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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DLCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO
ALÉM DAS FORMAS, A BEM DOS ROSTOS: faces mestiças da produção
cultural barroca recifense (1701-1789)
(JOSÉ NEILTON PEREIRA)
RECIFE, 2009
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2
JOSÉ NEILTON PEREIRA
ALÉM DAS FORMAS, A BEM DOS ROSTOS: faces mestiças da produção
cultural barroca recifense (1701-1789).
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-
Graduação em História, na Linha de Pesquisa:
Cultura Regional da Universidade Federal Rural de
Pernambuco, sob a orientação da Professora. Dra.
Suely Creusa Cordeiro de Almeida.
RECIFE, 2009
II
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3
Ficha catalográfica
P436a Pereira, José Neilton
Além das formas, a bem dos rostos: faces mestiças
da produção cultural barroca recifense 1701-1789 /
José Neilton Pereira. 2009.
232 f. : il.
Orientador: Suely Creuza Cordeiro de Almeida
Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura
Regional) Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Departamento de Letras e Ciências Humanas.
Inclui referência e anexo.
CDD 981.03
1. Historia do Brasil
2. Barroco
3. Mestiçagem cultural
4. Recife (PE)
5. Entrepostos mercantis portuários
6. Comércio Séc. XVIII
7. Rotas culturais
I. Almeida, Suely Creuza Cordeiro de
II. Título
4
5
6
Com Justiça e muito afetuosamente a Matheus
Hylan, Géssika e Galuciane Gadelha, minhas
amadas alegrias domésticas.
VI
7
AGRADECIMENTOS
Uma dissertação é, inexoravelmente, fruto do esforço de muitos.
Lembrá-los, entretanto, a guisa de agradecimentos, é, além de uma obrigação
acadêmica, um dever e um leve risco: o de incorrer no esquecimento em prol
da brevidade, mais objetiva. Tentarei, portanto, driblar este perigo e ser sucinto,
ainda assim, manifestando o meu profundo sentimento de gratidão às
seguintes pessoas:
- Ao Deus Pai, por ter concedido a um egresso do Ensino Público Brasileiro
cursar um mestrado;
- Elaine, Shirley e Vívian, pelas muitas formas de apoio e a contínua
solidariedade;
- Gian Carlo Melo, companheiro de curso, pelo contínuo e fraterno intento de
ajudar;
- Gustavo Augusto, pelos leais e fraternos favores;
- Sandro Vasconcelos, pelo apoio na transcrição dos documentos e pelas
indicações de fontes;
- Janaina Tabira, pela muita colaboração e sincero auxílio;
- Lourival Araújo, pelas dicas e apoio bibliográfico;
- D. Raquel (Bibliotecária), Luciene (Arquivista); Cristine, Edson Félix e Enos
Omena (Restauradores), funcionários do IPHAN/PE, pela atenção e a muita
ajuda;
- Hildo (APEJE), pelo apoio com as fontes consultadas;
- Valéria Costa, pela ajuda sincera;
- Edson Ely, Suely Luna, Ângela Grillo, Ana Nascimento, Wellington Barbosa e
Gizelda Brito, professores e co-orientadores eventuais;
- Marcus de Carvalho e Carla Mary, meus qualificadores e amigos, pelas
valiosas contribuições;
- Ângelo e Roberta Assis, meus caros amigos, pela acolhida e gentis
contribuições durante a pesquisa;
- Marcos Almeida, docente e companheiro sincero, pelos valiosos conselhos e
indicações bibliográficas;
- Suely Almeida, pela séria orientação, sincera amizade e muita paciência;
- Marcelo Nonardo Rocha por partilhar dos meus esforços como que seus;
- Juliana(s) Holanda e Sampaio, minhas adoráveis amigas por cujos favores
Deus há de recompensar.
Meus sinceros agradecimentos!
VII
8
“Partimos do pressuposto de que [...] a forma deve
ser usada para reforçar o significado, e não para
negá-lo”.
(LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo,
Martins Fontes, 1997, p. 51)
VIII
9
RESUMO
Este trabalho aborda o processo de hibridização cultural no Recife
setecentista a partir da trajetória de três personagens representativos da
produção barroca local: Manoel Ferreira Jácome, mestre-pedreiro; João de
Deus e Sepúlveda, pintor; e Luiz Alves Pinto, sico. Pretende-se, através da
análise de suas influências e processo criativo, compreender os aspectos
determinantes e intrínsecos relacionados à conjuntura recifense do século
XVIII, marcada pela condição de centro mercantil e portuário de significativa
importância no mundo colonial português. A partir do conceito de “sociabilidade
cotidiana” as obras barrocas de tais artífices remetem a uma complexidade,
estética e simbólica permeada por um caráter bem pragmático de ascensão
social destes indivíduos, por elementos inerentes ao seu universo cultural
mestiço e, sobretudo, por práticas corporativas, clientelismo e mutualistas.
A pesquisa visa expor como, no contexto mercantil, urbano e
cosmopolita setecentista e face a essas condições, os citados oficiais, oriundos
das camada subalternas, chegaram a assumir “lugares de fala” na sociedade
extremamente estratificada do Recife. Nesses “lugares de enunciação”,
contribuíram para a irradiação da cultura barroca nas Capitanias do Norte do
Brasil e mantiveram certa sintonia com Salvador e Rio de Janeiro, que eram,
juntamente com Recife, os três principais entrepostos, centros administrativos,
políticos e culturais no Brasil Colonial.
Assim, como um trabalho vinculado à linha de pesquisa “cultura regional
do PPGH-UFRPE, esta dissertação parte das tensões e embates do cenário
artístico do século XVIII na sede econômica da capitania de Pernambuco
1
para
permitir uma melhor compreensão do barroco local.
Palavras Chave: Recife; século XVIII; Barroco; artífices; hibridização cultural;
administração colonial; entrepostos mercantis ultramarinos; conexão
econômica e intercâmbio cultural entre Recife Salvador e Rio de Janeiro; rotas
culturais econômicas, sociais e culturais.
1
Olinda foi sede política de Pernambuco 1837. O título, porém, era apenas honorífico, que,
desde 1710, o Recife configurou-se, paulatinamente, como o centro econômico e decisório da
administração pernambucana.
IX
10
ABSTRACT
This paper discusses the process of cultural hybridization in Recife
eighteenth century through the lives of three characters representing the local
production baroque Manoel Ferreira Jácome, master mason, John of God and
Sepúlveda, painter, and Luiz Alves, musician. It is intended, by examining their
influences and creative process, understanding the key aspects related to the
intrinsic and economic Recife eighteenth century, marked by the condition of
commercial center and port of significant importance in the colonial Portuguese.
Based on the concept of "everyday sociability" works by Baroque architects
refer to such a complexity, and symbolic aesthetic pervaded by a very
pragmatic character of social mobility of individuals, are inherent to their cultural
universe mestizo and especially for business practices , patronage and mutual.
The research aims to explain how, in the commercial context, urban and
cosmopolitan eighteenth and deal with such conditions, the said officers,
coming from the subordinate layer, had assumed "places of speech" in the
highly stratified society of Recife. In these "places of enunciation," contributed to
the spreading of the Baroque Captaincy northern Brazil and remained
reasonably consistent with Salvador and Rio de Janeiro, who were together in
Recife, the three main warehouses, administrative centers, political and cultural
in Colonial Brazil.
So, as a work linked to the research line "regional culture" of PPGH-
UFRPE, this work of the tensions and conflicts of the art scene of the eighteenth
century the economic headquarters of the captaincy of Pernambuco
2
to allow a
better understanding of local baroque.
Keywords: Recife; century, Baroque, artisans, cultural hybridization, the
colonial administration, cold market overseas, connecting economic and cultural
exchange between Recife and Salvador Rio de Janeiro; routes cultural
economic, social and cultural rights.
2
Olinda was established policy Pernambuco 1837. The title, however, was only honorary, as,
since 1710, the reef set up, gradually, as the economic center of decision-making and
administration of Pernambuco.
X
11
LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
Fig. 1.1: “Panorama do Recife” 1766 (Detalhe da Carta Topográfica
de Pernambuco de autoria do engenheiro militar, José Gomes
da Fonseca)..................................................................................................... 22
Fig. 1.2: Plano do porto e da Praça do Recife de Pernambuco”, de
José Fernandes Portugal................................................................................. 25
Fig. 1.3: Rotas Comerciais, Sociais e Culturais Ultramarinas, a julgar
pela origem e ou destino dos imigrantes e das embarcações aportadas no
Recife entre 1701-1789................................................................................... 36
Fig. 1.4: Recife, Planta urbana, 1703, por Awnsham Churchill..................... 38
Fig. 1.5: Olinda, Planta Urbana, 1703, por Awnsham Churchill.................... 38
Fig. 1.6: Vista Planisférica, Vertical, e Marítima do Areal do S. B. J.
[São Bom Jesus] do Recife de Pernambuco” de autoria do militar José
de Oliveira Barbosa........................................................................................ 51
Fig. 1.7: Capela Dourada da Ordem Terceira de São Francisco ............... 63
Fig. 2.1: Convento de Santo Antônio do Recife.......................................... 73
Fig. 2.2: Igreja de Nossa Senhora do Carmo (antigo convento dos
fadres carmelitas) Recife.............................................................................. 73
Fig. 2.3: Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Bairro (freguesia
à época) de Santo Antônio Recife............................................................. 74
Fig. 2.4: Ordem Terceira da São Francisco Recife.................................. 74
Fig. 2.5: Igreja da Madre de Deus Recife................................................... 74
Fig. 2.6: Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares Recife... 74
Fig. 2.7: Vista do Porto de Recife a partir de Olinda, Gillis Peeters
- século XVII (1630)......................................................................................... 78
Fig. 2.8: Casa nº 10 (sobrado) a Rua dos Calafantes, atual Rua das
Águas Verdes (Pátio de São Pedro), em que residiu o mulato Manuel
Ferreira Jácome............................................................................................... 89
Fig. 2.9: Igreja de São Pedro dos Clérigos, cujo risco (planta) de autoria
do mulato Manoel Ferreira Jácome................................................................. 99
Fig. 2.10: Planta (“Risco”) da Igreja de São Pedro dos Clérigos,
Manoel Ferreira Jácome................................................................................. 115
XI
12
Fig. 2.11: Vista parcial da “nave” elípitica e do “forro” côncavo
ou “abobodado” da Igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife........... 115
Fig. 3.1: A Virgem da Ordem Terceira de São Francisco”, Séc. XVIII.... 129
Fig. 3.2: A batalha dos Guararapes” de João de Deus e Sepúlveda,
1781................................................................................................................ 135
Fig. 3.3: Batalha dos Guararapes. Ex-voto anônimo datado de 1758
(representação outorgada a Manoel Dias de Oliveira)................................... 141
Fig. 3.4: A batalha dos Guararapes, 1879, de Victor Meireles.................... 141
Fig. 3.5: Forro da Nave Conceição dos Militares 1777. Atribuída ao
mestre Sepúlveda.......................................................................................... 145
Fig. 3.6: Forro da Nave Conceição dos Militares (Detalhe)....................... 147
Fig. 3.7: “O Primado de São Pedro”, João de Deus e
Sepúlveda (1781)............................................................................................ 151
Fig. 3.8: A instituição do apostolado. Forro da sacristia da Igreja
de São Pedro dos Clérigos (1764-68?), de autoria do mulato João de
Deus e Sepúlveda........................................................................................... 155
Fig. 3.9: Pintura do coro da Igreja de São Pedro dos Clérigos (1806-7)
representando A fundação da igreja”. De autoria do pintor branco
Manoel de Jesus Pinto ................................................................................... 159
Fig. 3.10: Painel retratando “A Vida De Santa Tereza”, forro da Igreja
da Ordem Carmelita do Recife, de João de Deus e Sepúlveda
(1760-64).........................................................................................................161
Fig. 4.1: Dicionário Pueril para o Uso de Meninos, ou dos que
Principiam o ABC e a soletrar as primeiras dicções (folha de rosto)
por Luis Alves Pinto 1784.............................................................................198
Fig. 4.2: Planta Geográfica da Vila De Santo Antônio do Recife
Pernambuco, 1749........................................................................................ 208
XII
13
LISTA DE ABREVIATURAS
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
APEJE Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano
IAHGPE Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano
LAPEH UFPE Laboratório de Pesquisa Histórica
XIII
14
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................... 16
CAPÍTULO I
1. A Vila do Recife, 1701-1789: Espaço e conjuntura sócio-econômica de
uma produção cultural barroca mestiça.......................................................... 21
1.1) Rotas econômicas, sociais e culturais: trânsito e trocas externas e
internas............................................................................................................ 32
1.2) Ares mercantis X cultura mestiça: uma fisionomia do cotidiano
Social recifense................................................................................................ 44
1.3) Cultura e trabalho: ordem e desordem na sociedade mercantil
recifense.......................................................................................................... 48
1.4) O Barroco mercantil recifense e as influências européia, indígena,
africana e mestiça. .......................................................................................... 52
1.5) Legado, [re]elaboração e irradiação cultural como produtos das
trajetórias de incisivas...................................................................................... 56
CAPÍTULO II
2) MANOEL FERREIRA JÁCOME: o caminho das pedras da arquitetura
mestiça............................................................................................................ 68
2.1) Rochas lapidadas: das primeiras obras a notoriedade
edificada........................................................................................................... 76
2.2) Pedreiros, compadres e companheiros X irmãos, confrades e um
herdeiro: a construção de um „nome‟ no oficio da construção......................... 86
2.3) Entre as pedras e as armas: a trajetória insersória de um mestiço e
suas contribuições para um urbanismo mercantil e defensivo........................ 97
2.4) Mãos mestiças X Formas mistas............................................................. 105
CAPÍTULO III
3) JOÃO DE DEUS E SEPÚLVEDA: do estigma da cor às cores do
estigma........................................................................................................... 117
3.1 Pardos e graves tons: da sombra do anonimato às luzes da
notoriedade..................................................................................................... 121
XIV
15
3.2) Do estigma da cor às cores do estigma: representações mestiças
sobre a pintura recifense................................................................................ 125
3.3) Sentinelas das artes & artes das sentinelas: ofícios, vínculos e
espaços no cenário do poder. ........................................................................ 131
3.4) Dourado Ocre: as brancas luzes da notoriedade e o apagamento das
contribuições pardas nos registros historiográficos..................................... 148
3.5) Mestre mulato X Legado branco: cadeias de inserção e trajetória
funcional.......................................................................................................... 157
3.6) Cores mestiças que o tempo apaga, nomes mestiços que o tempo
aviva................................................................................................................ 160
CAPÍTULO IV
4) LUIS ALVES PINTO: Acordes mestiços da música barroca
pernambucana................................................................................................ 164
4.1) Passos compassados: primeiras notas, espaço fluente, tons
sustenidos, solfejo em escala crescente........................................................ 168
4.2) Compasso composto: embates, mutualismos étnicos e porfias do
Barroco........................................................................................................... 174
4.3) Pardos caminhos: do „semi-tom‟ ao mais grave „tom‟, ascensão em
“Dó Maior” e retorno ao ninho......................................................................... 176
4.4) LA[r] doce LA[r]: a base da afinação e propagação rítmica X cadência
militar de uma aclamação mestiça................................................................. 185
4.5) Composição e regência: o enobrecimento da aceitação e a parda
Cadência dos terços de irmãos...................................................................... 197
Considerações finais....................................................................................... 209
Referências e fontes....................................................................................... 216
Anexos............................................................................................................ 230
XV
16
INTRODUÇÃO
ALÉM DAS FORMAS, A BEM DOS ROSTOS: faces mestiças da
produção cultural barroca recifense 1701-1789, constitui uma tentativa de
compreender as influências negra, indígena e mestiça na cultura do barroco
recifense do período acima mencionado o que se fará a partir do estudo de
trajetórias individuais nos ofícios da arquitetura, da pintura e da música ,
levando-se em considerações as especificidades geográficas, a conjuntura
(política e econômica), as transformações administrativas, a mentalidade
religiosa e a sociabilidade clientelar inerente ao Antigo Regime.
Intenta, assim, fugir à análise estético-estilística e morfológica e,
consequentemente, a suas limitações da cultura material e imaterial
setecentista, apontando a co-relação entre as múltiplas instâncias produtivas, o
mutualismo inerente às ações operacionais, assim como o vivencia multiétnica
(individual e coletiva) da produção, enquanto produto e foro das práticas e
ações da sociabilidade humana.
A dissertação pretende trazer ao palco das discussões historiográficas
os agentes sociais chamando-lhes à condição de sujeitos da história que
difundiram e reelaboraram a produção local do barroco imprimindo-lhe
contribuições advindas dos seus próprios horizontes culturais e alusivas às
suas heranças étnicas ou às suas origens geográficas.
Assim, o trabalho considera a necessidade de se identificar, nominal e
etnicamente, os autores da vasta e valiosa produção local, repetidamente
analisada pela via do anonimato e à luz das correntes e escolas estético-
estilísticas, ainda que com tímida ênfase nas questões de caráter social.
Prioriza, para isso, o estudo da dinâmica funcional como um meio de captar na
produção (nas formas estéticas e nos elementos simbólicos do legado
imaterial) os elementos que expressam a identidade cultural mestiça dos
operários e que remetem ao seu universo cultural.
Compreendendo as habilidades pessoais como elementos
determinantes para a inserção funcional para a progressão hierárquico-
funcional, assim como a vida cosmopolita dos centros portuários e os vínculos
sociais que ali se estabelecem como os principais fatores de legitimação para a
17
releitura do paradigma religioso-cultural tridentino, o que significa dizer como
suportes para as ações de interdiscursividade e a mestiçagem das produções
artísticas e dos eventos ritualísticos e festivos.
Associando às ideologias e tendências artísticas aportadas na vila
mercantil-portuária pernambucana os interesses e motivações das classes,
grupos, categorias ou mesmo dos indivíduos, se visa, com isso, compreender
de que maneira tais interações sociais que incidiam nos campos operacionais
se inscreviam em termos morfológico-simbólicos, dando origem ao caráter
mestiço da produção artística e sócio-cultural.
Ressaltando a importância de se captar o hibridismo cultural alvo dos
regimentos e da fiscalização com que se almejava controlar e, não raro, anular
essas contribuições oriundo da participação mestiça na concepção das obras
e de se refletir o processo de re-qualificação social diretamente relacionado aos
elementos estranhos ao universo cultural europeu.
Se almeja, assim, demonstrar o papel de destaque e a relativa
autonomia dos artífices (agentes das camadas subalternas) em relação ao
disciplinamento, uniformização e eurocentrismo implícito no modelo tridentino-
lusitano e nas idéias e tendências artísticas egressas do mundo europeu. O
intuito é identificar certa insubmissão dos artesãos locais ao desenvolvimento
linear das artes e uma luta silenciosa e astuta, tanto pessoal como coletiva,
contra a sobreposição de suas matrizes culturais por elementos exógenos.
Aponta-se, outrossim, o caráter utilitário das obras em seu contexto e
condições de produção, para a riqueza temática, considerando, porém, a
própria impossibilidade de esgotamento temático. Ressalta-se o fato de que a
busca por um amálgama doutrinal-ideológico (contra-reforma religiosa) e
político (absolutismo lusitano) vai de encontro aos desdobramentos da cultura
material e imaterial no âmbito local de entrepostos coloniais como Recife, haja
vista o conjunto dos fatores apontados na presente introdução.
Tal estudo se fará com base nos novos aportes teóricos e metodológicos
que, em certa medida, oferecem viabilidade à abordagem supracitada, por
possibilitarem a eventual identificação dos operários anônimos, e possibilitam
driblar a escassez de fontes e registros. Uma fuga necessária, que é
justamente essa escassez que condena ao efetivo anonimato, o histórico, e ao
apagamento étnico os agentes produtores e conduz a incompreensão das
18
contribuições (morfológicas e simbólicas) mestiças. Fuga que permite a
inscrição da presente pesquisa na corrente inclinada para um olhar
investigativo de cunho social, suplementar ao esteticismo morfológico, cujas
contribuições são também inegáveis e imprescindíveis.
O trabalho se desenvolve em quatro capítulos, sendo o primeiro
concernente ao contexto, ou seja: a descrição de um cenário de difícil
apreensão que é o da urbe recifense mercantil-portuária setecentista. A
compreensão desse cenário se faz necessária para a compreensão da
relevância dessa configuração política, econômica e geográfica para a
produção cultural e sociocultural do período; para a descrição das formas de
organização sociofuncional nas atividades concernentes às artes mecânicas
(atividades subalternas do trabalho); e, por fim, para o entendimento de como a
dinâmica de produção e as trajetórias pessoais, mais especificamente, são
elucidativas dos desdobramentos estéticos.
Os três capítulos seguintes consistem em três panoramas biográficos e
funcionais nas artes da arquitetura, pintura e música setecentista. Têm como
atores (agentes interativos), respectivamente, os mulatos Manoel Ferreira
Jácome, João de Deus e Sepúlveda e Luis Alves Pinto, a partir dos quais se
objetiva demonstrar não apenas a dinâmica produtiva, mas a grande tensão em
que se processavam as realizações das obras e a impressão dos elementos
estéticos e simbólicos que remetiam aos universos culturais desses operários.
A ênfase nessas trajetórias sóciofuncionais o destaque para a
correlação dos artífices e das artes, deve-se ao fato de que levou-se em
consideração o fato de que uma narrativa histórica é, necessariamente, uma
história de nomes e feitos. Pois mesmo quando se parte da perspectiva do
anonimato, os nomes emergem, silenciosa e ousadamente, sob a forma de
dúvidas, enigmas e perguntas, a despeito da autoria dos feitos que se
descreve. Estando mesmo em jogo o risco parcial ou total de
incompreensão das significações simbólicas ou da circunscrição étnico e
discursiva dos feitos; a narrativa histórica é a busca, muitas vezes indiciária
mas sempre frutífera, por rostos perdidos no passado anônimos, silenciosos,
silenciados, pontual e sub-repticiamente presentes nas fontes ainda disponíveis
, como que à espera pela visibilidade por que tanto lutaram em vida e pela
condição de sujeitos históricos, que é suplementar ao papel de sujeitos sociais
19
que vivenciaram. É o intento deste trabalho descobrir faces ainda encobertas
pelo véu do anonimato, o que lhes foi em vida uma fronteira entre a liberdade e
a interdição. Busca-se compreender as motivações e os atos de ruptura dos
agentes sociais para com o anonimato e a interdição social e cultural a que
estiveram submetidos, descrevendo tais ações como uma luta pessoal pela
ocupação de lugares de legitimidade que pleitearam e ou ações
interdiscursivas em condições legitimadas; pretende-se ver nas entrelinhas, no
não-dito seja pelas formas de registro, ou pela interpretação desses primeiros
pelas narrativas historiográficas o apagamento, se não de seus nomes e
feitos propriamente ditos, mas das estratégias cotidianas que desempenharam
para ascender à condição de sujeitos (de autores) e daquilo que de mais
importante representava a época em que viveram e atuaram, nos espaços de
poder daquela sociedade recifense escravista setecentista: suas identidades
étnicas e, portanto, suas matrizes culturais.
Encontrar estas personagens é relevar tais aspectos; É, pois, devolver-
lhes o papel de protagonismo histórico, é visualizar suas contribuições étnicas,
o que requer, quase sempre, um deslocamento do olhar do pesquisador e o
aguçamento de sua atenção investigativa em relação aos silêncios que as
palavras sempre carregam, quanto às palavras que os silêncios sempre
enunciam. A pesquisa requis, portanto, a compreensão de que entre o silêncio
inerente ao não lugar social que era a condição do anonimato funcional e o
lugar de enunciação simbólica e discursiva em que se constituíam as
atuações operacionais destacadas e ações sócio-interativas legitimadas,
porém interdiscursivas que nelas se processavam, constituíam-se as
representações e significações paralelas e delimitavam-se, temporalmentente,
as trajetórias individuais, indicativas, por sua vez, da complexidade de
sentimentos que estavam ao redor das mesmas. Razão pela qual nas
entrelinhas dos documentos estiveram e permaneceram os agentes da cultura,
sendo nessas entrelinhas que tal operariado fala e ou onde dele se fala, desde
que ao silêncio da documentação por eles se pergunte.
Quem foram? Quem eram? Talvez motivem resposta que digam muito
pouco. Como foram? Como podiam -lo? Sejam, talvez, perguntas mais
apropriadas. E as respostas que foram obtidas a respeito do mestre-pedreiro,
arquiteto e engenheiro militar Manoel Ferreira Jácome, do pintor João de Deus
XVIII
20
e Sepulveda e do músico-militar Luis Alves Pinto mestres mulatos do barroco
recifense setecentista constituem o corpo da presente pesquisa.
Antes, porém, dois esclarecimentos devem ser feitos: o primeiro diz
respeito ao recorte temporal, que compreende do ano de 1701 ano em que
morreu Antônio Fernandes de Matos, o enriquecido português no ramo da
construção e seu monopolista, no Recife, do início da expansão urbana pós-
restauração, importando o dito ano pela desmonopolização da indústria da
construção em favor de seus aprendizes e ex-escravos a 1789, ano da morte
de Luis Alves Pinto um dos artífices aqui abordados, que foi um dos herdeiros
e beneficiários (direto e indireto) da desmonopolização funcional. 1789 é
também um ano em que Recife tinha uma fisionomia urbana e cosmopolita,
condizente com sua importância política e comercial no império ultramarino,
sendo sua infra-estrutura e cosmopolitismo frutos da ação social e funcional
dos discípulos e herdeiros de Matos (em grande parte ex escravos).
O segundo esclarecimento diz respeito à pouca ênfase dedicada aqui à
produção barroca mineira, o que se deve ao fato de que o presente trabalho
visa estudar, comparativamente, as produções culturais nos entrepostos
mercantis e portuários ultramarinos luso-brasileiros, mais especificamente
Recife, Salvador e Rio de Janeiro, embora se possa apontar a correlação e
mútua influência daquela produção cultural com a desse entreposto
ultimamente citado.
21
CAPÍTULO I
1. A Vila do Recife, 1701-1789 Espaço e conjuntura sócio-econômica de
uma produção cultural barroca mestiça.
A categoria da cultura é o exemplo
perfeito de como uma noção ocidental é
aplicada a realidades que ela
transforma ou faz desaparecer. Seu
emprego rotineiro minimiza o que essas
realidades comportam, de forma
inevitável e ireversível, em matéria de
contaminações estrangeiras, influências
e empréstimos vindos de outros
horizontes.
3
Recife era, no período de 1701 a 1789, um entreposto mercantil
portuário ultramarino, cuja economia galgara sólida posição tanto em âmbito
regional, quanto no Império Luso-americano. Nesse período, as condições
favoráveis de sua geografia planisférica, atlântica e fluvial
4
possibilitaram à Vila
se posicionar promissoramente como um dos grandes centros do comércio, do
poder e da dinâmica colonizadora lusitana, cabendo-lhe a circulação e difusão
dos paradigmas e documentos religiosos, como as constituições eclesiásticas
5
,
e administrativos
6
, como as cartas comerciais. Com isso, o Recife tornou-se um
dos mais importantes centros de execução e distribuição das ordens régias
7
,
diretrizes eclesiásticas e, por conseguinte, dada a relação da cultura com a
economia setecentista, um enriquecido pólo produtor e difusor da cultura
daquela época, assim como Salvador e Rio de Janeiro
8
.
3
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.
38-41.
4
A fluvialidade era uma das principais caracteristicas das regiões envolvidas no trato mercantil
setecentista, não apenas no que diz respeito ao Império Português, mas em todas as nações
que despontaram para o comércio ultramarino, sendo esse, por conseginte, um elemento-
chave na difusão cultural. Era através das boas condições fluviais que se estabelecia a relação
de complementaridade entre os meios urbano e rural, o melhor, entre os circuitos comercias
terrestre (interiorano) e o costeiro.
5
Ver: VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado do Bahia.
Brasília: Senado Federal, 2007.
6
FILIPE II [Rei], Código Philiphino ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal, v. I-IV,
Brasília: Biblioteca do Senado Federal, 2007.
7
SÁ, José Luis Correia de. Diário [1749-1756]. In: Revista do Instituto Histórico e
Geográfico de Pernambuco. v. LVI, 1983, p. 72.
8
Não obstante a importância de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (na colônia), Porto e
Lisboa (na metrópole) é importante salientar que a alferição de títulos aos espaços locais
(freguesia, vila, cidade, sede, capital), não corresponde simplesmente ao desenvolvimento
urbanístico, mas corresponde à instalação do poderes político e jurídico, assim como denota a
importância política da localidade (geralmente em função da conjuntura econômica), dentro da
22
Como entreposto comercial e centro político, converteu-se
paulatinamente em um dos centros de maior troca de informações escritas
(correspondências entre os legítimos gestores do poder lusitano no Brasil e
fora dele, ou entre as gentes comuns, distanciadas pelo destino aventureiro).
Marcadamente urbana (Fig. 1.1) e tomada por ares cada vez mais
cosmopolitas, verteu em destino a certo ao trânsito de pessoas e ao fluxo de
ideias, e em lugar propício às trocas culturais.
9
Em um cenário à mercê das
tendências e modismos estrangeiros que ali aportavam para serem relidos e
comentados, localmente, no cotidiano mercantil de todas as classes e
categorias sociais que compunham a sociedade, desde as elites à mão-de-obra
mecânica.
Fig. 1.1: Panorama do Recife” 1766 (Detalhe da “Carta topográfica de Pernambuco” de autoria do engenheiro
militar, José Gomes da Fonseca). De posse do Arquivo Histórico Militar de Lisboa Atual Comando Militar de
Engenharia. Disponível: FEREZ, Gilberto. Raras e preciosas vistas e panoramas do Recife 1755-1855, Recife:
SEC/PE, 1984, p. 29.
configuração administrativa do espaço geográfico amplo (pais, império, etc.). (Ver: ARAÚJO,
Renata Klautau de. Cidades. Disponível: www.arquivonacional.historiacolonial.org.br; O
mesmo pode ser dito com relação à questão eclesiástica (prelazia, bispado, arcebispado, etc.).
Fatores, aliás, geralmente associados e influentes no processo migratório setecentista. Mas ao
contrário da idéia consensual, ao menos no que diz respeito à colônia, a centralidade política, a
localização costeira, a configuração urbana e a dinâmica comercial associados ao catolicismo
prático, adaptável, dinâmico e laico (dos bispados e arcebispado setecentistas) influenciaram
na pujança cultural e corroboram para o hibridismo estético-morfológico e para a pluralidade
estilística do barroco.
9
GRUZINSKI, 2001, p. 27.
23
Como fator comprobatório dessa importância, pode ser evidenciado o
próprio aparelhamento administrativo, jurídico, político e institucional,
10
sua
abrangência no âmbito regional e a relativa autonomia recifense no império
ultramarino.
11
no início do século XVIII, entre 1698 e 1702 mais
especificamente, a localidade contava com uma casa da moeda,
12
a terceira
implantada na colônia, e em cuja presidência se sucederam importantes
mercadores locais, egressos do Reino e ascendidos através do trabalho
mecânico.
13
Possuía também uma alfândega, órgão cujos cargos eram tanto
importantes quanto cobiçados, pois nisso se constituía uma teia de gestores
empenhados em gerar laços e práticas clientelistas que visavam facilitações no
que tange às questões pertinentes ao comércio internacional: tráfego de
mercadorias, fiscalização alfandegária e o controle das embarcações
14
destinadas ou provenientes do reino, das possessões portuguesas, e de outras
nações.
Ao fim da primeira década do XVIII, em 1710 mais precisamente, Recife
havia enfrentado Olinda na chamada Guerra dos Mascates, num duelo que era
fruto do “antagonismo hegemônico” opunha os principais centros
pernambucanos na “[...] luta pelo poder local”.
15
Melhor para a vila-porto,
“senhora dos oceanos”,
16
que se destacou frente à sede Duartina, tomado-lhe a
proeminência política e econômica na capitania de Pernambuco,
17
lugar em
que foi se fortalecendo e se estruturando política, econômica e culturalmente
10
COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981, p. 156/222-224.
11
RIBEIRO JUNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia
Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). São Paulo: Hucitec, 1976, p. 85.
12
HANSON, Carl. A economia e a sociedade no Portugal barroco. Lisboa: Dom Quixote,
1982, p. 274.
13
Ver: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um mascate e o Recife: a vida de Antônio
Fernandes de Matos no período de 1671-1701. Recife: CEPE, 1981, p. 64.
14
O porte dessas embarcações variava segundo o emprego: navegação de curta, média e
longa distância. Assim, tem-se, por exemplo, as barcas, os bargantins ou galés, as fragatas, as
corvetas, entre outras, cujas especificidades definem seu emprego na navegação fluvial,
costeira ou oceânica. (Ver: SÁ, 1983, p. 72.).
15
MELLO, Evaldo Cabral de. A Fonda dos Mazombos: nobres contra mascates, Pernambuco,
1666-1715. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 141.
16
Ibidem, p. 148.
17
É importante salientar que Recife que foi elevada à condição de vila em 3 de março de
1710, mas só teve „honras de cidade pela carta imperial de 5 de dezembro de 1824 e somente
sagrou-se definitivamente como sede da capitania em 1837, quando se oficializou a
proeminência política, econômica e cultural que já era real desde o princípio do século XVIII.
24
no decorrer do referido culo.
18
Isto porque essa posição não era apenas
fruto da superioridade lica que se constituiria no período posterior à
restauração frente aos holandeses
19
: era, entre outras razões, fruto do vigor
econômico, calcado sob a condição de „porto natural‟ e berço fluvial
20
(Fig. 1.2),
fatores que tão bem lhe adequavam ao processo de mercantilização da
economia lusitana,
21
sobretudo no seu período de maior dinamismo, a era
pombalina.
Foi nessa fase, visando uma intensificação e maior controle das práticas
comerciais, que foi criada a Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e
Paraíba (1759 -1780), “[...] fundada por negociantes de Lisboa, Porto e Recife
que tinha na vila pernambucana sua sede administrativa”,
22
cuja gestão coube
também aos negociantes de maior expressão, egressos de Portugal radicados
na vila pernambucana, para onde haviam migrado visando preecher o vácuo
deixado pelos antigos investidores batavos e judeus do período holandês
23
.
Em meio a esse processo formou-se uma elite econômica cujos
interesses pessoais caractarerizavam-se por uma leve inclinação às ações
18
Ver: BARBALHO, Nelson. 1710: Recife Versus Olinda: a Guerra Municipal do Açúcar.
Recife: Massangana, 1986.
19
Um claro exemplo da superioridade bélica do Recife em relação à Olinda pode ser obtido no
episódio da tapagem da Ponte do Varadouro (1711), em que se elegeu para “Tribunis Plebis” o
oficial de Ferreiro Domingues Rodrigues (Cf. PIO, Fernando. Dicionário de Artistas e
Artífices dos Sécs. XVIII e XIX em Pernambuco. v. 1. Rio de Janeiro: Ministério da Educação
e Cultura, 1959, p.51). Esse local, aliás, é um dos principais pontos na querela Recife X Olinda,
pois as do Varadouro de Olinda foram recorrentes em todo o Período Colonial e dizem respeito
a única vantagem da velha sede duartina em relação à Vila-porto: o abastecimento d'água
potável. Tais obras manifestavam o intento de Olinda de estabelecer, ali, um cais portuário
capaz de fazer frente ao de Recife, pelo que lhe tomava a primazia comercial. Não obstante, as
obras referentes ao abastecimento d'agua potável eram essenciais e básicas no que tange ao
incremento de infra-estrutura urbana-mercantil nas cidades portuárias, sendo obras de grande
porte, que mobilizavam sempre grande número de operários de todas instâncias funcionais e
níveis de especialização nos trabalhos edificativos. Mão-de-obra esta que era composta, em
sua imensa maioria, pelo braço servil e livre do indígena, do negro e do mestiço, como bem
exemplificam “[...] as obras da Fonte da Carioca e dos Arcos Velhos”, aqueduto que deu lugar
ao Arco da Lapa no Rio de Janeiro[...]”, obras que se desenvolveram desde 1671 e por todo o
século XVIII; (ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: Formação do Brasil no
Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 121).
20
COUTO, 1981, p. 158.
21
O vácuo deixado pelos investidores batavos e judeus impeliu um intenso processo migratório
de navegadores e pequenos comerciantes da costa portuguesa para Pernambuco a partir da
segunda metade do século XVII e por todo o XVIII. Gente ciosa de oportunidades de
enriquecimento com base nos chamados ofícios mecânicos e que contribuiu para o afloramento
do mercantilismo portuário de Recife. (MELLO, 1981, p. 17-19).
22
RODRIGUES, Iara (dir) Arte No Brasil. o Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 62-63; GALVÃO,
Sebastião de Vasconcelos. Dicionário Corográfico, Histórico e Estatístico de Pernambuco.
Vol. 3. Recife: CEPE, 2006, p. 310.
23
MELLO, 1981, p.18; MELLO apud PIO, 1959, p. 51; MELLO, 2003, p. 150-153.
25
autônomas, que a elevação ou fortalecimento político, a distinção e
dignificação social foram paulatinamente se tornando uma bandeira e o mote
dos próprios administradores pernambucanos. Não obstante a pujança
comercial recifense, uma constante tensão no campo político enlaçava
mercadores e governantes setecentistas em contraposição à aristocracia
olindense. Ao manter intensas relações comerciantes e governantes
participavam ativamente da engrenagem comercial ultramarina, convertendo as
sucessivas gestões em expressão do próprio dinamismo comercial de
recifense.
Fig. 1.2: Plano do porto e da
Praça do Recife de
Pernambuco”, de autoria de
José Fernandes Portugal.
Original manuscrito do Arquivo
Histórico do Exercito, Rio de
Janeiro.
Disponível: REIS, Nestor
Goulart. Imagens de vilas e
cidades do Brasil colonial.
São Paulo: EDUSP: 2000.
Foi o que ocorreu no governo do polêmico e ativo Sebastião de Castro
Caldas Barbosa, entre 1707 - 1710: fidalgo, que tendo governado Rio de
Janeiro (onde também fez breve carreira militar) e São Paulo, foi principal ícone
das querelas entre olindenses e recifenses pela proeminência política em
Pernambuco. Partidário das causas mercantis e dos demais interesses da
classe mascate em detrimento aos aristocratas da administração canavieira
, deu grande impulso político ao processo de mudança iniciado pelo viés
econômico. Em virtude da sua incisiva atuação a favor dos recifenses, deveu-
se a decisão de elevar a velha freguesia portuária à condição de “vila” em 1710
e à condição de “sede da capitania” em 15 de fevereiro de 1710, transferência
esta que ele próprio levou a feito, contrariando uma ordem secular
estabelecida e firmada em função da nobreza sanguínea. Foi contratante da
26
ereção do pelourinho local símbolo da nova posição política da Vila , cujas
pedras mandou lavrar, em segredo, artífices e partidários recifenses a fim de se
erigir o dito monumento em meio à calada da noite de 13 de março de daquele
ano.
24
O mesmo ocorreu durante a re-ereção da obra após a demolição
daquela primeira pelos opositores olindenses. Isso porque tais obras
simbolizavam a ascensão recifense, razão pela qual levou um tiro numa
emboscada frustrada em pleno centro da dita vila, na Rua dos Calafantes (atual
Rua das Águas Verdes,
25
obrigando-o a fugir para o entreposto baiano, a
cidade de Salvador. Barbosa foi um dos autores da divisão do termo que
estabelecia as freguesias pertencentes à sede
26
, tendo clara pretensão de
prover uma abundante canalização de tributos para os cofres da jovem urbe:
”[...] assinando o termo da vila, que foi, além da freguesia do Recife, as de
Muribeca, Cabo e Ipojuca, desmembradas todas do de Olinda, e procedida a
eleição de vereadores da nova câmara do senado”.
27
No seu breve governo,
Recife firmou-se definitivamente como centro econômico e como lugar para
onde migrava grande parte da mão-de-obra mecânica livre e “de ganho da
capitania
28
, seduzida por aquela dinâmica comercial infreável e pelo
apadrinhamento dos gestores e mecenas mercantis.
29
Deixou, porém, como
maior contribuição à política pernambucana ou aos mercadores que nela se
insinuavam o sentimento concreto de insurgência contra a ordem social
estabelecida desde os tempos de Duarte Coelho.
Henrique Luis Pereira Freire de Andrada, militar de carreira, como de
costume, que governou Pernambuco entre 1737 e 1746. Foi o primeiro
administrador da capitania sediado definitivamente no Recife, tornando visível o
declínio político olindense. Foi um empenhado combatente da pirataria que
assolava a costa pernambucana e suas capitanias anexas, demonstrando com
isso a liderança regional da antiga capitania Duartina. Engajou-se na
24
GALVÃO, 2006, v. 3, p. 310; MELLO, 2003, p. 217-277.
25
O atentado revela a relativa vulnerabilidade de um entreposto comercial, que a própria
dinâmica cosmopolita comercial restringia um controle militar mais efetivo.
26
Ver: COUTO, 1981, p. 164.
27
COSTA, Francisco A. Pereira da. Anais Pernambucanos, v. 5. Recife: FUNDARPE, 1982,
p. 151-152.
28
GALVÃO, 2006, v. 3, p. 34-36; LIMA, M. Oliveira. Pernambuco: Seu desenvolvimento
histórico. Recife: SECPE, 1975, p. 202-208; BARBALHO, 1986, p. 69-71; COUTO, 1981, p.
211.
29
Talqualmente o fizeram outrora, sub-repticiamente, com os aristocratas olindenses e
senhores de engenho pernambucanos.
27
construção de obras de fortificação costeira; na construção e reforma de pontes
interligando as principais freguesias recifenses;
30
promoveu a abertura de
novas ruas nas freguesias de Santo Antonio e da Boa Vista; efetuou diversos
melhoramentos nas vilas circunvizinhas, fortalecendo os elos entre o Recife e
seus arrabaldes. Além disso, fomentou a sociabilidade e o cosmopolitismo
local: data do seu governo a finalização do templo de Nossa Senhora do
Livramento pela irmandade de pardos pernambucanos, em cuja inauguração
ocorreu uma grande festa pública a primeira do gênero grande festa,
deveras pomposa e plástica no que tange a expressões de atividades culturais,
artísticas e literárias realizadas em louvor à gente parda pernambucana da
capitania evento cuja grandeza e importância e dinamismo revela a
importância e o poder financeiro e o patamar de inserção alcançado pela gente
mestiça recifense
31
.
Outro importante fortalecedor do poderio político-comercial de Recife foi
Luis José Correia de Sá, cuja gestão estendeu-se de 1759 a 1756
32
: natural do
bispado de Coimbra; embarcado no porto de Lisboa para o entreposto
fluminense, onde também exerceu breve carreira militar a sua nomeação
para o governo de Pernambuco; filho de Diogo Correia de , descendente
direto dos Correia de e Benevides, fundadores da Capitania de São
Sebastião do Rio de Janeiro;
33
teve irmãos e outros entes enobrecendo-se,
governando as possessões lusas ou franqueado o comércio intercontinental
entre Europa, África, Índia, Brasil e o Reino, estabelecendo, portanto, um
comércio literalmente global. Correia de foi, como gestor da Capitania de
Pernambuco, empenhado fiscal das exportações portuárias pernambucanas;
ativo na diplomacia para com as naus estrangeiras recém chegadas; assíduo
frequentador indistinto das atividades festivas religiosas, civis e cívicas que
faziam ebulir o cotidiano local
34
, contrariando as recomendações expressas de
30
Foi no governo de Henrique Luiz Pereira Freire de Andrada que se construiu a Ponte a Boa
Vista, no lugar da ruída ponte construída por Nassau, tendo como diferencial as sessenta e
seis lojinhas laterais alugadas com o propósito de arrecadar finanças para a manutenção das
obras públicas. Ver: GALVÃO, 2006, p. 36.
31
GUERRA, Flavio. Nordeste: Um século de silêncio (1654-1755). Cia. Editora de
Pernambuco, 1984, p. 276-307.
32
GALVÃO, 2006, p. 216-217.
33
Vários membros da família Correia de e Benevides governaram o Rio de Janeiro no
século XVIII.
34
Ibidem, p. 158-159; AHU_ACL_CU, 015. Cx. 128, D. 9711.
28
seu antecessor feitas quando da passagem do cargo. Além disso, foi também
um aplicado acompanhante das manobras militares realizadas ao tempo de
sua gestão e responsável direto pelo envio de tropas, artífices e escravos à
região sertaneja, como a dos Cariris Novos, no Ceará.
35
Todas ações de um
aplicado representante da classe mercadora.
Nenhum desses administradores coloniais, entretanto, pode ser
comparado à figura política de José César de Menezes, que governou de 1774
a 1787. Baiano de origem,
36
filho do vice-rei Vasco Fernandes César de
Menezes, notabilizou-se como administrador da fase de decadência e extinção
da Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba;
37
foi
empreendedor e fomentou as construções urbanas, tendo se tornado
contratante de obras artísticas junto aos artesãos mestiços
38
locais, além de
liberal influenciador das festividades sacro-profanas amestiçadas, tidas como
eficazes instrumentos de controle social. Menezes mostrou-se favorável à
fundação e ao funcionamento das diversas irmandades leigas e confrarias
locais, entidades profundamente ligadas ao trabalho operário, onde se
congregava a gente não européia e onde ela interagia com as expressões da
cultura e do credo católico tridentino. Essa postura laica herdada de seus
antecessor, Manuel da Cunha Menezes, que governou Pernambuco de 1774 a
1778, o levaria a enfrentar a parcela mais tradicional do clero local, que
formalizaria contra ele queixa junto à sua alteza, a rainha D. Maria I.
39
Mesmo não sendo criticado quanto ao desempenho no direcionamento
econômico da capitania, a postura amistosa no que tange à sociabilidade das
camadas subalternas, trouxe a Menezes sérios embaraços, que o seguiram até
o fim do seu governo. Passou o cargo para D. Tomás José de Mello, natural de
Lisboa, em cuja gestão, 1787-1798, construiu-se o famoso guindaste portuário
35
SÁ, 1983, p.178/191 e 192.
36
O que fortalecia os laços comerciais entre as duas capitanias.
37
RIBEIRO JUNIOR, 1976, p. 187-208.
38
Filhos de europeus com índias, negras ou mulatas. Ou, ainda, dessas etnias entre si. (Ver:
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino, 1789, (Versão digitalizada).
39
MELLO, José Antônio Gonçalves de. Um governador e as seitas africanas. In: MELLO, José
Antônio Gonçalves de. Tempo de Jornal. Recife: FUNDARJ/Massangana, 1998, p. 41-46;
SILVA, Leonardo Dantas. A instituição da Festa do Rei do Congo e sua presença nos
maracatus. In: SILVA, Leonardo Dantas (Org.) Estudos Sobre a Escravidão Negra, Recife:
FUNDARJ/Massangana, v. 1. 1988, p. 13-53.
29
(1789) a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro, por iniciativa de José da
Mota Leite, comerciante:
[...] que solicitou ao rei, em 1755, permissão para realizar
melhorias no ancoradouro e trapiche da cidade. [... A saber:]
um cais avançado na baía da Guanabara, “dous lanços”, para a
instalação de dois guindastes na frente do trapiche que
administrava único na área da cidade
40
.
A obra recifense, a exemplo da carioca, viabilizou carregos mais
volumosos e ágeis e ainda ações de socorro e reparos às embarcações que
estavam de passagem e ali aportavam em situação de dificuldade trabalhos
anteriormente realizados por indígenas, negros e mestiços “de ganho”.
41
Fomentava, com isso, a chamada “indústria naval ultramarina”,
42
cujo
funcionamento em Pernambuco sabe-se pela notícia da construção de uma
galera em 1748 no porto do Recife,
43
e também das naus N. S. Da Glória, dos
Remédios e São José, no ano de 1779,
44
com o emprego intenso de
profissionais como carpinteiros, marceneiros, calafates, ferreiros, armadores,
alfaiates, latoeiros, entalhadores, pintores, carregadores que trabalhavam nas
embarcações, nos trapiches, estaleiro, ancoradouro, armazéns, e demais infra-
estrutura portuárias, entre outros artífices e seus auxiliares, escravos e
indígenas, forros e libertos em sua maioria, a exemplo do que ocorrera no início
da segunda metade do XVIII em Salvador
45
e Rio de Janeiro.
46
Dom Tomás
também construiu praças e mercados públicos, favorecendo com isso outra
enorme parcela de ganhadores,
47
pescadores, vendeiros, pedreiros, e outros
profissionais. Mas é importante lembrar que foi empossado com a real e
expressa missão de fiscalizar e coibir os impactos da inserção econômica e
social mestiça ocorrida nessa fase de esplendor econômico, a saber: a re-
elaboração cultural e ações coorporativas no âmbito da sociabilidade
pernambucana.
40
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: A vida e a construção da cidade da
invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, p. 358.
41
COSTA, 1982, v. VI, p. 469, TOLLENARE, L. F. de. Notas Dominicanas. Recife: SEC, 1978,
p. 111; KOSTER, Henry, Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife: SEC. 1978, p 32.
42
Ver RODRIGUES, Jaime. De Costa a Costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro
(Angola - Rio de Janeiro, 1780-1860) Campinas São Paulo: 2005, p. 137-158.
43
AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, D.5670.
44
AHU_CL_CU_015. Cx. 187, D.9978.
45
LAPA, J. R. Amaral. Economia Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 233-278.
46
CAVALCANTI, 2004, p. 84-86.
47
GALVÃO, v. 3, 2006, p. 38.
30
Logo, se o governo de Mello não foi um período permeado por tensões
sociais, é a partir dele que elas se formaram. Filhos secundogênitos da alta
nobreza lusitana e, portanto, sem os direitos da primogenitura, fica fácil
entender como lhes restava, dentro das “liberdades comerciais” que lhes eram
concedidas pela realeza ou burlando-as em meio aos negócios com a fidalguia
comercial, engajar-se ainda que indiretamente na faina mercantil, a fim de
angariar os cabedais de riquezas que o status de governadores lhes
possibilitava.
48
Com isso, cada gestor setecentista, a seu modo, contribuiu para
a elevação econômica, o fortalecimento político e o cosmopolitismo mercantil
recifense, sobretudo porque alguns desses governantes tiveram, inclusive, a
oportunidade e a experiência de governar outras capitanias brasileiras ou
domínios ultramarinos, cujas sedes eram também importantes centros
comerciais e entrepostos portuários do mercantilismo luso-colonial.
49
Isso tanto
visava aperfeiçoar o aparelho administrativo lusitano quanto fortalecia
efetivamente os laços comerciais existentes entre essas regiões ou, mais
especificamente, entre as elites mercantis emergentes sediadas nesses locais,
ou que ali tinham parentes e comissários indivíduos ligados pelo vínculo
afetivo, mas distanciados pelos sonhos com a riqueza e distinção
pertencentes às suas respectivas redes comerciais.
Muitas foram as fontes de enriquecimento dessa elite mercantil: “O
comércio negreiro, o crédito usurário, a arrecadação da cobrança de impostos,
a especulação imobiliária, a aquisição e a venda de cargos blicos e outros
tantos campos e ou atividades rendosas, embora muitas vezes ilícitas, com o
apoio, participação ou conveniência dos governantes”.
50
Riqueza que vinha
também do embarque de carne que se fazia para o abastecimento da região
das Minas e Rio de Janeiro. Logo, a grande concentração de capital financeiro
no Recife colonial setecentista foi também construída sob a égide do Estado
48
MONTEIRO, Nuno Gonçalo F. Trajetórias sociais e governo das conquistas: notas
preliminares sobre vice-reis e governadores-gerais do Brasil e da Índia nos séculos XVII e
XVIII. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO,
Antônio Carlos Jucá de. (Org.) Conquistadores e Negociantes: histórias de elites no Antigo
Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de janeiro: Record. 2007, p. 251-
283.
49
Ver: FREYRE, Gilberto. Sobrados & Mocambos: Decadência do Patriarcado Rural e
Urbano. Rio de Janeiro: Record, 1990, p. 370.
50
MELLO, Evaldo Cabral de. O NOME E O SANGUE: Uma parábola familiar no Pernambuco
colonial. Rio de Janeiro, Topbooks, 2000, p. 285.
31
Imperial Português, em meio às estruturas administrativas do Antigo Regime,
tão nobres quão ineficientes; tão enraizadas quão eticamente corrompidas. De
maneira que “o êxito mercantil passava necessariamente pela convivência com
os funcionários régios [...]”,
51
ou, mais objetivamente, com a sua pronta
conivência e colaboração. Maior, porém, foi o vigor das lutas pelo poder que
isso gerou, antagonizando desde grupos, categorias e classes sociais, até
mesmo localidades inteiras (ou alianças locais) em torno de estratégias
empregadas no sentido de alcançá-lo e ou exercê-lo, sendo a Guerra dos
mascates seu exemplo máximo. Mas o que é importante salientar aqui é que
ela não se limitou a uma questão político ou econômica: toda a cultura
setecentista de Recife e Olinda sofreu sérios impactos e dela alimentou-se, a
despeito da histórica querela local pernambucana. Tais aspectos serão
salientados no decorrer desse trabalho. Por ora, registre-se que a cultura
daquela época converteu-se em uma das expressões da histórica disputa, em
símbolo do poder dos vencedores e instrumento de luta e inserção social e
interação cultural para as camadas subalternas e trabalhadores mecânicos que
dela tiraram grande proveito.
52
Perceba-se, desde já, a complexa relação que se estabeleceu entre o
desenvolvimento comercial e a produção/vivenciamento da cultura local: os
jogos políticos, as interações sociais e a difícil posição dos administradores
ante as demandas e querelas que fluíam da atmosfera mercantil, sendo
propagadas por meio do campo simbólico, o Barroco, em suas múltiplas
instâncias produtivas; como a cultura do período mercantil reverberava na
tensa vida cotidiana; como muitas vezes ações eminentemente administrativas
facilmente se converteram em demanda às diversas atividades comerciais e de
trabalho artísticas inclusive e às ações da sociabilidade local (rituais
religiosos, festas, etc.);
53
como, estando caracterizados pela ação operacional
multi-étnica, tais campos legaram ao Recife uma atmosfera urbana,
cosmopolita e das mais instigadoras aos desejosos de locomoção social. Por
fim, como os gestores estiveram sempre profundamente inseridos nas
entranhas do processo de acumulação de capitais e com a geração de novas
51
Ibidem, p. 285.
52
LIMA, 1995, p. 199.
53
COUTO, 1981, p. 157.
32
estratificações sociais daí advindas, não necessariamente calcadas na
relevância da linhagem, ainda que continuassem o sendo nos laços de
parentesco e no clientelismo.
Difícil, porém, era para os administradores frear os influxos e tendências
transformadoras do barroco, como o queriam os altos setores da Igreja, que
também isso era parte do processo de interligação das regiões portuárias
brasileiras e do ultramar. Ou seja: do fluxo contínuo de pessoas e do contato
entre indivíduos diferentes e diferenciados, social, étnica e culturalmente.
Razão pela qual tais governantes tiveram efetivamente que lidar com os
diversos, inesperados e infreáveis efeitos que as locomoções migratórias e
sociais causaram nos antigos referenciais da colonização portuguesa.
Entretanto, mesmo que essas trocas incidissem sobre a cultura local, o
trabalho urbano, a sociabilidade, ou mesmo sobre as próprias estruturas do
organismo administrativo delegador de poderes e legitimador das ações dos
novos expoentes políticos, todos esses aspectos estavam moldados pelas
ações micro-políticas de natureza cotidiana; por negociações inerentes às
organizações grupais, classistas, sociais e funcionais, direta ou indiretamente
vinculadas à gestão local. Exigia-se, portanto, dos gestores certo jogo de
cintura e flexibilidade e propensão ao que se pode chamar de „política de
reciprocidades‟, pois muitas eram as insatisfações a dirimir, da parte dos mais
importantes setores da sociedade: a Igreja, que mesmo sendo a maior
contratante de obras, era também um dos mais fortes opositores das
constantes apropriações e re-elaborações; a nobreza e os mascates, mecenas
e adversários diretos; os operários e artífices mecânicos, para os quais as artes
eram instrumento de legitimidade; e os militares, engajados tanto na defesa
territorial, quanto no planejamento arquitetônico-urbanístico e intra-estruturação
local. Desse jogo, portanto, advinham inúmeras experiências de poder,
propiciadas às pessoas que alcançavam determinados lugares de inserção e
distinção, sempre pleiteados por indivíduos sem as „qualidades‟ da conjuntura
dos setecentos.
33
1.1) Rotas econômicas, sociais e culturais: trânsito e trocas externas e
internas.
A alfândega recifense, que começou a funcionar em 1711, era um
estratégico posto regional de fiscalização das “frotas” pernambucana, baiana e
fluminense que iam e vinham das diversas localidades ultramarinas. Registrava
a passagem dos “comboios” navais egressos ou destinados aos portos
coloniais, parando quase que obrigatoriamente, no Recife, para serem ali
abastecidos, completados ou socorridos.
54
Naus pertencentes, em sua maioria,
aos grandes comerciantes e súditos estabelecidos nos entrepostos
lusocoloniais e que traziam no sangue o pulsar aventureiro da era das grandes
navegações oceânicas. Mercadores que encontraram nesses lugares as
condições necessárias e uma disponibilidade de meios, com os quais trabalhar
e enriquecer tornou-se possível para muitos daqueles indivíduos que
alimentavam esse comum e típico sonho da era mercantil. De modo que muitos
ali alcançaram a tão almejada prosperidade econômica, com a qual o
mercantilismo os fazia sonhar.
Assim do “aberto” – porto da sede pernambucana era, a exemplo do
de Salvador e Rio de Janeiro, pouso certo aos parceiros estrangeiros, cujas
pátrias desde cedo vislumbraram as muitas vantagens desse comércio
intercontinental. Foi dos ingleses (Londres e Liverpool),
55
do franceses
(Marselha),
56
e até mesmo quase sempre clandestinamente com espanhóis
(Cádiz).
57
Seguindo a rota comercia “tupiniquim”, cujo caminho lhes havia
ensinado a multinacional Companhia das Índias Ocidentais, em sua não pouca
avareza.
54
Ver: APJE_D.I_7, Livro de Termos das Alfândegas de Pernambuco (1760-1788), n.p;
COUTO, 1981, p. 155; GALVÃO, 2006, p. 35; SÁ, 1983; COSTA, 1982, v. V, p. 27.
55
SÁ, 1983, p. 141; KOSTER, 1978, p. 6/22/ 324/324; VERGER, Pierre Fatumbi. - Fluxo e
Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo de Benin e a Baía de Todos os Santos. São
Paulo: Corrupio, 2002, p. 62.
56
SÁ, 1983, p. 144; Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 99, D.7767; ALVES, Marieta. Dicionário de
artistas e artífices na Bahia. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1978, p. 36/107 e 176.
57
Adversários históricos de Portugal, mas parceiros comerciais recifenses pelo que se
depreende da ordem governador José César de Menezes, em 1777, para cessarem as
hostilidades costumeiramente ocorridas aos tripulantes das embarcações mercantis
espanholas aportadas na região de Itamaracá, (Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 127, D.9663);
Ordens ratificadas em 1778. (Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 128, D.9704); a bem da prosperidade
comercial certamente. Não obstante, sobre o trânsito de artífices espanhóis nas Capitanias do
Norte ver: ALVES, 1976, p. 164.
34
Outras parcerias eram estabelecidas, com embarcações mercantis
compostas por tripulação mista: franceses, ingleses, alemães e holandeses,
geralmente
58
. É mister dizer-se que alguns desses negócios se davam
clandestinamente, longe dos míopes olhos de sua magestade.
59
O perfil
setecentista recifense, portanto, fazia lembrar algumas das principais cidades
européias que se notabilizaram pela odisséia mercantil e portuária, como
Veneza, Bruxelas, Hamburgo, Amsterdã, Gênova, entre outras que eram, no
XVIII, praça mercantis onde Portugal tinha seus comissários
60
de comércio ou
virce versa e que, via Lisboa ou comércio clandestino, mantiveram rotas
comerciais e intercâmbios culturais com Recife e os principais centros
portuários coloniais, trazendo suas tendências culturais e arquitetônicas
também, tão pujantes na época sobretudo por estarem igualmente atreladas
ao florescimento econômico , e que mantinham profundas relações comerciais
com o Reino de Portugal e, indiretamente, com os centros portuários coloniais
nos domínios de Sua Alteza Real.
Fatia gorda dos poderes comerciários dos mascates recifenses do XVIII
provinha também das transações com os centros africanos: Angola (Luanda e
Cambinda) até então pertencente à jurisdição baiana , Costa da Mina
(Socoto), entre outras regiões costeira daquele continente. É que se depreende
do seguinte documento:
TERMO QUE SE FEZ DA CORVETA SANTISSIMO
SACRAMENTO DE TODOS OS SANCTOS, QUE SEGUE
PARA A VILA DE LOANDA.
