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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Márcio Gonçalves dos Santos
O processo de estigmatização dos gnósticos em Contra as
heresias de Irineu de Lião
Dissertação submetida ao Corpo Docente do
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
- UNIRIO, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do grau de Mestre.
______________________________________
Prof.a Dr.a Claudia Beltrão da Rosa (Orientadora)
_______________________________________
Prof.a Dr.a Sonia Regina Rebel de Araújo
________________________________________
Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva
2009
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1
SANTOS, Márcio Gonçalves dos
O processo de estigmatização dos gnósticos em Contra as heresias de Irineu de Lião /
Márcio Gonçalves dos Santos – Rio de Janeiro, 2009.
131.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
– UNIRIO, Centro de Ciências Humanas – Departamento de História, 2009.
Orientadora: Claudia Beltrão da Rosa
1. Estigmatização dos cristãos gnósticos. 2. História do Cristianismo Primitivo. 3.
Magia. I. BELTRÃO, Claudia. II. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. III.
O processo de estigmatização dos gnósticos em Contra as heresias de Irineu de Lião.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, ternamente, à Profª. Dra. Claudia Beltrão da Rosa pela orientação,
dedicação, paciência, apreço pela minha pesquisa e pela amizade que estabelecemos ao
longo desses dois anos.
Ao Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva, por me iniciar nos Estudos Clássicos e ter
principiado a pesquisa que hoje é uma dissertação, meus sinceros agradecimentos. À
Prof.a Dr.a Sonia Rebel de Araújo, por ter me introduzido na prática da leitura isotópica,
e pela participação em meu exame de qualificação, com preciosas recomendações.
Aos funcionários das bibliotecas com que mantive contato: Biblioteca Central da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Biblioteca do Instituto de
Filosofia e Ciência Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ) e
Biblioteca da Faculdade de São Bento, meus agradecimentos.
Agradeço a Thiago Reis, amigo adquirido durante o percurso do mestrado, por
todo auxílio que me forneceu e muitos momentos de diálogos.
Agradeço a Sra. Patrícia Horvat por ter me proporcionado um incentivo a mais à
minha trajetória na pesquisa.
Agradeço, especialmente, ao meu grande amigo, que se tornou irmão, Jorge
Alberto, pelo empenho espiritual e material, sem os quais não teria principiado meus
estudos de pós-graduação.
A todos, muito obrigado.
3
RESUMO
O objetivo desta dissertação é uma análise da obra Contra as heresias (Adversus
haereses) procurando identificar o processo de estigmatização empreendido por Irineu,
bispo de Lião. Para tanto, apresentaremos qual era a situação do dos seguidores da
cristã no século II, época de produção da obra, nos valendo de dois momentos: a
correspondência de Plínio, o jovem, governador da Bitínia, ao princeps Trajano,
ocorrido por volta de 112, e as supostas perseguições que aconteceram nas cidades das
Gálias, Vienna (Vienne) e Lugdunum (Lião). Pois tais momentos nos permitirão ter uma
visão geral das relações entre as autoridades de Roma e os cristãos. Caracterizaremos,
também, o cristianismo gnóstico, porque a estigmatização de Irineu a eles se dirigem,
para que possamos compreender quais são os pontos de divergência entre essas duas
variante da cristã. Utilizaremos como conceitos-chave magia e estigma, pois serão
fundamentais para entendermos como o processo de estigmatização se configurou.
Nossa base metodológica é a leitura isotópica, porque nos permitiu uma análise
intratextual das ocorrências dos estigmas.
4
RESUMÉ
L'objectif de cette dissertation est une analyse de l'oeuvre Contre les hérésies (Adversus
hereses) en cherchant d'identifier le processus de stigmatisation entrepris par Iréneé,
évêque de Lyon. De telle façon, nous présenterons la situation des partisans de la foi
chrétienne dans le siècle II, temps de production de l'oeuvre, en valant de deux
moments: la correspondance de Pline, le jeune, le gouverneur de la Bithynie, à princeps
Trajan, produit par retour de 112, et des prétendues persécutions qui sont arrivées dans
les villes de Gaules, de Vienna (Vienne) et de Lugdunum (Lyon). Donc tels moments
nous permettront d'avoir une vision générale des relations entre les autorités de Rome et
les Chrétiens. Nous caractériserons, aussi, le christianisme gnostique, parce que la
stigmatisation d'Iréneé à eux se dirigent, pour que peuvent comprendre lequel sont les
points de divergence entre celui-là deux variantes de la foi chrétienne. Nous utiliserons
comme concepts principaux magie et stigmate, ils donc seront fondamentaux pour
compendre comme le processus de stigmatisation s'est configuré. Notre base
méthodologique est la lecture isotopique, parce que nous il permettra une analyse
intratextuel des présences des stigmates.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................6
CAPÍTULO 1 - O “CRISTIANISMO” E O IMPÉRIO ROMANO NO SÉCULO II
D.C. .................................................................................................................................13
1.1 CRISTIANISMO E IMPÉRIO ROMANO........................................................................14
1. 2. IRINEU E O CRISTIANISMO ECLESIÁSTICO ..............................................................28
1. 3 - O GNOSTICISMO ...................................................................................................36
CAPÍTULO 2 - CONTRA AS HERESIAS: O TEXTO E O DISCURSO.................45
2.1– O ADVERSUS HAERESES E SUA TRADIÇÃO TEXTUAL .............................................46
2.2– GÊNERO DO DISCURSO E SINOPSE NARRATIVA ......................................................52
2.3 - O CORPUS DOCUMENTAL DA PESQUISA.................................................................74
CAPÍTULO 3 – O PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO DOS GNÓSTICOS EM
CONTRA AS HERESIAS DE IRINEU DE LIÃO ......................................................88
3.1– A ESTIGMATIZAÇÃO DOS GNÓSTICOS NO ADVERSUS HAERESES ...........................92
3.2 ECCLESIA X GNOSE: O PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CRISTIANISMO
ECLESIÁSTICO.............................................................................................................113
CONCLUSÃO..............................................................................................................119
BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................128
6
Introdução
Estudar os primeiros séculos do cristianismo é uma tarefa que apresenta algumas
dificuldades, pois, para tal, devemos nos desvencilhar de certos condicionantes
interpretativos, como tomar a modalidade hierarquizada da cristã, ou seja, o
cristianismo eclesiástico, por única intérprete possível da cristã. Todavia, são poucas
as obras que dão voz a outras formas que existiram dessa fé. Assim sendo, devemos
tentar encontrar nas obras eclesiásticas elementos que nos permitam entrever como
esses outros “cristianismos” configuravam-se em seus primórdios.
Frente a essas dificuldades, na presente dissertação, nos propomos a analisar o
primeiro livro da principal obra de Irineu, bispo de Lião, isto é, Contra as heresias
(Adversus haereses), a qual se insere na tradição do cristianismo eclesiástico ao
desconsiderar a existência de qualquer outra variante da cristã como legítima
portadora de algum grau de compreensão sobre os mistérios de Jesus Cristo. No
primeiro Livro da obra em análise, Irineu concentra-se na exposição e refutação dos
sistemas gnósticos, que nos surgem como uma das principais correntes cristãs existentes
na época que nos serviu como recorte temporal de pesquisa, ou seja, o século II d.C.
Procuraremos demonstrar que Adversus haereses o foi, apenas, uma obra de
cunho doutrinário-dogmático que expôs os sistemas gnósticos para, então, refutá-los,
como, aparentemente se propõe seu autor. A obra foi um tratado que detraiu, ou melhor,
estigmatizou o gnosticismo cristão na própria apresentação de seus sistemas.
Antes de demonstrarmos que houve um processo de estigmatização empreendido
por Irineu contra os gnósticos, caracterizaremos a situação dos cristãos, de maneira
geral, frente às autoridades romanas e, para tal intento, nos concentraremos em dois
7
momentos que julgamos relevantes para esta caracterização. O primeiro momento será a
correspondência entre Plínio, o jovem, governador da província da Bitínia e o princeps
Trajano, momento esse importante para nossa análise porque foi o primeiro documento
oficial que se identifica autoridades do Império romano se referindo aos seguidores de
Jesus Cristo (CHEVITARESE, 2006:170).
O segundo momento que tomamos por relevante, foram as supostas perseguições
realizadas pelas autoridades imperiais na região do Ródano, nas Gálias, no último
quartel do século II. Esse momento é importante, sendo verídico ou não – pois só temos
notícias através da obra de Eusébio de Cesaréia (Hist. Eccl., V: I) –, por ter ocorrido na
cidade de Lião (Lugdunum), onde Irineu exercia seu presbiterado e, possivelmente, por
ter servido como causa efficiens para o tratado contra os cristãos gnósticos.
Mostraremos como se configurava o cristianismo eclesiástico, e qual a inserção
de Irineu nesta variante da cristã. Essa apresentação se faz necessária porque, dentre
as formas de cristianismo existentes no século II, os cristãos que se identificavam como
membros da ecclesia de Deus na terra haviam hierarquizado suas funções, engessando-
as nos cargos de bispo, presbítero e diácono (GEREMEK, 1987: 161). Os motivos que
conduziram a esse processo de hierarquização dos cristãos eclesiásticos, ainda hoje,
ainda são obscuros para a pesquisa histórica;, o que pode-se afirmar é que, entre os
séculos I e II, tal modalidade de cristianismo desenvolveu suas estruturas hierárquicas.
Do mesmo modo, caracterizaremos o cristianismo gnóstico, procurando
demonstrar que seus seguidores são cristãos, tão como os eclesiásticos, pois
pesquisadores que tomam o gnosticismo como uma forma herética do cristianismo
eclesiástico (ELIADE, 1982: 139; SILVA, 2003: 204), alegando que esta modalidade
cristã teria se originado na Pérsia e se adaptado à soteriologia cristã. No entanto,
8
veremos que o gnosticismo é uma expressão cristã que deve ser compreendida como
mais uma modalidade dessa fé (TORRENTS, 1990: 8).
Envidaremos esforços para compreender o texto da obra de Irineu,
especificamente o L. I, para que possamos extrair da própria obra o modo pelo qual a
estigmatização se realiza. E, para tal empenho, procuraremos estabelecer o grau de
inserção de Adversus haereses na tradição apologética do cristianismo eclesiástico,
tentando expor, em linhas gerais, as diferenças entre a literatura cristã grega e a latina,
pois Irineu pertence à tradição grega, mesmo tendo sido um membro das comunidades
eclesiásticas do Ocidente romano, posto ser originário de uma região de cultura
helenizada, ou seja, a cidade de Esmirna. Construiremos uma sinopse geral do primeiro
livro da obra para que possamos acompanhar e analisar a construção de seu argumento,
visando, assim, à percepção da dinâmica do processo de estigmatização.
A partir da nossa exposição do cristianismo no século II, das vertentes que
julgamos mais significativas, e da apresentação do texto da obra de Irineu,
demonstraremos que e como o bispo de Lião realizou um processo de estigmatização
dos cristãos gnósticos valendo-se de alcunhas disforizantes para caracterizar essa
variante do cristianismo. Alcunhas tais como magos, operadores de filtros e poções,
corruptores de corpos, sedutores de mulheres, dentre outras, para construir uma imagem
conspurcada do gnosticismo, uma arma no embate ideológico ocorrido neste momento.
Para nossa análise desse processo, utilizaremos os conceitos de magia, que seria
o empenho humano em se conectar com o sobrenatural, proposto por Gilvan Ventura da
Silva (2003: 161) e o de estigma, do qual apreendemos como atributos pejorativos
podem conduzir alguém ao descrédito no seu contexto social, cunhado por Ervin
Goffman (1988: 13), como basilares para nossa compreensão da estigmatização.
9
Outros conceitos nos serão úteis, tais como o de ideologia como um sistema
cultural (GEERTZ, 1978: 188), isto é, um gabarito pelo qual podemos perceber como
membros de um grupo partilham da mesma cosmovisão. Esse conceito será importante
para observarmos como operam as diferenças de compreensão entre os gnósticos e os
eclesiásticos acerca dos mistérios do Cristo.
Os ritos de instituição elaborados por Pierre Bourdieu (1996: 98) nos permitirão
compreender que o processo de estigmatização também pode ser entendido como um
processo de institucionalização, porque o discurso de Irineu se propõe a tornar
ilegítimas as interpretações gnósticas sobre o messias e, no sentido inverso, tornar sua
visão sobre Jesus Cristo como legítima, e os ritos de instituição se pautam nesse
aspecto, ou seja, tornar legítimo algo que seria, de outro modo, arbitrário. Assim, o
argumento do bispo se pretenderia como institucionalizante frente aos mistérios do
Cristo.
Como referencial metodológico, utilizaremos a leitura isotópica numa
abordagem orientada por Ciro Cardoso (1999: 172) para que possamos perceber quais
são as ocorrências dos estigmas na obra de Irineu, e como se articulam.
Nossa análise tem por hipótese central um claro processo de estigmatização dos
cristãos gnósticos por Irineu que, para tanto, se vale da acusação de prática de magia
como o principal estigma desse processo, e nosso objetivo é analisar Adversus haereses
à luz dos conceitos supracitados para comprovarmos a instauração do processo de
estigmatização.
Demonstraremos que o processo de estigmatização se realiza numa exposição
binomial de estigma/ato de instituição, pois Irineu estrutura seu argumento
desqualificando, a todo o momento, os líderes do gnosticismo procurando sempre ligá-
10
los ao ofício das artes mágicas.
Veremos que a insistente ligação que o sacerdote de Lião procura estabelecer
entre os mestres gnósticos e a prática da magia não fora gratuita porque, à época de
Irineu, havia uma legislação específica para crimes que envolviam tal prática, haja
vista a Lex Cornelia.
Poderemos perceber que Irineu construiu um discurso cujo objetivo foi extrair
dos gnósticos qualquer possibilidade terem autoridade para falar em nome de Jesus
Cristo, pois, como demonstraremos, ele procurou criar, em seu discurso, uma origem
maculada para o gnosticismo, estabelecendo sua origem em Simão, o mago, sendo este
acusado de praticar toda sorte de magia. Entretanto, Simão não pertenceu a gnosticismo
cristão, mas sim a gnose judaica do século I (TORRENTS, 1990: 28).
Um outro gnóstico que Irineu dedicou atenção especial foi Marcos, o bispo
procurou dar tanta ênfase a magia desse líder gnóstico que em sua explicação do sistema
gnóstico fundamental faz uma digressão para chamar as artes de Marcos de
comportamento imoral, evidenciando, assim, um esforço para que o leitor associasse a
doutrina de Marcos a um comportamento degradado.
Para outras lideranças gnósticas, especialmente Valentim e Marcião, Irineu não
os acusa de magos, mas sim de heréticos, no entanto, nos concentraremos no estigma de
mago, por estar presente em lugares fundamentais do discurso de Irineu e
compreendemos que a força da estigmatização se encontra nesse estigma.
Tentaremos demonstrar que o processo de estigmatização tem como pano de
fundo um embate entre ideologias concorrentes, pois, enquanto os cristãos eclesiásticos
fundamentavam suas comunidades numa organização hierarquizada e suas funções
eram distribuídas por cargos, dos quais o de bispo era o mais prestigiado, e procuravam
11
estabelecer uma interpretação mais unificada sobre o Cristo. Em contrapartida, os
cristãos gnósticos não possuíam cargos fixos para as funções ritualísticas, sendo estas
realizadas sob forma de rodízio entre os congregantes, permitindo, inclusive, mulheres
no exercício de tais funções. Além disso, os gnósticos não se detinham numa doutrina
fixa, ou seja, numa única interpretação, porque a tônica do gnosticismo é uma livre
interpretação dos mistérios de Jesus Cristo; por isso, cada liderança reinterpretava os
evangelhos, contribuindo, à sua maneira, para uma melhor compreensão sobre o
messias.
Assim, poderemos notar que o sentido da existência do cristianismo gnóstico é
completamente contrário à interpretação centrípeta dos eclesiásticos, e essas
perspectivas diametralmente opostas deram margem ao confronto de ideologias.
A dissertação está estruturada em três capítulos, no primeiro capítulo
apresentamos uma discussão bibliográfica sobre a relação do que chamamos de
cristianismo com as autoridades romanas, pois, a princípio, as autoridades romanas não
sabiam como lidar com os seguidores de Cristo. Deste modo, perguntaremos qual era o
grau de inserção dos cristãos na sociedade romana. Isto feito, tentamos esboçar o modo
como a vertente eclesiástica do cristianismo se configurava, procurando mostrar suas
estruturas básicas e suas diferenças frente a outras formas de cristianismo.
Apresentamos o campo de influência de Irineu, bispo de Lião dentro do cristianismo
eclesiástico e como sua obra, Adversus haereses, foi importante para a formação
doutrinária dos eclesiásticos.
No segundo capítulo, identificamos a tradição textual em que se encontra o
Adversus haereses, pois, sendo tal obra um tratado, esboçamos as condições de
produção da obra e as principais matrizes que estruturaram a tradição tratadística latina
12
do século II. Procuramos expor em que vertente do discurso retórico a obra de Irineu se
insere para que avaliarmos, em linhas gerais, a eficácia do sistema de pensamento em
Adversus haereses. Desta forma, esperamos que tanto nosso esforço de situar Adversus
haereses numa tradição retórica latina, como o de aplicar a leitura isotópica como
método analítico confirme nossa hipótese de trabalho.
Por fim, no terceiro capítulo apresentamos uma análise do primeiro livro de
Adversus haereses. Para tanto, utilizamos a leitura isotópica como principal método
(CARDOSO,1999). Desta forma, pudemos observar se os resultados obtidos confirmam
nossa hipótese, ou seja, se o primeiro livro da obra de Irineu se configura num processo
de estigmatização dos cristãos gnósticos, frente não aos cristãos eclesiásticos como
também perante a toda sociedade romana. Como fundamentos teórico-conceituais
teremos os conceitos de estigma (GOFFMAN, 1986) e magia (SILVA, 2003), para
percebemos, se para além da estigmatização também uma petição de instituição por
parte dos cristãos eclesiásticos.
Deste modo, procuramos estabelecer uma conexão do processo de
estigmatização empregado por Irineu contra os gnósticos com a institucionalização que
o cristianismo eclesiástico traz para si. Então, nos valemos da noção de ritos de
instituição de Pierre Bourdieu (1996) juntamente com o conceito de poder de Niklas
Luhmann (1992). Assim, mostramos que as disputas sobre o domínio sobre os mistérios
de Cristo se configuram como embates de sistemas culturais (GEERTZ, 1978), dos
quais aquele que estiver mais alinhado com a sociedade que o circunda terá mais
chances de se tornar triunfante. Dessa maneira, demonstramos que Irineu empreendeu
um processo de estigmatização que tinha por objetivo invalidar o gnosticismo cristão
como portador de legitimidade sobre o Cristo.
13
Capítulo 1 - O “cristianismo” e o Império romano no
século II d.C.
O objetivo deste capítulo é apresentar uma discussão bibliográfica acerca do
“cristianismo”
1
do século II, procurando compreender como essa modalidade de fé se
inseria na sociedade imperial romana. Num primeiro momento, procuramos entender
como as autoridades imperiais de Roma lidavam com a crença que tinha como salvador
alguém intitulado chamado Cristo.
Pudemos perceber que o cristianismo não se apresentava como um assunto
relevante para as autoridades imperiais, pois, a partir da leitura do primeiro documento
oficial romano que diz respeito aos cristãos que chegou até nós, a correspondência
enviada por Plínio, o jovem a Trajano, por volta de 112, depreendemos o quanto esta
nova fé era um tema obscuro para os dirigentes do Império.
Um outro momento que selecionamos para o tratamento da questão foi a suposta
perseguição empreendida por Marco Aurélio aos cristãos das Gálias. Mas, o único
registro supérstite de tal ocorrência se encontra na obra de Eusébio de Cesaréia, a
História Eclesiástica, escrita cerca de um século após o ocorrido, e que também nos
permitiu compreender a inserção do cristianismo na sociedade romana.
Em seguida, caracterizamos Irineu de Lião e sua forma de cristianismo, ou seja,
uma modalidade cristã que já possuía estruturas hierarquicamente organizadas num
momento relativamente precoce. E Irineu se mostra um líder significativo para as
comunidades eclesiásticas, porque sua obra é de importância relevante
2
para se entender
1
Suspendemos o termo cristianismo porque no segundo século nem sequer havia uma
denominação específica geral para os seguidores da cristã, assim, evitamos tomar tal termo como
referente a um movimento uniforme e já estruturado, veremos mais adiante.
2
Adversus haereses se mostra relevante por apresentar um processo de estigmatização que se
relaciona com um processo de institucionalização do cristianismo eclesiástico. Trataremos deste assunto
14
como esta forma hierarquizada do cristianismo buscou mecanismos para a sua
institucionalização.
Procuramos esboçar os possíveis motivos para a confecção da obra Adversus
Haereses, ou seja, um instrumento que visava não afirmar a eclesiástica, mas
também desqualificar a modalidade da fé cristã que Irineu acreditava ser o maior
entrave para a realização de seu projeto: o gnosticismo.
Por fim, mostramos em linhas gerais, como se configurava o gnosticismo e
como a obra do bispo de Lião pode ser compreendida como um meio de se estigmatizar
os cristãos gnósticos, introduzindo a questão da institucionalização do cristianismo
eclesiástico.
1.1 Cristianismo e Império Romano
Os estudos acerca do cristianismo nos dois primeiros séculos não fornecem
informações muito precisas no que diz respeito às relações entre os cristãos e o poder
central romano, o que se agrava no que tange aos poderes locais nas províncias. Neste
capítulo, procuramos balizar nosso esforço em dois momentos do século II, que
julgamos importantes para caracterizar o relacionamento entre os cristãos e Roma.
Assim, selecionamos a correspondência entre Plínio, o jovem, e Trajano, porque nesta
comunicação entre a Bitínia e Roma temos o primeiro documento oficial que diz
respeito ao tratamento que se deveria dispensar aos seguidores de Cristo
(CHEVITARESE, 2006:170). O segundo momento selecionado, as supostas
perseguições contra os cristãos, empreendidas sob o principado de Marco Aurélio nas
no terceiro capítulo.
15
cidades gaulesas de Lião (Lugdunum) e Vienne (Vienna). Dissemos supostas porque a
única fonte que faz referência a tais perseguições é a História Eclesiástica de Eusébio
de Cesaréia.
Dessa forma, percebemos que o governo imperial romano, a princípio, nem
sabia como nomear os seguidores de Chrestós
3
, como podemos observar a partir do caso
que ocorreu por volta de 112 na província da Bitínia (LEPELLEY,1969: 28), no qual,
Plínio o Jovem, então governador, pede orientação ao imperador Trajano sobre o que
fazer com os seguidores de Cristo, e o imperador orienta o governador a puni-los se e
somente se algum crime fosse constatado.
É meu hábito, ó senhor, recorrer a ti em todas as questões dúbias, pois
quem poderia solucionar melhor minhas dúvidas e instruir minha
ignorância? Eu nunca tive conhecimento de um caso relativo a
cristãos, assim como desconheço a natureza e a extensão das sanções
que devem ser administradas. (2) Também estou meio hesitante se
devo discriminá-los de acordo com a idade, ou se os jovens devem ter
um tratamento distinto dos adultos, ou se devo liberar aquele que se
retratar, após ter se declarado cristão, ou se, por se ter declarado
cristão, ele nada merecerá ao renunciá-lo; e nem sei devo punir este
nome, se ele não for culpado de um crime, ou mesmo se não for
culpado dos crimes associados ao nome. Enquanto isso, àqueles que
me são trazidos enquanto cristãos, conduzo a questão do seguinte
modo. (3) Interrogo a todos os acusados de serem cristãos; se o
admitem, pergunto uma segunda e uma terceira vez, alertando-os em
relação às sanções que os aguardam. Aos perseverantes, ordeno que
sejam executados. Pois, independente da natureza de sua culpa, penso
que sua inflexível obstinação deve ser punida. Aos fanáticos que são
cidadãos romanos, envio-lhes à urbs para o julgamento] (Plínio,
Epístolas, X: 96)
3
O nome grego de Cristo
16
E vejamos a resposta do princeps:
Você age corretamente, meu caro Secundo, na condução das
investigações daqueles que foram delatados como cristãos, pois não há
ainda um princípio geral constituído para aplicar como padrão. (2)
Não devem ser perseguidos, mas se forem trazidos diante de ti, e se as
acusações contra eles forem provadas, devem ser punidos, assim como
aquele que negar ser cristão, e tornar manifesto não sê-lo, suplicando
aos nossos deuses, deve ser liberado por sua retratação, o
importando que tipo de suspeita pairou sobre si no passado. Nenhuma
acusação anônima deve ser incluída nos autos. Estas são péssimos
exemplos e não condizem com os nossos tempos.(Plínio, Epístolas, X:
97)
A correspondência nos mostra certa indiferença do centro imperial frente a este
movimento posteriormente chamado cristianismo. Assim, as primeiras referências
textuais romanas aos cristãos se deram por conta da inobservância destes aos ritos da
religião romana, pois as autoridades notaram que alguns dentre os seguidores de Cristo
se recusavam veementemente a realizar os rituais e as práticas religiosas de Roma
(BEARD; NORTH; PRICE, 1988: 226).
No entanto, tal referência possivelmente se reporta a uma modalidade de
cristianismo que havia iniciado um processo de hierarquização desde o fim do século I
(GEREMEK, 1987: 161), apesar de “cristianismo” ser um termo aplicado a um conjunto
bastante heterogêneo de grupos que têm em comum um salvador chamado o Cristo.
Podemos observar que o século II é palco de mudanças significativas para os
seguidores da cristã, porque, dentre os vários grupos existentes, havia alguns que,
17
numa visão retrospectiva, se tornaram mais significativos tais como os eclesiásticos e os
gnósticos.
Os cristãos eclesiásticos se mostram no século II como um grupo que possuía
uma estrutura hierárquica, na qual se têm os episkopoi [guardas, protetores] (ISIDRO
PEREIRA, 1990), como os principais líderes. Eram eles membros basilares da estrutura
do cristianismo eclesiástico, pois eram os únicos autorizados a conduzir os ritos de
forma plena; os presbiteroi [velhos, anciãos, respeitáveis], como auxiliares na condução
dos ritos e os diakonoi [criados, serventes], auxiliares gerais na organização do grupo.
Nota-se, assim, que a modalidade eclesiástica do cristianismo já se apresentava
como uma instituição
4
, porque esta, para além de graus de controle da ritualização sobre
os mistérios de Cristo, se definia como a comunidade ou “corpo de Cristo” no campo
terrenal, ou seja, a ecclesia (assembléia). E tal como um corpo, a comunidade
eclesiástica tinha um núcleo ordenador e membros. Como podemos observar em Pierre
Bourdieu:
(...) Falar em rito de instituição é indicar que qualquer rito tende a
consagrar ou legitimar, isto é, a fazer desconhecer como arbitrário e a
reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a
operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma
transgressão dos limites constitutivos da ordem social e da ordem
mental a serem salvaguardadas a qualquer preço(...) Assim, o ato de
instituição é um ato de comunicação de uma espécie particular: ele
notifica a alguém sua identidade, quer no sentido de que ele a exprime
e a impõe perante a todos (...), quer notificando-lhe assim com
autoridade o que esse alguém é e o que deve ser.(...) (BOURDIEU,
1996: 98; 101)
4
Tomamos como instituição um lugar de autoridade que, por intermédio de seus membros, se
pretende portador de legitimidade.
18
Desta forma, os eclesiásticos já se configuravam como uma instituição, pois suas
estruturas hierarquizantes e seus cultos unificados já evidenciam ritos que justificam um
processo institucional.
Observemos que a modalidade eclesiástica do cristianismo apresenta uma
característica bastante singular, porque o seu processo de institucionalização está
contido nas suas próprias modificações, e não dispomos de outro tipo de documentação
além dos próprios textos eclesiásticos, escritos entre os séculos I e II, e sobre os quais
Bronislaw Geremek (1987: 101) afirma não ser possível apreender como aconteceu a
hierarquização dos eclesiásticos.
