com a disciplina “Música e Expressão Corporal na Educação
Infantil e nos anos iniciais”. Tal disciplina possui carga horária de 68 horas, sendo 48 de
estudos teóricos e 20 de atividades práticas, está locada no quarto semestre do curso e prevê
o trabalho com conteúdos específicos do campo musical e da dança. Para as artes visuais
oferece a disciplina “Artes Visuais na Educação Infantil e nos anos iniciais” e voltada para
o teatro existe outra matéria Jogos Teatrais na Educação Infantil e nos anos iniciais”,
ambas com carga horária de 68 horas. A proposta do curso é realmente muito interessante,
principalmente porque ao dividir as modalidades artísticas em disciplinas independentes,
a Arte um espaço privilegiado na formação do pedagogo. Quanto à preparação musical,
pode-se perceber o trabalho conjunto entre a música e a dança, cujos conteúdos,
metodologias e referenciais dividem espaço em uma mesma disciplina.
Situação de certo modo semelhante ocorre no curso de Pedagogia da UFGD,
instituição criada em 2006 absorvendo os cursos do então campus de Dourados da
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). Nesta instituição são oferecidas três
habilitações: Magistério da Educação Infantil, primeiros anos do Ensino Fundamental e
Gestão Educacional; Magistério da Educação Infantil, primeiros anos do Ensino
Fundamental e Supervisão da Educação Básica e Magistério da Educação Infantil,
primeiros anos do Ensino Fundamental e Magistério no Curso Normal em Nível Médio,
todas com carga horária de 2.618 horas e duração de quatro anos.
O único currículo disponibilizado pela UFGD aponta a existência da disciplina
“Fundamentos e Metodologia da Expressão Musical e Corporal”, responsável por formar o
pedagogo tanto no campo musical quanto na dança. Para as artes visuais é reservada uma
outra matéria intitulada “Fundamentos e Metodologia da Expressão Plástica e Gráfica”.
Ambas são ofertadas na terceira série do curso; quanto à linguagem teatral não nenhum
componente que a contemple claramente no currículo. Assim, tal como proposto pelo ILES,
a UFGD abarca a música e a dança conjuntamente, sendo as artes visuais trabalhadas em
disciplinas exclusivas, o que também auxilia na constatação do prestígio desta modalidade
artística nos currículos da região ora investigada.
Uma terceira instituição, o Centro Universitário de Campo Grande (UNAES),
oferece o curso de Pedagogia com especial enfoque nas Artes de modo geral e na música
em particular. De todos os estabelecimentos examinados, é o que se mostrou mais
simpático às idéias defendidas por esta pesquisa, então a análise de seu currículo será um
pouco mais extensa. De antemão parece importante evidenciar que existem, atualmente,
três grades curriculares em funcionamento para o curso de Pedagogia: a primeira entrou em
vigor para ingressantes do primeiro semestre de 2003, a segunda para turmas que iniciaram
no primeiro semestre de 2004 e a terceira para ingressantes a partir do segundo semestre de
2006. Esta pesquisa teve como critério avaliar sempre o currículo mais recente das
instituições, por isto a análise decaiu sobre a terceira grade supracitada.
O curso de Pedagogia da UNAES apresenta a docência, especialmente para a
Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, como base obrigatória para a
formação e identidade profissional do pedagogo. Segundo informações colhidas no site da
instituição, uma preocupação constante em manter o currículo em sintonia com os
desafios da prática educativa concreta, o que justifica a ocorrência de três reformulações
curriculares no curto espaço de tempo de três anos.
Durante todo o desenvolvimento do Curso de Pedagogia, sempre buscamos,
solidez quanto à formação dos profissionais e, ao mesmo tempo, flexibilidade
quanto às necessidades de incorporar informações novas e indutoras de
modificações. E, ainda, preocupamo-nos com atualizações em relação às
disciplinas, ementas, conteúdos e bibliografias, seja no formato das aulas,
alternativas metodológicas, como, engajamento em atividades complementares e
demais recursos tendentes a propiciar, aos acadêmicos, contato direto com a
realidade concreta da educação brasileira. (site da UNAES)
O curso de Pedagogia da instituição é relativamente recente: sua primeira turma
teve início em 1994 com as habilitações em Administração Escolar para a Escola Básica e
Docência das Disciplinas Pedagógicas do Ensino Médio. Ainda de acordo com dados de
seu site, o curso obteve conceito A por cinco vezes: o primeiro na autorização (1994), o
segundo no reconhecimento (1998), o terceiro, no ano de 2001, quando participou pela
primeira vez do Exame Nacional de Cursos (Provão), o que se repetiu em 2002 e 2003.
Mesmo reconhecendo as críticas realizadas sobre tais mecanismos avaliativos, é preciso
considerar o mérito da UNAES, justificado principalmente pelo fato da proposta
pedagógica do curso ser periodicamente discutida e revisada por seus professores, de modo
a atender criticamente às demandas locais e aos resultados das discussões nacionais.
