Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES
HISTÓRIA FETICHISTA: O APARELHO DE HEGEMONIA FILOSÓFICO
INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA / CONVIVIUM (1964-1985)
Marechal Cândido Rondon
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
- 1 -
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
RODRIGO JURUCÊ MATTOS GONÇALVES
HISTÓRIA FETICHISTA: O APARELHO DE HEGEMONIA FILOSÓFICO
INSTITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA / CONVIVIUM (1964-1985)
Dissertação apresentada para exame da banca como
requisito para obtenção do grau de mestre. Programa de
Pós-graduação stricto sensu em História, com área de
concentração em História, Poder e Práticas Sociais, em
nível de Mestrado, da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná UNIOESTE campus de Marechal Cândido
Rondon.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Grassi Calil
Marechal Cândido Rondon
2009
ads:
- 2 -
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca da UNIOESTE Campus de Marechal Cândido Rondon PR., Brasil)
Gonçalves, Rodrigo Jurucê Mattos
G635h História fetichista: o aparelho de hegemonia filosófico
Instituto Brasileiro de Filosofia / Convivium (1964-1985) /
Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves. Marechal Cândido Rondon,
2009
180 p.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Grassi Calil
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Campus de Marechal Cândido
Rondon, 2009.
1. Instituto Brasileiro de Filosofia. 2. Revista
Convivium. 3. Revolução passiva. 4. Aparelho de hegemonia
filosófico. 5. Ideologia brasileira I. Universidade
Estadual do Oeste do Paraná. II. Título.
CDD 21.ed. 320.5
981.063
CIP-NBR 12899
Ficha catalográfica elaborada por Marcia Elisa Sbaraini Leitzke CRB-9/539
- 3 -
Dedico este trabalho ao proletariado.
E àqueles que lutaram, lutam e lutarão pela Revolução.
- 4 -
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, quero agradecer as duas grandes protagonistas que me ajudaram
durante o mestrado. À minha mãe e ao meu amor, Tati, por me ajudarem a construir as
condições objetivas e subjetivas para que este trabalho se realizasse.
À minha irmã Dyliane que mesmo morando tão longe, do outro lado do Atlântico,
está sempre tão perto, tão presente; obrigado pelos livros, pelas inúmeras horas de conversas e
pelas traduções. Agradeço ao meu pai (in memorian) por tudo o que me ensinou. Como eu
poderia dizer que também vocês, papai e Aninha, não são protagonistas de minha vida?
Ao meu amigo Pedro Leão (e sua esposa Grazyna), agradeço o acesso à biblioteca, o
empréstimo e a doação dos inúmeros livros; agradeço a amizade e as inúmeras horas de
conversas. Juntos combatemos o capital.
Ao meu amigo Luiz Sabeh, agradeço a amizade. Em campos de batalha diferentes,
lutamos juntos.
Ao professor Erivan Karvat, agradeço a colaboração na elaboração do projeto de
pesquisa.
Agradeço sem distinção a todo corpo docente e discente das linhas de pesquisa
Estado e Poder e Trabalho e Movimentos Sociais do Mestrado em História da Unioeste.
Encontrei um ótimo ambiente para o estudo, para o debate, para a pesquisa e para fazer
amizades. Ao Gilberto Calil (meu orientador) e à Carla Silva quero agradecer todo o
conhecimento que me transmitiram, as dicas, as orientações e, principalmente, por terem me
ensinado a ver as coisas com olhar mais sagaz. Ao aluno do mestrado Marcos Ribeiro quero
agradecer a amizade, sempre lembrarei nossas tardes e noites de vadiagem ilustrada em que
discutíamos o que estávamos lendo e os problemas do mundo. À secretária do mestrado, Iraci
Urnau, agradeço toda a atenção e toda disposição em ajudar no que precisei.
Agradeço aos trabalhadores que operam as máquinas de xerox, de Rondon e de
Curitiba. Agradeço a Biblioteca Pública do Paraná e as bibliotecas da Unioeste, da UFPR, e
da PUC-PR (aos trabalhadores desta agradeço a atenção, não era fácil respirar dentro do
arquivo morto, muito menos procurar as revistas Convivium armazenadas em velhas caixas).
Por fim, agradeço aos meus camaradas do Partido Comunista Brasileiro,
principalmente ao Jorge Chaves, ao Amadeu Felipe e ao Ivan Pinheiro que tanto me ensinam.
Juntos lutamos por um mundo melhor, sem mazelas sociais.
- 5 -
“O mundo é grande e terrível e complicado.
“Instruam-se, porque necessitaremos de toda nossa inteligência...
Comovam-se, porque necessitaremos de todo nosso entusiasmo...
E organizem-se, porque necessitaremos de toda nossa força.”
- 6 -
SUMÁRIO
LISTA DE ABREVIATURAS
08
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
10
RESUMO
11
RÉSUMÉ
12
INTRODUÇÃO
13
1. AS CATEGORIAS DE ANTONIO GRAMSCI E A REALIDADE
BRASILEIRA
20
1.1 GRAMSCI E A REVOLUÇÃO PASSIVA
21
1.2 O PARTIDO POLÍTICO PARA ANTONIO GRAMSCI: O PAPEL
HISTÓRICO DOS
INTELECTUAIS E DOS APARELHOS DE HEGEMONIA
41
1.3 DA REVOLUÇÃO PASSIVA & DA HEGEMONIA: O APARELHO DE
HEGEMONIA FILOSÓFICA
50
1.4 A REVOLUÇÃO PASSIVA NO BRASIL
54
2. O APARELHO DE HEGEMONIA FILOSÓFICA
IBF/CONVIVIUM - NA REVOLUÇÃO PASSIVA (1964-1985)
80
2.1 A INTELECTUALIDADE ORNICA DO APARELHO DE
HEGEMONIA FILOSÓFICA IBF/CONVIVIUM (1964-1985)
87
3. ANTONIO PAIM: DE MILITANTE DO PCB A INTELECTUAL
ORGÂNICO DA BURGUESIA
116
3.1 A HISTÓRIA DAS IDÉIAS FILOSÓFICAS NO BRASIL, DE ANTONIO
PAIM
121
3.2 O INÍCIO DE TUDO: O ESTABELECIMENTO DOS RUDIMENTOS
DAS TRADIÇÕES DO PENSAMENTO NO BRASIL
121
3.3 O “EMPIRISMO MITIGADO” E O “PROBLEMA” DA
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
122
3.4 O ECLETISMO COMO MOMENTO CENTRAL DA HISTÓRIA DAS
IDÉIAS NO IMPÉRIO
124
3.5 A FILOSOFIA CALICA
130
3.6 A “ESCOLA DO RECIFE
133
- 7 -
3.7 O POSITIVISMO E O MARXISMO COMO DOIS MOMENTOS DA
TRADIÇÃO “CIENTIFICISTA
138
3.8 A “ESCOLA CULTURALISTA
140
4. A CONSCIÊNCIA CONSERVADORA NO BRASIL, DE PAULO
MERCADANTE: UM MANIFESTO DA REVOLUÇÃO PASSIVA
143
4.1 A HISTÓRIA DO BRASIL NA PERSPECTIVA DE PAULO
MERCADANTE
147
4.2 PAULO MERCADANTE E JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES: UM
DEBATE ENTRE OS INTELECTUAIS DA REVOLUÇÃO PASSIVA
163
COSIDERAÇÕES FINAIS
167
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FONTES
172
BIBLIOGRAFIA
174
- 8 -
LISTA DE ABREVIATURAS
ABI Associação Brasileira de Imprensa
A.H.F. aparelho(s) de hegemonia filosófico
AP Ação Popular
ARENA Aliança Renovadora Nacional
CDPB Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro
CESP Centrais Elétricas de São Paulo
Cf. confira
CGT Comando Geral dos Trabalhadores
CIA Agência de Inteligência dos Estados Unidos
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
DAF Frente do Trabalho Alemão
DIP Departamento de Imprensa e Propaganda
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
DSN Doutrina de Segurança Nacional
FCESP federação de Comércio do Estado de São Paulo
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
FMP Frente de Mobilização Popular
FPN Frente Parlamentar Nacionalista
IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IBF Instituto Brasileiro de Filosofia
INL Instituto Nacional do Livro
IPES Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros
ITN Instituto Tancredo Neves
JK Juscelino Kubitschek
MDB Movimento Democrático Brasileiro
MRS Movimento Renovador Sindical
MSD Movimento Sindical Democrático
NSDAP Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OIT Organização Internacional do Trabalho
PC nos referimos ao PCB
- 9 -
PCB Partido Comunista Brasileiro
PCd‟I Partido Comunista da Ilia
PDS Partido Democrático Social
PDT Partido Democrático Trabalhista
PFL Partido da Frente Liberal
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PT Partido dos Trabalhadores
PUC Pontifícia Universidade Católica
PUC-RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RBF Revista Brasileira de Filosofia
SNI Serviço Nacional de Informações
TFP Tradição, Família e Propriedade
UNE União Nacional dos Estudantes
USP Universidade de São Paulo
- 10 -
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
ILUSTRAÇÃO 1 Capa do panfleto anti-fascista de Romain Rolland, “Os que morrem nas
prisões de Mussolini (Antonio Gramsci) (1933-1934)............................................................24
ILUSTRAÇÃO 2 Ilustração representando a exploração da classe trabalhadora sob o
capitalismo..............................................................................................................................100
FOTOGRAFIA 1 Paulo Mercadante direita) acompanha o militante histórico do PCB,
Carlos Marighella (à esquerda), na saída da prisão durante a anistia de 1945.......................145
- 11 -
RESUMO
O objetivo deste estudo é investigar o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e a revista
Convivium durante a ditadura militar (1964-1985). Por um lado, partindo dos conceitos de
revolução passiva e partido político, elaborados por Antonio Gramsci, e aparelho de
hegemonia filosófico (A.H.F.), de Christine Bucci-Glucksmann, buscamos: (i) a interpretação
da história recente do Brasil a partir da revolução passiva, onde a ditadura é elucidada como
revolução-restauração; (ii) a análise da atuação orgânica, neste contexto, de Miguel Reale,
Antonio Paim e Paulo Mercadante a partir do conceito de partido político e de A.H.F. Paim e
Mercadante foram militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) a1956, quando se
aproximaram de Reale e passaram a integrar, com o tempo, o IBF e a Convivium este
processo é esclarecido pela categoria gramsciana de transformismo. A partir da trajetória
histórica do IBF e da Convivium concluímos que formaram um único A.H.F. - organização
fundamental para a tentativa de construir uma hegemonia de classe durante a ditadura e
instrumento para a luta de classes. Nossa principal fonte é a revista Convivium, publicada de
1962 a meados dos anos 1990, nasceu como uma publicação ligada ao Instituto de Pesquisas e
Estudos Sociais (IPES). Por outro lado, a partir do materialismo histórico, delineado por Karl
Marx e Friedrich Engels n‟A Ideologia Alemã, e da própria revolução-passiva, buscamos
tratar as concepções histórico-filosóficas de Paim e Mercadante desenvolvidas,
respectivamente, nas seguintes obras: História das idéias filosóficas no Brasil e A consciência
conservadora no Brasil. Concluímos que trata-se de uma ideologia brasileira.
Palavras-chaves: Instituto Brasileiro de Filosofia; Revista Convivium; revolução passiva;
aparelho de hegemonia filosófico; ideologia brasileira
- 12 -
RÉSUMÉ
Le objectif de ce travail cest une investigation a propos de l'Institut Brésilien de Philosophie
(IBF) et de la revue Convivium, pendant la période de la dictature militaire (1964-1985). Tout
d'abord, en s'appuyant sur les concepts créé par Antonio Gramsci, de révolution passive et de
parti politique et aussi du concept d‟ appareil d‟hégémonie philosophique (AHF) élaborée
par Christine Bucci-Glucksmann, nous avons cherché les objectifs suivants: (i) une
interprétation de l'histoire récente du Bsil, où la dictature est analyse, avec l‟aide du concept
de révolution passive, comme un exemple de révolution-restauration; (ii) une analyse de l‟
action organique de Miguel Reale, Antonio Paim et Paulo Mercadante, à la lumière des
concepts de parti politique et A.H.F. Paim et Mercadante, qui étaient, dans ses jeunesses, des
militants du Parti Communiste Brésilien (PCB), jusqu'à 1956, lorsqu'il se sont rapproché de
Reale et ont commencé à intégrer, l'IBF et la Convivium. Ce processus est problématisé à
partir du concept gramscien de transformisme. L‟analyse de la trajectoire historique du IBF et
de la Convivium nous a permis de conclure qu‟ils forment 'un seul A.H.F. - organisation
fondamentale pour essaie d'établir une hégémonie de classe pendant la dictature et aussi
comme un outil dans la lutte de classes. Notre principale source c‟est la Revue Convivium,
publié entre 1962 et la moitié des années 1990, revue né, d'une publication antérieure, liée à
l'Institut des Recherches et d'Études Sociales (IPES). Enfin, en s'appuyant dans les concepts
du matérialisme historique, élaborées par Karl Marx et Friedrich Engels dans l Idéologie
Allemande, et du concept, déjà nommé, de révolution passive, nous essayions de caractériser
les conceptions historiques et philosophiques de Paim et Mercadante développés,
respectivement, dans les ouvrages: Histoire des idées philosophiques au Brésil et Conscience
conservatrice au Brésil; comme un exemple d' idéologie brésilienne.
Mots-clés: Institut Brésilien de Philosophie; Revue Convivium; révolution passive; appareil
d‟hégémonie philosophique; idéologie brésilienne
- 13 -
INTRODUÇÃO
O que é a história de um partido? [...] Será preciso escrever a história de
uma determinada massa de homens que seguiu os iniciadores, sustentou-se
com sua confiança, com sua lealdade, com sua disciplina, ou que os criticou
“realisticamente”, dispersando-se ou permanecendo passiva diante de
algumas iniciativas. [...] Evidentemente, será necessário levar em conta o
grupo social do qual o partido é expreso e a parte mais avançada: ou
seja, a história de um partido não poderá deixar de ser a história de um
determinado grupo social.
Antonio Gramsci
Uma idéia, uma obra recebe sua verdadeira significação quando é
integrada ao conjunto de uma vida e de um comportamento. Além disso,
acontece freqüentemente que o comportamento que permite compreender a
obra não é o do autor, mas o de um grupo social (ao qual o autor pode não
pertencer) e sobretudo, quando se trata de obras importantes, o
comportamento de uma classe social.
Lucien Goldmann
Inicialmente, havíamos projetado pesquisar as trajetórias intelectuais de Paulo
Mercadante e Antonio Paim; teríamos como primeiro e principal foco a análise de algumas
obras escritas por estes autores. A atuação política destes homens apareceria de modo
subordinado à elaboração teórica. Com a evolução de nossos estudos e com a contribuição
de Gramsci e Goldmann - vimos que se tratava de fazer exatamente o contrário. Assim, num
segundo momento, percebemos que a atuação orgânica de Mercadante e Paim é que justifica
inclusive as obras que produziram; foram os aparelhos privados de hegemonia e o Estado
(editoras, institutos, financiamentos privados e estatais) que propiciaram as condições
objetivas para que pudessem publicar.
Partimos das seguintes premissas filosóficas definidas por Karl Marx e Friedrich
Engels n‟A Ideologia Alemã obra que constitui “na realidade a primeira exposição um
pouco pormenorizada, da concepção materialista da história”
1
:
A produção das idéias, das representações e da consciência [...] é a
linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio
intelectual dos homens aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu
comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual tal
como se apresenta na linguagem da potica, na das leis, da moral, da
religião, da metafísica etc. de todo um povo. São os homens que produzem
suas representações, suas idéias etc., mas os homens reais, atuantes, tais
como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas
forças produtivas e das relações que a elas correspondem, inclusive as mais
amplas formas que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais
1
BOTTIGELLI, Émile. A gênese do socialismo científico. Lisboa: Editorial Estampa, 1971. p. 173
- 14 -
do que o ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real. E,
se, em toda a ideologia, os homens aparecem de cabeça para baixo como em
uma câmera escura, esse fenômeno decorre de seu processo de vida
histórico, exatamente como a inversão dos objetos na retina decorre de seu
processo de vida diretamente físico.
Ao contrário da filosofia alemã, que desce dou para a terra, aqui é da terra
que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens
dizem, imaginam ou representam, tampouco do que eles são nas palavras, no
pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se
chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua
atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos
também o desenvolvimento dos reflexos das repercussões ideológicas desse
processo vital. E mesmo as fantasmagorias existentes no cérebro humanos
são sublimações resultantes necessariamente do processo de sua vida
material, que podemos constatar empiricamente e que repousa em bases
materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e todo o restante da
ideologia, bem como as formas de consciência a elas correspondentes,
perdem logo toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm
desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua
produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade
que lhe é própria, seu pensamento e também os produtos de seu pensamento.
Não é a Consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a
consciência.
2
A Ideologia Alemã representa a revolução filosófica do marxismo, pois demonstra que a idéia
parte da história contrariamente ao idealismo, que via o primado da idéia sobre a história. A
consciência é um produto social, ela também é condicionada pelo “ser”, pela existência
material do homem. Assim, do ponto de vista do materialismo histórico, o primado do
ser
3
. Neste sentido, Bottigelli diz que:
A consciência está estreitamente ligada ao ser, nas condições materiais em
que o homem vive e que modifica com a sua ação. O seu conteúdo vai-se
transformando à medida que o sistema de relações (de produção material,
sociais, etc.) e a natureza das necessidades do homem se transformam. A um
certo nível de desenvolvimento produz-se então a divisão entre o trabalho
material e o intelectual, que consagra a própria divisão do trabalho.
4
Assim, a concepção de que a filosofia trafega no plano da “pura idealidade”, que
supostamente não teria qualquer relação com a história, com as relações sociais entre as
classes sociais, é a mais pura expressão da divisão do trabalho material e do trabalho
intelectual. A aparência de autonomia do trabalho intelectual é genuína expressão da divisão
do trabalho, e esta, por sua vez, é a mais cabal manifestação da sociedade dividida em classes.
Daí “os intelectuais, a quem coube o papel de produtores no domínio do pensamento podem,
2
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 18-20
3
BOTTIGELLI, Émile. A gênese do socialismo científico... p. 176-7
4
Idem, p. 176-7
- 15 -
assim, imaginar que é a teoria que faz a história”
5
. Desta maneira, não deixamos de abordar
algumas obras de Paim e Mercadante, mas agora, a partir da perspectiva do materialismo
histórico e dialético, suas concepções teóricas aparecem no devido lugar.
Como se poderá ver, os intelectuais do IBF/Convivium tentam construir o chamado
“pensamento brasileiro”, que teria ficado obscurecido por “momento olvidados. A eles
caberia a tarefa de resgatar do esquecimento a filosofia nacional. Quanto à metodologia da
pesquisa, os ibeefeanos se distanciam seja do materialismo histórico, seja do chamado
“historicismo” - não estabelecem qualquer relação entre a história e a evolão da filosofia. O
intelectual mais veemente combatido pelos ibeefeanos foi João Cruz Costa, professor da USP,
autor de diversas obras, como Panorama da História da Filosofia no Brasil
6
e Contribuição à
história das Idéias Filosóficas no Brasil
7
. Segundo Pedro Costa, a concepção de João Cruz
Costa se caracterizava por um “humanismo pragmático fortemente marcado por uma reflexão
anti-sistêmica e com um forte interesse pela história”
8
. Para Cruz Costa, a história das idéias
filosóficas no Brasil desde seus primórdios se caracterizou pela história da recepção, da
transformação até da deformação das idéias filosóficas que, por sua vez, eram norteadas
por interesses pragmáticos. Daí a importância de amarrar na história a análise da evolução das
idéias filosóficas no Brasil. Neste sentido, a seguinte noção é fundamental para compreender a
questão de nossa história e da filosofia no Brasil: “o abismo entre as elites e as massas [...].
João Cruz Costa encerra este pequeno livro afirmando: Já se disse que o Brasil é o país dos
contrastes. E o maior é talvez o que existe entre a vida pública e o povo.
9
Cruz Costa chama
a atenção para o nível incipiente da reflexão filosófica no Brasil e toda a sua obra é uma
tentativa de explicar a extrema fragilidade desta tradição interessante atentar para o seguinte
fragmento:
Mas, - perguntamos teriam sido assim, tão destituídos de valor, esses
representantes da filosofia, no Brasil? Não teriam expressado absolutamente
nada de nacional, nada da vida brasileira? Não haveria nesse acúmulo de
leituras, nessa exposição de erudição, alguma coisa de significativo? E essa
dúvida é que nos leva a examinar novamente, hoje, as obras massudas,
cacetes, desses filosofantes eruditos do século XIX. É preciso não perder de
5
Idem, p. 177
6
COSTA, João Cruz. Panorama da História da Filosofia no Brasil. São Paulo: Cultrix, 1960.
7
COSTA, João Cruz. Contribuição à história das Idéias Filosóficas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967.
8
COSTA NETO, Pedro Leão da. João Cruz Costa: historiador das idéias no Brasil. Revista da Sociedade
Brasileira de Pesquisa Histórica, Curitiba, n. 23, 2002. p. 05
9
Idem, p. 06, apud. COSTA, João Cruz. Pequena História da República. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.
146 grifos do autor
- 16 -
vista o sentido que essas obras tomam à luz do momento hisrico em que
foram escritas e que finalidade visavam.
10
O autor remete à importância do método histórico para o estudo da evolução genética
da filosofia no Brasil e, por isso mesmo, fora constantemente combatido pelo IBF.
Contrariamente, para Cruz Costa não houve uma “filosofia nacional”, conforme acreditavam
os ibeefeanos. Para ele, no Brasil constituiu-se uma frágil tradição filosófica; no século XIX, a
evolução da filosofia ficou assim caracterizada:
[...] i) a filosofia no Brasil foi uma sequência de recepção de idéias
filosóficas, determinada muitas vezes pelo conhecimento de línguas
estrangeiras, ii) as obras filosóficas aqui criadas, são caracterizadas pela
predominância de títulos introdutórios, iii) caráter não especialista da
formação filosófica no país, o que levará a um auto-didatismo e diletantismo
nas preocupações filosóficas, o que levará a uma grande versatilidade, iv) a
maioria das filosofias européias recebidas no Brasil, são hoje praticamente
esquecidas em seus países de origem e enfim v) uma grande parte da
influência das idéias filosóficas no Brasil se deve a presença entre nós de
movimentos organizados.
11
no século XX, a filosofia ficou limitada a alguns pólos de reflexão da filosofia no Brasil: a
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP (criada em 1934); a Universidade do Distrito
Federal (1935), transformada em Faculdade Nacional de Filosofia (1937); a Faculdade de
Filosofia da Universidade de Minas Gerais (1939); o IBF (1949); e o Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (1955). Assim, para Cruz Costa, não houve uma filosofia nacional.
Quanto a questão de se existe ou não um pensamento nacional, Raymundo Faoro
envereda por um caminho distinto tanto de Cruz Costa, quanto do IBF. Faoro busca o
chamado “elo perdido” do pensamento brasileiro e, partindo de um método que leva em
consideração a história, chega a resultados bem diferentes. Segundo ele, na história do
pensamento político no Brasil um “elemento nacional” forjado nos movimentos de 1789
(Inconfidência Mineira), na repressão do Rio de Janeiro (1794), na Revolução dos Alfaiates
da Bahia (1798), irradiando-se em 1817, 1824, 1831, e nas insurreições do período regencial
(1842 e 1848)
12
. Segundo Faoro a questão pode ser entendida a partir da dissolução do
sistema colonial, quando todos os setores da economia estavam em crise (o açúcar, o algodão,
o ouro, etc.). O sistema colonial estava sufocado pelos monopólios, estancos, pelo fiscalismo
predatório que buscava compensar a produção reprimida; a estrutura repressiva exacerbou-se.
10
Idem, p. 07
11
Idem, p. 07
12
Cf. FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994. p. 52
- 17 -
Deste contexto se definiram dois grupos sociais antagônicos: a burguesia comercial o
elemento reacionário da Independência e o elemento nacional composto pelos produtores
reprimidos e seus intelectuais (padres e letrados). Faoro diz que é uma grande falácia dizer
que os produtores compunham o elemento reacionário, pois sofriam todo o peso do sistema
colonial
13
.
Na visão de Faoro, primeiro vieram os conspiradores mineiros, proprietários e
senhores, não queriam mais depender dos favores oficiais para atenuar a carga do sistema
colonial; seu escopo era a separação da metrópole e a organização de um Estado republicano.
Chegaram a colocar o problema da representação e do governo; comprometeram-se em
libertar os mulatos e negros nascidos no país, como expediente de segurança do movimento
os escravos seriam “massa de manobra”. Essencialmente, foram influenciados pelo
liberalismo de Locke e de Adam Smith, este último traduzido por um dos inconfidentes. Para
o autor o modelo dos mineiros era um liberalismo suave.
14
Liberalismo mais radical “irado”, nas palavras de Faoro - teria surgido na
Inconfidência Baiana de 1798. Aqui, diferentemente de Minas Gerais, a massa popular
encontra, ainda que minimamente, a voz jacobina. Não haveria limites à libertação, todos
escravos seriam libertos. A inquietação baiana foi percebida desde 1792, estimulada pela
revolta escrava haitiana. Contaria também com grande influência liberal de Cipriano Barata,
cirurgião, proprietário e senhor de escravos, formara-se em filosofia na Universidade de
Coimbra, não concordava com a libertação ilimitada dos escravos. Ainda assim, o movimento
aludia às leituras estrangeiras e contestava o “poder indigno e tirano do rei; fixou
reivindicações concretas o comércio livre, liberto do monopólio colonial -, sobretudo para
os senhores de engenho e de terras.
15
Neste sentido:
As aspirações dos revolucionários de 1798 eram condicionadas pelas
relações existentes numa sociedade escravista [...] Sentiam o preconceito da
cor e as restrições injustas aos negros e pardos, mesmo aos livres, mesmo
aos oficiais das milícias ou das linhas. Todavia, a revolta contra essas
inibições sociais e de cor era dirigida especificamente contra o poder
lusitano. Os revolucionários não se erguiam mesmo os escravos, libertos
ou filhos de escravos contra os latifundiários escravistas, exploradores
diretos do trabalho escravo. [...] responsabilizavam a condição colonial pelas
injustiças e perseguições que sofriam.
16
13
Idem, p. 56
14
Idem, p. 60-1
15
Idem, p. 62-3
16
Idem, p. 64, apud. DIAS TAVARES, L. H. Introdução ao estudo das idéias e do Movimento Revolucionário
de 1798. Bahia: Progresso, 1959. p. 28
- 18 -
Segundo Faoro, 1798 demonstra que os senhores rurais não constituíam o elemento
reacionário, mas, ao contrário, o elemento liberal mais avançado. Para o autor, se iniciara
assim a formação duma tradição peculiar do Brasil.
A transmigração da Corte, em 1808, é vista por Raymundo Faoro como um acidente à
tradição nacional, pois a ala mais à esquerda acabaria pendendo para à ala direita que, por sua
vez, lograra metropolizar a Colônia. Ainda assim, em 1817, em Pernambuco, os senhores de
engenho voltariam à carga contra os mercadores, que mantinham os privilégio mesmo após a
volta da Corte para Portugal. Os intelectuais da revolução foram 60 padres e 10 frades, tendo
como seu líder, Joaquim do Amor Divino, o Frei Caneca que proclamava: A soberania
estava nos povos, Os povos não são herança de ninguém. Deus não quer sujeitar milhões de
seus filhos ao capricho de um só. Os reis não são emanação da divindade, são autoridades
constitucionais [...] Os povos tem o direito de mudar a forma de governo”
17
. Segundo Faoro,
muitos revolucionários de 1817 aderiam à transação da Independência, mas romperiam na
Assembléia Constituinte, quando se estabeleceu a precedência do rei sobre Constituição.
Nesta acepção, daí foram provenientes inúmeras revoltas: a Cabanada no Pará, a Balaiada no
Maranhão, a Sabinada na Bahia e a Farroupilha no Rio Grande do Sul. Mas
Os conservadores, os absolutistas e os moderados, se recompõem e, em
poucos anos, freiam o „carro da revolução‟. [...] O liberalismo teve uma base
social definida, embora não compacta. Não contou com a burguesia
industrial, como o europeu [...] Conviveu com o escravismo, o que não o
desajusta de seu arcabouço teórico, de acordo com o padrão mais persistente,
o de Locke. [...] Este não será, entretanto, o liberalismo que a historiografia
leva em conta. Há outro liberalismo, com diversa fonte, que bem merece
figurar entre aspas, havido como peculiar do Brasil”
18
.
Segundo Faoro, D. João VI temia pelo fim da Coroa, com a revolução do Porto de 1820.
Convocou o seu ministro Silvestre Pinheiro Ferreira, outorgou uma carta constitucional e
promoveu uma reforma absolutista, com o caráter de liberalização:
[...] ceder para não perder tudo. Era o absolutismo vestido de liberal,
opinando que, antecipando-se às Cortes, D. João VI outorgasse uma carta
constitucional. [...] É o liberalismo como tática absolutista. [...] A
organização do regime constitucional brasileiro não conversível, ao contrário
do que entendeu a historiografia brasileira, no liberalismo. O teor de suas
idéias não ultrapassava o neopombalismo, tais como expressas por José
Bonifácio”
19
.
17
Idem, p. 70, apud. Frei Caneca. Obras poticas e literárias. Recife: Assembléia Legislativa de Pernambuco,
1979. p. 28
18
Idem, p. 73.
19
Idem, p. 78-80
- 19 -
Assim para Raymundo Faoro, o “absolutismo mascarado” de D. João VI e D. Pedro I
“desclassificou todas as concepções liberais autenticamente liberais. [...] o absolutismo
reformista assume, com o rótulo, o liberalismo vigente, oficial, o qual, em nome do
liberalismo, desqualificou os liberais”
20
. Para Faoro o elo perdido” contrariamente aos
“momentos olvidados” de Reale, como se verá é um liberalismo que foi arredado da vida
nacional pelo absolutismo de D. João VI e D. Pedro I - teorizado por Silvestre Pinheiro
Ferreira.
Mas nosso objetivo de trazer para este debate sobre a filosofia no Brasil é apenas
fazer uma brevíssima contextualização do problema. De nossa parte, como se verá no segundo
capítulo, trataremos da atuação orgânica do IBF/Convivium durante a ditadura (1964-1985).
Caracterizamos este período como o principal momento da revolução passiva no Brasil, e a
citada organização como uma de suas principais engrenagens.
No primeiro capítulo o leitor encontra a teoria que norteia nossa caminhada nas
veredas tortuosas da luta de classes. Primeiramente, trabalhamos com as categorias de
revolução passiva e a partido político (desenvolvidas por Gramsci). Cada uma,
respectivamente, contribui para explicar a história do Brasil a partir do ângulo que nos
interessa para explicar a atuação partidária de Mercadante e Paim. A partir deste momento
vimos, por um lado, que estes dois intelectuais eram apenas pequena parte de sua classe
social, por outro lado, que a burguesia utiliza as organizações partidárias e os intelectuais
orgânicos para a luta de classes. É necessário sublinhar que aqui “partido político” é pensado
de maneira bem mais ampla que o habitual, que o senso comum. Com a contribuição de
Christine Buci-Glucksmann encontramos o viés específico (o “nicho” filosofante) de atuação
da organização destes homens - que agora já apareciam liderados por Miguel Reale e
acompanhados por outros (como Adolpho Crippa, Creusa Capalbo, Nelson Saldanha, Ricardo
Vélez Rodrigues) -, conformados no Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e na revista
Convivium, que definimos como o aparelho de hegemonia filosófico
21
IBF/Convivium. A
filosofia é entendida aqui segundo a concepção materialista e histórica; a filosofia não se
limita às “idéias”, ao pensamento “puro” – conforme propalado pela organização em apreço.
No segundo capítulo buscamos elucidar a atuação do IBF/Convivium durante a
ditadura (1964-1985). O IBF, criado em 1949, surgiu como aparelho de hegemonia da
burguesia, mas com uma área de atuação específica, de viés filosofante. A partir de 1962, o
20
Idem, p. 82-3
21
Appareil d‟hégémonie philosophique
- 20 -
IBF passou a contar com o reforço da revista Convivium. Este periódico, criado em 1962
como uma organização tipicamente ipesiana (o IPES), participou ativamente da construção do
golpe de 1964. Após o 31 de março/ de abril daquele ano, atuou para consolidar o regime.
Consolidado, seus intelectuais destaque para a marcante atuação orgânica de Miguel Reale -
estiveram à frente de um dos fronts da luta de classes. E o IBF/Convivium não acabou com o
regime autocrático, na abertura e mesmo após a abertura esta organização atuou em militância
ativa e agressiva.
No terceiro e no quarto capítulo, buscamos demonstrar que Paim tenta construir uma
“história das idéias” independente e descolada da história. No entanto, a história do
pensamento das idéias, da filosofia - não pode ser outra que a da própria humanidade em
cada estágio particular de sua história. Da mesma forma, Mercadante tenta construir a noção
de que paira sobre o Brasil o “espírito” da “conciliação”, da “moderação”, que chega mesmo a
habitar a fisiologia dos brasileiros. Para nós, a sua obra A consciência conservadora no Brasil
é muito mais do que um simples compêndio de ensaística, e muito menos do que um exercício
rigoroso de ciência social.
Quanto às nossas fontes, a principal para elucidar a atuação orgânica do
IBF/Convivium são as revistas Convivium. Nos limitamos à análise dos principais intelectuais
(com maior número de publicação) no já citado periódico e na ibeefeana Revista Brasileira de
Filosofia; recortamos ao período explicitado no título do presente trabalho (1964-1985); e nos
limitamos às temáticas imediatamente relativas ao nosso problema (pois encontramos na
Convivium artigos sobre arte, epistemologia, poesia, ctica literária, etc.). As principais obras
para a compreensão da concepção de Antonio Paim são a História das idéias filosóficas no
Brasil (1967) e O estudo do pensamento filosófico brasileiro (1985-6). Já em relação a Paulo
Mercadante, é seu compêndio A consciência conservadora no Brasil (1965). Consideramos
estas obras como a expressão teórica mais acabada da revolução passiva no Brasil.
1. AS CATEGORIAS DE ANTONIO GRAMSCI E A REALIDADE BRASILEIRA
Antonio Gramsci desenvolveu nos Cadernos do Cárcere diversas categorias que,
como foi assinalado por outros autores, permitem um alto grau de generalização, e foram
utilizados para diferentes interpretações de distintos contextos. Assim, feitas as devidas
ressalvas e respeitadas as especificidades de cada processo histórico, utilizaremos dois
conceitos de sua autoria que serão nossos guias, serão a chave interpretativa de nosso
- 21 -
trabalho. Um destes conceitos é o de partido político, que não pode ser entendido sem a noção
de intelectuais orgânicos, e que desdobraremos em aparelho de hegemonia. A outra categoria
é a revolução passiva que, como se verá, contribui para explicação histórico-historiogfica e
teórico-prática, portanto, paradigmática. Acreditamos que as duas categorias podem ser
articuladas através da noção de aparelhos de hegemonia filosófica conforme a contribuição
de Christine Buci-Glucksmann
22
. Este capítulo se divide em duas partes, a primeira mais
teórica necessária para a tentativa de um devido aprofundamento teórico-conceitual -, e a
segunda é o panorama histórico da revolução passiva no Brasil durante a Ditadura (1964-
1985) e o período que a antecede sem o qual tornaria estéril os citados conceitos
desenvolvidos por Gramsci.
1.1 GRAMSCI E A REVOLUÇÃO PASSIVA
O Risorgimento italiano desenvolveu-se todo através do século XIX, mas se
desenvolveu mais no sentido da história passiva do que da história ativa.
Antonio Labriola
Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi.
23
O Leopardo, de Giuseppe di Lampedusa
O Risorgimento, na medida que „frustrou‟, na expressão de Gramsci, sua
revolução popular e, particularmente, camponesa, se afasta da revolução
burguesa de tipo clássico cujo modelo é representado pela Revolução
Francesa. [...] Na França, a burguesia revolucionária tinha afinal
sustentado a luta do campesinato contra a feudalidade e mantido tal aliança
até sua liquidação: na Ilia, face à massa camponesa, soldou-se o bloco da
aristocracia fundiária e da burguesia capitalista. [...] Para os liberais
moderados, artesãos dessa Unidade, e, antes dos mais, Cavour, cujo nome
por si simboliza essa comunidade de interesses, não se podia admitir a
via revolucionária francesa: a sublevação das massas camponesas teria
feito perigar sua dominação política.
Albert Soboul
Para Mussolini e para os fascistas era um tema corrente. [...] O comunismo
ou o bolchevismo, como eles preferiam chamá-lo, talvez pensando que o
termo exótico fosse capaz de espantar era apresentado como o maior
dos males que poderiam afligir uma sociedade, uma forma de delinqüência
política, essencialmente, ou uma delinqüência comum. Daí provinha, como
derivação imediata, a afirmação da necessidade do regime fascista e, por
conseguinte, a sua exaltação.
Palmiro Togliatti
22
BUCI-GLUCKSMANN, Chirstine. Gramsci e o Estado: por uma teoria materialista da filosofia. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
23
“Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.
- 22 -
Trabalhar com os Cadernos do cárcere é sempre, por diversas razões, um desafio.
Antonio Gramsci nos estimula a pensar profundamente os mais diferentes temas, assuntos e
problemas de todas áreas do pensamento social; e nos impressiona ver a sua coerência, nunca
abalada, seja pela diversidade das questões tratadas nos Cadernos, como também pelo seu
encarceramento imposto pelo fascismo italiano. Nosso objetivo neste tópico é expor a
conceituação de Gramsci da revolução passiva, e a contribuição deste conceito para a
interpretação da história e da historiografia. A revolução passiva é tratada pelo comunista
sardo nos seguintes cadernos:
- Caderno miscelâneo 4, de 1930-1932, presente no volume 5 da edição brasileira;
- Caderno miscelâneo 8, de 1931-1932, volume 5 da edição brasileira;
- No período 1932-1935, caderno especial 10 (denominado “A filosofia de Benedetto
Croce”), presente no volume 1 da edição brasileira, assim como também o caderno
miscelâneo 14 (vol. 5);
- No caderno miscelâneo 15, de 1933, presente no volume 5;
- E no caderno especial 19, que Valentino Gerratana chamou de Risorgimento
italiano”, de 1934-1935, presente no volume 5.
A primeira vez que Gramsci fala da “revolução passiva” é numa breve nota relativa a
Vincenzo Cuoco (1770-1823). Cuoco participou da revolução napolitana de 1799 e depois
acabou preso e exilado. Escreveu a obra Saggio storico sulla rivoluzione napoletana (1801),
onde pela primeira vez apareceu o conceito de “revolução passiva” para caracterizar a
revolução napolitana, provocada pelo impacto da Revolução Francesa e das guerras
napoleônicas. No entanto a revolução se restringiu a um grupo pequeno de intelectuais que
não souberam colocar em pauta as necessidades concretas do povo; os franceses, em 1789,
contrariamente, haviam realizado uma “revolução ativa”, capaz de se defender de seus
inimigos e, com consenso popular, partir para a ofensiva
24
. Gramsci traz a questão da seguinte
maneira: Vincenzo Cuoco chamou de revolução passiva a revolução ocorrida na Itália,
como conseqüência das guerras napoleônicas. O conceito de revolução passiva me parece
exato não para a Itália, mas também para os outros países que modernizaram o Estado
através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revolução
política de tipo radical-jacobino
25
. Assim o conceito aparece pela primeira vez de uma
24
Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 371
25
Idem, p. 209-10
- 23 -
forma mais genérica, mas que “parece” para o comunista italiano que pode explicar os países
que se modernizaram sem passar por revoluções populares. Mas já surge também a questão da
especificidade da modernização via revolução passiva, realizada através de reformas e guerras
nacionais e não pelo caminho revolucionário clássico.
Segundo Christine Buci-Glucksmann, Gramsci utiliza o conceito lançado por Cuoco
para analisar a história da Itália e a sua revolução burguesa, o “Risorgimento do século XIX;
que fora uma „revolução sem revolução‟, revolução passiva, [isto] é o oposto do modelo
jacobino francês
26
. Como vimos anteriormente, Gramsci trabalha com esta questão entre os
anos de 1930 e 1935, mas a categoria da revolução passiva nasceu para interpretar e combater
o fascismo, regime que lhe aprisionou em novembro de 1926 sentenciando: “Por 20 anos
devemos impedir que este rebro funcione”
27
. Os Cadernos do Cárcere são a prova de que,
apesar da reclusão e de todas as privações por que passou, Gramsci derrotou a violenta
sentença; ele dedicou-se até o último momento que sua saúde permitiu ao combate tenaz a um
dos regimes mais odiáveis que existiram e o foram poucas as ocasiões que confirmam
isso:
Em 16 de maio de 1924, Mussolini, presidente do Conselho de Ministros,
encaminha ao parlamento Italiano um projeto de lei visando “disciplinar a
atividade das associações e institutos”. [...] Gramsci, então deputado,
pronunciou um discurso no qual punha a nu o cater antidemocrático do
projeto e aproveitava para denunciar as manobras fascistas no sentido de
implantar no país uma ditadura.
O pprio Mussolini, irritado, resolveu apartear o franzino e corajoso
deputado marxista, definindo o fascismo como uma revolução”. Gramsci
retrucou-lhe que o fascismo não era uma revolução, mas uma “simples
substituição de um pessoal administrativo por outro. é revolução
acentuou aquela que se baseia em uma nova classe; o fascismo não se
baseia em nenhuma classe que já não esteja no poder”.
Mussolini voltou à carga, procurando descaracterizar o conteúdo de classe
do fascismo e protestando: “Grande parte dos capitalistas está contra nós!”.
O deputado oposicionista não se perturbou, e observou que o fascismo
entrava em choque agudo com os outros partidos e organizações da
burguesia [...] porque queria estabelecer o monopólio da representação da
classe. A atitude do fascismo com relação aos demais partidos burgueses era
simples: “Primeiro lhes quebra as pernas e, depois, faz o acordo com eles em
condições de evidente superioridade”.
Mussolini não gostou da referência à violência dos fascistas, retrucando que
esta violência equivalia a dos comunistas. Gramsci lhe respondeu: “A vossa
violência é sistemática e é sistematicamente arbitrária, porque vós
representais uma minoria destinada a desaparecer”.
28
26
BUCI-GLUCKSMANN, Chirstine. Gramsci e o Estado... p. 77 grifos nossos
27
FIORI, Giuseppe. A vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 285
28
COUTINHO, Carlos Nelson e KONDER, Leandro. Nota sobre Antonio Gramsci. In: GRAMSCI, Antonio.
Concepção dialética da história. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 02-03
- 24 -
Vale lembrar que o comunista sardo foi bastante ousado na sua polêmica com o “tirano
vesgo” (como Mussolini era conhecido entre os militantes do PC d‟Ilia), pois o fascismo
estava em pleno fortalecimento; vinte anos depois, o fascismo foi derrotado, conforme
previsto por Gramsci. Mas o propósito de trazermos para cá este fragmento é para demonstrar
que nosso autor tinha certa percepção da essência do fascismo, mesmo antes de ter
formulado sistematicamente a categoria da revolução passiva. A preocupação de Gramsci, ao
desenvolver este conceito, era de dar um tratamento adequado à questão política do
fascismo
29
.
ILUSTRAÇÃO 1 - Capa do panfleto anti-fascista de Romain Rolland,
Os que morrem nas prisões de Mussolini (Antonio Gramsci) (1933-1934).
* * *
Para tratar do conceito de revolução passiva, não economizaremos citações à Gramsci,
com o objetivo de deixá-lo falar ao máximo com suas próprias palavras. Nos Cadernos do
Cárcere, o autor trata simultaneamente da historia e da historiografia, do passado e do
29
Cf. POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 34
- 25 -
presente da revolução passiva e de suas pretensões para o futuro também. Como veremos, a
revolução passiva tem no cerne de sua problemática a questão da “moderação, ou seja, de um
conservadorismo reformista que busca camuflar sua essência por detrás de uma aparência
“moderada”, que atua com habilidade e perspicácia para dissuadir as classes populares de seus
objetivos e derrotá-las.
O Risorgimento trata-se do processo de constituição da Itália moderna e,
esquematicamente, pode ser dividido em quatro fases: 1) 1815-1847, sob a influência da
Revolução Francesa, é colocada em circulação uma ideologia liberal-nacionalista, o que
prepara um ambiente moral e intelectual; 2) 1848-1849, eclodem diversos movimentos
republicanos de duração pequena, abandona-se a unificação “neoguelfa”, que seria dirigida
por um Papado liberal; 3) 1850-1861, a política “moderada” afirma-se progressivamente, sob
o comando de Camillo Benso, o Conde de Cavour
30
, e da nobreza de Savóia, do reino
Piemonte-Sardenha, com Garibaldi que lidera a “Expedição dos Mil”; 4) 1861-1870, esta é o
momento da unificação e da consolidação estatal, é anexada Veneza (1866) e Roma é ocupada
(1870)
31
.
Antonio Gramsci diz que o período da história romana que marca a passagem da
República ao Império é essencial para entender o Risorgimento. Segundo ele, César e Augusto
modificaram radicalmente a posição de Roma e da península no equilíbrio do mundo clássico,
“tirando da Itália a hegemonia „territorial‟ e transferindo a função hegemônica a uma classe
„imperial‟, isto é, supranacional”
32
. Este nexo histórico é de grande importância, pois é o
primórdio do processo de “desnacionalizão” de Roma e da península; é o momento em que
a aristocracia romana, que tinha unificado a península e criado um território nacional, foi
superada pelas forças imperiais, que passam a desenvolver na península uma base
cosmopolita não-“nacional”.
Tal processo, diz Gramsci, teve suas conseqüências e continuidades nas épocas
subseqüentes. Durante a “Era das Comunas” (a Idade Média), quando surgem novos grupos
urbanos, como na França, na Espanha, etc., mas que não rumaram para uma unificação. Na
época do mercantilismo e das monarquias absolutas, na Itália houve manifestações que não
alcançaram o âmbito nacional porque a península estava sob influência estrangeira; ao passo
que nas grandes nações européias, os novos grupos sociais urbanos inseriram na estrutura
estatal o elemento nacional e o fortaleceram num progresso rápido. Gramsci diz ainda que se
30
Camillo Benso, o Conde de Cavour (1810-1861), primeiro ministro do reino Piemonte-Sardenha e principal
líder do Partido Moderado.
31
Cf. idem, p. 355
32
Idem, p. 13
- 26 -
o mercantilismo tivesse se desenvolvido de modo mais orgânico na Itália, talvez as divisões
regionais fossem mais profundas e definitivas impossibilitariam a unificação.
O autor dos Quaderni acentua que o Risorgimento só pode ser entendido tomando por
base a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, que marcaram profundamente a história
do século XIX. Mas Gramsci acentua também o papel dos nexos internos da península. Neste
sentido, refuta as teses, de Adolfo Omódeo (autor de L‟Età del Risorgimento) e Benedetto
Croce (1866-1952) de que houve uma “Era do Risorgimento”, ou seja, um processo de
unificação independente da Europa e do mundo, e, principalmente, alheios aos
acontecimentos que nasceram na França e extrapolaram seu território:A personalidade
nacional (como a personalidade individual) é uma mera abstração, se considerada fora do
contexto internacional (ou social). A personalidade nacional expressa uma especificação do
todo internacional, portanto está ligada às relações internacionais
33
.
Desta maneira, diz Gramsci, no século XVIII o sistema europeu, até então equilibrado
pela relação Áustria-França, se modifica, pois surgiu uma terceira grande potência, a Prússia.
E são essas novas condições internacionais que permitiram à Itália unir-se em nação. Uma
mudança substancial ocorreu com o Papado elemento importante e até decisivo dos sistemas
europeus. Com a Contra-Reforma, a Igreja se afastou das massas populares, promoveu
guerras de extermínio e confundiu-se irremediavelmente com as classes dominantes; perdeu a
capacidade de pressionar com massas fanáticas e fanatizadas; o que se acentuou ainda mais
com a dissolão da Companhia de Jesus. Gramsci diz que esta perda de autoridade do
Papado em nível europeu e italiano marca também o início do Risorgimento. E, no século
XVIII, as grandes potências não permitiram um Estado italiano unificado sob a supremacia do
Papa, isto é, não permitiram à diplomacia e à atuação cultural católicas, bastante
perturbadoras, o reforço dum Estado territorial e dum exército correspondente. Desenvolve-se
no período subseqüente à Reforma, correntes “laicas” que passam a reivindicar uma função de
primazia italiana e de missão italiana no mundo, que convergiram no mazzinismo anti-
católico
34
. Os mazzinistas colocaram em xeque o Vaticano e seus aliados, desagregaram o
aparelho político-ideológico do catolicismo, “eis a obra-prima política do Risorgimento
35
.
Gramsci reafirma o papel dos acontecimentos internacionais em geral, da Revolução Francesa
em particular, que criaram as condições e as necessidades propícias para o Risorgimento:
33
Idem, p. 16
34
Giuseppe Mazzini (1805-1872) teve intensa atividade revolucioria de princípios republicanos e de um
patriotismo de fundo religioso. Em 1848-1849, Mazzini foi um dos líderes da breve República Romana. Após
1853, tornou-se o principal animador do Partido de Ação, que propugnou a solução republicana unitária, contra a
estratégia monarquista de Cavour.
35
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 5..., p. 21
- 27 -
Se no decorrer do século XVIII começam a aparecer e a se consolidar as
condições objetivas, internacionais e nacionais, que fazem a unificação
nacional uma tarefa historicamente concreta (isto é, não possível, mas
necessária), é certo que depois de 1789 esta tarefa se torna consciente em
grupos de cidadãos dispostos à luta e ao sacrifício. Ou seja, a Revolução
Francesa é um dos acontecimentos europeus que operam com mais
intensidade para aprofundar um movimento iniciado nas “coisas”,
reforçando as condições positivas (objetivas e subjetivas) do movimento
mesmo e funcionando como elemento de desagregação e centralização das
forças humanas dispersas em toda península e que, de outro modo, teriam
tardado mais a “concentrarem-se” e a entenderem-se entre si.
36
Assim, o autor diz que a Revolução Francesa desgastou as forças reacionárias, que antes eram
poderosíssimas e coesas, e, ao mesmo tempo, fortaleceu as forças nacionais, escassas e
insuficientes até pelo menos 1848; Gramsci diz que é muito difícil avaliar e definir a
contribuição da Revolução, mas constituiu-se em peso decisivo para a preparação do
Risorgimento. Além disso, uma Itália unificada sem o predomínio do Papado não poderia ser
desprezada, era verdadeiramente um aliado muito importante para qualquer potência
estrangeira.
No entanto, salienta Gramsci, tal processo foi conduzido por uma minoria que não “foi
ao povo”, nem ideologicamente (não adotou o programa democrático), nem economicamente
(não fez a reforma agrária): Essa minoria, que conduziu o movimento unitário, na realidade
se preocupava mais com interesses econômicos do que com fórmulas ideais e combateu mais
para impedir que o povo interviesse na luta e transformasse em luta social (no sentido de
uma reforma agrária) do que contra os inimigos da unidade
37
. Ou seja, o fato de não ter sido
realizada a reforma agria em um país que no século XIX era composto em sua ampla
maioria por camponeses, aponta para o sentido do Risorgimento, explicado com a revolução
passiva como se verá adiante.
Outra questão que contribui decisivamente para compreender a unificação italiana e,
conseqüentemente, a revolução passiva, é a relação de Cavour com o Partido de Ação de
Mazzini e Garibaldi. De um lado, o Partido de Ação era o elemento mais propriamente
nacional; de outro, Cavour, expoente da moderação, concebia a unificação como ampliação
do Estado piemontês e do patrimônio da dinastia Savóia. Segundo Gramsci, Cavour tinha
consciência de sua missão pelo menos em certa medida na medida que conhecia a missão de
Mazzini, este, por sua vez, parecia não ter consciência nem da sua própria missão nem da
36
Idem, p. 22
37
Idem, p. 40
- 28 -
adversária. Se, ao contrário, Mazzini tivesse tido tal consciência, o equilíbrio resultante do
entrechoque das duas forças teria tido resultado diferente, mais favorável ao mazzinismo, isto
é, o Estado italiano teria se constituído em bases menos atrasadas e mais modernas
38
.
Disso resultaram, diz Gramsci, as hesitações e as iniciativas intempestivas de Mazzini, que
acabaram sendo úteis à política piemontesa, que conduziu a revolução passiva do
Risorgimento. Esta questão, diz o autor dos Quaderni, é a exemplificação histórica do
problema apresentado na Miséria da Filosofia (1847), de Karl Marx:
Nem Proudhon nem Mazzini compreenderam que cada membro da oposição
dialética deve procurar ser integralmente ele mesmo e lançar na luta todos
os seus “recursos” poticos e morais, e que só assim se consegue uma
superação real. Dir-se que não compreenderam isso [...] os teóricos da
revolução passiva e da “revolução-restauração”, mas a questão se modifica:
neles, a “incompreensão teórica era a expressão prática das necessidades da
“tese” de se desenvolver integralmente, até o ponto de conseguir incorporar
uma parte da própria antítese, para não se deixar “superar”, isto é, na
oposição dialética somente a tese desenvolve, na realidade, todas as suas
possibilidades de luta, até capturar os supostos representantes da antítese:
exatamente nisso consiste a revolução passiva ou a revolução-restauração.
39
Assim, Gramsci diz que Mazzini, tal como Proudhon, não compreendia a necessidade de
assumir o seu papel antitético rigorosa e profundamente, de forma que o percebeu que
deveria impor uma revolução ativa antagônica à passiva de Cavour para dar novo rumo ao
equilíbrio das forças, e à história. O marxista italiano diz ainda que uma insurreição popular
armada era peremptória para a superação antitética das posições tradicionais; mas essa
intervenção popular, na forma de uma insurreição concentrada e simultânea, foi
impossibilitada, pois faltou preparação política e ideológica de fôlego, “organicamente
predisposta para despertar as paixões populares e tornar possível a sua concentração e
explosão simultânea”
40
. Mas antes do enfrentamento com Cavour, Mazzini já colhera derrotas
nos anos de 1848-1849, quando a falta de preparo permitiu que as forças reacionárias não
encontrassem a oposição de amplos movimentos populares, e, conseqüentemente, pudessem
esmagar o mazzinismo. Porém o Partido de Ação não fez qualquer auto-crítica, de maneira
que acabaram incorrendo no mesmo erro. No período seguinte de enfrentamentos do
Risorgimento, 1859-1860, diz Gramsci, Garibaldi conseguiu sua concentração
revolucionária (os “Mil de Garibaldi”) porque se inseriu nas forças estatais piemontesas e foi
protegido pela frota inglesa em suas incursões pela península. E, neste segundo período,
38
Idem,p. 317
39
Idem,p. 318 [grifos nossos]
40
Idem,p. 319
- 29 -
Mazzini titubeou mais uma vez: teve a oportunidade de constituir praças populares de armas,
mas recusou-se e acabou conflitando com Garibaldi. Ambos os períodos, diz Gramsci, são
marcados pela ausência, entre as forças radicais populares, de uma consciência da missão
da outra parte [que] as impediu de ter plena consciência da própria missão e, portanto, de
pesar no equilíbrio final das forças conforme seu efetivo poder de intervenção
41
. Assim, a
incompreensão do próprio papel na história impediu uma correta intervenção na realidade, ao
passo que permitiu aos moderados decapitar as forças populares, capturar suas lideranças e,
como disse o monarca piemontês Vittorio Emanuelle II, colocar no bolso o Partido de
Ação.
Cavour, diz Gramsci, se valeu da ausência de competidores politicamente inteligentes
para triunfar, e não porque, como dizia, representava o centro entre opostos, o justo meio”
42
.