[...] Aos vinte e nove dias do mês de outubro de mil sete/centos
e setenta e dois veio a esta secretaria [alfândega], Aleixo de
Araújo/ capitão da Corveta Santíssimo Sacramento, vinda da
Bahia de todos os Santos, que/ presentemente segue viagem
para a cidade de Luanda Reino de/ Angola, pertencente a
Companhia Geral desta Capitania de Per/nambuco, Paraíba ao
qual li todas as ordens de S. Majestade/ fidelíssima, que se
expediram a fim de se/não transportarem desta/capitania para
os de Angola e/mais Costa de África, armas/ de fogo, ou
pólvora para ser vendida naquele Reino e/mas portos/ como
tão bem se/usar nas embarcações, par[a] navegarem/ portos
de pipas próprias para os agrados de competente mero/ de
perigos, assim da sua equipe./ Assim como dos escravos de
sua arqueação, e/ outros se lhe fez saber sendo lhe a ordem a
58
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 100, D.7805.
59
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D.10003; AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D.10017.
60
Ver JUNIOR, 1976, p. 56-84/156.
35
respeito de se não introduzirem vinhos neste porto e para
contar se fez este termo/ em que assinou o Cap.
m
Aleixo de
Araujo e também/ se o obrigara a levar o capelão, o padre
Ângelo de Araújo/ Ferreyra, que tão bem aqui o assinou.
Antonio José/ Fereyra q. Eu assino do q. Escrevi.
Aleixo de Araújo.
61
Destes portos não embarcaram apenas as etnias escravizadas que
alimentaram o sistema escravista colonial, mas também produtos, artigos e
especiarias para serem negociados inclusive no comércio obscuro exercido
por “ganhadores” e destinado aos próprios escravos da capitania.
62
Aos portos
já mencionados deve ser acrescentado ainda os de Moçambique
63
e de regiões
insulares como São Tomé e Príncipe
64
e Cabo Verde, esses últimos em regiões
intermediárias do itinerário comercial atlântico. Fluente e vigoroso comércio
tentacular foi também estabelecido com as demais possessões ultramarinas de
Portugal na região asiática, como Goa na Índia (Fig. 1.3), origem do pintor
Lourenço Veloso,
65
em Salvador no princípio do XVIII, e cujo paradeiro
comprova o âmbito global das rotas comerciais mercantis.
66
Do próprio reino, mantinham comércio com o Recife: a capital e
arcebispado de Lisboa (Anexo “A”, fig. 01), o entreposto e bispado do Porto
(Anexo “A”, fig. 02), principais centro portuários portugueses, intermediadores
do comércio reinol e que, a exemplo dos demais lugares, se converteram nos
principais centros migratórios; nos portos pelos quais embarcaram inúmeros
artífices mecânicos locais e das circunvizinhanças metropolitanas.
67
Além
61
Cf. APEJE_D.I_7, Livro de termos das Alfândegas de Pernambuco (1760-1788), n.p.; Ver:
SÁ, 1983, p. 38/66/80/183 e 210.
62
Indivíduos vinculados ou pertencentes aos grandes comerciantes “de grosso trato”.
63
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 99, D.7743. APEJE, Compromisso da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos da Villa de Igarassú, 1706, fl. 05.
64
SÁ, 1983, p. 293.
65
ALVES, 1976, p. 188.
66
A ausência de registros de embarcações vindas de Goa, por um lado, e a presença de
mercadoria porcelanas, sobretudo indica que não havia uma rota comercial direta entre o
Recife esse entreposto asiático (pelo menos não regularmente), mas era possível se
estabelecer uma rota social e cultural por meio das rotas comerciais Recife X Rio de Janeiro e,
dali seguir o trajeto Rio X Moçambique X Goa; ou ainda através da rota Recife X Salvador, de
onde se estabelecia a o percurso Salvador X Moçambique X Goa. FRAGOSO, João. Têxteis e
metais preciosos: Novos vínculos do comércio indo-brasileiro. In: FRAGOSO, João Luís
Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de (org.), 2007,
p. 339-437.
67
Nas embarcações saídas do Porto em direção ao Recife e à Salvador vieram indivíduos
oriundos de Cascais, Viana do Castelo, Coimbra, Braga, Barcelos, Guimarães, Lamengo, Vila
do Conde e Caminha, ao passo que das que partiam de Lisboa embarcaram alguns oriundos
36
desses centros também havia conexões insulares estabelecidas com as Ilhas
Canárias,
68
Madeira,
69
e Açores,
70
regiões intermediárias do comércio
mercantil.
Rotas inglesas
A) Universo cultural
ameríndio
B) Universo cultural europeu
C) Universo cultural africano
D) Universo cultural asiático
Fig. 1.3: Rotas Comerciais, Sociais
e Culturais Ultramarinas, a julgar
pela origem e ou destino dos
imigrantes e das embarcações
aportadas no Recife entre 1701-
1789. Adaptação do mapa disponível
em: SCHAWARTZ, 2005, p. 12-13.
Rotas francesas
Rotas hispânicas
Rotas Holandesas
Rotas espanholas
* Comércio de cabotagem e comércio fluvial
No âmbito da colônia esse comércio envolvia desde o comércio marítimo
(Rio de Janeiro e Salvador e capitanias anexas) até o fluvial (regiões
circunvizinhas), proporcionando ao Recife um enriquecimento ímpar e, não
obstante, uma dinâmica social nova, literalmente invejável para as cidades
pernambucanas e amesmo para muitas cidades européias. A análise dessa
conjuntura deve conduzir à percepção de como a posição litorânea e a
„vocação portuária‟ do Recife converteram-na num entreposto e ponto de
passagem quase obrigatória às embarcações destinadas e chegadas das
sedes costeiras da administração luso-americana. Vale lembrar: do bispado do
Rio de Janeiro
71
(Anexo “B”, fig. 03), nova sede colonial desde 1763, e do
de Coimbra, e egressos de Viana do Castelo, Évora, Sintra, Setúbal, Estremoz, sendo eles
clero, artífices e mascates. Ver: Actas da Câmara do Recife 1761-1773. In: Revista Arquivos,
v. I e II, 1978, p. 28; Actas da Câmara do Recife 1761-1773. In: Revista Arquivos, v. IV, 1985,
p. 111; Ver o caso do pedreiro Antônio Alves. ALVES, 1976, p. 1974., p. 74.
68
SÁ, 1983, p. 293.
69
Ibidem, p. 73/242/261 e 295.
70
Ibidem, p. 49/72/99 e 137; AHU_CL_CU_015. Cx. 33, D. 3033.
71
O Rio de Janeiro e Pernambuco foram elevados à condição de bispados em 1676, no
A
C
D
B
37
arcebispado de Salvador (Anexo “B”, fig. 02), das controladoras da economia e
da gestão política regional. De como essas três parceiras se complementavam,
formando o tripé da administração política colonial e do comércio exterior.
Recife, ademais, operava a captação e distribuição de produtos entre o
mercado exterior e as localidades próximas, cidades das circunvizinhas e
interiores da própria capitania, como Goiana, Cabo de Santo Agostinho,
Serinhaém, Ipojuca, entre outras,
72
e disto tirava grande proveito.
Constituía-se assim, o circuito comercial das: a) rotas ultramarinas
(ultramarino); b) comércio de cabotagem (inter-regional), c) comércio fluvial
(inter local) comércio urbano, varejista e microbiano (local), resultando daí a
diferença entre o mercador e o mascate que tinha suas explicações (sócio-
distintivas), em termos de “mancha mecânica”.
Foi nesse espaço amplo e global (que corresponde ao que se poderia
chamar de zona migratória) que se estabeleceram as conexões da Vila do
Recife, que, ao menos em termos geográficos, era mais estratégica urbe da
costa brasileira, sendo os lugares envolvidos os destinos e ou origens dos
embarques e desembarques das cargas intermediadas pela sede
pernambucana; do tráfico comercial e dos escoamentos, dos diversos produtos
e especiarias negociadas entre a vila atlântica e aquelas áreas externas ou
regiões anexas à capitania.
73
Um processo que também possibilita perceber
como a expansão econômica se converteu em expansão demográfica, ou seja,
como as artérias mercantis facilmente se converteram em rotas sociais de
emigração, pois o dinamismo do cotidiano recifense transformou
profundamente a vila portuária pernambucana, tornando a “nobilíssima [...]”
74
pontificado do Papa Inocêncio XI (Benedetto Giulio Odescalchi 1611 - 1689), que no mesmo
ano elevou a Bahia à condição de arcebispado. (Ver: MOURA, (Pe.) Laércio Dias de. A
educação católica no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Loyola, 2000). Não de
por acaso essas capitanias foram os principais centros religiosos, políticos econômicos e
culturais do Brasil Colonial. Perceba-se, portanto, a profunda ligação entre essas instâncias de
poder e a pujança cultural do barroco ali produzido nesse período.
72
Cf. PIO, 1959; MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos sécs. XVIII e XIX
em Pernambuco. Rio de Janeiro: IPHAN, 1974; LEITE, Serafim. Artes e ofícios dos jesuítas
no Brasil (1569-1760). Lisboa/Rio de Janeiro. Brotéria/livros de Portugal, 1953.
73
Conforme se pode observar no AHU_CL_CU_015. Cx. 123, D.9399, ordenava o Marquês de
Pombal que 2/3 da madeira paraibana fosse embarcada do porto de Recife, sob cuja
administração recaía o poder de fiscalização da entrada e saída das mercadorias regionais.
74
COUTO, 1981, p. 155/160
38
sede da fidalguia comercial, ”[...] cidade com o nome de Vila do Recife”,
75
tal
era a sua infra-estrutura, oposta diametralmente à nobre e aristocrática ex-sede
da capitania de Duarte Coelho; tornou-a centro do poder, muito mais
urbanizada que Olinda (fig. 1.4 e 1.5) e atrativa aos artífices e artistas egressos
das circunvizinhanças, inclusive da própria Olinda, e de boa parte da Europa,
76
onde, aliás, o trabalho na produção barroca estava crescente desuso.
77
Fig. 1.4: Planta urbana do Recife 1703, por CHURCHILL,
Awnsham, 16---1728. Disponível: In: Voyages and Travels,
into Brasil and the East-Indies... / By Mr. John Nieuhoff. -
London: Awnsham and John Churchill, 1703, p. 10.
Disponível: http://purl.pt/103/1/catalogo-
digital/registo/170/170.html
Fig. 1.5: Planta urbana de Olinda, 1703, por CHURCHILL,
Awnsham, 16---1728. Disponível: In: Voyages and Travels,
into Brasil and the East-Indies... / By Mr. John Nieuhoff. -
London: Awnsham and John Churchill, 1703, p. 13.
Disponível: http://purl.pt/103/1/catalogo-
digital/registo/168/168.html
Gente ciosa de oportunidades, ascensão e enriquecimento que as
cidades interioranas e açucareiras ou o velho continente, não lhes podiam
oferecer. Foi, portanto, devido às rotas comerciais e sociais que Recife passou
a sediar uma população considerável
78
e um crescente número de operários
75
Ibidem, p. 153-161.
76
Cf. PIO, 1959; MARTINS, 1974; ALVES, 1976; COUTO, 1981; MELLO, 1981.
77
Cf. ETZEL, Eduardo. O barroco no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1974, p. 45-47.
78
Os dados populacionais recifense do século XVIII, variam de acordo como os autores: a
localidade possuía entre 1701-1711 cerca de 9.000 habitantes (Ver: Anais da Biblioteca
Nacional d Rio de Janeiro, XL (1918), p. 40-42; PITA, 1959, p. 72); 30 mil almas por volta de
1759 (COUTO, 1981, p. 162); apenas 33 mil em 1788 (WALTERTON apud SMITH, Robert
Chester. Igrejas, Casas e Móveis: Aspectos da arte colonial brasileira. Recife:
MEC/UFPE/IPHAN, 1979, p. 204). De qualquer forma os números são relevantes. Ainda mais
se for considerado que a capitania pernambucana e suas anexas possuía cerca de 120 mil
habitantes em 1779 (Ver Mapa com os números da população da Capitania de Pernambuco no
ano de 1777 In: AHU_ACL_CU_015, Cx. 127, D. 9665). Constariam, porém, somente 25 mil
pessoas em 1809 (KOSTER, 1978, p. 42.) e são comparativos aos da cidade do Porto (40.000
habitantes), Salvador (46.000) e Rio de Janeiro (60.000) em 1908, distanciados
significativamente apenas em relação a Lisboa, que possuía 180.000 pessoas naquele ano
(CAVALCANTI, 2004, p. 258). Isso revela a equivalência política e econômica entre os
entrepostos citados, exceto à capital portuguesa, pois expressam a importância econômica e o
39
qualificados nas diversas especialidades e oriundos de diversas origens
geográficas e matizes étnicos. Razão pela qual a cultura ali produzida esteve
intimamente vinculada a esse processo. Isso explica a presença de grande
número de imigrantes egressos dessas regiões para atuarem funcionalmente
ali comerciando, intermediando transações mercantis, exercendo funções
artísticas e artesanais na sede pernambucana ou, uma vez ali sediados,
estendendo seus negócios às demais regiões da rota costeira brasileira.
A título de exemplos, cabe enfatizar os casos do francês Francisco
Manoel Beranguer, sediado no Recife no final do XVIII, onde notabilizou-se
pela introdução, em Pernambuco, de novas técnicas na arte do mobiliário,
como o uso de verniz de boneca, por exemplo;
79
do pedreiro Lourenço Velaço
[16..? 1708], indiano de Goa, que passou por Recife seguindo depois para
Salvador, onde atuou até a morte;
80
do genovês Domingos dice que,
seduzido pelo cosmopolitismo, prosperidade e pelas oportunidades de
locomoção, encontrava-se em processo de naturalização no Recife no ano de
1729; mesma petição feita pelo francês João dos Reis ao rei D. João V em
1730, quando seguia de Lisboa para Recife;
81
em processo naturalização
também se encontrava também o médico José de Mol, vindo de Bruxelas a
Recife
82
em 1747, cuja origem, mesmo não sendo um artífice, parece um
indício das tendências chegadas ao Recife. Para Recife veio também o escultor
jesuíta milanês Juão Rubiati [1724-1766], que passara por Recife, seguindo
mais tarde para Salvador, cidade em que atuou antes de retornar a Portugal,
onde veio a falecer; do também milanês Jo Salimbene [1642-1722],
83
carpinteiro, que aportaria no Recife indo juntar-se a tantos outros imigrantes na
sede baiana. Tais indivíduos parecem atestar o nível de importância geopolítica
vigoroso fluxo migratório que o processo de mercantilização ocasionou e os impactos
(intercâmbios) daí advindos, sendo comparáveis .
79
Cf. PIO, 1959, p. 19, COSTA, v. X, 1982, p. 279.
80
São conhecidas as motivações orientais encontradas na imaginária mineira, baiana,
recifense e olindense, cuja autoria constitui ainda campo aberto a estudos. (Ver: IHPAN,
Inventário da Igreja de São Pedro dos clérigos). Sobre o artífice mencionado (ver: ALVES,
1796, p. 34/67//270/271 e 331).
81
AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D.3598.
82
AHU_ACL_CU_015, Cx. 67, D.5640.
83
Dos portos italianos embarcavam os emigrados ao Reino de Portugal, e dali para o Brasil,
sendo eles clérigos (jesuítas, sobretudo) e artífices que vieram tentar a sorte em Recife;
Salvador, Rio de Janeiro. Cf. SÁ, 1983, p. 43/57/124 e 239; Sobre os artífices italianos acima
mencionados Cf. AHU_CL_CU_015.Cx. 38, D.3396; ALVES, 1976, p.154/157, respectivamente.
40
e comercial da nova sede pernambucana dentro e fora do Império Ultramarino
Lusitano e as rotas estabelecidas.
Migrantes ainda que involuntários foram também os tantos indivíduos
vindos das possessões portuguesas na costa africana, de cujos portos vieram
escravizados. Deles se contavam inúmeros cativos hábeis nos ofícios
artísticos, sendo muitos desses aproveitados nas equipes dos grandes artífices
locais. Os mais destacados, quando alforriados por seus senhores e ou da
morte dos mestre-artesãos aos quais estavam agregados alcançaram,
eventualmente, ascensão e liberdade para atuarem na Vila e demais
arrabaldes. Não raro tiveram, a exemplo dos antigos mestres, atuações nas
anexas pernambucanas e demais entrepostos brasileiros, exercendo sobre a
produção cultural significativa influência e corroborando para a hibridização da
cultura colonial em suas múltiplas e correlacionadas instâncias.
Tem-se, assim, os casos de Joseph dos Reys, ourives de profissão e
ajudante (posto militar) no ano de 1725, membro da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos da Freguesia de Santo Antônio do Recife
desde 1722
84
; de Miguel Rodrigues, irmão do Rosário entre 1709-25, alforriado
em 1723 ano em que casou-se com có-irmã Juliana Roiz, associada entre
1716-25
85
; e Amaro Roiz, membro entre 1716-25
86
, todos eles escravos e
auxiliares de Manoel Roiz, importante oficial de alfaiate pardo, encontrado
como ajudante, alferes e, por fim, na patente de Capitão na Vila do Recife, o
qual também era membro da associação do rosário em 1724.
87
Outros
exemplos são Gabriel de Seixas, ourives, membro de 1712-1714, escravo de
Gregório de Seixas,
88
com o qual deve ter se iniciado no dito ofício; de
Francisco Ferreira, oficial de ferreiro, irmão do Rosário entre 1710-18,
89
escravo de Francisco Ferreira Pontes, “homem branco”, capitão e igualmente
membro do Rosário entre 1709-25
90
ano em que morrera tornando liberto o dito
escravo; de Raphael Silva, oficial de pedreiro, membro entre 1721 e 1725, até
84
IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS DA FREGUESIA DE
SANTO ANTÔNIO DO RECIFE. Lista Alfabética de Irmãos (A-X) do Rosário dos Pretos
1678-1725. IPHAN 5ª RG/PE, Cx N. 4, p. 49.
85
Ibidem, p. 199.
86
Ibidem, p. 317.
87
Ibidem, 199, 317 e 365v.
88
Ibdem, p. 46v
89
Ibidem, p. 101.
90
Ibidem, p. 101v.
41
seguir para o Rio de Janeiro ao lado da esposa e co-associada Isabel Silva
91
.
Igualmente importantes são os casos de Luiz de Brito, associado entre 1724-
1725;
92
Joseph Luiz, sócio entre 1724-1725
93
e 1753-57
94
e Ambrósio Luis,
membro entre 1724-25,
95
escravos e auxiliares que foram do oficial de
marceneiro e carapina mulato André Luis, irmão terceiro.
96
Tem-se ainda:
Sebastião Fonceca, membro entre 1708-10, escravo e auxiliar do negro
tanoeiro Thomé da Fonceca, que também era membro do Rosário entre 1708 e
1709, ano em que faleceu deixando liberto o citado escravo; Antônio Pacheco,
associado em 1722, escravo e auxiliar de Manoel Pacheco, entalhador
97
;
Manoel de Almeida irmanado entre 1719-25, escravo e auxiliar de Francisco de
Almeida, oficial de canoeiro;
98
Manoel da Silva, confrade em 1720, auxiliar de
Bernardo da Silva, carapina
99
e Domingos Correia, preto forro, membro da
irmandade do Rosário do Recife entre 1715-1725,
100
ex-auxiliar do saudoso
mestre Antônio Fernandes de Matos.
Igual sorte funcional cabia também a seus descendentes mestiços, como
demonstra o caso do jovem pardo, 21 anos, carpinteiro em Pernambuco,
acusado de bigamia por volta de 1759 e condenado ao degredo nas Galeras;
101
de João Doya, artilheiro pardo, membro da associação do Rosário dos Pretos
do Recife entre 1711 e 1725;
102
de João de Souza Álvares, pardo ourives,
inquilino nas casas da Irmandade do Rosário entre 1756-57;
103
e de Joséph
[Rodrigues], crioulo, irmão do Rosário entre 1719 e 1725,
104
escravo do oficial
Francisco Rodrigues Pereira [da Silva Praça], que ascendeu a grande
comerciante e presidente da Ordem Terceira de São Francisco do Recife no
91
Ibidem, p.115v.
92
Ibidem, p. 449.
93
Ibidem, p. 331.
94
Idem, Lista Alfabética de Irmãos (A-X) do Rosário dos Pretos 1757-1815. IPHAN 5ª RG/P,
Cx N. 39, p. 2v.
95
Ibidem, op. cit., p. 331.
96
PIO, 1959, p. 7; MARTINS, 1974, p. 24.
97
Ibidem, op. cit., p. 329v.
98
Ibidem, p. 457.
99
Ibidem, p. 449.
100
Ibidem, p. 80v.
101
MARTINS, 1974, p. 75.
102
Ibidem, op. cit., p. 115v.
103
Idem. Livro de foreiros e inquilinos 1747-1757. IPHAN 5ª RG/P, Cx. N. 23, p. 130.
104
Idem. Lista de Irmãos, Cx N. 4, p. 322.
42
ano de 1760,
105
associação congregadora da classe mercantil e contraponto à
rica Irmandade da Santa Casa de Misericórdia, clube açucarocrático, em
Olinda.
106
Importando nisso os benefícios do dito escravo, em meio à extensão
da luta interclassista ao campo simbólico litúrgico-artístico.
Os índios podem também ser considerados migrantes involuntários, se
for levada em conta a sua imersão no universo político, funcional e cultural
ocidental, em cuja fronteira passavam a viver e interagir. Tal se deu com o
índio Felipe Ribeiro, escravo e associado na Irmandade do Rosário dos Pretos
da Freguesia de Santo Antônio do Recife entre os anos de 1717 e 1725,
auxiliar de Rodrigues Ribeiro Lima, membro entre 1714-1725.
107
Sua sorte,
como não poderia deixar de ser, consistia nos ofícios mecânicos ligados à
dinâmica mercantil portuária.
Os casos dos artífices supracitados demonstram a veracidade do relato
de Tolenare, ao dizer que no Recife desde tempos remotos: “um mestre de
obras, um marceneiro, um carpinteiro, um ferreiro, um pedreiro, um chefe,
enfim, de qualquer destas profissões, em lugar de assalariar operários livres,
compra[va] escravos e os instrui[a]”,
108
enriquecendo-se e possibilitando-lhe
sonhar com a liberdade. Demonstra ainda como o Recife mercantil contava
com uma demanda operacional que, no decorrer dos setecentos, era composta
tanto por estrangeiros, como por artífices, auxiliares e aprendizes das camadas
subalternas: negros, indígenas e mestiços que, aliás, eram um coeficiente
majoritário, em meados daquele século.
109
Revela também como os ofícios
artesanais podiam romper com a rigidez hierárquica da sociedade recifense e
com os preceitos artísticos da tridentina Fé; como as atividades funcionais
eram um campo fértil às estratégias de projeção e distinção social; como a isso
prescindiam os vínculos adequados que viessem a consolidar os espaços de
liberdade, o casamento e a vida familiar dos escravos e seus descendentes
naquela sociedade. Contudo, mostra também como o novo lugar social, de
certa maneira, lhes tornava alvos da vigilância contínua, de eventuais
105
JABOATÃO, (Frei) Antônio de Santa Maria Jaboatão. Novo orbe seráfico brasílico ou
Chronica dos frades Menores da Província de Pernambuco. Recife: Assembléia Legislativa de
Pernambuco, 1980, Livro I, p. 463-464.
106
MELLO, 2003, p. 155.
107
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da Freguesia de Santo Antônio do
Recife. Lista de Irmãos, Cx N. 46, p. 106v.
108
TOLLENARE, 1978, p. 112.
109
COSTA, 1983, v. VI, p. 146.
43
denúncias e passíveis de duras punições contra condutas não toleradas pela
Igreja e o poder público.
Não obstante ao processo migratório, as parceiras inter-regionais
resultaram igualmente num trânsito pendular de indivíduos que adensou,
significativamente, o número de artesãos locais, possibilitando diversas trocas
de experiências entre as sedes coloniais e um grande enriquecimento das
culturas locais. Pois era justamente o trânsito de gestores, militares, clérigos e
artífices que sobressaia às relações políticas e comerciais entre as principais
capitanias brasileiras, e disso resultava um sentimento de ruptura com a
linearidade estética e “singeleza” das artes dos primeiros tempos em
Pernambuco.
Através da rota comercial entre Rio de Janeiro/Pernambuco, se pode
explicar a presença dos artífices-pintores Antônio Teles e Miguel do Loreto,
escravos do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, onde atuaram na sede
e redondezas desde 1720, realizando as pinturas do forro do teto da capela
mor (1783-86) e os painéis do mobiliário da sacristia do mosteiro beneditino de
Olinda. Também não se pode descartar possíveis atuações desses escravos
na Vila do Recife, onde aportaram e re-embarcaram em ambas as missões
110
.
Suas obras são, portanto, exemplos concretos das trocas culturais existentes
entre essas capitanias e da cultura híbridas que fluía das parcerias comerciais.
É o que ocorre também no âmbito nortista, entre as chamadas “escola
pernambucana” e “baiana”,
111
cujos intercâmbios podem ser exemplificados
com os casos do ourives pernambucano José Lopes de Brito (16..? 17..?) e
do organeiro recifense Salvador Francisco Leite (1761-1844), que atuaram na
sede baiana; do também ou ainda o organeiro Agostinho Rodrigues Leite,
pernambucano que produziu órgãos para Olinda, Recife, Salvador e Rio de
Janeiro no século XVIII;
112
ou, em contrapartida, do escultor jesuíta Luiz da
110
Ver: RAGGI, Giuseppina. A arte da ilusão realizada pelo artista-escravo Antônio Telles, no
século XVIII. Pintura da Igreja de São Bento recria em Olinda as maravilhas do barroco italiano.
In: REVISTA, de História da Biblioteca Nacional, Ano I, Nº 3, 2005, p. 28-32.
111
MENEZES, José Luiz Mota. Dois Monumentos do Recife: São Pedro Dois Clérigos e
Nossa Senhora da Conceição Dos Militares. Recife: Secretaria de Educação e Cultura, 1983, p.
17-27.
112
MELLO, José Antônio Gonçalves de. A Matriz de Boa Viagem. Recife: Diário de
Pernambuco, ed. 18 de Agosto de 1957.
44
Costa, natural de Lisboa, que sediou-se em Salvador e atuou em Olinda até
seu falecimento, no ano de 1739.
113
Perceba-se como, embora evidentemente calcadas no controle fiscal
das embarcações que viabilizavam o comércio transatlântico das importações
de escravos vindos da África, do fluxo de produtos do Reino e das exportações
de açúcar, madeiras nobres, couros, algodão, sal, tabaco e outros produtos
114
,
o fluxo cultural era outro importante aspecto das parcerias atlânticas. Espera-
se, portanto, que os exemplos acima mencionados bastem para demonstrar
quão relevantes foi o fator das diversas conjunturas locais e os circuitos de
interligação entre as mesmas para a pluralidade estética e estilística e variação
simbólica das expressões do barroco setecentista, pois o ambiente de
interação favorecia as apropriações estilísticas e a impressão de novos
conteúdos simbólicos.
Estrangeiros ou colonos, fato é que no Recife setecentista uma tensa,
porém constante interação deu-se entre os artífices brancos, negros, indígenas
e mestiços, possibilitando os intercâmbios e a mútua influência na cultura
barroca. E foi com esses agentes étnicos que a vila pode difundir
regionalmente a cultura barroca: foi através dessas migrações que se
processou a difusão cultural na capitania e em suas anexas, onde a produção
se desenvolveu à luz dos diversos horizontes culturais ali coexistentes, que
esses se interpenetravam nesse lugar fronteiriço que era o Barroco. Razão
pela qual a produção setecentista recifense esteve deveras marcada pela
circularidade, pelas misturas, mesclas e hibridizações.
115
1.2) Ares mercantis X cultura mestiça: uma fisionomia do cotidiano social
recifense.
Pode-se perceber como os ínvios caminhos da arte
116
seguiu os sempre
muito viáveis as vezes vis caminhos das rotas comerciais. De maneira que
é rastreando os passos dos indivíduos que seguiram as rotas migratórias e
113
Sobre o trânsito dos artífices citados ver: ALVES, 1976, 40/92 e 56.
114
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 117, D.8931. (Mapa da Carga Mercantil transportada para Lisboa
no ano de 1774, no navio Nossa senhora dos Prazeres).
115
Ver: GRUZINSKI, 2001, p. 27-31.
116
SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Barroco: alma do Brasil. Rio de Janeiro: Comunicação
Máxima/Bradesco, 1997, p. 64.
45
vivenciaram cotidianamente a cultura barroca colonial que se pode encontrar
indícios das reelaborações por eles operada, comprovar sua relação com o
mercantilismo e compreender como a produção era fomentada pelas tensões
sociais. Querelas simbolicamente impressas nas próprias obras materiais,
atendendo não apenas ao interesse dos nobres/comerciantes, mecenas a que
a produção era instrumento de afirmação, mas dos próprios artífices que as
personificavam e até mesmo de seus artífices-auxiliares. A mesma influência
era operada pelos vivenciadores dos rituais litúrgicos, eventos cívicos ou
festivos.
Foi o que observou o poeta baiano Gregório de Matos, quando partia
para o degredo em Angola. Tendo embarcando numa nau mercante no porto
de Salvador que atracaria, como de costume, no Recife em 1694, tivera o
poeta na sede pernambucana tempo para escrever uns poucos versos:
DESCREVE A PROCISSÃO DE QUARTA-FEYRA DE CINZA
EM PERNAMBUCO.
Um negro magro em sufilé mui justo,/ dous azorragues de um
Joá/ pendentes,/ barbado o Peres, mais dous penitentes,/ com
asas seis crianças sem mais custo.// De vermelho o mulato
mais robusto,/ três meninos fradinhos inocentes,/ dez, ou doze
brichotes mui agentes,/ vinte, ou trinta canelas de ombro
onusto.// Sem débita reverência seis andores,/ um pendão de
algodão tinto em tejuco,/ em fileira dez pares de menores://
atrás um negro, um cego, um mamaluco,/ três lotes de rapazes
gritadores,/ é a Procissão de cinza em Pernambuco.
117
Aliás, o olhar de repúdio do poeta e fidalgo baiano parece expressar
bem o clima de contenda que cercava as relações locais e nutria as querelas e
disputas classistas em torno da realização do citado evento. Embates que
tiveram que se intensificarão durante o governo de Sebastião de Castro e
Caldas, pois,
[...] durante seu Governo, e com o seu apoio, conseguira a
Ordem Terceira de São Francisco da Vila do Recife
autorização do Reino para realizar a saída da chamada
procissão de Cinzas, que durante quase um século e meio iria
continuar sendo uma das maiores atrações religiosas do
período quaresmal da capitania.
118
117
MATOS, Gregório de. Poemas satíricos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 22.
118
GUERRA, 1984, p. 241.
46
Mas as razões desses estranhamentos não estavam no âmbito das
motivações religiosas, mas, ao contrário, eram eminentemente simbólicas e
inerentes ao jogo político do eixo Olinda-Recife. Ou, mais especificamente, à
proeminência econômica da vila mercantil em detrimento ao declínio da cidade-
sede e de sua elite, já que
Vinha de alguns anos a luta dos recifenses para fazer circular
pelas ruas da vila um costume religioso externo, que a cidade
de Olinda utilizava ha muito tempo. Obviamente, sendo a
Ordem Terceira de São Francisco do Recife mais rica que a da
velha cidade-sede, a apresentação da sua procissão iria ser
mais faustosa, ofuscando o brilho que sempre tivera a outra.
119
[grifos nossos]
Compreende-se, assim, porque os olindenses tentavam sempre impedir
a realização do evento.
Não obstatante à manifestação da riqueza recifense através dessa
procissão, o registro fetio por Matos ao voltar do degredo em 1696, cumprindo
a rotina de aportar no Recife de Pernambuco
120
lugar onde viria a falece
121
revela que ele pôde mesmo contemplar a mobilidade dos escravos, vestidos
em sufilié; a presença dos brichotes (estrangeiros) das muitas nações a
aportar, munidos de seus horizontes culturais, naquele entreposto e a mesma,
e, sobretudo, a dinâmica lúdico e ritualística tão indiciária do cosmopolitismo
que ali se vivenciava.
Nobre, defensor voraz da fidalguia baiana, Matos esteve sempre atento
ao processo de mercantilização que difundia-se nas grandes cidades portuárias
das Capitanias do Norte do Brasil Colonial e crítico das transformações que
isso implicava nas tessituras social e política da “pobre rica” Salvador
122
dos
seiscentos em diante. Foi por isso que registrou, assídua e atenciosamente, a
hibridez cultural dos tempos mercantis
123
e os impactos dessa mestiçagem no
âmbito na cultura, em suas múltiplas e híbridas expressões, criticando o caráter
sacroprofano das mesmas, outrora norteadas unicamente pelas diretrizes
religiosa.
119
. Ibidem, 1984, 241.
120
Ver SÁ, 1983, p. 49.
121
Ibidem op. cit., Antologia. Porto Alegre: LP&M, 2007, p. 103.
122
Ibidem, 2007, p. 63-72.
123
Expressão de um processo de mestiçagem étnica que atingia até mesmo o próprio clero
tão bem expressa no rótulo “clero cacique”, e que revela os impactos e efeitos do mercantilismo
sob tenso cotidiano dessas cidades marítimas.
47
Essas mesmas hibridizações também marcaram a dinâmica cotidiana
recifense. Sobretudo no século XVIII, quando as artes locais estiveram
orientadas pelas lembranças, musicalidade, instrumentação e demais heranças
da sacralidade dos filhos de África:
Celebravam os africanos as suas festas com danças e
cantorias, acompanhados de instrumentos musicais fabricados
e exclusivamente usados por eles, além das castanholas, bater
de palmas côncavas, e de diferentes formas de assobios por
eles inventados com muita variedade.
124
E se, por um lado foram as festas “[...] a propaganda do Regime
Colonial”
125
, por outro, foram elas também veículo às pulsações populares e
cotidianas, tal era o nível de releitura empreendido a esses eventos no
vivenciamento plural e cotidiano das camadas subalternas.
A prova disto é que a 8 de maio de 1711, [... foi...] feita a
coroação de um Rei do Congo durante as festas da Irmandade
[do Rosário]. Este ritual afro e procissão era feito com
maracatus, dois arqueiros à frente, dois cordões de damas de
honra, símbolos religiosos, gatos, jacarés e bonecas
enfeitadas
126
.
Muitas delas, aliás, eram devotivas aos santos ou oragos negros, como
Elesbão, Moisés, Benedito, Antonio do Nodo (ou de Catalagiroma) e Rei
Baltazar. E de instrumentos do controle branco, converteram-se em campo
simbólico da lutas étnicas, em demandas à atuação funcional de artífices
escravos e libertos e em espaços às suas ações identitárias. Como ocorria nos
idos de 1711:
Após irem à missa, cerca de quatrocentos homens e cem
mulheres, elegeram um rei e uma rainha, e marcharam pelas
ruas cantando, dançando e recitando os versos que fizeram,
acompanhados de oboés, trombetas, tambores bascos [...]
Estavam vestidos com as roupas de seus senhores e
senhoras, com correntes de outro e brincos de ouro e pérola,
alguns [estavam] mascarados. Todas as diversões desta
cerimônia lhes custaram cem escudos.
127
124
WAGNER, apud, SILVA, Leonardo Dantas. A instituição do Rei do Congo e sua presença
nos maracatus. In: SILVA, Leonardo Dantas (Org.). Estudos sobre a escravidão negra no
Brasil. v. 2. Recife: Massangana, 1988, p. 24.
125
ETZEL, 1974, 54.
126
IPHAN, Documentos s.d. In: Pasta do Tombamento Histórico da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário. RECIFE: IPHAN, 5ª C.R/PE, 1765, p. 01-02.
127
RONENEFORT apud SILVA, Luiz Geraldo. Da festa barroca à intolerância ilustrada:
Irmandades católicas e religiosidade negra na América Portuguesa (1750-1815), p. 4.
Disponível em: http://www.estadonacional.usp.br/pesquisa/Textos/repensando.pdf
48
Por trás da celebração popular, a conexão e conivência dos senhores, o
olhar permissivo do poder público e o grande poder financeiro dos
participantes: gente diretamente vinculada ao comércio local. O alto custo
desses eventos revela o potencial financeiro de seus patrocinadores, pois o
trabalho mecânico era justamente uma fonte aos investimentos financeiros e o
suporte às solenidades espetaculosas nutridas de motivações africanas e
indígenas. Interações que embora remetessem a seus horizontes culturais
estavam socialmente difundidas na sede pernambucana. É o que faz pensar
Couto, quando relata que os africanos da Irmandade do Rosário, “[...] para
maior fervor de sua devoção formam danças e outros lícitos divertimentos
como que devotamente alegram o povo [...]”.
128
O informe revela o quanto o caráter sacro-profano, outrora observado
por Gregório de Matos, era conhecido, tolerado e legitimado tanto pelo clero,
quanto pelos administradores locais. Sobretudo pelo fato de que a introdução
desses elementos, estranhos a sacralidade católica tridentina, estava sempre
amparada na participação efetiva dos artífices de ganho, dos mais renomados
aos aprendizes, geralmente vinculados às irmandades realizadoras. Não raro,
são encontrados exercendo nelas cargos administrativos, fato que os ligava
diretamente ao poder camarinho, ícones da elite mercantil, permissores e
legitimadores presenciais das ditas festas.
Mas se for lembrado que Portugal era um dos Estados onde as leis
tridentinas tiveram maior impacto e vigor, e onde a Inquisição se processou
mais fortemente, chega-se à conclusão de que essas intervenções culturais
foram possíveis porque foram praticadas por indivíduos que, em sua maioria,
estavam funcionalmente inseridos na engrenagem econômica daquela
sociedade colonial, marítima, urbana, comercial e cosmopolita.
1.3) Cultura e trabalho: ordem e desordem na sociedade mercantil
recifense.
Algumas consequências do enriquecimento recifense foram o
incremento da infra-estrutura urbana e as diversas oportunidades no trabalho
128
COSTA, 1982, v. 6, p. 150-153.
49
construtivo que a demanda populacional crescente gerava aos trabalhadores
mecânicos. Não por coincidência, nesse período realizaram-se ali diversas
obras de urbanização, como construções religiosas, militares e prédios civis
destinados ao uso residencial e da gestão administrativa.
129
Além de outros
tantos empreendimentos típicos de uma cidade costeira,
130
como obras
ribeirinhas, erição de trapiches e armazéns, construções ou reformas de pontes
e o aperfeiçoamento do seu molhe portuário, que atenuava a fúria do mar,
favorecendo o embarque e o desembarque das naus de suas frotas “mercante”
e “de guerra” e dos demais “navios soltos”, que seguiam viagem para rotas
comerciais específicas.
131
Mas se, por um lado, “[...] parece haver uma imagem pública de
qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens individuais [...]”,
132
por outro, em termos de práxis edificativa, a urbe recifense era também produto
das visões singulares e das perspectivas grupais. E isso tinha, evidentemente,
grande implicação em termos sociais, que se deu, ali, um re-ordenamento
político e classista, marcado por mudanças e permanências que eram, por sua
vez, fruto da participação desses agentes urbanos em todos os setores,
inclusive nos assuntos administrativos. E a peça principal dessa dinâmica eram
os homens de negócio, de “grosso” e “fino trato”: mercadores–portuários,
donos de frotas, trapiches e demais infra-estruturas necessárias ao comércio
transatlântico, vendedores de madeiras, pregos, tintas e outras provisões,
etc.
133
Indivíduos dotados de grande demanda de prestadores de serviço e
cativos, empregados num amplo leque de funções essenciais. Decorre daí o
intenso empreendimento dessa mão-de-obra servil nas inúmeras funções “de
129
Cf. MELLO, 1981, P. 17-72; SÁ, 1983, p. 272; COSTA, 1983, v. 5, p. 13-24; COUTO, 1981,
p. 160.
130
MARTINS, 1974, P.95; SÁ, 1983, p. 120-125.
131
A “frota de Pernambuco” compunha-se, em 1749, de 39 embarcações, e segundo
explicação de José Antônio Gonsalves de Mello, as naus mercantes que não viajavam na
chamada nesse comboio, escoltadas pela esquadra “de guerra”, nem pertenciam a rica e
autônoma frota jesuíta (LEITE, 1953, p. 71-74; COSTA, v. 4, p. 71/74.), Seguiam em viagens
avulsas e eram denominados: “navios soltos”, pertencendo aos comerciantes de menor
expressão, os chamados “volantes”. (Cf. SÁ, 1983, p. 31/45.). Esse sistema de navegação, que
implicava em monopólio, perdurou de 1711 a 1765. Época em que o comércio portuário estava
controlado pela Companhia Geral de Comércio de Pernambuco e Paraíba, fundada em 1759.
(Ver: RIBEIRO JUNIOR, 1976, p. 26-73).
132
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 51.
133
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Belo Horizonte-Rio de Janeiro:
Itatiaia. 1997, p. 141.
50
ganho”, deveras facilitadas pela boa localização geográfica atlântica e fluvial do
Recife:
Por entre o Beberibe, e o oceano/ em uma areia sáfia, e
lagadiça/ jaz o Recife povoação mestiça,/que o Belga edificou
ímpio tirano.//O Povo é pouco, e muito pouco urbano,/que vive
à mercê de uma lingüiça,/unha de velha insípida enfermiça,/e
camarões de charco em todo o ano.//As damas cortesãs, e por
rasgadas/olhas podridas, são, e pestilências,/elas com
purgações, nunca purgadas.//Mas a culpa têm vossas
reverências,/pois as trazem rompidas, e escaladas/com
cordões, com bentinhos, e indulgências
134
.
Perfil sáfio baixo e alagadiço; movediço, não confiável dos tempos
primeiros da ocupação, é verdade, mais que a sistemática dos entrepostos
mercantis e portuários,
135
a “máquina mercante”,
136
por meio da indústria
construtiva e as esforçadas mãos operárias da gente escrava que bem soube
tirar seus benefícios financeiros e sociais desse processo tornaria-lhes,
durante o XVIII, cada vez menos lagadiços, enfermos, menos pestilentos e, ao
contrário, mais urbanizados, mais salubres e, sobretudo, mais povoados,
dinamizados e cosmopolitas. Mas não é apenas a geografia o fator explicativo
esse processo, é preciso perceber, na descrição acima, o ambiente, a
sociabilidade e todos os aspectos que induzem a mestiçagem étnica e cultural
em que se desenvolvem a economia e as artes. Que explicam como, de
aprendizes e auxiliares, os indivíduos desqualificados etnicamente se
converteram em peritos em atividades operacionais ou mecânicas as mais
diversas, que iam desde as atividades portuárias e prestação de serviços aos
tripulantes às belas-artes. Ou, mais descritivamente: a) a construção e reparo
naval, trabalhos concernentes à logística portuária (cais, trapiches, alfândega,
etc. (Fig. 1.6)): embarques, desembarques e estocagem; b) atividades
direcionadas às necessidades de estadia dos tripulantes;
137
c) trabalhos
urbanos: transporte de mercadorias e pessoas por via terrestre ou fluvial; d)
vendas (que se faziam ambulantemente nas ruas e praça da polé, ou
134
“Descrição do Recife de Pernambuco” 1696. Cf. MATOS, 2007, p. 208.
135
Os mesmos problemas ocorriam na Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro na virada
do XVIII para o XIX (Ver CAVALCANTI, 2004, p. 29-34) e em Salvador nos idos de 1683
(PITTA, Sebatião da Rocha. História da América Portuguesa, desde 1500, ano do seu
descobrimento, até o de 1724. W. M. Jackson, IMC, Rio de Janeiro: 1950, p. 329).
136
Idem, op. cit., 2006, p. 36.
137
ANDRADE, Gilberto Osório de. Montebelo, os Males e os Mascates. Recife: UFPE, 1969,
p. 155, SMITH, 1979, p. 122-123; GALVÃO, 2006, v. 2, p. 205.
51
oficialmente nas 64 lojinhas estabelecidas sobre as laterais da Ponte do
Recife;
138
e) tarefas construtivas concernentes à infra-estrutura e ao urbanismo
local, da alçada dos oficiais artesãos ali sediados.
Fig. 1.6: Vista Planisférica, Vertical, e Marítima do Areal do S. B. J. [São Bom Jesus] do Recife de
Pernambucode autoria do militar José de Oliveira Barbosa. Retrata a estrutura construída a mando de D. Tomaz
José de Mello (1789), para a estocagem e embarque de madeiras. Na pintura aparece a mão-de-obra escrava negra
(circulados em vermelho) e indígena (em amarelo) “de ganho”. Disponível: SMITH, 1979, p. 117.
A atuação nessas atividades possibilitava a esses indivíduos, advindos
das classes subalternas, se inserir não apenas funcionalmente, mas também
socialmente, possibilitando-lhes integrar os quadros das irmandades leigas
locais, na medida em que sua atuação também contribuía para o
enriquecimento dos negociantes, para a dinamização da economia local e,
sobretudo, para o aprofundamento da dependência rural junto à nova sede da
capitania e principal centro portuário de Pernambuco, contribuindo para que
imperasse no Recife setecentista uma mentalidade empreendedora e uma
visão administrativa das mais perspicazes e oportunas. Por outro lado, na
relação mercadores X artífices recifenses, eis a razão pela qual também não
faltou capital aos investimentos na cultura, nem serviço à farta, especializada e
138
Onde hoje está construída a ponte Maurício de Nassau (Ver: COSTA, 1983, v. V, p. 24).
52
etnicamente híbrida mão-de-obra mecânica ali concentrada. De sorte, à época
corriam pela Europa as notícias acerca das oportunidades ali encontradas, não
tardando se converterem em „êxodo‟ para a Vila Recife, cuja população inflou
com rapidez e cujos hábitos modestos e vilarinhos ficavam cada vez mais
distantes.
Recife, assim, transitava entre a dinâmica cosmopolita e mercantil dos
grandes centros portuários europeus anteriormente mencionados e o
mercantilismo urbano/escravista/clientelar dos demais parceiros comerciais
brasileiros. Ares mercantis esses, que eram sal e pimenta à calmaria doce dos
„freyreanos‟ aristocratas da cana.
Vigoraria adiante a vante a suntuosidade e um cosmopolitismo todo
próprio, expressos, sobretudo, nas manifestações culturais. Isto porque as
conversas públicas entre forasteiros e colonos constituíram, doravante, um fato
corriqueiro e se davam em meio aos grandes e pequenos negócios, às
atividades funcionais e de lazer. Nelas misturava-se assuntos externos e
internos de toda sorte: tendências artísticas em voga no velho continente,
direcionamentos políticos da corte, velhas e novas intrigas classistas ou
étnicas, querelas e fofocas locais, desejos provincianos, saudades das terras
natais, aspirações pessoais ou funcionais, modos de ver e vivenciar a fé, as
artes, as expressões culturais, as benesses advindas da conjuntura mercantil,
enfim. Protagonizando-as: uma pluralidade étnica que refletiu-se na conversão
dessas boas novas em representações, re-elaborações e na construção das
identidades culturais dos grupos sociais e diversas categorias sociais que os
compunham.
1.4) O Barroco mercantil recifense e as influências européia, indígena,
africana e mestiça.
A cultura setecentista, portanto, seguiu os rumos do mercantilismo, na
medida em que o vigor econômico dessa época teve forte impacto nas
produções realizadas nas localidades mais prósperas, pois parte considerável
das riquezas acumuladas era investida tanto nas obras materiais quanto nos
53
eventos da cultura imaterial, instâncias que se complementavam no cenário
colonial.
139
Tal cosmopolitismo explica porque a difusão do barroco deu-se à luz da
sociabilidade colonial, se constituindo como o resultado natural do conflito de
mundos, do encontro de etnias e dos jogos políticos operados pelos vários
representantes culturais
140
. Assim, as obras foram produzidas numa sociedade
porfiosa por natureza e marcada pela constante busca pelo desenvolvimento
de ações interativas; de ações pelas quais logravam os indivíduos das
camadas subalternas níveis cada vez maiores de liberdade social,
141
o alcance
da tão sonhada notoriedade funcional e a construção de laços clientelares e
postos relevantes no cenário administrativo.
Com isso, convergiam para o Barroco o trabalho mecânico, os embates
étnicos cotidianos, as tensões em torno das crenças religiosas, além de outros
fatores. E na efetiva operação entravam em cena essas estratégias de
sobrevivência, típicas daquela sociedade colonial: costeira, urbana, comercial,
multiétnica escravocrata e, sobretudo, socialmente estratificada com base
nesses aspectos. De sorte que esse legado artístico-operacional fazia-se um
produto das intrigas e alianças pessoais; da mentalidade religiosa, de
referencial normativo-discursivo tridentino,
142
e das possibilidades, brechas,
laicismos e acomodações do catolicismo prático;
143
das ações administrativas e
da busca cotidiana pela sobrevivência pessoal; das práticas e representações
individuais ou coletivas e das atividades operacionais; das tendências
estrangeiras ali circulantes e da interação incisiva de brancos, índios, negros e
mestiços. Enfim, da relação existente entre os agentes sociais e étnicos e a
conjuntura mercantilista local. O que implica dizer que esses elementos
promoveram suas próprias re-elaborações acerca das tendências ali
disseminadas.
139
Cf. COSTA, v. 7, p. 13
140
GRUZINSKI, 2001, p. 27-36.
141
Ver: CARVALHO, Marcus J. S. de. Liberdade: Rotinas e rupturas do escravismo, Recife,
1822-1850. Recife: UFPE, 2002, p. 73-324.
142
ver: SÁ, 1983, p. 00. SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. a Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1978., p. 51-55; COUTO, 1981, p. 153-164.
143
, FREYRE, Gilberto. Nordeste: Aspectos da Influência da Cana Sobre a Vida e Paisagem
do nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1990. p. 34-35; COUTO, 1981, p. 158; LIMA,
1975, p. 223.
54
Bom exemplo desse hibridismo é a pujante e por vezes ostentosa
produção arquitetônica e urbanística recifense setecentista, que fluiu em meio
às transformações decorrentes das próprias mudanças econômicas e políticas
e de seus desdobramentos. A saber: das novas perspectivas administrativas
concernentes à capitania. Mudanças essas que possibilitavam aos obreiros
jogar o jogo das barganhas coloniais e colocar em cena, entre outras coisas, o
uso das atividades funcionais como diferenciais na vinculação perante a elite
comercial recifense e pernambucana. Já que a perícia nas diversas expressões
da cultura imaterial e a participação distinta nos eventos litúrgicos e festivos se
converteram, igualmente, em elementos de legitimidade social nas constantes
disputas políticas inerentes à conjuntura setecentista. De modo que tanto as
obras como os eventos, sendo as expressões simbólicas da referida riqueza,
do poder e espaços de sociabilidade alcançados pelos mascates, militares e ou
artífices recifenses, destinavam-se à afirmação ou concessão de distinção
social, e serviam de elementos de barganha a seus diversos participantes. Este
elo era explicado pelo fato de que indivíduos dessas categorias eram os
membros das irmandades religiosas e leigas, inclusive as mais ricas e
importantes, bem como os demandantes das tantas construções, desde os
templos propriamente ditos ao vasto leque de trabalhos que fizeram do Recife
um “burgo eclesiástico”,
144
um entreposto comercial e cosmopolita e uma base
militar do império luso-brasileiro.
Era justamente o envolvimento e o elo existente entre as categorias
funcionais que imprimiam às obras públicas os caráteres civil, religioso, e
militar. Pois qualquer que seja qual fosse a modalidade edificativa, eram os
serviços arrematados pelos mestres-artífices nas diversas especialidades
funcionais, os quais empregavam nelas sua equipe de auxiliares-escravos,
negros, indígenas e mestiços, agentes anônimos da efetiva execução. Para
tais ajudantes, porém, os benefícios não foram menos expressivos, pois, ainda
que esses indivíduos carregassem os estigmas da cor e da chamada “mancha
mecânica”,
145
muitos não tardaram a se especializar e ascender socialmente
convertendo-se, eles próprios, nos mestres-artesãos do dezoito, seguindo os
144
FERNANDES, Aníbal. Estudo Pernambucanos. Recife: Secretaria de Educação e Cultura,
1956, p. 14.
145
Ver: MELLO, 2000, p. 30.
55
passos de seus instrutores: desde o aprendizado efetivo aos caminhos da
sociabilidade que conduziam à notoriedade. Assim as habilidades atreladas
aos vínculos com as altas classes faziam com que se projetassem naquela
sociedade, granjeando e alcançando títulos, hábitos honoríficos, patentes
militares e mesmo cargos administrativos, como, por exemplo, o de „presidente
de ofício‟, que era o inspetor local das obras públicas, responsável pela
administração local dos membros das respectivas categorias funcionais e, ao
mesmo tempo, um representante dos pares junto à câmara local.
146
Exercido
sempre por artífices “nacionais”, geralmente negros e mestiços, como foi o
caso do mulato, oficial de carpinteiro, carapina e irmão terceiro de são
Francisco, André Luis Pinto (1707),
147
e do mestre-pedreiro Manoel Ferreira
Jácome, de quem se falará em capítulo específico.
Trilhando um percurso cuja trajetória compreendia toda uma vida e as
vivências cotidianas, que simbolizavam a luta pelo reconhecimento pessoal e
de suas respectivas etnias,
148
gozaram esses mestres mulatos do direito ao
pertencimento e à projeção hierárquica dentro das ordens religiosas leigas, das
confrarias-de-ofício, “pias” ou “arqui-confrarias”, associações corporativas
149
que eram da administração pública que as legitimava. Essas, por sua vez,
eram associações surgidas dentro de muitas irmandades, “pias” ou “arqui-
irmandades”,
150
associações de caráter estritamente religioso, que evoluíam
para questões de natureza associativo-funcional, fatores esses que, na era
146
O cargo de presidente de ofício perdurou até a promulgação da constituição de 1824, que
extinguiu as corporações de ofício. (Ver: COSTA, 1982, v. 6, p. 145-153).
147
Ver: PIO, A Ordem Terceira de São Francisco e suas igrejas. Recife: UFRE, 1975, p. 21.
148
Partiu-se aqui do pressuposto de que a diversidade humana não constitui-se na pluralidade
de raças, mas na pluralidade etnológica (caráter meramente biológico que define as
características estético-dermatológicas), muito mais pertinente à questão da origem geográfica
e ao horizonte cultural dos indivíduos, haja visto que a derme remete e simboliza tal origem e
imputava-lhes, na sociedade colonial, lugar/não-lugares sociais, políticos e econômicos. Do
mesmo modo, a concepção de mestissagem (étnica e cultural) e suas variantes (multiétnico,
inter-etnico), apontam para os efeitos (misturas, apropriações ou fusões) desses elementos,
para a correlação origem/herança cultural das quatro origens e, por conseguinte, dos quatro
troncos culturais principais da era colonial [África, América, Europa (essa na qualidade de
tendência preponderante, mas sempre contestada e relida no cotidiano) e Ásia]. (ver
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio
de Janeiro: Zahar, 1993, p. 95 - 202). Por fim, objetiva-se apontar para a transculturalidade do
legado colonial setecentista, recorrendo-se, para isso, ao olhar multidisciplinar e trans-
disciplinar, deveras necessário a esse tipo de pesquisa.
149
BAZIN, Germain, A Arquitetura religiosa Barroca no Brasil, v. 1. Rio de Janeiro: Record
1983, v. 1, p 42.
150
Denominam-se “Pias” ou “Arqui”, as irmandades ou confrarias que possuíam outras
tributárias (com santo de devoção, mas sem igreja própria), e que se destinavam ao culto
público. (Ver: ETZEL, 1974, p. 76-77).
56
mercantil, tornaram-se proeminentes no congregamento dos trabalhadores
mecânicos do barroco.
Esse universo operacional, aliás, trata-se de um campo amplo e
diversificado de funções, aberto à atuação de mão-de-obra multi-étnica. Fato
que resultou na gradual e irrefreável ocupação do mercado de trabalho por
negros, indígenas e mestiços. Um processo cujo efeito mais notável e visível foi
a busca desses artífices pelo exercício de uma forte e cada vez mais intensa
influência sobre o produto de seu trabalho: as obras.
A importância desse processo, no que tange à produção barroca,
consiste na grande contribuição para a formação de uma tessitura social e
étnica diferenciada, hierarquizada segundo as habilidades funcionais e nobreza
dos ofícios. O que significa dizer: a organização dos operários em cadeias
funcionais, que tinham em sua base a relação dos artífices com seus agentes
da economia mercantil ultramarina.
151
Tem-se, com isso, a possibilidade de
identificação de percursos de aprendizado/atuação, trilhados por sujeitos
advindos das camadas subalternas dentro das engrenagens operacionais e a
compreensão das ascensões ou níveis de distinção como fatores resultantes
dos vários níveis de especialização técnica e a relevância dos laços cotidianos.
Tem-se, sobretudo, a possibilidade de se identificar a transposição das
barreiras geográfica e econômica a que se viam presos tais indivíduos, já que o
horizonte de atuação dos artesãos poderia, inclusive, compreender o próprio
raio de atuação de seus mecenas: os mercadores.
Tudo isso demonstra como a cultura recifense desse período esteve
profundamente vinculada à posição litorânea e à fluente economia local, e
como sua cultura se converteu em um conglomerado de campos da
sociabilidade, processo esse que conduz a ver, nas diversas obras, elementos
que denunciam a relação de mão dupla entre as culturas erudita e subalterna.
Desta forma, a constante tensão que permeava a atmosfera em que foram
produzidas tais expressões lhes fazia transitar entre a serenidade político-
devotiva oficial, e a jocosidade lúdica do cotidiano; entre a ação insertiva e o
151
COSTA, 1982, v. 6, p. 97.
57
lugar de exclusão, entre a oposição e a fusão simbólica; entre a co-relação
dualística e o embate simbólico.
152
1.5) Legado, [re]elaboração e irradiação cultural como produtos das
trajetórias incisivas.
Descrever as trajetórias individuais desses artífices dentro da conjuntura
recifense do XVIII conduz a perceber como a vila, tanto mantinha uma grande
sintonia cultural com a metrópole e outras regiões portuárias da Europa, África,
Ásia e do Brasil Colonial, quanto gozava de relativa autonomia econômica e
cultural em relação à matriz lusitana. Sobre isso escrevera Frei Caneca, nos
idos do XIX, comentando acerca da destreza dos artífices coloniais
pernambucanos em suas respectivas áreas de atuação. Veja-se:
É causa que ninguém pode por em dúvida, por que de todo o
tempo eles nunca cederam o passo aos portugueses europeus
e sempre foram nelas tão bons como estes, conforme os
régulos, em que as ciências em Portugal tinha maior ou menor
solidês; é deixando por ora alguns pernambucanos, que em
todos os ramos [da produção] têm sido tão bons como os
portugueses europeus dos seus tempos [...]
153
Essa desenvoltura era, na verdade, fruto da feliz associação da perícia
individual, por ele destacada e do poder insertivo das atividades artísticas na
fase de incremento de infra-estrutura urbana que resultou da era mercantil do
Recife, com a abundância e a qualidade das matéria-primas disponíveis na
região, como as pedras lavradas tiradas dos arrecifes de Boa Viagem ou das
pedreiras de Nazaré no Cabo de Santo Agostinho, de melhor qualidade, ou
ainda as madeira pernambucanas, alagoanas e baianas que, de tão
excelentes, eram um importante item das exportações para Portugal. Item,
aliás, de cuja dependência portuguesa comentava, em Lisboa, nos idos de
1733, o padre Inácio da Piedade e Vasconcelos (1676-1747), ressaltando não
152
BACKHTIN, Mikail a cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 51-124, 171-242.
153
CANECA, (Frei) Joaquim do Amor divino. Obras políticas e literários colecionados pelo
comendador Antônio Joaquim de Melo. Recife: UFPE, p. 187. Rio de Janeiro. Puc, CFC,
Editora Documentário, 1972, p. 187.
58
apenas a abundância desses importes, mas a nobreza dessa mercadoria, sua
diversidade e durabilidade.
154
Apenas para citar um campo de primorosas atuações, se pode falar aqui
de oficiais recifenses que trabalharam com esse madeiramento, como foi o
caso do marceneiro e mestre-entalhador setecentista José Gomes de
Figueiredo, autor de grande parte do mobiliário encontrado hoje nos mais
importantes templos pernambucanos, mais especificamente, em São Pedro
dos Clérigos, na Ordem Terceira de São Francisco, na Igreja de Santo Antônio
e na Igreja do Carmo, no Recife, e no Mosteiro de São Bento de Olinda
155
. Ou,
se poderia citar, ainda, José Gomes de São Mateus, carpinteiro do navio
Olinda, preso em 1778 por ordem do então governador de Pernambuco, José
Cesar de Menezes.
156
Artífices que, caracterizados pela multifuncionalidade e
atuando conjuntamente com os escultores e entalhadores, trabalharam nos
serviços artísticos das igrejas e residências, nas embarcações construídas, e
ou reparadas no porto de Recife
157
, como também na confecção de sepulturas,
entre outros serviços. Campos de atuação comuns em cidades portuárias como
Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
Nesses entrepostos, embora sempre pesasse sobre esses trabalhadores
a “mancha mecânica” e para muitos também a “étnica”, suas limitações sociais
eram bem menos rígidas que as impostas aos pares étnicos desprovidos
destes talentos. É o que comprova a solicitação feita por Antônio Teixeira,
carpinteiro da ribeira das naus da Capitania de Pernambuco, ao cargo de
mestre das carretas e trem da artilharia do Forte do Matos, vago em função da
morte do titular em 1753,
158
e tantas mercês granjeadas por esses indivíduos à
Sua Majestade Real, quase sempre intermediadas pelos gestores, mercadores.