Quanto à carga horária, o curso de Pedagogia possui um total de 3.296 horas, em
consonância com o mínimo de 3.200 horas estabelecido pelas Diretrizes Curriculares
Nacionais. Destas 3.296 horas, 2.736 são dedicadas às atividades formativas sob o formato
de disciplinas, 360 destinadas aos estágios supervisionados (organização da escola, anos
iniciais do Ensino Fundamental, creche, pré-escola e Educação Infantil) e 200 às atividades
complementares. O curso tem duração de oito semestres que possuem, cada um, ou 360 ou
396 horas de atividades (ver tabela IV).
Tabela IV – Grade curricular do curso de Pedagogia da UNAES
para ingressantes em 2006/ 2
SEMESTRE DISCIPLINAS CARGA
HORÁRIA
Informática Aplicada à Educação 36
Fundamentos Históricos da Educação 72
Fundamentos Filosóficos da Educação I 36
Fundamentos Sociológicos da Educação I 36
Língua Portuguesa I 72
Metodologia Cientifica 36
Artes e Cultura Brasileira 36
Fundamentos da Psicologia I 36
Sub-Total 360
Estatística Aplicada à Pesquisa em Educação 36
Fundamentos da Tecnologia Educacional I 36
Educação Étnico-Racial (Educ. Indígena, Remanescentes de Quilombo
e Educação no Campo)
36
História Regional 36
Fundamentos Filosóficos da Educação II 36
Fundamentos Sociológicos da Educação II 36
Língua Portuguesa II 72
Fundamentos da Psicologia II 72
Sub-Total 360
Fundamentos da Administração Escolar I 36
Fundamentos Sociológicos da Educação III 72
Fundamentos Históricos da Educação Brasileira 72
Fundamentos Filosóficos da Educação III 72
Didática I 72
Fundamentos da Tecnologia Educacional II 36
Estágio Supervisionado I – A Organização da Escola 36
Sub-Total 396
Fundamentos da Administração Escolar II 36
Fundamentos da Educação Especial 36
Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem 72
Didática II 72
Economia Política da Educação 72
Fundamentos Filosóficos da Educação IV 72
Estágio Supervisionado II – Anos Iniciais do Ensino Fundamental 36
Sub-Total 396
Currículos e Programas 72
Educação e Relações de Gênero 36
Didática III 72
Pesquisa em Educação I 36
Políticas Públicas e Aspectos Legais da Educação Básica 72
Educação de Jovens e Adultos 36
Estágio Supervisionado III – Creche 72
Sub-Total 396
Linguagem Teatral 36
Fundamentos e Metodologia em Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS
36
Construção Cultural da Infância 72
Pesquisa em Educação II 36
Fundamentos e Metodologia da Educação Infantil 36
Fundamentos e Metodologia da Expressão Oral e Gráfica 36
Fundamentos e Metodologia da Alfabetização 72
Estágio Supervisionado IV – Pré-Escola 72
Sub-Total 396
Fundamentos e Metodologia em Artes Visuais 36
Fundamentos e Metodologia de História e Geografia 72
Estudo da Sociedade na Educação Infantil 36
Literatura Infantil 36
Fundamentos e Metodologia da Matemática na Educação Infantil 36
Linguagem da Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental 36
Trabalho de Conclusão de Curso I 72
Estágio Supervisionado V – Anos Iniciais do Ensino Fundamental 72
Sub-Total 396
Jogo e Brincadeira na Infância 36
Fundamentos e Metodologia de Língua Portuguesa 72
Fundamentos e Metodologia de Ciências Naturais 72
Estudos da Natureza na Educação Infantil 36
Linguagem Musical na Infância 36
Trabalho de Conclusão de Curso II 72
Estágio Supervisionado VI – Educação Infantil 72
Sub-Total 396
Total 3096
Estágio Supervisionado 360
Atividades Complementares 200
Total Geral 3296
Fonte: Site do Centro Universitário de Campo Grande (UNAES): www.unaes.br.
Ao observar a grade curricular do curso, é notória a existência de várias disciplinas
relacionadas à Arte, como: “Artes e Cultura Brasileira”, no primeiro semestre;Linguagem
Teatral”, no sexto; “Fundamentos e Metodologia em Artes Visuais, no sétimo; e
”Linguagem Musical na Infância” já no oitavo semestre. A primeira disciplina, com carga
horária de 36 horas semestrais, é de fundamentos sobre arte e cultura, com referenciais
bibliográficos importantes sobre arte, cultura (inclusive a popular do próprio estado do
Mato Grosso do Sul) e folclore brasileiro. Segundo o ementário, os tópicos a serem
trabalhados são os seguintes: “Processo de formação da Cultura Brasileira a partir das
contribuições européia, indígena e africana. A cultura nacional e seus múltiplos
significados. Realidade cultural brasileira. A arte e a cultura como fatores na formação da
identidade e cidadania do povo brasileiro”.
A disciplina “Linguagem Teatral”, com carga horária de 36 horas, trata sobre as
diversas possibilidades de se trabalhar a linguagem teatral na Educação Infantil e Anos
Iniciais do Ensino Fundamental. O teatro como linguagem corporal”. Logo, aborda
especificamente uma das modalidades artísticas, o que também é proposto pela disciplina
“Fundamentos e Metodologia em Artes Visuais”, com 36 horas e que verticaliza estudos
em arte visuais com conteúdos, objetivos, metodologia, referenciais e práticas próprias da
linguagem plástica.