Apesar de que as modificações que ocorreram nas comunidades hierárquicas se
opunham ao igualitarismo observado no cristianismo de meados do século I, os cristãos
eclesiásticos se mantiveram como seguidores do Cristo, procurando estabelecer a
filiação deste Cristo como o salvador anunciado nos livros sagrados dos judeus. Assim,
os eclesiásticos rompem com uma das premissas básicas dos “dizeres do messias”, e
mantém um discurso de verdadeiros arautos dos ensinamentos do Cristo. Quanto
a esta singularidade do cristianismo eclesiástico, Elaine Pagels (2006: 48) nos orienta no
sentido de que, dentre todas as formas cristãs, esta modalidade estava mais alinhada
com os processos que ocorriam no seio da estrutura política do mundo romano, pois
com a inauguração do Principado, o Império Romano tendia, cada vez mais, a uma
autocracia e diminuía progressivamente as possibilidades o exercício do poder do
Senado de Roma, por mais que o princeps Augusto tenha dito que as modificações
tenham ocorrido para se restaurar a república (Res Gestae Divi Augusti, 1957).
Os eclesiásticos, portanto, com sua organização centralizadora e tendo um bispo
19
como o único membro da comunidade autorizado a realizar os principais ofícios rituais,
se apresentavam em maior conformidade com sistema político que se efetivava em
Roma (PAGELS, 2006: 48). Notemos que a força institucional que se encontra entre as
comunidades eclesiásticas radica no empenho de seus líderes em criar e naturalizar
normas que até então não existiam, pois o cristianismo, neste momento, não possuía um
centro controlador, mesmo havendo algumas lideranças mais significativas. E se
tomarmos como guia a noção de Eugen von Ehrlich (1978: 33) de que todo grupo
social, com algum compartilhamento da mesma cosmovisão, produz normas, umas para
serem centralizadas e outras simplesmente observadas, sem qualquer necessidade de
centralização, nos perguntaríamos o por quê das comunidades eclesiásticas se valerem,
tão precocemente, de rígidas formalizações rituais e comportamentais, tais como a
obrigatoriedade de se ter um único líder, deste ser do sexo masculino, ter como verdade
inquestionável que Cristo é filho de Deus e ressuscitou em carne. Segundo Elaine
Pagels:
O princípio da igualdade de acesso, participação e reivindicações de
conhecimento impressionavam Tertuliano
5
. Mas percebia isso como
evidência de que os hereges “subvertiam a disciplina”: a disciplina
adequada, em seu ponto de vista, requeria certo grau de distinção entre
os membros da comunidade. Tertuliano protesta, em especial, conta a
participação de “mulheres entre os hereges”, que compartilham
posições de autoridade com os homens: “Ensinam e estão engajadas
em debates; exorcizam; curam” - suspeita que possam até batizar, o
que significava atuarem, como bispos! (PAGELS, 2006: 46)
Todavia, percebe-se que coetâneas aos eclesiásticos havia outras formas de
cristianismo que não possuíam tais normas rígidas para suas práticas rituais. Desse
5
Importante pensador do cristianismo eclesiástico do segundo século que, também, produziu
obras contra os gnósticos.
20
modo, observa-se que o comportamento normativo que se apresentava entre os
eclesiásticos compromete o igualitarismo original que o cristianismo tinha como
fundante, seja no gênero, na idade ou na função que o membro da comunidade exerce.
Assim, podemos presenciar que a centralização normativa entre os eclesiásticos,
gerou uma distribuição assimétrica de poder, pois, os lugares de controles de tais
normas detinham níveis, como podemos ver na distribuição de funções. Logo, se temos
um grupo social com níveis de poder para controlar as normas deste grupo, e que tais
normas devem ser perpetuadas, podemos dizer que tal grupo se constitui como uma
instituição social, pois entendemos que uma instituição social surge de um esforço de
naturalização de ações de cunho arbitrário (BOURDIEU, 1996: 98).
O processo de institucionalização de setores de grupos sociais ocorre como um
esforço de perpetuação de ações de indivíduos dentro destes grupos, mas o processo
institucional se realiza quando certos indivíduos de tais grupos detêm, em alguma
medida, um lugar privilegiado para impor um processo de institucionalização do setor
que eles correspondem.
(...) Assim, o ato de instituição é um ato de comunicação de uma
espécie particular: ele notifica a alguém sua identidade, quer no
sentido de que ele a exprime e a impõe perante a todos (...), quer
notificando-lhe assim com autoridade o que esse alguém é e o que
deve ser.(...) (BOURDIEU, 1996: 101)
Notemos que Pierre Bourdieu apresenta o processo de institucionalização como
um rito de marcação de fronteiras, sendo tal marcação estabelecida por indivíduos que
angariaram prestígio, ou que tinham meios para angariar tal prestígio e, tomando a
noção de Ehrlich acerca da capacidade associativa dos seres humanos, podemos ver as
21
instituições como um produto obrigatório das organizações sociais, pois, sem as formas
institucionais, as organizações não seriam efetivas em longo prazo.
Dentro de um sistema religioso, por exemplo, podemos perceber elementos
mágicos e elementos devocionais, sendo os primeiros relativos produção de maravilhas
e os segundos relativos às cerimônias de saudação dos seres divinos (SILVA, 2003:
165). Frente a isso, o aspecto devocional do sistema religioso tende a se apresentar mais
inclinado a um processo de institucionalização, e, por conseqüência se torna uma
religião, porque a esta se propõe a centralizar e sistematizar a relação do indivíduo com
o sobrenatural. as demais práticas mágicas continuarão a existir, sem força
institucional, mantendo, contudo, a eficácia que toda prática mágica exige. Desse modo,
percebemos que um dos modos de entender as instituições é procurar saber o porquê de
algumas normatizações terem sido fortemente sistematizadas e centralizadas, enquanto
outras, não; bem como saber de que modo e por quais procedimentos os atores sociais
de determinados grupos angariaram prestígio suficiente para serem os porta-vozes de
tais grupos (BOURDIEU, 1996: 91).
No entanto, os meios de permanência de um dado grupo no controle depende de
uma série de justificativas, pois sem tais justificativas não haveria motivos para que a
grande maioria creditasse no grupo controlador da instituição legitimidade suficiente
para que as normas oriundas desta instituição tivessem validade. Para se compreender
como as instituições criam estabilidade, torna-se necessária, então, a compreensão do
conceito de poder, pois sem tal conceito poderíamos imaginar que o campo institucional
seria uma eterna área de contendas sobre quem controlaria a normatização social e, se
tal cenário se instaurasse, as instituições perderiam sua função basilar, ou seja,
centralizar e perenizar normas que fazem funcionar os grupos sociais.
22
A concepção de poder que aqui empregamos é fornecida por Niklas
Luhmann(1992: 5). Como foi dito, a percepção normativa dos indivíduos acerca da
vida se realiza, a princípio, como resolução de problemas concretos e imediatos, não
havendo a necessidade de nenhum corpus de normas e procedimentos pré-estabelecido.
Assim, ressalvadas as características próprias da Antiguidade, não devemos entender
que o exercício do poder ante uma instituição se efetiva, stricto sensu, por um domínio
da produção legislativa, pois tal situação exigiria uma organização pré-existente, e tal
situação não é factível ao observarmos o exercício de poder dentro de instituições como,
por exemplo, um conselho de artesãos ou uma junta comercial, nos quais toda uma
regulação interna sem ao menos ter algo estritamente prescritivo. Desta forma,
Luhmann nos levou a entender o poder como uma ação comunicativa que se imiscui no
substrato social como qualquer outra ação deste gênero, tal como o dinheiro. Procurar
entender o poder, é, neste caso, observar como ele age ante aos códigos sociais que
estão estabelecidos, pois o poder age de forma sistêmica, ou seja, entendendo a
sociedade como um todo:
(...) podemos formular que o poder é uma oportunidade de aumentar a
probabilidade de ocorrência de contextos seletivos improváveis. As
probabilidades reais abrigam uma tendência de auto-reforço: quando
se sabe que algo é provável, conta-se mais com a ocorrência do que a
não-ocorrência do fenômeno, e quanto maior a relevância, tanto mais
próximo o ponto em que este processo se inicia. (...) (LUHMANN,
1992: 11).
Desta maneira, partimos da premissa de que o cristianismo do século II se
mostra plural, mas neste pluralismo já havia uma modalidade específica que tendia a
trazer para si a exclusividade interpretativa e normativa sobre a compreensão dos
23
mistérios de Cristo, causando, assim, disputas que se configuraram como verdadeiros
embates tanto no plano espiritual quanto no material, isto é, estamos em pleno processo
de institucionalização de um grupo.
Retornemos ao exemplo da correspondência entre Plínio e Trajano: a indiferença
do governador da Bitínia frente à lide com os cristãos se devia ao fato destes se
configurarem como um problema assaz pequeno em relação aos problemas e aos
expedientes de que um governador de província se ocupava, pois o Império vivia um
período de consolidação.
As autoridades romanas, contudo, em seu processo de expansão, manifestavam o
cuidado de absorver os deuses e cultos dos povos que eram obrigados a gravitar na
órbita de Roma (BELTRÃO, 2006: 151). Assim, a religião desses povos não constituía
um problema central para os administradores, porque em contrapartida ao
pertencimento ao Império, era exigido que tais populações prestassem honras aos
deuses romanos. Tal troca não se apresenta tão extenuante para as populações das
regiões “romanizadas”, pois poderiam manter suas práticas religiosas e seus sacerdotes,
ao passo que o governo central teria sua representação garantida no substrato dos
domínios do Império (BELTRÃO, 2006: 152).
A relação entre a religião de Roma e as religiões dos seus domínios, como
pudemos perceber, se dava geralmente no sentido de inserir estas no interior não do
campo cultural mas também do campo político do Império (LEPELLEY: 1969, 35), na
medida que mitos de fundação de mundo, ou seja, as cosmogonias, justificavam o
exercício do poder político na totalidade das sociedades antigas. Os deuses romanos são,
então, negociados de forma sincrética junto às religiões das áreas romanizadas e, assim,
o poder central de Roma se encontra justificado para todo domínio que for anexado.
24
A religião de Roma não é apocalíptica, nem livresca, não possui uma doutrina
única, e não é ortodóxica. Não havendo ortodoxia, existia algo que compreendemos
como orthopraxis (SCHEID, 2003: 18), ou seja, o correto cumprimento dos rituais. A
única obrigação era apenas a observância os ritos. Aos cidadãos, era permitido indagar
sobre os deuses e sobre o mundo do jeito que lhes conviesse. Os oficiais da religião
romana eram membros da elite política, e atuavam como especialistas em matéria de
religião, executando ou supervisionando rituais e sacrifícios.
Um centro regulador e particular na religião romana era inexistente. A influência
da religião é disseminada para toda a sociedade. Desta forma, não um salvador ou
messias, que não é divino, nem humano; os mesmos homens eram sacerdotes e
políticos, e isso era um paradigma aceito por todos. Tratava-se de uma religião
imiscuída na política ou uma política imiscuída na religião. Percebemos que havia um
aspecto religioso em cada ação política e um aspecto político em toda ação religiosa.
Neste sentido, a religião romana era uma religião política (BELTRÃO, 2006: 145).
A negação das práticas rituais romanas poderia configurar-se em crime de lesa
religião, dado ao fato de a romanidade se realizar junto a todos os atos que simbolizam
Roma, e a religião romana estava presente em quase todos os momentos da vida de um
cidadão. Mas, percebemos que a lesa religião poderia ser traduzida como lesa
majestade, porque o princeps era o pontifex maximus, ou seja, o sacerdote maior de todo
o Império.
Podemos então, compreender que a recusa dos cristãos aos rituais e às práticas
religiosas imperiais se apresentava não como uma afronta à religião, mas também
como um desacato ao poder político das autoridades do poder central. Fora sob o
pretexto de negação da lex de maiestate que Nero e Domiciano justificaram seus
25
ataques aos cristãos (LEPELLEY, 1969: 35). Assim, apesar de o cristianismo no século
II ser bastante incipiente, alguns de seus seguidores, no caso os eclesiásticos,
esboçam um comportamento que incomodava a lógica de justificação política do
Império.
O segundo acontecimento que julgamos importante analisar no que diz respeito
às relações entre cristãos e o poder central são as “perseguições empreendidas” por
Marco Aurélio nas cidades de Lyon e Vienne. Tais perseguições podem ser atestadas
na principal obra de Eusébio de Cesaréia, pois não observamos nenhuma legislação
específica em outras referências literárias ou jurídicas.
Os que combateram, sob Vero, na Gália 1. Com efeito, na Gália
achava-se o estádio em que se deram esses eventos. Superam as
demais da região suas metrópoles ilustres denominadas Lião e Vienne,
ambas atravessadas pelo rio Ródano, (...) 4. Em seguida, após algumas
palavras de introdução iniciam a narração da maneira seguinte: “Não
somos capazes de traduzir exatamente, nem é possível expressar por
escrito a enorme tribulação que nos adveio, a veemente cólera dos
pagãos contra os santos, os sofrimentos todos a que foram submetidos
os bem aventurados mártires. 5. Efetivamente, com todas as forças, o
adversário nos atacou, preludiando sua futura vinda. Atravessou todas
as partes, preparando os seus e exercitando-os de antemão contra os
servos de Deus. Deste modo, não somente nos expulsaram das casas,
das termas, da praça pública.(...) (Hist. Eccl., V: I)
E tomemos também a descrição que Hubert Jedin faz sobre a perseguição:
No verão de 177, quando se reuniram em Lião representantes de todas
as Gálias para a festa do culto imperial, explodiu o furor popular
contra os cristãos, aos que, como em outras partes do império os
26
acusava também aqui de ateísmo e dissolução moral (JEDIN, 1966:
253)
Frente a esta citação, pode-se notar que a ênfase dada pelos cristãos das Gálias,
via obra de Eusébio, sobre os acontecimentos de 177/178, não se configura exatamente
numa perseguição. Como dissemos, um dos incômodos que a postura dos cristãos
eclesiásticos implicava era a negação dos rituais de Roma; tal postura não só era uma
detração à religião romana, como também era uma afronta política, dada a posição do
princeps como elemento central de mediação entre os deuses e os cidadãos de Roma.
Então, numa celebração do culto imperial, o comportamento dos eclesiásticos frente à
religião da maioria da população se configuraria como um ato de desrespeito à
majestade imperial e à própria Roma.
Assim:
(...) Um cristão sob os Antoninos podia muito bem e por muito tempo
sem ser incomodado por suas convicções. Algumas comunidades
locais viveram e se desenvolveram pacificamente e sem conhecer
alguma perturbação. A perseguição do segundo século sempre teve,
por conseqüência, um caráter local e esporádico associado à atitude
mais ou menos tolerante do governador de província, só julga o
assunto e, sobretudo na presença de eventuais adversários resolutos do
cristianismo na população local (...) (LEPELLEY, 1969: 31)
Logo, o que um texto cristão caracteriza como um fato que se repercutiu por
todo o império, talvez fosse um assunto para a administração local, ou seja, um caso de
polícia, pois, não se deve perder do horizonte que o cristianismo era o elemento novo
frente às consolidadas bases religiosas romanas. Então, quando se fala de
27
“adversários do cristianismo” é necessário entender que algumas formas cristãs
atentavam contra uma cosmovisão de toda uma sociedade. Não podemos, assim,
vitimizar os cristãos que detraíam os cultos oficiais, pois, senão, corremos o risco de
justificar o martírio e outras formas que os eclesiásticos tomavam como atos para ganho
de visibilidade, como instrumentos legítimos de uma forma demonstração de
(BEARD; NORTH; PRICE, 1988: 226).
Então, se nos detivermos mais acuradamente às atitudes dos eclesiásticos,
podemos perceber que certos comportamentos perturbavam a ordem pública, como, por
exemplo, negar os rituais romanos, pois isto implicaria em detrair toda uma cosmologia
que norteava a maior parte da sociedade romana e efetivara o próprio Império Romano.
No entanto, o que se nos textos cristãos supérstites é uma visão invertida dos
acontecimentos porque, se tomarmos as atitudes das autoridades romanas como
injustiças contra os eclesiásticos, como se observa na documentação, absorvemos as
justificativas de um grupo, isto é, os cristãos como os “bons” (os eclesiásticos, note-se
de passagem) sofrendo nas mãos dos “maus” (todos os outros que se posicionassem
contra eles, incluindo outros grupos cristãos).
Não é nossa preocupação expor o sistema religioso romano, pois nos
distanciaríamos bastante do nosso objetivo. No entanto, a necessidade de mostrar
como os cidadãos de Roma enxergavam a boa postura frente à religião oficial (religio)
em oposição às crendices dos outros (superstitio). Os romanos entendiam que o bom
cumprimento das obrigações às divindades da cidade (BEARD; NORTH; PRICE, 1988:
218) e o respeito a todos os cultos oficiais seriam pressupostos basilares de um
verdadeiro cidadão romano. Observamos que a maior parte das funções dos colégios
sacerdotais romanos está vinculada à organização ou aconselhamento de atividades
28
diretamente relacionadas à dinâmica da cidade com seus cidadãos (BELTRÃO, 2006:
143). Deste modo, observar a religião oficial é o mesmo que ser romano. Em oposição
à religio a superstitio, ou seja, outras formas de relação com o sobrenatural que não
passam pelo sistema religioso romano, como a devoção excessiva, considerada
irracional, aos deuses ou a um único deus.
O Império tem, então, um sistema balanceado entre o que seria a religião e todo
seu arcabouço comportamental, e a “falsa religião”, o comportamento desviante, o
excessivo, o que escapa de uma norma pré-estabelecida. Ora, será justamente do
discurso de religião e superstição que o cristianismo eclesiástico se apropriará quando se
tornar religião oficial no Dominato
6
. Mas, notemos que quase toda a postura eclesiástica
frente a Roma seria, no século II, para os romanos, superstitio.
1. 2. Irineu e o cristianismo eclesiástico
O cristianismo no século II se apresentava como uma miríade de grupos, tais
como os judeu-cristãos, os cristãos eclesiásticos, os gnósticos, inter alios, tendo como
justificativa de sua inserção no cristianismo o fato de acreditarem num messias chamado
Cristo. Mas, como dissemos, uma modalidade do cristianismo iniciava o segundo
século com uma petição de princípio sobre os mistérios de Cristo, pois o esforço em
constituir uma doutrina é uma marca dos cristãos eclesiásticos.
Vemos, assim que, durante o século dos Antoninos, enquanto o Império
desfrutava um relativo período de paz (LE GLAY; VOISIN; LE BOHEC, 1995: 312), o
cristianismo começava um processo de disputas que configurariam verdadeiros embates
6
Período da história de Roma compreendido entre 285-476, também chamado de Baixo Império
29
pela obtenção da primazia sobre os mistérios de Cristo.
O cristianismo eclesiástico foi a forma que mais visivelmente se sistematizou ao
longo do século II. Tal forma, como foi dito, sofreu um processo de
institucionalização precocemente em relação às demais formas, e produziu diversos
líderes, em diversas regiões do Império, tendo estes um objetivo comum: construir uma
doutrina sistematizada e unificada em oposição à pluralidade interpretativa do que seria
o cristianismo.
Portanto, a tradição dos apóstolos foi manifestada no mundo inteiro,
pode ser descoberta em toda Igreja por todos os que queiram ver a
verdade. Poderíamos enumerar aqui todos os bispos que foram
estabelecidos nas Igrejas pelos os apóstolos e os seus sucessores até
nós;(...) 3,2. Mas, visto que seria coisa bastante longa elencar, numa
obra como esta, as sucessões de todas as igrejas, limitar-nos-emos à
maior e a mais antiga e conhecida por todos, à igreja fundada e
constituída em Roma, pelos dois gloriosíssimos apóstolos, Pedro e
Paulo, (...) (Adv haer., III: 3, 1)
Neste cristianismo de organização sistemática e líderes influentes, os quais
mantinham uma suposta tradição transmitida por Paulo e Pedro, tendo este último tido
supostamente contato direto com o Cristo, pode-se perceber que houve uma construção
de uma memória fortemente impregnada da idéia de um destino manifesto. Justino
Mártir, Irineu de Lião e Tertuliano de Cartago
7
se mostraram como os principais porta-
vozes dos cristãos eclesiásticos no segundo século. Estes líderes procuraram, ao longo
do século II, criar uma doutrina para os eclesiásticos, ao passo que refutavam qualquer
forma concorrente de cristianismo.
7
São os três pensadores mais expressivos do cristianismo eclesiástico do século II.
30
Diferentemente dos grupos judaicos, os eclesiásticos que manipulavam os
escritos sobre o divino não tinham garantida, para si e por tal atividade, nenhuma
autoridade especial em seu grupo; desta forma, a primazia de quem poderia dar
orientações doutrinárias se realizava por níveis de prestigio, de que apenas alguns dos
membros do cristianismo eclesiástico desfrutavam. Os visionários, os mártires e os
confessores comumente possuíam autoridade para evocar a palavra divina em seus
escritos ou dizeres; no entanto, o poder episcopal era preponderante sobre qualquer
outra posição de prestígio (FOX, 1994: 164).
Contudo, mesmo que o cristianismo fosse uma forma de se relacionar com o
sobrenatural pautada numa tradição textual, provavelmente poucos entre os eclesiásticos
sabiam bem a escrita. Assim, tais grupos cristãos se apresentavam muito mais como
leitores e ouvintes do que como escritores propriamente ditos. Deduz-se, então, que os
autores das doutrinas possuíssem algum poder pelo simples fato de poder escrever,
pois estavam autorizados a dizer. Notemos que, numa passagem da História
Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia, os bispos recomendam Irineu, bispo de Lião, a
falar com o bispo de Roma Vítor, após a suposta perseguição de 177/178, mas, para tal,
o conjunto dos bispos enviam, junto a Irineu, uma carta de recomendação com a
assinatura dos mesmos.
1. Os mesmos mártires recomendaram Irineu, então sacerdote da
comunidade de Lião, ao bispo de Roma [Eleutério] que acabamos de
mencionar, dando a respeito dele muitos testemunhos, conforme
demonstram suas próprias palavras. 2. “Suplicamos a Deus que agora
e sempre nele regozijes, pai Eleutério. Encarregamos de entregar-te
essas cartas nosso irmão e companheiro, Irineu, pedindo que o estimes
enquanto zelador do testamento de Cristo. Se soubéssemos que a
posição social traz justiça para alguém, nós o apresentaríamos
31
enquanto sacerdote da Igreja, o que de fato ele é. (Hist. Eccl., V: 1; 2)
Percebemos, assim, que a autoridade de um membro da ecclesia estava
vinculada, para além de ser um visionário, um profeta ou um mártir, ao fato de ser um
letrado ou de ser um bispo, e ainda à necessidade de um reconhecimento consensual
entre os pares de mesmo nível hierárquico para garantir e certificar tal autoridade.
Dessa maneira, no segundo século da era cristã, a forma hierárquica que
viríamos a conhecer como eclesiásticos estava estruturada por meios que a atual
literatura sobre o assunto não esclareceu plenamente, pois os primeiros escritos acerca
da constituição das comunidades cristãs aparecem em fins do século I e início do
século II. Tais grupos hierarquizados são denominados “Igreja primitiva”, pois seriam
estes que conservariam a gênese da grande Igreja” que se consolidaria a partir do
século IV.
No que tange à literatura vigente, os cristãos eclesiásticos, inicialmente, teriam
como pressupostos a partilha igualitária dos bens que detivessem, mas o que distingue
tais cristãos dos demais são as formas presentes de estruturação da hierarquia, tendo,
em uma época bastante incipiente, entes especializados em funções que, em outras
formas de cristãs, eram realizadas sob rodízio. Os líderes eclesiásticos se esforçaram por
construir, em período bastante remoto, um conjunto de textos que os ligassem ao povo
abraâmico, ou que procurassem ligá-los ao legado de Abraão. Sendo assim, tais cristãos
traziam para si o título de ecclesia, ou assembléia de Deus, pois tais comunidades se
entendiam e se representavam como o “corpo vivo” de Cristo na terra.
O fato de uma variação do cristianismo trazer para si, de forma tão precoce, a
verdade sobre Cristo é um pouco dissonante para época, pois outras variações cristãs
coexistiam, aparentemente sem procurar ter preponderância uma sobre as outras. Mas,
32
notemos que à época da inserção de Irineu ao cristianismo eclesiástico, uma igreja
(ecclesia) já estava sistematizada.
Acerca de Irineu e seu ingresso às comunidades eclesiásticas sabe-se pouco.
Irineu possivelmente nasceu na Ásia Menor, por volta de 130 em Esmirna, e, em sua
juventude, provavelmente foi gnóstico e conheceu Marcião que, no futuro, seria um dos
seus principais inimigos, pois este contribuíra para uma melhor análise do pensamento
gnóstico sobre Cristo. Atribuiu-se a Policarpo de Esmirna uma possível tutoria de
Irineu, quando ainda este era gnóstico também. Por volta do ano 160, Irineu havia se
convertido ao cristianismo eclesiástico, e participava como presbítero da comunidade de
Lyon, sob o episcopado de Potino. Irineu se torna bispo após a morte de Potino durante
a suposta perseguição realizada entre 177/178 (MORESCHINI; NORELLI, 1998: 310).
Como fora citado, Irineu foi recomendado pelo conjunto de seus pares para
representar os cristãos eclesiásticos de Vienne e Lião frente ao bispo de Roma,
Eleutério, evidenciando, assim, sua importância dentro de tais grupos. Este bispo
também se apresentou como apaziguador na questão dos quartodecimanos, ou seja, da
querela sobre a Páscoa engendrada entre os eclesiásticos de Roma e os bispos das
comunidades orientais, pois, os cristãos do Oriente permaneciam com a tradição de
celebrar a Páscoa no cimo quarto mês lunar hebreu de Nisã, não importando em qual
dia se encontraria tal data no calendário romano. o bispo Vítor insistia que a Páscoa
deveria ser num “domingo”, como será chamado, posteriormente, o primeiro dia da
semana cristã.
Irineu surge para nós como uma contribuição significativa para a construção
doutrinária do cristianismo eclesiástico, pois sua formação nas comunidades do Oriente
expõe sua capacidade argumentativa frente aos ataques empreendidos contra os cristãos
33
gnósticos. No entanto, Moreschini (MORESCHINI; NORELLI, 1998: 314) esclarece
que a doutrina de Irineu é fortemente influenciada pelo pensamento de Justino Mártir e
Pápias
8
e que, para além das contribuições destes líderes eclesiásticos, sobraria muito
pouco de original nas obras de Irineu.
Não concordamos com tal visão sobre Irineu, pois sua obra se mostra basilar no
que diz respeito à compreensão dos sistemas gnósticos de sua época. Adversus haereses
é uma das poucas obras que chegaram até nós, para buscar o entendimento dos
primórdios do cristianismo eclesiástico e suas formas concorrenciais. A obra do bispo
de Lião nos esclarece que houve embates para a criação de uma única detentora dos
mistérios de Cristo. O fato de Irineu expor, com certa minúcia e derrisão, a lógica
explicativa do cristianismo gnóstico, evidencia seu esforço em legitimar, por meio de
uma doutrina, os cristãos eclesiásticos, ao passo que refuta o gnosticismo cristão.
Podemos, daí, perceber que a obra de Irineu é de extrema importância para a
compreensão da institucionalização da comunidade eclesiástica, porque a busca da
legitimação desta forma cristã se pauta, em grande medida, na descaracterização e
detração dos cristãos gnósticos.
O bispo de Lião possui uma economia da salvação, isto é, a disposição dos
desígnios de Deus para o desenvolvimento da história dos homens na terra, fortemente
carregada de uma escatologia milenarista (PUECH, 1978: 48; 49). Melhor dizendo,
Irineu apresentava Cristo como o “segundo Adão”, pois se o primeiro fora banido do
paraíso, o segundo restauraria este paraíso que antes fora negado ao ser humano. Dessa
forma, com o advento do Cristo, teria havido a inauguração do milênio da bem-
aventurança. Esta construção de Irineu teve um forte impacto para muitas questões que
8
Possivelmente por ser oriundo da Ásia Proconsular, como Irineu. E essa região forneceu lideranças
significativas para o cristianismo eclesiástico entre os séculos I e II.
34
os eclesiásticos enfrentaram, porque Irineu, ao insistir que transmissão apostólica
dentro dos grupos eclesiásticos, e que a verdadeira doutrina é observável nesta
transmissão, garante que salvação só é possível dentro da ecclesia.