Em certas ocasiões, aliás, a própria origem étnica estava diretamente
relacionada com suas invulgares habilidades, lhes permitindo, por exemplo, a
agregar saberes diversos acerca das propriedades ou especificidades de
empregos costrutivos inerentes à cada espécie de madeira nativa. Tal se deu
com os indígenas e seus descendentes, que se embrenharam nas matas,
154
VASCONNCELOS, apud SMITH, 1979, p. 15-16.
155
Ibidem, p. 327-345.
156
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D. 9979.
157
Cf. AHU_CL_CU_004. Cx. 3, D.248; AHU_CL_CU_004, Cx. 3. D.250.
158
AHU_CL_CU_015. Cx. 115, D.6259.
59
adquirindo com isso conhecimentos específicos trazidos depois ao meio
urbano, onde muitos chegaram a atuar no embarque dessas madeiras ou nas
atividades artístico e artesanais.
159
Bons exemplos são os irmãos carpinteiros,
mamelucos, Pedro Álvares e Miguel Pires, filhos do português Antônio Álvares,
que se encontravam atuando no Recife seiscentista,
160
e converteram-se em
exemplos a serem seguidos pelos pares que viveram na conjuntura
setecentista.
No que tange à atuação desses profissionais no feitio e reparo das
embarcações, não deixava de guardar certa sintonia com os sentimentos que
motivavam os empreendimentos barrocos, como se pode depreender das
nominações utilizadas a título de registro das naus junto à câmara e à
alfândega locais. Em cada nome há tanto uma ação de devoção religiosa
regida, quase sempre, pela gana do capital mercantil dos negócios
ultramarinos, cristalizada em nomes como “Nossa Senhora da Glória”, “do
Remédio” e “São José”; “Santíssimo Sacramento” e “Nossa Senhora do Pilar”;
“Nossa Senhora da Conceição”; “Graça Divina”; “Santo Antônio”; “Nossa
Senhora dos Prazeres”; “Nossa Senhora de Nazaré”: “Santa Ana”; “São Luiz
Afortunado”; “São Boaventura”; “Nossa Senhora da Piedade”; “Bom Jesus dos
Navegantes” e “Santa Tereza”, entre tantos outros santos da devoção de seus
proprietários, acredita-se.
161
Como também um tributo e uma pista da
prosperidade alcançada pelos senhores dos mares radicados em terras
recifenses, como eram talvez as naus “Príncipe do Brasil” e “Netuno” ou
162
. Por
fim, uma indiciária amostra da promiscuidade comercial desses negociantes
d‟além mar, qual foram as embarcação “Ritter” e “Sarah”.
163
159
Ver: FREYRE, 2002, p. 46.
160
PIO 1959, p. 18.
161
Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D.9971; AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D.9997;
AHU_CL_CU_015. Cx. 133, D.10006; AHU_CL_CU_015. Cx. 134, D.10041; AHU_CL_CU_015.
Cx. 134, D.10050; AHU_CL_CU_015. Cx. 134, D.10059; AHU_CL_CU_015. Cx. 134, D.10067;
AHU_CL_CU_015. Cx. 157, D.11323; AHU_CL_CU_015. Cx. 62, D.5307.
162
Ver: AHU_CL_CU_015. Cx. 135, D.10111; AHU_CL_CU_015. Cx. 132, D.9904.
163
Essas embarcações de origem inglesa aponta para o fluente e, a época, ilegal comércio
anglo-recifense, existente desde o período pós-restauração holandesa. Descortinado e
legalizado com o advento da Abertura dos Portos, quando aportava no Recife a emblemática
presença de Henry Koster, egresso de Liverpool, tendo embarcado no porto de Londres,
seguindo rota comercial social e cultural próspera e deveras consumada entre o final dos
setecentos e o setecentos. Por isso mesmo a primeira embarcação foi apreendida envolvida
em ações de contrabando nos idos de 1777 (Cf. AHU_CL_CU_015. Cx. 157, D.10001; Cf.
AHU_CL_CU_015. Cx. 178, D.12473).
60
Tais nomes denunciam como o sentimento votivo impresso nesses
registros, ao agrado dos irmãos terceiros das mais importantes ordens leigas
recifenses, contrastava com a mentalidade eminentemente mercantil, o ímpeto
porfioso e a usura dos proprietários dessas embarcações, os chamados
„capitalistas‟, agiotas ou financiadores à crédito. Tão ciosos por enriquecimento,
quão ávidos em ostentá-lo no âmbito da cultura, residindo nisto uma de suas
motivações em fazerem-se demandantes de certos empreendimentos urbanos,
artísticos e festivos.
O barroco, assim, revela-se um campo vasto, pleno de representações
individuais e coletivas, espaço lúdico e metafísico, onde fatores étnicos,
políticos, sociais, econômicos e funcionais interagiram constante e
intensamente em detrimento ao mimetismo postergado pelos ideais tridentinos;
um campo de atuação propenso às estratégias políticas, tanto da parte dos
artesãos, quanto da parte da clientela de consumidores, aristocratas e
comerciantes, permeado por aspectos de militares. que boa parte dos
elementos dessas categorias estavam condecorados com cargos e patentes
funcionais e honoríficas da vida militar. Seus saberes técnicos foram
convertidos em potenciais expoentes das expressões artesanais. Lugar de
legitimidade para os mecenas setecentistas, caminho de inserção e ascensão
social para os operários mecânicos: eis o barroco mercantil recifense.
Esses fatores foram os grandes pilares de fomento às artes
empreendidas pelos artífices recifenses do XVIII e, naturalmente, os
referenciais que as obras deviam expressar: o militarismo,
164
comércio,
religiosidade, ludismo e trabalho: uma exótica mistura, é verdade, mas não
para uma cultura que fluía da vida, da mentalidade comercial de seus
contratantes e , sobretudo, dos meios de vida cotidianos.
164
A defesa contra os índios hostis ao domínio lusitano e contra os invasores europeus
(traficantes de madeira e corsários) levou a coroa a lançar empregar a mão-de-obra escrava na
“construção de fortins [nas áreas litorâneas]” (ALENCASTRO, 2000, p. 124), empreendimentos
nos quais os cativos tinham seu aprendizado na engenharia militar. As fortalezas eram,
portanto, um desdobramento das velhas lembranças da ocupação, tendo legado à costa
recifense, e brasileira como um todo, inúmeros fortes refuncionalizados posteriormente para o
trato mercantil, como se falará em tópico oportuno.Contudo, as próprias construções civis e
religiosas assumiram um caráter eminentemente militar (de vigilância constante), perfeitamente
compreensíveis, se considerarmos a participação da mão-de-obra militar nas atividades
construtivas e ou no seu planejamento.
61
Mas o reflexo maior parece ter se dado no âmbito social, pois os artífices
agentes do barroco estavam diretamente relacionados com as mudanças
ou, mais claramente, ascendiam social e politicamente com elas. Essas
ascensões, por sua vez, principiavam um processo cíclico, pois abriam velhos
e novos caminhos para outros tantos artífices negros, indígenas e mestiços. E
se na sociedade clientelar luso-brasileira [...] era livre ou escravo quem assim
fosse socialmente reconhecido [...]”,
165
o trabalho era uma peça chave no
caminho para esse reconhecimento. De modo que, através dele, muitos
indivíduos cativos, emergiram do não-lugar do anonimato nas funções
subalternas, para os lugares de maior visibilidade; lugares-de-fala e de
enunciação
166
, onde poderiam até mesmo chegar a exercer certos papéis de
controle e ou representação de suas respectivas categorias funcionais e,
inclusive, promover possíveis influências sobre seus trabalhos artísticos e
artesanais, nutridas por seus respectivos horizontes culturais.
Desse modo, as trajetórias individuais fazem ver na esfera do trabalho
mecânico-artesanal um elemento de mediação dos conflitos sociais e uma
ferramenta poderosa, através da qual indivíduos inclusive etnicamente
„desqualificados‟ asujeitados e anônimos se constituíam em sujeitos
históricos, a quem era outorgado um lugar-de-fala e certa experiência de
exercício do poder numa sociedade colonial do Antigo Regime.
Alguns desses artífices contraíram trajetórias notáveis, convertendo-se
nos grandes ícones da economia local e em precursores de outras trajetórias
operacionais. É o caso do mestre pedreiro Antônio Fernandes de Matos,
português da região do Minho, com origem humilde em Viana do Castelo, onde
nasceu em 1640, que embarcou provavelmente na cidade do Porto por volta de
1671 num navio da frota mercante que seguia em direção a colônia brasileira,
onde veio aventurar-se no Recife. Era um dos muitos migrantes que ocuparam
o vácuo deixado pelos judeus e holandeses na economia recifense. Ali aqui
ascendera de forma impressionante: Chegou a monopolizar as exportações de
madeira em Pernambuco até o limiar do século XVIII e foi dono da matéria-
165
MATTOS, Maria Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: O Antigo
Regime em perspectiva. In: FRAGOSO, João Luís Ribeiro; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de
& SAMPAIO, 2007, p. 161.
166
Ver FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008, p. 56-61
62
prima (madeira à margem dos rios e matas virgens das redondezas atual
região de Camaragibe). Foi também, por longo tempo, o maior arrematante e
empreiteiro de obras públicas, contratante dos dízimos alfandegários, e
“capitalista” (agiota). Além de: proprietário/empreendedor de vasta mão-de-
obra mecânica especializada (servil e ou livre), tendo, no entanto, começado
como um simples mestre-pedreiro e engenheiro,
167
ofícios nos quais projetou e
erigiu a maioria dos edifícios e templos locais de sua época, como a Igreja do
Carmo, da Ordem Terceira Franciscana, a Igreja de Nossa S
ra
. do Carmo, de
N. S. do Rosário e da Madre de Deus. Além disso, construiu e reformou várias
pontes e aperfeiçoou o molhe portuário natural (primeira reforma 1694-96). Foi,
ainda, construtor e capitão da chamada „Fortaleza do Matos‟,
168
oferecida a El
Rey e localizada nas proximidades do cais do porto, com a função de protegê-
lo em situação de risco.
169
Obra que expressavam o desenvolvimento de
Recife, simbolizavam o poder econômico dos mercadores, o vínculo de Matos
com os administradores pernambucanos, além, é claro, o interesse dos
comerciantes em investirem na localidade. Comerciante de “grosso trato”,
primeiro presidente da Casa da Moeda de Recife (1700-1701), além de ter
obtido mercês e honrarias diversas, como o Hábito da Ordem de Cristo. Foi,
igualmente, proprietário de rica frota naval ativas no comércio escravista e
mercantil oceânico; Precursor no processo de especulação imobiliária na
expansão territorial-urbanística da cidade, nas terras que recebera por mercê
real. Membro de quase todas as demais ordens leigas de Recife. Foi irmão-
167
Caso semelhante ocorreu, na Bahia setecentista com o conterrâneo de Matos, o mestre-
pedreiro Felipe de Oliveira Mendes [1700-1761], embarcado num navio mercante na cidade do
Porto rumo colônia, cujo nome “[... esligado indissoluvelmente à história da arte na Bahia”,
onde esteve fixado em Salvador desde 1747. Tendo sido declarado „juiz de ofício‟, chegou a
atuar, associado à artífices de outros campos, na qualidade de medidor de obras da cidade, em
cujas obras empregou a mesma cadeia de artífices-escravos que deixaria, juntamente com seu
enorme prestígio para o filho, o engenheiro-militar, e não menos notabilizado Manoel de
Oliveira Mendes, que viveu no século XVIII. (Cf. ALVES, 1976, p. 113-114.); Semelhantemente
em Minas Gerais, com o também Mestre pedreiro e carpinteiro José Pereira Arouca [1733-
1795], egresso da freguesia São Bartolomeu da Vila de Arouca, Bispado de Lamnego,
Comarca do bispado do Porto, de onde embarcou, para o Rio de Janeiro, seguindo para dali
para Mariana, onde se estabeleceria e atuaria e também em Ouro Preto com sua equipe de
artífices escravos testamentalmente declarados “como mais de 50”. Fizera fortuna entre 1753 e
1795 cotado e chegando a cotar entre os irmãos terceiros da ordem franciscana de Mariana.
(Cf. MARTINS, 1974, p. 60-76).
168
Onde, por todo o XVIII, se estocava a madeira a ser importada para o Reino.
169
Ver COUTO, 1981, p. 154.
63
fundador e juiz-de-mesa da Ordem Terceira de São Francisco entre os anos de
1698 e 1701.
170
Evaldo Cabral sintetiza bem sua trajetória ao dizer que foi membro da
primeira geração mascatal, que de mero pedreiro,
[...] amplia sua atividade a todos os setores da economia
regional: construção civil, especulação imobiliária,
propriedade de imóvel rural, navegação, trafico de
escravos, exportação e importação, comercio em grosso e
a varejo, arrematação de da cobrança de impostos,
agiotagem, fornecimento das frotas, criação de gado.
171
Foi também o fundador da Capela Dourada da dita ordem (Fig. 1.7), cujo
revestimento em ouro simboliza o congregamento e o poder financeiro da elite
comercial pernambucana.
Aliás, seu mais notável empreendimento notabilizou a produção barroca
pernambucana, quão grandiosos foram a pujança, o requinte e o nível de
ostentação aplicados à sua construção e adorno.
172
Fig. 1.7: Capela Dourada da
Ordem Terceira de São
Francisco, Recife. Idealização
e empreendimento de Antônio
Fernandes de Matos, da classe
mercadora e dos diversos
auxiliares mestres-artífices que
atuaram nas diversas
instâncias de atuação funcional.
A obra foi uma verdadeira façanha que demonstra que o poder
financeiro recifense se equiparava mesmo à próspera região das minas,
apresentando uma suntuosidade e vigor que, talvez, somente a aritmética e
170
JABOATÃO, 1980, p. 474.
171
MELLO, 2003, p. 153.
172
Ver REINAUX, Marcílio. A Capela Dourada do Recife. Recife: Conigral, 2006, p. 85-155;
COUTO, 1981, p. 119-154; PIO, 1975, p. 16-26.
64
renovável riqueza mercantil pudesse custear; triunfo e espelhamento cultural
numa “[...] espetacular e espetaculosa [...]” sociedade, outrora chamada “[...]
sociedade dos espelhos”.
173
Expressão votiva deveras distante dos
pressupostos doutrinários tridentinos que ainda vigoravam, sobretudo, nas
circunvizinhanças e arrabaldes agrárias; pompa ornamentativa que traduz-se
em impressão pela arte da imagem cosmopolita e bulionista setecentista; da
visibilidade social dos mercadores; o espelhamento enfim da riqueza e poder
da gente e da era mercantil. Primor, que começava na escolha dos tantos
artífices e artistas que lá trabalhariam, a começar pelo próprio coordenador das
obras de construção, o mestre Matos, onde as atividade construtivas
locupletaram-se com mestres-pintores, entalhadores, marceneiros, imaginários,
douradores, escultores, artífices da azulejaria portuguesa, etc. Todos
escolhidos a dedo pelo mestre Matos e ou a ele indicados pelos co-irmãos e
parceiros comerciais.
Matos, enfim, deixou uma trajetória peculiar, profundamente ligada ao
desenvolvimento local e ao conseqüente re-ordenamento das classes sociais
pernambucanas nas esferas administrativas da capitania, ocorrido entre a
segunda metade do XVII e o século XVIII. Seu maior legado, entretanto, foi o
caminho aberto aos inúmeros discípulos, herdeiros e sócios, que o sucederam
nas atividades comerciais e construtivas no período aqui tratado. Beneficiários
diretos da desmonopolização que representou sua partida, no que tange à
matéria-prima e à mão-de-obra em Pernambuco. Quando de sua morte, em
1701, estavam entre esses sucessores e seguidores naturais os mestres-
pedreiros Joseph Rodrigues, que comprou um dos ladinos construtores do
mestre Matos chegou a presidência da mesa regedora da ordem terceira entre
1722 e 1723, Manoel Gomes e João Pacheco Calheiros; Além do renomado
engenheiro, arquiteto-militar e mestre-pedreiro, Manoel Ferreira Jácome, entre
tantos outros brancos, negros e mulatos, aos quais devem-se a autoria de
muitas das obras da produção material e imaterial do barroco recifense.
174
Foram esses, alguns dos discípulos que levaram avante o processo de
infra-estruturação do Recife; os responsáveis pela riqueza e peculiaride
173
SANT‟ANNA, 1997, p. 97.
174
Cf. ORDEMTERCEIRA DE SÃO FRANCISCO, Livro de Contas 1701-1726, fl. 25-34 In:
MELLO, 1981, p. 2122, 138139.
65
(hibridez) da cultura local. E que, como o velho mestre, gozaram do trânsito
ascendente, inter-classista, legado pela atuação invulgar e destacada na vasta
produção barroca até então eminentemente sacro mas ao qual dariam,
paulatinamente, um caráter mais profano, mercantil, ostentatório e lúdico.
Como mestres-oficiais e, portanto, profissionais autônomos, foram alguns dos
bem aventurados na demarcada estrada isertiva, trilhada sob a forma de
„lugares de ascensão‟. Quais sejam: a presidência dos respectivos ofícios, a
composição das mesas regedoras das irmandades e confrarias as quais
estiveram vinculados, a solicitação/recebimento de patentes militares e hábitos
honoríficos. Ou ainda os lugares destacados e destacáveis nos eventos
realizados nos templos e ambientes por eles construídos e decorados, tendo,
com isso, legitimada sua nova posição social.
Seja por questão de trabalho, seja por ações sociais, suas parecenças
eram impreteridas em eventos como: a) os rituais e solenidades de caráter
sacro e ou profano: como as festas “de congos” – de motivação africana , as
serenatas, representações teatrais (entremês), óperas “dos vivos” e “dos
bonecos”, novenas, cavalhadas, procissões, teatralizações das passagens
bíblicas, os festejos de páscoa (celebração comum e simultânea a todas as
irmandades e autoridades civis); festas de reis, de ramos, de cinzas, votivas
aos santos ou “oragos”, os “bailes” (de caráter popular), enterramentos,
batizados, te-déuns, casamentos, festas estudantis; e b) os eventos cívicos:
revistas de tropas, cerimônias condecorativas, obséquios as autoridades
coloniais e a sua majestade, El-Rey, ou à família real: casamentos,
nascimentos e anos (aniversários).
175
Isto porque tais eventos estavam
relacionados às comemorações sociais, religiosas e eram pertinentes as
diferentes especificidades de seus ofícios.
Marcados pelo caráter de mediação das ações e tensões cotidianas e
inerentes às principais passagens da vida humanas e aos vários campos da
sociabilidade recifense os festejos do barroco, eram abrilhantados pela
cadência marcial da musica, pela sacralidade da religiosidade e o ludismo das
175
Celebrações, que, sendo típicas daquela sociedade, não podem ser hierarquizadas em
nível de importância ou sócio-política , haja vista a complementaridade e os múltiplos
significados simbólicos sociológicos e culturais que lhes eram atribuídos por seus participantes,
os artífices, sobretudo.
66
ações cosmopolitas, eram ocasiões de afirmação para a gente, comum e
nobre, rica e pobre, e para as categorias elitistas e subalternas.
Eram, por sua vez, legitimadas na assídua quase obrigatória
presença das autoridades locais. E, nesse jogo, de instrumento de controle
para os legítimos representantes do poder régio, converteram-se em elementos
de barganha entre os gestores e as gentes do cotidiano, cujos ícones, os
mestres-artesãos, eram, por vezes, experimentadores da social governança
(poderes contextuais e complementares). Nutridas nas múltiplas vivências e re-
elaborações dos indivíduos e categorias participantes: comerciantes diversos,
clero, nobreza, etc., eram mercado à grande demanda de trabalhadores
sediados no Recife: músicos, bandas militares, artífices e artistas da arquitetura
perene e efêmera, dançarinos, artesãos em geral e seus subordinados nativos
e cativos.
Símbolos e vias de enriquecimento, eram a face imaterial que
complementava as obras físicas das artes edificativas e visuais; expressões do
brio cultural daqueles tempos mercantis e campo aberto as atividades e às
trajetórias dos indivíduos coloniais, dos artífices sobretudo. Nelas atuaram, por
exemplo, musicistas como o anônimo “negro trombeteiro, com três trombetas",
escravo do falecido comerciante Matos, deixado, via testamento, com seus
instrumentos ao comerciante Manoel Gonçalves de Aguiar.
176
Negro esse cujo
nome bem agradaria saber, por tratar-se de um dos muitos que atuou no Recife
entre 1701 e 1789, vinculados à Irmandade de Santa Cecília, ereta na Igreja de
Nossa Senhora do Livramento dos Pardos
177
e transferida, posteriormente,
para a de São Pedro dos Clérigos, onde seria „mestre-de-capela‟ o professor
régio mulato Luis Alves Pinto de quem se falará adiante. Tem-se, portanto,
ai rostos que expressam e representam, um sem número de trajetórias
pessoais que integraram e constituíram a odisséia política, urbanística e
comercial do Recife setecentista. Exemplos de como as atividades destacáveis,
os vínculos adequados foram o diferencial naquela sociedade. Vínculos, que
pesavam de sobremaneira, nesse processo de dignificação, pois eram essas
referências que endossavam suas petições e atestavam um direito não natural
176
MELLO, 1981, p. 21.
177
Na qual estavam concentrados grande parcela dos trabalhadores mecânicos da Praça do
Recife, muitos deles já enriquecidos e em busca de distinção social.
67
às mencionados honrarias, patentes e aos hábitos honoríficos, sempre por eles
pleiteados. Isso demonstra que não era somente pelo trabalho que se
enriquecia ou se alcançava evidência nesses afazeres essenciais e pautados
pela competência. O que corresponde a dizer que outros também poderiam ser
os caminhos e as ferramentas de locomoção econômica e distinção social
desses obreiros. Mas todos eles derivavam da associação e das reciprocidade
entre os antigos imigrantes estrangeiros que seguiram as veias comerciais
mercantis militares, comerciantes e artífices especializados desafortunados
com indivíduos não-europeus reduzidos à escravidão no espaço colonial. E das
relações que se davam dentro das redes sociais engrenagens funcionais da
produção cultural recifense.
Foi assim que o mestre-pedreiro minhoto converteu-se no mais claro
referencial e exemplo de projeção social, enriquecido nos campos de trabalho
do barroco pernambucano e proeminente nas relações políticas e sociais;
exemplo a ser seguido, e seguido de fato por tantos mercadores e oficiais-
peritos que o sucederam. Ícone também para tantos oficiais-escravos, cujo
desejo da sempre incerta autonomia ficou apenas nos sonhos cotidianos, em
meio à labuta e ao anonimato das cadeias produtivas. Ainda que desses
últimos se possa encontrar felizes exceções que alcançaram um patamar de
projeção considerável. Fica assim exposto como, tal qual ocorreu na região
aurífera, onde: “[...] aos artistas portugueses recém-imigrados
178
se misturavam
nas oficinas, os filhos de europeus nascidos no Brasil,
179
mestiços de
portugueses com índios ou negros [...]”,
180
no Recife, o processo de vinculação
e produção barroca foi idêntico. Ou seja: por meio da organização funcional e
multiétnica em confrarias leigas, seriadas de acordo com as diversas
categorias funcionais. Mas, ao contrário da região mineira, em Recife tanto o
vinculo sócio-funcional, quanto a produção barrroca propriamente dita (desde
mecenato à ação efetiva) o estiveram relacionadas à riqueza aurífera, mas
ao fluente capital comercial da economia mercantil-portuária. De forma que,
sediados no Recife, esses especialistas podiam, eventualmente, atuar nos
arrabaudes, regiões mais interioranas ou nas capitanias anexas (de onde,
178
Tendo desembarcado no porto do Rio de Janeiro.
179
Muitos desses migrados das cidades circum-vizinhas.
180
BAZIN, 1983, v. 1, p. 46.
68
aliás, haviam migrado muitos deles). Evitando, com isso, deixar passar as
oportunidades geradas pela dinâmica recifense ou estarem à margem do fluxo
de idéias e riquezas que ali fluíam
181
. Por fim, deve-se enfatizar que, com esse
processo, o Recife transitou rapidamente de um pólo econômico à condição se
ne qua non de pólo cultural, fato que, mais uma vez, lhe aproxima dos casos
baiano e carioca. E, consequentemente, foi da proeminente vila
pernambucana que se deu as importações estrangeiras, bem como a
irradiação e trocas culturais entre os meios urbano e o meio rural, confirmando
a velha filosofia de que “[...] a cidade é a principal fonte de inovações: nas ditas
comunidades rurais e conduz as rédeas da política da religião e da economia.”
De forma que os artífices do barroco não apenas viabilizaram infra-estruturação
do Recife, mas também aprofundavam sua proeminência em relação às
regiões campesinas. E por meio das obras por eles produzidas se pode “[...]
compreender o complexo fenômeno de que o barroco seja uma cultura urbana,
produto de uma cidade que vive em estreita, conexão com o campo, sobre o
qual exerce forte irradiação”
182
. Por outro lado, tal qual se disse da difusão
cultural Reino-Colônia, essa irradiação regional não pode ser descrita como um
simples processo passivo de difusão estilística, mas, ao contrário, marcado por
constantes e incisivas interações exercidas por seus “anônimos”
183
e autônimos
artífices. Quem são? Como trilharam esse árduo percurso? Como atuavam?
Que influências deixaram na produção? Como os têm tratado nossa produção
historiográfica mais recente? O objetivo desse trabalho é encontrar algumas
respostas, pois seus rostos‟, nomes, suas trajetórias e, sobretudo as
influências, são uma lacuna a ser preenchida pelos pesquisadores recifenses e
impõe, dede já, o dever de priorizá-los, em detrimento ao simples estudo das
formas estéticas das obras que compõem seu legado. Tarefa que se fará
doravante.
181
COSTA, 1983, v. 6, p. 72.
182
FOSTER apud MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco. São Paulo: EdUsp, 1997,
p. 193.
183
Grande parte dos estudos pernambucanos a cerca do barroco parte da perspectiva do
anonimato, priorizando a análise das formas como prolongamento linear da uma matriz
portuguesa, com a qual geralmente é comparada e classificada segundo o nível de
proximidade estética.
69
CAPÍTULO II
2) Manoel Ferreira Jácome: o caminho das pedras da arquitetura mestiça.
“Os fatores sociais que determinam o
barroco fazem seu impacto
separado”.
184
Vários foram os artífices remanescentes da equipe do mestre pedreiro
português Antônio Fernandes de Matos a despontar como grandes nomes da
produção cultural material do barroco pernambucano, em substituição natural
ao velho agenciador de artífices. Operários que no princípio do século XVIII
também gozaram do patamar de „oficiais”
185
ou mestres-de-obras e que, nessa
condição, formaram suas próprias redes de trabalho, empregando-as nas obras
públicas e privadas que arrematavam, contratual e nominalmente, na cidade ou
regiões circunvizinhas, mediante a relação: maior renome perante o público X
menor preço pela execução dos empreendimentos construtivos. Situação bem
diferente a condição inicial de artífice-escravo, que “[...] produziam obras mais
baratas [...] em oficinas de brancos e forros [... e ...] tiravam para si uma terça
ou quarta parte dos seus jornais”
.
186
O mais notório deles foi, sem dúvida, Manoel Ferreira Jácome, um
mestre pedreiro que ascendeu a arquiteto e engenheiro militar
187
e que viveu
no Recife entre os fins do culo XVII e princípios do século XVIII, acredita-se
que entre 1677
188
e 1736, época na qual a arquitetura civil e militar ainda
conservava as influências do período holandês e os artífices gozaram de
184
HAUSER, Arnold. Historia Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 444.
185
Chamava-se “oficial” o artista que obtinha perfeita preparação técnica no seu ofício e que,
de aprendiz, passava a condição de “mestre-oficial”. Nessa condição eram quase sempre
detentores de mão de obra escrava, a qual era preparada e empreendida funcionalmente. Ver:
FILHO, José Mariano. Estudos de Arte Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, s/e, p. 11; LEITE,
1953, p. 26.
186
COSTA, 1982, v. 6, p. 145-146.
187
Título a que se chegava mediante reconhecimento do notório saber possuído por
determinado artífice perante os juizes-de-ofício nas respectivas profissões e que era
confirmado pela câmara local.
188
Parece pouco provável que o mulato tenha nascido nesse ano, que na década de 1690
(quando teria apenas 13 anos) estivera atuando nos mais importantes empreendimentos
construtivos da época; conclusão a que se chega também ao se considerar o ano de seu
casamento, 1701 (quando teria apenas vinte e quatro anos), ano em que gozava da condição
de liberto, atuava autonomamente e era reconhecido pelo status de mestre-oficial” entre os
“mais peritos”. A data parece, ao contrário, demarcar o estabelecimento do seu vínculo com o
mestre Matos que monopolizava as atividades construtivas da capitania nesse período
empregando nelas cerca de 98 ladinos, Jácome entre eles.
70
grande importância (ainda que desempenhassem atividades braçais).
189
Na
verdade, “o misterioso Manoel Ferreira Jácome”, como se referia Fernando Pio
a esse artífice que, sediado em Recife, atuou em todo o Pernambuco no último
quartel do XVII e, sobretudo nas primeiras décadas do XVIII,
190
tendo
alcançado independência funcional e grande notoriedade perante os pares a
demanda de mecenas locais e as autoridades civis (Câmaras de Olinda e
Recife).
De suas origens sanguíneas não se tem qualquer notícia e apenas no
campo das hipóteses se pode apontar possíveis laços escravistas ou parentais
com:
a) O Visitador geral entre 1691-1698, frei Jácome da Purificação,
custódio da ordem terceira de São Francisco do Recife em
1695
(ano da fundação), com grande parentela em Pernambuco
191
;
ou
b) Manoel Ferreira de Carvalho, abonado irmão da ordem
terceira franciscana, autor de avultadas ofertas necessárias
quando da edificação da igreja (1695)
192
. Seria Jácome uma
dessas ofertas?
São possibilidades, como se disse, que por ora não serão aprofundadas,
nas quais se voltará em trecho oportuno.
Desde já, porém, se esclarece que tais incógnitas em torno da pessoa
de Jácome não dizem respeito, como se poderá imaginar, às suas
qualificações ou ao nível técnico demonstrado em suas atuações profissionais,
aspectos nos quais, ainda muito jovem, “[...] parece que logo revelou
habilidades invulgares, pois, em 1704, esta[va] incluído numa lista de „oficiais
mais peritos‟ entre os de sua arte
193
na Capitania de Pernambuco. Essa
singela informação parece o suficiente para atestar sua perícia técnica no
189
GUERRA, 1984, p. 17.
190
MARTINS, 1974, p. 95.
191
JABOATÃO, (Frei) Antônio de Santa Maria Jaboatão. Novo orbe seráfico brasílico: ou
crônica dos frades menores da Província de Pernambuco. Recife: Assembléia Legislativa de
Pernambuco, 1980, p. 466.
192
Ver. Ibidem, p. 466; PIO, Fernando. A Ordem Terceira de São Francisco e suas igrejas.
Olinda: Instituto Histórico de Olinda, 1975, p. 16-17.
193
As artes aqui são vista como campos do saber, e como tais legitimados e legitimadores dos
agentes funcionais. (Ver: MARTINS, 1974, p. 95).
71
ofício construtivo, mas é reforçada ainda por termos como: “artista de
habilidade invulgar”, de “gênio luminoso”, entre outros adjetivos comumente
usados à época para conceituar oficiais do seu quilate.
Tais adjetivos, obviamente, não surgiram por acaso, mas sim devido ao
fato de que naquele tempo já eram bastante expressivas suas atuações, e isso
refletia-se nas opiniões (pública e da categoria) acerca de sua aptidão para os
assuntos concernentes ao ofício de pedreiro. Opiniões que ainda podem ser
comprovadas, que “seus pareceres se guardam no arquivo da Ordem de
São Francisco, datados de 23 de Outubro de 1704, e é nesse papel que se
encontra a mais antiga assinatura de Jácome [...]”
194
que se conhece. Logo, se
constitui numa valiosa pista para os estudos acerca de sua carreira e atuação,
além de denotar um forte vínculo com a citada ordem religiosa, composta pelos
mais ricos comerciantes locais. Relação que será explicada mais adiante.
Esses registros comprovam que àquele tempo estivera empreendendo
algumas obras de urbanização que, à primeira vista, nada mais o do que
suas primeiras atuações de maior porte. E que, portanto, já faziam parte de um
estágio muito adiantado de sua trajetória pessoal e profissional, a qual pode ser
dividida em três fases principais: „de iniciação (atuação não qualificada),
„auxiliar‟ (qualificado, mas sem autonomia plena) e, por fim, de „mestre‟
(autônomo e empreendedor de mão-de-obra escrava e livre). Um longo
percurso instrutivo até a capacitação plena e a larga liberdade social.
Este caminho, na verdade, corresponde ao percurso insertivo desse
artífice, cujo início remontaria aos fins do XVII, época da pós-reconquista
pernambucana, em que a Vila do Recife esteve pautada pela política de
reorganização urbana, dinamização comercial, pelo enriquecimento econômico
e pela mobilidade e inúmeras mudanças nos quadros social e administrativo. E
a importância de salientar esses lugares de inserção e liberdade, consiste no
fato de que, nos primeiras tempos, um iniciante nada mais era que um mero
número no expressivo contingente de anônimos, ocupando as posições
subalternas das cadeias profissionais dos artesãos pedreiros. Realizava tarefas
pesadas e intermediárias da construção: como talhar a pedra bruta, preparar
194
PIO, Fernando. Artistas dos Séculos Passados. Recife: Impressa Universitária, 1959, p.
72.
72
preliminarmente a matéria prima em geral e sonhava os sonhos comuns
desses indivíduos: perícia, independência e êxito econômico.
De modo que, se em algumas fontes do princípio dos setecentos é
encontrado como mestre-artífice, vivendo, não obstante, uma fase áurea e
distinta da carreira, tal fase era posterior às difíceis etapas iniciais de sua
formação. Situava-se, pois, no fim de uma trajetória pela qual todo artista
deveria, necessariamente, passar. Isso significa o tempo de aprendiz havia
findado mudança que ocorreu, muito possivelmente, com a „partida‟ do velho
instrutor (Matos) no ano de 1701 sendo, ele próprio, um dos muitos
beneficiários da consequente desmonopolização de tarefas do comércio de
matéria-prima. Tornava-se, com isso, um dos herdeiros da generosa fatia da
clientela (demanda construtiva) deixada por seu instrutor, para a qual eram,
esses construtores, a indicação natural dali adiante.
Renovadas e intensificadas foram também as formas e possibilidades de
hierarquização na organização funcional ante as demandas construtivas
crescentes geradas pelo desenvolvimento de Recife e da capitania como um
todo, do que se beneficiou como ninguém o mestre come. De um lado,
tornou-se comum que parte dos membros das irmandades tributárias das
grandes arqui-irmandades, em cujos templos apenas dispunham de altar
lateral, se desquitassem no intuito de erigir seus próprios templos, gerando
trabalho e oportunidades para os artífices das diversas especializações: os
pedreiros, engenheiros e arquitetos, primeiramente. De outro, tais operários se
organizavam em confrarias e arqui-confrarias no propósito de congregarem-se
entre irmãos e confrades praticantes de um mesmo ofício ou conjunto de
atividades, visando regulamentar as próprias atuações desses indivíduos.
Associações que embora tivessem também caráter religioso tinham como foco
central as questões pertinentes às atividades inerentes às respectivas
categorias funcionais, nas quais elegiam, internamente, seus representantes
junto à câmara local. Cabe ressaltar que “[...] os artesãos que interessavam à
arquitetura eram os pedreiros, os canteiros (entalhadores de pedra) e
rebocadores (em pedra ou gesso) [...]”.
195
Era esse, portanto, o universo de
confrades ao qual estava congregado o irmão Jácome, concentrados na
195
BAZIN, Germain. A Arquitetura religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983,
v. 1, p. 43.
73
Irmandade e Confraria de São José do Ribamar,
196
que funcionou no Hospital
do Paraíso da Freguesia de Santo Antônio até construírem um templo próprio
de mesmo nome em 1737, ano da sua morte do referido pedreiro. Eram eles os
especialistas envolvidos no incremento da infra-estrutura do Recife, que
intensificou-se no final do XVII, à sombra generosa da dinamização mercantil-
portuária.
Foi atuando nesse contexto, mas ainda nas etapas de aprendizado
funcional, que ele trabalhou em templos diversos, como o Convento de Santo
Antônio (fig. 2.1), o Convento da Ordem Carmelita (atual Igreja e Basílica do
Carmo (fig. 2.2)); a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da então
Freguesia de Santo Antônio do Recife (fig. 2.3), a Ordem Terceira de São
Francisco do Recife (fig. 2.4); a Igreja da Madre de Deus (fig. 2.5); e a de N. Sr
a
Conceição dos Militares (fig. 2.6). Sendo esses empreendimentos o que se
chamou de chamado “canteiro de obras do mestre Matos [...], em que se deu
sua formação”.
197
Fig. 2.1: Convento de Santo Antônio Recife
Foto: José Neilton Pereira, 2007.
Fig. 2.2: Igreja e Basílica do Carmo (antigo convento dos fadres
carmelitas) Recife. Foto: José Neilton Pereira, 2007.
196
Essa Irmandade teve também a prerrogativa de controle sobre os ofícios de carpinteiro,
marceneiro e tanoeiros, e seu estatuto era imposto até mesmo aos artífices vindos da Europa.
Ver: MELLO, José Antonio Gonçalves de. Diário de Pernambuco: Arte e Natureza no
Reinado. Recife: Massangana, 1995, p. 111.
197
Ver Idem, 1981, p. 25 - 33.
74
[{
Fig. 2.3: Igreja de Nossa Senhora do Rosário
do Bairro (freguesia à época) de Santo
Antônio Recife. Foto: José Neilton Pereira,
2007.
Fig. 2.4: Ordem Terceira da São Francisco Recife. Foto: José
Neilton Pereira, 2007.
Fig. 2.5: Igreja da Madre de Deus Recife. Foto:
José Neilton Pereira, 2007.
Fig. 2.6: Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos
Militares Recife. Foto: José Neilton Pereira, 2007.
A guisa de reflexão note-se a profunda semelhança entre os frontispícios
dos dois últimos templos a fim de se pensar a questão da autoria. Ainda que as
obras da igreja dos militares, postulada como o mais belo templo ereto por
75
castrenses brasileiros e portugueses,
198
tenham sido executadas a partir de
1728 por Crespim Paes Varela,
199
“o risco”, fase intelectual do trabalho de
1723, poderia sim ser da autoria de Manuel Ferreira Jácome, pois na análise
dessa época “[...] quase sempre se observa que o mestre de obras trabalhava
com base em plantas fornecidas por outra pessoa”.
200
A hipótese se ganha força ainda quando se observa a semelhança com
a Igreja da Madre de Deus do Recife, onde, ainda que anônimo, atuou o
arquiteto e pedreiro. Não é, portanto, descartável a hipótese de serem ambas
as plantas (riscos), empreendimentos do mesmo mestre autor, razão pela qual
se disse que essa era a “co-irmã” daquela.
Ainda que falte documentação para endossar essa afirmação, alimenta
tal hipótese o seguinte comentário:
A Madre de Deus, com a largura excepcional de sua nave,
lembra as igrejas conventuais do século XVI, de capelas
laterais [... ao passo que...] a fachada da Conceição dos
militares, igreja mencionada em 1720, pertence à mesma
família, e talvez seja de autoria do mesmo arquiteto.
201
Mas, para além da semelhança estética, cabe dizer que a época da
construção do templo dos militares coincide, justamente, com a fase de auge,
fama e de intensa atuação do mulato Jácome; com a época em que gozava de
grande experiência, prestigio e era bastante requisitado, o obstante à
herança do mestre Matos e ao aprendizado que o pardo tivera nas obras da
Igreja da Madre de Deus, possivelmente tomada como referencial.
Concreta, porém, foi sua atuação a serviço da Ordem Terceira de São
Francisco, pela qual, como foi dito, se pode atestar um forte vínculo do
artífice com essa associação, da qual Jácome era membro ao lado de tantos
outros artesãos, como o mulato e co-irmão André Luis (mulato, mestre e juiz do
ofício de carpinteiro),
202
e do amigo pessoal Manoel Gomes de Oliveira, mestre
pedreiro um dos testamenteiros de Antônio Fernandes de Matos, entre outros.
198
COUTO, 1981, p. 226.
199
Idem, op. cit., Ver: MELLO, José Antonio Gonsalves de. Crônica Da Igreja Da Conceição
Dos Militares. In: Diário de Pernambuco. Recife, 19 jul., 1970. Disponível:
http://bvjagm.fgf.org.br/obra/Imprensa/030404-00040.pdf.
200
BAZIN, 1983, v. 1, p. 43.
201
BAZIN, 1983, v. 1, p. 177.
202
MARTINS, 1974, p. 24.
76
Como fator explicativo para o irmanamento desses indivíduos de
condições pouco abonadas aos quadros dos terceiros franciscanos, parece
mesmo ser o tão forte laço pessoal e profissional com o mestre português, bem
sucedido na capitania, idealizador e fundador daquela ordem terceira. Tal
condição, portanto, derivava da herança insertiva nas cadeias funcionais de
Matos, na medida em que fora, certamente, um dos anônimos operários
atuantes na ereção dos templos citados a serviço do enriquecido imigrante
minhoto. Conclui-se, portanto, que “[...] sua formação está ligada ao patrocínio
desse generoso fidalgo reinol e mestre pedreiro que lhe forneceu recursos
„para complementar sua formação”.
203
2.1) Rochas lapidadas: das primeiras obras à notoriedade edificada.
A certificação da destreza funcional, ignorando-se, no entanto, as
origens do pedreiro pernambucano (olindense, mais especificamente), sediado
em Recife, relevantes questões logo se levantam, como por exemplo: que
grande „mistério‟ envolveria a figura de Manoel Ferreira Jácome? Que
singularidade e importância teria seu nome para além de sua grande
representatividade autoral na produção material do barroco local do XVIII?
Como se explica sua ausência nos registros das obras contemporâneas a sua
formação? Qual o elo entre essa mesma formação, sua acessão funcional e as
irmandades locais? A que conclusões nos conduzirão tais respostas? As
conclusões, contudo, advém de informações deveras sutis.
Atente-se, de antemão, ao indício de que:
Ao tempo em que ocorreu [a reforma do porto], em 1701,
Jácome era pedreiro, pois no ano seguinte, 1702, consta
seu nome como indicação do ofício, no Livro de Regimento de
Irmãos de N. Senhora do Rosário que estava construindo no
bairro [freguesia] de Santo Antônio.
204
Perceba-se que do texto acima emergem algumas respostas acerca dos
indivíduos atuantes e de suas formas de participação nas obras. Apesar de
envoltos no véu do anonimato, consequência do próprio registro e das
203
PIO, 1959, p. 77.
204
MARTINS, 1974, p. 95.
77
eventuais interpretações acerca dele,
205
esses trabalhadores são aqui
chamados à condição de sujeitos da história urbana de Recife e ao papel de
protagonistas, autores e agentes das transformações locais. Jácome, assim, os
representa, haja vista sua fuga à condição de aluno ou auxiliar, ao integrar uma
elite funcional enrijada no status de “mais peritos” e, como tais, obreiros
anônimos.
Seria ele, portanto, um dos operários envolvidos no melhoramento do
molhe portuário de Recife entre 1694 e 1696 (fig. 2.7), obras coordenadas por
Antônio Fernandes de Matos, e também na construção da mencionada igreja
dos africanos no Brasil, não obstante, templo da mais importante irmandade de
negros da capitania. Construções que, apesar de profundamente diferentes,
faziam, igualmente, parte de uma fase próspera do Recife e que nos conduzem
a ver o papel de importância desses operários naquela conjuntura. Veja-se,
com isso, as diversas oportunidades geradas, nessa fase, aos peritos como
Jácome. Por isso mesmo, tais obras expressam as conquistas econômicas,
sociais, políticas e culturais alcançadas por esses membros das camadas
subalternas: os trabalhadores mecânicos. Assim como são muitas as fases da
produção.
Perceba-se, finalmente, como a vida funcional (práticas trabalhistas), é
aqui tomada como indício da vida social (redes e caminhos insertivos). Aliás,
como de praxe, tanto a importante obra do porto, como a da Igreja do Rosário,
consagraram a apuração técnica do pedreiro, que seria novamente
convocado a reformar o citado molhe portuário, entre 1702 e 1704 e, não
obstante, ficaria a edificação do Rosário reconhecida como “um dos mais belos
templos do Recife”.
206
Contudo, ainda não teria ele chegado ao ponto principal
de sua trajetória, que sua evolução técnica coincidiu com a dinamização e o
cosmopolitismo que continuamente deu-se sobre o Recife, o que significa dizer
que as construções eram apenas uma das faces dessas mudanças. Por trás
delas pessoas buscaram e alcançaram mobilidade e exercitaram-se nas
lacunas do poder.
205
Ver. FLEXOR, Maria Helena Ochi, Escultura barroca Brasileira: Questões de Autoria.
Disponível: http://www.upo.es/depa/webdhuma/areas/arte/actas/3cibi/documentos/39f.pdf.
206
CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife: Um presente do “passado”. Rio de Janeiro:
UFF. 1995, p. 90.
78
Fig. 2.7: Vista do Porto de Recife
a partir de Olinda, Gillis Peeters -
século XVII. Obra em que se vê
(ao centro) o molhe portuário no
qual viria a trabalhar Manoel
Ferreira Jácome, sob o comando
de Antônio Fernandes de Matos,
entre 1694-1696 e, onde o mestiço
trabalhou de maneira autônoma
entre 1702 -1704. Embora a
imagem, de 1640, seja anterior às
reformas por ele operadas, permite
localizar com exatidão o referido
local. Além de se perceber o uso
intencional das condições naturais
para o favorecimento do comércio
atlântico e, ainda, o
aperfeiçoamento do local para tal
fim, objetivo este em que se
circunscrevem as ações
operacionais de Jácome.
Mesmo assim, são atuações relevantes, pois grandes são as
implicações sociais, que expressam as contribuições do artífice para o
próprio ecletismo urbanístico da Vila do Recife, à medida que
[...] a expansão urbana é uma das causas que
intensificam a hibridização cultural. [Já que...] a
urbanização branca se entrelaça com a serialização e o
anonimato na produção com reestruturações da
comunicação imaterial [...] que modificam os vínculos
entre o público e o privado.
207
Mostram-se assim, os vínculos do artista com a sociedade urbana e
mercantil recifense e com os grandes ícones da economia, religião e
administração local.
Ao serem relacionados empreendimentos tão distintos e que
caracterizam a multifuncionalidade do artífice, tão comum naqueles tempos, se
pode ver como essas edificações expressam as sub-reptícias ligações feitas
por esse artífice no obstinado intuito de gozar das benesses advindas daquela
conjuntura; como esteve consciente da diferenciação proporcionada pelo ofício
de artesão e buscou incessantemente projeção não apenas em função da
atividade que exercia (hierarquia interna), mas também nos espaços e lugares
sociais que a um pedreiro era dado granjear, para além das relevantes
atuações operacionais no campo das artes mecânicas maechus,
207
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo: Edusp, 1997, p. 285.
79
moechanicae, adulteradas,
208
híbridas, mestiças
209
que permeiam a
fronteira do saber técnico e ordinário: espaços representados simbolicamente
na cultura imaterial.
Para isso, porém, os meios eram diversos dentro dos campos da
sociabilidade, de construção das identidades étnica e cultural e das estruturas
administrativas que ordenavam a sociedade recifense colonial. Sabia, no
entanto, que esses campos interagiam e se reforçavam mutuamente, que a
barganha era lugar comum desse complexo jogo de interações. De maneira
que essas atuações, efetivamente, apenas suscitam novas dúvidas e
questionamentos acerca de suas origens. São esses mesmos questionamentos
que parecem ter motivado o comentário de Pio, em que relatou, breve, pontual
e suscintamente sob a forma de verbetes algumas de suas atuações mais
importantes. Disse ele:
Além da autoria da planta da Igreja de São Pedro dos Clérigos
e da notícia de que por vota de 1724, empreitara as obras de
restauração da capela mor e da sacristia da matriz de
Muribeca, nada mais se sabia sobre Manoel Ferreira
Jácome.
210
Parece, entretanto, não haver desconfiado de que tais empreendimentos
se tratavam apenas de suas mais notáveis atuações e, portanto, de um estágio
avançado de sua trajetória pessoal e profissional. São estas, ao que
parecem, as primeiras grandes obras de caráter construtivo religioso pelo
qual o Barroco tornou-se reconhecido e às quais é muitas vezes reduzido
nominalmente por ele empreitadas e personificadas. Representam, assim, sua
própria locomoção social, na estratificação funcional e a perícia técnica,
requisitos inerentes à contratação e ocultos nos registro dos grandes trabalhos,
haja vista a criteriosa avaliação pela qual os projetos cnicos e, por
conseguinte, os profissionais de construção estavam submetidos.
A título de ilustração, veja-se, com relação à primeira, como registraram
os arquivos daquela irmandade:
208
Maechus”, Moechanicae” termos do Latim, que se traduzem, respectivamente, por:
“prostituta” e adultera”, com sentido de “coisa impura”, “maculada”, “misturada”, mesclada” ou
“híbrida”. SAN VICTOR apud CARAMELLA, Elaine da Graça de Paula. História da Arte:
fundamentos semióticos. Baurú: EDUSC, 1998, p 26-27.
209
GRUZINSKI, 2001, p. 38- 41.
210
MARTINS, 1974, 95.
80
Aos seus [dias?] do mês de março de mil setecentos e vinte e
oito, sendo nossa Igreja de Nossa Senhora do Rosário do
Hospital dessa Vila de Santo Antônio do Recife, e ______ me
______ junto nós o R. Provedor e mais R. R. Irmãos da
venerável Irmandade de São ______ padre príncipe dos
apóstolos São Pedro atendendo, o quanto é útil e proveitoso
fazermos a nossa Igreja. Assim para maior gloria de Deus
Nosso Senhor, veneração de divino serviço de nosso santo e
proveito nosso, todos uniformes concordes determinados se
lhes princípio, na forma da planta que fez o mestre Manoel
Ferreira, com parecer do tenente general João de Macedo
Corte Real, do sargento-mor engenheiro Diogo da Silveira
Veloso e do Capitão Francisco Mendes, todos [eles] pessoas
que consultamos, e que sobre a matéria podiam falar e dar seu
parecer [...]
211
(Grifo nosso)
Sendo assim, o registro no Livro de Atas da ilustre e clerical associação
revela como a escolha feita em prol do mestre Jácome e em detrimento de
tantos outros concorrentes, faz dele o grande „beneficiado‟ daquela aura
porfiosa, típica da sociedade recifense colonial e que tanto nutria a produção
barroca, visto que é considerada uma planta de cunho erudito. Revela também
quão bem situado estava entre os pedreiros da vila recifense, ou mesmo da
própria capitania de Pernambuco. Demonstra, ademais, o grande potencial de
projeção que conferia o ofício de pedreiro nos entrepostos ultramarinos,
lugares em pleno processo de expansão, pois foi a partir dessa obra, tal era
a sua grandeza e a boa avaliação técnica do projeto, que Jácome passou a
usar mais abertamente o título de arquiteto.
212
Finalmente, evidencia-se a
paulatina e irrefreável conversão dessa atividade de trabalho em uma eficaz
ferramenta insertiva. Sobretudo por ser um dos campos que melhor estavam
organizados dentro das confrarias, sendo também a categoria que melhor
estava representada junto à administração local, tendo em vista que tal
categoria dispunha de um representante direto e internamente eleito na esfera
do governo local: o chamado „juiz de ofício‟, que teve em Jácome o artífice
pedreiro que mais o ocupou. Esse cargo, apesar de não remunerado, dava-lhe
o direito sobre um por cento do valor das obras por ele avaliadas,
213
como
ocorreu com as obras do bardo do molhe portuário de Recife (1704); bardo da
211
IRMANDADE DE SÃO PEDRO DOS CLERIGOS. Livro de Atas 1728-1746, p. 57 apud.
PEREIRA, André Luiz. A constituição do programa iconográfico das irmandades de
clerigos seculares no Brasil e em Portugal no século XVIII: estudos de caso. Campinas -
São Paulo: UNICAMP, 2006, p. 97. (Tese)
212
MARTINS, 1974, p 95.
213
Ibidem, p. 95-96.
81
Ponte da Boa Vista (1707); Igreja da Madre de Deus, onde atuou ao lado do
Juiz de ofício de carpinteiro e co-irmão terceiro franciscano André Luis (1707 e
1729); bardo da Ponte dos Afogados (1708); obra realizada por Estevão
Soares Aragão; Ordem Terceira de São Francisco (1711); além de obras
residenciais na Rua das Creoulas (1711).
214
Em alguns desses lugares era
reincidente sua participação, pois, como foi visto, havia atuado como mão-
de-obra auxiliar.
Apesar de importantes, tais obras não podem ser comparadas à obra do
templo de São Pedro. Ademais essa obra, tal era o porte e amesmo e a
pluralidade de atividades nela empregadas, abriu-lhe várias possibilidades:
dentre elas a de atuar conjuntamente com artesãos de outros ofícios, com os
quais podia estabelecer importantes contatos a fim de trocar válidas
experiências para o campo funcional. Quanto à vida social e sociocultural numa
sociedade escravocrata, o mesmo pode ser dito no que tange à possibilidade
de aproximação em relação aos proprietários desses mesmos artífices
escravos ali atuantes. Isso, por sua vez se traduzia em novos contratos e
difusão do seu renome.
Tais contatos suscitam, desde já, as seguintes questões: pesariam
também essas aproximações sobre outras questões, como aquelas
concernentes ao fortalecimento da identidade étnica desses artífices ou, mais
claramente, sobre a do desconhecido Jácome? Resultariam elas em profusão
estilística à arquitetura barroca de Recife? Nesse ambiente fronteiriço, a que
universo cultural pertenceria Jácome, e que incrementos trouxera à produção,
nesse lugar de encontro que era a obra dos clérigos?
Esse leve ar de mistério parece instigar a busca por respostas que
permitam, talvez, estabelecer um importante elo entre sua trajetória pessoal e a
mestiçagem da cultura no recifense do XVIII. Mais que isso: o envolvimento
com as diversas camadas e categorias sociais atuantes nesse processo
produtivo parece ilustrar como a efetiva participação nas áreas da construção
tornou-se também subterfúgio para o congregamento étnico e para a busca por
locomoção que se traduzisse em valorização dos negros, indígenas e mestiços,
seja individual ou coletivamente.
215
214
Ibidem, p. 95-96.
215
Essa valorização era requerida nas estâncias imateriais da cultura do barroco, sobretudo as
82
É essa incógnita a que leva ao aprofundamento de inquietações como
aquelas sentidas por Fernando Pio, ao constatar que: “[...] a última referência
[...] a seu respeito, e a constante de um Livro de Registro de Eleições da Mesa
Regadora da Irmandade de N do Livramento dos Pardos do Recife. Ao ser
eleito Mordomo para o ano compromisal de 1736-37.
216
Do trecho, não se pode deixar de salientar sua busca por participar
ativamente das organizações leigas e ter, com isso, papel de destaque nos
rituais, cerimônias e eventos festivos e cívicos promovidos pela citada
irmandade. A procura por interagir com essas instâncias culturais do campo da
imaterialidade, construindo nelas as elaborações híbridas acerca da cultura
barroca traz à cena as diversas possibilidades de interpretação dessa cultura
no Recife colonial.
Ao se inserirem messes cargos e interagirem nesse espaço tão propício
à construção da memória e das identidades étnica e cultural que eram os
festejos,
217
indivíduos como Jácome abandonavam seu lugar de aparente
neutralidade, e convertiam esses eventos em lugar de congraçamento
capazes, inclusive, de atribuir sentido ao próprio trabalho mecânico, à produção
material como um todo, produto do suor desses trabalhadores, do ajuntamento
e esforço coletivo de seus pares étnicos. Indivíduos que se relacionavam tanto
solidária quanto corporativamente, e cujos representantes este trabalho busca
identificar.
Por isso, acredita-se que, se fosse adiante, ou melhor, não estivesse
limitado pelos aportes teórico-metodológicos que o impulsionavam,
reconheceria Pio um forte indício, talvez o mais relevante, no que tange a
contribuição ou influência deixada por Jácome à cultura recifense colonial.
Ainda sem essa pretensão, bem se questionava o pesquisador português,
diante desses sinais mais ou menos evidentes acerca de sua identidade étnica:
“Seria ele Mulato? O fazer parte da Mesa Regadora de uma Irmandade [de N.
S. do Livramento] parece indicar isso”,
218
que essas associações estavam
festividades públicas, para cujas realizações eram canalizadas avultadas ofertas e enormes
recursos advindos do trabalho mecânico e das atividades ligadas ao comércio mercantil-
portuário.
216
MARTINS, 1974, p. 95.
217
Sobretudo se forem levadas em conta às especificidades das celebrações católicas quando
realizadas e vivenciadas pelos indivíduos não europeus.
218
Ibidem, op. cit., p. 95.
83
marcadas pela segregação, capaz inclusive de direcionar a devoção para o
âmbito da identidade étnica que havia em torno do simbolismo biológico do
orago.
Tal fato aponta para a idéia de que uma contribuição híbrida de Jácome
seria fator mais do que natural, e é no intuito de captar tal contribuição, que
parece óbvio confirmar positivamente as mencionadas dúvidas, sendo taxativos
a esse respeito. Acautela, porém, a seguinte afirmação:
Em decorrência do aumento da riqueza e especialmente da
produção, mais igrejas e edifícios religiosos surgiram,
introduzindo novas formas arquitetônicas. Entre elas, o principal
exemplo de planta regional é a Igreja de São Pedro dos
Clérigos [de Recife], iniciada em 1728 e terminada em 1782,
projeto do arquiteto português, Manoel Ferreira Jácome.
219
Ademais, se por um lado à condição de mulato parece confirmada, em
virtude das atuações como pedreiro e arquiteto entre os ladinos do capitão
Matos, quando a „fábrica‟ do contratador de obras esteve ativa nos serviços de
conserto a alfândega (1687) e nas reformas das pontes, dos quartéis e fortes
recifenses (1690),
220
por outro, não poderia passar despercebido o aparente
contraste da condição de hereditária mestiça com o sobrenome italiano que o
mestre Manoel carregava. Mas é justamente esse sobrenome que parece
confirmar seu sangue mesclado, a julgar pelos indivíduos que foram
encontrados com esse sobrenome na documentação. Pode-se supor que tal
sobrenome se dever a vínculos de posse escravista, sendo uma possível
herança de proprietários de linhagem italiana migrados para o Recife,
embarcados nas rotas Península Itálica/Lisboa, Lisboa/Recife. Relembre-se,
amiúde, a parentela recifense do citado frei Jácome da Purificação. Seja
talvez através desse incógnito proprietário que o ainda escravo Jácome tivera
os primeiros contatos com o seu instrutor e iniciara-se no difícil „caminho das
pedras‟ no canteiro de obras do mesmo. Seria ele, portanto, uma das
aquisições ladinas de Matos junto ao migrante, e posteriormente liberto pela via
funcional.
Assim, deve-se caminhar ainda um tanto no rastro desse artífice, não
obstante, tendo em mente o diferencial em termos de conjuntura representado
219
RODRIGUES, Iara (dir.). Arte No Brasil. São Paulo: Nova Cultural, 1986, p. 63.
220
Ver: AHU_ACL_CU_014, Cx. 40, D.1426; AHU_ACL_CU_014, Cx. 40, D.1529; AHU-
_ACL_CU_015, Cx. 41, D.33730.
84
pela fronteira cultural em que se encontrava Jácome, vivendo numa sede
portuária. Atente-se, melhor, para os vínculos existentes entre os artífices
mestiços e os grandes mestres europeus que migraram para a localidade
desde fins do século XVII. Isso nos permitirá vislumbrar um verdadeiro canal de
inserção profissional, marcado por interesses mútuos e com óbvias
reverberações nas relações sociais que se davam entre uns e outros.
Migrantes que vieram para a colônia, e mais especificamente para Recife,
nesse período, incentivados (ou tolerados) pelo poder metropolitano
221
e que
conheceram nas engrenagens das confrarias locais o canal pelo qual podiam
atuar legitimamente. Brancos pobres, em sua maioria, em busca das
oportunidades cada vez menos abundantes na velha Europa, berço desses
artífices, sobretudo quanto estas foram diretamente afetadas pelo crescente
desuso do referencial estético estilístico que viria a ser denominado com o
conceito depreciativo de “Barroco”.
Ao migrar para a colônia, esse contingente de mecânicos acharia
novamente o sonhado mercado, de cujas notícias tanto aportavam em Portugal
juntamente com as frotas que levavam as cargas mercantes coloniais.
no Recife, tomavam contato com os operários colonos, muitos deles
mestiços em posição de destaque perante a sociedade, e passavam a
vivenciar uma dinâmica funcional marcada por um constante e intenso jogo de
trocas culturais, favores políticos, ações clientelares e práticas corporativas.
