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NATÁLIA RUELA
FEMINISMO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES FEMININAS:
AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras (Mestrado), da
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras, área de concentração:
Estudos Literários.
Orientadora: Prof. Dra.Lúcia Osana Zolin
Maringá
2009
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NATÁLIA RUELA
FEMINISMO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES FEMININAS:
AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras (Mestrado), da
Universidade Estadual de Maringá, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras, área de concentração:
Estudos Literários.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Prof. Dra. Lúcia Osana Zolin
Universidade Estadual de Maringá UEM
____________________________
Prof. Dr.Carlos Magno Santos Gomes
Universidade Federal de Sergipe UFS
_____________________________
Prof. Dr. Adalberto de Oliveira Souza
Universidade Estadual de Maringá - UEM
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Dedico este trabalho
A minha irmã, companheira de todas as horas...meu anjo aqui na Terra, a
meu pai...meu sólido herói, e aos meus alunos, que me levam a sonhar...
AGRADECIMENTOS
À Professora Doutora Orientadora Lúcia Osana Zolin, pela orientação, confiança e
paciência.
A minha família, pelo tudo que representa para mim.
À Patrícia Ayres e Natália Hernandes Carvalho, pelo carinho e companheirismo.
A todos que, com boa intenção, colaboraram, mesmo que de forma indireta, para a
realização deste trabalho.
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar”.
(Antonio Machado)
RESUMO
Essa dissertação investiga a representação das personagens femininas Lorena, Ana
Clara e Lia, protagonistas do romance As Meninas (1973), de Lygia Fagundes
Telles. A representação dos corpos femininos, nesse importante romance dos anos
1970, reporta, aparentemente, a modelos estereotipados, ditados pela ideologia
patriarcal dominante, e perpetuados pelas tecnologias de gênero, como o cinema, a
televisão e a própria literatura. Nesse sentido, convidam a uma aproximação com
modelos perdurados pelos tempos, advindos, desde a antiguidade clássica, nas
figuras das deusas Hera, Atena a Afrodite. No entanto, a opção da escritora pelo
foco narrativo múltiplo possibilita ao/a leitor/a uma maior visão das características
individuais de cada uma dessas figuras femininas. Assim, tais representações
afastam-se das figuras das deusas e dos conceitos tradicionais quando suas
singularidades e seus pensamentos, não vistos pelo outro, são transparecidos por
meio do discurso pessoal e do fluxo de consciência.
Metodologicamente, essa dissertação transita entre o pensamento estruturalista e o
pós-estruturalista, uma vez que se volta para os elementos estruturais que
constituem o romance como o foco narrativo e a tipologia das deusas gregas,
proposta por Pravaz (1981) e, ao mesmo tempo, para o contexto em que ele se
insere, sobretudo no que diz respeito ao pensamento feminista que o marca e o
constitui. A obra foi analisada a partir dos conceitos operatórios fornecidos pela
Teoria crítica feminista. Os resultados apontam para o questionamento dos modelos
prontos e taxativos que predeterminam os lugares e papéis fixos para as mulheres.
O modo de construção de Lorena, Ana Clara e Lia aponta para novas formas de
lidar com a questão do gênero; essas emblemáticas figuras femininas buscam por
lugares diferentes e por mudanças representativas relacionadas ao modo de serem
e estarem na sociedade, mesmo que caiam, no mais das vezes, em situações que
as traem e as colocam impensavelmente no lugar comum a elas determinado pela
tradição patriarcal em que foram criadas.
Palavras-chave: representação, gênero, Lygia Fagundes Telles, As meninas.
ABSTRACT
The representation of the female characters Lorena, Ana Clara and Lia from Lygia
Fagundes Telles‟s novel As Meninas [The Girls] (1973) is analyzed. The
representation of female bodies in the above-mentioned novel of the 1970s
seemingly evokes stereotyped models based on the dominant patriarchal ideology
and reproduced by gender technologies, such as the cinema and television, and
even by literature. In fact, they seem to be models of the goddesses Hera, Athena
and Aphrodite, hailing from classical times and passed on through the centuries.
However, the writer‟s option for multiple points of view makes possible a wider
concept of the female characters‟ individual traits. The characters‟ representations
distance themselves from the goddesses‟ model and from traditional concepts when
their traits and thoughts, unseen by the other, are reflected in personal discourse and
in the stream of consciousness. With regard to methodology, current analysis lies
between structuralism and post-structuralism since it turns back to the structural
elements that foreground the novel such as point of view and the Greek
goddesses‟ typology, suggested by Pravaz (1981) and, at the same time, to the
context in which it inserts itself especially with regard to Feminism in which it is
inscribed and foregrounded. The novel has been investigated through concepts
based on Feminist Critical Theory. Results reveal the problematization of ready-made
and fixed models that predetermine women‟s fixed roles and places. Lorena‟s, Ana
Clara‟s and Lia‟s character construction indicate new methods related to the gender
issue. In fact, the emblematic female models seek different places and significant
changes related to their being in society. This may occur even when they frequently
find themselves in situations which betray them and place them, unaware, in the
place destined by traditional patriarchy in which they were constituted.
Keywords: representation; gender; Lygia Fagundes Telles, As Meninas [The Girls].
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 10
2 A TRAJETÓRIA DA MULHER: DA OPRESSÃO HISTÓRICA AO FEMINISMO
CONTEMPORÊNEO ................................................................................................. 16
2.1 A Opressão Histórica das Mulheres ............................................................. 17
2.2 As Primeiras Vozes do Feminismo .............................................................. 25
2.2.1 O feminismo e o marxismo ............................................................................. 27
2.2.2 Beauvoir e o feminismo radical ..................................................................... 29
2.2.3 Virgínia Woolf: vivendo e escrevendo o feminismo ................................... 31
2.2.4 Kate Millet: a crítica literária feminista em seus primórdios ...................... 33
2.3 O Feminismo Contemporâneo ..................................................................... 35
2.3.1 A questão sexo- gênero no âmbito do feminismo ...................................... 38
2.4 A Representação Social e Literária da Mulher ............................................. 41
2.4.1 A literatura de autoria feminina: uma busca por revisão e por
emancipação .................................................................................................................. 45
2.4.2 Lygia Fagundes Telles e a busca pelo cotidiano real ................................ 48
3 REPRESENTAÇÃO E IDEOLOGIA ................................................................... 53
3.1 O Discurso e o Poder ................................................................................... 57
3.2 O Discurso e o Foco Narrativo ..................................................................... 60
3.2.1 O foco narrativo e sua contribuição na construção das personagens .... 63
3.3 O Corpo como Representação ..................................................................... 66
3.3.1 Hera: a mulher doméstica .............................................................................. 70
3.3.2 Atena: a mulher combativa ............................................................................. 72
3.3.3 Afrodite: a mulher sensual .............................................................................. 74
4 AS DEUSAS E AS MENINAS ............................................................................ 77
4.1 Lorena: uma Hera Mortal ............................................................................. 82
4.2 Ana Clara e a Sensualidade “Afroditiana” .................................................... 88
4.3 Lia e suas Botas de Combate “Atenienses” ................................................. 98
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 103
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 106
10
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Sabemos que a literatura tem, além de um valor artístico e cultural, em alguns
casos, uma ligação bastante estreita com a sociedade em que está inserida. Sendo
assim, ela pode ser vista também como uma grande fonte para a compreensão e
representação histórico-sócio-cultural de um tempo, uma raça, um sexo ou um povo.
Literatura e sociedade fundem-se sem, no entanto, podermos falar de literatura
como documento histórico, haja vista a realidade de na obra literária os elementos
sociais serem ficcionais e apenas representativos da realidade social, servindo
somente como fonte para compreensão de um contexto histórico retratado no texto e
não como recuperação de uma realidade histórica.
Quando voltamos nossos olhares para a literatura e para a história da literatura,
no entanto, podemos atentar, entre outras coisas, para a problemática da exclusão
da literatura de autoria feminina do cânone literário. “No Brasil, como no exterior, a
literatura de autoria feminina, de até bem pouco tempo atrás, não existia
efetivamente, isto é, o aparecia no cânone tradicional” (ZOLIN, 2005, p. 276).
Algumas vozes femininas fizeram-se presentes na literatura universal desde a Idade
Média, como veremos adiante, mas não se trata de uma presença efetiva, tampouco
do início da formação de uma tradição literária de mulheres; comparadas à tradição
literária canônica e masculina, trata-se apenas de manifestações literárias isoladas.
Contudo, no Brasil, seria bastante perigosa a afirmação de que não houve, até a
atualidade, grandes escritoras. O que houve, de fato, foi uma tradição machista, que
perdurou por grande parte da história da crítica literária e simplesmente ignorou os
escritos femininos por julgá-los inferiores e de qualidade duvidosa, pois abordavam
“assuntos de mulher” que, no âmbito social dominado pelo patriarcalismo, sempre
foram inferiorizados.
A partir da década de 1960 (após a revolução cultural), no entanto, houve uma
mudança nesse pensamento tradicional: a crítica feminista ganhou um grande
espaço e passou a lutar pela problematização do cânone tradicional, questionando a
ausência de obras de autoria feminina no cânone literário e a dominação masculina.
Nesse contexto, também, as mulheres escritoras passaram a abordar temáticas
sociais e de gênero de forma mais valente e destemida, como por exemplo, a
representatividade da mulher na sociedade.
11
Na obra As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, publicada primeiramente em
1973, , de forma bastante intrigante, a discussão acerca de figuras femininas do
início da década de1970 - época de ambientação do romance. Aparecem, nesse
contexto, três personalidades femininas bastante divergentes, embora sejam
figurativas de um mesmo momento, no qual a sociedade mundial “ardia” em meio a
revoluções (políticas, ideológicas e sexuais).
Na aludida obra, o fator de maior surpresa e curiosidade é que essa
“multiplicidade” de figuras femininas nos é apresentada a partir de três narradoras-
personagens, com discursos próprios e distintos, que formam o múltiplo foco
narrativo. Esse recurso nos possibilita, entre outros subsídios, transição entre
representações de diferentes crenças, opiniões e posições da mulher na sociedade
da época.
Sendo assim, fica clara a importância de analisar como é feita a representação
das personagens femininas nesse romance e qual a contribuição deste para o
esclarecimento da representação das mulheres no período, considerando, no
entanto, a realidade da obra, que aborda três jovens paulistanas, sob a ótica da
mulher branca e também paulistana, realidade de sua autora, Lygia Fagundes
Telles.
É a partir do ponto de vista de cada uma das personagens, explicitadas pela
ideologia presente em seus discursos, que podemos obter as variadas visões que as
narradoras têm da sociedade da época, dos problemas que as cercam e das visões
que têm de si mesmas e umas das outras.
Ao fazermos a leitura da referida obra, não nos é possível deixar de observar
que há, nas narradoras-personagens, elementos visíveis aos olhos dos outros que
as enquadram em protótipos cristalizados pela ideologia dominante e patriarcal.
Com isso, a representação de seus aspectos externos pode ser relacionada aos
modelos eternizados pelas deusas Hera, Atena e Afrodite, desde a antiguidade
clássica, seguindo os estudos de Pravaz (1981), que aborda esses modelos
femininos na sociedade moderna.
Defendendo que “o modelo de divindades femininas está, notoriamente
presente na mulher moderna de forma que o estudo das deusas proporciona à
mulher conhecer-se”, Pacheco e Coutinho (2006) apontam as relações entre os
modelos femininos da obra As Meninas (1973) observando tais representações sob
a ótica da psicologia junguiana. Também Elódia Xavier (1989) estabelece relações
12
entre as três personagens de Telles (1973) e os protótipos das três deusas gregas,
estabelecido por Pravaz (1981), mostrando as dificuldades das mulheres na
conciliação de todos os papéis precriados para seus modelos femininos taxativos e a
dificuldade de rompimento de tais modelos, que dicotomizam os valores femininos
na sociedade contemporânea.
Tais artigos abordam brevemente a possibilidade de relação entre a aludida
obra e a construção de modelos femininos com a retomada de modelos mitológicos,
abrindo possibilidades de interpretações e questionamento de tais papéis e
suscitando um trabalho mais aprofundado de como “as meninas” de Telles podem
se relacionar com os modelos estabelecidos por Pravaz (1981).
Além disso, uma suposta busca pela emancipação da mulher fica subjacente
à obra, justamente na abordagem dos conflitos de mulheres, que questionam seus
papéis e suas autonomias e que, mesmo assim, por vezes, acabam por entrar em
contradição nessa busca pela emancipação, ao buscar por ideais preestabelecidos e
regras de uma sociedade que segue uma ideologia dominante patriarcal.
O conflito entre o padrão e o transgressor é inevitável na obra, e as narradoras-
personagens mostram-se amplamente representativas da dificuldade encontrada
pela mulher para romper com modelos e assumir sua individualidade, pois acaba
presa, ela mesma, em ações padrões que foram enraizadas em sua criação e tidas
como naturais e inevitáveis, assim como acontece na sociedade extraliterária.
É por essa aproximação com a sociedade real que, por meio da narrativa
ficcional As Meninas, podemos constituir um pequeno panorama da sociedade de
1960 e 1970, pois o “olhar” das três figuras diferentes (ainda que do mesmo sexo)
pode ser tomado como representativo das figuras femininas do já mencionado
período histórico e da já mencionada realidade social e geográfica.
A partir desses esclarecimentos, vê-se que o presente estudo poderá contribuir
significativamente não para o estudo teórico-literário, abordando a questão da
focalização múltipla e da ideologia do discurso, mas, também, como resgate parcial
da representação feminina da sociedade de 1970.
A metodologia para desenvolvimento da análise da representação feminina de
As Meninas (1985) transita entre o pensamento estruturalista e o pós-estruturalista,
uma vez que aborda os elementos estruturais que constituem a narrativa e também
a analisa a partir do contexto em que ela se insere. De um lado, foram abordados
aspectos relacionados à estrutura da narrativa, quando recorremos ao modo como a
13
escritora edificou o foco narrativo do romance; do mesmo modo quando
aproximamos a representação das meninas dos modelos mitológicos das deusas
gregas Hera, Atena e Afrodite. De outro, nossa leitura transcende a organização
estrutural do texto quando nosso olhar crítico transita do texto para o contexto de
forma tal a resgatar no universo literário de Telles o pensamento feminista reinante
na época, bem como o diálogo estabelecido com o patriarcado e seu declínio, com
os papéis tradicionais de gênero e a sua desconstrução, enfim com a tradição e a
ruptura em relação ao modo de a mulher viver na sociedade e ser representada na
ficção.
O pressuposto pós-estruturalista surgiu com o desenvolvimento dos estudos
literários empreendido no decorrer do século XX, quando se passou a buscar por
uma análise de elementos que não aparecem explicitamente no texto e a prezar,
antes de tudo, pelo contexto. É exatamente nessa perspectiva que surgem os
estudos de gênero. Os estudos pós-estruturalistas, na verdade, não podem ser
vistos como um revide ao Estruturalismo, mas, sim, como uma continuação e
complementação deste, pois, de acordo com eles, uma análise pautada apenas nos
elementos estruturais de um texto (defendida pelos estruturalistas) tem sua
significação ausente e incompleta, dada a plurisignificação do signo linguístico.
Os pós-estruturalistas veem a linguagem, no entanto, com menor objetividade
que seus precursores (estruturalistas).
Em lugar de ser uma estrutura bem definida, claramente demarcada,
encerrando unidades simétricas de significantes e significado, ela passa a
assemelhar-se muito mais a uma teia que se estende sem limites, onde
um intercâmbio e circulação constante de elementos, onde nenhum dos
elementos é definível de maneira absoluta e onde tudo está relacionado
com tudo (EAGLETON, 2001, p.140).
Para os pós-estruturalistas o significado não está unido à palavra, mas vai
depender, também, de quem o recebe e do contexto em que o texto é produzido e
recebido. Desse ponto de vista, o indivíduo é formado por estruturas sociológicas,
psicológicas e linguísticas sobre as quais ele não tem nenhum controle, mas que
poderiam ser descobertas por métodos investigatórios. De acordo com tal
pensamento, não podemos dizer que haja uma verdade inerente ao texto, o
significado, dessa forma, está sempre contextualizado.
Sendo assim, observamos que os estudos feministas encontram-se amparados
no Pós-estruturalismo justamente por buscar nos textos traços sociais e linguísticos
que mostram a representatividade da mulher e a implícita abordagem das relações
14
de gênero. É um estudo que observa o que por trás da estrutura do texto, que
preza pelo conteúdo significativo possível de percepção por meio de uma análise
aprofundada, no que diz o contexto da obra.
O Estruturalismo não leva em consideração qualquer relação social, pois, de
acordo com Larousse é a “Teoria lingüística que considera a língua como um
conjunto estruturado onde as relações definem os termos” (apud FAGES 1973,
p.10), por isso, vinculamos nossa pesquisa também ao Pós-estruturalismo, de forma
a poder apreender a maior significância do texto e abordar a representação das
personagens de As Meninas como transgressoras dos modelos apresentados pelas
deusas. Telles compõe, nessa obra, personagens que não são exatas, que
transcendem as estruturas fixas estereotipadas por seus corpos, e que não se
prendem a estruturas binárias de representação.
A pesquisa que nos propomos desenvolver abarca uma primeira fase de
caráter exploratório, que tem como principal finalidade “desenvolver, esclarecer e
modificar conceitos e idéias, tendo em vista a formulação de problemas mais
precisos ou hipóteses pesquisáveis para estudos posteriores” (GIL, 2006, p.43).
É na pesquisa exploratória que nos propomos fazer, primeiramente, o
levantamento bibliográfico acerca da posição da mulher na história, amparados pela
crítica feminista, apontando as primeiras vozes femininas e a questão do gênero,
para apontar as características da literatura de autoria feminina, além de abordar
algumas características de Lygia Fagundes Telles e de suas obras.
Depois de abordar a história da mulher a o pensamento crítico feminista, um
segundo capítulo teórico explora o discurso e o poder, o foco narrativo múltiplo e a
questão da representação e dos corpos femininos estereotipados na sociedade.
Além da pesquisa exploratória, em um terceiro capítulo, nos propomos
desenvolver uma pesquisa descritiva, que visa “descrever com exatidão os fatos e
fenômenos de determinada realidade encontrada” (TRIVIÑOS, 1987, p.40), que é,
aqui, relacionada ao modo como é construída a representação feminina na narrativa
As Meninas, de Lygia Fagundes Telles e como os protótipos femininos formados
pelas deusas Hera, Atena e Afrodite são questionados e as singularidades das
narradoras-personagens são construídas.
Sobre Telles, importante apontar que sua obra “particulariza-se pela
sondagem introspectiva e psicológica de suas personagens, trazendo à tona um
verdadeiro legado de vidas plasmadas à beira do abismo interior” (CASTANHEIRA,
15
2006). A autora aborda temas relacionados à vida humana, marcada muitas vezes
pelas crises de identidade e pelo sentimento de inadequação diante da vida.
Em As Meninas, a crise de identidade aponta a busca pela ruptura do
tradicional, o que evidencia o sentimento de inadequação das personagens frente
aos modelos tradicionais femininos e aos valores dados a cada um desses modelos.
De acordo com Xavier (1998), “Lygia, ao criar personagens desse romance,
três estereótipos da condição feminina, torna visível os limites impostos pela tradição
patriarcal” (p. 50), pois as três personagens protagonistas não conseguem romper
completamente com as tradições em que foram construídas na sociedade.
Esse traço reafirma a dominação masculina, de que fala Bourdieu (2005),
segundo a qual o padrão de comportamento imposto à mulher, mesmo de forma
disfarçada, é o da subserviência aos padrões patriarcais tradicionais. Essa realidade
é vista como violência simbólica, da qual o alvo não consegue escapar, por não
conseguir ou não querer despertar para essa realidade, e com a qual contribui por
meio da perpetuação dos valores impostos.
Mas é exatamente por tratar de temas existenciais e sempre atuais - porque
instransponíveis - que a ficção de Lygia Fagundes Telles mantém-se sempre atual.
Segundo Gens (2006) “a produção da autora é segura, constante, determinada e
reconhecível, em sua busca de mostrar e entender o humano”.
Na obra As Meninas (1985), as personagens Lia, Lorena e Ana Clara,
Buscam respostas para a crise de valores da sociedade moderna, apesar
de permissiva, ou por isso mesmo, a crise dos modelos e a falta de
instrumentos institucionais geram ansiedade e medo, provocando a
angustiante sensação de desajuste (XAVIER, 1998, p. 44)
Essa crise de valores evidenciada na obra aponta as singularidades das
figuras femininas, que são mostradas nessa dissertação em contraste com a
representação estereotipada dos corpos das três meninas.
16
2 A TRAJETÓRIA DA MULHER: DA OPRESSÃO HISTÓRICA AO FEMINISMO
CONTEMPORÊNEO
O objetivo central desse trabalho gira em torno da questão da representação da
mulher na literatura que, tradicionalmente, tem sido feita por meio da repetição de
estereótipos. Esse fato nos permite observar que se trata de uma espécie de
habitus”, que tende a reduplicar a imagem da mulher que se constituiu através dos
tempos.
Tendo isso em vista, julgamos importante para a economia de nossa pesquisa
um passeio pela história das mulheres, enfocado em pontos cruciais, a fim de
obtermos parâmetros para as nossas reflexões no âmbito da literatura.
Somente a compreensão do passado, acreditamos, pode esclarecer de que
modo as classificações prototípicas perduram, quando são contestadas e se
mudanças nos papéis desenvolvidos pelas mulheres no decorrer dos tempos.
Comumente, não vemos na história, enquanto disciplina científica, a
abordagem de temas que envolvam as mulheres e suas participações nos feitos e
períodos. A história das mulheres, escrita no século XIX pelos homens, sempre foi
apresentada à margem da história masculina, considerada universal (COLLING,
2004). A representatividade da mulher é anulada e apenas os “grandes feitos”
bélicos e políticos dos homens são narrados, aparecendo, esporadicamente, um
nome de alguma mulher citado em uma ou duas linhas desses relatos.
Salientando ainda mais o binarismo essencial homem X mulher, que coloca a
mulher como sexo negativo, essas histórias impregnaram outros pares dicotômicos
relacionados aos gêneros que sempre deixam para a mulher a qualidade inferior, de
objeto. Dessa maneira, os pares dicotômicos sujeito X objeto, público X privado,
dominador X dominado, entre outros, conferem os estigmas das relações de gênero
estabelecidas na história e na literatura e como foram se firmando e se contornando
no tempo.
A partir dessas criações de conceitos e valores, as representações dos
gêneros passaram a ser formadoras e ditadoras de comportamentos e figuras,
cabendo à mulher a condição dicotômica da mulher mãe, justiceira e protetora e, por
outro lado, da mulher fonte de pecados e de intrigas, sendo a primeira sempre
privilegiada em seu papel, mesmo que, ainda assim, sempre subjugada.
17
2.1 A Opressão Histórica das Mulheres
Estudos comprovam que, nos primórdios da humanidade, mulheres e homens
viviam em uma sociedade em que não havia a hierarquização dos sexos: tinham
suas particularidades, mas não havia o conceito comum de superioridade do sexo
masculino. As mulheres, é evidente, possuíam características particulares, como o
poder de gerar a vida, e o homem, por sua vez (e não menos importantes) era o
“dono” da força, mas uma característica não anulava a outra e as diferenças os
tornavam iguais.
Talvez, essa igualdade se porque, nas sociedades primitivas, o conceito de
individualismo era inexistente e homens e mulheres pensavam em todo o grupo e,
não apenas, em sua raça, seu gênero e seu poder. As lutas eram em favor da
comunidade e as ânsias individuais não tinham destaque.
Com o passar do tempo os gêneros masculino e feminino foram se
distanciando, procurando por privilégios individualistas. Até mesmo a busca por
alimento passou a ser uma grande competição. Por essas características, é claro, o
ser passou a privilegiar a si mesmo e aos seus iguais. Nesse momento, a força física
do homem tomou lugar de destaque, pois o mais forte foi tido como o mais capaz de
trazer alimentos, de manter viva a espécie, graças a sua resistência e força física.
Com o início da competitividade econômica, tempos depois, essa inicial posição
de superioridade dos homens foi realçada, pois a importância da força passou ainda
a ser mais valorizada e a competitividade passou a ser brutal entre os homens,
sendo as conquistas bélicas - que exigiam luta, força física e acabavam na morte do
mais fraco - a maior busca da nova e “desenvolvida” sociedade. Nesse contexto,
parece óbvio, o ser individual surgiu soberano, pois a luta pela própria vida era a
principal batalha.
Como consequência desse poder de guerra dos homens, todos os demais
trabalhos necessários para a subsistência passaram a ser de responsabilidade das
mulheres, que não eram mais tidas como iguais aos homens, mas, sim, vistas
como seres frágeis que precisavam da força masculina para proteção e continuação
de suas vidas. Os homens, com tal realidade, passaram a ter mais tempo livre para
criações tempo que as mulheres não tinham - e, assim, inventaram ferramentas
para os trabalhos. Dessa forma, embora a agricultura fosse responsabilidade do
sexo feminino, os homens, com o tempo livre que dispunham, criaram instrumentos
18
capazes de trazer o desenvolvimento da atividade agrícola e de ter também nesse
âmbito uma posição de superioridade em relação às mulheres.
Os homens, com isso, passaram a ter o poder lico e agrícola, cabendo ao
sexo oposto apenas a reprodução e, com a percepção de que a reprodução também
dependia do homem (pelo ato sexual), questões econômicas (como a
hereditariedade das terras) passaram a ser importantes e a legitimidade dos filhos
passou a vigorar. Mais uma vez, a mulher foi controlada em seus atos (agora
sexuais), pois o filho fruto de um adultério estaria tomando posse de uma terra que,
por direito, não o pertencia e a mulher, mãe de filhos ilegítimos comprometia a
herança e o direito à terra.
Segundo Alves (2003), o sexo que fosse feito fora do casamento, tal qual o
sexo antes do casamento, desde a antiguidade, eram punidos com a morte da
mulher leviana e, com mais essa repressão, a sociedade adotou de forma intrínseca
o patriarcalismo, ou seja, os homens, que agora eram tidos como seres fortes e
poderosos, fizeram leis que pudessem servir a eles próprios. Dessa forma, com a
instaurada competitividade entre eles, as mulheres, foram convenientemente
controladas e subjugadas no novo sistema.
Esse controle evidenciou-se de forma ainda mais explícita quando a mulher
passou a ser “normalmente“ confinada ao seu lar (domínio privado). Nessa
condição, evidenciada na Grécia Antiga, no entanto, as mulheres aceitavam as
condições de seres frágeis, de mente restrita (sem a capacidade da criação e
invenção), aceitando que o seu papel no mundo estava restrito aos afazeres
domésticos e, também, como bem natural, à maternidade e aos cuidados com os
filhos. O trabalho para o sustento lhes era proibido e apenas como mães e esposas
tinham uma pequena representação social, pois cabia ao homem (e somente a ele)
toda a responsabilidade do domínio público, já que ele deveria competir, criar,
pensar e lutar.
Um grande exemplo do papel feminino na história da Grécia antiga, segundo
Alves (2003) é o fato de que a mulher grega dispunha do mesmo desprestígio que o
escravo: ambos realizavam apenas trabalhos manuais e a única função que divergia
as mulheres desses seres, que eram a representação da mais baixa escala da
sociedade, era a maternidade. Contudo, além de gerar filhos, era responsabilidade
da mulher tudo que fosse necessário para a subsistência do homem, como o plantio
19
e a alimentação. Assim, de acordo com os gregos, os deuses criaram as mulheres
para as funções do lar a o homem para pensar e para lutar.
Dessa forma, a imagem da mulher trabalhadora e mãe estava se formando,
no sentindo em que dela dependiam a geração da vida e sua continuação, cabendo
ao homem lutar e pensar em prol da permanência dessa (características nobres e
que só podiam ser exercidas por um homem) .