O esforço do bispo de Lião de estabelecer a ligação entre o segundo Adão
(Cristo), os pais fundadores do corpo deste “Adão salvador” na terra (os apóstolos), a
comunidade que representa o corpo do salvador no plano terrenal (os eclesiásticos) e a
garantia da proteção da transmissão dos conhecimentos sobre o salvador (os bispos), é o
cerne da constituição doutrinária que a instituição eclesiástica tomou, posteriormente,
como seu fundamento.
Assim, neste esforço de tomar para os cristãos da ecclesia a “verdade” sobre os
mistérios de Cristo, Irineu estabeleceu quais seriam os quatro evangelhos autorizados a
reportar algo sobre o salvador: Mateus I, Marcos I, Lucas I e João I. Tal escolha não era
fortuita, pois estes evangelhos procuram se conectar, de alguma maneira, com os textos
da religião hebraica. Assim, o cristianismo eclesiástico não se constituiria como mais
uma superstitio, e sim uma religio:
Estas são as verdades fundamentais anunciadas pelo Evangelho: um só
Deus criador deste universo, que foi anunciado pelos profetas, que deu
a economia da Lei por meio de Moisés, que é o Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, fora do qual não conhecem outro Deus ou outro Pai. O
valor dos Evangelhos é tão grande que recebe o testemunho até dos
próprios hereges, os quais tentam confirmar as suas teorias apoiados
nalguns de seus textos. Assim os ebionitas que se servem apenas do
Evangelho de Mateus, são convencidos somente por ele a não pensar
corretamente acerca do Senhor. Marcião, que mutila o Evangelho
segundo Lucas, demonstra-se blasfemador do único e verdadeiro
Deus, pelos simples fragmentos que ainda conserva. Os que
distinguem Jesus do Cristo e dizem que o Cristo permaneceu
35
impassível enquanto Jesus sofria, podem ser corrigidos pelo
Evangelho segundo Marcos, que eles preferem, se o lerem com amor à
verdade. Finalmente, os valentinianos, aceitando inteiramente o
Evangelho segundo João, para demonstrar suas sizígias, são acusados
por este mesmo Evangelho de não dizer nada de certo, como
mostramos no primeiro livro. (...) 11, 8. Por outro lado, os evangelhos
não são, nem mais nem menos, do que estes quatro. Com efeito, são
quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro são os ventos
principais (...) (Adv. haer., III: 11, 7-8)
Observa-se, também, no pensamento de Irineu um sistemático rechaço às
especulações intemporais filosóficas e gnósticas. Irineu condena qualquer tentativa de
se entender ao deus cristão e ao mundo divino antes da “Criação”, pois se pode
entender a este deus no desenvolvimento da história. Tendo como centro a ressurreição
do Cristo, a história se apresenta como prima, media e novissima tempora. O futuro não
contradiz o passado, o ser humano compreende melhor a Deus na medida que
experimenta a realidade, ou seja, a história é uma pedagogia de Deus (PUECH, 1978:
47).
Temos, assim, Irineu como um líder eclesiástico que detraía toda e qualquer
forma abstrata dos mistérios de Cristo, pois, por toda sua obra, procura dar um respaldo
histórico para a interpretação da missão de Cristo. A sua defesa ferrenha da ligação do
Antigo Testamento aos quatro evangelhos, a ênfase dada na ressurreição do Cristo em
carne, contrariamente aos gnósticos que acreditavam na ressurreição espiritual, mostra o
empenho do bispo de Lião em afirmar que a traditio eclesiástica assegurava
legitimidade e autoridade frente a outras formas de cristianismo.
E é justamente no caráter histórico da compreensão do deus cristão, e na negação
dos modelos explicativos abstratos sobre o entendimento do homem com o sobrenatural,
36
que Irineu se opõe ferrenhamente aos cristãos gnósticos. No entanto, o empenho de
Irineu em negar as explicações especulativas para por sua vertente de cristianismo em
um momento histórico muito anterior ao advento de Cristo acarretou num verdadeiro
embate, pois Irineu e outros eclesiásticos tentaram provar o improvável, ou seja, afirmar
que os cristãos eclesiásticos têm sua legitimidade garantida antes do próprio Cristo!
Vemos, assim, que a compreensão que Irineu possui o sobre cristianismo
eclesiástico é a afirmação de sua institucionalização, ao passo que procurava
desacreditar todas as outras formas cristãs que não se alinhavam ao discurso que o bispo
de Lião propugnava.
1. 3 - O gnosticismo
Caracterizar o gnosticismo é uma tarefa assaz complicada, pois ainda hoje não
há consenso sobre o surgimento e a disseminação de tal manifestação da fé cristã. Puech
(1978: 193) nos explica que o termo gnosticismo é muito vago para dar conta de uma
série de grupos que tinham a gnose como meio para se alcançar a salvação.
O gnosticismo foi, por muito tempo, tomado como manifestação herética de um
cristianismo que já nascera completo, porque a maior parte das informações desta forma
cristã chegou até nós por meios de textos que detraíam os cristãos gnósticos, tais como o
Syntagma de Justino o Mártir, Adversus Haereses de Irineu de Lião e Adversus
Marcionis de Tertuliano, o africano (PUECH, 1978: 195).
também outra vertente interpretativa do cristianismo gnóstico como fonte de
surgimento do cristianismo eclesiástico (PUECH, 1978: 230). Segundo tal vertente, os
cristãos eclesiásticos seriam uma forma herética do gnosticismo, e todo o discurso dos
37
heresiólogos seria uma tentativa de ocultar este passado.
Segundo Mircea Eliade (1982: 139), o gnosticismo teve suas origens na Pérsia
antiga, provavelmente em alguns ritos variantes do zoroastrismo, sendo disseminado por
todo Oriente Próximo, Egito e Grécia. Uma de suas premissas básicas é a busca do
conhecimento verdadeiro (gnose, em grego), sendo tal conhecimento a via para uma
vida espiritual plena em um plano superior. A forma gnóstica de espiritualismo possuía
uma boa adaptabilidade com outras formas religiosas e, por tal capacidade de adaptação,
tornou-se uma forma de cristianismo. Provavelmente não foi difícil para o gnosticismo
encontrar em Jesus Cristo a via de conhecimento puro para se alcançar um outro plano
espiritual.
Gilvan Ventura da Silva (2003: 24) também nos apresenta uma caracterização do
cristianismo gnóstico próxima da de Eliade:
O gnosticismo nada mais é do que uma denominação genérica para
uma ampla corrente espiritualista oriental de inspiração ascética,
derivada do dualismo iraniano, com influências mesopotâmicas,
egípcias e judaico-cristãs, que se encontravam em formação no início
do século I. Essa corrente espiritualista o possuía uma orientação
única, mas se dividia em múltiplas tendências distintas e, por vezes,
concorrentes. Surgido em meios judaicos heterodoxos da Ásia, o
movimento gnóstico se consolida após a destruição do Templo, em 70,
expandindo-se por todo território romano e instalando-se, inclusive
em Roma, onde encontramos Valentino, um dos expoentes do
movimento, à frente de um círculo estudantil gnóstico, por volta de
140. Movimento de cunho milenarista, o gnosticismo pressupunha um
dualismo radical entre Deus, um ser excelso e transcendente, e a
matéria a Ele oposta. A criação do cosmos não teria resultado da
vontade divina, mas da ação de um demiurgo perverso, que aprisionou
o espírito humano em um corpo, de modo absolutamente arbitrário.
38
Como conseqüência, cabe ao homem, iluminado pela revelação, obter
a gnose, que o faz retornar a Deus, livrando-se assim do martírio
terrestre no qual foi lançado. A possibilidade de salvação para a alma
teria sido trazida, segundo os gnósticos, por Jesus, o que nos permite
classificar o gnosticismo como uma vertente heterodoxa do
cristianismo católico (SILVA, 2003: 204).
Vimos que tanto Eliade quanto Silva dão ênfase o cristianismo gnóstico como
uma expressão herética do cristianismo eclesiástico. No entanto, antes de discorrermos,
sobre essa modalidade da cristã, esclareceremos alguns pontos relativos ao
gnosticismo.
José Montserrat Torrents (1990: 7) diz que 1966, num Colóquio em Messina, os
especialistas propuseram um pacto para se abordar o gnosticismo:
Propostas a respeito do uso científico dos termos gnose” e
“gnosticismo”:
A. A fim evitar um uso indiferenciado dos termos “gnose” e
“gnosticismo”, parece útil identificar, com os métodos histórico e o
tipológico, um fato determinado, o gnosticismo, partindo de um
determinado grupo de sistemas do século II, que vêm sendo
geralmente assim denominados. Propõe-se, entretanto, conceber a
“gnose” como “um conhecimento dos mistérios divino reservado a
uma elite”.
B. Como hipótese de trabalho se propõem as seguintes formulações:
1. O gnosticismo das seitas do século II implica uma série coerente de
características que podem resumir-se nas seguintes formulações: tem o
homem uma centelha divina procedente do mundo superior, caída
neste mundo e submetida ao destino, do nascimento a morte; esta
centelha deve ser despertada pela contraparte divina de seu eu interior,
39
para ser, finalmente, reintegrada à sua origem. Frente a outras
concepções de degradação do divino, esta se funda ontologicamente
em um conceito particular da “degradação”, cuja periferia (com
freqüência, chamada Sophía ou Énnoia) devia entrar fatalmente em
crise - de modo indireto - dar a origem a este mundo, do qual, por
outro lado, pode perder o interesse, posto que tem de recuperar o
Pneûma que nele se encontra. (Concepção dualista sobre um fundo
monista, que expressa-se por meio de um movimento duplo de
degradação e reintegração.)
2. O tipo de gnose que implica o gnosticismo está condicionado por
um certo número de fundamentos ontológicos, teleológicos e
antropológicos. Nem toda gnose é gnosticismo, mas somente aquela
que, no sentido expressado, implica a idéia de uma conaturalidade
divina da centelha que deve ser reanimada e reintregrada; esta gnose
do gnosticismo comporta a identidade divina do cognoscente (o
gnóstico), do conhecido (a substância divina de seu transcendente) e
do meio pelo qual se conhece (a gnose como a faculdade divina
implícita que deve ser despertada e atualizada). Esta gnose é uma
revelação-tradição de tipo diferente, não obstante, que a revelação-
tradição bíblica e islâmica. (TORRENTS, 1990: 8)
Constatemos, então, que o gnosticismo não seve ser tomado como uma urna
onde é alocada toda sorte de heterodoxia, ou melhor, de todos os indivíduos
congregantes de outras manifestações de que foram considerados como desviantes,
mas sim como uma expressão de fé que coerente por si mesma.
O gnosticismo, assim como as comunidades eclesiásticas, era uma forma de
entendimento sobre o cristianismo, possuindo vários líderes independentes, tais como
Valentim, Marcião, Simão, Mago, sendo este uma liderança da gnose judaica, mas todo
compartilhavam de uma perspectiva similar sobre a relação do mundo material com o
mundo espiritual.
40
Para uma melhor caracterização do da gnose e do gnosticismo exporemos
algumas lideranças. A apresentação a seguir tem como guia os nomes citados pelo
próprio Irineu de Lião, sem nos preocuparmos, neste momento, se os nomes citados
podem ou não ser reunidos sob o nome de “gnósticos cristãos”.
Simão, o mago
Simão, o mago é apresentado por Irineu como o fundador do gnosticismo; no
entanto, ele pertence a gnose de origem judaica, pois vimos o que o gnosticismo é um
fenômeno do século II e Simão é de meados do século I. Não muitas informações
textuais sobre Simão, mas é citado em Atos como coetâneo aos apóstolos. Simão, como
se pode ver pelo adjetivo associado a seu nome, é acusado de praticante das artes
mágicas, mas Torrents (1990: 28) nos adverte de que tal adjetivo poderia se configurar
em alguma espécie de calúnia por parte de seus opositores.
Uma característica mais significativa de Simão foi sua divinização em vida, pois
era chamado de protos theos (deus primeiro) e na gnose de Simão, o mago, ou
simonianismo, este era o princípio de todas as coisas, era o deus primordial. Percebamos
que Simão não poderia ser tomado como cristão gnóstico, dado o fato que no mundo
terrenal não é possível existir divindade.
Valentim
Valentim, de origem egípcia, era der de uma das correntes gnósticas mais
significativas, pois a doutrina valentiniana basicamente define o sistema doutrinário
41
gnóstico geral. José Montserrat Torrents (1990: 57) nos diz que esse líder gnóstico
também foi reconhecido mestre eclesiástico. Valentim esteve em Roma no mesmo
período que Justino, o mártir e Marcião, sendo este também gnóstico, no entanto,
a notícia da denúncia de Justino contra Marcião (TORRENTS, 1990: 57).
Vejamos uma exposição da doutrina gnóstica valentiniana:
Eles dizem que existia, nas alturas, invisíveis e inenarráveis, um Éon
perfeito, anterior a tudo, que chamavam Protoprincípio, Protopai e
Abismo. Incompreensível e invisível, eterno e ingênito que manteve
em profundo repouso e tranqüilidade durante uma infinidade de
séculos. Junto a ele estava a Enóia, que também chamavam Graça e
Silêncio. Ora, um dia, este Abismo teve o pensamento de emitir, dele
mesmo, um Princípio de todas as coisas; essa emissão, de que teve o
pensamento, depositou-a como semente no seio de sua companheira, o
Silêncio. Ao receber esta semente, ela engravidou e gerou o Nous,
semelhante e igual ao que tinha emitido e que é o único capaz de
entender a grandeza do Pai. Este Nous é também chamado de
Unigênito, Pai e Princípio de todas as coisas. Juntamente com ele foi
gerada a Verdade e esta seria a primitiva e fundamental Tétrada
pitagórica que chamam também de Raiz de todas as coisas. Ela seria
composta pelo Abismo e o Silêncio, o Nous e a Verdade. O Unigênito
tendo aprendido o modo como foi gerado, procriou, por sua vez, o
Logos e Zoé, Pai de todos os que viriam após ele, Princípio e
formação de todo Pleroma. Por sua vez, foram gerados pelo Logos e
Zoé, segundo a sizígia, o Homem e a Igreja. Esta seria a Ogdôada
fundamental, Raiz e substância de todas as coisas, que por eles é
chamada com quatro nomes: Abismo, Nous, Logos e Homem. Cada
um deles é masculino e feminino, da seguinte forma: inicialmente o
Protopai se uniu, segundo a sizígia, à sua Enóia, que eles chamam
também Graça e Silêncio; depois o Unigênito, também chamado
Nous, uniu-se à Verdade; depois o Logos, à Zoé; por fim, o Homem, à
Igreja. (Adv. haer : I, 1)
42
A estrutura central do pensamento gnóstico cristão se baseava na
degenerescência da matéria em contraste com a divindade do espírito, havendo algumas
correntes gnósticas que procuravam disseminar a não procriação de todos os seres
humanos. Os gnósticos chamavam o paraíso de pleroma, onde havia entes puramente
espirituais nomeados de éons. Um destes éons procriou e originou um demiurgo
construtor que originou o plano material. Mas, tal demiurgo era cioso de si e se entendia
como o deus de tudo que existia; entretanto, o éon criador do demiurgo incutiu nele e
em todas as coisas que ele criou uma centelha divina, para que os entes materiais
soubessem que suas existências estavam conectadas a um plano superior.
Assim, através da gnose os seres materiais poderiam saber que seu destino era
alcançar o pleroma. Pode-se compreender que, nesta estrutura básica do gnosticismo,
Cristo se encaixaria como a ponte para a elevação das centelhas que se encontram nos
seres materiais. Algumas correntes gnósticas tinham Cristo como um éon que veio para
libertar os homens da subjugação do demiurgo, outras entendiam-no como o éon que
criou o demiurgo. Mas todos tomavam Jesus Cristo como uma via para se alcançar a
pura espiritualidade.
Alguns gnósticos como Marcião, afirmavam que o demiurgo cioso e vingativo
era o deus dos judeus, pois tal deus contrastava com o deus que Cristo se referia, porque
a divindade era benevolente e amorosa para com seus fiéis; o deus dos judeus era
rancoroso e vingativo. Assim, os evangelhos não poderiam estar em conexão com o
Velho Testamento e, por conseqüência, Cristo não poderia ser o messias aguardado
pelos judeus. Entretanto, esta querela em especial foi uma das que Irineu procurou
refutar com bastante veemência, pois se as concepções de Marcião fossem tomadas
pelos eclesiásticos o esforço de Irineu de conectar Cristo ao Adão estaria por terra.
43
Na opinião deles, a substância hílica [material] seria composta por três
paixões: temor, tristeza e angústia. Em primeiro lugar, do medo e da
conversão tiveram existência os seres psíquicos [com pouca centelha
divina]; da conversão se originou o Demiurgo, ao passo que do medo
vem o restante da substância psíquica, como as almas dos animais e
dos homens. É por isso que o Demiurgo, incapaz de conhecer as
coisas pneumáticas [com plena centelha divina, emanada do Pleroma],
pensou ser o único Deus e pelos profetas disse: Eu sou Deus e não
nenhum outro fora de mim.(...) (Adv. Haer: I, 5,4)
Outros gnósticos não se preocupavam se Cristo ressuscitou da morte, ou se sua
ressurreição foi apenas espiritual. Tais gnósticos, como os valentinianos, procuravam o
que havia de espiritual na passagem de Cristo pela materialidade, pois tal corrente
entendia que havia um cristianismo para todos, e outro para os iniciados, sendo as
parábolas a forma de comunicação que Jesus tinha para se conectar com os iniciados.
Tais gnósticos não se intimidavam em freqüentar os ritos eclesiásticos e depois realizar
os seus próprios ritos. Segundo Pagels,
No entanto, certos cristãos – a quem chama de heréticos [Tertuliano] –
discordam. Sem negar a ressurreição, rejeitam a interpretação literal;
alguns acham “extremamente revoltante, repugnante e impossível”. Os
cristãos gnósticos interpretam a ressurreição de várias maneiras. Quem
experimenta a ressurreição, segundo alguns, não se depara com Jesus
em carne e osso de volta à vida; ao contrário, encontra Cristo no nível
espiritual. Isso pode ocorrer em sonhos, no transe extático, em visões,
ou em momentos de iluminação espiritual. Contudo os ortodoxos
condenam todas essas interpretações; Tertuliano declara que quem
quer que negue a ressurreição da carne é herege, não cristão
(PAGELS, 2006: 3).
44
Algumas formas gnósticas se acirraram mais fortemente na disputa com os
eclesiásticos como os seguidores de Simão, o mago, pois tal líder gnóstico se
apresentava não como um mensageiro condutor para o pleroma, mas sim como um éon
que havia saído direto do pleroma para a materialidade. Mas, para além das diversas
correntes gnósticas, algumas de suas características basilares eram a liberdade na
interpretação acerca dos mistérios de Cristo, a participação indistinta de homens e
mulheres nas práticas rituais, a flexibilidade em sempre se poder rever a verdade.
Tais premissas punham o dogma em formação das comunidades eclesiástica
numa situação desconfortável. Sendo assim, Irineu se empenhava em atacar com
bastante vigor o gnosticismo para que o cristianismo se institucionalizasse sob a égide
dos eclesiásticos. Nota-se que a maior parte da estrutura gnóstica compartilha da forma
eclesiástica da noção de corpo de Cristo no plano material, contudo, o gnosticismo torna
a forma hierárquica do cristianismo um contra senso.
E é exatamente a estrutura do pensamento gnóstico que Irineu procurou atacar,
desqualificando-o e estigmatizando-o, ao passo que trazia para as comunidades
eclesiásticas a pretensão da legítima compreensão sobre o Cristo. Assim, neste processo
a futura Igreja inicia sua institucionalização como forma religiosa e a única porta-voz de
Cristo e, para tal institucionalização, os eclesiásticos procuraram retirar do horizonte
qualquer forma que se rivalize com eles (PAGELS, 2006: 52).
45
Capítulo 2 - Contra as heresias: o texto e o discurso
A compreensão do tratado Adversus haereses se deu num contexto que devemos
expor antes de nos direcionarmos mais atentamente à obra, pois esta é apresentada como
um dos principais marcos da construção da doutrina do cristianismo eclesiástico no
século II.
O autor de Adversus haereses, Irineu de Lião, como vimos, é apresentado
consensualmente pelos especialistas como um dos Padres da Igreja, ou seja, cristãos
eclesiásticos que procuraram construir, durante os primeiros culos da era cristã, os
dogmas e as doutrinas que definiram a Igreja como a conhecemos hoje. Assim, a
inserção de Irineu neste conjunto de eclesiásticos com maior notoriedade se torna
compreensível porque este cristão se encontra num processo de formação da identidade
e dos eixos doutrinários do que viria a ser o cristianismo hierárquico. Conjuntamente a
Orígenes e a Tertuliano
9
, Irineu é um dos mais importantes teólogos
10
do segundo
século para os cristãos da ecclesia, tendo o bispo de Lião recebido a total validação dos
seus escritos pela ortodoxia cristã posterior
11
, pois tanto Orígenes quanto Tertuliano
tiveram parte de suas obras condenadas, em alguma medida, como heréticas.
Dessa forma, a importância da obra de Irineu é capital por conter uma síntese do
que fora produzido até então para os cristãos eclesiásticos, dando continuidade e
consolidando uma tradição que se remete a Pápias
12
, ao passo que apresenta novos
9
Apesar de ambos terem contribuído bastante para a doutrina e para dogmática eclesiástica, suas
interpretações acerca do que deveria ser um cristão divergiram da lógica hierárquica e ostensiva da Igreja,
numa fase mais amadurecida de suas vidas. Portanto, ambos não foram canonizados. No entanto, Irineu o
foi, pois sua obra sempre esteve em consonância com o cristianismo eclesiástico.
10
Afirmamos que Irineu é teólogo posto que a proposta de sua obra é uma teorização da doutrina
cristã eclesiástica, sendo que podemos considerá-lo um dos fundadores da teologia cristã.
11
Especialmente por Eusébio de Cesaréia.
12
Pode-se observar que desde Pápias um esforço, entre os cristãos eclesiásticos, no sentido de
46
marcos no que respeita à condução doutrinária da modalidade hierárquica do
cristianismo.
2.1– O Adversus haereses e sua tradição textual
A obra Adversus Haereses” de Irineu, bispo de Lião, a que temos acesso na
atualidade corresponde à obra escrita no século II. Para tal afirmação temos como
referência de análise da obra uma tradução do latim para o francês de André Rousseau e
Louis Doutreleau (1979), e uma tradução crítica para o espanhol de José Monserrat
Torrents (1990), pois tais exegetas expõem de forma sistemática e clara o percurso da
obra.
Optamos, para a composição do nosso corpus documental, pela versão
latim/francês “Contre les Heresies” de Rousseau e Doutreleau das Edições Du Cerf,
por se apresentar bastante consistente no trato da obra de Irineu. Tal versão nos expõe o
trajeto da obra no tempo, pois é comentada com várias notas explicativas referenciadas.
Para cada passagem da obra em francês, a versão em latim revisada e
contextualizada, mostrando-nos que a obra, em sua versão latina, não é fruto de apenas
uma versão, mas sim de um esforço analítico de várias, para buscarmos nos aproximar
do que foi a obra original em grego de Irineu. E utilizamos também a tradução
comentada, em espanhol, de José Montserrat Torrents por possuir notas explicativas de
grande valor, pois percebemos que havia a necessidade de ampliar nossa compreensão
de certas terminologias acerca do gnosticismo, o que não era o objeto central na versão
criar um corpo doutrinário-dogmático que conecte o messianismo adventício encontrado no Velho
Testamento a Jesus Cristo. Irineu se apresenta como um marco desta corrente do cristianismo, pois
seleciona e define quais livros deveriam compor o Novo Testamento, sendo este bispo o primeiro a
chamar os escritos neo-testamentários de Escrituras.
47
franco-latina (TORRENTS, 1990).
Segundo Rousseau e Doutreleau, a obra de Irineu foi escrita em grego, dado o
fato de que, no século II, havia um certo bilingüismo entre os cristãos mais letrados,
mas o próprio Irineu, na introdução da obra, já propõe como se deveria traduzi-la para o
latim.
O aspecto bilíngüe, ou até plurilíngüe, do Império Romano está inserido na sua
própria constituição, porque um império com fronteiras assaz grandes compreendia
diversos povos e línguas. No entanto, o grego se apresentou como língua nutriz da
cultura romana, pois, por mais que o latim fosse a língua do “conquistador”, esta se
mostrou muito mais alocada nos âmbitos político-administrativos (BELTRÃO: 2007).
A força da presença do grego era tão evidente que os jovens romanos recebiam aulas
sobre suas memórias ancestrais em língua grega.
E, para além da formação em língua grega dos cidadãos romanos, podemos notar
que as regiões do Império Romano que outrora foram parte do mundo helenístico
mantiveram o grego como a língua principal, tais como a Ásia Menor, por exemplo. E,
no caso das migrações de cristãos
13
para oeste do Império, podemos observar que
muitas se originavam da parte oriental, região de forte influência helênica, produzindo
verdadeiros cinturões de língua grega em plena área de presença do latim e de outras
línguas nativas, como aconteceu nas Gálias.
Assim, Adversus Haereses se apresenta como uma obra peculiar até mesmo na
sua confecção, pois fora escrita em grego, em Lugdunum (Lião), onde os falares célticos
eram preponderantes, e o latim a língua administrativa. Desta forma, podemos notar que
13
Posto que o cristianismo surgiu na província da Judéia (parte oriental do Império Romano), o
movimento missionário de conversão rumou, também e principalmente, para as regiões mais populosas e
ricas do Império, assim sendo, Roma e as províncias do entorno se mostraram como um dos destinos
naturais do nascente cristianismo.
48
essa obra, possivelmente, foi escrita para um público restrito, porque o céltico era a
língua da maioria nativa, o latim dos meios administrativos, logo, o grego era para um
reservado grupo que se aculturava em grego, ou era proveniente de regiões helenizadas.
Adversus haereses foi confeccionada após as perseguições de 178/179,
possivelmente em 180
14
, e podemos observar citações da obra de Irineu em Hipólito,
Eusébio de Cesaréia (Hist. Eccl., V: 3-8) e no Panarion de Epifânio (TORRENTS,
1990: 77), no qual se encontra reproduzido quase todo primeiro livro. Assim, nota-se
que, mesmo não mais existindo o original em grego, autores que escreveram em
grego e tiveram acesso à versão original da obra do bispo de Lião, o que permite uma
análise mais detalhada do texto existente em latim pelos exegetas.
As primeiras traduções latinas surgiram bastante cedo, pois Agostinho de
Hipona utilizou Adversus haereses em latim em seus escritos. Como dissemos, a obra
original se perdeu, e restaram traduções em latim. Dentre as versões que restaram, a
mais antiga e menos “retocada” que se tem da obra é a chamada Claromontanus(C),
possivelmente do século IX. Tem-se ainda a Arundelianus(A) do século XII, a
Vossianus(V), a Vaticanus(Q) e a Salmanticensis(S), sendo esta última fortemente
normatizada e “retocada”. A última grande revisão realizada foi na Renascença, feita
por Erasmo de Rotterdam e Feuardent, tendo estes dois a preocupação de latinizar os
termos que ainda permaneciam em grego, e comparar com alguns fragmentos siríacos e
armenos que existiam da obra (ROUSSEAU & DOUTRELEAU: 1979). Massuet, um
beneditino, em 1710, introduz a divisão numérica e os subtítulos (TORRENTS, 1990:
87).
A obra Adversus haereses de Irineu teve sua confecção iniciada por volta do ano
14
A fonte mais segura acerca de Irineu é o quinto da História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia,
segundo Torrents.
49
180 (PUECH, 1978: 49), ou seja, dois anos após as supostas perseguições em Lião.
Assim, após esta data, percebe-se que Irineu identifica os cristãos gnósticos como falsos
cristãos, pois estes não se submetiam às demonstrações de martírio e outras formas de
confissão da cristã como os eclesiásticos. O bispo de Lião associa os cristãos
gnósticos a uma falsa versão da “verdade”
15
sobre o Cristo, porque alguns gnósticos
freqüentavam as comunidades eclesiásticas, mas tinham seus próprios ritos iniciatórios
quando se reuniam em particular, e não cita qualquer referência negativa ao Império.