A disciplina “Linguagem Musical na Infância”, oferecida ao cabo do curso com 36
horas semestrais, direciona-se unicamente para a formação musical do pedagogo.
Infelizmente, não foi possível localizar seu plano de curso ainda não disponível porque a
disciplina entrará em vigor no ano de 2010. De qualquer modo, vale dizer que o
currículo da UNAES, no que se refere à formação em Arte, é único na região: primeiro por
oferecer disciplina de fundamentação em Arte, segundo por particularizar as matérias
referentes ao teatro, às artes visuais e à música, embora emudeça com relação à dança.
Assim sendo, seria muito apropriado, após formada a primeira turma do currículo ora em
andamento, investigar os resultados desta proposta que antecipadamente parece muito fértil.
Com os dados colhidos até aqui, é possível afirmar que das 56 instituições
pesquisadas, apenas duas oferecem disciplinas que tratam exclusivamente da música na
formação do pedagogo: a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e o Centro
Universitário de Campo Grande (UNAES). Ainda assim, a UFMT não deixa claro no título
de sua disciplina qualquer terminologia que reporte especificamente à música e a UNAES
prevê a preparação musical para pedagogos que formarão apenas em 2010. É uma
conjuntura no mínimo intrigante, que traz embutida a desvalorização da música enquanto
área do saber (com conteúdos, metodologias e contribuições particulares) valorosa para a
formação integral de todo e qualquer educando.
3.2.3 A formação musical em disciplinas optativas
As disciplinas optativas/ complementares/ eletivas que possuem enfoque na área das
Artes ou, especificamente, da música, caso cursadas, podem oferecer algum tipo de
fundamentação artístico-musical para o pedagogo. Devido ao seu caráter potencial, uma
disciplina deste tipo precisa ser apreendida em sua validade e limitação: é válida porque se
constitui em preparação complementar, incrementando áreas do conhecimento pelas quais o
graduando tenha algum tipo de empatia; a limitação diz respeito justamente à não
obrigatoriedade, que reduz sua capacidade de abrangência. Como o objetivo principal do
presente trabalho é analisar a formação inicial do Pedagogo no tocante à linguagem
musical, não seria adequado escamotear as disciplinas optativas da análise, mas também
não parece coerente uma exposição muito detalhada, afinal elas possuem caráter
complementar.
Conforme já mencionado, são poucas instituições que oferecem disciplinas
optativas relacionadas à Arte em geral e à música em particular. Neste pequeno universo,
destaca-se a Universidade de Brasília (UnB) que ao todo possui nove com os seguintes
títulos: Fundamento da Arte na Educação; Metodologia do Ensino de grau Educação
Artística; Arte, Pedagogia e cultura; Oficina básica de música I; Fundamentos da
Linguagem Musical na Educação; Canto Coral 1, 2, e 3; dentre outras que contemplam as
demais linguagens artísticas e tópicos como cultura, políticas culturais e educação estética.
Como acreditamos que as disciplinas optativas não garantem, sozinhas, a formação
inicial do pedagogo para o trabalho com a música nas séries iniciais da escolarização,
parece relevante mencionar de modo objetivo que elas aparecem em instituições da região
Centro-Oeste, em quantidade reduzida e que suas contribuições parecem verdadeiras
quando estiverem presentes em cursos que vislumbram a música como área do
conhecimento obrigatória para a formação do pedagogo.
3.2.4 Análise integrada de modalidades formativas distintas
Depois de delineado o panorama da formação musical em cursos de Pedagogia da
região Centro-Oeste, duas questões propostas desde o início da investigação empírica são
agora esclarecidas: os cursos de Pedagogia da região ora analisada contemplam a formação
musical em seus currículos? Em caso positivo, tal formação pode habilitar o pedagogo a
trabalhar melhor com a música na escola?
A resposta à primeira pergunta não pode ser unívoca, é preciso pensar tanto em
termos macro quanto na perspectiva micro, ou seja, de iniciativas que colocam em xeque a
tendência redutora de toda generalização. Pensando de modo abrangente, depreende-se que
a música possui presença marginal nos currículos de Pedagogia pesquisados. Algumas
instituições sequer contemplam a Arte em seus cursos, outras tantas, embora possuam
matérias ligadas à Arte, ou deixam de lado aspectos próprios da música ou os trabalham de
forma superficial, pois não espaço em uma única disciplina, com carga horária em geral
reduzida, para se trabalhar satisfatoriamente com as quatro linguagens artísticas, que dirá
acoplando ainda outra área do conhecimento como a Educação Física, por exemplo.
A Arte e, em especial, a música, continuam ocupando lugar reduzido no currículo
para a formação de pedagogos na região Centro-Oeste, o que se deve, em grande parte, ao
fato de serem vistas como artigos de luxo, ou seja, interessantes, porém perfeitamente
dispensáveis. Outra assimilação corrente diz respeito à identificação entre Arte/ música e
prazer, fazendo com que pareçam conteúdos “menos sérios” e, portanto, com contribuições
cognitivas restritas. O prazer é freqüentemente reprimido no processo educativo, assim
como são as disciplinas que o trazem à tona abertamente, caso das Artes e da música.