O juste milieu é uma idéia muito cara aos moderados, e Cavour o utilizava no sentido de dizer
que representava a justeza política, a “justeza racional”; no entanto o “justo meio” fora
apenas sua propaganda. Gramsci diz que o juste milieu contribuiu para a construção de um
Estado estreito, sectário, que lutou e foi vitorioso contra as forças populares:
Na realidade, as forças históricas chocam-se entre si por seu programa
“extremo”. Que, entre estas forças, uma assuma a função de “síntese”
superadora dos extremos opostos, é uma necessidade diatica, não um
método apriorista. E saber encontrar, em cada oportunidade, o ponto de
equilíbrio progressista (no sentido próprio do programa) é a arte do político:
não do político do justo meio, mas, exatamente, do potico que tem uma
linha muito precisa e de ampla perspectiva para o futuro.
43
Ou seja, o recurso discursivo ao juste milieu é uma maneira de dissuasão, de esconder o cerne
das questões, ocultar os pontos de choque entre programas antagônicos. O “justo meio” cria a
aparência de que o seu proponente está em posição de superioridade em relação aos inimigos;
que não cai na carnificina de extremismos, mas que, ao contrário, serena e cautelosamente
toma a decisão correta e a sua decisão seria o meio exato entre posições extremas. A
moderação aparece como uma solução de compromisso” equidistante de “extremismos”.
Essa é a aparência criada pela moderação, através de seu discurso dissuasivo do “justo meio”
e do “compromisso”.
Conforme os Cadernos, a decapitação do adversário - “colocá-lo no bolso” - é mais
uma necessidade histórica da revolução passiva: o transformismo. No Risorgimento, os
41
Idem, p. 321
42
Cf. Idem, p. 331
43
Idem, p. 331
- 30 -
moderados representavam um grupo social com certo vel de homogeneidade, de modo que
sua direção nunca oscilou muito. Já o Partido de Ação, diz Gramsci, não se apoiava em
nenhuma classe social histórica, de modo que sua direção o melhor seria falar em “suas
direções” teve grandes oscilações, o que acabou deixando-a ao capricho dos interesses dos
moderados. E aqui está o momento hegemônico da revolução passiva: o adversário é dirigido
moral e intelectualmente, o que implica numa hegemonia sobre a situação histórica, através da
absorção dos inimigos, de seu transformismo:
[...] com a absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada
eficácia, dos elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos
adversários e que pareciam irreconciliavelmente inimigos. Neste sentido, a
direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a
absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua
aniquilação por um período freqüentemente muito longo. A partir da política
dos moderados, torna-se claro que pode e deve haver uma atividade
hegemônica mesmo antes da ida ao poder e que não se deve contar apenas
com a força material que o poder confere para exercer uma direção eficaz: de
fato, a brilhante solução destes problemas tornou possível o Risorgimento
nas formas e nos limites em que ele se realizou, sem Terror”, como
“revolução sem revolução”, ou seja, como revolução passiva” [...].
44
Assim, o momento da hegemonia na revolução passiva do Risorgimento consistiu em
dirigir os inimigos, tarefa facilitada pela falta de consciência do Partido de Ação de sua
própria tarefa histórica. A hegemonia dos moderados transformou (no sentido do
“transformismo”) inimigos antes irreconciliáveis em aliados da moderação. Fato é que se o
partido de Mazzini e Garibaldi não se apoiava numa classe fundamental, o poderia ter a
consciência adequada para a realização das necessidades históricas das massas populares da
Itália que, com exceção do norte, eram classes rurais. Mas, diz Gramsci, mesmo após a
consolidação da unificação, em 1870, os moderados continuaram exercendo a direção
política, o Partido de Ação foi incorporado molecularmente através do parlamento. O autor
diz que houveram duas fases históricas do transformismo italiano: 1860-1900, o
transformismo foimolecular”, ou seja, algumas personalidades políticas foram incorporadas
à classe política” conservadora e moderada, com papel desempenhado pelo Senado nesta
assimilação; a partir de 1900, grupos radicais inteiros passaram à moderação. De 1870 para
frente, o transformismo passou a ser uma forma de revolução passiva. Esta categoria é
particularmente importante para compreender mesmo o movimento fascista, pois seu líder
44
Idem, p. 63
- 31 -
Benito Mussolini havia pertencido ao Partido Socialista, tendo ocupado cargo de direção no
jornal Avanti.
Deste modo, os moderados atuaram visando a hegemonia, não se limitaram a arrebatar
pela força o poder das classes populares: atuaram para conquistar as consciências, realizaram
um trabalho intelectual se apoiando em periódicos, como o jornal “Il Risorgimento”, fundado
por Cavour em 1847, em congressos, e construindo uma estrutura para receber os intelectuais.
Os moderados reuniram tanto a estrutura material necessária (aparelhos privados de
hegemonia e aparelho de Estado), quanto a sistematização de um pensamento para a conquista
das consciências; numa expressão, realizaram um trabalho orgânico-intelectual:
A hegemonia de um centro diretivo sobre os intelectuais se afirma através de
duas linhas principais: 1) uma concepção geral da vida, uma filosofia
(Gioberti), que ofereça aos aderentes uma “dignidade intelectual que dê um
princípio de distinção e um elemento de luta contra as velhas ideologias
dominantes coercitivamente; 2) um programa escolar, um princípio
educativo e pedagógico original que interesse e dê uma atividade própria, no
campo técnico, para aquela fração de intelectuais que é a mais homogênea e
a mais numerosa (os professores, do professor do grau aos professores da
universidade).
Os Congressos dos cientistas que foram organizados repetitivamente no
período do primeiro Risorgimento tiveram uma dupla eficácia: 1) reunir os
intelectuais de nível mais elevado, concentrando-os e multiplicando as suas
influências; 2) obter uma mais rápida concentração e mais decisiva
orientação nos intelectuais dos níveis inferiores, que tem normalmente a
inclinação em seguir os universitários e os grandes cientistas por espírito de
casta.
O estudo das revistas enciclopédicas e especializadas dá um outro aspecto da
hegemonia dos moderados. Um partido como aquele dos moderados oferecia
à massa dos intelectuais todas as satisfações para as exigências gerais que
possam ser oferecidas por um governo (de um partido no governo), através
dos serviços estatais. (Para essa função de partido italiano de governo serviu
otimamente depois de 1848-49, o Estado piemontês que acolheu os
intelectuais exilados e mostrou um modelo do que faria um futuro Estado
unificado).
45
Assim, a ação dos moderados na revolução passiva risorgimentale o pode ser
entendida sem o papel cumprido pelo Estado. Na revolução passiva, diz Gramsci, o Estado
atua como uma “classe dirigente”; não existiam núcleos homogêneos de classe dirigente,
esses núcleos não queriam “dirigir” ninguém, não queriam harmonizar seus interesses com os
de outros grupos. Queriam dominar. Neste sentido, diz, o Estado do Piemonte teve a função
do pessoal dirigente de um grupo social, como um partido (até se falava em “partido
piemontês”) mas com a particularidade que era na verdade um Estado com exército,
45
GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. V. 1. Torino: Einaudi, 2007. p. 55-6 grifos nossos
- 32 -
diplomacia, etc. O marxista sardo diz que este fato é da maior importância para a revolução
passiva: isto é, que não seja um grupo social o dirigente de outros grupos, mas que um
Estado, mesmo limitado como potência, seja o dirigente do grupo que deveria ser dirigente
e possa pôr à disposição deste último um Exército e uma força político-diplomática. Pode-se
fazer referência àquilo que foi chamado de função do Piemonte na linguagem político-
histórica internacional
46
. Desta forma, o Estado, cumprindo a “função do Piemonte,
“substitui” os grupos sociais e dirige o processo de renovação. Gramsci diz que isto é próprio
dos grupos sociais que tem função de “domínio” e não de “direção”, de grupos que perpetuam
ditaduras sem a função diretiva; a hegemonia é, neste caso, de uma parte do grupo social
sobre todo o grupo, e não deste último sobre as demais forças para radicalizar o movimento
histórico. Nicos Poulantzas contribui para um melhor entendimento deste problema:
Este processo da revolução democrático-burguesa na Itália insere-se no vasto
movimento contra-revolucionário que se seguiu, na Europa, às convulsões de
1848. A burguesia italiana estava, nesse momento, muito fraca: fraqueza
econômica, em primeiro lugar, sendo a situação da burguesia italiana muito
inferior à situação da burguesia alemã. Neste contexto, o papel histórico de
Cavour consistiu em iniciar o processo de unidade nacional, através de uma
aliança da nascente burguesia do Norte e da grande propriedade agrária, de
caráter principalmente feudal, do Sul. Se o papel de Bismarck foi, sobretudo,
o de fazer chegar, a partir de cima, a burguesia alemã ao poder político, o de
Cavour foi muito mais o de criar as condições das bases econômicas da
burguesia italiana, o de “fabricar os fabricantes”, como dizia Gramsci.
47
Assim, o Estado tomou a frente do processo, viabilizando a entrada de capitais franceses,
britânicos e, a partir de 1885, alemães que permitiram o desenvolvimento da indústria pesada,
principalmente dos altos-fornos de Terni para a produção do aço; isso trouxe um grande
endividamento para a Ilia e fez o país entrar para o capitalismo de uma maneira dependente
e subalterna em relação às potências hegemônicas.
Internamente, o processo caracterizou-se pelo compromisso entre a burguesia e os
proprietários rurais:
Este processo pôde realizar-se por meio de uma preponderância política
decisiva, no seio da aliança, da burguesia sobre grandes proprietários do Sul
- [...] preponderância adquirida com Cavour e consolidada com Crispi.
Nestas condições, com efeito, este processo de implantação econômica da
burguesia pode realizar-se através de um fosso crescente entre indústria e
agricultura. A única via diferente, dado o caráter feudal da grande
propriedade agrícola, era a de uma reforma agrária, isto é: a de um largo
46
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 5..., p. 329
47
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura... p. 34 grifos do autor
- 33 -
apoio da burguesia no campesinato, análogo ao processo jacobino na França.
Caminho vedado na Itália: a ausência de reforma agrária era, precisamente, o
preço pago pela burguesia italiana à grande propriedade agrária pela sua
supremacia potica sobre ela. Esta supremacia devia permitir o
estabelecimento econômico da burguesia [...].
48
Desta forma, vemos que o que caracteriza o processo da revolução passiva é que a revolução
burguesa não pode ser conduzida sem ter, por um lado, o Estado e, por outro lado, a
conciliação com a velha classe dominante de modo diferente da via clássica da Revolução
Francesa que, como diz Albert Soboul, “a revolução camponesa e popular estava no âmago da
revolução burguesa e a impelia para frente
49
.
no Risorgimento, diferentemente, “a burguesia italiana aproveitou-se do vasto
movimento popular, não obstante a sua fraqueza, ao poder político, mas o fez se
responsabilizando perante os proprietários agrícolas pela liquidação radical do movimento por
intermédio do aparelho de Estado”
50
. Assim, vemos que a burguesia italiana, muito
enfraquecida, teve de utilizar a estrutura do Estado risorgimentale para poder impor a sua
supremacia política, de cima para baixo. Sua hegemonia nasceu de um acordo político de
compromisso com a propriedade latifundiária ainda feudal para depois sim, tendo
garantido a máquina estatal, impor a hegemonia sócio-econômica sobre as outras classes.
Deste modo, os moderados (principalmente Cavour), à frente do Estado, tomaram
posições muito pragmáticas, eles, diz Gramsci,
eram a expressão dos “temores da aristocracia e das pessoas de bem, que
temiam os “excessos”, bem como a diplomacia; o que há de “nacional” nesta
expressão? E por que as classes agrícolas estavam ausentes? Elas não eram a
maioria do povo toscano [e de toda Itália], isto é, a “força nacional”? O
medo dos excessos” não seria o medo de que tais classes se pusessem em
movimento, em luta por suas reivindicações progressistas? E os “medrosos”
não seriam os retrógrados conservadores de um status quo antinacional, uma
vez que se tratava do antigo regime? [...] Grão-Ducado ou Itália unida, desde
que as coisas permaneçam como estão: o fato político e nacional é
indiferente, o que conta é a ordem econômico-social, que deve ser
conservada contra as forças nacionais progressistas.
51
Assim, Gramsci delineia a solução moderada encontrada: Itália unificada ou não, o que
interessa é a preservação da submissão econômico-social das classes populares esse é o
“justo meio”. A moderação era a expressão de uma aristocracia que temia que a maioria do
48
Idem, p. 34 grifos do autor
49
SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa: edição comemorativa do bicentenário da Revolução Francesa. 9ª
ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. p. 105
50
Idem, p. 35 grifos do autor
51
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 5..., p. 281
- 34 -
povo se movimentasse e colocasse em risco o status quo ante; o termo “moderantismo
conservador” define melhor essa posição classista.
Mas o moderantismo conservador não se encerra no processo histórico do
Risorgimento, pois este possui sua própria expressão historiográfica. Segundo diz Gramsci, a
historiografia risorgimentale, pode ser dividida em três vertentes. À direita, aqueles que
lamentam a queda da Direita histórica, basicamente falavam de condões catastróficas”
sobre a situação nacional, acusavam o regime parlamentar de não ser nacional, mas copiado
do estrangeiro, e negavam toda a civilização moderna e boicotam o Estado legal; esta corrente
era formada pelos clericais e o partido Sillabo. Ao centro, estava “todo naipe liberal
52
, dos
moderados aos republicanos, que se caracterizam pelo ódio do tempo das lutas. À esquerda, as
classes miseráveis, analfabetas, que expressam “em forma esporádica, descontínua, histérica,
uma série de tendências subversivo-anarcóides, sem consistência e orientação política
concreta, que mantém um estado febril sem futuro construtivo
53
. Gramsci diz que todas estas
vertentes historiográficas são marcadas por interpretações ideológicas, que produziram uma
“historia fetichista, isto é, fizeram protagonistas forças abstratas, e não suscitaram as forças
políticas efetivas. As preocupações de Gramsci voltam-se principalmente para a historiografia
moderada e seu principal intelectual, Benedetto Croce:
A história da Europa vista como “revolução passiva”. É possível fazer uma
história da Europa no século XIX sem tratar organicamente da Revolução
Francesa e das guerras napoleônicas? E é possível fazer-se uma história da
Itália na época moderna sem as lutas do Risorgimento? Em um e em outro
caso, por razões extrínsecas e tendenciosas, Croce prescinde do momento da
luta, no qual a estrutura é elaborada e modificada, e assume placidamente
como história o momento da expansão cultural ou o momento ético-político.
Tem um significado “atual” a concepção de “revolução passiva”? Estamos
num peodo de “restauração-revolução” a instituir permanentemente, a
organizar ideologicamente, a exaltar liricamente? A Itália teria com a URSS
a mesma relação que a Alemanha (e a Europa) de Kant-Hegel teriam com a
França de Robespierre-Napoleão?
54
Vemos neste fragmento, que a história da Europa é vista por Croce como “revolução passiva”,
ou seja, exclui a Revolução Francesa, as guerras napoleônicas, as lutas sociais do
Risorgimento; mas esta concepção da história, para Gramsci, tem motivações que derivam de
uma revolução passiva que estaria ocorrendo naquele momento. Esta acepção da história é a
expressão da revolução passiva desencadeada pelo fascismo, intelectuais orgânicos da
52
Idem, p. 31
53
Idem, p. 31 [grifos nossos]
54
Idem, p. 281 [grifos nossos]
- 35 -
burguesia, principalmente Benedetto Croce e Giovani Gentile, aderiram ao fascismo este
último foi o filósofo de plantão de Mussolini. Segundo Domenico Losurdo, Croce acreditava
que o fascismo poderia ser útil ao liberalismo para reparar suas “arestas democráticas”:
“Explica-se desse modo a indulgência para com a violência esquadrista: „a eventual chuva de
punhos‟ pode ser, „em determinados casos, útil e oportunamente administrada‟”
55
; assim,
Croce acreditava que o fascismo poderia depurar o liberalismo de suas “abstrações” e
“leviandades” democráticas. Na prática, ele aderiu ao fascismo, aceitou-o como um
expediente necessário; seria o justo meio” entre determinado liberalismo democrático e a
revolução vermelha. Esta situação durou a 1925, quando Croce rompeu com o fasci, através
da publicação do Manifesto dos intelectuais anti-fascistas.
O autor dos Quaderni diz que a historiografia da revolução passiva tem como
principal inquietação já que tenta legar ao esquecimento as lutas populares - o “temor
pânico dos movimentos jacobinos, de qualquer interveão ativa das grandes massas
populares como fator de progresso histórico”
56
. Gramsci diz que essa historiografia, própria
do moderantismo conservador italiano, mutila a dialética da história:
O erro filosófico (de origem prática!) desta concepção consiste no seguinte:
pressupõe-se “mecanicamente” que, no processo diatico, a tese deva ser
“conservada” pela antítese a fim de não destruir o próprio processo, o qual,
portanto, é “previsto”, como uma repetição ao infinito, mecânica e
arbitrariamente prefixada. [...] Na história real, a antítese tende a destruir a
tese, a síntese será uma superação, mas sem que se possa estabelecer a priori
o que será “conservado” da tese na síntese, sem que se possa “medir” a
priori os golpes como em um ringue convencionalmente regulado. Que isto
ocorra de fato, de resto, é uma questão de “potica” imediata, que, na
história real, o processo dialético se fragmenta em inúmeros momentos
parciais; o erro consiste em elevar a momento metodológico o que é pura
imediaticidade, elevando, precisamente, a filosofia o que é apenas
ideologia.
57
Assim, a historiografia moderada, que prescinde do momento da luta de classes, é
expressão de um erro filosófico de origem prática, ou seja, tal desacerto é expressão da
prática, da atuação dos moderados. Mas esse juízo falso da dialética é uma necessidade para
os moderados: pressupõe que a tese deva ser conservada, com o objetivo de anular a antítese.
Mas, no movimento dialético da história a antítese tende à destruição da tese, de modo que a
política dos moderados, que queriam a preservação da ordem econômico-social como vimos
anteriormente refletia em sua concepção da dialética da história e, por sua vez, na
55
LOSURDO, Domenico. Antonio Gramsci, do liberalismo ao “comunismo crítico. Rio de Janeiro: Revan,
2006. p. 77-8 apud. CROCE, Benedetto. Fatti politicio e interpretazioni storiche (1924), p. 269-70.
56
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1..., p. 291
57
Idem, p. 292
- 36 -
historiografia, prescindindo da luta de classes, dos momentos de ruptura. A metodologia dos
moderados é expressão da imediaticidade da política, de suas necessidades, de seus combates
pela conservação, pela “conciliação” (esta negação da luta de classes). O próximo trecho,
mostra como a concepção inexata da diatica da história, própria dos moderados, tem sua
gênese em sua trajetória histórica:
Que uma tal maneira de conceber a diatica fosse errada e “politicamente”
perigosa, perceberam-no os próprios moderados hegelianos do Risorgimento,
como Spaventa: basta recordar suas observações sobre aqueles que
pretendiam, com a desculpa de que o momento da autoridade é
imprescindível e necessário, conservar sempre o homem no “berço” e na
escravidão. Mas não podiam reagir além de certos limites, além dos limites
do grupo social, ao qual se tratava concretamente” de fazer sair do berço”:
a conciliação foi encontrada na concepção de “revolução-restauração, ou
seja, num conservadorismo reformista temperado.
58
Gramsci remete aqui à primazia da história sobre as idéias. Os moderados do
Risorgimento perceberam o erro e o perigo desta concepção anti-dialética da história, que
quer a conservação mecânica ao infinito da tese, no entanto não podiam ultrapassar os limites
de sua própria classe social. Se os epígonos da moderação perceberam que preservar o homem
no berço da escravidão tinha seus riscos, liberá-lo completamente também produziria
conseqüências ainda mais indesejadas para seu status social, assim conceberam a
“conciliação” entre o novo e o velho. Gramsci diz que é próprio dos intelectuais, dos
ideólogos do “conservadorismo reformista temperado”, conceberem-se a si mesmos como
árbitros e mediadores das lutas políticas reais, como as pessoas que decidem os rumos da
história; por isto Croce dizia que os intelectuais não deviam se “rebaixar” ao nível das massas
(o não-engajamento com as classes populares), que deveriam sempre ser governadores e
nunca governados
59
.
Neste sentido, Gramsci diz que a atuação de Benedetto Croce tem por objetivo criar
um movimento ideológico correspondente ao do Risorgimento, no qual a transformação, que
na França fora revolucionária, na Itália foi conduzida de modo reformista, dosado, por meios
legais, o que possibilitou assegurar a posição política e econômica das velhas classes feudais e
impediu a reforma agrária e experiências de tipo jacobino. Vejamos o fragmento a seguir:
O historicismo de Croce seria, portanto, nada mais do que uma forma de
moderantismo político, que coloca como único método de ação política
aquele no qual o progresso e o desenvolvimento histórico resultam da
58
Idem, p. 293 [grifos nossos]
59
Cf. Idem, p. 284
- 37 -
dialética de conservação e inovação. Na linguagem moderna, esta concepção
se chama de reformismo. A acomodação entre conservação e inovação
constitui, precisamente, o “classicismo nacional” de Gioberti, assim como
constitui o classicismo literário e artístico da última estética crociana. Mas
este historicismo próprio de moderados e reformistas não é de modo algum
uma teoria científica, o “verdadeiro” historicismo ; é somente o reflexo de
uma tendência prático política, uma ideologia no sentido pejorativo. De fato,
por que a “conservação” deve ser precisamente aquela determinada
“conservação”, aquele determinado elemento do passado? E por que se será
“irracionalista” e “anti-historicista” se não se conservar precisamente aquele
determinado elemento? [...] o passado é uma coisa complexa, um conjunto
vivo e morto, no qual a escolha não pode ser feita arbitrariamente, a priori,
por um indivíduo ou por uma corrente política. Se a escolha foi realizada de
tal modo (no papel), não pode se tratar de historicismo, mas de um ato
arbitrário de vontade, da manifestação de uma tendência político-prática
unilateral, que não pode servir de fundamento a uma cncia, mas somente a
uma ideologia política imediata.
60
Desta maneira, o historicismo de Croce não consiste numa tentativa de criar um método, ou
uma ciência, mas é expressão dos interesses e da atuação dos conservadores; é uma ideologia
propriamente dita, que expressa necessidades históricas de determinada classe social. Neste
fragmento Gramsci alerta, de maneira ainda bem genérica, para concepções da dialética da
história que arbitrariamente estabelecem o que deverá ser conservado. O marxista sardo diz
que a história com meta predeterminada caracteriza a obra de Croce, mas que este é muito
cuidadoso e não enumera as instituições que deveriam permanecer em sua acepção. No
entanto, se pode deduzir que para Benedetto Croce é „vitale intocável a forma liberal do
Estado, isto é, a forma que garante a qualquer força política o direito de movimentar-se e
lutar livremente
61
. Mas Gramsci alerta que na história, na luta de classes
os golpes não são dados de comum acordo”, e toda antítese deve
necessariamente colocar-se como antagonista radical da tese, tendo mesmo o
objetivo de destruí-la e substituí-la completamente. Conceber o
desenvolvimento histórico como um jogo esportivo, com seu árbitro e suas
normas preestabelecidas a serem lealmente respeitadas, é uma forma de
história com uma meta predeterminada, na qual a ideologia não se funda
sobre o conteúdo “potico”, mas sobre a forma e o método da luta. É uma
ideologia que tende a enfraquecer a antítese, a fragmen-la numa longa
série de momentos, isto é, reduzir a dialética a um processo de evolução
reformista “revolução-restauração”, na qual apenas o segundo termo é válido
[...].
62
Ou seja, o moderantismo conservador com a idéia de uma luta regrada, parlamentar, num
campo de batalha circunscrito aos meandros do Estado liberal, busca dissuadir as forças
60
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 1. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 393-4
61
Idem, p. 396
62
Idem, p. 396 [grifos nossos]
- 38 -
antitéticas para derrotá-las. Mas nesta luta o que predomina é a revolução-restauração, em que
o primeiro termo (a tese) se sobreponha ao segundo (a antítese), anulando-o.
As mudanças graduais, pré-determindas, próprias da concepção moderado-
conservadora da história que garantem o status quo ante, que expressam a revolução passiva,
não eram exclusividade do período do Risorgimento e de sua historiografia, mas própria da
contemporaneidade de Gramsci, ou seja, da ascensão e do estabelecimento do fascismo no
poder.
Antonio Gramsci retoma questões mais contemporâneas, como o papel de Giovanni
Giolitti (1842-1928), que foi o primeiro-ministro da Itália, praticamente ininterruptamente,
entre 1903 e 1913. Seu governo estabeleceu uma política industrialista de pequenas
concessões aos trabalhadores fabris; voltou ao cargo em 1920-1921. Giolitti, que representava
o Norte e suas indústrias, dizia que era preciso destruir a força retrógrada dos latifundiários,
para que a nova burguesia pudesse ter mais espaço no Estado e até mesmo controlá-lo, no
entanto diz o autor do Quaderni:
Giolitti não criou nada: ele “compreendeu” que era preciso fazer concessões,
a tempo de evitar danos maiores e controlar o desenvolvimento político do
país, e foi o que fez. Na realidade, Giolitti foi um grande conservador e um
hábil reacionário, que impediu a formação de uma Itália democrática,
consolidou a monarquia com todas as suas prerrogativas e a ligou mais
estreitamente à burguesia através do poder executivo reforçado, o qual pôs a
serviço dos industriais todas as foas econômicas do país. Assim, foi
Giolitti quem criou a estrutura contemporânea do Estado italiano e todos os
seus sucessores apenas continuaram sua obra, acentuando este ou aquele
elemento subordinado.
O comunista sardo coloca a questão da seguinte maneira: o conservadorismo hábil de Giolitti
fazia determinadas concessões aos trabalhadores, para controlar a política do país, mas que
por um lado consolidou a monarquia e de outro colocou o executivo tanto para estreitar os
laços entre a burguesia e o monarca, como para colocar todas as forças econômicas italianas
servindo o capital. O que ajuda a compreender Giolitti, é a política de seus seguidores, os
giolittianos que, segundo Gramsci, queriam uma constituinte domesticada, ou seja, sem a
agitação popular, sem os “excessos” populares próprio do moderantismo conservador. A
revolução passiva, portanto, não traduz apenas o momento histórico do Risorgimento, mas a
própria atuação dos conservadores moderados. Gramsci diz que Giolitti, no segundo período
que participou do governo italiano, nos anos 1920, subestimava o fascismo, acreditava que
- 39 -
poderia contro-lo nos marcos do Estado liberal
63
, mas em 1924 passou à oposição, após o
assassinato do deputado Giacomo Mateotti. Mas, ainda assim, Giolitti e sua política moderada
não diferiam em essência do fascismo:
Mas, nas atuais condições, o movimento correspondente ao do liberalismo
moderado e conservador não seria precisamente o movimento fascista? [...]
ter-se-ia uma revolução passiva no fato de que, por intermédio da
intervenção legislativa do Estado e através da organização corporativa,
teriam sido introduzidas na estrutura econômica do país modificações mais
ou menos profundas para acentuar o elemento “plano de produção”, isto é,
teria sido acentuada a socialização e cooperação da produção, sem com
isso tocar (ou limitando-se apenas a regular e controlar) a apropriação
individual e grupal do lucro. No quadro concreto das relações sociais
italianas, esta pode ter sido a única solução para desenvolver as forças
produtivas da indústria sob a direção das classes dirigentes tradicionais, em
concorrência com as mais avançadas formações industriais de países que
monopolizam as matérias-primas e acumulam gigantescos capitais.
64
Assim, a revolução passiva não diz respeito somente à história da unificação italiana e
a política do moderantismo conservador, mas também à produção capitalista, especificamente
à modernização da produção que não modifica a estrutura do trabalho não-pago, da extração
da mais-valia. E essas modificações realizadas pelo fascismo, que buscava desenvolver o
capitalismo para concorrer com os países imperialistas mais desenvolvidos, o modificaram
substancialmente o fato das transformações serem levadas a cabo pelas classes dirigentes
tradicionais, ou seja, o fascismo não ultrapassou os marcos da revolução passiva, do
moderantismo conservador. O fascismo mudou a aparência para não mudar a essência.
Gramsci percebe que a revolução passiva, isto é, as modificações realizadas na produção sob
as diretrizes estatais o Estado na vanguarda - também caracterizam o regime fascista, que,
por sua vez, aparece como a única solução encontrada pelas classes tradicionais para não
perderem o seu poder e realizarem as transformações necessárias para, externamente,
concorrer com as nações mais avançadas na corrida imperialista e, internamente, derrotar as
classes populares. O autor diz ainda que a época fascista criou um período de expectativas e
esperanças, principalmente entre a pequena burguesia urbana e rural, o que permitiu manter
o sistema hegemônico e as forças de coerção militar e civil à disposição das classes dirigentes
tradicionais”
65
.
63
Cf. Idem, p. 487
64
Idem, p. 299 [grifos nossos]
65
Idem, p. 299-300
- 40 -
O fascismo nunca constituiu um processo estanque, mas não trataremos aqui de todos
os seus pormenores; nos interessa ir à essência do problema. Concretamente, o fascismo, nas
suas relações com a classe operária, estabeleceu a repressão física organizada por um lado, e a
função ideológica por outro; não obstante a extrema violência empregada em seu estado nu
contra as organizações operárias. Por diversos momentos, aão fascista visou a hegemonia:
Esta função ideológica, que tem os mesmos objetivos que a repressão,
exerce-se por meio do “anti-capitalismo” pequeno-burguês da ideologia
fascista. Todavia, ela se torna eficaz na classe operária ao retomar por
conta certos “temas” autenticamente “proletários” [...]. Este aspecto
obreirista da ideologia fascista, que persiste de forma vigorosa durante o
primeiro período do fascismo no poder, declina durante o período de sua
estabilização em que avaa o aspecto propriamente “pequeno-burguês”,
sob a forma da ideologia corporativista.
[...] [O corporativismo] reata , assim, diretamente com a tradição do
sindicalismo revolucionário: encontramos em Proudhon, dando a sua caão
aos projetos „corporativistas‟ de Napoleão III, um precedente ilustre. Ora,
este aspecto corporativista particular está constantemente presente na
ideologia da „ala esquerdizante do fascismo: ainda que os dirigentes
fascistas e nacional-socialistas sejam extremamente prudentes na utilização
desta arma de dois gumes que é a exploração “obreirista” dos temas
corporativistas.
66
Desta maneira, a política dos fascistas o se limitava à ação squadrista dos fasci di
combatimento, tampouco eles se apresentavam como bandos, pura e simplesmente, de
repressão e fura-greves nunca deixou de empregar instrumentos de comunicação
massificada, como os grandes comícios de Mussolini e o jornal Popolo d‟Italia. O fascismo
chegou a apoiar, e até organizar, algumas greves reivindicatórias, como as greves na
metalurgia, de 1925. Mas, ao mesmo tempo, atacava sistematicamente as organizações da
classe operária, furava as greves politizadas. Daí o encarceramento de homens como o
secretário geral do PCd‟Italia, Antonio Gramsci que, com os Conselhos de Fábrica (atuantes
em 1919-20), procurava a transferência da luta sindical, do domínio estreitamente
corporativista e reformista, para o terreno da luta revolucionária
67
. Os fascistas agiam com
uma política complexa e hábil. No entanto, o fascismo nunca esqueceu suas raízes sociais
apesar de negá-las publicamente -, a classe operária nunca foi a sua base social; neste sentido,
implementou um política de exploração crescente da classe operária, que só pôde ser levada à
cabo com destruição das organizações operárias, decapitando-as de suas lideranças mais
conscientes para “colocá-las no bolso”.
66
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura... p. 177-8 grifos do autor
67
Idem, p. 229
- 41 -
Colocando a classe operária na defensiva, em 1922, a Confederação Nacional das
Corporações (o “sindicato” fascista) já contava com 700.000 membros. Ainda assim, o
fascismo teve de apresentar alguns resultados concretos para conter os operários. Reduziu o
número de desempregados (500.000 em 1921; 380.000 em 1922; 125.000 em 1925). Quanto
aos salários da massa do operariado industrial, à primeira vista, não houve grandes perdas sob
o fascismo até 1934: para um índice de 100 em 1913, 127 em 1921, 123 em 1922, 116 em
1923, 113,6 em 1924, após uma subida para 121 em 1928, houve uma queda em 1930; para
retomar e atingir 125 em 1934, mas com uma grande queda durante o período da Segunda
Guerra Mundial
68
. No entanto, por trás destas “inocentes” cifras, o regime fascista agravou a
exploração da classe operária, através da racionalização taylorista fordista da produção, ou
seja, o aumento do ritmo da produção, fazendo os operários trabalharem bem mais para
receberem quase o mesmo salário e gerarem muito mais lucros à burguesia. os operários
agrícolas, tiveram uma redução de 50% em seus salários durante o período fascista. A partir
de 1934, o governo introduziu a jornada de 40 horas semanais de trabalho (antiga
reivindicação dos trabalhadores), mas não manteve o salário semanal correspondente, o que
provocou considerável perda salarial.
1.2 O PARTIDO POLÍTICO PARA ANTONIO GRAMSCI: O PAPEL HISTÓRICO DOS
INTELECTUAIS E DOS APARELHOS DE HEGEMONIA
Será necessária a ação política (em sentido estrito) para que se possa falar em
„partido político‟?”
69
Esta indagação de Gramsci, que tomamos de empréstimo aqui, é o
primórdio de todo o seu raciocínio sobre a qual função no capitalismo contemporâneo das
organizações intelectuais. Segundo nosso autor, “todo grupo social, nascendo no terreno
originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e
consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e
político [...]”
70
. Gramsci complementa ainda que os intelectuais são historicamente formados
e que compõem “categorias especializadas para o exercício da função intelectual
71
. Desta
forma, tanto proletariado quanto burguesia, criam seus intelectuais especializados no
68
Cf. idem, p. 236
69
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 349
[grifos nossos]
70
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 2. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. p. 15
71
Idem, p. 18
- 42 -
exercício de suas atividades - que m a função de homogeneizar e conscientizar a classe da
qual são orgânicos no campo social e político, de forma a garantir uma coesão e uma
coerência com o campo econômico.
Mas, se os intelectuais são orgânicos em relação às classes fundamentais, qual a sua
relação com a produção? Nos Quaderni encontramos a seguinte explicação: A relação entre
os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais
fundamentais, mas é „mediatizada‟, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto
das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os „funcionários‟”
72
. Assim, os
intelectuais mantém relações com o mundo da produção, mas não de forma direta e imediata,
nas infraestruturas; ocupam posições nas superestruturas de forma mediata às infraestruturas.
Se a intelectualidade não possui, majoritariamente, função imediata na produção, qual papel
cumprem na sociedade? Vejamos o que diz o trecho a seguir:
Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das
funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à
orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social,
consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança)
obtida pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no
mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura
“legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem
passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos
momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o
consenso espontâneo. Esta colocação do problema tem como resultado uma
ampliação muito grande do conceito de intelectual, mas assim se torna
possível chegar a uma aproximação concreta à realidade.
Assim, os intelectuais agem em duas frentes - na sociedade civil e na sociedade
política. Na primeira, trabalham lado-a-lado com o consenso construído na fábrica, na
infraestrutura, mas fazendo-o ultrapassar os limites do mundo da produção e chegar às
superestruturas, em um sentido de baixo para cima. Na segunda frente a da sociedade
política -, trabalham em duas situações: (I) no aparelho de coerção estatal, reprimindo os
grupos que não consentem ativa ou passivamente na frente anterior; (II) coagindo maiores
setores da sociedade quando crise do consenso obtido na outra frente em um sentido de
cima para baixo, oposto à frente anterior, mas complementar. Cabe dizer que a ação da
sociedade política não se limita à coerção, mas abarca também funções de direção,
construindo e/ou dando manutenção ao consenso sem abrir mão da força. Pode-se dizer,
portanto, que os intelectuais agem de duas formas, em aparelhos da força e em aparelhos do
72
Idem, p. 20
- 43 -
consenso (sejam eles “públicos” e/ou “privados”), buscando a construção da hegemonia.
Gramsci chama a atenção para o fato de que as funções dos intelectuais nem sempre são
justificadas pelas “necessidades sociais da produção”, mas são “justificadas pelas
necessidades políticas do grupo fundamental dominante”
73
. Desta forma, se as raízes sociais
dos intelectuais orgânicos não podem ser facilmente visualizadas se pensamos em sua relação
com a produção, as coisas se clarificam se passamos a ver as necessidades da classe
dominante em organizar este é o termo chave - sua hegemonia através do trabalho dos
intelectuais.
Sobre a questão do papel organizativo que cumprem os intelectuais, vejamos o que diz
Luciano Gruppi: “Intelectual é o dirigente da sociedade, o quadro social. Um cabo do
exército, embora analfabeto, segundo Gramsci, é um intelectual, porque dirige os soldados;
intelectual é também um chefe das ligas de assalariados agrícolas, ainda que analfabeto, como
eram muitos deles na época de Gramsci, porque organiza os trabalhadores, dirige-os e educa-
os”
74
. Gruppi salienta o papel do intelectual enquanto organizador, dirigente e educador; mas
isso não significa que é dispensável o estudo e o conhecimento para a realização destas
atividades. Mas a tríade organização-direção-educação não pode, em nenhum de seus três
momentos, ser realizada sozinha, por um intelectual solitário em seu gabinete; deve ser
realizada com outras pessoas numa organização, numa instituição, enfim, num partido. E é
exatamente à relação do problema dos intelectuais com o problema do partido que se atém o
autor dos Quaderni no fragmento à seguir:
O que se torna o partido político em relação ao problema dos intelectuais?
É necessário fazer algumas distinções: 1) para alguns grupos sociais, o
partido político é nada mais do que o próprio modo de elaborar sua
categoria de intelectuais orgânicos, que se formam assim, e não podem
deixar de formar-se, dadas as características gerais e as condições de
formação, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado, diretamente
no campo potico e filosófico, e não no campo da técnica produtiva [...] 2)
o partido político, para todos os grupos, é precisamente o mecanismo que
realiza na sociedade civil a mesma função desempenhada pelo Estado, de
modo mais vasto e mais sintético, na sociedade política, ou seja,
proporciona a soldagem entre intelectuais orgânicos de um dado grupo, o
dominante, e intelectuais tradicionais; e esta função é desempenhada pelo
partido precisamente da dependência de sua função fundamental , que é a
de elaborar os próprios componentes, elementos de um grupo social
nascido e desenvolvido como „econômico‟, até transformá-los em
intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as
73
Idem, p. 22
74
GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel (as concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e
Gramsci). Porto Alegre: L&PM Editores, 1980. p. 84 grifos nossos
- 44 -
atividades e funções inerentes ao desenvolvimento orgânico de uma
sociedade integral, civil e política.
75
Gramsci complementa ainda que o partido, independente da qualidade de seus
intelectuais, exerce uma função “que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, isto é,
intelectual
76
. Nestes dois últimos fragmentos citados podemos entender que: o papel do
partido é elaborar sua intelectualidade organicamente, prepará-la para a execução de funções
necessárias à classe social, transformando seus componentes em políticos qualificados,
dirigentes e organizadores. Assim, os intelectuais não são meros estudiosos, eruditos,
membros de um estrato socialmente desenraizado - a intelligentsia, como definem alguns. Na
verdade são responsáveis pela organização dos partidos, que, por sua vez, são entidades
dedicadas à formação, desenvolvimento e qualificação de novos cérebros; realização de
atividades que, se mantém uma relativa subalternidade em relação à produção, não deixam de
ser fundamentais à classe da qual são orgânicos. E, por fim, toda esta estrutura partidária
lutará para o desenvolvimento orgânico de uma sociedade integral, civil e política
77
que
seja condizente com as necessidades históricas de sua respectiva classe social.
Outras considerações de Gramsci que ajudam a entender nosso problema: no partido,
os intelectuais são agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional
78
. Ou
seja, se no terreno da produção as classes fundamentais muitas vezes estão ocupadas com
questões de ordem específica, rotineira e imediata, os seus respectivos intelectuais estão se
ocupando de questões de ordem “superior”, geral e mediatas nos partidos - entendidos em
sentido lato. No mesmo sentido, devemos entender o seguinte: o partido como organização
prática (ou tendência prática), isto é, como instrumento para a solução de um problema ou
de um grupo de problemas da vida nacional e internacional
79
. Assim podemos perceber que
o partido está voltado à resolução de problemas que não podem ser enfrentados na área da
produção, da infra-estrutura, mas sim na região da superestrutura.
Conforme o parágrafo anterior, o partido busca solucionar problemas que não se
caracterizam por um grau de especificidade, mas sim por um grau de generalidade. Mas
como mediar a especificidade com a generalidade? Para esse intermédio, Gramsci diz que o
partido apresenta-se como o portador de uma ideologia geral, superior aos vários
75
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. V. 2..., p. 24 grifos nossos
76
Idem, p.25 [grifos nossos]
77
Idem, p.24
78
Idem, p.25 [grifos nossos]
79
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V.1. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 420
[grifos nossos]
- 45 -
agrupamentos mais imediatos
80
. Desta forma o partido é a organização que buscará inculcar
uma ideologia geral e superior, ou seja, através da educação e da direção, unificar na
superestrutura aquilo que é desunido e conflituoso na infraestrutura, na produção. Ou seja,
buscam coadunar
81
as diversas frações de sua classe social. Vemos assim que os intelectuais e
seus respectivos aparelhos, os partidos políticos, tem uma atuação que não pode ser
dispensada pelas classes sociais; cumprem funções táticas e estratégicas na luta de classes -
tanto na hegemonia quanto na contra-hegemonia.
Vimos anteriormente que o partido - a partir da tríade organizão-direção-educação -
tem função de coadunar, e isto o deve ser realizado apenas extra-classe, deve também ser
uma ação para dentro da classe social, na luta pela formação de uma vontade coletiva. Desta
maneira, diz Gramsci, para que o partido possa ter uma ação unificada é necessário haver um
“programa de partido”, de forma que a organização não seja pulverizada “numa infinidade de
vontades singulares”
82
. O próximo fragmento ajuda a entender:
um „movimento ou tendência de opiniões se torna partido, isto é, força
política eficiente do ponto de vista do exercício do poder governamental:
precisamente na medida em que possui (elaborou em seu interior) dirigentes
de vários graus e na medida em que esses dirigentes adquiriram
determinadas capacidades. [...] Por isso, pode-se dizer que os partidos têm a
tarefa de elaborar dirigentes qualificados; eles são a função de massa que
seleciona, desenvolve, multiplica os dirigentes necessários para que um
grupo social definido [...] se articule e se transforme, de um confuso caos,
em exército político organicamente preparado.
83
Desta forma vemos que os intelectuais têm a função de organizar o partido de tal
forma que este, por sua vez, coadune os membros da própria classe. Isto possibilitará a
formação do que o pensador sardo chama de exército político organicamente preparado, de
tal modo a atingir uma eficiência que possibilite governar, dirigir a sociedade como um todo.
Assim, neste sentido, diz Gramsci:
[...] com efeito, embora seja verdade que os partidos são apenas a
nomenclatura das classes, também é verdade que os partidos o são apenas
uma expressão mecânica e passiva das próprias classes, mas reagem
energicamente sobre elas para desenvolvê-las, consolidá-las universalizá-las.
[...]
As classes expressam os partidos, os partidos elaboram os homens de Estado
e de Governo, os dirigentes da sociedade civil e da sociedade política. Deve
80
Idem, p. 421 [grifos nossos]
81
Segundo o Diciorio Aurélio, coadunar significa: (I) juntar, incorporar, reunir para a formação de um todo;
(II) conformar, combinar, harmonizar. Estes são sentidos que casam perfeitamente com a função do partido.
82
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 3..., p. 15
83
Idem, p. 84-5 - grifos nossos
- 46 -
haver uma certa relação útil e fecunda nestas manifestações e nestas funções.
Não pode haver elaboração de dirigentes onde falta a atividade teórica,
doutrinária dos partidos, onde não são investigadas e estudadas
sistematicamente as razões de ser e de desenvolvimento da classe
representada.
84
As entidades onde o trabalho dos intelectuais de organização, direção e educação visando
elaborar dirigentes das sociedades civil e política podem ser consideradas partidos. E, como
vimos no último fragmento grifado, para tanto é necessário o trabalho intelectual de
doutrinação, investigação e estudo sistemáticos para a formação dos homens de Estado e de
Governo em particular, e dos dirigentes em geral.
Expomos até aqui como Antonio Gramsci define o que é um partido, neste sentido
podemos ver que muitas organizações autodenominadas “não-governamentais”,
“apartidárias”, etc., na realidade funcionam como partidos políticos, pois visam organizar,
educar e dirigir, tendo como princípio a formação dos dirigentes; assim os „partidos‟ podem
se apresentar sob os nomes mais diversos, mesmo sob o nome de antipartido e de „negação
dos partidos‟
85
. Seguindo esta linha de raciocínio, nosso autor diz que alguns partidos
apresentam-se como puramente “educativos, moralistas”, de “cultura”, no entanto o
partido é essencialmente político e até mesmo sua atividade cultural é atividade de política
cultural
86
. Ou seja, as organizações que buscam embelezar, camuflar, conquistar uma
aparência positiva”, “neutra” por meio de termos simpáticos como, por exemplo, “cultura”,
são na realidade partidos - entendidos em seu sentido lato. E, se pensarmos na problemática
dos periódicos em particular, e dos aparelhos de comunicação social em geral, a questão pode
ser aprofundada ainda mais - vejamos os dois fragmentos a seguir:
[I][...] a verdade teórica de que cada classe possui apenas um partido é
demonstrada, nos momentos decisivos, pelo fato de que agrupamentos
políticos variados, cada um dos quais se apresentava como partido
“independente”, se reúnem e unificam em bloco. A multiplicidade existente
antes era apenas de caráter “reformista”, isto é, referia-se a questões
parciais, em certo sentido era uma divisão do trabalho político (útil, em seus
limites); mas cada parte pressupunha a outra, tanto que nos momentos
decisivos, quando as queses principais foram postas em jogo, formou-se a
unidade, criou-se o bloco.
87
[II][...] os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por
alguma outra razão, dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o
nome de partido e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes
o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence à nenhuma
84
Idem, p. 201-2 - grifos nossos
85
Idem, p. 326 - grifos nossos
86
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. V. 2. p. 237
87
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. V. 3. p. 328-9 - grifos nossos
- 47 -
dessas frações, mas opera como se fosse uma força dirigente em si mesma,
superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público. Esta
função pode ser estudada com maior precisão si se parte do ponto de vista
de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de
revistas) são também “partidos”, “frações de partidos” ou “funções de
determinados partidos”.
88
Desta forma podemos entender a questão dos inúmeros partidos a partir de uma visão
da totalidade. Mas, aqui, concretamente o que é esta totalidade? Como diz Gramsci, em
momentos históricos decisivos entenda-se acirramento da luta de classes -, os inúmeros
partidos posicionam-se ao lado da classe da qual são orgânicos. E isto implica que cada
partido exerce uma função nos marcos de seu extrato social, mas que é complementar aos
outros partidos, uma divisão do trabalho político das classes fundamentais entre suas
diversas organizações; cada qual faz fazer uma parte do trabalho necessário à seu grupo
social.
Esta divisão exigirá um Estado-Maior para coordenar o trabalho, com o objetivo de,
através de várias ações divididas entre as diversas instâncias, conseguir uma unidade de
objetivos. É como uma guerra de guerrilhas, cada destacamento tem autonomia para fazer da
maneira necessária o trabalho pré-determinado, desde que o fim seja alcançado. Mas, como
podemos ler no fragmento II, a função de Estado-Maior muitas vezes não é realizada pelos
partidos em particular, mas pelos órgãos de comunicação social em geral que acabam
atuando como partidos. As revistas e os jornais são a “escola dos adultos”
89
, assim cumprem
papel essencial na questão da educação que é uma das funções do partido, mas de forma mais
massificada, pois os periódicos “são estéreis se não se tornam a força motriz e formadora de
instituições culturais de tipo associativo de massa”
90
. Desta forma, as revistas tentarão
constituir-se como a direção geral o Estado-Maior -, pois são meios que agem para fora e
para dentro do partido por meio de uma ação de pedagogia massificada, de forma a atingir
conformações sociais necessárias à ação partidária.
É necessário aprofundar o papel do Estado, e, para tanto, contaremos com a
contribuição de Nicos Poulantzas. Segundo o marxista grego, os marxistas concentraram-se
exaustivamente no aparelho repressivo de Estado, ou seja, no ramo estatal que compreende
o exército, a polícia, a administração, os tribunais, o governo. É uma compreensão estrita do
Estado. Gramsci dá um sentido lato aos estudos do Estado, numa compreensão integral, pois o
88
Idem, p. 349-50 - grifos nossos
89
GRAMSCI, A. Cadernos do carcere. V. 2. p. 229
90
Idem, p.237
- 48 -
seu papel não se limita à força; o Estado é também um “organizador da hegemonia”
91
, não
obstante o papel decisivo do aparelho repressivo. Para o comunista italiano, deve-se
considerar a “tarefa educativa e formativa do Estado, cujo fim é sempre o de criar novos e
mais elevados tipos de civilização, de adequar a „civilização‟ e a moralidade das mais amplas
massas populares às necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de
produção [...]”
92
. Assim organizações habitualmente consideradas como privadas, a Igreja, as
escolas, os sindicatos, os partidos, todos os aparelhos de informação (jornais, revistas, dio,
cinema, televisão, etc.) são parte do Estado no sentido integral; numa palavra, os aparelhos
ideológicos são aparelhos de Estado e atuam na elaborão e na inculcação ideológica
93
.
Neste sentido, a questão da ideologia é essencial para a nossa problemática.
A ideologia não reside somente nas idéias, ela subentende também os costumes, os
hábitos, enfim, ao modo de vida; e, podendo deter o papel dominante, constitui-se num poder
essencial, pois a dominação política não pode ser exercida exclusivamente pela repressão
física; requer a intervenção decisiva e direta da ideologia”
94
. Assim, ideologia não é
“neutra”, “só existem ideologias de classe”
95
. O Estado compreendido em sentido integral
com todos os seus aparelhos de hegemonia é um Estado de classe. É neste sentido que a
ideologia dominante, sob a forma de existência dos aparelhos ideológicos, está diretamente
implicada no sistema estatal, o qual constitui, simultaneamente, a expressão, a garantia e o
local concentrado do poder político
96
. Neste sentido, o aparato repressivo o Estado em
sentido estrito é a condição de existência dos aparelhos ideológicos, não obstante, es
sempre presente mesmo quando não intervém diretamente.
O Estado, num sentido lato, deve ser compreendido como o aparato que reúne “os
aparelhos que têm por papel essencial a manutenção da coesão e da unidade de uma formação
dividida em classes”
97
. Neste sentido, diz Poulantzas, é comum os aparelhos ideológicos
terem um caráter “privado”, não serem reconhecidos oficialmente como aparelhos de Estado.
No entanto, a distinção entre “público” e “privado” é puramente uma distinção jurídica: “[...]
é preciso notar bem que é, de fato, o direito quer dizer, em um sentido, o próprio Estado
que estabelece esta distinção: ela tem apenas um sentido jurídico. Esta distinção privado-
público não muda, pois, em nada o fundo da questão dos aparelhos ideológicos de Estado.
91
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura... p. 319
92
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. V. 3. p. 23
93
Cf. POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura... p. 320-2
94
Idem, p. 322
95
Idem, p. 322
96
Idem, p. 322 grifos nossos
97
Idem, p.324
- 49 -
Gramsci compreendia-o perfeitamente, quando considerava como pertencendo ao Estado
„organismos habitualmente tidos como privados‟”
98
.
Com efeito, isto o quer dizer que esta distinção privado-público não tenha qualquer
importância. Para Poulantzas, ela revela que uma certa autonomia relativa nas relações
mútuas dos aparelhos ideológicos de Estado e nas relações com o próprio Estado;
contrariamente ao aparelho repressivo de Estado, que possui um alto grau de unidade interna.
Deste modo, os aparelhos ideológicos não são mais do que efeito da luta de classes, e cada um
expressa uma ideologia ou um subsistema ideológico relacionado com cada uma das
diferentes classes ou frações de classe em luta. Além disso, pode ocorrer que classes ou
frações de classe diferentes detenham poder nos aparelhos ideológicos de Estado, ou em
alguns deles, o que acentua o grau de autonomia relativa e produz uma defasagem no poder de
Estado. Neste sentido, apenas as organizações revolucionárias podem escapar ao sistema dos
aparelhos ideológicos de Estado
99
.
Mas a autonomia relativa varia no Estado de exceção - característico, por exemplo, de
uma ditadura - segundo o marxista grego, “A diferenciação do estatuto privado-público
recobre a autonomia relativa, no seio do Estado, dos aparelhos ideológicos. As modificações,
a este respeito, no caso de um Estado de exceção [...] indicam a limitação característica, em
diversos graus que pode ir até a supressão da autonomia relativa dos aparelhos
ideológicos no próprio seio do Estado: autonomia relativa que os caracteriza nas outras
formas de Estado
100
. Assim, a autonomia relativa que encontramos no Estado parlamentar
clássico, numa ditadura - entendida aqui no quadro geral dos Estados de exceção - é cerceada,
ou até suprimida. Isto se porque uma ditadura tem o papel decisivo de reorganizar a
hegemonia o que implica: “a) Numa limitação decisiva desta „distribuição‟ do poder no seio
dos aparelhos; b) No controle estrito do conjunto do sistema estatal por um „ramo‟ ou um
aparelho, dominado pela classe ou fração que luta pelo estabelecimento de sua hegemonia”
101
;
ou seja, numa palavra, há um aumento da intervenção nos aparelhos ideológicos. Estes fatores
redobram o acréscimo de repressão às classes populares; e esta intervenção ideológica visa a
legitimação da violência do aparato repressivo.
No entanto, nosso autor diz que uma ditadura não supõe sempre que o aparelho
repressivo dominará os aparelhos ideológicos; não obstante, a dominância do aparelho
ideológico ou do aparato repressivo definirá a especificidade do Estado ditatorial. E, sob o
98
Idem, p. 325
99
Cf. Idem, p. 326-9
100
Idem, p. 337
101
Idem, p. 338
- 50 -
fato de que a ditadura reorganiza o conjunto do sistema estatal e da hegemonia, esta
reorganização pode ir até ao ponto de um aparelho ideológico dominar o conjunto do
sistema estatal
102
. Assim, numa ditadura um aparelho ideológico pode dominar o aparelho
repressivo, e vice-versa. Como o processo não é estático, pode mesmo haver uma alternância
de um ou outro aparelho na dominação.
Em resumo, à medida que os aparelhos ideológicos funcionam como organizadores-
educadores-dirigentes na inculcação ideológica, funcionam verdadeiramente como partidos
políticos, pois contribuem decisivamente para a elaboração de dirigentes, assim como para a
transformação da classe social - de um confuso caos num “exército político organicamente
preparado”. Assim, quando falarmos em “aparelhos ideológicos”, queremos que o leitor
sempre remeta à sua função político-partidária do contrário, a presente discussão se torna
estéril.
1.3 DA REVOLÃO PASSIVA & DA HEGEMONIA: O APARELHO DE HEGEMONIA
FILOSÓFICO
O objetivo deste sub-capítulo é tirar conclusões mais gerais a respeito das categorias
desenvolvidas por Gramsci que foram expostas aaqui, buscando unifi-las. Acreditamos
que esta unificação seria possível de diferentes maneiras, à medida que o pensamento do
marxista sardo compõe verdadeiramente uma totalidade, muitas vezes difícil de ser percebida
pela sua complexidade; mas aqui, particularmente, buscaremos reunir num corpo a
revolução passiva e o partido político através da categoria do aparelho de hegemonia
filosófico.
Importante notar que a revolução passiva, preservadas suas especificidades, inscreve-
se no plano mais geral das revoluções burguesas, como um exemplo de revolução burguesa
não-clássica. O que deu o tom desta revolução foi o fato da burguesia capitalista unir-se num
bloco com a aristocracia fundiária, pois o levante popular colocaria em perigo sua dominação.
A massa camponesa foi a principal vítima da revolução passiva, relegada a um
empobrecimento, que ficou conhecido como Il Mezzogiorno”, que divide a Itália a hoje
entre o Norte desenvolvido e o Sul atrasado. Os fascistas aprofundaram esta desigualdade
interna quando impuseram ao operariado agrícola uma perda de 50% em seus rendimentos,
apesar de ter tornado capitalista o Sul agrícola.