Como podemos observar no prefácio de sua obra:
O erro, com efeito, não se mostra tal como é para não ficar evidente
ao ser descoberto. Adornando-se fraudulentamente de plausibilidade,
apresenta-se diante dos mais ignorantes, justamente por essa aparência
exterior até – ridículo dizê-lo – como mais verdadeiro do que a
própria verdade. Como foi dito, acerca disso, por alguém superior a
nós: uma pedra preciosa, a esmeralda, que tem grande valor aos olhos
de muitos, perde seu valor diante de artística falsificação de vidro até
não se achar alguém conhecedor que a examine e a desmascare a
fraude. Quem poderá facilmente detectar a mistura de cobre e prata a
não ser o experto? Ora, nós não queremos que por nossa culpa alguns
sejam raptados como ovelhas pelos lobos, enganados pelas peles de
ovelhas com o que se camuflam. Esses, de quem o Senhor nos
ordenou nos guardar, esses, que falam como nós, mas pensam
diferentemente de nós. Eis porque, depois de ter lido os comentários
dos discípulos de Valentim como eles se denominam depois de
manifestar-te, meu caríssimo amigo, os prodigiosos profundos
mistérios, que nem todos entendem, porque não renunciaram ao
intelecto, para que tu, informado acerca destas doutrinas, as dês a
conhecer aos que estão contigo e os leves a tomar cuidado diante do
abismo de irracionalidade e de blasfêmia contra Deus.(...) (Adv. haer.
Pref: 2)
15
A noção de verdade de Irineu, que é a do cristianismo eclesiástico, é tomada como metafísica,
anterior a todas as coisas. Diferentemente da verdade que se pautava o mundo romano de então, que
emanava do discurso, era mutável e passível de revisão.
50
O primeiro título desta obra era Exposição e refutação do pretenso, mas falso
conhecimento”, e teria inicialmente apenas dois livros, sendo o primeiro uma exposição
do gnosticismo e, o segundo. a refutação das doutrinas gnósticas. Durante sua redação,
contudo, Irineu inclui mais três livros de características dogmáticas e doutrinárias,
sendo Adversus Haereses uma síntese do pensamento de Irineu (TORRENTS, 1990).
Até meados do século XX, a obra do bispo de Lião era única em seu caráter
expositivo acerca dos sistemas gnósticos. Mas, com as descobertas das urnas contendo
diversos textos de gnósticos cristãos da antiguidade em Nag Hammadi, próximo ao
mosteiro de São Pacômio, o gnosticismo pôde ser compreendido de forma mais ampla e
verossímil, dada a proveniência desta documentação (PAGELS, 2006: xvii).
Irineu, provavelmente, foi gnóstico, ou teve um bom conhecimento do
gnosticismo na juventude, e conhecia bem os sistemas gnósticos de pensamento; sua
obra principia expondo a estrutura gnóstica e, após a exposição, a refuta de forma
ridicularizante. Para além da exposição das diversas correntes do gnosticismo, Irineu se
ocupa com os principais líderes destas modalidades cristãs, em especial Marcião, que
possivelmente fora seu conhecido na época em que Irineu talvez tenha sido gnóstico,
Valentim e Simão, o mago
16
.
Adversus haereses tem como objetivo básico expor e desacreditar qualquer
modalidade gnóstica como verdadeira forma de conhecer o Cristo. Assim, Irineu expõe
o gnosticismo como uma forma caricata de se entender os mistérios de Jesus, e propõe,
como única forma de se encontrar a comunhão em Cristo, os dogmas que apresenta na
obra.
Os motivos que conduziram Irineu a escrever sua principal obra não nos são
16
Essas correntes gnósticas já foram expostas no primeiro capítulo.
51
conhecidos, pois não foram explicitados pelo próprio autor. Ele presenciou algum tipo
de reprimenda por parte das autoridades aos cristãos que viviam nas Gálias, nas
supostas perseguições realizadas entre 177/178, e havia também a situação dos cristãos
gnósticos que freqüentavam as comunidades eclesiásticas, mas não se apresentavam
como mártires ou confessores e apresentavam nítidas divergências em relação ao
pensamento e à ação dos eclesiásticos. Deste modo, podemos conjeturar que Adversus
Haereses foi um instrumento de reafirmação da fé dos cristãos eclesiásticos perante o
Império, assim como um instrumento de estigmatização dos cristãos gnósticos:
O que mais afligia Irineu era que a maioria dos cristãos não
considerava os seguidores de Valentino hereges. Grande parte não
saberia diferenciar o ensinamento valentiniano do ortodoxo; afinal,
dizia, a maioria das pessoas também não sabe distinguir entre pedaços
de vidro e esmeraldas! Contudo, declara, “embora sua linguagem seja
semelhante à nossa”, os pontos de vista “não apenas são bastante
diferentes como estão cheios de blasfêmias”. A aparente semelhança
com o ensinamento ortodoxo tornou essa heresia mais perigosa –
como veneno disfarçado de leite. Então, escreveu os cinco volumes de
sua densa Refutation and Overthrow of Falsely So-called Gnosis
(Refutação e Fim da Falsa Gnose) [Adversus haereses] para ensinar os
incautos a discernir entre a verdade, que salva os fiéis, e o
ensinamento gnóstico, que os destrói em um “abismo de loucura e
blasfêmia” (PAGELS, 2006: 35).
Assim, a principal obra de Irineu se apresentou como uma denúncia da
modalidade cristã que ele julgava a mais perniciosa (o gnosticismo), denúncia
encontrada basicamente nos dois primeiros livros, e o início da construção de uma
doutrina a ser seguida, assunto dos três outros livros. Irineu, então, com Adversus
haereses, por um lado desacreditava os gnósticos e, por outro, mostrava às autoridades
romanas que os cristãos eclesiásticos se apresentavam e podiam ser considerados como
52
uma religio licita.
2.2– Gênero do discurso e sinopse narrativa
Pudemos notar que a obra de Irineu pode ser qualificada como um tratado, dado
o seu caráter instrutivo, isto é, contém instruções de como se deveria refutar as doutrinas
gnósticas.
A obra de Irineu se insere na literatura cristã de origem grega que, nas palavras
de Pierre Labriolle (1947: 5), não possuía a preocupação com o encadeamento de idéias
e de frases, nem preocupações com o estilo literário, pois tais preocupações podem
ser observadas na literatura latina cristã, sobretudo, a partir de Tertuliano:
Noto, em primeiro lugar que, para os que gostam de reencontrar nas
obras que estudam as qualidades de composição e de arte
características dos escritores clássicos, a leitura dos escritores cristãos
- sobretudo os Latinos - lhes reservam felizes surpresas. Digo:
sobretudo os Latinos. Com efeito, se tivéssemos de descrever o
desenvolvimento da literatura crisgrega, deveríamos levar-nos em
primeiro lugar o nosso exame sobre uma série de obras -
extremamente interessantes do ponto de vista moral e religioso - mas
muito fracas do ponto de vista estritamente estético. Cartas,
“apocalipses”, paráfrases simples e nuas dos livros santos, eis porque
esta literatura começou. (…) Nenhuma preocupação literária,
nenhuma preocupação com a disposição das idéias e das frases se
revelam (LABRIOLLE, 1947: 5).
Adversus haereses se mostra, assim, bastante interessante nos aspectos moral e
religioso, mas não nos aspectos estéticos. Esta obra, contudo, como ocorre, em geral, na
53
apologética cristã, é bem mais que uma mostra, em seus diversos graus estéticos ou
religiosos, da literatura cristã antiga; ela se apresenta, também, como um relato da
história do cristianismo eclesiástico (PELLEGRINO, 1947: v), dos seus embates com o
cosmo romano, e com outras manifestações de um cristianismo nascente. Assim, a obra
de Irineu é uma construção e exposição da doutrina de uma modalidade do cristianismo.
Irineu, mesmo radicado nas Gálias, era partícipe de uma tradição cristã oriental,
especificamente da Ásia Menor. Seu pensamento e escrita estavam alinhados aos de
outros cristãos que tiveram contatos com Policarpo
17
como, por exemplo, Pápias
(MORESCHINI & NORELLI, 1998: 230). Ressaltamos que Irineu é coevo de
Tertuliano, no entanto, seria apenas com esse cristão africano que a literatura cristã se
tornaria, também, significativa o contexto da literatura romana.
Mesmo não possuindo um tratamento esperado à época para uma obra literária,
Adversus haereses se apresenta como um instrumento importante para os cristãos
eclesiásticos, no processo de embate ideológico
18
contra outras modalidades existentes
do cristianismo de então, e essa obra se insere no conjunto de obras cristãs eclesiásticas
que principiaram a sistematização dogmático-doutrinária do cristianismo hierarquizado.
Nosso corpus documental foi extraído do primeiro livro do Adversus haereses,
posto ser nestes livros que Irineu apresenta sua refutação aos sistemas gnósticos. Assim
sendo, exporemos, de forma sintética, todo o primeiro livro para uma melhor
compreensão de nossa seleção.
Adversus Haereses – L. I
Sinopse narrativa
Prefácio
17
Possivelmente discípulo dos apóstolos.
18
Entendemos como, aqui, ideologia como a cosmovisão que um dado grupo possui em relação a
si e aos outros. Trataremos melhor desse assunto mais adiante.
54
Pr. 1. Irineu inicia o livro dizendo que alguns (os cristãos gnósticos) que falseam a verdade
com genealogias infinitas. Tais pessoas seduziriam as pessoas mais simples (cristãos
eclesiásticos e não-cristãos) com a gnose, o que, segundo o bispo, levar-los-ia à ruína.
Pr. 2. Os gnósticos são apresentados como pessoas fraudulentas que, revestindo o erro com a
capa da plausibilidade, iludem os ignorantes, tal como um pedaço de vidro pode ser confundido
como uma esmeralda, nas palavras do bispo. Declarando ter lido os escritos dos valentinianos,
os denuncia como blasfemadores e irracionais. As ideias de um certo Ptolomeu seriam a origem
da escola de Valentim. Por fim, o autor estrategicamente alega ter poucos recursos para refutar
as doutrinas gnósticas, mas que, mesmo assim, pela “graça de Deus” e de posse da “verdade”,
fará tal empreitada. A modéstia declarada é verificada com facilidade aqui.
Pr. 3. Desculpando-se por viver entre os celtas e não dominar a arte da palavra nem a habilidade
da escrita, um efeito retórico para granjear a simpatia do leitor, diz, então, que com a
“simplicidade, a candura e o amor”, apresentará as doutrinas dos gnósticos, que para ele são
capciosas.
Livro I
Sistema Fundamental
A. O Pleroma e os Éões que o compõem
Irineu inicia seu livro apresentando ao seu leitor uma ntese do sistema gnóstico. Tal
síntese é realizada sob a aparência de rigor e objetividade, a fim de convencer o leitor de que o
apresentado corresponde ao sistema gnóstico. Deste modo, explica como os seres divinos (Éões)
que habitam o Paraíso gnóstico (Pleroma) foram gerados e qual é a dinâmica que regem suas
ações.
1, 1. Apresentação da formação do Pleroma
19
, ou seja, a plenitude, no qual havia um Éon
20
perfeito chamado Protoprincípio
21
, Protopai ou Abismo. Este Protopai vivia com uma Enóia
22
chamada Graça e Silêncio, e depositou na Enóia uma semente que gerou o Nous, este também
19
Podemos associar tal termo ao Paraíso dos cristãos eclesiásticos.
20
Seres divinos que foram criados ou emitidos pelo Deus primordial
21
Este ser divino primordial pode possuir mais outros nomes, pois depende da variante gnóstica
22
Feminino de Éon
55
chamado de Pai, Unigênito e Princípio, e a Verdade. Assim, formou-se a primeira Tétrada
23
. Do
Unigênito foram gerados Logos e Zoé e, destes, foram gerados os éões Homem e Igreja,
compondo-se, assim, a Ogdôada.
1, 2. Logos e Zoé produziram mais dez Éões: Abissal e Confusão, Aguératos e União,
Autoproduto e Satisfação, Imóvel e Mistura, Unigênito e Felicidade. A sizígia
24
Homem e Igreja
produziu mais doze Éões: Consolador e Fé, Paterno e Esperança, Materno e Caridade, Eterno e
Compreensão, Eclesiástico e Bem-aventurança, Desejado e Sofia
1, 3. Assim, o Pleroma é composto por três nichos: o conjunto dos oito Éões, ou Ogdôada, o
conjunto dos dez, ou Década e o conjunto dos doze, ou Duodécada, perfazendo, desta forma,
trinta Éões como trinta foi a idade de Jesus à época do batismo.
2, 1. O Protopai era conhecido pela sua primeira emissão o Nous e todos os outros Éões
tomavam conhecimento desse Pai primordial por meio de seu filho primogênito, ou seja, o
Nous.
“Paixão” de Sofia
Irineu explica a expulsão e a purificação de um dos seres divinos (Sofia) do Paraíso por
este querer conhecer o Pai primordial (Protopai), pois o primeiro ser divino produzido por
esse Pai (Unigênito) poderia conhecê-lo. O desejo desregrado de Sofia por conhecer o Protopai
seria o primeiro momento para a criação da matéria.
2, 2. A Enóia Sofia inquietou-se por querer tomar conhecimento do Protopai, mas como tal
coisa só era possível ao Nous, não conseguiu. Dessa inquietação, foi gerada uma paixão,
pathós
25
.
2, 3. A paixão gerada por Sofia, por não ter sido formada em comunhão com o Desejado
26
, ou
23
Nomes como Tétradas, Ogdôadas e assim sucessivamente são conjuntos dos seres divinos que
se encontram no Pleroma, Tétrada, conjunto de quatro, Ogdôada, conjunto de oito, Década, conjunto de
dez e assim por diante.
24
Do grego que significa par, casal ou cônjuge.
25
Por oposição a pothos, ou seja, desejo.
26
Para os sistemas explicativos gnósticos os Éões poderiam realizar coisas em união com seus
respectivos pares, mas Sofia decidiu tomar conhecimento do Pai primordial sozinha e, assim,
56
seja, seu cônjuge, era amorfa. E, deste desejo proibido foi gerada a matéria.
2, 4. O Pai gerou o Limite
27
, também chamado de Cruz, Redentor, Emancipador, Delimitador e
Guia, para purificar Sofia.
Cristo e Espírito Santo
Apresentação da criação de um ser divino chamado Espírito Santo para que os outros
seres divinos conhecem o Protopai sem sofrerem do mesmo desejo intenso que passara Sofia.
2, 5. Após a purificação de Sofia, sua paixão foi afastada do Pleroma, e o Unigênito emitiu uma
outro par de Éões: Cristo e o Espírito Santo, para que os Éões conhecessem, através de Cristo, o
Protopai sem sofrerem a paixão que passara Sofia.
2, 6. o Espírito Santo ensinou a todos os Éões como louvar ao Protopai. Desta forma, o Pai
produziu um par de Éões, Cristo e Espírito, para que o Pleroma conhecesse e louvasse o
Protopai sem passar pela paixão de Sofia. O Pleroma, tendo restituído sua harmonia, produziu o
Éon Jesus, ou Salvador, pois este era fruto do que havia de melhor em cada Éon que habitava o
Pleroma.
Argumentos Escriturísticos
Pudemos perceber, nesta seção, que Irineu se vale da ironia para refutar as explicações
gnósticas sobre a dinâmica do Pleroma gnóstico, evidenciando, assim, a construção de um
argumento de invalidação. Ele procura demonstrar que essas explicações são absurdas e
descabidas, pois as Escrituras poderiam ser lidas e compreendidas segundo a perspectiva
eclesiástica. E, dado que os gnósticos estabeleciam múltiplas interpretações entre os evangelhos,
ele procurou desacreditá-las.
3, 1. Irineu satiriza o fato de a matéria ser um produto de um desejo desregrado de Sofia, e
desestabilizou o equilíbrio das coisas serem realizadas por pares, ou seja, ele degradou a harmonia do
Pleroma.
27
O Limite, a princípio, poderia ser associado a um Éon, no entanto, algumas variantes gnósticas o
tomam como uma vontade, um pensamento do Pai que era dotado de ação, sem ser, propriamente dito,
um Éon
57
também o fato de que os Éões, por estarem contentes pelo reestabelecimento da ordem no
Pleroma, produziram o Éon Jesus.
3, 2. Irineu insiste em ironizar o esquema gnóstico de estabelecer relações numéricas entre o
Pleroma e a vida de Jesus como, por exemplo, aos doze anos. Ele, aos doze anos, enfrentou os
doutores da lei e doze eram os apóstolos; dezoito foram os meses, após a ressurreição, que Jesus
passou com os apóstolos. Assim, tem-se doze somado a dezoito perfazem trinta, como, são os
Éões do Pleroma.
3, 3. Apresentação de outra relação numérica entre a traição do décimo segundo apóstolo, ou
seja, Judas, e a Sofia, décimo segundo Éon gerado que sofreu uma paixão. Ou entre a
enfermidade de uma mulher, que durava por doze anos, e, ela, ao tocar a roupa de Jesus foi
curada e a restauração de Sofia ao Pleroma, pelo Limite.
3, 4. Irineu entende a geração do Éon Jesus no seio do Pleroma como uma interpretação
gnóstica destas palavras de Paulo: “tudo em todos”, “porque tudo é nele e dele vem tudo” ou
“nele habita toda plenitude da divindade”.
3, 5. O bispo faz sua leitura acerca do Éon Limite como constituidor, na medida que constitui e
consolida a simbologia da crucificação de Jesus Cristo, e divisor, quando delimita os lugares do
bem e do mal.
3, 6. Irineu ataca as explicações gnósticas, dizendo que tais construções são más interpretações
da Escritura. Ele diz que pela multiplicidade de sentido, essas Escrituras são conduzidas a
ambigüidades e fantasias.
FORA DO PLEROMA
Acamot, origem da matéria
O bispo a sintetiza a explicação gnóstica sobre a origem da matéria incorpórea, isto é, o
substrato que daria forma à matéria sensível. Ele reduz a explicação dizendo que a matéria
surgiu de uma angústia.
58
4, 1. Outro nome dado à paixão do Éon Sofia foi o de Acamot, sendo esta produto rejeitado, um
refugo sem forma. O Éon Cristo, por piedade, deu-lhe forma substancial, mas não lhe dera
forma cognitiva. Por não ser puramente pneumática, Acamot foi impedida de retornar ao
Pleroma e, por tal impedimento, a paixão de Sofia enunciou Iao
28
. Assim, surgiu a matéria.
4, 2. Acamot originou todas as coisas materiais, das suas lágrimas surgiram as substâncias
úmidas, do seu sorriso as substâncias lúcidas e, da sua tristeza e do seu temor, surgiram todas as
substâncias corpóreas.
Refutação breve e irônica
Irineu retoma, novamente, a ironia para desqualificar e tornar absurda a doutrina
gnóstica, procurando reduzi-las a fantasias que não devem ser tomadas como dignas de crédito.
Notemos que a desqualificação da doutrina gnóstica se insere na própria explicação.
4, 3. Irineu ironiza a explicação gnóstica sobre a formação da matéria, acusando os gnósticos de
inventores de fantasias e de terem comportamento proselitista.
4, 4. Aqui o bispo de Lião satiriza a origem das substâncias úmidas, afirmando que, se água
doce e água salgada, a última pôde ter saído das lágrimas de Acamot, pois a lágrima é
salgada. Já as águas doces surgiram dos “suores da paixão de Sofia”.
Origem do homem: três gêneros
Temos, aqui, a exposição sobre a origem dos três tipos de homens e como essa
tipificação condiciona suas respectivas salvação. Alguns teriam a centelha divina, outras uma
alma produzida pelo demiurgo que criou todas as coisas sensíveis e uns outros só seriam
matéria. Essa construção gnóstica é uma das que mais aborrecem o bispo, pois o demiurgo é
associado ao deus dos judeus, deus este que seria o Criador do livro Gênesis e, por
conseqüência, deus dos eclesiásticos. E apenas os gnósticos atingiriam a plenitude, porque
eles detêm a gnose.
28
Talvez um dos nomes dado ao Deus dos judeus.
59
4, 5. Acamot, mesmo não retornando ao Pleroma, teve, pelo Éon gerado por todos os outros
Éões, isto é, Jesus, a separação das paixões que nele se encontravam, estas foram coaguladas e
passaram do estágio de paixão incorpórea para o de matéria incorpórea e, desta passagem,
surgiram a matéria má e a passível de conversão pela gnose.
5, 1. De Acamot surgiram três elementos: o material ou lico, surgido da paixão de Acamot; o
psíquico, surgido da conversão de Acamot, e o pneumático, ou seja, a essência divina que ainda
restou em Acamot, quando esta saiu do Pleroma.
5, 2. Do elemento psíquico surgiu o Demiurgo, que também é chamado “Pai de todos os seres
exteriores ao Pleroma”, sendo ele o Autor dos seres hílicos e psíquicos. Muitos gnósticos
associavam o demiurgo ao Deus dos judeus.
5, 3. O Demiurgo por não conhecer sua mãe, Acamot, acreditava que era o senhor de todas as
coisas, e criou modelos originais de seres. No entanto, os modelos de suas criações foram-lhe
depositados por sua mãe, que provinha do Pleroma e as conhecia.
5, 4. A substância hílica teve origem do temor, da angústia e da tristeza de Acamot. O Demiurgo
surgiu da conversão de Acamot. Sendo esse Deus construtor ignorante sobre sua mãe e cioso de
sua construção, ele não sabia da existência da substância pneumática.
5, 5. O homem feito pelo Demiurgo é puramente material, quanto à imagem de Deus, pois é um
molde à partir da matéria e, o homem é psíquico porque recebeu o sopro da substância que
compunha o Demiurgo.
5, 6. O Demiurgo não sabia, mas, Acamot, imputou-lhe parte da substância pneumática.
A predestinação e as obras
Irineu declara se indignar pelos cristãos gnósticos se considerarem os mais perfeitos
entre os tipos de homem existentes, pois encerram em si a centelha divina, já estariam salvos a
60
priori. O bispo ataca os gnósticos com ironia por esses cristãos considerarem os eclesiásticos
como pessoas de uma categoria inferior à deles e, seu deus é um demiurgo que é completamente
ignorante sobre um céu superior.
6, 1. Assim, dos três elementos pode-se ver seus respectivos destinos: os elementos hílicos ou
materiais estavam fadados a se consumirem sem nenhum tipo de elevação; os elementos
psíquicos tinham alguma elevação, podendo ter como destino chegar ao mundo Intermediário,
onde se realizava o domínio do Demiurgo e, os elementos, pneumáticos eram os únicos capazes
a retornarem ao Pleroma, via gnose.
6, 2. Irineu se queixa dos gnósticos por associarem os eclesiásticos aos seres psíquicos. E,
somente os gnósticos, seres pneumáticos, retornarão ao Pleroma, ou seja, à Plenitude.
6, 3. O bispo de Lião condena alguns gnósticos que, por serem pneumáticos, já estão salvos, ou
seja, independentemente de suas condutas, nunca perderão a condição de salvos. Assim, esses
gnósticos podem seguir qualquer norma estabelecida pelos seres hílicos ou psíquicos, sem
qualquer prejuízo do status de pneumático.
6, 4. Sendo pneumáticos, os gnósticos podiam seguir prescrições das mais diversas, sejam
romanas, sejam eclesiásticas. Porém, os eclesiásticos se escandalizavam com os gnósticos, pois
estes não observavam somente normas eclesiásticas. E os gnósticos, por se considerarem
pneumáticos, ou seja, perfeitos, diziam que os eclesiásticos, por serem apenas psíquicos, tinham
de se ater às obras e à boa conduta para chegarem a alguma elevação.
7, 1. As centelhas divinas de todos os seres pneumáticos se reunirão em Acamot, e esta poderá
regressar ao Pleroma. Já os eclesiásticos terão lugar no mundo Intermediário, junto ao
Demiurgo, e os seres hílicos serão consumidos.
7, 2. O Cristo terrenal, segundo os gnósticos, foi gerado pelo Demiurgo, porém, recebeu de
Acamot a semente pneumática, para que pudesse conduzir à gnose os seres pneumáticos que
existiam.
7, 3. As centelhas divinas estão espalhadas pelo mundo, e podem ser mais percebidas em
61
homens como os profetas, reis e sacerdotes.
7, 4. O Demiurgo passou a conhecer as coisas de um plano superior através do Cristo terrenal,
pois foi com Jesus Cristo que o deus construtor percebeu uma essência diferente das que ele
havia gerado.
7, 5. Os homens foram divididos em três categorias: pneumáticos, psíquicos e hílicos, tal como
foram Caim, Abel e Set. E, entre essas categorias, os hílicos representam a substância por
natureza, ou seja, nunca terão algum tipo de elevação e os pneumáticos representam a
substância boa por natureza, isto é, independente do que aconteça sempre atingirão a Plenitude.
Textos escriturísticos
Irineu tenta invalidar a interpretação gnóstica sobre a origem do mundo e a existência
das três categorias de homens. Insiste que os evangelhos possuem uma única interpretação,
ou seja, a da sua vertente do cristianismo. Podemos perceber não possui argumentos fortes o
suficiente para vetar as interpretações gnósticas, mas se vale da ironia para tal intento.
8, 1. O bispo, frente os esquemas explicativos, critica os gnósticos por proclamarem ter
conhecimento melhor do que o dos líderes eclesiásticos.
8, 2. Irineu declara indignar-se porque os gnósticos se valem dos mesmos textos que os
eclesiásticos, para poderem provar que suas interpretações sobre o Pleroma, isto é, o Paraíso dos
gnósticos.
8, 3. Irineu de Lião continua com sua alegação de indignação pelo uso dos gnósticos dos textos
que ele têm como passíveis de uma única interpretação: a interpretação eclesiástica.
8, 4. Aqui, o bispo insiste em criticar as associações que os gnósticos fazem dos evangelhos que
ele toma como impossíveis, tal como a situação de Acamot fora do Pleroma como a “ovelha
desgarrada”.
62
8, 5. Insatisfação de Irineu com as abordagens gnóstica dos evangelhos, em especial o de João.
Pois os cristãos gnósticos estariam utilizando os evangelhos para dar validade e sentido para
suas interpretações sobre a economia
29
de Deus.
Breve refutação
Irineu tenta refutar as interpretações gnósticas, mas não apresenta nenhum argumento
forte nesta passagem. Ele diz apenas que não se deve tomar as interpretações gnósticas como
autênticas. Pela ausência de argumentos, o bispo se vale da ironia.
9, 1. Irineu se reporta a um interlocutor não nomeado, criando o efeito dialógico necessário a
um texto autoritário, dizendo que os esquemas gnósticos são interpretações fantasiosas dos
escritos sagrados. Declara que nada do que os cristãos gnósticos dizem sobre as Escrituras pode
ser associado à “verdadeira” interpretação que se deve ter do Cristo.
9, 2. O bispo se vale das palavras de João para dizer que a única interpretação das Escrituras é a
que ele próprio enuncia, ou seja, há um único “Deus todo poderoso” e um só Unigênito, isto
é, Jesus Cristo. E Irineu diz que qualquer outro entendimento sobre tal enunciado é falso e
capcioso.
9, 3. Jesus, afirma o bispo, é a única emissão de Deus e, não nenhum outro céu além do
habitado por Deus, nem Ogdôadas, nem Tétradas.
9, 4. Irineu refuta os argumentos dos gnósticos, dizendo que esses cristãos transformam e
alteram, como bem entendem, as Escrituras. O bispo tenta mostrar que os gnósticos trocam
nomes e frases dos textos sagrados, como alguém que tentasse enganar um não conhecedor dos
textos de Homero, os lesse e não percebesse as alterações.
9, 5. Os gnósticos são acusados de serem comediantes, e Irineu declara que a verdadeira
29
Tal termo significando, aqui, o plano dos mistérios e desígnios de Deus para como os homens
no mundo terrenal.
63
interpretação está entre os cristãos eclesiásticos.