Parece maior a probabilidade da formação musical em instituições que oferecem
mais de uma disciplina artística obrigatória, como acontece na Universidade Federal do
Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal de Goiás (UFG), Instituto Luterano de Ensino
Superior de Itumbiara (ILES), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e o
Centro Universitário de Campo Grande (UNAES). De todas as 56 instituições ora
pesquisadas, apenas a UFMT e a UNAES oferecem disciplina destinada exclusivamente à
música. As demais anteriormente citadas unem em uma mesma matéria música e dança.
Tal como está o panorama da formação musical em cursos de Pedagogia na região
Centro-Oeste, estas iniciativas são mesmo inovadoras à medida que contestam o
silenciamento ou mascaramento da música na formação dos pedagogos, podendo lançar luz
para novas propostas que vejam nas contribuições da música, as características essenciais
para um pedagogo competente: apreciação crítica, reflexividade e sensibilidade.
Sobre a questão: tal formação pode habilitar o pedagogo a trabalhar melhor com a
música na escola? De modo geral, excetuando-se pouquíssimas instituições, o pedagogo
egresso de cursos de Pedagogia da região Centro-Oeste, não está sendo formado de forma
suficiente para atuar com a música nas séries iniciais da escola regular.
Assim, parece não apenas adequado como necessário apontar direcionamentos na
tentativa de oferecer subsídios para reverter este panorama tão desalentador. Com este
objetivo, o próximo capítulo lança propostas e recomendações para serem discutidas e
levadas adiante por instituições, professores e alunos envolvidos com a Pedagogia e a
educação musical, tendo em vista a construção de currículos que façam soar os inegáveis
prazeres e as múltiplas realizações da música.
CAPÍTULO 4
PAUTA E PROPOSTAS PARA DISCUSSÃO
“No final, a arte deveria dominar nossas vidas de tal
forma que pudéssemos afirmar: não existem mais
obras de arte, mas apenas arte. Pois a arte, então,
será a maneira de viver”
Herbert Head.
Este capítulo se detém na proposição de idéias para novos debates, discussões e
propostas que visem redimensionar a formação musical para pedagogos. Afinal, ao formar
musicalmente o pedagogo, profissional responsável pela docência multidisciplinar nas
séries iniciais da escolarização, estar-se-á possibilitando a democratização de um ensino
musical sistemático e efetivo nas escolas regulares brasileiras.
Conforme visto nos capítulos anteriores, a problemática da inclusão da música tanto
na Educação Infantil e Ensino Fundamental quanto em cursos de graduação em Pedagogia
depende também da atuação de outro profissional: o especialista (licenciado em música).
Por isto, os pontos encadeados a seguir o contemplam diretamente, propondo novas
perspectivas para sua formação/ atuação e contornos alternativos para as múltiplas relações
travadas com o pedagogo, seja no próprio ambiente profissional onde atuam, seja em cursos
de formação inicial ou continuada.
Não parece demais reiterar que embora o protagonista deste trabalho seja o
pedagogo, uma discussão que se propõe integradora precisa colocar em cena o especialista,
ainda mais quando se tem em mente a idéia da parceria, ou seja, do trabalho colaborativo
entre ambos nos diversos contextos escolares: cursos superiores, programas de formação
permanente e também nas séries iniciais da escolarização básica.
A pauta para debate ora exposta é fruto das percepções e conclusões de toda esta
investigação (bibliográfica e empírica) e pretende subsidiar novas reflexões e ações
dirigidas fundamentalmente no sentido de incrementar a formação musical do pedagogo,
assim como repensar o papel do especialista em música e reiterar a noção da parceria
estendida entre ambos em seus processos de formação/ atuação profissional.
Criação de modalidades formativas para o ensino musical nos cursos de
Pedagogia
Os currículos dos cursos de Pedagogia precisam articular saberes das mais diversas
áreas do conhecimento, essenciais para a prática multiface do pedagogo com todas as
disciplinas dos anos iniciais da escolarização. A música é uma destas áreas do
conhecimento, sendo freqüentemente utilizada em atividades propostas pelo pedagogo no
cotidiano escolar, mas quase nunca trabalhada de forma sistemática tendo em vista seus
conteúdos, metodologias e referenciais particulares. Isto se deve em grande medida à
carência do ensino de música na formação inicial do pedagogo, conforme evidenciado no
capítulo anterior ainda que de forma localizada. Daí a necessidade em pensar novas
modalidades formativas que venham ao encontro de um preparo musical por meio de
atividades teóricas e práticas visando tanto habilitá-lo para lidar com a música na escola,
quanto torná-lo um ouvinte mais seletivo, crítico e reflexivo. Deste modo, a formação
musical precisa estar inserida no contexto macro de políticas e dispositivos legais
consistentes para o curso de Pedagogia e também nos espaços micros de reflexões e
propostas de cada instituição superior na construção de suas grades e/ ou projetos
curriculares. Cada estabelecimento de ensino pode criar formas originais de inserir o ensino
musical em seus cursos de Pedagogia, como por exemplo: disciplina obrigatória endossada
por outras de teor optativo; em atividades de extensão (mini-cursos, workshops);
incentivando a freqüência em eventos musicais; por meio de pesquisas conjuntas entre
alunos e professores sobre temas próprios da educação musical; viabilizando projetos de
curso onde a música permeie enquanto área do conhecimento as mais diversas disciplinas,
como incumbência de todos os professores formadores; incrementando projetos integrados
entre as faculdades de educação, as escolas superiores de música, seus alunos e professores
para um diálogo interativo e permanente. Enfim, são várias as formas possíveis de inserção
da música na Pedagogia, cada vez mais significativas quando em sintonia com as
especificidades da instituição, as aspirações dos graduandos e as competências dos
professores formadores.