102
Idem, p. 341
- 51 -
Assim como devemos pensar o Risorgimento como um processo que comportou
determinada reação à Revolução Francesa, não se pode pensar o fascismo italiano sem -lo
como uma maneira de evitar uma revolução ativa, isto é, para evitar uma nova crise
revolucionária, como a dos conselhos operários (1919-20) e também evitar os “respingos” da
Revolução Russa (1917). Numa palavra, a revolução passiva comporta em si a contra-
revolução. É importante sublinhar que a derrota da revolução social na Itália é que abriu
espaço para o fascismo ascender.
É uma necessidade da burguesia combater eficientemente a autonomia das classes
populares, aniquilando ou cooptando suas frações mais radicais. Para a burguesia, lidar com
uma oposição que não tem autonomia teórico-prática é um problema que deverá ser
equacionado com eficácia. A classe burguesa vale-se de expedientes ideológicos fetichizantes,
entre eles o “justo-meio”, e da força (seja das idéias, das armas, das leis, da corrupção, de seus
aparelhos de hegemonia - como se verá no próximo tópico) - conforme já definia Gramsci:
O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime
parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se
equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso,
mas, ao contrário, tentando fazer com que a foa pareça apoiada no
consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública
jornais e associações -, os quais, por isso, em certas situações, são
artificialmente multiplicados. Entre o consenso e a força, situa-se a
corrupção-fraude (que é característica de certas situações de difícil exercício
da função hegemônica, apresentando o emprego da força excessivos
perigos), isto é, o enfraquecimento e a paralisação do antagonista ou dos
antagonistas através da absorção de seus dirigentes, seja veladamente, seja
abertamente (em casos de perigo iminente), com o objetivo de lançar a
confusão e a ordem nas fileiras adversárias.
103
A antítese da revolução passiva é a revolução ativa, e esta pode realizar-se através
da luta contra-hegemônica, perpassando o embate intelectual orgânico e a insurreição popular
de fôlego, preparados política e ideologicamente e com uma profunda consciência de classe
historicamente embasada. Neste sentido, o transformismo - a decapitação das classes
antagônicas está na essência da revolução passiva; é mais uma maneira de submeter a classe
antagônica.
Não revolução passiva sem o exercício hegemônico do Estado. A força material e
ideológica de seus aparatos está no cerne desta revolução, eles conferem à burguesia a força
suplementar necessária. A revolução passiva é, essencialmente, a restauração progressiva que
103
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. V. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 95 grifos
nossos
- 52 -
promove um aggiornamento
104
, que, neste caso, deve ser compreendido como uma
rearticulação da classe hegemônica em que o aparato estatal tem papel decisivo para a
reorganização da hegemonia.
A historiografia da revolução passiva é caracterizada pelo fetichismo, isto é,
escamoteia as rupturas, a luta de classes, pois é a expressão do temor de que as classes
trabalhadoras possam se movimentar autônoma e ativamente. Neste sentido, o moderantismo
conservador é expressão da revolução passiva, e ele se manifesta de diversas maneiras,
encontramos uma das suas manifestações mais emblemáticas no fascismo italiano, seu líder,
Mussolini, transformou-se de militante socialista em fascista, e colocava-se como a opção
entre o imperialismo e a revolução vermelha. Mas o intuito era a preservação do capitalismo
num momento de crise.
Esta vertente historiográfica sempre esteve atrelada a organizações criadas para o seu
estudo, interpretação e divulgação, como o “Instituto Histórico Italiano de Roma” (criado em
1883), que começou a publicar, em 1895, a “Revista Histórica do Risorgimento Italiano”; e a
“Sociedade Nacional para a História do Risorgimento (criada em 1907), que publicou
durante 1907 a revista “O Risorgimento Italiano”
105
. O principal risorgimentista
106
foi
Benedetto Croce, ele estava no cerne das preocupações de Gramsci. Croce teve uma ampla
atuação político-orgânica; ele publicou, de 1903 até 1944, a revista La Critica, rivista di
storia, letteratura e filosofia. De 1921 a 1925, Croce, então ministro da educação (ministro
della Pubblica Istruzione) no governo Giolitti, passa a dedicar-se à reforma da escola média.
Neste mesmo sentido, de 1901 a 1925, Croce foi o mentor da publicação de coleções como
“Biblioteca de Cultura moderna”, “Clássicos da filosofia moderna” e “Escritores da Itália”,
pela Editora Laterza.
107
Assim, os conceitos de revolução passiva e aparelhos de hegemonia na verdade são
complementares para entender a atuação dos intelectuais orgânicos da burguesia,
especialmente Croce. Desta maneira, segundo Christine Buci-Glucksmann, Gramsci percebeu
que o trabalho do principal filósofo do idealismo italiano só fazia sentido, só se materializava,
só adquiria organicidade através dos diversos aparelhos de hegemonia.
108
104
Aggiornamento, do italiano, significa atualização, revisão, modernização; modificação, emenda, acréscimo;
mas também adiamento e prorrogação.
105
Cf. BANTI, Alberto Mario. Il Risorgimento italiano. Roma: Laterza, 2004. p. 135
106
Risorgimentista: intelectual, estudioso do Risorgimento.
107
Cf. http://www.lastoriasiamonoi.rai.it/, http://www.territorioscuola.com, todos os sítios foram consultados em
02/02/2009.
108
Cf. BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci e o Estado: por uma teoria materialista da filosofia. 2ªed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. Essencialmente o capítulo 4 da quinta parte (Elementos para uma teoria do
aparelho de hegemonia filosófica”), p. 473-94.
- 53 -
Neste sentido, Croce esteve no cerne de uma reforma conservadora do hegelianismo,
em que o idealismo neo-hegeliano do Estado passava a ser o correspondente filosófico da
revolução passiva italiana conforme caracterizado por Gramsci (“hegelianismo mutilado”).
Os filósofos da revolução passiva acreditavam estar fazendo “pura teoria”; esta concepção
é possível, diz Buci-Glucksmann, pela e na divisão social do trabalho característica do
capitalismo; esta utopia dos intelectuais que acreditam estar flutuando acima da luta de
classes não faz mais do que reproduzir “a distinção perpetuamente repetida pelas sociedades
de classes, entre „o que deve fazer um intelectual e o que é a política (como se o intelectual
não fosse também um político, e não somente um político da intelectualidade)‟”
109
; esta
concepção é expressão da divisão social do trabalho; é expressão da relação mediatizada que
os intelectuais mantém com o mundo da produção e da separação entre o trabalho intelectual e
o manual.
Na verdade, há uma unidade entre a teoria e a prática, entre a filosofia e a política. E a
filosofia da revolução-restauração se inscreve nas superestruturas; tem uma existência
material em diversos aparelhos: o político, o escolar (escolas, universidades) e o cultural-
informativo (editoras, periódicos, imprensa)
110
. Croce, por seu turno, visava, por um lado,
ocultar a política da filosofia, transformando-a em “filosofia de filósofos”, e, por outro lado,
fazer da cultura um sujeito autônomo; buscava assim colocar a intelectualidade num patamar
de casta, separá-la do povo. No entanto, o partido crociano construía ideologias para
governar as outras classes sociais, educava as classes dirigentes para a hegemonia. E, na
ausência de um grande partido da burguesia, Croce desempenhou o papel de “federador
ideológico”. Benedetto Croce fora o construtor de um verdadeiro aparelho de hegemonia
filosófico (a.h.f).
Os a.h.f. têm o objetivo de aprofundar o trabalho teórico, doutrinário; fazer dos
intelectuais os soldadores de sua respectiva classe social, através da elaboração de uma
ideologia geral e superior que coadune uma sociedade dividida em classes antagônicas.
Segundo Buci-Glucksmann, o a.h.f. busca a difusão de uma filosofia, de uma concepção
geral da vida”, de uma estrutura ideológica que compreendeuma organização material que
visa a manter, defender, desenvolver a „frente teórica e ideológica‟. O a.h.f. portanto faz
parte „do formidável complexo de trincheiras e fortificações da classe dominante‟.”
111
Segundo a autora, o a.h.f. é essencialmente compósito a plural, pois se articula em torno de
109
Idem, p. 483, apud. GRAMSCI, Antonio. Passato e Presente. Torino: Einaudi, 1966. p. 27
110
Idem, p. 474-5
111
Idem, p. 484
- 54 -
diversos aparelhos de hegemonia, como os periódicos onde as práticas jornalísticas (e
político partidárias) fazem os agentes se reconhecerem
112
. Neste sentido, o viés político do
a.h.f. crociano revelou-se quando Croce foi ministro da educação nacional (1920-1921) no
último governo Giolitti
113
. Neste sentido, o aparelho de hegemonia filosófico comporta em si
a atuação político-partidária (conforme definido por Gramsci).
Nesta imbricação da reforma conservadora do hegelianismo, que promovia a negação
da dialética da história (esquematizada na tese-antítese-síntese), levada a cabo por aparelhos
de hegemonia filosófica, que, por sua vez, visavam a conservação do status quo ante é que se
pode falar em ideologia italiana.
114
1.4 A REVOLUÇÃO PASSIVA NO BRASIL
A Revolução Burguesa combina nem poderia
deixar de fazê-lo transformação capitalista e
dominação burguesa. Todavia, essa combinação
se processa em condições econômicas e
histórico-sociais específicas, que excluem
qualquer probabilidade de repetição da
história”.
Florestan Fernandes
Marcos Del Roio
115
e Carlos Nelson Coutinho
116
concordam que o conceito da
revolução passiva, originalmente elaborado para analisar a revolução burguesa italiana, possui
uma envergadura analítica ampla que permite a interpretação da revolução burguesa
brasileira mas não se trata de um conceito elástico, frouxo, que pode ser utilizado sem
critério e rigor. Del Roio acentua que é necessário evitar a “diluição do conceito”
117
; é
necessária a análise concreta de processos históricos particulares que compõe o quadro do
século XX. Para Coutinho, o protagonismo do Estado seria o traço marcante da transformação
capitalista brasileira, desde a Independência (1822), passando pela Proclamação da República
(1889), pela Revolução de 1930 e, finalmente, pelo golpe de 1964
118
. Esta generalização de
112
Cf. idem, p. 474
113
Idem, p. 488
114
Idem, p. 486-90
115
Cf. ROIO, Marcos Del. Um século de revoluções passivas. In: AGGIO, Alberto e LAHUERTA, Milton.
Pensar o século XX: problemas poticos e história nacional na América Latina. São Paulo: Editora UNESP,
2003. p. 91-111
116
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira. In: Coutinho, C. N. e
NOGUEIRA, Marco Aurélio (org). Gramsci e a América Latina. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. p.
103-127
117
ROIO, Marcos Del. Um século de revoluções passivas... p. 93
118
COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira... p. 106-7
- 55 -
Coutinho é bastante complicada, pois diluí o conceito elaborado por Gramsci em diversos
momentos; fragmenta a categoria em hegemonias distintas que corresponderam à diferentes
frações de classe que, por sua vez, tinham projetos diferenciados para o capitalismo no Brasil.
Nos atentaremos ao século XX, com o objetivo de dar o devido tratamento à ditadura
(1964-1985). Para nós, a instauração deste regime deve ser entendida no contexto maior da
transição, no Brasil, do capitalismo concorrencial para o monopolista de Estado, que se deu a
partir do fim da Primeira Guerra Mundial, atravessando as quatro décadas seguintes
119
. Esta
fase do capitalismo é caracterizada pela ascensão do Estado como força econômica
significativa daí a importância da categoria da revolução-restauração -, fase do capitalismo
em que o Estado esestreitamente relacionado com as frações da classe burguesa ligadas às
empresas gigantes e aos grandes grupos financeiros
120
. Assim, traçaremos um panorama da
revolução passiva no Brasil para os períodos 1930-1964-1985.
* * *
Contrariamente à revolução jacobina de tipo clássico, o Brasil passou por um processo
de modernização capitalista em que o latifúndio pré-capitalista e a dependência às potências
hegemônicas o obstaculizaram o desenvolvimento capitalista, mas, ao contrário, foram a
sua própria marca. Assim, gradualmente e “pelo alto”, os grandes latifúndios transformaram-
se em empresas capitalistas agrárias; e o capital estrangeiro constituiu-se numa das forças
motrizes para converter o Brasil num país industrial moderno
121
. Em todo este processo, teve
a atuação preponderante do Estado, que não foi resultado de um processo dirigido por uma
burguesia revolucionária que contasse com a participação das massas populares rurais e
urbanas; contrariamente, “a transformação capitalista teve lugar graças ao acordo entre as
frações das classes economicamente dominantes, à exclusão das forças populares e à
utilização permanente dos aparelhos repressivos e de intervenção econômica do Estado”
122
.
A revolução passiva, no Brasil, começou a tomar forma após já ter se fortalecido no
Ocidente. Nos Estados Unidos ocorreram os primórdios deste processo, quando da
institucionalização, em 1911, da Taylor Society que teve por objetivo disseminar a
119
Cf. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5ª ed.
São Paulo: Globo, 2006. Em particular o capitulo 7 “O modelo autocrático-burguês de transformação
capitalista”.
120
Cf. verbete capitalismo monopolista de Estado”. In: BOTTOMORE, Tom (editor). Dicionário do
pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 55-6
121
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira... p. 106
122
Idem, p. 106
- 56 -
organização científica do trabalho -, e com a instalação, em 1914, da cadeia automática de
montagem na fábrica de automóveis de Henry Ford; este período foi marcado pela intensa
repressão ao movimento operário e socialista. Na Itália, como já visto anteriormente, a
evolução da revolução-restauração se deu através do desmantelamento de qualquer
organização social antagônica ao fascismo, através da “estatização dos organismos coletivos
da sociedade civil por meio do corporativismo”
123
. A promulgão da Carta del Lavoro, em
1927, facilitou a imposição do taylorismo nas bricas. A difusão ganha novo impulso em
1933, com a ascensão do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP),
com o conseqüente desmantelamento dos partidos operários e das organizações sindicais
autônomas que foram duramente atacados; assim como também com a organização da Frente
do Trabalho Alemão (DAF) que submeteu a classe operária ao corporativismo estatal. Após
esta primeira etapa, o corporativismo se expandiu por vários países, como forma de evitar
alternativas nacional-populares, e incorporou áreas subalternas do Ocidente (Portugal,
Espanha, Brasil, México, Argentina) e do Oriente europeu (Hungria, Polônia, Lituânia,
Romênia).
124
Assim, a ditadura que Vargas inaugurou em 1937 seguiu os caminhos delineados pelas
potências hegemônicas; mas foi também a culminão, a derrota, de movimentos opositores
que o lograram qualquer vitória que abalasse os blocos no poder, seja o movimento
tenentista, surgido em 1922, ou o Partido Comunista Brasileiro (PCB), também formado neste
ano mesmo ano, que levou a cabo os levantes de 1935 revelou-se numa desastrosa
iniciativa: por um lado, fora debelado facilmente pelas forças governamentais e, por outro
lado, forneceu o pretexto que o regime precisava para instaurar a ditadura estado-novista.
Apesar da repressão inaudita do Estado Novo e da sua cobertura ideológica, o regime teve que
promulgar leis de proteção ao trabalho, que muito tempo eram reivindicadas pelo
proletariado (leis de proteção do trabalho, férias remuneradas, aposentadoria, etc.). Impôs
uma legislação sindical corporativista, inspirada na Carta del Lavoro do fascismo italiano. O
regime, de um lado, atendeu as classes trabalhadoras - num sentido socialmente progressista;
sentido este neutralizado pela restauração esta, por sua vez, manteve a submissão do
trabalho ao capital.
125
Ainda que a movimentação das classes populares fosse marcada pela debilidade,
durante a década de 1920 houve verdadeiramente uma crescente pressão das massas urbanas
123
ROIO, Marcos Del. Um século de revoluções passivas... p. 96
124
Cf. idem, p. 94-8
125
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira... p. 109-110
- 57 -
que reivindicavam uma democratizão efetiva. Estas pressões que se davam no âmbito
nacional ocorriam num contexto internacional marcado pela alternativa dos países socialistas,
que se contrapunham ao mercado e inspiravam as classes trabalhadoras. Internamente, a
economia brasileira baseada na agro-exportação passava por dificuldades decorrentes das
crises do mercado internacional; o que produziu maiores conflitos mesmo no interior dos
grupos dominantes. Desta maneira, contrapunham-se ao liberalismo restrito da primeira
república não apenas as massas populares, mas também setores das classes dominantes. Estes
se inspiravam seja no fascismo (o integralismo), seja na doutrina Social da Igreja Católica
(antiliberal e anticomunista), e também nas formas de intervenção do Estado (que ganharam
legitimidade principalmente com a experiência do New Deal).
126
Assim, a “revolução de 1930
revelaria a impossibilidade de cada fração impor sua dominação exclusiva ou de convencer as
demais de uma direção comum. Desde então delineava-se uma reformulação da estrutura de
poder, não pela substituição das elites tradicionais pelas novas elites em ascensão, mas pela
acomodação entre os diferentes atores em confronto‟”
127
. O que se assistiu em 1930 foi,
propriamente, uma revolução-restauração que, de um lado, precisava acomodar os diversos
setores das classes dominantes e, de outro lado, rever as relações destes setores com as classes
populares, de modo a conter suas pressões e continuar a submetê-las. E, neste sentido, o
Estado Novo aprofundou o processo e trouxe um efetiva reorganização do Estado
brasileiro que significou uma efetiva reconfiguração da dominação de classes no
Brasil
128
. Mas também deslocou o eixo da acumulação capitalista da agro-exportação para a
industrialização voltada ao mercado interno.
Ao lado da violência brutal que a ditadura estado-novista levou a cabo contra as
organizações das classes trabalhadoras, este regime buscou também impor o convencimento.
Ao mesmo tempo em que centralizou os aparelhos repressivos (a polícia, o exército), o Estado
também centralizou todos os aparelhos de informação, com a criação do Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP), que funcionou de 1939-1944. O DIP funcionava em
consonância com as Delegacias de Ordem Política e Social, que desmantelavam gráficas que
produziam textos críticos, numa censura anticomunista. Assim, o DIP era um órgão policial
propriamente dito, mas também foi um dos locais de formação de uma intelectualidade
ligada a uma nova visão de mundo. [...] Esses intelectuais distanciavam-se de suas origens
126
Cf. FONTES, Virginia M. Reflexões im-pertinentes: História e capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Bom Texto, 2005. p. 185-6
127
Idem, p. 186, apud. DINIZ, Eli. O Estado Novo: estrutura de poder, relações de classe. In: FAUSTO, Boris
(org.). O Brasil Republicano: Sociedade e política, 1930-1964. História Geral da Civilização Brasileira. ed.
São Paulo: Difel, t. 3, v. 3, 1986. p. 84 grifos nossos
128
Idem, p. 187 - grifos nossos
- 58 -
sociais, eram ressocializados em outra dinâmica, viam-se e percebiam-se como falando em
nome do „Estado‟ e da „Nação‟. [...] Buscava-se homogeneizar, pelo alto, o conjunto da
produção cultural e educativa. Caberia doravante ao Estado expressão de uma nova
correlação de forças entre os grupos dominantes a tarefa de definir inclusive em que
consiste o popular [...]
129
. Desta maneira, o estado-novismo buscou estabelecer a hegemonia
pelas idéias sempre apoiadas na força bruta, na repressão sistemática , criou todo um
aparato que acomodava uma intelectualidade, lhe oferecendo uma carreira reconhecida,
ascensão e visibilidade social num projeto cultural e intelectual amplíssimo, que abarcava
publicações como as revistas Cultura Política e Ciência Política -, a produção de livros,
cartazes, programas de rádio, filmes, noticiários, cinejornais e material noticioso para
publicação nos diversos jornais de todo o país
130
. Todo este aparato, de produção cultural
massificada, significou, ao nosso ver, uma ampla estrutura de conquista de corações e mentes,
de transformismo não apenas de intelectuais, mas também das massas populares, através da
tentativa que obteve com certeza determinado grau de êxito - de moldar-lhes o pensamento,
através de expedientes fetichizantes-mistificadores da realidade, sendo o mais emblemático
deles a construção do “mito Vargas” e do Estado “acima da sociedade”.
O período ditatorial consolidaria uma nova formatação do Estado [...]
131
. De nossa
perspectiva, o estado-novismo é a expressão singular brasileira - da revolução-restauração.
Mas deve-se tomar cuidado com esta singularidade”, relativizar é preciso, pois o populismo
brasileiro possuía claras semelhanças com outros populismos latino-americanos,
especialmente o argentino. Néstor Kohan chamou a atenção para o fato de que ocorreram
revoluções passivas em toda América Latina:
Na América Latina as burguesias nasceram oligárquicas e as oligarquias
foram aburguesando-se enquanto se modernizavam. As modernizações não
vieram de baixo, mas sim de cima. Não foram democráticas nem plebéias,
mas sim oligárquicas e autoritárias. Não foram produto de “revoluções
burguesas antifeudais” como rezavam certos manuais mas sim
revoluções-restauradoras, revoluções passivas impulsionadas pelas
oligarquias aburguesadas.
Foram as próprias oligarquias, através do aparato do Estado e em particular
das forças armadas, as que empreenderam a sangue, tortura e fogo o
129
Idem, p. 193-4
130
Cf. Idem, p. 191-6
131
Idem, p. 197
- 59 -
caminho para modernizar sua inserção sempre subordinada no mercado
mundial capitalista.
132
Modificou-se a superestrutura, modificou-se também a correlação de forças entre as
frações da classe dominante. O estado-novismo alargou esta margem de dominação até o
nível mais elevado da hegemonia. Mas a exploração das classes trabalhadoras permaneceu, e
foi até aprofundada através da modernização da base econômica, que aumentou o ritmo do
trabalho. Este processo, segundo Virginia Fontes, marcou o Estado brasileiro na sua essência,
consolidou uma nacionalização truncada limitada em que os grupos dominantes (e seus
interesses) passaram a ser nacionalmente reconhecidos, enquanto as classes populares (e suas
reivindicações e suas necessidades) não. Concretamente, isso pôde ocorrer porque as classes
proprietárias, através das suas organizações associativas, tinham uma relação direta sem ou
com poucas mediações com a sociedade política.
O período seguinte, compreendido entre as duas ditaduras (1945-1964), não deve ser
compreendido como uma ruptura do estado-novismo - expressão nacional da revolução
passiva: Se o Estado Novo termina em 1944, o novo Estado por ele consolidado
permanecerá em vigência por muito tempo
133
. Neste sentido, acreditamos que se assistiu
uma época de nossa história que a burguesia tanto recolhe os frutos da revolução-restauração
consolidada no período anterior, assim como também atua ativa e agressivamente para
perpetuá-la. Deste modo:
[...] mais importante do que encarar a “redemocratização” como um
momento único da história política brasileira compreendido entre dois
regimes ditatoriais é perceber o que ela contém de continuísmo. A
“redemocratização” não deixou de ser um processo condicionado por certas
regras que garantiram, a priori, a permanência do grupo estadonovista no
poder. Na medida em que sua sobrevivência dependeria, daí para adiante, da
disputa eleitoral, foi preciso criar mecanismos que preservassem o “velho”
no “novo”.
Dos mecanismos sugeridos destacou-se o código eleitoral de 1945,
elaborado nos últimos meses do Estado Novo e que presidiu às “regras” da
transição democrática em proveito dos políticos tradicionais. Estabelecendo
que a necessidade de bases nacionais era essencial para o registro de um
partido, ou ainda que as sobras das eleições partidárias deveriam privilegiar
o partido mais votado, o código beneficiava ostensivamente o PSD, que
132
KOHAN, Néstor. Crise orgânica e revolução passiva: o inimigo toma a iniciativa. A governabilidade do
capitalismo periférico e os desafios da esquerda revolucionária. O Comuneiro, n. 6, março de 2008, sem pág. In:
www.ocomuneiro.com consultado em março de 2008. Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves
133
Idem, p. 198
- 60 -
contava com a máquina política montada ao longo da ditadura. O
continuísmo preponderava sobre a ruptura, garantindo a supremacia da
coligação varguista no Congresso.
134
Assim, o estado-novismo, expressão sui generis da revolução passiva, perpetua-se no pós-
1945. E, como se verá adiante, mesmo a esquerda brasileira o se desvencilhou da
revolução-restauração. A posição do PCB durante o governo Dutra (1946-1951) foi a
personificação à esquerda da revolução passiva, o partido:
[...] acabaria por priorizar sua transformação em partido de esquerda
institucional. [...] o PCB procurará reforçar a imagem de partido da ordem e
da tranqüilidade, defensor do „apertar o cinto‟, chegando a colocar-se, em
muitas ocasiões, contra os movimentos grevistas, para „evitar as
provocações‟. Sem dúvida, nessa nova política implementada pelo núcleo
dirigente do PCB estão as raízes históricas que irão determinar a política de
conciliação imposta muitas vezes sectariamente pelo Comitê Central às
bases do partido.
135
Desta forma, a burguesia pôde fazer suas políticas com mais tranqüilidade, pois o Partido
Comunista - assim como Proudhon, Mazzini e o Partido da Ação - não se posicionava
antiteticamente; não foi com todas as suas forças lutar antagonicamente contra os inimigos
das classes trabalhadoras - acabou optando pela conciliação de classes, o que é sinônimo da
derrota do proletariado. Verdadeiramente, o PCB passou por um movimento de
transformismo, na prática, metamorfoseou-se de inimigo irreconciliável em aliado”. Essa
linha política tortuosa permaneceria até 1964, tendo um interlúdio entre 1948 e 1954, quando
o PCB não apoiou o nacional-desenvolvimentismo e até fez oposição cerrada ao segundo
governo Vargas. 1964 é o momento que a história caiu com todo o seu peso sobre a esquerda
brasileira:
Na verdade, quando a liderança soviética do movimento comunista
internacional foi desafiada em 1960 pela China, [...] os partidos moscovitas
do Terceiro Mundo mantiveram sua potica escolhida, de estudada
moderação. O inimigo nesses países não era o capitalismo, até onde este
existia, mas o pré-capitalismo, os interesses locais e o imperialismo
(americano) que os apoiava. O caminho não era a luta armada, mas uma
ampla frente popular ou nacional da qual era aliada a burguesia ou pequeno-
burguesia “nacional”. [...] Essa estratégia, que enfurecia os que preferiam o
134
MENDONÇA, Sonia R. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 1988. p. 47-8
135
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia Inacabada: a política dos comunistas no Brasil. Marília: Unesp; o
Paulo: Boitempo, 1999. p. 73, apud. PRESTES, Luís Carlos. União Nacional para a Democracia e o Progresso.
Rio de Janeiro: Ed. Vitória, 1945, p. 26; PACHECO, Eliezer. O Partido Comunista Brasileiro. São Paulo: Alfa-
Ômega, 1984, p. 188 grifos do autor
- 61 -
caminho das armas, às vezes pareceu dar certo, como no Brasil e na
Indonésia no início da década de 1960, e no Chile em 1970. Talvez não
surpreendentemente, quando chegou a esse ponto, foi detida de chofre por
golpes militares seguidos de terror, como no Brasil pós 1964, na Indonésia
em 1965, e no Chile em 1973.
136
Nos anos 50, o estado-novismo tinha consolidado de uma tal forma a revolução
passiva que Getúlio Vargas pôde mais uma vez subir ao governo; imprimiu determinado
“nacionalismo” ao seu mandato, com a criação da Petrobrás, e, em sua “carta-testamento”,
denunciou a ação de empresas estrangeiras no agravamento da crise econômica nacional. A
partir deste momento, confluíram na defesa do nacionalismo diversas tendências como os
comunistas e os trabalhistas.
137
Desta perspectiva, o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) foi expressiva
personificação da revolução-restauração. A coalizão nacional-desenvolvimentista deu aqui um
salto qualitativo com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que, apesar de criado
anteriormente por Café Filho, alcançou “plena vigência e habitat no período juscelinista”
138
,
levando à cabo a produção e a divulgação da Ideologia do Desenvolvimento, segundo a qual, a
burguesia, a classe média e o proletariado deveriam aliar-se para derrotar o “setor
tradicional”, composto pelos latifundiários, pela burguesia mercantil, a chamada classe média
“não produtiva” e determinadas frações do proletariado. Este setor tradicional” seriam os
responsáveis pela sobrevivência da “herança colonial”, impedindo a ascensão do primeiro
setor progressista” e o desenvolvimento do país
139
. A burguesia industrial aparecia aqui
como a vanguarda da revolução” possível; mas esta euforia nacionalista escondeu o fato de
que o Brasil se tornou ainda mais dependente e que o fundamento último do
desenvolvimentismo era a manutenção da ordem e da afirmação dos valores capitalistas e
cristãos”
140
. O desenvolvimentismo escondia que a industrialização autônoma do Brasil
jamais foi a sua opção. A ideologia desenvolvimentista logrou produzir um grande fetiche,
como se o país em breve fosse ser outro, entre as nações mais avançadas do planeta. A própria
vanguarda da classe operária confundiu-se, “embolsada” pelo leopardismo (“Se queremos que
tudo fique como está, é preciso que tudo mude”), sua atenção desviou-se da luta pelas suas
necessidades, pelos interesses da classe trabalhadora e do combate ao capitalismo. Mas, ao
contrário numa metamorfose voltou-se para os problemas do desenvolvimento econômico
136
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras. p. 424
137
Cf. KONDER, Leandro. História dos Intelectuais nos Anos 50. IN: FREITAS, Marcos Cezar.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 360
138
TOLEDO, Caio Navarro. ISEB: fábrica de ideologias. São Paulo: Ática, 1977. p. 31
139
Cf. idem
140
MENDONÇA, Sonia R. Estado e economia no Brasil... p. 74
- 62 -
capitalista e das reivindicações mais globais da democracia burguesa, que passaram a ser seus
norteadores
141
.
O ISEB nasceu para “pensar o desenvolvimento nacional”
142
; no artigo de seu
estatuto ficara estabelecido que a instituição se dedicaria “à análise e à compreensão crítica da
realidade brasileira visando a elaboração de instrumentos teóricos que permitam o incentivo e
a promoção do desenvolvimento nacional”
143
. Talvez esta seja a síntese que se possa fazer
desta “fábrica de ideologias”, que chegou a contar com intelectuais de diferentes tendências,
desde aqueles identificados com o desenvolvimento associado e dependente, como Miguel
Reale, Roberto Campos e Alexandre Kafka (todos se ligariam ao IPES, nos anos 60). E
também homens que se inspiraram no marxismo, mas que eram adeptos do nacional-
desenvolvimentismo, como Roland Corbisier e Álvaro Vieira Pinto; ou Nelson Werneck
Sodré, que se identificava com a posição do PCB, visava radicalizar o nacionalismo, mas não
superava a visão da burguesia nacional como vanguarda. Hélio Jaguaribe, pelo menos em
alguns momentos, quis colocar-se ao centro destas tendências
144
. Neste momento,
chamaremos a atenção do leitor para os intelectuais orgânicos da burguesia, mais
especificamente para Reale.
Segundo Leandro Konder, não há um único modo, um único caminho para uma
perspectiva ser conservadora; ainda assim, o autor enumera algumas particularidades das
correntes conservadoras influentes nos anos 50: a hostilidade à esquerda, a concepção que
acreditava que o movimento da história não passava da algo que já existira antes - em
“germe” -, a visão que repele a importância da ruptura ou da falta de rupturas, e,
principalmente, “[...] uma desenvolta apologia das forças que têm comandado nossa história”,
além disso [...] as lideranças das classes dominantes têm seus feitos evocados em um tom
quase de epopéia”
145
.
Dentre os variados intelectuais citados por Konder, identificados com o
conservadorismo, destacamos Djacir Menezes (1907-1996) - um dos fundadores do Instituto
Brasileiro de Filosofia (IBF). Em uma obra que lançou em 1956, para demonstrar seu
compromisso com a continuidade e a ordem, perguntou retoricamente porque incluíra textos
polêmicos em sua antologia:
141
Idem, p. 74-6
142
TOLEDO, Caio Navarro. ISEB... p. 31
143
Idem, p. 32 apud. Regulamento Geral do ISEB Decreto n
144
Cf. KONDER, Leandro. História dos Intelectuais nos Anos 50... p. 365-71
144
Cf. KONDER, Leandro. História dos Intelectuais nos Anos 50... p. 365-71
145
KONDER, Leandro. História dos Intelectuais nos Anos 50... p. 360
- 63 -
Então a obra [...] visa fomentar a indisciplina e o desrespeito aos nossos
maiores? A solapar créditos firmados? A semear o desprezo cívico pelo
passado?
Deus me livre: este livro visa exatamente ao contrário; pretende dirigir-se à
inteligência do leitor para que ame a Pátria na Verdade e na Justiça [...]
146
Ao lado de Menezes, e sua trajetória, não poderíamos deixar de citar Miguel Reale (1910-
2006). Este intelectual, que ao lado de Plínio Salgado e Gustavo Barroso foi “um dos teóricos
mais importantes do fascismo brasileiro”
147
, e, nas palavras do próprio líder máximo do
integralismo, “o provável jurista do Estado Integral”
148
. Fundou, em 1949, o IBF, entidade
responsável pela Revista Brasileira de Filosofia (RBF), que passou a ser publicada em 1950.
Segundo Roland Corbisier, o IBF fora “fundado e mantido pela classe patronal, o Instituto só
poderia ter uma diretriz conservadora”
149
.
A partir do Instituto, Reale continuou a desenvolver seu trabalho e promoveu uma
divulgação mais sistemática da sua concepção em diversos compêndios, que tratam de,
principalmente, teoria do direito e da filosofia, abarcando questões relativas ao Estado, à
história, entre outros temas. Nos anos 1960, confluentemente ao trabalho no IBF, Reale se
ligaria à Federação de Comércio do Estado de São Paulo (FCESP) uma associação de classe
que dava assistência política, econômica e técnica aos seus associados -, o que revela que ele
seria um dos intelectuais orgânicos do bloco multinacional e associado, que, a partir de 1962,
seriam membros dos órgãos políticos estabelecidos para promover tanto os interesses
modernizante-conservadores quanto a derrubada do governo nacional-reformista de João
Goulart”
150
. Foi colaborador do golpista Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que
patrocinou o seu livro Pluralismo e liberdade
151
, publicado pela Editora Saraiva. Reale
contribuiria de maneira importante para as articulações que antecederam o golpe de 1964,
junto de outros intelectuais orgânicos tomou as providências necessárias para “o
reconhecimento internacional do estado de beligerância no país caso uma guerra civil
prolongada o exigisse”
152
. Além disso, seria o autor de diversas proposições para a carta
constitucional de 1969, defenderia a institucionalização da ditadura e, de 1969 a 1973, seria
146
MENEZES, Djacir. O Brasil no pensamento brasileiro. Brasília: Senado Federal, 1998. Leandro Konder
cita a primeira edição da obra, publicada pelo MEC em 1956.
147
ABREU, Alzira Alves de, et alii. Dicionário histórico-biográfico brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: FGV,
2001. 5 Volumes. p. 4908
148
REALE, Miguel. Memórias: destinos Cruzados. 2ª ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 73
149
CORBISIER, Roland. Autobiografia filosófica: das ideologias à teoria da práxis. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1978. p. 80
150
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação potica, poder e golpe de classe. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006. p.104
151
Idem, p.254
152
ABREU, Alzira Alves de, et alii. Op. Cit. p.4910
- 64 -
reitor da Universidade de São Paulo (USP) pela segunda vez e estaria à frente da reforma
universitária levada a cabo pela ditadura
153
. Na reabertura, passou a integrar a comissão
presidida por Afonso Arinos que, em 1986, concluiu o anteprojeto que serviu de subsídio à
Assembléia Nacional Constituinte (1987-1988).
Reale costuma dividir sua vida em três fases, a integralista, que teria durado a1940,
ano em que conquista uma cátedra na USP e publica Teoria do Direito e do Estado, a segunda
fase seria entendida entre esta obra e a publicação de Pluralismo e Liberdade, em 1963,
quando se iniciaria a terceira fase nas duas últimas fases, ele se identificaria com a
democracia e o liberalismo. Se levarmos em consideração que este intelectual, independente
das variações ideológicas particulares, sempre atuou nos marcos gerais do pensamento
burguês, veremos que esta segmentação é arbitrária e visa ocultar que sempre atuou como
intelectual orgânico de sua classe social. O próprio Barão de Itararé ridicularizou tal
colocação de Reale, quando disse que faltava ele escrever um livro intitulado Como era
verde a minha camisa
154
. Assim, nesta concepção que reconhece esta continuidade orgânica,
se nos anos 30 atuava no Integralismo, nos anos 60 contribuiu de forma decisiva para o
sucesso do golpe de 1964 e para sua posterior institucionalização, agindo sempre em prol da
ordem e da revolução passiva no Brasil. Neste sentido, era adepto do teórico da revolução
passiva italiana; o líder ibeefeano salienta que Croce em suas palavras, homem de “alta
expressão filosófica e ética”
155
- na obra intitulada O que é Vivo e o que é Morto na Filosofia
de Hegel, dizia que a dialética da história tinha sido devorada pelos vermes. Em outras
palavras, não haveria mais o movimento dinâmico da história composto pelos movimentos da
tese, da síntese e da antítese
156
. À esta concepção teórica, correspondia uma atuação prática.
Além de seu passado integralista e de sua posterior atuação orgânica na e para a ditadura,
ainda dois momentos emblemáticos: em 1943, passou a integrar o Departamento
Administrativo estado-novista, em particular a pasta do trabalho
157
; e, em 1951, foi designado
por Vargas para representar o Brasil na reunião anual da Organização Internacional do
Trabalho (OIT)
158
. Regozijando-se, ora por ser escolhido pelo presidente, do qual não esconde
profunda admiração, ora por fazer uma defesa” dos trabalhadores na OIT. Em sua
pronunciação na reunião do organismo internacional chegou a dizer que deveria “ficar bem
153
Cf.DUA, Elisabete Matallo Marchesini. Ideologia e filosofia no Brasil: O Instituto Brasileiro de Filosofia
e a Revista Brasileira de Filosofia. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 1998, tese de
doutoramento.
154
KONDER, Leandro. Barão de Itararé: o humorista da democracia. São Paulo: Brasiliense, 2002. p. 30
155
REALE, Miguel. Memórias. V. 1... p. 71 assim Reale define Croce.
156
Cf. Idem, p. 158
157
Cf. Idem, p. 164
158
Cf. Idem, p. 265-6
- 65 -
claro o direito intangível dos trabalhadores à justa retribuição de seu trabalho [...]”, o que soa
um tanto quanto progressista, no entanto, o líder ibeefeano, enquanto homem da revolução
passiva, complementaria “[...] na proporção da riqueza por eles produzida”
159
ou seja, ao
fim e ao cabo de sua falaciosa “defesa” da classe trabalhadora, acaba por defender a
exploração do trabalho, condicionando a sua remuneração mínima a produção de riquezas à
classe social dominante.
Voltando ao contexto mais amplo. Juscelino, prefeito “biônico” de Belo Horizonte
durante o Estado Novo, eleito presidente pela coligação PSD-PTB, partidos criados por
Vargas, colocou em dia a pauta da expansão da acumulação capitalista sem contrapartidas
sociais”
160
com o Plano de Metas. Por um lado, o Plano aprofundou o processo de transição
do capitalismo concorrencial para o monopolista (dependente e associado), pelo fato do
Estado adquirir novas funções e esferas de atuação econômica, cumprindo o papel de
banqueiro do capital privado e ade “importante produtor direto nos setores estratégicos e
controlador indireto de faixas expressivas de decisão privada”
161
. Por outro lado, alguns
aspectos importantes do estado-novismo foram preservados.
Neste sentido, o executivo foi reforçado pelo discreto esvaziamento do Legislativo,
através da criação da “administrão paralela”, que, por sua vez, era composta pelos Grupos
de Trabalho e pelos Grupos Executivos, diretamente ligados à presidência. Estes órgãos eram
formados por intelectuais orgânicos da burguesia os “tecnocratas” e “especialistas, tanto do
Estado, quanto de empresas privadas, que agiam em conjunto com o Executivo sem
interferências do Legislativo e, menos ainda, das classes subalternizadas.
Do ponto de vista quantitativo, o Plano de Metas obteve grandes êxitos, com uma
grande expansão da indústria e da infraestrutura do país. No entanto, houve grande
concentração de capital oligopolizando a economia brasileira -, assim como também um
grande aumento da inflação e da dívida externa; estes fatores contribuíram para o aumento das
mazelas sociais, o que é intrínseco às revoluções passivas, mas, especificamente, isso se deu
no processo de internacionalizão da economia brasileira, com a implantação do capitalismo
dependente-associado.
Este período deu um novo alento à tentativa de “colocar no bolso” os inimigos da
classe burguesa, as diversas obras faraônicas, sendo a principal delas a nova capital do país,
159
Idem, p. 326
º 37 068; 14/07/1955. Lex; Marginalia. P. 241-44. 1955
160
FONTES, Virginia M. Reflexões im-pertinentes... p. 199
161
MENDONÇA, Sonia R. Estado e economia no Brasil... p. 59
- 66 -
produziram “efeitos mágicos”
162
sobre a população; o próprio Oscar Niemayer relata que
enquanto Brasília era erigida, acreditava-se que uma nova capital traria para o país um novo
porvir, mas após a inauguração e o início de seu funcionamento ficou claro que tudo
continuaria como antes
163
. Desta maneira percebemos que o leopardismo (pós)estado-novista
preservou o fundamental, reconheceu algumas reivindicações populares para exatamente
mantê-las subalternizadas. Promoveu mudanças para preservar o essencial: a exploração do
trabalho pelo capital concretamente, significou uma contenção salarial e um grande aumento
da exploração pelo aumento do ritmo de trabalho.
Para Carlos Nelson Coutinho, este período seria o momento transformista da
revolução passiva brasileira, particularmente o governo Vargas e, principalmente, o governo
Kubitschek. Coutinho diz que neste momento se buscou incorporar ao bloco no poder os
trabalhadores assalariados urbanos de uma maneira subalterna; esta política assentou-se em (I)
“concessões” de certos direitos sociais e de (II) determinadas vantagens econômicas
164
. De
nossa parte, acrescentamos ainda que a ideologia do nacional-desenvolvimentismo teve uma
grande importância para debilitar a consciência de classe do operariado, para mantê-la numa
crise de consciência que não lhe permitia situar-se radicalmente na luta de classes. Nada mais
emblemático que a Declaração Política do PCB de março de 1958, que dizia que a
contradição e a luta de classes entre o proletariado e a burguesia não exige uma solução
radical na etapa atual. Nas condições presentes de nosso país, o desenvolvimento capitalista
corresponde aos interesses do proletariado e de todo o povo
165
. Noutras palavras, os
comunistas passavam a defender o capitalismo e sua modernização; num transformismo que
fazia os comunistas não se colocarem antagonicamente na luta de classes. Isto é expressão das
tentativas constantes do bloco no poder de absorver os intelectuais orgânicos das classes
antagônicas e de desagregar sua base social
166
. E a burguesia obteve sucesso em muitos de
seus expedientes transformistas, como, por exemplo, em 1956, todo um grupo de militantes
saiu do PCB, que, com o tempo, se alinhou completamente à direita, pessoas como Antonio
Paim (do PC baiano) e Paulo Mercadante (do PC do Rio de Janeiro), que se transformaram
em intelectuais orgânicos da burguesia, assim como também Osvaldo Peralva, autor dum livro
“clássico” da reação: O Retrato
167
, onde descreve toda a sua trajetória no PC e busca construir
a idéia de que o partido era uma seita absurda. Para o leitor fica a indicão da obra, que não
162
Idem, p. 60
163
Cf. NIEMAYER, Oscar. As curvas do tempo Memórias. 7ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2000.
164
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. As categorias de Gramsci e a realidade brasileira... p. 115-6
165
Declaração Política do Partido Comunista Brasileiro de março de 1958, p. 04 grifos nossos
166
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964... p. 148
167
PERALVA, Osvaldo. O Retrato. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.
- 67 -
nos deteremos neste momento; mais à frente nos dedicaremos à análise de alguns compêndios
da autoria de Paim e Mercadante.
De 1956 a 1960, realizaram-se diversos congressos estaduais e nacionais de
trabalhadores. Ainda que houvesse grande investida ideológica nacional-desenvolvimentista,
o pacto populista não poderia suprimir a luta de classes; assim esta movimentação sindical
entrou em atritos com a estrutura sindical vigente que, por seu turno, não conseguia
manipular a classe trabalhadora com a mesma eficiência. Desta maneira, ainda que incipiente
e sem uma consciência de classe, o movimento sindical chega aos anos 1960 em ascenso.
Em janeiro de 1961, Juscelino deixa o governo junto com um emaranhado de
contradições acumuladas durante a década anterior. No início dos anos 60, o compromisso
populista, que se assentava numa composição de forças delicada e contraditória, estava em
processo de desequilíbrio. A crise econômica iniciada em 1962 minou a relação massas-
Estado, pois muitas demandas populares não puderam mais ser atendidas
168
. Desta maneira, o
regime passou a sofrer ataques vindos tanto de cima, quanto das classes populares.
Jânio Quadros, sucessor de JK na presidência da república, representava os interesses
modernizantes-conservadores do empresariado; Quadros adotou uma retórica que combinava
elementos de reforma social popular, de desenvolvimento nacionalista, de austeridade e
eficiência administrativa, o que lhe garantiu a vitória nas urnas. Após os primeiros meses de
governo, logo ficou claro para as forças populares que o “populismo udenista” não levaria a
cabo as medidas de crescimento distributivo. Certos sindicatos e determinados líderes
sindicais exigiam uma mudança social. Ademais, a fração da burguesia que apoiava Jânio,
ligada aos interesses multinacionais e associados e à agro-exportação, tiveram de aceitar uma
coalizão governamental indesejada com o PTB, partido que tinha a vice-presidência com João
Goulart. Desta maneira, esta fração da burguesia foi incapaz de formar um governo
empresarial estável, refreados pela crescente movimentação popular.
As classes representadas
por Jânio logo perceberam que não poderiam levar a cabo seu projeto sócio-econômico num
sistema político eleitoral. O então presidente até tentou contornar a estrutura populista através
de uma aventura político-militar; assim, em agosto de 1961, com sete meses de governo,
renunciou crendo que seu suposto carisma lhe permitiria conseguir um mandato bonapartista.
Não obteve o apoio popular, nem mesmo de grande parte de seus partidários, o que impediu a
desejada recondução à presidência.
169
168
Cf. MENDONÇA, Sonia R. Estado e economia no Brasil... p. 83
169
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ão política, poder e golpe de classe. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006. p. 136-41
- 68 -
Desta maneira, inesperadamente, João Goulart ascendeu à presidência; homem cujas
origens remontavam ao populismo varguista. Militares organizados em torno da ESG os
setores ligados aos interesses multinacionais e associados tentaram impedir que Jango
assumisse o cargo, mas foram impedidos por um bloco de poder popular. O Executivo tomou
um rumo nacional-reformista, apoiado pelas classes trabalhadoras mobilizadas.
Os anos 1955-60 foram marcados por um grande crescimento da economia, com um
ritmo acelerado de investimentos industriais, o que já não se verifica nos anos 1962-64 -
entrava-se numa fase de declínio do ciclo econômico, a economia estava numa típica crise do
capitalismo monopolista. O Estado, de um lado, estava momentaneamente impossibilitado de
realizar novos empréstimos para continuar financiando a industrialização, assim como
também sua arrecadação era insuficiente para continuar a man-lo como o grande agente
da acumulação no país; de outro lado, a classe trabalhadora iniciou intensa mobilização
política, desencadeando um ciclo de greves sem precedentes cujo “efeito ameaçador para a
aliança populista [...] foi inegável, especialmente por contarem os grevistas, ao menos
temporariamente, com o apoio ou a neutralidade dos setores militares”
170
. Houve uma
ascensão potencialmente revolucionária das classes trabalhadoras, caracterizando uma crise
de hegemonia da burguesia. As classes populares mobilizadas contavam com o apoio de um
executivo nacional-reformista.
Jango era a expressão do bloco modernizante-reformista, composto pela pequena e
média burguesia industrial local, que produzia para o mercado interno e tinha o interesse de
atingir consumidores de baixo poder aquisitivo; neste sentido: “Esses setores tentavam, por
intermédio de um apelo nacionalista e reformista junto à massa, alargar suas bases sociais por
razões econômicas próprias. Eles sentiam a pressão do caráter concentracionista do processo
de expansão capitalista no Brasil, o que estimulava a deterioração dos salários reais das
classes trabalhadoras urbanas”
171
. Este bloco no poder, formado por estas frações de classe,
que tinham sua expressão no Executivo de Jango, quebravam a convergência populista
tradicional. Afluíam ainda as classes populares mobilizadas e figuras políticas populares,
como, Francisco Julião (líder das Ligas Camponesas), Mauro Borges (governador de Goiás),
o jornalista Neiva Moreira, Leonel Brizola (governador do Rio Grande do Sul até dezembro
de 1962), Miguel Arraes, entre outros; assim como também intelectuais de prestígio
internacional, como Celso Furtado, Darci Ribeiro e Josde Castro, que eram comandantes
ideológicos, mas não possuíam um exército político.
170
Idem, p. 87
171
Idem, p. 146
- 69 -
O governo de Goulart tomou uma série de medidas antagônicas aos interesses
modernizantes-conservadores, multinacionais e associados: a lei restringindo a remessa de
lucros pelas empresas multinacionais, retirou-lhes os extraordinários privilégios concedidos
em grande parte desde a administração de JK; isso forçou as companhias multinacionais a
terem que investir capitais no país exatamente o que tinham evitado até então. Jango tentou
reajustar tanto os salários mínimos, como também o poder aquisitivo dos trabalhadores,
através de uma política de controle dos preços e da distribuição dos insumos básicos. Foi
decretado um primeiro estágio da reforma agrária. Tomou medidas para combater a
especulação financeira. Buscou reescalonar a dívida externa e fixou uma linha independente
para a política externa brasileira. Seu governo era reformista e favorecia a participação
popular e, por isso mesmo, ameaçava os interesses das frações da burguesia ligadas aos
interesses multinacionais e associados; tudo isto gerava uma instabilidade a estes últimos, que
começavam a perceber que acordos civil-institucionais não poderiam conter a luta de classes,
que estava em nível crescente. Tal situação se agravou a partir do momento que o governo
começou a ter como preocupação a melhora de vida das classes populares, com uma maior
distribuição de renda através de aumentos salariais e a alocação de recursos públicos para a
educação gratuita, para a saúde pública, para a habitação e o transporte público.
172
Mas o Estado não perdera o seu caráter classista, durante o governo de Goulart ficaram
descobertas suas funções econômicas e políticas; iniciava-se assim um confronto bem
definido entre as classes trabalhadoras e o aparelho político das classes dominantes. Desta
maneira, a mobilização popular começou a aprofundar o seu grau de autonomia, rompeu-se a
forma populista de domínio e o bloco oligárquico industrial perdeu a direção do processo.
Não demoraria para Goulart perder o apoio empresarial e político-militar. O Executivo passou
a ter como única base social as classes trabalhadoras mobilizadas. Isso gerou uma reação
política do conjunto da classe dominante, pois já era concreta a possibilidade de um Executivo
relativamente autônomo e com laços políticos estreitos com as classes populares. Portanto, o
sistema vigente tinha se tornado incapaz de desviar o descontentamento popular; constituiu-se
assim uma verdadeira crise de hegemonia.
173
Os interesses multinacionais e associados viram-se ainda mais perturbados com a
criação da Frente de Mobilização Popular (FMP), que representou um inaudito leque nacional
de forças populares; reunia a Frente Parlamentar Nacionalista, as Ligas Camponesas e os
sindicatos rurais, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto de União e a Ação
172
Idem, p. 143-5
173
Idem, p. 147-8
- 70 -
Sindical (PUA), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a Ação Popular (AP), de orientação
católica, com apoio do ilegal PCB e de oficiais militares-reformistas. Apesar disso, esta
movimentação na verdade atingiu um grau relativamente baixo de mobilização e participação
política, pois havia pouquíssima organicidade e não chegou aos termos de uma crise
revolucionária. Mas o populismo transformou-se de forma de manipulão em forma de
expressão de demandas das massas populares; as lutas reivindicatórias unificaram as classes
trabalhadoras que, valendo de seu poder político, lograram deter o aumento da taxa de
exploração.
174
João Goulart, proprietário de terras, formado dentro da tradição populista, foi
condenado como “traidor” pela burguesia, que iniciava um amplo ataque ao populismo e
começava a crer que era necessária uma ação agressiva que, sob o epíteto de “golpe
defensivo”, passava a ser alardeada como uma “ação salvacionista”, legitimada pela Doutrina
de Segurança Nacional (DSN).
175
Como vimos anteriormente, conforme conceituado por Gramsci, para compreender a
revolução-passiva, não podemos separar as questões nacionais das internacionais. Neste
sentido, a DSN foi um conjunto de idéias e princípios aplicadas pelos países do chamado
“Bloco Ocidental” (hegemonizado pelo imperialismo dos Estados Unidos) com a finalidade
de conter qualquer movimentação popular à esquerda
176
. Isto porque o contexto internacional
vinha sendo marcado por vitoriosas lutas revolucionárias, como em Cuba, Argélia, Vietnã e a
Revolução Cultural chinesa
177
. Dentre estas, destacamos a Revolução Cubana (1959); Fidel
Castro declarara em dezembro de 1961 a adesão ao marxismo-leninismo, dizia ser possível o
socialismo nos países subdesenvolvidos, saltando a “etapa” do desenvolvimento capitalista
178
.
Concretizava-se assim a possibilidade da construção do socialismo na América Latina; os
cubanos inspiraram tanto organizações de esquerda, como também os temores da burguesia
brasileira.
A burguesia necessitava de estruturas que lhe permitissem atingir um grau elevado de
homogeneidade, consciência e organização de classe, capazes de ações políticas sofisticadas e
de projetar um golpe de Estado; o complexo formado pelo Instituto de Pesquisa e Estudos
174
Idem, p. 152-4
175
Idem, p. 154-5
176
Cf. Verbete Doutrina de Segurança Nacional. In: SILVA, Carlos Francisco Teixeira da; et alii. Dicionário
crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000. p.
137-8
177
Cf. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São
Paulo: Ática, 1987. p. 76
178
Cf. CASTRO, Fidel. De Martí a Marx. In: LÖWY, Michael. O marxismo na América Latina. ed. amp.
São Paulo: Perseu Abramo, 2006. p. 283-92
- 71 -
Sociais (IPES) e pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) concretizou estas
demandas dos setores ligados ao capital multinacional e associado. Nascido no final da
administração de JK, o complexo era expressão da necessidade do empresariado lançar em
todo o país uma contra-ofensiva às classes trabalhadoras. O que os unificava era o
anticomunismo, suas relações econômicas multinacionais e associadas, assim como a
necessidade de fazer um aggiornamento do Estado, através da reforma moderada das
instituições políticas e da economia. Era, verdadeiramente, um programa de revolução-
restauração.
179
O IPES apresentava-se como uma organização de respeitáveis” homens de negócios,
que agiam por “convicção democrática e como patriotas”, e não por interesses classistas - esse
era um fetiche que servia de cobertura para uma ampla campanha política, ideológica e
militar
180
. O IPES não era clandestino, mas muitas vezes ocultava-se por trás de outras
organizações congêneres, como o IBAD; o IPES era o centro estratégico de operações de
penetração e contenção dos movimentos operários e estudantis: “No curso de sua oposição às
estruturas populistas, ao Executivo nacional-reformista e às forças sociais populares, o
complexo IPES/IBAD se tornava o verdadeiro partido da burguesia para a ação ideológica,
política e militar
181
.