Mas, sobretudo, um vasto leque de oportunidades de trabalho para cuja
habilitação levava-se em conta todos os aspectos daquela sociabilidade típica
de um meio escravocrata. Conheceriam também uma relação notoriamente
corporativa e protecionista, na qual cada atuação não envolvia apenas as
finalidades comerciais de uma produção mercantil, mas também o mutualismo
étnico, as relações de compra e venda de matéria-prima e de prestação de
serviço às classes mercantil, clerical, militar e até mesmos aos próprios
administradores. Todas estavam permeadas por relações étnicas e
soócioculturais. Defrontavam-se, sobretudo, por exemplo, com uma intensa
barganha que fluía das constantes encomendas, tendo em vista que as obras
representavam um verdadeiro horizonte aberto à sobrevivência financeira dos
221
Ibidem, p. 144.
85
artesãos simbolizando sua inserção e materializavam, muitas vezes, as
disputas pelo poder que havia entre esses contratantes. Por fim, descobriam
uma rotina operacional específica e nova para si, como estrangeiros, mas
deveras conhecida e controlada pelos oficiais domésticos, geralmente de cor,
na qual “[...] aos artistas portugueses recém-imigrados se misturavam, nas
oficinas, aos filhos de europeus nascidos no Brasil, mestiços de portugueses
com índios ou negros”.
222
E esse tipo de associação envolvia migrantes,
negociantes portugueses e estrangeiros de várias partes do velho continente,
aos quais, diferentemente dos mestiços e negros, era vedada a ocupação de
cargos, pois o trabalho nesses campos funcionais envolvia, também, a própria
luta dos mestiços pela „fuga‟ ao „lugar natural‟ de cada categoria étnica na
sociedade setecentista.
Esse parece ser exatamente o caso do mordomo da Irmandade de
Nossa Senhora do Livramento: o mestre-pedreiro Jácome, eleito Juiz-de-
ofício
223
por repetidos anos. Função na qual “podiam os arquiteto chegar a
verdadeiros chefes na construção, aptos à reger todos os ofícios na qualidade
de mestres-de-obras”,
224
chegando assim ao ápice de sua carreira.
Curioso é saber que, após duas décadas, muitos desses contingentes
europeus imigrados para o centro mercantil luso-pernambucano tivessem no
seu exemplo um verdadeiro ícone, quer seja no que tange à perícia, à distinção
funcional, ou mesmo ao percurso e de sua trajetória. Que, mirados no seu
exemplo, passassem a vivenciar, nas cadeias operacionais recifenses cujo
controle administrativo esteve sempre restrito aos artífices locais, mestiços na
grande maioria , uma dinâmica de atuação deveras específica e nova para
muitos desses estrangeiros, mas conhecida e controlada pelos oficiais
domésticos, por Jácome em especial, durante anos a fio.
Sua carreira, portanto, mostra que trata-se de um equívoco, ou de uma
visão parcial a idéia de que:
[...] os mestiços, culpados “da infâmia de mulato”, viviam em
situação humilhante, não podendo usufruir senão do direito da
licença temporário e isso os impedia de ocupar cargos de
chefia. [...] só era pago, na maioria das vezes, por dia ou tarefa
222
BAZIN, 1983, v. 1, p. 47.
223
O cargo de Juiz de ofício desapareceu com a promulgação da constituição do império, em
1824, que aboliu as corporações de ofício ou confrarias (ver: COSTA, 1983, v. 6, p. 43).
224
BAZIN, 1983, v. 1, p. 43.
86
executada, como um diarista, ou devia sujeitar-se a trabalhar
subordinado a um patrão, para a execução de suas próprias
obras; quando lhes era proposto algum trabalho [...], sua
condição de mulato lhe proibia de assinar contrato, pois os
“Livros de Termos” podiam conter assinaturas de brancos.
225
Essa análise que Bazin faz do processo produtivo parece deveras
generalizante, pois descreve apenas a situação dos indivíduos negros,
indígenas e mestiços em condição de aprendizado, quando eram empregados
nas sub-etapas e fases intermediárias da produção; nas atividades mais
rústicas e eminentemente braçais.
2.2) Pedreiros e companheiros, irmãos e confrades: a construção de um
„nome‟ no ofício da construção.
O caso de Jácome parece comprovar que a própria conjuntura local,
mercantil e atlântica, contribuía para a projeção profissional e pessoal dos
artífices pedreiros. Como o aprendizado se dava inter-pessoalmente, como as
trajetórias pressupunham, necessariamente, a passagem por fases
intermediárias, classificatórias e distintivas que correspondiam às
estratificações dentro dessa categoria operacional, como elas demarcam a
existência de uma rígida hierarquia no âmbito dessas cadeias de trabalho e
eram etapas pelas quais todos tinham que passar, ou, vendo por outro ângulo,
pelas quais nem todos obtinham o mérito de passar.
Ocorre que a trajetória desses operários era longa e difícil, e desses
indivíduos e do próprio Jácome é sabido no avançado de suas carreiras,
pois o percurso de um artífice-pedreiro como ele até a condição de „mestre‟,
além de incerto e dependente de sua própria perícia devia-se, entre outras
coisas, a uma série de fatores de natureza social e política, que foi exposto
anteriormente.
Dito isso, serão enfatizados agora os passos, igualmente demarcados,
dos artífices de renome no período, aqueles que gozavam de grande sucesso
profissional. Isso consiste dizer: a análise das escolhas, anseios, petições e o
aproveitamento das diversas brechas de inserção social. Elas consistiam
225
Ibidem, p. 46.
87
geralmente em ações legítimas e comuns naquela sociedade, como
solicitações de cartas-patentes ou de titulações honoríficas. Tudo isso está
implícito nos empreendimentos construtivos edificados pelos indivíduos que se
sagravam mestres-pedreiros e pode ser compreendido em face do estudo
dessas redes de relações sociais, a partir das quais tais interações sociais e
funcionais ficam óbvias e revelam-se condicionadas pelo fator econômico.
Esse processo justifica a grandeza das atuações desse operário pobre e
eclético que era Jácome, e demarcam os direcionamentos de sua carreira,
além de ser prova da herança que a ele foi transmitida.
Daí entender-se o porquê de sua „iniciação‟ efetivar-se em obras de
tamanha expressividade, complexidade e importância. Produto dessa herança
era a clientela e o ecletismo desses contratantes explica a diversidade das
obras. Veja-se uma elas:
Na documentação da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência
cujo quadro de terceiros era composto essencialmente pelos grandes mascates
e mercadores ou, simplesmente pela nata econômica de Recife registrou-se
a presença do ex-servente de Matos, no início do século XVIII, atuando nos
serviços de reforma empreendidos por aquela organização. Obras realizadas, a
saber, no Claustro (térreo): construído entre nos anos de 1704 e 1706 pelos
mestres pedreiros Manoel Ferreira Jácome e João Pacheco Calheiros
226
, tendo
custado à obra a quantia de 1.004$434”.
227
O mesmo João Pacheco também esteve vinculado à figura de Antônio
Fernandes de Matos, tendo chefiado os 98 ladinos que o falecido empreendia
em vida e foi lembrado no testamento do mestre, tendo sido agraciado com
“Hua peça [...]” e “[...] dous moleques”, que passariam dali avante a integrar
sua própria cadeia de artífices pedreiros. Escravos-artífices que,
possivelmente, estavam listados na Irmandade do Rosário dos Pretos da
Freguesia de Santo Antônio do Recife.
Esse laço comum faz de ambos os mestres membros veteranos da
equipe de Matos: companheiros de trajetória e egressos do anonimato inerente
à mão-de-obra auxiliar a que estavam condicionados. Amigos conjuntamente
226
Um velho companheiro da equipe de artífices de Antônio Fernandes de Matos, e que se
encontrava empreendendo escravos nas obras da Igreja do Rosário dos Pretos, da Freguesia
de Santo Antônio ocorridas em 1721.
227
MARTINS, 1974, p. 95.
88
ascendidos à condição de trabalhadores autônomos e de autores legítimos e
documentáveis e, ironicamente, de personificadores de obras.
O jovem Jácome e o dito Calheiros (veterano do alto dos seus 72 anos),
porém, foram muito mais que um meros instruídos e subordinados do Matos,
foram seus compadres,
228
como nos faz saber o testamento do mascate
português. Essa relação de compadrio, de fato parece ser confirmada no
seguinte relato:
A mais antiga referência, encontrada a seu respeito remonta ao
ano de 1701, de seu casamento com Páscoa Moreira. Seria
possivelmente, homem de vinte e poucos anos de idade. O que
nos permite supor seu nascimento na década de 1670. Tal
referência liga-o, ainda, a um ilustre mestre de obras de
pedreiro Antônio Fernandes de Matos (c. 1649-1701), com o
qual se tinha iniciado como aprendiz de oficial de pedreiro.
229
O texto baseia-se no testamento de Matos, datado de 1701 e mantido
desde então aos cuidados da Ordem Terceira Franciscana. Foi o documento
no qual o velho empreendedor de obras lembrou-se do jovem mestre mulato,
antigo auxiliar e amigo, ao deixar nominalmente para uma das órfãs a quem
outrora havia deixado um dote para casamento e que era ninguém menos
que “[...] sua mulher, Páscoa Moreira. O referido dote foi destinado ao
pagamento de aluguéis atrasados e à compra da casa em que Jácome morava
“[...] na Rua dos Calafantes, avaliada em 466$830”
230
. A citada casa diz
respeito ao “número 10” da atualmente denominada Rua das Águas Verdes,
(fig. 2.8), um sobrado
231
situado à esquerda do frontispício da Igreja de São
Pedro, onde, antes da construção do templo, se situava um conjunto de
pequenos sobrados, alugados por Matos a artífices mecânicos, militares e
pequenos comerciantes locais. Ali, indivíduos como Jácome tinham sua
residência no primeiro pavimento e uma lojinha térrea onde dispunham seus
228
A Relação de compadrio foi deveras comum no período colonial e era uma forma bastante
usual de se estabelecer ou fomentar relações clientelares, dentro e fora dos laços de
parentesco, envolvendo categorias e classes sociais distintas, mas com interesses afins.
229
PIO, 1959, p. 77.
230
ORDEM TERCEIRA DE SÃO FRANCISCO. Livro de Contas 1701-1760, fl. 21, 34, 121, 128
e 137v, apud MELLO, 1981, p. 21.
231
Sobrado alto e magro” e [...] alongado no sentido frente-fundo”, denotativo a especulação
imobiliária de que foi precursor Antonio Fernandes de Matos, e do crescimento vertical e dos
tempos mercantis e da influencia holandesa na arquitetura recifense (Ver: FREYRE, Gilberto.
Sobrados & Mocambos: decadência do Patriarcado Rural e Urbano. Rio de Janeiro: Record,
1990, p. 155-156; MELLO, José Antônio Gonçalves de. Tempo dos Flamengos. Rio de
Janeiro Topbooks, 2000, p. 80-83).
89
serviços à clientela local. Tais residências foram erigidas no rastro da primeira
especulação imobiliária local, levada a cabo pelo instrutor capitão, à época em
que Recife não passava de uma „mera‟ freguesia de Olinda e demarcavam o
princípio de uma odisséia desenvolvimentista na qual os próprios operários e
moradores eram agentes. Esse exemplo de sagacidade do mercador patrício
foi, muito certamente, parte da herança a seu mais tenaz subordinado.
Fig. 2.8: Casa 10 (sobrado) a Rua dos
Calafantes, atual Rua das Águas Verdes (Pátio de
São Pedro), em que residiu o mu lato Manuel
Ferreira Jácome. Atualmente sedia o Centro de
Design de Recife.
Foto: José Neilton Pereira, 2008.
Ver-se assim que, juntamente com o aprendizado técnico, o tão forte
vínculo foi uma ferramenta que, associada às demais, abriu-lhe as portas para
uma trajetória funcional exitosa. O que significa dizer que o mais valioso indício
deixado por essas informações é o de que há uma profunda corelação entre os
laços fraternos e familiares surgidos entre instrutores e aprendizes e as
ascensões funcionais após a morte dos orientadores. Isso faz da relação de
compadrio uma espécie de estratégia bastante comum na sociedade colonial
dos entrepostos coloniais. Eis a razão pela qual foi o mulato Jácome um dos
muitos agraciados com a desmonopolização das atividades mecânicas de
construção, ocorrida na capitania desde o falecimento do mestre-pedreiro,
90
capitão de fortaleza e mercador inter-atlântico português Antônio Fernandes de
Matos. Confirma essa herança, o fato de que o mais notável sucessor de Matos
teve importantes, recorrentes e independentes atuações nos mesmos lugares
onde outrora fizera seu aprendizado. Foi o que ocorreu “em 1720-31, quando
realizou alguns trabalhos na Ordem de São Francisco do Recife, recebendo
a importância de 117$000”,
232
último ali operado.
É mediante esses laços funcionais e fraternais que se pode
compreender sua condição de confrade entre os terceiros de São Francisco,
pois na colônia foi deveras comum o fato de:
[...] as irmandades terem tido, tanto quanto os ofícios del-Rey
ou cargos das câmaras, ou ao lado deles, a função, nos
primeiros centros urbanos do Brasil, de dar nobreza a eleitos,
em vez de recebê-la sempre deles, como teórica ou
ortodoxamente devia suceder.
233
Na verdade, e, sobretudo na era mercantil, eram esses elos que
estavam no cerne de todas as locomoções, e impulsionaram indivíduos como
Jácome à ocupação de diferentes lugares de distinção, e ao exercício incisivo e
consciente da sociabilidade e do poder colonial. E se, por um lado, “[...] por
essas associações deu-se a triagem da época, de acordo com a cor da pele
[...]“,
234
por outro, devido a esses mesmos vínculos, essa divisão nunca foi
estanque nem tão rigorosa, por que no período mercantil era “[...] nos contatos
mais triviais que, às vezes, de maneira imperceptível, se processa[vam] certas
trocas de posição,
235
trocas ocorridas tanto de forma pafica, pela sucessão
natural dos mestres e favorecimentos diversos por/aos êx-alunos, quando
tensamente, por meio de jogos, intrigas ou conflitos pessoais, sempre
apimentados por questões de grupo e de natureza étnica.
Para além das oportunidades geradas no campo funcional, o âmbito da
sociabilidade também parece ter proporcionado a Manoel Ferreira Jácome
elevado status perante toda a sociedade recifense setecentista, pois lhe
dignificou ao tão aspirado lugar de distinção de irmão terceiro
(leigo) da ordem franciscana.
236
Essa honra, evidentemente, não pode ser
232
PIO, 1959, p. 77.
233
FREYRE, 1990, p. 335.
234
Ibidem, p. 375.
235
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-
1789: Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 33.
236
Cf. PIO, 1975, p, 34.
91
diretamente atribuída ao ramo de trabalho e nem mesmo às habilidades por
eles manifestas, pois não eram esses critérios fortes para essa seleção, que
independia de suas qualificações profissionais, diferentemente do que ocorria
em outras confrarias, como as de São José do Ribamar, Santa Cecília e do
Livramento, fundadas e regidas por e para essa gente.
237
Seja como for, seu ofício contribuía indiretamente para tal escolha, pois
dele advinha a sociabilidade que a função proporcionava, sendo o
reconhecimento como „o maior nome dentre os pedreiros pernambucanos‟, um
grande diferencial de requalificação, que se não o lançava rol de indivíduos “de
qualidade”, era porque, diferentemente da ação político-religiosa de
irmanamento, o adjetivo “pessoa/artista de qualidade” era estritamente um
termo etnocêntrico, designativo de “indivíduo/artista branco”. Ou seja,
qualificados etnicamente para irmanar-se ao quadro dos terceiros. O que nos
leva a conclusão de que lugar de devoção e lugar funcional eram aspectos que
se associavam, se complementavam e se reforçavam mútuamente.
Com isso, vêem-se [re]unidas e imbuídas do mui político sentimento de
mutualismo corporativo colonial a nata econômica de grandes comerciantes,
“consumidores” da produção, e a base sócio-operacional da sociedade
pernambucana, os trabalhadores mecânicos, produtores. Dois grupos cuja
relação não ocorreu ocasionalmente, haja vista que o trabalho mecânico fôra o
berço de muitos dos grandes e enriquecidos mascates, pois é preciso lembrar
que ambos estiveram iluminados pela florescente economia mercantil-portuária
e norteados pelos sentimentos da devoção religiosa, jogos políticos e
interatividade cultural do barroco. De maneira que por trás do pedreiro mestiço
há todo um universo de idéias e ideais do qual era agente direto. Ideias e ideais
que se traduzem em interesses pessoais e grupais que a cultura tendeu a
simbolizar e cristalizar.
Aliás, esta união, comum nos grandes entrepostos coloniais,
representava bem mais que uma mera ação de corporativismo: consistia na
associação de irmãos abastados que, enriquecidos, passaram a demandar
novas construções junto aos próprios substitutos diretos no trabalho mecânico-
artesanal. Esses novos confrades, a exemplo dos antigos mestres, eram ciosos
237
São José do Ribamar (dos carpinteiros, marceneiros e Pedreiros); Santa Cecília (dos
músicos) e do Livramento (dos músicos até a transferência para a de São Pedro dos clérigos).
92
de ganhos de toda sorte e estavam certos que o amparo dos mercadores lhes
podia gerar muitas oportunidades. A interação com suas obras era uma delas,
pois nisso eram chamados a expressar seu universo cultural híbrido.
Assim, a análise da obra Jácomeniana, por sua vez, expressava a
ruptura dos mercadores com a antiga ordem, centrada na açucarocracia, à qual
nem sempre puderam pertencer tampouco exercer papel decisivo na
administração. Os templos por ele reformados ou erigidos são fruto do
congregamento de uma categoria diferenciada e que, em virtude de sua grande
locomoção, visava insistentemente à diferenciação, que essas edificações
ilustravam o novo lugar que aqueles ocupavam: a riqueza e o poder que ora
experimentavam. Poder, por sua vez, que era gradativamente transmitido aos
irmãos mecânicos como Jácome e tantos outros.
Assim, para além da grande destreza, seus vínculos certamente
pesaram para que tenha sido
[...] por varias vezes eleito líder de sua classe, exercendo o
cargo de „juiz do ofício de pedreiro‟, que, como se sabe, era
escolhido por eleição entre seus pares e confirmado pelos
vereadores da câmara de Olinda e, desde 1711 pelos da
câmara do Recife
238
. [Grifos nossos]
Como se vê, a ascensão a tal posto convertia-o numa espécie de
funcionário público, com dupla legitimidade: perante os companheiros de ofício
e à administração local. Mas também o imbuía de uma dúbia missão, que era a
de controlar seus pares e, ao mesmo tempo, representá-los junto ao governo,
não obstante a importância da classe face ao incremento de infra-instrutura que
convertia Recife num verdadeiro canteiro de obras.
Note-se, contudo, que a conflituosa conjuntura política dos primórdios
setecentistas parece não ter influído negativamente em sua fama pessoal, que
sobreviveu à transição administrativa das câmaras locais de Olinda (seu berço)
para o Recife (para onde migrou), e aos embates pela posição de sede da
capitania. Ao contrário, “[...] consta que exerceu aquela função nos anos de
1707; 1708; 1711; 1717 e 1722”.
239
O que nos leva a pensar que artistas do
seu porte, embora fatalmente fossem levados a se posicionar, passavam
238
PIO, 1959, p. 77.
239
Ibidem, p. 77.
93
muitas vezes ilesos por eventos de grande tensão política, como o conflito
inter-classista envolvendo nobres e mascates. E a razão dessa continuidade
era o fato de que esses artesãos, devido às suas especialidades, possuíam
grande importância nas sociedades urbanas, naquela era de pleno vigor
comercial e urbanístico. Era graças a essas atribuições que eles estavam
sempre bem situados em termos de relações sociais, quer seja entre a elite
açucareira olindense, quer seja entre seus substitutos gradativos no cenário do
poder pernambucano, os mascates recifenses.
Mais complexa e delicada é, no entanto, a intensa relação que
mantinham com as irmandades religiosas, pois essa parece ter se dado
sempre no campo das constantes tensões. Um exemplo clássico foi a fase em
que Jácome “empreitara as obras de restauração da capela-mor e da sacristia
da Matriz de Muribeca”
240
(1724-1730), na qual, por motivos não expressos na
documentação, o artífice interrompeu as obras. Não se sabe se por culpa da
irmandade ou por mero descompromisso profissional, ou, ainda, se tal
paralisação envolveria questões de caráter discriminatório (étnico) a ele
relacionadas. Sabe-se apenas da queixa que relata o fato sob a ótica do Padre
Antônio Gomes Baracho, em carta endereçada a sua majestade no ano de
1730, onde:
[...] consta que [ele] o vigário da matriz de Muribeca queixou-se
ao rei do que havia mais de seis anos Manoel Ferreira Jácome,
e Paulo Luis Fiesco tinham empreitado as obras da capela mor
da sacristia da igreja, mas não tinha até então cumprido o
compromisso.
241
De fato, essa querela se confirma também em outro documento:
REQUERIMENTO: do vigário de Muribeca, padre Antônio
Gomes Baracho, ao rei [D. João V], pedindo que se ordene ao
provedor da Real Fazenda de Pernambuco, [João do Rego
Barros], obrigue aos mestres pedreiros, Manoel Ferreira
Jácome e Paulo Luiz Fiesco, a conclusão das obras da capela
mor da sacristia da dita Matriz, iniciadas a seis anos.
242
Mas, o real motivo da paralisação permanece objeto de indagação,
que toda documentação procede da parte da citada irmandade e,
240
MARTINS, 1974, p. 95.
241
Ibidem, op. cit., p. 77.
242
AHU_ACL_CU_015, Cx. 40, D. 3595.
94
evidentemente, narra o fato segundo seus próprios interesses. Desde já, no
entanto, percebe-se como essa querela demonstra bem como a relação entre
artífices e religiosos dava-se na tênue fronteira existente entre as liberdades
sociais logradas por essas atuações funcionais e as contradições que fluíam da
contraposição entre o reconhecimento profissional que gozavam artífices como
Jácome e sua condição „subalterna‟ de mulato. Uma contradição que nem o
tempo, nem a fama, nem os vínculos conseguiam apagar, e que as próprias
influências culturais por eles exercidas ajudavam a fomentar.
Outro fato interessante é o de que a queixa revela a existência de
estreitos laços entre o pedreiro mestiço e indivíduos supostamente de origem
estrangeira, a julgar pela parceria como o citado Luiz Fiesco, que também
atuou independentemente no Recife, onde, a exemplo de tantos outros, estava
sediado na primeira metade do XVIII. Seria ele realmente um indivíduo branco,
companheiro de ofício apenas? Ou ao contrário, seria um ex-aprendiz e auxiliar
de Jácome, que também já havia atingido a condição de mestre? Ou seja, seria
um escravo ou ex-escravo de um migrante italiano? Não se sabe. As
possibilidades são muitas, a fonte acima citada pouco „fala‟; e nada mais
relevante se tem sobre esse outro mestre. Os indícios apontam para a
conclusão de que os seus passos tenham seguido piamente os do mulato aqui
biografado, que Fiesco encontrava-se empreendendo, nominalmente,
algumas obras, como a que foi registrada no Livro de Termos da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário da Freguesia de Santo Antônio do Recife. Termo
cujo título se encontra ilegível, relatando que:
Aos vinte e um dia do mês de dezembro de mil setecentos e
quarenta e oito, no consistório de Nossa do Rosário,
estando presente os juizes, escrivões e procuradores das ditas
irmandades, foi proposto pelo Juiz de Nossa Senhora do
Rosário que, para efeito de se continuar a obra de levantar o
arco grande da capela-mor e mais altares, se faz preciso
demolir toda a obra velha, por estar esta corruta e assim a dos
dois altares Santa Efigênia e Santo Elesbão menos.... a que se
pretende fazer para o que convier a todas se chamasse o
Mestre Pedreiro Palino Luiz Fiesco para, com o seu parecer, se
fazer a dita obra e ajustar com as quatro Irmandades. No que
deviam dar parceladamente a de Nossa Srª do Rozario para
lhas fazer a dita obra. O que de todos foi abrasado e disseram
uniformemente queriam [que] assim se fizesse. Para o que se
obrigarão a dar as duas Irmandades, a saber S. Benedito e S.
Antônio, cem mil reis entre ambas, para que se lhes fizesse os
seus altares, do oficio de pedreiro, sendo os arcos de cantaria.
95
E da mesma sorte disseram as duas irmandades, S. Ifigênia e
S. Elesbão, [que] se obrigavam a dar duzentos e quarenta mil
reis entre ambas; que vem a ser cento e vinte cada, uma para
que a Irmandade de Nossa Srª do Rosário lhes fizesse os seus
arcos de pedra de cantaria [...] em todo o louvor ao arco da
capela mor [...].
243
[Grifo nosso]
A contratação de Luis Fiesco para atuar nas ditas obras revela que, a
essa altura, estava gabaritado para atuar independentemente e que,
igualmente ao parceiro Jácome, dispunha da confiabilidade dos
empreendedores recifenses.
Perceba-se, portanto, como lançar mão não apenas de aspectos de
natureza técnica seria priorizar um elemento frágil para explicar a paralisação
das obras da citada Matriz de Muribeca, embora não se possa desconsiderar o
valor desse tipo de análise, que demarcam o nível de especialização dos
artífices em questão e os cânones que lhes serviam de referenciais. Por outro
lado, o argumentado „desinteresse dos artífices‟, embora sedutor ao sentido
dedutivo, é relativamente simplista, pois era o a acusação mais óbvia e eficaz
usada contra um indivíduo marcado pela mácula étnica. A um mecânico que,
tendo fugido as amarras do escravismo e às limitações impostas pelo
preconceito e pela sujeição, gozasse de relativa liberdade social. Liberdade
pela qual, recomendava o consenso da sociedade setecentista, deveria
„demonstrar grande zelo‟. É mister, portanto, visualizar-se o quanto a
autonomia dos citados artífices parece defrontar-se com as questões de
natureza étnica e social tão típicas daquela sociedade escravocrata. Não é,
pois, de causar estranhamento que a querela tenha sido decidida por sua
majestade, El Rey, com o seguinte deferimento:
Dom João [V], por graça de Deus, Rey de Portugal e dos
Algarves, d'quem e d'alem mar em África, senhor de Guiné, me
faço saber a vós Duarte Pereira, Governador e Capitão
General da Capitania de Pernambuco, que por parte de
Antônio Gomes Baracho, Vigário de Muribeca, d'essa mesma
Capitania, se me representou que, achando-se com bastante
ruína a Capela mor e Sacristia da dita Igreja, fora eu servido
manda-la reedificar à custa da minha fazenda. E pondo-se em
praça esta obra na forma das minhas Ordens se arrematou aos
Mestres Pedreiros, Manoel Ferreira Jácome, e Paulo Luiz
243
IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS PRETOS DA FREGUESIA DE
SANTO ANTÔNIO DO RECIFE. Livro de termos - 1721-1755. (IPHAN-PE), fl. 85. In: SMITH,
1979, p. 170.
96
Fiesco, os quais, dando princípio á dita obra, mais de seis
anos, até o presente lhe não têm dado fim, por quererem que
sempre se lhe esteja dando dinheiro adiantado, além de se lhe
pagar a obra, que vão fazendo por certidão do Sargento mor
desta praça; e porque na demora da dita obra recebem os
fregueses da dita Matriz um grande detrimento, e não menor o
suplicante por estar o sacramento e imagens dos santos em
uma mui limitada ermida, aonde se lhes não pode fazer as
festas costumadas. E, além disso, a mesma Igreja recebe
prejuízo por estar tantos anos aberta e exposta aos rigores
do tempo. Pedindo-me ordenasse ao Provedor da Fazenda
d'essa Capitania obrigue os ditos mestres a trabalhar na dita
obra, e que dela não levantem não sem a acabarem, [sob]
pena de serem presos, e mandada acabar ás suas custas por
outros Officiaes. Me parece ordenar-vos pinhais todo o cuidado
em se acabar a obra desta Igreja, obrigando a estes pedreiros
a que a acabem e cumpram em tudo as condições com que a
arrematarão.
Lisboa ocidental, a 18 de Maios de 1730.
244
Justa ou não a sentença, claramente induzida pela denúncia e visão
clerical, punia-lhes pelo pressuposto „descompromisso‟, embora se possa
perceber certo grau de autonomia ao se lhe não aplicar punições como a
proibição à prática do ofício, a prisão, ou coisa do gênero. E quão favorável era
a situação dos artífices quando arremataram a obra, sendo a paralisação
devida a incidentes posteriores e, infelizmente, ocultos. Chama-se, porém, a
atenção para outra constatação, suscitada por sua obra mais famosa, que diz
respeito ao longo intervalo demandado entre uma negociação e a efetivação do
acordo contratual:
Em 1715, a Irmandade de São Pedro dos Clérigos do Recife
arquidiocese uma área na ilha de Antônio Vaz para fim de nela
edificarem sua igreja. A seguir, em 1728, encomendou projeto
ao Mestre arquiteto, Mestre pedreiro Manoel Ferreira Jácome e
iníciou a construção [...].
245
Tal intervalo compreendia parte dos os ditos “seis anos” em que se
arrastava a obra de Muribeca (1726-1730) e isto revela como os artífices eram
motivados a empregarem-se ou a suas equipes em obras realizadas
simultaneamente e, sobretudo, que oferecessem maior prestigio,
244
Cf. Informação da Companhia de Pernambuco, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, v. 28, 1906, p. 254; SMITH, 1979, p. 172.
245
BUENO, Alexei, TELLES, Augusto da Silva e CAVALCANTI, Lauro. O Patrimônio
Construído: As mais belas edificações do Brasil. São Paulo: Capivara. 2002. p, 50.
97
comprometendo, é claro, os termos por eles acordados em contrato. Isso,
obviamente, podia envolver a relevância de determinada obra (como parece
ser o caso da de São Pedro), em detrimento de outra (como a afastada Igreja
de Nossa Senhora do Rosário da Freguesia de Muribeca), e, necessariamente,
questões sociais que envolvessem a pessoa do artífice: sua re-qualificação
social, por exemplo. Ponto em que também eram alvos e poderiam ser
facilmente atingidos. E tendo em vista que o congregamento dos obreiros em
confrarias nutria-se de evidente corporativismo étnico-funcional, torna-se um
indício a relativa autonomia propiciava não o reconhecimento, mas também
à reação dos contratantes insatisfeitos contra os artesãos mestiços fluindo,
com isso, sérios embates calcados nos preconceitos do cotidiano.
Logo, se a múltipla ocupação era um produto natural da contínua busca
pela sobrevivência, as indisposições e as escolhas funcionais advinham de
toda sorte de motivações, étnicas inclusive. Seja pelo fato de corroborarem
para a projeção dos artífices mestiços, seja por ferirem sua identidade. Sejam
esses, talvez, os parâmetros da escolha feita por Jácome e Fiesco por São
Pedro dos Clérigos em detrimento à Igreja do Rosário de Muribeca, dos negros
daquela freguesia, cuja relação de estranhamento com os mulatos é fator
conhecido dos historiadores.
2.3) Entre as pedras e as armas: a trajetória insertiva de um mestiço e
suas contribuições para um urbanismo mercantil e defensivo.
Outro aspecto que deve ser considerado diz respeito à vida militar do
engenheiro Jácome, que “as armas” eram um velho e conhecido caminho
para os caçadores de distinção na sociedade colonial, haja vista que a
corporação militar era um dos espaços para a formação educacional dos
jovens varões, propiciando-lhes um ensino gratuito efetivado inter-
pessoalmente,
246
no caso do mulato recifense com o capitão Matos. Na
verdade, a categoria dos artesãos, em todas as instâncias, em composta por
uma significativa parcela de militares,
247
cujos saberes foram sempre
246
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista: A vida e a construção da
cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 156.
247
SILVA, Kalina Vanderlei Paiva da. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade
98
imprescindíveis ao planejamento e à formação da urbe („espaço civilizado‟)
colonial.
Veja-se, por exemplo, o princípio da carreira de Jácome:
[...] engenheiro de formação militar, como de hábito, que, entre
outras encomendas, esteve envolvido na construção de um
dique erigido sobre a linha natural dos arrecifes que criam o
ancoradouro natural na área da cidade [...].
248
Uma obra estrategicamente planejada e situada numa região geográfica
tão importante quão específica, o porto, que era o ponto nevrálgico daquela
urbe e, amiúde, cerne da ambigüidade existente entre comércio marítimo X
debilidade bélica.
Mesma relevância tinham os templos religiosos por ele planejados, pois
é preciso lembrar que as igrejas impunham o traçado das ruas, demarcavam os
espaços de sociabilidade da população e asseguravam a posse dos territórios,
tendo em vista que, geralmente, eram construídas em função das vias de
circulação e das rotas comerciais.
249
O Recife, onde atuou, é um caso
emblemático de desenvolvimento urbano costeiro-mercantil, pois ali: “[...] todas
as casas religiosas balizam o crescimento daquela ilha e vêm continuar a
tradição de monumentalidade das que foram erigidas em Olinda”. Pujança que
expressa a rapidez com que a vila emergente superaria a velha sede, com
claros benefícios para os artesãos das artes da construção.
É sob essa perspectiva, do saber científico X uso funcional, que se pode
compreender as implicações sociais implícitas nos trâmites daquele projeto
arquitetônico que foi a planta da Igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife
(fig. 2.9). A começar pela aprovação do “risco” (planta), com os pareceres dos
engenheiros-militares mais renomados da capitania: o tenente João Macedo
Corte Real, o sargento-mor Diogo da Silveira
250
e o capitão Francisco Mendes.
Eram eles, dada à formação militar, os responsáveis e capacitados dentro da
administração pública para o planejamento e fiscalização da obras de
colonial: militarização e marginalidade na capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII.
Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001, p. 102-103.
248
MENEZES, 1984, p. 9.
249
TIRAPELLI, Percival. Arte sacra colonial: Barroco, memória viva. São Paulo, UNESP,
2005, p. 14-20.
250
Diogo da Silveira Veloso e João Macedo Corte Real eram os engenheiros oficiais do Reino
em Pernambuco; seus pareceres respaldaram as atuações de Jácome e atestam sua
competência (Ver GUERRA, 1984, p. 220-221).
99
incremento da infra-estrutura ocorrido nas primeiras décadas do XVIII. É essa
mesma aprovação dada à condição de peritos militares dos aprovadores
que infere a Jácome a capacidade (saber) da técnica construtiva militar e,
consequentemente, circunscreve à obra certa afinidade com as obras
castrenses destinadas à defesa.
De modo que seria um erro ver tal desenvolvimento como totalmente
desvinculado das prerrogativas administrativas e militares. E embora o caiba
aqui o detalhamento desses aspectos, o templo deve ser entendido como um
produto do ordenamento colonial, sempre reforçado pelos contratos advindos
da demanda religiosa. Logo, se pode mesmo dizer que a engenharia e a
arquitetura ciências nas quais se formou o mulato come são elementos
elucidativos no que se refere a emblemática e importante contribuição desse
pardo, pois foi com base nos saberes técnicos militares que o mulato planejou
o “risco” da Igreja dos Clérigos e desenvolveu tantos outros empreendimentos
no Recife. Logo a construção que se notabilizou por sua singular e imponente
envergadura, harmonia, e beleza edificativa foi um projeto calcado sobre as
bases da ciência militar, embora a configuração espacial e estético-
morfológica, o uso e a composição simbólica lhe atribuíssem a função religiosa.
Fig. 2.9: Igreja de São Pedro dos Clérigos, cujo
risco (planta) foi de autoria do mulato Manoel
Ferreira Jácome. Foto: José Neilton Pereira,
2007.
100
É possível perceber como a planta da Igreja de São Pedro foi, para o
mulato pernambucano, o ápice da carreira, o extremo oposto ao anonimato e
cerceamento da fase de iniciação. Era a fuga ao anonimato típico daqueles
tempos antigos de auxiliar; era a possibilidade de „personificação da obra‟.
Razão, aliás, explicativa do seu próprio enterramento naquela igreja, cujas
restrições da irmandade possuidora à incorporação de mestiços foi sempre
marca e motivo de muitas querelas.
251
Tal sepultamento, traduzia, dentro da
ótica do „bem morrer‟ do barroco setecentista, o coroamento da longa e difícil
trajetória,
252
e simbolizava o êxito no trânsito nas camadas, categorias e
hierarquias da sociedade recifense: a conclusão exitosa do percurso incertivo
comum, mas não completado para muitos dos seus pares.
Curiosamente, porém, a era mercantil trazia à cena um grande desafio
para gestores, contratantes e operários: a conciliação da tão necessária defesa
com a „fluidez‟ típica das urbes setecentistas. Dinamismo que era imposto pela
lógica mercantilista daquele entreposto comercial ultramarino, no qual estavam
sediados esses grupos que encontraram, através do trabalho, as oportunidades
e liberdades tão sonhadas. Daí porque o urbanismo recifense estava
circunscrito entre o belicismo e cosmopolitismo, criando um amplo espaço de
trabalho para esses indivíduos. E na aparente antítese desses dois termos eis
os paradigmas e pilares da arquitetura e urbanismo colonial recifense entre
1701 e 1789:
a) O panoptismo de uma sociedade tensa e arquitetonicamente „sentinela‟,
alusivamente edificada com vistas ao mar, ao passado ao medo, ao
inimigo, à pilhagem
253
, - que Salvador (holandeses 1624-1625), Recife
(holandeses, 1630-1654) e Rio de Janeiro (franceses, 1650-1667, 1710
e 1711) conheceram tão de perto , ao fantasma do invasor, do
251
Cf. IGREJA DE SÃO PEDRO DOS CLÉRIGOS, Levantamento fotográfico, imaginária
remanescente do inventario. IPHAN 5ªS/R, Recife PE, pasta 1.19, envelope II, p. 1.
252
Ver MORAES, Douglas Batista de. Bem nascer, bem viver, bem morrer: administração
dos sacramentos da igreja em Pernambuco 1650 a 1790 Recife: UFPE, 2001, p. 97-119.
(dissertação de Mestrado).
253
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História das violências nas prisões. Petrópolis, 1987, p.
173-199.
101
estranho enfim;
254
de uma vila disciplinada e vigilante, militarmente
armada, contingenciada e prontificada ao menor sinal de perigo;
255
e
b) O cosmopolitismo mercantil, convidativo, dinâmico e promissoramente
diplomático desses templos que guardam a chegada das especiarias e
artigos da gente comercial, de outras terras das tendências dos
modismos, do capital enfim.
256
Compreende-se, assim, como tais campos a religiosidade, o comércio
mercantil e o militarismo,
257
que foram também parâmetros às ações funcionais
e sociais do homem colonial recifense, e do mulato Manoel Jácome em
particular. Daí porque, entre os baluartes das prisões e fortes,
258
os balaústres
e abóbadas e torres das igrejas e ou edificações civis; entre as “logeas”
comerciais no andar térreo dos sobrados e os óculos nas construções cívicas e
religiosas transitou a arquitetura do cenário urbano recifense em que viveu e
atuou o mulato olindense.
259
Uma dicotomia que a vivência das artes ajudava a
254
Ver: BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 60-93; CAVALCANTI, 2004, 44-48.
255
COUTO, 1981, p. 101; KOSTER, 1978, p 32-33; TOLLENARE, 1978, p. 19, AHU_ACL_CU,
015. Cx. 127, D.9963. AHU_ACL_CU, 015. Cx. 128, D.9967.
256
KOSTER, 1978, p 32-33; Ibidem op. cit., 1978, p. 118; FREYRE, 1985, p. 162.
257
A influência militar não é um dado peculiar às obras pernambucanas, podendo ser
observada em sua expressão máxima talvez nos dois canhões adicionados às torres da
Igreja de São Francisco de Ouro Preto, muito embora se constate no legado setecentista
recifense a presença de micro-capelas no interior de fortes como o “das cinco pontas” (Recife),
e “Orange” (Itamaracá), destinadas à devoção das entidades (santos ou oragos) específicas e
inerentes aos quadros militares; além da igreja de N. S. da Conceição dos Militares (Recife),
erguida e administrada pelos castrenses locais, e cujo vínculo histórico com essa categoria e,
consequentemente, seus ritos e modos de ver, sentir e exercer a fé permaneceu vivo desde a
sua construção (1723) até os dias atuais. Era também partindo da perspectiva do panoptismo
castrense que as igrejas recifenses foram edificadas individualmente voltadas para o mar e
para o centro urbano e, em termos de conjunto, dispostas semi-circularmente (em forma de
“C”) à região portuária a partir da (linha do oceano. Por fim, foi fruto da ambiguidade
panoptismo-cosmopolitismo que houve reformas constantes e mesmo projetos de
refucionalização dos fortes da costa recifense, como é o caso do “Forte do Matos”, na Vila-
porto pernambucana, de onde se fazia a estocagem e escoamento de madeira nobre para
serem exportadas para a Europa e do “Forte de São Tiago das Cinco Pontas” que serviu de
presídio durante os séculos XVIII e XIX.
(Ver DUARTE, Luiz Vidal (Org.). Conceição dos militares: Religião, arte e civismo. Recife:
Tipografia Marista, 1979).
258
Elementos indiciários da influência militar na arquitetura do Barroco, assim como a cadência
rítmica na música, e a pintura cartográfica na pintura.
259
Uma correlação de elementos estético-simbólicos que indicia a abrangência, a ambiguidade
de uso, a flexibilidade estética, as influências sociais (das categorias e grupos humanos ou
econômicos), o universo de saberes técnicos, os campos operacionais em atividade e,
sobretudo, o percurso sócio-funcional dos artífices. (Ver: VELOSO, Van-Hoeven. Jaboatão
dos meus avós. Recife: SP/FIANI, 1978; ROCHA, Leduar de Assis. Do Forte do Matos à Rua
da Aurora: Subsídios para a história do “palácio Joaquim Nabuco”. Recife: ALPE, 1967, p. p.
29; ALBUQUERQUE, Marcos e LUCENA, Valéria. Forte do Arraial do Bom: Jesus. Resgate
arqueológico de um sítio histórico. Recife: CEPE, 1988, p. 9-32; NETO, Ulisses Pernambucano
102
resolver. Tais elementos, situados no contexto colonial, não deixavam de
guardar certa relação com o imaginário do medo e prontidão militar que
permeava a dinâmica dos entrepostos costeiros, circunscrevendo as
edificações na fronteira entre a arte e a ciência em que se constituíam os
saberes técnicos eminentemente bélicos, que eram aplicados às construções
coloniais, inclusive às obras sacras. O que significa dizer que a perspectiva
cívica esteve presente nas obras do operário mulato, contribuindo
enormemente para que a urbe recifense se convertesse em baluarte luso-
brasileiro e legado artístico-arquitetônico às gerações vindouras.
260
Eis a razão
pela qual o paradigma construtivo militar também ajuda a compreender a obra
e trajetória de Jácome, pois a presença dos distintos e divergentes elementos
acima salientados circunscreve seus trabalhos dentro das múltiplas
perspectivas de ocupação e usos do território colonial administrativo,
combativo-defensivo, religioso , onde o militarismo tinha papel central.
Impõe-se, assim, a idéia de que “[...] não se pode perceber um edifício
como simples teorema da geometria aplicada, independentemente das funções
sociais a que responde [...]”,
261
o que, por sua vez, suscita certa hermenêutica
da forma. Nominalmente: uma análise da tensão existente entre o legado
construído, os usos e implicações cio-funcionais daí resultantes. Nesse
sentido, pode-se salientar que a elaboração de edificações tão diversas (de
caráter militar, religioso e cívico-administrativo) envolvia conhecimentos
técnicos distintos e específicos e correlacionados. A saber:
a) Prévio e apurado conhecimento do solo e das matérias-primas
apropriadas a cada emprego edificativo (em virtude das próprias
especificidades, usos, durabilidade das matérias-primas.);
262
b) Relativo domínio das significações simbólicas inerentes a cada modelo,
elemento, (re)partição, subdivisão estratégica do espaço e ou
composição dos ambientes para fins de controle civil e ou prática sócio-
cultural coletiva (como, por exemplo, os tios, odros e largos dos
de Mello. O Forte das cinco pontas: Um trabalho de arqueologia histórica aplicado à
restauração do monumento. Recife: FCC, 1983, p. 65-66, 104105; MENEZES, 1984, p. 7-18,
27-32).
260
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 73.
261
BASTIDE, Roger. Variações sobre a porta barroca. Revista Novos Estudos. São Paulo:
CEBRAP, julho 2006, p. 129-137. Disponível: http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos.
262
ALBUQUERQUE, LUCENA, 1988, p. 18-36.
103
templos religiosos;
263
os balaustres e casamatas dos fortes militares
cujas presença e disposição assumem finalidades ou significados
específicos dentro do conjunto da obra;
c) acerca das propriedades termométricas, a fim de proporcionar
agradabilidade e conforto nos ambientes internos (para o que
desempenharam importante papel os alpendres laterais presentes em
diversos templos, como o da Conceição dos Militares, Capela Dourada
da Ordem Terceira e no Convento de Santo Antônio do Recife,entre
outros)
d) Quanto a iluminação natural dos interiores (como exemplifica a
disposição das janelas para o nascente e para o poente da Igreja de
São Pedro dos Clérigos do Recife)
e) Concernente à visualidade e visibilidade proporcionada por elementos
arquitetônicos interiores (púlpitos) e exteriores (sacadas) das igrejas e
residências.
Logo, tais aspectos constituíam os saberes básicos na imensa gama de
conhecimentos possuídos pelos artesãos pedreiros como o próprio Jácome
atuantes nas obras aqui mencionadas como exemplo. A própria ação
operacional propiciava inúmeras trocas de conhecimentos técnicos pertinentes
às várias modalidades edificativas, morfologia e uso das construções e isso se
convertia numa ampla vantagem para o arquiteto militar, pois tal condição dava
ao mestre-pedreiro a capacidade de antever a obra a ser edificada.
Em segundo lugar, deve ser salientado que a carreira castrense de
Jácome era ainda fruto, entre outros fatores, do polimorfismo e
multifuncionalidade inerente aos artesões mecânicos, sendo produto da busca
pessoal por ocupar lugares de inserção e ascensão social empreendida por
esses indivíduos das camadas subalternas.
Por fim, vale dizer que o paradigma organizacional militar também se
aplicava ao plano da funcionalidade, nominalmente: o modelo administrativo
das organizações corporativas (confrarias de ofício); o ordenamento
hierárquico-funcional; as formas de legitimação e exercício do poder no âmbito
263
Ver: BARROS, Sandra Augusta leão. A presença dos pátios, largos e adros de igreja na
paisagem do grande Recife. Revista de Urbanismo N°13, noviembre 2005. Universidad de
Chile. Faculdad de Arquitetura y Urbanismo Departamento de Urbanismo. Disponível:
http://revistaurbanismo.uchile.
104
da funções mecânicas (fiscalização, autorização ou embargo de obras); a
normatização e o estabelecimento de critérios de ascensão nas várias
categorias operacionais; o estabelecimento de pré-requisitos à concessão de
títulos, patentes, honrarias e postos hierárquicos (direta ou indiretamente
vinculados às atividades artesanais); a regulamentação das condutas pessoais
no âmbito do exercício profissional; a oficialização da dinâmica comemorativa
(festiva e ritualística) e a disposição dos indivíduos nos eventos festivos
segundo o grau de distinção individual; aspectos dos quais come se
favoreceu imensamente, pois como ninguém transitou nos lugares de ascensão
e distinção social e exerceu o poder de enunciação nas artes da construção.
Em contrapartida, se pode vislumbrar que, para além do ordenamento
militar, do panoptismo, havia certo grau de autonomia no uso social e lúdico
das edificações, que em meio às marchas cadentes, estandartes, salvas de
canhões, missas, rezas, ladainhas e badalos de sinos, os ambientes edificados
da vila urbana recifense propiciavam aos negros, indígenas e mestiços
espaços laicos, adequados aos ajuntamentos oficiais (regulamentados) e extra-
oficiais (cotidianos). E se pode pensar que o mesmo representava ou
possibilitava possíveis re-elaborações da cultura ocidental que se pretendia
“universal”, a ordem que se pretendia instituir de forma „vertical‟ e „imposta‟; ao
discurso de legitimidade étnica e cultural dos brancos. Instituía-se, assim, no
rastro das atividades construtivas de mulatos com Jácome um duelo contínuo e
cotidiano, cio-político e alegórico; uma re-elaboração incisiva das artes
edficativas e da sociabilidade a elas vinculadas. No bojo dessas ações, um
ambíguo re-ordenamento colonial lenta e silenciosamente tomava forma,
mesmo que isso não significasse ruptura plena, que os artífices-militares
mulatos eram também agentes intermediários, interativos e perspicazes que
agiam no vácuo do discurso da ordem citadina em beneficio dos seus iguais.
Tudo isso estava implícito numa simples construção de templo, como aqueles
personificados pelo mestre mestiço Manoel Ferreira Jácome. Análise que pode
também ser estendida a tantos outros pares, não sendo possível desconsiderar
a associação, ou mesmo a mútua influência, das ações individuais nos
diferentes campos operacionais. Tudo isso induz à percepção de como a
produção material da cultura da alçada dos engenheiros arquitetos e
pedreiros esteve perfeitamente inserida tanto nas perspectivas de
105
ordenamento, administração e controle social setecentista (no âmbito da urbe e
da capitania), como também contribuía para o desenvolvimento de diversas
ações paralelas de resistência a esse mesmo planejamento. Sobretudo se for
considerada a lógica de funcionamento associativo inerente à engrenagem
sócio-funcional dos artífices nas confrarias, por meio das quais a produção
cultural assumiu, em Recife, um caráter ao mesmo tempo militar e lúdico.
2.4) Mãos mestiças X Formas mistas:
Segue-se, a partir de agora, uma pista, que remete a pensar as
possíveis contribuições mestiças para a produção arquitetônica das regiões
portuárias ultramarinas das Capitanias do Norte do Brasil, diz respeito à idéia
de que:
[...] as limitações econômicas desses locais não permitiram
chamar arquitetos de fora, nem imitar com rigor as obras dos
centros mais ricos. Embora na aparência haja certa
uniformidade de solução, uma análise mais profunda revela,
aqui e ali, regionalismos baseados principalmente na seleção
dos materiais de construção, em soluções ditadas pelo clima.
264
[grifos nossos]
Mas tomar os fatores climáticos como referenciais de criação, o que,
aliás, também postula Menezes,
265
parece circunscrever a própria criatividade
dos artífices (diversos em termos étnicos como exemplifica o caso Jácome),
dentro de uma aura de passividade quase que absoluta, quando, na verdade,
tais regionalismos‟ que, no caso de Recife, se deviam aos intercâmbios entre
os estrangeiros que seguiram as rotas comerciais com o contingente
predominante e à ação corporativa dos mestiços naquela sociedade mercantil
e „globalizada‟, e da busca, intencional ou inevitável, desses indivíduos pelo
que se pode chamar de „fuga estética„. O que significa dizer que tais variações
encontrariam outras possibilidades de interpretação e de sentido construtivo se
fossem visualizadas como possíveis intervenções promovidas pelos operários.
De modo que esses dados, aparentemente pouco relevantes, têm muito a dizer
no que tange à própria origem étnica e ao percurso insertivo e funcional de
Jácome, que suas atuações em obras tão vultosas obras, sempre lembradas
264
RODRIGUES, 1986, p. 64/66.
265
MENEZES, 1984, p. 32.
106
pela singularidade estética, deixam entrever a ótica pessoal com que ele se
aplicava à arte da construção. Uma vez confirmada sua condição de mulato,
têm-se a possibilidade de se problematizar a real natureza das ditas
soluções ditadas pelo clima‟. Isso alarga o horizonte de possibilidades
interpretativas para o âmbito das ressignificações culturais e implica também a
identificação de certos equívocos em análises consolidadas no meio
acadêmico. Sobretudo no que tange à idéia de que a feitura das obras estivera
pautada unicamente no caráter morfológico, pelo qual, aliás, tais monumentos
são costumeiramente descritos.
A identificação de possíveis releituras na obra jacominiana naturalmente
conflita com o discurso estético-morfológico que infere, equivocadamente, a
idéia de ter ele carregado a gene portuguesa e reproduzido uma herança
estilística puramente européia.
266
Ao se ignorar as identidades étnica e cultural
desse operário, fica também incompreensível seu modo mestiço de pensar,
fazer e vivenciar a cultura colonial da alçada dos mestres-pedreiros, arquitetos
e engenheiros-militares intitulados, a guisa de enquadramento estilístico,
“artistas barrocos”. Curiosamente, percebe-se que mesmo ignorando a
presença e ótica mestiças, alguns desdobramentos analíticos chegam mesmo
a reforçar as inquietações e argumentos aqui apresentados. Como ocorre no
trecho a seguir:
A arquitetura não é, senão, parte de um todo pensamento
artístico e como tal refletindo nos edifícios o pensar e agir dos
artistas, enfeixando na obra realizada as suas maneiras de
encarar as necessidades estéticas de sua civilização. Em cada
obra executada, no correr do tempo, as idéia estéticas do
período em que elas foram criadas e, diante duma inovação
surgida, determinado grupo social, materializado em país,
região, estado ou mesmo cidade.
267
[grifos nossos]
Assim, o trânsito hierárquico dentro das organizações funcionais, sendo
uma expressão da própria locomoção social, tendia a levar o artesão e também
imprimir nas obras as marcas implícitas ou explícitas da conquista mulata. Essa
influência fica mais viável ainda quando se percebe a natureza pouco
acadêmica e a dinâmica eminentemente prática da transmissão e do
aprendizado funcional, visto que:
266
Ibidem, p. 63.
267
Ibidem, p. 28.
107
Nem os portugueses nem os brasileiros do passado foram
dados a escrever sobre sua arquitetura. Não há um único
tratado de construção pública antes de 1800. Salvo no ramo
da engenharia militar e viajantes e autores de diários, sempre
que se interessam de preferência por outros assuntos
268
.
[grifos nossos]
Desta maneira, era através dos mestres e ou mercadores que se dava
comprar e circulação dos saberes codificados, obras técnicas e manuais, assim
como os modelos e rascunhos da arte pictórica,
269
cuja importação não foi
proibida pela Ordem Régia de maio de 1747, nem estiveram inclusos nas listas
de confisco às publicações proibidas no território colonial. Muito embora a
produção literária que interessava ou era endereçada aos artífices estivesse
sempre passível de fiscalização pelas autoridades camarinhas e do alto clero.
Estes, com base no Concílio tridentino e aqueles norteados pela
regulamentação das Ordenações Filipinas. Isso caracteriza o aprendizado
como marcadamente técnico, mas processado pela interpessoalidade da rotina
trabalhista do cotidiano
270
; muito mais centrado na prática que na teoria como
o era desde as velhas corporações de ofício da Europa. Portanto, é bastante
provável que isso tenha colaborado para o exercício de influências advindas
das próprias re-elaborações dos artífices e nutridas por seus horizontes
culturais.
271
Em geral, diante desses elementos, estranhos à tradição construtiva
lusitana, costuma-se recorrer a explicações que visam buscar nas tendências
européias outro amálgama, desconsiderando o próprio universo social da
produção. Era esse pensamento que norteava máximas com a que diz que
268
SMITH, 1979, p. 287.
269
LEVY, Hannah. A propósito de três teorias sobre o barroco. Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: SPHAN, 1941, n. 5, p. 259-284. Disponível:
<http://www.iphan.gov.br/; Ibidem, Modelos europeus na pintura colonial. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro: SPHAN, 1944, n. 8, p. 7-66.
Disponível : http://www.Iphan.gov.br/
270
Embora as confrarias tivessem, no Recife colonial, o papel de congregar indivíduos de um
mesmo ofício ou de atividades correlacionadas e afins não se destinavam como as antigas
corporações de oficio européias, ao ensino dessas atividades, uma vez que o aprendizado se
dava interpessoalmente do mestre ao seu aluno/escravo, mas a regulamentação da atuação
dos profissionais, com base num código de ética (um estatuto) que regia desde a entrada nos
quadros da associação, procedimentos pertinentes ao trabalho propriamente dito, questões
devocionais e demais assuntos administrativos.
271
A configuração dos ofícios mecânicos da edificação como saberes técnico-operacionais e
sua transmissão de modo interpessoal (não institucional) conferia aos mestres-artífices certa
margem de liberdade funcional, além de certo poder enunciativo e interdiscursivo em relação
aos referenciais setecentistas que vigoravam no espaço urbano mercantil e portuário da vila
recifense colonial.
108
“[...] o Recife florescera numa estranha mistura de hábitos construtivos da
Europa nórdica e meridional”.
272
Uma análise, senão equivocada, mas
claramente excludente, no que tange às contribuições africana, indígena e
mestiça que bem poderiam ser os impulsos do mulato Jácome, apagados à
sombra da sua fama. Embora reconhecendo a validade dessas análises,
deve-se salientar que elas muitas vezes esbarraram para a infelicidade
desses indivíduos nos paradigmas de outrora, perante os quais a escassez
de fontes, tornava-se sinônimo de impossibilidade ou de generalização. Razão
pela qual se disse que uma análise criteriosa do Barroco “[...] em Pernambuco
é mais difícil do que na Bahia, onde dispomos de tantos intermediários e onde
ocorreu uma evolução contínua, captar a passagem do barroco para o
rococó”.
273
Mas a impossibilidade de uma análise mais criteriosa parece não advir
apenas dessa escassez documental, mas, e principalmente da
desconsideração dos sujeitos que compunham o cenário e a dinâmica
operacional, assim como da desconsideração de suas identidades mais
especificamente. Pois é justamente nela que esbarra a história desse pedreiro
mulato, e de tantos pares seus, “anônimos” desconhecidos. É o que expressa o
trecho abaixo:
Ficaríamos decepcionados se conhecêssemos os detalhes de
suas biografias; da mesma forma que seus ancestrais, esses
artistas eram operários, artesãos, que penavam mais em
formas do que em idéias e sua vida se confundia com a obra,
aliás, inteiramente submetida aos desejos da igreja onde quase
não podiam colocar elementos de ordem pessoal.
274
Contrariando essa idéia e em defesa da memória desses indivíduos, se
pode dizer que somente a restituição de suas identidades, étnica e cultural, que
se poderá devolver-lhes a condição de agentes ativos no processo de mudança
por que passou a cultura colonial no Recife entre 1701 e 1789, mostrando-os
como sujeitos das narrativas que abordam seus feitos. Uma proposta válida
não apenas para arquitetura campo no qual [...] os mulatos brasileiros
colaboraram enormemente para o desenvolvimento artístico do Brasil; [...
que...] foram eles, tanto quanto os brancos, que lhe imprimiram o seu caráter
272
MENEZES, 1984, p. 265.
273
BAZIN, 1983, v. 1, p. 315.
274
Ibidem, p. 47.
109
autóctone
275
, mas para todo o conjunto de atividades do Barroco. Pois, tal
como nessa área, nas áreas adjacentes, complementares e nas demais artes
menores, as influências são costumeiramente reconhecidas, porém quase
sempre atribuídas a fatores como a „regionalidade climática‟ e à
„(in)disponibilidade de matéria-prima‟:
A eclosão do barroco no Nordeste [Norte setecentista], que se
traduza por um desenvolvimento que pouco a pouco desintegra
a estrutura monumental. Foi facilitado nessa região pela
existência de material adequado á escultura.
276
[grifo nosso]
O caso Jácome, contudo, parece demonstrar que, para avivamento da
memória dessa gente, desses agentes culturais e de suas contribuições
mestiças, é de suma importância partir-se da análise identitária, nominal e
cultural, pois isso ajuda a compreender melhor como residia no caráter
sociológico e não na diversidade dos recursos materiais a causa da variação
que se observa no Barroco local e regional. Seja tal análise, talvez, mais eficaz
em demonstrar como [...] durante o período colonial, as formas de construir
importadas de Portugal vieram a mesclar-se com métodos indígenas e
africanos, surgindo daí grande variedade de formas edificativas”.
277
Pois ainda
que essa hibridez tenha sido ressaltada, o desconhecimento das interações de
que resultava fez com que fosse admitida em caráter de exceção, enfatizando-
se singularmente este ou aquele artífice e levando a crer que: “[...] exceto em
Minas [Gerais], os próprios artistas não se preocupavam tanto em inovar
quanto em seguir uma linha de trabalho,
278
sendo suas obras meras cópias do
Barroco matriz, o lusitano.
Note-se, contudo, a hipotética condição de passividade em que foram
lançados pedreiros recifenses como Jácome e tantos outros oficiais de outras
artes, ao que é mister discordar-se. É nesse sentido que merecem atenção as
palavras de José Luiz da Motta Menezes, ao sugerir:
Ao projetar a Igreja de São Pedro dos Clérigos em 1728,
Manoel Ferreira Jácome continuou mantendo aquela diretriz de
monumentalidade assinaladas e que no Recife, já se tinha
fixado com tanto vigor nas igrejas do Convento do Carmo da
275
Ibidem, p. 46-47.
276
Ibidem, p. 189.
277
Ibidem, p. 54.
278
Ibidem, p. 47.
110
Madre de Deus e de Nossa Senhora do O, hoje Espírito
Santo.