No entanto, essa imagem construída e afirmada da mulher mãe e trabalhadora,
desde a Grécia antiga, contava com a figura contraposta da mulher traiçoeira e
pecadora.
A mitologia grega apresenta esse valor quando trata da criação da mulher. De
acordo com essa história fabulosa, os deuses criaram a primeira mulher, Pandora,
como um castigo aos homens, para representar e propagar o mal, a mentira e a
falsidade em uma sociedade onde não havia males e nem mulheres (sendo essas
tidas, evidentemente, como as difusoras de coisas ruins). Assim, Pandora (a mulher)
“representa a animalidade da espécie humana, sua parcela de bestialidade”
(VERNANT, 2000, p. 74). Por essa característica, fica evidente, já desde esse
período, que não cabe à mulher o pensamento, dada a peculiaridade e o objetivo de
sua criação.
Pandora foi uma invenção de barro e água feita com as características das
deusas (que eram até então, segundo a mitologia, as únicas representações
femininas) com o objetivo do castigo. Seguindo esse pensamento, “quando se olha
uma mulher, vê-se Afrodite, Hera, Atena. Ela é de certa maneira a presença do
divino nessa terra, por sua beleza, sedução, por sua kháris. A mulher reúne as
desgraças da vida humana e seu aspecto divino” (VERNANT, 2000, p. 74).
Pensando em tais características que eram tidas pelos gregos como valores
femininos, hoje nos parece nítida a distância apresentada na época entre os homens
e as mulheres e fica também claro que o homem deveria aproximar-se dos saberes
filosóficos enquanto as mulheres não podiam ter acesso a esses por sua “natural”
incapacidade intelectiva, fruto de seu surgimento biológico e natural (do barro).
Atentando para a civilização romana, uma outra sociedade da qual herdamos
valores, (também herdeira dos pensamentos da antiga Grécia), observamos que
essa também pode ser tida como a continuação e fortificação do patriacralismo
iniciado na Grécia. Os romanos, nesse contexto histórico, passarram a contar com o
código legal que instaurou a paterfamílias, que dava ao homem todo poder em
20
relação ás mulheres, os filhos e os escravos (ALVES, 2003). O poder do homem em
relação à mulher era declarado e tinha ainda como grande aliado o Direito, que
legitimou a inferioridade da posição social da mulher romana e a fez uma “natural”
submissa.
É interessante apontar, no entanto, que, nesse contexto, em 195 a.C, as
mulheres protestaram em ato público contra a sua exclusão no uso do transporte
público, pois na sociedade romana até o transporte era um privilégio dado apenas
aos homens. Esse pequeno e corajoso movimento, no entanto, não surtiu qualquer
resultado, que o pensamento patriarcal defendia que não poderia ser dado
qualquer benefício às mulheres, pois elas eram tidas como seres perigosos que
queriam lhes tomar o poder natural.
Contudo, e é de fundamental importância apontarmos, a idéia de sujeição das
mulheres como um destino natural é derrubada por algumas sociedades tribais,
como a Gália (área onde hoje se localiza predominantemente o território francês) e a
Germânia (área geográfica que se estendia da margem ocidental do Reno até uma
fronteira oriental das regiões de floresta das atuais Rússia e Ucrânia), que, no
mesmo período, davam às mulheres vários privilégios em relação à vida social e
pública, sendo essas, por vezes, até mesmo líderes comunitárias ou juízas.
Aqui na América também, mas no século XIV, em algumas tribos, não havia
diferenciação entre a economia doméstica e a economia social e nem a
diferenciação e soberania de um sexo em relação ao outro (ALVES, 2003).
Por essa diferenciação dos papéis femininos nas diferentes sociedades, fica
evidente que os papéis sexuais atribuídos em cada sociedade são de caráter cultural
e, não, natural como defendem as sociedades patriarcais que apontam uma natural
e biológica superioridade do sexo masculino. A mulher não é, assim, biologicamente
fraca, biologicamente dependente e biologicamente incapaz de raciocinar e, sim,
socialmente impossibilitada de exercer tais funções por imposições de caráter
cultural que as afastam de tais esferas e capacidades.
Apesar desses esclarecimentos observados, não podemos deixar de constatar
que houve, na trajetória da mulher, alguns períodos onde sua voz, mesmo que de
forma tímida e isolada, se fez ouvir. Nos primeiros séculos do Período Medieval,
quando ainda não haviam sido revigoradas as leis da Legislação Romana (instituída
no culo XIII), as mulheres haviam conseguido conquistar alguns direitos
garantidos por leis e pelos costumes. Podiam trabalhar, ser donas de posses e
21
chefes de família. A mulher, nesse curto período que antecedeu a volta das
patriarcais leis romanas, passou a ter lugar no espaço público, como na política e na
economia. Essa abertura, no entanto, se deu pelo fato de os homens, nesse
momento, estarem fora da sociedade, que era um período de guerras e, com a
ausência das figuras masculinas que estavam em combates, a figura da mulher era
necessária e conveniente no cenário social e econômico (ALVES, 2003).
Porém, mesmo com a participação das mulheres no mercado de trabalho, não
havia qualquer prestígio por essa função. O prestígio da época relacionava-se com a
posse de terras e com a elevação espiritual, de forma que o conhecimento científico,
as artes e o trabalho não eram considerados valores em si. Esse desprestígio ou
falta de reconhecimento também se dava porque as mulheres não dispunham dos
mesmos direitos que dispunham os homens no cenário social: os salários pagos a
estas eram menores e suas produções não eram valorizadas, além de terem
representação apenas na ausência do marido (por guerra ou morte) e por serem
sempre relativamente independentes, fadadas a restrições que lhes eram atribuídas,
como a sexual e, muitas vezes, educacionais, já que o acesso às universidades para
as mulheres era mínimo (ALVES, 2003).
Um importante acontecimento dessa época para as conquistas femininas foi, no
século XIV, a indicação de Christine de Pisan (1363-1430) como a poeta da corte,
cuja obra foi a primeira conquista de uma mulher por meio da escrita na luta pela
igualdade na educação de meninos e meninas. A escritora é considerada a autora
do primeiro tratado feminista, A Cidade das Mulheres que refutava as idéias que
defendiam a inferioridade do sexo feminino e a diferença penal entre crimes
cometidos por homens e por mulheres. Sem dúvida, a poetisa não escrevia diferente
do que pensava: aos 25 anos Christine, viúva, sustentava os filhos, os irmãos e a
mãe e era economicamente independente por sua profissão de escritora.
No entanto, o que permaneceu na história ocidental não foi a imagem da
mulher participativa e agente na sociedade Medieval e, sim, o referencial da dama
frágil, dócil e sempre à espera de seu cavaleiro, figura esta que foi firmada no
romantismo de cavalaria. Nesse ideal, a imagem da massa de mulheres agentes é
abandonada e oferece-se uma visão distorcida da vida da cortesã, o que faz com
que o referencial simbólico distancie-se da mulher real e da fiel representação de
seu papel (ALVES, 2003).
22
Mas o período que compreende a Idade Média foi ainda pior para as mulheres:
a “caça às bruxas”, sem dúvidas, foi a maior concretização da imagem negativa
atribuída às mulheres até o momento. Durante esse período essencialmente
teocêntrico, a imagem da mulher era atribuída, com recorrência e generalidades, às
figuras de Eva ou Virgem Maria, sendo que a da pecadora, passou a ser a mais
referida e o corpo feminino passou a ser a concretização do mal. A mulher era
estigmatizada de fundadora do pecado, responsável pela queda do homem,
representação que aparece como uma verdade cristã no Antigo Testamento da
bíblia sagrada.
Em Gênesis (3, 6-8), Eva (BÍBLIA SAGRADA, 1989), ao comer o fruto proibido
e oferecê-lo a Adão, descobriu o pecado, libertou a malícia e levou seu companheiro
para o mesmo mundo negativo. Como castigo por tal ato, Deus definiu qual seria o
destino incontestável às mulheres na terra dizendo: “Eu multiplicarei os teus
trabalhos, e os teus partos. Tu em dor parirás teus filhos, e estarás sob o poder de
teu marido e ele te dominarás” (Gen 3, 16). Assim, a igreja católica perpetua, com
base nos escritos do livro para eles sagrado e irrevogável a responsabilidade da
mulher pela queda do homem e sua inferioridade em relação a este como castigo e
imposição divina
Essa imagem da mulher libertadora dos pecados, no entanto, não surgiu com o
cristianismo e a Bíblia, que, desde a Grécia Antiga, Pandora, a primeira figura
feminina que veio a terra, também liberou todos os males quando abriu o vaso de
todos os pecados e destruiu a pureza que vivia entre os homens, únicos seres que
habitavam a pacífica Terra.
Contudo, na Idade Média, o velho mito de Pandora não tinha relevância, e o
que o pensamento e a representação feminina católicos da Idade Média causaram
foi um verdadeiro genocídio contra o sexo feminino, que se alastrou pela Europa e,
também, pelas Américas, mas que, curiosamente, apesar disso, não despertou nos
historiadores maior curiosidade e ânsia de pesquisas. Por outro lado, a perseguição
aos Hebreus, (povo que viveu na região do Oriente Médio a partir do segundo
milênio a.C e que deu origem aos povos semitas como os israelitas, antepassados
históricos e espirituais dos atuais judeus), que também ocorreu nas mesmas
circunstâncias, foi altamente abordada na historiografia universal.
Esse fato nos leva à reflexão sobre o fazer histórico: por que a história se
deteve (e se detém) de forma incisiva no extermínio dos hebreus e pouco aborda o
23
extermínio das bruxas? Como seria a postura dos historiadores se o extermínio
tivesse sido prioritariamente aos bruxos a não às bruxas?
Conjeturas à parte, quando os olhares se voltam para essa perseguição às
“feiticeiras”, o que se evidencia é um claro elemento de luta pela continuação do
homem ao poder, pois as bruxas, supostamente, tinham poderes (conhecimentos)
que não eram comuns ao domínio masculino e, assim, ameaçavam a dominação
exercida por eles, que para cada dez bruxas queimadas contava-se apenas um
bruxo, o que evidencia que era por causa de seu sexo que elas ardiam nas fogueiras
a mando dos inquisitores da Igreja que, por sinal, eram todos do sexo masculino.
Além das imposições e dogmas religiosos, os discursos médico e científico do
período também fortaleciam o tabu sexual instaurado e a mulher era defendida como
um corpo histérico, incompleto (pela ausência do falo) e menos inteligente que o
homem (pelo peso do cérebro). O discurso, por exemplo, de Jean Bodin afirmava
que a mulher era inferior e impura, concretizando e escancarando o pensamento da
desvalorização da mulher, que vigorava na época (ALVES, 2003).
no Renascimento, com a formação dos Estados Nacionais e a centralização
do poder, a mulher passa a ser retirada ainda mais da esfera pública. Nesse
momento, a legislação romana é reintroduzida e, além de todas as privações que
existiam, a mulher fica proibida também do direito de herança, de administrar os
próprios bens e de ter representatividade na Justiça.
Se durante a Idade Média, apesar de perseguida e condenada pela inquisição,
a mulher ainda tinha a possibilidade de atuar em muitas profissões, a partir do
Renascimento este quadro se modifica, com a retirada da figura feminina do cenário
profissional ou, quando permanecia, com o pagamento de salários miseráveis,
ficando restrita sua possibilidade social e econômica. Segundo Alves, “tece-se
também toda uma ideologia de desvalorização da mulher que trabalha” (2003, p.26).
Nesse contexto de exclusão, as mulheres ficaram à mercê das restritas
possibilidades de empregos que tinham e, assim, passaram a exercer atividades
menos qualificadas e de menor remuneração em setores que as aceitavam, como,
por exemplo, as indústrias têxteis que, diante da insuficiência de vagas, levou um
grande contingente de mulheres a trabalhar não em casas de outras pessoas
(como trabalhadoras domésticas).
Nesse mesmo momento de mão de obra barata e desesperada das mulheres, a
sociedade (patriarcal, por essência) mostrava respeito pelas ciências e o
24
conhecimento passou a ter lugar de destaque, mas somente os homens tinham
acessibilidade à formação intelectual e as mulheres eram privadas de profissões
qualificadas, como a medicina, a advocacia e também a obstetrícia que passou a ser
vista como um ramo da ciência, alcançado somente pelos homens e retirando do
cenário as parteiras responsáveis por tal trabalho até então.
Defasando ainda mais a educação das mulheres, as escolas priorizavam a
educação masculina. O número de escolas para meninos era bastante superior ao
destinado ao público feminino (4X1) e as poucas escolas para mulheres ensinavam
basicamente prendas domésticas, não preparando suas alunas para o ensino
superior, já que esse nem lhes era acessível. (ALVES, 2003).
Não é de se estranhar que tenha sido nesse contexto que as mulheres tenham
começado a contestar seus direitos. Em uma sociedade onde o respeito à razão e o
cientificismo estavam sendo priorizados, o sexo feminino não tinha qualquer
possibilidade de inserção enquanto seres dignos e respeitáveis. Assim, no século
XVII, na América, a voz de Ann Hutchinson ecoa pelos ares, pregando contra a
imposta superioridade masculina, defendendo que ambos os sexos eram iguais
perante Deus. Sua voz, no entanto, foi calada em 1637, com condenação ao
banimento.
no século XVIII, as revoluções tomam conta de todo o cenário Mundial: as
mulheres começam a exigir serem ouvidas e iniciam também alguns protestos
revolucionários. Nos Estados Unidos, por ocasião da Declaração de Independência,
Abigail Adams, casada com John Quincy Adams, luta pela igualdade entre os sexos,
usando a expressão da Declaração de Independência em seu favor: “Todos os
Homens foram criados iguais”, abrangendo o conceito homem para ser humano e
buscando a validação desse novo grito. Em resposta, seu próprio marido afirma:
“nós somos suficientemente lúcidos para não abrir mão do nosso sistema masculino”
(apud Alves, 2003, p.31).
Na França, o ambiente era de mudanças radicais, que envolviam não apenas o
sistema político e social (a ascensão da burguesia) como também uma
transformação de mentalidades que advinham da Revolução Francesa (1789) e da
instauração da liberdade capitalista e democrática. O filósofo Rousseau não pode
deixar de ser lembrado como um grande e importante nome desse período, pois sua
filosofia trouxe conceitos e valores novos que culminaram na nova sociedade
ocidental.
25
Para Rousseau, o liberalismo e a democracia eram os temas e as
características centrais e essenciais da nova sociedade, ou seja, a liberdade e a
igualdade dos homens eram as idéias de seus pensamentos. No entanto, para ele,
cabia às mulheres somente o mundo interno, sendo o mundo externo pertencente
aos homens e só a eles:
a educação das mulheres deve ser relacionada ao homem. Agradá-los,
ser-lhes útil, fazer-se amada, educá-los quando jovens, cuidá-los quando
adultos, aconselhá-los, consolá-los, tornar-lhes a vida útil e agradável - o
esses os deveres das mulheres em todos os tempos e o que lhes deve ser
ensinado desde a infância (Rousseau apud Alves, 2003, p.35)
Embora o mundo prezado e defendido por Rousseau e pelos outros filósofos do
período tinha a idéia de liberdade e igualdade, esta só estava relacionada aos
homens, excluindo-se, de forma pertinaz, as mulheres desse novo ideal.
2.2 As Primeiras Vozes do Feminismo
Diante de toda realidade social que cercava às mulheres, não foi possível
permanecerem inertes. Por esse motivo, foi nesse período histórico que o feminismo
começou a tomar forma, reivindicando os direitos dos quais as mulheres eram
privadas e buscando por espaço para elas na sociedade.
Uma destas reivindicações partiu da revolucionária Olympe de Gouges, que
apesar de bastante engajada na luta pelos ideais da revolução francesa, sentiu-se
frustrada com a exclusão das mulheres daquelas conquistas. Em objeção a isso, a
autora publica, em 1791, a obra Os Direitos da Mulher e da Cidadã, onde busca a
extensão, para as mulheres, dos princípios fundamentais do liberalismo, atribuindo
também a elas o direito à vida pública e civil em igualdade com os homens. A
aceitação não poderia ser pior: foi guilhotinada, em 1973, sob a acusação de
esquecimento das virtudes do seu sexo feminino e por ansiar ser um homem de
Estado.
Juntamente com Olympe de Gouges, outras mulheres do período
revolucionário também buscavam a esfera pública e, em 1795, no intuito de podar
essa possibilidade e manter a ordem, um decreto da Assembléia Nacional, confina
as francesas a seus lares, pois, de acordo com tal decreto, as mulheres não podiam
mais andar nas ruas em grupos de mais de cinco mulheres, fechando, dessa forma,
26
formalmente, o acesso da mulher à esfera pública e confinado seus corpos aos
domicílios e ao destino de mulher pregado por Rousseau, que era o de servir ao
homem desde a infância.
Na Inglaterra, Mary Wollstonecraft, que defendia os ideais de Rousseau sobre
os direitos naturais dos indivíduos, escreveu, em 1792, Defesa dos Direitos das
Mulheres, onde discordou do filósofo quanto à inferioridade da mulher, que, para
ela, não diferenças “naturais” entre a inteligência de meninos e meninas e, sim,
educacionais. Sua voz também foi reprimida e sua atitude julgada petulante e
descabida.
Contudo, vemos que o século XVIII não foi marcado apenas pela revolução
industrial e por mudança de sistemas, mas também pelo aparecimento mais
recorrente de vozes femininas que questionavam a consagrada e imposta
inferioridade da mulher no campo do conhecimento, do trabalho e de qualquer
esfera que não fosse o lar.
No século XIX, com a consolidação do capitalismo, o sistema de produção
manufatureira, fabril e tecnológico, com a introdução mais freqüente de maquinários,
as mulheres foram lentamente sendo introduzidas no mercado de trabalho, com
jornadas de trabalho de até dezoito horas, como a dos homens, e salários bastante
inferiores aos pagos para eles. Como argumento para o baixo salário havia a idéia
de que o homem é o chefe de família, que deve sustentar o lar e,
consequentemente, precisa (e merece) ganhar mais, que toda mulher deveria ter
quem a pudesse manter economicamente (um marido).
Em conseqüência dessa inserção da mulher no mercado e da baixa do nível
salarial de todos, o movimento de operários passou a lutar pela retirada da mulher
do espaço público, começando por privá-las dos sindicatos recém-formados. Por tal
fato, líderes operárias como as francesas Flora Tristan e Jeanne Deroin lutavam
para mostrar que a as mulheres precisavam se educar, para que pudessem ter força
de luta e para que despertassem para sua real situação de subordinação total,
acreditando, dessa forma, elas também, que a repressão das mulheres se dava com
a participação e apoio das próprias, por ignorância e alienação.
Nesse momento, o movimento feminista começou por delinear-se como um
movimento essencialmente esquerdista, pois suas lutas eram não contra a
condição inferiorizada da mulher, mas, também, pela luta de direitos dos operários.
Flora Tristan, em uma carta dirigida ao líder socialista da época, afirma ter contra si
27
todo o sistema: “Os homens, porque reivindico a emancipação das mulheres; os
proprietários, porque reivindico a emancipação do proletariado” (Apud Alves, p.40), o
que evidencia não a sua consciência como mulher, mas sua consciência
enquanto ser social.
Nesse contexto, os movimentos reivindicatórios e revolucionários surgidos no
século XIX parecem ter os mesmos objetivos do movimento feminista que, assim
como ele, lutam pelo direito de igualdade.
Com tantas desavenças e evidências, podemos ver que o movimento feminista
e suas integrantes logo puderam notar que o Liberalismo buscado pela sociedade do
século XIX não traria às mulheres também os seus direitos enquanto tais: era uma
luta em nome do patriarcalismo, da qual as mulheres podiam participar para dar a
força, mas nunca teriam força suficiente para usufruir as conquistas, que seriam
conquistas de uma sociedade patriarcal, que não as deixariam ter o espaço por elas
buscado.
No Brasil oitocentista, o movimento feminista esteve ao lado dos movimentos
que lutavam pela abolição dos escravos a pela proclamação da República, tanto que
a republicana e abolicionista Nísia Floresta Brasileira Augusta (pseudônimo de
Dionísia Gonçalves Pinto) escreveu, em 1832, o primeiro livro de teoria feminista no
Brasil: Direitos das mulheres e injustiças dos homens. Nessa obra, colocou em
discussão a representatividade e o espaço da mulher no mercado de trabalho, na
educação e na sociedade como um todo, defendendo a idéia de que a mulher é um
ser inteligente e capaz e, portanto, digno de respeito.
Apesar da abertura de voz de Nísia, nesse contexto, não houve outras
manifestações no mesmo período no Brasil, mostrado que a mulher do período não
mostrava ainda a sua busca por subjetificação e que o movimento feminista quase
inexistia no contexto nacional da época. (ZOLIN, 2005
a).
2.2.1 O feminismo e o marxismo
O movimento feminista esteve sempre relacionado a revoluções e ao
movimento dos trabalhadores e, por isso, muitas vezes é ligado ao marxismo. No
ano de 1849, enquanto Marx escrevia o Manifesto comunista, que denunciava a
exploração do trabalhador, algumas mulheres, como Susan B. Anthony, Lucy Stone
28
e Elizabeth Cady Stanton lutavam pelo voto das mulheres e escreviam, nos Estados
Unidos, o primeiro Manifesto feminista, que marcou o início do movimento sufragista.
Apesar de tais aproximações, a luta dos homens contra o sistema de classes
sempre pareceu mais fácil que a milenar e, por vezes, silenciosa luta da mulher
contra o patriarcalismo, que, para elas, a luta era dupla: lutavam por empregos,
por direitos iguais, por diminuição da jornada de trabalho (como os homens e com
eles), mas lutavam também pela queda do sistema patriarcal e machista, pela
inserção e direito da mulher na vida pública.
Com a divisão classista da sociedade no final do século XVIII, as mulheres
passaram a ser divididas em burguesas ou proletárias, o que diminuía ainda mais a
sua possibilidade de emancipação, que agora eram subjugadas ao sistema
capitalista e ao sistema patriarcal, ficando, dessa forma, quando proletárias,
duplamente inferiorizadas.
O socialismo, com isso, parecia uma forma de solucionar todo o problema, pois,
de acordo com a teoria de Marx, Engels e Bebel em Womem under socialism (1904),
haveria, nesse novo sistema proposto, igualdade entre homens e mulheres e os
direitos tão sonhados pelas mulheres seriam conquistados e preservados.
O marxismo, dessa forma, defendia que, junto à sociedade de classes, à
propriedade privada e ao estado, a família burguesa nem sempre existiu, e que a
opressão das mulheres é tão velha quanto a divisão da sociedade em classes. Logo,
sua abolição seria dependente da abolição das classes, isto é, da revolução
socialista. Acreditavam que, apenas com o fim da sociedade de classes, a mulher
seria, de fato, livre e não teria posição de subordinação em relação aos homens.
Foi em decorrência desse ideal que surgiu o feminismo marxista ou o
feminismo socialista, que procurava apontar o fato de os papeis desenvolvidos pelas
mulheres na sociedade, privados dos espaços públicos, eram produzidos pelo
sistema e pelos homens e, assim, poderiam ser modificados, contrariando e
questionando também o feminismo liberal, que lhes parecia não uma luta por
libertação, mas, sim, uma reação que não traria grandes conquistas e mudanças,
que continuariam subjugadas à esfera do lar e continuariam inferiorizadas em seus
papéis sociais (NYE, 1988).
No entanto, o que se notou com os anos foi que o ideal marxista não se
importava de forma particular com a condição da mulher. Quando exercido o novo
sistema, em sociedades que adotaram uma política socialista, o novo sistema
29
continuou a excluir e a ignorar os problemas decorrentes de discriminação e da
exclusão das mulheres.
Apesar de ter-se mostrado carente para a luta feminista, o marxismo não pode
de forma alguma ser considerado alheio e supérfluo para a luta pelas mulheres.
Partindo do princípio de que a emancipação da mulher está associada à construção
de uma nova sociedade, compreendemos que o marxismo é indispensável para a
luta feminista. Afinal, ele possibilita desvelar as contradições desta sociedade,
instrumentalizando a classe trabalhadora para lutar por sua emancipação, pois nos
ajuda a entender a natureza íntima do capitalismo, a lógica de seu desenvolvimento
e também desperta para a emancipação do ser humano e de sua condição de ser
reprimido que pode buscar por subjetificação.
2.2.2 Beauvoir e o feminismo radical
Partindo das teorias de Marx, Simone de Beauvoir escreve e desenvolve a sua
obra: deuxième sexe (1949), publicado em português como O Segundo Sexo, em
1980, em que faz um estudo das relações existenciais e psicológicas de mulher
surgidas das estruturas sociais onde se encontra.
De acordo com Beauvoir, o marxismo não explicou o sexismo de forma
relevante e, por isso, não teve como pensar ou agir em prol da libertação das
mulheres. É por isso que, para a filósofa:
Uma feminista, quer ela se autodenomine esquerdista ou não, é uma
esquerdista por definição. Ela está lutando por uma igualdade plena, pelo
direito de ser tão importante, tão relevante, quanto qualquer homem. Por
isso, incorporada em sua revolta pela igualdade de gêneros está a
reivindicação pela igualdade de classes. As feministas são, portanto,
esquerdistas genuínas. De fato, elas estão à esquerda do que nós
chamamos tradicionalmente de esquerda política.
Beauvoir (1980), em seus estudos, mostrou-se fortemente determinada a
desnudar problemas que envolvessem a esfera do ser feminino, apontando o
destino de mulher em “ser mulher” que difere do “ser homem” na medida em que os
espaços e os papéis destinados a cada um são distintos e tidos como natural,
porque aceitos sem questionamento.
A teórica busca explicar a situação da mulher de uma perspectiva
existencialista, mostrando uma espécie de resposta ao marxismo, já que, para ela, a
teoria socialista não teve a preocupação que devia com um programa para a
30
libertação das mulheres e não poderia mudar as relações de poder existentes entre
os sexos em uma sociedade na qual a própria mulher se via como o Outro.
Beauvoir afirma que a própria mulher acredita, segue e vive o seu “destino de
mulher”. Para a filósofa, não havia como mudar todo esse pensamento arraigado
apenas com a mudança do sistema político e econômico, que em todos eles o
patriarcado é a constante universal.
De acordo com essa “natural” outremização da mulher, a aceitação do ser
feminino de sua condição de inferiorizada frente ao homem, assim como um escravo
obedece ao seu senhor. Segundo Beauvoir, toda manifestação de poder exige o
consentimento do oprimido e, para ela, a condição de inferiorizada e subjugada da
mulher só se dá pela aceitação dessa condição.
Defendendo tal princípio, a pensadora sustenta os argumentos da não
existência de uma essência feminina, que aponte a marginalidade da mulher.
Acredita, sim, em uma situação de mulher, que se pela maternidade, que a priva
de muitas tarefas em favor do bee a impossibilita de algumas tarefas que são
consideradas grandiosas na sociedade. Dessa forma, defende que a mulher é
colocada na condição de representação do Outro, do inferior, que não é a
maternidade que a glória a um humano na nossa sociedade ocidental e que a
mulher é vista comumente apenas por esse prisma, como um ser gerador.
Assim, seguindo os pensamentos de seu companheiro Sartre (L’être et le
néant.-1943), Beauvoir parte do pressuposto de que o sujeito humano deve ser livre,
questionando, assim, o porquê de a mulher se submeter à opressão sem
controvertê-las. O ser humano é essencialmente livre, mas pode fingir não -lo. As
mulheres são estimuladas a agirem com tal falso aprisionamento, que sua
fraqueza é estimulada e aceitam a opressão a elas destinada sem discussões,
tornando-se, elas mesmas, cúmplices de sua própria condição de escrava.
Apesar de idéias esclarecedoras, a teoria de Beauvoir foi tida pelo feminismo
posterior como excessivamente radical, que, partindo dos pressupostos antes
esclarecidos, a autora defendia que cabia às mulheres reverter o quadro em que se
encontravam, passando estas da condição de oprimidas para a de opressoras. O
caminho para tal era a mulher não cair na armadilha do casamento e da
maternidade, já que esses eram os principais pontos que as colocavam na esfera do
lar e da família e as privava do lugar no mundo em meio aos homens.