A Regra de fé
Sem apresentar o porquê, o bispo diz que se deve acreditar na existência de um deus e
que Jesus Cristo é filho desse deus, procurando, claramente, afirmar que as explicações
gnósticas são erradas. Só não é possível ver os argumentos de tal interdição.
10, 1. Irineu afirma que só há um Deus, que este Deus teve só um filho para a salvação de todos,
isto é, Jesus Cristo, e, pelos profetas, o Espírito Santo anunciou a economia de Deus.
10, 2. Assim, o bispo afirma que todos os membros da ecclesia entendem que é desta forma que
se deve compreender os mistérios de Deus, não de outra.
10, 3. Irineu, reafirma que Deus não precisou de criar outros Deuses ou outros Cristos para
salvar o mundo e, que a compreensão das parábolas está em conformidade com a economia
Deus. Então, nota-se que o bispo procura, a todo custo, negar qualquer interpretação diferente
de seu grupo.
VARIANTES DO SISTEMA FUNDAMENTAL
Nesta seção, Irineu expõe sua interpretação do modo pelo qual as vertentes gnósticas
reinterpretam o sistema fundamental, mas também tenta mostrar que os cristãos gnósticos não se
atém a uma única forma de se compreender os evangelhos, procurando mostrar que são
dispersos e sem coesão.
Valentim
11, 1, Apresentação da variação valentiniana em relação ao sistema fundamental. Nesta
variação, Valentim apresenta dois Limites, o do Protopai em relação ao Pleroma, e outro que
separa Sofia do Pleroma. Pois, no sistema fundamental o Protopai não está separado do
64
Pleroma, mas é cognoscível para sua emissão, ou seja, o Nous; no sistema valentiniano o
Protopai está separado do Pleroma.
Secundo
11, 2. Apresentação do esquema de Secundo, no qual Irineu diz que houve a criação de duas
Tétradas, uma da Luz e outra das Trevas. Porque no sistema fundamental uma Tétrada
primordial. O bispo não nos explica como seria o Pleroma com quatro seres divinos
representando a Luz e ouros quatro as Trevas, pois o Pleroma é o Paraíso.
Um anônimo
11, 3. Referindo-se a um gnóstico não nomeado, Irineu diz tal que a Tétrada inicial era
composta Unidade e Unicidade e, por Mônada e Um.
30
Isso se nos apresenta apenas uma
mundança dos nomes dos quatro seres divinos primordiais.
Ironia.
11, 4; 5. Irineu ironiza as variações dos modelos explicativos gnósticos, dos quais ele diz que
são um monte de alterações e trocas de nomes que, para ele, não têm nenhum sentido.
Escola de Ptolomeu
12, 1. Sobre o líder gnóstico Ptolomeu, Irineu alega que alguns de seus acólitos mais instruídos
procuram dotar o Protopai como possuidor de duas esposas e tais esposas seriam chamadas de
Pensamento e Vontade.
12, 2. Crítica audaz de Irineu às preocupações gnósticas em tentar compreender como o Deus
primordial se comportou como, por exemplo, se esse Deus tinha uma companheira ou não, se
ela era Seu pensamento ou existia por si mesma. Porque para o bispo era vetado aos humanos
procurar entender as razões e motivações dos atos de Deus.
12, 3. Ironia sobre as indagações e preocupações gnósticas de tentar compreender se os Éões
30
Podemos notar que uma diferença de nomenclatura, pois no esquema explicativo geral a
mesma Tétrada é composta pelo Protopai, Silêncio, Nous e Verdade.
65
foram emitidos simultânea ou seqüencialmente.
12, 4. Exposição, de forma satírica, sobre como o Éon Salvador foi emitido.
A. COMPORTAMENTO IMORAL
Irineu, nesta seção, faz uma pausa na sua apresentação acerca das explicações do
funcionamento do Pleroma para lançar uma série de ataques ao líder gnóstico Marcos,
enfatizando o uso da magia por parte desse gnósticos. Podemos, então, perceber que magia, que
o bispo acusa Marcos de praticar, tem importância fundamental, pois está classificada como
comportamento imoral.
Doutrina de Marcos
13, 1. Acusação de Marcos como praticante de magia, sedutor de homens e mulheres e como
Anticristo.
13, 2. Apresentação de uma suposta arte mágica de Marcos, a de mudar a cor de uma bebida.
Evidenciando, assim, o desgosto que o bispo tinha pelo uso da magia, e associando- a a uma
prática desprezível.
13, 3. Irineu expõe um ato iniciático de Marcos com a utilização de mulheres. Apresentando-as
como vítimas fáceis, pois elas seriam altamente seduzíveis por ele.
13, 4. O bispo acusa Marcos de corromper as mulheres com seus ritos de iniciação.
13, 5. Acusação de Marcos como utilizador de filtros e poções para violentar mulheres.
13, 6. Acusação dos discípulos de Marcos também como violadores de mulheres.
13, 7. O bispo diz que presenciou, nas Gálias, a sedução dos seguidores de Marcos sobre as
mulheres.
66
B. DOUTRINAS SOBRE A PRIMEIRA TÉTRADA
Pudemos ver que, antes de explicar a doutrina de Marcos, Irineu abriu um tópico
para relacionar as práticas mágicas deste líder gnóstico a um comportamento imoral. E, nesta
seção, retoma a exposição do Pleroma. Percebe-se, claramente, uma tentativa de anular a
doutrina de Marcos.
14, 1. Irineu diz se surpreender ao descrever a variação do gnosticismo de Marcos porque este
gnóstico se colocaria como a primeira emissão do Protopai, ou seja, o Unigênito. Desta forma,
Marcos seria um Éon que não se encontra no Pleroma.
14, 2. Marcos é apresentado como causa da Tétrada primordial, isto é, o Protopai.
14, 3. Irineu expõe o gnosticismo de Marcos como um jogo de enunciação de letras e números
do alfabeto grego
31
, pois como esse gnóstico era relacionado como o Pai primordial, a sua
verbalização teria força de criação.
14, 4. Exposição do poder de Marcos em criar coisas e como agia e se relacionava com os Éões
do Pleroma.
14, 5. Exposição da relação entre letras, números e Éões, proferidos por Marcos, dado que ele
era tido como um Deus onipotente.
14, 6. Marcos, sendo tomado como o Pai primordial, fazia compreender as razões da existência
dos mundos, terrenal ou celestial, por meio de cálculos entre letras e números.
14, 7; 8; 9. Os números e as letras, assim como os sons de um recém-nascido, são os meios de
se compreender que o mundo terrenal é o eco, ou uma imagem de mundos superiores.
C. PROLIFERAÇÃO DO SILÊNCIO
Apesar de haver uma mudança de tópico, o bispo ainda se reporta à doutrina de Marcos.
31
À época de Irineu os a quantificação, ou seja, a numeração era extraída do alfabeto, pois como é
sabido, os números indo-arábicos só foram introduzidos na Europa muitos séculos depois.
67
E o “Silêncio” que aqui apresentado é a companheira do Pai primordial, tendo, nessa doutrina,
função relevante.
15, 1. Do Silêncio, vias sons e números, são gerados os Éões primordiais.
15, 2. A origem de Jesus seria uma associação de letras do alfabeto grego com seus
correspondentes em números, enunciados pelos quatro primeiro Éões.
15, 3. Desta Tétrada original foram gerados todos os outros Éões.
15, 4. Irineu ridiculariza as explicações de Marcos, indagando qual era a situação das coisas
antes do conhecimento do alfabeto.
15, 5. A ironia de Irineu continua sobre quão falante seria o Éon Silêncio.
15, 6. Aqui, o bispo enuncia uma séria de estigmas contra Marcos, chamando-o de ilusionista,
mágico, astrólogo, apóstata, filho de Satanás e outros.
D. OS NÚMEROS, SUBSTÂNCIAS DAS COISAS
Irineu apresenta algumas correntes gnósticas que se valem de várias relações numéricas
para compreender o mundo, mas seu discurso procura apresentar tais relações como absurdas.
16, 1; 2. Apresentação de Irineu da origem do Pleroma, via redução numérica, sem especificar
qual líder gnóstico a constrói.
16, 3. Satirização, por parte do autor, de um modelo gnóstico que toma os números como fonte
de emanação das coisas existentes.
E. A CRIAÇÃO DO MUNDO
Irineu procura mostrar o quão absurda, para ele, é a demonstração gnóstica sobre a
criação do mundo.
17, 1. Irineu, sem dizer a que corrente gnóstica faz referência, diz que alguns tomam a criação
68
do mundo por um Demiurgo a partir dos quatro elementos, tal como é a Tétrada primordial.
Então, toda a geração do Pleroma, seja por meio de emissões, seja por meio de enunciação de
letras e números.
17, 2. Irineu apresenta o Demiurgo como um imitador das coisas incorpóreas.
F. ARGUMENTOS ESCRITURÍSTICOS
Podemos ver, por seus frágeis argumentos, que a insatisfação de Irineu reside no fato
que cristãos que compreendem os evangelhos de uma maneira diferente da dele, por isso a
condenação de portadores de falsos evangelhos, magos, corruptores de corpos e outros.
a) Acerca do Pleroma
18, 1. O bispo critica uma suposta postura gnóstica de sempre interpretar os escritos sagrados
acrescentando algo novo como, por exemplo, a interpretação das primeiras palavras de Moisés,
no livro de Gênesis sendo uma Tétrada seriam elas: Deus, Princípio, Céu e Terra.
18, 2. A crítica se estende às passagens subseqüentes do Gênesis que se remetem a
quantificações.
18, 3; 4. Irineu tenta mostrar que os gnósticos relacionam coisas de um modo que ele acha
completamente descabido, como associar os “oitos homens salvos do dilúvio” com a Ogdôada
salvífica.
b) Acerca do dualismo teístico
Nesta seção, o bispo diz que as fontes das doutrinas gnósticas são muitas e falsas,
seriam partes ou reinterpretações dos evangelhos que Irineu toma como verdadeiros.
19, 1. Irineu se assusta com as demonstrações gnósticas em que dissociam o Protopai do
Demiurgo, pois este só passou a conhecer o Deus depois do advento de Cristo.
19, 2. Irineu nos reporta que os gnósticos dizem que o deus visto pelos profetas era o Demiurgo,
69
não o Abismo.
20, 1. Os gnósticos são acusados de possuírem falsos evangelhos
20, 2. O eclesiástico de Lião desqualifica as interpretações gnósticas sobre como entender os
evangelhos, recusando-se de aceitar qualquer acepção diferente da que é tomada por ele.
20, 3. Irineu insiste em não aceitar qualquer forma gnóstica de entendimento acerca do
entendimento de Jesus Cristo.
c) Teoria da redenção
Assim como o bispo critica a pluralidade interpretativa das doutrinas gnósticas, ele
também o faz com ritos, considerando-os desregrados e absurdos.
21, 1. Suposições estigmatizantes acerca da redenção sob a ótica gnóstica
21, 2. Para os gnósticos, segundo Irineu, o batismo que João realizou em Jesus era para o
expurgo dos pecados dos eclesiásticos, pois a redenção dos gnósticos quem realizou foi o Cristo
pneumático.
21, 3. Exposição de várias formas de batismo entre os gnósticos.
21, 4. Irineu critica o uso não normativo da água como única forma de se batizar entre os
gnósticos.
Podemos, assim, ver que, neste momento, Irineu não apenas disforiza os gnósticos, mas euforiza
uma norma eclesiástica.
21, 5. Exposição de como os gnósticos redimem os moribundos.
d) Referência à Regra de fé.
Irineu procura evidenciar que a doutrina eclesiástica é a forma correta de se
compreender ao deus cristão, pois seria uma e concisa, o que permitiria uma margem para
70
outras interpretações. Mas, não há, na seção, nenhuma exposição de argumentos que justifiquem
tomar a interpretação gnóstica como correta, uma técnica retórica que leva o leitor/ouvinte a não
cogitar outra conclusão senão a inviabilidade de haver outras interpretações possíveis para a
compreensão da divindade.
22, 1. Irineu, em oposição às várias formas gnósticas, afirma que entre os eclesiásticos ,
uma forma de se compreender a Deus, diz o bispo que esse Deus é único gerador de tudo e que
nada é anterior a ele.
22, 2. Irineu se propõe a apresentar a fonte de todo o gnosticismo, o que fará nas seções
seguintes, a começar por Simão, o mago.
Simão, o mago
Irineu toma Simão como o fundador do gnosticismo, praticante de toda sorte de magia e
rival do poder apostólico. Assim, o gnosticismo seria maculado desde sua origem, pois o
fundador usava das artes mágicas para realizar curas e tentou disputar com os apóstolos o poder
do deus cristão. No entanto, essa vinculação é uma criação de Irineu, porque Simão é da gnose
judaica e não do gnosticismo cristão.
23, 1. Apresentação de Simão, o mago, originário de Samaria, e, de acordo com Irineu fonte de
todo o mal. O bispo o acusa de praticar da magia e de rivalizar com os apóstolos.
23, 2. Acusação de Simão como fonte de todas as heresias. Apresentação de Simão e de sua
companheira Helena como os Éões primordiais.
23, 3. Simão é apresentado como um suposto salvador.
23, 4. Irineu diz que os sacerdotes simonianos eram místicos, libidinosos e praticantes de
magia, se valem de filtros e feitiços, espiritismo, hipnotismo e de tudo que diz respeito à magia.
Menandro
23, 5. Irineu de Lião chama Menandro de sucessor de Simão e também de praticante de magia.
71
Saturnino e Basílides
24, 1; 2. Tanto Saturnino quanto Basílides são apresentados como continuadores das atividades
de Simão, o mago. Irineu diz que esses gnósticos acreditavam em um salvador ingênito e que,
por isso, toda procriação era diabólica.
24, 3; 4. Crítica a Basílides, por este crer alegar possuir um conhecimento superior. O bispo diz
que esse líder gnóstico crê que o mundo é uma criação de anjos e que o Deus dos judeus é o
senhor deles.
24, 5; 6. Crítica de Irineu pela postura dos seguidores de Basílides em desprezarem qualquer
coisa relativa à matéria. O bispo diz que o comportamento desses gnósticos é bastante
proselitista.
24, 7. Irineu critica as relações matemáticas que esses gnósticos fazem, pois relacionavam os
seres do Pleroma a qualquer coisa que denotava números.
Carpócrates
25, 1. Irineu diz que Carpócrates e seus discípulos crêem que foram anjos que construíram o
mundo, e tais são inferiores ao Pai ingênito; e que Jesus veio para destruir as paixões das almas.
25, 2. Os discípulos de Carpócrates, segundo Irineu, acreditavam que Jesus teve como missão
ensinar-nos a desprezar os anjos criadores do mundo.
25, 3. Acusa tais gnósticos de praticantes de magia, encantamentos, filtros, feitiços, espiritismo,
hipnotismo e outros estigmas.
25, 4. Dado que os seguidores de Carpócrates tinham especial desprezo à matéria e o que lhes
importava era o espírito, eles poderiam fazer qualquer coisa com o corpo, pois o espírito era
perfeito, segundo Irineu.
25, 5. Irineu, em oposição a esses gnósticos, afirma que nada é mau por natureza.
25, 6. Acusação desses gnósticos de idolatrarem filósofos como Pitágoras, Platão, Aristóteles e
72
outros.
Cerinto
26, 1. Os seguidores de Cerinto afirmam que Jesus nasceu homem como qualquer outro e,
depois do batismo desceu sobre ele uma Potência superior.
Ebionitas e nicolaítas
26, 2. De acordo com Irineu, esses gnósticos afirmam que, assim como os seguidores de
Carpócrates e de Cerinto, Jesus não nascera divino e que somente após o batismo se tornou o
Cristo, ou seja, o Iluminado.
26, 3. Os seguidores de Nicolau têm como característica principal, apresentada por Irineu, o
desprezo pelo mundo material.
Cerdão
27, 1. Irineu diz que Cerdão, suposto seguidor de Simão em Roma, afirmava que o Deus dos
profetas judeus não era o mesmo Deus que Jesus anunciava.
Marcião
27, 2. O bispo critica Marcião por este afirmar que o Deus que Jesus se reporta não é o Deus dos
judeus, pois este é vingativo e cioso, já o Deus que Jesus diz não se comporta desta forma.
27, 3. A doutrina que Marcião professava era para despertar a gnose do espírito e não para
matéria, pois esta era fruto de uma degradação, diz Irineu.
27, 4. Irineu acusa Marcião de mutilar os evangelhos e declara que quem mutila tais livros é
seguidor de Simão, o mago.
Outras seitas menores
28, 1. Apresentação de outras seitas com doutrinas contendo elementos de uma ou de outra
73
corrente já apresentada.
28, 2. Crítica a algumas correntes que pouco se importam com algum regramento para com o
corpo.
A seita dos barbelonitas
29, 1. Tal corrente gnóstica tem como variação do modelo explicativo geral a identificação do
Protopai a um Éon que nunca envelhece e se chama Barbelo, segundo Irineu.
29, 2; 3. Explicação do modelo barbelonita, do qual os nomes do Éões que compõem a trada,
a Ogdôada e outros desdobramentos são diferentes das correntes já apresentadas.
Ofitas e setianos
30, 1; 2; 3; 4. Irineu diz que esses gnósticos, tal como os outros que ele expôs, fazem
construções mirabolantes e fantasiosas tais como mudar os nomes dos seres divinos da Tétrada
inicial, dizer que os seres divinos realizavam mútiplas uniões e emissões. Em suma, Irineu se
indignava porque as interpretações variavam bastante.
30, 5; 6. Irineu diz que os ofitas e setianos são mentirosos, por dizerem que o mundo é uma
construção de vários Demiurgos e não de apenas um.
30, 7. Irineu diz que esses gnósticos chamam o Demiurgo de Jaldabaoth
32
.
30, 8; 9; 10. Irineu se indigna com as reinterpretação de partes do Gênesis como, por exemplo, a
associação que esses gnósticos fazem dos profetas com os seres divinos do Pleroma.
30, 11;12. Irineu diz que esses gnósticos associam os profetas judeus a Éões e que Jesus é filho
Jaldabaoth.
30, 13. O bispo nos reporta que os ofitas e setianos acreditavam que Jesus, nos aspectos
psíquico e pneumático, não sofreu no mundo terrenal.
32
Outro nome, possivelmente judeu, dado ao demiurgo.
74
30, 14. Irineu diz que, para esses gnósticos, o batismo é o momento relevante para se entender a
função de Jesus Cristo no mundo, não se interessando, assim, sua pela vida.
30, 15. Acusação, por parte de Irineu a esses gnósticos, declarando que essas doutrinas são
ramificações da doutrina de Valentim.
Cainitas
31, 1. Esses gnósticos afirmam, segundo o bispo, que Caim seria o filho da Potência Suprema.
CONCLUSÃO
31, 2; 3; 4. Irineu acusa as doutrinas e práticas gnósticas de pecaminosa, sem, no entanto,
mostrar as razões. Ele se imbui de refutar, no segundo livro, todas as doutrinas gnósticas, e
desmascarar àqueles que travestem a mentira de plausibilidades.
Com o presente corpus, analisaremos o processo de estigmatização realizado por
Irineu contra os gnósticos, pois é visível, por todo o primeiro livro de Adversus
haereses, que a preocupação do bispo não era de expor, de maneira clara, e depois
refutar as doutrinas gnóstica, mas sim construir uma imagem do cristianismo gnóstico
de antemão estigmatizada.
2.3 - O corpus documental da pesquisa
Nossa análise se concentrará, como dissemos, no primeiro livro de Adversus
haereses porque é nele que se encontra o principal estigma de que nos ocuparemos, ou
seja, o de magia. Mesmo observando na obra do bispo de Lião que, dentre os livros que
75
a compõem, o primeiro é a exposição dos sistemas gnósticos e, o segundo, a refutação
das suas teses, ainda na exposição Irineu já apresenta o cristianismo gnóstico com juízos
depreciativos.
E então? Tudo isso é grande espetáculo e fantasia daqueles que,
pomposamente e cada um à sua maneira, explicam de qual paixão e de
qual elemento teve origem a substância. Assim consigo entender por
que não querem ensinar estas coisas a todos, em público, mas somente
àqueles que podem dar lautas gratificações para conhecer tão grandes
mistérios. Não falam de modo semelhante àqueles de quem nosso
Senhor disse: “de graça recebestes, de graça daí”, mas são
apresentados mistérios seletos, prodigiosos, profundos, descobertos à
custa de grandes fatigas por estes enganadores. (Adv. haer. I: 4,3)
Segundo José Monserrat Torrents (1990: 79), Irineu de Lião valeu-se de fontes
diretas e indiretas para apresentar os sistemas gnósticos: as diretas foram aproximações
que o bispo tinha com alguns gnósticos, pois Irineu diz que os seguidores de Marcos
33
estiveram nas Gálias
34
e as indiretas como o Sýntagma de Justino.
Com este modo de agir e falar seduziram muitas mulheres também na
nossa região do Ródano e elas ficaram marcadas na consciência de tal
forma que algumas fizeram penitência pública, outras, que não tinham
coragem para isso, retiraram-se na solidão, desesperando da vida de
Deus. Enquanto umas se afastaram completamente, outras hesitaram e
provaram o que diz o provérbio, não estando nem dentro nem fora, e
ficaram com o fruto da semente dos filhos da gnose. (Adv. haer. I: 13,
7)
33
Gnóstico da Ásia Proconsular.
34
Irineu ao testemunhar a presença de gnósticos em sua região lhe confere um argumento de
autoridade.
76
Irineu, também, desaprovava a conduta dos seguidores de Carpócrates, pois estes
usavam da magia.
Eles também se servem da magia, de encantamentos, filtros, feitiços,
espiritismo, hipnotismo e outros truques, afirmando não somente
terem o poder de mandar nos Principados e Criadores deste mundo,
mas também em todas as coisas contidas nele. Eles também foram
enviados aos povos por Satanás para a injúria do nome divino da
Igreja, de forma que os homens, ouvindo tanta diferença entre um e
outro e pensando em nós somos todos iguais a eles, desviem a sua
atenção da mensagem da verdade e vendo as ações deles desprezam a
todos nós que não participamos na doutrina, nem nos costumes, nem
na conduta deles. Eles, para encobrir a licenciosidade e a doutrina
ímpia servem-se do Nome como de véu para encobrir a malícia, mas o
juízo sobre eles será justo e receberão de Deus o justo pagamento pela
suas ações. (Adv. haer. I: 25, 3)
O bispo, sendo originário da Ásia Menor, região que possuía fortes núcleos
gnósticos, possivelmente, teve contato, também, com fontes indiretas tais como os
tratados gnósticos valentinianos
35
, marcionitas
36
, e um escrito barbelo-gnósticos
37
(TORRENTS, 1990: 80).
O ponto central do primeiro livro de Adversus haereses é a afirmação de uma
heresia, ou seja, o cristianismo gnóstico, em especial o gnosticismo de Valentim e que
tal heresia se “vale da palavra do Senhor” para trazer a si um conhecimento especial. E,
Torrents evidencia que Irineu procurou mostrar que o gnosticismo tem como matriz
35
Seguidores do líder gnóstico Valentim.
36
Seguidores de Marcião.
37
De acordo com Torrents, Irineu os caracteriza com um termo genérico “gnósticos” um grupo
anterior ao velentinianismo. alguns historiadores os chamam de barbelo-gnósticos. Esses gnósticos
também podem ser associados aos ofitas que o bispo descreve.
77
Simão, o mago, e que todos os outros gnósticos dele são tributários
38
. O bispo procura
em Simão a origem gnóstica para realçar seus argumentos contra ao gnosticismo
valentiniano, pois, dado que o samaritano é citado em Atos dos Apóstolos
39
como um
dos primeiros a tentar corromper os apóstolos em suas empreitadas missionárias, ele
seria o “herege ancestral” dos gnósticos.
Torrents (1990: 85) nos mostra que o primeiro livro está dividido em três seções,
a primeira se estende do capítulo primeiro até o vigésimo primeiro, esta em que Irineu
dispunha de fontes diretas sobre o gnosticismo cristão. Uma segunda seção, do capítulo
vinte e três até o vinte e oito, na qual o bispo tenta remontar o gnosticismo até Simão, o
mago. Para tanto, Irineu se valeu basicamente do Sýntagma de Justino. E, na terceira,
que compreende os capítulos vinte e nove e trinta, esta que procura expor os principais
líderes do valentinianos, ele se utilizou de fontes diretas, mas de menor valor
40
frente às
da primeira.
Desta forma, podemos constatar que na construção dos argumentos para atacar
o gnosticismo cristão, Irineu de Lião não se pauta numa série incoerente de fontes, mas
o bispo se ocupa muito mais em dispor de qualquer meio para detrair os gnósticos do
que em expor corretamente a lógica gnóstica de compreensão sobre Jesus Cristo.
Dado que, no primeiro capítulo, Irineu apresenta diversos eixos temáticos,
selecionamos, para a composição do nosso corpus, somente as passagens que nos
auxiliam no entendimento do processo de estigmatização dos gnósticos. Assim, nossa
38
Como já dissemos no primeiro capítulo, o gnosticismo propriamente dito é um fenômeno cristão
do século II, pois tal período foi convencionado no Colóquio de Messina. E Simão, Mago é do século I,
mesmo observando alguns elementos gnósticos em Simão, ele e sua doutrina não se aplicam ao
gnosticismo cristão.
39
At 8, 9-11
40
Por se tratar de documentos que apresentam um gnosticismo simplificado e reinterpretado, pois
havia documentos da mesma época com estruturas filośofico-argumentativas melhor organizadas como,
por exemplo, as fontes diretas da primeira sessão. Assim, fora possível comparar os veis qualitativos
das fontes de Irineu.
78
análise terá como foco os trechos que o bispo estigmatiza os gnósticos como mágicos ou
oficiantes de práticas mágicas.
A escolha do conceito de magia como estigma se insere num esforço em
procurar compreender uma obra teológica sob uma perspectiva diferente do que a
usualmente se observa. Como fora apresentado no primeiro capítulo, Irineu escreve
sua principal obra após as supostas perseguições empreendidas pelas autoridades
romanas aos cristãos eclesiásticos realizadas nas Gálias, principalmente em Lugdunum
(atual Lião) e Vienna (atual Vienne). E, o que nos tomou a atenção ao ler e analisar a
obra foi o fato de o bispo não estigmatizar o Império, mas sim os cristãos gnósticos.
Dado esse silêncio de Irineu em relação ao Império e sua insistência em associar os
gnósticos de sua época, isto é, final do século II com Simão, o mago, um gnóstico de
tradição judaica de meados do primeiro século, sentimo-nos inclinados a procurar
compreender como a prática de magia era vista à época de Irineu.
Assim, verificamos que havia uma legislação que tratava especificamente do
crime de magia no segundo século (SILVA, 2003: 228): era a Lex Cornelia de Sicarii et
Veneficis
41
, e acreditamos, que tal lei não fosse desconhecida do bispo, pois é
justamente Simão, o mago, ou seja, praticante de artes mágicas, o ponto de partida para
os ataques de Irineu. Desta forma, Irineu, frente a um suposto endurecimento das
autoridades imperiais em relação aos cristãos, não procurou criar um instrumento para
refutar a justiça das ações imperiais, como o fez Tertuliano, em seu Apologeticum, de
197, mas se voltou contra os cristãos gnósticos, estigmatizando-os
42
, isto é, atribuindo-
lhes um estereotipo que os conduzisse ao descrédito de toda a sociedade circundante,
lançando sobre eles o olhar das autoridades imperiais, ao passo que apresentava o
41
Trataremos mais detidamente do conceito de magia no capítulo III desta dissertação.
42
Também falaremos mais atentamente sobre esse conceito mais adiante
79
cristianismo como uma religio que tinha como base crenças passíveis de serem
compreendidas por meio da razão. É importante ressaltar que a apresentação que Irineu
faz, no primeiro livro de sua obra, das doutrinas gnósticas, denota reiteradamente
elementos irracionais, incompatíveis com a visão de mundo romana ou romanizada
(GOFFMAN, 1988: 13).