A indispensável presença dos especialistas (licenciados em música) nos cursos
regulares de Pedagogia
É inegável a importância do curso de Pedagogia contar com a presença dos
especialistas em música em seu quadro docente para criar e pôr em funcionamento as mais
diversas modalidades formativo-musicais previstas ou não na estrutura curricular destes
cursos. Os especialistas além de lecionar conteúdos próprios da educação musical, podem
criar mecanismos para a inserção da música no currículo e até mesmo participar do
desenvolvimento musical permanente dos demais professores do curso (por meio de
atividades como corais, oficinas, encontros, etc). É neste momento que se trava o primeiro
diálogo entre o especialista e o pedagogo, onde serão colocados seus pontos de vista e
opiniões. Juntos poderão formar-se mutuamente: o professor oferecendo seus
conhecimentos sobre educação musical aos alunos (futuros pedagogos) e estes contribuindo
com trocas de experiências e conhecimentos da área pedagógica e por que não com
algumas questões mesmo que aparentemente elementares sobre música? Para tal, é
importante relativizar a noção do processo ensino-aprendizagem, questionando a equação
redutora que prevê: professor igual a ensino e aluno igual à aprendizagem. Como toda
parceria, é importante que cada um saiba seu papel, limites e possibilidades, mas,
sobretudo, que se empenhem colaborativamente para redimensioná-los. Tudo isto, leva a
pensar a formação inicial como um percurso construído cooperativamente pelos
graduandos, professores formadores e propostas/ matrizes curriculares das instituições
superiores.
Potencializar a inserção de conhecimentos pedagógicos na formação inicial dos
especialistas (licenciados em música)
Os saberes veiculados ao longo da formação inicial dos especialistas deveriam girar
em torno da interseção entre a pedagogia e a música, abarcando conhecimentos
musicológicos e pedagógicos. Tendo em vista a tradição dos cursos superiores de música
em formar o bacharel, é muito comum que as questões musicais ocupem espaço
privilegiado nos currículos, sendo aquelas de ordem didática relegadas a segundo plano.
Investir na formação pedagógica do especialista é imprescindível nãopara a constituição
de seus saberes, prática e identidade profissionais, mas também para que tenha
fundamentação adequada para futuramente atuar junto aos cursos de Pedagogia, ou melhor,
na formação pedagógico-musical dos pedagogos. Para potencializar a inserção de
conhecimentos pedagógicos em cursos de licenciatura em música, vários dispositivos
podem ser colocados em ação como: disciplinas que os contemplem promovendo encontros
com os demais componentes curriculares, inclusive aqueles específicos da área musical;
incremento de pesquisas voltadas para o aprofundamento de temáticas educacionais;
implantação de projetos colaborativos que vislumbrem as intercessões entre conteúdos,
metodologias e referenciais da área pedagógica e da área musical; organização de
seminários que promovam encontros entre profissionais da educação e da música; estágios
que desenvolvessem projetos de ensino interdisciplinares, com licenciandos em música e
em pedagogia. A idéia basilar é descentrar os cursos de música que muitas vezes acabam
por formar um professor que futuramente terá dificuldades em estabelecer conversações, de
se inserir em projetos coletivos nas escolas. Inúmeros dispositivos poderiam ser citados,
outros tantos podem e devem ser engendrados pelos professores formadores, pela
instituição superior e pelos alunos com o intuito de tornar cada vez mais produtivas as
contribuições recíprocas do conhecimento musical e dos saberes educacionais para o
fortalecimento e valorização do ensino musical em nível superior e também nas séries
iniciais da escolarização.