31
Seja como for, a pensadora francesa é considerada a lançadora do feminismo
radical para o qual
o patriarcado é a constante universal em todos os sistemas políticos e
econômicos; que o sexismo data dos inícios da história; que a sociedade é
um repertório de manobras nas quais os sujeitos masculinos firmam o
poder sobre objetos femininos[...] e a aquiescência das mulheres é uma
indisposição de má de enfrentar sua própria falta de poder (NYE, 1988,
p.119 e 130)
Assim, as bases levantadas por Beauvoir, foram criticadas posteriormente por
críticas como as de Elisabeth Huguenin (A mulher em busca de sua alma, 1948),
que buscavam a diferenciação entre os sexos e afirmavam que a estudiosa
francesa, ao buscar pela igualdade entre homens e mulheres masculinizava as
segundas, tornando-as frias e competitivas.
Além disso, os escritos de Beauvoir explicitavam uma suposta vitimização das
mulheres, colocando-as sempre como seres objetificados e oprimidos. As
tendências posteriores do feminismo, por outro lado, foram abandonando,
paulatinamente, os discursos de vitimização, pois se passou a enfatizar a diferença
entre os sexos, buscando a igualdade nos direitos legais e a quebra de preconceitos
e estereótipos firmados pela generalização.
2.2.3 Virgínia Woolf: vivendo e escrevendo o feminismo
Em meio aos nomes que marcaram o início da preocupação com a mulher no
universo das letras, do mesmo modo como vinha acontecendo em relação a sua
condição social em geral, encontra-se a voz pioneira da romancista e ensaísta
Virgínia Woolf (1882-1941). Até hoje, a escritora é tida como símbolo da coragem da
mulher escritora, por ter feito críticas feministas em um cenário repleto de
discriminações contra seu sexo. Além disso, utilizou em suas obras técnicas
narrativas como o monólogo interior e o fluxo de consciência, que eram tão
contrários aos recursos vigentes na época, no qual imperava o formalismo da Era
Vitoriana.
Woolf intencionava ser lida tanto por homens quanto por mulheres, no entanto
abordava interesses bem específicos das mulheres, mesmo que o fizesse de acordo
com o regime patriarcal vigente, seguindo padrões predeterminados por escritores
32
homens. Mesmo assim, em seu tempo, a escritora foi excluída do universo literário,
já que atacou a dominação masculina e o pensamento tradicional.
Todavia, em 1970, sua obra passou a ser reavaliada e apreciada, que nesse
novo momento o impulso feminista era grande e as temáticas da autora tornaram-se
interessantes e cabíveis.
Em Um teto todo seu (1985)- (A Room of One’Own, de 1928), a escritora atenta
para a escrita feminina e suas condições. Segundo ela, a dependência da filha pelo
pai para sua subsistência acentuava e determinava a subordinação feminina. E,
como quase sempre as mulheres eram impossibilitadas do acesso ao estudo, a
produção da obra literária de qualidade ficava restrita aos homens, que tinham
acesso a melhor educação. De acordo com Woolf, as mulheres escritoras deveriam
receber um salário que as possibilitasse a independência econômica de seus
homens (pai ou marido) para poder alimentar ela mesma sua livre expressão, sem
que essa fosse monitorada por alguém.
Seguindo tal raciocínio, é interessante o apontamento que a autora faz quanto
a Shakespeare: se o grande poeta tivesse tido uma irmã escritora, ela teria
enlouquecido, pois o acesso à educação dela e do irmão seriam muito diferentes e a
irmã não teria tido as mesmas experiências e possibilidades. Talvez a irmã do poeta
teria sido até mesmo proibida de escrever e forçada a casar-se com um homem de
bens. O mesmo acontecia com as mulheres dos séculos posteriores a Shakespeare:
as do século XIX que pretendessem trabalhar com a arte também teriam de suportar
a discriminação e a falta de possibilidades educacionais.
Outra questão abordada por Virgínia Woolf se refere às características da
produção literária feminina, marcada pelo ressentimento, pelo ódio e pela amargura
em relação aos homens, que lhes privavam do direito de escrever, de agir e de ser
atuante na sociedade.
Dessa forma, para a ensaísta do culo XX, essa revolta que solapava as
mulheres escritoras até então era o principal empecilho para uma literatura de
autoria feminina realmente valorativa, o que, no entanto, não lhes tirava o valor,
que tais obras “não são frutos isolados e solitários; são o resultado de muitos anos
de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a
experiência da massa está por trás da voz isolada“ (WOOLF, 1985, p.87).
Woolf defendia que, até então (1929), a mulher utilizava a escrita como um
método de expressão pessoal, mas que estava aos poucos começando a encarar a
33
escrita como uma arte e que essa característica tendia a intensificar-se no futuro.
Acreditava que não se pode julgar as obras literárias com base no sexo de quem a
produziu, pois há uma grande perda com a divisão dos sexos; o natural é que ambos
colaborem entre si.
A escritora busca ressaltar as diferenças entre os sexos, pois a igualdade
deveria estar na situação favorável ao trabalho e à escrita, que eram favoráveis aos
homens. Assim, com os mesmos privilégios e possibilidades dos homens, a mulher
poderia se estabelecer enquanto tal, sem amarguras, rancores e ensinos precários
que interferissem na qualidade de suas produções.
2.2.4 Kate Millet: a crítica literária feminista em seus primórdios
É inegável e explicito o aumento da atenção voltada para os assuntos a
respeito das mulheres nos anos 1960 e 1970 e, também, inegável e explicita é a
relação desse fato com o movimento feminista.
Nesse período, o movimento feminista fez-se ouvir de forma ferrenha e o
questionamento da desigualdade entre os sexos passou a ser amplamente
abordado, por isso, podemos dizer que as feministas desse período prepararam o
caminho e abriram as portas para a concretização da crítica literária feminista.
No referido contexto, a teoria feminista propriamente dita ganhou terreno e fez-
se ouvir, lutando e destruindo o mito da natural inferioridade da mulher, tal como as
causas da sua exclusão na história. Essa conquista abrangeu o âmbito literário e,
passou a lutar pela visibilidade e respeitabilidade da mulher escritora: um sujeito
produtor de conhecimentos e de discursos qualitativos, capaz de ler e escrever tal
qual os homens.
Nesse âmbito literário e crítico, em 1970, uma importante publicação força,
voz e sustentação para as idéias de então: a tese de doutorado de Kate Millet
Sexual Politics. Como o próprio título sugere, a obra apresenta preocupações
políticas sobre a posição secundária ocupada pela mulher nos romances de autoria
masculina, ao qual as mulheres se submetem, desde muito cedo, representando um
rígido sistema de papéis sexuais predeterminados.
Assim como outras feministas de sua contemporaneidade, Millet discorda de
estudiosos sociais que entendem os papeis desenvolvidos e vividos pelas mulheres
34
como naturais de sua natureza humana. Para Millet (1970), assim como para Sartre
(1943) e Beauvoir (1949), a dominação masculina se pelo consentimento
feminino com a posição de subordinação. Para ela, as mulheres consentem tal
sistema por meio da aceitação de instituições de socialização, como a família, de
leis que punem o aborto, que afirmam e defendem uma suposta superioridade
masculina.
Segundo Millet (1970), a predefinição de papéis para a mulher constrói a
repressão feminina, que reforça a dominação do homem sobre a mulher: é o que ela
denomina “política sexual”. De acordo com as regras sociais, as mulheres aprendem
a ser doces, passivas, meigas, frágeis, dependentes e obedientes desde o
nascimento. Enquanto os meninos aprendem a competir, a agir e a mandar desde
pequeninos, reforçando, assim, os papéis culturalmente preestabelecidos para cada
sexo, como se fossem papeis naturais e inerentes aos seres humanos.
Essa imposição de papéis e de ideologias afeta diretamente a literatura, que
representam mulheres como seres frágeis, emocionais, sem aptidões científicas e
intelectivas, que o papel da racionalidade e da ação acaba por ser representado
freqüentemente por personagens masculinas.
Outra questão importantíssima abordada por Millet refere-se às leitoras.
Segundo ela, as leitoras mulheres, incondicionalmente, lêem as obras sob uma ótica
masculina (de quem as escreveu) e acabam por adotar também o posicionamento
exposto pelo autor. Nesse sentido, a crítica literária feminista deve trabalhar, dentre
tantas outras coisas, de forma a apontar como algumas obras canônicas são
formadoras de figuras taxativas e como são ditadoras de regras que favorecem ao
homem e seu sistema de dominação.
Hoje, os estudos de Millet são considerados como o ramo mais tradicional da
crítica feminista, que se interessa em desnudar e analisar, por exemplo, as
representações femininas em obras de autoria masculina. A tendência
contemporânea do feminismo crítico é se debruçar sobre escritoras e em como as
leitoras podem lidar com as temáticas e pressuposições implícitas de uma obra
literária.
Millet, como precursora de tal atitude, ao analisar textos de escritores, pôde
notar que esses contavam previamente com um tipo de reação das mulheres, que,
quase sempre, apontavam para a submissão feminina e firmação de padrões
patriarcais.
35
2.3 O Feminismo Contemporâneo
Alicerçado no senso comum, o feminismo aparece conceituado como
movimento de igualdade entre os sexos (BUENO, 2000), mas será mesmo que
somente essa conceituação pode englobar todo o movimento feminista sem diminuí-
lo a uma luta de minorias ressentidas em busca de visibilidade?
Para Hahner, “feminismo abarcará todos os aspectos da emancipação das
mulheres, incluirá as lutas coletivas conscientemente planejadas para elevar-lhes
social, econômica ou politicamente o status, e irá concernir à consciência da
mulher como ser humano e como ser social” (2003, p.25).
O feminismo, portanto, não anseia pela homogeneização os sexos, mas pela
igualdade de condições, direito e prestígio social entre homens e mulheres.
De acordo com Alves
O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica
em que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a
modelos hierarquizados, e onde as qualidades „femininas‟ ou „masculinas‟
sejam atributos do ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a
emoção, a ternura possam aflorar sem constrangimentos e serem
vivenciadas, nas mulheres, como atributos não desvalorizados. Que as
diferenças entre os sexos não se traduzam em relações de poder que
permeiam a vida de homens e mulheres em todas as suas dimensões: no
trabalho, na participação política, na esfera familiar, etc. (2005, p. 9).
Com esses ideais, o movimento feminista, mesmo tendo em cada sociedade
características peculiares de acordo com raça, credo e classe, tece reflexões e
busca r em prática seus ideais, defendendo, que a hierarquia sexual não está
relacionada a uma fatalidade biológica, mas, sim, a um processo histórico e cultural
que arraiga estereótipos e julgamentos. Por não ser natural, pode ser transformada
e anulada, pelo questionamento da ideologia dominante paternalista e do
rompimento de modelos pré-fabricados de personalidades e atitudes, aos quais os
homens são, forçosamente, adaptáveis.
Esse movimento, no entanto, podemos dizer que se foi formando com o tempo
e com a firmação do paternalismo, que, apesar de suas diferenças nas variadas
realidades sociais, luta contra a opressão das mulheres, buscando por uma
transformação social, econômica, política e ideológica da sociedade e pela
desconstrução de protótipos e de valores.
Com valores que muitas vezes se fundem, as diferentes correntes feministas e
crítico-feministas existentes possuem meios e características particulares para a
36
análise e objetivos buscados, sem deixar, no entanto, todas elas, de buscar a
quebra de modelos e a baixa da formada superioridade masculina:
Se para algumas as teorizações marxistas representarão uma referência
fundamental, para outras as perspectivas construídas a partir da
Psicanálise poderão parecer mais produtivas. Haverá também aquelas que
afirmarão a impossibilidade de ancorar tais análises em quadros teóricos
montados sobre uma lógica androcêntrica e que buscarão produzir
explicações e teorias propriamente feministas, originando o “feminismo
radical. (LOURO, 1997, p. 20)
Todos esses feminismos, no entanto, se unem quando atentam para o fato de
que a argumentação da biológica e natural superioridade masculina mascara valores
formados no intuito de “justificar” a desigualdade entre homens e mulheres.
Hoje, o olhar da crítica feminista se volta de forma ferrenha para a própria
identidade da mulher, sendo uma superação do momento de protestos e de luta
por visibilidade. Pode-se já, no presente, falar-se em identidades femininas e assim,
consequentemente, em representações femininas.
A crítica apontou, desnaturalizando o discurso masculino, como a família, o
direito, o discurso científico e da igreja contribuíram na imposição das figuras
femininas e dos preconceitos formados em torno da mulher e desconectou “a
associação estabelecida entre a origem e finalidade, que justificava a definição de
uma suposta essência feminina a partir de uma missão para a maternidade” (RAGO,
2004, p. 33).
No feminismo contemporâneo não aparecem com frequência figuras que abrem
mão do corpo feminino na intenção de igualar-se aos homens, como no início do
movimento, onde muitas integrantes do movimento trajavam-se como homens e
apropriavam-se do modo masculino de exisncia, ou vestiam-se de forma a se opor
à figura conservadora da mãe, tão enaltecida pela sociedade que segue os
costumes patriarcais. Agora, “no Brasil, principalmente, percebe-se uma mutação
nessas atitudes e a busca de novos lugares para o feminino” (RAGO, 2004, p. 34).
A feminista de hoje sente a emergência da busca de “novas formas de
feminilidade, de novas concepções de sexualização” (RAGO, 2004, p. 34). A mulher
sedutora, erotizada, sensual, que se opõe a santificada ganha espaço entre as
mulheres que buscam por emancipação e passam a invadir o imaginário coletivo,
adquirindo novos valores.
37
Assim, para Rago (2004), pode-se notar certa erotização no feminismo. A mãe
de hoje liga-se à mulher independente que busca além de tudo por prazer sexual e
pessoal
Muito importante, no entanto, é o fato apresentado por Badinter, em Rumo
equivocado (2005) acerca de algumas características do feminismo na
contemporaneidade. Ela atenta para o fato de o feminismo contemporâneo abordar
frequentemente o tema da opressão feminina, colocando a mulher como tima de
sua condição, afirmando que a maternidade e o trabalho a colocam numa dupla
jornada de trabalho, e o fingimento da impureza sexual que lhe é atribuída.
Ao tratar de tais aspectos, o movimento feminista, de acordo com Badinter
(2005), tem perdido o enfoque de sua principal luta, que é pela igualdade entre os
sexos, colocando no lugar de tal ideal a proposta de reinscrever homens e mulheres
dentro da ideologia tradicional, marcado pela violência e pelo discurso da
vitimização: “Entre a mulher-criança (a vítima indefesa) e a mulher mãe (em nome
da necessidade da paridade), que lugar resta para o ideal de mulher livre com que
tanto sonhamos? (BADINTER, 2005, p. 150).
Para a estudiosa, a condição da liberdade feminina é a desconstrução do
conceito de natureza, que possibilita o pensamento culturalista e permite ver que o
sexo do indivíduo o lhe pode determinar o destino, ou seja, permite observar a
construção cultural dos gêneros e não cair em fatalismos biológicos.
Vemos, assim, que várias novas perspectivas têm surgido do pensamento
feminista e da crítica, sendo alguns, por vezes, um pouco extremistas e suas buscas
e, outros, retrógrados, no sentido em que abordam temas superados na
sociedade atual.
Por tais peculiaridades é que, mesmo em literatura, temos que levar em
consideração a existência de “feminismos” e não de um movimento homogêneo,
que cada corrente defende uma posição e que dentro de cada corrente, cada
estudiosa também possui suas particularidades. Ainda assim, à crítica literária
acaba sendo comum a busca pela “abolição de estereótipos socioculturais, alguns
considerados naturais e imutáveis, bem como denunciar os preconceitos existentes
num texto e apreender as imagens e símbolos associados ao signo mulher”
(DUARTE, 1990, p.76).
38
2.3.1 A questão sexo - gênero no âmbito do feminismo
Acreditando que os estudos culturais, nas cadas de 1960 e 1970, foram
indispensáveis para o desenvolvimento dos estudos de ciências humanas e,
consequentemente, da literatura, fica clara a importância desses por despertar e
intensificar os estudos que explicitassem questões que colocassem em destaque a
identidade e a diferença.
Dessa preocupação, os estudos da categoria de gênero aprofundaram-se e
“invadiram” as teorias críticas feministas, sendo até hoje vigente e dominadora.
Assim, abordando a crítica feminista, torna-se impossível passar pela teoria sem
esclarecer o gênero e suas implicações.
O conceito feminista de gênero, criado por Joan Scott, no fim da década de
1970, surgiu da necessidade de dar nova vida aos estudos críticos feministas, que,
até esse momento, se contentava com a análise das relações e condições das
mulheres, sendo essas, assim, de forma geral e “simples” o objeto de estudo de tal
crítica.
Joan Scott, então, define gênero da seguinte forma:
Por gênero me refiro ao discurso da diferença dos sexos. Ele não se
relaciona simplesmente às idéias, mas também às instituições, às
estruturas, às práticas cotidianas quanto aos rituais, e tudo o que constitui
as relações sociais. O discurso é o instrumento de entrada na ordem do
mundo, mesmo não sendo anterior à organização social, é dela
inseparável. Segue-se, então, que o gênero é a organização social da
diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas ele
constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa
originária da qual a organização social poderia derivar; ela é antes, uma
estrutura social móvel que deve ser analisada nos seus diferentes
contextos históricos (apud Colling, 2004, p. 29).
Dessa forma, com o surgimento da categoria gênero, a dimensão da ligação
entre os sexos é introduzida no pensamento feminista, apontando que a relação
sexo/gênero não se pauta na natureza, mas na sociedade e suas construções,
permitindo, assim, que os papeis destinados a cada gênero sejam questionados a
fim de serem desconstruídos, dada a sua natureza de construção social e de não
inevitabilidade.
Mas podemos então nos questionar: como esses papéis representativos são
eternizados e disseminados de geração em geração? Ora, a mídia, a literatura, o
cinema, as artes e até mesmo as ciências, sem dúvidas, repetem e cristalizam o
39
pensamento e o discurso patriarcal, pregando sua “naturalidade” e sua
inquestionabilidade, a fim de firmar diferenças na verdade inexistentes e,
conseqüentemente, padrões a serem seguidos dentro de cada diferença
(homem/mulher).
Assim, os propagadores das diferenças criadas entre masculino e feminino são
os próprios seres que sofrem essa divisão e o, eles mesmos, os firmadores da
primazia dada ao masculino. Dessa realidade, o conceito de gênero surgiu
intencionando questionar e desnudar tal pensamento, mostrando que não há fatores
naturais biológicos nesse aparato ideológico vigente.
O ensaio de Lauretis, entitulado A tecnologia do gênero (1994), aponta que o
gênero, embora aparente ser natural, é uma representação, que interfere de forma
ferrenha na sociedade e que transforma indivíduos concretos em escravos do ser
homem e do ser mulher, sendo que um é visto em oposição ao outro.
O interessante é que Lauretis relaciona, de forma intrínseca, o conceito de
gênero à raça e classe, pois, para ela, “embora os significados possam variar de
uma cultura para outra, qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente
interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade” (LAURETIS, 1994,
p.211), dada a característica de formação cultural (e artificial) do gênero.
De acordo com tal pensamento, o sistema de sexo-gênero além de ser um
construto social e cultural é um sistema de representação que atribui significados a
seres de uma sociedade, já que determina papéis e designa valores (sendo o
masculino valorizado em detrimento do feminino, visto que o patriarcalismo é vigente
e dominante na maioria das sociedades).
Assim, a resistência é a forma de derrubar classificações taxativas e restritivas,
mas o espaço da resistência vai ter força se ocupado de forma crítica, para
formar uma nova visão. Segundo Lauretis,
se esta visão não é encontrada em lugar algum, não é dada em um único
texto, não é reconhecível como representação, não é que nós feministas,
mulheres - não tenhamos conseguido reproduzi-la. É , isto sim, que o que
produzimos não é conhecido, exatamente, como representação. Pois esse
„outro lugar‟ (...) é o outro lugar do aqui e agora, os pontos cegos, ou o
space off de suas representações. Eu o imagino como espaços nas
margens dos discursos hegemônicos, espaços sociais entalhados nos
interstícios das instituições e nas fendas e brechas dos aparelhos de poder-
conhecimento" (LAURETIS, 1994, p. 237).
Sem dúvidas o conceito de gênero foi um passo essencial para o
amadurecimento da crítica feminista que seus estudos abordam e enfatizam a
40
necessidade da rejeição do caráter fixo da oposição binária masculino X feminino,
questionando verdades impensadas e impostas. Mais que isso: o estudo de gênero
pôde mostrar que não da sexualidade depende a identidade de um homem ou de
uma mulher, mas de vários fatores políticos, culturais, religiosos e históricos que
formam a multiplicidade do próprio termo. “A pretensão é, então, entender o gênero
como constituinte da identidade dos sujeitos” (LOURO, 1997, p. 24)
Seguindo esse pensamento, Judith Butler (2003) desconstrói o próprio conceito
de gênero, que servia de alicerce para toda a crítica feminista até então, colocando
no centro de suas discussões a premissa de que o sexo é natural e que o conceito
de gênero é construído, pois para ela, diferente do que acreditavam, o sexo não é
natural e, sim, um construto social como o gênero. O gênero é assumir uma maneira
de viver o corpo no mundo, sendo, dessa forma, um ato de interpretação da
realidade aprovada. Para a estudiosa, o corpo o se adapta às regras que sua
materialização impõe e, assim, o gênero desarticula o sexo.
Butler acredita que, desde o nascimento, os bebês são encaixados em idéias
previamente construídas sobre as particularidades físicas de cada um e, por isso, é
impossível falar em diferença entre sexo e gênero, por que são ambos,
determinados pela cultura e vistos como destino imutável.
Essa visão é bastante relevante e provocante, pois, com ela, o conceito de
mulheres como sujeito do feminismo passa a ser também questionado, pois, se há a
luta para a não redução da mulher a uma essência feminina, fica evidente a
inexistência do sujeito feminino que o feminismo busca e quer representar. Na
realidade, que esse sujeito do feminismo inexiste como categoria estável, acaba
por haver um problema político de uma representação universal deturpada onde se
rejeita a diversidade e se formam as imagens conturbadas das mulheres, os
arquétipos taxativos e recorrentes.
Pensando nos estudos de Butler, mas, sobretudo, a idéia de gênero enquanto
construto social e cultural, a crítica feminista apodera-se das idéias de
desconstrução que também permeiam os estudos de Gênero e busca deslindar
fronteiras nunca antes esclarecidas, tentando romper rmulas fixas, imagens
preconceituosas e taxativas e valores impostos.
Expõe a origem cultural de conceitos que pregam pela naturalidade de
características e habilidades próprias ao masculino ou ao feminino, colocando não
as diferenças ou semelhanças em destaque, mas as particularidades e a formação
41
de pessoas que vivem em uma sociedade arraigada de conceitos e preconceitos
perpetuados com o respaldo de valores pautados no senso comum.
Além disso, Butler (2003) atenta para o fato de que o conceito gênero sofre
intervenções dos valores atribuídos a raça, cultura e classe, por isso, não podemos
falar em identidade feminina, mas sim em identidades femininas. Por motivos que
transcendem o sexo, a mulher é formada e também classificada no meio social,
sendo diferentes os valores taxativos atribuídos para cada uma delas, de acordo
com a situação em que se encontram no meio social.
2.4 A Representação Social e Literária da Mulher
na sociedade a adoção de modelos femininos que são perpetuados durante
a história, e que são, muitas vezes, reforçados pela Literatura, que eterniza imagens
ficcionais, aproximando-as do real na intenção de representá-lo. Esses modelos
fixam na sociedade figuras que parecem abranger todos os sujeitos, tendo, cada um,
uma representação simbólica característica advinda de uma tradição histórica,
cultural e literária.
Nos estudos de gênero, o estudo da representação é fundamental se
pensarmos que problematizam com veemência a relação do texto literário com o
contexto em que é produzido.
Etimologicamente, “representação” provém da forma latina “repraesentare”, que
significa fazer presente ou apresentar de novo. Dessa forma, representar é tornar
presente algo ausente (alguém, alguma coisa, alguma idéia) por meio de um objeto
representativo. Assim, quando afirmamos que o Papa representa Cristo, estamos
trazendo para um objeto presente um valor de um objeto ausente, representado no
objeto presente.
De acordo com o historiador Chartier (1991) a representação é a maneira pela
qual, em diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade é construída,
pensada e dada a ler por diferentes grupos sociais. Assim, a construção das
identidades sociais seriam resultantes de uma relação entre as representações
impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição
submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma.
42
Dessa forma, vemos que a representação está relacionada ao poder, pois os
discursos representativos e as representações contidas na sociedade são ditados
por grupos dominantes, que constroem valores nos objetos e os perpetuam em
representações.
Representar seria, então, trazer para uma imagem presente os valores de um
objeto ausente. Assim, os discursos historiográficos e as representações sociais e
discursos delas resultantes são determinados pelos interesses dos grupos
dominantes. Assim sendo, como a representação pode trazer para o presente algo
ausente ela pode ser uma forma de perpetuação e inserção de valores e de
formação de protótipos.
Para Chartier (1991), a representação é o produto do resultado de uma prática,
ou seja, a representação é uma referência e temos que nos aproximar dela para que
possamos nos aproximar do fato. Nesse sentido, a representação do real ou do
imaginário é um elemento de transformação do que é real e um mecanismo de
transformação do sentido que damos ao que é real.
Assim, se a representação feminina é apresentada, na prática, de forma a
perpetuar valores e códigos, tudo permanece imutável também, mas, por outro lado,
se um grupo passa a dar outra representatividade a alguns códigos e a algumas
“verdades”, um novo valor é construído e refletido nas demais representações.
Na história, como vimos, dado o olhar patriarcalista frequentemente lançado
sobre os valores e as regras sociais, a mulher ocupou, na literatura e na sociedade,
papeis delimitadores que a restringiu a representações estereotipadas, que
reduziam sua personalidade e seu intelecto ao seu corpo e a modelos repletos de
preconceitos, comumente dominados por um ser “superior por natureza”: o homem.
Esse padrão ainda é recorrente na literatura de cunho patriarcal e também na
mídia. As telenovelas geralmente constroem modelos taxativos de mulheres,
apresentando personagens dicotômicas e estereotipadas, incapazes de apontar a
mulher como um ser autônomo, forte, com poder de decisão e razão.
Quando as personagens apresentam características que as aproximam de
mulheres com singularidades, por vezes, representam a figura da megera ou da
insana e não de uma mulher equilibrada e feliz, o que mostra que os padrões
patriarcalistas ainda dominam a mídia e, consequentemente, a sociedade que se
rege por ela. Além disso, a mulher é restrita apenas a corpos que representam uma
ou outra “espécie” de mulher.
43
Se a mídia constrói a imagem da mulher corporificada e alienada, a publicidade
contribui ainda mais para a firmação dessa imagem nos mais diferentes meios, pois
apresenta a imagem da mulher como uma necessidade central e modelar, que
jamais pode ser ferida ou divergida, com modelos dotados de virtudes e vícios, de
acordo com os corpos que têm e que usam.
A literatura de autoria feminina, no entanto, atenta para o poder de construção
da representação e para a possibilidade de mudanças de padrões por meio das
mudanças de representação, busca romper com os modelos representativos da
história e da literatura tradicionais. Parece que se trata de romper com a
representação de figuras prototípicas, visando construir novos valores e novas ideias
sobre o modo de estar da mulher na sociedade.
Na literatura tradicional (de cunho patriarcal dominante) é freqüente a
representação de personagens femininas baseadas em estereótipos variáveis
culturalmente, bem como a taxação de “tipos” femininos que frequentam as ruas, os
bares, os lares e os livros, sendo a alguns aplicados valores positivos e a outros,
grandes discriminações.