Por mais que a estigmatização, por meio da magia, não ocupe a maior parte da
obra, o bispo a faz de forma bastante precisa no primeiro livro, porque, ao longo do
tratado sobre os sistemas e subsistemas do cristianismo gnóstico e suas respectivas
refutações, pode-se notar que a filiação alegada de todo o gnosticismo a Simão, o mago,
além de não ser gratuita, mas é altamente eficaz. Dada a premissa jurídica da
criminalidade das práticas mágicas no mundo romano de então, Irineu procurou, como
pudemos perceber, expor a gênese do cristianismo gnóstico como algo que já se
configurava ilícito a priori frente a Roma. E, para além do uso da magia por Simão, o
mago, havia também a participação de uma mulher no culto, no caso Helena, mas, não
nos ocuparemos, nesta dissertação, das implicações que resultavam do exercício de
rituais por mulheres, por escapar dos nossos objetivos.
E, mesmo que a obra de Irineu não se ocupe detidamente das supostas práticas
mágicas dos gnósticos, talvez por não ter tido tantos meios e elementos concretos para
assim o fazer, condenou, desde o início, o gnosticismo como sendo um desdobramento
da magia de Simão.
Observemos o que ele diz acerca de Simão:
Simão, samaritano, é o mago de quem Lucas, discípulo e seguidor dos
apóstolos diz: “havia, tempo, na cidade, um o homem chamado
Simão que praticava a magia e excitava os habitantes da Samaria
dizendo ser grande personagem e todos, do maior ao menor, o
escutavam e diziam: este é a Potência de Deus, chamada grande.
80
Apegavam-se a ele porque por muito tempo os fascinavam com suas
mágicas”. Este Simão fingiu abraçar a fé, pensando que também os
apóstolos realizassem curas por meio da magia e não pelo poder de
Deus e que eles tornassem cheios do Espírito Santo os que criam em
Deus, por meio da imposição das mãos de Jesus Cristo que eles
anunciavam. Imaginando ser por causa de uma sabedoria mágica
maior ainda que eles faziam estas coisas; ofereceu dinheiro aos
apóstolos afim de ter ele também o poder de dar o Espírito Santo a
quem quisesse, mas ouviu de Pedro “O teu dinheiro pereça contigo,
pois julgaste poder comprar o dom de Deus! Não terás parte nem
herança neste mistério, porque o teu coração não é reto diante de
Deus. Eu vejo na amargura do fel e nos laços da iniqüidade”. Ainda
menos acreditou em Deus e pôs-se a rivalizar invejosamente com os
apóstolos para se tornar, ele também, célebre. Por este motivo
aprofundou em todas as artes mágicas a ponto que granjeou a
admiração de muitos homens. Viveu nos tempos do imperador
Cláudio, e até se diz que, por motivo da magia, foi honrado por muitos
como um deus e ensinou que ele era aquele que se manifestou como
Filho entre os judeus, que desceu na Samaria como Pai e que veio
entre os outros povos como Espírito Santo; que era a Potência mais
sublime, isto é, o Pai que está acima de todas as coisas e aceitava
qualquer título que os homens lhe quisessem conferir. (Adv. haer. I:
23.1)
Notemos acima que o bispo insiste no caráter mágico das práticas de Simão, o
mago, evidenciando que o gnosticismo tinha, supostamente, uma origem “manchada” e
um caráter criminoso. Mas, como dissemos, o cristianismo gnóstico é,
essencialmente, um fenômeno do segundo século, e Simão, o mago, viveu no primeiro
século de nossa era, por volta dos anos 40. Mesmo assim, Irineu efetuou a conexão entre
grupos que não eram gnósticos, como o simonianismo
43
e, por mais que Simão e seus
43
Podemos compreender que os seguidores de Simão se configuraram como um movimento de
81
seguidores se valessem se alguns rudimentos dos sistemas explicativos que poderiam
ser classificados lato sensu como gnósticos, não poderiam ser gnósticos em sua
completude, porque os seguidores de Simão pertenciam à gnose judaica, e não à cristã.
Para empreender sua estigmatização aos gnósticos, tendo como ponto de partida
Simão, o mago, Irineu toma como base os Atos dos Apóstolos, nos quais Simão surge
como um rival dos apóstolos de Cristo no tocante aos mistérios. Ressaltamos que, para
desqualificar Simão, os autores dos Atos também se valeram de alcunhas como a de
“mágico”. (TORRENTS, 1990: 29).
Pudemos notar, também, uma relação de uso da magia com a presença das
mulheres. Vejamos esse trecho.
Simão, samaritano, do qual se originam todas as heresias, apresenta
para a seita esta teoria: tendo comprado em Tiro, cidade da Fenícia,
Helena, prostituta, levou-a consigo nas suas idas e vindas e dizia que
ela era o seu primeiro Pensamento, a Mão de todas as coisas, e que o
princípio(...) Durante culos transmigrou, como vaso se derrama
noutro, em corpos de mulheres. Entre outras, ela foi aquela Helena por
cuja a causa aconteceu a guerra de Tróia(...) Na sua transmigração de
corpo em corpo, desde o início, sempre sofreu afrontas e ultimamente
se estabeleceu num prostíbulo; ela seria a ovelha desgarrada (Adv.
haer. I: 23,2).
Desta maneira, o bispo de Lião usa da caracterização da prática mágica, ligando-
a à liderança ritual das mulheres,como algo degradado, para denunciar o suposto
gnóstico primevo. Porém, Irineu não se ocupa de explicar que os sistemas gnósticos têm
como fundamento a degenerescência da matéria
44
, que aprisiona em si alguma centelha
cunho sectário, do qual se tem notícias até meados do século II
44
Assunto já trabalhado no tópico O gnosticismo do primeiro capítulo
82
divina, e esta tem como destino o retorno ao Pleroma, via gnose. Mais ainda, notemos
que a tentativa de Irineu de ligar Simão a gnósticos propriamente ditos, ou seja, os
valentinianos do século II, torna-se insuficiente, porque o culto de uma entidade
puramente divina no mundo material seria impensável, dada a impureza do mundo
material. Assim, o bispo de Lião se propôs a estabelecer conexões entre formas distintas
de se compreender a gnose, para validar seus estigmas contra o gnosticismo cristão, isto
é, seu principal alvo.
O ataque ao uso da magia prossegue na descrição dos principais deres
gnósticos. Observemos o que o bispo diz sobre Menandro:
Sucessor de Simão foi Menandro, samaritano de origem, que também
atingiu o vel mais alto da magia. Este diz que a primeira Potência
não é conhecida por ninguém e que ela é o Salvador enviado dos
lugares invisíveis para a salvação dos homens. Diz que o mundo foi
feito pelos Anjos e, da mesma forma que Simão, afirma que foram
emitidos por Enóia (Helena) e que, pela ciência da magia que
ensinava, conferiu o poder de vencer os próprios Anjos, criadores do
mundo. Os seus discípulos, pelo batismo no seu nome, receberam a
ressurreição e não podem morrer, mas permanecem para sempre
jovens e imortais (Adv. haer. I: 23,5).
Irineu insiste em criar uma matriz mágica para os primeiros gnósticos. Como
vimos, ele também denunciou Menandro como mágico, criando um conjunto
explicativo para o gnosticismo incipiente dotado de supostas especulações filosóficas e
ornado de práticas mágicas. Todavia, o bispo não se ocupa em esclarecer que tanto
Simão quanto Menandro têm filiações com a gnose judaica do século I e, não com o
gnosticismo cristão do século seguinte.
No tocante aos líderes gnósticos do século II, o bispo das Gálias não se vale
tanto da alcunha de magia, mas, Marcos se apresentou como uma exceção:
83
Outro, entre eles, que se gaba de corrigir o mestre, chamado Marcos,
expertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos homens e não
poucas mulheres, atraindo-os a si como ao gnóstico perfeito por
excelência, e como detentor da potência suprema provinda de lugares
invisíveis e indescritíveis, é como que um verdadeiro precursor do
Anticristo. Misturando os jogos de Anaxilau com as malícias dos
assim chamados magos se faz passar por milagreiro aos olhos
daqueles que nunca possuíram discernimento ou então o perderam
(Adv. haer. I: 13,1).
O ataque por parte de Irineu a Marcos como praticante das artes mágicas se
mostra singular porque o bispo, em sua obra, basicamente, procurou estigmatizar de
magos e desvirtuadores de mentes e corpos, principalmente femininos, os deres da
tradição gnóstica judaica.
Para os líderes do gnosticismo cristão, Irineu se ocupa em alcunhá-los como
hereges, mas Marcos, como vimos, é incluído como oficiante, também, de magia.
Dado que nosso objetivo é o processo de estigmatização realizada pelo bispo aos
gnósticos, como já dissemos, nos concentraremos no estigma de magia. No entanto, vale
ressaltar que Irineu também se valeu de outros estigmas para caracterizar os gnósticos.
Pois, pudemos perceber que a alcunha de mago era dado como desqualificativo para os
gnósticos que operavam diretamente com o sobrenatural, tal como Jesus Cristo o fez,
como Simão, Menandro e Marcos. Considerando magos os outros, segundo Irineu,
Jesus Cristo, por sua vez, operava mistérios.
No que diz respeito às cosmogonias
45
antes de Jesus Cristo, ou seja, o livro
Gênesis dos escritos vétero-testamentários, Irineu estigmatizava os gnósticos como
heréticos.
45
Explicações sobre a criação do mundo.
84
Vejamos um trecho relativo a Marcião:
Sucedeu-lhe Marcião, originário do Ponto, ampliou a doutrina,
blasfemando despudoradamente o Deus da Lei e dos profetas,
chamando-o autor do mal, desejoso de guerras, inconstante nos
sentimentos e em contradição consigo mesmo. Quanto a Jesus,
enviado pelo Pai que está acima do Deus criador do mundo, veio à
Judéia no tempo em que era governador Pôncio Pilatos, procurador de
Tibério César, manifestou-se como homem aos judeus e aboliu os
profetas, a Lei e as obras todas do Deus criador, que eles chamam
Cosmocrátor. Além disso, Marcião mutilou o evangelho de Lucas,
eliminando tudo o que se refere à geração do Senhor e expungindo
muitas passagens dos ensinamentos do Senhor nas quais este
reconhece abertamente como seu Pai o criador do universo. Fez crer
aos seus discípulos ser ele mais verídico do que2.3 Sinopse
narrativa do corpus. os apóstolos que transmitiram o evangelho,
entregando-lhes nas mãos não o evangelho, mas uma parte do
evangelho. Da mesma forma mutila as cartas do apóstolo Paulo
eliminando todos os textos em que se afirma claramente que Deus que
criou o mundo é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e também as
passagens onde o Apóstolo lembra as profecias que prenunciavam a
vinda do Senhor (Adv. haer. I: 27,2).
Alcunhando-os magos ou hereges, Irineu se propôs muito mais a estigmatizar a
construção dos esquemas gnósticos do que a explicá-los, como seria de se esperar para o
primeiro livro de Adversus haereses.
No que diz respeito à escolha do corpus, enfatizamos que a escolha do bispo de
desqualificar líderes do cristianismo gnóstico, tomando-os por magos e, principalmente
Simão, o mago, se presta, como dissemos, a macular o gnosticismo e persuadir a seu
público da conveniência de se filiarem à vertente eclesiástica.
Podemos, assim, perceber que, por mais direto que seja o texto de Irineu,
85
figuras de linguagem que induzem a interpretação do leitor sobre os gnósticos, como,
por exemplo, a analogia
46
. Pois, se o líder primordial dos gnósticos é mago e, por tal,
incorreu em um crime, logo, todo o gnosticismo cristão está fadado a tal infortúnio.
Desta forma, nossa escolha de analisar trechos de Adversus haereses que se
reportem à prática da magia torna-se válida por evidenciarem uma clara estigmatização
de uma modalidade de cristianismo que, como podemos depreender, rivalizava com os
cristãos eclesiásticos.
A obra de Irineu se mostra como uma peça de embate ideológico, na qual
podemos ver um dos oponentes, pois o autor constrói todo um modelo explicativo para
se compreender depreciativamente o gnosticismo, procurando defender sua perspectiva
acerca de tal grupo cristão. Nestes termos, a obra do bispo de Lião é um constructo
retórico bem definido porque utiliza vários meios para desqualificar os gnósticos por
meio de seu discurso. Numa primeira leitura, a obra de Irineu, especialmente o primeiro
livro, apresenta-se como uma descrição aparentemente fiel dos escritos gnósticos de sua
época. No entanto, como nos esclareceu José Torrents, o bispo de Lião se valeu de
vários tipos de fontes para compor o Adversus haereses, com vários graus de
verossimilhança com os escritos gnósticos de então para fazer tal coisa. E, como
podemos perceber ele inferiu, à sua maneira e visando exclusivamente às suas
finalidades, dados, quando não dispôs dos mesmos para sua refutação do gnosticismo.
Desta forma, concluímos o capítulo acreditando que a escolha dos trechos
apresentados é justificada, pois foram considerados fundamentais para que possamos
atingir nossos objetivos na presente pesquisa.
Posto que nossa preocupação maior é compreender o processo de estigmatização
46
Tomamos aqui a acepção de Chaïm Perelman (1987), da qual analogia é um termo grego que
denota proporção a/b=c/d, havendo, assim, uma relação de constância entre a e b e entre c e d.
86
dos gnósticos realizado por Irineu, e que tal processo perpassa pela acusação de os
cristãos gnósticos serem mágicos, envidaremos esforços para analisar o discurso de
Irineu por meio de conceitos que auxiliem nossa empreitada.
Os conceitos-chave são os de estigma e o de magia, pois tais conceitos dão
sentido à nossa hipótese, isto é, a de que Irineu realiza uma estigmatização aos gnósticos
que, na nossa perspectiva, está basicamente concentrada nos argumentos que criam o
estigma de magia. Para tentar compreender como um estigma atua num dado grupo
social utilizaremos a acepção de Ervin Goffman (1988) porque esse autor nos esclarece
como o estigma é a deteriorização da identidade de um indivíduo, ou de um grupo
social. Desta forma, tal conceito nos é extremamente útil, porque nosso empenho
também é o de tentar compreender como Irineu, por meio de sua obra, manipula e
corrompe a idéia de do que seria ser um cristão gnóstico para seu público, sendo que em
sua obra ele não associa os gnósticos ao cristianismo, ou os associa a uma degeneração
mal-sucedida de um “verdadeiro cristianismo”.
Notemos, então, que a degradação da identidade dos gnósticos começa por não
reconhecê-los como cristãos e, para além disso o bispo os acusa de oficiantes das artes
mágicas que, para tal análise, valemos-nos do conceito de magia proposto por Gilvan
Ventura da Silva (2003: 165), pois tal conceito tem como núcleo a magia praticada na
Roma do Baixo Império que, para nós, é de inestimável valor, dado o fato de que boa
parte das conceitualizações sobre a magia são feitas por antropólogos que estudaram
tribos coetâneas a nós, e Silva nos apresenta um conceito que tem como foco a prática
mágica no mundo romano da antiguidade, sendo, assim, de uma empregabilidade única.
Além dos conceitos apresentados, utilizamos também, como afirmamos no
Capítulo I, a noção de ritos de instituição, isto é, a autoridade que alguém possui, ou
87
procura possuir, de se legitimar frente a outros, expressa por Pierre Bourdieu (1996), e
de ideologia como um sistema cultural, de Clifford Geertz (1978), pois a articulação
dessas duas noções nos oferece um campo de análise para procurarmos compreender o
lugar de onde o bispo enuncia seus estigmas e que pretensões se encontram no
intradiscurso de Irineu. Ao tomarmos ideologia como um sistema cultural, procuramos
esclarecer que mesmo personificando os cristãos eclesiásticos, e os gnósticos também
sendo cristãos, Irineu defende que eles partilhavam de ideologias distintas acerca do
Cristo, pois a ideologia seria uma cosmovisão que um dado grupo compartilha, suas
experiências, motivações e interesses.
Temos, então, uma ideologia gnóstica, baseada mais detidamente nos aspectos
ascéticos do cristianismo, e uma ideologia eclesiástica, que se preocuparia com os
aspectos hierárquico-doutrinários. O confronto entre essas duas ideologias configuraria
um embate ideológico em que, para obtenção da vitória no debate, seriam utilizados
diversos meios de agressões argumentativas, basicamente por parte dos eclesiásticos. E,
nesse embate a apresentação do oponente como ilícito, reprovável, ilegítimo se mostra
como um meio eficiente esvaziar e destituí-lo de poder e, em contrapartida afirmar
legitimidade, ou melhor, apresentar ritos de instituição, como nos mostra Bourdieu
(1996: 96).
Como metodologia base utilizaremos a leitura isotópica proposta por Ciro
Cardoso, pois tal método nos permite investigar no próprio texto quais são as
recorrências mais comuns e/ou as mais significativas, que no nosso caso é o estigma de
magia aplicado aos cristãos gnósticos.
88
Capítulo 3 – O processo de estigmatização dos
gnósticos em Contra as heresias de Irineu de Lião
Neste capítulo, procuraremos compreender, com base no primeiro livro da obra
de Irineu, como este autor lança mão de estigmas, ou seja, de atributos pejorativos que
conduzem alguém, ou um dado grupo social, ao descrédito (GOFFMAN, 1988: 13),
para descaracterizar e invalidar ou, em suas próprias palavras, refutar o cristianismo
gnóstico. Para tal, entre vários estigmas, concentrar-nos-emos no estigma de magia,
tomando, aqui a acepção de Silva (2003: 165) de que magia, ou práticas mágicas, seria
mais um meio de os seres humanos se relacionarem com o espiritual ou o sobrenatural,
pois este nos permite analisar como o argumento de refutação opera dentro da obra.
No segundo capítulo desta dissertação, defendemos a idéia de que Irineu não
ataca a todos os líderes gnósticos em bloco, mas faz uma estigmatização seletiva,
estratégica. Como vimos, o bispo esforça-se por filiar o gnosticismo ao simonianismo, e
tal filiação, por derivação, implica englobar todo o gnosticismo cristão na acusação de
ser portador de um “crime original”, do qual, por natureza, não poderia se desvincular,
haja vista que Simão é apresentado como praticante de toda sorte de magia. Como
fundamento da disforização, a alcunha de mago tinha, no segundo século de nossa era
tinha implicações na legislação imperial, dado a existência da Lex Cornelia (SILVA,
2003: 228), uma lei específica para os crimes de magia, que estava em vigor desde o
século I a.C. Trataremos de algumas implicações desta lei no corpo deste capítulo.
Assim, a justificativa do nosso esforço de analisar a eficácia do emprego do
desqualificante “magia” em um dado grupo de cristãos por outro grupo, encontra seu
fundamento na tentativa de compreender quais são as pretensões menos explícitas de
89
Irineu, pois, no século II, não havia um cristianismo ortodoxo, um centro norteador,
nem nenhuma de suas variantes tinha conseguido, ainda, ser a referência nos aspectos
normativos e doutrinários desta que surgia na sociedade romana. Desta forma,
segundo se nos apresenta, Irineu é, na modalidade eclesiástica do cristianismo, seu
principal expoente no embate ideológico.
Para entendermos como o bispo de Lião propõe implicitamente um embate
ideológico devemos, primeiro, caracterizar o conceito de ideologia e, para tanto,
utilizaremos a definição de Clifford Geertz (1978), pois este autor procura retirar os
paradoxos que implicam o uso do termo ideologia a fim de torná-lo um conceito
operacionalizável.
Hoje em dia duas abordagens principais ao estudo dos
determinantes sociais da ideologia: a teoria do interesse e a teoria da
tensão. Para a primeira, a ideologia é uma máscara e uma arma; para a
segunda, um sintoma e um remédio. Na teoria do interesse, os
pronunciamentos ideológicos são vistos contra o pano de fundo da luta
universal por vantagens; na teoria da tensão, contra um pano de fundo
do esforço crônico para corrigir o desequilíbrio sócio-psicológico
(GEERTZ, 1978: 171).
Perpassando as limitações de se compreender os fenômenos ideológicos como
reduções psicológicas aplicadas a grupos sociais, Clifford Geertz propõe que a
compreensão desses fenômenos deve ser entendida por uma:
(...) “teoria extrínseca” – é que o pensamento consiste na construção e
manipulação dos sistemas simbólicos que são empregados como
modelos de outros sistemas físico, orgânico, social, psicológico e
assim por diante – numa forma tal que a estrutura desses outros
90
sistemas é, por assim dizer, “compreendida” e, na melhor das
hipóteses, como se pode esperar que eles se comportem. Pensar,
conceituar, formular, compreender, entender, ou o que quer que seja
consiste não em acontecimentos fantasmagóricos na cabeça, mas em
combinar os estados e processos dos modelos simbólicos com os
estados e processos do mundo mais amplo (...) (GEERTZ, 1978: 185).
Desta forma, a ideologia é mais bem compreendida se analisada como um
sistema cultural, uma visão ou perspectiva que um dado grupo social faz de si e o faz
em relação a outros grupos sociais. A ideologia se comportaria como uma espécie de
“gabarito”, criado e remodelado para que os entes de um dado grupo social padronizem
e orientem suas ações.
Quaisquer que sejam suas outras diferenças, tanto os símbolos ou
sistemas de símbolos chamados cognitivos como os chamados
expressivos têm pelos uma coisa em comum: eles são fontes
extrínsecas de informações em termos das quais a vida humana pode
ser padronizada mecanismos extrapessoais para a percepção,
compreensão, julgamento e manipulação do mundo. Os padrões
culturais religioso, filosófico, estético, científico, ideológico são
“programas”: eles fornecem um gabarito ou diagrama para a
organização dos processos sociais e psicológicos, de forma
semelhante aos sistemas genéticos que fornecem tal gabarito dos
processos orgânicos (...) (GEERTZ, 1978: 188).
Podemos, então, perceber que os cristianismos de vertente eclesiástica e gnóstica
não partilhavam de um mesmo “programa” ou gabarito religioso, ou seja, de uma
mesma ideologia sobre o Cristo. Assim sendo, essa diferença de ideologia abriria espaço
para um embate, um confronto ideológico, no qual nota-se o emprego de vários meios
para que uma modalidade da cristã pareça legítima e outra seja relegada ao
91
descrédito.
A obra de Irineu, assim, se mostra como um meio, um instrumento desse
confronto, pois, na medida que estigmatiza a ideologia gnóstica, o bispo torna ilegítima
toda e qualquer pretensão dessa vertente da fé cristã ser depositária de alguma verdade
sobre os “mistérios” do Cristo. Em contrapartida, a modalidade eclesiástica se apresenta
como a forma legítima, cita de se entender o Cristo, pois não seria aquilo que o
cristianismo gnóstico era.
Nesse confronto, os cristãos eclesiásticos se mostram determinados a disputar
mais ferrenhamente a autoridade sobre o Cristo, pois é a partir deles que se observa a
estigmatização, a negação dos gnósticos, haja vista que a obra de Irineu tem, como pano
de fundo, o esforço de estabelecer aos eclesiásticos como os únicos autorizados a dizer a
“verdade” sobre Jesus Cristo. Desta forma, podemos entender que a força do discurso
de Irineu é quase um rito de instituição, ou seja, de tornar legítimo o cristianismo
eclesiástico; de dotar essa modalidade da crisde autoridade sobre como se deve
compreender a missão do Cristo no mundo terrenal.
Pode-se compreender o processo volitivo de pretensão institucional por parte dos
eclesiásticos com a proposta de Pierre Bourdieu (1996) sobre os ritos de instituição, pois
o discurso de Irineu se propõe fundante e delimitador. Fundante porque propõe, na
negação do cristianismo gnóstico (apresentado como difuso, disperso), um cristianismo
ortodoxo (eclesiástico, uno, centralizado) e, delimitador porque demarca o que seria a
maneira errada, desvirtuada, reprovável, ilegítima de se apreender o cristianismo, ou
seja, o cristianismo gnóstico. E, assim, o único lugar de autoridade, de legitimidade
sobre o Cristo seria a ecclesia. Percebamos, então, que a postura de Irineu, via Adversus
haereses, é de instauração de um rito de instituição, pois:
92
(...) Falar em ritos de instituição é indicar que qualquer rito tende a
consagrar ou legitimar, isto é, a fazer desconhecer como arbitrário e a
reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário, ou melhor, a
operar solenemente, de maneira lícita e extraordinária, uma
transgressão dos limites constitutivos da ordem social e da ordem
mental a serem salvaguardadas a qualquer preço (...) (BOURDIEU,
1996: 98).
Deste modo, Irineu, no seu processo de estigmatização, procura dotar o
cristianismo eclesiástico de autoridade, de legitimidade frente ao cristianismo gnóstico
porque ao denunciar os gnósticos de praticantes de magia, o bispo está retirando-lhes a
legitimidade, por serem oficiantes de uma arte criminosa aos olhos das autoridades
romanas, isto é, o símbolo máximo de institucionalidade da sociedade de então.
3.1– A estigmatização dos gnósticos no Adversus Haereses
A fim de analisarmos o processo de estigmatização dos gnósticos por Irineu e
suas implicações, precisamos definir o conceito de magia que utilizamos, e como este
conceito é utilizado na obra em questão.
De acordo com Gilvan Ventura da Silva (2003: 161), os termos magia, feitiçaria,
bruxaria, sortilégio ou qualquer outro termo similar, referem-se a manifestações
universais do ser humano, na medida em que visam a aproximá-lo do sobrenatural.
Dado que nossa pesquisa se pauta especificamente no termo magia, não nos
debruçaremos nas implicações que os outros termos podem redundar, pois na obra de
Irineu está explícito o nome magia e práticas mágicas.
93
Pudemos observar que Silva (2003: 162) põe a magia no mesmo plano que a
religião. Desta maneira, abandonando as correntes antropológicas que buscavam
estabelecer relações assimétricas entre esses dois conceitos:
Superados os critérios de distinção entre religião e magia propostos
por Frazer e levando-se em consideração as reflexões de Marcel
Mauss, talvez fosse razoável supor que tanto as crenças quanto as
práticas de magia se situam na esfera dos fenômenos ditos religiosos,
ou seja, daqueles fenômenos que dizem respeito à relação do homem
com o sagrado, com o espiritual ou, conforme propõe Tambiah, com o
transcendente, tomado no sentido do supra-sensível e não alcançável.
(SILVA, 2003: 165).
Para além de a magia partilhar com a religião o mesmo status de meio para se
alcançar o sobrenatural, essas práticas se constituiriam em saberes que, assim como o
saber político e outros saberes, norteiam uma dada sociedade e são detentores de poder.
Durkheim e, mais que ele, Marcel Mauss se encarregaram de colocar
em evidência o caráter social da magia, ou seja, o fato de que toda
crença dessa espécie de resultado de uma criação coletiva e de
determinadas tradições transmitidas de geração em geração, mesmo
que os oficiantes ocasionalmente trabalhassem sozinhos. Mais que
isso, Durkheim e Mauss foram os primeiros a interpretar a magia
como um tipo específico de saber, como uma linguagem que gera
conhecimento para aqueles que a dominam, o que inaugura, assim,
uma linha de análise que considera a magia antes de tudo como um
sistema simbólico. (SILVA, 2003: 163).
Temos, então, magia e religião como saberes inseridos em um sistema religioso
mais amplo, compartilhando símbolos e linguagens. Silva nos mostra que magia e
94
religião são expressões mais acentuadas de características que se encontram nesses
sistemas religiosos maiores, e reforçamos o adjetivo “acentuadas”, pois poderíamos
deduzir que essas expressões religiosas ocupam lugares estanques de saberes, o que não
se comprova, porque a relação entre magia e religião se mostra muito mais evidente
numa gradação do que num isolamento de categorias do sistema religioso:
O sistema religioso se subdividiria em dois subsistemas básicos: o
subsistema devocional e o subsistema mágico. O primeiro aglutinaria
todas as cerimônias que têm por finalidade saudar os seres
sobrenaturais reverenciados pela sociedade, como observamos nos
ritos e votos de graças pelos benefícios divinos dispensados aos fiéis,
tanto em âmbito individual quanto coletivo, ou nas preces que exaltam
atributos como a glória, a majestade, a onipotência e a magnanimidade
dos deuses. o segundo seria constituído por um conjunto de
procedimentos (encantamentos ou conjuros, mbolos iconográficos,
gestos e oferta de matéria mágica) denominado rito mágico ou
encanto, cuja finalidade não é tanto louvar ou agradecer às entidades
sobrenaturais, mas invocar o seu auxílio para produzir alterações na
realidade sensível e/ou romper com o encadeamento
presente/passado/futuro, de modo a apreender uma realidade difícil ou
mesmo impossível de ser alcançada por intermédio apenas das
faculdades intelectuais humanas. (SILVA, 2003: 165)
Frente ao que apresentamos, poderíamos supor que existe um binômio
magia/religião dentro dos sistemas religiosos, mas, como dissemos, a relação entre os
dois termos se realiza por gradação e não por oposição, pois Silva (2003: 167) nos
esclarece que, por exemplo, os papiros gicos greco-egípcios, um documento cujo
nome remete à magia, é um conjunto de preces de agradecimentos à representação
dos magos, evidenciando, assim, o caráter devocional de uma dada prática mágica e, por
conseguinte, mostrando que os liames entre os binômios religião/devoção e
95
magia/encanto(ou rito mágico) são bastantes fluidos.