279
Mas com a pujança edificativa por ele salientada, “[...] perde-se a
sobriedade dos primeiros tempos [... ao passo que], mantêm-se as
características da arquitetura [„barroca‟] que [...] chega a insinuar [...] uma
verdadeira Escola de construtores”,
280
capaz de insinuar características e
elaborações pessoais e grupais. Se for considerado que os obreiros
setecentistas não eram compostos por clérigos-artífices,
281
mas por
trabalhadores leigos, mestiços na grande maioria, ver-se-á como esses
homens foram capazes de co-relacionar seus sonhos de ascensão pessoal,
seus sonhos de grandeza com a premissa de monumentalidade inerente aos
projetos que riscavam para seus ricos contratantes, em meio a relações
comerciais e clientelares. Atmosfera de flexibilidade que também fluía dos
gostos, sonhos e da ostentação dos empreendedores em tempos mercantis.
É partindo desses indícios, que se pode perguntar: poderia um indivíduo
em cuja trajetória 'pesavam' os caracteres da mestiçagem étnica e da hibridez
cultural, “reproduzir” ou “copiar” linear e fielmente um dado padrão estético-
estilístico, não obstante às discussões e argumentos levantados e que
embasam a presente pesquisa? As respostas nos parecem mais óbvias que
indutivas, pois, as fugas estilísticas ante a própria condição diferenciada de
mestiço e à predominância corporativa dos pares no ambiente funcional das
confrarias de ofício suscitam essa certeza. E se, por um lado, a mencionada
formação técnica no saber edificativo bélico, de engenheiro e arquiteto,
teoricamente lhe conferiam o compromisso com a busca pela linearidade
estética, seus horizontes étnico e cultural o impediam de operar tão
mimeticamente; de produzir obras mais ou menos à altura das portuguesas: lhe
conferiam na verdade um princípio de fuga, um princípio de luta nesses
campos técnicos, funcionais e de enunciação dos saberes estético-
estilísticos.
282
Ao contrário do que outros autores acreditam, tal condição
279
MENEZES, 1984, p. 9.
280
Idem, op. cit., Arquitetura dos conventos franciscanos no Nordeste. In: Revista do IHGPE, v.
LVII, p. 282.
281
Ao contrário do que ocorria nos tempos - marcados pela simplicidade edificativa de
começos da colonização.
282
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2004,
p. 11-36.
111
impelia-o a uma postura de impassividade e de não neutralidade cultural,
manifesta nos monumentos, feitos à luz dos modelos metropolitanos, mas fruto
de uma simbiose e de uma redefinição simbólica amparadas no ambiente de
tensões e de lutas contra as exclusões sociais de que eram vítimas os mulatos
recifenses. Trata-se de um hibridismo curiosamente submetido ao apagamento
étnico operado pelas narrativas históricas, que parecem desconhecer
[...] o lugar muito especial que a arquitetura luso-brasileira ocupa na
arte ocidental dos tempos modernos ainda não foi devidamente
reconhecido. Tomando impulso, fundamentada em tradições
autóctones, ela criou formas originais, pouco relacionadas com as
dos outros paises europeus.
283
Esse „lugar muito especial‟ consistiria, talvez, numa extensão do lugar
especial granjeado pelos próprios operários mestiços da sociedade
setecentista. Lugar de fronteira étnica e hibridização cultural em que Jácome, a
exemplo de outros mestres mulatos, habitou. Mestres como o escultor,
entalhador e urbanista Valentin da Fonseca e Silva (1745 - 1813) no eixo Minas
Gerais - Rio de Janeiro; o arquiteto, Padre Jesuíno do Monte Carmelo, cujo
verdadeiro nome era Jesuíno Francisco de Paula Gusmão (1764, 1819) e
que também era pintor cenógrafo, arquiteto, escultor, encarnador, dourador,
entalhador, mestre em torêutica, músico e poeta e o arquiteto e escultor
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730- 1814). Todas essas
contribuições levam a refletir não apenas a pretensa ausência de planejamento
urbano luso-colonial, a dinâmica que se opunha à semeadora postura colonial-
edificativa espanhola, mas também o papel das camadas subalternas na
organização civilizatória, sobretudo nos entrepostos coloniais e suas cercanias.
A título de exemplo a escolha de Recife para sede da capitania em 1710 ainda
circunscrevia as ações operacionais de indivíduos como Jácome na tradição
portuguesa” de ocupação, pois tal escolha de que decorreram as ações
operacionais de urbanização não se configurou como um ato definido da
vontade humana”, não foi “fruto do capricho” social nem de uma político difusa.
Ao contrário, a posição costeira”, a configuração ribeirinha‟, as entradas “na
praça comercial”, apenas instituíam um domínio espacial que substituía a
„visibilidade aérea‟ propiciada pela „localização altiplana‟ pela defesa fortificada
283
BAZIN, 1983, v. 1, p 46.
112
e contingencial mais condizentes com o cosmopolitismo mercantil de que
Jácome logrou os modelos edificativos europeus.
284
De modo que a Vila do Recife em que viveu Jácome (assim como
Salvador e Rio de Janeiro) circunscrevia-se numa espécie de utopismo
possível: alcançou primazia política (condição de sede) em virtude da situação
costeira e „peninsularidade ribeirinha; fazia a captação (canalização) de
provisões das regiões agrícolas mais interioranas favorecidas; priorizou a
construção de pontes de pedra(e „não de madeira‟); apresentava uma infra-
estrutura e urbanização com edificações envidraçadas; assistiu a um intenso
desenvolvimento das atividades mecânicas, fabris e demais ofícios de utilidade
pública; deteve grande aparato funcional prontificado às funções de reparo e
concerto; possibilitou a inserção trabalhista para os sacerdotes, um
cosmopolitismo proeminente e ações de mutualismo; e teve sua dinâmica
narrada através das crônicas clericais. Dinâmica urbanística em que viveu e
atuou o mulato Jácome. Tudo isso, é claro, aditivado por aquele clientelismo
social típico das sociedades escravistas do Antigo Regime,
285
pois foi assim
que se desenvolveu a urbe que as mãos mestiças de Jácome ajudaram a
edificar e hibridizar morfologicamente. Pois se, por um lado, “[...] planejar a
cidade era ao mesmo tempo pensar a própria pluralidade do real e dar
efetividade a este pensamento plural[...]”,
286
por outro, operar nesse
planejamento, na qualidade de agente mestiço, era também refletir como, até
que ponto e de que forma estética e simbólica a pluralidade étnica estava
representada nos empreendimentos urbanos; ou, do contrário, pensar a
margem de sociabilidade, as ações de mutualismo e os conteúdos simbólicos
que cada edificação podia carregar; era pensar como o uso racional do espaço,
sendo produto da ambigüidade existente entre o controle e as possibilidades de
liberdade inerente infra-estrutura das vias urbanas, podia favorecer as
camadas subalternas; era, enfim, operar como mentor da ordem carregando
nas veias e na identidade cultural mestiça o gene exemplo de Valentin,
Carmelo, Aleijadinho e tantos outros) que impulsionava à “desordem”,
284
Ver: HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 93-
118.
285
Ver MOURE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2002, 53-68.
286
CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: v. 1. Artes de Fazer. Petrópolis - RJ:
Vozes, v. 1, 1994, p. 172.
113
Curioso, no entanto, é perceber que esse trânsito social ascendente
parece não ter feito de Jácome um homem rico, mesmo havendo sido uma
figura altamente renomada e importante para a produção material da cultura
local e pernambucana. O que não significa, no entanto, que a mobilidade por
ele atingida e o prestígio dos cargos por ele ocupados não lhe tenham legado
uma fatia no re-ordenamento social e político por que passou aquela
sociedade. Isso porque posses e status nem sempre eram sinônimos naquela
época mercantil, nem mesmo quando o capital novo índice de riqueza era
constantemente empregado na aquisição de títulos honoríficos, postos e
patentes hierárquicas. De modo que a condição final de mestre dera-lhe
relativa projeção dentro da hierarquia administrativa de sua categoria. E a
prova disto é que tivera ele como parceiro o tal Paulo Luis Fiesco,
possivelmente seu aprendiz e auxiliar. Não obstante a essa lógica clientelar, o
patamar de mestre, grande herança recebida do capitão e engenheiro Matos,
foi assim deixada ao mestre Fiesco, o qual, após a morte de Jácome, se
encontrava empreendendo algumas obras na praça do Recife setecentista. E
se ali as portas lhe foram abertas pelo instrutor lusitano o ex-discípulo mulato
não as fechou a Fiesco, embora, ao que tudo indica, esse último não tenha
ocupado cargos administrativos nas confrarias ou na administração local, como
repetidamente ocorreu como Matos e com o mestre Jácome. Percebe-se,
assim, como houve no ofício de pedreiro um processo de substituição natural
dos veteranos geralmente „postmortem‟ , pelos seus aprendizes, herdeiros
de seu renome e clientela.
Não obstante à conjuntura social ilusoriamente harmônica acima
descrita, coube às artes desempenhar, a partir das organizações associativo-
funcionais (confrarias) o distinto papel de requalificar os indivíduos
287
ao
menos num plano alegórico , transpondo para o âmbito das vivências sociais
(da sociabilidade) a ordem ilusionista (páz negociada) implícita na tensão social
em que eram produzidas as criações artísticas e artesanais. No sentido
inverso, ao assumir esse papel, um tenso jogo das negociações e conflitos que
marcava a sociabilidade colonial
288
impactou sobre as expressões artísticas, o
287
SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão. São Paulo: Nacional, 1976, p. 143-144.
288
SILVA, Eduardo, REIS, João José. Negociação e Conflito: resistência negra no Brasil
escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 205, p. 12-21.
114
que significa dizer que também o ilusionismo tornou-se uma característica
natural das produções artísticas em geral, cuja composição do conjunto (os
templos), advinha de expressões diversas e distintas, mas que se
coadunavam, se imbricavam, se misturavam e se „harmonizavam‟ sem perder a
propriedade de si, sem fugir (como os próprios artífices mestiços) à natureza
identitária. De modo que sob a perspectiva ilusionista a arquitetura (ofício de
Jácome) tornou-se gradativamente mais dobrável, mais plástica, mais pictórica,
que no Barroco “[...] as artes costumavam trocar de papéis ou, melhor, cada
uma delas movia-se em direção a pintura”,
289
no sentido de forjar ambientes
ilusórios e ilusoriamente harmônicos.
É essa integração que se observa no projeto de São Pedro dos Clérigos,
onde o arquiteto mulato visou driblar por meio da geometria aplicada as
irregularidades do terreno em que se construiu a Igreja. Para isso prepusera
um “risco” (planta) externamente retangular (inerente ao espaço disponível),
mas, paradoxalmente, formatado em seu interior com uma nave
duodecagonal”,
290
ou elíptica (fig. 2.10), o qual, posteriormente seria
suplementada por um forro abobodado”,
291
semicircular (fig. 2.11) e ncavo
(obra de carpintaria). Não obstante ao aspecto da integração das ltiplas
instâncias artísticas, pode-se supor que tais características formais não se
deveram apenas ao fator da configuração estética e visual; traduzindo, antes,
um recurso comum, no sentido de propiciar uma melhor iluminação e, ao que
tudo indica, um planejamento minucioso das funções acústicas daquele
ambiente que viria a sediar, na segunda metade dos setecentos, as atividades
dos irmãos cecilianos (músicos) da localidade. Ademais, é sabido que tais
paradigmas se configuravam como elementos da gama de saberes manifestos
pelos grandes arquitetos e engenheiros do Barroco do Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Bahia e Pernambuco. O mestiço Jácome não foi uma exceção.
O emprego desse recurso revela, ainda, como ciências como a
arquitetura e a engenharia, edificativas por excelência, também se
correlacionavam com a arte musical, suscitando estudos no sentido de se
compreender a, os reflexos dessa integração artística sobre a interação
289
WOLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. o Paulo: Perspectiva, 1984, p. 39-52;
KITSON, Michael. O Barroco. São Paulo: Expansão Editorial, 1979, p. 35.
290
BAZIN, 1983, v. 1, p. 161-162.
291
MENZES, 1984, p. 16.
115
existente entre artífices desses campos de produção cultural, tão distintos entre
si, para as práticas corporativas e para a mestiçagem cultural.
Fig. 2.10: (ao lado) Planta (“Risco”) da Igreja de São Pedro dos Clérigos,
proposta por Jácome entre 1718-1725, em que se percebe (assinalada em
vermelho) a nave “duodecagonal” ou elíptica que favorece as atividades
musicais (acústicas). In: MENEZES, 1984, p. 7.
Fig. 2.11: (a cima) Vista parcial da “nave” elípitica e do “forro” côncavo
ou “abobodado” da Igreja de São Pedro dos Clérigos do Recife, cujas
formas propiciam um ambinte favorável à altas perfórmances das atividades
e ou propriedades acústicas. Foto: José Neitlon Pereira, 2007.
Sobretudo porque o planejamento das funções acústicas fez parte do
próprio processo de difusão musical pernambucano, lembrava Flavio Guerra:
[...] É claro que o canto gregoriano, o organum, dominaria por
muito tempo ainda nos conventos, e que o clero secular,
radicado nas capitanias nordestinas, [...] quando se
subordinaram os textos religiosos à exaltação melódio-
dramática, recusaria a inovação da monofonia, e continuaria
exigindo a construção das igrejas com as naves traçadas e
canalizadas acusticamente para a musicalidade polífona vocal
116
das antigas capelas, tanto portuguesas como centro-
européias.
292
Se for relembrado o profundo conhecimento dos mestiços e indígenas
acerca das propriedades de cada matéria-prima (como a madeira, as pedra e
outros artigos abundantes em Pernambuco e suas anexas), ver-se-á que os
artesãos provinientes desses troncos étnicos, devem ter compreendido, no
decorrer do seu processo de formação, que:
[...] a boa acústica de um ambiente depende de vários fatores
como: a forma, o tamanho, a boa qualidade dos materiais
utilizados, tanto no piso, como nas paredes e tetos, a
distribuição dos assentos destinados ao público, etc. [Que...]
quando se desejar preparar ou adaptar as condições
específicas de um ambiente é necessário agir sobre suas
características arquitetônicas.
293
Outrossim, se for, ainda, considerado que tais saberes foram bastante
difundidos e intensamente utilizados na colônia no tempo em que se erigiu a
Igreja de São Pedro dos Clérigos, tanto no eixo Região das Minas
294
/Rio de
Janeiro, quanto nas Capitanias do Norte do Brasil, se poderá, mesmo, pensar
que Jácome tenha absorvido e empregado tais saberes na referida obra. Nesse
sentido, a nave da mencionada igreja pode, também, ser considerada um
exemplo desse tipo de planejamento, para o qual, aliás, corroboraram
instâncias artísticas, como a carpintaria e a pintura, que a integração das
artes era afinal uma das características do barroco. Arquitetura X pintura X
música: correlação que enseja os capítulos seguintes.
292
GUERRA, 1984, p.251.
293
FERNANDES, apud BOTTAZZINI, Marcelo Carvalho. Igrejas setecentistas mineiras: a
influência das características arquitetônicas na qualidade acústica. Campinas: UEC, 2007, p.
43. (Tese de doutorado) Disponível em:
http://libdigi.unicamp.br/document/?code=vtls000414688
294
Ibidem, 2007, p. 37-100; Cf. BOTTAZZINI, Marcelo Carvalho & BERTOLI, Stelamaris Rolla.
Acústica de igrejas barrocas, arquitetura que faz a diferença. Anais do VI Congreso
Iberoamericano de Acústica. Buenos Aires: FIA, noviembre de 2008. Disponível: www.sea-
acustica.es/Buenos_Aires_2008/a-121.pdf
1.
117
CAPÍTULO III
3) JOÃO DE DEUS E SEPÚLVEDA: do estigma da cor às cores do estigma.
João de Deus e Sepúlveda, um caso emblemático entre os grandes
artífices da produção cultural barroca recifense e pernambucana do culo
XVIII. Segundo Fernando Pio: “foi, sem contestação, o maior pintor do seu
século”,
295
sendo essa apenas uma das atividades que conciliou e
correlacionou na sua longa carreira e vasta obra.
Muito embora se fale aqui do homem letrado, lembrado para a emérita
„cadeira número 36, da Academia de Artes e Letras de Pernambuco‟, sua
identidade representa muito mais que um nome destacado na pintura barroca
setecentista, trata-se de um verdadeiro ícone na busca por inserção e
ascensão na sociedade escravocrata e urbana dos setecentos pernambucano;
do protagonista de um percurso eximiamente completado. Enfim, seu êxito
profissional é fator que o diferencia dentre os muitos miscigenados que
trilharam o caminho artístico-operacional da cultura colonial: inserindo-se num
mercado disputado e exigente; especializando-se e, por fim, contribuindo para
que tivessem esses indivíduos, enquanto grupo étnico, dominado todos os
campos da produção barroca local no citado período. Ainda mais pelo fato de
que nessa época:
Não foi à pintura o instrumento de comunicação usado na
catequese, mas sim a escultura. Através desta, do vestimento
colorido das estátuas de santos e do trabalho de encarnação
de imagens é que tem início o processo de implantação da
arte pictórica no Brasil [...].
296
De fato, ainda que ele tenha atuado num contexto deveras oposto ao
das missões jesuíticas, ao qual se refere o autor citado, corroboram para a
validade dessa afirmação em âmbito nortista a herança holandesa sob a qual
se desenvolveu a pintura em suas motivações leigas, profanas ou cotidianas:
paisagísticas, retratistas, cotidianas, factualistas e cívicas. Influências
295
PIO Fernando. Dicionário de Artistas e Artífices dos Sécs. XVIII e XIX em Pernambuco.
Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1959, v. 1, p. 75.
296
D'ARAÚJO, Antonio Luiz. Arte no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Revan, 2000, p. 87.
118
igualmente vindas da Europa que se juntaram, no espaço colonial, às
motivações tridentinas,
297
válidas no tempo em que atuou Sepúlveda.
Outro fator denunciante das motivações laicas da obra sepulvediana é a
quase ausência de pintores-clérigos atuando na capitania de Pernambuco
naquela época
298
e, portanto, da influência dos mesmos nos rumos da
categoria funcional dos pintores e da instância da pintura propriamente dita
299
.
Mas se no começo da colonização, nas regiões de missionação:
[...] as atividades ligadas à pintura eram muito limitadas,
abrangendo apenas aquelas que se desenvolveram no interior
das igrejas conventos e colégios jesuíticos e, assim sofrendo
estrito controle quanto aos temas abordados [pois...] havia
cuidado por parte da igreja para que os quadros religiosos, os
únicos permitidos pelos bispos portugueses, não contivessem
algo que favorecesse heresias luteranas, alvo de feroz
perseguição das autoridades da inquisição.
300
A conjuntura do XVIII trouxe à cena novos paradigmas para a cultura:
novos discursos em torno da estética, do artífice propriamente dito, novas
propostas, enunciações e ou sentidos simbólicos, novas finalidades à arte
pictórica, enfim. O que significa dizer: o papel identitário-classista mercantil.
Nominalmente: os incrementos e contribuições indígenas e africanas, assim
como elaborações de natureza sócio-classista, próprias da era mercantil
(legitimação). Esse último fator é deveras relevante, pois corresponde a um dos
elementos-chave na sua trajetória, que possibilitava a relação de mecenato
para com seus contratantes. Pois se dentro da mística religiosa e eurocêntrica
luso-colonial a pintura estava enquadrada no rol das chamadas “artes
menores”, tinha já, no século XVIII, em cidades portuárias como Recife: “[...]
como ”público” cultural [...] uma parte do clero, nobres e funcionários da coroa,
297
Os pressupostos tridentinos vigoraram por todo o XVIII e foram ratificadas pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, promulgadas durante o Sínodo de 1707 e
reeditadas em 1857 (Cf. VIDE, 2007). Os decretos tridentinos ainda continuaram válidos, em
vários aspectos até o Concílio Vaticano II, na década de 1960, e toda a pintura religiosa
católica feita entre fins do século XVI e a década de 1960 devia obedecer a decretos e tratados
tridentinos, explica a professora Dra Carla Mary da Silva Oliveira.
298
A pintura em Pernambuco foi difundida por artífices leigos da geração setecentista que
ocuparam o mercado da produção cultural, até o início do século XVII campo das atividades
clericais artífices-santeiros e imaginários, em cujo ofício, o papel da pintura se resumia ao
encarnamento de imagens sacras , sendo posteriormente sucedidas por artistas da missão
holandesa, os quais foram os referenciais dos mestres setecentistas. (cf. LEITE, 1953;
MARTINS, 1974; PIO, 1959).
299
Muito embora a classe clerical estivesse sempre atenta a laicismos, pesava muito a opinião
da comunidade laica, ou seja: dos irmãos terceiros que custeavam muitas das obras.
300
D‟ARAÚJO, 2000, p. 87.
119
e uma parcela restrita de comerciantes ligados ao comércio de exportação e
importação”.
301
Um público relativamente reduzido, mas que era um forte
suporte financeiro, pois além de enriquecido, se revelava diversificado no que
diz respeito tanto no que diz respeito às suas expectativas estético-estilisticas,
quanto às representações simbólicas imputadas às obras. Público constituído
por classes que se digladiavam pelo poder administrativo e que lançaram mão
desse eficaz instrumento de representação do poder simbólico que eram as
artes para alcançar afirmação nos embates inter-locais.
Isso significa dizer que os investimentos feitos no campo da pintura ao
tempo em que atuou o mulato estavam inseridos num tenso jogo de lutas pelo
poder e pela construção das identidades, étnica e sócio-econômicas. Confronto
no qual restava aos artífices “mais peritos”, como o caso aqui tratado, as
benesses advindas dos vínculos apropriados e uma relativa, mas crescente
liberdade de promover possíveis interações inerentes ao próprio universo
cultural (híbrido muitas vezes) e às manobras estético-simbólicas e visuais do
artista, que esse amparo lhes possibilitava.
Tendo nos mascates uma demanda laica e comumente ciosa de auto-
legitimação nas encomendas feitas ao pintor, visavam muitas vezes à
afirmação política e demonstração do poder e riqueza individual ou da classe
mercantil. Daí a „missão‟ de que suas obras expressassem o requinte, a
ostentação comum às decorações setecentistas. De modo que se pode
concluir que a pintura dessa época era um campo inerente à atuação leiga,
cujos trabalhos podiam sempre transitar entre as motivações sócio-classistas
(auto-retratos, etc.) e devocionais (sacras), como se nas suas várias
realizações.
Assim, invocar a trajetória do mestre Sepúlveda atende, primeiramente,
à pretensão de captar as influências negra, indígena e mestiça no barroco
recifense colonial, e, para essa finalidade, é mister se buscar nos seus
trabalhos elementos que remontem à sua herança étnica, no que, diga-se de
passagem, esse artista revelou-se uma ótima fonte para esse tipo de estudo.
Sua biografia, portanto, intenta reclamar a seu favor e de seus pares uma
influência mestiça que permanece oculta, em face dos lamentáveis equívocos
301
D‟ARAUJO, 2000, p. 89.
120
em torno dos registros de empreendimentos, das contratações,
arrematamentos e execução dos trabalhos e de certo negligenciamento das
formas organizacionais nos campos de atuação.
A própria análise da obra desse artífice, toda realizada numa fase em
que gozava de grande reconhecimento, impele à investigação da incógnita que
é seu aprendizado. Estudo que se fará buscando-se fugir aos equívocos
induzidos pela personificação das obras em nome de um único artífice,
geralmente um mascate empreendedor e tutor dos trabalhadores menos
expressivos ou iniciantes que auxiliavam os mestres. Essa fase de formação
profissional emerge quando se compreende o seu aparente „anonimato‟ como
fruto da dinâmica contratual de atuação que estava centrada na hierarquização
dos artífices em redes funcionais, sendo o empreiteiro da obra seu arrematante
e único assinante. Esse dado, porém, foi sempre encarado como atestado de
autoria e se coloca como a causa principal do „apagamento‟ da mão-de-obra
auxiliar. Portanto, a personificação expressa nos registros, muitas vezes o
correspondia à verdade autoral e, por isso, tem inviabilizado o estudo das
influências não européias. Bem exemplificam isso as várias pinturas produzidas
por Sepúlveda no Recife setecentista, estudadas adiante, cuidando-se em
analisar também suas condições de produção ainda sabendo-se do peculiar
caráter individual do ofício de pintor.
Inicialmente cabe salientar que sua atuação mais afamada do artífice
nesse campo explica-se inicialmente pelas conjunturas político-econômica e
social do Recife do XVIII, pois “[...] com a formação econômica e territorial
colonial e com o surgimento das cidades, é que aparecem as primeiras pinturas
significativas feitas no Brasil”,
302
nas quais, muito certamente podem ser
listadas tantas realizações constituintes do seu legado pictórico. E a causa ter
gozado da crescente valorização desse ofício explica-se exatamente no fato de
que nesse período e possivelmente a partir dele os trabalhos de pintura
passaram, cada vez mais, a atingir um público em plena ascensão e movido
por aspirações um tanto „narcísicas‟: os mercadores dos entrepostos coloniais.
A esse blico e ao cosmopolitismo local, é devido o caráter cada vez mais
homocêntrico por vezes alcançado nos trabalhos sepulvedianos, muito embora
302
D‟ARAUJO, 2000, p. 80.
121
isso fosse sempre conciliado como o mais forte e importante paradigma da
cultura barroca: a sacralidade. E ainda esse processo de dessacralização,
vivenciado de perto por João de Deus, tenha se estendido de forma muito
tímida até o início do período imperial, quando a corte investiu pesadamente
nas tendências estilísticas e nos artistas estrangeiros, a fuga ao ideário
religioso foi uma fronteira sempre possível de se transpor e o hibridismo foi
visível.
3.1 Pardos e graves tons: da sombra do anonimato às luzes da
notoriedade.
Do mestiço Sepúlveda, a quem Pereira da Costa classificaria de “[...]
habilíssimo pintor”,
303
pouco se sabe, sobretudo quanto à sua história e
trajetória na juventude, pois “[...] as notícias são vagas a respeito dos trabalhos
desse artista em Pernambuco”.
304
O intento de biografá-lo obriga-nos a
associar os breves registros de suas atividades com a parca e incipiente
bibliografia a ele relacionada.
Entretanto, como era comum ao seu tempo, foi artífice de múltiplas
facetas, pois: “[...] era também músico apreciado na época em que viveu”.
305
Pode-se imaginar que essa instância da cultura imaterial o conectava
diretamente com outros notáveis artífices mestiços pernambucanos desse
ramo de trabalho.
Aliás, sua própria família parece um caso não necessariamente raro de
lar mestiço, unido e projetado social e economicamente em torno de talentos
como a pintura ou a música. Lar em que floresceram notáveis dotados como o
velho mestre, o pai Antônio de Sepúlveda, que “vivia no Recife em 1736, foi
considerado pela Câmara do Senado de Olinda para a pintura „de novo‟ do
retrato de João Fernandes Vieira, por se achar danificado pelos ratos, tendo
cobrado por esse serviço 12$000”.
306
Obra acerca da quais o pintor Vitor
Meireles, autor da idealista obra “A Batalha dos Guararapes” (1874), comentou:
303
COSTA, Francisco A. Pereira da. Anais Pernambucanos. Recife: FUNDARPE, 1982, v. 6,
p. 87.
304
MENEZES, 1984, p. 17.
305
MARTINS, 1974, p. 191.
306
PIO, 1959, p. 67-68.
122
“de nenhum merecimento artístico, são aquelas pinturas; entretanto se
atendermos à sua antiguidade [...]”.
307
Comentários de uma época hostil à era
colonial e à sua cultura, como era o XIX época, amiúde, de subjetivação dos
conceitos de pintor, pintura, e arte
308
, não apenas ignoram o precurssorismo
dos referidos trabalhos, mas também as implicações sociais dessa atuação
recorrente vale salientar como leva a pensar o uso do termo “de novo”.
Termo esse revelador do nível de reconhecimento ao artífice e também dos
seus vínculos junto à administração olindense daquela época, que a obra
circunscrevia-se na construção da memória oficial luso-brasileira. Deve-se
analisar tais críticas partindo-se do pressuposto de que “para se entender um
obra de arte é necessário compreender o meio em que ela nasceu”,
309
razão
pela qual os parâmetros estéticos que dominavam o ideário acadêmico
oitocentista vivenciado por Meireles, podem ser suplementados pelo valor
social (insertivo) simbolizado pelas obras de Antônio de Sepúlveda.
Menos ainda se aplicariam tais críticas às obras do filho e discípulo João
de Deus,
310
“[...] artista por si só, por suas próprias forças, aproveitando as
horas vagas em contínuos exercícios de pintura”.
311
Ou a julgar pelos relatos
elogiosos da época aos trabalhos de suas não menos prendadas irmãs,
Lucinda, Verônica, Thereza e Luciana, todas elas pintoras e naturais da velha
capital pernambucana, Olinda.
312
Atestam a eficácia desse aprendizado, tanto
na pintura como nas artes musicais Couto e outros notáveis do alto clero
recifense, além do refinado e exigente público de apreciadores constituído
pelas elites econômicas setecentistas efetivos participantes das celebrações
em que atuavam. Uma prova de que esse campo das habilidades humanas
possibilitava transpor não apenas as barreiras étnicas e classistas, mas
também o arraigado preconceito de gênero que tão firmado estava nas
sociedades coloniais. Ainda mais se for lembrado que nas estatísticas
populacionais da sede portuária pernambucana, toda a família Sepúlveda,
cotava entre a grande massa de aventureiros imigrantes que deixarem Olinda e
307
Ver: COSTA, 1982, v. VII, p. 375.
308
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 375.
309
DUQUE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 202.
310
Questão discutida mais adiante, num comparativo de obras com igual temática de autoria de
Meireles e Sepúlveda.
311
Ibidem, op. cit., p. 107.
312
COSTA, 1982, v. VI, p. 521-522.
123
somaram-se a outros tantos outros de artífices egressos das cidades próximas
para e que fizeram de Recife sede para suas atuações em todo o território das
Capitanias do Norte do Brasil, o que revela como essa rota migratória foi uma
estratégia comum no século XVIII.
Suas origens, portanto, representam mais um elemento elucidativo, no
intuito de compreendermos a trajetória não apenas deles, mas de seus pares
mestiços, dos quais, com justiça, são eleitos ícones, pois justamente na Olinda
do século XVIII:
[...] havia uma pequena fábrica de órgãos, de excelente
qualidade, fornecedora das igrejas de Pernambuco e Bahia,
havendo outra que fabricava instrumentos de sopro e de corda.
Ainda em Olinda, em 1760, foi fundada a primeira irmandade
de Santa Cecília que passou a controlar o exercício da
profissão na capitania
313
.
Irmandade em que eram os mulatos coeficiente majoritário, tanto em
Olinda, quanto em Recife, lugares de onde se exportou, para Salvador, Rio e
outros centros coloniais, notáveis músicos e um incontestável mero de
instrumentos, além de emigrarem muitos artífices que também se
especializavam em consertá-los.
Assim, quando deixou a velha sede aristocrática, Sepúlveda encontraria
igual tradição na emergente vila portuária do Recife, onde ao se estabelecer
mantivera contato com as obras e tendências externas ali aportadas. Essas
trocas se deveram ao fato de que Pernambuco era um dos celeiros ou sede de
dotados na arte da composição, fabricação, consertos e afinamento de
instrumentos, muitos dos quais amigos, pares e co-irmãos cecilianos. Um
desses foi o fabricante e afinador de órgãos e de instrumentos de cordas,
Marcos Barbosa, natural da Paraíba que migrou para sediar-se em Recife em
1729,
314
e que contribui para os influxos musicais na capitania.
A despeito das habilidades para a música, sabe-se, embora sem
maiores informações sobre sua atuação nessa instância da produção cultural,
que expressa sua versatilidade e contribuiu para sua inserção e ascensão
social. Logo não se pode, como ocorre em algumas narrativas, tomar sua
atuação como pintor isoladamente nem mesmo que para efeito de estudo ,
visto que não constituiu uma atividade descontextualizada ou desconectada da
313
D‟ARAÚJO, 2000, p. 214.
314
COUTO, 1981, p. 339.
124
totalidade da produção e das vivências sociais e socioculturais do XVIII, nas
quais a própria música esteve sempre presente. Assim,
[...] convém recordar que havia, no período colonial, e em pleno
regime escravista, bandas musicais compostas de escravos [...]
Havia-os por toda parte: Na Bahia, em Minas Gerais, no Rio de
Janeiro, em Pernambuco.
315
Mas essa análise deve ir muito além da consagrada visão de que “era o
negro por natureza musical e cantador”,
316
pois no seu caso em particular, tem-
se um exemplo prático da necessidade de fugir a essas noções simplistas,
sobretudo se considerarmos o fato de que sua inclinação para a música não se
inclui nessa visão geral e, até certo ponto, estereotipada dos negros e
mestiços, mas sim, para a música erudita instrumental sacra,
317
que esteve
sempre nutrida por elementos do cotidiano local desses indivíduos. O que fazia
do biografado portador de uma herança que muito era comum, tanto aos
portugueses, amantes históricos da música erudita e religiosa, quanto aos
africanos, „cantadores por natureza‟ embora assumisse significado e
musicalidade distintas , além de exposto a possíveis incrementos dos rituais
nativos.
Sendo a música do barroco executada nos rituais sacros, solenidades
cívicas e grandes eventos sociais recifenses, como casamentos entre membros
das elites tradicional e emergente, por exemplo, tratava-se, portanto, de uma
modalidade de trabalho artístico destinado tanto às altas classes econômicas
da Vila Colonial do Recife, os mecenas, quanto aos devotos mais humildes das
camadas subalternas, vinculadas às irmandades leigas de Nossa Senhora do
Rosário, do Livramento e, sobretudo, a de Santa Cecília. Sendo amplo o leque
de influências, das quais pode ser ressaltada a ótica laica e lúdica dos negros,
indígenas e mestiços. Não obstante a atuação de Sepúlveda na música, parece
ter ganho impulso no vínculo de amizade mantido com Luiz Alves Pinto,
professor régio e mestre-de-capela da confraria ceciliana onde eram co-
irmãos , a qual funcionara justamente no templo onde o pintor mulato
315
DIEGUES JÚNIOR, África na vida e na cultura do Brasil. In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. N. 25, 1997, p. 19.
316
Ibidem, p. 21.
317
Ver: Lista de Tratados da Música Barroca Colonial. In: BINDER & CASTATAGNA, Revista
Eletrônica, v. 1.2, DEZ/ 1996; DINIZ, Jaime Cavalcanti. Músicos Pernambucanos do
passado. Recife: UFPE, 1979, v. 3, p. 31-35, 87-94. Disponível:
http://www.rem.ufpr.br/REMv1.2/vol1.2/teoria.html. Acesso em: 21/09/2007.
125
desenvolveu seus mais importantes trabalhos sacros. Apesar da
multifuncionalidade, foi o ofício pictórico que o consagrou.
Mas para exercer influência no ofício pictórico era preciso projetar-se
para além do anonimato natural dos artífices não-especializados, semi-
especializados e especializados nas artes das cores, concluindo com vigor a
trajetória sócio-funcional. Isso porque nas fases intermediárias e árduas do
aprendizado em que Sepúlveda foi orientado pelo mestre e pai, não poderia
arrematava obras, personificá-las, ou, sequer, aparecer nominalmente listado
nas documentações registradoras das negociações e demais acordos
estabelecidos para a execução de tais empreendimentos. A essa projeção todo
um universo de práticas clientelares e porfias que emergiam da sociabilidade
cotidiana e era ai que o militarismo mostrava toda a sua força. Praticas que, de
certa maneira, também amparavam os atos de altonomia nas funções
artísticas.
3.2) Do estigma da cor às cores do estigma: representações mestiças
sobre a pintura recifense.
A iniciação com o pai no ofício da pintura costituía-se de muito mais do
que saberes técnicos, mas também a passagem os contatos na sociedade, as
influências políticas, a visibilidade perante a clientela elitista de comerciantes,
militares e religiosos: o renome enfim. Um dado facilmente constatável se for
analisado como suas atuações funcionais ocorreram sempre nos mesmos
lugares nos quais trabalhara o velho Antônio, seu pai e mestre, de cujos
caminhos o jovem Sepúlveda trilhou de forma obstinada e com afinco. Razão,
aliás, pela qual o velho tutor, em técnica e mesmo em renome fora rapidamente
superado. Uma compensação dos seus paternos esforços. Seriam, portanto, os
vínculos sociais, o intenso contato com o fluxo de ideias externas e seus
próprios talentos, os fatores que o levariam bem além do nível de
reconhecimento gozado de seu pai; os suportes que o fizeram projetar-se de
maneira ímpar no exercício do ofício da pintura, outrora tão pouco valorizado
pelo público católico colonial.
318
Aliás, a própria projeção dos artífices coloniais
318
A principal obra de Sepúlveda, “O Primado de São Pedro”, é estimada como a mais cara e
bela e cara entre as obras realizadas em Pernambuco (Cf. MARTINS, 1974, p. 191), superando
126
era fruto da conjuntura mercantil e da silenciosa revolução cultural operada no
cotidiano portuário contrariando as prerrogativas do anonimato, do leque
temático e da sobriedade estético-estilística do era tridentina. Foi, portanto,
devido a esforços como o seu que seus pares pintores romperam com um
período onde “[...] era a pintura anônima, como as criações artísticas
populares, o mesmo tendo acontecido com a música e a dança dos primeiros
séculos”.
319
Sem o caráter de oficialidade política representado pela eleição
interna, nas categorias funcionais, de um juiz eleito entre os pares e confirmado
pela câmara local, como os oficiais de pedreiro, ourives, canoeiros,
marceneiros, e tantas outras profissões, mas, igualmente, desenvolvida em
oficinas (coletivas ou individuais) e organizadas hierarquicamente, sócio-
funcionalmente, dentro das cadeias operacionais.
Esforços que se materializam nos coloridos rubros, ocres e pardos dos
tons de pele e no ressaltamento da memória étnica. De modo que a própria
designação „criações artísticas populares‟ indica, muito possivelmente, um
termo, carregado de ou preconceito sobre a produção cultural híbrida dos
setecentos, contexto no qual atuou o mulato Sepúlveda e época na qual
emergiria do silencioso o-lugar do anonimato à nobre condição de mestre-
pintor. Sendo a pintura desse período considerada um ofício subalterno, pelo
qual o escravo ou descendente étnico “podia fazer-se homem”
320
inserir-se,
entenda-se , e re-elaborar a produção, tal sugere o uso do termo “popular”.
Razão pela qual a pintura ganhou esse mesmo direcionamento no que tange
às influências estéticas, que sofria o influxo das percepções culturais
cotidianas e mestiças, advento das liberdades que fluíam do cosmopolitismo
inerente às zonas comerciais.
De maneira que no Barroco setecentista já existiam muitos artífices
renomados por toda costa colonial e regiões anexas mais interioranas, pois
muitos desses indivíduos gozaram de grande notoriedade, riqueza e relativa
liberdade nos centros comerciais ultramarinos. Tamanho status, bem como os
fortes vínculos dentro do universo colonial,
321
justifica o fato de ter sido
em termos financeiros os vencimentos do então governador da capitania, José César de
Menezes que era de $200,00.
319
D‟ARAÙJO, 2000, p. 88.
320
DUKE, 1995, p. 81.
321
PIO, 1975, p. 13.
127
requisitado, ainda jovem, com 20 ou 30 anos, para atuar nas obras pictóricas
de uma das mais importantes ordens religiosas de Recife, a Terceira de São
Francisco, associação mais rica e distinta do período em Pernambuco, que
nela estava congregada a mais fina nata da elite econômica recifense e
pernambucana. Concernente a esse trabalho, registrava-se no Livro Segundo
de Receitas e Despesas (1732-1742), da citada ordem a:
Pintura e douramento: Feitos pelo pintor João de Deos,
1732.
Pelo que se pagou ao dourador e pintor João de Deos, Resto
q. se lhe devia de toda a obra que fez na sacristia de dourar e
pintar por ajuste que se fez com o o que tudo custa do seu
recibo 252$500.
322
[Grifo nosso]
Parece aqui se confirmar a idéia de que ao tempo em que viveu: “[...] os
pintores barrocos eram também excelentes douradores”.
323
Essa
especialização parece menos uma simples virtude dos artífices-pintores que
uma exigência dos tempos mercantis, ou, mais especificamente, do rico público
financiador consequência que era do afã ostentatório manifesto por meio do
douramento das igrejas. Mas cabe se salienta que essa qualificação permitia
vincular-se tanto aos ourives locais, quanto aos mercadores que comerciavam
com a Região das Minas via porto do Rio de Janeiro, onde desde o ciclo do
ouro um padrão de grande ostentação tornou-se referencial para esses
trabalhadores.
Sendo o douramento uma expressão votiva deveras eficaz para
simbolizar o poder e a bonança material atingida pelos irmãos leigos era, pois,
tal destreza pré-requisito à espetacularidade mercantil, transposta ao campo
das devoções religiosas, produções artísticas sacras e, portanto, um traço
representativo das re-elaborações processadas pela categoria mascate e para
a qual esteve apto o mestre Sepúlveda. Sendo o trabalho acima referido o
primeiro registro de suas atuações como mestre-pintor e arrematante de obras
e a julgar pela importância da própria ordem contratante a mais rica de
Pernambuco , tem-se no mencionado registro um indício que das boas
qualificações e adequação do jovem iniciante a tais pré-requisitos. Confirma-se
322
Ibidem, p. 45.
323
Ver: ETZEL, 1974, p. 290.
128
assim como a pintura era “[...] uma profissão lucrativa a tantos mil reis por dia
[...]”
324
, além de ser essencialmente distintiva e prestigiosa.
Tal atuação também condiciona a reflexões quanto à possibilidade de terem
havido outras atuações do mulato a serviço daquela ordem, sendo ele, talvez,
um dos „anônimos‟ autores das diversas obras do acervo pictórico da citada
congregação, quiçá da mais significativa delas: “A Virgem da Ordem Terceira
de o Francisco” (fig. 3.1), realizada justamente no período em que atuou.
Tal indício é reforçado na constatação das idealizações deixadas na referida
obra:
ainda no consistório de honra (primeiro andar) enorme tela
representando a rainha da ordem franciscana: a imaculada
conceição. [...] Precisamos frisar nesta pintura a concepção
curiosa e diferente da expressão beática do artista que a
compôs: A Virgem é uma morena, lábios grossos, cabelos
muito pretos, bem diferente da expressão beática das santas e
que nos fazem lembrar, pelo seu todo, tipo perfeitamente
tropical
325
.
Desde já, cabe enfatizar que o estranhamento acima expresso resulta do
fato de que a “expressão beática” de cujo perfil fugiu a representação estaria
diretamente vinculada ao padrão de beleza clássica, branca, européia
326
e,
portanto, eurocêntrica. Esta, aliás, uma idealização consagrada da Maria
histórica, mulher (e biótipo) médio-oriental e judia.
327
Logo, é possível
circunscrever a idealização pictórica no plano das representações culturais e
simbólicas, das construções alegóricas, da interdiscursividade e das
experiências de poder típicas do cenário recifense setecentista.
Daí a razão de se depreender que essa interação sua talvez vem
demonstrar que embora existisse uma constante vigilância clerical quanto às
motivações étnicas nas representações pictórias, brechas para influências
profanas e disposição para inserção de elementos estranhos a católica,
sociais e étnicos, sempre houve. Ainda que tal autoria apresente-se como uma
mera possibilidade, em sua defesa pode-se argumentar, não obstante ao fato
de Sepúlveda ter atuado a serviço da citada ordem num período próximo à
realização desse empreendimento, no início do século XVIII, que esse tipo de
324
DUKE, 1995, 80.
325
PIO 1975, p 20.
326
Ver: GOMBRICH, 1985, p. 375.
327
TODOROV, Tzvetan. Nós e os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana.
Rio de Janeiro: Zahar, 1993, v. 1, p. 21-29 e 107-132.
129
interação com seus trabalhos foi fator recorrente nas suas obras e a marca de
sua trajetória.
Fig. 3.1: “A Virgem da Ordem Terceira de
São Francisco”, Séc. XVIII Possivelmente
de autoria de João de Deus e Sepúlveda. Veja-
se a presença de alguns aspectos
concernentes à paleta cromática: aos traços
fisionômicos e a indumentária; os quais
coincidem com a representação da virgem feita
no forro da Igreja da Conceição dos Militares.
Levando-se em conta também a importância (leia-se independência) da
mencionada ordem e, sobretudo, a identificação de membros artífices e
mestiços, induz a ver nas relações cotidianas o instrumento de criação fomento
às brechas ou aparo que possibilitava ao mestiços, como Sepúlveda, o
desenvolvimento de estratégias e modos de fazer, praticas manipuladoras,
ões microbianas e filtradoras
328
, pelas quais lograssem driblar as restrições e
a vigilância imposta pelo clero à ousadia os artífices: à inserção de motivações
e elementos que remontassem tanto a genética híbrida dos mesmos, quanto
aos próprios horizontes culturais a que pertenciam.
Outro detalhe relevante na citada obra é o fato e que ela permite
reafirmar a estreita relação entre as produções barroca pernambucana e
baiana, consequencia da parceria político, econômico e administrativa de que
se falou. Um claro indício das trocas e da mútua influência regional, pois “[...]
idêntico quadro, no sentido subjetivo encontra-se na pinacoteca da Bahia”,
329
fruto possível desse intercâmbio. Foram essas aproximações estéticas que
328
Ver: CERTEAU, v. 1, 1994, p. 91-106.
329
PIO, 1975, p. 20.
130
levaram o pesquisador José Luiz da Motta Menezes a pensar que “talvez [a
obra de Sepúlveda] tenha se realizado no mesmo atelier dos pintores baianos
[aqui atuantes], embora sua pintura se distancie sensivelmente das baianas”.
330
Confirme-se ou não tal hipótese, certo é que não esteve o pernambucano
alheio aos contatos e intercâmbios portuários. Isso abre um amplo leque de
possibilidades e faz perceber a dimensão ultramarina em que devem ser
analisadas as expressões do Barroco pictórico recifense, uma vez que tanto a
possibilidade de trânsito para a sede baiana, Rio de Janeiro ou Portugal, para o
Porto ou Lisboa, quanto o contato com indivíduos egressos desses entrepostos
foi uma realidade amplamente vivenciada por pintores pernambucanos,
especialmente por mulatos como Sepúlveda.
Atuara também em 1751 no douramento da sacristia da chamada
capelinha de N. Sr
a
da Conceição das Jaqueiras,
331
localizada no sítio de
Henrique Martins (1704-1802), rico homem de negócios, egresso de Oeiras,
332
Portugal; encontrado como grande mercador de escravos entre os portos de
Angola e Recife em 1753, em cuja praça estava sediado
333
; e como sócio e
componente da direção da Companhia de Comercio de Pernambuco me
Paraíba empossada em 1769;
334
ou ainda na distante Igreja de N. Sr
a
da Boa
Viagem, junto a praia de mesmo nome, lugar de romaria a época, (1751),
335
administrado pelo padre, músico e amigo pessoal do pintor, José Ribeiro Noya,
que fora mestre de capela no ano de 1730,
336
mas deveras importante a
progresso urbano do Recife pois era fonte de extração de pedras (tirada dos
arrecifes), utilizadas nas construções das áreas centrais e próximas à região
330
MENEZES, 1984, p. 17.
331
PIO, Fernando. Lembrança Histórica e Sentimental da Igrejinha de Nossa Senhora da
Boa Viagem. Recife: UFPE, 1961, p 62-63.
332
O vínculo de Sepúlveda com esse comerciante egresso da cidade berço do Marquês de
Pombal, cujos naturais, como se vê, também seguiram as rotas comerciais ultramarinas em
busca de oportunidades nos entrepostos mercantis coloniais, posteriormente encontrado na
posição de senhor de engenho, além de indicar a relação de interdependência entre o
comércio urbano e as atividades agrárias que o alimentavam, delimitam a zona territorial de
atuação e ou trânsito interno dos artífices.
333
SÁ, 1983, p. 155/174; ver, também nota número 73 do referido diário de José Antonio
Gonsalves de Mello.
334
RIBEIRO JÚNIOR, José. Colonização e monopólio no Nordeste brasileiro: a Companhia
Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). São Paulo: Hulcitec, 1976, p. 87.
335
MELLO, José Antônio Gonsalves de. A Matriz de Boa Viagem. Recife: Diário de
Pernambuco, ed. 18 de Agosto de 1961, p 11-16.
336
VELOSO, 1978, p. 249.
131
portuária. Nos cerne de ambas as atuações os vínculos políticos e sociais.
Perceba-se.
3.3) Sentinelas das artes & artes das sentinelas: ofícios, vínculos e
espaços no cenário do poder.
Concreta, porém, foi a relação estreita do artífice com a significativa
parcela de militares que compunham, nos idos dos setecentos, a população
recifense colonial. E, como castrense, sua obra também expressa os impactos
das ciências milicianas sobre o legado pictórico do Barroco local. Coube
mesmo à ciência marcial boa dose de direcionamento cívico às paletas
coloniais, em virtude do que as representações pictóricas da época estiveram
muitas vezes na fronteira com as representações cartográficas e vice versa,
337
fator explicável em função da atuação comum da mão-de-obra militar tanto no
campo artístico como na definição visual (plantas)
338
dos domínios territoriais
luso-brasileiros, necessários ao planejamento urbano das possessões
ultramarinas.
Mas a relação de Sepúlveda com a categoria dos militares não consistiu
apenas na encomenda ou produção de obras. Diz respeito, ainda, à vida
castrense nos quadros milicianos. Se não em ações de beligerância
propriamente dita, pela ascenssão galgada nos cargos hierárquicos. É o que
expressa a solicitação datada de 6 de setembro de 1734, em Olinda
339
, por
meio da “Carta de João de Deus e Sepúlveda a Bernardo Felix da Silva, sobre
a pretensão de uma bengala de infantaria”
340
, quadro da lendária, histórica e
prestigiada tropa dos Henriques.
341
Petição que ele re-encaminharia ao
governo da capitania (com cujos representantes mantinham, em geral, uma
relação de mecenato, tal vigorava a via clientelar), nos seguintes termos:
337
Ver: MOTTA, Edson. Ofícios da arte da cartografia portuguesa nos séculos XVII e XVIII.
Disponível: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6131.pdf; FIALHO, Daniela Marzola. Arte e
Cartografia. Disponível: http://www.arteecidade.ufba.br/st3_DMF.pdf.
338
Plantas, aliás, que, como foi visto, eram também a base dos projetos arquitetônicos
inerentes ao processo de infra-estruturação e planejamento dos espaços e dos usos oficiais a
este destinado, sendo, portanto, um ponto em comum entre as artes capaz de revelar a
importância dos ofícios e dos artistas que as desempenhavam, os mestres oficiais sobretudo.
339
O fato de que a solicitação partiu de Olinda denota que a essa altura ela ainda dividia com
Recife o poder da capitania.
340
AHU_ACL_CU_015, Cx. 47. D.4214.
341
AHU_ACL_CU_015, Cx. 205. D.13979.
132
Meu Senhor, muito senti não ter esta frota carta vossa\para
saber se passava com saúde, que sendo boa seria cou\
sa de
meu maior agrado\.
Meu sr
o
já escrevi sobre\
o desejo que tinha de uma
bengala da infantaria ao que me\
respondeu V. S
ra
que como eu
servia na ordenança, não estava\
em termos de me opor a
bengala da infantaria e que isso só po\de ser com despensa de
sua Majestade a qual não é mais fácil\
mas que, contudo,
alguns a tem conseguido e que respondesse se\
podia mandar
também a quem necessite aos gastos que para esse ne\gócio
fosse necessário. Na feita passada, escrevi a V. S
ra
nesta
for\ma que como isso me dificultava a dispensa não mandava
que\
se era sorte sua Majestade dispensar que mandara
assistir e que também\
me era necessário, que V. Sra me
avisasse o quanto me seria necessário man\dar ao paço do
que não tive resposta, não sei se por muita ocupação\
vossa,
ou se por lhe não ser entregue a carta agora torno a escrever\
essa sobre a mesma matéria e digo q. sejas certo e sem
dúvida sua\
Majestade dispensar e que essa é possível se pode
vender que mandarei\
em vista mas é necessário que (sic) me
avisasse quanto me será necessário\
para os gastos para eu
saber o quanto lhe posso remeter ficando sempre pa\go o
destino a minha conta e eu esperando a resposta e juntamente
pron\to para tudo o que for do seu serviço quanto de mim haja
algum présti\mo Majestade assim como deseja. Aos 6 de
setembro de 1734. \
Desm
se
\
Sr. Bernardo Felix da Sylva\
Muito certo venerador\
João de Deus e Sepúlveda.
Na petição se pode perceber delineados a importância das tais patentes,
o caminho pelo qual tais solicitações deviam tramitar, os vínculos necessários e
o desejo consciente do mestiço em trilhar uma tão demarcada trajetória,
quando ressaltava o fato de „muitos terem conseguido‟ a referida patente.
Entretanto, e por motivos ignorados, foi lhe concedida patente nos quadros de
cavalaria e não nos da infantaria, como era pretendido, sendo o pardo
designado para servir no grupamento situado na freguesia de Muribeca.
Chama-se a atenção, entretanto, para o fato de que sua solicitação denuncia,
mais uma vez, a identidade mesclada, pois ambos os quadros diziam respeito
aos terços de homens pretos e pardos de Pernambuco.
342
Pelo êxito da
solicitação, se pode concluir que a carreira bélica, os ofícios da pintura e da
342
Adotou-se aqui para o conceito de “pardo”, a definição de Pereira da Costa que, em
consonância com o sentido empregado por Manoel Calado, Antonil, Loreto Couto, Maria
Jaboatão, entre outros cronistas, define-o com “filho de branco como negro” e sinônimo don
termo “mulato”. Cf. COSTA, Francisco A. Pereira da. Vocabulário Pernambucano. Recife:
Secretaria de Educação e Cultura, 1976, p. 191.
133
música, foram parte constituintes e complementares das estratégias de
sobrevivência e vinculação política, pois se convertiam em ferramentas que
favoreciam sua inserção social, a conquista de prestígio cuja busca
incessante constitui a marca daquela sociedade e legavam à produção
barroca uma influência direta das atividades patrióticas. Se a atuação bélica do
artífice foi ou não relevante, não se sabe, muito embora uma resposta positiva
encontre amparo no longo período (quatorze anos) de dedicação à caserna,
nas boas recomendações que sempre endossaram seus pedidos de mercês,
como o que fora encaminhada (agora do Recife), aos 29 de novembro de
1748
343
, junto com a:
[...] carta, do [Governador da Capitania de Pernambuco, Conde
dos Arcos]. D. Marcos de Noronha e Brito, ao rei [D. João IV,
sobre o requerimento do ex-tenente de Cavalaria da freguesia
da Muribeca, João de Deus e Sepúlveda, em que pede para se
admitido ao número dos reformados.
344
Mesmo que não fossem poucas as dificuldades sabia o pintor que o
governador era de fato o melhor canal para se chegar a sua Majestade, El Rey.
Eis os termos:
Dom João, por graça de Deus Rei\ rei de Portugal e dos
Algarves, Da quem e D‟Alem\mar, e em África senho[r] de
Guiné. V. S
a
, faço\
saber eu general e capitão-gene\ral da
capitania de Pernambuco [Dom Marcos de Noronha, Conde
dos Arcos] que da par\te de João de Deus e Sepúlveda, o
tenente\ que foi de cavalos que foi da capitania do capitão:
\Francisco Dias Ferreira da Freguesia da\ Muribeca, se me fez
a petição de que com\ ele se remeteu a cópia em que pede, lhe
faça\ mercê[r] admiti-lo ao número dos reforma\dos e relatados,
em virtude da patente de com\firmação eu lhe tinha mandado
passar\do dito posto de tenente de cavalos, visto sem\ culpa
[de] lhe haverem passado para que assim\ viva livre de toda a
mais obrigação; e \ visto o seu requerimento me pareceu Sr.\
denotar informação com vosso parecer\ El Rey. V. S. mandou-
a para Manoel\ Caetano Lopes de Moura, Antônio \ Freire de
Andrada Henrique, conselheiro do servi\ço do seu coselho
ultramarino e se passou\ por duas vias Caetano Ricardo da
Silva.
Na continuação se pode perceber como, mais que o merecimento e a
trajetória pessoal propriamente dita, os padrinhos endossavam os caminhos do
Antigo Regime:
343
O que denuncia a transferência de poder de Olinda para Recife.
344
AHU_ACL_CU_015, Cx. 68. D.5753.
134
He Vossa Majestade servido ordenar-me informar\ com o meu
parecer sobre o requerimento que\
na sua real presença expôs
João de Deus e\
Sepúlveda, tenente que foi da cavalaria na
com\
4
panhia do capitão Francisco Dias Ferreira do re\gimento
de que era coronel Francisco de Moura\
Rolin, o qual pretende
que vossa majestade lhe faça mer\cer em mandar admitir ao
número dos reformados\
e poder andar relatado em virtude da
patente de\
confirmação que vossa majestade lhe havia
concedido em\
dezoito de novembro do ano de mil
setecentos\
11
e doze, foi provido e se passe pelo governador
Sr.\
D. Francisco de Souza no posto de tenente de cavalos\
no
qual posto serviu com patente do sobredito go\vernador até
nove de julho de mil setecentos\
[e] vinte e oito, tempo em que
alcançou confirmação\
da sua patente passada por vossa
majestade e com esta\
servia continuando o real serviço, com o
prejuízo\
de uma dependência que se havia na sentença\
na
relação do Estado, passou a cidade da Bahia [Salvador] a\
onde teve alguma demora e por causa disso se\
lhe deu folha
do dito posto de tenente, mas como\ o fez em Lisboa a vinte e
seis de\
julho de mil setecentos [e] quarenta e\
oito o secretário
Joaquim Miguel\
Lopes de Moura o fez e escreveu
Manoel\
Caetano Lopes de Mouro Antônio Freire\
de
Andrade Henrique\
Nele serviu vinte e dois anos no servi\ço sempre em
grande prontidão me\
parece é digno de que se lhe
conceda a graça\
que pretende em comprimento daquele
senão\
segue mercê com prejuízo a real fazenda, por que\
com a real confirmação foi feita vereança para que\
se
passe soldo algum V. Majestade mandará qual\
for
servido. Recife de Pernambuco vinte e\ nove de
novembro de 1748\.
D. Marcos de Noronha.
345
Como se vê, uma relação direta entre a relação com a vida militar e
com o governo da capitania, seus intercessores na busca pelas patentes e
mercês. Isso representa muito mais que um dado importante de sua vida, de
sua trajetória de artífice ou do seu patamar de ascensão social. Exemplifica
como a cultura desenvolvida por mestiços esteve diretamente interligada ao
processo de desenvolvimento político-administrativo, econômico, urbanístico,
social e da cultural local. Pois dessa relação política e trabalhista foi fruto um
vasto leque de obras em diferentes instâncias de produção. Traduzindo-se: de
oportunidades e o re-ordenamento de indivíduos mesclados desprovidos de
nobreza, mas hábeis no trabalho da produção cultural. Foi por causa desse
vínculo que “[...] em 1781 manda[va] o governador José César de Menezes
pintar a “Batalha de Guararapes”, (fig. 3.2), no coro daquela igreja [de Sª da
345
AHU_ACL_CU_015, Cx. 68. D.5753.
135
Conceição dos Militares]”. Encomenda para a qual foi designado o mestre
mulato aqui biografado.
Fig. 3.2: “A batalha dos Guararapes” Forro da igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares de autoria, de
João de Deus e Sepúlveda, encomendada pelo governador José César de Menezes em 1781, onde se percebe o grande
destaque à bravura do terço de negros, chefiado por Henrique Dias. (Alguns aspetos como a grande largura X
comprimento, a localização próxima a porta de entrada e a pouca altura em relação ao chão impossibilitam um registro
panorâmico da imagem, obrigando a fotografá-la por etapas, o que, por sua vez, provoca leves distorções cromáticas de
acordo com a variação de luminosidade do local).
Não obstante à questão identitária, cabe salientar que mesmo a pintura
da ”Batalha dos Guararapes” sendo realizada em função da tradicional e anual
comemoração cívica concernente à Restauração Pernambucana
346
, em
especial àquela do ano de 1781, logo, objetivando ao menos em termos
oficiais o fortalecimento da identidade pátria luso-brasileira, o valor conteúdo
simbólico dessa pintura não se encera no ideal nacionalista luso-brasileiro.
Mais que isso, percebe-se, também, possíveis incrementos de mestiçagem. A
saber: uma ênfase na ação dos terços de negros e de pardos atuantes no dito
evento; indícios, acredita-se, de uma idealização mestiça do conflito dos
Montes dos Guararapes.
De fato, a historiografia brasileira não deixou de registrar o denodo, a
valentia e a perspicácia com que tais indivíduos se aplicavam ao combate
corpo a corpo; a luta no Fropt:
[...] De novo remeteram os holandeses [...] e chegaram a subir
tanto pelo monte que o governador João Fernandes Vieira se
atemorizou e [...] mandou peleja todos os escravos que junto a
si tinha, prometendo-lhes alforria. Então desceu do alto como
um turbilhão de gente, tocando atabaques e buzinas , fazendo
grande alarido e gritando vitória, clamor que por ventura
346
COSTA, 1982, p. 355-358.