Além da preocupação com a ruptura da representação feminina como algo
restritivo e castrador e com a formação de uma nova ideologia sobre as mulheres, a
crítica literária feminista, que teve seu início com as investigações de Kate Millet
(1970), busca apontar como esses estereótipos se firmam e buscam explicar as
relações de poder em obras canônicas, que se servem de uma suposta natural
superioridade do homem para subjugar e inferiorizar às mulheres, tidas, por vezes,
como modelos de repulsa, perigo, incapacidade mental ou fragilidade.
Ao atentar para tais circunstâncias, a crítica literária feminista institui uma
resistência a tudo que busca pela homogeneização social, que se espelha na
literatura e alimenta a tradição paternalista de inferiorização do sexo feminino.
Assim, tem apontado a invisibilidade histórica da mulher em uma sociedade
tradicionalmente formada por homens escritores, pois, em âmbito nacional.
Antes do surgimento dessa perspectiva crítica e do engajamento de mulheres
ao movimento feminista, a Crítica Literária e a História da Literatura centravam-se na
figura masculina, com os nomes de Mário de Andrade, Silvio Romero, José
Veríssimo, Araripe Junior, Sérgio Milliet, entre outros, aparecendo, como uma
exceção, no século XX, o nome de Lúcia Miguel Pereira, respeitada por sua
seriedade e seu domínio literário.
44
Sendo assim, eram os homens quem falavam pelas e das mulheres, bem como
das suas representações, o que ainda intensifica a subjetificação feminina e sua
invisibilidade. Por isso, um dos objetivos da crítica feminista é questionar a literatura
canônica e a história literária, justamente pela imposição de estereótipos e pelos
valores admitidos às mulheres.
É comum vermos, em textos canônicos, representações femininas ligadas a
figuras recorrentes e valorizadas: a mulher indefesa, incapaz e frágil que espera e
sonha ou a mulher-anjo, que é um poço de virtudes e de doação de si mesma; em
contrapartida, a representação da mulher megera, que é repleta de maldades e
astúcias, ou da mulher sedutora, imoral e perigosa, que usa de atributos físicos para
prejudicar aos homens.
Essa duas possibilidades de mulher: boa ou má, acaba por ser um reflexo da
representação da mulher Eva a mulher pecadora e merecedora de desprezo ou
da mulher “mãe” (a Virgem Maria), que é a rainha do lar, pura e digna de louvor.
Essa dicotomia não fica restrita aos livros, pois salta da ficção à realidade como
uma forma de também enquadrar as mulheres reais nesses papéis, contribuindo
para uma análise taxativa e impensada, além de superficial e vazia, que prende o
ser ao seu corpo, fazendo da mulher um corpo que nasce com o dever de ser o
condutor da família e o exemplo de atitudes doadoras e tácitas.
Sem dúvidas, esse aprisionamento da mulher a coloca no ambiente do espaço
privado e a restringe do pensamento, da razão e da posição de Sujeito, que a
repressão para as mulheres que representam o não exemplar é pesada e causa a
exclusão social e um destino “incerto” (privado dos “sonhos femininos” do
casamento e da família).
Não se pode deixar de apontar que toda essa situação é permitida pelas
mulheres. Segundo Colling (2004), é imprescindível o consentimento para que haja
o poder, sendo as mulheres mesmas a atribuírem a si pouca importância e
assumindo o discurso masculino, que as priva de qualquer poder no mundo político.
É claro que essa concordância das mulheres com a dominação masculina não
é consciente, pois é necessário que se desperte a consciência crítica para o
vislumbre de tal situação: a visão das mulheres foi construída de forma conturbada
sob os modelos do paternalismo; pertencer ao sexo feminino não as tornam
conscientes de tal situação, que parece natural e inquestionável para a grande
maioria.
45
É o que Bourdieu (2005) chama de habitus, ou seja, a situação de inferioridade
feminina e superioridade masculina parecem naturais e inquestionáveis para todos
os seres inseridos na sociedade patriarcal, que estabeleceu esses valores e
neles irrefutabilidade, sendo assim habituais e cotidianos em todos esses seres.
Não cabe, dentro dessa ideologia, a ideia de um homem não ser dotado de
força, respeito e racionalidade, assim como não cabe a ideia de uma mulher não
dispor de graça, delicadeza e sentimentalismo. É como se seus corpos estivessem
escravizados por seus sexos e Bourdieu defende que só com a quebra desse
habitus os seres sociais podem se livrar das algemas que os prendem a modelos
restritivos.
2.4.1 A literatura de autoria feminina: uma busca por revisão e por
emancipação
A lançarmos nossos olhares para as obras de historiografia literária, notamos a
quase inexistência de escritoras na uma literatura que antecede o século XX. Sem
dúvidas, essa exclusão acontece como uma conseqüência dos valores patriarcais
que regiam a sociedade e que afastavam a mulher do espaço público e intelectual,
sendo praticamente proibida sua participação no mundo das letras.
Uma saída para tal situação era a adoção de pseudônimos masculinos, que
traziam a essas autoras a valorização de suas obras, mesmo que houvesse a
necessidade de manter-se no anonimato para não tirar o prestígio da obra. Como
afirma Duarte,
A surpresa fica mais por conta das que, apesar de tudo e todos, superaram
os obstáculos e desafiaram a ordem patriarcal que as restringia à esfera
privada, publicando textos ainda que anonimamente ou sob pseudônimos
masculinos, como estratégia de contornar os preconceitos sexistas no
campo da recepção e da crítica literária (1990, p.74)
Contudo, com o surgimento do movimento feminista e a intensificação de suas
lutas, as mulheres passaram a preocupar-se com a situação feminina também na
esfera literária. Surgiu o questionamento da ausência da escritora na história literária
e da representação das personagens femininas que seguiam patrões
estereotipados/reprimidos pela ideologia patriarcal. Além disso, passou-se a
observar se havia, de fato, uma literatura feminina que buscasse romper com
46
protótipos preestabelecidos pela ideologia dominante e como essa literatura
trabalhava no sentido de construir ou evidenciar novas identidades femininas.
Dessa forma, as escritoras, atentas para a realidade das mulheres e inseridas
em uma sociedade mais propensa ao feminismo, passaram a tratar de temas que
envolviam as reais condições de seu sexo, depositando em seus escritos, sobretudo
no modo de representação de suas personagens femininas, outras ideologias. Trata-
se de pôr em cena mulheres sujeito, discutindo a opressão e contrariando os
estereótipos tradicionais de mulheres.
A representação feminina evidenciou, assim, a buscar por mulheres reais,
seres de carne e osso, com virtudes e falhas, ou seja, passou-se a representar
mulheres com voz e vez.
A primeira batalha enfrentada pela escrita feminina, ainda na segunda metade
do século XIX, foi a de distinguir-se da masculina, no sentido de tornar-se ela própria
uma precursora. A principal dificuldade dessa luta consistia em conseguir ler o
universo masculino para direcionar- se para um outro sentido, em que não houvesse
repressão e preconceitos (CAMPOS, 1992, p.120). dessa forma seria possível à
mulher criar uma tradição.
Os primeiros textos literários escritos por mulheres no Brasil, produzidos em um
momento em que o movimento feminista ainda não estava tem vigor, apontam para
figuras femininas oprimidas pela sociedade patriarcal, que silenciava as mulheres e
não lhes dava qualquer liberdade. As mulheres, nesse contexto, encontravam-se
também presas à ideologia dominante, de forma que era impossível ir em outra
direção. Por isso, as mulheres tinham como opositores os seus próprios valores
enraizados.
Nesses textos, há, claramente, a internalização dos valores vigentes, ou seja,
a reduplicação da tradição ideológica e estética vigentes do patriarcalismo e, no
que se refere à situação da mulher, há um sutil e acanhado desabafo, sem que haja,
de fato, reivindicações ou discussões acerca do gênero. Nesse primeiro momento,
então, o grande fato propulsor foi a voz feminina fazer-se ouvir na seara literária,
reservada até então para os homens, sendo essas escritoras as pioneiras e as
responsáveis pela quebra do silenciamento imposto às mulheres.
na metade do século XX, Clarice Lispector publica Perto do coração
selvagem (1944) e inaugura uma nova fase da literatura brasileira de autoria
feminina. Nesse novo contexto, a ruptura com a simples reduplicação de valores
47
da sociedade patriarcal que permeava a literatura anterior. De uma maneira bastante
geral, podemos afirmar que a obra de Clarice estrutura-se em torno das relações de
gênero, priorizando as discussões acerca das diferenças sociais firmadas
historicamente entre os sexos, que impedem que a mulher atinja sua plenitude
existencial.
Seguindo os passos de Clarice, as escritoras brasileiras do século XX, como
Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Lya Luft, Marina Colassanti e Ana Maria
Machado, por exemplo, também apontam em suas obras a problematização de a
mulher estar na sociedade regulada pelo pensamento patriarcal, deixando
transparecer em suas personagens a angústia e a busca para sair de tal situação.
É por isso que se pode observar que durante quase toda segunda metade do
século XX a literatura nacional de autoria feminina desnudou, questionou e discutiu a
dominação masculina e a opressão feminina, mostrando-se uma literatura de
protesto frente à ideologia patriarcal dominante. Enfim, a literatura representou a
mulher seguindo uma ótica diferente daquela tradicional patriarcal que era frequente
e renomada.
De acordo com Duarte (2004), a explosão de publicações de textos de autoria
feminina, não por acaso, coincide com o ápice do movimento feminista brasileiro,
que foi após a conquista do direito ao voto e ao trabalho profissional. Nesse
contexto, passou-se a lutar, nos anos setenta, pelo direito à sexualidade, ao prazer
sexual e ao aborto, am de lutar contra assuntos sociais e políticos, como a ditadura
militar e a censura. O resultado de tais reivindicações foi a alteração radical dos
costumes vigentes e, consequentemente, o reflexo de tais conquistas e lutas na
produção literária, dada a mudança de padrões.
Frente às conquistas do feminismo, sem dúvidas, a legitimidade da autoria
feminina faz-se presente, pois, além de resgatar e valorizar textos de reais
características literárias, que outrora eram engavetados pelo peso da autoria
feminina, a literatura que segue o pensamento feminista, nos últimos anos, tem
abordado temas que não dizem respeito apenas às mulheres, mas à humanidade
em geral.
Desse novo pensamento crítico resulta, segundo Coelho,
A presença cada vez mais nítida de uma nova consciência feminina que
tende, cada vez com mais força e lucidez, a romper os limites de seu
próprio Eu (tradicionalmente voltado para si mesmo em uma vivência
quase autobiográfica) para mergulhar na esfera do Outro a do ser
humano partícipe deste mundo em crise. Daí que o eu que fala, na
48
literatura feminina mais recente, se revele cada vez mais claramente como
Nós (1993, p.16).
É como se a mulher escritora, com o declínio do patriarcalismo, já se sentisse a
dona da própria voz e se sentisse à vontade para falar a respeito de qualquer
coisa sem sentir-se aprisionada à opressão oferecida pela sociedade no decorrer da
história. Em resultado dessa conquista, os textos de autoria feminina abordam, hoje,
não mais temas relacionados ao universo feminino e sua realidade, mas à
humanidade em geral.
2.4.2 Lygia Fagundes Telles e a busca pelo cotidiano real
É dentro do limiar da literatura de autoria feminina que se encontra, no
momento de explosão da voz das mulheres, o relevante nome de Lygia Fagundes
Telles, mulher nascida na capital paulista, em 19 de abril de 1923 e batizada com o
nome de Lygia de Azevedo Fagundes.
Sua carreira literária começa em 1938, quando, mesmo antes da conclusão
do curso fundamental, publica, com a ajuda de seu pai, o livro de contos Porão e
sobrado, que mais tarde foi por ela mesma retirado de sua relação de obras.
Formou-se em educação física (1941) e em direito (1945). Em sua época de
estudante do curso de direito, frequentava as rodas literárias que se reuniam em
restaurantes, cafés e livrarias localizadas nas redondezas do Largo de São
Francisco e, nesse ambiente, pôde conhecer Oswald de Andrade, Paulo Emílio
Sales Gomes entre outros. nessa época passou a ser membro da Academia de
Letras da Faculdade, colaborando com os jornais Arcádia e A Balança.
Sua segunda coletânea de contos, Praia Viva, foi editada em 1944, pela
Martins, de São Paulo e é considerada pela autora a obra que marca o início de sua
carreira literária.
Dois anos depois, Lygia recebe seu primeiro prêmio literário pela publicação do
seu terceiro livro, O cacto vermelho (1946). Esse prêmio, Afonso Arinos, da
Academia Brasileira de Letras, foi o primeiro de muitos que viriam com o
amadurecimento de sua obra e sua carreira.
Em 1950 casa-se com o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., que havia sido seu
professor na faculdade de direito e era, na ocasião, deputado federal, o que obriga o
49
casal a mudar-se para o Rio de Janeiro, em virtude do funcionamento da Câmara
Federal, naquela época localizada na capital carioca.
Retorna à capital paulista em 1952 e começa a escrever seu primeiro romance,
Ciranda de pedra, lançado em 1954, pelas edições O Cruzeiro, do Rio de Janeiro.
No mesmo ano nasce seu único filho, Goffredo da Silva Telles Neto.
Logo em 1958, lança mais um livro de contos, Histórias do desencontro, que,
assim como o anterior, recebe premiação, dessa vez pelo Instituto Nacional do Livro.
Nesse momento, a obra de Lygia Fagundes Telles mostrava uma maturidade
latente e características pessoais que a seguem até hoje.
Em 1960, a escritora separa-se de Goffredo Silva Telles Junior e, em 1961
começa a trabalhar como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São
Paulo, não parando mesmo assim com sua carreira literária.
Dois anos depois lança, pela editora Martins, de São Paulo, seu segundo
romance, Verão no aquário (1962) e, inspirada no momento político por que passa o
país e vivendo junto com seu segundo companheiro, o cineasta Paulo Emílio
Salles Gomes começa a escrever o romance As meninas, que seria publicado
apenas em 1973.
Nesse intertempo, publica, pela Editora Martins, histórias escolhidas (1964) e O
jardim selvagem (1965), além de ser convidada pelos cineastas Paulo César
Serraceni e Paulo Emílio Salles Gomes, em 1967, para fazer a adaptação para o
cinema do romance D. Casmurro, de Machado de Assis, trabalho este que foi
publicado em 1993, pela editora Siciliano, sob o título de Capitu. Também publica,
em 1970, pela Bloch do Rio de janeiro, um de seus mais conhecidos livros de
contos: Antes do Baile Verde, obra que lhe deu o Grande Prêmio Internacional
Feminino para Estrangeiros, na França.
Em 1973, com a publicação de As meninas, a escritora arrebata todos os
prêmios de importância no país, como o Coelho Neto, da academia Brasileira de
Letras - O Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e o de “Ficção”, da Associação
Paulista de Críticos de Arte.
Sua próxima obra viria em 1977, Seminário de ratos, livro de contos publicado
pela José Olympio, que recebe o prêmio da categoria Pen Club do Brasil. Nesse
mesmo ano, seu companheiro Paulo Emílio Salles Gomes falece e a escritora
assume a presidência da Cinemateca Brasileira, que havia sido fundada com a
ajuda de sua marido.
50
Em 1978, a editora Cultura, de São Paulo, lança a coletânea de contos Filhos
Pródigos, que, em 1991 foi republicada com o nome A estrutura da bolha de sabão.
No mesmo ano, a Rede Globo de Televisão apresenta um Caso Especial, baseado
no conto “O jardim selvagem”, trazendo mais uma vez no nome de Lygia Fagundes
Telles para a televisão.
Entre 1980 e 1997, a escritora passa a trabalhar apenas com a editora Nova
Fronteira, do Rio de Janeiro, que publica os livros de contos A Disciplina do amor
(1980) e Mistérios (1981), além de seu último romance escrito As Horas Nuas
(1989), pelo qual recebe a Comenda Portuguesa Dom Infante Santo e o livro de
contos A noite escura e mais eu (1995), pelo qual recebe os prêmios de Melhor livro
de contos, da Biblioteca Nacional; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro e o
Prêmio APLUB de Literatura.
Em 1997 a editora Rocco adquire os direitos de publicação de toda obra
passada e futura da escritora, relançando toda sua produção e, em 2001, seu livro
Invenção da Memória (2000) recebe o prêmio Jabuti, na categoria ficção, além do
Golfinho de Ouro e o Grande prêmio da Associação Paulista dos Críticos da Arte.
Como reconhecimento por sua obra e seu talento literário, além dos prêmios
recebidos por suas obras, a escritora, em 1982, é eleita para a cadeira 28 da
Academia Paulista de letras e, em 1985, com 32 votos, é eleita para ocupar a
cadeira 16 da Academia Brasileira de Letras, na vaga deixada por Pedro Calmon.
No mesmo ano recebe a medalha da Ordem do Rio Branco, além de, em 2001, ser
agraciada com o título de Doutora Honoris Causa, pela Universidade de Brasília e
de, em 2005, receber o Prêmio Camões, o mais importante prêmio da literatura de
língua portuguesa.
A escritora voltou a ter referências de sua produção na Rede Globo de
Televisão no ano de 2008, com a telenovela Ciranda de Pedra, baseada na obra
literária homônima de autoria de Lygia Fagundes Telles.
Com um “currículo” desses, sem dúvidas a escritora traz em suas obras
características que a tornam o grande nome que possui. Sua mestria com a
linguagem e abordagem frequente em sua obra de temas essenciais para a
sociedade contemporânea a colocam no patamar dos grandes nomes da literatura
brasileira.
Os textos de Telles abordam claramente as dúvidas da sociedade
contemporânea, onde as pessoas conseguem enxergar o que se passa em suas
51
vidas, mas não sabem explicar exatamente o porquê de tais situações. Suas
personagens o pessoas comuns, que não apresentam características
mirabolantes ou grandes tragédias e, sim, situações corriqueiras que aproximam
ainda mais a ficção da realidade. Suas obras não explicam muitas coisas e nem têm
tal intenção, que uma de suas características é justamente a sugestão de
situações que não se podem concluir ou resolver de forma determinada e clara.
Sua obra aborda, antes de tudo e de forma intensa, os problemas em torno do
ser humano. Trata das relações entre Eu e o Outro, dentro do espaço social e,
também, em suas obras mais maduras, trata da condição humana em um mundo em
desintegração. É importante deixar claro que Telles apenas aborda os problemas,
mas não propõe respostas e nem soluções.
Lygia Fagundes Telles vem sendo, dentro da literatura contemporânea,
uma das mais lúcidas, apaixonadas e apaixonantes testemunhas deste
nosso mundo-em-crise, o belo/horrível mundo burguês, alicerçado em
razões, certezas e verdades absolutas que já cumpriram sua tarefa no
contínuo processo de evolução da vida e do mundo. (COELHO, 1993, p.
236)
Lygia questiona de forma bastante intimista “certezas e valores que
gradativamente foram gerando o medo, a insegurança, e corroendo as relações
humanas” (COELHO, 1993, p.236) e coloca claramente os “problemas” do amor,
com seus tabus e que “ficou condenado a um jogo de disfarces e desencontros que
geram a „solidão a dois‟” (COELHO, 1993, p.236).
A autora frequentemente questiona a realidade objetiva das coisas, dos fatos e
defende uma realidade possível e indevassável, e é por isso que sua obra é um
corpo vivo em transformação e sua figura pode ser vista, no cenário nacional da
literatura, como “uma das mais lúcidas, apaixonadas e apaixonantes testemunhas
deste nosso mundo-em-crise” (COELHO, 1993, p. 236).
Um traço narrativo frequentemente usado por Telles é a fragmentação do foco
narrativo, ou seja, ela rompe com a estabilidade das visões e fragmenta-se em
diferentes focos.
Com essa fragmentação da focalização, fica bastante evidente que não há uma
verdade que queira ser transmitida ao leitor. A autora aborda e questiona, por vários
pontos de vista, temas freqüentes como o amor, a família, a profissão, os
preconceitos (de todas as formas), o casamento e todas as temáticas que envolvem
52
um homem inserido em uma sociedade que é repleta de verdades impostas e,
aparentemente, inquestionáveis.
53
3 REPRESENTAÇÃO E IDEOLOGIA
Alguns jogos de poder se escondem atrás de representações frequentes na
sociedade, por meio da mídia, da publicidade e até mesmo da produção cultural e
artística, evidenciando como natural uma exibição construída e manipuladora, que
determina regras, modelos e costumes.
Desde a antiguidade a a complexa sociedade contemporânea, a
representação do mundo é praticamente inerente às relações sociais: o que se
representa acaba tido como natural e biológico para todos os seres, fato que ilude,
adestra e aliena, que a representação é apenas uma reprodução do mundo que
se vê e se interpreta, fazendo emergir seu caráter de formação ideológica.
No capítulo anterior já abordamos o tema da representação no intuito de
apontar como se no âmbito social e literário da figura feminina. No entanto,
acreditamos que haja jogos de poder e dominação que perpetuam e consagram
modelos representativos femininos e a relação entre a ideologia e a representação.
A representação é a reprodução do que se pensa e, de forma dialética,
influencia a formação ideológica da sociedade, que age e se constitui de acordo com
as regras representativas vigentes.
Classificar, julgar, dividir e estereotipar acabam sendo atitudes incontroláveis e
subjacentes às pessoas e, assim, começam a transparecer os jogos de poder, pois
as concepções impostas e adotadas pelo grupo considerado forte, pela própria
ideologia criada por ele, insere valores, costumes e representações em esferas
políticas, sociais e culturais de todo um povo.
A adoção de tais concepções coloca como verdade absoluta, inquestionável e
como padrão dotado de valores (geralmente pautados em dicotomias) todos os
costumes que cercam os homens: o que se vê e o que se pensa é o que é
representado e julgado por uma maioria que impõe os conceitos dicotômicos de
certo/errado, bom/mau, bem/mal, forte/fraco, confiável/perigoso, e assim por diante.
Esses valores inserem, na sociedade, certezas e, assim, geram segurança e
uma aparente irrefutabilidade, que engole o individual e excêntrico, julgando-os por
uma ideologia dominante e supostamente homogênea, que exclui e julga dentro de
uma ideologia assimilada pela maioria.
54
A partir dessa imposição de costumes, crenças e valores surgem o preconceito
e a discriminação, como meio de selecionar apenas os aspectos tidos como
positivos do ponto de vista da ideologia dominante.
Todo esse processo gera uma automatização que impede o homem de pensar
e ter uma ideologia totalmente avessa do meio que o cerca, que há a repetição do
que foi representado e que, por meio das representações, a ideologia vigente e
dominante pode, naturalmente, ser disseminada e perpetuada pautada em signos
dotados de significados.
Para Bakhtin (1981), estudioso de subjacente influência marxista,
Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como
todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas,
ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que
lhe é exterior (p. 31).
Assim sendo, tudo que é ideológico é, também, dotado de significado e remete
a algo que fica situado fora de si mesmo. Isso acontece porque tudo que é
ideológico é um signo e todo signo traz em si significações aglomeradas que fazem
com que elas pareçam naturais e, não, culturalmente formadas.
Bakhtin (1988) na palavra também um signo e, de acordo com tal
concepção, ela também pode ser um importante meio de perpetuação de ideologias
e um importante veículo para a representação. O discurso, mesmo que ficcional, é
carregado de ideologias e posicionamentos.
Bourdieu (2005) reflexos sociais na construção de sujeitos, que são
comumente impostos pela visão dominante do mundo social, com capacidade de
construir modelos sob moldes dotados de ideologia que perpetue e dominação
masculina.
O discurso patriarcal é tido como natural e, por isso, incontestável, e ligados a
esse discurso, formado pelos signos linguísticos, vêm conceitos que afirmam a
superioridade do homem em detrimento das mulheres e os valores taxativos que
envolvem os dois sexos. Homens e mulheres são “encaixados” em padrões
representativos que os restringem aos seus sexos e os encaixam em moldes.
A representação é uma forma de criar seres próximos ao real e com
capacidade de formar novas realidades, de acordo com a ideologia transposta e
disseminada. Por isso, buscando romper com o “natural” discurso dominante, a
literatura de autoria feminina na representação uma possível forma de romper
com os modelos que tradicionalmente foram representados pela literatura canônica.
55
A mudança ideológica sobre os signos linguísticos é gradativa e penosa, mas a
literatura de autoria feminina vem transpondo/apresentando valores e modelos vistos
sob uma ótica diferente da patriarcal, revisando as representações apresentadas por
meio da mudança de valores dadas aos signos.
A representação na literatura, porém, é formada por meio do discurso, que é o
instrumento de apresentação das figuras formadas. Para Bakhtin, a enunciação tem
natureza social e, não, individual, pois “a fala está indissoluvelmente ligada às
condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas a estruturas
sociais” (1981, p.14).
A forma mais clara e disseminar e concretizar a ideologia é por meio da
palavra, que é o modo mais simples das relações sociais. Diferente dos demais
signos, que vêm criados por uma função ideológica precisa e inseparável, a
palavra pode preencher qualquer função ideológica, sendo ela estética, científica,
religiosa, moral, ou seja, relativa ao contexto e formadora de ideologias.
Partindo do pressuposto de que todo discurso é ideológico e que a ideologia é
reflexo das estruturas sociais, toda modificação da ideologia encadeia uma
modificação do discurso. Ou seja, todo enunciado traz consigo ideologias formadas
pela sociedade, que todo discurso individual também sofre intervenções do social
em sua construção.
O discurso é formado pela aproximação entre o signo apreendido e outros
signos conhecidos, formando assim, conceitos que delimitam e formam valores.
Podemos notar que tal fato contribui para a perpetuação de significados e
instauração de protótipos, baseados em referenciais dotados de significados
representativos e modelares, que são, pelo discurso e pela representação dos
signos, perpetuados e incentivados.
Dessa maneira, a palavra, apesar de signo ideológico, pode ser vista como um
material privilegiado da comunicação da vida cotidiana, que penetra em todas as
relações dos indivíduos, servindo como mais sensível indicador das transformações
sociais, mesmo as mais sutis e ainda não intrínsecas e disseminadas, pois a palavra
é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas e mais efêmeras das relações
sociais.
Com tais afirmações, pode-se vislumbrar, no signo linguístico, um signo social
e ideológico, que põe em relação a consciência individual com a interação social. O
pensamento individual não cria a ideologia, mas, ao contrário, é a ideologia que cria
56
o pensamento individual. É por essa característica que a palavra é um importante
instrumento na busca pela mudança da ideologia. É um instrumento de formação e
disseminação de crenças, opiniões e valores.
O signo linguístico, assim, sempre presente nas relações sociais, age direta e
indiretamente nos signos e em suas significações, tal como o ser inserido em um
sistema de signos (e ideologias) sofre influências de signos criados pela sociedade e
pelos valores inseridos e disseminados pela luta de classes.
Apesar de em uma sociedade haverem diferentes grupos sociais, a língua
utilizada por seus componentes é a mesma, mas os valores ideológicos atribuídos
às palavras podem ser diferentes de acordo com a ideologia de cada um deles. Essa
plurivalência social do signo ideológico é o traço que torna o signo vivo, móvel e
capaz de evoluir.
No entanto, a classe dominante tende a atribuir aos signos ideológicos (como o
discurso) um caráter intangível e aparentemente desvinculado das diferenças de
classe, para que possa abafar e ocultar a luta dos índices sociais, tentando impor o
signo como algo monovalente e inquestionável.
A ideologia patriarcal dominante divulga seus signos como naturais e únicos,
disseminando seus valores e padrões por meio da repetição de discursos, que,
consequentemente, apresentam repetição de representações
A característica do discurso formado por ideologias sociais desnuda o caráter
de dominação que se prende aos signos, pois os valores dados aos signos seguem
conceitos formados pelas classes dominantes, que se modificam frente a mudanças
sociais, movidas por rupturas ou revoluções que buscam romper as significações
impostas a alguns signos, que os delimitam e os prendem a conceitos formados por
uma classe detentora de poder.