Nossa escolha pela definição do conceito apresentada por Silva é amplamente
valiosa, primeiro por esse historiador propor a aplicação do termo magia à antiguidade,
pois geralmente as acepções que nos são dadas provêem de análises etnográficas e
antropológicas, haja vista os estudos feitos pelos antropólogos do início do século XX
como Mauss, Malinowsky, Lévy-Bruhl entre outros. Não desconsideramos a
importância e inserção desses pesquisadores para a construção de um conceito de magia
utilizável, mas, entendemos que Silva nos conduz a um uso mais efetivo para quem se
propõe a empregar tal conceito para a antiguidade, pois, como sabemos, não é possível
observar diretamente como se comporta a atividade gica na Roma antiga,
diferentemente das tribos pesquisadas pelos antropólogos já citados.
Então, Gilvan Ventura da Silva cunha um conceito de magia centralizando sua
compreensão para o mundo romano antigo com base na legislação que foi produzida
para o tema magia. E a outra razão por adotarmos o conceito proposto por Silva é
justamente o trato da magia como algo previsto em lei, passível de ser compreendido
dentro de um sistema de valores da Roma antiga. Assim, poderemos compreender o
porquê da ênfase de Irineu em se reportar aos gnósticos como mágicos e aos
eclesiásticos como oficiantes de uma força maior, sem defini-los como praticantes de
magia.
Retomando o cerne de nossa análise, vemos que a acusação dos gnósticos de
magos, por parte de Irineu, mostrou uma recorrência bastante significativa, entendendo
que sua obra se propõe a apresentar e a refutar o gnosticismo, e o bispo optou, como
dissemos, por filiar todo gnosticismo a Simão, o mago, um exímio oficiante mágico,
segundo palavras do próprio bispo. Nos parece, então, que Irineu tinha consciência, em
96
alguma medida, das implicações de ser um mago na Roma do segundo século.
Fingindo [Marcos] consagrar no cálice uma bebida misturada com
vinho e pronunciando longas invocações, a faz aparecer de cor
púrpura ou vermelha. (Adv. haer. I, 13,1).
No tocante à prática da magia, podemos observar que essa foi pela primeira vez
legislada, especificamente, com a Lex Cornelia de Sicarii e Veneficis em 81 a.C.,
especialmente no tocante a homicídios por meio de administração de venenos (SILVA,
2003: 228). E, se atentarmos ao fato que eram os magos os maiores conhecedores dos
elementos que compunham as poções mágicas, podemos, então, entender que tal lei se
reportava a magos.
Mesmo que o Alto Império, época de Irineu, tenha apresentado uma relativa
tolerância aos praticantes de magia (SILVA, 2003: 229), não podemos desconsiderar
que a associação com a magia, potencialmente, acarretaria alguma sanção.
(...) Com Tibério, por sua vez, ao veneficium tomado no seu sentido
estrito serão definitivamente incorporadas todas as outras infrações
relacionadas com a prática da magia e da adivinhação. Tal
acontecimento remonta ao suposto complô de Druso, em 17, quando
foram promulgados dois senatusconsulta não apenas cassando da urbs
e de toda Itália os astrólogos e magos (mathematici e magi), mas
impondo contra os mathematici, chaldaei, harioli e semelhantes a
proibição da água e do fogo (interdictio aqua et igni), o confisco dos
bens e a pena capital, se o culpado fosse estrangeiro(...) (SILVA,
2003: 229).
Assim, ser oficiante das artes mágicas era estar num lugar social passível de
97
estigma. Tomando aqui, a acepção de Ervin Goffman (1988: 12) acerca do meio de
operação do estigma, podemos observar que seria a dissonância entre a identidade social
virtual e a identidade social real, sendo a primeira o conjunto de expectativas que
alguém faz de uma pessoa, antes de conhecê-la e, a segunda, a real apreensão que
alguém tem quando conhece tal pessoa:
Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos
nos permitem prever a sua categoria e seus atributos, a sua “identidade
social” (...) Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais
adequadamente denominadas de demandas feitas “efetivamente”, e o
caráter que imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como
uma imputação feita por retrospecto em potencial uma
caracterização “efetiva”, uma identidade social virtual. A categoria e
os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão chamados de
sua identidade social real. (GOFFMAN, 1988: 12)
Então, notemos que a acusação de magos ou coisa similar aos gnósticos por
parte de Irineu se configura como um processo de estigmatização.
Expusemos em linhas anteriores à inserção da magia como uma das faces de
qualquer sistema religioso, no entanto, a magia sendo associada à anormalidade ou a
subversão, passa a ganhar contornos de desvio do aspecto religioso e sendo
caracterizada por feitiçaria (SILVA, 2003: 224).
Nós podemos considerar que a animosidade contra os feiticeiros é
sempre ativada no seu nível individual. Como ela intervém no nível
comunitário depende da organização local. A acusação conduz a uma
negação de laços comuns e responsabilidade. O que acontece quando
uma acusação foi feita depende do estado da comunidade política e de
qual padrão de relações necessita de redefinição no momento, pois as
98
crenças em feitiçaria são essencialmente um meio de clarificar e
afirmar definições sociais. (DOUGLAS, 1970: xxv).
Percebamos, então, que Irineu vincula as práticas mágicas dos cristãos
gnósticos à feitiçaria, pois as apresenta como meios de se desvirtuar as pessoas.
Notemos, assim, que a magia em si não se distingue da feitiçaria, pois ambas redundam
na acessibilidade do sobrenatural, mas a representação da magia como algo anormal,
subvertido, ou melhor, deteriorado, a configuraria como feitiçaria.
A feitiçaria, entendida como prática mágica desviante, resulta sempre
de um processo de criação de estigma que limita formas citas e
ilícitas de interação com o sobre natural. Recordemos, por exemplo, a
passagem do livro do Êxodo (7, 3) na qual Moisés transforma o seu
cajado em serpente e esta devora as demais serpentes produzida pelos
sacerdotes do faraó. Qualquer interpretação cristã desse episódio
seguramente se faria em termos da supremacia do verdadeiro Deus
sobre os magos pagãos do Egito ou do milagre sobre a feitiçaria.
(SILVA, 2003: 224).
A magia praticada pelos gnósticos, segundo Irineu, é nomeada feitiçaria, ou seja,
magia estigmatizada, eivada por intenções particulares e comezinhas, vazia de
propósitos maiores, sem um agente espiritual consciente onipotente e garantidor da boa
condução da prática da magia.
(...) Apegavam-se a ele (Simão) porque por muito tempo os fascinava
com as suas mágicas (...) Viveu nos tempos do imperador Cláudio, e
até se diz, que por motivo da magia, foi honrado por ele com uma
estátua. (...) (Adv. haer., I: 23,1)
(...) Marcos, expertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos
99
homens e não poucas mulheres (...) (Adv. haer., I: 13, 1)
Este mesmo Marcos serve-se ainda de filtros e poções para violentar
também corpos, se não de todas estas mulheres, pelo menos de
algumas. (...) (Adv. haer., I: 13, 5)
Observemos que a prática da magia entre os gnósticos é apresentada como
ilícita, indevida. Tal ocorrência nos remete à citação de Mary Douglas (1970: xxv)
quando ela nos fala que a acusação de feitiçaria, ou seja, magia, apresentada como um
estigma, é empregada num momento de redefinição de relações. Sabemos que os
cristãos eclesiásticos já haviam se hierarquizado e que, em sua estruturas, configuravam
cargos com níveis distintos de poder, sendo a única das modalidades cristãs no segundo
século que assim se encontravam. Desta forma, podemos entender que a o cristianismo
eclesiástico, ao criar estigmas para os cristãos gnósticos, buscava redefinir a relação
com todas as outras formas de cristianismo e com o mundo exterior.
Rotular os gnósticos de magos é um esforço de extração de poder dos gnósticos
sobre a compreensão do Cristo, e tal extração tem o um destino: o eclesiastismo, pois
Irineu, em sua empreitada contra os gnósticos, também afirma, de forma implícita, que a
verdade sobre Jesus Cristo está na ecclesia, que se a negação, a detração, o erro, os
maus modos se encontram entre os círculos gnósticos, por oposição à afirmação, a
exaltação, o acerto, os bons modos estão em quem mostra o desvio. Assim, torna-se
evidente o esforço, por parte dos cristãos eclesiásticos, de reconfiguração de um
cristianismo que é plural para um cristianismo controlado, unívoco e somente expresso
pela perspectiva hierarquizada dessa fé.
Podemos notar que Irineu, em sua obra, não se reporta à variante eclesiástica
como usuária de artes mágicas.
100
(...) Imaginando ser por causa de uma sabedoria mágica maior ainda
que eles faziam estas coisas; (Simão) ofereceu dinheiro aos apóstolos
a fim de ter ele também o poder de dar o Espírito Santo a quem
quisesse, mas ouviu de Pedro: “O teu dinheiro pereça contigo, pois
julgaste poder comprar com dinheiro o dom de Deus! Não terás parte
nem herança neste mistério, porque o teu coração não é reto diante de
Deus. Eu te vejo na amargura do fel e nos laços da iniqüidade”. (...)
(Adv. haer., I: 23,1).
Como é observável pelo trecho acima, a magia tem uma emanação particular,
individual, é praticada por quem quer obter ganhos pessoais, ao passo que nos círculos
eclesiásticos não magia, mas, sim, “o poder de dar o Espírito Santo”, o “dom de
Deus”.
Podemos notar que Irineu, ao evocar os Atos dos Apóstolos, procura demonstrar
que uma certa tradição entre os meios eclesiásticos de não associar as “maravilhas”
realizadas pelos líderes dessa variante cristã à magia, mas sim a um poder de um agente
espiritual consciente bastante superior.
Assim, implicitamente, o bispo reconhecia as sanções que pesavam sobre o
crime de magia e, não só o reconhecia como também as utiliza como um estigma contra
os cristãos gnósticos, dado o cuidado em não empregar tal termo para a relação dos
eclesiásticos com o divino, pois magos seriam os detratores do Evangelho, e não quem o
toma integralmente.
(...) Agora devemos lembrar-nos dele [Marcião] para que saibas que
todos que adulteram de alguma forma a verdade e lesam a doutrina da
Igreja são discípulos e seguidores de Simão, o mago, o samaritano.
101
Mesmo sem manifestar o nome do mestre para enganar os outros
ensinam a doutrina dele. Apresentando com engodo o nome de Jesus,
introduzem, sob formas diversas, a impiedade de Simão e causam a
perda de muitos. Usando nome excelente difundem a perversidade de
sua doutrina, e com a doçura e a honorabilidade, apresentam-lhes o
veneno amargo e pernicioso da serpente, chefe de toda apostasia.
(Adv. haer, I: 27, 4).
Para além de o processo de estigmatização realizado por Irineu contra os
gnósticos representar uma disputa, um embate ideológico, esse processo também é um
movimento de construção institucional, tomando o sentido proposto por Bourdieu, pelo
qual instituir é tornar legítimo o que seria arbitrário. Irineu, assim, é uma expressão de
uma modalidade de cristianismo que se pretende legítima, lícita. Mas, para tanto, tal
vertente possui algumas características que lhe dotam de poder frente outras formas da
fé cristã.
Dissemos que o cristianismo eclesiástico é a variante que havia se
hierarquizado desde o fim do século I, por razões que desconhecemos. E é nesta
característica, a hierarquia, que tal modalidade cristã auferiu meios para lançar estigmas
aos gnósticos. Poderia nos parecer um tanto quanto estranho como uma das formas da fé
cristã obtivera recursos para detrair outra vertente, numa época que tal ainda estava
associada ao judaísmo. Percebamos que o cristianismo eclesiástico já possuía uma
estrutura organizada, mesmo não tendo um único rito.
Retomando Niklas Luhmann (1985: 11) o poder surge como:
(...) uma oportunidade de aumentar a probabilidade de ocorrências de
contextos seletivos. As probabilidades reais abrigam uma tendência de
auto-reforço: quando se sabe que algo é provável, conta-se mais com a
ocorrência do que com a não-ocorrência do fenômeno, e quanto maior
102
a relevância, tanto mais próximo o ponto em que este processo se
inicia.
Assim, o poder opera na possibilidade de fazer escolhas num sistema, sistema
esse que deve ser constituído de regras para que se mantenha. Deste modo, o poder
exige organização, normas, regramentos, pois os co-participantes do poder se
relacionam entre si por meio de um acordo que fora estabelecido na organização.
Organização é, destarte, uma maneira determinada de formação de
sistemas através do aumento e redução de contingências. Este
princípio se mantém no interior de sistemas organizacionais e é
expresso pela identificação de “cargos”. Cada cargo apresenta um
ponto de conexão entre programas contingentes de comportamento (=
condições da correção do comportamento) e relações contingentes de
comunicação com cada pessoa contingente. A identidade do cargo é
que permite reconhecer a contingência de cada um destes diferentes
aspectos. Ao mesmo tempo, como ponto de referência da conexão, ela
reduz a arbitrariedade destas contingências, uma vez que nem todas as
pessoas e nem toda rede de comunicações convêm a cada tarefa.
(LUHMANN, 1985: 82).
Temos, então, o poder se realizando num dado meio social, isto é, numa
organização, através do qual permite do mais ao menos poderoso prever seus atos e,
com contingência.
Essa acepção de poder esclarece bastante a situação dos cristãos eclesiásticos
frente aos gnósticos, pois é na estrutura da ecclesia que podemos observar o poder
angariado pelos eclesiásticos para estigmatizar os gnósticos. Os cristãos gnósticos não
possuíam uma estrutura organizacional rígida, tampouco se preocupavam em ter
pressupostos doutrinários fechados. Desta maneira, notamos que o poder adicional dos
103
eclesiásticos, frente aos gnósticos, se encontra na organização estrutural e na hierarquia
funcional.
Apresentaremos, aqui, as grades de leitura isotópica, tendo como base a proposta
de Ciro Cardoso (1997), dos trechos que compõem nosso corpus de pesquisa,
apresentados no capítulo anterior, dos elementos temáticos, figurativos e axiológicos,
visando a analisar, assim, com o devido rigor metodológico, nosso corpus instrumental,
a fim de confirmar nossa hipótese central de pesquisa.Seguiremos, para tal análise, a
ordem em que os trechos selecionados seguem no Adversus haereses, pois seu plano de
disposição já é, per se um argumento na obra.
Irineu apresenta neste trecho Simão, o mago como um oficiante das artes
mágicas que, por meio da magia, seduzia e fascinava todos que o circundavam. Ele seria
o gnóstico “original”, do qual todas as heresias emanavam, segundo o bispo. Irineu
caracteriza Simão, utilizando-se dos Atos dos Apóstolos; num primeiro momento, como
um aspirante a apóstolo no tocante a obter os dons apostólicos e, num segundo
momento, como rival de Jesus Cristo. Mas, numa perspectiva mais ampla, o bispo tenta
mostrar o quão reprovável e ilícita é a prática da magia por parte de Simão.
Simão, samaritano, é o mago de quem Lucas, discípulo e seguidor dos
apóstolos diz: “havia, tempo, na cidade, um o homem chamado
Simão que praticava a magia e excitava os habitantes da Samaria
dizendo ser grande personagem e todos, do maior ao menor, o
escutavam e diziam: este é a Potência de Deus, chamada grande.
Apegavam-se a ele porque por muito tempo os fascinavam com suas
mágicas”. Este Simão fingiu abraçar a fé, pensando que também os
apóstolos realizassem curas por meio da magia e não pelo poder de
Deus e que eles tornassem cheios do Espírito Santo os que criam em
Deus, por meio da imposição das mãos de Jesus Cristo que eles
anunciavam. Imaginando ser por causa de uma sabedoria mágica
104
maior ainda que eles faziam estas coisas; ofereceu dinheiro aos
apóstolos a fim de ter ele também o poder de dar o Espírito Santo a
quem quisesse, mas ouviu de Pedro “O teu dinheiro pereça contigo,
pois julgaste poder comprar o dom de Deus! Não terás parte nem
herança neste mistério, porque o teu coração não é reto diante de
Deus. Eu vejo na amargura do fel e nos laços da iniqüidade”. Ainda
menos acreditou em Deus e pôs-se a rivalizar invejosamente com os
apóstolos para se tornar, ele também, célebre. Por este motivo
aprofundou em todas as artes mágicas a ponto que granjeou a
admiração de muitos homens. Viveu nos tempos do imperador
Cláudio, e até se diz que, por motivo da magia, foi honrado por muitos
como um deus e ensinou que ele era aquele que se manifestou como
Filho entre os judeus, que desceu na Samaria como Pai e que veio
entre os outros povos como Espírito Santo; que era a Potência mais
sublime, isto é, o Pai que está acima de todas as coisas e aceitava
qualquer título que os homens lhe quisessem conferir. (Adv. haer. I:
23.1)
Rede temática Elementos figurativos Elementos axiológicos
Magia (...)Este Simão fingiu
abraçar a fé, pensando que,
pensando que também os
apóstolos realizassem curas
por meio da magia e não
pelo poder de Deus(...)
(Adv. haer., I: 23,1)
Práticas ilegítimas,
ilícitas
O termo magia, nesta passagem, está relacionada com o anseio de Simão de
obter a capacidade de curar e, para tanto, o bispo alcunha-o de “dissimulado”, pois
Simão teria fingido “abraçar a fé” para obter o dom de Deus, mas o que conseguiu foi
realizar uma arte mágica. Assim, magia é o termo disforizante para acesso ao poder
sobrenatural, mas, nas palavras de Irineu, só Deus possui tal poder e os apóstolos são os
únicos autorizados a representar Seu poder. Logo, a prática mágica de Simão é
105
ilegítima, pois ele não figuraria entre os apóstolos e não possui um agente espiritual
consciente conduzindo ao sobrenatural.
No trecho seguinte, Irineu apresenta Carpócrates e seus seguidores, bem como a
Menandro, Saturnino e Basílides, fazendo parte da tradição simoniana, pois, de acordo
com o bispo de Lião, eles também faziam uso da magia para se relacionarem com os
seres do mundo sobrenatural, dominando e controlando-os. Irineu declara-os enviados
de Satanás por valerem-se do nome da Igreja, quando usam da prática gica. Tal
declaração se mostra interessante, pois o bispo procurou anular a recorrência dos
seguidores de Carpócrates a uma fonte de poder legítima para o oficio da magia.
Eles também se servem da magia, de encantamentos, filtros, feitiços,
espiritismo, hipnotismo e outros truques, afirmando não somente
terem o poder de mandar nos Principados e Criadores deste mundo,
mas também em todas as coisas contidas nele. Eles também foram
enviados aos povos por Satanás para a injúria do nome divino da
Igreja, de forma que os homens, ouvindo tanta diferença entre um e
outro e pensando em nós somos todos iguais a eles, desviem a sua
atenção da mensagem da verdade e vendo as ações deles desprezam a
todos nós que não participamos na doutrina, nem nos costumes, nem
na conduta deles. Eles, para encobrir a licenciosidade e a doutrina
ímpia servem-se do Nome como de véu para encobrir a malícia, mas o
juízo sobre eles será justo e receberão de Deus o justo pagamento pela
suas ações. (Adv. haer. I: 25, 3)
.
106
Rede
temática
Elementos figurativos Elementos
axiológicos
Magia 23,5. Eles também se servem da
magia, de encantamentos, filtros,
feitiços, espiritismo, hipnotismo, e
outros truques (...) Eles também foram
enviados aos povos por Satanás para a
injúria do nome divino da Igreja (...)
(Adv. haer., I: 23,5)
Prática ilegítima
A prática da magia é aqui apresentada como um mecanismo ilegítimo de evocar
o nome da Igreja, pois Irineu não se limita a lançar diversas alcunhas que se reportariam
à prática da magia. É bastante notável o conjunto de termos pejorativos que o bispo
emprega para disforizar o uso da magia. Observemos que quase aflora no texto a
indignação de Irineu, pelo modo com que o autor constrói suas sentenças e utiliza
figuras retóricas, frente aos seguidores de Carpócrates quando estes se valem do nome
da Igreja. Irineu, nesta passagem, está, claramente, negando o acesso desses gnósticos a
uma fonte lícita de poder sobrenatural, pois os acusa de praticantes de toda sorte de
magia e para torná-los ilegítimos são associados ao Satanás, ou seja, ao Anticristo.
Na próxima passagem, o bispo apresenta Marcos, no caso o gnóstico não o
evangelista, como um hábil manipulador da magia, pela qual a muitos seduzia. Podemos
perceber que, como a maioria dos gnósticos, Marcos evoca a magia para objetivos
particulares. Só Carpócrates é censurado por utilizar a magia por um poder que é
comum aos eclesiásticos. Marcos é insistentemente nomeado como sedutor e corruptor
de mulheres, pois ele, segundo o autor, as induziria ao adultério.
Outro dentre eles, que se gaba de corrigir o mestre, chamado Marcos,
expertíssimo na arte mágica com a qual seduzia muitos homens e não
poucas mulheres, atraindo-os a si como ao gnóstico perfeito por
107
excelência, e como detentor da potência suprema provinda de lugares
invisíveis e indescritíveis, é como que um verdadeiro precursor do
Anticristo. Misturando os jogos de Anaxilau com as malícias dos
assim chamados magos se faz passar por milagreiro aos olhos
daqueles que nunca possuíram discernimento ou então o perderam.
(Adv. haer. I: 13,1)
Rede temática Elementos figurativos Elementos
axiológicos
Magia (...) Marcos, expertíssimo na arte mágica
com a qual seduzia muitos homens e não
poucas mulheres (...) Fingindo consagrar
no cálice uma bebida misturada com vinho
e pronunciando longas evocações, a faz
aparecer de cor púrpura ou vermelha. (...)
Este mesmo Marcos serve-se ainda de
filtros e poções para violentar corpos, se
não de todas essas mulheres, pelo menos
de algumas. (...) (Adv. haer., I: 13,1; 13, 2;
13, 5)
Práticas ilegítimas;
práticas reprováveis
Irineu de Lião apresenta a magia de Marcos como uma forma de se corromper
homens e, principalmente, mulheres. A magia é fortemente disforizante por ser um meio
de macular a dignidade das mulheres, evidenciando, assim, quão reprovável tal prática
se constituía.
O bispo descreve a magia de Marcos quase como um malum venenum (SILVA,
2003: 228), ou seja, um remédio, poção ou filtro que foi preparado com a intenção de
matar e, de acordo, com a Lex Cornelia tal fato incorreria em crime. Ao invés de
intenção de matar, a intenção de corromper. Percebemos o quão eficaz pode ter sido
a argumentação de Irineu para seu público.
Notemos, nas passagens apresentadas, que o termo magia está relacionado com
práticas ilegítimas e reprováveis, ora a magia é ilegítima por se conectar aos supostos
108
anseios de Simão, o mago de obter a notoriedade ao tentar partilhar, junto aos apóstolos,
do poder de Deus, ora como meio de se corromper a dignidade de homens e mulheres.
A insistência do bispo em acusar os gnósticos de magos não nos parece gratuita,
pois suas palavras atestam a acusação. Operadores de filtros, poções, encantamentos e
tantas outras sortes de acesso ao sobrenatural são expressões e termos recorrentes
apresentados por Irineu e, como vimos, são todos vinculados à prática mágica. Magia
essa que é caracterizada como acesso ilegítimo, ilícito ou reprovável ao divino.
Se mostra evidente que a magia é um estigma utilizado de maneira estratégica na
obra de Irineu, Marcos se vale das artes mágicas para seduzir e corromper; os
seguidores de Carpócrates usam da magia para “indevidamente” evocar o nome da
Igreja, e Simão é o mago que tentou “comprar” o “dom de Deus”, mas o que conseguiu
foi a magia.
Todas as associações com a magia são disforizantes, e o texto de Irineu toma, de
maneira bastante clara, a prática da magia como algo que não deve ser seguido ou
praticado. E, na caracterização dos gnósticos como magos, isto é, de pessoas que são
desautorizadas, que não possuem legitimidade para falar sobre o Cristo, Irineu se mostra
como o representante da única forma legítima de se entender o messias dos judeus.
É-nos evidente que jogos de oposições como bom/mau, certo/errado estão
presentes em Adversus haereses em associação ao par antitético legítimo/ilegítimo, pois
o esforço de Irineu em estigmatizar os gnósticos reside, justamente, em dizer que suas
práticas, ou seja, as gicas, não são dignas de crédito por parte da sociedade, elas são
passíveis de punição, de reprovação, em suma, são ilegítimas. Em contrapartida, Irineu
ao enunciar, ou seja, ao trazer para si a autoridade de falar, que os cristãos gnósticos não
podem ser representantes do Cristo, o bispo propõe para si e para sua comunidade a
109
legitimidade de ser a fonte de verdade sobre Jesus Cristo.
(...) Assim, o ato de instituição é um ato de comunicação de uma
espécie particular: ele notifica alguém sua identidade, quer no sentido
de que ele a exprime e a impõe perante a todos(...), quer notificando-
lhe assim com autoridade o que esse alguém é e o que deve ser. (...)
(BOURDIEU, 1996: 101)
A forma como Irineu estigmatiza ou manipula a identidade gnóstica já, em si,
uma exigência de legitimidade ante os mistérios de Jesus Cristo, pois, como vimos em
Bourdieu, ele notifica a todos o que seria o gnosticismo. Adversus haereses não é uma
apresentação dos sistemas gnósticos como, de fato, seriam, mas sim uma exposição do
que Irineu entende e quer notificar sobre esses sistemas.
Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferente. Em
primeiro lugar, há as abominações do corpo (...) Em segundo, as
culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões
tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas (...) Finalmente,
os estigmas tribais de raça, nação e região, que podem ser
transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos o
membros de uma família (...) um indivíduo que poderia ter sido
facilmente recebido na relação social quotidiana possui um traço que
pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra, destruindo
a possibilidade de atenção para outros atributos seus(...) (GOFFMAN,
1986: 14) [o grifo é nosso]
E vemos também:
(...) Agora devemos lembrar-nos dele[Marcião] para que saibas que
todos que adulteram de alguma forma a verdade e lesam a doutrina da
110
Igreja são discípulos e seguidores de Simão, o mago, o samaritano(...)
(Adv. haer, I: 27, 4)
Podemos, então, perceber que o discurso de Irineu é uma estratégia de negação
de qualquer pretensão gnóstica de se apresentar como uma maneira legítima de
compreender os mistérios do Cristo, pois, notamos que o bispo cunha um estigma para
os gnósticos que possui elementos do estigma de caráter individual e estigma de região.
Primeiro o bispo acusa os gnósticos de serem portadores de um conhecimento falso e
carregado de práticas gicas, depois filia a todos a Simão, o mago, evidenciando que
os gnósticos são portadores de um mal “original”.