O complexo passou a lançar uma série de materiais para desenvolver a consciência de
classe do empresariado, como, por exemplo, o artigo As classes produtoras diante do
comunismo, da autoria do coordenador geral do IBAD, Ivan Hasslocher, assim como também
Responsabilidade democrática do empresário, da autoria do líder ipesiano José Garrido
Costa. Publicados em 1962, ambas são um exercício de combate à esquerda, aos movimentos
populares e ao Executivo nacional-reformista. Naquele momento o IPES era reconhecido
como estrutura de vanguarda, reunia diversas associações de classe, sindicatos patronais,
grupos de pressão, escritórios de consultoria e anéis tecnoburocráticos; paulatinamente,
empresários de 500 corporações multinacionais e associadas passaram a suprí-lo com os
meios necessários para a ação de classe. Por volta de 1963, esta articulação conferiria ao IPES
a capacidade de agir política e militarmente com autoridade efetiva.
182
O IPES mobilizava uma ampla gama de intelectuais orgânicos, homens como os
generais Golbery do Couto e Silva, Heitor Almeida Herrera, Liberato da Cunha Friedrich,
João José Baptista Tubino e Ernesto Geisel; intelectuais como Alexandre Kafka e Miguel
179
Idem, p. 173-6 Dreifuss fala emreadequar e reformular o Estado” (p.175)
180
Idem, p. 175-6
181
Idem, p. 177
182
Idem, p. 177-82 e 196
- 72 -
Reale, que estiveram juntos no ISEB, Paulo Edmur de Souza Queiroz, que atuava ao lado de
Reale na Convivium, Delfim Netto; como o empresário degenerado Heinning Boilessen,
proprietário da Ultragás, envolveria-se diretamente na tortura de opositores da ditadura, criou
a “pianola Boilessen” para eletrocutar suas vítimas; José Ermínio de Moraes filho, do grupo
Votorantim; Israel Klabin, da indústria de celulose; dezenas e dezenas de executivos e
intelectuais orgânicos de empresas nacionais e multinacionais. A lista dos ipesianos é enorme,
e fica para o leitor a indicação da leitura
183
. O IPES o era uma organização amadora de
empresários anticomunistas voltados para o “bem comum” da nação, como muitas vezes
alardeado, era, ao contrário, um grupo de ação sofisticado, bem equipado e preparado; era
o núcleo de uma elite orgânica empresarial de grande visão, uma força-tarefa
estrategicamente informada, agindo como vanguarda das classes dominantes
184
.
O IPES possuía uma complexa estrutura, formada por diversos Grupos de Estudo e
Ação, que realizavam tarefas de estudo da conjuntura; de movimentação parlamentar,
chegando a controlar, no final de 1962, a Câmara de Deputados e o Senado; de disseminação
ideológica através de publicações, aparecimentos de seus militantes nos diversos aparelhos de
hegemonia da burguesia, e através de toda uma política editorial que traduzia e lançava livros,
panfletos, cartilhas voltadas ao doutrinamento e à difusão da chamada “doutrina
democrática”, que equiparava democracia, empresa privada e o denominado
“neocapitalismo”. O IPES constituiu um Estado-Maior que, em novembro de 1962, chegava a
coordenar aproximadamente três mil aparelhos ideológicos, entre eles o a.h.f. IBF/Convivium,
que propagavam a revolução passiva, a modernização conservadora. Tudo isto servia,
segundo o General Golbery, para preparar o público ideologicamente para uma futura e breve
tomada do Estado.
185
O Grupo de Integração setor de Ação Empresarial buscava novos recrutas e
patrocinadores para o IPES, que coordenava toda uma gama de ações para a arrecadação de
mensalidades e também de dinheiro para uma reserva destinada às ocasiões especiais. Eram
realmente vultosos os valores arrecadados entre o empresariado brasileiro, da casa de milhões
e dezenas de milhões de Cruzeiros. Chegavam também do exterior aportes financeiros, a
Agência de Inteligência dos Estados Unidos, a CIA, canalizou dinheiro através do IBAD;
além do apoio financeiro de 297 empresas daquele país. Multinacionais do mundo inteiro
contribuíram através do IBAD, como, por exemplo, a Texaco, Shell, Standard Oil, Bayer,
183
Cf. Idem, p. 187, 191-194, 197-199, e apêndices A (p. 517) e B (p. 525)
184
Idem, p. 201
185
Idem, p. 202-16
- 73 -
Enila, Shering, Ciba, Gross, General Eletric, IBM, Remington Rand, Coca-Cola, Cia de
Cigarros Souza Cruz, Belgo-Mineira, U.S. Steel, entre outras. Disso, pode-se concluir, que
houve toda uma articulação nacional e internacional de classe para conter o Executivo
nacional-reformista e as classes populares, para garantir o apassivamento do processo.
186
Quanto ao trabalho intelectual-orgânico propriamente dito, uma campanha fora
orquestrada para alcançar o domínio político-ideológico
187
, no período que se estendeu
entre os anos de 1962 e 1964. O complexo IPES/IBAD:
[...] lançava a campanha potico-militar que mobilizaria o conjunto da
burguesia, convenceria os segmentos relevantes das Forças Armadas da
justiça de sua causa, neutralizaria a dissensão e obteria o apoio dos
tradicionais setores empresariais, bem como a adesão ou passividade das
camadas sociais subalternas. Mas antes de se iniciarem hostilidades em nível
político-militar, desenvolveu uma campanha ideológica multifacetada contra
o bloco histórico-populista. Tal ação compreendia a desagregação dos
quadros populistas, assim como aqueles de imaturos grupos reformistas,
adiando as ações do executivo e tentando conter o desenvolvimento da
organização nacional das classes trabalhadoras. O seu fracasso em reprimir a
conscientização política das classes trabalhadoras e a surpreendente
capacidade do Executivo de não apenas sobreviver, mas, na verdade, de
consolidar e obter novas posições fortaleceu sua determinação de tomar de
assalto a sociedade política estabelecida.
188
Assim, o complexo lançou mão de toda uma ação ideológica, desencadeada pela imensa gama
dos aparelhos de hegemonia sob sua direção; tal expediente visava hegemonizar tanto os
estratos da própria burguesia, assim como também das classes antagônicas; conformar-lhes as
mentes para o apassivamento do processo. Mas, como é intrínseco à revolução passiva, a
hegemonia não poderia ser alcançada sem o assalto do Estado, este, por sua vez, não poderia
ser devidamente conquistado sem o trabalho ideológico prévio, para sedimentar, nas mentes e
nos corações, o conformismo social e a contenção da mobilização social.
Neste sentido, havia uma série de ões ideológicas e sociais combinadas com
atividades no Congresso, nos sindicatos, no movimento estudantil, no clero, visando causar
impacto em públicos selecionados e no aparelho de Estado. Eram atacados o comunismo, o
socialismo, a oligarquia rural e o populismo. Os meios de divulgação eram os mais
diversificados: imprensa, debates públicos e conferências com personalidades notórias,
filmes, peças teatrais, desenhos animados, entrevistas e propagandas em rádios e televisão; o
complexo IPES/IBAD tinha acordo com várias editoras, o que permitiu a publicação livros,
186
Idem, p. 216-26
187
Idem, p. 246
188
Idem, p. 246-7
- 74 -
panfletos, periódicos, jornais, revistas e folhetos, elaborados tanto com linguajar sofisticado,
como com uma linguagem simplória; isso possibilitou saturar os aparelhos de hegemonia do
país com a ideologia de classe. Antes que se assaltasse o Estado, foi assaltada a opinião
pública para garantir o convencimento quanto à “necessidade e a “justeza” do golpe de
Estado
189
.
Dentre toda esta ampla rede que interligava uma infinidade de aparelhos de
informação, destacamos a Agencia de Notícias Planalto (PLANA), que fornecia gratuitamente
material para 800 jornais e rádios de todo país
190
. A PLANA era coordenada pelo intelectual
orgânico ipesiano Adolpho Crippa (1929-2000), e funcionava dentro da estrutura ipesiana da
“Convívio Sociedade Brasileira de Cultura”, que coordenava ainda a Editora Convívio e a
Convivium revista bimestral de investigão e cultura”, publicada desde 1962 até meados
dos anos 90. Segundo Dreifuss, a Convivium foi criada para satisfazer um público
relativamente mais intelectualizado, para criar barreiras ideológicas ao marxismo e se dirigia
tanto à hierarquia da Igreja, quanto à intelectualidade católica leiga; mas, para nosso autor, o
que se acentuava era o pseudo-academicismo do periódico.
191
No seu primeiro editorial, de maio de 1962, a Convivivm coloca que aquele era um
momento decisivo de grandes oposições: Ocidente-Oriente, cristianismo-comunismo
192
. A
revista diz falar em nome dos grandes homens”, que possuiriam a exclusividade de saber
“analisar em profundidade os problemas
193
, em oposição àqueles que falam em “luta de
classes”, em “trabalho” numa época da “automação e da cibernética”
194
. Este periódico
afirmava que o seu objetivo era a formação de uma mentalidade nova
195
, e da análise de
problemas que, nesta acepção, “não podem ser entregues a homens inconscientes, sem títulos
e formação suficientes para um trabalho de tamanha envergadura e de tanta
responsabilidade”
196
. O Brasil teria uma “formação cris e ecumênica”
197
, e este “passado
plasmador” daria a forma e o sentido ao presente e ao futuro. Para a Convivivm, este seria um
fato que não poderia ser criticado, apenas constatado e, neste sentido, “o Brasil possui um
passado histórico e cultural e não pode dele desligar-se nem deixar de ser o que é”
198
,
189
Idem, p. 249-52
190
Idem, p. 253
191
Idem, p. 253-4
192
CRIPPA, Adolpho. Apresentação. Convivium, n. 1. o Paulo, maio de 1962. p. 3 grifos nossos
193
Idem, p.05-06
194
Idem, p.06
195
Idem, p.07 grifos nossos
196
Idem, p.08 grifos nossos
197
Idem, p.09
198
Idem, p.09
- 75 -
revelando a crença de que o país não poderia mudar, seguir outros caminhos. Para esta
publicação, os comícios em defesa da nacionalização do petróleo ou dos minérios não
constituiriam a vida da nação, esta, por sua vez, constituiria-se pela “imaginação”, pela
“afetividade”, pelo mito e a paixão
199
. Desta maneira, a revista passa a disseminar um
conteúdo que corresponde à viragem ideológica empreendida pela burguesia no processo de
consolidação do capitalismo monopolista, nas quatro décadas seguintes à Primeira Guerra
Mundial. Neste sentido, segundo Florestan Fernandes:
[...] o novo tipo de “modernização dirigida” tendia a deslocar a lealdade à
nação e às polarizações ideológicas ou utópicas, da revolução nacional em
favor da lealdade a certas causas muito abstratas e supranacionais, como a
“solidariedade hemisférica”, a “solidariedade às nações democráticasou a
“defesa da civilização cristã e ocidental”. Portanto, é visível que a
internacionalização das estruturas materiais das relações de mercado e de
produção também se estende às superestruturas das relações de poder
burguês. As burguesias da periferia sofrem desse modo uma oscilação
ideológica e utópica, condicionada e orientada a partir de fora. De classes
patronizadoras da revolução democrático-burguesa nacional passam a
conceber-se como pilares da ordem mundial do capitalismo, da
“democracia” e da civilização cristã”. Essa reviravolta não aumenta o
grau de alienação filosófica, hisrica e política da burguesia perante os
problemas nacionais e sua solução. Ela fortalece a insensibilidade diante
deles, na medida em que não perturbem o desenvolvimento capitalista
interno nem o “equilíbrio do sistema capitalista mundial” [...].
200
Assim, a burguesia brasileira abandonou os ideais da revolução democrática e nacional que
alimentou republicanos, tenentistas, nacionalistas dos anos 1920, 1930 e 1940, comunistas e,
de certa maneira, inspirou o Executivo nacional-reformista. Isso se deu porque a burguesia
percebeu que não poderia fazer uma revolução que rompesse a dupla articulação do
subdesenvolvimento interno e do desenvolvimento desigual interno com a dominação
imperialista externa sem que rompesse também com o capitalismo e perdesse o seu poder
201
.
Desta maneira, a revolução burguesa teve de ser apassivada ao máximo, pois, do contrário,
colocaria em risco o seu próprio domínio. Daí a insensibilidade às mazelas sociais que, com o
passar dos anos, passariam a ser aprofundadas.
Mas, todo o trabalho ideológico levado desenvolvido pela burguesia se mostrava
insuficiente, toda a guerra levada a cabo pelos aparelhos privados de hegemonia não era o
bastante para consolidar novamente a hegemonia burguesa, que estava em crise. Neste
sentido, diz René Armand Dreifuss: “Com exceção da sua influência entre as classes médias e
199
Idem, p.09 grifos nossos
200
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 367 grifos do autor
201
Cf. Idem, p. 370
- 76 -
as Forças Armadas, o complexo IPES/IBAD sofreu forte resistência e foi mesmo derrotado
em outros setores, o que determinou a imperiosa necessidade de deflagrar o golpe. Este
processo foi notável no movimento estudantil, [...] foram incapazes de deter a tendência
esquerdizante no interior da União Nacional dos Estudantes (UNE) e de outras entidades”
202
.
Assim, o golpe de Estado, que seria deflagrado em março de 1964, passou a ser uma
necessidade da classe burguesa; o país se encontrava num contexto potencialmente
revolucionário, marcado pela crescente movimentação das classes populares organizadas. A
burguesia temia perder o controle do Estado e, despojada de qualquer inspiração
“democrático-burguesa” e “nacionalista-burguesa”, passou a disseminar explicitamente o
golpismo e a derrubada do Executivo nacional-reformista
203
. Como dissemos, seus
aparelhos de informação passaram a preparar o terreno ideológico para o futuro coup d‟État.
Neste intento, a Convivium alardeava:
[...] “quando a legalidade basta para salvar a sociedade, a legalidade; quando
não basta, a ditadura”. [...] Trata-se, na verdade, de restabelecer a ordem
violada pelo detentor da autoridade, cujo poder se haja tornado ilegítimo no
seu exercício, por se ter afastado daquilo que constitui a razão de ser do
poder político, deixando de assegurar as liberdades, manter a paz social e
promover o bem comum. Então, segundo os ensinamentos tradicionais, o
príncipe é que deve ser considerado sedicioso, e a revolução poderá
legitimar-se, vindo a ser exatamente o contrário da revolução, isto é, terá
por conseqüência a reintegração da ordem jurídica.
204
Assim, este aparelho da burguesia passava a disseminar a “justeza” do golpismo, da
necessidade da contra-revolução. Nesta concepção, estaríamos numa época em que a
civilização cristã estaria sendo destruída pelas revoluções; era momento de não deixar
acontecer novamente o que já ocorrera com a “revolta protestante”, o Renascimento, o
Iluminismo e a Revolução Francesa; a revista assumia assim uma posição não apenas
conservadora, contra-revolucionária, mas também um posicionamento reacionário
205
.
Antonio Delfim Netto, intelectual orgânico da burguesia que ocuparia os cargos de
Ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento durante a ditadura, dizia que o país
poderia se desenvolver sem eliminar a propriedade privada e que, nesta concepção, o
socialismo seria também uma economia capitalista, à medida que as burocracias dos países
202
DREIFUSS, René A. A internacional capitalista: Estratégias e táticas do empresariado transnacional (1918-
1986). Rio de janeiro: Espaço e Tempo, 1986. p. 143
203
Cf. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 371 e 378.
204
SOUZA, J.P. Galvão de. Legalidade e Legitimidade. Convivium, n. 1, São Paulo, maio de 1962. p. 48-9
Apud. DONOSO CORTÉS. Discurso sobre a ditadura. In: Obras Completas, II. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, sem data. p. 1881 grifos nossos
205
Cf. Idem, p. 50
- 77 -
socialistas se apropriavam do “excedente econômico”
206
. Tal interpretão busca dissimular o
antagonismo entre capitalismo e socialismo intrínseca à revolução passiva, pois trata-se da
tentativa de criar um fetichismo para desviar as atenções do foco da luta de classes; neste
caso, Delfim Netto se dirigia aos estudantes que acabavam de realizar o II Seminário Nacional
de Reforma Universitária e, segundo o futuro ministro da ditadura, se verificaria uma
influência do marxismo-leninismo
207
.
Toda a movimentação popular preocupava Convivium; as Ligas Camponesas foram
alvo de seu ataque ideológico. Convivium alertava que as Ligas era uma forma de luta contra
os proprietários. O autor do artigo, L.M. Freitas, delineia os periódicos que apoiavam Julião
(“Semanário”, “Novos Rumos” do PCB, “Terra Livre”, “Binômio”, “Jornal do Brasil”); desta
maneira, este aparelho de informação expunha quais organizações deviam ser combatidas,
além das Ligas lideradas por Julião. Para Freitas, as Ligas tratavam-se de:
[...] um movimento anti-cristão e anti-ocidental. As intenções de Julião são
muito claras. Seu desejo é o de contribuir para a implantação do comunismo
entre nós.
[...] Oxa essa definição constitua aviso para aqueles que, em grande
número, assistem passivamente à marcha da revolução no País, os estimule a
tomar consciência do momento grave que a nacionalidade atravessa, e os
induza a uma ação enérgica contra essas forças desagregadoras que se
articulam abertamente para subtrair o Brasil ao bloco ocidental.
208
Desta maneira, Convivium clamava por uma “ação enérgica” contra as Ligas Camponesas,
que, nesta visão, são o anti-Cristo, o anti-ocidente, numa mistificação que visa encobrir a luta
de classes.
Intelectuais da esquerda também eram combatidos pela Convivium. Nelson Werneck
Sodré, expoente da ala mais à esquerda do ISEB, é caluniado pela revista como pessoa
destituída da nima faculdade mental
209
; tal expediente é para evitar o debate franco e
aberto. Sodré aparece como um intelectual que atuava a mando da Rússia soviética na luta
contra o Ocidente; todo o debate era resolvido com a desqualificação de Sodré
210
.
Convivium também buscava trazer medidas para serem adotadas pelo empresariado,
buscando atenuar seus conflitos com os trabalhadores. Para Lângaro, a participação nos
lucros, os prêmios e gratificões seriam insuficientes; a solução seria a criação da
206
Cf. NETTO, Antonio Delfim. Política e desenvolvimento. Convivium, n. 6, São Paulo, novembro de 1962.
p. 34-5
207
Idem, p. 33
208
Idem, p. 64 grifos nossos
209
Cf. ROCHA, Aristeu F. Resenha. Convivium, n. 2, o Paulo, março de 1963. p. 85
210
Cf. Idem, p. 86-7
- 78 -
“comunidade de empresa”
211
. Segundo o aparelho de informação, as empresas deveriam
adotar a participação dos operários na administração; mas sempre tendo como princípios
primordiais a manutenção da propriedade privada e o compromisso com o meio termo entre o
capitalismo e o socialismo
212
. Segundo o autor, os princípios deste regime de trabalho foram
delineados pelos papas Pio XI e XII, que seria uma “comunidade de empregados e
empregadores”
213
, na qual os trabalhadores participariam da propriedade da empresa: é o
Papa João XXIII, ainda em sua Mater et Magistra, quem bondosamente sugere: Este dever
de justiça pode cumprir-se de diversas maneiras, como a experiência demonstra. Uma delas, e
das mais desejáveis da atualidade, consiste em fazer com que os trabalhadores, na forma e no
grau que pareçam mais oportunas, possam chegar a participar pouco a pouco na propriedade
da empresa onde trabalham‟”
214
. Desta maneira, a Convivium reaviva e transplanta para o
Brasil a velha revolução passiva italiana; em que, por um lado, se tenta escamotear a luta de
classes, fazendo da empresa uma “comunidade”, e, por outro lado, conservar a propriedade
privada e a exploração dos trabalhadores adotando com habilidade um regime de trabalho
denominado “empresa comunitária”.
Ao final de 1963, a Convivium passa a atacar mais agressivamente seus inimigos de
classe. O periódico lança uma série de três artigos intitulados Raízes históricas da crise
brasileira”, todos da autoria do tradicionalista José Pedro Galvão de Souza (1912-1992); que
fora membro da Academia Paulista de Direito junto com Miguel Reale. Segundo o autor, a
então crise brasileira deitaria raízes no derrubamento da monarquia; convergindo com a
interpretação do ultra-reacionário Oliveira Vianna, ele diz que a proclamação da República
interrompeu a continuidade da história brasileira, o melhor teria sido reformar as instituições,
“alterá-las para melhor atender às exigências da vida nacional”
215
. O fator que agravaria a
crise seria a demagogia do Executivo nacional -reformista. As reformas de base seriam sua
expressão. Nesta acepção, a solução para a questão seria limitar as ões do Executivo,
através da ação moderadora do então Conselho de Segurança Nacional, aos moldes do Poder
Moderador monárquico
216
. Para Galvão de Souza, cabe reavivar o Império brasileiro e a “obra
ciclópica”
217
monarquista, que teria assegurado a “ordem,a paz, a estabilidade política, a
211
Cf. LÂNGARO, Luiz L. Reforma de estrutura da empresa. Convivium, n. 3, São Paulo, abril de 1963. p. 50
212
Idem, p. 48-9
213
Idem, p. 50
214
Idem, p. 54
215
SOUZA, José Pedro Galvão. Raízes históricas da crise brasileira - I. Convivium, n. 8, São Paulo, outubro de
1963. p. 29
216
Cf. Idem, p. 42-5
217
SOUZA, José Pedro Galvão. Raízes históricas da crise brasileira - III. Convivium, n. 10, São Paulo,
dezembro de 1963. p. 22 - citando expressão de Oliveira Vianna
- 79 -
superioridade continental
218
. Assim, este aparelho de hegemonia, através da pena do
tradicionalista Galvão de Souza, assumia uma posição que não era apenas conservadora, de
preservação da ordem capitalista; mas tamm reacionária, ao apregoar o monarquismo.
A revista Convivium combatia todos aqueles identificados com o socialismo,
especialmente os setores da esquerda da Igreja. Segundo este aparelho de informação, a
crença na revolução seria uma negação da fé cristã. Nesta acepção, o problema do ser humano
transcendia a questão da exploração capitalista e da miséria
219
; assim, ao invés da derrubada
do capitalismo, caberia aos católicos a “santificação” das “estruturas sociais, econômicas e
políticas”
220
. Noutras palavras: é a proposta uma revolução-passiva “espiritual”, “ecumênica”,
“religiosa”, que não modificasse as estruturas sociais capitalistas, mas, ao contrário, buscasse
“santificá-lo”. Para Convivium, a revolução no Brasil não poderia ser socialista, mas sim
tecnológica e industrial
221
.
* * *
Chegamos neste momento à altura do golpe de 1964. Vimos que a burguesia
brasileira logrou “embolsar” a esquerda brasileira, nos anos 1950; o PCB colocou a luta de
classes em segundo plano, abaixo do desenvolvimento nacional que era visto como
prioridade. Partido que se singularizou, no movimento comunista mundial, pela afluência de
oficiais do exército às suas fileiras; seus militantes oriundos da caserna, principalmente Luis
Carlos Prestes e Nelson Werneck Sodré, defendiam a tese do “caráter democrático das forças
armadas”
222
. A janeiro de 1964, Em entrevista concedida à TV Tupi, Prestes afirmava: As
Forças Armadas no Brasil têm características muito particulares, muito diferentes de outros
países da América Latina. Uma das questões específicas da revolução brasileira é o caráter
democrático, a tradição democrática das Forças Armadas, particularmente do Exército
[...]”
223
. Espedito Rocha, dirigente do PCB no Paraná naquele período, relata que esteve
presente no comício de Jango em 13 de março de 1964, realizado na cidade do Rio de Janeiro,
e ficou surpreso pelo grande aparato militar alocado para vigiar o evento. Numa reunião com
Prestes, entre 13 e 31 de março, Rocha disse que tinha certeza que haveria um golpe após ter
218
Idem, p. 26
219
Cf. CONVIVIUM. Nota da redação. Convivium, n. 9, São Paulo, novembro de 1963. p. 52
220
Idem, p. 49
221
Cf. CONVIVIUM. Nota da redação. Convivium, n. 10, São Paulo, dezembro de 1963. p. 51
222
Idem, p. 53
223
Idem, p. 53, entrevista reproduzida no jornal do PCB, Novos Rumos, edição de 24/01/1964, suplemento
especial.
- 80 -
presenciado a grande presença do aparelho repressivo; Prestes o contrariou e disse-lhe que
estava redondamente enganado. Mas Rocha esclarece que isto não era exclusividade do
secretário geral do PCB, grande parte da militância foi apanhada de surpresa, o que resultou
na prisão de muitos militantes
224
. Isto demonstra que a revolução passiva no Brasil ocorreu
também porque setores da esquerda brasileira não conseguiam perceber, conhecer a relão de
forças entre as classes sociais e as movimentações da ala golpista da burguesia brasileira.
Tudo isto contribuiu para o sucesso absoluto do golpe de 31 de março de 1964.
2. O APARELHO DE HEGEMONIA FILOSÓFICO IBF/CONVIVIUM - NA
REVOLUÇÃO PASSIVA (1964-1985)
Ninguém pode colocar-se à margem de um acontecimento de tamanhas
repercussões para a História do Brasil como a Revolução de 31 de março.
Todos aqueles que, nos últimos anos, vieram construindo este magno evento
tinham uma consciência clara do verdadeiro conteúdo da Revolução: dar
novos rumos ao desenvolvimento nacional, modificar a fisionomia política e
social do Brasil, através de uma reafirmação fundamental dos valores
espirituais da nossa cultura e de nossa verdadeira tradão política.
Revista Convivium, nota da redação
As grandes opções, Ocidente-Oriente, cristianismo-comunismo, retratam
duas diversas e opostas concepções de vida, duas filosofias, duas maneiras
de ser. [...] num país onde os estereótipos são uma exigência da preguiça
mental, [...] todo o grupo da revista Convivium foi classificado geralmente
de direita [...]. Certamente são categorias[de esquerda e de direita] pobres
e insuficientes para designar as milhares de páginas que compõem os
volumes da revista Convivium.
Adolpho Crippa
Se me perguntarem qual o sentido mais decisivo a atribuir-se a esta
Revolução, direi que é o da „honestidade‟ ou da seriedade‟, não apenas
como valor ético, como exigência moral, mas também como pressuposto de
ordem intelectual, como imperativo de opção no plano político e
administrativo.
[...] teria sido grande ingenuidade nossa deixar a palavra revolução
entregue aos adversários do regime.
Nada se pode construir, com efeito, contra as leis inerentes à natureza do
homem e da sociedade.
Miguel Reale
Miguel Reale chega a ser [...] Um latifundiário da Inteligência. Sendo que o
seu latifúndio é produtivo.
224
Cf. CODATO, Adriano e KIELLER, Marcio (orgs.). Velhos vermelhos: história e memória dos dirigentes
comunistas no Paraná. Curitiba: Editora UFPR, 2008. p. 118-20
- 81 -
Nilo Pereira
O caso dos estudantes é conhecido. As reuniões e congressos tornaram-se
palco de luta corporal entre as facções mais extremadas. São todos
partidários do socialismo totalitário. E ainda assim pretendem representar
os estudantes
Antonio Paim
Neste capítulo, o leitor encontrará a exposição da atividade da Revista Convivium. No
fim da última parte de nosso trabalho, assim como nestas epígrafes, vimos que este aparelho
de informação passou a atuar explicitamente na construção do golpe de 31 de março de 1964.
Desferido o golpe com sucesso, este periódico não deixaria de existir, tampouco reduziriam a
sua atividade, mas, ao contrário, intensificariam o ataque aos inimigos de classe como se
verá adiante.
Como o leitor percebeu, nós grafamos IBF/Convivium”; nosso objetivo é acentuar
que havia a união orgânica entre as duas organizações como buscaremos demonstrar mais
adiante. Mas é necessário fazer a seguinte ressalva: estes dois organismos surgiram em
períodos diferentes. Se a Convivium, nascida em 1962, foi uma organização tipicamente
ipesiana, que representou os setores conservadores da igreja católica dentro do IPES, o IBF
surgiu anteriormente, em 1949. Este fato é expressão da revolução passiva no Brasil, pois
representa a junção de organizações que foram criadas em momentos diferenciados, o
constante aggiornamento necessário para a luta de classes.
O IBF, diferentemente da Convivium, buscava criar a aparência de “neutralidade”;
seus membros tentaram criar a ilusão de que o Instituto nada mais era do que um agrupamento
de filósofos preocupados em estudar, pesquisar, produzir e debater uma filosofia que, na
concepção propalada pelo IBF, é “pensamento puro”, é axiologia, noutras palavras, o tem
qualquer relação com a história, com a realidade. Neste sentido, os ibeefeanos propalavam
que a filosofia seria um “saber desinteressado”, longe das relações sociais, do mundo
trabalho, da luta de classes
225
. O leitor compreenderá esta questão de forma mais aprofundada
no capítulo referente à obra de Antonio Paim. Alguns autores salientaram que este
posicionamento dos ibeefeanos em relação à filosofia não deixa de ser também uma posição
política, da qual o “pensamento puro” é mera expressão ideológica. Paulo Eduardo Arantes
226
diz que os “filosofantes do IBF sempre aferraram-se em combater as tentativas de interpretar
225
Cf. PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini. Ideologia e filosofia no Brasil... p. 105-6
226
Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Instinto de nacionalidade: Cruz Costa e herdeiros nos idos de 60. In: Um
departamento francês de ultramar: estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1994. p. 88-107
- 82 -
a filosofia à luz da realidade histórica o que os ibeefeanos chamavam de “tendência
participante”. Os principais alvos de seus ataques foram homens como João Cruz Costa, o
marxismo e qualquer outra linha de pensamento que visasse pensar e/ou transformar a
realidade. Pedro Costa salientou que o IBF tinha um programa de investigação próximo à
elaboração historiográfica de Benedetto Croce e Giovanni Gentile; segundo ele, Reale
criticava aqueles que interpretaram a evolução histórica do Brasil a partir de seu caráter
subordinado e dependente
227
. De nossa parte, como se verá, acrescentamos que este
posicionamento teórico, que a opção filosófica do IBF, não era senão reflexo de sua práxis.
Em 1964, o IBF era uma organização estruturada em quatro frentes de atuão, e
tinha acumulado mais de uma década de atuação hegemônica. (I) A formação filosófica
passou a ser realizada a partir de 1952, quando, através do financiamento da Secretaria de
Cultura da Municipalidade de São Paulo, foram organizados cursos de extensão cultural. O
governador do Estado de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez
228
, e o prefeito da cidade de São
Paulo, Armando Arruda Pereira, consideraram na época que o IBF era uma “entidade de
utilidade pública”
229
. Esses cursos ocorreram continuamente de 1952 a 1965. (II) Uma
política editorial estabelecida pelo IBF desde sua fundação; logrou publicar diversas obras da
autoria de seus membros graças ao financiamento do empresariado, da Editora da
Universidade de São Paulo (da qual Reale fora Reitor por duas vezes), do Governo do Estado
de S. Paulo e da Prefeitura da Capital, do Instituto Nacional do Livro (INL). (III) A
legitimação acadêmica foi preocupação de primeira ordem dos ibeefeanos, desde o início
apregoavam que o instituto era uma extensão da Faculdade de Direito da USP; neste sentido,
a RBF era divulgada como o repertório por excelência do pensamento nacional”
230
. Até
1962, já haviam sido realizados cinco congressos de alcance nacional ou internacional. (IV) O
IBF tinha também uma política de expansão através da fundação de seções estaduais, até
1964, contava com sedes em Pernambuco (fundada em 1951), Rio Grande do Sul (1952), Rio
de Janeiro (1952), Paraíba (1953), Alagoas (1953), Paraná (1953), Santa Catarina (1955),
Bahia (1955 ou 1956), Sergipe (1956), Ceará (1959) e o Maranhão (1964). Assim, O IBF
constituía-se, verdadeiramente, num aparelho de hegemonia filosófico no qual as classes
dominantes tinham total controle através de seus intelectuais orgânicos.
227
Cf. COSTA NETO, Pedro Leão da. Crítica às concepções conservadoras na história das idéias filosóficas
no Brasil. In: LIMA, Enezila de; et alii (org.). Violência e direitos: 500 anos de lutas; Anais do VII Encontro
Regional de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001. p. 354-61
228
Lucas Nogueira Garcez (1913-1982) foi presidente da ARENA em 1970, entre 1966 e 1975 foi diretor das
Centrais Elétricas de São Paulo (CESP) e, entre 1979 e 1982, foi presidente da Eletropaulo. Isto indica, como o
leitor verá, que Garcez era estreitamente ligado à Miguel Reale.
229
Cf. PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini. Ideologia e filosofia no Brasil... p. 21
230
Idem, p. 34
- 83 -
Miguel Reale, líder do IBF, à altura do golpe de 1964 era um proeminente membro
do IPES São Paulo, era o intelectual orgânico da FCESP - como dissemos anteriormente -,
além disso, era ligado ao Banco Finasa de Investimento (grupo Morgan/Dresdner), a Indusa
S/A (indústria metalúrgica), a Kardap AG Suisse, ao Radaelli Group e a Light Serviços de
Eletricidade S/A, esta última era uma das principais contribuintes do IPES
231
. Já a Convivium,
durante os anos 60, era financiada principalmente por companhias do setor automotivo:
Volkswagen do Brasil, General Motors do Brasil, Willys Overland do Brasil, DKW-Vemag; e
por empresas de outros setores, como a Constanta Eletrotécnica S.A. conforme levantamos
na veiculação de publicidade. A Convivium, quando de sua criação, veio reforçar o
trabalho hegemônico do IBF; permitiu inclusive que os ibeefeanos pudessem continuar
alardeando a sua “isenção” com relão à política diziam evitar a “filosofia em mangas de
camisa” -, ao passo que encontravam naquele periódico o espaço para o combate direto. Neste
sentido, Convivium justificava em suas páginas coup d‟État da seguinte maneira:
[...] Longe de qualquer exigência de cunho demagógico, superando o estágio
da mistificação e escamoteamento em que nos encontrávamos, recusando
qualquer interesse político-partidário, é preciso rever os fundamentos
últimos da nossa vida política. e isto antes de se falar em reformas da
Constituição, em voto dos analfabetos e outras coisas mais que não atingem
o problema pela raiz.
Antes, criam mais problemas do que se pretende resolver com tais reformas.
Para isto, no entanto, é necessário muita coragem e muita sinceridade
perante certas verdades. Mais fácil será certamente atribuir determinadas
exigências ao processo de desenvolvimento, sem analisar as raízes históricas
da problemática que nos envolve e que transcende, em muitos pontos, a crise
institucional brasileira. Muito mais importante do que discutir problemas
como o da prorrogação dos mandatos, o da maioria absoluta e o do voto dos
analfabetos, é repropor e reexaminar os seus pressupostos, que são os
próprios fundamentos da democracia, tais como as questões da representação
política, dos partidos poticos, do processo legiferante, do sufrágio
universal, da fonte e origem do poder e das leis.
232
Assim a revista dava a sua explicação ao denominado “magno evento”, o golpe aparece aqui,
por um lado, como a reafirmação da “tradão política brasileira” (vide epígrafe), e, por outro
lado, afirma que a raiz do problema estaria na chamada “crise institucional brasileira”, para a
seguir propor uma reforma de diversos aspectos do Estado nos deparamos aqui com a
concepção da revolução passiva propriamente dita: toma-se de assalto os aparatos do Estado
231
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964... p. 604 Apêndice B (p. 525-626, 714)
232
CONVIVIUM. Nota da redação. Convivium, n. 5, São Paulo, julho/agosto de 1964. p. 45 grifos nossos
- 84 -
que ameaçavam sair do controle burguês, para em seguida reformulá-lo, para aggiornare o
aparato estatal.
As edições de Convivium publicadas durante 1964 são emblemáticas do trabalho
ideológico do aparelho de hegemonia filosófico IBF/Convivium e de seus respectivos
intelectuais orgânicos. Delfim Netto defendia a idéia de que o cabia debater se o país
deveria percorrer o caminho do capitalismo ou do socialismo, mas, ao contrário, o socialismo
seria tanto pior, a única decisão cabível seria escolher a formatação estatal adequada para
conduzir o processo do desenvolvimento. Nesta concepção caberia somente optar pelo
“planejamento adequado” e que seria um “cinismo” pensar que o regime brasileiro seria de
classe
233
. Miguel Reale, por seu turno, dizia que aquela havia sido uma “revolução incruenta”,
e que ela deveria evoluir trazendo a “justiçacom o apoio equânime da força”, e este, por
sua vez não poderia deixar de emanar idéias, de ter uma Idéia diretora”
234
; este intelectual
trazia a necessidade da construção da hegemonia propriamente dita, da ditadura se escorar na
força, mas também nas idéias. Contrariamente a alguns setores da esquerda brasileira,
conforme vimos no capítulo anterior, vemos aqui que o sujeito da tese tinha plena consciência
do processo histórico. Daí o papel partidário (no sentido exposto por Gramsci) de
IBF/Convivium; de coadunar a classe dominante para convertê-la em hegemônica.
A Convivium, nos meses seguintes ao 31 de março, se afirmava como aparelho de
informação da ditadura e para essa necessidade da burguesia o periódico foi criado.
Vejamos o fragmento a seguir:
A Revolução perderá o seu sentido ou se esvaziará dos seus objetivos?
Nunca. E, ao contrário, ganhará profundidade e deitará raízes para que as
causas que a ditaram não esgotem [...], mas se estendam numa autêntica
renovação do País [...].
[...] Acho mais do que louvável o governo preocupar-se com a purificação e
a autenticidade do processo eleitoral brasileiro. [...] E essa preocupação
demonstra a sinceridade da Revolução e desmente e desmascara os que
teimam em considerá-la um “golpe militar”, um assalto ao poder ou um
primeiro passo para a instauração, no País, de um regime discricionário.
235
Vemos que o Padre Antonio Godinho, então deputado, autor do fragmento anterior, dizia não
enxergar a possibilidade duma ditadura, não importa se o fez por falta de consciência do
processo, mas é certo que contribuía consciente ou inconscientemente - para criar a ilusão
233
Cf. NETTO, Antonio Delfim. Problemas do desenvolvimento econômico brasileiro. Convivium, n. 4, São
Paulo, junho de 1964. p. 46
234
REALE, Miguel. Os imperativos da revolução. Convivium, n.5, julho-agosto de 1964. p. 46-9
235
GODINHO, Padre Antonio. Exigências da revolução. Convivium, n. 5, São Paulo, julho/agosto de 1964. p.
54-5
- 85 -
de que o novo governo vinha apenas para “sanear” e “purificar” o regime brasileiro. Mas a
Convivium também contava com uma intelectualidade orgânica bem formada, como, por
exemplo, Oliveiros S. Ferreira, que mais tarde publicaria uma obra sobre os Quaderni de
Gramsci
236
. Ele alertava aos golpistas que não poder que se mantenha estribado apenas
na força armada e desamparado do apoio moral, político, de forças mais reais e concretas,
que lhe darão legitimidade e sua força coercitiva
237
. Assim, tal como Miguel Reale,
Oliveiros buscava orientar o novo regime na construção da nova hegemonia, definiu que o
novo regime deveria apoiar sua força coercitiva nas armas e nas idéias. Nesta concepção, a
Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e João Goulart eram expressão de um sistema que
deveria ser condenado; neste sentido, cabia substituir por uma nova ordenação total e
global das relações entre indivíduos e o Estado e entre esse e a Sociedade Civil
238
; desta
maneira percebemos que Oliveiros apenas corrobora a necessidade da classe dominante em
reconstruir sua hegemonia, através de uma revolução-restauração que daria novo formato ao
Estado sem CGT e sem o nacional-reformismo de Jango. João Quartim de Moraes havia
esclarecido a atuação de Oliveiros em relação à ditadura, para este somente as Forças
Armadas seriam capazes de exercer a função hegemônica de partido, pois o Brasil passaria
por um “vácuo institucional” que só poderia ser preenchido pelos militares
239
.
A idéia do “vácuo institucional” foi bastante disseminada pela Convivium. Segundo o
aparelho de informação a “maioria conservadora brasileira” encontrava-se completamente
desarticulada, dividida numa infinidade de grupos
240
. Nesta concepção, a “resistência
conservadora” poderia ser exercida pelas forças armadas, pois constituiriam um
“estamento” vinculado “à tradição nacional”; imune à infiltração ideológica, que poderia
“salvar” o Brasil de uma sociedade governada pelos comunistas
241
. E esta era mais uma ilusão
difundida pela Convivium, conforme podemos ver a seguir: “Não podíamos deixar passar sem
registro o estupendo movimento iniciado pelo povo brasileiro, com o apoio das Forças
Armadas, pela extirpação do Comunismo da nossa terra”
242
. O objetivo do periódico era
fetichizar a história fazendo seus leitores acreditarem que golpe teria evitado que o Brasil se
236
FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 cavaleiros húngaros: uma leitura do Cadernos de Gramsci. Brasília: Editora
da UNB; São Paulo: Hucitec, 1986.
237
FERREIRA, Oliveiros S. O congresso da revolução. Convivium, n. 5, São Paulo, julho/agosto de 1964. p. 61
grifos nossos
238
Idem, p. 62 grifos nossos
239
MORAES, João Quartim C.K. de. Liberalismo e ditadura no cone sul. Campinas: Unicamp, IFCH, 2001. p.
151-62
240
Cf. QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Perspectivas da potica nacional. Convivium, n. 3, São Paulo, maio
de 1964. p. 57-8
241
Idem, p. 59
242
SILVEIRA, Alcântara. Recordando uma luta. Convivium, n. 3, São Paulo, maio de 1964. p. 62
- 86 -
transformasse num país comunista. Segundo Alcântara Silveira, a Convivium sempre permitiu
a disseminação das idéias anti-comunistas; dizia ainda que “Devem os católicos, mais do que
nunca, empunhar a bandeira da luta contra o Comunismo. Agora que as Forças Armadas
limparam o campo das ervas daninhas, compete-lhes velar para que elas não se alastrem
novamente”
243
. Para a Convivium, os católicos deveriam empunhar a flâmula da cruzada anti-
comunista, nesta perspectiva o mundo se encontraria num embate entre o catolicismo e o
“ateísmo científico” que teria na União Soviética seu principal rincão
244
. Estas posições
ideológicas correspondiam à viragem dada pela burguesia brasileira na tentativa de
escamotear a luta de classes.
Logo após o golpe, em maio de 1964, Convivium buscava cultivar determinada
memória do golpe, estabelecer uma historiografia da revolução-restauração:
Os que promoveram a revolta geral contra o Governo anterior e contra a
infiltração comunista, que já atingira quase todas as áreas vitais, inclusive os
altos organismos federais e estudantis [...].
No momento crucial o Exército interveio e dominou uma situação que
caminhava para a guerra civil e para o caos. Com isto foi possível controlar o
processo de dominação crescente dos comunistas, dirigidos por Moscou e
Pekin e iniciar o trabalho importante de eliminar da vida pública todos
aqueles que cooperaram tanto na desmoralização dos costumes públicos
como no desenvolvimento comunista.
Traduzindo-se este fato em termos históricos, deve-se dizer que uma grande
vitória foi conquistada pelo Ocidente cristão, assumindo o Brasil uma
posição única no concerto das Nações ocidentais. Venceu o comunismo sem
sangue [...].
245
Assim era construída a interpretação deste aparelho de informação da classe burguesa; nesta
acepção, o Brasil era mais uma frente de combate do Ocidente cristão em sua cruzada contra o
comunismo. A intenção do periódico era criar subterfúgios interpretativos para encobrir a luta
de classes, conforme fica bastante evidente no trecho a seguir:
Não foi uma quartelada, nem uma revolta de ricos [...]. Não houve, portanto,
nada que pudesse caracterizar um golpe de Estado. Nem, muito menos,
houve a vontade de uma determinada classe social que pretendeu se impor,
pela força, sobre outra [...]. Todos que julgarem os recentes acontecimentos
como uma vitória dos ricos contra os pobres, dos capitalistas contra os
operários, dos fazendeiros contra os trabalhadores rurais, dos interesses
243
Idem, p. 63
244
ALBERT, Valery. Nova campanha contra a religião na URSS. Convivium, n. 3, São Paulo, maio de 1964. p.
68
245
CRIPPA, Domingos. As possibilidades da revolução brasileira. Convivium, n. 3, São Paulo, maio de 1964. p.
03-05
- 87 -
estrangeiros contra as verdadeiras exigências do nacionalismo, enganam-se
totalmente e darão mostra de não terem entendido nada do que se passou.
246
Desta maneira, Convivium tentava desvincular o golpe da luta de classes; aqui o golpe
aparecia uma “exigência” nacional e ocidental. Convivium constituía-se, verdadeiramente, na
expressão intelectual da revolução-restauração que acabara de varrer o país. Não obstante,
realizava seu papel de intelectual orgânico coletivo, propondo um itinerário para esta nova
fase da revolução passiva que acabara de iniciar. Neste sentido, estabelecia a necessidade da
execução de um amplo leque de reformas, dentre as quais destacamos: a limitação da
“interferência” do Congresso Nacional; a criação de um Banco Central independente e
autônomo; as empresas estatais deveriam gerar lucros; a criação de escolas técnicas que
formariam a mão-de-obra rural em cursos de dois anos - esta era a “reforma agrária” proposta
pela Convivium; e, por fim, elencamos a chamada “reforma administrativa” que deveria ser
uma revolução institucional, um completo reordenamento do Estado
247
. Aggiornamento.
* * *
Objetivo desta primeira parte do presente capítulo é o de elucidar a essência deste
aparelho de hegemonia da burguesia a revista Convivium como um instrumento de
combate para a luta de classes. Para que isso ficasse claro, trouxemos os artigos que foram
publicados em 1964 e que mais evidenciavam este o aspecto de Convivium. O passo seguinte
é esclarecer a atuação que o aparelho de hegemonia filosófico IBF/Convivium tiveram
durante o período compreendido entre os anos de 1964 e 1985. A isso nos dedicaremos na
próxima parte do trabalho.
2.1 A INTELECTUALIDADE ORGÂNICA DO APARELHO DE HEGEMONIA
FILOSÓFICO IBF/CONVIVIUM (1964-1985)
Para uma abordagem que esteja de acordo com o nosso objetivo (exposto no parágrafo
anterior), se faz necessário o estabelecimento de alguns recortes para a análise da Convivium:
(I) um temporal, limitado ao período compreendido entre os anos de 1964 e 1985; (II) nos
limitaremos à análise dos artigos dos autores que eram, simultaneamente, os principais
intelectuais orgânicos tanto da citada revista, quanto do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF);
246
Idem, p. 07-08
247
Idem, p. 13-7
- 88 -
e, por fim, (III) entre os principais intelectuais, devido ao grande número de temas tratados
pela Convivium, nos limitaremos à análise dos artigos que a temática converge com o nosso
trabalho. Por exemplo, abordaremos artigos sobre história, sociedade, etc., mas não trataremos
de artigos que versam sobre teatro, literatura, etc
248
. Não vemos qualquer prejuízo decorrente
destes recortes para a nossa análise, mas, ao contrário, uma melhor abordagem do objeto.
Adotamos o critério de que os principais intelectuais de IBF/Convivium, entre os anos de
1964 e 1985, são aqueles que publicaram pelo menos 10 artigos:
- Creusa Capalbo publicou 17 artigos na Convivium e 12 na RBF;
- Antonio Paim publicou 18 artigos na Convivium e 47 na RBF;
- Nelson Saldanha publicou 11 na Convivium e 21 na RBF.
Além dos recortes mais quantitativos, os qualitativos também devem ser levados em
conta. Assim, acrescentamos ainda à lista destes três intelectuais, Adolpho Crippa, pois foi o
diretor da Convivium enquanto a revista existiu; Paulo Mercadante que, apesar de ter poucas
publicações nos periódicos de IBF/Convivium, acreditamos que ele esteja em pé de igualdade
em relação aos demais autores, pois tem um extenso número de publicações em outros
aparelhos de informação da burguesia, principalmente no Jornal do Commércio (Rio de
Janeiro), na Folha de S. Paulo e no Estado de S. Paulo
249
. Assim, Mercadante era o homem
alocado para escrever para aparelhos de informação que não estavam sob o controle de
IBF/Convivium - era o homem seja da “disseminação externa”, seja das relações de
IBF/Convivium com outros aparelhos de informação. Acrescentamos também Miguel Reale,
que era o maior organizador da intelligentsia de IBF/Convivium
250
. E, além de Crippa,
Mercadante e Reale, acrescentamos ainda Ricardo Vélez Rodrigues
251
, pois, assim como de
Creusa Capalbo, representa a geração seguinte à de Mercadante e Paim que, por seu turno,
representam a segunda geração, sendo a de Reale a primeira. Assim temos a seguinte lista dos
intelectuais que constituíam o núcleo duro/dirigente da organização (levados em conta os
mencionados recortes):
- Adolpho Crippa;
- Antonio Paim;
- Creusa Capalbo;
248
Com este recorte temático ficam fora de nosso trabalho Romano Galeffi e Leônidas Hegenberg que,
respectivamente, tratam de estética nas artes e de questões epistemológicas. Muitos artigos de Antonio Paim
também ficarão fora de nossa pesquisa, pois tratam de filosofia; mas dedicamos um capítulo inteiro à este autor.
249
Cf. MERCADANTE, Paulo. Tobias Barreto: o feiticeiro da tribo. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2006. p.
340-50
250
Entre 1964 e 1985, na revista Convivium e na RBF, respectivamente, Adolpho Crippa publicou 63 artigos e 1
artigo; Paulo Mercadante publicou 1 e 5; Miguel Reale 9 e 30.
251
Ricardo Vélez Rodrigues, entre 1977 e 1985, publicou 24 artigos na Convivium e 3 na RBF.
- 89 -
- Miguel Reale;
- Nelson Saldanha;
- Paulo Mercadante;
- Ricardo Vélez Rodrigues.
Salientamos ainda que nos limitaremos à análise das publicações da revista
Convivium; fica então para futuras pesquisas a necessidade de analisar os artigos publicados
na RBF durante o período da Ditadura (e com outros recortes temporais também).
* * *
Como falamos anteriormente, o golpe de 1964 inaugura uma nova fase (permeada de
velhos elementos do regime de classes) da revolução passiva brasileira. poderemos
entender isso com a uma exposição em panorama da ditadura, delineando alguns elementos
essenciais da luta de classes.
Segundo Florestan Fernandes, a apropriação dual do excedente econômico a partir
de dentro pela burguesia nacional e, a partir de fora, pelas burguesias das potências
capitalistas hegemônicas -, provocou uma “hipertrofia acentuada dos fatores sociais e
políticos da dominação burguesa”
252
no Brasil; assim o regime ditatorial era uma necessidade
dos interesses multinacionais e associados, noutros termos: tanto para a burguesia nacional,
quanto para a estrangeira, a ditadura era o fator sine qua non para a continuidade e o
aprofundamento da extração do excedente econômico. Neste sentido, diz nosso autor: “Sob
esse aspecto, o capitalismo dependente e subdesenvolvido é um capitalismo selvagem, cuja
viabilidade se decide, com freqüência por meios políticos e no terreno político”
253
. Daí
depreendemos que a revolução passiva, com sua característica exacerbação do papel do
Estado, é uma necessidade da burguesia de um país dependente e subdesenvolvido. E esta
“hipertrofia estatal”, que exacerba o elemento político, é exatamente o que intensifica e
agrava a o poder da burguesia brasileira; fazendo dela um parceiro forte e sólido das
burguesias das nações hegemônicas. Se as burguesias nacionais falharem nessa missão
política a de garantir o seu poder através do Estado -, diz Florestan, “não haverá nem
capitalismo, nem regime de classes, nem hegemonia burguesa sobre o Estado”
254
.
252
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 341
253
Idem, p. 341
254
Idem, p. 343
- 90 -
As burguesias nacionais da periferia e as burguesias das nações capitalistas centrais
possuem interesses e orientações que são recíprocas: manter a ordem, fortalecer o capitalismo
e impedir que a dominão burguesa e o seu controle sobre o Estado sejam arruinados. Assim,
falar em “revolução burguesa” no Brasil é o mesmo que falar em contra-revolução, em
revolução passiva, em revolução-restauração; é uma transformação que perdeu
completamente qualquer significado revolucionário. Neste sentido, o que são sujeitos de
revoluções antagônicas que coexistem; uma, a do proletariado, que visa construir um novo
mundo e, a outra, a burguesa, que visa apassivar esse processo revolucionário, conservando a
ordem através de transformações moleculares que não alteram a estrutura de seu poder, mas,
ao contrário, a fortalecem. Neste sentido, as burguesias do capitalismo dependente e
subdesenvolvido: “detém um forte poder econômico e social e político, de base e alcance
nacionais; e contam com suporte externo para modernizar as formas de socialização, de
cooptação, de opressão ou de repressão inerentes à dominão burguesa. Torna-se, assim,
muito difícil deslocá-las politicamente através de pressões e conflitos mantidos „dentro da
ordem‟ [...]”
255
. Assim, o a possibilidade da revolução burguesa no Brasil - um país
periférico - não ser passiva.
O golpe de 1964 é o momento que a burguesia brasileira assinala a sua lealdade à sua
missão histórica em conservar o caráter duplamente articulado da economia brasileira, ou
seja, o desenvolvimento desigual interno e a domínio imperialista externo, que por sua vez,
constituem os requisitos da acumulação capitalista no Brasil. E, para tanto, a burguesia
brasileira levou a cabo uma revolução institucional que consistiu na consolidação de seu
poder através do fortalecimento das estruturas nacionais do seu poder. Seus interesses de
classe puderam ser impostos a partir dos aparatos de Estado. Segundo Florestan, esta
revolução institucional visa assegurar a consolidação da dominação burguesa no nível
político, de modo a criar a base política necessária à continuidade da transformação
capitalista, o que nunca constitui um processo simples por causa dos conflitos faccionais, no
bloco burguês; e da pressão de baixo para cima, visível ou não, das classes operárias e
destituídas”
256
. Daí podemos depreender o papel crucial empreendido pelos parelhos de
Estado, “públicos” ou “privados”; neste sentido, IBF/Convivium formavam uma estrutura
subordinada ao IPES, e tinham papel primordial na luta de classes. O Estado entendido aqui
em seu sentido lato é a estrutura principal e o dínamo do poder burguês; e a forma ditatorial
do Estado permitiu, naquele momento, uma eficácia que não seria atingida sob a democracia
255
Idem, p. 344-45
256
Idem, p. 351-2
- 91 -
burguesa. O constante aggiornamento da dominação burguesa é condição básica para que ela
própria não se condene à derrota e ao desaparecimento
257
.
Acreditamos que o apelo intensificado ao argumento das armas acabou implicando
também na intensificação do uso das armas do argumento. Se 1964 inaugurou uma fase de
brutal repressão às classes populares organizadas, às forças da esquerda, entendemos também
que a força das idéias, disseminadas pelos aparelhos de hegemonia (rádio, televisão, cinema,
periódicos impressos) também teve de ser usada de maneira ainda mais veemente. Neste
sentido, o IPES, o partido (em sentido lato) que organizou as forças necessárias para o golpe,
após o seu sucesso avassalador, teve de ampliar a sua capacidade hegemônica; isso foi
realizado através da criação do Serviço Nacional de Informações (SNI). O primeiro chefe
nacional do SNI, o General Golbery do Couto e Silva, desempenharia as mesmas atividades
desenvolvidas no IPES, mas agora com recursos e meios ainda mais ampliados. Os arquivos
do IPES, que possuíam dados sobre 400.000 brasileiros, foram levados para a estrutura do
SNI em Brasília, assim como também diversos intelectuais orgânicos que trabalhavam no
IPES. Desta maneira, a atuação hegemônica do IPES é intensificada durante a ditadura com o
SNI, pois criaram-se laços orgânicos entre os dois aparelhos. O SNI estabeleceu uma
amplíssima rede de informações, nos ministérios e autarquias do governo, no movimento
militar, no movimento operário, no movimento estudantil e em outros segmentos da
população. O IPES de São Paulo criou, em conjunto com o SNI, o Instituto de Estudos
Científicos sobre o Comunismo.