O corpo, o discurso, os modos, as atitudes. Todos esses signos prendem-se a
conceitos de uma tradição dominadora e criadora de valores ideológicos e
determinantes, podendo-se libertar apenas por meio do rompimento dessa
dominação imposta e invisível, ditadora de costumes, preconceitos, valores e
posturas.
É nesse sentido que o discurso feminista rompe com a representação de
sujeitos oprimidos pela sociedade patriarcal: revisando conceitos e valores, ou seja,
revisando, com o próprio elemento representativo, o discurso dominante, e formando
novas ideologias associadas aos signos linguísticos e sociais.
57
3.1 O Discurso e o Poder
A valorização de Bakhtin à palavra como fenômeno ideológico por excelência,
e a inegável relação entre a palavra, linguagem e discurso, como lugar de
manifestação da palavra e de suas significações atentam para a relevância da
temática quando trabalhamos com a representação.
Defendendo que a relação de dominação de classes insere sua ideologia nos
signos, pode-se afirmar que o poder sempre ocupou lugar de destaque na reflexão
sobre o discurso. No entanto, variadas perspectivas procuram evidenciar elos entre
o poder e a linguagem, apontando diferentes formas de abordagem da questão: a
lingüística, a semiótica, a semiologia, a análise do discurso e a filosofia da
linguagem.
Dentro de uma tradição francesa de estudos da linguagem, assim como Mikhail
Bakhtin, Roland Barthes aborda a questão relacionando o tema a seu cunho social,
apesar da origem estruturalista de ambos os autores.
Roland Barthes (1989), influenciado ainda pela lingüística estruturalista
saussuriana, mas também pela antropologia estrutural e pelo marxismo, defende
que seja possível estudar toda e qualquer atividade humana como linguagem. Para
ele, a fotografia, o teatro, o cinema, a cozinha, o strip tease, a luta-livre e a
publicidade são linguagens e representam signos dotados de significação e
ideologia.
Barthes aponta os significados ocultos que, sem que percebamos, acabamos
por consumir nos diferentes discursos. Qualquer matéria significante (qualquer coisa
revestida de significado) pode se tornar um mito, que a conotação que envolve o
signo lingüístico deforma seu significado objetivo (e denotativo), tornando o signo
lugar de investimento de valores ideológicos. (BARTHES, 1989).
Para o autor, o vel denotativo e puramente linguístico garante a existência
possível de discursos científicos, que podem ser neutros perante as contradições e a
realidade histórica, sendo os outros discursos todos pautados em valores dados pela
classe dominante, que construiu a ideologia vigente em diferentes realidades
culturais e sociais.
Tomando a ideologia com o conceito marxista que defende que ela seja a falsa
consciência e instrumento de dominação, a teoria de Bakhtin acredita que o poder
58
pode ser visto como a capacidade da classe dominante de tornar suas
representações particulares aceitas por todos como se fossem verdades naturais e
incontestáveis. Assim, o específico da ideologia, o que a torna um mecanismo de
poder, é que ela pode impedir que a dominação seja percebida, pois é tida como
inerente e irrefutável.
Barthes explicita seu posicionamento no início de seu trabalho afirmando que
O ponto de partida dessa reflexão era, as mais das vezes, um sentimento
de impaciência frente ao “natural” com que a imprensa, a arte, o senso
comum, mascaram continuamente uma realidade que, pelo fato de ser
aquela em que vivemos, não deixa de ser por isso perfeitamente histórica.
Resumindo, sofria por ver a todo momento confundidas, nos relatos da
nossa atualidade, Natureza e História, e queria recuperar na exposição
decorativa do-que-é-obvio, o abuso ideológico que, na minha opinião, nele
se dissimula (BARTHES, 1989, p.7).
Tanto as pesquisas de Barthes aqui resgatadas quanto os estudos feministas,
abordados no primeiro capítulo, demonstram que o propósito de revisão e luta pela
ruptura da imposição de uma “natural” ideologia dominante (de classes e de gênero)
busca romper com imposições de poder e de dominação. Nas duas concepções, a
linguagem é o instrumento modificador do meio, que transforma uma realidade
social e forma novos conceitos e valores.
Bakhtin (1981), assim como Barthes (1989), acredita que haja ambiguidade em
toda a linguagem, que não é possível a existência de uma linguagem única e
denotativa, sendo o discurso sempre um território de conflito e de plurisignificação, já
que o sentido se constrói em cada situação de enunciação e sempre sob
determinadas condições histórico-sociais, mediado inevitavelmente por um discurso
dominante que exerce o poder (por ditar a ideologia).
Contribuindo com a discussão acerca do discurso e do poder, Foucault (1992)
defende que as relações discursivas são externas aos discursos, pois os discursos
formam sistematicamente os objetos de que falam. A linguagem, assim, é
constitutiva ao social e há, sempre, uma construção conjunta entre o social e o
lingüístico. A linguagem é aquilo por que se luta, é o poder que queremos
conquistar, pois ela é a construção e o meio de dominação.
Foucault (2001) relaciona o discurso com o desejo e com o poder, trazendo
contribuições ao trabalho que identifica o modo como as “verdades” são construídas.
Para tal, busca as fronteiras entre o real e o ficcional, a fim de refletir acerca da
representação por meio da linguagem. As práticas discursivas e os poderes que as
59
permeiam são considerados como “fatos” e se ligam a uma ordem imposta que
autoriza o que é permitido dizer e define quem pode dizer o que. Para mudar essa
realidade, segundo ele, é preciso que se promova o desnudamento das condições
de funcionamento do jogo discursivo e de seus efeitos.
Defendendo efusivamente o poder do discurso, Barthes (1980), influenciado
pelas idéias de Foucault, defende o poder como algo plural: rompendo com o
pensamento marxista que sempre o acompanhou, acredita que seja necessário falar
em poderes e não em poder, pois o poder não possui um centro e liga-se a todos os
aspectos da vida humana (e não somente ao Estado e às classes), passando a ser
visto como onipresente:
Plural no espaço social, o poder é, simetricamente, perpétuo no tempo
histórico: expulso, extenuado aqui, ele reaparece ali; nunca perece; façam
a revolução para destruí-lo, ele vai imediatamente reviver, re-germinar no
novo estado de coisas. (...) A razão dessa resistência e dessa ubigüidade é
que o poder é o parasita de um organismo trans-social, ligado à história
inteira do homem, e não somente à sua história política, histórica. Esse
objeto em que se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a
linguagem, ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua.
(BARTHES, 1980, p. 11-12).
A partir de tal constatação, Barthes defende que é necessário um projeto de
resistência ao poder. Isso pode parecer paradoxal, se atentamos para o fato de que
o poder está em toda parte e não apenas nos fatores externos, pois, se ele a tudo
domina, seria talvez infundado lutar contra sua força. Para Barthes, no entanto, a
desconstrução do poder é possível dado o caráter polifônico do discurso.
Sendo assim, o mesmo trabalho da linguagem que constrói certa realidade e
insere um poder, pode libertar o discurso, já que este pode ser combatido em seu
interior. Dessa forma, o projeto de transformação social do mundo não pode se
desvencilhar do projeto de transformação da linguagem, que esse está
diretamente ligado ao social.
A transformação de qualquer mecanismo de poder não pode ocorrer sem que
haja a transformação de velhos mecanismos de dominação, aos quais o discurso
serve de instrumento. Essa seria a única forma, segundo Barthes, de formação de
um novo sujeito que não se prenda a uma ideologia que o controle o adestre.
A literatura de autoria feminina, como vimos, caminha exatamente em busca
da desconstrução do discurso dominante, que aponta para o poder do patriarcado,
buscando uma revisão da representatividade das mulheres na sociedade e
questionando a ideologia dominante. Com a mudança do discurso, a ideologia que
60
cerca o signo feminino e, consequentemente, a representação feminina, pode sair
das garras do poder imposto pelos tempos e pelos homens.
O discurso patriarcal, tido como natural, único e imutável, pode ser questionado
e derrubado, trazendo novos conceitos aos signos linguísticos e aos signos
extralingüísticos, representados na sociedade e na literatura, transformando a
realidade social da sociedade contemporânea.
3.2 O Discurso e o Foco Narrativo
Com tudo que foi dito anteriormente, fica evidente a relação entre o discurso e
a ideologia, pois, por meio do discurso podemos notar e modificar ideologias. No
presente trabalho, a idéia de que o discurso é uma forma de apontar singularidades
femininas baseia-se no poder do discurso.
Em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, por meio do foco narrativo múltiplo,
temos contato não apenas com um discurso, mas com três diferentes discursos,
que, possivelmente, explicitam três diferentes personalidades.
Para que possamos construir um panorama da representação de cada
personagem feminina dessa obra, temos que observar alguns traços dos discursos
proferidos por estas, pois é a partir do discurso que se explicitam para nós, leitores,
os traços de cada uma. É através dos discursos que podemos pensar na alternância
de visões (foco narrativo), e como as narradoras-personagens se posicionam no
mundo e em relação as coisas que as cercam, afim de estabelecer comparações e
ressaltar as diferenças e particularidades de cada uma delas.
Como já vimos, o discurso é que tem todo o poder na esfera social. É o
discurso quem pode romper e construir conceitos e, em As Meninas (1985), Lygia
Fagundes Telles trabalhou o discurso com o foco narrativo múltiplo, formando uma
esfera de significados e conceitos que constroem uma nova possibilidade de
representação. A obra apresenta a construção de figuras singulares por meio da
enunciação, que apenas pelo discurso podemos chegar às particularidades das
personagens, que são, por seus corpos, estereotipadas de acordo com os padrões
dominantes.
Segundo Bakhtin, a enunciação tem natureza social e, não, individual, pois “a
fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez,
61
estão sempre ligadas a estruturas sociais” (BAKHTIN, 1981, p. 14). Pensando dessa
forma, “todo signo é ideológico; pois a ideologia é um reflexo das estruturas sociais;
assim, toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua”
(BAKHTIN, 1981, p. 15). Ou seja, todo discurso traz consigo ideologias formadas
pelo meio social e pela formação individual.
Por isso, faz-se necessário, antes de qualquer coisa, entendermos o que é o
dialogismo segundo Bakhtin.
O discurso é, também, formado pelo “discurso de outrem” (BAKHTIN, 1981, p.
144), ou seja, na língua sempre discursos de outras pessoas que “emprestamos”
na hora de proferir nosso próprio discurso. Assim, o discurso compreende uma
mistura de ideologias pessoais somadas às ideologias do outro:
A língua não é o reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas das
relações sociais estáveis dos falantes. Conforme a língua, conforme a
época ou os grupos sociais, conforme o contexto apresente tal ou qual
objetivo específico, vê-se dominar ora uma forma ora outra, ora uma
variante ora outra. O que isso atesta é a relativa força ou fraqueza
daquelas tendências na interorientação social de uma comunidade de
falantes, das quais as próprias formas lingüísticas são cristalizações
estabilizadas e antigas. (BAKHTIN, 1981, p.147)
Essa característica fica muito clara em As Meninas, pois em muitos momentos
vemos o discurso de uma das narradoras-personagens no de outra, mesmo que
apresentem ideologias diferentes, por vezes, vemos a grande influência que têm do
contato com o discurso do outro e do outro meio.
Seguindo esse pensamento bakhitiniano, o discurso, para análise das
diferentes visões da obra As Meninas, é um dos fatores de grande relevância, já que
através das múltiplas vozes presentes na obra podemos desvendar as visões e a
ideologia de cada uma das narradoras-personagens e, também, o “discurso de
outrem” que aparece, por vezes, nos discursos de cada uma das narradoras, além
de podermos, através do discurso, notar o posicionamento que têm perante a
sociedade em que vivem.
O dialogismo, assim, parte do princípio de que todo ato de linguagem sempre
leva em conta a presença (ainda que ausente) de alguém para quem se fala ou
escreve, ou seja, todo o ato de linguagem, que tem sempre um interlocutor, tem a
intenção de convencer de persuadir o leitor ou o ouvinte e também tenta prever as
possíveis reações desse público.
62
Assim, constituir-se-ia o diálogo, pois traria embutido, no ato da linguagem,
todas as respostas, as críticas e os comentários, ou teria suas respostas antes
mesmo de haver enunciação.
Quando lemos um romance, não são apenas as personagens que interagem
entre si, mas, também, a interação delas com o leitor de tal obra. O autor, ao
escrever, já supõe, também, um leitor.
As idéias das personagens são veiculadas por meio de suas vozes e o sujeito
que fala no romance é essencialmente social, historicamente concreto e definido e
seu discurso é uma linguagem social (ainda que em embrião), e não um “dialeto
individual”‟(BAKHTIN, 1988, p.135), ou seja, o discurso de uma personagem traz,
em si, toda a ideologia de um meio, de um tempo, de um povo.
As particularidades da palavra dos personagens sempre pretendem uma
certa significação e uma certa difusão social: são linguagens virtuais. Por
isso, o discurso de uma personagem também pode tornar-se fator de
estratificação da linguagem, uma introdução ao plurilinguismo (BAKHTIN,
1988, p. 135).
Assim, vemos que o que vai marcar o discurso de cada personagem é a
argumentação, ou seja, qualquer obra, através de seu discurso, tenta nos convencer
do que é dito, assim como todo e qualquer discurso (real ou literário).
A esse discurso vêm ligados os atos das personagens. “A ação,
comportamento do personagem no romance são indispensáveis tanto para a
revelação como para a experimentação de sua própria ideologia” (BAKHTIN, 1988,
p. 136), ou seja, os comportamentos têm que ligar-se ao discurso proferido.
Bakhtin também defende, em sua obra Problemas na poética de Dostoievsky
(1981), que dois tipos de escritores: os monológicos e os polifônicos. “A polifonia
pressupõe uma multiplicidade de vozes plenivalentes nos limites de uma obra, pois
somente sob essa condição são possíveis os princípios polifônicos do todo”
Para o desenvolvimento de nosso estudo, faz-se indispensável o estudo do
autor polifônico, que coloca falas nas personagens e essas falas podem discordar
totalmente dos valores e ideologias do narrador. Nesse tipo de narração, não
uma verdade que deva ser seguida. Não apenas uma visão sobre algo.
pontos de vista divergentes, que não formam uma verdade absoluta, mas um leque
de possibilidades e verdade alguma.
Em As Meninas, temos a presença de cinco vozes, e, pelo menos, três pontos
de vistas diferentes que são seguidos, com ideologias, personalidades e atitudes
63
diferentes. Por vezes, vemos que uma voz discorda da outra e que uma voz até
mesmo questiona a outra.
Para Bakhtin (1981) o discurso deve ser polifônico, aberto às contradições e às
críticas de suas limitações, causadas por essa multiplicidade de vozes que formam o
todo e, nesse discurso, deve-se considerar, também, a dialogia.
Os estudos do dialogismo e da polifonia de Bakhtin, assim, contribuem para a
análise de foco narrativo de As Meninas, pois, já que todo discurso traz uma
ideologia, cada discurso, é claro, apresenta um ponto de vista marcado e diferente
que o distingue dos demais. Somente uma observação minuciosa nos traços dos
discursos de cada narradora (portadoras de voz) pode marcar qual a ideologia de
cada uma delas, quais as verdades e valores de cada uma.
Além disso, o discurso é um meio de desnudar qual a relação de poder
presente nas inter-relações da obra, lembrando que o poder do discurso é o
responsável pela representação, que é ditada por quem tiver a dominação da
ideologia transferida pelo discurso.
3.2.1 O foco narrativo e sua contribuição na construção das personagens
Ao atentarmos para a obra As Meninas (1985), uma de suas características
mais subjacentes é a construção da focalização múltipla como recurso para o
adentramento na personalidade representada por suas personagens.
Essa construção permite uma maior aproximação da ideologia de cada uma
das personagens, pois elas são apresentadas externa e internamente, por meio de
suas próprias visões e por meio da visão das outras personagens a respeito delas.
Seguindo estudos estruturalistas, a abordagem do foco narrativo, é um dos
mais importantes recursos da estruturação da diegese, que configura uma de
suas características que permitem o conhecimento das personagens de uma
narrativa (Aguiar e Silva, 1984)
É importante ressaltarmos que a função da narrativa é contar uma história,
relatar fatos (reais ou fictícios); “(...) o romancista precisa expor, contar, narrar que
mais pode fazer? Seu livro, em última análise, é uma série de afirmativas”
(LUBBOCK, 1976, p.46) e o foco narrativo trataria de qual seria a personagem cujo
ponto de vista orientaria a perspectiva narrativa, seria a visão que o narrador
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seguiria. “Pode-se contar mais ou menos aquilo que se conta, e contá-lo segundo
um ou outro ponto de vista” (GENETTE, 1995, p.160).
Genette afirma que “a distinção entre os diferentes pontos de vista nem sempre
é tão nítida quanto a simples consideração dos tipos puros poderia fazer supor”
(1995, p.190), no entanto, na narrativa As Meninas, os diferentes pontos de vista são
evidentes pela distinção entre os discursos das três narradoras. Fica claro que cada
uma traz um posicionamento diferente perante os mesmos fatos, tudo isso por
serem personagens dotadas de voz e por terem ideologias diferentes e
independentes umas das outras, ideologias essas apontadas por meio do discurso.
“A adoção sistemática do ponto de vista de uma das personagens permite
deixar numa quase completa obscuridade os sentimentos do outro e, desse modo,
constituir-lhe sem grandes custos uma personalidade misteriosa e ambígua”
(GENETTE, 1995, p.199). Em As Meninas, vemos que quando a focalização é
interna em uma delas, por exemplo, em Ana Clara, é externa na outra e assim
conseqüentemente.
O que nos chama a atenção e o que contribui para uma maior significância do
texto é que se trata de uma obra com três narradoras autobiográficas, mas que
também narram os fatos das vidas umas das outras, não abordando, assim, apenas
os próprios fatos, mas, também, os das amigas.
Faz-se mister apontar que “o narrador autobiográfico não tem razão nenhuma
para se impor o silêncio, não tendo qualquer dever de discrição em relação a si
próprio” (GENETTE, 1995, p.197). Vemos que as três narradoras da obra aqui em
análise assim o são. No entanto, como três vozes e três pontos de vista distintos,
esse efeito não é mantido e somos levados a várias possíveis verdades e a vários
indícios de possibilidades interpretativas.
Essa técnica de ficção da múltipla focalização tem êxito, podemos constatar, na
intenção da literatura de autoria feminina que busca dar a mulher singularidades e
rompimento com representações padronizadas e preconceituosas, pois é uma
técnica que torna possível desnudar uma personagem de vários pontos de vista,
abordando o interior e exterior das figuras representadas na narrativa.
Não é a toa que essa cnica tornou-se mais freqüente nas obras pós-
modernas e contemporâneas, pois favorecem a plurisignificação dos textos
narrativos e reflete, também, a fragmentação moderna da sociedade, respondendo
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aos novos anseios da literatura, de preocupação com a significação do texto na
sociedade.
Por meio dessa técnica de focalização múltipla, o narrador (ou narradores)
mergulha na vida íntima das personagens, desnudando seus pensamentos e
sentimentos (através, por muitas vezes, do fluxo de consciência) e desvendando
seus mistérios e seus posicionamentos sociais, o que faz com que uma figura possa
mostrar-se como se vê, como é vista e, algumas vezes, deixando possibilidades de
o leitor formar o que acredita que ela seja de fato.
Lubbock (1976) afirma que “mergulhos ocasionais e desnecessários na vida
íntima das personagens só confundem o efeito, mudando o foco sem um rendimento
compensador”. (p.52), contudo, nos romances contemporâneos (da década de 70
para cá), essa confusão de efeitos é propositalmente buscada, como uma tendência
técnica e de significado, já que se busca mostrar a relação do homem com a
sociedade, sendo este também por vezes complexo, incompleto e fragmentado.
É importante ressaltar que a técnica da focalização múltipla não surgiu nesse
momento, pois em obras de outros períodos também fora utilizada, mas foi na
modernidade que ela encontrou maior aceitação e uso, justamente, como
apontamos anteriormente, por transparecer, na obra, além de uma fragmentação da
vida moderna, que se tornou evidente e corriqueira a partir desse período, uma
maior significação do que está presente no texto.
É interessante que em romances que usam a focalização múltipla,
normalmente “existe, no meio da ação, alguém que é claramente a pessoa
destinada a interpretá-la para nós, e a ação, por conseguinte, será vista do ponto de
vista dele ou dela (LUBBOCK, 1976, p.53), mas, aqui, em As Meninas, não
podemos afirmar claramente qual o ponto de vista “guia” da obra, pois as três
narradoras-personagens são de aparente igual importância no desenvolvimento dos
fatos e dos conflitos.
Contudo, “o autor pode usar o campo de visão da personagem e conservar-se
escrupulosamente dentro dele, como se a personagem falasse por si mesma“
(LUBBOCK, 1976, p.158), o que acaba por confundir ou disfarçar a visão de tal
momento e de tal personagem, pois a voz será desta, mas não o ponto de vista.
Outro apontamento interessante é notarmos como essa múltipla focalização
“dramatiza” o romance, ou seja, faz com que seja possível detectar cenas em seu
desenvolvimento. O próprio romance de Telles que estamos aqui analisando foi
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cinematografado, talvez por sua proximidade com obras da literatura dramáticas.
Essa dramaticidade é causada, justamente, por essa multiplicidade de narradores e
de focos narrativos, que acabam por formar vários universos que se cruzam e se
completam, formando toda uma atmosfera verossímil e ricamente significativa.
Se o próprio contador de histórias estiver na história, o autor será
dramatizado; suas asserções ganharão peso, pois serão amparadas pela
presença do narrador na cena descrita. É a vantagem que se tem; o autor
transferiu sua responsabilidade, que agora está onde o leitor pode ver e
medir; a qualidade arbitrária que, a qualquer momento, se detecta na voz
do autor, é disfarçada pela voz de seu representante. Nada se importa de
fora da história; independente, ela não tem associações com ninguém fora
de seu círculo (LUBBOCK, 1976, p.155).
Ou seja, ao colocar narradores-personagens que contam por si mesmos suas
histórias, suas angústias, suas visões (referentes a si próprios e aos outros), o autor
transfere para essas personagens (narradoras) a responsabilidade de suas atitudes
e pensamentos.
Aqui, com em outros romances de focalização múltipla, “ninguém expõe e
ninguém explica; a história é representada pelo seu aspecto e pelo seu
comportamento em determinados instantes” (LUBBOCK, 1976, p.156). Temos a
visão de três meninas inseridas em um mesmo contexto histórico, porém advindas
de realidades sociais, culturais e familiares distintas, que se refletem, se chocam e
se completam nas ideologias apontadas no momento de seus discursos,
desnudando suas singularidades e formando representações ímpares, bastante
divergentes das padronizadas na história da literatura.
3.3 O Corpo como Representação
Além da representação contida no discurso e em suas múltiplas possibilidades,
o corpo é um meio de representação que também traz em si valores e que também
é julgado e visto de acordo com a ideologia dominante, que o escraviza e o delimita.
Ao atentarmos para essa relação literatura e representação social, vemos
claramente que o gênero sempre trouxe bastante marcado em si a representação do
corpo, que este, segundo Grosz, “deve ser visto como um lugar de inscrições,
produções ou constituições sociais, políticas, culturais e geográficas” (Apud Xavier,
2007, p.23).
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Em toda tradição literária e artística, o corpo feminino foi sempre representado
de forma bastante caricata: o corpo masculino comumente aparece como forte, viril,
dominador e sensato; enquanto o corpo feminino valorizado aparece como delicado,
frágil e indefeso, mostrando que, em nossa sociedade, a imposição de posturas
aprisiona e dita a forma do corpo ideal e, consequentemente, suas oposições, que
acabam por ser qualquer característica diferente das esperadas, aprisionando
homens e mulheres em conceitos que os delimitam e os castram.
Podemos ver, dessa forma, na literatura, uma realidade social que lhe é
transportada: o mito do eterno masculino, de Bourdieu (2005), em que fica bastante
clara a tradição cultural que impõe os “lugares” de cada um dos sexos, que
estabelece tipos a serem seguidos e que cobra de ambos os sexos posicionamentos
e ações estigmatizados.
Como apontamos no capítulo anterior, alguns modelos de corpos femininos
foram freqüentemente abordados na literatura tradicional e, nesses modelos, a
mulher dotada de valores positivos, seguindo a ideologia patriarcalista dominante, é
comumente restringida ao seu corpo, sendo-lhe proibidos os pensamentos e o
discurso.
Dessa forma,
a corporalidade feminina, sempre frágil e vulnerável, é usada para justificar
as desigualdades sociais; a vinculação da feminilidade ao corpo e da
masculinidade à mente restringe o campo de ação das mulheres, que
acabam confinadas às exigências biológicas da reprodução, deixando aos
homens o campo do conhecimento e do saber (XAVIER, 2007, p. 20)
Essa relação está profundamente enraizada em nossa tradição e, a hoje,
vemos que esse modelo é assimilado ainda frequentemente em toda a sociedade,
que acaba por infiltrar e por figurar as caricaturas apresentadas por uma tradição
machista e por reproduzir tais modelos na literatura, na televisão e em todos os
meios de comunicação e de formação, que colaboram com a imposição e
eternização de conceitos relativos à representação do corpo.
A crítica feminista, no entanto, mostra “grande interesse em trabalhar a questão
do corpo, colocando-a, muitas vezes, no centro da ação política e da produção
teórica” (XAVIER, 2007, p. 20). Seguindo o pensamento feminista e o despertar que
ele causou, algumas escritoras, como Lygia Fagundes Telles, abordam, em suas
68
narrativas, personagens que podem ser grandes fontes de representação corporal e,
conseqüentemente, social.
Essa questão da representação corporal tem sido abordada constantemente
por sociólogos, psicólogos, antropólogos e críticos de artes, pois fica evidente que é
uma forte fonte para conhecimento de práticas sociais e representações artísticas
(reflexos das práticas sociais).
A dominação masculina, abordada por Bourdieu (2005), que evidencia que
todos os seres da sociedade ocidental vivem dentro de uma realidade que mostra
como natural a superioridade dos homens sem ver que são, de certa forma,
escravizados por esse pensamento, deixa evidente a crença na superioridade do
sexo masculino imposta pela sociedade (cultura), exercendo total poder em relação
às mulheres, impondo padrões e também regras a serem seguidas.
Todos esses padrões e regras acabam por refletir-se na representação do
corpo, que esse, de acordo com a crítica feminista, “deve ser visto como uma
ação (acting), isto é numa relação dinâmica ou estática com alguma coisa, pois
assim manifesta suas especificidades” (XAVIER, 2007, p. 26).
Esses padrões nos levam, consequentemente, a um sistema de classificações,
que enquadram homens e mulheres em categorias predeterminadas, de acordo com
as características da representação de seu corpo: homens e mulheres buscam, sem
que tenham consciência disso, um modelo ditado ideal para casos específicos e
assim vão surgindo homens e mulheres ideais para o casamento, homens e
mulheres ideais para o mercado de trabalho e homens e mulheres ideais para o
sexo descompromissado e puramente prazeroso.
Pensando nessa realidade, Pravaz (1981), afirma que “a existência de
categorias como sistema de classificação que ordena o mundo é Universal” (p.17) e
desenvolve em seu estudo um trabalho em que discute os diferentes arquétipos
femininos estabelecendo paradigmas com base em três deusas da mitologia grega:
Hera, Afrodite e Atena.
As mulheres são divididas em nossa sociedade, de acordo com a ideologia
dominante, em três categorias: doméstica (esposa, mãe e dona de casa), sensual
(amante e cortesã) e combativa (guerreira, rival e indiferente), de modo que os três
modelos taxativos se encontrariam presos a um severo sistema de direitos e deveres
que precisa ser revisto como forma de liberação feminina.
69
No entanto, na sociedade contemporânea, a mulher não pode restringir-se a
apenas um papel, pois a política social e econômica fez surgir a figura da mãe-
mulher-guerreira, que se envolve em três espaços distintos: o lar, o homem e o
exterior e, ainda assim, sofre a dominação de regras de conduta impostas ao longo
do tempo e de uma tradição patriarcal.