A articulação entre o estigma de magia e o ato de instituição se mostra bastante
interessante para compreendermos como Irineu opera com o binômio legítimo/ilegítimo.
demonstramos, por meio das grades de leitura isotópica, que a magia é uma
ocorrência que, no discurso de Irineu, se relaciona com práticas ilegítimas, ilícitas e
reprováveis, daí o nosso esforço em demonstrar que acusação dos gnósticos como
oficiantes dessa arte configura-se como processo de estigmatização. E temos Irineu, no
tratado, apresentando-se como interlocutor dos gnósticos, porque ele tomando a si a
autoridade de comunicar aos outros o que seria o cristianismo gnóstico. Ora, Irineu
procura instituir, legitimar sua autoridade ao dizer que os gnósticos são o que ele diz,
valendo-se da manipulação da identidade virtual desses cristãos por meios de atributos
pejorativos amplamente reconhecidos pela sociedade romana, sendo a identidade social
virtual o conjunto de expectativas que se faz antes de conhecer alguém ou grupo de
pessoas (GOFFMAN, 1986: 12). E a acusação de magos é a caracterização escolhida
pelo bispo para manipular e deteriorar a identidade social dos gnósticos. Assim, ao dizer
o que eles são Irineu aufere autoridade para si, pois o faz de uma maneira particular,
111
denunciando-os como magos, ou seja, potenciais criminosos e, por conseqüência, não
podem expressar a verdade sobre o Cristo. Se os cristãos gnósticos o são legítimos
portadores da compreensão dos mistérios de Jesus Cristo, e Irineu é quem diz que eles
não o são, logo, o bispo tende a se apresentar como o legítimo intérprete da fé cristã.
Notemos que o movimento que se configura entre estigma e ato de instituição é
uma relação entre perda e ganho de poder, pois alguém se torna, ou parece, mais
legítimo na medida que o estigmatizado se torna, ou parece, mais desacreditado.
Se retomarmos o mesmo trecho do qual Irineu estigmatiza a magia de Simão,
poderemos observar que a euforização do poder de Deus, praticado pelos apóstolos,
frente a disforização da magia de Simão.
Façamos uma comparação de ambos os trechos:
Rede
temática
Elementos
figurativos
Elementos
axiológicos
Rede
temática
Elementos
figurativos
Elementos
axiológicos
Magia (...)Este Simão
fingiu abraçar a fé,
pensando que,
pensando que
também os
apóstolos
realizassem curas
por meio da magia
e não pelo poder de
Deus(...) (Adv.
haer
., I: 23,1)
Práticas
ilegítimas,
ilícitas
Poder de
Deus
(...)Este Simão
fingiu abraçar a fé,
pensando que,
pensando que
também os
apóstolos
realizassem curas
por meio da magia
e não pelo poder de
Deus(...) (Adv.
haer
., I: 23,1)
Prática
legítima
112
Relação com o sobre natural
Caracterização dada por
Irineu
Simão, o mago Praticante de magia
Ilegítimo
Apóstolos Operadores autorizados
do dom de Deus
Legítimos
Pode-se ver, nesses trechos, elementos de detração dos gnósticos tais como o
suposto fingimento de Simão frente à cristã, e o seu desejo por obter curas por meio
da magia; e elementos legitimadores da modalidade eclesiástica, tais como o acesso dos
apóstolos ao mundo sobrenatural, mas esse acesso não é apresentado como magia, mas
sim como o poder de Deus”, evidenciando que, para Irineu, os propósitos gnósticos
para com o mundo divino são de cunho particulares, já os eclesiásticos possuem a força
de um agente espiritual consciente bastante poderoso.
O discurso de Irineu, então, se baseia em estigmatizar para instituir, ganhando
autoridade e legitimidade, na medida que seleciona os estigmas mais eficazes contra os
gnósticos, pois estes, assim, tornar-se-iam desprovidos de autoridade sobre o Cristo.
Desta forma, vemos que o binômio legítimo/ilegítimo é exposto no processo de
estigmatização empreendido por Irineu por meio do estigma/ato de instituição.
O argumento ireneano pode ser assim estruturado: a magia é uma prática
passível de sofrer sanções, pois, em determinados casos, configuraria um crime; o
suposto fundador do gnosticismo é Simão, o mago, que é oficiante de toda sorte de
magia; todos os gnósticos são filiados a ou derivados de Simão, porque todos
reinterpretam os evangelhos; a magia, então, pode ser um estigma, e o bispo é enfático
em mostrar que tal prática o é; os gnósticos, por serem portadores de um estigma não
possuem autoridade, tampouco legitimidade para reivindicarem para si a compreensão
113
dos mistérios de Jesus, mas os eclesiásticos, o sendo tudo que os gnósticos são, se
portariam como e, por conseguinte são, os interlocutores “legítimos” do Cristo.
3.2 – Ecclesia x Gnose: o processo de institucionalização do
cristianismo eclesiástico.
Até o presente momento, procuramos apreender como Irineu de Lião valeu-se de
estigmas para caracterizar as lideranças do gnosticismo cristão. Doravante, tentaremos
compreender se o discurso do bispo se aplica a uma análise mais ampla, isto é, se a
estigmatização se aplica ao gnosticismo como um todo.
expusemos, em linhas gerais, que optamos pelo conceito de ideologia como
sistema cultural, porque tal conceito nos permite tomar a ideologia como uma visão de
mundo partilhada por um dado grupo social, visão esta que seria um gabarito
informativo, no qual repousam o compartilhamento de diversos valores que fundam e
modelam o grupo (GEERTZ, 1978: 188).
Desta forma, podemos inferir que tanto os cristãos eclesiásticos quantos os
cristãos gnósticos possuem, ao menos, uma característica em comum: a crença que
Jesus Cristo é o elemento soteriológico entre o mundo terrenal e o mundo espiritual.
Mas, suas semelhanças começam e terminam neste ponto, porque as ideologias que
norteiam essas modalidades de cristianismo são diferentes.
A característica marcante, como que pudemos perceber, do cristianismo
eclesiástico é sua organização hierarquizada
47
, organização esta que lhe auferiu um
certo poder frente ao cristianismo gnóstico, pois, como dissemos, o poder realiza e
mantém-se na interação contingente de ocorrências numa dada organização
47
Já comentamos no princípio do primeiro capítulo as disposições dessa hierarquização.
114
(LUHMANN, 1985: 82), tendo essas ocorrências os diferentes cargos da organização
como campo de atuação. Assim, a própria estrutura eclesiástica é depositária de uma
certa fonte de poder. Mesmo as diversas comunidades eclesiásticas não possuindo
uniformidade nos seus ritos, partilhavam de uma estrutura organizacional comum e
reconheciam uma certa unidade doutrinária.
Em contrapartida, o cristianismo gnóstico se fundamentava na livre interpretação
dos mistérios do Cristo; cada liderança reinterpretava, ao seu modo, qual seria a
impressão que o messias lhes impingia.
Deste modo, temos um cristianismo preocupado com questões atinentes a
organização e a doutrina e um cristianismo que não se propõe hierárquico, tampouco
doutrinário. Ou seja, eram variantes da cristã que possuíam ideologias distintas sobre
um mesmo acontecimento: o advento do Cristo.
Parece-nos evidente que a obra Adversus haereses se mostra como um
instrumento num processo de disputa, pois cristãos, eclesiásticos e gnósticos, falavam a
respeito de um mesmo salvador. E é neste ponto que nossa análise propõe-se mais
ampla, pois ao observarmos as diferenças ideológicas de gnósticos e eclesiásticos
abrimos espaço para um confronto, um embate. As cosmovisões se encontram num
estado de disputa, e o objeto em questão é, então, a verdade sobre Jesus Cristo.
Frente a esse estado litigioso, ou seja, de quem deterá a autoridade de falar sobre
o Cristo, vemos que o processo de estigmatização encontrado na obra de Irineu tem
horizontes mais amplos, porque o bispo, ao enunciar que todos que “mutilarem” os
evangelhos são seguidores de Simão (Adv. haer, I: 27, 4) não engloba apenas os
gnósticos acusados de magia, mas sim a todos, mesmo os não oficiantes das artes
mágicas, numa nítida ampliação do argumento.
115
Nesse confronto, a estigmatização empreitada por Irineu nos evidencia como a
ideologia da ecclesia se valeu de vários mecanismos para se preponderar ante a
ideologia da gnose. Podemos inferir que Irineu não estigmatiza os gnósticos líderes
gnósticos, mas também cria um estigma sobre a biografia (GOFFMAN, 1986: 77) do
gnosticismo, pois sua construção argumentativa sobre a origem simoniana do
gnosticismo macula qualquer pretensão dessa modalidade cristã se mostrar verossímil.
Desta forma, não nos parece gratuito o esforço do bispo de tentar elencar o máximo de
vertentes gnósticas possível, porque, assim, tudo que se quiser saber sobre esses cristãos
se encontraria na obra, e de maneira bastante estigmatizada.
Notemos, entretanto, que esse embate de ideologias conflitantes realiza-se num
campo de disposições assimétricas de poder, pois as comunidades eclesiásticas
dispunham, dadas suas próprias estruturas, de mais poder sobre as comunidades cristãs
em geral do que as comunidades gnósticas. O enfrentamento tinha de um lado as
diversas vertentes gnósticas e, do outro, o bloco das comunidades gnósticas, para além
de observarmos a própria situação de liderança que os bispos possuíam junto a sua e as
demais comunidades eclesiásticas (FOX, 1994: 164). Desta maneira, a força de uma
obra estigmatizante como a de Irineu tinha horizontes mais amplos do que o descrédito
de algumas lideranças gnósticas.
Cremos que o processo de estigmatização se configura numa disputa, ou num
embate de ideologias, que tem como butim a legitimação de ser a “verdadeira”
representante do Cristo no mundo terrenal. E o esforço do bispo de Lião detrair os
gnósticos traz consigo a pretensão de institucionalidade da variante hierarquizada do
cristianismo.
Ao longo de nossa análise de Adversus haereses pudemos perceber que a
116
ênfase de Irineu reside no esforço de tornar ilegítimos os argumentos gnósticos sobre o
entendimento do advento do Cristo e, para tanto, empreende um processo de
estigmatização, valendo-se de diversos mecanismos e dispositivos retóricos.
Vimos que a variante do cristianismo que Irineu representava dispunha de alguns
meios que lhe garantiram vantagens frente aos gnósticos, sendo a organização
hierárquica a mais evidente. Sabemos que o cristianismo da época do bispo era plural,
pois não havia um centro proeminente. No entanto, ao atentarmos ao discurso de Irineu,
pudemos notar que a estigmatização dos gnósticos conduz a uma compreensão de
requerimento de legitimidade, e esta legitimidade se relaciona com os ritos de
instituição que Bourdieu (1996: 96) propõe. Embora saibamos que se reportar à
instituição do cristianismo no século II pode parecer audacioso e precipitado, podemos,
mesmo assim, encontrar os rudimentos de um processo que terá sua conclusão alguns
séculos adiante.
Ao identificarmos que Irineu se pronuncia como representante de uma variante
do cristianismo que se pretende legítima interlocutora dos mistérios de Jesus Cristo,
podemos inferir que nesse esforço do bispo uma petição de institucionalidade, pois,
como explicitamos, o estigma de mago aplicado aos gnósticos desautoriza-os de falar
sobre o messias.
E, não nos é difícil compreender que a modalidade eclesiástica do cristianismo já
possuía elementos que a posicionavam vantajosamente frente aos gnósticos para um
processo de institucionalização, tais como a organização hierarquizada e a observância
doutrinária, em alguma medida, unificada, e se retomarmos acepção de Luhmann (1985:
11; 82) acerca do poder e do seu meio de atuação, vemos que os eclesiásticos se
encontravam com um potencial institucional considerável. Desta forma, a obra de Irineu
117
de Lião representa não uma disputa filosófico-doutrinária sobre o Cristo, mas
também uma disputa da autoridade de ser o “verdadeiro” cristianismo para o
“verdadeiro” cristão. A estigmatização de Irineu, acusando os gnósticos de magos, não
se restringe apenas a postulados doutrinários, mas também ao comportamento, pois o
bispo procurou mostrar que aqueles que se que pretendem portadores da autoridade
sobre a verdade cristã não possuem expressões que os legitimem. E, por oposição, os
cristãos eclesiásticos, não se comportando como os gnósticos, se mostrariam como os
legítimos detentores dos mistérios do Cristo. Assim, a forma eclesiástica de cristianismo
procura se apresentar como um modelo, um exemplo a ser seguido.
Desse modo, o processo de estigmatização se configura como um processo de
institucionalização, tomando aqui o sentido institucional mais amplo daquele de que
Bourdieu nos fala, porque tal processo procura legitimar e dar autoridade, legitimidade e
autoridade essas que permitirão os líderes cristãos eclesiásticos a ditar o que seus
congregantes devem pensar e como devem agir. O embate de ideologias sobre o
cristianismo foi um confronto entre um cristianismo que possuía o germe institucional e
um cristianismo mais introspectivo, uma disputa na qual um procurava a centralização
da doutrina e do comportamento, enquanto o outro buscava elevação e distanciamento
do mundo terrenal. A obra Adversus Haereses é um interessante documento sobre as
disposições que se encontravam o cristianismo no segundo século, pois representa a
perspectiva hierárquica dessa fé, atacando e negando legitimidade à perspectiva mais
preocupada com os aspectos soteriológicos.
A obra de Irineu é, em si, uma forte investida contra o gnosticismo, pois o
apresenta sob a ótica de um cristão eclesiástico, tendo todos os mecanismos de detração
e desqualificação o cristianismo gnóstico é apresentado com sua identidade manipulada,
118
deteriorada, não se trata de exposição das doutrinas gnósticas, mas sim do gnosticismo
apresentado por um cristão eclesiástico. Assim, a estigmatização dos gnósticos confere
institucionalidade aos eclesiásticos.
119
Conclusão
O esforço que empreendemos nesta dissertação foi o de procurar identificar e
analisar no primeiro livro da obra Adversus Haereses, de Irineu de Lião, um processo de
estigmatização dos cristãos gnósticos, um processo que, também, se configuraria um
processo de institucionalização da modalidade eclesiástica do cristianismo. A princípio,
tomamos a obra como um tratado doutrinário do pensamento cristão eclesiástico, que se
propunha a apresentar e, assim, poder refutar as doutrinas do cristianismo gnóstico. No
entanto, pudemos constatar que, na própria apresentação das doutrinas gnósticas, ou
seja, antes da refutação, o bispo de Lião empreende um processo sistemático de
estigmatização. Deste modo, nossa opção por analisar a obra à luz dos conceitos de
estigma (GOFFMAN, 1986: 12), magia (SILVA, 2003: 228) e ritos de instituição
(BOURDIEU, 1996: 98) intencionava demonstrar como se estruturou essa
estigmatização.
Antes de nos concentrarmos na obra, procuramos caracterizar a fé cris do
século II tendo como horizonte dois momentos que julgamos importantes para se
compreender a vertente cristã que Irineu simbolizava, a modalidade cristã que combatia,
e o lugar de produção de sua obra, isto é, a correspondência entre Plínio e Trajano, no
que tange o tratamento que deveria dispor aos cristãos, e as supostas perseguições aos
cristãos realizadas em 177/178, nas cidades gaulesas de Vienne e Lião (Lyon).
Dessa forma, pudemos perceber e concluir que o período em que se encontrava
Irineu, a fé cristã não possuía grande relevância para a sociedade romana, pois na
correspondência entre Plínio, o jovem, que era governador de província, e o princeps
Trajano (Plínio, Epístolas, X: 96), o primeiro documento oficial em que autoridades
romanas trataram dos cristãos (CHEVITARESE, 2006:170), vimos que Plínio nem
120
sabia nomeá-los, chamando-os “seguidores de Chrestós”.
Outro momento de que também nos valemos para compreender o cristianismo
do século II d.C. foi o das “perseguições” empreendidas pelas autoridades romanas aos
cristãos das Gálias, das quais temos notícias apenas por Eusébio de Cesaréia (Hist.
Eccl., V: I). Observamos que Hubert Jedin (1966: 253) considera que tais perseguições
teriam sido, possivelmente, realizadas durante as festividades do culto imperial, dada a
inobservância por parte de alguns cristãos desse culto. Esse fato se mostrou
especialmente interessante, por ocorrer na região em que Irineu vivia.
Pudemos notar que, nos dois momentos que apresentamos, cristãos são
conduzidos às autoridades de Roma por alguma perturbação da ordem social
estabelecida. Porém, tais distúrbios ocorridos foram produzidos por uma modalidade da
cristã que havia hierarquizado suas estruturas básicas (GEREMEK, 1987: 161), ou
seja, aqueles que se autodenominam pertencentes da assembléia de Deus na terra, ou
seja, a ecclesia. Essa corrente cristã possuía membros que gozavam de níveis distintos
de prestígio e função, distribuídos nos cargos de bispo, presbítero e diáconos, e tal
corrente procurava se apresentar como a única intérprete dos mistérios de Jesus Cristo.
A outra corrente da fé cristã que assinalamos foi o gnosticismo, corrente
composta por diversas variantes, mas que compartilhavam um sistema cosmogônico
comum. Tomamos o gnosticismo como uma expressão de cristã, ultrapassando as
discussões sobre se essa corrente era ou não autenticamente cristã, e adotando a mesma
posição de José Montserrat Torrents (1990: 8), ou seja, que o gnosticismo foi uma
modalidade de cristianismo, e não uma forma heterodoxa de um cristianismo
eclesiástico, pois, se assim o tomássemos, estaríamos aceitando o discurso ireneano
como a “verdadeira” forma de se entender o cristianismo e, assumindo que qualquer
121
outra forma seria “falsa”, o que redundaria numa visão anacrônica, incompatível com a
pesquisa historiográfica.
Vimos que o cristianismo gnóstico possuía várias lideranças e escolas
interpretativas sobre o advento do Cristo, e não possuía uma hierarquia rígida, pois
todos os membros poderiam conduzir os ritos, inclusive as mulheres (PAGELS, 2006:
46).
Percebemos, então, que a existência do cristianismo gnóstico era um
inconveniente para o eclesiastismo, pois a liberdade interpretativa dos gnósticos sobre o
Cristo era uma posição contrária à idéia de se ter uma doutrina unívoca sobre Jesus
Cristo, haja vista a própria obra de Irineu, que é um ataque feroz aos sistemas
explicativos gnósticos.
O próprio contexto da produção de Adversus haereses nos proporcionou uma via
de acesso a esta obra, porque sua redação ocorreu cerca de 180, ou seja, dois anos após
as ditas perseguições, sendo estas empreendidas pelas autoridades imperiais. No
entanto, Irineu, em sua obra, não se reportou às autoridades, mas redigiu um tratado no
qual procurou refutar todas as doutrinas gnósticas.
Tal postura de Irineu, provavelmente, esteve relacionada à indiferença dos
gnósticos de não se importarem em seguir, também, os cultos imperiais e buscarem no
Cristo a salvação, dado que o bispo investia contra um alegado comportamento dos
gnósticos de tomarem-se por perfeitos e salvos e, assim, nada que fizessem no plano
terrenal afetaria suas economias da salvação (Adv. Haer., I: 6, 3).
Pudemos ver que Irineu se valeu de diversas fontes para compor o Adversus
haereses, tendo essas vários graus de fidedignidade para com os escritos gnósticos. No
entanto, consideramos que seu objetivo principal foi o de criar um discurso no qual a
122
coerência residia em sua vontade de estigmatizar os cristãos gnósticos para deslegitimá-
los como representantes da fé cristã, pois Irineu estabeleceu conexões que, como vimos,
não eram procedentes como, por exemplo, a estabelecida entre Simão, o mago e todos
os outros gnósticos, concluindo que todos aqueles que não interpretassem os evangelhos
na perspectiva eclesiástica eram seguidores de Simão (Adv. Haer., I: 6, 3).
Soubemos que a ligação estabelecida entre os cristãos gnósticos do século II e
Simão, o mago foi uma construção de Irineu, porque Simão era membro destacado da
gnose judaica (TORRENTS, 1990: 28), e desenvolvera um sistema doutrinário com
fundamentos bastante distintos dos sistemas do gnosticismo cristão antigo. O
gnosticismo cristão pressupunha um Paraíso a que só se teria acesso com o corpo
espiritual, e, como dissemos, Simão se apresentava como um ser divino no plano
terrenal. Assim, o simonianismo nunca poderia ser associado ao gnosticismo do século
II, pois o fundamento da gnose cristã é o abandono do corpo material, dada a sua origem
degenerada.
Para além da conexão que o bispo estabeleceu entre Simão, o mago e os
gnósticos cristãos vimos, também, que ele dispensou um tratamento particular a Marcos,
pois quando da explicação do sistema fundamental do gnosticismo, Irineu abriu uma
seção que nomeou de “comportamento imoral” para tratar de Marcos, acusando-o de
corruptor de corpos, hábil sedutor e praticante de magia. Observamos que tais
parênteses podem ser tomados como uma tentativa de enfatizar o discurso
estigmatizante aplicado aos gnósticos.
Assim, constatamos que tanto Simão, o mago, quanto Marcos, foram acusados
de oficiantes das artes mágicas, e percebemos que o bispo era peremptório em denunciá-
los de tal ofício. E foi justamente nestas acusações que procuramos demonstrar que
123
Irineu estava estigmatizando o cristianismo gnóstico. Nosso esforço se pautou na busca
pela compreensão de quais eram as implicações que redundavam de uma acusação de
oficiante das artes gicas. Para tanto valemos da proposta conceitual fornecida por
Gilvan Ventura da Silva (2003: 163) sobre a magia, e das implicações de ser um mago
no século II. Percebemos que a prática da magia não se configuraria como um crime,
mas seu uso com intento de vilipendiar outrem era passível de punição, inclusive com a
pena capital, como pôde ser visto na Lex Cornelia. Desta forma, compreendemos que os
cristãos gnósticos foram acusados de uma prática que, senão sempre, ao menos em
algumas situações, era passível de punição.
A prática da magia como Irineu apresentou em sua obra, então, poderia, também,
ser aplicada como estigma, ou seja, aplicação de atributos que levam ou conduzem
alguém ou um grupo ao descrédito (GOFFMAN, 1986: 13). Procuramos, assim,
demonstrar que o bispo de Lião, ao apresentar os sistemas doutrinários gnósticos, não só
não os apresentava fidedignamente, como também os estigmatizava, haja vista que, em
algumas passagens, a magia praticada por Marcos é apresentada como o malum
venenum do qual nos falou Silva (2003: 228), pois esse gnóstico foi acusado de operar
poções para induzir o adultério entre as mulheres (Adv. haer., I: 13, 5) pela
administração de veneno.
Demonstramos, por meio da leitura isotópica proposta por Ciro Cardoso (1997),
que havia uma ligação entre a aplicação de estigmas, empreitada por Irineu, e uma
vontade de legitimar a interpretação eclesiástica sobre o Cristo frente a outras
interpretações, que, neste caso, era a interpretação gnóstica. Para entender tal ligação
utilizamos conjuntamente ao conceito de estigma, o de ritos de instituição, de Pierre
Bourdieu (1996: 98), isto é, intenção de se tornar legítimo, de se apresentar com
124
autoridade sobre algo, que no caso foi sobre a interpretação sobre o Cristo. Assim,
pudemos ver que Irineu expôs os sistemas gnósticos como interpretações sobre o
messias eivados de magia, ou seja, algo que não merecia crédito por ser passível de
sanções legais. Em contrapartida, trouxe para si a autoridade de legítimo intérprete da fé
cristã, pois, segundo Irineu, os eclesiásticos não “praticavam magia”, mas sim possuíam
o “poder de Deus”.
Constatamos, por meio da análise realizada, que no discurso ireneano havia um
binômio estigma/ato de instituição, pois, na medida que Irineu estigmatizava os
gnósticos, acusando-os de praticantes de toda sorte de magia, trazia para si maior
legitimidade enquanto interlocutor dos mistérios do Cristo no mundo terrenal, porque
mostrava aqueles que, sendo criminosos virtuais, eram despossuídos de legitimidade
para interpretar a vida e os desígnios de Jesus Cristo.
Vimos que à luz da teoria sobre o poder de Niklas Luhmann (1985), foi possível
ressaltar algumas vantagens no nível do poder que os cristãos eclesiásticos detinham.
Tomamos o conceito elaborado por Luhmann sobre o poder organizado, no qual seria o
aumento de probabilidades de ocorrências em contextos seletivos e os cargos de uma
dada organização que ordenariam o campo de ação dessas ocorrências (LUHMANN,
1985: 11; 82). A organização eclesiástica havia se hierarquizado e distribuído as
funções na comunidade sob forma de cargos, bispos, presbíteros e diáconos.
Desse modo, ficou claro que os cristãos eclesiásticos detinham mais poder que
os gnósticos, posto que sua organização foi um campo fértil para a estabilização do
exercício do poder no seio das comunidades cristãs. No sentido oposto, observamos que
os cristãos gnósticos não possuíam estruturas rígidas de organização, e cada escola
reinterpretava o sistema doutrinário fundamental. Assim, o gnosticismo, dada sua
125
dispersão em diversas variações, teve menos poder frente aos eclesiásticos e a premissa
da liberdade doutrinária era constitutiva dos cristãos gnósticos.
Ficou patente que a obra de Irineu foi um instrumento de confronto, ou melhor,
de embate, porque constatamos que as ideologias eclesiásticas e gnósticas eram
divergentes na compreensão do Cristo. Entendemos ideologia na acepção de Clifford
Geertz (1978: 188), isto é, como um gabarito comum a um grupo social de
compartilhamento de mundo, uma cosmovisão de que pessoas do mesmo grupo
comungam. Esse conceito foi útil ao nos permitir ver que mesmo que eclesiásticos e
gnósticos tivessem como elemento soteriológico Jesus Cristo, não partilhavam da
mesma ideologia, ou seja, da mesma cosmovisão, e essa diferença ideológica abriu
espaço para um confronto, pois o Adversus haereses foi um instrumento evidente de
agressão à imagem do gnosticismo, porque essa corrente cristã não compreendia o
Cristo como o compreendiam os eclesiásticos.
Buscamos demonstrar que acusação dos gnósticos de magos por Irineu foi o
recurso de invalidação de autoridade empregado para tornar os gnósticos
desacreditáveis no que diz respeito ao Cristo e, como vimos, foi por esses não pensarem
como os cristãos da organização hierarquizada.
Também procuramos demonstrar que o processo de estigmatização era, também,
um processo de institucionalização, pois, como vimos, institucionalizar e se tornar
legítimo, é tornar natural algo de natureza arbitrária, e foi justamente isso que Irineu
empreendeu contra os gnósticos, apresentar o cristianismo eclesiástico legítimo às
custas de um processo de estigmatização do gnosticismo. Por mais que tal assertiva
pareça precipitada, acreditamos que a estigmatização que Irineu realizou foi o início do
processo de institucionalização que a vertente eclesiástica pretendeu.
126
As comunidades eclesiásticas já possuíam um ambiente propício para tal intento:
a organização hierárquica, distribuição de funções por cargos e um certo consenso
acerca das doutrinas a serem seguidas. Não que todas as comunidades estivem
vinculadas a uma única doutrina, mas é consenso entre especialistas que essas
comunidades partilhavam de muitas obras, evidenciando, assim, em relativo consenso
doutrinário.
Os cristãos gnósticos, por sua vez, não se pretendiam fixados numa única
interpretação sobre o Cristo; a tônica do gnosticismo era de procurar algo novo sempre
que se propusesse a buscar a “salvação” e, dessa forma, o Cristo era uma iluminação
para que os gnósticos encontrassem em si a centelha que Acamot depositou nos hílicos,
como rezava o discurso gnóstico. No gnosticismo não havia funções por cargos, o
rodízio de condução dos ritos era premissa sica, pois sendo todos os iniciados
iluminados, então, todos eram apropriados para a condução legítima dos ritos. Se o
cristianismo gnóstico fosse hierárquico, não seria gnosticismo, mas eclesiastismo. O
sentido da existência do gnosticismo o condenou a enfrentar uma variante do
cristianismo que dispunha de mais poder, dada a sua própria hierarquização,
centralização e criação de um discurso unívoco, e, assim, relegá-lo ao esquecimento,
pois, em menos de dois séculos, os eclesiásticos tiveram a simpatia do imperador
Constantino, e trataram de travar contra seus opositores um embate que ultrapassava a
luta argumentativa e retórica, destruindo-os moral e teologicamente, mas, também, por
meio de sua eliminação física.
Procuramos, então, demonstrar que Adversus haereses foi uma obra redigida
para estigmatizar e desacreditar as doutrinas gnósticas e, para tanto, Irineu usou da
alcunha disforizante de mago para o intento. Cremos que nossa análise foi uma proposta
127
de se compreender e interpretar a obra de Irineu fora da perspectiva teológica habitual,
mas é apenas uma dentro das possibilidades que a obra fornece.
128
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