258
Todo este imenso aparato para a luta de classes precisava de idéias que viabilizassem a
imposição de um consenso. Neste sentido, o ideal que passou a alimentar a burguesia era
aquele de máximas tais como: a “solidariedade hemisférica”, a “solidariedade às nações
democráticas” e a “defesa da civilização cristã”
259
. Assim, a burguesia nacional passava a se
conceber como um dos pilares da ordem mundial do capitalismo; ela enterrara polarizações
ideológicas que haviam norteado seu pensamento em momentos históricos anteriores. A
revolução da burguesia deixara de ser nacional” para ser contra-revolução, revolução-
restauração. Isto, diz Florestan, “não aumenta o grau de alienação filosófica, histórica e
política da burguesia perante os problemas nacionais e sua solução. Ela fortalece a
insensibilidade diante deles, na medida em que não perturbem o desenvolvimento capitalista
interno nem o „equilíbrio do sistema capitalista mundial‟, ou, ainda, na medida em que sejam
257
Idem, p. 358-9
258
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964... p. 442-3
259
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 357 grifos do autor
- 92 -
úteis para a intensificação da acumulação capitalista”
260
. A burguesia descobrira que não
poderia romper com a dupla articulação da economia brasileira sem romper também com o
próprio capitalismo. Daí a necessidade dos aparelhos de informação da direita terem a
preocupação e a necessidade de imporem uma visão de mundo aparentemente alheia à luta de
classes - mas, na verdade, absolutamente enraizada nos conflitos sociais.
Este grande aparato informativo tinha o objetivo de primeiramente criar o clima para o
golpe, e consolidar o regime que dele nascera. Para isso, os intelectuais orgânicos da
burguesia apregoaram a “conciliação de classes” e a luta do “ocidente cristão e democrático”
contra o “oriente comunista e totalitário” com o objetivo de desviar a atenção para o fato de
que se iniciava uma nova etapa da revolução passiva, agora na forma de uma contra-revolução
preventiva conduzida por um regime autocrático. Compreendemos o período da ditadura
como, um movimento hegemônico da burguesia de “autodefesa ativa, militante e
agressiva”
261
. É como peça fundamental desta movimentação que se deve compreender
IBF/Convivium.
Com a vitória de 31 de março/1º de abril, a burguesia ligada aos interesses
multinacionais e associados reforçara o seu poder. IBF/Convivium passaram a ter ao seu
dispor todo o apoio explícito do aparelho de Estado. Não devemos nos enganar: o Estado
brasileiro nunca esteve contra ou alheio a este aparelho de hegemonia filosófico; a diferença é
que, a partir do golpe, a relação entre os diversos aparelhos de Estado (os de repressão e os de
informação) passava a ser mais explícita do que antes, no estado nu e cru da ditadura
burguesa. Neste sentido, o a.h.f. IBF/Convivium foi expressão de uma autocracia burguesa
que iniciara uma feroz repressão às vozes dissonantes conforme relata Nelson Werneck
Sodré:
Parlamentares que [aprovaram] a lei de [limitação da] remessa de lucros,
militares que lutaram pelo monopólio estatal do petróleo, dirigentes sindicais
que resistiram ao suborno, dirigentes estudantis que se bateram pela cultura
popular, intelectuais que defenderam o direito do Vietnã do Norte existir,
jornalistas que informaram as falcatruas do IBAD, camponeses que
desejaram a reforma agrária todos, mas todos mesmo, foram cassados, ou
demitidos, ou presos, ou reformados, ou aposentados, ou torturados, ou
mortos.
262
260
Idem, p. 367-8
261
Idem, p. 393
262
SODRÉ, Nelson Werneck. A fúria de Calibã: memórias do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994. p. 16-7
- 93 -
Assim, esta relação mais explícita entre os diferentes aparelhos de Estado implicava
concretamente que os adversários de classe que antes foram atacados pelas canetas da
intelectualidade de IBF/Convivium, passavam agora a ter em seu encalço todos os aparelhos
repressivos de Estado. Os aparelhos informativos encontravam agora o ambiente ideal para
intensificarem suas atividades hegemônicas, pois contavam de maneira irrestrita com o peso
do Estado.
Os intelectuais que se opunham ao regime passaram a viver num ambiente de
constante vigilância, delação, ameaças e intimidação; entre outras coisas, eram intimados a
comparecer ao DOPS e responder perguntas como: o senhor é marxista? Que livros costuma
ler? Acha que fulano de tal é comunista?
263
os aparelhos de informação, por seu turno,
atacavam os opositores, acusava-os de “terrorismo cultural”. Emblemático é o caso da USP,
quando na edição do Correio da Manhã de 9 de outubro de 1964, eram denunciadas as
“impressionantes infiltrações de idéias marxistas nos diversos setores universitários,
cumprindo serem daí afastados os seus doutrinadores”
264
, e eram informados quais acusados
deveriam ser procurados pelos aparelhos repressivos. Florestan Fernandes relata que o
terrorismo imposto aos intelectuais discordantes evoluiu da seguinte maneira:
O recurso da intimidação era o mais explorado. Primeiro, as buscas policiais
de pessoas. [...] Sua função consistia em criar um pânico incontrolável.
Levar as pessoas a fugirem para o exterior. [...] Segundo, vieram as listas de
inquérito policial militar. [...] Esse passo envolvia um terrorismo cultural
macio. Os mais tímidos entravam no jogo e desapareciam da cena ou se
emasculavam. Terceiro, o serviço de espionagem entrou em cena de forma
pouco secreta, pois o fito era o de amedrontar e os professores, estudantes,
conferencistas passaram a ter gravadas as suas exposições, fotografadas as
reuniões, as passeatas, etc. [...] A repressão fechava, assim, o circuito do
eixo conservador de poder, tentando combinar punição e cordura tirando
proveito de sua “legalidade”. Quarto, a prisão pura e simples dos que
possuíam um prontuário político mais rico e dos caíam na categoria de
vítimas estratégicas, que deviam ser imoladas exatamente para difundir o
medo e a transigência. Conhecidos militantes poticos, líderes sindicais,
intelectuais comunistas”, etc., caíram, assim, nas malhas da polícia cívil e
militar, aumentando a população das prisões e a exposição das vítimas à
onda de terror. No fundo, o “pânico circular” era o grande objetivo. Derrotar
o adversário sem luta ou com o mínimo de luta [...].
265
Assim, a repressão ia fechando o círculo de ferro entorno da intelligentsia dissonante.
A USP não foi exceção, o mesmo se deu nas diferentes instituições de ensino superior do país,
263
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. História da história nova. Petrópolis: Vozes, 1986.
264
SODRÉ, N. W. A fúria de Calibã... p. 65
265
FERNANDES, Florestan. A questão da USP. o Paulo: Brasiliense, 1984. p. 96-7
- 94 -
mas o seu caso se tornou um emblema porque, em 1964, era uma instituição de ponta, em
termos nacionais e latino-americanos
266
. E seria este o clima que permaneceria na
Universidade até 1969, quando, em abril, saiu a primeira lista de cassação e, entre outubro e
novembro, Miguel Reale, o homem do a.h.f. IBF/Convivium, assumiu a reitoria. Reale nega
com veemência que seu nome tenha sido escolhido pela ditadura, o que tentava esconder com
um discurso em prol da “democracia
267
. Mas Florestan explica que, na intervenção da USP,
os Estados Unidos forneceram as “fórmulas inovadoras seguras” e o Estado brasileiro entrou
com os “técnicos títeres”
268
. Estes, por sua vez, eram intelectuais orgânicos provenientes das
escolas superiores tradicionais: a de medicina, a de farmácia, a de engenharia, a de
odontologia e a de direito (da qual Reale fora titular da cátedra de Filosofia do Direito desde
1941); havia na USP uma inteligência contra-revolucionária ativa, que formavam a
vanguarda da contra-revolução
269
. Os reitores, reafirma Florestan, o eram nada mais do
que “ventríloquos” que implementavam políticas na Universidade
270
. Mas o sociólogo
evidencia que o que ocorria na USP, esta “instituição-chave”, não era senão uma faceta do
que estava ocorrendo no Brasil:
A reforma que deveria ser realizada como um processo democrático
converteu-se em um reforma a partir de cima, que eliminou da USP toda a
fermentação espontânea e sufocou os departamentos, conselhos técnicos e
congregações, afastando-os da arena política e reduzindo-os a órgãos
burocráticos destituídos de vontade própria. Muitos pensam em um “salto
para trás”. Mas esse pensamento não passa de uma ficção. As escolas
superiores, no passado, prescindiram dessa forma de manipulação do poder;
os estratos dominantes não se sentiam ameaçados e tampouco enfrentavam
guerras intestinas no seio de suas elites. O que se criou é fruto da
modernização tecnocrática. O Estado autocrático-burguês gerou um padrão
de organização institucional pelo qual todas as instituições-chave se
modelavam por sua imagem.
271
De nossa perspectiva, com base no que diz Florestan, o que ocorria na maior universidade do
país não era senão expressão da revolução passiva. Entendemos que a intervenção da ditadura
na USP não foi senão fruto da necessidade da burguesia, que acabara de levar aos últimos
termos a luta de classes.
266
Idem, p. 07
267
Cf. REALE, Miguel. Memórias: A balança e a espada. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 188. Em seu discurso de
posse, Reale afirmou que trabalharia por uma “universidade democrática, como desejamos seja a nossa, como
expressão de uma sociedade plural, fundada na força criadora da liberdade e na pluralidade das afirmações
espirituais” (p. 189).
268
FERNANDES, Florestan. A questão da USP... p. 12-3
269
Idem, p. 12
270
Idem, p. 38
271
Idem, p. 52 grifos do autor e nossos.
- 95 -
Reale logo tratou de fazer da USP um grande negócio, a Light, companhia de
eletricidade multinacional com sede na cidade de Toronto, na qual trabalhava, logo foi
agraciada por inúmeras obras no campus universitário, que geraram muitos lucros
272
. Reale
diz que havia mesmo vigilância na USP, e que escolheu para trabalhar com ele “mestres
notoriamente conservadores”
273
. Reale diz que jamais censurou a publicação de livros na
USP, mesmo os de Florestan Fernandes
274
. Mas nosso sociólogo esclarece que o
amordaçamento fora substituído pela lavagem de cérebros através de programas de estudos
pós-graduados, de mestrado ou doutorado no exterior, ou de recalibragem dos fatores de
colonização cultural das universidades brasileiras”
275
; afirma ainda que o que ocorreu na
“USP foi uma repetição do mesmo processo que reduziu a sociedade brasileira a um
submundo de senhores e de escravos, de casas-grandes e senzalas [...]. Só que a repetição não
nos colocou de volta no passado [...]. Ela nos projetou na órbita da contra-revolução
preventiva da era atual”
276
. Reale foi o homem da contra-revolução, da revolução-restauração
na USP e, devido ao peso desta instituição, em outras universidades brasileiras também. Desta
maneira, a única diferenciação existente entre o a.h.f. IBF/Convivium e a reitoria da
Universidade de São Paulo passava a ser a velha nomenclatura criada pela burguesia:
privado/estatal conforme definido por Nicos Poulantzas. Reale ficou no cargo até 1973,
período em que a ditadura “desenvolveu o modelo econômico e o aparato repressivo,
ampliando tanto o quadro legal, quanto a prática da coerção”
277
. Em 1974, seria nomeado para
o Conselho Federal de Cultura, pelo general, então presidente da república, Emílio Garrastazu
Médici, onde permaneceria até 1989.
Como não poderia ser diferente, a revista Convivium encampou esta batalha, pois era
um instrumento da burguesia nascido na e criado para a luta de classes. Adolpho Crippa,
diretor da revista Convivium, dizia, em 1969, que era “grave” e problemático o fato de que a
Universidade seja fonte de politização e conscientização revolucionária (no sentido genuíno
do termo), e que a formação possibilitada aos estudantes acabasse sendo o ponto de partida
para a atuação em movimentos sociais
278
. Mas nesta mesma edição do periódico, quem volta à
carga é Miguel Reale:
272
Cf. REALE, Miguel. Memórias: A balança e a espada... p. 192-6
273
Idem, p. 196
274
Idem, p. 197
275
FERNANDES, Florestan. A questão da USP... p. 53-4
276
Idem, p. 13
277
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente: 1964-1992. ed.
rev. atual. São Paulo: Ática, 1996. p. 42
278
CRIPPA, Adolpho. A nova iia de universidade. Convivium, n. 2, São Paulo, março/abril de 1969. p. 07
- 96 -
A política da inteligência, ao contrário, menos pretensiosa ou mais
comedida, não cuida de abarcar o todo, preferindo tomar o homem tal como
ele é, para ir resolvendo os problemas, um a um, de modo a infundir em
cada coisa um pouco dos valores que o homem, quando sozinho, discerne
hesitação. [...] toda desgraça provém do fato de não se praticar a política do
entendimento, preferindo-se a política da razão, ilusoriamente totalizadora
da história.
279
Desta maneira, o autor traz a proposta das transformações moleculares (“um problema de
cada vez), que provocam pequenas mudanças sem alterar em profundidade a realidade.
Segundo Reale, a luta de classes nada tem com o Brasil, talvez com outras “áreas culturais”.
Nesta concepção, a revolução Cubana seria uma exceção, pois uma revolução socialista não
seria condizente com a América Latina. Já a “revolução”(restauração) de 1964 teria conotação
completamente contrária
280
. Reale naturaliza diversos aspectos do regime autocrático: (I) o
recrudescimento da ditadura com o Ato Institucional n. 5, que veio para por fim aos
movimentos de “rebeldia”, seria apenas a reabertura do “processo revolucionário”. (II) As
“medidas impopulares, de austeridade e sacrifício” seriam indispensáveis para superar o
momento histórico de grave crise. Os itens I e II justificam o III: luta contra o “terrorismo
extremista” e a “desordem universitária”.
281
Quanto ao trabalhador, diz Reale, “ainda não [está] suficientemente preparado e
maduro para compreender e aceitar os sacrifícios impostos no presente como condição
essencial ao progresso nacional”
282
. A ditadura marcou um período de grandes perdas,
sacrifícios e sofrimentos para a classe trabalhadora. A fórmula adotada para superar a
recessão de 1962-1967, foi o arrocho salarial em outras palavras, a intensificação da
exploração do trabalho
283
. Mas Reale diz que esta “imaturidade” não era exclusividade do
trabalhador brasileiro, mas também dos “intelectuais e estudantes, tomados de fogosidade
ideológica, não compreendem que a gravidade da situação nacional implica no uso comedido
da liberdade de manifestação do pensamento”
284
. Daí temos a confirmação de que, na luta de
classes, a questão universitária era tão estratégica quanto a contenção da classe trabalhadora;
este intelectual orgânico da burguesia, historicamente homem da revolução passiva no Brasil,
revela-se agora o homem do tacão e da mordaça, da hegemonia do regime ditatorial burguês.
Não satisfeito, diz ainda que cabia derrubar no Brasil a ditadura dos partidos” - a
279
REALE, Miguel. Problemas do desenvolvimento: realismo político. Convivium, n. 2, São Paulo, março/abril
de 1969. p. 139 grifos nossos
280
Idem, p. 141
281
Idem, p. 143-4
282
Idem, p. 146
283
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 22
284
REALE, Miguel. Problemas do desenvolvimento... p. 148
- 97 -
Partidocracia [...] e outras anomalias são abismos que se abrem junto ao áspero caminho da
experiência democrática”
285
. O que Reale faz não é senão tentar dar justificativas “racionais”
para um regime que instaurara verdadeiro terrorismo contra qualquer voz dissonante e contra
as classes populares.
Para Miguel Reale a democracia significa pluralidade de vozes discordantes, mas
que se moderar a coisa toda, pois não se pode, diz, querer “subverter a estrutura”
286
. Neste
sentido, ele diz que na universidade não comportaria a politização e a conscientização; ela
seria um local para pensar aquilo que os empresários praticam, pois caberia ao empresariado o
estudo e a análise meticulosa. Isto faria da escola superior uma fonte de autoridade
imparcial”
287
, para que não hajam retaliações como as que estavam havendo naquele
momento. Homens de “cultura superior”, diz Reale, tem aversão à política, não se metem com
ela, respeitam a lei da divisão do trabalho; ao passo que não podem viver afastados do Estado
e de seu ordenamento jurídico político
288
. Nesta concepção, a universidade deve ser
“expressão de uma aristocracia do espírito” com a respectiva “estrutura hierárquica” que não
seja submetida ao voto majoritário dos “escalões inferiores da carreira docente”
289
. Vemos
assim que Reale propõe a reprodução dentro da universidade daquilo que a ditadura tentava
conservar, e aprofundar, na sociedade brasileira: uma sociedade aristocrática, dos e para os
empresários nas palavras do autor: “quem diz Universidade diz aristocracia do
pensamento”
290
. Os estudantes devem ser preparados, diz, para as livres iniciativas
empresariais”, ao passo que a Universidade, assim como o regime, devem se auto-defender,
não permitir a entrada da “subversão” comunista. Assim, Reale tempera a tônica da
“aristocracia do pensamento” com um anticomunismo fervoroso
291
.
Bem afinada com as necessidades da ditadura, em seus combates com a esquerda, que
visavam subordinar ainda mais a classe trabalhadora, Convivium atacava o marxismo.
Segundo a revista, esta linha de pensamento teria sido superada pela realidade histórica, pois a
dialética da história não faria mais sentido e, conseqüentemente, não fariam sentido nem a
luta de classes, nem a revolução
292
. A negação da dialética da história é expressão da
revolução passiva, e IBF/Convivium, enquanto um a.h.f., lutavam para inculcar esta
concepção da história. Crippa, enquanto intelectual católico, se preocupa com o paraíso e,
285
Idem, p. 149
286
REALE, Miguel. Universidade Democrática. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de 1969. p. 247
287
Idem, p. 249
288
Idem, p. 250-1
289
Idem, p. 251-2
290
Idem, p. 254
291
Idem, p. 257
292
CRIPPA, Adolpho. O marxismo no século XX. Convivium, n. 3, São Paulo, maio-junho de 1969. p. 232-3
- 98 -
enquanto intelectual orgânico da burguesia, duvida que seja possível um “paraíso sem Estado,
sem propriedade privada”
293
.
Mas não é a dialética da história que é atacada pelo a.h.f., também a categoria de
“ideologia”, desenvolvida por Marx e Engels, é um de seus alvos. Para Crippa, este conceito
não teria mais qualquer valor, pois não haveria mais a distinção entre ideologia burguesa e
ideologia proletária. Miguel Reale, em conferência proferida na ESG em junho de 1970,
reproduzida nas páginas da Convivium, dissera que a “época das ideologias” chegara ao
fim
294
. A Convivium buscava, desta maneira, criar a ilusão o fetiche - de que não possuía
qualquer vínculo com a burguesia, e que o se contrapunha às classes populares. Para isso,
fora necessário mutilar a dialética da história.
podemos compreender este posicionamento da IBF/Convivium se olharmos com
mais atenção a condição das classes trabalhadoras naquele período. Em essência, se pode
dizer que o status quo ante não se modificou; diversos autores assinalam que o golpe de
Estado veio para conservar a subordinação da classe operária, para não permitir que a história
chegasse à sua síntese. Virgínia Fontes e Sônia Mendonça assinalam que esses dois aspectos
(...) longe de se antagonizarem, se complementam: as mudanças (do regime) viabilizaram a
conservação (do poder)”
295
. Florestan Fernandes, por sua vez, comparando o regime anterior a
1964 e o posterior, destaca que:
No plano histórico, passava-se, pura e simplesmente, de uma ditadura de
classe burguesa dissimulada e paternalista [de 1945 a 1964] para uma
ditadura de classe burguesa aberta e rígida [após 1964]. [...] Não houve área
ou esfera em que conseqüências negativas, passageiras ou persistentes,
deixassem de se refletir: depressão de salários e da segurança no emprego, e
compressão do direito de greve e protesto operário; depressão dos níveis de
aspiração educacional das “classes baixas”, e compressão das
“oportunidades de educação democrática”; depressão dos direitos civis e dos
direitos políticos, e compressão política e policial-militar etc.
296
Assim, não houve mudanças essenciais entre os regimes de antes e depois de 1964; na
verdade, a imposição de uma ditadura aberta e explícita possibilitou, num primeiro momento,
a conservação da ordem e, num segundo momento, o aprofundamento da revolução-
293
Idem, p. 233-4
294
REALE, Miguel. Estruturas políticas contemporâneas. Convivium, n. 4, o Paulo, julho-agosto de 1969. p.
244
295
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 42, apud. SORJ,
Bernanrdo; ALMEIDA, Maria Hermínia T. de (orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo:
Brasiliense, 1983. p. 13
296
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 398
- 99 -
restauração. No plano da luta de classes, a burguesia pode rebaixar ainda mais o nível de vida
das classes populares.
No sentido que queremos assinalar aqui - da revolução passiva -, ReDreifuss diz
que o IPES já atuava antes do golpe organizando sindicalistas em torno dos chamados
Movimento Renovador Sindical (MRS) e Movimento Sindical Democrático (MSD) com o
objetivo formar um sindicalismo pelego e conter o movimento da classe trabalhadora,
refinando e complementando as técnicas do Estado Novo
297
. Para destruir o movimento
sindicalista radical, a ditadura se articulou sobre três movimentos básicos: (I) aumentou o
controle direto dos sindicatos, expurgando-os ideológica e politicamente, assim como
nomeando interventores retirados de seu exército de sindicalistas pelegos; isto impediu que a
classe trabalhadora tivesse uma base tanto para atacar, quanto para se defender das políticas
governamentais. (II) Estabelecimento de uma legislação trabalhista que fortalecia os aspectos
corporativistas da estrutura sindical, o que fora herdado dos períodos anteriores da revolução
passiva brasileira. (III) Sob o pretexto do “controle da inflação”, a classe trabalhadora foi
submetida a diversos tipos de poupança forçada, para a transferência compulsória de recursos
para a indústria.
298
Esta movimentação toda permitira o estabelecimento do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço (FGTS) legislação que trouxe grandes perdas aos trabalhadores. Extinguiu as
garantias contra as demissões, uma vez que o trabalhador atingisse dez anos de servo com
um empregador; eliminou diversos programas de assistência aos trabalhadores, que eram
pagos pelos empregadores; eliminou a contribuição estatuária destes para outros programas, o
que reduziu os serviços disponíveis aos trabalhadores. O FGTS foi um grande impacto ao
nível de vida da classe trabalhadora, à medida que reduziu o padrão da sua vida - houve uma
redução absoluta de seus salários. Toda instabilidade criada às classes trabalhadoras, fez com
que hesitassem em reclamar contra o patronato na Justiça do Trabalho.
299
297
Cf. DREIFUSS, René Armand. 1964... p. 460 grifos nossos
298
Idem, p. 461
299
Idem, p. 462
- 100 -
ILUSTRAÇÃO 2 Ilustração representando a
exploração da classe trabalhadora sob o capitalismo.
300
A sindicalização da força de trabalho no setor industrial caiu de 45% para 39% entre
1965 e 1972
301
. A nova política de compressão salarial e de repressão à organizão da classe
trabalhadora intensificou a subordinação e a disciplina do trabalho. O fim da estabilidade no
emprego possibilitou que o empresariado estabelecesse uma intensa rotatividade de mão-de-
obra, que permitiu que as demissões ocorressem antes do dissídio coletivo. Assim, os patrões
puderam contratar pagando sempre menores salários; o que lhes permitiu concentrar mais
renda em suas mãos, no período compreendido entre os anos 60 e 80. Mas o resultado mais
expressivo obtido pela burguesia foi a brutal elevação da produtividade do trabalho; por
exemplo, a grande indústria siderúrgica mineira, Usiminas, ampliou sua produção de 48,5
toneladas homem em 1965 para 121,9 em 1968.
302
300
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. URSS: Edições Progresso, 1987. p. 68
301
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 25, apud.
ERICKSON, Kenneth P. Sindicalismo no processo político no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979. p. 212
302
Idem, p. 25-8, apud. SINGER, Paul. A crise do “milagre”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 81
- 101 -
É este avanço contra-revolucionário sobre a classe trabalhadora que constitui a
essência da revolução passiva. E todo o trabalho intelectual realizado no a.h.f. IBF/Convivium
é a expressão da revolução passiva e das constantes tentativas da burguesia em impor a sua
hegemonia de classe.
Além de Miguel Reale, IBF/Convivium contava ainda com outro intelectual que teve
peso dentro do a.h.f., Adolpho Crippa expomos neste trabalho algumas contribuições de
sua autoria. O diretor da revista Convivium, sacerdote ordenado em Roma, fundou, em 1961,
a “Convívio Sociedade Brasileira de Cultura”. Segundo Delcio Monteiro, esta entidade
organizou cursos de formação para 68 mil alunos, no período do início dos anos 60 ao fim dos
70; além do convênio com 110 universidades das principais capitais brasileiras
303
. Alguns
destes cursos ficaram registrados nas ginas de dois livros publicados: As idéias filosóficas
no Brasil
304
e As idéias políticas no Brasil
305
, coordenados por Crippa, estes compêndios
traziam textos da intelectualidade orgânica do a.h.f. (Paulo Mercadante, Antonio Paim,
Oliveiros S. Ferreira, Ubiratan Borges de Macedo, Vamireh Chacon, João Alfredo de Souza
Montenegro, Nelson Saldanha, Roque Spencer Maciel de Barros, Vicente Barretto, e outros).
Outras duas importantes publicações seriam a obra de Paulo Mercadante, A consciência
conservadora no Brasil (1965), e a de Antonio Paim, História das idéias filosóficas no Brasil
(1967), para as quais dedicaremos os dois últimos capítulos de nosso trabalho.
IBF/Convivium tinham ainda a Agência de Notícias Planalto (PLANA), que fornecia
notícias para até a 1.200 jornais de todo o país, sendo 800 antes do golpe. A PLANA agia
sempre com as baterias assestadas contra o comunismo”
306
. Em 1973, a Convivium tinha
correspondentes em 18 capitais do país. Chegara a promover, no segundo semestre de 1980, o
Seminário Internacional sobre Política e Estratégia, que contou com a “fina flor do
pensamento autoritário mundial, liderada por Ray Cline, antigo diretor da CIA”
307
, e homens
como Ronald Schneider, Nicolas Boer (USP), Oliveiros S. Ferreira (USP), William Perry, o
general colombiano Álvaro Valencia Tovar, Lewis Tambs, os militares brasileiros de alta
patente Ibsen Gusmão Câmara e Nelson Freire Lavanère-Wanderley, Juan Carlos Puing
(Universidade de Caracas), e o brasilianista britânico Wayne A. Selcher
308
. Este Seminário
contou ainda com a contribuição de Roger Fontaine que veio ao Brasil a serviço da
303
Cf. LIMA, Delcio Monteiro de. Os senhores da direita. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1980. p.158
304
CRIPPA, Adolpho (coord.). As idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1978.
305
CRIPPA, Adolpho (coord.). As idéias políticas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1979.
306
LIMA, Delcio Monteiro de. Os senhores da direita... p. 158
307
Idem, p.160
308
Cf. RODRIGUEZ, Ricardo lez. O pensamento estratégico em debate. Convivium, n. 1, São Paulo,
março-abril de 1980. p. 81-3
- 102 -
candidatura de Ronald Reagan, tendo realizado conferências para a Tradição, Família e
Propriedade (TFP); A Convivium sempre teve a preocupação de trazer personalidades da
intelectualidade conservadora, seja nestes eventos, seja em artigos, como Arnold Toynbee e
Solzhenitsyn - a revista sempre reservou um grande espaço às críticas à União Soviética, e a
tônica do citado Seminário era a contenção do “expansionismo” soviético, que teria em Cuba
o “campo de treinamento para elementos radicais”
309
. A revista teve, durante muitos anos,
como seu secretário o integralista Gumercindo Rocha Dórea.
Crippa fundara ainda a União Nacional de Amparo à Pesquisa (UNAP), que
arrecadava dinheiro para as atividades do a.h.f., principalmente entre os empresários de São
Paulo, Rio e Minas
310
.
Desta maneira, vemos que IBF/Convivium possuía todo um trabalho militante que
ultrapassava a “mera” disseminação ideológica nas ginas de seus aparelhos de informação.
Este aparelho de hegemonia filosófico da burguesia possuía uma atividade militante ampla
organizativa/diretiva/educativa que extrapolava a aparência de organização puramente
filosofante que sua intelectualidade disseminava e buscava lhe imprimir. Sua atuação se
igualava a de um partido político, mas com um “nicho”, um campo de batalha mais
específico: o da “filosofia”, da hegemonia filosófica, que, por sua vez, se desdobrava na
formação política, na agência de notícias, na prática organizativa-diretiva-educativa do
aparelho de informação revista Convivium. Mas todo este aparato funcionava em
convergência com o aparelho de Estado ditatorial, conforme já vimos.
Acreditamos que seja importante dedicar mais alguns momentos de nossa atenção ao
que Crippa escreveu na Convivium. A maior parte dos artigos deste autor trata de questões
teológicas, mas descobrimos algo de revelador da sua organicidade intelectual. Crippa era um
divulgador das diversas resoluções oficiais do Vaticano, em seus artigos são constantes as
citações aos concílios, às encíclicas, às reuniões de bispos, às constituições pastorais, etc.
Além da já citada militância, podemos perceber que o diretor da revista Convivium tinha uma
posição conservadora, de apologia ao capitalismo e à Ditadura como o fragmento que se
segue, no qual critica a Teologia da Libertação:
Esses “teólogos” descobriram, em suas misteriosas elucubrações, o velho e
superado Marx. Inútil do ponto de vista econômico, inteiramente errôneo
como filosofia da história, o marxismo acabou sendo definitivamente
superado [...], os “teólogos” latino-americanos oferecem ao mundo essa
309
Cf. RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. Existe um sistema interamericano de defesa? Convivium, n. 3, o
Paulo, maio-junho de 1980. p. 35
310
Cf. LIMA, Delcio Monteiro de. Os senhores da direita...
- 103 -
estranha demonstração de ignorância. [...] Compreende-se como tudo se
torna falsificado nas mãos desses teólogos da libertação latino-americana.
[...] Certamente não chegarão a afirmar que o capitalismo, enquanto sistema
econômico, capaz de realizar o desenvolvimento material da Europa e dos
Estados norte-americanos, não é, em si, apto a realizar o da América Latina.
[...] A chamada libertação econômica é apenas a tradução da luta contra os
Estados Unidos da América do Norte, cujo crime é o de terem chegado antes
e de serem os mais poderosos. [...] Será necessário afirmar que o Brasil [...]
realizou uma façanha que já começa a se impor ao respeito do mundo
inteiro, depois de ter conquistado a adesão plena de todos os brasileiros?
Do ponto de vista econômico e social o pode haver dúvida de que o Brasil
está apresentando o verdadeiro modelo de desenvolvimento para toda a
América latina. [...] o sistema econômico é capitalista; a sociedade
estrutura-se à base da colaboração e solidariedade entre todos e não com
fundamento na luta de classes.
311
Deste modo, Crippa combatia os setores católicos progressistas e reafirmava a sua adesão à
ditadura, que, segundo diz, conquistara a “adesão” dos brasileiros não menciona a que
custo social e quantas vidas custaram e ao capitalismo, que, nesta acepção, se baseia na
“colaboração” e na “solidariedade” se esquece” de mencionar que o capitalismo
aprofundara as mazelas sociais no Brasil. Além de conservadora, a concepção de Crippa é
também reacionária:
No decurso do primeiro ano da Revolução francesa, a 2 de outubro de 1789,
quando a Razão começava a perder o controle sobre quem dela se
proclamava filho legítimo, os representantes o povo francês, constituídos em
Assembléia Nacional, resolveram declarar [os Direitos do Homem] [...].
Em si não nada de novo nessa Declaração dos Direitos. De uma ou de
outra maneira, a consciência moral os reconheceu sempre. [...] Nessa
consciência moral anterior fundaram-se os revolucionários franceses. [...] De
fato, logo a seguir, os jacobinos Danton, Marat, Robespierre não
souberam impor suas idéias senão pelos antigos métodos do terror e do
derramamento de sangue.
312
Em outro trecho, o autor afirma ainda que a modernidade é o “triunfo do profano”, que “feita
pelo homem e para o homem, a sociedade atual apresenta-se como profana”
313
. Assim, Crippa
possui uma visão de mundo não apenas conservadora, mas também reacionária,
principalmente quando vemos que ele corrobora a concepção do mestre do conservadorismo,
ligado à oligarquia inglesa, o católico Edmund Burke (1729-1797), que interpretava a
Revolução Francesa com uma “baixeza” que não trouxe nada de novo, teria sido um
311
CRIPPA, Adolpho. Teologia da libertação. Convivium, n. 2, São Paulo, março-abril de 1971. p. 159-61
312
CRIPPA, Adolpho. A nova problemática dos direitos humanos. Convivium, n. 5, São Paulo, setembro-
outubro de 1973. p. 108-9.
313
Idem, p. 125
- 104 -
exercício vil da violência
314
. Negam o progresso histórico que constituiu a Revolução
Francesa.
* * *
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
[...]
Por esse pão pra comer, por esse chão prá dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir,
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça, que a gente tem que
tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que
cair,
Deus lhe pague Pela mulher carpideira pra nos
louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir,
Deus lhe pague
“Construção, de Chico Buarque de Holanda
Como o leitor percebeu, avançamos década de 1970 adentro. Assim, é necessário
darmos uma olhada no contexto da época. O período compreendido entre 1974 e 1978 é
marcado pela chamada “distensão”
315
da ditadura, que deveria ser “lenta, gradual e segura”,
para que o poder que passara pelo processo de aggiornamento a partir do golpe de 1964 não
314
Cf. BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. 2ª ed. Brasília: Editora UNB, 1997. E
também o verbete BURKE, Edmund in: SILVA, Carlos Francisco Teixeira da; et alii. Dicionário crítico do
pensamento da direita... p. 66-7
315
Distensão significa: afrouxamento, relaxação; mas também prolongamento e continuação.
- 105 -
se esfacelasse. Assim, os setores no poder, como veremos, tentaram encaminhar a coisa toda
dentro dos marcos seguros da revolução passiva, assim a denominada distensão” passava a
ser “controlada”. Relaxar para se perpetuar.
No contexto internacional, a primeira reviravolta dos anos 70 ocorreu em Portugal. Em
abril de 1974, o sistema direitista mais longevo da Europa foi surpreendentemente derrubado
por um golpe de oficiais radicais do exército português
316
. A “Revolução dos Cravos”, como
ficou convencionalmente conhecida, também fizera o império português desabar, e permitiu
às suas colônias conquistar a independência em 1975. O movimento fora, na verdade,
composto pela baixa oficialidade, com apoio popular, contra o generalato colonialista e a
ditadura militar. Segundo Décio Saes a vitória da Revolução desmilitarizou parcialmente o
Estado, com a liquidação da PIDE (a polícia política) e com a reforma compulsória da alta
oficialidade identificada com a ditadura salazarista
317
. Em 1975, com o desagregamento
prévio da ditadura, fora convocada a Assembléia Constituinte num caráter provisório seria
dissolvida após a proclamação da nova Constituição.
IBF/Convivium reagiram prontamente aos acontecimentos em Portugal, seja porque os
intelectuais deste a.h.f. principalmente Mercadante e Reale mantinham laços estreitos com
Portugal, seja porque os últimos acontecimentos no país ibérico poderiam servir de modelo
(indesejado) para a abertura política no Brasil. Paulo Mercadante publicara em 1975 Portugal
ano zero
318
, um estudo sobre a derrubada do regime salazarista. O autor trata de tentar
consolidar dois pontos principais na linha de interpretação do ocorrido: (I) o sistema
econômico português não seria capitalista, seria uma “economia corporativista” remanescente
do período pré-pombalino: “O modelo salazarista dizia-se capitalista, mas sem os
correspondentes mecanismos econômicos. Era um regime forte, impregnado de uma ética
senhorial”
319
. (II) O entendimento de que Salazar teria tolhido o desenvolvimento do
capitalismo que era impedido pelo marxismo; este, por sua vez, (III) teria feito renascer o
“espírito da contra-reforma”, a medida que seria anti-capitalista. Neste sentido, a preocupação
de Mercadante era perceber o que poderia barrar desenvolvimento capitalista de Portugal,
percebe que somente as reivindicações populares poderiam dificultar o processo; a isto
converge a sua crítica ao apoio popular aos militares que haviam deposto o regime vigente em
316
Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos... p. 436-7
317
Cf. SAES, Décio. República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo: Boitempo,
2001. p. 43
318
MERCADANTE, Paulo. Portugal ano zero. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
319
Idem, p. 42-3
- 106 -
Portugal
320
. Assim, Mercadante busca demonstrar quais seriam os pontos de estrangulamento
para o capitalismo, numa transição dum regime autoritário para um de abertura política
como o que o Brasil começara a vivenciar -; define dois: as reivindicações populares e o
marxismo.
No Brasil, durante o início dos anos 70 o regime autocrático ainda dava demonstrações
de força: os sindicatos continuavam sob intervenção, prisões lotadas, aumento do número de
exilados, censura ostensiva à imprensa, greves estavam proibidas. “Mal remunerados,
conseqüentemente mal alimentados, a extenuação dos trabalhadores tornava-se patente”
321
. O
proletariado era acometido por epidemias, como a de meningite de 1974, e também por
acidentes de trabalho; em 1971 a média de acidentes de trabalho registrados por dia útil era de
4.405, em 1977 este número saltou para 5.294. As freqüentes quedas dos operários dos
andaimes das construções inspirou a música “Construção” de Chico Buarque de Holanda, que
o leitor encontra na nossa última epígrafe.
322
Surgiram formas alternativas de organização popular frente à dura realidade de
aumento da exploração do trabalho e diminuição do nível de vida das classes populares. Entre
1974 e 1976, violentos quebra-quebras de trens e ônibus ocorreram no Rio de Janeiro e em
São Paulo. Eram revoltas explosivas e espontâneas contra as ssimas condições dos
transportes coletivos. As reivindicações populares conquistaram a sensibilidade de setores da
imprensa, da Igreja, passaram ser apoiadas pelo movimento estudantil e passaram a fazer
parte das demandas das associações de moradores.
323
Mas a reviravolta começou a esboçar-se quando, no ano de 1977, um levante popular
espontâneo, centrado no Rio de Janeiro, contou com operários que se revoltaram em seus
próprios locais de trabalho. Os mais importantes sindicatos da Grande São Paulo e seus
dirigentes se dispuseram a enfrentar o governo, ainda que na Justiça. Trabalhadores do centro
industrial mais importante do país, o ABC paulista, reuniram-se em torno do “novo
sindicalismo”, que apoiava-se na Oposição Sindical e na Pastoral Operária, que se
organizavam nas comissões de brica. O “novo sindicalismo lutou para recuperar a
autonomia sindical, negociando diretamente com os patrões, sem a tutela estatal. Nos anos de
1978 e 79 o operariado demonstraria força promovendo uma grande e inédita onda de
greves.
324
320
Idem, p. 110-19
321
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 68
322
Idem, p. 68-9
323
Idem, p. 70
324
Idem, p. 71-2
- 107 -
No plano político-partirio, o ano de 1974 ficou marcado pela inesperada vitória da
oposição que se organizava no MDB, graças à adesão das massas populares. Isso transformou
o MDB de oposição consentida” em “oposição escolhida”, abria-se assim a possibilidade de
uma alternativa político-partidária ao governo militar
325
. As vitórias eleitorais de 1974 e 1976,
diz Antonio Carlos Mazzeo, expunha a crise do regime, e mostraram que o processo eleitoral
tinha se transformado em plebiscito e protesto permanente contra governo
326
.
Mas logo o regime ditatorial reagiu e começou a tomar algumas medidas para manter
o processo nos marcos da revolução passiva, tentando encaminhar a abertura de modo lento,
gradual e seguro. Em abril de 1977 foi decretado o fechamento denominado “recesso
temporário” - do Congresso; um “pacote” de medidas foi editado, confirmaram-se as eleições
indiretas para governador e para um terço do Senado, o mandato do presidente passou de
cinco para seis anos. Assim, abertura ficou marcada pelo seu caráter parcial contrariamente
à Portugal, aqui não tivemos a desmilitarização, mesmo parcial, do aparato estatal: “Por certo
a face autoritária do regime não foi alterada”
327
. Em 1979, com a tentativa de desmobilizar a
oposição crescente, e anular o peso negativo que a sigla ARENA carregava, o partido oficial
foi rebatizado, passara a se chamar Partido Democrático Social PDS.
IBF/Convivium participaram ativamente do processo. Em 1979, ocorreu um fato que
ficou marcado na trajetória de IBF/Convivium. A professora do Departamento de Filosofia da
PUC-RJ (este aparelho de hegemonia do Vaticano), ligada ao a.h.f. IBF/Convivium, Anna
Maria Moog Rodrigues, pediu exoneração porque, segundo declarou, a direção do
Departamento teria cortado um texto da autoria de Miguel Reale da coletânea de textos para a
disciplina História do Pensamento
328
. Já o diretor do Departamento de Filosofia se defendeu
dizendo que a professora faltou à reunião que a colegiado teria proposto e aprovado a
exclusão do texto de Reale devido às atividades polêmicas e controvertidas de Reale e se
defendia: “Estranha democracia universitária você defende: os responsáveis pela direção do
departamento não tem o direito de propor, as propostas debatidas e aprovadas não devem ser
aceitas e a discussão dos problemas deve ser substituída pela denúncia às autoridades”
329
. A
intelectualidade do IBF/Convivium entrou ferozmente na briga. Antonio Paim, que também
era professor do mesmo departamento desde 1971, pediu desligamento e dissera:
325
Idem, p. 73-5
326
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia Inacabada... p. 162-4
327
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 76
328
PAIM, Antonio (org.). Liberdade acadêmica e opção totalitária: um debate memorável. Rio de Janeiro:
Artenova, 1979.
329
Idem, p. 15
- 108 -
[...] a chefia do Departamento se dá conta de que a sua bandeira inquisitorial
não pode aparecer à luz do dia, [...] optou por acusar o prof. Reale de ter
promovido, no exercício da Reitoria da Universidade de São Paulo, a
perseguição a professores, o que corresponde à calúnia inominável. O
professor Miguel Reale, em toda a sua vida acadêmica e não apenas nos dois
períodos em que assumiu as funções de Reitor, sempre defendeu a
autonomia universitária e a manutenção da divergência no plano próprio das
idéias. O Instituto Brasileiro de Filosofia, que o professor Reale fundou e
dirige 30 anos, reúne pensadores de todas as tendências existentes no
país, sendo o exemplo mais significativo do ambiente de tolerância que cria
a sua volta. [...]
O terrorismo cultural implantado no Departamento de Filosofia da PUC-RJ
tem muito a ver com a ptica de ações terroristas no cenário político
brasileiro, em passado recente.
330
Interessante notar que Paim falsifica a história, nega toda a atividade de Reale como cão da
ditadura enquanto ocupou a reitoria da USP. E ainda proclama que no IBF haveria pensadores
de todas as tendências.
IBF/Convivium lançou diversos artigos nos aparelhos de informação da burguesia
atacando a direção do Departamento de Filosofia. Creusa Capalbo, uma das intelectuais mais
importantes do a.h.f., disse que o ocorrido era um exemplo de “intolerância acadêmica” e
“que o diretor de Departamento de uma universidade não tem o direito a veto de um texto por
motivos ideológicos. [...] O fenômeno que se manifestou foi o cerceamento da liberdade
acadêmica”
331
. A reitoria, por sua vez, disse que repudia a campanha desencadeada através
da imprensa contra a PUC-RJ, campanha esta, que, sob o pretexto de defender a liberdade
acadêmica, denuncia indiscriminadamente [...], instaurando um clima de delação e
intimidação no meio universitário [...]”
332
. A agressão de IBF/Convivium que encheu diversas
páginas de aparelhos informativos da burguesia (Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de São
Paulo, Folha de São Paulo) é, por um lado, o indicativo do poderio do a.h.f. e, por outro, do
peso que possuía enquanto ferramenta na luta de classes ainda que este embate tenha
ocorrido entre frações de classe. Esta briga entre PUC e IBF/Convivium não era senão
expressão de fissuras existentes no interior das classes dominantes. O ataque de
IBF/Convivium era motivado pela crescente adesão de setores católicos à luta pela abertura e
mesmo às causas populares, o a.h.f. os acusaria de adesão ao que chamavam de “socialismo
totalitário”
333
.
330
Idem, p. 17-8
331
Idem, p. 87-8
332
Idem, p. 21
333
Cf. PAIM, Antonio (org.). Liberdade acadêmica e opção totalitária... Introdução.
- 109 -
No fim da década de 70, na América Latina incontestável área de influência e
domínio de Washington passaram a ocorrer algumas transformações, sendo a mais
importante a Revolução da Nicarágua (1979), além de outros movimentos, que se não foram
vitoriosos, alcançaram maior sucesso do que na década anterior, entre eles a guerrilha em El
Salvador. Nesta inclinação à esquerda, diz Eric Hobsbawm, surgiram novos personagens que
passaram a atuar ao lado das causas populares, era a “teologia da libertação”: padres católico-
marxistas, que apoiaram, e até participaram e lideraram, insurreições
334
. A revista Convivium,
atenta ao que acontecia no mundo, passara a atacar as personalidades brasileiras ligadas à
corrente católica de esquerda. Adolpho Crippa diz que “não uma filosofia para os ricos e
uma filosofia para os pobres, [...] Dizer que pode ou deve haver uma ciência e uma teologia
comprometidas com os ricos e poderosos e outra com os pobres e fracos, parece-me
inqualificável absurdo”
335
. Convivium combatia assim os setores da Igreja que rumavam à
esquerda
Convivium publicou um minucioso estudo de Ricardo Vélez Rodrigues sobre a
teologia da libertão; e posteriormente publicaria um livro do mesmo autor sobre o assunto
(Teologia da libertação: redenção ou despotismo). Com a mesma tônica de Crippa, Vélez
Rodrigues diz que tendência de esquerda entre setores católicos é nada mais que um
“clericalismo a serviço dos interesses católicos
336
. O aparelho de informação denuncia as
articulações da teologia da libertação na América Latina, relaciona todas as organizações
católicas que se inclinavam à esquerda (Movimento Internacional de Intelectuais Católicos,
Juventude Universitária Calica, Juventude Estudantil Católica, Juventude Operária
Católica)
337
, e nomeava o intelectual católico brasileiro Henrique de Lima Vaz como o
articulador da teologia da libertação no Brasil. Rodrigues busca implicar a tendência como
uma articulação da URSS na América Latina. Segundo o autor, após a crise dos mísseis de
1962, a União Soviética esboçou uma nova estratégia de penetração na América Latina: a
teologia da libertação é o elemento subversivo por excelência, [...] O projeto libertador que
acalenta a teologia da libertação, e que pretende erigir como tradição sagrada a luta
revolucionária, vem ao encontro direto de outra tendência que, originada na Rússia soviética,
faz da luta revolucionária e do modelo totalitário por ela imposto, uma religião cujas
334
Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos... p. 438-9
335
CRIPPA, Adolpho. A teologia comprometida. Convivivum, n. 3, São Paulo, maio-junho de 1981. p. 222-3
336
RODRIGUES, Ricardo Vélez. Teologia da libertação e tradição despótica. Convivivum, n. 1, São Paulo,
janeiro-fevereiro de 1982. p. 17
337
Cf. Idem, p. 17
- 110 -
divindades são os arautos que apregoam a nova fórmula salvadora”
338
. Desta maneira,
aparelho de informação cumpria com as tarefas para qual fora criado: por um lado, informar,
tornar conhecidas as articulações da teologia da libertação e, por outro lado, combater na luta
de classes os inimigos de classe. Ambas tarefas partidárias são organicamente convergentes
no IBF/Convivium, enquanto a.h.f.
Neste período, a revista passa a divulgar mais sistematicamente os estudos elaborados
por seus membros nos períodos anteriores, notadamente as teses desenvolvidas por Antonio
Paim - que veremos no último capítulo. Assim, os intelectuais de IBF/Convivium, Vélez
Rodrigues e Nelson Saldanha, passaram a produzir artigos para disseminar a formulação
teórica deste a.h.f.; é o que podemos depreender dos inúmeros artigos dedicados à temática do
denominado “pensamento brasileiro” e assuntos afins, a partir de 1978
339
. No início dos anos
1980, a revista também passou a ser grande divulgadora do liberalismo, principalmente da
obra do ideólogo John Locke (1632-1704).
Como vimos anteriormente, a autocracia burguesa criou o Partido Democrático Social;
de nossa perspectiva, constituiu mais uma ação para tentar concretizar um novo
aggiornamento visando dar manutenção à revolução passiva. O a.h.f. IBF/Convivium não se
furtou de mais essa tarefa. Antonio Paim, em artigo publicado em 1981, busca definir os
marcos políticos da chamada “democracia social”. Segundo ele, a democracia social se define
tanto por um juste milieu - entre o keynesianismo e “totalitarismo soviético” -, quanto pelo
neoconservadorismo”, que, em sua concepção, é o resgate dos teóricos clássicos do
liberalismo
340
. No mundo da produção, diz Paim, a democracia social” consolidaria a “co-
gestão” das empresas, que colocaria em primeiro plano os interesses comuns aos patrões e
empregados em relação à atividade produtiva”
341
. Assim, IBF/Convivium reaviva o velho
projeto revolucionário-restaurador que já havia proposto anteriormente o da criação da
“comunidade de empresa”. Mas Paim, cauteloso, diz que é importante que o voto nestas
“comunidades de empresa” tenham um presidente “eleito pelo patrões
342
- lhe cabendo o
voto de Minerva nas questões controversas entre as classes - e que a entre os representantes
dos operários figure “obrigatoriamente” um quadro da burguesia. Assim, o a.h.f. traz a
proposta na qual os operários participam da administração da empresa, fazendo-os co-
338
Idem, p. 18-9
339
Cf. Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Índice da revista Convivium (1962-1987).
Salvador: CDPB, 1989. p. 101-03
340
PAIM, Antonio. A democracia social em face das correntes políticas contemporâneas. Convivivum, n. 6,
São Paulo, novembro-dezembro de 1981. p. 433-5
341
Idem, p. 438-9
342
Idem, p. 438
- 111 -
gestores da própria exploração; nesta “co-gestão” os patrões jamais perderiam a direção do
processo decisório, pois lhes seria assegurado o voto de qualidade, com veto nas questões
mais antagônicas.
Antonio Paim, enquanto intelectual orgânico da burguesia e quadro do a.h.f.
IBF/Convivium, enquanto homem que saiu do PCB num processo de transformismo, também
não se furta de tentar estabelecer um rumo a ser seguido pela esquerda aqui trataremos
especificamente do PCB.
Nos anos 70, o então ilegal Partido Comunista se organizou dentro do MDB, e passou
a implementar uma política de unidade ampla com os setores democráticos e progressistas”
visando combater a ditadura. O PC acabou por priorizar a luta genérica pela democracia,
sem procurar centrar esta luta nas movimentações dos trabalhadores, também se
encontravam descolados do movimento operário-popular”
343
. Segundo Antonio Carlos
Mazzeo, o PCB fora cooptado pela Frente Nacional de Redemocratização, criada em 1978; o
partido deu amplo apoio à Frente, e acabou fortalecendo a tática da transição pactuada, pelo
alto. Por um lado esta política conduziu à diluição da esquerda organizada no MDB, por
outro, esta lógica subordinaria o movimento operário à ação institucional: no momento em
que o MDB avançava, justamente porque impulsionado pelo movimento operário-popular,
[...] o PCB assumia uma postura conciliadora ao participar da articulação „pelo alto‟, [...]
contribuindo objetivamente para o desmantelamento do núcleo democrático popular do MDB
e para a rearticulação da hegemonia burguesa”
344
. Assim, essa política era expressão de um
PC que não lograra romper com a revolução-passiva, que, mais uma vez, havia sido
“embolsado” pela burguesia. Esta era a corrente majoritária dentro do PCB.
Os chamados “eurocomunistas”, ainda que representassem uma corrente minoritária
dentro do PCB, o rompiam em essência com este PC comprometido, antes de tudo, com a
democracia burguesa. A maior expressão intelectual do eurocomunismo é a obra de Carlos
Nelson Coutinho, A democracia como valor universal
345
. O autor, que permaneceu no PCB
até início dos anos 1980, define a democracia como um “valor historicamente universal”
346
.
Nesta acepção, a democracia poderia trazer uma “progressiva socialização dos meios de
343
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia Inacabada... p. 161 grifos do autor
344
Idem, p. 166
345
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal: notas sobre a questão democrática no
Brasil. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1980.
346
Idem, p. 20
- 112 -
governar”
347
, o que, por sua vez, levaria ao socialismo. O trecho a seguir clarifica a concepção
de Coutinho:
[...] o socialismo não elimina apenas a apropriação privada dos frutos do
trabalho coletivo; elimina também ou deve eliminar a apropriação
privada dos mecanismos de dominação e de direção da sociedade em seu
conjunto. [...] essa reapropriação se tornará possível por meio de uma
articulação entre os organismos populares de democracia de base e os
mecanismos “tradicionais” de representação indireta (como os parlamentos).
[...]
A idéia dessa articulação entre democracia representativa e democracia
direta faz parte do patrimônio teórico do marxismo. Assim, em 1919, o
austromarxista Max Adler [...] propunha no processo de transição ao
socialismo uma interação entre o parlamento e os conselhos operários, o
que o colocava na época numa posição intemediária entre o bolchevismo e a
social-democracia de inspiração kautskyana.
348
Assim, Coutinho propunha a que o socialismo poderia ser alcançado pela democracia
progressiva”, ou seja, a luta democrática, e por sua radicalização colocava-se no primeiro
plano da luta de classes, como tica para a constituição do autogoverno dos produtores
associados”
349
. Interessante notar que ele apresenta esta alternativa como o juste milieu entre
o bolchevismo” e a social-democracia de Kautsky. Coutinho incorporara tão bem a
revolução passiva que chegou mesmo a agradar nada mais, nada menos que o a.h.f.
IBF/Convivium.
Num primeiro momento, Antonio Paim questiona: como fica o sr. Carlos Nelson
Coutinho autor do livro A democracia como valor universal, São Paulo, 1980 [...] que
aparentemente reconhecia o erro da crítica comunista aos chamados depreciativamente
“aspectos formais” (pluralidade partidária, direito de voto, autonomia do parlamento,
etc.)?
350
Para em seguida responder: Os liberais brasileiros apreciaram deveras a
constituição de um partido comprometido com o socialismo democrático. [...] no Brasil teria
uma papel importante a desempenhar, num debate esclarecedor acerca das alternativas de
organização social para o nosso país
351
. Mas não era só Paim que simpatizava com a
“democracia-valor universal”. Coutinho já havia expressado no seu famoso livro a sua adesão
à interpretação de Paim e Mercadante ao chamado pensamento brasileiro” - rende elogio a
347
Idem, p. 27
348
Idem, p. 27-8
349
Idem, p. 29 grifos nossos e do autor
350
PAIM, Antonio. Teoria e prática da esquerda. Convivium, São Paulo, n. 2, março-abril de 1982. p. 132
grifos nossos
351
Idem, p. 135 - grifos nossos
- 113 -
Mercadante, aceita a sua tese da “conciliação” que veremos no próximo capítulo
352
. Vemos
assim, que IBF/Convivium ocupavam lugar de destaque entre as forças da revolução passiva
no Brasil, num primeiro momento por ter cooptado Paim e Mercadante o transformismo
nos anos 1950 e, posteriormente, por impor-se a intelectuais da esquerda brasileira, aqui
especificamente Carlos Nelson Coutinho.
A partir de 1982, IBF/ Convivium reforçara a sua organização com a criação do
Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Localizado em Salvador, o
CDPB contara com amplo apoio da burguesia, seja através dos financiamentos de empresas
como a Companhia Petroquímica do Nordeste S.A. (COPENE), a Petroquímica da Bahia, o
Banco da Bahia Investimento, a Citrosuco do multinacional Grupo Fischer, e do Banco de
Tókio; seja através dos financiamentos estatais obtidos através da Secretaria de Indústria e
Comércio da Bahia, da Empresa de Turismo da Bahia (Bahiatursa) e da Prefeitura de
Salvador
353
. Neste mesmo ano, IBF/Convivium lançaram o Curso de introdução ao
pensamento político brasileiro
354
, composto por 7 apostilas, que totalizam 14 aulas.
Amplamente difundido, teve financiamento do Estado, obtido através da Universidade de
Brasília.