Segundo Pravaz,
Ser mãe em lares sem pai, ou mulher erótica num mundo onde a
homossexualidade está cada vez mais difundida, ou independente-
autônomas em circunstâncias de séria crise econômica mundial, traz
alguns inconvenientes que não foram previstos quando os deuses
inventaram o Olimpo e nos designaram Deusa Doméstica (Hera), Deusa do
Amor (Afrodite), Deusa da Razão Guerreira (Atena). (1981, p.20)
Assim é necessário que haja a revisão dos conceitos estabelecidos, sendo
fundamental atentar para o fato de que existem duas perspectivas para a utilização
da classificação das mulheres em estilos: a primeira seria a tarefa, que representa o
papel que a mulher está desempenhando em determinado momento e a segunda
seria a ideia, isto é, o estilo mais dominante em determinada mulher.
A idéia da mulher é formada por características político-culturais e econômico-
sociais, que são responsáveis pelo sistema de classificação e pelo desprestígio ou
prestígio de algumas categorias e, segundo Pravaz, a família é uma das instituições
responsáveis pela perpetuação dos modelos, de acordo com sua cultura, classe
social e as próprias características dos membros que a compõem (1981, p. 22).
É fundamental, no entanto, evidenciar o fato de que além da idéia, todas as
mulheres também podem assumir outras características, de acordo com a tarefa que
esteja realizando: uma mulher pode ser criada e vista como uma grande batalhadora
e, ao mesmo tempo, desempenhar e ansiar o papel de uma mãe de família e esposa
ideal.
Pravaz (1981) acredita que seja necessário que a mulher seja repensada a
partir de sua própria perspectiva, pois assim pode alcançar a quebra dos
preconceitos que as fixam em papeis predeterminados e alcançar liberdade.
É exatamente o que sugerem as personagens de Lygia Fagundes Telles, em
As meninas (1985), que apresentam uma ideia estereotipada e, mesmo que hajam
de acordo com essa idéia, anseiam desenvolver outras tarefas, mostrando também
que o universo feminino não pode ficar restrito apenas ao corpo, ao comportamento
(estereótipos), mas a pensamentos, sonhos e objetivos pessoais e únicos.
70
3.3.1 Hera: a mulher doméstica
A figura representativa da deusa Hera é a figura da esposa ideal, mãe e
doméstica, que serve e cuida do marido; não importando o que aconteça no
casamento, sempre irá manter as aparências e preservar a imagem do marido e
mostrá-lo como homem ideal.
É interessante lembrar que, antes da revolução feminista, a grande maioria das
mulheres se comportava como Hera, aceitando a infidelidade de seus maridos de
forma passiva e vivendo a maternidade sem qualquer desejo de ser mãe.
Hoje, muitas “Heras” negociam a existência ou não de filhos no relacionamento,
mas a maioria ainda segue o padrão ditado pelo patriarcalismo, rendendo-se sempre
às vontades do marido dominador, pois acredita que o casamento seja doação e
compromisso.
Segundo Pravaz (1981), a mulher segue a mandatos familiares, e a mulher
doméstica, nesse sentido, é o estilo de mulher que é considerado o grande pilar de
nossa sociedade. A existência da família é o valor central e o papel das mulheres
nessa instituição, sejam elas filhas ou mãe, é dar continuidade à transmissão das
mensagens familiares.
Dentro dessa concepção, a mulher deve ser boa administradora, generosa
(sacrificando-se pelo bem dos seus), com princípios e valores que sempre deve lutar
para defender:
A mãe desse estilo de mulher é uma figura onipotente e onipresente. É a
que organiza as relações sociais e econômicas da casa, dos filhos e, até
certo ponto, do marido. O pai está fora do lar, cuidando dos aspectos
econômicos honoráveis da família (PRAVAZ, 1981, p. 76)
Para a mulher doméstica, o corpo é tido como fonte de vida e de alimentos,
que o como uma central produtiva de filhos. Dessa forma, toma para si todas as
características biológicas que a determinam enquanto mulher e as usa como um
escudo, defendendo a idéia de que consiste na origem da vida, vinculando-se à idéia
de procriação e extinguindo a atividade sexual fora de qualquer outro objetivo que
o a maternidade. (PRAVAZ, 1981)
Nesse sentido, a mulher apresenta grandes preocupações relativas a possíveis
enfermidades que a possam impedir de exercer seu papel de mulher-mãe e esposa
submissa. Ao mesmo tempo, essas doenças passam a ser uma maneira de ela
poder encontrar refúgio em si mesma; daí a tendência hipocondríaca que lhe é
71
subjacente e pode ser vista como forma de defesa de si mesma, como a única forma
de possuir o próprio corpo.
O filho é a grande bandeira da mulher Hera, pois significa o poder de manipular
o homem (marido) e de exercer uma posição de privilégio como grande geradora da
vida. No entanto, ao mesmo tempo em que a felicita, o filho a prende ainda mais,
pois toda a responsabilidade de criação, de educação e de exemplos aa vida
adulta é dela, que se sente vazia e abandonada quando, com a chegada da vida
adulta, seus filhos partem (PRAVAZ, 1981).
Em relação ao trabalho, a “mulher-Hera”, atualmente, busca por realização e
valorização pessoal, no entanto, vive em conflito em relação à maternidade, ao lar e
ao marido. Assim, posterga seu desejo e dissimula suas atividades, com o medo de
ser criticada.
O trabalho, para ela, é necessário para não sentir-se humilhada, mas não
acredita que seja ele sua real função, que continua a ver na família sua principal
dádiva e o trabalho de forma secundária, fruto da natural força e intelectualidade
feminina. Acredita que, na realidade, a função da mulher é zelar pelos seus (filhos e
marido), mesmo que por vezes seja ela mesma a responsável pelo sustento do lar.
No entanto, o principal objetivo desse estilo de mulher é conseguir um bom
casamento. Essa é a grande forma de realizar-se na vida. “O homem é o principal
destinatário das preocupações e do desvelo, não como uma pessoa diferente, mas
como um pedaço dela mesma” (PRAVAZ, 1981, p. 125). Para essa mulher a
autonomia não é necessária e o marido é a condição de sua existência.
Esse é também, para a maioria dos homens, o modelo de mulher desejável,
que doará sua vida e fada vida de seu companheiro a sua própria, seguindo seus
passos e garantindo a sua segurança, ficando, ela também, segura, pois desfrutará
de espaços familiares conhecidos, definidos e fechados, que a protegerá dos
perigos do mundo externo.
Cria-se uma estrutura de segurança, formada pela casa e pelos filhos, que
lhe permitem olhar a cena externa e decidir quais seriam as ações mais
acertadas, sem a necessidade concreta de realizá-las, que é o homem
quem se encarregará da ação. (PRAVAZ, 1981, p. 126).
A grande realização da mulher é ver seu homem realizar-se. Sente-se também
vitoriosa, pois acredita que as vitórias de seu companheiro se devem ao seu apoio
incondicional. No entanto, o grande problema desse estilo de mulher é que parte
sempre do pressuposto de que os sentimentos tidos como ruins entre os casais
72
devem ser evitados, como a ira, o ódio e as agressões, o que leva às mulheres
impostas em tal modelo a silenciarem-se frente a qualquer desentendimento, tendo
como reflexos auto-ataques no corpo e na estima.
3.3.2 Atena: a mulher combativa
A “mulher Atena” é a mulher guerreira, que pode ser comparada à deusa
combativa por sua determinação e princípios. A sábia Atena é uma deusa nascida
sem mãe, ou pelo menos de uma mãe ausente, sufocada/ engolida e de um pai
dominador (Zeus). Por isso, a sua família pode ser aproximada à típica família
patriarcal. No entanto, Atena se espelhou no pai, adotando para si valores tidos
como masculinos, como a justiça, o combate e a sabedoria.
Muitas mulheres, ao nascerem em lares tradicionais e ver a realidade de suas
mães, subjugadas e inferiorizadas, passam a sonhar em “serem homens” para
poderem alcançar a liberdade e a independência, que lhes parecem tão distantes da
realidade feminina.
algum tempo, as mulheres guerreiras ou combativas sofriam os mais
variados preconceitos dentro da sociedade, pois tinham (e buscavam ter)
inteligência igual ou superior a dos homens, mas não podiam se expressar visto que
não tinham voz dentro da sociedade, já que o discurso e o pensamento eram
considerados atributos possíveis apenas aos homens. No entanto, na sociedade
contemporânea, as “Atenas” são muito valorizadas por mostrarem capacidade
intelectual, responsabilidade e destreza para os mais variados trabalhos.
No campo dos relacionamentos amorosos, Atena é atraída por homens
semelhantes a Zeus ou aos heróis, que a deusa protegia e sempre atua como co-
criadora e conselheira deles, modelo do relacionamento „perfeito‟ no mundo
moderno. Por outro lado, as mulheres-Atenas são aprisionadas por esse mesmo
modelo, visto que foram criadas para achar que o pai/homem tem o poder e que por
isso m que se igualar a ele para se destacar na sociedade, revelando o controle
patriarcal do poder intelectual.
Em seu mandato familiar, a mulher combativa tem posicionamentos bastante
claros e delimitados. no trabalho “condição necessária e suficiente para justificar
e garantir a inclusão afetiva” (PRAVAZ, 1981, p. 81). No entanto, vive uma relação
73
delicada com sua família de origem. Geralmente são mulheres criadas em
ambientes onde a figura da mãe obedeceu sempre às imposições do domínio
paterno, sem reivindicar e nem protestar, assumindo uma espécie de imagem
tristemente heróica e silenciada. A filha, no entanto, vê na mãe uma figura de
fraqueza e, no pai, o modelo de força, liberdade e independência, nutrindo por ele
uma espécie de admiração e ódio.
Assim, a necessidade de afastamento é inerente, já que essa mulher combativa
cumpre, geralmente, um destino individual, discriminado e solitário, pois a nostalgia
da mãe é grande, mas é transformada em força para o trabalho e para a luta.
O corpo, para a mulher combativa é um “intermediário entre as ordens emitidas
pela cabeça e os objetivos a serem alcançados” (PRAVAZ, 1981, p. 93). Assim, vê-
se como a dona do próprio corpo, mas o renuncia, para não aproximá-lo do corpo da
mãe, figura facilmente dominável. Assim, o corpo não pode nunca ser detido: é
necessário que ele combata.
Para esse estilo de mulher, a sedução independe do corpo. Ela deve vincular-
se às palavras e ao encanto intelectual, sendo o corpo colocado em último plano,
que para essa mulher, sua força está nos pensamentos e na inteligência e, não, em
sua forma física.
No entanto, o corpo da mulher combativa busca por relações sexuais
satisfatórias, pois acredita que ela mesma comandará seus orgasmos, mostrando,
assim, que é agente de seu corpo e de suas escolhas.
Quando se torna mãe, sente-se ameaçada, pois que é mulher e teme cair
nas armadilhas do domínio masculino e subjugar-se. No entanto, na maternidade
uma forma de mostrar que sua inteligência e força não esterilizaram sua ternura e
sua capacidade de criação.
Geralmente, a mulher-mãe-combativa é criticada por não apresentar as
características “fundamentais” de uma mãe, pois se oferece em uma relação de
igualdade com os filhos e, não, de doação total e incondicional, encontrando, na
maior parte das vezes, a incompreensão de seu companheiro, que não se sente
também no papel de protetor da criança, por acreditar que a abdicação da vida
profissional e particular em detrimento dos filhos seja uma realidade natural e
incontestável da mulher.
Mas tentar afastar a mulher combativa de seu trabalho e de sua independência
é tentar afastá-la dela mesma.
74
Então a identidade feminina será definida a partir dele, e a mulher será
exigida cada vez mais através de canais profissionais, e começarão a
marcar seu estilo e suas motivações. O trabalho, buscado e querido como
libertador, se transforma no instrumento básico da alienação. O maior
Direito, o maior Dever. (PRAVAZ, 1981, p. 115)
O trabalho é sua força, seu poder de escolher sua própria vida. Contudo, essa
escolha pode ser muito dolorosa, pois a mulher combativa sente-se totalmente
desamparada e inútil em seus momentos de ócio e em momentos de desemprego.
Sente-se perdida, fraca e inútil, tal qual a mulher doméstica sente-se quando a
ausência do marido e dos filhos.
Em sua relação com os homens, a mulher combativa teme perder-se de sua
força e cair também na subjugação sofrida por sua mãe, pois para ela, “o encontro
„amoroso total‟ é perigoso. O maior perigo é a perda da identidade, a
indiscriminação, em última instância, a passividade, a quietude , o conformismo e a
inércia (PRAVAZ, 1981, p. 132).
Assim renega o amor romântico, a paixão e o erotismo, pois considera tais
sentimentos perigosos e dispensáveis, pois essa mulher acredita e defende o amor
solidário e companheiro fraterno e amigo, pois o homem não deve ser objeto de
desejo explícito.
É interessante apontar que a mulher combativa faz isso porque acredita que
esse seja o amor que causa completude, pois, ao ver a doação da mãe e a solidão
de seu pai, busca combater essa situação com um amor comedido, calculado.
Para a mulher combativa, a “auto-exigência é permanente e tudo, desde o
cuidado com os filhos, inclusive o prazer, é uma tarefa, uma atividade, uma
„militância‟” (PRAVAZ, 1981, p. 135).
3.3.3 Afrodite: a mulher sensual
Chegamos à Afrodite: a mais bela de todas as deusas que, no entanto, foi fruto
de um violento ato de castração do membro ereto de seu pai.
Nascida no mar, a deusa sente-se carente de uma figura feminina
representativa e busca, a todo momento, devolver a seu pai a ereção perdida e
encontrar o abraço de sua mãe, que jamais a recebeu.
75
No entanto, a maior característica de Afrodite é que sua beleza a faz a mais
bela deusa do Olimpo e sua aparência perfeita a torna a deusa do amor e da
sexualidade.
A “mulher Afrodite” é a mulher que incita ao despertar paixões. É a amante que
rompe com o tédio e com a rotina, levando os homens a agir e pensar de acordo
com seus desejos sexuais.
Seu grande objetivo é despertar a atenção dos homens e sua maior conquista é
ser a escolhida por um cobiçado homem, que represente poder. Mulheres-Afrodite
são propensas a aventuras e são mais livres do que as outras deusas, mas também
simbolizam o poder do patriarcado subjugando as mulheres, transformando-as em
objetos de admiração ou prazer.
As atuais Afrodites são mulheres que não se deixam sufocar pelos antigos
costumes nem desprezam sua sensualidade e poder para a conquista, não se
envergonhando em seduzir e erotizar, sem qualquer repressão do desejo.
No entanto, segundo Pravaz (1981), a principal finalidade desse estilo de
mulher é fazer um bom casamento, que garanta a sua família a tranqüilidade de
estar usando seu corpo de uma maneira que lhe gere bons rendimentos financeiros.
Mas as “afrodites” também envelhecem e, com a perda da beleza física, descobrem-
se vazias e inexistentes, o corpo é o único lugar de significado para esse estilo de
mulher.
O conflito central que cerca a mulher sensual é a sua relação com seu corpo. O
corpo é para ela o meio de alcançar a glória, mas também a causa desassossego: é
um instrumento de poder, com o qual conseguirá conquistar o homem; por outro
lado, é o que a objetifica e o que a torna escrava, que a sua beleza não pode
nunca acabar.
Por ser a aparência física sua mais notável característica, outras qualidades
passam despercebidas ou são ignoradas, sendo essas mulheres singularizadas
apenas ao seu corpo e seu estereótipo, sem qualquer característica que não lhe seja
exterior. Por esse motivo, no trabalho, sua significância torna-se complexa, que
seus atributos físicos encobrem sua inteligência e que ela é tida, muitas vezes, como
uma mulher burra, que só no sexo pode ser exemplar e competente, dada a
significância do corpo.
A relação da mulher sensual também é contraditória em relação à maternidade,
pois acredita que o papel de mãe e de amante não sejam compatíveis. No entanto,
76
em alguns casos, acredita que o filho a redime da sensualidade sedutora, do
erotismo pecaminoso, das brigas e das traições, tornando-a uma mulher confiável e
respeitável Assim, o filho é um perigo tranqüilizador.
Para a mulher sensual, o grande prêmio que pode receber na vida é o homem,
que é seu grande destinatário. No entanto, ela, nas várias vezes, não possui o
homem e, sim, é possuída, colocando-se em uma relação de mercadoria e objeto
perante o homem.
Por meio da representação do corpo desses três estilos de mulher e com a
visão que todos nós, seres sociais, podemos ter da realidade extraliterária que nos
cerca, parece evidente que os modelos representativos das deusas engessam
mulheres em modelos que não conseguem enquadrar as singularidades de seus
Sujeitos.
Tendo essa realidade em vista, acreditamos que as mulheres reais e suas
representações não podem prender-se a apenas um modelo feminino, pois essa
ação minimizaria a mulher a uma condição de ser fragmentado e incapaz, que nasce
com a predisposição ou predestinação de seguir por dento e por fora uma realidade
construída para o seu corpo, tirando-lhe a capacidade de pensar e transgredir.
77
4 AS DEUSAS E AS MENINAS
Atentando para as características e temáticas abordadas pela literatura de
autoria feminina e relevando a condição feminina abordada pelos estudos
feministas, acreditamos que a obra As Meninas (1985), de Lygia Fagundes Telles,
oferece um particular e amplo panorama da condição das mulheres na sociedade
brasileira da década de 1970.
Com o respaldo do Estruturalismo, podemos observar que a autora dotou-se de
recursos estruturais característicos da literatura moderna, como o discurso indireto
livre e o foco narrativo múltiplo, que contribuem para maior fragmentação e, mesmo
assim, maior significação e exposição do texto literário, que podem ser melhor
exploradas com o respaldo pós-estruturalista. Tais recursos permitem que o universo
particular de cada menina seja abordado de forma a evidenciar suas ideologias e
singularidades.
Segundo Gomes (2008), “os romances brasileiros de autoria feminina
apresentam diferentes tensões entre as personagens padronizadas e
transgressoras” (p. 65). Ao abrirmos as páginas de As Meninas (1985), não
podemos imaginar o universo significativo de tensões que encontramos no decorrer
de suas linhas. A obra nos apresenta três narradoras-personagens, universitárias,
moradoras de um pensionato dirigido por freiras, durante uma greve na
universidade, com vozes independentes e histórias singulares de vida que as tornam
também ímpares e as fazem romper com os estereótipos apresentados por seus
corpos.
Além dessas três narradoras que participam da narrativa, temos a presença de
um narrador heterodiegético, que, no entanto, parece limitar sua voz apenas à
observação da diegese, como um “norteador de leitura”, em momentos em que a
mudança de assunto não possibilita ao leitor perceber a mudança de voz das
narradoras-personagens: “Apertou os olhos úmidos e colocou o disco no prato.
Mansamente levantou a agulha e a conduziu como bico de um pássaro cego aa
vasilha d‟água. Deixou-a tombar. (TELLES, 1985, p. 10).
Assim, essa voz que não é personagem na narrativa parece buscar
neutralidade e tenta manter-se fora do contexto do narrado e fora dos pensamentos
das personagens, apesar de, algumas vezes, alguns adjetivos contribuírem para um
pequeno adentramento do narrador no estado emocional das meninas: “A voz vinha
78
do jardim. Rapidamente ela arrepanhou a cabeleira, torceu-a na nuca e pôs-se nas
pontas dos s. Abriu os braços. Foi andando na listra em caracol do tapete, tensa,
como uma equilibrista num fio de arame” (TELLES, 1985, p. 10).
Ao afirmar que a personagem estava “tensa”, o narrador heterodiegético, de
alguma forma, mostra ter conhecimento do estado emocional e íntimo das
personagens, apesar de esses mergulhos internos não lhe serem freqüentes, pois,
na maioria dos casos, ele mantém-se distante e parece apenas direcionar a história,
como se estivesse direcionando cenas. Sua voz mistura-se com a das personagens,
mas nota-se que não há onisciência em seu discurso.
Contudo, a presença desse narrador não altera o nosso objetivo de abordagem
das representações femininas das três narradoras-personagens, antes colabora com
ele. Vislumbrar o contraste entre representações externas dessas personagens,
apresentadas pelos discursos do Outro, e seus interiores ímpares, apresentados por
seus próprios discursos, que as singularizam e as tiram de moldes preestabelecidos
é o nosso objetivo.
O discurso é a principal ferramenta das narradoras-personagens para mostrar
suas características pessoais, uma vez que a representação do discurso das
personagens é, por muitas vezes, contrária a representação de seus corpos, que
são vistos por todos e que são formadores de conceitos e preconceitos.
A busca por voz na sociedade é uma das grandes lutas da literatura de autoria
feminina, uma vez que às mulheres possibilidade de mostrarem-se como seres
singulares e pensantes, capazes de falar e agir.
Como vimos em capítulo anterior, o discurso é uma forma de poder e de
emancipação. Assim, uma vez que se considerem essas características, vemos que
as protagonistas de As Meninas mantêm-se presas a discursos que caracterizam
seus corpos quando falam entre si, mas rompem com esse modelo e amancipam-se
quando estão a refletir e a mostrarem-se como seres pensantes e conscientes da
condição da mulher, expostos sempre pelo fluxo de consciência e pelo discurso
indireto livre.
O papel da mulher na sociedade é implicitamente discutido na narrativa, uma
vez que as personagens buscam por lugares sociais que não são considerados
comuns para seus respectivos modelos femininos. O discurso íntimo de cada
narradora-personagem explicita o anseio de busca de saída do lugar comum a elas
predeterminado por seus corpos, uma vez que rompem com o esperado pela
79
sociedade patriarcal para seus modelos, por meio de “sonhos” não comuns a seus
modelos.
As meninas são apresentadas de forma superficial aos olhos dos outros e,
nesse âmbito, temos, primeiramente, a apresentação de Lorena, uma menina
tradicional que, em suas atitudes mais expostas ao olhar do outro, mostra-se o
exemplo da mulher desenhada pelo ponto de vista da ideologia patriarcal: submissa,
sonhadora, romântica e delicada, ou seja, características que são esperadas de uma
mulher na sociedade tradicional e são tidas como padrão a ser seguido, visando a
continuidade do bom comportamento no seio da família burguesa de valores
patriarcais.
É uma jovem da classe média alta, cheia de requintes e etiquetas
características de sua situação social: preza pelo europeu e pela tradição clássica,
que acredita ser inigualável. Para ligar-se ao requinte de sua figura, Lorena tem uma
educação sublime, cheia de miudezas e futilidades e, por isso, é tida, por muitas
vezes, como uma mulher til e alienada, característica que se acentua quando a
menina mostra seu interesse por assuntos tradicionalmente, dentro da ideologia
burguesa patriarcal, vistos como típicos do universo feminino, como roupas, chás e
conversas durante à tarde.
A outra figura feminina que compõe a obra é Ana Clara. Essa narradora-
personagem, ao contrário de Lorena, que é ligada a convenções, etiquetas, normas
e tradição, apresenta-se externamente degradada, envolvida com sexo liberado,
drogas, palavrões e roupas consideradas vulgares pela ideologia patriarcal
dominante.
A situação em que encontra parece decorrente de sua origem familiar. É filha
de uma prostituta e nunca teve a figura de um pai, sendo os amantes de sua mãe os
exemplos de figura masculina que cerceiam sua existência. Por sua situação
marginalizada na sociedade, nunca pode ter acesso a posses e bens a não ser por
meio do uso de seu corpo, como já o fazia sua mãe.
Apesar de tal realidade, a jovem também se encontra, no momento da
narrativa, morando em uma pensão de estudantes e é aluna do curso de psicologia,
apesar de estar afastada temporariamente do curso.
Além dessas duas figuras praticamente “opostas” temos ainda a narradora-
personagem Lia de Mello Schultz, uma jovem revolucionária, sem trejeitos eróticos e
80
tampouco delicados. Apresenta-se sempre pronta para batalhas, protestos e
revoluções.
Lia é filha de um homem alemão de classe média, que combateu na época do
nazismo e veio para o Brasil em busca de paz, e de uma nordestina representativa
das mulheres-esposas de acordo com os modelos patriarcais vigentes, mas rompe
com sua educação tradicional quando defende a revolução e a queda do poder do
governo/ideologia vigente.
Apesar de ser uma jovem com respaldo e estrutura familiar, poucas vezes faz
referência a sua família e apresenta total consciência de que não segue o modelo
feminino sonhado por seus pais. É estudante de ciências sociais, mas também está
com o curso temporariamente parado, pois dispõe de todo seu tempo e sua energia
em busca de seus ideais revolucionários. Além disso, Lia defende a cultura popular
e o Brasil, por ver, no nacional, valores superiores ao da cultura tradicional européia.
Ao traçar essas características das três personagens principais do romance,
somos convidados a estabelecer relações entre elas e os estereótipos das deusas
Hera, Afrodite a Atena, respectivamente. Podemos relacionar a figura de Lorena à
representação de uma mulher que busca seguir o modelo da mulher ideal, esposa
perfeita; por outro lado, a imagem do corpo de Ana Clara, altamente erotizada,
desnuda a mulher amante e, por fim, o corpo guerreiro e combatente de Lia mostra
características da mulher lutadora, trazendo para a literatura uma prática que, de
acordo com Pravaz (1981) é recorrente na sociedade patriarcal que adere valores
aos corpos femininos.
De acordo com Pravaz (1981), em nossa sociedade, por meio dos protótipos
formados por uma sociedade patriarcal, encontramos, de forma recorrente, as
características e os modelos dessas três deusas (três estilos de mulher) a nossa
volta. Isso se em função da ânsia pela busca de modelos prontos (e taxativos)
que são trazidos pela tradição e adentram a vida pós-moderna.
Segundo a estudiosa, nossa sociedade está condicionada a buscar modelos a
serem seguidos (tanto femininos quanto masculinos); mais que buscar, estamos
condicionados a nos encaixar em arquétipos que julgamos de acordo com os nossos
valores. Escolhemos e decidimos o que é bom ou ruim por meio de padrões
dicotômicos de qualidade que perduram por toda a história.
As mulheres, nesse sentido, estão acostumadas a serem subjugadas e não
questionar quais deveriam ser suas reais posições: aceitam “a divisão em reinos,
81
que provavelmente em seus começos havia riquezas para dividir, e cada uma em
sua categoria, gozava das regalias dessa condição” (1981, p. 19).
Ao aceitar ser encaixada em modelos que se apóiam apenas na imagem
exterior, compostos a partir de padrões positivos ou negativos, sancionados pela
ideologia dominante, a mulher aceita sua condição de ser em pedaços”. Nesse
sentido, assume o papel apenas do que mostra para a sociedade por meio de seu
corpo e de alguns de seus costumes: tudo sem respeitar as individualidades e
particularidades de cada um.
Se pensarmos nos arquétipos formados/perpetuados pelas três deusas gregas,
podemos questionar a possibilidade de haver, na sociedade atual, mulheres
meramente identificadas com Hera, ou com Atena, ou com Afrodite. Ao contrário
disso, parece-nos muito mais aceitável que as identidades femininas sejam
constituídas a partir da miscigenação dessas características, graças as diferentes
influências sociais e pessoais que cada mulher sofre e vive.
Em As Meninas (1985), Lygia Fagundes Telles abordou três caricatos e
recorrentes estilos de mulher a partir da estrutura de superfície dos códigos e
valores que regem a constituição de seus perfis. No entanto, por meio de estratégias
como o fluxo de consciência das personagens e do discurso indireto livre, pode-se
perceber que elas são muito mais complexas e profundas do que suas
características físicas e suas atitudes deixam transparecer. Trata-se de figuras
femininas marcadas pelo atributo da singularidade.
Com essa técnica de múltipla abordagem das personagens femininas, Lygia
Fagundes Telles apontou lados transgressores em cada estilo feminino, usufruindo
de uma tendência que Gomes (2008) afirma ser recorrente nas analises de gênero
nos últimos tempos, a fim de apontar a natural submissão da mulher como parte de
uma construção social (p. 65).