A necessária presença do pedagogo em cursos de licenciatura em música
Para o fomento de conhecimentos pedagógicos em cursos de licenciatura em música
é fundamental a atuação do pedagogo, cujos saberes em muito podem contribuir para a
formação e delineamento da identidade profissional dos futuros licenciados em música. A
presença dos pedagogos nestes cursos representa outra possibilidade de diálogo inicial entre
a música e a pedagogia, ou melhor, entre pedagogos e especialistas. Neste momento, não é
interessante como também apropriado empreender trocas de experiências, saberes e
concepções em prol de uma co-formação recíproca do professor formador, no caso o
pedagogo, e os graduandos, licenciandos em música. A idéia de co-formação impõe como
mote o intercâmbio crítico e contínuo entre os conhecimentos pedagógicos e
musicológicos, suas especificidades e principalmente interseções, determinantes para a
constituição da educação musical. Outro ponto extremamente produtivo diz respeito à
possibilidade de o pedagogo criar mecanismos para que os especialistas tenham em mente a
escola regular como campo de trabalho. O pedagogo pode auxiliar na criação de estágios na
educação básica; projetos de extensão com escolas regulares públicas ou privadas;
atividades complementares; pesquisas que visem à resolução de problemas concretamente
vividos pelos especialistas no âmbito escolar. Ao colocar a escola regular como campo de
atuação destes profissionais, o pedagogo pode introduzir a perspectiva da parceria, ou seja,
do trabalho colaborativo entre ambos para o sucesso e disseminação do ensino musical nas
escolas. Parceria que prevê o compromisso de todos para com o projeto de democratização
da música enquanto área do conhecimento importante para a formação integral dos alunos
brasileiros. A atuação junto aos demais professores formadores dos cursos de licenciatura
em música é outra possibilidade de intervenção do pedagogo. O diálogo entre os
professores dos cursos de licenciatura em música (pedagogos e especialistas) certamente
ampliará seus quadros de referências, repercutindo numa melhor formação para os alunos.
Por fim, a presença do pedagogo em cursos de licenciatura em música representa mais um
caminho para a importante interação entre os saberes musicais e pedagógicos que, de mãos
dadas, em muito podem enriquecer os referenciais, técnicas e preceitos da educação
musical.
A formação continuada: um percurso conjunto
A formação continuada visando ao aprimoramento pedagógico-musical tanto dos
pedagogos quanto dos especialistas precisa ser dimensionada na perspectiva da intervenção
mútua. Tanto os especialistas podem incrementar ou participar de projetos para a formação
do pedagogo, quanto este se envolver com propostas direcionadas ao desenvolvimento
profissional dos primeiros. Os especialistas podem atuar em cursos de capacitação de curta
ou longa duração (oficinas, workshops, encontros, seminários), cursos de pós-graduação
lato sensu e stricto sensu e também em propostas de formação em serviço que tencionem
aprofundar os conhecimentos musicais dos professores em exercício nos anos iniciais da
escolarização. Nas mesmas instâncias poderá atuar o pedagogo, cujas contribuições
precípuas serão aquelas referentes a aspectos educacionais e pedagógicos. Os especialistas
e pedagogos podem criar de modo colaborativo programas de formação permanente onde
ambos atuem, dirigidos a um público composto tanto por egressos de Pedagogia quanto por
licenciados em música. Neles, o diálogo, a troca de experiências e a idéia da parceira
poderão ser trabalhadas de modo efetivo já que a colaboração está prevista na concepção do
curso. Outra possibilidade especialmente interessante de formação continuada é o
desenvolvimento colaborativo em serviço entre o pedagogo e o especialista
24
. Nesta
modalidade formativa, aqui denominada parceria, ambos contribuem diretamente, cada qual
à sua maneira, para potencializar seus conhecimentos e dos alunos. O desenvolvimento de
cada um deles se no próprio contexto de atuação profissional, a partir da tomada de
decisões criativas e da reflexão acerca das incertezas suscitadas no momento mesmo da
prática pedagógico-musical. A parceria entre os dois profissionais na escola regular é
benéfica para todos os envolvidos: eles próprios à medida que continuamente convidados a
rever conceitos, técnicas e metodologias; para os alunos cujos questionamentos tornar-se-ão
objetos de buscas e aprendizados coletivos e para a escola que terá seu projeto de formação
continuamente revisitado. Logo, tanto na escola onde atuam quanto em instâncias externas,
a formação continuada de especialistas e pedagogos jamais pode abandonar a cooperação
enquanto valor.
A perspectiva da parceria estendida
O trabalho e o aprendizado conjuntos entre pedagogos e especialistas no espaço
escolar é apenas uma das facetas da parceria. Na realidade, representa a etapa culminante
de todo um processo de interação colaborativa encetado desde o momento da formação
inicial. Neste prisma, as ações pedagógicas e/ ou musicais do especialista no curso de
Pedagogia ou do pedagogo na licenciatura em música são apreendidas como ponto de
partida da parceria, importantes à medida que preparam as bases para o diálogo e a reflexão
cooperativa da prática musical da escola. Os cursos de formação continuada, organizados
24
Vide item dois do segundo capítulo.
dentro ou fora do espaço escolar, também se constituem em instâncias apropriadas para o
fortalecimento dos laços: professores formadores podem trocar idéias entre si, profissionais
freqüentadores também e todos podem aprender com todos, ampliando seus saberes e
campo de interpretações. Assim sendo, a parceria é um acordo de comunicação contínua
que precisa perpassar todo o percurso da formação e da atuação pedagógico-musical. Por
isto a necessidade em pensá-la de forma estendida, ou seja, desdobrada em múltiplos
espaços onde pedagogos e especialistas se formam e profissionalizam. Afinal, somente com
a integração e comprometimento de todos os profissionais envolvidos com a educação
musical, será possível reverter o panorama do silenciamento da música enquanto área do
conhecimento na escola regular. Isto impõe repensar de modo coletivo a formação nos
cursos de licenciatura em música e, especialmente, trazer novas propostas para o preparo
musical do pedagogo cujo compromisso ético e legal para com a formação integral do
educando não pode prescindir das fecundas contribuições do conhecimento musical.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta época, em que a história se move em muitas
direções, toda conclusão está atravessada pela
incerteza”
Nestor Canclini (2006).
Qualquer postura conclusiva precisa refletir de forma crítica e rigorosa sobre o que
se propõe, além de ponderar quanto à sua natureza transitória. É preciso revisitar sempre os
juízos enraizados e ter como única certeza a incômoda permanência da dúvida, o que não
significa um abandono de convicções, mas seu policiamento constante e consciente. Neste
sentido, os últimos comentários tecidos a seguir, embora tragam constatações
aparentemente certeiras, são hesitantes por princípio e irresolutos por dedução.
A intenção em analisar a formação inicial do pedagogo no tocante à linguagem
musical, especialmente em cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste, deu
origem ao presente estudo. Para desvelar este fenômeno, compreendê-lo e problematizá-lo,
foi realizada uma revisão histórica da educação musical no Brasil, debatidas as interfaces
entre a Pedagogia e a Música e analisada empiricamente a presença do ensino musical em
currículos de cursos regulares de Pedagogia da região Centro-Oeste. Por fim, foi construída
uma pauta e desenvolvidas propostas para discussão com o intuito de fomentar novos
debates acerca da complexa e multifacetada relação entre o pedagogo e a linguagem
musical.
A análise histórica da educação musical no Brasil
25
, com ênfase naquela oferecida
em cursos de formação de professores, foi fundamental para constatar que o ensino de
música no país passou por momentos de grande efervescência intercalados por outros de
menor atividade. De qualquer modo, foi possível apreender que a música continuamente
marca presença no universo das escolas brasileiras, com objetivos particulares de cada
tempo/ espaço/ instituição escolar, em diferentes intensidades, por vezes devido a
determinações legais, ou pela apreensão de sua importância para o desenvolvimento
integral dos alunos.
No Brasil, a educação musical sofreu influências de diversas concepções
pedagógicas, determinando uma grande variedade de enfoques e propostas para o trabalho
25
Vide capítulo 1.
com a música nas escolas. Curiosamente, os ideais da educação musical nem sempre
estavam em harmonia temporal com as tendências mais amplas do pensamento educacional
de cada período investigado.
Outro dado interessante que sobrelevou diz respeito à relação direta entre as
proporções do ensino musical e a preocupação com a formação de professores para
ministrá-lo: quanto mais dilatado e intenso se mostra tal ensino, maior é a atenção dada à
preparação musical dos professores. Nesta linha de raciocínio, o investimento em tal
formação mostrou-se extremamente variado, também porque relacionado com objetivos e
concepções das instituições formadoras, bem como com documentos oficiais que
determinam (ou não) a música nestes cursos.
Na atualidade, as determinações em vigor - LDB 9.394/ 96, Referenciais e
Parâmetros Curriculares colocam a música como uma das quatro modalidades do ensino
de Arte, ocupando lugar potencial nos currículos. A legislação não institui a
obrigatoriedade do ensino musical que pode ou não ser contemplado de acordo com as
especificidades de cada instituição escolar. Esta maleabilidade legal tende a levar à
ausência do ensino de música nas escolas regulares brasileiras, tendência colocada em
xeque por iniciativas que podem e devem servir de inspiração para reverter o panorama
geral de exclusão da música no ambiente escolar. Para concretizar tal aspiração, é
imprescindível investir na formação musical de professores para todos os níveis da
educação básica, inclusive aqueles que atuam na Educação Infantil e séries iniciais do
Ensino Fundamental: os pedagogos. A democratização do ensino musical nas escolas
regulares brasileiras necessita de sua atuação consciente e produtiva.
Em suma, a análise cronológica da educação musical no Brasil apontou que a
inclusão da música enquanto área do conhecimento no universo da escola regular está
relacionada com diversos fatores como: a existência de normatizações que estabeleçam sua
obrigatoriedade, o entendimento do papel da música no desenvolvimento dos alunos, sua
adequação aos objetivos pedagógicos da escola e de modo especial à formação de
professores empenhados em levar a cabo esta missão. O pedagogo, protagonista deste
trabalho, para tomar para si esta responsabilidade precisa empreender um diálogo constante
e reflexivo com a música, o que é possível quando o ensino musical for parte integrante
de sua formação inicial e continuada.
Durante a análise das interfaces entre a Pedagogia e a Música
26
, a história do curso
de Pedagogia no Brasil foi exposta mediante o confronto entre os vários dilemas que a
graduação enfrentou desde quando criada em 1939 até os dias atuais. Fato impressionante:
as inúmeras incertezas e ambigüidades vivenciadas pelo curso que geram até os dias de
hoje indefinições quanto à identidade profissional do pedagogo. Na tentativa de harmonizar
alguns conflitos e traçar a tão sonhada identidade, elaboraram-se as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o curso. Mesmo não equalizando os posicionamentos em disputa, a
Resolução CNE/ CP 1/ 2006 resolve ser o pedagogo um profissional docente incumbido,
dentre outros, do magistério de todas as disciplinas da Educação Infantil e séries iniciais do
Ensino Fundamental. Tanto em termos legais quanto pela própria dinâmica das instituições
formadoras e organizações classistas, a Pedagogia se firma como lócus privilegiado para a
formação de docentes multidisciplinares para as séries iniciais da escolarização, o que faz
concluir ser o pedagogo o profissional responsável pelo trabalho com a música nestes
níveis.
Com o intuito de avaliar as possibilidades e limites desta atuação, foi proposto o
debate sobre a relação entre o pedagogo e a linguagem musical que fez sobressair a
viabilidade deste profissional trabalhar com a música desde que bem formado tanto em
nível inicial quanto em instâncias de formação continuada. Uma idéia interessante emergiu
quando da proposição da parceria entre o pedagogo e o especialista (licenciado em música)
no universo escolar. A parceria pressupõe que ambos caminhem juntos em prol da
democratização da música nas escolas regulares brasileiras. Cada um com papéis
específicos, não-excludentes e integrados visando ao crescimento profissional coletivo, à
constituição de novos significados para suas práticas e ao desenvolvimento musical dos
alunos.
Quando da verificação da presença da música em cursos regulares de Pedagogia da
região Centro-Oeste
27
, um quadro desolador despontou: o ensino musical possui presença
marginal nos currículos pesquisados. Muitas instituições sequer contemplam a Arte; outras
embora a contemplem acabam por deixar de lado a música, uma de suas modalidades. Não
se pode esquecer, todavia, que alguns estabelecimentos de ensino, ainda que em número
reduzido, vêm trabalhando no sentido de pincelar outra paisagem para a música nos cursos
de Pedagogia, mediante sua inclusão enquanto disciplina obrigatória para a formação,
26
Vide capítulo 2.
27
Vide capítulo 3.
atuação e profissionalização do futuro pedagogo. Estas iniciativas podem servir de base
para estudos e propostas que visem valorizar o ensino musical, difundi-lo e redimensioná-
lo.
Em vista disto, é possível afirmar que de modo geral os pedagogos da região
Centro-Oeste não são formados para lidar com a música - seus saberes, metodologias e
referenciais particulares na escola regular. Isto tende a comprometer a existência de um
ensino musical de relevância e qualidade em turmas de Educação Infantil e séries iniciais
do Ensino Fundamental da região ora investigada. É um exemplo nítido de efeito cascata:
ausência da música em cursos de Pedagogia que leva ao descaso para com o trabalho
musical na escola regular.
Diante deste panorama pouco animador, pareceu não apenas válido como necessário
apontar uma “pauta e propostas para discussão”
28
como fonte de subsídios para novas
pesquisas e ações que tenham por objetivo ressignificar a formação musical do pedagogo e,
de modo amplo, potencializar o diálogo crítico e permanente entre este profissional e a
música. Nesta parte do trabalho, ficou evidente que é preciso dilatar o alcance e
profundidade da noção de parceria entre a Música e a Pedagogia e, por conseguinte, entre
especialistas e pedagogos. É extremamente rica a troca de contribuições entre as duas áreas
do conhecimento: aproximá-las pode levar à criação de caminhos e soluções originais
diante da complexa tarefa de formar profissionais da educação. Igualmente produtiva é a
interação entre especialistas e pedagogos no ambiente escolar, em cursos de graduação,
programas de formação continuada. O intercâmbio de suas vivências e de seus saberes
certamente trará novas perspectivas para a educação e para a música, além de representar
uma alternativa para que a educação musical seja compreendida, solicitada e aplicada de
forma sistemática.
Ao ventilar idéias para novas discussões, este trabalho surge como instrumento de
apoio para estudos, propostas e projetos empenhados com o importante processo de
inclusão da música na formação do pedagogo, cuja trajetória é ainda inicial. um longo
caminho para percorrer até que a música ocupe o lugar que lhe é devido na formação de
nossos professores e esta pesquisa se aventura a abrir novos horizontes para um cenário
ainda carente de trilhas. O percurso ora iniciado precisa ser levado adiante por pedagogos,
especialistas em música, instituições formadoras, organizações classistas que dêem à
formação musical fundamento e força para expandir.
28
Vide capítulo 4.
O objetivo maior é formar musicalmente o pedagogo de modo a promover uma
educação musical democrática e de qualidade nas séries iniciais da escolarização.
Almejamos um projeto educativo comprometido com a formação integral de cidadãos que
se mostrem no mundo, que construam novas perspectivas para sua existência e cujas ações
sejam capazes de transformar a eles próprios e à sociedade. Ao formá-los em termos
musicais, estaremos contribuindo para que participem de forma ativa do delineamento
incessantemente híbrido da paisagem sonora de sua realidade. Participação que presume
conhecer, compreender, fazer e refletir sobre a música em suas múltiplas e férteis
possibilidades.
Não podemos mais permitir que o pedagogo continue privado de uma formação
musical sistemática e efetiva, pois sua contribuição para levar adiante esta empreitada é
inequívoca, contribuição que ganha em beleza e consistência quando inundada pelos
encantos surpreendentes da música.
____________________________
Goiânia, setembro de 2007
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