Ameados dos anos 1980, o regime tentava limitar o processo de abertura política a
uma descompressão tutelada. No entanto, este projeto dos militares, fragilizava-se devido às
profundas divisões existentes entre setores da caserna. Os atos terroristas dos anos 1980-81,
principalmente o do Riocentro (1º de maio de 1981), demonstravam a profundidade destas
divergências; a própria equipe responsável pelo processo de abertura acabou desfigurada, o
general Golbery do Couto e Silva fora afastado. As eleições de 1982 para governador dos
estados da federação representaram o fim do projeto tutelado pelos militares, pois as
oposições conquistaram a maioria dos executivos estaduais. No entanto, a transição
permaneceu “altamente negociada”
355
. Neste sentido, a campanha das Diretas-Já, iniciada em
1983, formava uma heterogênea oposição, formada pelos partidos PMDB, PDT, PT -,
intelectuais, artistas e diversas associações como OAB, ABI, CNBB. A democracia se
impôs como reivindicação obrigatória na agenda da transição.
356
352
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal... p. 75-6
353
Cf. Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Índice da revista Convivium (1962-1987).
Salvador: CDPB, 1989. p. 02
354
PAIM, Antonio (org.). Curso de introdução ao pensamento político brasileiro. Brasília: Editora da UNB,
1982.
355
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente... p. 87
356
Idem, p. 88
- 114 -
Neste quadro, a burguesia acumulava uma importante vitória conquistada no
período de 1978-81. O movimento reivindicatório operário e da classe média (professores,
funcionários públicos, etc.) não lograra destruir o sindicalismo de Estado; manteve-se intacto
o mecanismo estatal de corporativização e, conseqüentemente, sua “importância como
instrumento estatal de moldagem, indução ou intervenção na prática das classes
trabalhadoras”
357
. Assim, os agentes da revolução passiva brasileira mantinham um
importante instrumento herdado ainda da Era Vargas - de contenção do proletariado.
Segundo Décio Saes, os sindicatos continuavam politicamente controlados pelo Estado, ainda
que em última instância. Isto constituía uma importante vitória da burguesia para manter o
controle sobre o processo de abertura política.
IBF/Convivium promovia uma campanha contra as organizações da classe
trabalhadora, sem deixar de lado o seu campo de lutas privilegiado (a Universidade):
Os brasileiros assistimos estarrecidos, há alguns dias, ao mais claro exemplo
de autoritarismo sobre os meios de comunicação: os penosos sessenta
minutos de transmissão compulsória de propaganda político-partidária do
PT, [...] os afoitos petistas [...] só têm para oferecer sonhos, [...].
[...] [O] absoluto desconhecimento dos petistas acerca da realidade política
do país, [...] em que tomam assento professores universitários alguns muito
bem remunerados como a professora Marilena Cha -, líderes da oligarquia
sindical que pretende dirigir os operário metalúrgicos e petroleiros,
sindicalistas rurais, economistas, artistas de TV, sociólogos, etc. Constituída
em vanguarda do operariado, essa variada elite se sente a representante
natural dos trabalhadores brasileiros [...].
Depois de reduzir simploriamente a representação, vem uma outra flor da
plataforma petista: a realidade do Brasil e do mundo explica-se pela eterna
oposição contraditória entre opressores e oprimidos. Os opressores seriam o
capitalismo nacional e o transnacional, identificado esse último com o Fundo
Monetário Internacional. Os oprimidos, todos os trabalhadores. [...] Não
pronunciam nenhum palavra de censura contra o arbítrio decorrente de
uma legislação autoritária que lhes favorecia com a requisição compulsória
dos meios de comunicação. Nem lhes passou um momento pela cabeça a
idéia de que tal expediente constitui uma declarada opressão, de inspiração
autocrática, do Estado sobre as Empresas de comunicação, como salientou
oportunamente a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV.
358
Assim a Convivium passava a implementar uma campanha contra as organizações da classe
trabalhadora, seja ao PT, seja aos novos sindicalistas, seja aos intelectuais orgânicos do
proletariado. Interessante notar que, a democracia tendo sido imposta aos rumos do país, o
a.h.f. faz uma viragem ideológica: passa a criticar o autoritarismo, a autocracia. De aparelho
357
SAES, Décio. República do capital... p. 66
358
RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. O pesadelo do PT. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de 1983. p. 292
grifos nossos
- 115 -
de hegemonia da autocracia, a revista Convivium acompanha os últimos acontecimentos e
passa combater como “força democrática” e passa, inclusive, a tentar impor um rumo à futura
Assembléia Nacional Constituinte, que, nesta acepção, deveria ser o Símbolo da ruptura
pacífica com o passado; símbolo da conciliação nacional
359
.
Como vimos anteriormente, a revolução passiva se expressa também nas
interpretações teóricas elaboradas pelos intelectuais orgânicos da revolução-restauração.
Neste sentido, Paulo Mercadante tenta consolidar a seguinte visão historiográfica da história
recente do país (1964-1985):
Em primeiro lugar, houve um gradualismo nas medidas. Depois, sentiu-se o
caráter moderado delas. À culminância do autoritarismo, atingida durante a
aplicação do Ato Institucional 5, opôs um programa de reversão, lento e
cauteloso, cujas etapas constituíram o chamado processo de abertura
democrática.
Os anos oitenta tiveram começo com a Nação apaziguada, [...] A
moderação, como constante, fez-se outra vez prevalecente. [...]
Eliminava-se a alternativa revolucionária, apesar dos movimentos populares
pelas “diretas-já” [...].
A unidade do País foi uma obra da tolerância. Todos cederam e nesse
exercício especializaram-se os políticos, firmados numa ética de
responsabilidade. Quando as foas impacientes revelaram-se ativas ou
provocaram o receio de rupturas no processo econômico e social, segmentos
conservadores e liberais rebelaram-se contra o Executivo [...]. Não duvidem
as gerações de hoje de que os fatos se repetirão caso os erros de avaliações
de força se repitam.
O equilíbrio é indispensável e as reformas, quaisquer que sejam, devem ser
orientadas no sentido da moderação e do gradualismo.
360
Mercadante busca construir a visão de que a ditadura fora constituída por medidas
“moderadas e graduais”, com um breve intervalo na moderação quando do AI-5; em sua
concepção a ditadura teria sido marcada pela “tolerância”, o golpe, seria uma mera” revolta
contra a “impaciência” das tentativas de ruptura. Por fim, Mercadante prega a moderação e o
gradualismo, após já ameaçar com a possibilidade de um novo golpe de Estado.
* * *
Chegamos assim ao fim de nosso recorte proposto. Gostaríamos de brevemente
sublinhar que IBF/Convivium, por sua práxis diretiva-organizativa-educativa, coadunadora de
359
Convivium. Apresentação. Convivium, n. 4, o Paulo, julho-agosto de 1985. p. 280 grifos nossos
360
MERCADANTE, Paulo. Por uma constituição genuína. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de 1985. p.
307-11 grifos nossos
- 116 -
sua classe social, por diversos momentos se confundia coincidia com um partido político
(na acepção de Antonio Gramsci). IBF/Convivium foi, definitivamente, peça fundamental
instrumento indispensável - da burguesia para luta de classes; principalmente no período
compreendido entre 1964 e 1985. Maleável, em determinados momentos assumira uma
máscara mais academicista, em outros momentos saíra para o embate aberto contra os
inimigos da burguesia sempre se adequando ao constante aggiornare carcterístico da
revolução passiva.
3. ANTONIO PAIM: DE MILITANTE DO PCB A INTELECTUAL ORGÂNICO DA
BURGUESIA
Toda geração socialista encontrará o seu Kronstadt. [...] O Kronstadt de
minha geração foi o relatório Kruschev, apresentado ao XX Congresso do
Partido Soviético, em que denuncia a repressão efetivada contra os próprios
comunistas. Sua repercussão no Brasil foi registrada no magnífico
depoimento de Osvaldo Peralva em O Retrato.
Antonio Paim
Antonio Ferreira Paim nasceu na Bahia, em 1927. Antes de completar 30 anos de
idade, foi membro do PCB - secretário do periódico pecebista Imprensa Popular -, cursou
filosofia na Universidade Lomonosov, na Moscou soviética. Segundo relata seu irmão
Gilberto Paim
361
, foi em sua estada naquele país que se desapontou com o comunismo, pois,
entre outras coisas, teve problemas em trazer sua noiva para o Brasil, e “passou a cultivar
desprezo atroz ao chamado socialismo real”
362
. Mas a desilusão definitiva teria ocorrido com
o relario Kruschev, em 1956, momento em que deixa o PCB com um grupo, entre os quais
Paulo Mercadante.
Paim graduou-se ainda, no Rio de Janeiro, em engenharia e filosofia. Após a saída do
PC, aproximou-se de Miguel Reale. No IBF desenvolveu sua obra mais importante: História
das idéias filosóficas no Brasil
363
- originalmente publicada em 1967, mas com sucessivos
acréscimos e reedições, tendo sua versão final 30 anos depois, em 1997. Na capital
fluminense iniciou carreira universitária como professor auxiliar da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, desde 1971 foi professor titular do Departamento de Filosofia da PUC-RJ, e
361
cf. PAIM, Gilberto. Antonio Paim, pelo seu iro Gilberto. IN: PROTA, Leonardo (org.). Anais do
encontro de professores e pesquisadores da filosofia brasileira. Londrina: Ed. UEL; CEFIL, 1996. p.189-91
362
Idem, p.190
363
PAIM, A. História das idéias filosóficas no Brasil. 3ªed. São Paulo: Editora Convívio, 1984.
- 117 -
titular da Universidade Gama Filho (UGF). Aposentou-se em 1989. Na PUC organizou e
coordenou um mestrado voltado ao estudo do “pensamento brasileiro”, na UGF um programa
de pós-graduação em “pensamento luso-brasileiro” desenvolvendo trabalhos também em
Portugal
364
. Em 1982, criou o CDPB, na cidade de Salvador. Além do já citado IBF, participa
de diversas entidades: Academia Brasileira de Filosofia, Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), Academia de Ciências de Lisboa, Instituto de Filosofia Luso-Brasileira
(Lisboa), é assessor da presidência do Democratas (anteriormente denominado Partido da
Frente Liberal PFL), membro da diretoria nacional do Instituto Tancredo Neves (ITN)
fundado em 1985, que, por sua vez, “atua em sintonia com os quadros dirigentes do Partido da
Frente Liberal, buscando consolidar as diretrizes e doutrinas do PFL, além do fortalecimento
do Partido no cenário político brasileiro”
365
. É organizador do Curso de introdução ao
pensamento político brasileiro
366
, material de formação/educação. Desde os anos 50 integra
a consultoria brasileira onde teve a oportunidade de participar de importantes projetos
relacionados ao setor de transportes, ao desenvolvimento regional, à economia agcola e à
educação e recursos humanos, além de prestar assessoria a diversos órgãos oficiais, entre estes
BNDES, FINEP, Governo do Estado da Bahia, Ministério da Aeronáutica e Ministério da
Agricultura
367
.
Antonio Paim é autor de vasta obra dedicada principalmente à denominada “história
das idéias” no Brasil. Aqui nos dedicaremos em expor sua concepção de história das idéias,
que está sistematizada de forma mais acabada na História das idéias filosóficas no Brasil
(originalmente publicada em 1967), e complementaremos a exposição com outras obras de
modo a aprofundar e clarificar. As questões de ordem biográfica do autor, o leitor encontrará
no último capítulo; mas esta separação é apenas didática. A trajetória de vida de Paim envolve
seu percurso intelectual, e este, por sua vez, engloba tanto suas obras quanto sua
movimentação potico-social. Neste capítulo, trataremos especificamente de sua produção
bibliográfica.
Antes de nos determos em Paim, é importante falar da contribuição de Miguel Reale,
que é o intelectual que iniciou a organização da denominada “escola culturalista” e que
elaborou alguns princípios norteadores dos culturalistas. Reale escreveu em 1959 a obra
364
Informações colhidas em RODRIGUEZ, Vélez Ricardo. Antonio Paim: vida, obra, pensamento. IN:
www.ensayistas.org/filosofos/brasil/paim/paim.htm - consultado em maio de 2007.
365
www.itn.org.br/origem.asp - consultado em 03/09/2007.
366
PAIM, A. Curso de introdução ao pensamento político brasileiro. Brasília: Editora da UNB, 1982. 7
volumes.
367
RODRIGUEZ, Vélez Ricardo. Op. cit. sem página
- 118 -
Filosofia em São Paulo
368
, na qual dizia dar “preferência a momentos ou contribuições que
não têm sido objeto de análise por parte dos historiadores de nossas idéias”
369
. No capítulo
Momentos olvidados do pensamento brasileiro, o autor delineará alguns aspectos da “história
das idéias” no Brasil que, em sua conceão, se constituem problemáticos e que devem ser
evitados. Um deles seria formado por duas questões: (I) ainfluência do meio social
370
- que
pode levar a “decairmos” para uma pura apreciação de caráter histórico-sociológico
371
-, e
(II) a “influência das doutrinas como tais
372
o autor fala aqui das doutrinas estrangeiras que
chegam ao Brasil e passam a ser aqui meditadas, e, neste sentido, diz o seguinte:
Se, no entanto tivemos o mérito de nos colocarmos humildemente na posição
de discípulos, talvez seja tempo de irmos vencendo certa timidez que nos
tem tolhido o caminho da meditação autônoma, uma espécie de complexo de
inferioridade que nos leva a repetir o pensado alhures, sem a necessária
tentativa de uma elaboração pessoal dos problemas, em consonância com as
nossas circunstâncias hisrico-sociais e, sobretudo, atendendo à nossa
intransferível condição de homens atraídos pelos valores da verdade, do
belo, do justo e do santo.
373
Percebemos então que o autor vê a necessidade de uma “meditação autônoma”, e do acerto de
contas com as circunstâncias histórico-sociais anteriormente tratadas como uma questão
que nos faz “decair”, como algo problemático realmente -, e, no meio do caminho, talvez a
solução: uma “elaboração pessoal dos problemas”. Mas o que significa esta última?
Miguel Reale diz que na recepção das idéias, estas sofrem às vezes por aqui
“deformações dotadas de significado especial nos horizontes de nossa cultura”
374
; e que isso
torna suscetível a configuração de um “processo nacional de idéias”
375
. E, prossegue o autor,
o que faltaria para estabelecer esse processo é a “ausência de uma genética”, de uma “seriação
nas idéias”, de forma que “não temos tradições intelectuais”
376
. E isso é conseqüência, para
ele, da existência de “certos momentos ainda obscuros ou pouco elucidados do pensamento
nacional, [...] há, em suma, momentos olvidados, mas nem por isso menos decisivos,
correspondentes a „elos‟, a „derivações‟ ou a „constantes‟ na história de nossas idéias”
377
.
Entendemos assim que Reale tinha, nos anos 1950, a preocupação de estabelecer a
368
REALE, Miguel. Filosofia em São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962.
369
Idem, p.07
370
Idem, p.09
371
Idem, p.09
372
Idem, p.09
373
Idem, p.10 [grifos nossos]
374
Idem, p.11
375
Idem, p.11
376
Idem, p.12 citando a obra de Silvio Romero Filosofia no Brasil (1878)
377
Idem, p.14 [grifos do autor]
- 119 -
continuidade explicitada nos termos elos, derivações e constantes - entre os diversos
pensadores de forma que permitisse a construção de uma (ou mais) tradão intelectual
nacional. Mas que tradição seria essa? Que lugar ocuparia Reale e seus colaboradores diante
dela?
Reale diria que, para atingir tal objetivo, deve-se evitar a “filosofia em mangas de
camisa”
378
, ou seja, através de uma análise serena”, escrever sobre os autores; evitando a
“crítica externa”, que se caracterizaria pela tomada de posição, por escrever pró ou contra
determinada obra. Ou seja, para ele deve-se evitar o posicionamento, o combate de idéias.
Quais são as implicações deste “método”, desta forma de estudar? Tentaremos responder as
questões que formulamos aqui e no parágrafo anterior no decorrer do trabalho.
No breve texto Momentos olvidados do pensamento brasileiro, Reale investe ainda
numa “visão panorâmica das idéias filosóficas no Brasil”
379
, ou seja, expor aquilo que, em sua
concepção, se destaca, que mais reluz. E, na história do Brasil, o autor escolhe o Império
(1822-1889) - lança:
A reconstituição histórica da época de D. João VI e do primeiro Império,
especialmente graças a penetrantes e conhecidas biografias, revela bem a
instabilidade dos fatores políticos-sociais então em conflito. Importa, porém,
dar maior atenção ao movimento das idéias, ao jogo ou ao contraste entre as
tendências filosóficas então em voga [...].
380
Vemos assim que o problema das questões históricas começa a ser encaminhado pelo
autor: para ele interessa antes atentar para a questão das iias; ou seja, Reale separa o
“movimento das idéias” e as “tendências filosóficas” dos “fatores político-sociais”, operando
uma separação entre pensamento e história.
Nesta época privilegiada pelo autor, nesta sua “visão ampla”, perpassam
personalidades que deram impulso à filosofia no Brasil tais como: José Bonifácio, que era
homem que desprezava os sonhadores de uma transformação social mais profunda”
381
,
lembra Reale; Silvestre Pinheiro Ferreira, “talvez a figura mais expressiva da cultura
portuguesa nas primeiras cadas do século XIX [...]”
382
, responsável pelas primeiras edições
da Imprensa gia, e, como veremos posteriormente, grande difusor do ecletismo; José da
Silva Lisboa - o Visconde de Cairu - responsável pela tradução de extratos da obra de
378
Idem, p.14
379
Idem, p. 25
380
Idem, p. 18
381
Idem, p. 18
382
Idem, p. 19
- 120 -
Edmund Burke
383
; o padre Diogo Antonio Feijó, que estudou Kant, é destacado por Reale por
tentar conciliar certos ensinamentos da Filosofia crítica com as verdades tradicionais”
384
.
Além destes personagens, Reale destaca ainda o impulso dado à filosofia pelas faculdades de
direito de Olinda, São Paulo nesta última houve estudos a respeito de Krause que
“encantava pela aparente conciliação das doutrinas
385
e, posteriormente, Recife onde em
torno de Tobias Barreto se formou a chamada Escola do Recife, de qual a escola culturalista
se reconhece como herdeira. Mas as contribuições destes homens à filosofia devem ser
entendidas, de acordo com Reale, sob o peso de uma inclinação constante de nosso
pensamento para as soluções ecléticas, as combinações vistosas de teorias”
386
. Mas Reale
aprofunda sua visão e, para além dessa “propensão inalterável”, avalia o papel do ecletismo,
que teria sido “entre nós, acima de tudo, um ato de conciliação ou de compromisso, suscetível
de gerar a paz interior nas consciências, e, ao mesmo tempo, um acordo sobre os pontos
essenciais de uma cosmovisão tranqüila e harmônica [...]”
387
.
Vemos assim que Miguel Reale salienta sempre a conciliação - seja de doutrinas, seja
de “verdades tradicionais” com o que chama de filosofia crítica” e estas são entendidas
pelo autor numa tendência do pensamento nacional que, em sua opinião, inclina-se às
“soluções ecléticas” e, de propensão a sistema filosófico, chega ao ecletismo que teria mesmo
se materializado em atos conciliatórios e compromissados de forma que, pode-se dizer, o
autor coloca pensamento filosófico acima da história. Cabe ainda dizer que, a meio caminho,
entre o ecletismo e a sua tendência (ou vice-versa), Reale encontra lugar para um certo
“kantismo” e mostra-se menos preocupado com o fato de no Império o pensamento do
filósofo de Königsberg ter sido conhecido” por obras de divulgação, da autoria de terceiros,
e mais interessado com a questão do estabelecimento da tradição como veremos
posteriormente.
O leitor poderá ver que muitas das questões colocadas e caminhos abertos por Reale
foram retomados por Antonio Paim, da mesma forma que por Paulo Mercadante. Adiante
tentaremos mostrar como Paim investe em muitas das questões colocadas pelo autor de
Momentos Olvidados do Pensamento Brasileiro, e tenta aprofundá-las. Se, por um lado, Reale
383
E. Burke ficou postumamente conhecido pela sua crítica à Revolução Francesa (1789) e seu impulso ao
surgimento de um “pensamento Conservador autônomo”. Cf. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da (org.), et alii.
Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ:
Mauad, 2000. p. 66
384
Idem, p. 23
385
REALE, Miguel. Filosofia em São Paulo (...), p.29
386
Idem, p. 21 [grifos nossos]
387
Idem, p. 25 [grifos nossos]
- 121 -
e Paim dizem estar resgatando momentos esquecidos da filosofia no Brasil, por outro lado
eles buscam relegar ao esquecimento outros instantes filosóficos.
3.1 A HISTÓRIA DAS IDÉIAS FILOSÓFICAS NO BRASIL, DE ANTONIO PAIM
A História das idéias filosóficas no Brasil, originalmente publicada em 1967, e com
sucessivas publicações
388
, é a obra onde Antonio Paim expõe de forma mais sistematizada e
mais densa a sua concepção da denominada “história das idéias”, onde desenvolve muitos
pressupostos colocados inicialmente por Miguel Reale, onde divulga os intelectuais ligados à
chamada “escola culturalista” e ao IBF e seus respectivos trabalhos; esta obra mereceu por
parte do autor sucessivas reinvestidas resultando nas diversas republicações; de forma que,
pode-se dizer, é a sua mais importante obra. Utilizaremos aqui a edição
389
e, utilizaremos
também O estudo do pensamento filosófico brasileiro
390
, particularmente interessante porque
o autor desenvolve aqui de forma mais sintetizada a sua concepção.
Um pressuposto simples dos culturalistas, mas que não pode ser evitado para uma
correta compreensão deles, é a consideração da cultura como uma esfera especial de objetos
que se apresenta numa situação privilegiada [...]”
391
, nas palavras de Paim. Esta noção, da
cultura como esfera “especial”, “privilegiada”, dirão os culturalistas, é uma herança de Tobias
Barreto como veremos no decorrer da exposição. Paim desenvolveu seus estudos buscando
estabelecer as tradições culturais na história das idéias no Brasil, privilegiando as
permanências à revelia das rupturas. Como veremos, Paim trabalha com a noção de “ciclos”
do pensamento: primeiro ele abordará o ciclo da segunda escolástica portuguesa, o ciclo
pombalino e o seu empirismo mitigado, e o ciclo do ecletismo; esses seriam os germes da
filosofia no Brasil.
3.2 O INÍCIO DE TUDO: O ESTABELECIMENTO DOS RUDIMENTOS DAS
TRADIÇÕES DO PENSAMENTO NO BRASIL
388
edição: São Paulo: Grijalbo / Usp, 1967. edição: São Paulo: Grijalbo, 1974. 3ª edição (revista e
aumentada): São Paulo: Editora Convívio, Instituto Nacional do Livro, Fundação Pró-Memória, 1984. 4ª edição:
São Paulo: Editora Convívio, 1987. 5ª edição: Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 1997.
389
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil. ed. revista e aumentada. São Paulo: Editora
Convívio, Instituto Nacional do Livro, Fundação Pró-Memória, 1984.
390
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora
Convívio, 1986.
391
PAIM, Antonio. A corrente culturalista. São Paulo, Revista Convivium, maio-junho de 1977, p.215 [grifos
nossos]
- 122 -
Para Paim, o primórdio da filosofia brasileira seria o período da segunda escolástica
portuguesa, que ocorre durante o século XVII até a primeira metade do XVIII, marcado pela
Contra-Reforma, momento em que os jesuítas teriam isolado Portugal do resto da Europa. O
pensamento colonial, marcado pela meditação jesuíta, foi conceituado como saber de
salvação
392
, que se caracterizava pelo desprezo do mundo, identificando-o como a dimensão
corpórea, e que os homens teriam de vencer a transitoriedade da tentação para alcançar a
eternidade da salvação. O espírito escolástico não aceitava a dúvida, a pesquisa aberta. Aquele
período fora marcado pela inquisição do Santo Ofício e pelo controle jesuíta do ensino (Ratio
Studiorum), em que o ensino superior se limitava ao estudo de uma filosofia aristotélica
subordinada à teologia de S. Tomás de Aquino. Paim diz que a escolástica foi criticada
durante o século XVIII por homens que retornavam de seus estudos no exterior; entre estes se
destacaria Luiz Antonio Verney (1713-1792). Verney levou para Portugal a física cartesiana e
newtoniana, inovações à filosofia e outras disciplinas. Para Paim não pode haver a menor
dúvida de que a ambição de Verney consistia precisamente em levar a cabo, em Portugal, uma
reforma tão profunda do pensamento como a que coroa, com Locke, na Inglaterra”
393
; e
entende que, mesmo com suas limitações, o debate assim aberto por Verney é que possibilitou
a reforma pombalina da Universidade em 1772.
3.3 O “EMPIRISMO MITIGADO” E O “PROBLEMA” DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Para Antonio Paim, o “ciclo” seguinte é o pombalino. Com a expulsão dos jestas em
1759, Paim diz que Pombal teria cindido violentamente o “pensamento nacional”. Com a
Universidade reformada, em 1772, a obra do sacerdote italiano Antonio Genovesi
(1713/1769) torna-se oficial, e esta seria marcada por um empirismo “devidamente escoimado
das perplexidades e dúvidas”
394
presentes em Verney: o denominado empirismo mitigado”,
definido por Paim da seguinte maneira:
O adjetivo visa indicar que se trata de um empirismo que evitou ciosamente
todas as dificuldades que essa espécie de filosofia vinha enfrentando nas
ilhas britânicas. Nesse aspecto essencial, o empirismo mitigado não
estabeleceu nenhuma definição mais precisa. A simples exaltação do
392
Este conceito foi criado por outro membro da escola culturalista, Luís Washington Vita, exposto em sua obra:
Antologia do Pensamento Social e Político no Brasil. São Paulo: Grijalbo, 1968.
393
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 226
394
Idem, p. 231
- 123 -
conhecimento experimental e a condenação frontal da metafísica
tradicionalmente cultivada em Portugal.
395
Nesta concepção, o empirismo mitigadoé a “corrente oficial”, expressão filosófica do ciclo
pombalino, que se caracterizaria por uma “orientação utilitária
396
da ciência, “voltada para o
ideal de promover novo período de apogeu e riqueza para Portugal”
397
, e, neste sentido, a
reforma da Universidade visaria a formação de profissionais, voltados a exercer as atividades
necessárias para alavancar Portugal da decadência. E, todo o problema do período, diz Paim,
se resume na
[...] conciliação que se buscou estabelecer entre eliminação da Escostica;
entronização da ciência e exaltação da riqueza, de um lado, com a
manutenção, de outro lado, das doutrinas e instituições como a monarquia
absoluta e a defesa da origem divina do poder do monarca; o monopólio
estatal de numerosas atividades econômicas e as doutrinas mercantilistas,
entre outras, que conflitavam abertamente com o propósito de incorporar a
modernidade, expresso na mudança de posição em face da ciência.
[...] semelhante empenho de inserir a modernidade num arcabouço
tradicionalista, acabou gerando certa disponibilidade em matéria ético-
política. Assim [...] a nova geração de prelados pernambucanos aderiu ao
radicalismo político, passando a privilegiar a revolução pelas armas, como
método a ser aplicado à reforma social.
398
Vemos assim que o autor um salto para estabelecer a “herança” pombalina, que começa a
delinear a partir do germe do empirismo mitigado, perpassando as relações entre o Estado e a
economia, a revolução armada e culminando com a transformação social. Mas o que
incomoda Paim, tomando por base as últimas duas citações, é a transformação da realidade,
seja ela o enriquecimento de Portugal, ou a transformação social; posteriormente veremos que
essa é a crítica feita ao chamado cientificismo. Quanto à “nova geração de prelados
pernambucanos”, o autor se refere aos atores da revolução republicana pernambucana de
1817. Mas Paim não pára por aqui e continua a crítica ao denominado empirismo mitigado:
Os corifeus do empirismo mitigado, despreocupados da discussão teórica e,
deste modo, de coerência interna da doutrina, viram-se privados da
possibilidade de situar-se criticamente em relação às idéias políticas
francesas, engendrando o curioso fenômeno do liberalismo radical. A
evolução hisrica comprovaria que este não tinha em seu favor maiores
395
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 26
396
Idem, p. 26
397
Idem, p. 27
398
Idem, p. 27 [grifos nossos]
- 124 -
suportes sociais. Se foram capazes de levar o país à beira da anarquia nos
três lustros subseqüentes à Independência, não tiveram acesso ao poder.
399
Paim vê o liberalismo radical como uma conseqüência da falta de preocupação teórica
- enquanto característica do empirismo mitigado - e isto levou a um “entendimento unilateral
e faccioso da idéia liberal, ao inspirar-se nas idéias políticas francesas”
400
; e os que aderem
às idéias revolucionárias vindas da França, simplesmente as adicionam ao arcabouço básico
fornecido pelo empirismo mitigado”
401
. Mas é importante notar que Antonio Paim busca desta
maneira construir a permanência do empirismo mitigado com base em uma definição genérica
de sua expressão concreta: a intervenção monopolizadora do Estado na economia, a
“revolução pelas armas”, a “reforma social”. Essa definição com grande caráter de
generalidade permite ao autor, como veremos posteriormente, incluir nesta tradição” teorias
tão díspares como o positivismo e o marxismo. Desta forma, Frei Caneca cai na malha de
Paim: o cônego teria incorporado as idéias francesas acríticamente, resultando “uma espécie
de autoritarismo libertário
402
. Para Paim, Caneca teria se equivocado por não compreender a
questão da representação, que teria garantido a convivência com a oposição.
403
Paim diz ainda que a polarização liberalismo radical vs. Ordem sendo ambos
absolutistas, em sua acepção - tornar-se-ia o principal ponto de referência na obtenção do
consenso da maioria, que promove o Regresso e início à organização das instituições do
sistema representativo”
404
; desta construção, o autor depreende que o “justo meio” (juste
milieu) teria passado a ganhar maior alento, eqüidistante dos absolutismos”. O autor diz
ainda que tal acontecimento se deve à superação do empirismo mitigado, e esta, por sua vez,
faria nascer a “filosofia brasileira”.
3.4 O ECLETISMO COMO MOMENTO CENTRAL DA HISTÓRIA DAS IDÉIAS NO
IMPÉRIO
A superação do empirismo mitigado e de seu corolário, o liberalismo radical, diz
Paim, viria com a contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira, que teria lançado “as bases para
o debate dos temas modernos, que iria empolgar parte da intelectualidade nas décadas de
399
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 237 [grifos do autor] Paim chama de
“corifeus do empirismo mitigado” os lentes das antigas aulas régias, além dos liberais radicais (cf. p. 233-4)
400
Idem, p. 242
401
Idem, p. 243
402
Idem, p. 244 [grifos do autor]
403
cf. Idem, p. 248
404
Idem, p. 248
- 125 -
trinta e quarenta”
405
do século XIX; inicia-se assim, para o autor, um novo ciclo. Silvestre
viveu de 1802 a 1809 na Alemanha, onde se familiarizaria com o kantismo, acompanhando as
conferências de Fichte e Schelling. Chegou ao Brasil junto com a Corte Portuguesa e aqui
permaneceu até 1821, quando volta para Portugal junto com D. João VI ocupando as pastas
do exterior e da guerra do governo imperial. Em sua estada no Brasil, desde 1813, ministrou
um curso de filosofia no Real Colégio de S. Joaquim, além de ter escrito duas obras as
Preleções Filosóficas, Cartas sobre a Revolução do Brasil. Nestes escritos, Silvestre
Pinheiro, diz Paim, revela-se um adepto de Locke, mas sem qualquer radicalismo, conciliaria
a tradição aristotélica com a modernidade de Locke. Paim diz que Silvestre tinha
compromisso com o liberalismo político, de forma que seu objetivo era dar continuidade às
reformas pombalinas em conjunto com a “liberalização das instituições políticas”
406
-
evitando uma ruptura -, com o intuito de fortalecer a monarquia constitucional, pois seria
partidário de um liberalismo moderado, eqüidistante do „absolutismo real‟ e do „jacobinismo
democrático de tipo rousseauniano‟”
407
. Para Paim, essas seriam suas maiores contribuições:
sua participação na transição sem sobressaltos da monarquia absolutista para a constitucional,
a superação do empirismo mitigado” e os debates promovidos no seu curso - onde teria
conduzido a intelectualidade brasileira “ao tema crucial da liberdade humana” - de maneira
que “a obra do grande filósofo português corresponde, no pensamento brasileiro, ao momento
de transição para o ecletismo”
408
. Na História das idéias filosóficas no Brasil, o intelectual
português é avaliado da seguinte maneira:
Ausência de imprensa livre e de organizações de ensino superior completam
o quadro em que se insere a tomada de consciência do problema do
liberalismo. Nesse arcabouço, tanto a palavra como a ação de Silvestre
Pinheiro Ferreira revestem-se de significado extraordinário. Constituem um
dos focos a partir dos quais se iria configurar no país uma consciência
conservadora de índole liberal e humanista.
Parecia a Silvestre Pinheiro de todo inevitável a reforma nas instituições.
Contudo, entendia que a revolução não era o veículo propício para esse fim.
Incumbiria portanto antecipar-se à hecatombe e preparar a transição sem
maiores choques.
409
Neste último parágrafo, além da avaliação de Silvestre Pinheiro, Paim fala da
consciência conservadora, e da transição sem maiores choques ou o juste milieu -, noções
que negam a luta de classes, são de grande valia para os culturalistas. O autor conclui que
405
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 254
406
Idem, p. 272
407
Idem, p. 274
408
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 35
409
Idem, p. 275 [grifos nossos]
- 126 -
“Silvestre Pinheiro Ferreira não foi seguido pelos conservadores brasileiros, [...]. Contudo, é a
grande figura que lhes formou o espírito, entre outras coisas por haver aberto o caminho ao
ecletismo, no plano estritamente filosófico”
410
. Paim diz que Silvestre condenava
explicitamente qualquer recurso à violência
411
, apesar dele ter ocupado a pasta da guerra no
governo de D. João VI.
Poderemos ver que dos três “ciclos” colocados por Antonio Paim a filosofia católica
da segunda escolástica, empirismo mitigado do ciclo pombalino, e o ecletismo do liberalismo
moderado -, são, em sua acepção, os germes das tradições que o autor busca construir, em que
o “cientificismo”, enquanto herança pombalina, seria o responsável pelos desmandos no
Brasil - abrangendo liberalismo radical, positivismo e marxismo. Do empirismo mitigado
resultam a revolução, o recurso às armas para a transformação social, o autoritarismo
libertário, enfim, os desmandos; o seu antônimo, a moderação, a condenação explícita” à
violência, deriva do ecletismo, do liberalismo moderado do Império, e, como veremos do
culturalismo.
Voltando ao ecletismo, o autor busca salientar a importância deste “ciclo”:
O ecletismo consiste na primeira corrente filosófica rigorosamente
estruturada no país, tendo logrado ganhar adeo da maioria da
intelectualidade e manter uma situação de domínio absoluto da década de
quarenta à de oitenta do século passado [século XIX]. [...]
Nesse ciclo ocorre animado debate filosófico entre naturalistas e
espiritualistas, quando a solução conciliatória do problema da liberdade [...]
conquista a maioria da elite intelectual.
412
Paim diz ainda que as idéias do ciclo do ecletismo “penetraram fundo em amplos setores da
elite nacional e chegaram a se transformar no suporte último da consciência conservadora em
formação”
413
. O autor diz que o “animado debate” só foi possível por causa da ascendência do
liberalismo moderado, que colocaria fim ao “ciclo das revoluções armadas”
414
. Em epígrafe,
Paim cita o seguinte trecho da obra Du Vrai, du Beau et du Bien (Do Verdadeiro, do Belo e do
Bem), de Victor Cousin:
Esta filosofia (o espiritualismo [eclético]) é aliada natural de todas as boas
causas. Acalenta o espírito religioso; estimula a arte verdadeira, a poesia
digna deste nome, a grande literatura; é o apoio do direito; recusa tanto a
demagogia como a tirania; ensina a todos os homens a respeitar-se e amar-
410
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 279
411
Cf. Idem, p. 277
412
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 40
413
PAIM, A. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 281
414
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 44
- 127 -
se, e conduz pouco a pouco as sociedades humanas à verdadeira república,
este sonho de todas as almas generosas que, em nossos dias, na Europa,
somente a monarquia constitucional pode realizar.
Victor Cousin, após a queda da restauração dos Bourbons na França (1830), se torna
um filósofo oficial. Contrariamente à filosofia tradicionalista contra-revolucionária própria do
regime bourbônico, Cousin vai defender a idéia de uma conciliação entre as diversas
doutrinas; e como podemos ver no trecho citado, foi um defensor da monarquia constitucional
e de mudanças lentas e progressivas que conduziriam à “verdadeira república” não jacobina,
contrariamente a qualquer intuito revolucionário.
Segundo a História das idéias filosóficas no Brasil, o ecletismo cousiniano traria um
empirismo capaz de superar o mitigado, correspondendo ao “anseio de modernidade”
415
, além
disso, teria a “vantagem adicional”
416
de constituir-se numa negação do materialismo.
Segundo esta obra, no fim da década de 1840 a doutrina eclética era vitoriosa perante os
remanescentes do empirismo mitigado e do espiritualismo inspirado nos dogmas da Igreja.
Por essa via, a conciliação política que a experiência histórica aconselhava
encontrara seu correlato filosófico. São traduzidas a História da Filosofia e a
Filosofia Popular, de Cousin. Adotada como filosofia oficial no Pedro II,
torna-se obrigatória nos diversos liceus e cursos anexos das faculdades. Em
todos os principais centros, a corrente ganha adesão de eminentes
personalidades.
417
Dentre as “eminentes personalidades” estavam homens tais como Salustiano José
Pedroza autor do Esboço de História da Filosofia (1845) e do Compêndio de filosofia
elementar (1846) -; Antonio Pedro de Figueiredo (1814-1859) - traduziu a obra de V. Cousin
História da Filosofia Moderna, e editou o periódico O Progresso -; Monte Alverne - autor do
Compêndio de Filosofia (1851) -; Domingos Gonçalves de Magalhães autor Os fatos do
espírito humano (1858 e 1865), A alma e o cérebro (1876) -; Eduardo Ferreira França
professor da faculdade de medicina da Bahia, autor de Investigações de psicologia (1854).
Segundo Paim, as mais importantes obras de doutrina política do Segundo Reinado foram
elaboradas a partir do ecletismo: Direito Público e análise da Constituição do império (1857),
de José A. Pimenta Bueno o Marquês de São Vicente -, e Ensaio sobre o direito
administrativo (1862), de Paulino José Soares o Visconde do Uruguai.
415
PAIM, A. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 281
416
Idem, p. 287
417
Idem, p. 287-8
- 128 -
Entre estes, Paim diz que na evolução do ecletismo ocupa lugar de destaque Domingos
Gonçalves de Magalhães, “figura de proa do romantismo e da vida política”
418
. Magalhães,
diz, teve importante papel pedagógico junto aos outros românticos na “construção dessa
nacionalidade, não apenas de realizar uma tarefa política e econômica, mas de acompanhá-la e
complementá-la por uma obra espiritual, por um trabalho de formação
419
. A obra de
Magalhães, diz Paim, criou o teatro nacional, o romance, iniciou a carreira literária, fundou a
literatura nacional, de forma que lançou os alicerces de uma forma nacional de sentir, de
querer e de pensar”
420
. Mas sua obra não se limita à literatura, a filosofia também foi objeto de
seus estudos, concretizados no compêndio Fatos do Espírito Humano (1858), que “aparece
como uma escie de justificação filosófica de uma etapa da vida nacional em fins de
cumprimento”
421
; este intelectual, enquanto representante da filosofia oficial do Segundo
Reinado”, foi o teorizador do liberalismo romântico que dominou o espírito nacional”
422
ao
longo do período.
Para Paim, a opção pelo ecletismo foi uma “escolha consciente da elite dirigente, e
esta doutrina deve sua ascendência tanto ao ambiente político nacional, quanto ao trabalho e à
influência de Silvestre Pinheiro Ferreira. O ecletismo teria uma “profunda identificação com o
espírito nacional em processo de estruturação”
423
; segundo o autor isto ocorreria porque entre
o conservantismo intransigente e o reformismo radical, surgiria a “tendência da
conciliação”
424
, esta, por sua vez, seria levada pela elite dirigente ao predomínio, pois teria
feito da propensão uma verdadeira doutrina, e, conseqüentemente, fazendo ascender o
ecletismo. Nesta concepção, o sistema eclético de Cousin serviu à elite brasileira
principalmente como bússola na solução dos problemas políticos, na concepção e na
implantação das instituições, da administração , do ensino, etc. [...]”
425
. Paim faz a seguinte
avaliação:o ecletismo marcou o primeiro momento de unidade da consciência nacional
nascente, assegurando a necessária fundamentação do liberalismo político e integrando-o num
sistema que se tinha por coerente
426
.
418
Idem, p. 49
419
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 51-2, apud., BARROS, Roque Spencer Maciel
de. A significação educativa do romantismo. São Paulo: Grijalbo/USP, 1973. [grifo do autor]
420
Idem, p. 52
421
Idem, p. 53
422
Idem, p. 54
423
PAIM, A. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 287
424
Idem, p. 290
425
Idem, p. 293 [grifos nossos]
426
Idem, p. 309
- 129 -
Podemos observar pela citação do parágrafo anterior, que Paim busca construir a idéia
da existência de um debate filosófico que pensava questões concretas, mas sem especificar
quais eram elas. Sabe-se que o principal problema para a classe dominante imperial era como
adiar a abolição da escravatura, e lograram atrasá-la da Independência até 1888 questão esta
que aprofundaremos em um outro momento.
Além da tradição do ecletismo que Paim constrói como poderemos ver melhor no
decorrer do trabalho -, ele trabalha para edificar uma outra: a do kantismo no Brasil. O autor
segue os passos de Miguel Reale
427
, e adota a sua periodização composta de quatro fases, uma
fase descendendo diretamente da anterior, que teria como primórdios o interesse” de
Silvestre Pinheiro Ferreira pela filosofia alemã, quando de sua permanência na Alemanha
(1802-9) coloca assim o ecletismo e o kantismo lado-a-lado. A primeira fase seria
compreendida entre a primeira década do século XIX até a Independência. Martim Francisco
Andrada, irmão de José Bonifácio, teria, antes de 1810, ministrado um curso e escrito um
livro dedicado à Kant, mas “infelizmente este livro desapareceu. Porém, não há dúvida
alguma sobre sua existência”
428
. Outra contribuição viria da obra do francês Charles Villers,
Filosofia de Kant ou princípios fundamentais da filosofia transcendental (1801), em francês,
e que teria sido “popularizada” na colônia e na metrópole. Ainda nos primórdios, haveria a
elaboração de um pequeno escrito da autoria do padre Diogo Antonio Feijó, que se sentiria
particularmente interessado pelo criticismo de Kant por ele ser
[...] aberto aos problemas do liberalismo, e sobretudo por sua posição
intermediária, visto o criticismo como uma terceira posição entre a atitude
dogmática, de um lado, e a atitude cética, de outro. O que interessa sobretudo
a Feijó é essa posição de meio-termo, de tal maneira que lhe propiciasse
conciliar, a certo ponto, a tradição escolástica com os novos valores que
emergiam sob o influxo da Revolução Francesa.
429
O autor salienta o liberalismo, a conciliação, o “meio termo” como questões
essenciais, assim como no ecletismo. A segunda fase compreende o período posterior à
Independência até 1850. Nesta não teria ocorrido ainda um contato direto com Kant, mas com
um de seus discípulos, Krause; e seus divulgadores seriam: Galvão Bueno professor de
filosofia do Curso Anexo da Faculdade de Direito e autor de Noções de Filosofia acomodadas
ao sistema de Krause (1877) -, João Teodoro Xavier de Matos catedrático da Faculdade de
427
Miguel Reale dedicou alguns escritos para o “kantismo”: o já citado Filosofia em São Paulo, A doutrina de
Kant no Brasil. Dois ensaios (São Paulo, 1949) e o artigo Filosofia alemã no Brasil (Revista Brasileira de
Filosofia, n.34, São Paulo, janeiro-março, 1974).
428
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 38 citando Miguel Reale
429
Idem, p. 39 citando Miguel Reale [grifos nossos]
- 130 -
Direito e autor de Teoria transcendental do Direito (1876). Ainda que as duas obras tenham
sido editadas durante a “terceira fase”, o autor insiste que houve uma continuidade. A terceira
fase será compreendida na Escola de Recife, veremos ulteriormente, e a quarta, a do
“neokantismo”, da Escola Culturalista, no pós-Segunda Guerra. Paim avalia que até os anos
1870 o kantismo não revelaria maior fecundidade, no entanto fora firmada uma “tradição de
que adviriam resultados significativos a partir da Escola do Recife”
430
. O que se aqui é a
preocupação do autor, presente em toda sua obra, de fixar as continuidades e,
concomitantemente, escamotear as rupturas.
3.5 A FILOSOFIA CALICA
Antonio Paim abre um espaço para falar da filosofia católica. O autor esteve muito
próximo dos católicos na “Convívio Sociedade Brasileira de Cultura” e fez parte do corpo
editorial e de colaboradores do periódico desta organização, a Revista Convivivm. Assim,
enquanto intelectual organizador, Paim chama os católicos para a “união” com os laicos, para
juntos preservarem os “valores de nossa civilização, cujo núcleo advém sem dúvida da moral
judaico cristã”
431
. O autor fala como deve ser o debate entre católicos e laicos: distante da
política (desvinculando tomismo de tradicionalismo político
432
) e evitando a polêmica.
Paim traz a contribuição Dom Romualdo Antonio de Seixas (1787-1860), Marquês de
Santa Cruz, Primaz do Brasil (principal posto na hierarquia católica da época), como um “dos
principais artífices da estruturação do Partido Conservador e do Regresso”
433
e opositor do
ecletismo. Segundo o autor, o clérigo teria impresso a sua marca à história das idéias do
século XIX, pois teria inovado no quesito da relação entre a fé, conhecimento revelado e a
mente humana, a razão. Em vista dos outros tradicionalistas, que negavam a razão e
aceitavam somente a revelação, Paim diz que a posição do cônego revelou-se “moderada e
conciliatória”
434
, daí sua importância.
D. Romualdo seria secundado por outros intelectuais, que estariam posicionados nesta
linha genética do pensamento católico entre o cônego e Jackson de Figueiredo (1891-1928).
Nesta intelectualidade católica, encontraríamos homens como Braz Florentino Henriques de
430
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 347
431
Idem, p. 356
432
cf. Idem, p. 356-7
433
Idem, p. 359
434
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 62
- 131 -
Souza (1825/1870), um dos teóricos do Poder Moderador, e José Soriano de Souza
(1833/1895), um dos primeiros tomistas.
435
Segundo O estudo do pensamento filosófico brasileiro, nos estudos do
tradicionalismo, foi estabelecido uma “continuidade ao longo de quase um século, mas
sobretudo procedendo a uma tida diferenciação entre tradicionalismo filosófico,
tradicionalismo político e tradicionalismo religioso”
436
. Paim diz ainda que o tradicionalismo
político brasileiro é singular, sem qualquer identificação com a expressão portuguesa, e esta,
por sua vez, seria autônoma, pois não teria “nenhum ponto de contato com a obra de Burke e
dos outros fundadores dessa vertente”
437
. Paim diz que tradicionalismo não deve ser
identificado com catolicismo, “embora historicamente haja ocorrido semelhante
confluência”
438
, pois nunca teria havido adesão oficial da Igreja ao tradicionalismo político. O
autor diz que “não se pode, legitimamente, equiparar ideologia e religião”
439
. Nesta
concepção, o neotomismo deve ser também diferenciado do tradicionalismo político.
Vemos, desta maneira, que Paim busca separar filosofia, política e religião, fazendo-as
esferas autônomas, e diz que se em Portugal o tradicionalismo assumiu “feição
eminentemente política”, no Brasil sua feição foi “eminentemente filosófica”
440
, sempre
corroborando esta separação, em uma concepção anti-totalidade, numa acepção da realidade
separada em instâncias autônomas.
Para Paim, com a chegada da República, (I) a hierarquia católica adere francamente
ao tradicionalismo político, buscando mesmo ter atuação diretamente partidária”
441
; e (II) com
a atuação de Jackson de Figueiredo (1891-1928), a Igreja Católica encontrou uma formulação
para o tradicionalismo capaz de ser “bem-sucedida no plano social”
442
. A importância desses
dois aspectos para a obra de Antonio Paim está tanto em estabelecer a continuidade da linha
genética do tradicionalismo, quanto mostrar que a Igreja não esmaeceu diante da Revolução
de 1930 e por ter deixado de ser a religião oficial.
Paim fala de um “surto tomista”, que teria ocorrido em fins dos anos 1930, logo após a
morte de Figueiredo, até início dos 1960, “que domina o ensino da disciplina na Universidade,
alimenta significativo movimento editorial e reúne uma quantidade de pessoas como nunca se
435
Cf. idem, p. 63 e História das idéias filosóficas no Brasil... p. 369-71
436
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 55
437
Idem, p. 55
438
Idem, p. 56
439
Idem, p. 56
440
Idem, p. 61
441
Idem, p. 65
442
Idem, p. 65
- 132 -
vira nessa esfera do saber”
443
. Para o autor, o “país não dispunha de nenhuma tradição tomista
precedente. [...] De sorte que o surto tomista outra coisa não parece ter sido senão uma
expressão do próprio tradicionalismo”
444
. Mais uma vez, pode-se ver claramente, a
preocupação de Paim é estabelecer as linhas de continuidade, tendo como primeiro momento
Dom Romualdo, seguido de Braz Florentino e José Soriano, depois, Jackson de Figueiredo, o
tomismo e o seu “surto”. Mas, nesta conceão, ocorre uma reviravolta” entre 1960 e 1964:
[...] o tradicionalismo volta a revestir-se de feição predominantemente
política, com a peculiaridade de ver-se de todo abandonado pela hierarquia
católica, que se inclina agora para o socialismo. O fato não deixa de ser
manifestação de fidelidade ao autoritarismo, já que essa última vertente, em
terras brasileiras, nunca chegou a assumir como expressão democrática [...],
oscilando entre versões autoritárias e totalitárias.
445
Em que pesem essas afirmações de Paim, talvez possam ser compreendidas à luz de sua
saída do Departamento de Filosofia da PUC-RJ em 1979.
Em relação ao pensamento católico, a preocupação de Paim é, por um lado,
estabelecer sua linha genética contínua, conforme vimos aaqui, e por outro lado firmar
suas relações com os católicos. No segundo intuito, Paim tenta fixar pontos de identidade
entre católicos e culturalistas, como, por exemplo, na atuação na sociedade, ambos
enfatizariam aspectos culturais.
446
Além disso, o trabalho de José Pedro Galvão de Souza,
consubstanciado em diversas obras
447
, diz Paim, reavalia o liberalismo ao poupar de suas
críticas o inglês John Locke, isso permitiria uma aproximação entre liberais e tradicionalistas:
Essa abertura [de Galvão de Souza] vai ao encontro da aspiração dos
principais teóricos do liberalismo na atualidade brasileira [...] no sentido de
estabelecer com nitidez a distinção entre democracia e democratismo. Com
efeito, o liberalismo luso-brasileiro, em muitas circunstâncias, identificou-se
com o democratismo, que o liberalismo moderado, de inspiração inglesa,
sempre condenou. Estaria a possibilidade de aproximação entre velhos
opositores de aproximação entre velhos opositores [o liberalismo e o
tradicionalismo].
448
Desta maneira, Paim vai ao encontro da aliança tradicionalismo-liberalismo, que, como
podemos ver, é uma de suas grandes preocupações no trato com os católicos. Outro momento
443
Idem, p. 65
444
Idem, p. 66
445
Idem, p. 66-7
446
Cf. Idem, p. 65
447
Da representação política (1971), O totalitarismo nas origens da moderna teoria do Estado (1972), O
Estado tecnocrático (1973), Direito natural, direito positivo e Estado de direito (1977).
448
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 72-3
- 133 -
de afluência identificado por Paim estaria na contribuição de Raimundo de Farias Brito
(1863/1917), que teria propiciado a adesão em massa da intelectualidade ao catolicismo; teria
Tobias Barreto como mestre, e seria seu inspirador assim como para os culturalistas. Farias
teria como método filosófico a preocupação de tratar “dos temas filosóficos como tais, sem os
dissolver em considerações de ordem sociológica ou histórica. Graças a isto, conseguiu a
adesão de um grupo de intelectuais”
449
; a relevância de Farias Brito estaria nesta característica
metodológica, que é mais uma afluição destacada por Paim. Vemos aqui o eixo da proposta de
Paim: a moderação para um tradicionalismo menos reacionário, e para um liberalismo anti-
jacobino, de forma a promover a união liberal-tradicionalista; enxergamos aqui a proposta do
moderantismo conservador.
Essa questão, das afluições, poderá ser melhor entendida após o quarto capítulo, em
que buscamos demonstrar as ligões do autor com correntes católicas, na sua atuação
política. Assim, o estabelecimento desses pontos de convergência teórica entre os
culturalistas, que são simpáticos ao liberalismo moderado, e os calicos, é verdadeiramente
uma necessidade desta confluência histórica e da respectiva prática social do moderantismo
conservador, que visa atenuar, ajustar as diferenças para permitir a aliança.
3.6 A “ESCOLA DO RECIFE
Segundo a História das idéias filosóficas no Brasil, a chamada “Escola do Recife”
surge no contexto do “surto de idéias novas”
450
, ocorrido nos anos 1870, entendido como um
momento que aparece uma série de tendências de pensamento: o positivismo, com a fundação
da Sociedade Positivista no Rio de Janeiro; divulgação do materialismo por José de Araújo
Ribeiro, o Visconde do Rio Grande, com a publicação da obra O fim da criação ou a
Natureza interpretada pelo senso comum; a aparão dos intelectuais da Escola do Recife,
Tobias Barreto e Silvio Romero; momento este em que o ecletismo teria sofrido “de todas as
partes, um ataque frontal
451
. Antes do “surto”, diz o autor, tudo adormecia à sombra do
manto do príncipe, da filosofia às instituições monárquicas, passando pela escravidão; mas,
com a chegada dos anos 1870 tudo passou a ser questionado, ocuparia lugar de destaque a
Escola do Recife na crítica ao espiritualismo eclético de intelectuais como Domingos
449
Idem, p. 102
450
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 375-7
451
Idem, p. 377
- 134 -
Magalhães, inspirado em Cousin, e que tinha se constituído numa filosofia oficial segundo
Paim.
Antonio Paim expõe de forma mais acabada o surgimento da Escola do Recife e a
formação e a evolução filosófica de seu líder, Tobias Barreto, n‟A filosofia da Escola do
Recife
452
(1966). Não faremos aqui um exposição da obra, mas retomaremos aqueles trechos
que são importantes para entender a conceão de Paim.
Segundo A filosofia da Escola do Recife, Tobias Barreto (1839-1889) expressa em seu
primeiro artigo surgido em 1868 a adesão ao espiritualismo eclético
453
. No ano seguinte,
1869, o então aluno do último ano da Faculdade de Direito criticou os dois cânones no
ecletismo, o brasileiro Domingos de Magalhães e o francês Victor Cousin. Para Barreto,
Magalhães, que freqüentara diversos meios universitários europeus, teria gasto seu tempo com
doutrinas muito conhecidas e deixou de lado o positivismo e os combates em torno do
hegelianismo; Cousin, por sua vez, não teria contribuído para a filosofia, mas teria apenas
criado um gênero literário, „gênero vago, amorfo e indeciso‟”
454
. Barreto, diz Paim, teria
ainda aderido parcialmente ao positivismo, aceitando especificamente as críticas positivistas à
religião, com reservas a outros elementos da doutrina.