É como se a autora pudesse apontar várias personalidades femininas ao
mesmo tempo, que buscassem romper com a tida como natural situação em que se
encontram as mulheres de acordo com a representação de seus corpos. Trata-se do
questionamento do habitus abordado por Bourbieu (2005), que as três
personagens não seguem os modelos tidos como normais para as figuras por elas
representadas, apontando-se a singularidade de suas personalidades.
Por serem singulares, torna-se impossível seguir um esquema fixo de análise
para as três personagens de As Meninas (1985), pois, no decorrer de suas histórias
82
e características, nos deparamos com alguns traços que as mostram como mulheres
únicas, ainda que repletas de características abordadas com frequência pela
literatura feminina.
4.1 Lorena: uma Hera Mortal
A narradora-personagem Lorena, embora não possamos afirmar que apresente
maior destaque na história, inicio à narrativa e forma o primeiro protótipo
representado na obra. Aparentemente, como dissemos, é uma moça da qual a
sociedade teria orgulho, pois seus valores subjacentes são considerados dignos e
encaixados num padrão social que espera da mulher submissão, delicadeza e
futilidade. A moça está sempre apresentando às amigas (Lia e Ana Clara) normas
de etiquetas, de moda, de religiosidade e de conduta: -Mas que ideia, querida, usar
meia com este calor. E sapatões de alpinista, por que não calçou as sandálias?
Aquela marrom combina com a sacola” (TELLES, 1985, p. 10)
Tudo em sua vida, aos olhos alheios, parece carecer de utilidade. Suas
amigas/interlocutoras a julgam fútil e alienada, pois não conseguem admitir
características tão diferentes das delas. Veem na moça apenas uma figura de pura
delicadeza, fragilidade, falta de preocupações, além de fartura e segurança
econômica, que a tornam necessária e, por vezes, detentora do poder.
Apesar de suas companheiras de pensionato procurem-na em momentos de
necessidade, fica evidente que não creem em sua sensatez e agilidade para
resolução de problemas. Procuram-na porque ela é, para ambas, uma necessária
espécie de respaldo financeiro, que as socorre com freqüência, apesar de
considerarem seus discursos desnecessários e seus pensamentos vazios e
irritantes.
Para Lia, que é uma personagem que questiona os valores sociais vigentes na
sociedade, a amiga Lorena é o oposto do que julga sadio e útil: preza por hábitos e
produtos estrangeiros, acredita na superioridade da música estrangeira e da
culinária européia, assim como mostra-se alienada em relação a sua própria vida e
seus sentimentos. Nas palavras da própria Lia, Lorena é uma “fresca” (p. 12)
83
“Estou demais aperreada para ficar ouvindo sentimentos lorenenses” (TELLES,
1985, p. 11), afirma Lia ao ouvir referências da amiga sobre seu amor não vivido
com M. N., já que, para Lia, a vida é constituída de lutas e buscas concretas.
Ana Clara, por sua vez, apesar de não ter o lado social engajado como Lia,
também acredita que a Lorena não seja uma mulher perfeita, mas nela uma
espécie de modelo que queria poder seguir. No entanto, não pode, que é
construída como integrante de uma classe social marginalizada: teve uma infância
miserável que se reflete em sua vida adulta, cercada pelo universo das drogas. Essa
situação a impossibilita de pertencer à realidade de Lorena, pois é taxada pela
sociedade tradicional como uma mulher marginal, com poucas chances de
mudanças. Apesar disso tudo, considera a amiga fresca e tola:
-Quando bota aqueles óculos fica um inseto de óculos. E nem precisa deles,
enjoamento. Nnhem-nhem nhem-nhem. Você se lembra dela? Responde,
Max, você se lembra? Aquela bem magrinha. As duas têm inveja de mim
porque sou bonitona, elegante. Capa de revista. Então. A nhem-nhem
compra milhares de vestidos, a mãe manda malas de roupas. E daí. Não
veste nenhum, anda com aquelas calças e blusinhas de nhem-nhem.
Fala assim fininho, nhem-nhem-nhem. O irmão é diplomata. Manda milhares
de coisas. Adianta? Pomba, se eu tivesse a metade daquele guarda-roupa.
Chiquérrimo. (TELLES, 1985, p. 44).
Para Ana Clara, como o dinheiro é a forma de alcançar respeito e dignidade,
ser Lorena, ou melhor, pertencer à classe social de Lorena, é a forma de alcançar
tudo o que almeja. Embora considere a amiga feia e invejosa, algumas vezes, em
seus devaneios decorrentes das drogas, finge ser Lorena, buscando, com isso,
sentir-se forte e digna. Por este motivo, frequentemente faz-se passar pela colega
de pensionato para fantasiar uma “outra” realidade, mesmo ao relacionar-se com
seus amantes:
“(...) quer minha companhia o vagabundo. Está desacompanhado. Eu também.
A noite dos desacompanhados. Esvazio o cálice. Estou serena como uma rainha é
glorioso se sentir rainha. Se sentir outra. Chega de Ana Clara. Sou Lorena”
(TELLES, 1985, p. 170), diz a bela jovem a si mesma e ao homem com quem teve
seu último encontro.
Lorena, no entanto, apresenta-se uma personagem bastante controversa. Se
por vezes representa modelo de virtude e de responsabilidade, por outras, por meio
do discurso indireto livre e do fluxo de consciência, mostra-se devassa e dona de
pensamentos que fogem à regra da mulher ideal e pura.
84
Sua aproximação com o protótipo formado por Hera vem do fato de ela
acreditar-se forte, poderosa e imprescindível, como a deusa. Daí sentir-se superior
às outras amigas e inferir que não só precisam, como também são inferiores a ela.
Parece que Lorena acredita que é mais sensata que as duas amigas, que
considera Ana Clara uma pobre moça drogada e Lia como uma “desleixada
subversiva”. Mostra-se sempre pronta para ouvir as duas companheiras de pensão,
no entanto, pouco se preocupa com as vidas delas, tendo apenas por Ana Clara um
certo zelo, já que não se conforma com suas atitudes e teme por seu futuro.
Também a ânsia pela castidade aproxima as duas figuras. A deusa Hera, para
readquirir, castigar e controlar Zeus, recupera sua virgindade, como se, assim
recuperasse a ingenuidade e a pureza. Lorena, por sua vez, mantém-se virgem e se
guarda para um homem que não possui, privando-se dos prazeres do amor carnal,
exatamente como a deusa. Do mesmo modo, acaba por “rezar” segundo a cartilha
da ideologia patriarcal, que na virgindade uma bandeira que pode defendê-la
contra os preconceitos que rodeiam às mulheres, e que estão, por hábito e cultura,
inseridos nela mesma.
Com essa atitude da narradora somos convidados a observar como a relação
entre pureza e devassidão é construída. Lorena parece manter-se virgem apenas
por convenção, por querer poder exibir a “bandeira” de sua pureza, do seu
tradicionalismo, pois, quando adentramos sua intimidade, ela se mostra altamente
erotizada. A masturbação está sempre presente em seu discurso, por meio do fluxo
de consciência, e seus pensamentos sobre o sexo são sempre misturados com
prazer e censura, como se vivesse um conflito entre o desejo e a razão ou entre o
desejo e a tradição e/ou costumes.
É como se a personagem quisesse manter-se virgem apenas para o romper
com o papel tradicional esperado de seu gênero, em que a mulher correta era a
mulher virgem. A contradição entre suas atitudes aponta que Lorena tenta seguir
uma norma padrão, mas a subverte quando assume seus desejos e quando se
mostra singularizada.
As características mortais da deusa Hera, segundo Pravaz (1981) também
aproximam a jovem burguesa da figura da deusa, pois ambas são sensíveis,
inseguras e carentes. Lorena é, ou sonha em ser, a amante do médico M.N., ou
seja, ao mesmo tempo em que se aproxima da deusa por meio de suas
85
características sentimentais, também se distancia dessa por querer um amor não
convencional com um homem casado.
As características que distanciam Lorena da figura mitológica de Hera, no
entanto, não são perceptíveis às outras narradoras-personagens, que veem na
amiga uma figura tradicional, presa a tudo que é convencional e clássico, como por
exemplo, à igreja católica, ao latim, à música clássica, à cultura européia, à casa, à
idoneidade, às futilidades e às miudezas, ao apego pelo passado e rejeição pela
modernidade. “O trânsito aéreo, balões e jatinhos individuais, o céu preto de gente.
Não quero nem saber, fico lendo meus poetas encima de uma árvore, deve sobrar
alguma” (TELLES, 1985, p.21).
O estereótipo da deusa Hera está, portanto, presente na representação social
de Lorena, distanciando-se dela no momento em que seus pensamentos, desejos e
intimidades são expostos. Isso evidencia que a mulher em si, suas qualidades
interiores, não pode ser vista pelo Outro; tampouco pode ser taxada, pois cada ser,
em si, traz características intrínsecas que o o perceptíveis aos olhos do outro e
que não são passíveis de enquadramentos em modelos preestabelecidos.
Acreditamos ser bastante importante observar o fato de Lorena ser a menina
que mais faz referência a sua família e ao fato de sua mãe ter participação ativa na
narrativa. Nada mais adequado a uma moça tradicional e “perfeita” que ter sua mãe-
protetora- sempre ao seu lado. Lorena discorda das atitudes da mãe, como por
exemplo o fato de ela ter colocado uma outra figura masculina em sua vida que não
seu pai, mas, quando precisa de ajuda, recorre a ela, mostrando que em sua
figura o tradicional respaldo e proteção que a genitora “deve” oferecer.
Essa imagem é tão fortemente constituída por Lorena que até mesmo Lia,
algumas vezes, recorre aos préstimos da mãe da amiga, que além de ter dinheiro,
mostra-se sempre a postos para ceder os pedidos das duas jovens.
Essas atitudes da mãe de Lorena apontam que ela, mesmo fugindo, aos olhos
da filha, de um padrão tradicional/patriarcal do modelo de mãe, oferece todos os
atos esperados pela sociedade de sua figura, adequando-se, ela também, ao
protótipo criado pela sociedade.
Mostra-se, por vezes, preocupada em relação a sua filha, pois Julga a moça
frágil e fantasiosa demais, o que revela a preocupação da mãe com as
características que afastam Lorena do modelo apresentado por ser corpo. Aponta
86
grande preocupação com sua paradoxal representação e os males que isso pode
lhe trazer.
Com isso, aparece na narrativa um questionamento de verdades absolutas,
comum na arte pós-moderna, e que revela a relatividade das relações humanas e as
diferentes visões e versões que podem ser tidas de um mesmo acontecimento. A
relação entre as duas não apresenta grandes intimidades, mas quando a mãe
conversa com a amiga Lia e revela que a morte do irmão de Lorena não aconteceu
da forma como ela repetidamente a narra, a sanidade da moça é posta em cheque,
que, nesse momento, o podemos afirmar qual a verdadeira história e qual o
motivo das distintas versões.
No entanto, no desfecho do enredo, Lorena surpreende por sua sagacidade,
perspicácia e frieza, já que, rapidamente, age de forma a esconder a morte que seria
tida como nada digna da colega de pensionato - Ana Clara mostrando uma
fantasiosa e perigosa mente. Essa atitude evidencia a possibilidade de também a
história da morte de seu irmão, quando criança, poder não passar do fruto da
imaginação da moça, que tendia para aspectos trágicos, fantásticos e excêntricos.
Isso tudo reforça a dualidade entre a aparência de enquadramento às normas
padrões sociais e ao comportamento subversivo da personagem, pois não se pode
ter certeza sobre a personalidade de Lorena, que tende algumas vezes para a
pureza e outra para a perversidade.
Se tal característica já aponta um possível desvio de Lorena em relação ao seu
protótipo de deusa Hera, muitos aspectos a tornam uma mulher muito próxima de
uma mulher mais real, plena de contradições e excentricidades, como intenciona,
comumente, a literatura de autoria feminina.
Como uma outra forma de abordar temas relativos ao universo da literatura de
autoria feminina, Lygia Fagundes Telles transpôs para sua obra mecanismos
estéticos relacionados ao ato de produção e, em As Meninas (1985), ela aponta um
texto que debate a posição do escritor (GOMES, 2007).
As narradoras-personagens Lorena e Lia apresentam, no decorrer da narrativa,
suas concepções ideológicas, sendo Lia a representação da mulher engajada( que
tenta escrever sua obra com a mesma característica) e Lorena a mulher que
apresenta “uma perspectiva teórica acerca do papel social do escritor” (GOMES,
2007, p. 194).
87
Lorena pode ser vista como uma espécie de crítica literária, que são dela os
comentários feitos em relação ao livro escrito por Lia de Melo Schultz. É ela quem
apresenta “uma perspectiva teórica acerca do papel social do escritor” (GOMES,
2007, p. 194). Mostra uma visão pouco romântica e distante dos moldes esperados
para uma mulher de seu estereótipo delicado e meigo. Acredita que a obra da amiga
é contraditória por apresentar incoerências entre o conteúdo literário e social e é, por
isso, desprezível:
O último u!Escreveria Lião, ela fica sublime quando escreve, começou o
romance dizendo que em dezembro a cidade cheira a pêssego. Dezembro é
tempo de pêssego, está certo, às vezes a gente encontra as carroças de
frutas nas esquinas com o cheiro de pomar em redor mas concluir daí que a
cidade inteira fica perfumada, já é sublimar demais. Dedicou a história a
Guevara com um pensamento importantíssimo sobre a vida e a morte, tudo
em latim. Imagine se entra latim no esquema guevariano. Ou entra? E se
ele gostava de latin. Eu não gosto? (TELLES, 1985, p. 7)
Com esse embate entre a visão de literatura das duas meninas, o papel da
literatura vai sendo discutido e -se a exposição de que a literatura tem de ir para
além de questões sociais. Vê-se o conflito que explicita que o texto literário não pode
prender-se apenas à estética e que também não pode vir em meio ao discurso
meramente social e político.
Lorena repreende a escrita de Lia quando essa afirma que a cidade cheira a
pêssego, pois acredita que esse fato repleto de lirismo e poesia não condiz com os
anseios sócio-políticos da amiga, revelando os desencontros de uma escrita
engajada e sua própria concepção esteticista da arte, que distancia a literatura e a
sociedade.
Qué ciudad será esa? Ele [Che] perguntaria na maior perplexidade. Tercer
Mundo? Y huale a durazno? Na opinião de Lia de Melo Schultz, Cheira” (TELLES,
1985, p. 7). Com essas considerações acerca do posicionamento da menina Lorena
em relação à produção poética e à arte literária, fica evidente que, mesmo
repudiando o objetivismo dentro da literatura “Lorena não se constrói tão subjetiva
quanto aparenta, que seu nível de exigência é maior que o da amiga militante”
(GOMES, 2007, p. 204)
Ao ser crítica literária e ao mostrar em vários momentos uma erudição latente,
tradicional e clássica, Lorena mostra-se como a representação de uma mulher
pensante e inteligente.
Segundo pesquisa de Dalcastagnè (2008), sobre a personagem no romance
brasileiro contemporâneo, a literatura de autoria feminina aponta personagens
88
femininas dotadas de inteligência (63%) e esse fato mostra que as mulheres,
escritas sob a ótica feminista, destituem de seus corpos em detrimento de sua
mente/inteligência. Em obras de autoria masculina apenas 34% das representações
femininas têm a seu favor o atributo da inteligência, ficando, no mais das vezes,
resignadas apenas à beleza e a atrativos físicos.
Lorena acredita em sua inteligência e é aluna de um curso de direito que, na
época da escritura do romance, era aceito prioritariamente entre os homens. Em
oposição a essa característica que poderia trazer um determinado protótipo da
masculinidade e da mulher pouco feminina, Lorena apresenta futilidades e
devaneios que se fixam em modelos femininos tradicionais e o justamente esses
que podem ser vistos e deleitados pelos olhos dos outros.
Enquanto seu corpo mostra uma mulher dentro dos modelos de uma
sociedade patriarcal, sua personalidade transgride frequentemente essa
característica, tornado-a uma figura distante de um ser divino e, principalmente,
distante de modelos castradores e restritivos impostos pela sociedade patriarcal.
Essa figura é marcada pelas especificidades, que, conforme pondera Xavier (2007),
são manifestadas por meio de uma relação dinâmica ou estática entre o corpo e a
mente da personagem.
Lorena parece ser marcada pelo espaço da contradição, pois rompe, em seus
sonhos e desejos, o lugar do feminino esperado por seu modelo representativo, mas
cai um lugares comuns a ele quando tenta fugir do seu destino de mulher branca,
burguesa e tradicional.
4.2 Ana Clara e a Sensualidade “Afroditiana”
Ao refletirmos acerca da representação de Ana Clara, as características
estereotipadas parecem ser ainda mais marcadas. Essa menina pode ser tida, de
acordo com as representações femininas apresentadas por Pravaz (1981), como
uma mulher Afrodite, ou seja, uma mulher com as características mitológicas da
deusa do amor.
De acordo com a mitologia, a deusa Afrodite nasceu do membro ereto de seu
pai (Urano), que caiu ao mar ao ser castrado por Cronos, filho de sua mãe (Gea).
Assim, já desde seu nascimento, “Afrodite condensa uma dramática história de amor
89
e ódio” (PRAVAZ, 1981, p. 35): amor de Urano por Gea e o ódio de Cronos por
Urano, tudo isso motivado pela possessividade e egoísmo do amor.
É tida como a filha do mar, que foi o mar o seu ventre materno e não o útero
de Gea, no entanto, mesmo surgida de tal conflito, Afrodite é graça, alegria e beleza.
É tida como a mais bela e atraente deusa do Olimpo. Segundo Pravaz (1981), o
permanente desejo dessa deusa em relação ao amor, de fomentar o amor por todos
os meios, talvez seja uma busca pela superação da perda da mãe. Assim, busca
nas figuras masculinas um lugar que não encontrou na figura materna. também,
segundo a estudiosa, a suposição de que cada homem seja a alma feminina da mãe
que não lhe abrigou.
Com todas essas características, torna-se muito clara a proximidade entre a
representação de Ana Clara e Afrodite, pois a menina, assim como a deusa,
apresenta uma formação familiar bastante confusa. Não tem a figura do pai, nunca
encontrou na mãe conforto, tampouco afetividade. Dessa forma, em seu presente,
Ana Clara, assim como a deusa Afrodite,
Está sob o homem, a quem seduz e entrega suas graças, numa tentativa
constante de devolver-lhe aquela ereção perdida, a castração sofrida pelo
pai, e num desejo almejante de reencontra-se em cada abraço com a mãe
que não a recebeu. Vive e morre a cada instante. Brilha no privilégio de sua
beleza e sofre humilhações que a danificam (PRAVAZ, 1981, p.45).
Essa menina é chamada pelas amigas de Ana turva, justamente por seus
conflitos internos e suas angústias que a fazem ter atitudes nada padronizadas
dentro de uma sociedade patriarcal que o sexo como algo que denigre a imagem
de qualquer mulher “decente”.
Esse paradoxo em relação ao nome ”Clara” contribui pra o paradoxo entre a
representação estereotipada da personagem, que aponta para aspectos turvos e
deprimentes, e os sonhos da menina em ser “clara” como sua situação social jamais
permitiu e também para o paradoxo em que vive em relação às drogas. Por mais
que procure manter-se turva, com o uso de entorpecentes, sua mente continua
sempre clara, sã, não lhe permitindo que apague ou esconda o passado
marginalizado e miserável que teve.
Essa personagem deixa evidente que o gênero o é um elemento
suficiente para a análise de uma figura feminina. Segundo Butler (2003) a mulher
também é separada na sociedade de acordo com sua classe, raça e cultura. Por
isso, o corpo de Ana Clara, por pertencer ao sexo feminino, visto que o conceito
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sexo e gênero para Butler trazem as mesmas implicações sociais, e por ser
originário de um meio social considerado promíscuo e miserável, fica restrito a uma
situação de marginalidade e degradação.
Ana Clara, que é de uma beleza que encanta e desperta o interesse dos
homens que seduz, busca no amor (que pra ela é o sexo) a tentativa da mudança de
vida e a possibilidade de felicidade, tentando sair da classificação taxativa dada ao
seu corpo. Diferentemente de Afrodite, a jovem mortal no sexo e na beleza um
meio de ascensão social, que é para ela a única forma de sanar todas as
precariedades de sua vida, a única forma de ser respeitável e respeitada.
Ana acredita que por ter nascido com beleza física típica da valorizada pela
sociedade patriarcal, pode saciar toda sua carência (afetiva, social, psicológica) por
intermédio dela. Pensa que a beleza pode lhe trazer um casamento rico, mas, nesse
trajeto, perde-se em meio a drogas e ao sexo sem prazer, lavada pelo impulso e
pela ânsia da busca de uma figura masculina que lhe proteção, segurança e
status social.
Afrodite é também altamente dependente “não é dona de si, nem de seus
desejos, sendo prisioneira de sua necessidade de ser recebida, de ser aceita, do
homem-deus, que lhe confirmara sua condição de mais bela” (PRAVAZ, 1981, p.
37). É entregue como recompensa ao deus mais feio do Olympo - Hefesto - filho de
Hera e Zeus, torna-se sua prisioneira e, movida por seu desejo, torna-se amante de
Marte, que a despreza e humilha postumamente por seus atos. Zeus castiga a bela
deusa fazendo-a apaixonar-se por um mortal, que a faz almejar pela família que
nunca teve, mas que, no entanto, continua a mantê-la desamparada e desprotegida.
Por essas características, podemos ver em Ana Clara uma representação de
Afrodite. Ana busca a proteção masculina, encontra o amor em Max, porém não
quer esse amor porque acredita que proteção seja dinheiro e o moço não possui
bens e não pode protegê-la por ser, ele também, uma figura desprotegida e
vulnerável. Não obstante, sonha com um marido rico que a proporcione suas
esperadas realizações (família, viagens e respeitabilidade).
Por envolver-se com entorpecentes que lhe fossem anestésicos de sua
realidade, o fim da menina sensual de As Meninas acaba por ser a morte, sem
qualquer êxito em seus anseios, desejos e sonhos.
Apesar de Ana Clara ser vista como uma espécie de representação de uma
Afrodite na sociedade moderna, não consegue manter sua vida por não ser uma
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deusa e, assim, não conseguir resistir a todos os anseios da sociedade. Por ser tão
degradante perante os olhos do Outro, encontra nas drogas um meio para a fuga de
angústias interiores e de seus devaneios. Apesar de sua sexualidade explicita, a
jovem moça buscava por padrões que a fizessem poder parecer uma mulher
convencional, dentro do esperado pela sociedade, que pune o sexo, a pobreza e a
marginalidade.
Convencional, para Ana Clara, é a mulher que representa o anjo e, para tal
representação, que é criada pela ideologia patriarcal, ela tinha os cabelos loiros e
o corpo escultural, sendo sua condição social o grande oponente nesse sentido.
Quando nos depararmos com a representação de Ana Clara e de seu corpo
podemos traçar uma relação entre essa narradora-personagem e o corpo degradado
apresentado por Xavier (2007). Para a estudiosa, o corpo degradado é a
representação do corpo aviltado, rebaixado, humilhado, desonrado, desprezado, ou
seja, é o corpo que representa, na literatura, a mulher em um estado absurdamente
marginal e discriminado.
Ana, no entanto, não apresenta esse corpo de forma caricata, pois apresenta
um corpo “modelo”, ou seja, fisicamente está dentro do padrão estético de beleza
aspirado por todas as mulheres: é alta, loira, modelo (“capa de revista”), bela como a
deusa Afrodite. Para romper com esse padrão perfeito de beleza e feminilidade
criado pela visão patriarcalista, a personagem não tem alguns dos dentes, devido à
infância pobre que teve, tem linguagem vulgar e faz constante uso de entorpecentes.
Essa marca de sua classe social explicitada por seus dentes retoma
novamente a sua condição de mulher pobre, convidando-nos novamente para o fato
de a sua situação social não estar relacionada apenas ao seu sexo, mas também a
sua classe, como pondera Butler (2003).
De acordo com Delcastagnè (2008), na literatura canônica, as mulheres são
representadas comumente com cabelos longos e loiros, que seriam, do ponto de
vista patriarcal, a representação ideal da mulher perfeita. Notemos que em imagens
de santas da Igreja Católica essa representação é recorrente, apontando a beleza, a
pureza e a perfeição.
Ana Clara, por ser uma personagem escrita sob a ótica da literatura de autoria
feminina, apresenta as características idealizadas na literatura masculina acrescidas
de peculiaridades que a distanciam do padrão recorrente, subvertendo seus valores.
Mas também apresenta um “corpo que pesa” (BUTLER, 2001), pois traz nele os
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resquícios de seu passado, como os dentes podres e a frigidez, frutos de sua
infância miserável e marginalizada e traumática.
Apesar de fugir das características patriarcais no que se refere às atitudes,
também foge da tendência da literatura de autoria feminina de representação da
figura feminina dotada de intelectualidade. Essa pode ser vista como uma forma de
a escritora mostrar como é difícil para uma mulher fugir de seu “destino” e como as
representações femininas estão impregnadas de preconceitos. É como se Ana ainda
estivesse presa ao habitus de Bourdieu (2005), em que não consegue transgredir
totalmente sua condição de mulher reprimida por encontra-se, ela mesma, cerceada
pela ideologia patriarcal dominante.
Ana não apresenta erudição e tampouco astúcia: apesar de ter frequentado o
curso de psicologia, não parece buscar por cultura e conhecimento, mas por
ascensão social, que não se vincula, para ela, ao trabalho ou ao intelecto, e , sim, a
um casamento promissor. Apesar de considerar-se esperta, seu final trágico e seu
corpo degradado apontam um grande desespero humilhante
Considerando os paradoxos de Ana Clara, é interessante notar que seu nome
e sua aparência física indicam um modelo idealizado de mulher, que se rompe por
completo quando suas atitudes se mostram e quando seu discurso é explicitado,
apontando transgressão ao padrão esperado na sociedade. Por isso, a construção
dessa personagem aponta para uma espécie de revide da literatura de autoria
feminina em relação aos padrões femininos representados na literatura canônica.
Vemos que, no universo de Ana Clara, sua maior angústia é toda relacionada à
sua infância, ao seu passado miserável. Guarda desse período todas as
recordações e todos os traumas:
Infância podre, ombro podre, cabelo podre. Tenho um metro e setenta e
sete. Sou modelo. Uma beleza de modelo. O que mais você quer?
Bastardo. Se esta cabeça me desse uma folga pomba. Queria ter uma
abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona.
Contente. (TELLES, 1985, p. 30)
Como solução, fica evidente que Ana Clara busca não pensar em nada,
que, para ela, em decorrência de seu passado miserável e de suas lembranças
dolorosas, o pensamento é algo ruim e que tem de ser evitado, por estar sempre
carregado de recordações. Daí as drogas, as tentativas sem êxito de anestesiar
suas dores, pois, ao invés de fugir de seu passado, encontra em seus delírios todos
93
os sons e cheiros relacionados à sua infância e, por isso, acredita nunca estar
suficientemente entorpecida:
A memória tem um olfato memorável. Minha infância é inteira feita de
cheiros. O cheiro frio do cimento da construção mais o cheiro de enterro
morno daquela floricultura onde trabalhei enfiando arame no rabo das
flores até chegar à corola porque as flores quebradas tinham que ficar de
cabeça levantada na cesta ou na coroa. O vômito das bebedeiras daqueles
homens e o suor e as privadas mais o cheiro do Doutor Algodãozinho
(TELLES, 1985, p.34).
Essas características degradantes e, também, humilhantes de Ana,
apresentam uma mulher que contraria os padrões frequentes na tradição literária,
pois a personagem é apresentada como um ser que pensa, que não é apenas um
corpo, mas uma mente, repleta de conflitos e de traumas. A mente de um ser
humano em conflito, que, por tantos problemas, preferia ser um ser o pensante,
para não questionar nada.
Para a fuga desta “realidade” (lembranças), o álcool é o principal veículo. Em
todos os momentos em que a opção narrativa focaliza o seu discurso, a narradora
afirma estar sóbria e há, claramente, além de lembranças do passado, alucinações,
e essas se confundem para formar uma esfera de angústia e desespero. Passado
presente e futuro se misturam, por meio da técnica do fluxo de consciência,
somando-se às alucinações provocadas pela droga e constroem uma esfera
conflituosa, que ressaltam e expõem os conflitos internos da personagem:
Sento na cama e vejo o quarto rodando. Estou parada sou o eixo. O Eixo
do mundo. “Senta aqui que é o eixo do mundo” dizia o Jorge mostrando o
dedo espetado para cima. Bastardo. Podre de sífilis agora eu sei que era
sífilis. Deve estar morto também. (...) Nunca pude dormir o quanto quis
porque tem sempre alguém me sacudindo acorda acorda. Vontade de
dormir cinco dias e acordar no consultório do turco como é o nome dele?
Aquele analista. Esqueci pomba. Enfim não interessa. Queria falar do
pântano com a cara da minha mãe na água preta. Fujo feito doida nadando
com força não sei nadar mas continuo nadando arrancando do fundo lodo e
plantas que se enroscam em mim e me tapam a boca me larga! Sacudo a
mão e me livro das coisas gelatinosas peixes folhas. Sei que logo vai
aparecer a piscina fica logo ali a piscina não disse? Entro de cabeça na
água limpa e me lavo inteira rindo com Lorena que está nadando ao lado.
Sei nadar digo e ela sacode a cabeça e faz caretas e vai dizendo azul-
piscina azul-piscina. Quero rir com as caretas mas tapo a boca. Perdi
minha ponte. Minha ponte mãe! Perdi minha ponte a ponte grito passando
a língua e gengiva escorregadia como lodo. Ela viu ela viu. Começo a
me debater porque não consigo mais nadar afundo com as plantas
enroladas nos meus pés me larga! (TELLES, 1985, p. 158)
De encontro com essa realidade, nos deparamos com dois espaços claramente
degradados, que contribuem para a representação da personagem: um é o da
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infância, com o prédio em construção, os cheiros ruins, os dentes podres, os ratos e
as baratas e o outro é o presente, onde o álcool, o sexo, os remédios, as
alucinações e a linguagem pesada são constantes e contrastam com um quarto de
pensionato liderado por freiras. Parece que Ana carrega consigo o caos da infância
para qualquer lugar, evidenciando sua prisão psicológica ao passado e, portanto, a
complexidade que sua figura representa, por ser dotada de personalidade complexa
e singular.
Esses dois espaços interagem sempre com o ato sexual e com a
promiscuidade. Na infância, a presença de sua mãe e de seus clientes decadentes
impregnavam a mente de uma criança marginalizada:
Não não ela repetia com o dinheirinho embolado na mão. Mas dar
mesmo até que ela deu bastante. Pra meu gosto aque ela deu demais.
Uma corja de piolhentos pedindo e ela dando. (TELLES, 1985, p. 30)
E, agora, na vida adulta, com seu próprio corpo, Ana Clara impregna sua
própria mente, quando se entrega aos homens, mesmo não podendo com eles sentir
qualquer prazer sexual. Associa o corpo da mulher à prostituição, pois em seu
contexto infantil e adulto o corpo feminino (dela e da mãe), sempre foram meios à
obtenção do dinheiro e fonte de discriminação. O sexo, assim, assume também uma
conotação negativa:
Engrena nada. Se ao menos engrenasse mesmo e eu subisse pelas
paredes de tanto engrenar e a cabeça deixasse roque-roque de pensar
coisas chatas. Mas por que minha cabeça tem que ser minha inimiga,
droga de cabeça tem tanto ódio de mim? Isso nenhum analista me explicou
isso da cabeça. de porre me deixa em paz essa sacana. (TELLES,
1985, p. 29).
Assim, “as relações sexuais, em modo perpétuo, quase sempre alimentadas
pelo álcool, degradam o corpo e destroem todo e qualquer vestígio de dignidade
humana” (XAVIER, 2007, p. 134). Ana Clara, por meio do sono, do álcool e do sexo
busca uma fuga de sua realidade de mulher oprimida, que está marcada
socialmente por um modelo negativo de mulheres e que não consegue romper com
seu protótipo por estar, ela mesma, crente de sua condição inferiorizada. Ela
reafirma a dificuldade apontada por Lauretis (1994) de as mulheres estarem
inseridas em um meio que estabelece os diferentes valores sociais femininos e de
seus “inquestionáveis” destinos.
A falta de figuras exemplares e norteadoras é um traço marcante na vida de
Ana Clara: como figura feminina teve uma mãe que também representava um corpo
degradado e não teve qualquer figura fixa masculina que assumisse um papel de
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pai. As figuras masculinas que lhe foram frequentes e atuantes, geralmente amantes
de sua mãe, contribuíam ainda mais para sua degradação. Essa realidade parece
interferir, também, na relação que a personagem estabelece entre homem, sexo,
nojo e ódio, pois mesmo com Max, o homem por que é apaixonada, ela era incapaz
de sentir qualquer prazer, já que estava sempre se remetendo às lembranças
humilhantes e aviltantes de sua infância.
O fato de a personagem, em certa altura de sua trajetória, demonstrar desejo
em ter dinheiro para vestir-se bem e sentir-se mulher, aponta para certa tendência
sua em se enquadrar nos padrões de feminilidade ditados pela ideologia dominante.
Trata-se da recorrência ao ancestral habitus de que fala Bourdieu (2005). É como se
Ana buscasse a tendência dos gêneros em repetir modelos femininos ideais, por
acreditar ela mesma nos valores de tais modelos, mostrando-se também
impregnada pelo hábito da perpetuação de protótipos formados pela ideologia
patriarcal.
São sonhos que a encaixariam numa vida tradicional, ditada pelos moldes da
ideologia patriarcal dominante e dominadora. Como vivemos em uma sociedade em
que tradicionalmente a ascensão da mulher se dá, normalmente, amparada a um
homem, Ana Clara busca pelo que pensa que o único meio de conseguir
respeitabilidade: um casamento rico que a tire dessa situação degradante.
No entanto, mesmo que busque romper com sua realidade, podemos constatar
que almeja uma posição que também a colocaria numa situação submissa, que,
na fuga, ela tem exatamente as atitudes esperadas para o seu modelo feminino pela
ideologia patriarcal: envolve-se com o sexo profissional e com o uso de drogas.
Além disso, seu sonho de ascensão é a busca de um homem que pudesse mudar
sua situação social, mas não sua situação de mulher erotizada e dominada, pois
novamente ela pertenceria a um homem, que a teria como um bem material.
Como vive em uma sociedade que cobra um encaixe perfeito das mulheres em
algum padrão positivo e que a evidencia degradada, Ana Turva rebela-se contra
instituições que pregam por tradição e moral, como a igreja. Em vários momentos a
narradora afirma ter ódio de Deus, talvez por ver em Deus claramente essa
imposição de valores e a dualidade da mulher anjo/diabo, que a impedem, por sua
situação degradada, de atingir os seus sonhos/objetivos.
Ana Clara encontra-se perdida pela falta de modelos, mas, por estar inserida
em uma sociedade onde o inconsciente cultural “aceita” (ainda que sem ter
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consciência disso) a superioridade do homem. Ela busca por uma figura masculina
que lhe possibilite encontrar/seguir o modelo ideal de mulher, mas, por sua
degradação, parece pouco provável que atinja seus anseios.
Como meio de ascensão social ela usa a arma da beleza (Afrodite) e busca,
por meio de sua bela forma, conseguir um casamento rico, mais que isso: acredita
que tem direito a isso, mesmo que com um homem que lhe seja repulsivo, pois seu
objetivo é nada mais que ser respeitada e vista dentro de uma sociedade que
sempre a descriminou ou nem mesmo a percebeu graças a sua miséria evidente.
Isso faria com que seu corpo fosse respeitado no espaço público, mas não lhe
traria o respeito no espaço privado, tradicionalmente de domínio das mulheres, pois
ela continuaria a não ser uma figura ideal, que o seu passado e sua origem não
lhe trazem a dignidade esperada para o modelo da mulher-esposa.
É muito interessante notarmos a representação da morte no final da narrativa.
Ana não sobrevive por não ser uma deusa, o que nos aponta que talvez seja
impossível para uma mulher mortal que apresenta um corpo degradado conseguir se
regenerar em uma sociedade impregnada de valores taxativos e patriarcais. Sua
morte por overdose acaba por colocá-la numa situação mais marginal ainda na
sociedade, pois no dia de sua morte não tem qualquer domínio sobre sua mente ou
seu corpo, está alucinada e sem consciência ou recordação do que ocorrera consigo
mesma.
Assim como as mulheres desenhadas nos moldes da ideologia patriarcal pela
literatura canônica, a mulher erotizada é retirada de cena, mas Ana não evidencia
um castigo por seus atos, e sim a impossíbilidade de emergir social e moralmente
em uma sociedade repleta de estigmas.
De acordo com Gomes (2008), é impossível não se debater “até que ponto a
literatura não repete a fatalidade como um castigo para a transgressão, ou se, pelo
contrário, o final truncado da narrativa, com as metáforas da viagem e da morte,
significa um lugar de resistência” (p. 65). Ana Clara pode ser vista como alguém que
perdeu a vida tragicamente ou alguém que, por busca própria, negou a sua condição
de vida, sendo sua retirada das humilhações por meio da morte uma estratégia de
negação.
Ana Clara é a representação da mulher que não consegue realização social.
No entanto, a maquiagem feita pelas amigas após sua morte para simular uma
fatalidade menos grotesca parece revelar que sua morte foi ainda mais uma
97
resposta a sua humilhante condição, se pensarmos que a sociedade, que tanto a
denegria, não a veria como uma morta decadente. Mesmo após sua morte havia o
anseio da sociedade em mudar sua condição de mulher degradada, pois, com a
atitude/”ajuda” de suas colegas de pensionato, a sociedade não se depararia com
uma suja e deprimente imagem, mas com uma bela e jovem moça morta, com belas
roupas e maquiagem, que, em hipótese alguma, pudessem denegrir sua memória e
o lugar em que morava o pensionato.
É como se a morte de Ana Clara fosse mascarada, como se seu “grito” de
desespero fosse silenciado em detrimento do que fosse mais banal e neutro na
sociedade, de modo a não chocar quem a encontrasse e a o escandalizar
nenhuma esfera social, como uma espécie de silenciamento de tudo o que viveu.
Interessante ressaltar que a obra As Meninas foi escrita no período da ditadura
militar, em que a sociedade vivia em meio a violências mascaradas e silenciadas. O
ato de esconder atos, de desaparecer protestos, era recorrente na sociedade e,
talvez, Lygia Fagundes Telles evidenciou essa situação de forma a denunciá-la e
colocá-la em evidência, pois mascara a morte trágica da “menina” da mesma forma
que o Governo mascarava seus atos ditadores e repressivos, apresentando uma
realidade amena e banal.
A realidade de Ana Turva, de moça drogada e prostituída, coloca essa
personagem numa posição de inversão ao que a sociedade, o governo e a igreja
pregavam, sendo seus atos facilmente condenáveis. Por isso, sua morte pode ser
vista como uma solução para tirar o “errado” do meio do “certo” e “politicamente
correto”.
Ana tem seus últimos instantes no delírio e na solidão, que a faziam ansiar por
mais drogas para lhe suprimir a realidade grotesca em que sempre viveu, aliás,
durante toda a narrativa, busca perder a lucidez, que insiste em atormentá-la. Morre
sem pensar em sua degradação e, por isso, transgride, responde e reage a sua
condição, pois com o desfecho da narrativa, parece deixar implícita a ideia de que,
afinal, com a overdose que a teria conduzido à morte, ela realizou seu desejo de
anular as lembranças da miséria em que sempre esteve mergulhada. Mas, após a
morte, cai na máscara social para que sua morte/imagem não suje o mundo perfeito
das aparências.
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Irônico é o fato de a moça ser maquiada pelas amigas após sua morte, pois,
após perder para sempre a consciência por meio da morte, Ana Clara também
alcança um de seus sonhos: “ser podre de chique”, ser uma representação padrão.
A morte é a única saída para encontrar as aparências buscadas em vida. o
mascaramento da realidade opressora e discriminatória traz a maquiagem de uma
vida (morte) feliz e normal. É mais uma forma de esconder embaixo do tapete a
sujeira que Ana Clara representa, é mais uma forma de manter tapados os olhos de
uma sociedade que se recusa a enxergar uma realidade suja, triste e corriqueira,
que é sempre levada à margem e ao silêncio e, consequentemente, ao abandono
total.
4.3 Lia e suas Botas de Combate “Atenienses”
A última narradora-personagem de As Meninas que abordamos é Lia e, talvez,
seja essa a mais paradoxal das figuras aqui representadas.
É uma jovem menina engajada em ideais revolucionários da sociedade
brasileira de 1970, que busca pela autonomia das pessoas dominadas (inclusive a
das mulheres), e apresenta característica física rude e combativa.
Como dissemos, sua origem familiar é tradicional. Essa realidade é
explicitada quando a amiga Lorena refere-se a ela. Comumente fala o nome
completo da amiga nordestina, Lia de Melo Schultz, apontando que ela tem uma
procedência familiar sólida, que ela é resultante de relação estável entre seus pais,
oriunda de uma família que segue o modelo clássico matrimonial.
No entanto, Lia rompe com o modelo tradicional de filha quando veste a camisa
da revolução e abdica de características femininas (usa botas de combate). Além
disso, é, na maior parte do tempo, racional e o se prende a qualquer convenção
esperada para a representação de uma filha ideal da sociedade tradicional.
Quando dissemos que Lia é paradoxal, nos amparamos no fato de ela, ao
escrever suas poesias, apresentar-se altamente romântica, sonhadora e banal.
Parece que, por meio da escrita, ela transpõe seus sentimentos mais implícitos.
Mesmo querendo ostentar a imagem de uma mulher independente e auto-suficiente,
em sua narrativa, demonstra precisar de amor, de cheiros, de paisagens, ou seja, de
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atributos e valores subjetivos que não se unem propriamente ao seu ser racional,
determinado e apontado pelo estereótipo da mulher guerreira/ Atena.
Como comentamos anteriormente, Lygia Fagundes Telles abordou, por meio
das narradoras-personagens Lia e Lorena, o papel da literatura na sociedade
contemporânea, apontando “o conceito da escrita, o papel do escritor e a forma
como o texto social deve ser dito no texto ficcional” (GOMES, 2007a, p198) como
reflexões lançadas pela narrativa.
Telles abordou a artista e a sociedade no romance, colocando em Lia as
características da mulher feminista, revolucionária e escritora. Apontou a auto-
reflexão artística da personagem, que busca pela literatura engajada e útil. Essa
metanarratividade do texto de Lygia “aborda questões mais sociais que estéticas”
(GOMES, 2007b, p. 2), defendendo que a literatura deve ter maior comprometimento
com a realidade social do que com aspectos estilísticos e ficcionais. Nesse sentido,
a Literatura é um meio de conscientização e instrução e não um meio de lazer e
manifestação da arte.
Telles constrói a personagem Lia de modo a explicitar a reflexão sobre o
mundo, lançar concepções de preocupação social e humanitária e questionar qual o
papel do escritor em uma sociedade repleta de injustiças, como a sociedade
brasileira. É como se a personagem estivesse descrente do papel social da
literatura, apontando a inutilidade da ficção em meio ao caos político: “O mar de
livros inúteis transbordou. Ora, ficção. Quem é que está se importando com isso”
(TELLES, 1985, p. 22), mas, às avessas, acaba pondo em discussão qual deve ser
o objetivo da obra literária.
A jovem militante renega a literatura apenas para entretenimento e deleite
artístico. Acredita que o papel da literatura deva ser social e vê no escritor um ser
que tem de ter posições estabelecidas socialmente também nos conteúdos
extralingüísticos. É por ser engajada com o social que valoriza a cultura e os
produtos nacionais. “Ingleses?- pergunto. - Prefiro nossos biscoitos e nossa sica.
Chega de colonialismo cultural” (TELLES, 1985, p. 12).
Seu lado transgressor da ideologia dominante fica bastante evidente no trecho
citado. Lia mostra lutar contra todos os valores impostos pelo colonialismo europeu -
tradicional e patriarcal.
Esse pensamento, que preza pelo social e pelo crítico, leva-a ao abandono de
seu romance. Ela o considera mais sublime do que social e, por isso, julga-o inútil e
100
dispensável “Rasguei tudo, entende” (TELLES, 1985, p. 22). Parece que essa foi a
forma que ela encontrou de fugir da subjetividade e de não produzir a literatura que
ela mesma julga vazia, como se sentisse ser traída pela própria subjetividade.
Depois de afirmar que havia rasgado sua produção, Lia não apresenta mais
tanta certeza em relação à qualidade do que havia produzido, mostrando que,
apesar de parecer posicionada ideologicamente, não tinha definido alguns conceitos
de sua ideologia: “Mas as pessoas sabem o que é bom? O que é ruim? Quem é que
sabe? E se for válido? Não devia ter rasgado coisa alguma. Mas sei de cor, posso
aproveitar o texto talvez num diário” (TELLES, 1985, p. 26).
Esse recurso de metanarratividade evidencia na obra “uma forma de se pensar
a literatura para além do papel social do escritor” (GOMES, 2007b, p. 2), pois mostra
a ambivalência da literatura e aponta que dificilmente a obra literária pode ter
apenas aspectos sociais, numa tentativa de solução para os problemas sociais.
Aponta que o sublime e o social, unificados, podem se caracterizar em arte
engajada.
É como se o próprio romance apresentasse a crise identitária de Lia. A menina,
em seu discurso apresentado pelo fluxo de consciência e pelo discurso indireto livre,
mostra insegurança, dependência e carência afetiva (fragilidades) também em
relação ao seu relacionamento com Miguel, pois ela, assim como se espera de uma
mulher, quer cuidar dele, oferecer sua vida no lugar da vida dele, sofrer em seu
lugar, segui-lo em qualquer circunstância, apenas para ter seu amado livre e ao seu
lado, num amor incondicional (esperado da figura feminina pela ideologia
dominante).
Em nome de seu amor por Miguel, abandona, como na escritura de romances,
o uso da razão e da objetividade, escrevendo sua história amorosa repleta de
sentimentalismo e doação, desnudando certa adequação à representação da mulher
ideal padronizada.
Apesar de muitas características aproximarem a personagem Lia da mulher
combativa e do protótipo firmado, de acordo com Pravaz (1981), pela deusa Atena, o
relacionamento com Miguel e o sentimentalismo literário dessa “menina” a afastam
da representação da deusa, que segue toda sua história sem um amado, e jamais
aceitou qualquer relação sexual e nem se mostrou, em qualquer momento,
vulnerável às fraquezas do amor e de qualquer sentimentalismo que escapasse à
razão.
101
Aos olhos das amigas, Lia é uma moça subversiva, que não apresenta a
beleza e a delicadeza necessárias a uma mulher, no entanto, em alguns momentos
Lorena parece enxergar o sentimentalismo que cerceia o discurso da amiga e
parece deslumbrar o lirismo que veste seu coração, apesar do uso grosseiro de suas
botas de combate no dia-a-dia.
Apesar de Lia preocupar-se com questões sociais, não parece compreender
muito bem a realidade de sua companheira de pensão, Ana Clara, pois
frequentemente mostra-se indiferente às atitudes incoerentes da amiga, sendo por
vezes até mesmo um pouco fria em relação às angústias de Ana Clara. Isso nos
revela que a moça de atitudes socialistas não se apresenta sensível o suficiente
para entender o desespero de Ana Clara em decorrência de seu eterno abandono
social.
Mesmo que Lia afirme que sua luta é pela sociedade, o que percebemos é que
ela luta pela ideologia de seu amado, sendo ele o seu norteador e, não, as questões
que permeiam o âmbito social. Muitas vezes, a impressão que seu discurso passa é
que sua única preocupação, de fato, é poder recapturar Miguel e viver com ele uma
linda e tradicional história de amor.
Mas, pensando nos três estilos de mulher abordados por Pravaz (1981) e na
representação estereotipada da personagem Lia, vemos que sua representação
social, explicitada por suas características estereotipadas, pode ser associada ao
protótipo firmado pela deusa Atena.
Atena, filha ilegítima de Zeus, pode ser vista como uma continuação deste, pois
nasce de sua cabeça e é por ele protegida. Quase se iguala ao pai, mas sua
condição de mulher não lhe permite isso. “Possui dois atributos muito delimitados,
duas funções específicas: é o símbolo da inteligência ativa, guardiã do trabalho
criador, das artes e do engenho, e é símbolo da defesa guerreira, lutadora
incansável, quando se trata de cuidar de ideais nos quais acredita” (PRAVAZ, 1981,
p. 42).
Essas características de Atena fazem com que vejamos seus traços na
narradora-personagem Lia, pois a Jovem também luta incansavelmente por seus
objetivos, pela sabedoria e pela arte escritora). em Miguel, seu namorado, um
grande aliado e é sempre fiel as suas lutas.
No entanto, ao contrário de Atena, Lorena não segue o que foi ensinado por
seus pais. Sua família não buscava ter uma filha na revolução e, sim, no lar, casada,
102
com filhos, representando a mulher de maior prestígio na sociedade vigente (uma
representação de Hera / Lorena).
Isso faz com que fique evidente que a figura da mulher Atena é rompida, que o
padrão da mulher combativa não é seguido pela personagem em seu íntimo (que
ninguém pode ver). Por isso, Lia pode ser vista também como uma mulher que se
prende a um modelo tradicional de mulher, tão oposto ao que apresenta com suas
atitudes e com suas verbalizações.
Ela, assim como Ana Clara, que apresenta realidade social e ideológica
distinta, busca pelo “ser mulher”, mostrando-se, apesar de militante das causas das
minorias, presa à ideologia dominante e ao ancestral habitus, de Bourdieu (2005),
que relaciona o destino da mulher a um homem e que vê na figura masculina a única
possibilidade de proteção e de futuro para uma mulher.
103
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A construção das personagens Lorena, Ana Clara e Lia, protagonistas de As
Meninas, de Lygia Fagundes Telles, aborda a representação feminina da mulher da
década de 1970. Vemos que as três figuras desconstroem conceitos pré-formados e
apontam para as singularidades das mulheres, que as impossibilitam de serem fieis
a qualquer modelo preestabelecido.
Com a aproximação estruturalista entre as meninas e as deusas mitológicas
Hera, Atena e Afrodite, podemos observar que a obra questiona valores taxativos, já
que Telles rompe com o Estruturalismo no momento em que distorce as
características de cada personagem e mescla as personalidades de suas meninas:
temos uma mulher combativa com ideais domésticos, que mesclaria os valores das
deusa Atena e Hera; temos a mulher ideal que, em seu íntimo, mostra-se altamente
erotizada e dependente da paixão, misturando as características de Hera e Afrodite;
e temos uma mulher erotizada que busca por requinte e pela respeitabilidade
conferida a mulher- esposa, num misto de Hera e Afrodite .
Esses traços, avaliados a partir de uma perspectiva pós-estruturalista e
feminista, sinalizam, mais que outras características, que esses modelos podem ser
representativos de uma sociedade em que os valores restringem os conceitos, mas
não adestram o pensamento da mulher.
As Meninas (1985) apresenta a subversão dos modelos padronizados, que
apontam para a subversão em relação ao modelo apresentado por seus corpos.
Essa característica da narrativa vincula-se ao pensamento feminista de revisão e
quebra de modelos sociais preestabelecidos.
No entanto, todas acabam por cair nos lugares esperados pela sociedade para
seus corpos, pois Ana Clara, a dona do corpo degradado, tem o final da morte,
esperado pelo pensamento tradicional, enquanto a subversiva Lia segue seu amado
e rende-se a uma vida longe de seu país, e Lorena retorna ao seu lar, do qual
tentava manter-se distante.
Xavier (1998) afirma que “nenhuma das três personagens alcança a plena
realização; Ana Clara morre por overdose, Lorena retorna para a companhia de sua
“mãezinha” e Lia viaja para a Argélia” (p. 51), ou seja, nenhuma das três encontra as
respostas que buscava para a crise de valores da sociedade moderna, caindo no
lugar comum esperado para seus modelos.
104
Na tentativa de fuga do modelo estereotipado, as personagens mostram-se
presas ao ancestral habitus, abordado por Bourdieu (2005), pois, mesmo querendo
fugir do comportamento esperado para as mulheres de seus “modelos”, caem em
atitudes e pensamentos que as traem e as colocam numa posição de subordinação
e submissão em relação à figura masculina, que nenhuma delas consegue ser
indiferente à relação homem X mulher e que toldam seus sonhos e planos sempre
baseadas numa figura masculina protetora e dominadora.
Lorena, Lia e Ana Clara apresentam características umas das outras,
apontando que as fronteiras do feminino ficaram suspensas e que a mulher da
época de escritura do romance não podia desvencilhar-se totalmente de seu
“destino de mulher”, dada a formação cultural familiar e as combranças e taxações
sociais.
Com tudo isso, somos levados a refletir sobre o motivo por que Lygia Fagundes
Telles construiu personagens que lutam contra o sistema de dominação masculina,
mas que, ao final, acabam por se enquadrar nele.
Na década de 1970, em meio a revoluções sociais e imposições ditatoriais do
Governo, o feminismo, como vimos, fez-se também um pouco inibido. Nesse
contexto, a literatura de autoria feminina ainda não podia ousar transgredir
totalmente os modelos formados pela literatura canônica tradicional, pois não havia
ainda respaldo teórico e social.
Apesar disso, Telles (1985) evidenciou, em suas personagens, o fato de a
ideologia patriarcal estar, na época da escritura do romance, de tal forma
entranhada na psique feminina, que se tornava praticamente impossível conseguir
romper absolutamente com o “ser mulher”, esperado pela ideologia tradicional. As
três personagens buscam romper com modelos, mas caem, sem que percebam, no
lugar previsível esperado, comum ao do cânone tradicional.
Telles que subverteu figuras femininas em um contexto histórico em que
qualquer tipo de subversão era castrada e toldada pela ditadura. Ela buscou
evidenciar a “prisãodas mulheres em moldes e a falha social que pode existir em
tal ato. Não condenou ou julgou o corpo degradado e erotizado de Ana Clara, como
o faria possivelmente a literatura produzida sob a ótica do patriarcado; construiu uma
mulher pensante e lutadora, na figura de Lia, subvertendo os padrões claros e
dicotômicos sociais; e mostrou a falsa perfeição no modelo de Lorena, sem, no
entanto, não considerá-la também perfeita.
105
De modo a não julgar, não dividir e não estereotipar, Telles construiu mulheres
que se aproximaram e representaram a figura feminina lutada pelo feminismo:
mulheres de “carne e osso”, com singularidades e que não se adéquam ou
encaixam em qualquer tipo de modelo preestabelecido, já que modelos trazem
conceitos e preconceitos acoplados a suas formações.
Abordou, em As Meninas, o papel da família, que educa e passa valores que
não conseguem ser rompidos instantaneamente, pois estão firmados na psique. É
por isso que a subversão dos valores tradicionais é penosa e, na obra, foi parcial. As
personagens buscam romper com seus modelos, mas, por terem sido educadas
dentro deles, são traídas pelos próprios conceitos formados por estes. A abordagem
da escrita e do papel da escritora, presente na obra, também reforça o conceito de
que a subversão é ansiada, mas não é plenamente alcançada. Lia busca escrever
uma obra de cunho social e subversivo, mas cai em tradicionalismos que não
consegue controlar, buscando por imagens idealizadas e repetindo padrões.
Telles, por meio do jogo com as três figuras femininas de As Meninas e seus
valores, cruzou diferentes discursos, que formaram o cruzamento de ideologias,
rompendo regras e desfazendo estereótipos, apontando construções singulares e
completas, que representam a luta da literatura de autoria feminina e do feminismo.
106
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