136
intimidaria o inimigo, julgando findado. A ação passou a ter
lugar corpo a corpo, empurrados por uma torrente semelhante
a das lavas, jorrando do cone dos vulcões ou das grandes
geleiras despenhadas de cima das cordilheiras nevadas, que,
com a própria força da sua massa acelerada, vão levando após
si tudo quanto se lhe opõe.
347
Registros há também de como a tão incisiva ação bélica daquele
„turbilhão negro‟ motivou até mesmo queixas por parte dos comandantes
flamengos, de que as tropas luso-brasileiras, os terços de negros em especial
"[...] faziam a guerra de um modo mais que desumano, quase como piratas e
ladrões".
348
Ao que parece, tais procedimentos bélicos deveras eficazes
deviam ser ainda desconhecidos entre os grandes potentados europeus, o
holandês por exemplo, denotando o confronto de mundos no qual se inscrevia
tais técnicas de combate. Confronto de que a cultura era outra forte expressão.
Simbólica e laica, é verdade, mas com grande poder de dizibilidade.
Desse encontro, coube ao batavo a amarga sorte de enfrentar tamanho
denodo no front, enquanto aos portugueses coube a vantagem de -los,
majoritariamente, esse reforço, por cujo empenho, se testemunhou no front
uma verdadeira fusão de estratégias e uma beligerância tecnicamente hibrida.
Estratégias, aliás, que Sepúlveda, visual e represetativamente, parece ter
representado em forma de tributo e narrativa pictórica, conclusão a que se
chega através da comparação com as demais representações e se lançado
mão dos registros oficiais a que comumente recorriam os pintores para a
produção da chamada “pintura histórica”.
Se o empenho das tropas não era sem razão, que o êxito dos
combatentes mestiços seguia de perto as promessas de liberdade, honrarias e
um vasto leque de requalificações que incluíam: a distinção social, ascensão
hierárquica na carreira militar, até mesmo títulos e comendas de nobreza,
349
o
mesmo anseio por se galgar espaços de liberdade permeava a vida funcional
dos artífices mestiços. Pretensões, sim, do mestre Sepúlveda. Era, portanto, à
347
WARNHAGEM, Francisco Adolfo. História das lutas contra os holandeses no Brasil
desde 1624 até 1634. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2002, p. 207.
348
Carta do exército holandês ao governador da Bahia, Antônio Teles, conduzida pelo
conselheiro político Baltazar Van den Voode e por Teodoro van Hoogstraten, comandante da
Fortaleza do Pontal, no Cabo de Santo Agostinho, datada de 7 de Julho de 1645 em que se
reclamava o descumprimento do acordo de guerra e dos procedimentos das tropas luso-
brasileiras no front. Op. cit. WARNHAGEM, 2002, p. 209.
349
MELLO, Antônio Gonçalves de Mello. Henrique Dias. Recife: UFPE, 1954, p. 08-55;
WARNHAGEM, 2002, p. 266-269.
137
sorte do embate, aos anseios de liberdade, ao denodo, enfim, dos seus
antecedentes a que parece remeter a paleta de Sepúlveda.
Mas se poderia, também, lembrar "[...] as palancas ou paliçadas e
emboscadas [... com que as tropas combatiam [...] à maneira dos índios", o
modo de lançar-se ao inimigo em [...] massa e em grandes vozes [...] pensando
surpreender-lo";
350
o ímpeto nas investidas bélicas, onde "[...] os brasilienses ou
selvagens [...] lançavam-se ao inimigo com tanta balas e flechas [...] que
choviam de todos os lados, paramentados de arcos flechas e porretes [...]"
351
e
demais armas em cujo uso se habilitavam; e, sobretudo, o modo próprio, ágil,
tenaz e ordenado de proceder no combate direto, frente a frente com o
adversário. Situação cujo procedimento indígena face ao perigo da metralha, é
assim testemunhado: "[...] lançam-se ao chão logo que se faz fogo sobre eles
e, no próximo instante, levantam-se e disparam as más flechas, que as vezes
produzem ferimento tão perigosos como as balas de mosquete".
352
Como os negros e mestiços o ímpeto e a bravura daqueles guerreiros
brasílicos, chegou mesmo a ser reconhecida pelo próprio Waerdenburc,
comandante das tropas batavas, que comentou: “[...] os brasilianos [indígenas]
não são cordeirinhos como os pintam certas histórias das Índias Ocidentais que
li; são soldados valentes, prontos e audaciosos, como têm mostrado”.
353
Bravura, aliás, que o próprio Nassau buscou, por todos os meios, aliar aos
quadros do exercito holandês.
354
De certo que também houve alianças batavo-afro-brasileiras assim
como com todas as demais etnias
355
, mas, não obstante à vitória da aliança
luso-afrobrasileira, era uma parceria histórica, fazendo, mesmo, lembrar o
antigo pacto dos portugueses com os jagas africanos, guerreiros [...] oriundos
do povo imbangala, [que] incorporavam nas suas fileiras os prisioneiros mais
aptos, na sequência de um rito iniciatório, avolumando seu exército depois de
cada campanha”.
356
Esses combatentes atuavam nas razias,
357
cassadas
350
Ibidem., 2002, p. 234.
351
RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado (1629-1630). Recife: Secretaria de
Educação e Cultura, 1977, p. 71-74.
352
RICHSHOFFER, 1977, p. 74.
353
MELLO, 2001, p. 209-210.
354
Ibidem, p. 211-220.
355
CALADO, Manoel. O Valeroso Lucideno e o Triunfo da Liberdade. (1584-1654), Recife:
CEPE. 2004, v. 2, 161-162.
356
ALENCASTRO, 2000, p. 90-91.
138
destinadas ao abastecimento do comércio negreiro, e [...] provocavam grande
pavor nos outros combatentes nativos quando investiam com o seu grito de
guerra “puté! Puté!”.
358
Eram bastante temidos nos sertões africanos,
[...] entre outras razões, por causa da habilidade no uso das
suas machadinhas de guerra, arma de combate corpo a corpo
que era páreo duro [até mesmo] para as espadas européias.
[...] Se tratava de uma tribo como as outras [formada por] gente
de guerra organizada em torno de um kilombo campo militar
e confraria de iniciação de novos guerreiros , [... E] formavam
um rolo compressor um rolo compressor multiétnico que
sacode o Congo Angola a partir do século XVI.
359
[grifo nosso]
Ascendentes africanos, cujos feitos eram possivelmente lembrados pela
gente escrava e cativa no Brasil por meio da tradição oral que se redefinia na
colônia visando resgatar a história, as origens, os laços identitários enfim.
Histórias e laços que não apenas eram um bom tema para uma „pintura-de-
guerra‟, mas que tinha na aliança luso-mestiça, em meio aos conflitos de
Guararapes, o ponto alto da memória afro-descendente naquela Capitania de
Pernambuco.
Por outro lado, se pode pensar que, a paleta, deveras identitária, de
Sepúlveda, eximiu-se de avivar o papel dos indígenas. Razão pela qual, tão
atemorizados aparecem os nativos na obra à Guararapes. Postura, assaz
imprópria registram as fontes às tropas do índio Felipe Camarão. Tropas
que eram “[...] a principal parte do [...] exército [luso-brasileiro] e a quem mais
horror metia aos inimigos”,
360
razão pela qual feito o índio Felipe foi feito "Dom
Camarão" por ordem de sua Majestade Real.
361
Parece, antes, o pintor estivera inclinado ao destaque da tropa escrava,
cuja bravura valeu ao seu líder e representante étnico, Henrique Dias, oito
ferimentos à bala, não fatais, um dos quais acarretando-lhe o decepamento da
mão esquerda. O que não foi suficiente para lhe tirar da batalha, diz Manoel
Calado, com evidente exagero. Restando-lhe, outrossim, a mão direita “[...]
357
As razias eram investidas (entradas), organizadas pelos sertões africanos, destinadas à
captura de escravos, que envolviam, direta ou indiretamente, guerreiros jagas, feirantes
nativos, sobas (governantes locais), autoridades lusas nos territórios africanos, mercadores
atlânticos e seus comissários.
358
Ibidem, op cit., p. 90-91.
359
Ibidem, p. 91.
360
VIEIRA, apud ALENCASTRO, 2000, p. 123-124.
361
WARNHAGEM, 2002, p. 247.
139
para que lhe pudesse vingar, o que o fez muitas vezes”.
362
Ao avivamento da
bravura daquele que nem mesmo a coroa espanhola, Felipe III, deixou de
reconhecer-lhe o valor de soldado, intentando mesmo ofertar-lhe um hábito de
sua escolha no ano de 1638 (ao que fora necessário o perdão de sua origem
“infecta” e ausência de qualidade). Oferta que não se concretizou devido à
morte do titular do trono hispânico-lusitano durante a união ibérica, mas que,
após a restauração portuguesa e numa demonstração de força e autonomia,
fora requerido, pessoalmente, em 1757, tendo despacho favorável da rainha D.
Catarina. Outras tantas mercês seriam concedidas em favor dos pares étnicos
e subordinados do terço dos Henriques; além de outras mercês aos futuros
esposos das quatro filhas de Dias em 1658.
363
Essas últimas, aliás, igualmente
desejadas pelas quatro irmãs do Sepúlveda na XVIII mercantil, já que tão
ínclitos anseios e conquistas mestiças se associvam, direta ou indiretamente, à
trajetória dos Sepúlveda, pai e filho.
O mesmo se pode dizer dos anônimos irmãos de pele, de alguma
maneira vinculados ao mestre pintor pernambucano, que os sonhos e a
solidariedade do irmanamento nas confrarias eram, naqueles anos
setecentistas, apenas algumas das fisionomias das múltiplas e sempre eficazes
estratégias na busca pela requalificação e pela interação com a sociedade
escravocrata ultramarina. Estratégias que se apoiavam fortemente no que se
pode chamar de „historia dos feitos dos irmãos de cor‟, da qual a ênfase do
rolo compressor um rolo compressor multiétnico‟ na pintura de Guararapes
pintada por Sepúlveda parece um relevante capítulo. O que equivale a dizer
que um tanto de coragem pessoal e “[...] um conhecimento seguro da cnica
de combate”,
364
ou mesmo a capacidade artística de resgatar, enquanto
discurso pictórico, revelam como as ações dessa gente “desqualificada”
estivera cingida mais pela luta por liberdade e requalificação social, que pelo
“espírito nacional”
365
que pelo nacionalismo ufânico; nutrida muito mais pela
tensão das hierarquias étnicas burilada em meio aos conflitos que pela
ojeriza, pura e simples, ao estrangeiro batavo (já que tanto índios, quanto
negros aplicaram seus anseios às alianças com ambos os lados, manifestando
362
DIAS apud CALADO, v. 1, 2004, p. 88.
363
MELLO, 1954, 44-58.
364
Ibidem, 2001, p. 34.
365
GUERRA, 1985, p. 19.
140
ódios, afinidades e apoio (as vezes sob a forma de traições) a portugueses e
aos holandeses) o que, obviamente, ocultara o multo pintor de sua obra.
Tensão ainda vivenciada por Sepúlveda no embate classista e étnico do
XVIII e sub-repticiamente inscrita, com certa dualidade no enunciado “tivemos a
vitória por nós”;
366
palavras que punha de forma igualitária ou reivindicatória
da igualdade de direitos aos louros da guerra , negros, indígenas, brancos e
mestiços, co-herdeiros de um porvir restaurado à ordem; quiçá ansiara
Henrique Dias de um nova ordem étnica para ser mais claro. Carência e
intimo desejo manifesto na memória a Guararapes dos setecentos ainda pelo
irmão de cor e de caserna João de Deus e Sepúlveda, a julgar por sua
trajetória pessoal e, sobretudo, pela tendenciosa representação do conflito.
Se pode, portanto, traçar um paralelo entre as exitosas solicitações de
alforria, benesses, patentes, títulos honoríficos, recompensas ao heroismo
(reconhecimento da patente de mestre de campo‟) junto a sua alteza, El Rei;
entre as reivindicações de um melhor tratamento e respeito da parte então
governador de Pernambuco, Francisco Barreto de Menezes, e os feitos
artísticos de João de Deus e Sepúlveda. E, com base nessa associação, se
salientar o papel insertivo da trajetória socio-funcional e, mais particularmente,
papel reivindicatório dos pardos tons que sobressaem à sua paleta, que as
ações do pintor regatam os feitos de Dias e se apóiam na sua memória; sendo,
ambos, ícones da luta mestiça nos múltiplos campos da sociabilidade
setecentista e nas suas multifacetadas formas de ação.
Tão incisiva idealização repousava possivelmente em quatro elementos
distintos e correlacionados, são eles: a) o sangue mestiço que corria nas veias
do artífice e que se manifestava no compromisso latente para com seu
universo cultural; b) a condição de militar que o impelia a manifestação
alegórica do sentimento de reivindicação à glória militar devida à memória
de seus antepassados e devida concessão de honrarias aos descendentes
mestiços, e à releitura histórica à luz do imaginário mestiço; (companheiros na
difícil trajetória insertiva); c) a legitimidade conferida pela pessoa do
governador José César de Menezes, empreendedor da referida obra, d) a
própria notoriedade do artifice-pintor.
366
HENRIQUE DIAS, Carta de março de 1640, dirigia ao Conde da Torre, em que anuncia a
retirada do seu terço do Rio grande do Norte à Bahia, naquele ano. In: MELLO, 1954, p. 23-24.
141
É curioso perceber como tal ênfase étnica é invertida tanto na
representação da mesma batalha realizada na Igreja de Nossa Senhora dos
Prazeres dos Montes Guararapes em 1774, atribuído ao pintor, Professor e
decorador Manoel Dias de Oliveira, (fig. 3.3), quanto na pintura de Victor
Meireles, em 1879, (fig. 3.4), ambos cariocas.
Fig. 3.3: Batalha dos Guararapes. Ex-voto anônimo datado de 1758, (representação outorgado a Manoel Dias de
Oliveira, o Brasiliense). Acervo do Museu do Homem do Nordeste MHN/RJ Foto: Rômulo Fialdini / Livro MHN/Banco
Safra. Disponível: museuhistoriconacional.com.br/
Fig. 3.4: A batalha dos Guararapes, 1879 Victor Meireles (Museu Nacional de Belas Artes Rio de Janeiro).
142
Por outro lado, a obra oitocentista de Meireles parece dirigida por um
eurocentrismo representado pelo estilo profundamente acadêmico, o
neoclássico, que nutria a arte do Segundo Império. Eurocetrismo, por ele
absorvido nas oficinas francesas e italianas, a custo da bolsa concedida pela
Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro e tão obedientemente ilustrado na
tela de Guararapes.
O próprio Meireles expressava:
A tela dos Guararapes é uma dívida que nhamos a pagar,
com reconhecimento, em memória do valor e patriotismo
daqueles ilustres varões.
[... Onde] o artista [ele próprio] só cogitou de chamar a atenção
do espectador sobre os personagens principais. [pois] nunca o
movimento em um quadro, no seu único e verdadeiro sentido
tecnológico, se consegue senão a custa da ordem, dependente
da unidade do assunto com os seres que retrata.
Para que a ação seja uma, deve apresentar uma idéia
dominante, sem ter nada de estranho, nem de supérfluo ao
assunto de que se trata [o confronto luso-holandês].
367
[grifo
nosso]
„Unidade de ação‟ que representava a „idéia dominante‟, ou seja: o
triunfo português e a identidade luso-brasileira, que consiste no apagamento
das diferentes motivações sociais encontradas no seio das tropas brasileiras,
elementos “estranhos” que eram à identidade pátria. Veja-se como a fronteira
criativa inerente à arte pictórica denuncia as diferentes óticas dos pintores
analisados em relação ao conflito, manifestando diferentes e divergentes
atribuições de sentido ao combate.
Não obstante à fronteira entre a mimese e a [re]elaboração artística,
Guararapes soa em Meireles como uma narrativa oficial como aliás deveria
ser enquanto encomenda imperial –, onde “[...] este assunto [o êxito no conflito
contra os holandeses] dava um bom quadro histórico segundo os preceitos
acadêmicos [...], pois é isso que a história narra e [... razão pela qual, na
tela] tudo resumia-se em um grupo principal no qual estivesse consubstanciada
a idéia dominante”.
368
Ao contrário do que se percebe na tela sepulvedina, em
Meireles, alerta Duque, “[...] os pretos comandados por Henrique Dias, e os
índios comandados por Felipe Camarão [...] no plano último não têm vida,
367
MEIRELES, apud DUQUE, 1995, p. 172.
368
DUQUE, 1995, p. 172.
143
formam um bando de figuras estáticas que fazem do conjunto do quadro uma
verdadeira alegoria [...]”,
369
sem o fulgor da batalha por um lado, e sem
quaisquer indícios da tensão inter-racial do cotidiano colonial, levada à guerra
pelos mestiços, sobrevivente a ela e imperativo na dizibilidade
370
do cotidiano.
Perceba-se, portanto, como a dizibilidade do cotidiano é, assim,
transposta a dizibilidade da representação pictórica, prescindindo para isso de
um sujeito constituído autor, tanto pelo ato operacional quanto pelo lugar-de-
fala alcançado na instância produtiva da cultura: o de mestre-pintor
371
.
Igualmente produtos de encomendas políticas e destinadas, a priori, ao
avivamento da memória portuguesa (narrativa oficial), tem-se na Guararapes
sepulvediana uma idealização mestiça do referido confronto, onde o fato
histórico foi representado, não simplesmente a luz dos documentos históricos
consultados pelo que se constitui como um “pintura histórica”
372
, mas, e
sub-repticiamente, pela narrativa popular circulante à época entre as camadas
subalternas, em cujo imaginário vigorava a crença de que os “personagens
principais”, os “ilustres varões”, ao tempo da batalha não gozavam de
igualdade social como também eles mesmos nos setecentos , sendo o
evento bélico para aqueles ascendentes uma ocasião propícia às re-
qualificações sociais dos indivíduos beligerantes. Logo, também a narrativa
pictórica de Sepúlveda, ao salientar a releitura popular reinante entre seus
pares, parece converter-se num elemento da construção da memória militar
dos mestiços recifenses (pernambucanos). Atestando a veracidade da idéia de
que nas produções pictóricas “[...] a imagem representativa é sempre uma
imagem narrativa [...]”.
373
Sobretudo no jogo das vivências sociofuncionais em
que estava circunscrito o Barroco setecentista recifense. Nele:
[...] o artista [do] barroco não se aliena ao jogar, porque o jogo
se torna o seu instrumento de rebeldia, de libertação, de
afirmação perante a realidade que quer sufocá-lo e anular, pela
pressão histórica, a sua plenitude de ser no mundo é em
contrapartida a essa realidade que ele tenta fundar uma outra
369
Ibidem, 1995, p. 176-177.
370
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1998, p. 9-13.
371
Dizibilidade para o que contribuía o caráter interpessoal do aprendizado e a não
institucionalidade das atuações profissionais. (Ver idem, O que é um autor? Lisboa: Vega,
2006, p 44-45).
372
DUKE, 1995, p. 107.
373
AUMONT, Jacques, A imagem. Campinas/ São Paulo, 1993, p. 244.
144
que será a sua própria criação, isto é, a autônoma realidade da
arte.
374
Daí por que o resultado desse jogo não foi a afirmação da vitória em
Guararapes, mas do embate contínuo que contava, „ilustre‟, no número dos
sobreviventes. Esses indícios da afirmação da memória étnica não podem ser
vistos apenas como frutos da mera coincidência cromática, pois traduzem o
sentimento identitário cultivado pelo autor sua pretensão de ressaltar a
bravura e a importância dos regimentos não europeus na história bélica da
capitania e do Império luso-brasílico , tal a recorrência desses aspectos nas
suas demais obras.
Assim, se por um lado havia uma tradicional e secular comemoração
destinada à memória „postbellum‟
375
de Guararapes, por outro, os elementos
afro-brasílicos o, na paleta sepulvedina, um forte incremento a essa mesma
memória. O que significa dizer que a cena, cuja relevância simbólica tem
apontado para a grandeza militar brasileira, expressa também o papel de
importância das camadas subalternas e a busca do artífice em registrar esse
papel. E, como se vê, coube ao Sepúlveda certa margem como precursor
nesse resgate. Seria, ainda, desse mestre a pintura do forro da nave (fig. 3.5)
da mesma Igreja? É provável. Mas o extravio da documentação da Irmandade
de Nossa Senhora da Conceição dos Militares impede a confirmação dessa
hipótese.
Porém, antes que seja lançada essa probabilidade no simplismo das
especulações, é preciso atentar para alguns detalhes e coincidências em
relação a obras comprovadamente de sua autoria. Inicialmente, observe-se
como essa obra carrega elementos recorrentes e característicos da interação
do artífice para com seus trabalhos, visto que nela se encontra a representação
pictórica de um anjo mulato, no centro à esquerda, onde a condição étnica
minoritária, a posição recuada e a entristecida face se fazem notar aos
observadores mais atentos
376
Elemento, aliás, que parece ter passado
despercebido aos olhos dos autores especializados em história da arte
374
ÁVILA, Afonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Perspectiva,
1971, p. 35.
375
SÁ, 1983, v. LVI, p. 46.
376
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.
143-180.
145
pernambucana. Tal elemento pode remeter tanto à posição minoritária do
contingente mulato nas mesas regedoras de muitas irmandades um
contrasenso com a destacada posição economicamente elevada de muitos
deles na sociedade colonial recifense , como sua luta pessoal por fugir ao
anonimato funcional que, a exemplo da própria escravidão, tinha a capacidade
de roubar a identidade nominal e étnica dos artífices do Barroco. De maneira
que a triste expressão daquele anjo, poderia bem ser a representação de sua
própria face convertida em personagem de suas próprias idealizações
pictóricas. Face contristada em virtude dos anseios da gente parda por gozar
das liberdades sociais respiradas nos tempos mercantis.
Fig. 3.5: Forro da Nave Conceição dos
Militares 1777. (pintura que retrata a
Imaculada Conceição, onde aparece [a
esquerda] um anjo mulato, obra que alguns
autores atribuem ao mestre Sepúlveda).
E mesmo que se reconheça o caráter meramente hipotético dessas
reflexões, é a esse raciocínio que têm conduzido os recorrentes indícios de
mestiçagem cultural do Barroco recifense, tão familiares ao legado
sepulvediano. Ainda mais se for considerado que a auto-representação
fisionômica era uma prática bastante comum desde o período da Renascença,
e um costume trazido pelos imigrantes pintores europeus que aportaram no
Recife.
377
De maneira que ao menos uma postura deliberadamente identitária
sobressai nos trabalhos do artífice, sendo mesmo parte de seu inconfundível
377
Cujas obras ainda exerciam certa influência no Barroco luso-americano.
146
„estilo‟.
378
Isso instiga a se fazer um mapeamento de suas obras por toda a
Capitania de Pernambuco, pois dessa análise pode emergir não apenas sua
qualidade técnica como artífice, mas também a grande harmonia e
complementaridade entre as distintas instâncias produtivas da cultura material
do Barroco. É justamente a simbiose entre as várias instâncias artístico-
operacionais da produção que se na relevante pintura do referido forro,
especialmente: entre a pintura e as obras do entalhamento, de autoria
ignorada, mas que, ao que tudo indica, foram especialmente preparadas para
recebê-la.
Quanto à autoria do citado entalhe sabe-se que atuavam à época em
Pernambuco os renomados entalhadores José Gomes de Figueiredo e Filipe
Alexandre da Silva, artífices de perícia inconteste, sob os quais pesam as
suspeitas acerca de sua hibridez étnica, aos quais é conferida a autoria de
praticamente todo o mobiliário existente nas igrejas recifenses. Não se pode
afastar a possibilidade de que de um dos dois seja a autoria dessa “[...] peça
única [que é] uma das mais lindas produzidas pela arte barroca [...] apoteose
da talha, expressão xima desse estranho gênero lusitano”,
379
que
juntamente com a pintura “fazem daquela igreja [...] a capela sistina do estilo
rocaille”.
380
Ainda que Bazin tenha atribuído a talha “a um português de Braga”,
dada a similitude estética único critério por ele utilizado com as esculturas
de pedra Madalena de Falperra
381
e no Santuário de Bom Jesus de Braga.
382
Mas a complementaridade dessas instâncias, pela qual se disse que “[...] o
barroco é horror ao vazio”,
383
pode esconder também a complementaridade de
afazeres mestiços, o mutualismo em que se processavam as artes.
Cumplicidade e perícia funcional, portanto, é o que se observa nessa
composição, pois:
Na Conceição dos Militares, nisto residindo sua notável
qualidade, o mestre da talha substitui o pintor, deixando a esse
apenas a tarefa da pintura das cenas, e realizando em talha,
balaustradas e molduras. Infelizmente se desconhece o autor
do risco deste conjunto entalhado, tampouco se sabe quais os
378
Aqui visto como o perfil de sua produção, constintuindo-se nos traços característicos das
releituras por ele processadas.
379
BAZIN, 1983. v. 1, p. 317.
380
Ibidem, p. 317.
381
Localidade próxima à Cidade de Braga.
382
Ibidem, p. 317.
383
SANT‟ANNA, 1997, p. 13.
147
entalhadores que o executaram; entretanto, posso assegurar,
eram todos excepcionais mestres da sua profissão, haja vista o
resultado obtido, talvez único do gênero.
384
De forma que tal interação foi, na verdade, produto da pluralidade e co-
relação das expressões artísticas do Barroco e das atuações conjuntas que
também contribuíam para que a postura identitária fosse um processo
relativamente consciente dos artesãos em prol das categorias étnicas a que
pertenciam, desfavorecidas dentro do sistema escravista.
Outro importante exemplo de autonomia típico de suas atuações
demonstrado na obra citada, consiste na representação da Virgem grávida,
tendo o ventre aberto transpassado em sentido vertical de maneira a trazer o
feto exposto (fig. 3.6). Um traço futurístico, um exemplo de grande ousadia ante
as normas e posturas restritivas dos setecentos, um indício da intensa conexão
com ideias trazidas nos navios mercantes egressos do „Além Mar‟.
Fig. 3.6: Forro da Nave Conceição dos
Militares, (Detalhe) em que se idealiza a
virgem com o ventre exposto e o feto a
mostra, uma ousadia para uma época de
pleno vigor do tribunal da inquisição (1777).
E é no intento de rastreá-o que se atenta para o traço peculiar do forro
da Igreja da Conceição dos Militares, onde determinados elementos permitem
estabelecer possíveis comparações com obras afins comprovadamente suas,
indicando um possível roteiro das suas atuações funcionais. Concernente ao
citado forro:
384
MENEZES, 1984, p. 42.
148
As cenas [representadas] são extraordinárias e denotam um
pintor de alto nível com domínio da paleta e excelente no
desenho são pinturas cuja qualidade fazem lembrar as
existentes na Igreja do Recolhimento de Nossa Senhora da
Conceição, em Olinda no sub-coro da Igreja do Convento
Franciscano e em outros templos de Pernambuco.
385
Se for novamente lembrado o fato de que a velha capital aristocrata foi o
berço do pintor biografado, e a oponente Vila fidalga do Recife a terra próspera
para onde migrou com a família em busca de oportunidades, se perceberá que:
a) Tanto o trânsito operativo (idas e voltas), quanto às interações
acima salientadas atestam como a competência funcional foi o
elemento que o fez a exemplo de muitos outros se
sobressair às disputas políticas inter-locais.
b) Sua trajetória expressa a importância e o real status da
pintura, como símbolo do poder, instrumento de legitimação
classista e ferramenta étnico e insertiva naquela conjuntura,
pois ninguém estava mais atrelado às camadas elitistas, à
administração local e aos indivíduos empossados nos altos
quadros militares locais na era mercantil quanto os artífices
que trabalharam no período que vai de 1701 a 1789.
Isso significa dizer que locomoções entre os centros do poder e as
cercanias eram comuns, não sendo estranha a presença de obras de sua
autoria nessas imediações.
3.4) Dourado Ocre: as brancas luzes da notoriedade e o apagamento das
contribuições pardas nos registros historiográficos.
A constatação mais instigante é de que se tem em Sepúlveda um claro
exemplo de como a personificação das obras presentes nos registros
documentais representou o apagamento étnico e o silenciamento das
contribuições mestiças. Contribuições que colocam na lista de grandes pintores
mestiços a quem se deve o amestiçamento do Barroco dos grandes
entrepostos urbanos brasileiros, como são os casos do pintor Manuel da Cunha
(1727 1809) e Leandro Joaquim (1738 1798), no Rio de Janeiro; de Manoel
385
MENEZES, 1984, p. 44-45.
149
da Costa Athaíde (1762 1830), no eixo Minas Gerais e Rio de Janeiro; e do
multifacetado e citado Jesuíno Francisco de Paula Gusmão (1764 - 1819)
que atuou entre Rio de Janeiro e São Paulo; dos pintores José Joaquim da
Rocha (1737-1807), José Teóphilo de Jesus (?-1847) e Antônio Joaquim
Franco Velasco (1780, 1833), na Bahia e pares pernambucanos como
Francisco Bezerra e JoRabelo de Vasconcelos e José Elói (Séc. XVIII) no
eixo Recife/Olinda, em Pernambuco. Sendo Sepúlveda na capitania
pernambucana, o mais destacado, tornou-se referência para todos que o
sucederam, como nos fazem saber os registros de época e a literatura mais
recente.
É, portanto, nessas condições que se encontra o citado mestre-pintor,
pois facilmente verifica-se como nas narrativas inclusive várias das que aqui
se utiliza seu nome costumeiramente é colocado indistinta e indevidamente
entre os „grandes artistas barrocos pernambucanos‟, quando, na verdade, seu
valor transcende o estreito horizonte das qualificações artísticas. Isso porque,
mesmo tendo atuado numa conjuntura amplamente favorável para os artífices
de maneira geral, não deixou de sentir os impactos da mentalidade
aristocrática e escravista. O que significa dizer que o reconhecimento técnico
sem a devida ênfase do aspecto étnico, não contribuiu para uma valorização
histórica de seu grupo étnico, que, como foi dito, foi a premissa de suas
obras. Seu caso, portanto, demonstra que mesmo tendo vencido ao contrário
de muitos pares étnicos o profundo anonimato que pairava sobre os
aprendizes (majoritariamente mestiços), demonstra que contiuaram a pesar
sobre ele as manchas “mecânica” e “étnica”, como „máculas‟ em vigorosa
trajetória dentro da dinâmica da produção artística, tão nutrida pelo
preconceito.
Revela, também, que as possibilidades de ascensão social jamais
representaram uma relação de igualdade étnica
386
no Recife setecentista, pois
o estigma da cor sempre fora um elemento de exclusão a esse indivíduo. Logo,
mesmo que seu nome constasse entre os „mais peritos oficiaisda capitania no
ofício da pintura, constrangimentos sempre lhe foram comuns. Isso fica claro
no caso do empreendimento feito “em março de 1764, junto à mesa regedora
386
Ver: LAPA, J. R. Amaral. Economia Colonial. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 44.
150
da Irmandade de São Pedro dos Clérigos para a pintura do forro da igreja de
mesmo nome [...]”,
387
intitulada: “O Primado de São Pedro” (Fig. 3.7), tendo em
vista que um mês depois, quando estavam iniciadas as obras acertadas no
referido acordo, “[...] reuniu-se àquela mesa para cobrar do artífice
„determinada fiança‟, como penhor ao cumprimento do contrato”,
388
o que, diga-
se de passagem, era um fator incomum, ao menos no que se refere à
documentação e registros aqui utilizados.
Mas a relação dos artífices do quilate de Sepúlveda para com a
sociedade, ou mais particularmente, para com seus contratantes, não se
dava no âmbito da condição de inferioridade, não era de mera submissão,
mas de negócios, de barganha, senão de demonstração de forças mesmo e do
poder que lhe concedia tal nível de reconhecimento, sua condição de mestre,
de autor operativo de ator histórico: seu poder de enunciação, seu lugar social
enfim, que seus contatos lhe conferiam a possibilidade de experimentar ou
exercer uma espécie de poder de retaliação, visto que a notoriedade não lhe
condicionava à passividade ante a este tão grande constrangimento. De
maneira que o desenrolar dos fatos induzem a se pensar que haja sido
iniciativa do próprio artífice a interrupção das obras “por pequeno espaço de
tempo”;
389
tempo necessário para retratações da parte da ordem contratante.
Uma demonstração de força, implícita na documentação, incompreendida por
Fernando Pio,
390
nos relatos feitos a partir do Livro de Termos e Receitas
daquela irmandade contratante.
Importante, também, é ressaltar aqui a parcialidade de tão emblemática
querela no registro eclesiástico nisto consistido uma indução ao erro de relato
, não sendo estranho que, em face de sua natureza administrativa e parcial,
ocultem tanto intransigência e ação discriminatória da referida irmandade,
quanto as consequentes retaliações por parte do artífice. Em outras palavras: a
autonomia do pintor ante os acontecimentos. Sobretudo, salienta-se como foi
comum que essas querelas tenham sido vistas pelos historiadores menos
críticos como „meras questões de cunho religioso-administrativo‟, inerentes às
ordens leigas e ou regulares, que, na qualidade de clientes/contratantes,
387
MARTINS, 1974, p. 191.
388
Ibidem, p. 191.
389
PIO 1959, p. 75.
390
Ibidem, p. 75.
151
gozavam da prerrogativa de produzir os termos contratuais. Tal se deu no caso
acima, em que o próprio Sepúlveda parece se apresentar como uma 'vítima'
desses procedimentos de registro, pois concernente ao citado impasse, “não se
sabe como se resolveu à situação, sabe-se apenas que as obras foram
reiniciadas”,
391
após dois meses e seguiram até 1768. Ano em que foi o teto
inaugurado, para grande contentamento, glamour e porfia da irmandade dos
párocos e para falatório das demais. Frisson‟ somente visto quando do término
das obras de douramento da capela dos Terceiros franciscanos onde, como
se viu, também atuou.
Fig. 3.7: “O Primado de São Pedro”. Forro da Nave
principal (abobadada) da Igreja de São Pedro dos
Clérigos 1764-1767 De autoria de João de Deus e
Sepúlveda (hoje atingido pelo mofo).
Não obstante, cabe relembrar seus elos para com os mercadores locais,
negociantes de grosso trato
392
e irmãos terceiros que dominavam o comércio
marítimo-portuário de importação e exportação que, leva a compreender
porque os pigmentos utilizados nessa obra de São Pedro dos Clérigos “vieram
diretamente de Lisboa [...]”,
393
assim como os esboços europeus. Na execução,
porém, somavam-se os modos de preparo e referenciais cromáticos peculiares
391
COSTA, 1981, v. 6, p. 394.
392
Transações comerciais de grande porte.
393
Ibidem, op. cit., v. 6, p. 394.
152
ao universo mestiço herança dos pares e dos mestres-pintores indígenas
atuantes nos entrepostos urbanos e suas anexas.
É bem verdade que os mencionados pigmentos foram direta e
nominalmente adquiridos pela irmandade, como bem ressaltou Costa. Contudo,
acredita-se que esse procedimento dizia respeito estritamente aos trâmites
comerciais ou contratuais, concernentes à modalidade aquisitiva, pois sugere
muito mais o compromisso no que diz respeito ao pagamento das mesmas, do
que à aquisição/recepção propriamente dita. De maneira que sairia um
pesquisador por absolutamente ingênuo ao presumir que um tão valorizado e
requisitado mestre-pintor não dispusesse de meios financeiros próprios, ou dos
canais de relacionamento comercial inerentes à compra da própria matéria-
prima necessária ao exercício de seu ofício; insumos diversos como os
instrumentos da pintura, o ouro para os trabalhos de douramento, modelos e
gravuras sob as quais elaborasse ou reelaborasse suas obras e outros artigos
semelhantes.
Dito isso, se passará agora a mais um exemplo comprobatório da perícia
e grau de reconhecimento funcional do mestre-pintor na capitania. A saber, o
valor da obra acima analisada. Pois “o trabalho foi empreitado por 450$000,
importância paga em três parcelas [...]”.
394
Tratava-se de um valor jamais
alcançado individualmente por uma obra de pintura, não alcançado nem
mesmo até princípios do século seguinte, quando a desvalorização monetária
implicava na economia como um todo. Razão pela qual a quitação financeira só
se fez mediante o cumprimento da referida pintura:
[...] na forma e no risco que havia apresentado fornecendo à
irmandade toda a tinta necessária, na forma do risco que havia
apresentado, e fora visto com a melhor perfeição que se pode
fazer em obra tão pública e de tanto pulso. Nesse trabalho de
pintura do forro estava também incluída a dos arcos, cornijas e
coro.
395
[grifo nosso]
Considerando o reconhecimento ao “risco que havia apresentado”, que
como se pode depreender foi determinante para o arrematamento da obra, o
valor por ele cobrado como intrínseco e justo correspondia acerca de um
terço do valor gasto com a feitura do forro propriamente dito, o qual consta de
394
COSTA, Vol. VI, 1982, p. 393.
395
Ibidem, p. 393.
153
várias instâncias, orçado em “1200$000”
396
e isso implicava reservas por parte
da irmandade e solicitações a título de garantias de execução.
Essa análise, entretanto, vai de encontro a uma espécie de senso
comum vigorante na historiografia do Barroco, que tem como praxe enfatizar,
como elemento justificador dos „excessos‟ e, não obstante, dos vultosos
gastos, a existência de certa 'mentalidade ostentadora‟ figurativa da condição
de nobreza, financeira ou do ímpeto votivo , quando expressão, também, a
política de barganhas, as disputas ofertivas e os favorecimentos, dos quais
artífices, clérigos e mecenas (irmãos), o peças chave. Mesmo que tal
sentimento tenha sido comum no período do Barroco e que isso induza a se
pensar que o custo da obra deva ser entendido como indício de ação
devocional dos contratantes. Mesmo que o valor pago tenha se convertido em
elemento persuasivo no discurso ostentativo, que “o custo da obra, tal era o
espírito do tempo, serviu de tema às conversas da cidade, por ser considerado
elevadíssimo,
397
correspondendo,
398
na época, ao valor equivalente a 4 ou 5
bons escravos, cujo valor individual eram estimados entre 70$000 e 100$000
entre 1760 e 1780, como informara o Governador José César de Menezes.
399
Era, provavelmente, também superior aos vencimentos do então governador
Antônio de Souza Manuel de Menezes (1763-68), que vinte anos depois o
próprio José César de Menezes (1774-83), assumiria a capitania recebendo
igual valor em ordenado.
400
Logo, não se deve pode pensar que tal montante
explique-se apenas no âmbito das dispensações votivas, que o mencionado
valor era realmente alto se comparado aos valores financeiros atingidos por
várias outras obras do mesmo autor, como o douramento da sacristia da
Ordem Terceira em 1732 (252$500),
401
o douramento da sacristia da Igreja de
N. Sr
a
. da Boa Viagem em 1751 (20$000)
402
ou cinco dos vinte painéis na
Igreja de N. Sr
a
.do Carmo em 1760 (345$000).
403
Tal conclusão suscita ainda a comparação com obras realizadas por
outros artífices, como os trabalhos de douramento na igrejinha da Boa Viagem
396
Ibidem, op. cit., v. 7, p. 195.
397
PIO 1559, p. 14.
398
MARTINS, 1974, p.191.
399
MENEZES apud. JÚNIOR, 1976, p. 131.
400
AHU_ACL_CU_015, Cx. 116 D. 8887; AHU_ACL_CU_015, Cx. 116. D.8888.
401
PIO, 1975, p. 45.
402
Ibidem, p. 63.
403
MARTINS, 1974, p.191.
154
em 1802 e 1812,
404
o forro do nartex da Igreja de São Pedro dos Clérigos,
realizado em 1805-1807 (250$000)
405
por Manoel de Jesus Pinto e a pintura
restauradora do retrato de Antônio Fernandes Vieira em 1736 (12$000),
406
de
autoria Antônio de Sepúlveda. De maneira que seja mesmo o pensamento
mais correto se atribuir a cobrança da vultosa quantia às habilidades do pintor,
na medida em que o valor é também capaz de atribuir certa coerência à
mencionada busca por se lhe impor o incomum penhor, em garantia à efetiva
execução. Mesma conclusão a que se chega quando se considera a “falta de
recursos”, alegada pela irmandade de clérigos, em 1723, quando solicitava
isenção de imposto junto a Cúria Romana, alcançada em 1744.
407
Escassez
que se estendeu até o ano de 1759, ano da conclusão do templo. A própria
escolha do artífice entre os muitos pintores que se dispuseram a arrematar a
obra , estava, como foi demonstrado, pautada na indubitável capacidade do
dito em corresponder às expectativas da clientela, operando em alto nível o
esperado resultado, também parece reforçar a idéia de que o valor foi por ele
estabelecido e que ele assim o podia impor. Parece ter sido graças às já
mencionadas conversas e burburinhos que acerca dessa obra despertou,
sempre uma expectativa no Barroco, que Sepúlveda fora re-convocado pela
irmandade para a pintura do teto da sacristia (Fig. 3.8), chega-se à conclusão
de que a irmandade, posteriormente, dera o valor por justo e bem pago.
Aliás, a julgar pelo fato de que naquele Recife mercantil e próspero o
valor desencadeou tantos burburinhos, conclui-se que o mulato Sepúlveda,
firmado na sua grande perícia, surpreendeu até mesmo uma sociedade
capitalizada e acostumada aos grandes gastos a que lhe inclinava a suposta
mentalidade ostentatória dos irmãos e devotos setecentistas. Ao rmino da
obra estavam, ao mesmo tempo, consagrado e notabilizado o mestre mestiço e
superadas tais expectativas. O que demonstra que apesar dos atritos com a
citada irmandade, pesava mais a sua paleta, cromaticamente mestiça, mas
deveras requisitada. Tudo isso parece reforçar a idéia de que Sepúlveda gozou
de um nível gradual e relativo mas elevado de liberdade naquela sociedade
eminentemente escravocrata. Prestígio que parece ser asseverado
404
Ibidem, op. cit., 1961, p. 67.
405
Ibidem, 1959, p. 65.
406
Ibidem, 1961, p. 67-68.
407
COSTA, v. 6, p. 391.
155
historicamente pelos críticos da arte, uma vez que o próprio trabalho de pintura
entraria para os estudos do barroco, como “o mais notável dos trabalhos
pictóricos do Barroco pernambucano”.
408
Prestígio mulato vale dizer. Matiz
esse oculto mediante o apagamento étnico operado por descrições de caráter
estético-morfológico como a seguinte, concernente ao mesmo forro côncavo
da Igreja dos Clérigos:
Uma abóbada de madeira de grande dimensão é entregue em
1760, ao pintor João de Deus Sepúlveda. Nela o pintor cria em
perspectiva central um espaço ilusório, com elementos
arquitetônicos de uma linguagem eminentemente barroca de
teor romano. Um teto „a românica‟, como se poderia dizer
naquele século.
409
[grifos nossos]
Fig. 3.8: A instituição do
apostolado. Forro da sacristia
da Igreja de São Pedro dos
Clérigos (1764-68?) De
autoria do mulato João de Deus
Sepúlveda.
Ainda os comentários de Menezes denotem questões de natureza
eminentemente técnica e de caráter estético e estilístico, ignoram, porém, que
a integração com o projeto arquitetônico dos mestres-pedreiros que lhe
antecederam e com o mestre carpinteiro que projetou, redobrou e encaixou o
madeiramento numa forma geometricamente oval e côncava aproveitada
pelo pintor para a produção de uma perspectiva de espaço ilusório
perpassaram elaborações suas e de teor muito mais relevantes para uma
sociedade escravocrata; intervenções de natureza étnica e cultural por ele
408
PIO, 1959, p. 75.
409
MENEZES, 1984, p. 16.
156
processadas. Destaca-se a representação de um clérigo mulato situado, como
de costume, à esquerda, em posição recuada e em percentual minoritário.
Como que a contestar a proibição estatutária à presença de mestiços nos
quadros clericais da irmandade contratante, datado de 1713, artigo
incansavelmente contestado e que resultou na emblemática querela em torno
da solicitação de inclusão feita pelos padres pardos da capitania em 1732 e
1742,
410
querela a que talvez se reporte a mestiça e ousada paleta
sepulvediana.
3.5) O legado branco de um mestre-mulato: cadeias de inserção e
trajetória funcional.
O principal aspecto que se deseja captar na trajetória de Sepúlveda, a
título de explicitar a dinâmica de produção pictórica, é a tessitura sócio-
funcional e o processo de formação de pares dentro das redes de trabalho. Ou
seja, os rostos ocultos no anonimato e que emergirão no campo pictórico ao
topo dos “mais peritos” em que estava um seleto contingente de artífices,
„nacionais‟ e estrangeiros, brancos e mestiços, dentre os quais figurava o
mestre Sepúlveda. Um desses muitos rostos parece fluir do relato acerca das
condições de execução da obra do forro da Igreja de São Pedro feito com base
no Livro de Atas do período compreendido entre 1717 e 1746:
Quatro anos durou o penoso serviço que suscitou a Sepúlveda
horas de grandes sacrifícios e aborrecimentos: deitado numa
cama de lona ou de tábua suspensa em carretéis; [na qual]
Sepúlveda, de manhã à de noite, combinava tintas e pinturas
com paciência e tenacidade surpreendentes
411
.
Pode-se perceber que um trabalho desta natureza, de maneira nenhuma
poderia ser realizado sem o apoio de um auxiliar, que trabalhasse na
montagem das plataformas, estruturas de suporte provisório, sobretudo em
lugares muito elevados como no caso do forro ; efetuando misturas de
pigmentos, evitando escorrimentos na pintura ou ressecamento das tintas,
entre outras atividades. Sub-funções que o patamar de mestre-oficial
410
AHU_ACL_CU_015, Cx. 43, D. 3920; Cx. 57, D. 4943.
411
PIO, 1959, p. 75.
157
demandava e a viabilidade das obras impunham ter-se à disposição.
412
Aprendizes não necessariamente especializados, mas que o tempo e o esforço
pessoal se encarregavam de aprimorar, um aparato humano composto
majoritariamente por mestiços. Anônimos mecânicos que estavam sempre,
sub-repticiamente subentendidos nas entrelinhas das fontes documentais e
registros de contratação e, por sua vez, das narrativas que a eles recorrem,
como ocorre nesse caso.
Surpreendente é, porém, o fato de que dentre seus auxiliares estivera
ninguém menos que Manoel de Jesus Pinto, artífice branco, reconhecidamente
qualificado e notabilizado pela historiografia especializada mais recente. Irmão
dos de Nossa Senhora do Terço,
413
muito provavelmente era desprovido de
grandes condições financeiras, pelo que se depreende do comentário abaixo:
Os irmãos de Nossa Senhora do Terço eram, na sua maior
parte, como ainda o são da pequena classe média, que
constituía a população das vizinhanças da igreja: comerciantes,
artífices, mulheres que viviam de seu trabalho.
414
Teve como herança maior o reconhecimento, alcançado juntamente com
a condição de mestre-pintor, além, é claro, da clientela da vila recifense, pois é
posteriormente encontrado pelos irmãos terceiros de Santo Antônio do Recife e
trabalhando em importantes templos como a Igreja do Santíssimo Sacramento
e Santo Antônio do Recife, de São Pedro dos Clérigos
415
, igrejas de Nossa
senhora da Boa Viagem e de Nossa Senhora do Terço, de cuja irmandade fora
membro “[...] juntamente com a esposa” e posteriormente “juiz de mesa”;
416
Trabalhou ainda na Ordem do Carmo do Recife.
417
Todos esses lugares
412
O que de certa maneira encurta sensivelmente a distância entre a concepção da pintura
como a produção meramente intelectual e relativisa a condição de ofício inerente ao campo
das “belas artes” configuração no discurso oitocentista revelando o caráter operacional e
mecânico; a concepção prática inerente à dinâmica produtiva do período setecentista. (DUKE,
1995, p. 139-234; GOMBRICK, 1985, p. 375 379). Perceber essa proximidade parece
necessário para se compreender o grau de interação (interdiscursividade „estilística‟) operado
pelos indivíduos e as formas a partir pluralidade de elementos referenciais e como elemento
misto e simbólico referente a essa mesma diversidade, haja visto constituir-se na re-elaboração
cultural processadas pelos agentes operacionais e a inscrição desses elementos estranhos a
cultura européia como fatores de mestiçagem.
413
Cf: MELLO, José Antônio Gonçalves de. A Igreja de Nossa Senhora do Terço. Recife:
Secretaria de Educação e Cultura, 1984, p. 12-13.
414
Ibidem, p. 12.
415
SMITH, 1979, p. 51-98.
416
MELLO, José Antônio Gonçalves de. A Igreja de Nossa Senhora do Terço. Recife:
Secretaria de Educação e Cultura, 1984, p. 12-13.
417
Ver: MARTINS, 1974, p. 161.
158
trabalhados exceção feita à primeira igreja pelo seu mestre-mestiço. Mas
também seguiu os passos de Sepúlveda inclusive na carreira militar, que foi
alferes do regimento da Milícia do Recife.
418
Seria de se estranhar à primeira vista essa hierarquia étnico-funcional,
de fato pouco comum. Porém, é preciso lembrar que desde o século XVII, e
sobretudo em todo o XVIII, no
Recife [mercantil] mesclava-se sem preconceitos, dentro de um
sentido igualitário, alheios a estratificações sociais, homens de
origem modesta, sem quaisquer tiques de aristocracia,
preocupados exclusivamente em ganhar dinheiro, sendo
olhada com menosprezo pela chamada fidalguia rural, cujo
epicentro localizava em Olinda.
419
Ainda que com alguma ressalva no sentido de que pareça
generalizante invoca-se aqui o comentário de Holanda, quando nos relata
que “[...] no fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de
modo cabal entre nós. [Pois...] toda hierarquia funda-se necessariamente em
privilégios
420
“. Privilégios esses que a condição de mestre-pintor ainda que
mestiço parece ter legado a Sepúlveda e a seu discípulo branco. Aos olhos
da sociedade do XVIII, porém, essa articulação relativamente harmônica no
âmbito das atividades funcionais e econômicas maquiava, na verdade, a
expressão de preconceito sofrido por mestiços, fossem eles de qualquer
patamar econômico funcional ou social. que Pinto, mesmo não tendo
superado ao mestre, quanto ao aperfeiçoamento técnico, como se pode
observar numa comparação entre a pintura do forro da nave central (Sepúlveda
1764-68), e a do coro (Fig. 3.9) (Manoel de Jesus Pinto 1806-7), foi diversas
vezes qualificado como “Artista de relativa ilustração intelectual”, “de
qualidade”, “de sangue puro”, “sem mescla de africanismo”. A explicação é
simples: tais adjetivos derivavam mais de sua condição étnica que da condição
de “excelente pintor” e “extraordinário dourador”.
421
418
AHU_ACL_CU_015, Cx. 235 D.15867.
419
GUERRA, Flavio. Nordeste um século de silêncio (1654-1755). Recife: ASA, 1985 p. 130.
420
HOLANDA, 2004, p. 34-35.
421
Se forem consideradas as origens humildes de Manoel de Jesus Pinto, parece haver no
Recife setecentista uma ressignificação do termo “qualidade”, que na França do mesmo
período designava o “status de nobreza e ou riqueza, sendo no entreposto pernambucano
designativo das qualificações étnicas. (Ver: RICHELET, apud. CHARTIER, Roger. A História
Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: DIFEL, 2002, p. 193; MARTINS, 1974, p.
161).
159
Tais conceituações sugerem uma implícita face do preconceito
mordaz direcionado ao mulato instrutor, revelando a tensão implícita e as
ambíguas relações entre os agentes mestiços e seus contratantes, que se
deram tanto nas instâncias das negociações, quanto nos constantes conflitos
sociais. Na verdade, elas se situam no nível dos embates e estratégias
cotidianas desenvolvidas em detrimento dos obstáculos impostos pelos
preconceitos sofridos no percurso de toda a trajetória sócio-funcional, o que
também o patamar de especialização de Sepúlveda atingira para ser digno de
tamanho reconhecimento.
Fig. 3.9: Pintura do coro da
Igreja de São Pedro dos
Clérigos (1806-7) representando
“A fundação da igreja” De
autoria do pintor branco Manoel
de Jesus Pinto ex - aprendiz de
João de Deus Sepúlveda.
3.6) Cores mistas que o tempo apaga; nomes mestiços que o tempo aviva.
Mais que a técnica individual em certa medida o reconhecimento
tornou-se mesmo uma herança deixada por João de Deus a seu aprendiz, que
foi o artífice:
[...] responsável pela pintura da talha e frisos de toda a igreja
[de Santo Antônio], incluindo o com os balaustres laterais e as
safenas. De sua autoria é o painel do espírito Santo, existente
no altar do consistório, no qual os negros mulatos despertam a
atenções do observador.
422
Ao contrário de denotarem indícios de africanismo étnico, tais sinais
incomuns nas suas obras constituíram, na verdade, um tributo ao saudoso
422
SILVA, Leonardo Dantas. Pernambuco preservado. Recife: Edição do Autor, 2002, 198-
199.
160
mestre, cujos valiosos ensinamentos e as heranças técnica e social bem
soubera Pinto retribuir com essa pequena, mas significativa homenagem. Ou
ainda com aquela deixada na Igreja votiva à Senhora dos negros recifenses, na
qual:
Além da imagem de Nossa Senhora do Rosário, merece
destaque numa vista do painel do primitivo caso da capela mor
(séc XVIII), no qual aparece a virgem entregando o rosário de
São Domingos, inspirador da Ordem, ladeada por querubins
mulatos
423
.
Como se disse, esses elementos mestiços não são constatáveis nas
demais obras de Manoel de Jesus, sejam elas de anterior ou posterior
realização dessas obras. É importante lembrar que esses empreendimentos
coincidem com o período da morte de Sepúlveda o que fortalece o argumento
de que esses caracteres constituíram uma homenagem póstuma a sua pessoa.
Contudo, a genialidade do mestre Sepúlveda não se expressava
unicamente no fato de ter contado com auxiliares tão competentes, mas ainda
pelas sucessivas contratações por uma mesma irmandade, como a terceira
carmelita sua cliente mais assídua onde compareceu:
Em 20 de Abril de 1760 [quando] foi ajustado pelos irmãos da
Ordem Terceira do Carmo com o mestre pintor [...] a pintura e
douração dos cinco painéis à cobertura do púlpito pela quantia
de 345$000.
424
Trata-se do painel retratando a vida de Santa Teresa (fig. 3.10), obra
importante, composta de várias passagens da vida da madre carmelita. Tal
obra viria a comprovar como o prestígio do artífice transcendeu a época em
que viveu, chegando ao século XIX e às narrativas mais recentes, pois
induzidas obviamente pela documentação invariavelmente consagram-lhe a
paleta, quando criticam a imperícia dos retoques oitocentistas ações comuns
no XIX , corretivos dos desgastes operados pelo tempo.
Sabe-se que tais restauros implicavam, quase sempre, em mudanças de
concepção estética, inerentes aos diferentes períodos históricos de suas
realizações, mas cabe enfatizar que, mesmo sendo o XIX época em que se
deram os retoques um período de hostilidade ao Barroco, o público
pernambucano ainda rendia-se ao legado do mulato pintor. Assim como os
423
SMITH, 1979, p. 68.
424
PIO, 1959, p. 72.
161
pesquisadores mais contemporâneos, que tendem a manifestar o profundo
descontentamento com a ruptura estética, a incoerência com a técnica e nível
de destreza presentes nas obras originais, como pode ver no relato abaixo:
Seria também grandiosa relíquia da arte pernambucana se a
mão dos retocadores não houvesse, alguns anos atrás,
quase subvertidos a grandeza inicial das pinturas
representando os passos da vida de Santa Tereza. As pinturas
do forro do coro em Santa Tereza.
425
[grifos nossos]
Fig. 3.10: Painel retratando A Vida De Santa
Tereza”, forro da Igreja da Ordem Carmelita
do Recife, de João de Deus e Sepúlveda
(1760-64).
Do relato sobressai a excelência cnica da obra. Primor que os
retocadores grandes artistas de sua época não puderam igualar. Mesmo
sendo comum que uma obra fosse retocada posteriormente à sua execução,
casos infelizes de retoques tenderam à deturpação estética dos originais e
quase levaram significativos trabalhos de artífices setecentistas, como parece
ser o caso acima, em que está em questão uma obra de Sepúlveda.
Assim, se pode depreender que as mesmas narrativas que têm avivado
o legado sepulvediano e seu papel de referencial para os seguidores e
425
CARRAZONI, Maria Eliza. Guia dos Bens tombados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura,
1980, p. 72.
162
sucessores no ofício das tintas, têm, ao mesmo tempo, „apagado‟, por assim
dizer, a identidade étnica do artífice; a memória e as contribuições da gente
parda, e, com isso, os símbolos mestiços da pintura barroca recifense que isso
representava incompreendidos nessas análises que se referiam e
dialogavam com as ações desses mesmos pares e seguidores. Símbolos
incompreendidos em face das análises estéticas e estilísticas em torno da
pluralidade de formas reduzidas genericamente talvez , ao conceito europeu
e eurocêntrico de Barroco. Pluralidade, étnica antes de tudo, que reverberava
na diversidade cromática e simbólica da paleta sepulvediana, e que a
compreensão desses embates que permeavam a produção pictórica tende a
revelar. Razão, aliás, pela qual se disse que “a pintura é algo espiritualizado”,
sendo, ao mesmo tempo, naquela Recife setecentista mercantil; onde foi
sempre uma ferramenta ilustre na expressão dos sentimentos e das aspirações
singulares (pessoais) dos artífices; um canal eficaz de aclamação e clamor
social, assumindo assim o papel de voz e fala de uma determinada
coletividade. O que se estende, mais amplamente, ao campo das belas artes,
pois nisto “a pintura é como a música”,
426
como se verá em seguida.
426
Frases do pintor BALTHUS Baltasar Klossowski (1908-2001), autor da famosa e
enigmática tela “A aula de violão”, apud. MARINHO, Madie e Jaildo. Ver: Revista da Editora
MASSANGANA. Edição comemorativa de 29 de agosto de 2004, p. 86-87.
163
4) Luis Alves Pinto: Acordes mestiços da música barroca pernambucana.
“Ao valorizarmos categorias artificiais
negligenciamos os grupos múltiplos,
móveis ou estratificados a que se
ligavam os protagonistas desta
história”.
427
Serge Gruzinski
Seria absolutamente dispensável no presente trabalho a citação do
músico setecentista pernambucano Luis Alves Pinto, em face da lúcida e
detalhada narrativa biográfica ainda que sucinta feita por Pereira da Costa
e reforçada pelo relato de Sebastião Galvão, não fosse sua presença
imprescindível, no sentido de se explicar, a partir de sua atuação, a correlação
entre as várias instâncias de produção cultural do Barroco. Ou, ainda, para
demonstrar a configuração das diversas atividades a ela inerentes como
campos férteis às estratégias de sobrevivência. Ou, então, para a identificação
das habilidades manifestas individualmente como fatores determinantes na
inserção e distinção social.
Da mesma forma, para analisar como, num dado contexto, as aptidões
para essas tarefas se converteram em vias à mobilidade econômica para
muitos membros das camadas subalternas, destacando-se as mudanças
políticas advindas desse processo. E, por fim, por possibilitar a percepção das
implicações da participação dos indivíduos não europeus no processo
produtivo musical: como a introdução de elementos externos ao referencial
tridentino luso-europeu (rítmicos, simbólicos, metodológicas, instrumentais,
etc.), que provocaram profundas rupturas estéticas e estilísticas,
proporcionando o fortalecimento da identidade étnica, pessoal e grupal, na vila
do Recife, em Pernambuco e mesmo em termos regionais, Capitanias do
Norte.
Desde já, é preciso dizer que sua trajetória, que compreende o intervalo
entre 1719 e 1789, exemplifica como a arte musical possibilitou aos negros,
índios e mulatos, no contesto laico mercantil dos setecentos ao contrário dos
primórdios da colonização, quando sofria mais fortemente a influência jesuítica
427
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.
52.
164
, diversos e crescentes níveis de liberdade dentro das sociedades escravistas
urbanas coloniais das capitanias brasileiras, sobretudo Recife, Salvador e Rio
de Janeiro, dada a relação político-comercial e os intercâmbios culturais que a
conjuntura possibilitava.
Em termos sociais, seu percurso exemplifica os caminhos demarcados,
restritos e corporativos tanto da inserção funcional (aprendizado), quanto do
exercício operacional (Carreira) da arte musical nessas regiões. E como um
vigoroso trânsito interclassista foi vivenciado pelos artífices das baixas
camadas da população recifense, num período ainda isento de ideais
abolicionistas.
428
Isso por que, mesmo sendo apenas mais um entre tantos
outros mulatos que militavam contra os obstáculos advindos do sistema de
dominação colonial, teve Alves Pinto no talento para o ofício das notas,
espaços, claves e compassos, seu diferencial e grande ferramenta de
locomoção. Sua sorte principiou no fato de que a música era um ofício, em cuja
inserção era etnicamente irrestrita que estava calcado nas habilidades
inatas e expressava, como em nenhum outro, o cosmopolitismo das regiões
economicamente dinâmicas, perpassando assim as convulsões sociais
inerentes ao cotidiano escravista urbano.
Logo, o percurso de Alves Pinto deve ser pensado como parte integrante
e emblemática dos embates sociais, políticos e econômicos da colônia e em
face do contexto de intercâmbios entre as regiões costeiras e ou entrepostos
lusos ultramarinos do XVIII. Pois:
No Nordeste [Norte], nessa época, está se formulando também
uma cultura original a partir da mestiçagem de europeus, índios
e negros. Surgem os compositores como Luis Alves Pinto, que
chega a fazer óperas encenadas na Casa da Ópera do Recife.
E inúmeros pintores mestiços, como José Rabelo de
Vasconcelos, ou entalhadores como Filipe Alexandre da Silva,
que decoraram as igrejas de Pernambuco.
429
[grifos nossos]
De fato, em termos estilísticos, sobressai a amplitude temática, a
pluralidade e interatividade das formas das modalidades e ou expressões
musicais sacras e profanas resultantes desse processo. O que, por sua vez,
428
Os ideais abolicionistas surgiram na Europa no cerne do pensamento iluminista tendo como
seu primeiro bastião a abolição escravista na Dinamarca (1792). Cf. FARO, Luis Pereira
Ferreira de. Direito internacional público, Rio de Janeiro: Haddad, 1960, p. 193.
429
SANT‟ANA, Affonso Romano de. Barroco: alma do Brasil. Rio de Janeiro: Comunicação
Máxima/Bradesco, 1997, p. 64.
165
eleva às questões sociais em detrimento às estéticas, bem menos resistentes
no que tange ao processo criativo, nas operações dos artífices sediados na vila
portuária e sede da capitania. Esse direcionamento tem servido de parâmetro
aos historiadores da música colonial. Sobretudo no que se refere à análise das
obras produzidas em regiões política, social, econômica e culturalmente
diferenciadas, como o Recife colonial e mercantil setecentista, a Lisboa
absolutista pombalina e a Roma jesuítica contra-reformista, por exemplo,
sobretudo se tais lugares viviam momentos de transição, como as que se
operou nesses lugares à época em que viveu e atuou Alves Pinto.
Disparidades em que parece se diluir, ao menos em termos de abrangência, o
ciclo inscrito na tríade Barroco, Rococó, Nelclassisismo. A tais pesquisadores
se aconselha:
Não [...] ignorar a interpenetrabilidade própria dos momentos
de transição nem tampouco relegar a plano secundário as
características e posturas individuais de cada um dos criadores
que se destacam num mesmo período. Não devemos nos
preocupar em tentar enquadrar a música, a qualquer força, no
rol das outras artes, ou mesmo procurar justificativas de ordem
social ou políticas que permitam apegar-lhes um rótulo de
identificação.
430
Devendo-se atentar para a fluição e fruição das imbricações estilísticas,
já que, na verdade, as questões de ordem social tendem a pluralizar a arte
musical. De maneira que, se por um lado,
[...] Toda e qualquer classificação deve ater-se, única e
exclusivamente, ao reconhecimento das características
encontradas nas obras dos compositores que viveram no
mesmo momento histórico, confrontando-os com as conquistas
técnicas daquele momento, independentemente de pretender
pespegar-lhes qualquer juízo de outra ordem que não
exclusivamente estética.
431
Por outro, não se pode ignorar que em determinados contextos da era
colonial o exercício da atividade musical abriu caminho para as contribuições
da gente não-européia, assim como para a formação e fortalecimento dos laços
de identidade classista, étnica e cultural. Foi o que ocorreu com Alves Pinto.
A própria integração da música às demais instâncias artísticas, era
produto tanto da integração das expressões no conjunto artístico (o templo, por
430
VASCONCELOS-CORRÊA, Sergio de. Música brasileira, Barroco (?) brasileiro, TIRAPELLI,
Percival. Barroco, Memória Viva: Arte Sacra Colonial. São Paulo: UNESP, 2005, p. 236.
431
Ibidem, In: Ibidem, p. 236.
166
exemplo), quanto da ostensiva interação entre executores em meio à dinâmica
produtiva.
Isso, evidentemente, fortalecia a subjetivação da própria produção e dos
métodos nela empregados em prol da ressignificação simbólica e morfológica,
convertendo-a em elemento simbólico do pensar, produzir e vivenciar o
Barroco. O caso de Alves Pinto é um emblemático exemplo, porque a música
setecentista era campo privilegiado da sociabilidade, pertencente ao campo
das “Belas Artes”, assim como a pintura, escultura, douração, o canto, a
regência, olaria e azulejaria
432
(o que explica a correlação e
complementaridade existente entre tais instâncias culturais). Isso significa dizer
que possuía um alto poder de enobrecimento individual, mas facilmente
transposto para a(s) coletividade(s) étnica, socioeconômica, etc.
Esse processo insertivo leva a perceber como ao granjearem, dentro
conjuntura setecentista, ocupar os espaços de gradual e relativa liberdade em
que se constituíam as artes e os ofícios mecânicos, indivíduos talentosos como
Luis Alves, mas etnicamente desfavorecidos dentro da ordem do regime
escravista, buscavam na verdade meios para romper com a lógica social e
hierárquica nele instituída. Razão pela qual, havendo eles alcançado renome e
fama, logravam também superar grupal e paulatinamente as adversidades que
lhes eram previamente impostas pelo preconceito étnico e pela pseudo-
inferioridade intelectual. Para isso, porém, a receita era tão eficaz quanto
consensual: interagir mútua e corporativamente com a cultura localmente
produzida, campo marcado por toda sorte de embates típicos do universo
colonial (sociais, econômicos, políticos e religiosos), e onde tais demandas
conflituosas eram expressas simbolicamente. Ademais, contava-se, inclusive,
com a permissividade das próprias estruturas administrativas da sociedade
colonial e não raro com o envolvimento dos gestores. É nesse sentido que se
pode desenvolver as seguintes considerações, o apenas no intuito de
simplesmente biografá-lo tarefa cumprida por outros autores mas de
exemplificar a dinâmica de barganhas e a circularidade cultural que envolvia o
trabalho de produção.
432
Ver: LEITE apud FILHO, Egydio Colombo. Sobre os abjetos barrocos. In: Ibidem, p. 150.
167
4.1) Passos compassados: primeiras notas, espaços fluentes, tons
sustenidos, solfejos em escala crescente.
Com a palavra Pereira da Costa, para anunciar que era esse artífice um
indivíduo de origem humilde: Natural “[...] da Freguesia da Boa Vista da cidade
do Recife [...]“,
433
assim como o estudado mestre Sepúlveda, um amigo
pessoal. Teria nascido “[...] pelos anos de 1719 [...]“,
434
filho natural de “[...] pais
pardos [... o senhor... ] Brasílio Alves Pinto e sua mulher Euzébia Maria de
Oliveira[...]”.
435
Se também uma relação de parentesco ou uma rompida
laço escravista com frei Antonio Alves Pinto,
436
primeiro ministro da mesa
regedora e um dos fundadores da Ordem Terceira de São Francisco do Recife,
não se sabe nem caberia aqui maiores desdobramentos no intento de reforçar
essa hipótese. Fica, porém o registro a título de possibilidade genealógica,
calcado que está na onomástica e num primeiro olhar de relance para o
distante século XVIII recifense.
Em termos concretos, no entanto, sabe-se que os pais, mesmo sendo
pobres, não o desamparam à mercê da sorte tão rara e valiosa num universo
escravista , sempre nutrida pela diferenciação. Ao contrário, estando
profundamente vinculados às atividades do comércio local e gozando de
relevantes conhecimentos e vínculos pessoais com mercadores atlânticos de
Recife, utilizaram-se da razoável condição social, da visão deveras perspicaz,
do acesso às informações, idéias e tendências circulantes naquela praça
comercial para, desde cedo, apostarem no grande interesse do filho pelos
estudos. Como resultado da perspicácia paternal, do labor comercial e dos
contatos daí oriundos lhes adveio o dinheiro para tão distinto investimento
educacional, que se somou a tantas outras facilitações no caminho do jovem
filho mestiço.
Jovem vigoroso no latim e na retórica, apresentou muito precocemente
inclinações para a música erudita “em cuja arte, se lhe administravam os
433
COSTA, F. A. Pereira da. Dicionário Bibliográfico de Pernambucanos Célebres. Recife:
Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1982, p. 617.
434
Ibidem, p. 617.
435
Ibidem, p. 617.
436
JABOATÃO, (Frei) Antônio de Santa Maria Jaboatão. Novo orbe seráfico brasílico ou
Chronica dos frades Menores da Província de Pernambuco, Livro I. Recife: Assembléia
Legislativa de Pernambuco, 1980, p. 463-464.
168
prenúncios de um gênio luminoso”.
437
Talento que certamente nutriu o grande
orgulho em de seus pais, porém muito mais valioso no que tange à sua própria
sorte na difícil luta pela vida. Tamanho ímpeto também não passou
despercebido à sociedade local, considerando-se a narrativa do mesmo Costa,
quando prosseguia dizendo que, a certa altura da vida, ainda na juventude,
quando “[...] terminados seus estudos, alguns amigos solícitos no
aproveitamento de seu talento, prestaram-se a facilitar-lhes os meios de
estudar em Portugal”.
438
Isso ocorreu no ano de 1740, em que respondia pelo
comando da capitania Henrique Luiz Pereira Freire de Andrada, que a
governou entre 1737 e 1746 sob forte motivação construtiva e estímulo à
produção cultural, vinculado que estava à administração da Corte. De fato,
Portugal vivia nesta época os dourados anos da produção aurífera brasileira,
recuperando-se de uma longa crise que houvera, inclusive, feito migrar para
suas possessões ultramarinas seus melhores artesãos. Era então governado
por D. João V [1689-1750], chamado “O Magnânimo” ou “Rei-Sol português”,
devido à sua intelectualidade, gestada em berços jesuíticos, e pela riqueza,
exuberância e pujança cultural Barroca tridentina a que levou o país durante
seu longo reinado [1706-1750], convertendo a nação em entreposto comercial
e florescente centro da cultura Barroca européia.
439
Não obstante,
[...] desde o reinado de D.João V [...], a influência italiana se
afirmava naquele país, tanto pela introdução da ópera italiana
na corte, a partir de 1720, amplamente cultivada após 1735,
com a conseqüente presença de músicos italianos nas cidades
portuguesas, como também pelo cultivo do hábito real de
ofertar pensões para estudantes e compositores para
estudarem ou se aperfeiçoarem na Itália.
440
Como se vê, o fluxo migratório naquela época foi um processo pendular,
pois com tanta ênfase na formação intelectual e artística dos nacionais, a pátria
portuguesa havia, em contrapartida, se tornando convidativa ao fluxo de
437
Ibidem, op. cit. p. 617.
438
Ibidem, p. 617.
439
Foi no reinado de D. João V, que a Santa Sé atribuiu à Lisboa a dignidade de Patriarcado, a
par de Roma e de Veneza, tornando-se, assim, o arcebispo lisboeta D. Tomás de Almeida um
dos três patriarcas do Ocidente, o que corroborava para o fortalecimento, em Portugal, da
cultura barroca, originaria da Itália. (Cf. PORTUGAL - Dicionário Histórico, Corográfico,
Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. V. III, Lisboa: 1904, p. 1048-
1050). Mas cabe salientar, no entanto, que a pujança cultural portuguesa custaria um profundo
desequilíbrio na balança comercial daquele país.
440
DUPRAT, Regis. O barroco musical do Brasil. In: TIRAPELLI, 2005, p. 232.
169
aventureiros artistas estrangeiros dotados de pronunciadas habilidades. Com
postura anfitriã de Sua Majestade, migrar para a corte portuguesa tornou-se
sinônimo de „tentar a sorte‟, e nesta busca se lançaram estrangeiros egressos
de outros centros econômicos e do barroco como a Inglaterra, França e
Alemanha. Também houve espaço para colonos brasileiros, peritos nas artes
musicais, sobretudo, como foi o caso de Pinto. Trilhava, com isso, o caminho
inverso aos muitos artífices lusitanos que, em tempos de crise, ou levados pelo
sonho de enriquecimento rápido nas minas, vieram tentar a sorte na colônia e
depois regressar para a metrópole. Sua ida, porém, deve ser analisada em
seus diversos aspectos, pois as implicações dessa viagem são bem mais
profundas.
Primeiramente, é preciso vê-la sob o ponto de vista da relação transição
X permanência geográfica, pois mesmo reconhecendo a relevância do fato de
que para sua migração contribuía a vertiginosa rota comercial Recife-Lisboa,
ou a recorrência de sonhadores artesãos lisboetas que viajavam para a colônia
e vice-versa, seus impulsos não foram tão sumários, nem suas motivações tão
efêmeras. Ao contrário da grande maioria deles, sua viagem à corte estava
firmada em ideais de vida: formação intelectual, introdução ao mercado de
trabalho artístico, realização pessoal. Almejava, portanto, a fixação geográfica
senão permanente, mas prolongada. O que talvez possa parecer incomum
para descendentes de africanos. Sabe-se, entretanto, que não era bem assim,
ao menos para a primeira metade do XVIII nisso sim residindo a relevância
de sua ida em particular. Logo, deve ser reconhecida a proeza dessa viagem,
pois permite enfatizar a importância das subreptícias ações da micro-política
étnico-grupal que a viabilizaram. Práticas ocultas, quase sempre, nas análise
meramente biográfica e morfológicas, pois a ida de Alves Pinto ao Reino
parece sim até mesmo em virtude da mencionada condição favorável de
Portugal um evento precursor e indiciário de um rico leque de possibilidades
abertas, conjunturalmente, aos dotados de ímpar talento musical, fossem eles
de quaisquer matizes étnicos. É o que se depreende do caso do também pardo
recifense Manoel de Almeida Botelho, que seguiu em 1749, nove anos depois,
o mesmo rumo beneficiado igualmente pela rota mercantil Recife-Lisboa ,
170
tendo alcançado êxito na capital metropolitana.
441
Ou, ainda, do igualmente
pardo recifense Domingos de e Silva, capitão de artilharia que viajou para o
Reino por volta de 1751, ajudado pelo tio, o pernambucano e possivelmente
mulato Manoel Gonçalves de Azevedo, assistente em Lisboa, que contribuiu
para sua formação em música e advocacia na ilustre Universidade de Coimbra
destino dos filhos da gente abastada colonial brasileira. Domingos estudara
ainda no Colégio dos Jesuítas da mesma cidade, alcançando, ainda como
aluno, respeito de mestre-músico.
442
Assim, a radiciação desses músicos
pardos no Reino configura-se um fator deveras importante e disso sobressai a
segunda questão: a saber, o patamar econômico, o esforço e os interesses dos
sujeitos sociais implicitamente atuantes no empreendimento dessas viagens e
os propósitos que os motivavam.
No que tange a esse segundo aspecto, a viagem e permanência de
Pinto na corte reafirmam a estreita relação entre as cnicas musicistas, as
oportunidades mercantis ultramarinas e o mutualismo étnico. Correlação capaz
de explicar a origem dos recursos com que, do Recife, os tais “amigos” –
aparentemente dotados de relativo poder financeiro, estreito vínculo com a
produção cultural e visíveis laços de identidade étnica custearam sua ida e
aprendizado em solo metropolitano, onde “estudou a arte da composição ou
contraponto, do que fez solene exame, com aprovação e louvores mui
lisonjeiros [...]”
443
dos mestres lisboetas. Como se vê, não era a destreza
precoce indício de um baixo nível da produção musical recifense, mas, ao
contrário, do grande potencial localmente existente, sobretudo entre os
desprovidos de “valor” e “qualidades” étnicas, que pouco tinham a perdem
numa viagem tão aventureira. É o que se conclui do reconhecimento de Pinto
por parte do exigente e seleto meio musical lisboeta.
Sua fascinante trajetória, por sua vez, remete ao terceiro aspecto
concernente à questão cultural, ou seja: ao lugar fronteiriço da arte musical
numa sociedade européia e cosmopolita como a Lisboa joanina. No tocante a
esse ponto, é interessante perceber como, numa sociedade cujo histórico
processo de hibridização (luso-mouro) não mais comprometia tão fortemente
441
COUTO, Domingos do Loreto. Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco. Recife:
Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1981, p. 384.
442
Ibidem, p. 384-385.
443
COSTA, 1982, p. 617.
171
os referenciais eurocêntricos lusitanos (tridentinos) das expressões do barroco,
a fixação daquele músico pardo fazia confrontar, direta e inevitavelmente na
sua pessoa, as híbridas heranças sanguíneas e culturais (afro-luso-brasileiras)
do meio recifense com a sociabilidade e cultura erudita, efetivamente
portuguesa. Portanto, ao levar consigo os referenciais do cultural laico,
hierarquicamente rígido, socialmente tenso e etnicamente fluido ambiente
urbano e mercantil da distante vila pernambucana, bem como a subjetividade
artística própria do seu horizonte cultural mestiço, um vertiginoso confronto de
mundos marcaria, doravante, os caminhos de Alves Pinto e impactaria muito
provavelmente sob suas escolhas artísticas.
444
A análise desse aspecto é
deveras importante, pois induz a ver como, naqueles ares metropolitanos
étnica e culturalmente brancos o preconceito e o peso da hibridez que pesava
sobre os ombros do jovem músico recifense, curiosamente cedeu espaço,
abrindo caminho às habilidades e dons pessoais e pronunciados.
Resta, portanto, analisar o quarto e último aspecto, a saber: a questão
operacional propriamente dita. Nominalmente: a atuação, onde se processaram
e operaram todas as variáveis acima descritas. Eis aí o elemento central dessa
análise, quão grandes são as suas implicações. Pois, diferentemente do amplo
contingente europeu vindo para o Recife, Rio de Janeiro e Salvador e demais
áreas coloniais, a “mancha étnica”, por um lado, colocava-se como o obstáculo
primeiro a ser vencido em pleno ambiente metropolitano, mas, por outro, era-
lhe justamente o elemento instigador a uma contínua e crescente busca por
superação individual. Desenvolvimento artístico entenda-se. Foi nesse intuito
que se firmou com afinco e obstinadamente, ao ponto mesmo de, por meio da
sua especialização funcional, alcançar e abraçar todas as possibilidades de
transpor tantas barreiras sociais que se lhe apresentaram em terras lusitanas,
logrando ali riqueza, poder, notoriedade funcional e inúmeras benesses, a
grande maioria das quais as próprias condições étnica e financeira lhe ceifava
desde os tempos da infância pobre na sede pernambucana.
Porém, mesmo vivendo e estudando em tão humildes condições,
certamente não eram desconsideráveis as cifras de suas estadas na capital,
sendo essa uma das razões do desamparo em que lhe deixaram os mecenas
444
GRUZINSKI, 2001, p.45/114.
172
recifenses, haja vista a paralisação dos envios financeiros. Desamparo
ocasionado, talvez, pela finalização da Igreja de Nossa Senhora do Livramento
confraria de pardos , do Recife, empreendimento para onde foram
canalizados todos os recursos da gente mestiça recifense ligada aos ofícios
mecânicos e artísticos. Por isso:
[...] ainda no tirocínio de seus estudos começaram a escassear
os suprimentos de Pernambuco, e por fim privado de todo
auxílio, viu-se obrigado pelas circunstancias, a lançar mão dos
sues próprios recursos, e passou a exercer a profissão de
músico.
445
Intensificava-se, assim, a luta pessoal, agora pela própria sobrevivência,
perante o que permaneceu firme nos seus propósitos estudantis. A essa altura,
eram, possivelmente, as adversidades advindas da mentalidade escravocrata e
etnocêntrica portuguesa e as não menos infelizes lembranças que tinha da
infância colonial que o conscientizavam do quão grande era o garbo com o que
se devia aplicar à atividade musical e se dar às várias fases de seu
aprendizado. O ímpeto a fim de atingir um nível de excelência em sua
formação, capaz de lhe projetar nas apresentações públicas e fizer notórios
seu dom e sua erudição, naquele Portugal joanino, tão dado às Belas Artes.
Decorridos, porém, alguns anos e deveras inserido no ambiente da
Corte mas ainda tomando pelas incertezas naturais do labor cotidiano
naquela Europa tão provida de genialidade musical lembrava-se com
saudade dos impulsos e incentivos primeiros dos pais na difícil fase inicial dos
estudos; da boa de seus amigos e financiadores colonos, quando lhe
enviaram para a capital, certos de que, naquele lugar, mais que na vila
pernambucana, seu dom ser-lhe-ia uma ferramenta adequada à sublevação
social e financeira, tão almejada dos pardos. E mesmo que eles não tenham
podido para desamparo de Alves Pinto manter o propósito da ajuda
econômica, o tempo lhes daria razão, servindo-lhes de consolo às notícias de
que a dificuldade não representou um imediato, antecipado e frustrante retorno
ao Recife. E certamente esperavam com ansiedade a chegadas, quase diárias,
das embarcações lisboetas a lhes trazer boas novas.
445
COSTA, 1982, p. 617.
173
Obviamente, num primeiro momento as velhas dificuldades da colônia se
fizeram pequenas se comparadas com as poucas expectativas concernentes
ao destino do pardo naquela difícil fase em plena corte. Mesmo assim, não lhe
fora ingrato destino, pois, decorridos os anos, provaria ser aquela apenas mais
uma difícil etapa da sua vida de batalhas a onde o poder insertivo da música
era chamado a mostrar sua força e eficácia; que ainda restava ao mulato
recifense o talento primoroso que motivou aqueles investimentos antigos.
4.2) Compasso composto: embates, mutualismos étnicos e porfias do
gênero Barroco.
Quando do embarque de Alves Pinto, mais que a mera sorte foram,
como se disse, as ações micro-políticas e o mutualismo étnico os canais
possibilitadores e o dom pessoal à ferramenta qualificadora à sua partida; a
correlação o levou à metrópole. Tal mutualismo manifestava-se em todas as
etapas das vidas desses indivíduos como, por exemplo, nos rituais religiosos,
fúnebres, as festas e cerimônias civis e cívicas, e na própria rotina cotidiana ,
e buscava rever o lugar dos mestiços na sociedade setecentista,
446
sendo as
artes, sobretudo a musical, um elemento presente e central em todos esses
momentos. O que, de certa maneira, ajuda a compreender a importância de
Alves Pinto como potencial agente da cultura mestiça,
447
já que música e
mutualismo eram instâncias complementares nas lutas sociais, individuais e
coletivas. A relação entre ambos, portanto, é direta e de indissocialidade.
Isso fica claro, por exemplo, na sua ida à metrópole, pois além das
mencionadas facilitações (autorização alfandegária, passaporte, etc.), conduzia
na bagagem as boas e necessárias recomendações coloniais; os nomes e
endereços de contatos específicos mais imediatos e adequados ao seu
amparo, quando do desembarque no porto reinol. A saber: a pessoa de
Henrique Esteves da Silva Negrão,
448
formado em direito pela Universidade de
446
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Nacional, 1978, p. 79-96.
447
Ver: ETZEL, 1974, p. 102.
448
Cf. DINIZ, Jaime C. Músicos pernambucanos do passado. Recife: UFRPE, 1969, p. 44;
MACHADO, Herlânder Alves e França, GRAÇA, Maria. Dicionário de história de Portugal
ilustrado. Lisboa: Formar, 1982, v.2, p. 9; VASCONCELLOS, Joaquim de. Os músicos
portugueses: biographia-bibliographia. Lisboa: Imprensa portuguesa, 1870, v.2, p. 09.
174
Coimbra, e que na qualidade de hábil contrapontista, atuava à época como
organista da Catedral de Lisboa. Ao acolhê-lo, o mestre Negrão, como era
conhecido, não apenas recebeu dos amigos colonos a missão de apresentá-lo
e conduzi-lo perante a corte, mas se mostrava inserido numa forte e ampla
conexão de importantes pessoas que, mesmo distanciadas pelo tempo e
movidas pelo interesse de enriquecimento pessoal típicos do homem
setecentista , estavam unidas em torno de um sentimento comum
(econômico) e de ajuda mútua, de dimensões ultramarinas, constituído em
torno das Belas Artes e dos ofícios mecânicos de maneira geral. Seja essa
uma interpretação possível à trajetória de Luis Alves Pinto e dos seus
supracitados e igualmente exitosos precursores pares de sangue, que
migraram para o Reino.
A ênfase nos meios que viabilizaram sua ida e permanência na Corte, e
que foram uma das bases de sua sobrevivência e formação, percebe-se não
apenas a existência de uma rede mestiça de solidariedade identitária cuja
atuação a favor de Alves Pinto deve-se, provavelmente, ao vínculo de seus
pais com a Irmandade de Nossa Senhora do Livramento , mas, como um
verdadeiro esforço coletivo em prol dos irmãos de cor. Com a gente popular
cuja destreza funcional lhes conferia a possibilidade de elevarem-se
individualmente, e agregar maior distinção às próprias categorias étnicas e
sociais a que pertenciam. De maneira que o referido apoio consistia no
propiciamento dos meios necessários para que músicos pobres galgassem
espaços de enobrecimento e depois numa condição social mais robusta se
valessem das brechas e vias de inserção social para voltarem-se à ajuda de
seus irmãos de pele. Estratégia em face da qual as inclinações artísticas de
Pinto se colocaram como fator de peso, levando-o rapidamente a estar cotado
entre os mais prósperos artífices de sua época no Império Ultramarino
Português. Assim, a luta pela valorização mestiça, por sua vez, era uma
espécie de refluxo de todo desse processo insertivo, que se materializava com
a produção de uma cultura mais afinada com aspirações mestiças e
simbolicamente representativas dessas categorias étnicas.
175
4.3) Pardos caminhos: do „semi-tom‟ ao mais grave „tom‟, ascensão em
“Dó Maior” e retorno ao ninho.
Vista como um empreendimento mestiço, sua ida para o Reino reveste-
se de grande relevância no que tange ao universo das ações e estratégias de
luta social, a começar pela expectativa que nutria essa espécie de
corporativismo funcional e no que diz respeito aos possíveis resultados da luta
social por eles empreendida. Resultados que no seu caso, em particular, foram
sempre tão precoces quão satisfatórios, como se depreende do trecho abaixo:
[...] foi admitido na capela real, tirava cópias, compunha alguma
cousa, e enfim, dedicando-se ao ensino, geralmente bem
quisto, gozando de nomeada por sua habilidade profissional e
suas maneiras e educação. Foi admitido a ensinar em algumas
casas da primeira nobreza do país
449
.
Concluídas as etapas de formação e passadas mais de duas décadas e
três reinados na corte, o erudito mulato houvera se inserido num meio ainda
mais seleto de músicos, os professores régios, quando “[...] foi admitido a
ensinar em algumas casas da primeira nobreza do país”
450
. Sendo agraciado
tanto com louvor como com grande distinção pelos amigos músicos e pela
clientela da Corte, quanto com relevante projeção econômica. Com a projeção
do mulato florescia na sociedade lisboeta setecentista todo o contrasenso da
hierarquização étnica sob a qual estava socialmente edificada aquela Lisboa.
Projeção, aliás, que permeava os mais íntimos sonhos de todo membro da
classe subalterna na colônia, ávida de riqueza, liberdade, experiências de
poder, e sedenta de reconhecimento social.
Mesmo ainda parcialmente edificada, a trajetória de Alves Pinto lhe
dava, nos idos de 1750 e aos antigos ajudadores a certeza de que tanto o
sonho de vencer as barreiras escravistas, quanto à concretização desse desejo
eram etapas possíveis, ao menos em termos de individualidade, sobretudo pela
via musical. Não obstante, com a chegada de Pinto ao cargo de professor
régio, encerrava-se com êxito a missão do mestre Negrão, a quem tinha se
equiparado o mestre mulato recifense, que agora caminhava com as próprias
pernas e tinha para si abertos os caminhos distintivos e as casas das mais
449
COSTA, 1982, p. 617.
450
Idem, Ibidem.
176
nobres e opulentas pessoas de Lisboa. Herança, claro, do amigo e professor
português. De maneira que os resultados alcançados pelo mulato recifense
foram muito além da mera sobrevivência financeira, ou da eventual satisfação
das as expectativas que o acompanhavam ao longo dos anos, pois não se
passaram muitos anos até que se visse em situação de relativo conforto. “E
assim permaneceu algum tempo em Lisboa sem ser pesado a ninguém,
conseguindo até formar um pequeno pecúlio para regressar a Pernambuco”.
451
Essa rápida e proeminente inserção, entretanto, assumiria aqui caráter
de reles curiosidade, não houvesse ocorrido no tempo e contexto em que
viviam ninguém menos que o organista e compositor alemão Johann Sebastian
Bach (1685-1750)
452
e o sacerdote e compositor veneziano Antonio Lucio
Vivaldi (1678-1741),
453
cujas apresentações são absolutamente
desnecessárias, pois se tratam simplesmente dos maiores ícones da música
Barroca européia, cujas famas corriam as cortes européias, não se excetuando
a corte portuguesa.
454
Eram esses, portanto, os parâmetros ou referenciais de
exigência a quem na metópole pleiteasse viver desse ofício.
455
E isso somente
comprova o grande potencial de Alves Pinto, a importância de desfrutar do
ambiente da Corte e o potencial enobrecedor da música Barroca. Um ofício em
que, amiúde, se pode supor que lá houve tantos outros naturais da metrópole
dotados dessa genialidade e providos de melhores condições financeiras e, o
que era mais importante, indivíduos brancos e europeus, gozando de relações
culturais e intercâmbios intensos com os grandes e renomados músicos
daquele tempo. Indivíduos como José António Carlos de Seixas (Coimbra 1704
- Lisboa 1742), compositor, organista e cravista lusitano que chegou a ser
intitulado “cavaleiro” (1738), pelo citado D. João V, antes de morrer
prematuramente , e de outros que viveram ao seu tempo. Indivíduos para
quem a própria trajetória nesse ofício não representava, como para ele, uma
arma contra o preconceito, a exclusão e a diferenciação social, advindos da
451
Ibidem, p. 617.
452
PANNAIN, G; CORTE, A. Della. História de la Música: Barcelona Rio de Janeiro: Labor,
1950, p. 568.
453
Ibidem, p. 615.
454
Alemanha e Itália foram, no século XVIII, dois dos três grandes pólos e referenciais da
produção musical da musica barroca, ao lado da França.
455
Tanto a Alemanha quanto a Italia mantinham estreitas relações comerciais com Portugal,
havendo entre o porto de veneza e os alemes uma fluente circulaçao de pessoas, mercadores
e idéias.
177
condição étnica. Findada sua estada na corte, quando de seu regresso para a
colônia, mais que a cor pesava tão somente a competência do mestre pardo
e essa favoravelmente perante os pares músicos e toda a crítica lisboeta.
Mas é mister se atentar para a grande contradição que suscita seu
regresso ao Recife. Chegando mesmo a ser uma incógnita o fato de que, tendo
ele alcançado notoriedade e uma vida aparentemente produtiva e sossegada
na metrópole, intentasse regressar à velha vila colonial deixando para trás todo
renome e o gozo efetivo de uma vida palaciana e nobiliárquica, sempre tão
almejada de todos no Brasil. Dos pardos mais ainda. Um fator a ser
primeiramente considerado, dirão os literatos: seus sentimentos.
Nominalmente, a saudade dos seus: dos velhos pais mulatos e dos co-irmãos
mestiços e amigos; da velha e convidativa terra portuária, atenta sempre às
novidades que aportavam com as embarcações mercantes. Que fatores seriam
mais óbvios? Certamente essa subjetividade contribuiu para seu regresso, não
se pode negar, mas talvez de forma conjunta, pois é fato que os sentimentos
têm seu próprio lugar na hierarquia dos fatores implicadores das ações
humanas, e por vezes se faziam calar ante a busca por sobrevivência, na difícil
dinâmica colonial. Sem qualquer crítica ao lirismo, não parece ter sido esse o
caso de Pinto, até mesmo pelo fato de que, muito certamente, teriam tais
sensações pesado mais fortemente ao tempo da citada escassez de
recursos, quando a vida na capital da metrópole tornara-se deveras árdua,
levando-lhe a buscar sobrevivência no exercício do difícil e concorrido ofício
musical. Nesse sentido, mais fortemente a própria crise política, cultural e
financeira do período pós-terremoto de 1755, quando Lisboa se encontrava
arrasada, foi o fator que o que influenciou na decisão de retornar.
Deve-se também lembrar, as mudanças políticas e administrativas
lisboetas, como a sucessão real, a coroação de D. José I (1750-1777) e todas
as mudanças dimplicantes, promovidas por seu primeiro ministro, Sebastião
de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal
456
, que coordenou a reconstrução
da capital fugindo às referências culturais do reinado anterior. Ambos os fatores
provocaram, na sede metropolitana, além de uma ausência de capital para os
investimentos nas frugalidades‟ culturais, uma profunda reorganização
456
Ver: JÚNIOR, José Ribeiro. Colonização e monopólio no nordeste brasileiro: a
Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759-1780. São Paulo: HUCITEC, 1976, p. 79.
178
econômica e cio-classista, advinda da política de reestruturação pombalina,
sendo a música um dos empreendimentos mais afetados pela contenção de
gastos imposta pela Coroa e pelo ministro. Mesmo porque a própria
reconstrução da cidade que deveria gerar espaço às artes que
costumeiramente serviam de propaganda à realeza não beneficiou os artistas
do Barroco, pois se deu em meio à gradual mudança de referencial estilístico.
A saber: ao abandono paulatino do estilo jesuítico e contra-reformista do
Barroco, e a adoção dos padrões do denominado estilo Roco
posteriormente substituído pelo neoclássico (estilo anti-barroco), importando-se
artífices geralmente franceses para o lugar dos nacionais e ou coloniais aos
quais o mercado metropolitano se tornou cada vez mais hostil. Para ambos, no
entanto, uma alternativa se colocou: migrar para os entrepostos coloniais, onde
o Barroco estava intimamente vinculado à vida colonial. É nesse período que
se pode constatar um dos maiores índices de migrantes nas sedes portuárias
das capitanias do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, sendo as duas primeiras
de arcebispados e a terceira de um bispado. O que fortalecia a musica do
Barroco, muito embora isso não determinasse o seu teor de sacralidade ou,
mais especificamente, não era a própria sacralidade nem a arte que a
expressava tão pautada pelo referencial tridentino.
Certo é que regressando à sede pernambucana encontrou um ambiente
ainda mais propício ao exercício e ao ensino do ofício musical, do que nos
tempos de sua partida. Razão pela qual logo:
[...] abriu uma aula de música e de primeiras letras, em
pregando-se também no ensino destas matérias suas duas
filhas; ele no primeiro, e elas no segundo andar do sobrado,
última da Rua Estreita do Rosário, lado norte, caminhando de
nascente a poente.
457
Voltava assim a exercer, agora na colônia, o cargo de professor régio,
beneficiado pelas oportunidades advindas da substituição dos educadores
jesuítas deixando Recife mais do que nunca em nível destacado na arte da
composição , conhecedor que era dos padrões, tendências e métodos
metropolitanos e europeus da época.
Novamente o ofício da música o dignificava e o re-inseria na sociedade.
Curioso, porém, é perceber que suas aulas fossem ocorrer justamente à rua
457
COSTA, op.cit.,1982, p. 617-618.
179
em que estava situada a mais importante confraria de negros de Pernambuco,
a do Rosário dos Pretos da Freguesia de Santo Antônio do Recife, onde havia
um mutualismo latente, onde as ladainhas
458
, diariamente, ambientavam as
celebrações e rituais pomposos e africanizados
459
; onde as fugas não raro
representavam uma fuga
460
simbólica aos dogmas religiosos; onde o elevado
som dos tambores, o timbre dos cantos e vozes d‟África, e o ritmo frenético e
vibrante, por vezes sensual, das danças naturais “gentílicas” com matizes e
matrizes naquele Além Mar e outros “lícitos divertimentos”, que sempre
transitavam entre a permissividade e a contestação repressora,
costumeiramente questionados, figuravam um êxodo do rcere social
461
.
Vizinhança que em sim mesma representava uma demanda em termos efetivo
para o aprendizado e as atuações funcionais contratadas à instância musical,
além de um potencial fator de reelaboração da própria produção musical.
Transitar pelas circunvizinhanças recifenses, Olinda também, por
exemplo, a título de rever e apresentar às filhas os lugares de sua infância,
revelava-se um encontro intercultural, um ato de intercâmbio, que também
significava defrontar-se com as diversas influências que permeavam o campo
da arte musical. Influências indígenas inclusive. Influências de uma gente que
semelhantemente àquele jovem Alves Pinto que seguiu para Portugal era “[...]
naturalmente inclinada à música, em que passavam a vida em cantos e bailes
a seu modo rústico, lhes buscavam mestres que os ensinassem a cantar e
tanger os instrumentos [...]”;
462
que, como o jovem mulato que um dia ousou
sonhar com os ares metropolitanos, conheceu a musica pela via eclesiástica;
que “[...] gostavam [...] de ouvir cantar os divinos louvores, e com poucas lições
entoavam juntamente com os religiosos missas solenes, ladainhas e outras
semelhantes funções sagradas[...]”;
463
que como Alves Pinto possuíam grande
aptidão, haja visto os informes da época registrando que:
458
Forma ampliada de oração que consiste em uma série de versos suplicantes, seguindo a
cada um uma resposta fixa. (Ver: ISAAC, Alan e MARTIN, Elizabeth (org) Dicionário de Musica.
São Paulo: Zahar, 1984, p. 215).
459
COUTO, 1981, p. 158.
460
Forma de escrita musical contrapontista e disciplinada. (Ibidem, op. cit., p. 137.)
461
COUTO, 1981, p. 158-159; SOUZA, Marina de Mello e. História da Festa de Coroação do
Rei do Congo. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 179-248; TORRES, Cláudia. Um reinado de
negros num espaço de brancos: Organizações de escravos no espaço urbano em recife no
final do século XVIII e início do século XIX (1774-1815), Recife: UFPE, 35-48. (dissertação).
462
JABOATÃO, 1980, livro II, p. 151.
463
Ibidem, p. 151.
180
[...] logo houve entre eles muitos e muy destros no canto do
órgão, e um, chamado Francisco, era bastante
contrapontista,
464
e punham as letras à solfa em nossa língua,
que aprendiam com facilidade, e também na sua, convertendo
nessas muitas das suas gentilenas em ecônios divinos, e era
certamente muito para dar graças a Deus ver, em tão pouco
tempo, a um indiozinho com destra harmonia entoar louvores
ao Senhor na sua bárbara linguagem, que sendo suave aos
ouvidos, Deus se sabia entender com ela e ele a podia
entender.
465
(grifo nosso)
“Bárbara” e “vil” gente, “povo” “gentil” e “sem qualidade”, culturalmente
estrangeira e migrantes no universo cultural ocidental, que a despeito do saber
ocidental e de seus enunciados discursivos doutrinários, hierarquizantes e
etnocêntricos, aplicaram-se silenciosa e obstinadamente às competências
ordinárias do “saber escutar” (concernente ao aprendizado musical e
apreensão dos referenciais simbólicos ocidentais), “saber fazer” (concernente
ao lugar de operação funcional-enunciativa), “saber viver” (concernente as
interatividades cotidianas); “saber dizer” (concernente à enunciação simbólica e
ao seu mascaramento);
466
saberes dos quais lhes advinha as capacidades de
interação, de luta, de interdiscursividade, de resistência e existência; suas
potencialidade socioculturais enfim.
467
Essa gente, como se vê, a exemplo de Alves Pinto, discerniam sem ser
discernidas, e tinha nisso a sua pulsão de resistência e de construção das
identidades pessoais e grupais que “só Deus se sabia entender” e com ela
eles a podiam entender. Identidades que a proeminente ascensão, não se pode
crer, de ter sobreposto na intimidade de Alves Pinto, “que Deus se sabia
entender com ela e só ele se podia entender”.
464
Parece importante salientar que ao desenvolverem a técnica do contraponto (que em
termos sonoros é sinônimo de polifonia, e em termos técnicos consiste em combinar linhas e
relacionar elementos verticais com horizontais independentes, simultâneos e contrastantes
da pauta, permitindo arranjar, harmonicamente, instrumentos distintos ou em diferentes vozes
(Cf.: ISAACS e MARTIN, 1984, p. 87-88) os índios, assim como Pinto e as gentes “sem
qualidade”, mais amplamente, alcançavam relativa autonomia nas criações musicais. O que
significa dizer: independência melódica e simbólica em relação à sacra européia.
465
Ibidem, op. cit, p. 151.
466
LYOTARD, Jean François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olimpio, 2004,
p. 36-40.
467
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Lisboa: DIFEL,
2002, p. 189-213; CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. V. 1.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 41-43, 91-106.
181
Para tão rápida e proeminente assimilação, porém, foi favorecido pela
histórica e multifacetada disputa entre Recife e Olinda sendo a música uma
expressão simbólica desses embates, que as obras eram capazes de
espelhar a dinâmica urbana cosmopolita, em detrimento da aristocrática, os
lugares sociais e exprimir as intenções, muitas vezes porfiosas, manifestas
pelas irmandades locais, pelas classes e categorias sociais, e ou pelos naturais
das duas cidades de maneira mais ampla. No cerne desse conflito, a música
figurava a formação e dissolução de grupos que se digladiavam em todos os
sentidos.
468
E, tal qual como ocorre em outras expressões, se percebe como
em torno da música:
[...] os proprietários e indivíduos das classes inferiores unindo-
se contra os escravos; e [...] ainda aquelas classes inferiores
que estão por cima e que para este efeito, como possuidores,
se alinham contra os não possuidores [... ou...] brancos lutar
com pretos e mulatos contra o preconceito de cor; mulatos e
pretos contra os brancos e a favor deles; portugueses contra a
metrópole e brasileiros a favor... Isto num momento para
mudarem de posição logo em seguida e de novo mais tarde
[...]
469
Conflito que os mestres-oficiais, como o músico Alves Pinto, ajudaram a
transpor para o âmbito criativo das representações simbólicas, que o
ambiente funcional, etnicamente profuso, era bem menos hostil. E com isso:
[...] A porfia, se desdobra[va] por conta de outros contingentes
emocionais: vaidades, ostentação, afirmação, inveja, usura, ou
cobiça do maior ou do melhor; sentimentos que traduzem num
plano mais superficial, menos recônditos, os embates entre os
homens, ou seja, a rivalidade entre irmãos em face do
almejado predomínio diante dos pais, transferida para a batalha
religiosa, na porfia pelo céu e na fuga do inferno [...].
470
Aliás, antes do regresso de Alves Pinto, no tocante à disputa no âmbito
das artes musicais ao contrário do que ocorrera na política e na economia ,
levava a ex-sede certa vantagem, que contava com o jesuíta Manoel Rabelo
Pereyra
471
expulso com o diretório pombalino de 1759 e João de Lima,
472
468
Ver: ETZEL, 1974, p. 108.
469
PRADO JUNIOR, Caio. A formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense,
2004, p. 369.
470
Ibidem, op. cit. p. 108.
471
COUTO, 1981, p. 374.
472
Natural de Jaboatão dos Guararapes (uma das freguesias do Recife à época), e que tendo
alcançado relevância no ofício musical na catedral de Salvador, sede da escola musical baiana,
onde fez nome e discípulos antes de viera para Olinda ensinar na catedral local.
182
aos quais se deve a elevação do exercício e ensino da música Barroca naquela
localidade.
473
Vantagem que se alargou ainda mais, quando da fundação
Irmanada de Santa Cecília em Olinda (confraria de músicos) da companhia e
de uma fábrica de instrumentos que contava com diversos especialistas na
afinação e concerto.
Ainda que Recife contasse com notáveis músicos como o professor
jesuíta Ignácio Ribeiro Noya,
474
e o padre e professor Manoel da Sylva
Alcântara,
475
os ares mercantis faziam suspirar por uma inclinação mais laica e
criativa da música Barroca, contribuição que o músico e intelectual mestiço
bem podia dar, em face de toda experiência que trazia na bagagem. De fato,
uma dinâmica produtiva mais representativa da opulência e da porfia reinante
na sede portuária de Pernambuco tal qual ocorria em expressões como a
arquitetura, talha, pintura, carpintaria, ourivesaria, instâncias às quais a música
complementava no propósito de expressar o triunfo eucarístico e mercantil do
Barroco recifense ali se impusera com a sua chegada e nutriu o ensino da
musica local doravante.
Mas as atuações do experiente músico mestiço na capitania foram muito
além das práticas funcionais e educativas. Foram provocadoras mesmo de
profundas mudanças e re-direcionamento estilísticos; de um renovação incisiva
no tocante aos próprios referenciais da música colonial, como se pode
perceber na ácida critica que ele efetuara aos „arcaicos‟ padrões e métodos
vigentes em alguns países da Europa, seguidos por Portugal e adotados na
colônia. Críticas feitas nos seguintes termos
[...] Cheguei à terceira idade da música, que começou desde
este S. Papa, [Gregório] procrastinou-se por S. Guido natural
de Arêzo (e por isso chamado Aretino) até os tempos
presentes. Nesta última e decrépita idade, que [é?] de
confusões! Os portugueses escuros, os castelhanos
enfadonhos, os italianos sequazes do seu Guido; e nem um
com a simplicidade dos primeiros; antes tudo misto, tudo
confuso e apartado daquela viva imagem da natureza.
Ora ninguém negará, que são hoje os italianos de gosto o mais
esquisito e delicado invento, que todas as outras Nações, na
composição dramática: porém com esta composição tanto tem
contaminado o canto eclesiástico, que hoje mais parecem
Areas os Mottêtos, e teatros os templos. E quão longe da
473
Ibidem, op. cit., p. 388.
474
Ibidem, p. 371.
475
Ibidem, p. 374; GALVÃO, 2006, v. 3, p. 112.
183
opinião séria desse Doutor Maximo, que bem nos adverte, e
aconselhas. [...] Os franceses, os doutos franceses são os
gregos da nova idade. São de gosto menos agradável, mas
nem uma nação deu à luz partos mais felizes: homens sábios,
e claros no, que ensinam. Tudo dão a todos: nada para si
guardam. Parecerá a muitos vaidade, neles mostrar que lhe
devemos gratificar.
476
Veja-se como as difíceis experiências, vivências, os intercâmbios e
conhecimentos adquiridos na Europa tinham tornado Pinto um artífice apurado,
cuja visão, marcada pelo cosmopolitismo metropolitano, enxergava muito além
das bases sacras do Barroco lusitano, luso-colonial e mesmo da matriz italiana;
Como o mestre mulato trazia consigo um ímpeto pela mudança, se não bem-
vindo, mas deveras adequado ao meio próspero e à fase dinâmica que Recife
atravessava.
Muito embora a postura aparentemente técnica, formal e metódica de
Pinto conduza a ver certo teor de eurocentrismo, cabe, porém, refletir como
essa mesma postura que era uma posição de base eminentemente erudita
era conciliável com o universo étnico e cultural mestiço ao seio do qual ele
havia regressado.
Fica, porém, a dúvida: qual a base das suas atuações e intervenções
concernentes ao ofício musical? Que novos percursos e estratégias
favoreceram tais interações sociais e culturais? Sob que motivações? São
respostas deveras importantes, pois explicam o papel por ele desempenhado
no ofício da música. A todos esses questionamentos cabe uma única resposta:
salientar as profundas divergências acerca do próprio conceito de sica, que
segundo a ótica clerical tridentina era “[...] uma linguagem ampla e por meio
dela [... podia-se...] transmitir qualquer mensagem”.
477
, já que:
Deus criou a música e deu ao homem o dom de expressar
através dela seus sentimentos e emoções, com a finalidade de
louvá-lo, e o Espírito Santo é quem inspira os homens que
crêem em Jesus a colocarem nas canções mensagens que
trazem “edificação” para aqueles que a ouvem.
478
O Barroco, porém conhecido que ficou por sua ambiguidade , situava
a produção entre a religiosidade dos parâmetros doutrinais e às motivações
profanas do cotidiano recifense. E isso traz a discussão o fato de que “[...] se a
476
BINDER & CASTAGNA, 1996, p. 3.
477
SANTOS, Valdevino Rodrigues dos. Tempos de exaltação: um estudo sobre a música e a
glossolalia na Igreja do Evangelho Quadrangular. São Paulo: Annablume, 2002, p. 66.
478
Ibidem, p. 66.
184
música permite a expressão emocional, prazer estético, entretém,
comunica, elicia resposta física, força a conformidade às normas sociais e
valida as instituições sociais e rituais religiosos [...]” e com isso, “[...] contribui[a]
para a continuidade e estabilidade da cultura”,
479
também propiciava, como se
na trajetória de artistas mestiços como Pinto, em particular, e na
heterogeneidade da música recifense colonial, mais amplamente, um princípio
de fuga e de interatividade. Sobretudo quando se associa a isso os
investimentos efetuados por seus pares, podendo-se, assim, visualizar ações
de questionamento e à generalização proposta e implícita no parâmetro
musical sacro do período setecentista, a unidade simbólica que com ele se
visava; e se perceber re-apropriações da produção, nutridas nas origens
étnicas, no horizonte cultural e nas motivações pessoais dos agentes
executores, como o mestre mulato.
4.4) LÁ[r] doce LÁ[r]: a base da afinação e propagação rítmica X cadência
militar de uma aclamação mestiça.
Houvera se casado, pode-se perceber o músico mulato, quase certo que
em Lisboa, ainda que não se possa eliminar a hipótese disso ter ocorrido talvez
na própria colônia. Mas essa última parece pouco provável, a julgar pela idade
das filhas, professoras e consumadas no dom da música. Não se sabe,
porém, o nome das mesmas. Nem tampouco da senhora Alves Pinto. Faltam
documentos para tal. Talvez existam em Lisboa. Qual a origem e as heranças
étnicas da matriarca? Houvera falecido no grande terremoto de 1755? Vivera
para acompanhar seu esposo e as filhas à colônia? São questionamentos
importantes e que incitam uma nova pesquisa, mas que fogem ao objetivo da
presente. Por hora se dirá que as musicistas da família Pinto talvez tenham
desempenhado um papel relevante para a música local.
De concreto no relato, apenas a possibilidade de perceber que além da
elevada condição social e econômica atingida na metrópole consolidada e
mantida na proeminente Vila pernambucana nutriu-se um lar mestiço firmado
sob o ofício da arte da música. Lar que foi uma importante base para a difusão
479
MERRIAN, apud. Ibidem, p. 66.
185
desse ofício que tanto simbolizava e intensificava o cosmopolitismo local, e que
tanto elevou Pernambuco no cenário cultural colonial. Mesmo porque seu
retorno ao Recife esteve envolto de reencontros e do fortalecimento dos
vínculos que o haviam levado ao Reino. Novamente esses laços foram
benéficos tanto para a difusão da arte entre os recifenses: os homens (“no
primeiro andar”) e as mulheres (“no segundo andar”) da sociedade recifense,
quanto para o fortalecimento das ações grupais e corporativas entre as
camadas subalternas. Para a apreciação e aprendizado corporativo-funcional
tanto dos filhos e filhas da elite mercantil recifense, quanto dos indivíduos
menos abastados igualmente mestiços como o amigo Sepúlveda e suas irmãs,
de quem já se tratou neste trabalho.
Aliás, tal qual se deu no caso do velho amigo, é possível perceber como
Pinto construiu não apenas fortes laços profissionais (associativos) dentro de
redes de trabalho musical, mas também destacada e sólida carreira dentro dos
quadros dos militares da Vila do Recife e da Capitania, confirmando a máxima
de seu contemporâneo Loreto Couto, de que eram “[...] as letras e as armas os
dous pólos da glória varonil [, e de que] nestas duas prerrogativas imitaram
alguns pernambucanos os homens mais célebres do mundo”.
480
Pinto
certamente foi um desses “imitadores”, pois:
[...] teve praça de soldado no batalhão dos homens pardos da
praça do Recife, subiu a todos os postos, e chegando a
capitão comandou por algum tempo o terço de infantaria
auxiliar dos mesmos pardos do Recife trazendo seu terço bem
disciplinado e mostrando-se muito ativo e destro nas
operações militares; e promovido enfim ao posto de sargento-
mor pelo governador Conde de Povolide,
481
foi confirmado por
patente Régia de 15 de Novembro de 1778, na qual se
reformou percebendo o respectivo soldo.
482
[grifos nossos]
Assim, naquela sede pernambucana dos setecentos vila dividida entre
a abertura mercantil e o potencial belícismo gerado em meio às lembranças
dos ultrajes batavos, território povoado tanto por comerciantes de toda a
Europa, quanto por um denso efetivo militar territorialmente distribuído seguiu
Pinto os passos castrenses do velho pai, o tenente Brasílio do novo regimento
480
COUTO, 1981, p. 53.
481
José da Cuja Grã Ataíde e Melo (1734-1792), foi o Conde de Povolide e governou a
capitania de Pernambuco de 14 de abril de 1768 a 5 de outubro de 1769.
482
COSTA, 1982, p. 617-618.
186
de milícias dos homens pardos da banda do Sul,
483
passos que foram seguidos
por seu filho caçula, o tenente Basílio Alves Pinto, no Regimento, onde servia
em 1802, onde solicitava ao Regente D. João confirmação de sua carta patente
passada em 1786. Provisão negada, ao que parece, que o pedido foi
reiterado em 1804, desta vez “[...] em atenção aos serviços prestados pelo seu
pai e avô [...] concedida certamente sem grandes dificuldades, já que,
daquela vez contava com as „boas referências‟ de seus superiores imediatos e
com a implícita memória paterna. Mais claramente: “[...] por ser filho de seus
pais”
484
, todos eles havendo pertencido ao quadro de membros da Irmandade
de Nossa Senhora da Conceição dos Militares. Três gerações, como se pode
ver, de sangue castrense e mestiço e uma imensa e forte teia de relações.
Atestando o status de veracidade às afirmações de Couto, se que o
pai, com base nos laços fraternos, nas ações étnico-corporativas e nos demais
vínculos sociais de que dispunha, soubera encaminhar o filho mulato na trilha
meritocrática das letras, das artes e na igualmente mui apadrinhada carreira
das armas. Percebe-se, portanto, que as trajetórias culturais, sociais e étnicas
se constituíam no seio da família, de maneira que, e que o percurso dos
Alves Pinto, a exemplo também dos Sepúlveda, confirma um trajeto bem
delimitado de locomoção social, cujo cumprimento das etapas com êxito
significava conquista de renome, possíveis proventos, honrarias, galardão e
integração ao dialético e sistêmico mutualismo étnico. Tal êxito se
materializava na vida cotidiana e na vivência plural das instâncias culturais,
como a música e a pintura, ofícios concernentes às famílias supracitadas,
que estes lugares eram capazes de conferir-lhes ou nos seus casos acrescer
prestígio e distinção social, qualidades por que primava à sociedade colonial,
potencializavam, antagonicamente, seu poder de crítica e sócio-organizacional.
Concernente à bem aventurança na vida marcial, atente-se para o
enunciado: “trazendo seu terço bem disciplinado”, que não sugere prática de
autoritarismo, mas, ao contrário, revela o quanto a carreira militar
complementava as estratégias microbianas e era uma extensão do
483
AHU_ACL_CU_015, Cx. 134, D.1586.
484
Entenda-se o termo por pai e avô (uma ênfase aos laços familiares masculinos), que o
nome de sua mãe não é citado no documento, nem tampouco produziria qualquer sentido
concernente à carreira castrense. AHU_ACL_CU_015, Cx. 234, D.15836; AHU_ACL_CU_015,
Cx. 251, D.16813.
187
reconhecimento artístico por ele gozado. Recompensa sócio-funcional que lhe
propiciou apenas inserção e ascensão na vida da caserna, mas também, e,
sobretudo, um relativo poder de reivindicação da melhoria das condições, de
tratamento e maior valorização dos milicianos pardos da capitania. É o que se
vê na queixa formulada em 1770, pelo ainda sargento Alves Pinto, relatando as
condições adversas porque passavam seus pares no exercício da vida
castrense, expressa nos seguintes termos:
Pernambuco\27 Abril\1770\
Ao Sr. Luiz Nogueira de Figueiredo\
4
Infinitamente aplaudirei, se esta achar a V. S.
a
livre daqueles
sustos q. a incapitania do oceano costuma dar, a quem\
nele se
entrega. Mais estimarei se chegasse com feliz saú-\de e que as
delícias dessa corte o não façam esquecer-se dos\
que por V.
S.
a
, nesta aldeã, ficam suspirando.\[...]
485
Por traz do alerta de Pinto para o poder de “distração” das chamadas
„delicias da Corte‟, ou seja: dos ares, da sociabilidade e do cosmopolitismo
metropolitano, sua confissão de como as questões sociais do ambiente colonial
recifense permeavam sempre seu cotidiano e suas ações durante a estada em
Lisboa. Um indício de que, durante o contato com tais „delicias‟, não esquecera
os irmãos de cor por quem mais uma vez intercedia; de seu impulso em lutar
por aqueles que o mandaram para o Reino, depositando nele as aspirações e
anseios da gente “sem qualidade” recifense. Mais claramente: se pode dizer
que essa invocação, dita de forma tão direta, manifestava a maneira cada vez
mais incisiva de se posicionar identitariamente face ao crescente poder de
desabilidade de que gozava depois do retorno de Portugal:
Dou parte a\
V. S.
a
como o seu está de todo enfraquecido,
porque\
se têm ausentado infinitos soldados pela evolução
contínua, em\
que se viram, ano e meio, sujeitos a tantos
castigos, e prisões\
as péssimas e dilatadas e pela desatenção
com que são trata-\dos, não obstante, [por] servirem
gratuitamente, e, finalmente, por que\
sempre se nos estão
tirando soldados para a infantaria paga.\
O ouvidor, [José Teotônio Sidron Zuzarte], por outra parte, nos
trata com tanta\
desatenção que além de ser nosso inimigo os
crimes, como V.\
S.
a
o viu nas diferenças com o novo Capitão
Granadeiro, mas para\
ver-nos indefensáveis, tem mandado
prender os oficiais de paten-\te por vidas cíveis, não
485
AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, D. 8407.
188
obstante, estes deram bem à penho\
ra, como aconteceu a um
capitão do 3º de Rebello.\[...].
486
Sua escrita, transitando entre a intelectualidade conselheira e militância
social assumida e aguerrida, descreve, em tom de crítica e de reivindicação, as
mazelas e destrates próprios do escravismo colonial , sofridos pelos pares
étnicos no exercício da vida militar. Revelava o outro lado do militarismo: o
cotidiano nos postos rasos, que ia de encontro a luta histórica do herdeiros de
Henrique Dias. Denunciava como a hierarquia castrense, por um lado, estava
calcada e incutia-se da estratificação étnica, potencializando a diferenciação
etnocêntrica e gerando abusos, opressão, repressão e supressão de direitos
adquiridos na luta cotidiana. Somava-se ao seu lugar de legitimidade, sua
patente militar, e condicionava Pinto à reivindicação, ilustrada por casos de
abusos que iam desde os casos gerais aos particulares:
[...] A um cabo de\
esquadra nosso aconteceu pior, por que
pedindo por uma passagem a corte\
fizesse que ele não fosse
preso, nem se lhe pusessem na praça\
uma cozinha que lhe
tinham fixado, depois de vender tudo, para se-\ tratar em uma
doença adquirida no serviço Real em deligência\
e notificações
de soldados fora, teve por despacho Recusada.\
e sendo
apanhado, fugiu e deixou mulher e filhos queri-\dos. E dele não
tenho notícia [...]
487
[grifos de Alves Pinto]
Mas, por outro lado, a denúncia do major mulato Luis Alves Pinto
também mostra como, desde a luta contra os batavos, a gente mestiça logrou
vantagens e benesses reais, concernentes ao nível de liberdade cotidiana e,
sobretudo, como essas mesmas conquistas deviam ser e eram asseguradas
pelo trabalho, práticas sociais e festivas, pelo mutualismo cotidiano e, por fim,
como sob a forma de queixas manifestas pelos ícones dessa gente.
Os privilégios de S. Majestade\
são verdadeiros, logo a falta de
execução deles é de S. Majestade não\
saber da infelicidade
que padecem os seus fidelíssimos pardos Per\nambucanos.
Proíbem saber que os pardos e pretos (e muito\
poucos
brancos) e índios foram os que conquistaram este país\ do
infame domínio dos Belgas, e por isso estes, os mais ultra-
\jados dos brancos, como o paramentaram os índios,\
e
ele, com a sua real benevolência os vão amparando, nós,
porém,\ ainda estamos destituídos deste amparo,\
padecemos
486
AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, D.8407.
487
Ibidem.
189
cada vez mais,\
e mais ultrajes e perseguições, se V. S.
a
o não
representar à Majestade\
já que foi isso.\[...].
488
Perceba-se desde como, no relato, como a intelectualidade e o nível
de inserção social alcançados por Pinto induzem-no a luta pela dignidade
mestiça não se traduzia apenas pelo um resgate da importância histórica
daquela gente. Mais que isso contribuía para a construção da memória coletiva
e da identidade mestiça, e como isso fomentava a militância social e o
mutualismo étnico. E inseria a própria vida militar no corporativismo étnico,
inerente aos embates sociais do meio escravista, embasando-se, para isso,
suas petições em atos régios, regulamentos jurídico-administrativos ou
conquistas civis que as lutas cotidianas visavam assegurar. O que, por sua vez,
favoreciam o duelo inter-étnico.
Mas sua condição diferenciada: alta patente e notoriedade artística e
intelectual, mostra como modo a defesa dos interesses e conquistas da gente
mestiça exigia muito mais que simples coragem, perseverança e ousadia,
exigiam certo grau de visibilidade, um profundo conhecimento jurídico, e,
sobretudo, o uso aguerrido dos vínculos sociais em prol do co-irmãos. É o que
se vê a seguir:
[...] Eu busquei todos os modos e meios para evitar sentar-se\
praça ao nosso Soldado Manoel Felipe por quem V.
a
S.
a
pedia
na espera de\
seu embarque, e não foi possível deixar resposta
para o granadeiro da\
infantaria, depois de 26 dias de prisão.\
V.a S.
a
, lhe peço repre-\sente a Sua Majestade isso que se nos
não cumprimento ao seu decreto;\
no qual diz: Que gozem
dos mesmo previlégios dos Soldados pagos todo/\
tempo
que tiverem alistados nesta. Os\
soldados pagos não passam
de um\
regimento para outro, sem que se ouça o capitão, e
quando o general o faça, tem o capitão\ direito de pretender a
seu negócio, no caso maior de guerra, a depois ao\
rei, e
parece que não conserva a sua honra daquele, que tendo a
quem\
recorra, deixa perder o seu negócio. Assim, me confira à
nova orde-\nação no capítulo 206 e 209, logo não devessem
passar os novos soldados sem\
ser movidos os seus capitães
em minha pessoa porque eu trabalho nesta coi-\sas com mais
ardência por ver q, eles não podem fazer; por cuidar\ cada
hum, com isso de agenciar a sua vida\. O nosso soldado:
não pedia\
vantagem (ainda q. a/pedisse), como ele sentando
praça e as outras corpo tem\
atenção a seu superior?\ [...]
489
[grifos de Alves Pinto].
488
Ibidem.
489
Ibidem.
190
Ao que tudo indica, sabia Alves Pinto como as concessões régias
serviam de base para possíveis reivindicações, de caráter mais geral, e podiam
ser usadas de acordo com as oportunidades, o momento, o grau de inserção
social e os desdobramentos (argumentos) operados pelos agentes étnicos
mais esclarecidos. Nesse intuito relembrá-las significava reivindicar o efetivo
cumprimento das concessões régias:
-se, assim, como havia uma complementaridade entre trajetória
artística e miliciana, capaz de questionar até certo ponto legítimas, que práticas
encontravam amparo no próprio regime escravista.
Diz mais V. Majestade: Que os que tiverem um a-\no de
serviço nas fronteiras, na firma do\ meu regimento, se
poderão\
recusar de ir a elas, pedindo-o e em se lugar
nomearão ou-\tros. Que nosso soldados não pediu, sabe-o V.
a
S.
a
ele serve dois a-\nos nos e meio a S. Majestade no
nosso terço, como o tiram de nós?\
e se nos tiram qual foi o
outro, que por ele nos deram, aos pardos que se nos\
tem
tirado? E quando não dou a gente que se me pede, vou
preso?\ [...].
490
[grifos de Alves Pinto]
Mais que militância social, pode-se perceber como suas reivindicações
consistiam numa análise da inserção social dos mestiços pela via do
militarismo; que mesmo almejadas e deveras enobrecedoras, as patentes
militares pareciam insuficientes, para vencer o preconceito da cor e seus
desdobramentos sociais na vida cotidiana. Discriminação que era fomentada
pela própria diversidade de vínculos e ou modalidades de serviço na
caserna
491
:
Aqui se\
deitam duas questões: primeira, que nós não servimos
nas fron-\teiras. Segunda, que S. Majestade manda se tirem
dos rapazes os mais capa\zes para a Infantaria, freando a
gente inútil para ampliar não me\
pessuardo de tal direito.
Vamos por partes\, é certo que nós não\
servimos nas
fronteiras do Reino; porque lá não estamos; porém\
eu estou, q.
S. majestade não duvidará sepultar-nos este serviço que\
aquele, cuida trabalhando nós sem paga alguma, e agora o
fize\mos ano, e meio sucessivo com a medição somente de
uns meses\
incompletos; por que no mesmo decreto que acima
apontei prossegue:\
pardos que deixem de ir às fronteiras,
490
Ibidem.
491
Cf.: SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo e a boa ordem da sociedade colonial.
Recife: Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 2001.
191
por não serem necessários, se lhes\ terá respeito, como se
servisse na guerra.\[...]
492
[grifos de Alves Pinto]
Ressaltando a „histórica bravura‟ da „gente de cor‟, Pinto deixa ver como
os mestiços pernambucanos não apenas conheciam a história dessa batalha,
mas operavam uma releitura que permeava as conversas cotidianas daquela
gente. Tornava-se Pinto, com isso, interlocutor da narrativa histórica não oficial
e paralela à história dos grandes feitos militares; dos feitos dos antepassados e
irmãos de cor. Não é de se estranhar que sua carta buscasse chamar a
atenção para incongruência do valor desses indivíduos para a corporação
militar e, por conseguinte, para a sociedade recifense e pernambucana de um
modo mais amplo com os sofrimentos a que estavam submetidos. Bandeira
que ele, em seu lugar de distinção, podia sim levantar:
Veja V.
a
S.
a
este por não\serem necessários. E quando o não
somos? Quando evoluiu a infanta-\ria pernambucana sem
incoporar-se e inessperar-se com os auferes?\ Quem serviu as
Infantarias esse ano e meio, se não os Auxiliares? Quando
\
não estava assim, V.
a
S.
a
suplique a S. Majestade a inteligência
deste\
capítulo, deste não servir-mos nas fronteiras. Enfim o
que pré-\tendo é que não se nos não tirem os nossos
soldados para a Infanta\ria, se não que nos restituam os que se
nos tem tirado; por que também\
somos Infantaria, e não fomos
ouvidos, quando se nos tirou\
que somos\
infantaria está
provado pelo decreto: se nos deve mais respeito que a\
infantaria o motivo agora. \
Os heróis que expeliram do país
pernambu\cano os Belgas foram o primeiro João Fernandes
Vieira, Henrique Dias, 3º\
D. Antônio Felipe Camarão [...].
493
[grifos de Alves Pinto]
É bem verdade que poucas áreas estiveram tão cheia de contradição
como a história militar luso-colonial, razão pela qual ele ressaltava a
contribuição étnica para a própria afirmação da territorialidade e da soberania
política da capitania e da colônia. Contudo, se a celebração anual do evento de
Guararapes, sob a forma de festejos cívicos
494
, era destinada à memória dos
Notáveis Matias de Albuquerque, André Vidal de Negreiros e João Fernandes
Vieira, era também tributo aos bravos índios de Felipe Camarão e aos negros e
492
AHU_ACL_CU_015, Cx. 109, D. 8407.
493
Ibidem.
494
Evento que demandavam, inclusive, a inscrição simbólica e tributária à memória dos
grandes ícones, por meio do emprego de diversas instâncias culturais, como a pintura e a
música e no qual o Mestre de Capela e comandante de tropa, Alves Pinto, devia desempenhar
papel ativo.
192
mestiços de Henrique Dias, e, portanto, legado dos seus descendentes
setecentistas.
A recorrer a memória desses bravos, visava-se, com isso, o gozo efetivo
por parte da gente sem qualidade do quinhão que lhe cabia por herança nessa
„história de glória da gente pernambucana‟. Nesse sentido, Alves Pinto
prosseguia suas queixas, chamando a atenção, para a incondizente posição de
desfavorecimento, exclusão e desvalorização dos herdeiros étnicos dos
grandes nomes mestiços dessa História Bélica.
Eu desejara que me dissessem, de que infantes\
foram cabos
ou chefes? Estou certo, que de uns poucos de pardos, de
índios, \e de pretos. Não duvido que houve brancos, mas não
obastante, para ex-\pulsassem tanto poder, é verdade
que o
senhor André Vidal de Negreiros, que\
vinha não a pelejar; mas
aprender a João Fernandes Vieira e como este (ainda foi\
mestre de campo da infantaria na Bahia) era pardo não traria
consigo\
muitos brancos; E posto que obrou valorosamente
como pernambucano, todavia\
podiam estes conquistar sem
sua presença\[...].
495
Portanto, se é fato conhecido que as altas classes pernambucanas se
regozijavam do feito heróico de haver expulsado de suas terras, sem o apoio
real, as tropas de um dos mais poderosos exércitos seiscentistas
496
, sendo,
assim, merecedora dos direitos de conquista daí advindos, esse mesmo senso
de bravura e merecimento era partilhado pela “gente desqualificada” da
capitania no fim do XVIII. Era dessa gente que Alves Pinto descendia; a ela que
ele representava; por ela que ele intercedia:
Pois seus auxiliares pernambu\nos que eram pretos, índios e
pardos certamente
são o exemplo de todos os auxiliares\
do
mundo, como hão de ser inútil? Como me pessuardirei, q. S.
Majestade\
determina que o seja, e ainda pernambucanos?
Com isto, respondo à 2ª\
questão, e mostro a preferência dos
auxiliares pardos, pretos, e índios à mesma\
infantaria. Digo
agora: como hei de servir-lo, meu soberano, se esse\ manda
que eu fiscalize gente inútil? Gente inútil é mulher, meni-\no e
velho, e com estes hei de pelejar, e ampliar a infantaria per-
\nambucana? E que gente se a finança, se esta é a que me
entrega?\ Tenho exposto a V.
a
S.
a
o que me pertence como
Sargento mor, o qual V.
a
\
S.
a
se dignou de encarregar e pelo
seu agora é motivo que se tem\
114
estranhado muito, sua ida
a Lisboa, porque se pretende ser atendido dos Reais,\
não faz
caso de mulatos. Se não desminta este ultraje, avise-me an-
495
Ibidem.
496
GUERRA, Flavio. Nordeste: Um século de silêncio (1654-1755). Cia. Editora de
Pernambuco, 1984, p. 37-192.
193
\tes, porque eu não quero ver o infame trato, que farão aos
pardos o que me\
não sofrerei sem perder-me, de que Deus me
livre, e guarde a V.
a
S.
a
por\ delatados anos.\
Re. 27 de Abril de 1770. \
A V.
a
S.
a
\
O mais humilde, e afetuoso soldado. \
Luis Alves Pinto.
497
[Grifo nosso]
Perceba-se como se por um lado “as palavras são carregadas de
silêncios”, por outro os silêncios se convertem em palavras com o sentido
próprio de insurgência que a dizibilidade do cotidiano e do anonimato permite
exprimir
498
, necessitando para isso de um porta-voz, de alguém não anônimo
que goze da devida legitimidade; como, ao conclamar a memória cívica luso-
brasileira, não buscava Pinto fazer um mero retorno ao passado heróico, mais
que isso, lançava mão de uma eficaz estratégia para exercer e legitimar o
mutualismo de que estava imbuído, e que o tinha feito, vale lembrar, agente do
embate étnico pulsante na sociedade setecentista. Logo, o tom ameno
político talvez de pseudo-humildade nas linhas introdutórias e conclusivas,
esconde a acidez das críticas presentes no corpo do texto, a força de suas
reivindicações e revela o grande poder de enunciação que lhe havia auferido a
trajetória insertiva e exitosa no âmbito da música, militarismo, da sociabilidade
do Antigo Regime, enfim. Para a felicidade de Pinto e da gente parda, tais
críticas parecem tere surtido efeito, já que o governador Menezes parecia
despertar para o problema e para as insatisfações daquela gente,
comunicando, em 1774, à Coroa portuguesa a situação de dificuldades
enfrentadas pelo regimento da praça do Recife.
499
Mesmo com a morosidade
típica da administração típica do Antigo Regime , o resultado foi positivo,
que em 1779 se comunicava o preenchimento das vagas nos regimentos da
capitania.
500
É curioso perceber também como da amizade entre Pinto e Sepúlveda,
ou melhor, se pode estabelecer um paralelo entre a música e a pintura
setecentista recifense, que da parceria entre ao músico e o pintor emergiu
497
Ibidem.
498
ORLANDI, Eni Perci, As formas de Silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas
unicamp. 2002, p. 9; FOUCAUL, Michel, A ordem do discurso. Lisboa: Loyola, 1998, p. 9-13.
499
AHU-ACL_CU_015, Cx. 117, D. 8945; AHU_ACL_CU-015, Cx. 117, D.8947.
500
AHU-ACL_CU_015, Cx. 117, D.9933.
194
uma „visão mestiça‟ acerca do papel mestiço na Guerra de Guararapes,
imortalizada anos mais tarde na narrativa pictórica do mestre Sepúlveda. Uma
visão que, como foi dito, devia permear as conversas cotidianas daquela gente
“sem qualidade” e que ficou consagrada tanto na representação pictórica,
quanto na sobrecitada carta de Alves Pinto. Militares pardos e artífices de
grande proeminência. Não por coincidência, o fim de suas trajetórias 1783 do
mestre-pintor e 1789 do mestre de capela , à governança de José César de
Menezes (contratante da obra de tributo à Guararapes), foi um período
marcado pela grande tolerância para como as diversas expressões híbridas da
cultura barroca, festas, danças, associações funcionais e religiosas, por
exemplo
501
.
É possível e preciso também olhar a o polimorfismo funcional de Alves
Pinto, através da consagrada relação militarismo e produção cultural, musical
neste caso. Na conjuntura mercantil e na militarizada Recife, a música barroca
era um elemento de afirmação da supremacia individual, coletiva, política,
econômica e espacial, alagando o relativo controle e intercâmbios regionais
para o âmbito da cultura. Ali a produção artística, dada a presença e influência
militar, nutria-se tanto do ritmo, cadência, ufanismo, orquestração, organização
funcional, civismo, aspectos que incidiam tanto sobre as bandas cívicas,
quanto da organização corporativa que ordenava o ofício, sendo a corporação
cívica e a música constituídas por uma mão-de-obra comum. Nesse sentido, a
relação dos músicos com o militarismo dizia respeito ao controle da capitania,
tendo a música sacra e militar presença garantida e relevante papel nos
eventos cívicos, ocasiões onde, aliás, servia de elemento de aproximação dos
artífices com o governo e seus potenciais mecenas.
Logo, a importância auferida pela integração às milícias recifenses, era
justamente porque nessas corporações se alcançava distinção, se
aprofundavam as relações políticas, se tinha acesso às ciências (artes)
castrenses, e se legitimavam as ações de mestiços como Alves Pinto, sendo
dessa maneira possível exercer um maior poder de barganha no âmbito sócio-
501
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Um governador e as seitas africanas In: MELLO, José
Antônio Gonsalves de. Tempo de Jornal. Recife: FUNDARJ/Massangana, 1998, p. 41-46;
SILVA, Leonardo Dantas (Org.) Estudos Sobre a Escravidão Negra, Vol. 2. Recife:
FUNDARJ/Massangana, 1988, p. 23-32; SILVA, Luis Geraldo. Da festa barroca à intolerância
ilustrada: Irmandades católicas e religiosidade negra na América portuguesa (1750-1815).
Disponível: http://www.estadonacional.usp.br/pesquisa/Textos/repensando.pdf.
195
funcional e maior influência nas composições artísticas em favor dos irmãos de
cor. De forma que, a julgar pelas críticas e reivindicações feitas Pinto (ou pela
inferência pictórica de Sepúlveda), se pode acreditar que o artífice mestiço
tivesse perfeita consciência do caminho a ser percorrido, da construção de
vínculos necessários e da importância desses elementos, tanto para na
trajetória individual (ou funcional), quanto para no empreendimento das
diversas formas de luta (interações) de caráter grupal nas esferas artística e
social.
Entende-se assim por que, de um lado,
[...] o músico e compositor, distinto, Alves Pinto gozou de fama
e merecida reputação, foi mestre-de-capela da igreja de S.
Pedro do Recife, e foi ele, por assim dizer, o fundador da
escola musical de Pernambuco.
502
E de outro, seguiu difícil carreira militar.
Esta ambivalência, ou melhor, da proeminência em ambos os ofícios se
converteu em incisivo caminho para a construção da interdiscursividade
mestiça. Razão pela qual os acordes e a cadência castrense da música do
barroco o reveladores da harmonia e do sentimento corporativo que tanto
fomentava a produção recifense e tanto impelia os artífices às rupturas em
relação à idéia de inferioridade racial. Isso significa dizer que a música
assumia, por vezes, certa postura de oposição, que era em si mesma, um
produto das negociações e das demandas e conflitos sociais. Embora, dado o
caráter oficial da atuação, as interações e as mensagens simbólicas e
interdiscursivas da arte musical fossem algumas vezes, sociais (não apenas
estilísticas) e aparentemente sutis (ao contrário dos chamados e sempre
combatidos “batuques”, sob os quais pesavam constante vigilância e
costumeira truculência), o efeito de sentido desse topo produção musical
mestiça não residia, como se pode pensar, apenas nos acordes, na acústica e
na percussão indígena e africana, mas no seu poder de congraçamento e no
lugar de sociabilidade negociada em que se convertia. Essa, entretanto, é uma
questão bastante delicada e digna de análise, pois como Mestre-de-Capela
Pinto equivalia-se ao juiz de ofício nas atividades operacionais do Barroco, e a
ele era conferido o papel de reger, ensinar, controlar e representar os
502
COSTA, 1982, p. 618.
196
associados corporativos das atividades musicais na localidade. De modo que,
levando-se em conta que o ensino musical, ao contrário do que ocorria com as
atividades braçais (mecânicas), dava-se tanto institucional como inter-
pessoalmente extremos estes nos quais atuou o mestre-de-capela e
professor régio mulato conclui-se que tais saberes chegavam a um vasto
coeficiente de aprendizes, de todas as classes e categorias sociais e de todos
os matizes étnicos; que que por meio do ensino, do exercício e da organização
funcional, adentrava-se as questões concernentes da sociabilidade colonial e
se processava releituras culturais.
4.5) Composição e regência: o enobrecimento da aceitação e a parda
cadência dos terços de irmãos.
Concernente à atuação musical desse pardo, deve-se salientar que
Alves Pinto ficou reconhecido por seu nível de intelectualidade, tanto na
metrópole como na colônia. Por isso, gozou de grande prestígio e esteve
sempre muito à vontade com a intelectualidade branca local. Exemplo disso foi
a intensa e duradoura relação mantida com os membros da Irmandade de São
Pedro dos Clérigos, sempre destacada nesse aspecto, mas de cuja gestão
se assinalou as restrições associativas e as ações de hostilidade aos pardos.
Por meio de Pinto (ou de sua proeminência artística), deu-se o fato de terem-
lhe levantado para o ministério da capela e acolhido na sua igreja os confrades
(pardos e negros em sua maioria) de Santa Cecília do Recife, associação de
músicos fundada na Igreja do Livramento dos Pardos. Como se vê, a
irmandade clerical de São Pedro, que sempre foi parâmetro de exigência
artística em Pernambuco, soube também reconhecer os dotes e riqueza nas
letras. E certamente a intelectualidade do mestiço pesou tanto quanto seus
saberes musicais, quando lhe foi confiada a diligência e maestria da música, à
frente da dos irmãos sicilianos. Assim como é importante destacar que tal
reconhecimento se deu no âmbito da sociabilidade e não lhe adveio como uma
dádiva, sendo, portanto, uma prova relevante da sua distinta contribuição.
A propósito de sua extensa produção musical, sabe-se que esteve
sempre marcada pelo ecletismo e pluralidade estilística,
503
próprios do Barroco
503
A noção de estilo é aqui tomada como produto da peculiaridade técnica individual, seu
emprego no sentido de recorte temporal (fase ou subfase, época, etc.) tende a revelar ou
197
e procede do multi-funcionalismo, sendo, por isso mesmo, de grande
relevância para o desenvolvimento cultural de Pernambuco e importante fonte
para o estudo histórico do barroco mestiço, haja visto o amplo horizonte de
atuações e o vasto leque de composições. E
[...] ainda que se tenha perdido em grande parte as suas
composições, ou que existam sem se saber que foram
produção do seu engenho, contudo muitas nos restam tais
como as dos três hinos à N. S. da Penha e do de N. S. Mãe do
Povo, poesias do padre Souza Magalhães; a do oficio da
paixão e das matinas de S. Pedro e S. Antônio, e muitas
novenas e missas Te-Deuns
504
, ladainhas e Sonatas,
mostrando-se, que tudo que era concernente a música, que
então se tocava ou cantava em Pernambuco, era produção
sua.
505
Certamente o relato, deveras apaixonado, de Pereira da Costa deve ser
visto acauteladamente, mas se pode constatar que o polimorfismo um fator
inerente aos grandes mestres de sua época e o vigor artístico fizeram de Luiz
Alves Pinto ícone da cultura híbrida e sacro-profana recifense e pernambucana.
Pois
[...] ele não inscreveu somente o seu nome nos musicais desta
província. Inteligente espírito mais ou menos cultivado pela
pequena educação literária que teve, ele foi professor Régio de
primeiras letras, e em 1784 publicou em Lisboa um trabalho
seu sob o título: Dicionário pueril para o uso de meninos, ou
sob o dos que principiam o ABC e as primeiras dicções (Fig.
4.1). [grifo nosso]
delimitar o universo das mentalidades ao qual se deseja reduzir a pluralidade de formas,
práticas e significações simbólicas que nela (e dela) se originam; pluralidade não comportada
na idéia de linearidade, inflexibilidade, modelo e padronização que o conceito de “estilo” (visto
nesses termos genéricos) carrega.
504
"Te Deum Laudamus", traduz-se: “A Vós, ó Deus, louvamos” e consiste numa modalidade
de hino litúrgico religioso; hino latino usado para expressar um movimento de júbilo. (Ver:
ISAAC, MARTIN, 1984, p. 379; Cf. Partitura de um T-deum a 4 vozes de Luis Alves Pinto
(1760). Disponível em: http://www.4shared.com/file/42688401/11bc85df/Luis_Alvares_Pinto_-
_Te_Deum.html. Acesso em 21/10206.
505
COSTA, 1982, p. 619.
198
Fig. 4.1: Dicionário Pueril para o
Uso de Meninos, ou dos que
Principiam o ABC e a soletrar as
primeiras dicções - Luis Alves Pinto
1784. Obra concernente à educação
pós-jesuítica em Pernambuco.
Perceba-se o símbolo e dizeres da
Real licença à edição e circulação que
a referenda. Disponível:
http://purl.pt/13916.
Essa obra revela quão grande impulso representou o retorno de Pinto à
capitania pernambucana, onde sua atuação não se deu apenas no âmbito da
produção musical, mas também da própria educação pernambucana. Propunha
ali uma educação mais laica, condizente às novas perspectivas educacionais
metropolitanas e européias de maneira geral. Educação que provavelmente
chegou, por seu ministério, às camadas subalternas (negros pardos e
mestiços) da sociedade recifense setecentista. É a conclusão a que se chega
levando-se em consideração a origem étnica de Alves Pinto, seu apreço aos
músicos franceses do XVIII “[...] homens sábios, e claros no, que ensinam.
[Que] tudo dão a todos: [e] nada para si guardam” e, o ambiente mutualista das
irmandades e confrarias étnicas. Não obstante ao fato de que tal educação, a
199
exemplo dos métodos jesuíticos que contribuíu para substituir , tinha uma
tênue fronteira com as artes. Por que:
[...] cultivando também a literatura ele foi poeta, escreveu
alguns dísticos e epigramas latinos, algumas glosas de quadras
suas e alheias, sonetos e uma comédia sob o título Amor mal
correspondido, em três atos, a qual foi representada no teatro
público do Recife pelos anos de 1780.
506
Deve-se, portanto, perceber como a produção musical do Barroco
recifense desenvolveu-se laicamente e deveu-se também à introdução de
elementos externos à cultura lusitana, inerentes à vida cotidiana das gentes
“sem qualidade” étnica. Elementos concernentes ao espaço urbano-portuário, à
dinâmica mercantil e à sociabilidade própria e típica de um meio escravista-
colonial espaço culturalmente fronteiriço e marcado pelos constantes
embates sociais , a saber: temáticas mais profanas, inseridas por ínvias
expressões do hibridismo na espetacular e espetaculosa arte do Barroco
507
.
Elementos, amiúde, que não deixaram de envolver (e simbolizar) as diversas
questões subjetivas em torno das múltiplas e „negras‟ devoções e das
manifestações e práticas religiosas de forma geral.
Foi essa riqueza melódica e simbólica que fez com que a obra do mestre
mulato ainda que parcialmente conhecida se difundisse para além dos
horizontes geográficos do império luso-colonial, que “[...] escreveu também
pequena arte de música que foi traduzida em França e uma outra mais
desenvolvida, não menos apreciada pelos entendedores”.
508
Isso demonstra
que sua a produção foi deveras relevante e crucial para um melhor
entendimento da história da música e da educação em Pernambuco e mesmo
no Brasil, que demarca uma importante fase de transição ou de laicização
do oficio musical e do processo educativo na qual esteve inserida a trajetória
do artífice.
Pode-se estabelecer comparações entre a obra de Pinto seja no que
tange à forma, à diversidade de expressões ou ao potencial insertivo e as
produções anteriores (jesuíticas) e posteriores (do período imperial música
506
Ibidem, p. 619.
507
SANT‟ANNA, Affonso Romano de. Barroco: alma do Brasil. Rio de Janeiro: Comunicação
Máxima/BRADESCO, 1997, p. 14.
508
COSTA, 1982, p. 619.
200
neoclássica),
509
tarefa não comportada neste trabalho. Mas é mister se
perceber como a amplitude, o alcance e a diversidade da obra musical do
mulato, lembrado para a cadeira número “2” da Academia Brasileira de
Música
510
, colaborava para sua própria dignificação social; como o lugar sócio-
funcional de regente-musical, de mestre-de-capela possibilitava-lhe estabelecer
intercâmbios internacionais e interegionais precursor que foi aos casos dos
mestres-de-capela carioca, o padre mulato José Maurício Nunes Garcia (1767
1830) e baiano, o militar e músico pardo Damião Barbosa D‟Araújo (1778
1856)
511
, importando nisso a face mestiça da música barroca desses centros
ultramarinos e o papel preponderante da vila pernambucana no cenário musical
ultramarino. Seria igualmente digno até mesmo em função da trajetória
peculiar edificada e composta em meio as grandes dificuldades enfrentadas
pela gente “sem qualidade” na conjuntura setecentista da mansão de “[...]
maior glória musical da América do Sul”,
512
outorgada ao padre e mulato
carioca José Mauricio Nunes Garcia. No cerne desses intercâmbios, a
operação de uma verdadeira, sonora (porém silenciosa), e gradual renovação
na cultura musical Barroca; uma composição orquestrada e harmonizada por
acordes e tons mestiços. Sobretudo se for considerado que nessa fase as
próprias composições passaram a se desenvolver mais livremente sem as
amarras do catolicismo tridentino, dinamismo solidário pode-se dizer à
propagação acústica e significante da sociabilidade mestiça, das questões
sócio-étnicas inerentes e ou resultantes do cosmopolitismo mercantil. É o que
se percebe, por exemplo, nas cantatas e arietas,
513
onde,
509
NASCIMENTO, Maria Isabel Moura. O império e as primeiras tentativas de Organização
da educação nacional (1822-1889). Artigo Disponível: http://icking-music-
archive.org/ByComposer/L.Pinto.php
510
Cf. ACADEMIA BRASILEIRA DE MÚSICA. História.
Disponível.http://www.abmusica.org.br/; A.B.M. LUIS ALVES PINTO: Cadeira 2.
Disponível: http://www.abmusica.org.br/patr02.htm
511
O padre carioca José Mauricio Nunes Garcia (1767–1830) é o cadeira “5” da Academia
Brasileira de Música, fundada em 1945, na Bahia, por Villa-Lobos, curiosamente o baiano
Damião Barbosa D‟Araújo (1778 1856) na Bahia que inicialmente era um dos patronos foi
eliminado em 1763. (cf. http://www.abmusica.org.br/).
512
DUKE, Gonzaga. A arte brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995, p. 115.
513
Cantata: peça vocal sacra ou secular de comprimento moderado, incorporando recitativo e
ária; peça interpretativa curta e simples; serenata, de comprimento moderado (Cf. ISAACS e
MARTIN, 1984, p. 65); ária: conceito que deriva de air, e consistia em uma composição para
voz ou vozes solistas e acompanhamento musical. Ou seja: uma peça instrumental
caracterizada pelo estilo melodioso da ária vocal (Cf. ISAACS e MARTIN, 1984, p. 20); air:
movimento da suíte barroca (Cf. ISAACS e MARTIN, 1984, p. 6); suíte: seqüência de
movimentos estilizados de dança, todos no mesmo tom (Cf. ISAACS e MARTIN, 1984, p. 369),
201
[...] O repertório renovava anualmente, ficando a composição a
cargo dos mestres de capela e a execução pelo coral, de modo
que o elemento vocal e o canto passaram a ser regidos pelos
encarregados do culto, com prazer da congregação.
514
[Tradução nossa].
Esse enriquecimento (estilístico, temático, discursivo, etc.) era, na
verdade, fruto de um distanciamento em relação aos métodos jesuíticos e do
abandono do discurso sacro tridentino (elíptico)
515
, próprios do Barroco dos
primeiros tempos e da consequente aproximação à realidade mestiça. A
realidade dos Alves Pinto e dos Sepúlveda. A começar pela própria linguagem
empregada nas obras, já que no XVIII:
[...] É característica em obras, por que está em causa, o uso do
vernáculo em vez do latim, e uma exaltação do realismo que,
muitas vezes - e especialmente nos novos vilarejos adquiriu
bastante relevância e sintonia com os costumes do passado
que agora parecem raros. E a música, é claro, geralmente
regida de características impostas pela carta.
516
[Tradução e
grifos nossos].
Esse processo criativo carece, ainda, de uma análise mais apurada no
que tange ao real valor para o entendimento das representações simbólicas
para seus executores e para as camadas subalternas de maneira geral. Isso
fica claro quando são analisadas as obras produzidas pela gente negra,
indígena e mestiça (a gente popular), como Pinto, por exemplo. Sendo mister
uma postura investigativa menos inclinada à afirmação do discurso e
referencial europeus. Mais especificamente, de análises comparativas que não
visem, previamente e a qualquer custo, encontrar motivações e formas
exclusivamente metropolitanas nas obras coloniais. Foi partindo desse
pressuposto que alguns autores cometeram o equívoco de pensar que “[...] a
qualidade dessa música era bastante modesta. Muito inferior ao que ocorria em
uma micro-física de saberes técnicos das artes musicais, cujo domínio
(aprendizado/exercício/ensino) consistia pode-se dizer degraus de liberdade naquela
sociedade escravocrata recifense do século XVIII. Ver Cantatas e Arietas PANNAIN, CORTE,
1950, v. 2, p. 849-853.
514
“El repertório se renobava anualmente, corriendo su composición a cargo de los maestros
de capilla, para que los cantara el elemento vocal y lo teñeran los milistriles adscritos al culto,
com gran regocijo de la feligresia.” (Cf. PANNAIN, CORTE, 1950, p. 851).
515
Discurso envolto de mensagens não ditas ou subliminares. Ver: SANT‟ANNA, Afonso
Romano de. BARROCO: Do quadrado a Elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 22-23.
516 “Es característico em esas obras, pó lo que la letra respecta, el uso de la lengua vulgar, em
vez del latin, y la exaltación de um realismo que, frecuentemente y sobretodo en los villancios
novideños -, adquiria um relieve muy a tono com pretéritas costumbres que hoy parecen
insólitas. Y la música, naturalmente, se ceñia por lo común al caráter impuesto por la letra.” (Cf.
Ibidem, op. cit., p. 851).
202
várias capitais da América espanhola”,
517
sendo as produções coloniais, como
a recifense, vista ai como meras imitações, mais ou menos à altura dos
referenciais europeus. Esse eurocentrismo tende a ignorar o impacto do
cotidiano e da presença mestiça em que se traduzem a vida e a obra de
mestres como Alves Pinto, Nunes Garcia e Damião D‟Araújo, levando-se à
idéia de que os compositores coloniais:
[...] deixaram em seus trabalhos pálidos traços que atestam
estarem eles perfeitamente a par do que se fazia na Europa
naquele momento, mas são exatamente esses traços que os
afastam das características barrocas.
518
Desconsidera-se com isso, que esses músicos mestiços mesmo
partindo dos métodos europeus tenderam a [re]criar rítmica e simbolicamente
a musicalidade do barroco; que em dado momento, o nível de especialização
tornava-lhes agentes mescladores; que o caráter de divergência de suas
composições lhes confere valor em si mesmas, que o grau de adulteração,
expressava as possibilidades inerentes ao contexto escravista recifense, e aos
horizontes culturalmente híbridos , e não em virtude da gradual aproximação
estilística
519
.
Deve-se, portanto, encarar a presença de elementos estranhos ao
universo musical luso-europeu, não como indícios do grau de
aproximação/distanciamento ao mesmo, mas, ao contrário, como pistas da
fuga estilística que se processou nas composições, de modo específico e, mais
amplamente, na cultura como um todo; como marcas, sons, timbres, vozes,
notas e solfejos implicativos das percepções, ações sensórias e expressões
devotivas da gente mestiça; como fugas mesmo, quando vistas como produtos
das trajetórias pessoais dos indivíduos projetados à condição de sujeitos, como
foi o caso do músico mulato pernambucano, que inclusive legou à música
colonial uma produção teórica reconhecidamente inovadora para a época,
sendo ele autor de dois dos sete tratados da sica colonial e dos nove se
forem também contabilizados os tratados produzidos no período pós colonial,
conforme se vê na lista abaixo:
517
MARIZ, apud VASCONCELOS-CORREIA, Sergio de. Música Colonial Brasileira Barroco (?)
Brasileiro In: TIRAPELLI, 2005, p. 240.
518
Idem, apud ibidem In: Ibidem, p. 240.
519
GRUZINSKI, 2001, p.42.
203
TRATADOS MUSICAIS BRASILEIROS
520
PERÍODO COLONIAL
1
.
LIMA, João de. [Tratado(s) de música perdido(s)
(Recife ou Salvador, final do séc. XVII)];
2
.
JESUS, Caetano de Melo. Escola de canto de
órgão (Salvador, 1759-1760);
3
.
Idem. Tratado dos tons (perdido) (Salvador,
metade do séc. XVIII);
4
.
PINTO, Luís Álvares. Arte de solfejar. (Recife, 1761
Obra já publicada);
5
.
(______), Muzico e Moderno Systema para
Solfejar sem Confuzão (Recife, 1776);
6
.
FRANCO, José de Torres. Arte de acompanhar
(Mariana, 1790);
7
.
ANÔNIMO. Modo de dividir a canária do Órgão
(Salvador? Início séc. XIX)
PERÍODO PÓS-COLONIAL
8
.
GOMES, André da Silva. Arte explicada do
contraponto (São Paulo, c. 1800, cópia de
Jerônimo Pinto Rodrigues, Itu, 1830);
9
.
GARCIA, José Maurício Nunes. Compêndio de
música e método de piano forte (Rio de Janeiro,
1821).
Atente-se também para os principais centros de produção: Rio de
Janeiro - Minas Gerais,
521
Bahia e Pernambuco; regiões portuárias e
interconectadas com exceção de Minas , expostas, portanto, ao fluxo e
refluxo social e comercial dos setecentos. E, por isso mesmo, propensas às
artes.
Perceba-se a superioridade numérica das obras produzidas no eixo
Salvador-Recife e, portanto, o próspero cenário de intercâmbios das sedes
nortistas, produto de laços comerciais antigos e sólidos. Veja-se, não obstante
a superioridade numérica de autores mestiços (anteriormente assinalados) e,
portanto, o processo de hibridização musical desses centros nos tempos
mercantis. Enfim, como as longas trajetórias dos artífices contribuíram para a
configuração de um processo de mestiçagem. Bom exemplo disso é que “[...] o
520
BINDER & CASTATAGNA, 2006, p. 6.
521
A difusão da cultura barroca em minas também não esteve desvinculando do processo
mercantil atlântico, pois se deu a partir do São Paulo por onde adentravam passando por Rio
de Janeiro.
204
sargento-mor Luiz Alves Pinto faleceu aos 70 anos de idade no ano de 1789, e
foi sepultado na igreja de N. S. do Livramento [dos pardos] do Recife”,
522
sendo
sepultado como honras fúnebres, militares e musicais tributadas por seus
irmãos de ofício e cecilianos, pares étnicos e co-irmãos. Deixava a vida o
artífice músico, escritor, erudito, professor régio, militar e militante da causa
étnica e protagonizava assim o papel derradeiro de sua vida no enredo dos
embates étnicos da Recife portuária: o de elo entre mecenas e mão-de-obra
parda da arte musical. Deixava duas herdeiras e um herdeiro de sangue e
muitos de ofício.
Partia assim, naquele 1789, e ao som das salvas de tiros de canhões, o
cortejo de despedida a Alves Pinto, ao som de cantatas arietinas e sonatas
523
fúnebres melodiosamente híbridas é claro executadas pelos co-irmãos,
mestres e aprendizes cecilianos, compromissado face à importância do morto
a passar pelas mais importantes igrejas do Recife, mas com, ao menos,
quatro pontos de parada certos: a) a vizinha Igreja do Rosário dos Pretos da
Freguesia de Santo Antônio; b) a Igreja da Conceição dos Soldados (ou dos
Militares, como ficou conhecida), em virtude de haver comandado ao regimento
recifense; c) a Igreja de São Pedro dos Clérigos, sede dos irmãos cecilianos e
onde ministrou a música; e, por fim; d) a Igreja de N. Senhora do Livramento
dos irmãos étnicos (fig. 4.2), onde depositaram, derradeiramente, o seu corpo,
cumprindo formal e religiosamente o ritual costumeiro em nível dos mais
ilustres devotos e personagens daquela vida colonial mercantil recifense, onde
a gente “sem qualidade”, festejava a morte e chorava a vida.
524
Cortejo que se
podia assistir das sacadas lugares de visualidade dos velhos sobrados e
dos frontispícios das igrejas recifenses, curiosa, devota e reflexivamente. Ato
litúrgico, ato público, ato de ostentação econômica, ato social classista,
grupal, de categoria funcional, etc., ato “de fala” coletiva enfim, desde que visto
sob as muitas perspectivas ali presentes. Eis algumas interpretações passíveis
522
COSTA, 1982, p. 619; VIDE, 2006, V. 3, p. 113.
523
Peça de três ou quatro movimentos com velocidades variáveis e intercaladas, com ou sem
minueto (Cf.: ISAACS e MARTIN, 1984, p. 361-362).
524
Ver VIDE, D. Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado do Bahia.
Ed. Senado Federal, 2007, Livro I, Títulos 46-53, p. 820-843; REIS, João José Reis. A Morte é
uma Festa: Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil Colonial do Século XIX. São Paulo: Cia.
das Letras, 1991, p. 89-202; MORAES, Douglas Batista de. Bem nascer, bem viver, bem
morrer: administração dos sacramentos da igreja em Pernambuco 1650 a 1790. Recife: UFPE,
2001, p. 97-119. (dissertação de Mestrado).
205
para aquele fato; para aquele encontro de mundos e universos culturais; para
aquele típico evento do Barroco, onde a vida tributava a morte e a morte (o
bem morrer) espetaculava tribultariamente a vida e as distintas formas de
vivenciá-la.
a) Igreja do Rosário dos Pretos da
Freguesia de Santo Antônio
Fig. 4.2: Planta Geográfica da Vila de Santo Antônio do Recife
Pernambuco, 1749, de autoria de Francisco de Oliveira e José Peixoto de
Abreu Original: manuscrito do AHU Lisboa.
Disponível: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas do Brasil Colônia.
São Paulo: Usp, 2001, p. 102.
b) Igreja da Conceição dos Soldados
c) Igreja de São Pedro dos Clérigos
d) Igreja de N. Senhora do Livramento
Mais que uma mera despedida dos viventes, os últimos instantes de
Alves Pinto representaram, representavam-lhe, a certeza da passagem
certeza única da vida humana , o reencontro da criatura com o Criador e o
desejo do primeiro de que trajetória de vida e caminho da bem aventurança
assumissem um único sentido. Tal eram as suplicações do homem colonial:
Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,/ da vossa alta
clemência me despido;/ porque quanto mais tenho delinqüido,/
vos tenho a perdoar mais empenhado.// Se basta a vos irar
tanto pecado,/ a abrandar-vos sobeja um gemido:/ que a
mesma culpa, que voa ofendido,/ vos tem para o perdão
lisonjeado.//Se uma ovelha perdida e cobrada/ glória tal e
prazer tão repentino/Vos deu, como afirmais na sacra história,//
eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,/Cobrai-a; e não queirais,
pastor divino,/Perder na vossa ovelha a vossa glória.
525
525
“A Jesus Cristo Nosso Senhor.” (Ver: MATOS, Gregório de. Poemas Satíricos. São Paulo:
Martin Claret, 2005, p. 96-97.
206
Desejo que, para além, da ritualidade ao segundo, ao criador apenas,
coubera a confirmação. Para os viventes, porém, em torno do evento
acresciam-se as demandas porfiosas inerentes à vida material; finita, que
apenas Alves Pinto não mais estava no jogo de falas e barganhas sociais
daquela tensa sociedade.
Assim, é válido salientar que a representatividade daquela despedida ia
muito além dos significados religiosos inscritos no corpus do ritual, pois em
torno dele as percepções e [re]significações eram diversas, que estavam
bem vivos e avivados ali os diferentes interesses dos viventes (futuros e
potenciais narradores) do dito fato. E se “[...] a eficácia do ritual supõe a
existência de numerosas formas de transmissão que, pela palavra, pela escrita,
pela linguagem, mesmo aqueles que não foram de modo algum espectadores
[daquele evento] e que nunca vieram a conhecer [...]” Alves Pinto, essas
múltiplas formas de dizer também garantiam a transmissão dos múltiplos
sentidos daquele desfecho que fora da vigorosa trajetória social e funcional de
Pinto, importando nisso a interdiscursividade cultural que esse percurso
representava. Interdiscursividade avivada naquela festa perante a morte, razão
pela qual se disse que o Barroco era “[...] o reino da festa perpétua [...] e
também da representação [...]”,
526
das vivências sociais, da sociabilidade
humana; o reino da harmonia negociada, o foro dos conflitos etnocêntricos
inerentes ao universo escravista expressos dica e simbolicamente, por meio
das artes e práticas sociais, como a história de Alves Pinto vem ilustrar.
Ao tempo da morte de Luiz Alves (1789), distanciada era a data em
que havia morrido o co-irmão do Livramento, Manoel Ferreira Jácome (1736).
Um pouco atrás (1782-3?), não mais vivia o amigo Sepúlveda. Naquele ano
de 1789, da grande revolução iluminista e liberal francesa, também Pinto era
descontado do número dos viventes da Praça do Recife. Findava, portanto,
uma epopéia que nada mais era do que a vida de um distinto e ilustre fugitivo
ao anonimato; da vida comum inerente aos trabalhadores e vivenciadores da
cultura barroca, cuja produção efetiva era parte integrante e visível de sua
própria vida, sonhos, desejos, lutas e lutos enfim, e que se confundia
influenciava, se enlaçava, se imbricava mutuamente com esse mesmo viver.
526
BASTIDE, Roger. Variações sobre a porta barroca. Revista Novos Estudos. São Paulo:
CEBRAP, julho 2006, p. 129-137. Disponível: http://www.cebrap.org.br/imagens/Arquivos.
207
Um processo longo e dinâmico silencioso, porém , ocorrido entre 1701, ano
da morte do mestre pedreiro Matos, e 1789, ano em que partira o mestre Luis
Alves Pinto. Processo no qual os passos, silenciosos porém firmes , dos
agentes da mestiçagem cultural transitaram o percurso insertivo da música
naquele cotidiano cosmopolita-mercantil recifense; compondo, em intervalos
mais ou menos regulares e timbres elevados, algumas notáveis trajetórias
pessoais, percorrendo compassadamente o árduo caminho entre anonimato
mordaz e visibilidade consagradora das notas, acordes e métodos musicais
mestiços. Três notáveis casos de mestiços-artífices; de mulatos bem
sucedidos; de representantes claros de uma imensa massa de indivíduos para
quem a cultura foi apenas a via pela qual buscaram galgar seu próprio re-
ordenamento social e a revalorização de suas respectivas categorias étnicas; o
canal para afirmarem suas individualidades, suas heranças culturais, suas
identidades étnicas naquele Recife entre 1701 e 1789.
208
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como palavras últimas ao presente trabalho é possível constatar, a
guisa de considerações finais, que o estudo da produção cultural recifense do
século XVIII, a partir das trajetórias sócio-funcionais de Manoel Ferreira
Jácome, João de Deus e Sepúlveda e Luis Alves Pinto revela como as cidades
mercantil-portuárias coloniais se configuraram como centros produtores e
difusores da arte barroca no Brasil Colonial. A Vila do Recife setecentista,
portanto, é um exemplo de como esses lugares se constituíam como espaços
ordenados, racionalizados, planejados urbanisticamente. Um ordenamento
que nutria-se, por sua vez, nos diversos paradigmas históricos de
administração e ou planejamento das conquistas territoriais do que resulta o
urbano caráter europeu , mas que contou com a participação funcional
destacada de diversos artífices das camadas subalternas, negros, indígenas e
sobretudo mestiços. Exemplifica esse processo a ascensão do mestre Jácome
a condição de presidente-de-ofício, que era o individuo vinculado à categoria
dos oficiais construtores, diretamente ligado a câmara local e que exercecia a
dúbia tarefa de representá-los.
Como foi visto, esse planejamento tanto era político (expansionismo),
quanto militar (bélico-defensivo), por isso, visava a soberania através dos
elementos edificativos. Mas a formação/dinamização econômica (mercantilismo
e rotas ultramarinas) local e o domínio étnico eram também demandas desse
processo, de modo que a arquitetura devia espelhar a própria imagem da
dominação européia. Da mesma forma, a difusão religiosa era outro ponto
fundamental desse ordenamento. Por isso os templos demarcavam não
apenas o avanço da catequese ao catolicismo razão pela qual a arquitetura
expressava a própria face religiosa que caracterizou o Barroco , como
simbolizavam também o controle civil em sua instância religiosa.
A projeção de artífices mestiços aos lugares de fala desse
planejamento, porém, possibilitou o incremento das demandas e percepções
formais marcadamente híbridas. A substituição de Jácome ao mestre Matos,
grande empreendedor de obra no último quartel dos seiscentos, é um exemplo.
209
Dessa ascensão, viu-se que resultou um poder de enunciação por meio do qual
Jácome tornou-se um dos referenciais nos assuntos referentes à arquitetura e
engenharia e legou a produção elementos inerentes às demandas cotidianas;
aspecto que diziam respeito às maneiras de vivenciar os espaços e as formas
arquitetônicas. E é juntamente no que diz respeito ao vivenciamento que se
pode compreender também o papel desempenhado por artífices pintores como
Sepúlveda e músicos como Alves Pinto. Suas funções, ademais, faziam parte
das práticas cosmopolitas que davam à cultura recifense do setecentos
mercantil o caráter de plasticidade e dinamismo.
Logo, pode-se dizer que tal processo edificativo e, sobretudo, as formas
de vivenciar essas urbes (vilas e cidades) visavam, de forma dialética, tanto o
atendimento das demandas imediatas, contextuais e cotidianas (face às
próprias especificidades da ordem social da colônia), quanto os interesses
(efetivo domínio) do colonizador. Tanto as pinturas sepulvedianas, como a
música praticada e ensinada por Alves Pinto mostram que, na condição de
peritos e com participação destacada nas artes, os indivíduos das camadas
subalternas tendiam a flexibilizar os modelos e referenciais que circulavam
nesses centros urbanos. Se for aliado a isso o caráter múltiplo das trajetórias
desses mesmos artesãos, funções adicionais ou suplementares como a
carreira militar e o ensino das artes, se pode perceber como a re-elaboração
urbanística e cultural se davam em função de aspectos étnicos e contextuais.
Mais especificamente, de ações subreptícias da sociabilidade, inerentes aos
diferentes universos culturais aos quais pertenciam tais artífices horizonte de
onde viam o mundo, os paradigmas estéticos, as tendências enfim.
Todo isso, demonstra que houve uma cristalização estético-morfológica
difusa nas expressões culturais setecentistas. Processo por meio do qual o
barroco desenvolvido nos entrepostos costeiros se configurou profusamente,
em face do contato dos artífices (e ou agentes produtores) com as influências
(tendências) estrangeiras e mediante as diversas releituras processadas
cotidianamente por esses elementos. Para esse hibridismo corroborou,
também, a própria lógica operacional (dinâmica interna das cadeias funcionais),
na qual sobressaíam os “modos de fazer” individuais e dos “usos pessoais e
inter-pessoais (coletivos), específicos e pertinentes aos diversos grupos
étnicos, sócio-econômicos (classes) e sócio-culturais (étnico-identitários).
210
Portanto, a formatação estética constituía e expressava em termos materiais
e simbólicos a correlação dos diversos fatores inerentes à ação edificativa:
tendências, o “modus operandi” e o “modus vivendi”, o contexto colonial-
mercantil, os múltiplos usos (oficial e ordinário), etc. De maneira que se pode
mesmo dizer, com base nos casos analisados, que desses elementos derivava
a própria concepção metafísica (totalidade material-imaterial) da cultura do
Barroco. Ou seja, a forma deve ser vista senão como o resultado da integração
de instâncias artísticas diversas que complementava-se na pluralidade de
práticas culturais do contexto setecentista (eventos, rituais, etc.), produzindo-
se, assim, o sentido sociocultural peculiar de uma época que apesar de
passível de compreensão não mais sevivenciado da mesma maneira (do
que, aliás, resultam as próprias releituras, por um lado, e a própria
sobrevivência de determinados elementos culturais dentro do processamento
de hibridação a que convencionou-se chamar “estilo de época”. Ao que, por
sua vez, se optou aqui chamar de “tendência”, face ao caráter singular do
termo como foi dito, a periodização estanque que tal emprego conceitual
representa e a interatividade dos receptores implicitamente inscrita nesse
último termo.
Assim, a análise das trajetórias e obras de Jácome, Seupulveda e Alves
Pinto mostra como a própria dinâmica de produção cultural no ambiente
urbano-mercantil recifense esteve circunscrita no que se pode chamar de
planejamento citadino do século XVIII. Essa dinâmica permitia o incremento de
infra-estrutura urbana, o aparelhamento administrativo e a normalização do
espaço público, por um lado, viabilizando tal planejamento, por outro. Sendo tal
dinâmica um mecanismo eficaz pois era menos impositivo que incessivo de
integração e „harmonização‟ das diversas querelas do cotidiano setecentista.
Isso porque contribuía para o estabelecimento da ordem colonial sempre
negociada , na medida em que transpunham para o plano simbólico grande
parte dos conflitos e ou divergências sociais, políticas e étnicas latentes no
interior da concepção orgânica assumida pela urbe colonial. É o que fica claro
quando se dirige maior atenção a formação profissional no período
setecentista, como no caso dos três artífices analisados.
Quando se descrever a formação de Jácome no canteiro de obras do
mestre Português Antônio Fernandes de Matos, o aprendizado intra-familiar de
211
Sepúlveda e o aprendizado musical de Pinto amparado no suporte financeiro e
mutualista dos confrades pernambucanos percebe-se a associação do esforço
pessoal e grupal para a projeção de representantes étnicos.
Ao se descrever tais percursos instrutivos e insertivos, buscou-se,
portanto, esclarecer como o aprendizado, as atuações funcionais e as próprias
ações sócio-operacionais, devem ser vistas como estratégias de sobrevivência
na luta grupal e étnica dos artesãos recifenses do XVIII. Ou, ainda, como essas
práticas configuravam um percurso relativamente demarcado. Um percurso
sócio-funcional, que configurava-se sob a forma de trajetórias individuais,
calcadas na transmissão de conhecimentos técnicos, no desenvolvimento de
um processo cíclico de vinculação social clientelar e no pertencimento a
determinado círculo de amizades/influências. Ciclo que, por sua vez, denota
como sobre os percursos insertivos (específicos e comuns) pesavam, de
sobremaneira, os laços políticos, trabalhistas, de apadrinhamento e de
parentesco, assim como toda a micro-política (ações cotidianas) típica da
sociedade escravista colonial. De modo que, em torno da formação profissional
e da produção artística se desenvolvia uma sociabilidade relativamente laica,
que estava muitas vezes permeada por aspectos de natureza cio-identitária,
que sobressaía à dinâmica produtiva do Barroco. De modo que tal formação se
configurava como intra e extra-familiar; inter e extra-étnica; inter e extra-
identitária, mas sempre politicamente clientelar, como exemplifica a associação
de Jácome a Antônio Fernandes de Matos, que, como foi dito, foram
compadres.
Outro ponto que sobressai do estudo dessas trajetórias, diz respeito às
modalidades de saberes relativos à produção cultural do Barroco e a sua
difusão. Uma vez que tais saberes configuram a produção barroca como fruto,
ao mesmo tempo, do trabalho mecânico subalterno , e intelectual; uma
mistura que se diferencia do trabalho meramente braçal por ter como
particularidade o alto poder de projeção pessoal na sociedade setecentista.
O universo de conhecimentos inerentes a produção, portanto,
constituíam-se na correlação de saberes técnicos (multi, inter e trans-
disciplinares) pertencentes às diferentes áreas e complementares instâncias
funcionais com práticas (ou vivências) sociais de que derivam significações
simbólicas múltiplas: multi, inter e trans-culturais. Práticas coexistentes e
212
oriundas de universos culturais distintos, mas que se harmonizavam no viver,
sentir e fazer cotidiano; no processo produtivo da cultura Barroca; nas
trajetórias sócio-funcionais dos artífices (indivíduos igualmente egressos de
universos étnico-culturais distintos) enfim.
Deve-se, portanto, perceber como, ao envolver um amplo leque de
saberes oriundos múltiplos campos operacionais, estando inscrita no
desenvolvimento citadino e prestando-se às ações civilizatórias dos setecentos,
a arte foi uma porta para ascensão pessoal, a luta étnica e grupal. Basta dizer
que, até aqui, falou-se de artistas qualificados pelos talentos múltiplos e
apurados que detinham e que, por isso mesmo, viveram e operaram na
produção do Barroco como num grande campo da sociabilidade humana; de
personagens cujas ações se traduziram em trajetórias insertivas pessoais de
indivíduos mestiços que aproveitaram cada brecha liberdades que a cultura
e o trabalho ofereciam para desenvolverem ações, em favor de si mesmos e
dos seus pares étnicos, visando a re-qualificação e a inscrição de símbolos
culturais não-europeus; de mulatos que, a exemplo de muitos pares menos
exitosos, fizeram de suas obras elementos simbólicos de seu pensar, viver e
fazer a cultura numa sociedade escravocrata e rigidamente hierarquizada em
função do estigma da cor; de sujeitos ativos, cuja contribuição foi de grandeza
incomum para os padrões e possibilidades da época, no espaço territorial luso-
americano e temporal setecentista; de atores cujos nomes e feitos
atravessaram os séculos seguintes como ícones nas respectivas instâncias
produtivas em que operaram, sem que pesasse nisso seus próprios olhares em
relação ao trabalho que desenvolviam; de pessoas cujos matizes étnicos
sobressaíram, por um lado, como desdobramentos da produção barroca, mas
empalideceram, por outro, ante às especificidades dos registros e ao olhar
estético-morfológico por vezes etnocêntrico presente nas narrativas
historiográficas; de indivíduos cuja contribuição reside no lugar de
incompreensão destinado aos elementos e significações simbólicas não-
européias, na medida em que constituem aspectos estranhos ao discurso
eurocêntrico que, muitas vezes, permeia as análises estético-morfológicas da
produção cultural „barroca‟; de indivíduos dos quais restou uma nima parte
dos seus imensos legados concernentes à pujante, mestiça e plural produção
cultural (porém capaz de denunciar a supremacia numérica dos negros,
213
indígenas e mestiços na mão-de-obra operária e entre os grandes artistas do
Barroco). Entretanto, suscita grande curiosidade o fato de que, embora fossem
peritos e renomados ao tempo em viveram e atuaram, jamais foram
dignificados com o distinto conceito de “artistas de qualidades”.
Muito embora, no presente, isso não suscite quase nenhum
estranhamento (sobretudo à luz da compreensão das “artes” nos dias atuais:
vista como produto da intelectualidade fator que nos lança a reflexão do
anacronismo da transposição „mecânica‟ de conceitos como „arte‟ e „artista‟ e
de sua transposição aos setecentos), para o contexto setecentista essa
designação revelava o teor de exclusão social inscrito em tal proposição. A
razão é simples: “artista de qualidade” era implicativo da condição étnica, um
indício da hierarquia étnica típica daquela sociedade recifense setecentista, era
um conceito designativo de artífice “etnicamente limpo”, ou, de “artista de
sangue puro”, o necessariamente enfatizando o grau de perícia técnica do
indivíduo. Logo, impactando na cultura por eles produzida ou vivenciada
(trabalho/eventos), já que remetia à origem luso-européia da arte e do artesão.
De certa forma, isso tendia a sublevar o papel dos brancos na produção
artística, e, por conseguinte, ratificar o modelo e parâmetro para as artes: em
suma, a configuração européia tridentina. Não foi à toa que o neoclassicismo
francês se constituiu um século depois como o referencial estético-
estilístico adotado face à gradual substituição e oposição ao Barroco, sendo
igualmente introduzido através dos centros costeiros, em meio ao fluxo
portuário e por meio das rotas sociais e culturais que ele gerou. Mas o fato é
que, nos setecentos, muito mais que fruto de discursos, as artes setecentistas
eram produto das habilidades e ações individuais; de atividades
eminentemente braçais; do ofício de brancos-pobres e de uma imensa maioria
de indivíduos etnicamente „desqualificados‟ (negros, indígenas e mestiços) que
pensavam-nas, inexoravelmente, a partir de e em função de próprios
horizontes culturais.
Logo o Recife portuário que permitiu a projeção afro-brasileira, que veria
aportar, com os navios vindos da Europa, os ares e as notícias dos grandes
processos revolucionários ocorridos no velho continente como foi o caso da
214
grande revolução liberal-iluminista de 1789
527
, podia também orgulhar-se de
ter vivido sua própria revolução social, política, econômica e cultural formatada
a partir de elementos externos e internos. Espera-se que a presente narrativa,
trazendo à discussão os nomes, os rostos, as trajetórias e os elementos
simbólicos impressos na cultura setecentista local, tenha contribuído para
revelar as faces mestiças da produção barroca, os elementos estranhos ao
catolicismo contra-reformista tridentino, os embates e as fugas à aspiração de
controle absoluto que Portugal e a Igreja esperavam impor por meio da
produção colonial; Enfim, o sentido revolucionário, a liberdade negociada e
não-abolicionista inscrita nas obras e eventos do barroco local, a relação de
complementaria que há entre a História da Arte e a História Social do século de
XVIII.
527
Cujos ideais norteariam os inconfidentes mineiros (1789) e os revoltosos pernambucanos
(1817 e 1824), tendo sido também uma influência cultural determinante.
215
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AHU_ACL_CU_015, Cx. 116 D.8887
AHU_ACL_CU_015, Cx. 116. D.8888
AHU_ACL_CU_015, Cx. 134, D.1586.
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AHU_ACL_CU_015, Cx. 235 D.15867
AHU_ACL_CU_015, Cx. 40. D.3595.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 43, D.3920
AHU_ACL_CU_015, Cx. 47. D.4214.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 57, D.4943.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 68. D.5753
AHU_ACL_CU-015, Cx. 117. D.8947.
AHU-ACL_CU_015, Cx. 117. D.8945
AHU-ACL_CU_015, Cx. 117. D. 9933
AHU-ACL_CU_015, Cx. 117. D.9933.
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envelope II, p. 1.
Actas da Câmara do Recife 1761-1773. In: Revista Arquivos, v. IV, 1985.
230
Actas da Câmara do Recife 1761-1773. In: Revista Arquivos, v. I e II, 1978.
DICIONÁRIOS:
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesus, vol 1 a 4; Lisboa: Officina de Pascoal da Silva,
vol. 5 a 8, 1712-1721. (CDrom produzido pela UERJ.)
ISAAC, Alan e MARTIN, Elizabeth (org) Dicionário de Musica. o Paulo:
Zahar, 1984.
CD ROM:
MARTINS, Marcelo Antunes. Projeto Mestres Mulatos. São Paulo: Petrobras
2006.
231
ANEXO: A
Fig. 01: Lisboa, antes
do terremoto de 1755,
pintada por Reinier e
Josua Ottens Onde se
percebe o seu
desenvolvimento urbano
e sua condição
portuária. Disponível:
http://www.mlivro.com/m
l_ereproducoes.htm
Fig. 02: Cidade do
Porto, século XVII, de
autoria de H. Duncalf.
Disponível:
http://www.mlivro.com/m
l_reproducoes.htm
232
ANEXO: B
Fig. 04: “Prospecto da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro”. Cópia manuscrita para ser incluída por Vilhena em
Notícias Soteropolitanas 1803, Original da Biblioteca Nacional, 1775, p. 166.
Fig. 05: “Demonstração da Cidade de S. Salvador” Original manuscrito da Direção dos serviços do Gabinete de
Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, Lisboa. [Séc. XVIII segunda metade] pág. 319.
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