Nos anos de 1868 e 1869, Barreto teria entrado em contato com os filósofos que na
Europa criticavam a religião, como os irmãos Bruno e Edgar Bauer, Ludwig Feuerbach, entre
outros. Estes pensadores teriam exercido influência em Barreto, de forma que em 1870, após
ter ingressado no Partido Liberal, fundou o jornal O Americano, onde escrevia sua coluna de
críticas à religião; afirmou, por exemplo, que Cristo não possuiria divindade alguma. Isso
gerou conflito com a Igreja, que proibiu seus fiéis de lerem o periódico. Mas, diz Paim, apesar
do tom acre da polêmica entre os católicos e Barreto, este não poderia ficar com a “culpa”,
pois sempre teria tentado circunscrever a filosofia à suas críticas para a religo. Esta
polêmica, segundo Paim, teria alcançado enorme repercussão na capital pernambucana,
principalmente na Faculdade e sua grande contribuição seria a de divulgar as “idéias novas”:
“a inquietude que se assinala na evolução filosófica de Tobias Barreto é fenômeno de certa
amplitude nos círculos intelectuais de Recife
455
.
Segundo Antonio Paim, as “idéias novas” tiveram maior irradiação nos meados da
década de 1870, tornaram-se um “movimento” e se manifestaram na Bahia e no Ceará, além
do Positivismo que vinha crescendo principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em
452
PAIM, Antonio. A filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro: Editora Saga, 1966.
453
Cf. Idem, p. 15-8
454
Idem, p. 19
455
Idem, p. 25
- 135 -
1878, o companheiro de Barreto, Silvio Romero, publicou A Filosofia no Brasil, que depois
dos acontecimentos anteriores, seria o mais importante ocorrido do “surto”, pois seria a
primeira tentativa de análise das correntes filosóficas existentes no país, na sua totalidade.
Esse seria o impulso dado pela corrente pernambucana ao “surto de idéias novas”, de tal
maneira que Barreto chegou a ser figura notória e amplamente conhecida
456
.
Paim diz que Tobias Barreto, em meio ao “surto”, foi o pioneiro a concluir que deveria
tanto combater o espiritualismo, quanto rejeitar o positivismo e o tomismo; isso faria dele o
líder e animador da corrente
457
. Em 1882, Barreto passou a integrar o corpo docente da
Faculdade de Direito do Recife, e tinha contato sem muito atraso com diversas obras, como,
por exemplo, O Capital (1883), de Marx, entre outros. Sua concepção filosófica passa a
apontar para algo que “conciliava” o monismo evolucionista de Haeckel com aspectos do
criticismo neokantiano. Esta composição filosófica, diz o autor, resultou numa determinada
concepção “culturalista”. Nesta conceão, a cultura é um “sistema de forças combatentes
contra o próprio combate pela vida”, ela é “a antítese da natureza, no sentido de que ela
importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom
458
. Para Barreto é a
cultura que deve consistir precisamente em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem
da natureza, adaptando-o à sociedade”
459
. A cultura consistiria num conjunto de regras, numa
imensa rede de normas, na qual ocupariam lugar privilegiado o direito e a moral. Para Paim,
estaria aqui o culturalismo de Barreto.
Frente à filosofia oficial (o ecletismo espiritualista), Paim diz o seguinte: “tem lugar a
formação de uma corrente filosófica com pretensões a situar-se no mesmo terreno em que
vicejava o ecletismo espiritualista, sem entretanto fazer-lhe concessões. Essa corrente batizou-
a Silvio Romero de Escola do Recife”
460
. Ou seja, teria continuado o empreendimento do
ecletismo, no seu papel de conformador da cultura nacional. Clóvis Beviláqua, outro membro
da corrente, justificava a idéia de que aqueles intelectuais formavam realmente uma “escola”:
esta se caracterizaria não por “um conjunto rígido de princípios, uma sistematização definitiva
de idéias mas sim uma orientação filosófica progressiva [...]”
461
. Paim corrobora esta idéia:
[...] a filosofia constitui precisamente o elemento unificador da variada
incursão que promoveu nos diversos componentes da vida cultural. A par
disto, ao elemento inovador dessa filosofia Miguel Reale denominou de
456
Idem, p. 47
457
Idem, p. 44-5
458
PAIM, A. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 88
459
PAIM, A. História das idéias filosóficas no Brasil... p.385 [grifos do autor]
460
Idem., p. 379
461
Idem, p. 380 [grifos nossos]
- 136 -
culturalismo, o que permitiu centralizar a análise na meditação de seus
integrantes e não apenas nas possíveis fontes inspiradoras.
462
Além disso, Paim diz que Barreto (1839-89) aderiu ao historicismo de Cousin, pois acreditava
que filosofia seria um processo de constante aperfeiçoamento, pelo qual “o espírito humano
vai expelindo velhas idéias e adaptando-se a novas [...]”
463
. Vemos assim que o interesse
em estabelecer uma linha de continuidade tanto entre o ecletismo e a Escola de Recife, quanto
entre os intelectuais que a integrariam, buscando estabelecer a transmissão entre diferentes
momentos e autores.
Para o autor, o líder da escola recifense daria uma contribuição à “evolução do
pensamento filosófico brasileiro”
464
por produzir uma obra crítica e pela tentativa de
restauração da metafísica. No entanto, esta seria uma “reforma” muito ampla para ser
conduzida por um único homem. Os aspectos positivos de Barreto, diz o autor, consistem na
busca de um núcleo de idéias para responder as necessidades do ambiente nacional, e por
“estimular o pensamento brasileiro a seguir desenvolvendo-se no plano das idéias
filosóficas”
465
. Mas a maior contribuição de Barreto seria sua investida contra o positivismo, e
teria logrado não deixar o seu alastramento pelo Nordeste.
A Escola do Recife corresponderia ainda à terceira fase da “tradição” kantista, teria
sido influenciada pelos primórdios do neokantismo. Tobias Barreto, segundo o próprio
Paim
466
, não dedicou mais do que alguns poucos escritos a Kant, dentre estes, algumas
“referências esparsas” para uma aula na Faculdade, sem dedicar qualquer “atenção especial”.
Mas o autor investe na concepção de tratar-se aqui de mais um momento da trajetória kantiana
no Brasil.
Retornando à questão da cultura, à luz da contribuição de Tobias Barreto; Paim
encaminha a questão da seguinte maneira:
[...] Tobias Barreto apresentaria uma contribuição original, ao apontar a
cultura como aquela esfera cujo exame facultaria a definitiva superação do
positivismo, abrindo assim um novo caminho à inquirição metafísica. Essa
parcela de sua obra seria denominada, com propriedade, por Miguel Reale,
de culturalismo.
[...] Barreto dirá que não pode haver ciência da sociedade considerada como
uma totalidade, do mesmo modo que não uma ciência da natureza mas
estudo científico de fenômenos físicos, químicos ou biológicos. Assim,
apenas certos segmentos da atividade social podem ser estudados pela
462
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 85 [grifos do autor]
463
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 384 citando Tobias Barreto
464
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 386
465
Idem, p. 387
466
cf. PAIM, Antonio. A filosofia da Escola do Recife. Rio de Janeiro: Saga, 1966. p. 130-1
- 137 -
ciência.
467
A importância dessa questão advém do fato de que esta concepção é adotada por Paim
e demais integrantes da “escola culturalista”; Barreto constituiria um dos principais elos da
“tradição” da qual seriam herdeiros. E, neste sentido, o autor afirma o seguinte: A
particularidade do mundo da cultura consiste no fato de que se subordina à idéia de finalidade,
escapando a todo esquema que se proponha resolvê-lo em termos de causas eficientes”
468
.
Desta maneira, a cultura é erguida num patamar especial, em que não pode ser determinada;
possuiria um status de autonomia, inclusive perante a história. E é aqui que o autor fecha a
questão com o neokantismo, pois, ao privilegiar a cultura, Barreto teria adiantado o caminho
enveredado pela vertente kantiana. Para Paim, em um termo, a cultura é uma esfera
privilegiada
469
.
A decadência da Escola do Recife ocorreria com o fato de que seus intelectuais, em
meados do século XX, Silvio Romero, Clóvis Bevilácqua e Arthur Orlando, teriam
abandonado a filosofia e passado a trabalhar em outras áreas - a sociologia, o direito, e a
política e o jornalismo, respectivamente.
Mas, de qualquer forma, a vertente teria exercido grande influência nas faculdades
nordestinas de direito, no fim do século XIX e início do XX, e preservado aquela região da
influência do positivismo, de forma que, considera Paim, a “Escola do Recife constitui marco
importante nas diversas manifestações da cultura nacional”
470
. E, neste sentido, a corrente
recifense teria influenciado o pensamento católico, particularmente a obra de Farias Brito
(1862-1917), tanto porque teria tomado como ponto de partida de sua meditação questões
colocadas por aquela vertente, quanto pelo núcleo central de seu pensamento “consistir, a
exemplo de Tobias Barreto, numa interpretação autônoma do Kantismo”
471
. Essa
identificação entre Barreto e Brito é importante para Paim, pois o católico teria dado grande
margem à formação da “Escola Católica do Século XX”
472
, particularmente à adesão de
Jackson de Figueiredo. A identificação dos culturalistas com Brito poderia ser explicada da
seguinte maneira, nas palavras de Miguel Reale: “O que assegura a Farias Brito uma posição
deveras singular na história do pensamento filosófico brasileiro é a sua perseverante
preocupação de cuidar dos temas filosóficos como tais, sem os dissolver em considerações de
467
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 398
468
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 89
469
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 401
470
Idem, p. 407
471
Idem, p. 421
472
Idem, p. 423
- 138 -
ordem sociológica ou histórica”
473
. Desta maneira, o autor traz um ponto de união entre
Tobias Barreto, o catolicismo e o culturalismo.
3.7 O POSITIVISMO E O MARXISMO COMO DOIS MOMENTOS DA TRADIÇÃO
“CIENTIFICISTA
Antonio Paim, como veremos, constrói a idéia de que o positivismo e o marxismo são
dois momentos daquilo que conceitua como “cientificismo”. Tal conceituação é de particular
importância para os culturalistas, pois se “revelou suficientemente abrangente para englobar
tanto a meditação efetivada na Real Academia Militar como o período positivista e o atual
ciclo marxista
474
. Paim diz que a crença na moral, na política e na filosofia científicas
caracterizariam o cientificismo, que em termos gerais, seria uma tradição que teria sua gênese
na:
[...] hipótese esboçada pela elite pombalina e que seria ciosamente
preservada na Escola Politécnica, organizada com a denominação de Real
Academia Militar em fins de 1810 conduziria à formulação de uma
doutrina política autoritária, o castilhismo, que veio a ser o elemento
polarizador e aglutinador ao longo da República Velha até tornar-se vitoriosa
no plano nacional, com o Estado novo.
475
Vemos assim que Paim constrói uma conexão entre o “cientificismo” atual e o período
pombalino, de que tratamos anteriormente, criando mais uma tradição. O autor diz que o
positivismo chegou a ser quase um “religião de Estado”
476
, de forma que todas as instituições
da primeira República teriam sido construídas de acordo com a doutrina de Comte; momento
este em que, mais uma vez, Paim coloca o pensamento como o gerador da história. O sucesso
deste pensamento, diz o autor, decorre do fato de inserir-se numa das tradições da cultura
brasileira, que passamos a denominar de cientificismo
477
.
O “cientificismo”, diz Paim, iniciou após a condenação de Galileu, quando se inicia na
Europa uma grande movimentação social em prol da ciência, “por razões sobretudo
políticas”
478
, e com base na idéia de que a ciência tinha conseqüências sociais e tecnológicas,
o que, em sua acepção, indicaria a existência de dois movimentos “autônomos” e dissociados:
473
Idem, p. 425 [grifos do autor] - citando REALE, Miguel. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Saraiva, 1963.
p. 121-31
474
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. XVII, XVIII
475
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil... p. 409
476
PAIM, Antonio. O estudo do pensamento filosófico brasileiro... p. 104
477
Idem, p. 105 [grifos do autor]
478
Idem, p. 105
- 139 -
“[I] a propaganda da ciência e a [II] a prática científica”
479
. Pode-se observar que Paim busca
separar a ciência em dois momentos, um da prática científica, e outro de qualquer concepção
que busque aliar a ciência com questões sociais. Mas, diz o autor, o cientificismo é antagônico
“com a especificidade da pesquisa científica”
480
.
Em Portugal, o movimento cientificista teria conseguido uma “espetacular vitória”
com a ascensão de Pombal ao poder; a contribuição da geração pombalina estaria em “afirmar
a competência da ciência em matéria de reforma social
481
. Ou seja, para Paim, o problema é
a transformação social, é a preocupação dele; numa conceão de que ciência é questão
“técnica”, de uma ciência desinteressada das mazelas sociais. Paim opõe ciência à questões
sociais.
No Brasil, o cientificismo se disseminaria através do Seminário de Olinda de onde
saíram os padres partidários do liberalismo radical - e da Real Academia Militar, esta por sua
vez teria preservado o espírito da reforma pombalina da Universidade de 1772 e o local onde
a doutrina de Comte entrou em contato com os militares republicanos. Nas mãos de Benjamin
Constant, professor da Academia, o cientificismo teria adquirido forma acabada. Haveria
ainda a contribuição de outros intelectuais para o “cientificismo”, como Miguel Lemos,
Texeira Mendes, Otto de Alencar, Amoroso Costa, da Igreja Positivista; do positivismo
ilustrado, Luis Pereira Barreto , Alberto Sales, Pedro Lessa, Ivan Lins; e, da “filosofia
política de inspiração positivista”, Julio de Castilhos, Borges de Medeiros, Pinheiro Machado
e Getúlio Vargas. O “ciclo cientificista” positivista abrangeria toda a República Velha e se
caracterizaria, entre outras coisas, pelo “autoritarismo republicano- que repudia e abandona a
tradição liberal do Império”
482
. No momento seguinte, o autor investe na “transição” do
positivismo ao marxismo: A exaustão do comtismo não serviu entretanto para erradicar o
cientificismo de nosso panorama cultural. Paulatinamente esse lugar passa a ser ocupado
pelos marxistas”
483
.
Paim busca construir a idéia de que o marxismo pode optar por um caminho que seria
aceitável, limitando-se à academia - o “marxismo acadêmico”-, que “diferencia-se da história
do marxismo de inspiração estritamente política”
484
. No entanto, diz o autor, “no âmbito da
filosofia, o marxismo acadêmico, nos anos recentes, viria a confundir-se com o movimento
479
Idem, p. 106
480
Idem, p. 106
481
Idem, p. 107 [grifos nossos]
482
Idem, p. 114
483
Idem, p. 115
484
Idem, p. 115
- 140 -
político”
485
. Constitui-se aqui a tentativa de, em consonância à separação da realidade em
esferas, deslegitimar a luta dos trabalhadores incentivando a “legitimidade” do marxismo que
não sai dos muros das universidades. O marxismo político” se dividiria em dois núcleos, um
estruturado a partir da obra de Caio Prado Júnior, e outro que se resume à “ação dos
comunistas”. Vemos aqui o programa da moderação, que propõe um marxismo academicista,
que não saia dos muros da universidade; desta maneira o moderantismo conservador poderia
conviver com marxistas que não precisaria combater, poderia virar as costas e saber que não
organiza os trabalhadores, não constrói lutas, e não pode derrubar o capitalismo.
Mas, voltando a noção de transição” positivismo / marxismo, o autor elege dois
intelectuais para o que chama de versão positivista do marxismo
486
: Leônidas de Rezende e
João Cruz Costa este tinha uma concepção da história das iias antagônica à de Paim. O
primeiro seria o iniciador da vertente, que seria retomada pelo segundo. Paim utiliza-se de
afirmações de Cruz Costa para justificar a sua suposta adesão ao positivismo, como, por
exemplo, por ter dito que Comte inaugura uma “fase rica” de “um novo estilo de filosofar”
487
.
O autor conclui que “Leônidas de Rezende ou Cruz Costa jamais perderam os vínculos com a
componente pedagógica do positivismo, difundida no Brasil pelas grandes personalidades do
positivismo ilustrado como Luiz Pereira Barreto”
488
.
Mesmo se dizendo contrariado pelo “cientificismo” positivista / marxista, esta história
destes pensamentos é, na verdade, aquilo que Paim quer: um positivismo e um marxismo
moderados o suficiente para andarem lado-a-lado; e a sua contribuição para tanto é a
construção desta tradição”. Que risco à burguesia pode oferecer um marxista inspirado pelo
positivismo? Nenhum. Assim, por um lado, o autor dissuasivamente maldiz tal aliança, mas
por outro apóia tacitamente, contribuindo para construir uma suposta tradição que seria
bastante enraizada. É o inimigo que apetece Antonio Paim.
3.8 A “ESCOLA CULTURALISTA
Para Paim, o atrativo do cientificismo marxista” está em prometer o “paraíso
terrestre”
489
, e que possui uma “presença esmagadora”
490
. Mas o marxismo estaria em linha de
485
Idem, p. 116
486
Idem, p. 116 [grifos do autor]
487
Idem, p. 118 citando COSTA, João Cruz. Contribuição à História das Idéias no Brasil; o
desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórico-nacional. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. sem
pág.
488
Idem, p. 119
489
PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil (...), p. 526
- 141 -
superação, pois sofreria a oposição tanto da Escola Culturalista, que teria consolidado a
“tradição kantiana”
491
, quanto dos weberianos, dos espiritualistas, dos fenomenólogos, dos
existencialistas, dos católicos, impulsionados todos, segundo o autor, pelo Instituto Brasileiro
de Filosofia (IBF):
A corrente culturalista conta em seu favor a circunstância de se haver
tornado a grande animadora do movimento filosófico no país, através do
Instituto Brasileiro de Filosofia. Fundado em 1949, marcou sua atuação,
nesse largo período, pelos dois aspectos adiante apontados e que o situam
como momento significativo de nossa evolução cultural: 1.º) ter logrado
congregar todas as tendências filosóficas representadas em nosso meio,
graças à conjugação da intransigente defesa da liberdade de opinião com a
exigência da manutenção do debate adstrito ao plano das idéias, [...] e, 2.º)
haver tornado sistemáticos os estudos e pesquisas relacionados ao
pensamento brasileiro.
492
Assim, Paim coloca o IBF e a escola culturalista no centro de um “ciclo” que, em sua
concepção, marcaria este pós-guerra. Esta seria uma fase de amplo debate filosófico e, como
diz em outro momento, “a Escola Culturalista ocupa uma posição nuclear na contemporânea
filosofia brasileira”
493
. Importante notar que o autor acentua a “exigência” de manter o debate
filosófico limitado ao plano das idéias e, portanto, sem intervenção na realidade. Como
veremos no último capítulo, os culturalistas realmente tiveram uma atuação para além do
debate restrito às idéias, mas apregoam o debate limitado às idéias como uma forma de
desmobilização; tentam fazer da filosofia algo estranho às questões sociais.
Os integrantes da Escola Culturalista citados por Paim são os seguintes: Luis
Washinton Vita, Paulo Mercadante e Antonio Paim, que se dedicariam mais ao estudo do
pensamento brasileiro; Miguel Reale, Djacir Menezes, Nelson Saldanha, Paulo Dourado de
Gusmão, Luiz Luisi, que se voltariam para a filosofia do direito. Estes intelectuais formariam
a tradição de pensamento; seriam os herdeiros de Tobias Barreto:
A corrente culturalista considera-se herdeira de Tobias Barreto (1839/1889),
cuja meditação é tomada como ponto de referência. Ao contraditar o projeto
positivista de constituir uma física social, encurralando o homem em
esquemas deterministas, o pensador sergipano aventou o ponto de vista do
homem como consciência, reorientando o centro da investigação filosófica
no sentido do mundo da cultura.
494
490
Idem, p. 526
491
cf. Idem, p. 526
492
Idem, p. 527-8 [grifos nossos]
493
Idem, p. 578
494
Idem, p. 580
- 142 -
Vemos assim que além de ratificar a transmissão Barreto / vertente culturalista, o autor
salienta a negão de qualquer amarra social na cultura; é o que pode ser visto mais
claramente na seguinte afirmação: “no plano da cultura, distingui-se o âmbito da pura
idealidade, que se desenvolve de forma autônoma, embora implicando no conjunto da
atividade cultural e dela recebe ltiplas inspirações”
495
. Ou seja, a cultura existe somente no
plano das idéias, é uma concepção idealista da cultura; esta é, segundo o autor, uma das
“principais teses” dos culturalistas. E, neste sentido, mas buscando aprofundar a concepção,
Paim define a cultura da seguinte maneira:A cultura pode ser compreendida, na definição de
Miguel Reale, como o cabedal de bens objetivados pelo espírito humano, na realização de
seus fins específicos. À idéia de bens associa-se a de posse, de propriedade, o que chama a
atenção para o que é efetivamente relevante, isto é, a presença de algo que lhe valia
[...]”
496
. Ou seja, o autor liga cultura ao “cabedal”, ao patrimônio, à posse, à propriedade, e é
isso, nesta concepção, que é realmente importante na cultura.
Mas as maiores investidas de Paim, para definir a concepção de sua vertente, voltam-
se à afirmação da cultura como esfera autônoma mesmo em momentos de aparente recuo:
O reconhecimento da autonomia e da criatividade do espírito não significa
desconhecer que a atividade humana voluntária é orientada pelo interesse e
pela necessidade. Feuerbach [...] formulou, esta máxima de validade
absoluta: „Uma existência sem necessidades é uma existência supérflua.
Quem não tem necessidades tampouco tem a necessidade de existir; que
exista ou não é o mesmo, tanto para ele para como para os demais.
497
Dessa maneira vemos que se em um momento diz que a cultura também é regida por
necessidades e interesses, no momento seguinte, retomando Feuerbach naturaliza estes dois
fatores, como inerentes à vida genérica; sem levar em conta que em cada momento histórico a
humanidade têm determinadas necessidades e a necessidade de resolvê-las de determinadas
maneiras.
* * *
Antonio Paim e os demais culturalistas contribuíram em grande medida para o resgate
do chamado “pensamento brasileiro”, daqueles homens que, principalmente no século XIX, se
ocuparam da filosofia. De nossa perspectiva, vemos como as principais preocupações de Paim
495
Idem, p. 581 [grifos nossos]
496
Idem, p. 598
497
Idem, p. 600
- 143 -
estabelecer linhas de continuidade entre diversos autores e momentos da filosofia no Brasil.
Enquanto expressão intelectual da revolução passiva, percebemos que as rupturas inexistem
na concepção de Antonio Paim; existem apenas tradições concorrentes. O autor é
particularmente avesso ao que chama de “filosofia participante”, ou seja, nas filosofias
voltadas para a mudança da realidade e que têm participação política. Vemos também um
cuidado do autor para com a moderação, com a intenção de promover o liberalismo anti-
jacobino. O autor é absorvido também na sua relação com os católicos, apreensão em, por
um lado, conciliá-los com suas perspectivas filosóficas, e, por outro, combater aqueles mais à
esquerda.
4. A CONSCIÊNCIA CONSERVADORA NO BRASIL, DE PAULO MERCADANTE:
UM MANIFESTO DA REVOLUÇÃO PASSIVA
- Por que teu sepulcro, no qual te vimos quietamente depositado, abriu suas
pesadas mandíbulas marmóreas para jogar-te novamente para fora? Que
significa, corpo defunto, novamente revestido de aço, tua nova visita aos
pálidos fulgores da lua, enchendo a noite de pavor? E nós, pobres joguetes
da natureza, precisamos contemplar nosso ser tão horrivelmente agitado
com pensamentos am do alcance de nossas almas? Dize-me: para que
serve tudo isto? A que fim obedece? Que deveríamos fazer? (O espectro faz
sinal para Hamlet.)
[...]
- Por quê? Que poderia temer? Minha vida não vale nem um alfinete e,
quanto à minha alma, que poderá fazer-lhe, sendo como ele mesmo, uma
coisa imortal? Está fazendo novamente sinais para mim!... Vou segui-lo.
Hamlet, o príncipe da Dinamarca, de Willian Shakespeare
Paulo de Freitas Mercadante nasceu em Minas Gerais, em 1923. Em 1941, foi ao Rio
de Janeiro para cursar direito. Na cidade fluminense trabalhou no Ministério da Aeronáutica
como tradutor de aleo e inglês. De 1945 a 1951, lecionou filosofia no antigo magistério,
entre outras disciplinas. Em entrevista a Jorge Coelho Soares
498
, afirmou que a partir de 1945
filiado ao PCB começou a se dedicar ao estudo da filosofia marxista; relatou também
que teria ficado confuso com o materialismo histórico, pois teria se assustado com suas
contradições. Mercadante rompeu com o partido em conjunto com outros intelectuais
(Antonio Paim, Osvaldo Peralva, Porto Ferraz, Inácio Rangel) que, em seu ponto de vista,
498
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse no Brasil: entrevistas com filósofos. Londrina: CEFIL, 1999.
- 144 -
formavam o grupo “mais ativo no campo das idéias”
499
. Foi neste período em que se
aproximou de Reale e abandonou o marxismo. Mercadante se transformou num grande crítico
do PCB; segundo ele, esta organização era somente uma seita, que transformava pessoas
agradáveis, solidárias e amigáveis em “parceiros de um jogo cruel”
500
.
Paulo Mercadante é membro titular do IBF desde 1965, atualmente é membro do
Instituto de Filosofia da UniverCidade (Rio de Janeiro). Estabeleceu relações em Portugal nos
anos 70, época em que escreveu o livro sobre a revolução dos cravos Portugal ano zero
501
. É
membro do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira (Lisboa).
Neste capítulo trataremos da produção teórico-bibliogfica de Paulo Mercadante. Para
entender a concepção de história do autor, faremos uma exposição d‟A consciência
conservadora no Brasil
502
, originalmente publicada em 1965, é sua obra mais importante.
Nesta, como veremos, ele analisou a história do Brasil sob a perspectiva da conciliação, que
tornou-se um conceito de grande valia para os culturalistas, à medida que nega a luta de
classes. Além deste livro, destacamos também Militares e Civis: a ética e o compromisso
503
,
Constituição de 1988: o avanço do retrocesso
504
e Tobias Barreto: o feiticeiro da tribo
505
,
entre outras. Com Antonio Paim escreveu Tobias Barreto na cultura brasileira e editou as
Obras Completas de Barreto
506
.
499
SOARES, Jorge Coelho. Marcuse no Brasil..., p.131
500
MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: manifesto do trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 150
501
MERCADANTE, Paulo. Portugal ano zero. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
502
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil: contribuição ao estudo da formação
brasileira. 4 ed.. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003. As outras edições são: 1 ed., Rio de Janeiro: Saga, 1965; 2 ed.,
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972; 3 ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
503
MERCADANTE, Paulo. Militares e Civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
504
MERCADANTE, Paulo (coord.). Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio fundo
Editora, 1990.
505
MERCADANTE, Paulo. Tobias Barreto: o feiticeiro da tribo. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2006.
506
MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio. Tobias Barreto na cultura brasileira: uma reavaliação. São
Paulo: EDUSP/ Grijalbo, 1972. BARRETO, Tobias. Obras Completas. Em 6 volumes, Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro / Ministério da Cultura / Editora Record, 1989-90. Em 4 volumes, Rio de Janeiro: Governo do
Sergipe / Secretaria de Cultura e Meio Ambiente / Ed. Record, 1990.
- 145 -
FOTOGRAFIA 1 - Paulo Mercadante (à direita) acompanha o militante histórico
do PCB, Carlos Marighella esquerda), na saída da prisão durante a anistia de
1945.
507
A consciência conservadora no Brasil (1965) foi lançada logo após o golpe de 1964,
quando a intelectualidade dissonante sofria perseguições conforme mostramos no
segundo capítulo. Mercadante, enquanto intelectual orgânico da burguesia, membro do a.h.f.
IBF/Convivium, trabalhava para o regime ditatorial que acabara de ser instaurado. Assim, esta
obra - expressão da práxis de seu autor foi de grande valia para a intelectualidade
conservadora, pois ela interpreta o Brasil a partir do conceito de conciliação de classes”,
nega a luta de classes. Esta interpretação pôde ser construída porque um escamoteamento
deliberado dos momentos de lutas sociais que permearam a história do Brasil no século XIX.
Neste sentido, a obra é um exercício de reforma conservadora do hegelianismo, de mutilação
da dialética da história.
N‟A consciência conservadora no Brasil não encontramos qualquer menção às lutas
dos escravos que deram o tom de nossa história novecentista e foram assinaladas por
diversos autores como Clóvis Moura, Suely Robles de Queiroz, Robert Conrad, ou Décio
Saes que, por sua vez, diz:
507
Fotografia presente em NOVA, Christiane e NÓVOA, Jorge (orgs.). Carlos Marighella: o homem por ts
do mito. São Paulo: Editora UNESP, 1999. p. 480
- 146 -
[...] lembremo-nos do impressionante ciclo de insurreições escravas na Bahia
(nas suas três fases: 1807-1830, 1830-1835 e 1835-1844) e, em particular, da
grande insurreição maometana em Salvador (1835), do vasto quilombo do
Bateeiro em Minas Gerais (década de 1830), da multiplicação de quilombos
pequenos e itinerantes em São Paulo (década de 1830). Deve-se contudo,
reconhecer que a passagem do movimento abolicionista, na década de 1880,
à ação ilegal (organização de fugas no campo e de quilombos urbanos para
receber os fugitivos) provocou a generalização do movimento de revolta
escrava. Na década de 1880, o ritmo de fugas se acelerou consideravelmente,
nas mais variadas províncias, graças ao papel coordenador e centralizador
desempenhado pelo movimento abolicionista. [...] Em apenas um ano
(inícios de 1887 a maio de 1888), o quilombo do Jabaquara chegou a contar
com uma população de 10 mil habitantes, enquanto que o quilombo dos
Palmares (Nordeste, século XVII) chegou a 20 mil habitantes ao cabo de 65
anos.
508
Como o leitor verá, Mercadante nega qualquer participação ativa no processo, tanto dos
escravo, quanto dos setores abolicionistas da classe média. Ambos estratos sociais são
rejeitados por Mercadante. Contrariamente, Saes os coloca no devido lugar histórico:
[...] os escravos rurais constituíram a força principal do processo de
liquidação final das relações de produção escravistas, [...] constituíram a
força principal do processo de transformação burguesa do Estado,
considerado no seu conjunto. Mas a classe média foi a força dirigente do
processo, na medida em que subordinou a revolta escrava [...] para o seu
objetivo de liquidar o direito escravista, criar um direito burguês e
reorganizar, segundo os princípios do burocratismo, o aparelho de Estado.
Isso significa que é entre as classes populares (trabalhadoras, não
proprietárias) que encontramos, simultaneamente, a força principal e a força
dirigente do processo de transformação burguesa do Estado brasileiro.
[...] a Abolição impensável sem a revolta escrava foi o momento
fundamental do processo geral [...].
509
A obra de Mercadante, em seus mais de 40 anos de história, tem boa nomeada entre diversos
intelectuais orgânicos da burguesia. Para Olavo de Carvalho
510
, a obra é “um clássico da
„história das mentalidades‟”
511
. Roberto Campos afirmou que “Paulo Mercadante, cujas lições
de história e sociologia brasileira me abriram novos caminhos
512
. João Alfredo de Souza
508
SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil: 1888-1891. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p.
283 grifos do autor
509
Idem, p. 284 grifos do autor
510
Carvalho é editor e prefaciador da obra de Mercadante A coerência das incertezas: símbolos e mitos na
fenomenologia histórica luso-brasileira (São Paulo: Editora É Realizações, 2001); Carvalho é conhecido pelos
seus polêmicos ataques à esquerda.
511
Cf. CARVALHO, Olavo de. Paulo Mercadante e a alma brasileira. Este texto é o prefácio d‟A coerência
das incertezas e está dispovel em http://www.olavodecarvalho.org/textos/pmercadante.htm - capturado em
11/06/08.
512
Cf. contra-capa de MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1994.
- 147 -
Montenegro elogia pelo seu “arrojo renovador de abordagem da mentalidade insistentemente
subjacente na evolução sócio-cultural brasileira, a ponto de, em momentos de crise, de
impasse da Nação, se levantar em protagonismos exacerbados, forçando recuos, aparando
arestas progressistas, e plantando o gradualismo com pretensões de absorver os conflitos
sociais, visualizados como impertinências demoníacas pela ótica da ética dominante”
513
. Para
Ls Washington Vita, trata-se de uma obra “modelar”
514
. Antonio Olinto disse em 1965:
“Saiu afinal o livro de Paulo Mercadante, A consciência conservadora no Brasil, que
representa um aferimento denso e tranqüilo da situação brasileira de ontem e, até certo ponto,
de hoje”
515
.
Compreendemos melhor A consciência conservadora no Brasil quando remetemos ao
contexto de sua publicação, conforme delineamos anteriormente. Neste sentido, se Paulo
Mercadante faz uma digressão ao Império brasileiro, seu livro está impregnado da contra-
revolução preventiva, da revolução-restauração de 1964. Neste sentido, o autor diz que a
moderação nascida no Império transcende as suas origens, estaria completamente arraigada no
“ser brasileiro”. Rememorando seu passado no PCB, e a leitura d‟O Manifesto Comunista de
Marx e Engels (“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”), o autor cria a
imagem de que o espírito da moderação paira sobre o Brasil, que inclusive estaria na
fisiologia do brasileiro.
Para Mercadante, o velho espírito da moderação reaparecia revestido de aço. O aço
dos tanques de guerra da revolução-restauração de 1964. Para ele, cabia apenas fazer o
mesmo que Hamlet: seguir o espectro, agora envolto na armadura blindada. A consciência
conservadora no Brasil é um manifesto da contra-revolução, é pura expressão da revolução
passiva no Brasil.
4.1 A HISTÓRIA DO BRASIL NA PERSPECTIVA DE PAULO MERCADANTE
Nelson Mello e Souza, prefaciador da quarta edição d‟A consciência conservadora no
Brasil, diz que a conciliação de Mercadante é a descoberta da “imantação histórica”, do
513
MONTENEGRO, João Alfredo de Souza. Resenha de “Militares & Civis: A Ética e o compromisso”.
Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, volume XXVIII, fascículo 110, p. 234, abril-junho de 1978.
514
Cf. contra-capa da edição d‟A consciência conservadora no Brasil.
515
Cf. contra-capa de MERCADANTE, Paulo. Das casernas à caserna: a era de turbulências. Rio de Janeiro:
UniverCidade Editora, 2004.
- 148 -
sentido da história do Brasil; que se caracterizaria pelo fato de que as classes subalternizadas
teriam aceitado por vontade própria sua condição social. O conservadorismo brasileiro seria
“avesso a revoluções, desconfiado do Estado forte, propenso a garantir as liberdades
individuais contra o autoritarismo, inclinado a aceitar a lógica gradualista da história e o lento
evoluir da base de valores; o conservadorismo „no‟ Brasil assumiu perfil conciliatório”
516
.
Souza diz que Mercadante teria desvendado a “dialética da conciliação” na história do Brasil.
Para Paulo Mercadante, a história do Brasil tem o seu sentido enraizado em Portugal
do período das grandes navegações, que culminaram com a colonização da América. A
expansão ultramarina, diz, foi organizada por pessoal administrativo e militar recrutado junto
à nobreza, e por uma classe mercantil, o que teria consagrado um singular compromisso” e
uma “dimica de mercadores através de métodos baronais
517
. Desta maneira, o Estado
lusitano, através da “pragmática do compromisso”, levou a cabo uma exploração capitalista
das novas terras sob uma guerra de pilhagem senhorial. O que o autor quer dizer, é que o
Brasil teve a sua gênese num ajuste entre o feudalismo e o capitalismo. Além disso, a nobreza
que em Portugal se encontrava em franco declínio, empobrecendo-se, viu no Brasil atrativas
possibilidades nobiliárquicas; isto, diz Mercadante, foi a grande motivação à colonização.
Neste sentido, os colonizadores eram homens orgulhosos da linhagem fidalga; o autor recorre
à definição de Oliveira Viana: “homens de cabedais opulentos, esses chefes são também
homens em que se enfeixam as melhores qualidades de caráter. De integridade moral perfeita,
[...] pela dignidade, pela lealdade, pela probidade [...]. Descendo das flores da nobreza
peninsular para aqui transplantada, medalham-se todos pelo tipo medieval do cavalheiro,
cheio de hombridade e pundonor”
518
. Mercadante visa, assim, fixar os aspectos culturais dos
lusitanos que ocuparam o território, e corrobora Populações meridionais do Brasil, de
Oliveira Vianna:
Como é de crer, a atmosfera do domínio é impregnada desse sentimento de
honra que se estende aos descendentes das camadas plebéias portuguesas,
homens de qualidades, beneficiários das cartas de sesmarias, e que aqui se
fixaram, remediados a princípio, abastados depois e finalmente senhores de
latifúndios. Neles, como no próprio morador do domínio, permanecem os
mesmos sentimentos e hábitos. [...] o sentimento do pundonor pessoal e de
coragem física [...]
519
516
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil..., p. 40
517
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil..., p. 63
518
Idem, p. 72, apud. VIANNA, Oliveira. Populações meridionais do Brasil, v.1, p. 115. S/local, s/editora,
s/data.
519
Idem, p. 72-3
- 149 -
Desta maneira, Mercadante constrói uma interpretação da colonização que põe em relevo
supostas características da índole dos colonizadores, que aparecem aqui como pessoas
benévolas. Após isto, diz, os colonizadores passaram por um processo de ruralização e
passaram a viver “na tranqüilidade do seu domínio”
520
. Tudo isto teria implicações culturais
abrangentes, que se projetariam na história do Brasil.
Mas estes fatores culturais, em Mercadante, não se encerram em seu próprio plano,
tem sua correlação na economia, e é a partir das explicações econômicas que o autor
aprofunda sua concepção da cultura. Por exemplo, ele diz que houve uma “conciliação” na
estrutura econômica. Assim, após a ruralização do colonizador, não se desvaneceu o
“compromisso” nobiliarquia/mercantilagem, ao contrário, teria se cristalizado nos “domínios-
empresas”, que seriam, para o autor, qualitativamente diferentes de “meros” latifúndios,
“meras” fazendas. Neste sentido, um “domínio-empresa” seria fábrica também - daí sua
“natureza capitalista” -, sendo auto-suficiente e fornecendo a toda população que vivia às suas
margens os produtos primários para a subsistência: a indústria local fornece os produtos
necessários à vida social”
521
, mas voltava-se principalmente para o comércio exterior. Ou seja,
o denominado “domínio-empresa” seria uma geminação de planta industrial com a
agricultura. Ainda assim, a ocupação colonial teria sido feita pelo enfeudamento do território:
“Estrutura-se a propriedade atentando-se para os moldes dos domínios feudais, se bem que
isso já fosse anacrônico na metrópole
522
. Assim, durante o período colonial, se daria a
“conciliação”: “na forma estava viva a transação entre as aspirações da nobreza decadente
pelas extensões territoriais, corporificadas na sesmaria (cuja conceituação jurídica na colônia
contrariava as leis em vigor na metrópole), e os interesses dos mercadores, representados pela
instituição do engenho”
523
. Na Colônia, o compromisso nobiliarquia/mercantilagem teria novo
vigor com a conciliação” na economia (seriam a sesmaria e o engenho o ponto de
confluência), mas de um modo diferenciado da metrópole, “original”, sui generis. Disso
resultou, diz Mercadante, a peculiaridade do proprietário do “domínio-empresa”:
Isso fazia de seu proprietário um personagem original, solicitado
simultaneamente por duas ordens de interesses diferentes. O senhor de
escravos brasileiro era ao mesmo tempo um dominus, no sentido romano, e
520
Idem, p. 74
521
Idem, p. 84
522
Idem, p. 87
523
Idem, p. 87
- 150 -
um comerciante no sentido holandês do século XVIII.” [...] Entrosam-se, em
nossa economia, pois, capitalismo e feudalismo. Tal sentido misto empresta
à nossa estrutura uma natureza especial; as relações semifeudais no domínio,
oriundas das relações internas de produção, não podem divorciar-se da
existência de um mercado externo em processo de expansão e de sua
permanente atuação sobre o mesmo domínio.
524
Assim, para o autor, o proprierio do “domínio empresa” era mais que um latifundiário, era
um “senhor empresário” - algo peculiar do Brasil. Estes homens são tidos pelo autor como
frutos da época colonial brasileira, que manteriam um no passado, enquanto herdeiros dos
melhores valores nobiliárquicos, e um pé no futuro, como homens que seriam latifundiários e
industriais; como homens que encarnariam mesmo a síntese da história, nesta concepção.
Mercadante introduz assim sua concepção da história.
Segundo Paulo Mercadante, “A independência política de 1822 encerra em seu
contexto o espírito de conciliação que provinha de todo o processo histórico nacional”
525
.
Assim, para o autor, 1822 coroa o “senhor-empresário”, e se anteriormente ele fora o fruto
mais primordial da Colônia, agora ele passaria a protagonista da história. Para o autor, tudo
fora “um tranqüilo rompimento
526
, uma repercussão dos “homens-síntese”:
De forma sobremodo conciliatória fora o movimento entre os ultramarinos.
Transigia o elemento mais avançado, radical e republicano, com o elemento
reacionário, em geral alimentado de pré-juízos contra o espírito democrático.
Do conflito, que vinha de longe, emanaria o meio-termo, encarnado numa
força de centro, moderadora quase sempre, porém atuante. Constituíra-se
principalmente de antigos radicais, revolucionários de lojas maçônicas, os
quais se deixaram influenciar pela ideologia da restauração, e pela tendência
de centro, moderada e oportunista.
527
Assim, teria provindo da contemporização entre republicanos e reacionários o “meio-termo”,
próprio da conciliação, como força moderadora, como força centrípeta atuante sobre os
extremismos. Mercadante diz que o “meio-termo” brotou da união de radicais e conservadores
pela Independência, e que isto foi o lastro de sábia prudência”
528
. Para o autor, os fatos se
sobrepuseram aos homens, de forma que daí resultou a moderação vejamos o trecho a
seguir:
524
Idem, p. 91, citando RANGEL, Inácio. Dualidade Básica da Economia Brasileira. S/local, s/editora, s/data,
s/página. [grifos nossos]
525
Idem, p. 95
526
Idem, p. 96
527
Idem, p. 96 [grifos nossos]
528
Idem, p. 98
- 151 -
No dédalo das marchas e contramarchas, das vacilações que se sucedem, de
caracteres ou problemas pessoais de temperamentos, o fio que se liga os
principais acontecimentos está quase sempre submerso, não desvendando,
como é natural, todo o processo que conduz o grupo moderado à liderança
do movimento. Os fatos sucediam-se de afogadilho, envolvendo toda a
cúpula dirigente e a encaminhando fatalmente para a Independência.
Contrafeitos uns, cientes outros do que faziam, todos procuravam
acompanhar os acontecimentos soberanos e irreversíveis.
529
Para Mercadante, os moderados chegaram à liderança pelo cruzamento confuso de diferentes
vertentes e de questões de ordem pessoal, em que os fatos se sucederam apressadamente de
modo não reversível e com poder supremo daí teria despontado a moderação. O autor diz
que fatos soberanos fizeram a moderação se impor, mas não explica quais fatos e como se
sucederam, o que acaba conformando uma explicação dogmática e contra-factual, em que
aparece apenas o congraçamento entre as forças políticas tal qual na historiografia da
revolução passiva, que busca escamotear as rupturas.
Num momento seguinte d‟A consciência conservadora no Brasil, encontramos a
seguinte explicão para a moderação: diz Mercadante que se destacaram dois grupos que
trabalharam em prol da Independência, um aspirava à abolição da escravidão, tinha suas
origens nos movimentos populares, “congregando radicais de todos os matizes
530
; o outro
grupo queria apenas o derrocamento do pacto colonial, eram os senhores rurais, em sua
maioria de Minas e São Paulo, que, segundo o autor, eram revolucionários pela metade,
digamos assim, pois se apegavam ao liberalismo econômico, bafejado pelos ares de um
constitucionalismo engenhoso que pudesse aceitar a estrutura econômica escravista. A
hegemonia dos senhores rurais apresentava-se num programa de frente única com os setores
de grupos mercantis urbanos, arrastando, na política de centro, as correntes radicais [...]
531
.
Assim, diz, o centrismo político senhoril conquistou a hegemonia”, através duma frente
única”. Não é possível falar em hegemonia e frente única para aquele período, trata-se de
evidente anacronismo e descontextualização mas isso é proposital, pois o autor está
propondo uma estratégia para as classes dominantes contemporâneas. Desta maneira, assim
como os “radicais”, “os conservadores „chumbistas‟, e reacionários de todas as tonalidades”
também foram levados pela força moderativa, que aqui aparece como necessidade histórica:
529
Idem, p.102-3
530
Idem, p. 103
531
Idem, p. 103-4
- 152 -
“O equilíbrio nascera para alcançar-se, de modo cauteloso, a Independência
532
. A proposta
da vertente é explicada pelo autor do seguinte modo:
A corrente moderada propunha-se a imprimir à Independência um sentido
que pudesse aceitar o bifrontismo de nossa estrutura econômica. Teria sido
provavelmente a hegemonia senhorial do movimento, desempenhada pelo
grande fazendeiro, espécie de gentry de caráter territorial, que congraça na
ação rebelde o liberalismo econômico e o instituto da escravatura. Ao
findar do século XVIII, a ruralização colonial já havia gerado esse tipo de
senhor dos domínios, autenticamente nacional. [...] [O senhor] É dúplice
econômica e mentalmente: vive numa fazenda de escravos de látego em
punho enquanto se empolga pelas idéias liberais correntes nos países
europeus libertos do feudalismo; revolucionário, quando analisa as suas
relações de produção com o mercado externo, e conservador, quando reage a
quaisquer idéias de abolição. Seu caminho é necessariamente o compromisso
entre a escravatura e o liberalismo econômico.
533
Assim, a solução moderada confluiria com a especificidade nacional, encarnada pelo senhor
que seria revolucionário e reacionário como encarnação do processo histórico, que
harmoniza tese e antítese num “compromisso”. A moderação teria tido grande aceitação pelo
medo generalizado de uma revolução; os movimentos radicais, diz o autor, provocavam tanto
receio que acabaram gerando a violenta repressão que se abateu sobre eles
534
. A “cautela”
marcaria a ação moderante como podemos ver a seguir: “O temor à revolução teria sido um
dos esteios do movimento pela independência. [...] Todos acabariam acordando com a forma
de arranjo político, pelo qual se operaria o movimento, e do mesmo modo conformados com a
ausência de participação popular. O povo fora advertido [...] de que sua atuação nos
acontecimentos importantes sempre poderia proporcionar um doloroso saldo de tragédia”
535
.
Ou seja, a moderação justifica-se historicamente pelas ocorrências funestas próprias da
atuação popular, na concepção de Mercadante. O grande receio, diz, era que ocorresse no
Brasil, o que ocorreu no Haiti, ademais as lembranças do quilombo dos Palmares: Que tudo
viesse com vagar, de forma suave, sem a temerária participação jacobina
536
. Encontramos
em Mercadante aquilo que Gramsci chama de temor pânico de movimentos jacobinos e de
qualquer intervenção das massas populares nos processos históricos característico do
moderantismo conservador da revolução passiva. Neste sentido, no decorrer da exposição, o
leitor verá outros exemplos.
532
Idem, p. 104
533
Idem, p. 105
534
Cf. Ibid, p. 106
535
Idem, p. 107-8
536
Idem, p. 100 [grifos nossos]
- 153 -
Consumada a Independência, diz o autor, cabia então cuidar das instituições, e, para
tanto, a inspiração viria do liberalismo parlamentarista inglês, para garantir uma evolução sem
sobressaltos, sem rupturas
537
. Nesta concepção, José Bonifácio, que teria aparecido como líder
moderador, preocupava-se com a elaboração de um “diploma apropriado às condições
nacionais”
538
, “vê-se a inquietação de Andrada por nossas condições peculiares, pelo critério
seletivo e pela aplicação dos preceitos universais às nossas circunstâncias. [...] A preocupação
pela unidade nacional também reponta desde os primeiros momentos”
539
. N‟A consciência
conservadora no Brasil, o projeto feito pelos constituintes não atendia às nossas
peculiaridades; fugia à linha de moderação tendencial
540
. Para Mercadante, a reação
moderadora viria com o golpe de D. Pedro I e com a dissolução da Constituinte. A
contrapartida moderante se concretizaria com a Carta Constitucional de 1824, que, neste
sentido, encerraria “o espírito do ecletismo tendencial aspirado pela conciliação de 1822. Foi
toda decalcada sobre o modelo do projeto da Constituinte de 1823, mas as arestas jacobinas
cuidadosamente limadas”
541
. Uma das grandes modificações, para o autor, é que na nova
constituição as forças armadas poderiam ser utilizadas internamente. Ademais, outro aspecto
enumerado é que ela conservava o juízo de paz que primava pela conciliação; para o autor,
isto seria de grande relevância, pois “desempenhara o direito público idêntico papel de Cousin
na filosofia: o de um conciliador de diferentes idéias, admirador, em termos, das aspirações
liberais, e adversário do radicalismo”
542
. Desta maneira, Mercadante começa à adentrar à
história das idéias, e do ecletismo espiritualista, como veremos mais à frente. O Poder
Moderador e a “conciliação” entre liberalismo e escravismo, estabelecidos institucionalmente
com a Constituição de 1824, seriam a concreção do “ecletismo tendencial”
543
. aparecem
também as contradições de Mercadante, em especial a qualificação como “moderadas” de
posições extremadas, principalmente a manutenção do escravismo.
Neste sentido, Mercadante diz que após 1789, a “burguesia não mais retornaria ao
idealismo da aristocracia derrubada. Nem regredir às velhas concepções, nem prosseguir no
materialismo”
544
. Neste sentido, argumenta, a burguesia escolheu o “meio termo”, a
conciliação: “o ecletismo espiritualista representaria a concilião e por isso aos ecléticos
537
Cf. Ibid, p. 115
538
Idem, p. 118
539
Idem, p. 118
540
Idem, p. 121
541
Idem, p. 124
542
Idem, p. 126
543
Idem, p. 127
544
Idem, p. 139-40
- 154 -
caberia desempenhar o papel mais importante naquela quadra histórica. [...] A universidade
do ecletismo decorrera da moderão, da prudência, do equilíbrio da burguesia, após a sua
revolução vitoriosa”
545
. O ecletismo aparece aqui como expressão da conciliação e da
moderação, e estas como concreção daquele.
A história do Brasil percorreria este percurso traçado pela moderação; tendo como
ante-sala a abertura dos portos (1808), teria feito sua Independência de modo gradual,
compromissado, conciliado. A interpretação de Mercadante abstrai as rupturas e lutas
históricas, a Independência aparece aqui esfacelada dos momentos de combate; esta é também
uma das expressões da revolução passiva. O fragmento a seguir contribui para o entendimento
da concepção de Mercadante:
Em geral, a classe senhorial tornava-se sensível a todo movimento de idéias
que o pensamento europeu formulava e debatia na época da revolução
industrial. Mas todo o esforço da aristocracia rural brasileira, no seu afã de
absorver a produção cultural alienígena, através de sua intelligentsia, se
encaminharia para a correspondência intelectual a uma adaptação às
condições próprias da economia mundial, no período que assinala a
passagem da fase da produção colonial à do capitalismo comercial. Nisto
consiste seu esforço seletivo. [...] Adota uma atitude pragmática procedente
de uma tendência de concórdia e equilíbrio. Uma acentuada inclinação
moderadora a transir as idéias poticas, a doutrina e a vida potica, o
romantismo literário e o arremedo de filosofia colorindo os acontecimentos
com os tons da acanhada ideologia da conciliação. [...] surgia o ecletismo
entre nós, primeiramente como tendência, esboçada de modo empírico, para
fazer face às exigências de nossa sociedade, e depois, no curso do século,
corporificando-se em idéias, numa integração ao espírito do tempo.
546
O “espírito do tempo” é definido pelo autor da seguinte maneirao espírito contraditório de
Hegel é o próprio espírito do tempo. Suas convicções oscilam entre as de um adepto do
iluminismo e um profeta do absolutismo. É, porém, adepto do meio-termo
547
. Vemos assim,
que Mercadante propala a reforma conservadora do hegelianismo. N‟A consciência
conservadora no Brasil os grandes proprietários rurais aparecem não apenas como a principal
classe social, mas também como a única digna de nota, é o que se pode perceber também no
fragmento a seguir, original de outra obra de Mercadante:
Quase toda a população, aproximadamente noventa por cento, vivia nos
domínios, e dessa massa apenas os senhores formavam um grupo social
545
Idem, p. 141
546
Idem, p. 143 [grifos nossos]
547
MERCADANTE, Paulo. Militares & civis..., p. 33
- 155 -
definido, embora restrito. Os demais moradores dos latifúndios ressentiam-
se da falta de homogeneidade. Escravos, em sua maioria pessoas atrasadas
e ignorantes, arrancadas com violência de seu meio e com mínimas
condições de se organizarem socialmente. A instabilidade era também de
outras camadas de moradores do campo. Os agregados das fazendas e
engenhos, os sitiantes, pequenos proprietários com suas engenhocas
primitivas, ligados todos a produtos secundários de economia agrícola por
sua dependência em relação aos senhores do domínio, e pela dispersão, não
constituíam agrupamentos sociais estáveis. [...] Na enorme área dos
latifúndios agrícolas, só os grandes senhores rurais existem. Fora deles,
tudo é rudimentar, informe e fragmentário.
548
Mercadante acaba por desqualificar os trabalhadores escravizados como pessoas atrasadas e
ignorantes”, de maneira a persuadir, a induzir o desvio do problema real: a exploração e a
condição absurda de vida absurda dos escravizados; assim como também escamotear o papel
das classes sociais populares no processo histórico.
Resolvidas estas questões, cabia então, diz Mercadante, combater o excesso, e o
“excesso eram as ameaças à instituição servil”
549
. Mercadante até maldiz a escravidão, o
“nefando instituto”
550
, mas é só, e, como veremos, o apoio é completo. Primeiramente, o
escravismo aparece aqui como fator de unidade nacional: “Não fosse, pois, a objetividade dos
homens regressistas, a unidade do Brasil estaria definitivamente comprometida. A questão da
escravatura fora decisiva, embora a ausência de base moral para justificá-la explique o
silêncio no que tange aos motivos reais da reação”
551
. Os principais problemas sociais
aparecem com recorrência em Mercadante como questões de ordem “prática”, e qualquer
proposta de solução mais radical aparece como mera demagogia, seja na questão da
escravidão, seja na questão da exploração: “A teoria da mais-valia [...] tem, antes de tudo, um
caráter moral. „A exploração do homem pelo homem, de uma classe por outra, era o pecado
original para Marx. Também a noção de exploração é uma noção moral e não econômica‟”
552
.
O abolicionismo, diz o autor, só poderia ser combatido pelo fortalecimento do governo
central, através do chamado “Regresso”. Nesta acepção, a centralização não fora um ato
conservador, teria sido assim julgada por causa das críticas exacerbadas dos radicais; para
Mercadante os moderados “aspiravam a um „progresso compassado‟, mediante um governo
representativo que é o governo das transações [...]. Desencadearam a atividade reatora com
548
Idem, p. 35
549
Idem, p. 158
550
Idem, p. 159
551
Idem, p. 159
552
MERCADANTE, Paulo. Militares & civis... , p. 206, apud. BERDIAEFF, Nicolau. Reino do Espírito e
Reino de César. Madri: Aguilar, 1955. p. 143
- 156 -
firmeza e sem precipitar-se, impondo-se mais como fruto de uma necessidade histórica do que
como aspiração exclusiva de uma facção política”
553
. Neste sentido, o Regresso seria um
movimento conciliador, avesso aos extremismos”, pois teria sido marcado por um amplo
debate democrático
554
, sempre buscando um “meio-termo”, e “sua implantação deveu-se
enfim ao grupo vezado a transigir, a servir de meio-termo entre o grupo conservador e os
próprios jacobinos. Procedente da denominada “tendência do meio-termo”, o Regresso nunca
se revelaria contrário às origens liberais de seus componentes”
555
. Assim, Mercadante coloca
a centralização política, o reforço da figura do imperador, e a sustentação da escravatura
propiciados pelo Regresso, como uma medida equidistante de conservadores e de radicais,
como medida moderante mesmo.
Segundo A consciência conservadora no Brasil, a moderação contava com alguns
trunfos na manga. Um deles seria o conservador Visconde do Uruguai, crítico do federalismo,
dizia que ele não poderia ser aplicado aqui porque faltaria aos brasileiros alguns caracteres
culturais - os admiráveis elementos de ordem e moralidade
556
- próprios dos norte-
americanos. Neste sentido, corroborando Uruguai, Mercadante diz que em terras onde não
estão difundidos em todas as classes da sociedade aqueles hábitos de ordem e legalidade, é
preciso começar introduzi-los e sujeitar esses ensaios a uma certa tutela
557
. O autor diz que
o Visconde criticava o excesso de centralização; o centralismo deveria assumir uma forma
moderada
558
. Neste sentido, Uruguai seria um dos moderadores, pois, diz o autor, a idéia da
federação camuflaria o separatismo. Tamm convergiria com a moderação o liberal Teófilo
Otoni que, apesar de ter se notabilizado pela sua oposição, quando passou a integrar a
Câmara, despegou-se da política e permaneceu calado
559
. As revoltas Praieira e Farroupilha
também não teriam destoado da política moderativa, pois seriam reformistas. Uma revolução,
diz o autor, teria fracionado o Brasil, pois a unidade seria mérito exclusivo do escravismo e da
moderação. Assim, nesta concepção, a política moderadora era a melhor opção para o país, a
ponto de ter no bolso toda a oposição pela força da idéia.
Segundo Paulo Mercadante, passados os 1830 e 1840, caracterizados pela força
centrípeta atuante da moderação, começaria nos anos 1850 o reinado da conciliação, pois
553
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil..., p. 162
554
Idem, p. 163
555
Idem, p. 163
556
Idem, p. 165, apud. Visconde do Uruguai. Tratado de Direito Administrativo, t. 1, p. 240
557
Idem, p. 166
558
cf. Idem, p. 167
559
cf. Idem, p. 176-8
- 157 -
“estavam os homens cansados de insultar-se e abraçaram-se [...]”
560
; “a preocupação pelo
apaziguamento dos espíritos vinha de longe”
561
. Ou seja, para o autor se não houveram
rupturas radicais, é porque não haviam interesses antagônicos, e quando houveram
divergências, acabaram absorvidas pela moderação; aqui o compromisso nunca fora
quebrado, a história aparece como a trajetória evolutiva da moderação; e esta tarefa de
Mercadante é facilitada à medida que ele faz uma história parlamentar, uma história dos
debates ocorridos no parlamento durante o Império brasileiro. E assim prossegue o autor:
De todos os cantos, desde a consolidação do poder conservador,
interpunham-se os brados que reivindicavam a política de paz entre os
espíritos. [...]
Se havia a necessidade de melhoramentos, de pactos e concessões às novas
circunstâncias, melhor seria que a dirigisse o espírito conservador. Quais
poderiam ser os inconvenientes da paz que pregavam conservadores e
liberais? Não se podia fugir à tendência transatora. Seu significado, até então
disfarçado em empirismo político, procurava tentear um sentido de
doutrina.
562
Qual o sentido de falar em paz e de sua necessidade frente à escravização dos trabalhadores?
O sentido é o de uma pax romana; a beleza do argumento da pacificação escamoteia a
violência da escravidão, e a luta de classes. Neste sentido, a história construída por Paulo
Mercadante visa produzir, verdadeiramente, um fetiche, que desvia o foco para longe do
verdadeiro problema, numa história fetichista como diria Gramsci.
Paulo Mercadante diz que com a conciliação moderadora se inaugurou uma época
única da história do Brasil, que ninguém definiria melhor do que Justiniano José da Rocha:
E que movimento social era esse que todos os poticos pressentiam, a que
obedeciam, que lhes fazia abandonar as suas posições de vencedores, senão
o resultado da convicção íntima do país de que estavam extintas todas as
paixões, acabadas todas as lutas do passado? E essa extinção das paixões,
esse esquecimento de ódios, e que então os sintomas evidentes de que a
sociedade tem chegado a esse período feliz de calma e de reflexão que pode
e deve ser aproveitado para a grande obra de transação?
563
É neste período então que a moderação teria se concretizado no partido da Liga, fundada por
Joaquim Nabuco, dirigida pelos conservadores moderados, e de 1862 ao fim da monarquia,
560
Idem, p. 188
561
Idem, p. 190
562
Idem, p. 191
563
Idem, p. 193-4, apud. ROCHA, Justiniano Jo da. Ação, Reação, Transação. In: MAGALHÃES, R. Três
panfletários do Segundo Reinado. S/D, S/L, p. 216
- 158 -
diz o autor, “pairaria o espírito da Liga por sobre as instituições”
564
impulsionando a
conservação camuflada no juste milieu. O movimento da conciliação, a evolução da
moderação, diz Mercadante, teria sua teoria histórica elaborada por J. J. Rocha, e, nesta
concepção, se constituiria numa premissa de valor universal que o requer demonstração -
num axioma:
Na luta da autoridade com a liberdade, sucediam-se [...] períodos de ação, de
reação e, por fim, transação. Neste último, o progresso do espírito realiza-se,
e se firma a conquista da civilização.
A aplicação da tese às nossas condições levaria o jornalista [J.J. Rocha] a
dividir a História do Brasil em períodos diferentes: os primeiros, a ação, em
sua luta e em seu triunfo, abrangendo o período que vai da Independência até
1836; os dois outros, correspondentes à fase da reação que alcança com o
seu triunfo monárquico os primeiros anos da década de 50; e finalmente o
último, chamado o da transição, que se inicia com Paraná na época em que
escreve o seu panfleto.
Havia então chegado o momento em que a reação não mais podia progredir,
em que a ação revolucionária esmorecera, cumprindo que a sabedoria dos
governantes descobrissem os meios de trazer “a um justo equilíbrio os
princípios e elementos que haviam lutado”. A fase da transação era para a
que exigia mais prudência. “mais tino, mais devoção nos estadistas a quem é
confiada a força governamental e a alta direção dos públicos negócios; pois
se a não sabem ou querem reconhecer, se não querem ouo sabem facilitar,
se ainda mais a contrariam, provocam calamidade a que depois não
sabedoria que possa acudir”.
565
Teríamos assim o “axioma da moderação; constituído no decalque da dialética da história (o
tríptico da ação-reação-transação), no qual se define intelectualmente e não historicamente
- a perversão da dialética da história. A teoria do tríptico visa estabelecer antecipadamente no
campo de luta as regras e o resultado da história, tendo como último termo sempre a
transação, deturpando a história num hegelianismo mutilado próprio da revolução passiva,
com vistas à conservação infinita. Das considerações axiomáticas de J.J. Rocha, Mercadante
insinua sua teoria do juste milieu moderador:
O justo equilíbrio seria a conciliação dos contrários, do radicalismo, atuante
e dinâmico, com a reação que procurava deter-lhe a marcha, firmando o
princípio da autoridade.
Se é necessário conter a avalancha da revolução, também é imprescindível
sustar o processo reator. Nisto consiste a política do meio-termo, do
equilíbrio [...].
Cumpria que o poder se desarmasse de modo espontâneo, esquecendo as
lutas passadas, renunciando ao arbítrio e adotando as idéias que o
564
Idem, p. 196
565
Idem, p. 197-8, apud. ROCHA, J.J. Ação, Reação, Transação... p. 163-4
- 159 -
liberalismo adverso expunha em sua plataforma de inovação, depois de
selecioná-las segundo o critério das verdadeiras necessidades públicas. As
reformas deviam ser conduzidas sem os prejuízos quanto às suas origens,
pois ao contrário, permaneceriam exclusivamente nos programas radicais e
demagógicos, e teriam que os conservadores defender a ordem e a
autoridade contra as exagerações de um novo surto democrático e
jacobino.
566
Assim, caberia aos conservadores, tomar para si os projetos e as bandeiras oposicionistas e
selecioná-los, fazendo uma escolha fundamentada, para tanto levar a cabo as reivindicações
destituídas de seu sentido mais radical, quanto para antecipar-se à radicalização dos processos
históricos, para sob sua ação conter qualquer possibilidade de ruptura. Nisto consiste a teoria
e a prática do moderantismo conservador esboçado por Mercadante.
Neste sentido, diz o autor, diante do abolicionismo, os moderados adotaram uma
política de reformas consubstanciadas na lei do ventre livre (1871) diga-se de passagem,
com um retardo de até três décadas em relação aos demais países latino-americanos (1842
Paraguai, 1851 Colômbia, 1852 Equador, 1853 Argentina, 1854 Peru)
567
. Segundo o
autor, a questão da abolição não era ética e nem religiosa, mas com implicações práticas:
“Cumpria examinar o problema com espírito objetivo e realista
568
; como falamos
anteriormente, aqui as reivindicações populares aparecem como demandas de ordem moral,
ética e religiosa, descoladas da realidade, da “prática vejamos o fragmento a seguir:
Aqui a idéia humanitária da emancipação nunca encontrara adversários
endurecidos, nunca teve que enfrentar a oposição de um partido. [...]
Cumpria, antes de tudo, examinar o problema do ponto de vista de nossas
condições especiais. Tratava-se de um fato complexo: [...] interessando a
toda ordem de relações, quer jurídicas, quer sociais. Estava a escravidão
essencialmente ligada à lavoura e em seus fundamentos repousavam os
direitos consagrados expressamente na Carta Magna e nas leis privadas. Os
interesses da agricultura eram para aquela sociedade de senhores rurais os
interesses de toda a sociedade pois “ela não pode ter outros mais
importantes, porque toda a sua vitalidade aí está. Não os perturbemos. Ao
menor abalo pode desabar-se em ruínas um belo edifício”, advertia um dos
representantes da lavoura paulista. [...]
Na verdade, prosseguiam, ninguém desejava a prolongação indefinida da
instituição [escravocrata]. Mas, apesar disso, o problema não podia ser
resolvido precipitadamente, sem que adviessem funestas conseqüências para
a sociedade. [...]
No domínio das idéias abstratas, facílimo seria resolver o problema,
anunciava um dos espíritos lúcidos das hostes conservadoras, concluindo:
566
Ibid. p. 198
567
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. edição. Rio de Janeiro: Graphia, 1998. p.
340-1
568
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil..., p. 203
- 160 -
“com um simples rasgo de pena, ficariam satisfeitas as exageradas
aspirações dos filantropos do século”.
Todavia, cumpria ser realista, respeitar, primeiramente os direitos
adquiridos e o direito de propriedade [...].
569
Vemos assim que Mercadante constrói uma apologética escravocrata. Nesta concepção, cabia,
antes de tudo, respeitar o direito de propriedade ainda que fosse a posse de outrem. A
política de atraso da abolição a passos de tartaruga - adotada no Império, aparece aqui como
“política eclética”, que combinava “emancipação simultânea” e “emancipação progressiva”
dos escravizados
570
. Este encaminhamento, diz o autor, garantiu aos senhores a “serenidade”
para esperar a crise final da abolição, para o perderem as rédeas do processo e para que
apenas a libertação ocorresse
571
. Para o autor o essencial foi a continuidade da moderação,
sem que o processo radicalizasse para uma reforma agrária que para ele ademais o
problema social, a questão “jurídica” da propriedade. Nesta concepção, o processo de
abolição teria ocorrido numa “oportuna transação entre os dois princípios: o escravocrático e
o abolicionista”
572
; e o que havia entre os latifundiários era o receio de uma revolta
generalizada dos escravos, tal qual ocorrera no Haiti.
Outro problema suscitado por Paulo Mercadante é a questão do Poder Moderador.
Segundo ele, o Poder Moderador enfeixava diversas tendências filosóficas: a “harmonia” e o
“equilíbrio” do conservadorismo de Benjamim Constant
573
, a “neutralidade” da moderação do
Visconde do Uruguai
574
, a “democracia” do liberalismo e da monarquia constitucional de
Teófilo Otoni
575
, e, por fim, a harmonia”, a “hierarquia”, a “ordem”, a “estabilidade” e a
“bondade específica” alardeados pelo tradicionalista Brás Florentino
576
; numa grande
conciliação voltada ao combate do radicalismo
577
. O Poder Moderador, dia o autor, se
confundia por um lado com a cultura brasileira e, por outro lado, sendo D. Pedro II formado
neste ambiente, confundiam-se também o imperador e aquela instituição:
A tendência ideológica do equilíbrio difundia-se sobre tudo. Passava assim a
realidade superindividual de nossa cultura a ser caracterizada por tonalidades
569
Idem, p. 203-4-5, apud. SILVA, Rodrigo da. Voto em separado. In: Elemento Servil, Parecer e Projeto-de-Lei
apresentados à Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 16 de agosto de 1870, p. 106-7 grifos nossos
570
Idem, p. 206
571
Idem, p. 207
572
Idem, p. 208, apud. MORAIS, Evaristo de. A Campanha Abolicionista. S/Local, S/Editora, S/Data. p. 67
573
Cf. Idem, p. 241
574
Cf. Idem, p. 242
575
Cf. Idem, p. 244
576
Cf. Idem, p. 247-8
577
Cf. Idem, p. 245
- 161 -
que o ecletismo procurara ilustrar através de uma fórmula engenhosa de
conciliação de diferentes escolas filosóficas.
A linguagem do grupo dominante impregnava a coletividade quase toda das
palavras e significações tranqüilas. [...]
A cultura inspirada no ecletismo tornava-se transcendente, predominando
nas instituições, na sociedade, e passava a atuar sobre os indivíduos, sobre o
príncipe, tornando-se imanente aos próprios homens, principalmente o
imperador. A cultura do ecletismo, diríamos, retransia [penetrava a o
íntimo] o indivíduo, instalava-se em sua fisiologia, nos seus centros de
sensibilidade, condicionando-lhe tudo, os reflexos e o comportamento.
Nascera no Brasil o imperador, independente através uma fórmula de ajuste
político. Vinha destinado, sobretudo por sua nacionalidade, a desempenhar
uma função de apaziguamento dos espíritos conturbados.
[...]
Reservava-se-lhe um papel atreguador a desempenhar na história do país, e
seus mestres [José Bonifácio e Itanhaém] imbuíam-lhe os hábitos adequados,
modos frios, e ei-lo soberano sem tumultos sentimentais, o que lhe daria o
necessário equilíbrio à política de moderação.
578
Assim, nos defrontamos com o seguinte desta concepção: (I) o ecletismo (e as correlatas
conciliação e moderação) disseminavam-se por todo Brasil; (II) apesar de apresentar-se aqui
como um espírito verdadeiro, o ecletismo era conectado com a classe dominante, no entanto
era-lhe transcendente; (III) o imperador, em meio a isto tudo, formara-se de modo a estar
preparado para ser o condottiere da moderação. Concluímos que para Mercadante, o
ecletismo e a moderação inebriavam a tudo e a todos, chegavam mesmo a adentrar
fisiologicamente os sujeitos, em outras palavras, constituíam-se num espírito mesmo,
metafísico, superior às questões histórico-sociais, aos homens, às classes; mas uma
superioridade hierárquica, que se impunha a tudo e a todos. E, neste sentido, a moderação
estaria em outro patamar, intocável, encarnada em D. Pedro II, concretizada no Poder
Moderador.
O ecletismo, diz o autor, fora a mais importante reação ao materialismo; os ecléticos
angariavam no país muito prestígio, e seus livros chegavam até o interior, de modo que Victor
Cousin teria sido muito debatido. Segundo Mercadante, o ecletismo de Cousin julgava com
equilíbrio todas escolas filosóficas, e delas retirava o que houvesse de “verdadeiro” e
eliminava o que houvesse de “falso”, daí a ampla disseminação do filósofo frans. Neste
sentido, o ecletismo faria na filosofia o mesmo que a moderação na política:Na verdade, não
passou o ecletismo de um conjunto de fragmentos, uma mistura, revelando o desejo de
manter-se em equilíbrio entre os extremos [...]. [...] A filosofia da paz e da concilião
propunha a todos os espíritos que se esquecesse o passado com todos os seus excessos. O
578
Idem, p. 248-51
- 162 -
enciclopedismo era o culpado de todos os males
579
. Assim, devido a propagação da filosofia
eclética, não haveria mais lutas no Brasil: “tudo tinha adormecido à sombra do manto do
príncipe feliz”
580
. Da mesma maneira que na historiografia da revolução passiva, aqui
encontramos o apagamento das lutas, este período histórico aparece como o reinado da paz.
A divulgação do ecletismo teria se iniciado com Silvestre Pinheiro Ferreira, que
chegara um pouco após D. João VI, e iniciou um curso de filosofia na Corte a partir de 1813.
Segundo Mercadante, suas idéias, expostas em 1821, exprimiam um meio-termo, afastadas
do absolutismo e do jacobinismo democrático”
581
. Em fins dos anos 1830, Ferreira teria
conhecido Cousin. O ecletismo teria outro grande disseminador em Gonçalves de Magalhães,
autor de Fatos do Espírito Humano (Paris, 1858). Na filosofia, diz Mercadante, assim como
na moderação, o caminho também seria evitar os efeitos da Revolução Francesa
582
.
Paulo Mercadante, na conclusão de sua obra, diz que a conservação não tem por si
mesma qualquer predisposição teórica, de sistematização, pois partiria “de uma pragmática de
que o cumpre divagar sobre as situações em que se encontram os homens naturalmente
ajustados”
583
, e disto seria proveniente um estado de espírito despido de inquietações”
584
.
Neste sentido, diz, o conservadorismo “parte do princípio de que tudo que existe possui valor
nominal e positivo em razão de sua existência lenta e gradual”
585
. As reformas, prossegue o
autor, devem ser realizadas para conservar
586
.
Segundo Paulo Mercadante, a seguinte máxima norteava as “eminências
conservadoras”
587
: “A escola da autoridade é a única legítima; porque é a única realizável; um
governo filho da revolta não pode marchar um só dia em virtude de seu princípio, e expira, se
o não combate”
588
; este princípio caracterizaria o “pensamento calmoso”
589
dos
conservadores. Importante notar que Mercadante corrobora o princípio da autoridade em 1965
(ano da publicação de sua obra), logo após o golpe de 1964; em outras palavras, pode-se dizer
que o autor apóia explicitamente a Ditadura.
579
Idem, p. 258
580
Idem, p. 259, apud. ROMERO, Silvio. Explicações indispensáveis. In: BARRETO, Tobias. Vários Escritos.
S/Local, S/Editora, S/Data. p. XXVI-II
581
Idem, p. 262
582
Cf. Idem, p. 271
583
Idem, p. 273 grifo nosso
584
Idem, p. 273
585
Idem, p. 274
586
Cf. Idem, p. 275
587
Idem, p. 290
588
Idem, p. 290, referindo-se a Cafefique, sem citar a obra.
589
Idem, p. 290
- 163 -
O autor chega à seguinte conclusão: “Ao esrito ilustrado, alistado nas hostes
conservadoras, teria pois cabido, em toda a história do século XIX, o evitar as concussões, o
mérito das reformas, realizando-as prudentemente. [...] Os conservadores, quando sentem
necessidade delas, fazem-nas. Façamos no governo o que eles reclamam em oposição, diziam
eles, os conservadores”
590
. Vemos aqui a expressão de um conservadorismo reformista
temperado (como diria Gramsci), que teme as revoluções e as enxerga como mero exercio
de violência extremista.
4.2 PAULO MERCADANTE E JOSÉ HONÓRIO RODRIGUES: UM DEBATE ENTRE OS
INTELECTUAIS DA REVOLUÇÃO PASSIVA
No mesmo ano de publicação d‟A consciência conservadora no Brasil, surgiu a obra
de José Honório Rodrigues, Conciliação e reforma no Brasil
591
, que trata da mesma temática
que a obra de Mercadante.
Rodrigues trata da conciliação de maneira qualitativamente diferenciada de Paulo
Mercadante. no icio de sua obra argumenta que as políticas conciliatórias sempre foram
feitas no interior dos grupos dominantes, sem concessões à maioria brasileira que foi mantida
às margens e aquém de benefícios sociais. Como dissemos anteriormente, esta obra foi
publicada em 1965, mas é interessante notar o que diz o autor na introdução da reedição de
1982: “Em 1964 houve a inconciliação e a imoderação da cúpula militar que dominou o Poder
e tutelou a nação. Pela primeira vez na história brasileira a força dominante o se conciliou
com ninguém, nem com seus iguais, [...]”
592
. Diferentemente, Mercadante afirmou no mesmo
ano que os militares estariam declaradamente comprometidos com a democracia, e o golpe
significava o “triunfo do bem
593
. Interessante notar que ambas as obras tiveram edições
(1965) e reedições (1980 e 1982) concomitantes, seja logo após o golpe, seja durante a
abertura.
Para Rodrigues, segundo as circunstâncias políticas, econômicas e culturais, a minoria
dominante colonial ora agiu de maneira violenta e intransigente, ora de forma transigente e
conciliadora. Isto durou até o fim do século XVII, quando, principalmente pela miscigenação
590
Idem, p. 291
591
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural. 2 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
592
Idem, p. 14
593
Cf. MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora... p. 47-56
- 164 -
e pela tolerância racial, foi derrotado o tipo que agia apenas pela violência e o modo
conciliador tornou-se preponderante.
Segundo José Honório Rodrigues, apesar de prevalecer no povo o “esrito de
conciliação” - que se expressa na unidade lingüística, na mestiçagem, na tolerância racial -,
seria falso afirmar que seu comportamento foi sempre conformista e que sempre agiu de
maneira resignada. Na verdade, nossa história colonial foi marcada por muitas lutas sociais;
para exemplificar, Rodrigues enumera as diversas contendas que ocorreram nos séculos XVII
e XVIII. Não é necessário mencionar as muitas pelejas sociais citadas, mas já podemos
perceber a seguinte característica: este intelectual não esconde os choques sociais
sanguinários que ocorreram, diferentemente de Mercadante.
Uma questão histórica que revela a diversidade existente entre a visão dos nossos
autores é a Independência. Segundo Paulo Mercadante, tudo fora um tranqüilo rompimento,
uma grande conciliação entre portugueses e brasileiros. para José Honório Rodrigues, A
Guerra da Independência tem sido apoucada para valorizar a obra da Casa de Bragança, para
sofrear o papel dos brasileiros, e, finalmente, para favorecer o congraçamento luso-
brasileiro
594
.
Outro ponto que permite-nos cotejar as duas obras, é verificar como os autores
interpretam a atuação de Frei Caneca. Para Paulo Mercadante, ele representava um
liberalismo tardio, “serôdio”, com o Frei “jamais esteve o liberalismo radical mais distante
dos interesses do país”
595
. Em Rodrigues, Caneca é visto como defensor dos interesses
nacionais e, acima disso, do povo: “os interesses, a felicidade e a glória do Império são e
serão sempre os interesses, a felicidade e a glória deste brioso povo”
596
.
Vimos antes que Mercadante coloca os senhores rurais em posição privilegiada, como
os protagonistas de nossa história, “na enorme área dos latifúndios agrícolas, os grandes
senhores rurais existem”
597
; chega mesmo afirmar que eles eram as vítimas do escravismo e
não os escravos. Já José Honório, de forma mais crítica, diz que não o Brasil não era
composto somente por latifundiários, mas sim por um povo dominado por eles. “Os interesses
594
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma... p. 41 grifos nossos
595
MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora... p. 123
596
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma... p. 45-6
597
MERCADANTE, Paulo. Militares e civis... p. 35
- 165 -
vitais do país estavam na agricultura e esta era dominada pela grande propriedade territorial,
que pedia vassalos obedientes”
598
.
A escravidão é uma questão essencial para entender o caráter da conciliação. Segundo
Rodrigues, no processo histórico que se inicia no ano da Independência (1822) e culmina na
Abolição da Escravatura (1888) predomina o gradualismo como estratégia política senhorial
para retardar ao máximo a libertação dos escravos. A mentalidade gradualista dos senhores
começou a expressar-se na Independência, que o teria beneficiado em nada os escravos. O
gradualismo conciliador protelou a abolição por mais de meio século e, quando conquistada,
não foi levada às suas últimas conseqüências, ou seja, não foi realizada a reforma agrária.
Tudo realizou-se de tal forma a reduzir ao ximo os possíveis benefícios provenientes de
conquistas sociais.
José Honório Rodrigues mantém uma postura crítica com a classe dominante rural e
suas políticas conciliatórias. No entanto, o autor em uma versão ampliada da concilião
a neoconciliação - a possibilidade de gerar benefícios às camadas populares. Para Rodrigues,
Getúlio Vargas seria o modelo em escala reduzida da neoconciliação por ter incluído na
pauta governamental reivindicações populares, apesar de ter tido seus períodos
“inconciliados”, como o Estado Novo. A neoconciliação é o acordo de interesse entre a
minoria e a maioria, é o atendimento às aspirações da grande maioria, sempre afastada dos
benefícios do seu trabalho em toda a história do Brasil, [...]”
599
. Ou seja, na visão deste
intelectual, a neoconciliação teria um caráter distinto em relação à conciliação conservadora,
pois atenderia os interesses das classes subalternas.
As duas obras representam momentos diferenciados da revolução passiva no Brasil. A
obra de Rodrigues o supera a visão da conciliação entre as classes, e crê na “grande
conciliação”, que seria uma ampliação das políticas de Vargas. Rodrigues se filia assim ao
varguismo. Já Mercadante expressa a revolução-restauração de 1964, A consciência
conservadora no Brasil visava inspirar a contra-revolução preventiva. As duas obras se
inserem no debate entre as duas frações da burguesia que naquele momento disputavam o
poder. Cada obra se filia a um momento da viragem ideológica empreendida pela burguesia
brasileira nas quatro décadas que se sucedem ao término da Primeira Guerra Mundial, de que
nos fala Florestan Fernandes. Rodrigues é representante tardio de uma burguesia que ainda
tinha alguma sensibilidade em relação às mazelas sociais e a percepção das condições de vida
598
RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma... p. 54
599
Idem, p. 15
- 166 -
das classes populares. Já Mercadante é o intelectual orgânico do período pós-viragem
ideológica, insensível e indiferente às chagas sociais, é o ideólogo da casa-grande.
* * *
Toussaint L‟Ouverture não está ligado a Fidel Castro apenas pelo fato de
ambos terem liderados revoluções nas Índias Ocidentais. Tampouco esse
laço é uma demarcação conveniente ou jornalística de um período histórico.
O que havia acontecido na São Domingos francesa entre 1792 e 1804
repetiu-se em Cuba em 1958. [...] o povo de Cuba continua lutando,
valendo-se dos mesmos esforços.
C.L.R. James
Karl Marx, numa comparação entre as revoluções burguesas e as proletárias, diz que
as primeiras costumaram fazer a “ressurreição dos mortos”. Foi comum nas revoluções
inglesa (1640) e francesa (1789) reviver o passado, com o objetivo de glorificar as novas
lutas, de engrandecer a imaginação, de encontrar o espírito da revolução. Mas a revolução
proletária, diz Marx, contrariamente não pode retirar sua poesia do passado, e sim do
futuro. Não pode iniciar sua tarefa enquanto não se despojar de toda a veneração
supersticiosa do passado. As revoluções anteriores tiveram de lançar mão de reminiscências
da história universal para se iludirem quanto ao próprio conteúdo”, enquanto a revolução do
proletariado deve deixar que os mortos enterrem seus mortos. Antes a frase ultrapassava o
conteúdo, agora é o conteúdo que ultrapassa a frase
600
.
A consciência conservadora no Brasil não visa reavivar as lutas do passado, como
José Honório Rodrigues, ou a burguesia descrita por Marx n‟O 18 Brumário. Mercadante, ao
contrário, busca apagar as lutas sociais do século XIX. Tenta construir o fetiche de que o
Brasil vivia uma paz sedimentada sobre a conciliação de classes, enquanto a colonização
espanhola se esfacelava em republiquetas”, e ao passo que na colônia francesa do Haiti o
povo irrompia com a liderança jacobina Toussaint LOuverture. Para Mercadante o “espírito”
da “conciliação” e da “moderação” paira sobre o Brasil alertando para as revoluções do
presente, principalmente a cubana (1959). Não é a primeira vez que os conservadores
recorrem a estes expedientes, o general Ferdinando de Carvalho já havia publicado em 1951 o
livro que tinha por título a seguinte mensagem: -Lembrai-vos de 1935!”. A luta pela
memória, a luta pelo passado e pela história compõem também o quadro maior da luta de
classes. Para Mercadante, na sua concepção fetichista da história, o Brasil deveria continuar
600
MARX, Karl. O 18 Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003. p. 17-8
- 167 -
sendo o bastião da suposta e propalada conciliação de classes expressão ideológica de uma
classe que visava escamotear (o quanto possível) que estava em plena revolução-restauração
de “autodefesa ativa, militante e agressiva”
601
. Sua obra é, verdadeiramente, um manifesto
político.
COSIDERAÇÕES FINAIS
As sangrentas ditaduras latino-americanas cujas conseqüências nefastas
seguimos padecendo até nosso presente que assolaram nosso continente
durante as décadas dos anos 70 e 80 não foram, em conseqüência, um raio
inesperado num céu claro ao meio-dia de um dia de verão. Não constituíram
uma “anomalia”, uma exceção à regra, o interregno entre dois momentos
de normalidade e paz. Foram bem a regra de nossos capitalismos
periféricos, dependentes e subordinados a lógica do sistema capitalista
mundial.
[...]
Esgotadas as antigas formas políticas ditatoriais mediante as quais o
grande capital internacional e local exerceu sua dominação [...] nossos
países assistiram ao que se denominou, de modo igualmente apologético e
injustificado, “transições à democracia”.
levamos quase vinte anos, aproximadamente, de transição. Não será a
hora de fazer um balanço crítico? Podemos hoje seguir repetindo
alegremente que as formas republicanas e parlamentárias de exercer a
dominação social são “transições à democracia”? Até quando vamos
continuar engolindo sem mastigar esses relatos acadêmicos nascidos ao
calor das bolsas de estudos da social-democracia alemã e dos subdios das
fundações norte-americanas?
[...] Resulta quase ocioso insistir com algo óbvio: em nossos países latino-
americanos, hoje seguem dominando os mesmos setores sociais de
antigamente, os de muito dinheiro e de vultosas contas bancárias. Mudou a
imagem, mudou a encenação, se transformou o discurso, mas não se
modificou o sistema econômico, social e potico de dominação. Inclusive se
aperfeiçoou.
Néstor Kohan
De acordo com marxista argentino, Néstor Kohan
602
, a revolução passiva já caracteriza
a história da América Latina; desde pelo menos a transição ao capitalismo. Procuramos
demonstrar que a evolução histórica brasileira, no século XX, comporta em sua essência a
revolução passiva. Esta categoria desenvolvida por Gramsci revela-se de fundamental
importância para a compreensão dos caminhos e descaminhos da luta de classes em nosso
601
FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil... p. 393
602
Cf. KOHAN, Néstor. Crise orgânica e revolução passiva... sem página
- 168 -
país. Iniciamos a trajetória de nossa pesquisa na era Vargas; buscamos demonstrar o que de
essencial se preservou da revolução passiva desta época e sobreviveu no período seguinte. Se
durante o governo de João Goulart assistimos o germe de uma possível quebra da revolução
passiva, em 31 de março/ de abril de 1964 ela caiu com o peso de um viaduto na história. E
a burguesia tentou fazer a história pós-1964 permanecer nos marcos da revolução passiva.
Para Kohan, o período de abertura política que caracterizou a história recente de boa parte da
América Latina, após o fim das diversas ditaduras, ainda é marcado pela revolução passiva.
Mas aí já ultrapassa o recorte que propusemos.
Depois de 1985, o a.h.f. IBF/Convivium desenvolveu ampla atividade partidária que
poderá ser o objeto de novas pesquisas. Gostaríamos de indicar algumas fontes que poderão
ser novos objetos de estudo. Alguns números da revista Convivium são particularmente
interessantes; entre os quais citamos o n. 03 de maio-junho 1987, que seus intelectuais falam
dos 25 anos da revista, e o n. 06 de novembro-dezembro 1988, que tratam da Constituição.
Sobre a questão da nova carta constitucional, Paulo Mercadante coordenou o livro
Constituição de 1988: o avanço do retrocesso
603
, que reúne textos de diversos intelectuais
orgânicos da burguesia, aqueles do IBF/Convivium, e homens como Roberto Campos.
Mercadante diz que esta obra “promete inaugurar o ponto de partida para a revisão necessária
de nossa Carta Constitucional”
604
, enfático, diz ainda:
A morte da constituição anacrônica será lenta ou rápida. Não sabemos,
porque os acontecimentos, que corrigem os erros dos homens, dirão a
hora e o dia de seu enterro. Porém a sua revisão deve ser pensada e um dia
requerida. Em primeiro lugar, na cabeça do cidadão, que tea oportunidade
de ler no Avanço do Retrocesso as criticas necessárias, as sugestões
cabíveis, as alternativas possíveis, entre as quais o hálito de um pensamento
liberal, útil e moderno, dono de um mundo novo que emerge de Varsóvia,
de Berlim e Bucareste.
605
Vemos assim que os culturalistas preocupavam-se em intervir diretamente na
realidade, particularmente no desmonte de determinados aspectos da então nova Constituição,
principalmente no que tange às conquistas sociais dos trabalhadores. Percebemos também que
é preocupação dos autores a divulgação apologética do pensamento liberal, assim, para
Antonio Paim, o “problema da representação” será resolvido por liberais: “na medida em que
603
MERCADANTE. Paulo (coord.). Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio Fundo
Editora, 1990.
604
Idem. Orelha do livro.
605
Idem. Contra-capa do livro
- 169 -
se forme no país uma liderança liberal competente, esta incluirá prioritariamente em sua
plataforma a aproximação entre representantes e representados [...]”
606
. Interessante notar o
que Paim escreveu sobre o PFL do qual é assessor da presidência, hoje denominado
Democratas e PMDB: As duas maiores agremiações (PFL e PMDB) beneficiaram-se, uma
da longa oposição aos governos militares, a outra, do fato de ter viabilizado a sua derrocada
pacífica, ao construir a chamada Aliança Democrática [...]”
607
. Daí percebemos o quanto é
problemática a visão da intelectualidade do a.h.f.; vejamos o que diz Dreifuss: “Os principais
partidos desalinhados o PMDB e o PFL foram atrelados à charrete conservadora civil-
militar e, mais uma vez, transformados em meros braços políticos da cúpula governista algo
que, no Brasil, é um verdadeiro seguimento do aparelho de Estado e das classes dominantes.
Passaram a funcionar, também, como tambores de ressonância das Forças Armadas
608
.
Miguel Reale, por sua vez, criticou a Constituição de 1988 por sua “parafernália de
compressão e de intervenção sistemáticas no mundo econômico”
609
, mas ressalvou que, no
entanto, a carta constitucional tinha seus trunfos como o de “consagrar o direito do empresário
a conseguir lucro”
610
. Claro que isto demanda um maior aprofundamento, uma nova pesquisa,
mas a questão já ultrapassa os limites propostos ao nosso trabalho.
Outra importante fonte para estudos futuros é o livro Momentos decisivos da história
do Brasil
611
, de Antonio Paim. Neste compêndio, o autor desenvolve algumas teses sobre a
história do Brasil, talvez a mais marcante e controversa seja a de que o Brasil ainda não é um
país “plenamente capitalista, mas sim “patrimonialista”, definido pelo autor como algo
próximo do socialismo. O autor levanta a tese (absurda) de que os militares que estiveram no
aparelho de estado durante a ditadura eram “anticapitalistas” e nutriam simpatia pelo
socialismo. É muito pano para manga.
Gostaríamos de reafirmar que o a.h.f. IBF/Convivium, ainda pouco pesquisado, foi
peça fundamental da revolução passiva no Brasil, principalmente no período 1964-1985. Este
aparelho foi, sem dúvida, importante instrumento da burguesia para a luta de classes. Nascido
da junção de duas organizações, o IBF (fundado em 1949) mais a Convivium (criada em
1962), tinham um viés academicista “filosófico” mas, nos momentos de maior
606
PAIM, Antonio. Organização e poderes do legislativo. IN: MERCADANTE. Paulo (coord.). Constituição
de 1988: o avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio Fundo Editora, 1990. p.28
607
Idem
608
DREIFUSS, René Armand. O jogo da direita: na nova república. Petrópolis: Vozes, 1989. p.43
609
REALE, Miguel. A ordem econômica liberal na Constituição de 1988. IN: MERCADANTE. Paulo. Op.cit.
p. 19
610
Idem, p. 23
611
PAIM, Antonio. Momentos decisivos da história do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
- 170 -
exasperação da luta de classes, o a.h.f. revelou para que fora criado, atuando como
organização partidária. Seus intelectuais sempre tentaram propalar um desprendimento da
política, mas isto talvez tenha sido apenas a aparência construída, pois a história desta
organização revela bem o contrário. A essência do aparelho de hegemonia filosófico Instituto
Brasileiro de Filosofia/Convivium mostra-se em toda sua amplitude e complexidade na sua
função político-partidária, conforme definimos principalmente no segundo capítulo.
Karl Marx e Friedrich Engels, n‟A Ideologia Alemã
612
(1845) - obra em que
sistematizaram pela primeira vez a concepção materialista da história -, definem que a
produção intelectual não possui autonomia em relação à história:
São os homens que produzem suas representações, suas idéias etc., mas os
homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um determinado
desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas
correspondem, inclusive as mais amplas formas que estas podem tomar. A
consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é
o seu processo de vida real. E, se, em toda a ideologia, os homens e suas
relações nos aparecem de cabeça para baixo como uma câmera escura, esse
fenômeno decorre de seu processo de vida histórico, exatamente como a
inversão dos objetos na retina decorre de seu processo de vida diretamente
físico.
[...] não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam,
tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na
representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso;
mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de
vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das
repercussões ideológicas desse processo vital. E mesmo as fantasmagorias
existentes no cérebro humano são sublimações resultantes necessariamente
do processo de sua vida material, que podemos constatar empiricamente e
que repousa em bases materiais.
613
As idéias o possuem uma história própria e exclusiva, sua história é, na verdade, a história
da vida dos homens e as suas relações sociais e suas relações com a natureza. Neste sentido,
dizem nossos autores: Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que
determina a consciência
614
. Assim, a denominada “história das idéias”, que aparece em Paim
como ciclos que engolem uns aos outros, ou convivem lado-a-lado, ou simplesmente
sucedem-se; e que aparece em Mercadante como um “espírito” transcendental que paira sobre
a sociedade, é expressão ideológica da burguesia em luta. A concepção do IBF/Convivium de
que a filosofia e a cultura constituem esferas que pairam sobre a históriasubsiste à medida
612
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
613
Idem, p.19-20
614
Idem, p.20 grifos nossos
- 171 -
que expressa a divisão do trabalho, tal como ela surgiu com o desenvolvimento do
capitalismo. Vejamos o fragmento a seguir:
A divisão do trabalho só se torna efetivamente divisão do trabalho a partir do
momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho
intelectual. [...] pela divisão do trabalho, torna-se possível, ou melhor,
acontece efetivamente que a atividade intelectual e a atividade material o
gozo e o trabalho, a produção e o consumo acabam sendo destinados a
indivíduos diferentes; [...] essa divisão do trabalho encerra ao mesmo tempo
a repartição do trabalho e de seus produtos, distribuição desigual, na
verdade, tanto em quantidade quanto em qualidade.
615
Segundo Marx e Engels, no capitalismo, a divisão do trabalho, faz com que se tenha na
burguesia duas categorias de indivíduos, uma destas compostas pelos pensadores dessa classe,
e a outra pelos elementos envolvidos diretamente na produção material
616
.
A história das idéiasde IBF/Convivium é, na verdade, uma sequência de „idéias‟,
em que uma devora a outra”, [...] na verdade se trata de explicar essa fraseologia teórica a
partir das relações reais existentes”
617
. A produção intelectual deste aparelho de hegemonia
filosófico revela-se, portanto, como uma ideologia Brasileira. Por um lado, esta ideologia
brasileira possui relações com as construções ideológicas burguesas em geral, aqui
particularmente com a Ideologia Italiana de Croce. Por outro lado, constituiu a ideologia da
autocracia burguesa de 1964, em particular, e da revolução passiva no Brasil, em geral.
Se falamos em ideologia brasileira, remetemos às obras tratadas em nosso trabalho
em geral. Mas algumas especificidades que devem ser destacadas: (i) a concepção de
Miguel Reale que busca autonomizar a filosofia em relação à história em geral e a luta de
classes em particular. (ii-a) A sistematização realizada por Antonio Paim da concepção de
Reale; a tentativa da construção por Paim de uma “filosofia nacional”, da qual a escola
culturalista seria a herdeira legítima. (ii-b) A aliança tradicionalismo-liberalismo operada por
Paim na tentativa de soldar ideologicamente a intelectualidade orgânica do Instituto Brasileiro
de Filosofia e da Revista Convivium. Nesta perspectiva, o “tradicionalismo-liberalismo” teria
cumprido a missão de destruir o chamado “cientificismo”, na versão positivista e na versão
“marxista”. (iii) A interpretação de Paulo Mercadante segundo a qual a história do Brasil seria
marcada pela “dialética” da “conciliação” de classes. Os três elementos citados aqui são o
principais componentes da ideologia brasileira desenvolvida pelo aparelho de hegemonia
615
Idem, p. 26-7 grifos dos autores
616
Cf. Idem, p. 49
617
Idem, p. 38-9
- 172 -
filosófico IBF/Convivium no sentido da história fetichista, ou seja, da tentativa de escamotear
a luta de classes e de criar todo um arcabouço intelectual para cimentar a conciliação de
classes através do combate dos intelectuais de esquerda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES:
ALBERT, Valery. Nova campanha contra a religião na URSS. Convivium, n. 3, São Paulo,
maio de 1964.
Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro (CDPB). Índice da revista Convivium
(1962-1987). Salvador: CDPB, 1989.
CONVIVIUM. Apresentação. Convivivm, n. 1. São Paulo, maio de 1962.
_____. Nota da redação. Convivium, n. 9, São Paulo, novembro de 1963.
_____. Nota da redação. Convivium, n. 10, São Paulo, dezembro de 1963.
_____. Nota da redação. Convivium, n. 5, São Paulo, julho/agosto de 1964.
CRIPPA, Adolpho. A nova idéia de universidade. Convivium, n. 2, São Paulo, março-abril de
1969.
_____. O marxismo no século XX. Convivium, n. 3, São Paulo, maio-junho de 1969.
_____. Teologia da libertação. Convivium, n. 2, São Paulo, março-abril de 1971.
_____. A nova problemática dos direitos humanos. Convivium, n. 5, São Paulo, setembro-
outubro de 1973.
_____. A teologia comprometida. Convivivum, n. 3, São Paulo, maio-junho de 1981.
CRIPPA, Domingos. As possibilidades da revolução brasileira. Convivium, n. 3, São Paulo,
maio de 1964.
FERREIRA, Oliveiros S. O congresso da revolução. Convivium, n. 5, São Paulo,
julho/agosto de 1964.
GODINHO, Padre Antonio. Exigências da revolução. Convivium, n. 5, São Paulo,
julho/agosto de 1964.
- 173 -
LÂNGARO, Luiz L. Reforma de estrutura da empresa. Convivium, n. 3, São Paulo, abril de
1963.
MERCADANTE, Paulo; PAIM, Antonio. Tobias Barreto na cultura brasileira: uma
reavaliação. São Paulo: Grijalbo, EDUSP, 1972.
_______. Militares & civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
_______ (coord.). Constituição de 1988: o avanço do retrocesso. Rio de Janeiro: Rio Fundo
Editora, 1990.
______. Graciliano Ramos: o manifesto do trágico. Rio de Janiero: Topbooks, 1994.
______. A consciência conservadora no Brasil: contribuição ao estudo da formação
brasileira. 4 ed.. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.
NETTO, Antonio Delfim. Política e desenvolvimento. Convivium, n. 6, São Paulo, novembro
de 1962.
PAIM, Antonio (org.). Liberdade acadêmica e opção totalitária: um debate memorável. Rio
de Janeiro: Artenova, 1979.
______. A democracia social em face das correntes políticas contemporâneas. Convivivum,
n. 6, São Paulo, novembro-dezembro de 1981.
______. Teoria e prática da esquerda. Convivium, São Paulo, n. 2, março-abril de 1982.
______. História das idéias filosóficas no Brasil. 3 ed. São Paulo: Convívio, 1984.
______. O estudo do pensamento filosófico brasileiro. ed. rev. e amp. São Paulo: Editora
Convívio, 1986.
QUEIROZ, Paulo Edmur de Souza. Perspectivas da política nacional. Convivium, n. 3, São
Paulo, maio de 1964.
REALE, Miguel. Momentos olvidados do pensamento brasileiro. IN: Filosofia em São
Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1962.
______. Memórias: destinos cruzados. Vol. I. 2ª ed. rev. São Paulo: Editora Saraiva, 1987.
______. Memórias: a balança e a espada. Vol. II. São Paulo: Editora Saraiva, 1987.
______. Os imperativos da revolução. Convivium, n.5, julho-agosto de 1964.
______. Problemas do desenvolvimento: realismo político. Convivium, n. 2, São Paulo,
março/abril de 1969.
- 174 -
______. Estruturas políticas contemporâneas. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de
1969.
______. Universidade Democrática. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de 1969.
RODRIGUEZ, Ricardo Vélez. O pensamento estratégico em debate. Convivium, n. 1, São
Paulo, março-abril de 1980.
______. Existe um sistema interamericano de defesa? Convivium, n. 3, São Paulo, maio-
junho de 1980.
______. Teologia da libertação e tradição despótica. Convivivum, n. 1, São Paulo, janeiro-
fevereiro de 1982.
______. O pesadelo do PT. Convivium, n. 4, São Paulo, julho-agosto de 1983.
ROCHA, Aristeu F. Resenha. Convivium, n. 2, São Paulo, março de 1963.
SILVEIRA, Alcântara. Recordando uma luta. Convivium, n. 3, São Paulo, maio de 1964.
SOUZA, José Pedro Galvão de. Legalidade e Legitimidade. Convivium, n. 1, São Paulo, maio
de 1962.
______. Raízes históricas da crise brasileira - I. Convivium, n. 8, São Paulo, outubro de
1963.
______. Raízes históricas da crise brasileira - III. Convivium, n. 10, São Paulo, dezembro de
1963.
BIBLIOGRAFIA:
ARANTES, Paulo Eduardo. Instituto de Nacionalidade: Cruz Costa e herdeiros nos idos de
60. IN: Um departamento francês de ultramar. Estudos sobre a formação da cultura
filosófica uspiana (uma experiência nos anos 60). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
______. Ressentimento da dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel: antigos
estudos sobre o ABC da miséria alemã. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
ASSMANN, Hugo (ed.). A Trilateral: nova fase do capitalismo mundial. Petrópolis: Vozes,
1979
BANTI, Alberto Mario. Il Risorgimento italiano. Bari: Editori Laterza, 2004.
- 175 -
BASTOS, Élide Rugai; MORAES, João Quartim de (org.). O pensamento de Oliveira
Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
BENEDETTI, Ivone C. (coord.). Dicionário Martins Fontes italiano-português. São Paulo:
Martins Fontes, 2004.
BOTTIGELLI, Émile. A gênese do socialismo científico. Lisboa: Editorial Estampa, 1971.
BIANCHI, Alvaro. Revolução passiva: o pretérito do futuro. IN: Crítica Marxista,
Campinas, n. 23, p. 34-57, segundo semestre de 2006.
______. O laboratório de Gramsci. Campinas: IFCH / Unicamp, 2007.
BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo:
Hucitec, 2007.
BUCI-GLUCKSMANN, Christine. Gramsci e o Estado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
BURKE, Edmund. Reflexões sobre a revolução em França. ed. Brasília: Editora UNB,
1997.
Centro de Documentação do Pensamento Brasileiro. Dicionário Biobibliográfico de autores
brasileiros. Brasília: Senado Federal, 1999.
CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo
híper-tardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1978.
CODATO, Adriano e KIELLER, Marcio (orgs.). Velhos vermelhos: história e memória dos
dirigentes comunistas no Paraná. Curitiba: Editora UFPR, 2008.
COSTA NETO, Pedro Lo da. Crítica às concepções conservadoras na história das idéias
filosóficas no Brasil. In: LIMA, Enezila de (org.). Violência e direitos: 500 anos de lutas;
Anais do VII Encontro Regional de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001.
______. João Cruz Costa: historiador das idéias no Brasil. Revista da Sociedade Brasileira
de Pesquisa Histórica, Curitiba, n. 23, 2002.
COUTINHO, Carlos Nelson, et alii. Realismo e anti-realismo na literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1974.
______. A democracia como valor universal. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas,
1980.
______. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. 3ª ed., revista e ampliada. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
CRIPPA, Adolpho (coord.). As idéias filosóficas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1978.
- 176 -
______(coord.). As idéias políticas no Brasil. São Paulo: Convívio, 1979.
DEBRUN, Michel. A “Conciliação” e outras estratégias. São Paulo: Brasiliense, 1983.
DREIFUSS, René Armand. A internacional capitalista:estratégias e táticas do empresariado
transnacional (1918-1986). Rio de Janeiro: Ed. Espaço e Tempo, 1986.
______.O jogo da direita: na nova república. Petrópolis: Vozes, 1989.
______. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. ed.
Petrópolis: Vozes, 2006.
FAORO, Raymundo. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 8ª ed. São Paulo: Edusp, 2000.
FERNANDES, Florestan. A questão da USP. São Paulo: Brasiliense, 1984.
______. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. ed. São
Paulo: Globo, 2006.
FERNANDES, Heloísa Rodrigues. O Intelectual, um Personagem Histórico. Debate &
Crítica, São Paulo, n. 5, p. 127, 138, março de 1975.
FERREIRA, Oliveiros S. Os 45 cavaleiros húngaros: uma leitura do Cadernos de Gramsci.
Brasília: Editora da UNB; São Paulo: Hucitec, 1986.
FIORI, Giuseppe. A vida de Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
FONTES, Virginia M. Reflexões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo. Rio
de Janeiro: Bom Texto, 2005.
FORACCHI, Marialice Mencarini (org.). Karl Mannheim: sociologia. São Paulo: Ática,
1982.
FREDERICO, Celso. Sociologia da cultura: Lucien Goldmann e os debates do século XX.
São Paulo: Cortez, 2006.
GOLDMANN, Lucien. Dialética e cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
______. Ciências humanas e filosofia. 3ª ed.. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, 2004, 2006. 6 volumes
- 177 -
______. Quaderni del carcere. Torino: Einaudi, 2007. 4 volumes. Organizado por Valentino
Gerratana.
GRUPPI, Luciano. O pensamento de Lênin. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve culo XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das
Letras.
_____. Sobre História. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L‟Ouverture e a revolução de São
Domingos. São Paulo: Boitempo, 2007.
KOHAN, Néstor. Crise orgânica e revolução passiva: o inimigo toma a iniciativa. A
governabilidade do capitalismo periférico e os desafios da esquerda revolucionária. O
Comuneiro, n. 6, março de 2008. In: www.ocomuneiro.com consultado em março de 2008.
Tradução de Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves.
KONDER, Leandro. História dos Intelectuais nos Anos 50. IN: FREITAS, Marcos Cezar.
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
______. Barão de Itararé: o humorista da democracia. São Paulo: Brasiliense, 2002.
LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi. O leopardo. São Paulo: Nova Cultural, 2003.
LENIN, Vladimir Ilitch. O problema agrário - I. Contagem: Editora História; Belo
Horizonte: Aldeia Global Livraria, 1978.
______. O Programa Agrário da Social-Democracia na Primeira Revolução Russa de
1905-1907. Goiânia: Alternativa, 2002.
LOSURDO, Domenico. Contra-história do liberalismo. Aparecida: Idéias & Letras, 2006.
______. Antonio Gramsci, do liberalismo ao “comunismo crítico”. Rio de Janeiro: Revan,
2006.
LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e
positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 2000.
LUKÁCS, Georg. História e consciência de classe: estudos sobre dialética marxista. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972.
- 178 -
______. O pensamento conservador. IN: MARTINS, José de Souza (org.). Introdução crítica
à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1981.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. URSS: Edições
Progresso, 1987.
______. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
______. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-
1846). São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl. Miséria da filosofia. São Paulo, Ícone, 2004.
______. O 18 Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003.
______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
MAZZEO, Antonio Carlos. Sinfonia inacabada: a política dos comunistas no Brasil.
Marília: Unesp; São Paulo: Boitempo, 1999.
MENEZES, Djacir (org.). O Brasil no pensamento brasileiro. Brasília: Senado Federal,
1998.
MERCADANTE, Paulo. Das casernas à redação: a era de turbulências. Rio de Janeiro:
UniverCidade Editora, 2004.
______. Tobias Barreto: o feiticeiro da tribo. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2006.
MEDEIROS, Jarbas. Ideologia autoritária no Brasil (1930-1946). Rio de Janeiro: Editora da
Fundção Getúlio Vargas, 1978.
MENDONÇA, Sonia Regina de; FONTES, Virginia Maria. História do Brasil recente: 1964-
1992. 4ª ed. rev. atual. São Paulo: Ática, 1996.
MENDONÇA, Sonia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1931). São Paulo: Hucitec,
1997.
MONTANELLI, Indro. L’Itália del Risorgimento (1831-1861). 10ª ed. Milão: BUR Saggi,
2005.
MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Da Independência à vitória da ordem. IN: LINHARES,
Maria Yedda L. (org.). História Geral do Brasil. 9 ed.. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
MOORE JR., Barrington. As origens sociais da ditadura e da democracia. São Paulo:
Martins Fontes, 1983.
- 179 -
MORAES, João Quartim C.K. de. Liberalismo e ditadura no cone sul. Campinas: Unicamp,
IFCH, 2001.
NOVA, Christiane e NÓVOA, Jorge (orgs.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito.
São Paulo: Editora UNESP, 1999.
NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac
& Naify, 2005.
OLIVEIRA, Eliézer Rizzo de. De Geisel a Collor: forças armadas, transição e democracia.
Campinas: Papirus, 1994.
PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini. Ideologia e filosofia no Brasil: O Instituto Brasileiro
de Filosofia e a Revista Brasileira de Filosofia. Faculdade de Educação da Universidade de
o Paulo, 1998, tese de doutoramento.
PAIM, Antonio; BARRETO, Vicente. Evolução do pensamento político brasileiro. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989.
PAIM, Antonio (org.). Curso de introdução ao pensamento político brasileiro. Brasília:
Editora da UNB, 1982.
______. O liberalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
______. Problemática do culturalismo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
______. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998
______. A escola eclética, 2 ed. revisada. Londrina: CEFIL, 1999.
______. Momentos Decisivos da História do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PERALVA, Osvaldo. O retrato. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.
POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Brasiliense,
2004.
PROTA, Leornado (org.). Anais do encontro nacional de professores e pesquisadores da
filosofia brasileira. Londrina: Ed. UEL: CEFIL, 1996.
RIAZANOV, D. Marx-Engels e a história do movimento operário. São Paulo: Global
Editora, 1984.
- 180 -
ROIO, Marcos Del. Um século de revoluções passivas. In: AGGIO, Alberto; LAHUERTA,
Milton. Pensar o século XX: problemas políticos e história nacional na América Latina. São
Paulo, Editora Unesp, 2003.
SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil: 1888-1891. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985.
______. República do capital: capitalismo e processo político no Brasil. São Paulo:
Boitempo, 2001.
SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil: recepção e difusão de suas idéias. São Paulo: Cortez,
2002.
______. Gramsci e a Revolução. São Paulo: Alameda, 2006.
SILVA, Carla Luciana Souza da. Veja: o indispensável partido neoliberal (1989 a 2002).
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2005. Tese de doutorado.
SILVA, Carlos Francisco Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA,
Alexander Martins. Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e
personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. A ofensiva reacionária. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992.
______. A fúria de Calibã: memórias do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994.
______. Panorama do Segundo Reinado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1998.
______. Formação histórica do Brasil. 14ª ed., reimpressão. Rio de Janeiro: Graphia,
2002.
SHAKESPEARE, William. Hamlet, príncipe da Dinamarca. São Paulo: Abril Cultural,
1978.
VIANA, Oliveira. O ocaso do império. Brasília: Senado Federal, 2004.
VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil, ed.. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1978.
______. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. ed.. Rio de Janeiro:
Revan, 1997.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo