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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
CAMILA DA SILVA ALAVARCE
“A IRONIA E SUAS REFRAÇÕES:
UM
ESTUDO SOBRE A DISSONÂNCIA NA
PARÓDIA E NO RISO
ARARAQUARA
2008
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CAMILA DA SILVA ALAVARCE
A ironia e suas refrações
: um estudo
sobre a dissonância na paródia e no riso
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Letras Área de concentração em Estudos Literários
da Faculdade de Ciências e Letras Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de
Araraquara, para a obtenção do título de Doutor.
Orientação: Profª Drª Karin Volobuef
ARARAQUARA
2008
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CAMILA DA SILVA ALAVARCE
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UM ESTUDO SOBRE
A DISSONÂNCIA NA PARÓDIA E NO RISO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Letras Área de concentração em Estudos Literários
da Faculdade de Ciências e Letras Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus de
Araraquara, para a obtenção do título de Doutor.
Orientação: Profª Drª Karin Volobuef
Data da qualificação: 28/02/2007
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EMBROS COMPONENTES DA
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ANCA
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XAMINADORA
:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Karin Volobuef
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara.
Membro Titular: Profa. Dra. Márcia Valéria Zamboni Gobbi
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara
Membro Titular: Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado Leite
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP / Araraquara.
Membro Titular: Prof. Dr. Biagio D’Angelo
Pontifícia Universidade Católica – PUC / São Paulo.
Membro Titular: Profa. Dra. Rejane Cristina Rocha
Universidade Federal de São Carlos / UFSCar.
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
Ao João, companheiro inseparável, amigo e amoroso. Ao apoio que me ofertou
tanto nos momentos de trabalho, como na hora do descanso, quando
seu sorriso e suas brincadeiras dissipavam todo o cansaço. Ao amor...
À família inteira e, em especial, aos meus pais, Laci e Augusto, pela vida.
E aos meus irmãos Fábio e Alex.
Às presenças amigas, tão queridas, que passeiam de modo
significativo por minha existência.
Aos que aprenderam a amar.
Agradeço
Em primeiro lugar, à minha orientadora querida e meiga, a Profa. Dra.
Karin Volobuef. Uma presença muito marcante durante todo o decorrer de minha
vida acadêmica. Sábia e amiga, suas contribuições, desde o momento da
Graduação, foram relevantes para o desenvolvimento de minha percepção crítica.
O seu apoio intelectual e moral foi de extrema importância para a escritura de
mais esse capítulo em minha vida. Obrigada pela atenção e confiança.
À Profa. Dra. Márcia Gobbi e à Profa. Dra. Guacira Marcondes Machado
Leite, cujas vozes ecoam em tantos momentos deste trabalho, pela atenção e
desvelo com os quais nos auxiliaram no momento da Qualificação.
À Profa. Dra. Renata Junqueira, pelo exemplo consistente de educadora
crítica e fascinante. Pela poesia de suas aulas, que me acompanha, ainda hoje,
sempre que entro em um recinto como professora. Sua voz marcante se faz
presente em minha vida profissional, e ainda em meus trabalhos de Mestrado e
de Doutorado.
Aos queridos amigos, que nos ajudam a sair de nossos pesadelos e a virar a
página, legitimando a beleza da vida. A todos aqueles que não se arrastam pelos
caminhos da omissão e do conformismo, em especial a Lilian Mangerona Corneta
Rotta, Priscila Celeste Baffa, Thalita Morato Ferreira, Jefferson Lavelli,
Solange Galofero, Tania Mara Antonietti Lopes, Cirdêmia Costa Feitosa, Edson
Lopes dos Santos e Lucilene Poppi.
À UNESP, pelo compromisso.
A alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço a fazer
caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas há ocasiões em que esse mesmo
palhaço se limita a olhar-nos por cima da borda da caixa, e se vê que, por
acidente, estamos procedendo segundo o que é justo e honesto, acena
aprovadoramente com a cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos
um caso perdido.
(SARAMAGO, 2002, p. 293)
As meninas
, Velasquez
RESUMO
O presente trabalho concentra-se no estudo dos discursos caracterizados pela
dissonância, mais especificamente, a ironia, a paródia e o riso. Em primeiro lugar,
foram estudadas as especificidades de cada uma dessas modalidades e chegou-se
à conclusão de que tais discursos são sempre constituídos pela tensão, pelo
embate de vozes dissonantes. Em relação à ironia, trata-se de uma categoria que,
além de se originar a partir da sobreposição de vozes antagônicas, provoca
sensações também contraditórias naqueles que a “experimentam”, a partir do
momento em que ocorre. Embora também reproduza um choque e se configure
como resultado de uma diferença de postura entre dois planos, a paródia
distancia-se, no presente trabalho, da visão tradicional de “canto
ridicularizador”, funcionando, ao contrário, como uma inscrição de continuidade
histórico-literária e atuando na revisão crítica de discursos anteriores. Em
relação ao riso, foram privilegiadas as teorias de Schopenhauer, Baudelaire e
Jean Paul, já que o estudos que proporcionam uma aproximação estrutural e
filosófica entre os fenômenos do riso e os discursos irônicos e paródicos. Desse
modo, tal qual a ironia e a paródia, esse riso é também fruto de uma dissonância,
instaurando, ao invés da certeza, a possibilidade, em lugar do uníssono, o
ambivalente. O estudo dos significativos pontos de contato entre a ironia, a
paródia e o riso legitima a relevância do sujeito na decodificação desses
discursos caracterizados pela ambigüidade. Assim, o receptor de textos irônicos,
paródicos ou marcados pelo riso é valorizado na medida em que é julgado capaz
de perceber a dissonância subjacente a esses discursos. Além desse ponto de
contato entre as modalidades analisadas o leitor – foram traçadas comparações
importantes entre a paródia e a ironia romântica e, ainda, entre as categorias
objeto deste estudo e a problemática tão convidativa da
mímesis
. Foram
escolhidos três textos para a aplicação dessa teoria: “O homem duplicado”
(2002), de José Saramago, “O cavaleiro inexistente” (1959), de Ítalo Calvino, e
“O duplo”
(1846), de Dostoievski. A seleção das obras guiou-se pela estrutura
dissonante dessas narrativas, em cujo bojo se encontram muitas e variadas
aplicações estéticas da ironia, da paródia e do riso.
Palavras – chave: Ironia. Paródia. Riso. Dissonância. Leitor.
ABSTRACT
This study focuses on the study of discourses characterized by dissonance,
more specifically, the irony, the parody and the laugh. At First, we studied the
specifics of each one of these terms and came to the conclusion that these
discourses are always made by tension by the clash of dissonant voices. In
relation to the irony, this is a category that besides to originate from the
overlap of antagonistic voices, provokes sensations that also contradicting on
that who "experience" from the moment they occur. While also reproduce a
shock and it is set as a result of a difference of attitude between two planes,
the parody distances itself in this work, the traditional view of mocked
corner," working, on the contrary, as a recording of continuity historical literary
and working in a critical review of previous discourses Regarding the laugh, they
were inside the theories of Schopenhauer, Baudelaire and Jean Paul, as they are
studies that provide a structural and philosophical approach between the
phenomena of laugh and ironic and parodies discourses. Thus, as the irony and
parody, that laugh is also the result of a dissonance, introducing, instead of
certainty the possibility, instead of unison, the ambivalent. The study of the
significant points of contact between the irony, parody and laugh legitimizes the
relevance of the subject in the decoding of these discourses characterized by
ambiguity. Thus, the receptor of ironic and parody texts and marked by laugh is
valued as while it is judged able to understand the dissonance subjacent to
these discourses. Beyond this point of contact between the modalities discussed
- the reader - they were drawn important comparisons between the parody and
the romantic irony, and yet, among the object categories of this study and the
issue of mimesis so inviting. They chose three texts for the application of this
theory: "o homem duplicado" (2002), by José Saramago, "O cavaleiro
inexistente" (1959), by Italo Calvino, and "O duplo" (1846), by Dostoyevsky. The
selection of works was guided by the structure of these dissonant narratives, in
whose essence they are found many and varied aesthetic applications of irony,
the parody and laugh.
Key words: Irony. Parody. Laugh. Dissonance. Reader.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................. 9
Capítulo 1. A valorização do elemento dual e o papel do leitor .................................14
Capítulo 2. Ironia................................................................................................................22
2.1 Ironia Romântica..........................................................................................................33
2.2 Ironia no teatro...........................................................................................................40
2.3 A ironia instituindo hierarquias? .............................................................................42
2.4 A carga afetiva da ironia...........................................................................................44
2.5 As principais funções da ironia ................................................................................48
Capítulo 3. Paródia..............................................................................................................59
3.1 O paradoxo da paródia................................................................................................69
Capítulo 4. O riso................................................................................................................73
4.1 De Aristóteles a Schopenhauer................................................................................74
4.2 O riso e a liberdade criadora do sujeito................................................................93
4.3 Um sorriso irônico para a razão humana superada ............................................104
Capítulo 5. Conclusão teórica..........................................................................................119
Capítulo 6. Dissonâncias literárias................................................................................147
6.1
O Duplo
, de Dostoievski e o emaranhado de vozes desarmônicas..................148
6.2
O homem duplicado
, de Saramago: a dissonância aparente ............................165
6.3 As refrações da ironia em
O cavaleiro inexistente
, de Calvino......................183
Considerações finais........................................................................................................199
Referências bibliográficas.............................................................................................202
9
Introdução
“A criação literária traz como condição necessária uma carga de liberdade que a
torna independente sob muitos aspectos, de tal maneira que a explicação dos seus produtos é
encontrada sobretudo neles mesmos. Como conjuntos de obras de arte a literatura se caracteriza
por essa liberdade extraordinária que transcende as nossas servidões.”
(Antonio Cândido)
O presente trabalho almeja o estudo dos discursos caracterizados pela
ambigüidade, mais especificamente, a ironia, a paródia e o riso. Como qualquer ato
de comunicação, tais discursos propõem sempre um ponto de vista. Assim, seja de
um modo mais impositivo, seja de um mais liberal, a ironia, a paródia e o riso
veiculam suas “verdades”, no entanto, não o fazem de forma explícita. As opiniões
sugeridas por tais modalidades caracterizam-se por serem resultado de uma
tensão inerente a esses discursos.
Nesse sentido, existe um embate de vozes dissonantes na estrutura da
ironia, da paródia e, ainda, do riso, entendido na presente investigação como
fruto de uma incongruência entre o “pensado” e a “realidade concreta”. Para
compreender a mensagem ou as idéias veiculadas por essas modalidades de
discurso, o sujeito deve perceber a existência de vozes que se chocam na
estrutura desses textos. Essa é indubitavelmente a condição fundamental para a
concretização da ironia, da paródia e do riso. Sem a participação do sujeito na
construção do sentido, essas categorias não existem pelo menos não enquanto
“ironia”, “paródia” e “riso”.
Logo, à medida que convidam o sujeito para colaborar na construção do
sentido, esses discursos são vias para instaurar um movimento de reflexão e,
conseqüentemente, de ampliação do conhecimento e da percepção crítica. As
categorias que motivam a presente pesquisa são, pois, exigentes, já que convocam
o sujeito, valorizando-o como um ser capaz de assimilar a estrutura contraditória
10
desses discursos por meio do exercício da razão. É realmente significativa a
possibilidade de esses discursos alargarem a visão de mundo do sujeito,
permitindo que ele acesse outras realidades ou, ainda, que ele delineie sua
própria forma de enxergar e entender a realidade (que pode destoar, e muito, do
senso comum ou da concepção da maioria).
Nesse sentido, ao longo dos capítulos da tese, realizamos a análise de
cada uma dessas categorias separadamente, a saber, a ironia, a paródia e o riso
e, depois, estudamos as relações entre essas modalidades. Vale salientar que, no
presente trabalho, a ironia é considerada como base para os acontecimentos da
paródia e do riso.
A partir de então, procuramos localizar e examinar as semelhanças entre
esses discursos e, ainda, as características específicas a cada um para, mais à
frente, canalizá-las como suporte para a análise de alguns textos literários (das
autorias de Saramago, Calvino e Dostoievski, conforme detalhado mais adiante).
Acreditamos que a ironia, a paródia e o riso atuam, nos textos literários,
na grande maioria de suas ocorrências, no sentido de suspender a censura e de
burlar as prisões dos discursos monofônicos e conseqüentemente autoritários.
Isso é possível, uma vez que as modalidades em questão privilegiam a polifonia e o
elemento dissonante, legitimados pelo contraste de idéias, traço comum entre
esses três tipos de discurso. Logo, essas categorias, como atos de comunicação,
optam por determinada ótica ou postura, que entra em choque com outra, e é isso
que garante a polifonia.
Devido a essas tensões e embates, que exigem uma participação ativa do
leitor, o presente trabalho parte do princípio de que o público receptor é
elemento de importância decisiva, sobretudo quando estamos perante textos
literários em cujo cerne o embate de “vozes” contraditórias. Cabe, pois, ao
leitor a tarefa de decodificar, na estrutura do texto em análise, os discursos
dissonantes.
11
Graças ao seu relevante papel, o leitor aparece no primeiro capítulo
desta pesquisa. Nele, o receptor de textos marcados pela ironia, paródia ou riso
é tratado como uma instância que de modo algum é passiva na recepção do texto
literário, pois que sua contribuição é fundamental para a construção do sentido.
Ainda no capítulo primeiro, procuramos, em linhas gerais, mostrar o tipo de
abordagem escolhida para a questão da duplicidade caracterizadora desses
discursos, que, aliás, se configura como uma importante semelhança entre o riso,
a paródia e a ironia.
Logo em seguida, no segundo capítulo, iniciamos um estudo pormenorizado
da ironia, de suas funções e de suas variadas possibilidades de ocorrência.
Procuramos aprofundar o mais possível o exame dessa modalidade, enfatizando a
idéia (sobretudo no item 2.4) de que a ironia é contraditória em todos os
aspectos, que se inicia da tensão entre discursos incongruentes e ainda
produz, naqueles que se utilizam dela e principalmente em seus receptores,
efeitos bastante contraditórios.
O capítulo 3 trata da paródia como um tipo de texto literário que se
constitui, em primeiro lugar, pelo choque entre discursos dissonantes, como é o
caso, num outro nível, da ironia. Almejamos, neste capítulo, argumentar a favor
da idéia de que o texto paródico não se caracteriza simplesmente como um tipo
de discurso niilista ou desconstrucionista; ao contrário, procuramos apontar para
sua importância como uma modalidade que permite a revisão crítica do passado
histórico e literário, promovendo, inclusive, a perpetuação desse passado e de
suas peculiaridades histórico-culturais.
O capítulo 4 traz uma reflexão acerca do riso, discutindo as proposições
de diversos teóricos, de variadas disciplinas ou áreas de conhecimento (como
filósofos, poetas, teóricos da literatura). Dentro desse leque, privilegiamos
especialmente (devido a sua afinidade com os propósitos de nossa pesquisa) as
teorias do riso de Schopenhauer, de Baudelaire e de Jean Paul. Entre outros
12
motivos, são teorias que proporcionam uma aproximação estrutural e filosófica
entre o fenômeno do riso e os discursos irônicos e paródicos. Nesse sentido, o
riso como a ironia e a paródia configura-se também como um tipo de discurso
que instaura, ao invés da certeza, a possibilidade; em lugar do uníssono, o
ambivalente, a tensão e o elemento instável.
No capítulo 5, são encontradas as inferências obtidas a partir do estudo
da ironia, da paródia e do riso e, em razão disso, esse capítulo se configura como
uma espécie de conclusão teórica do presente trabalho. Nele estudamos os
significativos pontos de contato entre a ironia, a paródia e o riso. Examinamos,
ainda, questões fundamentais para a nossa pesquisa, como a relevância do sujeito
– que caracteriza as três modalidades -, as relações entre paródia e ironia
romântica, o tipo de contraste que especifica a ironia, a padia e o riso e, ainda,
pensamos em uma aproximação entre as nossas categorias de estudo e a
problemática tão convidativa da
mímesis
.
O capítulo 6 traz um estudo de obras literárias, analisadas a partir da
ironia, paródia e riso. Dadas as limitações de tempo e espaço a que está
submetida uma tese, escolhemos apenas três textos para nosso trabalho: os
romances
O homem duplicado
(2002), de José Saramago, e
O cavaleiro
inexistente
(1959), de Ítalo Calvino, e o conto
O duplo
(1846), de Dostoievski. É
importante deixar claro que a seleção das obras guiou-se pela estrutura
dissonante dessas narrativas, em cujo bojo encontramos muitas e variadas
aplicações estéticas da ironia, da paródia e do riso.
Mediante esse recorte específico (tanto no plano teórico, quanto no
estético) buscamos discutir alguns aspectos dessas categorias de linguagem
extremamente complexas e fascinantes, além de refletir sobre as possibilidades
fecundas de relação entre esses discursos. Esperando que nosso trabalho possa
servir de contribuição e estímulo aos estudos literários neste campo específico,
13
convidamos o leitor para nos acompanhar nessa jornada pelas sinuosas galerias e
contundentes subterrâneos da ironia, da paródia e do riso.
14
Capítulo 1. A valorização do elemento dual e o papel do leitor
“A natureza ambígua, complexa e elaborada do discurso literário afirma-se, justamente, na
medida em que, de múltiplas maneiras, sempre conseguiu burlar as prisões, o proibido, e toda
impossibilidade concreta do mundo imediato.”
(Ângela Maria Dias)
Inicialmente, é preciso levar em conta a certeza de que existem
semelhanças bastante interessantes entre o riso, a paródia e a ironia. Essas
modalidades são vizinhas e, como tal, têm em comum, quase sempre, a função de
questionar um modelo maniqueísta, seja ele qual for. Resulta dessa característica
um efeito de sentido bastante importante: a tensão ou o elemento dissonante.
Assim, as categorias riso, ironia e paródia atuam na suspensão da censura,
contrariando, muitas vezes, uma ideologia que se diz séria e ocasionando, pois,
discursos polifônicos e conflitantes. Isso posto, serão mostradas, a seguir, em
linhas gerais, as semelhanças entre o riso, a ironia e a paródia e, depois, esses
conceitos serão mais detalhados no capítulo 6. Essa exposição inicial e pouco
aprofundada é necessária para que se tenha uma idéia do raciocínio que se
pretende desenvolver a respeito dessas modalidades.
Começando pelo cômico, Ângela Maria Dias cita a visão de alguns
estudiosos de renome sobre o riso. De acordo com ela, para Freud, o cômico
consistiria no contraste entre idéias; ainda segundo Ângela Maria, Bergson
apontou como causa organizadora do riso a circunstancial incapacidade humana de
adaptação a situações novas; e, seguindo nessa mesma linha, a autora cita, ainda,
Schopenhauer, que considera a percepção da incongruência entre o que se pensa
e o que se como principal fator para a existência do riso. (1981, p. 38) De
acordo com Ângela Maria Dias,
Salta aos olhos o caráter contraditório, ambíguo, incongruente do
riso. Se fizermos uma análise dos discursos críticos em relação ao
15
impulso cômico no homem constataremos com expressiva
freqüência a intensidade da referência ao dado ambivalente,
duplo, conflitante, relativo à coexistência de feições opostas, no
interior de uma mesma entidade. Por isso, talvez pudéssemos
sugerir que a percepção da diferença, que o reconhecimento do
plural, do turbulento, do desigual, implícitos numa espécie de
instável conciliação, configuram o clima propício à instauração do
humor. (1981, p. 38)
Boris Schnaiderman, em seu artigo “Paródia e mundo do riso”, cita algumas
palavras dos teóricos e historiadores da literatura D. S. Likhatchóv e A. M.
Pantchenko, inseridas na obra
O mundo do riso da Rússia antiga
:
Exteriormente, em sua camada superficial, o riso deforma
intencionalmente o mundo, faz experimentos com ele, priva o
mundo de explicações racionais e ligações de causa e efeito, etc.
Mas, destruindo, o riso, ao mesmo tempo constrói: ele cria o
seu antimundo fantástico, que traz em si determinada concepção
do universo, determinada relação com a realidade ambiente. Esta
relação do riso com a realidade é variável nas diferentes épocas e
em diferentes povos. (Apud SCHNAIDERMAN, 1980, p. 90-91,
grifos nossos.)
É imprescindível perceber que o traço ambíguo, dissonante, duplo, plural,
desigual, entre tantos outros adjetivos sinônimos caracterizadores do humor, se
faz também presente nos discursos irônicos e, ainda, na paródia. Em relação à
ironia, a estudiosa Lélia Parreira Duarte tem uma definição bastante
esclarecedora:
Nada pode ser considerado irônico se não for proposto e visto
como tal; não ironia sem ironista, sendo este aquele que
percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e as
explora em enunciados irônicos, cujo propósito somente se
completa no efeito correspondente, isto é, numa recepção que
perceba a duplicidade de sentido e a inversão ou a diferença
existente entre a mensagem enviada e a pretendida. (1994, p. 55,
grifos nossos)
16
A ambigüidade é, também, propriedade da ironia, que deve ser entendida
em seu modo mais freqüente de manifestação como a figura retórica por meio
da qual “se diz o contrário do que se diz”; em outras palavras, pode-se afirmar,
sobre esse tipo de ironia, que se trata de um significante para dois significados.
A paródia, por sua vez, entendida etimologicamente como “canto paralelo”,
assinala o caráter duplo da escritura e, conseqüentemente, da leitura
paródicas. Na opinião de Schnaiderman, “Vista como um dos elementos da
oposição mundo / antimundo, a paródia torna-se algo inerente a toda uma
tradição cultural.” (1980, p. 91) Para Maria Lucia P. de Aragão,
A paródia é uma forma de jogo em que se usa uma determinada
técnica, cujos efeitos não são uniformes. Agride ou recusa os
significados, enquanto reforça os significantes: ao potencializar
um, enfraquece o outro. [...] A paródia se apresenta como um
gênero ambíguo, denunciando o fracasso do poder constituído,
numa sociedade cheia de contrastes [...] (1980, p. 19-21, grifo
nosso)
Logo, faz-se bem visível a proximidade entre as categorias riso, paródia e
ironia, uma vez que são marcadas, entre outros fatores, pela contradição, pela
ambigüidade e pela tensão. Outro traço fundamental, comum a esses discursos, é
justamente a necessidade de participação do leitor na criação do sentido, afinal,
cabe a ele, por meio de sua razão, localizar as ambigüidades inerentes a essas
categorias. A conseqüência imediata da presença desses traços incongruentes e
dissonantes é que essas modalidades a saber, o riso, a paródia e a ironia
propõem a releitura do mundo, marcada por uma visão muito mais crítica. Vale a
pena reiterar, entretanto: tal releitura depende do sujeito.
Esse olhar mais reflexivo e apurado para o mundo é alcançado, devido ao
fato de as categorias como o riso, a paródia e a ironia permitirem que
17
apreendamos a realidade não a partir de esquemas mentais inconciliáveis e
bipolarizados, mas sim, através do choque, da tensão entre esses esquemas.
Portanto, partimos do princípio de que as modalidades motivadoras da
presente pesquisa permitem que sejam avaliados os maniqueísmos, uma vez que a
“verdade” proposta por essas categorias não está em “A” ou em “B” , que se
opõem, mas sim, no choque, na tensão entre “A” e “B”. É provável que nasça, como
resultado desse embate, uma outra possibilidade de “verdade” que se distancie
do maniqueísmo inicial.
Sabemos, porém, que nem sempre a literatura aqui representada pelas
categorias da ironia, paródia e riso nos conduz a um contexto que transcende
completamente nossa realidade concreta, repleta de maniqueísmos. Portanto, em
contato com essas modalidades, assim como com a própria literatura, o sujeito
tem a
possibilidade
de refletir e avaliar o mundo ao seu redor.
O resultado dessa experiência pode ser a manutenção dos maniqueísmos
anteriores, a criação de outros maniqueísmos ou, ainda, o acesso a idéias mais
originais. Todo esse processo está subordinado ao sujeito receptor de textos
caracterizados pela dissonância e, ainda, ao produtor desses discursos, que
pode nutrir intenções as mais variadas, inclusive a de manipular.
Como se sabe, os principais participantes do jogo da ironia são o
interpretador e o ironista. Acreditamos, entretanto, que a participação do
interpretador ou do receptor ou ainda do leitor, no caso da ironia literária, é
decisiva, na medida em que está nas mãos desse receptor decodificar – ou não – a
significação irônica.
Em razão disso, decidimos comentar a problemática do leitor logo no início
desse trabalho, a fim de que se torne evidente, antes de mais nada, a
fundamental importância desse elemento, que deve ser levado em consideração
em quaisquer análises que se debrucem sobre textos cuja natureza é dissonante
e contraditória.
18
Linda Hutcheon, estudiosa que segue essa mesma linha de raciocínio,
afirma que é realmente o destinatário quem decide se uma elocução é irônica ou
não e, ainda, qual o sentido particular que ela, sendo irônica, pode assumir:
Esse processo ocorre à revelia das intenções do ironista (e me
faz me perguntar quem deveria ser designado como o “ironista”).
Não garantias de que o interpretador “pegar” a ironia da
mesma maneira como foi intencionada. Na verdade, “pegar” pode
ser um incorreto e até mesmo impróprio; “fazer” seria muito mais
preciso. (2000, p. 28)
A pessoa designada por “ironista” geralmente é aquela que objetiva
estabelecer uma relação irônica entre o dito e o não dito, todavia, nem sempre
obtém sucesso em transmitir uma intenção específica. Logo, estamos autorizados
a inferir que a ironia pode significar coisas diferentes, de acordo com os
jogadores. Tal afirmação nos remete, com certeza, às palavras citadas dos
teóricos D. S. Likhalchóv e A. M. Pantchenko sobre o riso: “Esta relação do riso
com a realidade é variável nas diferentes épocas e em diferentes povos.” (Apud
SCHNAIDERMAN, 1980, p. 90-91) Fica, portanto, assinalada, uma importante
semelhança entre esses discursos: sua decodificação está submetida ao receptor
e, ainda, ao contexto em que ele está inserido.
Seguindo esse raciocínio, textos caracterizados pela ambigüidade, pelo
paradoxo, pela contradição e pela incongruência convocam o leitor a participar de
maneira efetiva da construção de seu sentido, acionando seu “repertório” ou seu
“conhecimento de mundo”.
Desse modo, o receptor de textos irônicos, paródicos ou cômicos é
valorizado na medida em que é julgado capaz de perceber a ambigüidade
subjacente a esses discursos. Nos três casos, a condição para que o sentido seja
integralmente construído é a participação do leitor, que deve perceber, portanto,
que está à frente de um enunciado dicotômico.
19
Assim, se é verdade que, do ponto de vista do ironista, “a ironia é a
transmissão intencional tanto da informação quanto da atitude avaliadora além do
que é apresentado explicitamente” (HUTCHEON, 2000, p. 28), também é fato
que o trabalho do interpretador não pode ser simplesmente o de compreender
corretamente. Para Hutcheon, nenhuma elocução é irônica em si, pois devemos
sempre supor alguns interpretadores levando-a ao pé da letra:
[...] atribuir ironia onde ela é intencional e onde ela não é ou
recusar-se a atribuir ironia onde ela poderia ser intencional é
também o ato de um agente consciente. [...] O interpretador como
agente desempenha um ato – atribui tanto sentidos quanto motivos
e o faz numa situação e num contexto particulares. Atribuir
ironia envolve, assim, inferências tanto semânticas quanto
avaliadoras. (2000, p. 29)
Portanto, o leitor se configura como elemento central dessa categoria de
texto literário, que deve localizar os aspectos que se encontram,
implicitamente, em tensão. Assim, esse tipo de discurso ambíguo, paradoxal,
contraditório e incongruente espera do leitor não apenas o sentimento de
prazer suscitado pela leitura, mas também a responsabilidade do uso da
imaginação e da perspicácia na construção do sentido. Esses discursos ocasionam,
também, um tipo de prazer o prazer estético, como veremos no capítulo 6
contudo, essa espécie de “deleite” ocorrerá após a decodificação pelo leitor
das “pistas” que sinalizam a incongruência.
O receptor do texto paródico, por exemplo, deve, pois, reconhecer que
está diante de uma narrativa em cuja estrutura ocorre a sobreposição de dois
planos: um superficial e outro implícito. Logo, se o leitor não conseguir identificar
essa duplicidade que sustenta o texto paródico, ele eliminará boa parte de sua
significação. Desse modo, não é possível pensar em paródia sem que se leve em
20
conta esse colaborador imprescindível, que é o leitor. Afirma Maria Elena
Pinheiro Maia,
A Estética da Recepção tem demonstrado que a colaboração do
leitor para a decodificação da mensagem textual é imprescindível,
pois alguns romances nos oferecem infinitas possibilidades de
relacionamento, e cabe ao receptor, através de suas projeções
representativas e da estrutura de apelo do texto, ocupar seus
vazios, o não dito. Sendo assim, podemos considerar o texto
artístico não uma construção do autor, como também uma
reconstrução do leitor. Cabe-lhe dirigir, organizar, interpretar o
texto que oferece o autor. (1999, p. 15)
A mesma estudiosa cita, ainda, um fragmento muito elucidativo da
escritora Linda Hutcheon – a quem nos remetemos sempre neste trabalho - sobre
a importância da participação do leitor na construção do sentido do texto
literário:
A criação de mundos fictícios e o funcionamento construtivo,
criador da linguagem no curso da
poiesis
são doravante partilhados
conscientemente pelo autor e pelo leitor. Não basta mais pedir ao
leitor que admita que os objetos de ficção são ‘como a vida’;
espera-se que ele participe da criação de mundos, de sentidos, por
meio da linguagem. Ele não pode se esquivar a esse apelo à ação,
pois é pego na situação paradoxal de alguém que é forçado pelo
texto a reconhecer o caráter fictício do mundo em cuja criação
ele também toma parte e que sua própria participação penetra de
maneira intelectual, criadora e talvez mesmo afetiva em uma
prática humana que é bem real, uma espécie de metáfora dos
esforços que ele faz todos os dias para ‘dar sentidoà experiência
vivida. (1977, p. 101-102. Apud MAIA, 1999, p.16-17)
Por conseguinte, o leitor deve, como um detetive, estar atento à categoria
de textos examinada neste trabalho, reconstruindo os seus sentidos e
preenchendo seus espaços vazios ou os ‘não ditos’, dando-lhe, enfim, a forma final
por meio de suas projeções interpretativas.
21
Para finalizar esse capítulo, remetamo-nos mais uma vez às precisas
palavras de Linda Hutcheon sobre a ironia, categoria que, teremos a
oportunidade de estudar adiante, parece estar “na base” da construção da
paródia e do riso:
“A ironia não é necessariamente um caso de intenção do ironista (e logo de
implicação), embora ela possa ser; ela é sempre, no entanto, um caso de
interpretação e atribuição.” (2000, p. 74)
22
Capítulo 2. Ironia
O amor
, Caravaggio
“Diz-se que a ironia irrita porque ela nega nossas certezas ao desmascarar o mundo como
uma ambigüidade.”
(Linda Hutcheon)
Daremos seqüência a esse trabalho discutindo a problemática da ironia.
Como se sabe, existem dois grandes tipos de ironia: aquela que se faz presente
na vida cotidiana, simples e a que mais nos interessa, a saber, a ironia literária.
Muecke (1995, p. 15) explica que a ironia desempenha seu papel na vida cotidiana
e, nesse caso, essa “ironia popular” não oferece ao seu receptor desafios
complicados de interpretação.
Elucida tal tipo de ironia a frase “Sorria, você está sendo filmado”,
encontrada há alguns anos em inúmeros centros comerciais espalhados por todo o
Brasil. Na verdade, deparados com esse enunciado, somos convidados não a
esboçar um sorriso, como se sugere literalmente, mas sim, somos avisados de que
estamos submetidos a uma câmera e, sendo assim, caso ajamos ilicitamente,
seremos identificados. Esse é, pois, um caso em que a ironia se faz presente no
cotidiano, sem oferecer dificuldades maiores de interpretação.
23
O que nos interessa mais, obviamente, é a ironia literária. Inserido nesse
contexto, Muecke propõe uma série de questionamentos interessantes, que
correspondem, também, a alguns dos objetivos mais importantes desse estudo:
“o que é a ironia e como ela atua; para que serve e o que vale; de que é feita e
como é elaborada; como a conhecemos quando a vemos; de onde provém o
conceito e para aonde vai.” (1995, p.18)
Para começar, o estudioso citado acima confere à ironia certa função de
equilíbrio ou correção. Segundo ele, a categoria em estudo pode restaurar o
equilíbrio da vida quando ela está sendo levada muito a sério, ou, ao contrário,
quando a vida não é levada de forma suficientemente ria, “estabilizando o
instável, mas também desestabilizando o excessivamente estável.“ (1995, p. 19)
As funções da ironia serão examinadas no capítulo 2.5.
Outra indagação importante proposta por Muecke é a seguinte: “quais são
as ocasiões das quais seria de esperar que excluíssemos a ironia [...]”? (1995,
p.20) De acordo com ele, não faz sentido afirmar que as artes não-verbais, como
a música, a dança ou a arquitetura, tendem a ser menos irônicas do que a
literatura, que tem a linguagem como princípio. Na verdade, qualquer pessoa bem
informada sabe que pode haver muita crítica ou ironia em, por exemplo, uma
pintura ou escultura artísticas.
O que se pode dizer, entretanto, é que a arte, qualquer que seja, tende a
ser menos irônica quando a intenção de seu criador é mais simples, mais
absorvente e mais imediata. Segundo Muecke,
[...] é quando a literatura é mais musical, na poesia lírica, que, de
modo geral, ela é menos irônica. E é quando uma pintura é
“intelectual” ou “literária”, seja ao fazer uma afirmação, seja ao
transmitir uma mensagem, que pode ser irônica.” (1995, p.20)
24
Conforme explica Muecke, o conceito de ironia é ainda vago, instável e
multiforme. Para Nietzsche (apud Muecke, 1995, p. 22), “somente se pode definir
aquilo que não tem história” e é justamente nisso que reside a dificuldade de se
conceituar a ironia, pois muito já se falou sobre ela. Assim,
A palavra ironia não quer dizer agora apenas o que significava nos
séculos anteriores, não quer dizer num país tudo o que pode
significar em outro, tampouco na rua o que pode significar na sala
de estudos, nem para um estudioso o que pode querer dizer para
outro. Os diferentes fenômenos a que se aplica a palavra podem
parecer ter uma relação muito fraca. (...) Assim, o conceito de
ironia a qualquer tempo é comparável a um barco ancorado que o
vento e a corrente, forças variáveis e constantes, arrastam
lentamente para longe de seu ancoradouro. (1995, p. 22)
Dessa forma, Muecke comenta que cada estudioso segue as orientações
que lhe são mais convenientes acerca da ironia, conforme o local e o momento
histórico em que está inserido e de acordo com seu conhecimento de mundo. No
caso específico desse trabalho, como foi explicado em sua introdução, pretende-
se realizar um apanhado das teorias que se debruçam sobre essa categoria tão
convidativa à análise e, posteriormente, aplicar as definições que mais se ajustam
às obras escolhidas.
Muecke divide a ironia em duas grandes categorias: a ironia situacional ou
observável e a ironia verbal ou instrumental. A fim de elucidar o primeiro caso,
ele cita um fragmento da
Odisséia
, em que Ulisses retorna à Ítaca e, sentando-
se disfarçado de mendigo em seu próprio palácio, escuta um dos pretendentes
dizendo que ele (Ulisses) jamais poderia regressar ao seu lar. Temos, nesse
primeiro caso, uma ironia observável, que corresponde justamente a coisas vistas
ou apresentadas como irônicas. Trata-se da “ironia do ladrão roubado”, por
exemplo. Muecke cita Schlegel:
25
Para Schlegel, a situação básica metafisicamente irônica do
homem é que ele é um ser finito que luta para compreender uma
realidade infinita, portanto, incompreensível. A isto podemos
chamar de ironia observável da natureza, que tem o homem como
vítima. (1995, p. 39)
A ironia verbal ou instrumental, por sua vez, ocorre quando uma
inversão semântica e, nesse caso, a ironia constitui em dizer uma coisa para
significar outra, “como uma forma de elogiar a fim de censurar e censurar a fim
de elogiar [...] (MUECKE, 1995, p. 33) Nesse tipo de manifestação da ironia,
temos um sujeito sendo irônico; logo, trata-se, em certa medida, de um modo de
comportamento.
É possível imaginar, por exemplo, a seguinte situação: ao chegar à sala de
aula, após o intervalo, a professora perde muito tempo de sua aula até que os
alunos, agitados, tomem os seus devidos lugares e fiquem quietos. Então, ela
espera pacientemente e de braços cruzados até que o silêncio seja instaurado.
Quando pode finalmente falar e ser escutada, ela diz, calmamente: -“É por esses
e outros motivos que eu simplesmente adoro lecionar nesta sala de aula! A
educação de vocês me comove!”
Temos aí, sem dúvida, uma ocorrência de ironia verbal. Como se percebe,
não é possível tomar o sentido “ao pé da letra”, o que significa que, se analisarmos
literalmente a fala da professora, chegaremos a um significado diametralmente
oposto ao sentido pretendido, que é, de fato, a insatisfação da professora em
relação ao comportamento dos alunos.
É preciso, então, que se compreenda justamente o oposto daquilo que é
dito. Essa “exigência” é realizada pelo contexto. Dessa maneira, quando leva em
conta a situação em que esse enunciado foi produzido, o receptor não pode
admitir uma interpretação literal.
Portanto, diante da ironia observável, tem-se uma situação, ou uma cena
que devem ser percebidas pelo observador e julgadas irônicas, não existindo,
26
assim, “alguém sendo irônico”. na ironia verbal, uma atitude irônica
expressa por um sujeito, que faz uso de uma inversão semântica para transmitir
sua mensagem, como foi elucidado no último exemplo.
É interessante notar, entretanto, que, mesmo se tratando de uma ironia
verbal, é preciso que o contexto / situação sejam observados, caso contrário, o
sentido pretendido pelo emissor não é alcançado pelo receptor. Seguindo esse
raciocínio, no que diz respeito ao exemplo citado, se a diretora daquele colégio
passasse em frente à sala de aula apenas no instante em que a professora dizia
aquelas palavras irônicas, provavelmente entenderia o enunciado de forma literal.
Isso ocorreria porque a diretora, sem presenciar os acontecimentos desde a
chegada da professora, desconheceria a situação, o contexto em que a frase foi
emitida.
Infere-se a partir desses comentários que, tanto no que diz respeito à
ironia observável quanto à ironia verbal, a participação do receptor é
imprescindível para que a significação irônica aconteça.
Embora tenha sido sugerido, é importante salientar que a ironia
instrumental ou verbal é, portanto, aquela em que a linguagem é o instrumento.
Muecke chama a atenção, ainda, para a necessidade de apresentação da ironia
observável, caso contrário, é como se ela não existisse:
[...] o que chamei de ironias observáveis existe apenas
potencialmente nos fenômenos observados e torna-se efetivo
somente através da apresentação; quanto mais hábil for a
apresentação, mais clara é a situação irônica observada. (1995, p.
85)
É fundamental comentar que também se considera como ironia verbal a
apresentação verbal da ironia observável. Isso se explica pela constatação de
que, se a intenção é transcrever” uma situação irônica, a apresentação implicará
habilidades verbais semelhantes. Em outras palavras, o fato irônico observado
27
será escrito de maneira que as contradições sejam ressaltadas, o que justifica
designar por ironia verbal a apresentação verbal da ironia situacional. Para
Muecke,
Nem sempre é possível distinguir entre a ironia instrumental e a
apresentação da ironia observável, mas geralmente a distinção é
clara: na ironia instrumental, o ironista diz alguma coisa para vê-la
rejeitada como falsa, unilateral, etc; quando exibe uma ironia
observável, o ironista apresenta algo irônico uma situação, uma
seqüência de eventos, uma personagem, uma crença etc. – que
existe ou pensa que existe independentemente da apresentação.
(1995, p. 77)
Agora que foram comentadas as dificuldades de conceituação da ironia,
os textos em que maior probabilidade de encontrá-la e os dois grandes tipos
de ironia verbal e observável – podemos passar para a análise dos traços
básicos dessa instigante categoria.
A sugestão de Muecke – estudioso que está norteando o presente trabalho
sobre a ironia neste momento se faz muito pertinente: investigar quais são as
características comuns às manifestações irônicas de forma geral. Em outras
palavras, ele propõe a busca das características que estão invariavelmente
presentes em quaisquer expressões da ironia e que, portanto, se configuram
como traços definidores, em particular, dos acontecimentos irônicos.
O contraste entre a aparência e a realidade constitui-se como o traço
básico de toda ironia. Conforme se observou nos exemplos irônicos citados
anteriormente, algo é aparentemente afirmado, enquanto, na verdade, se percebe
uma mensagem completamente diferente. A tensão entre aparência e realidade
pode expressar-se por meio de uma oposição, contradição, contrariedade,
incongruência ou, ainda, através de uma incompatibilidade.
Sendo assim, essa característica básica de toda ironia o contraste entre
aparência e realidade marca não apenas a ironia verbal, mas também a ironia
28
observável, pois, nesse último caso, se constata também uma incongruência. Se
pensarmos, por exemplo, num cientista que morre vítima de uma fórmula química
de que ele próprio é autor, percebemos um efeito de sentido irônico criado
graças à seguinte incompatibilidade: entre o que se pensa sobre um cientista (que
ele conheça as propriedades de sua “criação”) e aquilo que corresponde à verdade
(o fato de que, possivelmente, ele não conheça, na realidade, a fórmula criada).
Excetuando-se, obviamente, a provável ocorrência de um acidente, está-se, pois,
diante de uma ironia observável, motivada pela contradição que existe entre
aparência e realidade.
É importante observar, entretanto, que nem tudo o que é diferente do que
parece ser é exemplo de ironia. A mentira e o embuste expressam também, por
exemplo, um contraste entre aquilo que se aparenta e o que realmente é.
Portanto, a oposição entre os conceitos de aparência e de realidade não
caracteriza exclusivamente a ironia. Conforme explica Muecke:
Certos logros, como mentiras, embustes, hipocrisia, mentiras
convencionais e equívocos, que pretendem transmitir uma verdade
mas não o fazem, também podem ser considerados contrastes de
aparência e realidade. Mas, como não são considerados ironia, é
evidente que a ironia tem outro elemento ou elementos além desse
contraste. (1995, p. 54)
É verdade que a ironia e o embuste são “vizinhos próximos”, inclusive
porque a palavra ironia provém do termo latino
dissimulatio
. No entanto, é
necessário ficar claro que o ironista dissimula ou finge não para ser acreditado,
mas para ser compreendido. Para Muecke, mais uma vez:
Nos logros existe uma aparência que é mostrada e uma realidade
que é sonegada, mas na ironia o significado real deve ser inferido
ou do que diz o ironista ou do contexto em que o diz; é “sonegado”
apenas no fraco sentido de que ele não está explícito ou não
pretende ser imediatamente apreensível. Se entre o público de um
29
ironista existem aqueles que não se dispõem a entender, então o
que temos em relação a eles é um embuste ou um equívoco, não
uma ironia [...] (1995, p.54)
Fica fácil perceber, dessa maneira, que o estudo da ironia exige o
reconhecimento de um sentido literal e de outro figurado, uma vez que esse
“recurso” se constitui de um significante para dois significados contraditórios ou
incompatíveis. Aquele que pratica a ironia qualifica o enunciatário, pois o julga
capaz de perceber os índices que sinalizam esse procedimento, participando,
assim, da construção da significação irônica.
Desse modo, como explicou Muecke na citação acima, o ironista pretende
que o sentido seja apreendido pelo receptor da ironia, porém, não imediatamente;
almeja, ao contrário, que aquele a quem a ironia foi dirigida interprete as pistas
que sugerem um discurso irônico, colaborando, por conseguinte, para a
construção do sentido.
O mesmo não se verifica no discurso mentiroso, no qual, ainda que exista,
como na ironia, a presença de um significante recobrindo dois significados que se
contrapõem, o enunciador tenta apagar de sua fala os índices dessa inversão ou
ambigüidade, pretendendo que o enunciatário aceite como verdade o que não é,
desqualificando-o, conseqüentemente.
A presença de um ironista e de uma pretensão irônica constituem-se como
características básicas apenas da ironia verbal ou instrumental, como designa
Muecke (1995, p.55). A ironia observável – por exemplo, a ironia do ladrão
roubado não é marcada pela presença de ironista e, conseqüentemente, não
também pretensão irônica.
A estrutura dramática é outro traço interessante da ironia, sobretudo da
ironia verbal ou instrumental, que é, de acordo com Muecke (1995, p. 58), “um
jogo para dois jogadores.” Como foi dito, nesse tipo de ironia, aquele que a
pratica propõe um texto, entretanto, de alguma forma, motiva o leitor a rejeitar
30
o seu sentido literal em favor de um significado implícito e contrastante. É
justamente nisto que consiste essa estrutura dramática caracterizadora da
ironia: duas pessoas envolvidas na constrão de uma mensagem.
É importante comentar, ainda, que os tais sinais que apontam para um
sentido sub-reptício podem ser parte do texto contradições e exageros ou
podem acompanhar o texto, no caso de serem, por exemplo, gestos. Para Muecke,
“alternativa ou adicionalmente, o ironista pode ser capaz de confiar em seu
público que tem os mesmos valores, costumes ou conhecimento que ele mesmo.”
(1995, p. 59)
A ironia observável, por sua vez, não está desprovida de uma estrutura
dramática parecida. A diferença é que, nesse tipo de ironia, os papéis do ironista
e do público intérprete não fundidos num só: o observador com um senso de
ironia. Segundo Muecke,
O observador irônico reconhece ou descobre que algo pode ser
olhado como na verdade o inverso, em algum sentido, daquilo que
pareceu ser à primeira vista ou a olhos menos aguçados ou a
mentes menos informadas [...] A maioria das ironias observáveis
chegam até nós prontas, já observadas por alguém mais e
apresentadas totalmente formadas no drama, na ficção, no filme,
nas pinturas e desenhos, nos provérbios e ditos [...] Ver alguma
coisa irônica na vida é apresentá-la a alguém como irônica. Esta é
uma atividade que exige, além de uma larga experiência de vida e
um grau de sabedoria mundana, uma habilidade, aliada a engenho,
que implica em ver semelhanças em coisas diferentes, distinguir
entre coisas que parecem as mesmas, eliminar irrelevâncias, ver a
madeira a despeito das árvores e estar atento a conotações e
ecos verbais. (1995, p. 61)
Assim, não se deve comparar os receptores das ironias verbal e observável
e concluir que aquele a quem se dirige a ironia verbal é mais ativo, uma vez que,
como se explicou na citação acima, o papel do observador irônico é mais ativo e
mais criativo do que sugere a palavra “observador”.
31
Faz-se também muito interessante investigar se existe ou não uma
sensação particular que esteja relacionada à ironia e deva fazer parte de sua
definição. Como será observado mais adiante, no capítulo intitulado “A carga
afetiva da ironia”, experimentam-se sensações diferentes, de acordo com o tipo
de ironia, que pode ser trágica, cômica, satírica, paradoxal, entre outras.
Para Muecke, porém, existem pelo menos duas sensações comuns a todas
as ocorrências de ironia. A primeira seria a “curiosa sensação especial de
paradoxo, do ambivalente e do ambíguo, do impossível tornado efetivo, de uma
dupla realidade contraditória.” (1995, p. 65) A segunda seria uma sensação de
libertação que, para Muecke, é característica da ironia, mas o peculiar a ela.
A sensação de liberdade provocada pela ironia relaciona-se, segundo esse
estudioso, aos “sentimentos de superioridade e divertimento e, simbolicamente, a
um olhar do alto de uma posição de poder ou conhecimento superior.” (1995, p.
67) Thomas Mann afirma:
“[...] a ironia é um olhar claro como o cristal e sereno, todo abrangente, que é o
próprio olhar da arte, isso quer dizer: um olhar da maior liberdade e calma
possíveis e de uma objetividade não perturbada por qualquer moralismo.” (APUD
Muecke, 1995, p. 67-68, grifos nossos.)
Muecke acentua, ainda:
A autoconsciência do observador irônico enquanto observador
tende a acentuar sua sensação de liberdade e induz um estado de
satisfação, serenidade, alegria ou mesmo de exultação. Sua
consciência da inconsciência da vítima leva-o a ver a vítima como
se estivesse amarrada ou presa numa armadilha onde ele se sente
livre; comprometida onde ele se sente descompromissado, agitada
por emoções, fustigada, ou miserável onde ele está indiferente,
sereno, ou mesmo movido ao riso; confiante, crédula ou ingênua,
onde ele é crítico, cético, ou disposto a parar o julgamento. Onde
sua própria atitude é a de um homem cujo mundo parece real e
significativo, ele considerará o mundo da vítima ilusório ou
absurdo. (1995, p. 68)
32
Por meio desse comentário de Muecke, fica bem claro que as sensações de
superioridade e de liberdade são características da ironia. Ambos os
participantes da construção do sentido irônico podem gozá-las. Assim, ironista e
receptor da ironia podem sentir liberdade em contato com uma manifestação
irônica – o primeiro porque propõe um “sentido oculto” que apenas ele conhece em
princípio, e o segundo, porque tem condições de, por meio das pistas dadas pelo
ironista, chegar ao sentido irônico. No caso da ironia observável, essa sensação
também se faz presente: o observador irônico se sente superior e livre quando
considera uma situação – tida pela maioria como “normal” – incongruente.
33
2.1 Ironia romântica
Distanciando-se da abordagem mais comum de ironia – um significante para
dois significados a ironia romântica é fruto da intervenção do narrador em seu
relato. Assim, a narrativa prossegue normalmente até que, em um determinado
momento, e, obviamente, almejando fins específicos, o narrador “intromete-se”,
revela-se, tecendo comentários, críticas ou mesmo refletindo sobre a criação
literária.
Odil de Oliveira Filho nomeia esse narrador de
contador de histórias
, uma
vez que, se inserindo no relato e deixando momentaneamente a objetividade de
lado, se aproximaria justamente das narrativas orais, marcadas pela presença de
uma categoria mais popular, que é a do contador.
É importante salientar que esse tipo de narrador aparece em momentos
específicos da história literária. Assim, no final do século XVIII e ainda no
século XIX, o “contador de histórias” fez-se muito presente, marcando
concretamente sua presença e intervindo no plano do enunciado. Essas
“aparições” freqüentes nesse momento legitimam, sem dúvida, os ideais
românticos de originalidade e de subjetividade, que assinalaram esses séculos. De
acordo com Karin Volobuef,
O Romantismo, mediante o recurso à ironia romântica, deixa
entrever o fazer poético e institui a primazia do indivíduo
(criador) sobre a obra (objeto criado). Aquilo que se costuma
denominar ironia romântica constitui-se como uma determinada
escritura poética que sinaliza, dentro do texto, a presença de seu
autor. Em suma, trata-se da ascendência do autor em relação à
obra. (1999, p. 90-91, grifos nossos).
Posteriormente, com o início do movimento literário seguinte – o Realismo –
o narrador se abstrai dos fatos que narra, já que a “regra” é a busca da
34
objetividade. Num terceiro momento, expresso durante o século XX, as relações
entre narrador e leitor são subjetivadas, superando-se assim a distância entre
um e outro. Conforme explica Odil de Oliveira Filho:
... descarta-se toda a espécie de ‘truque’ para criar a aparência de
realidade buscada pelo romance tradicional, desfaz-se a ordem
cronológica e investe-se no relativo e no subjetivo das ações
humanas; o narrador onisciente é eliminado, assim como o narrador
imparcial, suprimindo-se o mais possível a distância entre o
narrador e o mundo narrado. (1993, p.73)
É necessário não considerar os períodos comentados de maneira rígida,
uma vez que sempre houve escritores que não se encaixaram nas tendências
literárias seguidas em determinados momentos. No Brasil, para citar apenas um
exemplo, temos Machado de Assis, que, inserido no século XIX, não se submeteu
aos ditames do Realismo no que diz respeito à objetividade narrativa, criando
narradores interventivos ou, como designou Odil de Oliveira Filho, autênticos
“contadores de história”. No entender de Beth Brait,
A ironia romântica pode ser traduzida como “o meio que a arte
tem para se auto-representar”, como articulação entre filosofia e
arte, poesia e filosofia, na medida em que não estabelece
fronteiras entre princípio filosófico e estilo literário. Além desse
aspecto caracterizador (...) há ainda outros a serem sublinhados: a
idéia de contradição, de duplicidade como traço essencial a um
modo de discurso dialeticamente articulado; o distanciamento
entre o que é dito e o que o enunciador pretende que seja
entendido; a expectativa da existência de um leitor capaz de
captar a ambigüidade propositalmente contraditória desse
discurso. (1996, p. 29, grifos nossos).
Possivelmente, o mais curioso na expressão da ironia romântica seja o
efeito de sentido produzido nos discursos por ela caracterizados. Para Linda
35
Hutcheon (1984, p. 45), “a ironia romântica, evidentemente, serviu menos para
subverter a ilusão do que para criar uma nova ilusão.”
Assim, esse tipo de ironia cria efeitos de sentido contraditórios: ao
permitir que o leitor “veja” os mecanismos do “fazer poético”, desnudando o
caráter ficcional da narrativa, o narrador, por um lado, legitima a ficcionalidade e
destrói a verossimilhança do relato; entretanto, analisando de maneira inversa, o
narrador, por meio da ironia romântica, confere certa aparência de “realidade” à
narrativa que tece e institui, de certo modo, uma forte “ilusão de veracidade”,
ultrapassando, ao que parece, a sensação de verossimilhança.
Por se constituírem como excertos bastante representativos do tipo de
ironia examinado nesse momento, escolhemos alguns fragmentos do romance
O
Arco de Sant’Ana
, do escritor português Almeida Garrett, localizado
literariamente no Romantismo. As passagens abaixo exemplificam bem não apenas
os sentidos gerados num texto literário a partir da utilização da ironia
romântica, mas também sinalizam algumas das pretensões do narrador ao utilizá-
la afinal, é sempre com intenções específicas que um narrador se vale desse
tipo especial de ironia. Vamos ao primeiro fragmento:
Cá estamos junto à veneranda estátua do velho Porto que, rodeado
de assopradas tripas, olha, como de próprio trono, para sobre os
domínios de sua jurisdição. Não tinha ainda, naquele tempo,
iconoclástica brocha ousado assarapantar de vulgar e rabugenta
oca, nem arrebicar de crasso vermelhão aquele primor do cinzel
portuense, que então resplandecia em toda a nitidez do primitivo
granito. Cometamos, pois, o desculpável anacronismo, se o é, de
saudar o respeitável emblema de nossa ilustre cidade, e vamos
direitinhos, sem mais cumprimento nem mesura, aos passos da Sé,
ou passos do bispo, como hoje se diz e talvez então se dissesse já.
Creio que dizia. O precioso manuscrito donde tiro esta verdadeira
história lê ‘paços do bispo’: na sua fé vá como ele quer. (s.d., p. 45-
46).
36
Mesmo descontextualizado, é possível notar que o trecho acima, situado no
início do relato, não faz parte da história enquanto rie de acontecimentos
narrados, mas sim, de um “mundo discursivo” ou “mundo comentado”. Trata-se,
portanto, de uma manifestação especial do narrador, que, nesse momento,
reforça a sua existência
com
o leitor, por meio da utilização dos verbos na
primeira pessoa do plural. O apelo à ironia romântica nesse trecho garante, como
se pode perceber, a verossimilhança narrativa.
Ainda em relação à mesma narrativa, o romance não faz apenas alusão a
objetos
extratextuais, mas também a assuntos literários que, em razão de serem
verídicos (por se encontrarem
fora
do espaço ficcional), instauram, mais do que a
verossimilhança, certa “ilusão de veracidade”, aqui compreendida como uma forte
aproximação entre a obra literária e o mundo exterior. Essa característica pode
ser muito bem observada em:
Deixá-lo, deixá-lo e transportemo-nos nós, amigo leitor, para mui
diverso, posto que não mui apartado lugar. Façamos, com a rapidez
com que em um teatro britânico se faz, a nossa mutação de cena;
e deixai gemer as unidades de Aristóteles, que ninguém desta vez
lhe acode. (s.d., p. 45).
Esta asserção é, com certeza, bastante significativa, uma vez que remete
o leitor à oposição ferrenha dos românticos em relação às regras classicistas.
Como foi mencionado, Almeida Garrett é um romântico e, como tal, não se
submete à lei das três unidades de Aristóteles; desse modo, o narrador se vale
da ironia romântica para desautorizar esse filósofo, ao “pular” bruscamente de
cena, levando consigo o leitor.
Ainda sobre esses fragmentos que enviam o leitor para fora do texto a fim
de assegurar o “efeito de realidade”, é preciso dizer que, mesmo quando não
representam
fatos
, como é o caso do trecho comentado acima, essas passagens
37
são, muitas vezes,
verificáveis
, garantindo, portanto, semelhante efeito de
sentido. Isso se dá também em:
Vasco, o nosso estudante, pois não há mister de mais mistérios – e
perdoem-me o mister’ que aqui veio mais pela graça da aliteração
do que por outra coisa: tão safado e sáfaro o trazem por os
periódicos e os dramatistas, que ninguém pode com ele! (s.d., p.
100).
No fragmento acima, se faz bem nítida a ironia romântica, já que o
narrador está praticamente revelando a maneira crítica por meio da qual constrói
o seu texto. Trata-se, em outras palavras, de um trecho onde se representa o
próprio processo de enunciação. Como foi comentado neste trabalho, se, por
um lado, ocorre, em casos semelhantes a este, uma revelação do caráter ficcional
da narrativa, por outro, cria-se, mais do que um efeito que certifique a
verossimilhança; ocorre uma viva ilusão de veracidade.
Em um outro momento da narrativa de Garrett, eis uma nova investida do
narrador:
um vazio sempre, um oco de incerteza em todas as comoções
populares, de que é fácil aproveitar-se qualquer com mediana
habilidade, uma vez que esteja de sangue frio, e lhe lance a tempo
um nome, uma palavra, uma frase, seja qual for. E não importa a
idéia; o que se quer é o símbolo. Da coisa simbolizada não é tempo
de tratar agora, não sossego para a examinar: depois veremos.
Toma-se a palavra, o nome, a bandeirola um chapéu de três
ventos que seja, como o outro dia sucedeu em França e vai-se
para adiante. Fica, é verdade, o direito salvo para chorar depois o
erro, lamentar a precipitação do momento, e conspirar cada um
contra a sua própria obra; mas é tudo o que fica. E não obstante
isso, assim se fez sempre, assim se de sempre fazer: porque o
povo nunca se excita fortemente pelo bom do que há de vir, senão
pelo mau e insuportável do que é.” (GARRETT, s.d., p.125-.126,
grifos nossos).
38
Esse trecho denota muita sabedoria. nele, sem dúvida, uma reflexão
sobre o próprio tempo da escrita do romance, em que se insurgiam, uns contra os
outros, liberais e conservadores. Garrett, soldado liberal, metaforiza, assim, na
história da insurreição popular contra o bispo do Porto, o desejo de união do povo
contra o autoritarismo do Estado e da igreja de
seu
tempo.
É possível entrever, ainda, remissão clara à Revolução francesa e, como
foi visto, essas referências a situações extratextuais sempre auxiliam na
construção de um efeito de sentido maior do que a simples verossimilhança: a
ilusão de veracidade. Além disso, a sensatez dessas palavras alerta justamente
para a ingenuidade e insegurança do povo que, segundo o narrador, está sempre
desorientado em relação aos seus direitos e às mazelas das quais é ou seainda
vítima. Podemos supor, ainda, uma crítica sutil à burguesia e, nesse caso, esse
fragmento nos remete à oposição entre românticos e burgueses, tão significativa
para a literatura da segunda metade do século XVIII e XIX.
É válido reiterar que são passagens absolutamente desnecessárias ao
encadeamento dos fatos narrados. Isso quer dizer que os trechos citados acima
são caracterizados por estarem fora da diegese, integrando, assim, não a
história em si, mas uma espécie de “mundo comentado”.
Por conseguinte, em o
Arco de Sant’Ana
, como em outros textos
literários marcados pela presença da ironia romântica, elementos que extrapolam
a questão da verossimilhança; isso se dá, como se pôde perceber, porque tais
elementos não se encontram inseridos nos domínios da diegese considerada
como série de fatos narrados. Conseqüentemente, tais manifestações reforçam,
na obra literária, uma forte sensação de ilusão de veracidade, aqui entendida,
reitera-se, como uma intensa aproximação entre a obra literária e a realidade
exterior.
Esperamos que tenha ficado claro, ainda, pela observação dos fragmentos
da obra de Garrett, que se o narrador faz uso da ironia romântica, é sempre em
39
busca da realização de uma intenção específica, que deve ser “descoberta” pelo
leitor. A opinião de Muecke vem ao encontro das idéias defendidas no presente
trabalho:
Na ironia romântica, a inerente limitação da arte, a incapacidade
de uma obra de arte, como algo criado, de captar plenamente e
representar a complexa e dinâmica criatividade da vida é, por sua
vez, imaginativamente levada à consciência quando se lhe atribui
conhecimento temático. Deste modo, a obra transcende a
mimese ingênua e adquire uma dimensão aberta que pode
convidar-nos à posterior especulação. (1995, p. 95, grifos
nossos.)
Portanto, os textos literários marcados pela ironia romântica ao mesmo
tempo em que chamam a atenção, explícita ou implicitamente, para sua condição
específica de texto literário e, pois, para sua natureza ilusória, extrapolam a
mimese ingênua, criando o que achamos por certo chamar “ilusão de veracidade”.
40
2.2 Ironia no teatro
A maneira como a ironia se manifesta no teatro é bastante interessante.
Sua qualidade depende do fato de a platéia dispor de informações verdadeiras
sobre uma determinada situação ou obter uma informação junto com a vítima.
Segundo Muecke,
No palco, este artifício de consciência discrepante pode ser
variado de diversas maneiras: somente a platéia pode entender a
plena importância do que é dito; uma ou mais personagens podem
saber no todo ou em parte o que a platéia sabe; uma personagem
que está desinformada pode falar ou ouvir em ignorância o que é
de seu interesse ou desinteresse. (1995, p. 75)
Como se vê, Muecke considera irônico, no teatro, o fato muito corriqueiro
de alguns dramaturgos brincarem com a questão da posse de algumas
informações fundamentais por parte, apenas, da platéia. Assim, por exemplo, em
O noviço
, texto teatral de Martins Pena, encontramos inúmeras passagens
parecidas com a seguinte:
Ambrósio Dous filhos te ficaram do teu primeiro matrimônio.
Teu marido foi um digno homem e de muito juízo; deixou-te
herdeira de avultado cabedal. Grande mérito é esse...
Florência – Pobre homem!
Ambrósio Quando eu te vi pela primeira vez, não sabias que eras
viúva rica. (À parte:) Se o sabia! (Alto:) Amei-te por simpatia.
Florência – Sei disso, vidinha.
Ambrósio – E não foi o interesse que me obrigou a casar-me
contigo.
Florência – Foi o amor que nos uniu.
Ambrósio Foi, foi, mas agora que me acho casado contigo, é de
meu dever zelar essa fortuna que sempre desprezei.
Florência, à parte - Que marido!
Ambrósio, à parte – Que tola! (2003, p. 11)
41
O enredo principal dessa peça consiste no seguinte: Ambrósio,
espertalhão, pretende “dar o golpe do baú” em Florência, mulher ingênua e viúva
rica. Quem salvará essa personagem da ruína é Carlos, seu sobrinho, que, por
sugestão maldosa de Ambrósio, se encontra encerrado em uma espécie de
seminário para padres.
É interessante notar que Martins Pena faz uso dos apartes a fim de
mostrar quem as personagens realmente são. E o que cria o efeito irônico é o
fato de que teoricamente apenas a platéia ouve esses apartes. Ou seja, algumas
personagens mantêm-se completamente alheias a informações essenciais a sua
vida.
No caso do fragmento acima, Florência ignora as verdadeiras intenções de
Ambrósio e prejudica-se por isso, na medida em que é manipulada por ele. Esse
recurso, além de criar um curioso efeito irônico, envolve a platéia, que,
conhecendo verdades que as demais personagens desconhecem, torce por uma
reviravolta, espera ansiosa que a verdade se explicite.
A platéia pode, portanto, saber de antemão o resultado ou o verdadeiro
estado das coisas, como se observou no fragmento de
O Noviço
. Mas também
casos em que o público recebe as informações ocultadas juntamente com a vítima.
Conforme esclarece Muecke,
(...) existem ironias efetivas nas quais a platéia é mantida sem
informação. Shirley Hazzard, em
Transit of Vênus
, lança uma clara
cilada ao leitor, deixando-o saber que uma personagem que
pouco dissera à heroína: “Nós, pessoas comuns, podemos dizer
mais ou menos como certas coisas provavelmente irão ocorrer
conosco” vai morrer três meses mais tarde num desastre de avião,
mas não o informa, até o fim do romance, de que a heroína estará
no mesmo avião. (1995, p. 75-6)
42
2.3 A ironia instituindo hierarquias?
“O conceito de que a ironia é negativa, amplamente destrutiva, parece ser defendido, em
épocas diferentes, por quase todos que receberam um ataque irônico (ou não conseguiram ver a
ironia de maneira nenhuma) ou por aqueles para quem o sério ou o solene e o unívoco são o ideal.
Obviamente, esse último grupo incluiria não apenas os desprovidos de senso de humor, mas
também aqueles cujos compromissos políticos os levassem a desejar, talvez para propósitos
didáticos, um discurso de engajamento sem ambigüidade.”
(Linda Hutcheon)
A problemática da hierarquia que a ironia em geral ocasiona no momento de
sua manifestação é extremamente importante. Segundo Booth, estudioso citado
por Linda Hutcheon, quer se perceba, quer não, a ironia tem o poder de excluir e
de humilhar ou, ao invés disso, de criar “comunidades amigáveis.” (1974, p. 28.
Apud HUTCHEON 2000, p. 37) Do ponto de vista do ironista, é possível supor a
seguinte hierarquia criada pela ironia: “aqueles que a usam, depois aqueles que a
”pegam” e, no fundo, aqueles que não a “pegam”. (2000, p. 37)
Hutcheon chama a atenção para o fato de que, sob a ótica do
interpretador, as “relações de poder” entre os “jogadores” da ironia podem
parecer bem diferentes:
Não é que a ironia cria comunidades ou grupos fechados; em vez
disso, eu quero argumentar que a ironia acontece porque o que
poderia ser chamado de “comunidades discursivas” já existe e
fornece o contexto tanto para o emprego quanto para a atribuição
da ironia. (2000, p. 37)
Logo, no entender dessa estudiosa, as pessoas se encaixam nessas
comunidades de discursos e cada uma dessas comunidades tem suas
características e suas convenções próprias, conhecidas e compartilhadas entre
os integrantes desse “grupo discursivo”.
Assim, por exemplo, uma piada sobre um determinado escritor português,
compartilhada entre professores de literatura, poderia não ser compreendida
43
por um grupo formado por matemáticos. Poderia não ser, entretanto, também
poderia ser entendida, de acordo com o repertório dessas pessoas. Para
Hutcheon, portanto:
Isso não é uma questão de elitismo de grupos fechados; é apenas
uma questão de contextos experienciais e discursivos diferentes.
De uma certa maneira, se você entende que a ironia pode existir
(que dizer uma coisa e querer dizer outra não é necessariamente
uma mentira) e se você entende como funciona, você já pertence a
uma comunidade: aquela baseada no conhecimento da possibilidade
e natureza da ironia. Não é que a ironia cria comunidades, então; é
que comunidades discursivas tornam a ironia possível em primeiro
lugar. (2000, p. 37-8)
Seguindo esse raciocínio, portanto, quanto mais o contexto for
compartilhado entre os “jogadores” da ironia, em menor quantidade e menos
óbvias serão as pistas que sinalizarão o procedimento irônico.
Linda Hutcheon assinala ainda a questão da não apreensão da ironia por
parte de seu receptor. Para ela, a não realização do discurso irônico, ou seja, o
fato de, muitas vezes, o interpretador não conseguir acessar a ironia, ou de não
poder “pegá-la” não deve ser associado, como comumente é, à “competência” do
interpretador.
Na verdade, na opinião dessa estudiosa, esse termo “competência” tem
uma conotação bastante desconfortável, na medida em que aponta para a
exclusão daquele que não compreendeu a manifestação irônica.
O mais coerente é, pois, para Hutcheon, argumentar que o problema de a
ironia “falhar” está relacionado, pelo menos em parte, não à capacidade ou a
falta de do interpretador, mas sim, ao fato de as pessoas envolvidas no “jogo
irônico” pertencerem a diferentes comunidades discursivas. Segundo Hutcheon:
[...] a superposição de comunidades discursivas não envolve
necessariamente um consenso obrigatório, mas fornece pelo
44
menos alguma similaridade de preocupação, interesse ou
simplesmente conhecimento (de contextos, normas ou regras,
intertextos) que capacitam os participantes a desempenharem
jogadas de comunicação indireta. (2000, p. 41)
Por conseguinte, no entender de Linda Hutcheon, a ironia não cria
comunidade alguma, excluindo ou incluindo pessoas e criando, conseqüentemente,
hierarquias. Ao contrário disso, as comunidades discursivas tornam a ironia
possível, em primeiro lugar. Voltaremos a essa questão no capítulo 5.
2.4 A carga afetiva da ironia
“Diferentemente da metáfora ou da metonímia, a ironia tem arestas; diferentemente da
incongruência ou justaposição, a ironia consegue deixar as pessoas irritadas; diferentemente do
paradoxo, a ironia decididamente tem os nervos à flor da pele.”
(Linda Hutcheon)
Conforme será visto no próximo capítulo, na grande maioria de suas
manifestações, a ironia envolve a atribuição de uma atitude avaliadora e até
mesmo julgadora e é justamente aí que a dimensão emotiva ou afetiva também se
faz presente. Quando se pretende um estudo mais pormenorizado sobre a “carga
afetiva da ironia”, as teorias da intencionalidade se debruçam geralmente sobre
o “realizador” da ironia:
Os termos nos quais as teorias de intencionalidade apresentam
esse conceito são aqueles da posição julgadora negativa do
ironista, como se infere através de um tom de deboche ou ridículo
ou desprezo. E é esse tom que, diz-se, sugere aos interpretadores
que essas posições de atitude são, na verdade, de emoção, que se
poderia ler como traindo algum engajamento afetivo da parte do
ironista. (HUTCHEON, 2000, p. 64)
45
Linda Hutcheon deixa bem claro, entretanto, que os ironistas não são os
únicos a serem atraídos emocionalmente para dentro da ironia. Aqueles que
foram alvos da ironia conhecem muito bem os sentimentos de irritação,
chateação e mesmo raiva proporcionados por uma investida irônica.
Ainda mesmo quando somos maus interpretadores e não conseguimos
“captar” a ironia, sentimos um embaraço e um desconforto profundos, ligados à
sensação de que fomos excluídos de um determinado grupo que participou da
construção do sentido irônico. Como afirma Hutcheon:
Quando a ironia é usada às suas custas, você se torna seu alvo
quer você compreenda a ironia pretendida, quer não. Os
interpretadores, entretanto, podem sentir raiva pelas atitudes ou
pelos valores inferidos na elocução irônica, e para isso eles teriam
apenas de entender, e não compartilhar ou apreciar aquelas
atitudes. (2000, p. 70)
A dimensão das emoções suscitadas pela ironia é realmente muito ampla:
seus “efeitos emocionais”, digamos assim, cobrem uma escala que vai do prazer à
dor, do deleite à raiva. Acima, foram comentadas, em linhas gerais, as sensações
de ódio ou raiva que podem, de acordo com a situação, acometer tanto o ironista
quanto o interpretador da ironia.
Conforme foi dito, no caso do ironista, esse tipo de sentimento acontece
quando uma posição julgadora negativa do “realizador” da ironia em relação ao
seu “alvo”. No caso do receptor da ironia, a raiva ou o ódio podem eclodir quando,
ao compreender o discurso irônico, percebe-se “alvo”, não apreciando, assim, o
sentido sugerido por aquela elocução. Aquele que recebe a ironia pode, ainda,
sentir-se desconfortável e até mesmo humilhado quando não consegue apreender
o discurso irônico.
As ocorrências irônicas podem, no entanto, despertar emoções bem
diferentes da ira ou da raiva. A ironia, em muitas de suas manifestações, é usada
46
também com o intuito de divertir. É possível pensar na seguinte situação: um
grupo de pessoas está em um apartamento estudando, juntos, a língua alemã. Num
dado momento, um intenso barulho, caracterizado por xingamentos e objetos
atacados pelas paredes, irrompe e invade o silêncio necessário aos integrantes do
grupo.
Eles se desconcentram e percebem que a algazarra vem do apartamento ao
lado. Como o barulho não parasse e devido ao fato de uma cadeira ter sido
arremessada na porta do apartamento onde estava o grupo, causando grande
estrondo, um dos estudantes afirma: “- Gente fina é outra coisa!”, e todos riem.
Obviamente, acima da crítica à grosseria daqueles vizinhos, está o desejo de
divertir, que se concretiza pelo uso oportuno da ironia.
Se a raiva e a hostilidade são, em muitos casos, conseqüências da
utilização da ironia, e o humor, como se viu, também pode resultar de uma
ocorrência irônica, há, por outro lado, um outro efeito interessante: um
distanciamento relativamente sem emoção por parte do ironista. Segundo Linda
Hutcheon, porém, essa falta de envolvimento pode ser fingida:
Ao se apresentarem como se estivessem controlados e distantes
em seu escárnio, os ironistas conseguem parecer
persistentemente calmos, quase, pode-se acreditar,
descomprometidos. Como isso sugere, parece haver um elemento
de presença envolvido aqui, de “distanciamento fingido” e
“neutralidade aparente”. [...] Nem todos os comentaristas vêem tal
posição como totalmente negativa: para o ironista, ela tem o
potencial de moderar e regular o excesso; ela pode até aliviar a
tensão. (2000, p. 69)
Como se nota, em todos os casos comentados aqui, há, sim, uma dose
variável de afetividade proveniente do uso da ironia. Como afirma Hutcheon,
Quer se perceba a ironia como sinalizando, por um lado, um
menosprezo zombeteiro, quer, por outro, distanciamento ou “a
47
aresta cortante de não se importar”, me parece que a emoção
está, de alguma maneira, envolvida aqui, potencialmente na
atribuição e, é claro, na intenção. (2000, p. 65)
É importante deixar claro que a estudiosa citada considera a “atribuição”
da ironia o momento de sua interpretação e, portanto, esse termo está
relacionado àquele que recebe e interpreta ou “atribui” a ironia. Infere-se disso,
como se pretendeu demonstrar no decorrer desta explicação, que a emoção
gerada por uma manifestação irônica envolve tanto o ironista quanto o receptor
da ironia.
Portanto, ao contrário de alguns estudos que afirmam que a ironia é um
modo de distanciamento intelectual, parece que as ocorrências irônicas estão
sempre permeadas por um traço emocional. Mais uma vez, finalizemos com Linda
Hutcheon:
A ironia sempre tem uma aresta; ela às vezes tem um “ferrão”. Em
outras palavras, existe uma “carga” afetiva na ironia que não pode
ser ignorada e que não pode ser separada de sua política de uso se
ela for dar conta da gama de respostas emocionais (de raiva a
deleite) e os vários graus de motivação e proximidade (de
distanciamento desinteressado a engajamento apaixonado). Às
vezes a ironia pode mesmo ser interpretada como uma retirada de
afeto; às vezes, entretanto, um engajamento deliberado de
emoção. (2000, p. 33)
48
2.5 As principais funções da ironia
“Com a ironia você sai do reino do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do
desditoso – de maneiras que vão muito além do que sugere o uso desses termos na teoria dos atos
da fala. A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas o que elas dizem.”
(Linda Hutcheon)
Tradicionalmente, uma forte tendência em se considerar como única
função da ironia o contraste semântico entre o que é afirmado e o que é
significado. Para Linda Hutcheon (1985, p. 73), entretanto, a ironia
julga
e essa é
a sua função essencial, freqüentemente tratada como se fosse demasiado óbvio
para justificar a discussão.
Logo, essa estudiosa divide as funções da ironia em duas: uma semântica,
contrastante e outra pragmática, avaliadora. Hutcheon explica:
A função pragmática da ironia é, pois, a de sinalizar uma avaliação,
muito freqüentemente de natureza pejorativa. O seu escárnio
pode, embora não necessariamente, tomar a forma de expressões
laudatórias, empregues para implicar um julgamento negativo; ao
nível semântico, isto implica a multiplicação de elogios manifestos
para esconder a censura escarnecedora latente. (1985, p. 73)
É importante não perder de vista que a própria raiz grega
eironeia
indica
dissimulação e interrogação, o que autoriza concluir que nas manifestações
irônicas uma divisão ou contraste de sentidos, e também um questionar, ou
julgar. Logo, estamos sim nos referindo a duas funções diferentes, todavia, vale
assinalar que são também funções complementares.
O fragmento a seguir, retirado do romance
Memórias póstumas de Brás
Cubas
, de Machado de Assis, constitui-se como exemplo profícuo dessa
interdependência entre as duas funções da ironia comentadas aqui:
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber
que ele possuía um caráter ferozmente honrado. Eu mesmo fui
49
injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de
meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e
cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de
uma virtude e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor
é o saldo que o
deficit
. Como era muito seco de maneiras, tinha
inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato
alegado neste particular era o de mandar com freqüência escravos
ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de
que ele mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo
longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo
modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio
requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de
um homem o que é puro efeito de relações sociais.
Observando esse fragmento, é possível perceber que Machado de Assis
fez uso da ironia a fim de realizar um julgamento negativo dirigido ao
personagem Cotrim. Assim, partindo do nível semântico, temos nesse excerto a
presença de inúmeros adjetivos atribuídos a essa personagem: uma pessoa de
“escrúpulo excessivo”, “de caráter ferozmente honrado”, “um modelo”, entre
outras expressões.
Além disso, é interessante comentar a ocorrência de palavras como “único”
e “só”, respectivamente, em: “O
único
fato alegado neste particular era o de
mandar com freqüência escravos ao calabouço [...]” e “[...] além de que ele
mandava os perversos e os fujões [...]” Fica claro que a intenção de Machado de
Assis foi, no nível semântico, suavizar as atrocidades cometidas por essa
personagem.
No entanto, faz-se necessário observar que a presença de muitos elogios
aliada a essa tentativa de amenizar atitudes indiscutivelmente atrozes leva o
leitor a inferir que está diante de uma atitude inica por parte do narrador, que
pretende, portanto, criticar e denegrir indiretamente a personagem Cotrim.
Como se comentou em outros momentos desse trabalho, a participação
do leitor na construção do sentido é imprescindível: um leitor desatento e passivo
jamais chegaria a essas conclusões, uma vez que certamente não ultrapassaria o
50
nível semântico do discurso desse narrador e, conseqüentemente, não acessaria o
julgamento realizado por este.
Logo, nessa passagem de
Memórias póstumas de Brás Cubas
parte-se da
função semântica e contrastante da ironia, para que se atinja a sua função
pragmática e avaliadora, fato que legitima a complementaridade entre essas
importantes funções da ironia.
Há casos, porém, em que não há sinais de interdependência entre as
funções da ironia estudadas aqui. A letra da canção transcrita abaixo, intitulada
Heavy metal do senhor,
do cantor e compositor Zeca Baleiro, demonstra bem
esse comentário:
O cara mais
underground
que eu conheço é o diabo
que no inferno toca
cover
das canções celestiais
com sua banda formada só por anjos decaídos
a platéia pega fogo quando rolam os festivais
enquanto isso Deus brinca de gangorra no
playground
do céu com santos que já foram homens de pecado
de repente os santos falam "toca Deus um som maneiro"
e Deus fala "agüenta vou rolar um som pesado"
a banda
cover
do diabo acho que já tá por fora
o mercado tá de olho é no som que Deus criou
com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
mundo inteiro vai pirar com o
heavy
metal do Senhor
A letra dessa canção configura-se como um interessante caso de
dissociação entre as funções semântica /contrastante e pragmática / avaliadora
51
da ironia. A fim de não beirarmos o radicalismo, digamos que há, nesse texto de
Zeca Baleiro, uma ênfase maior na função contrastante da ironia.
Assim, de forma divertida e bem-humorada, o texto opõe as duas forças
que, em nossa cultura, representam o bem e o mal Deus e o Diabo. Essa
oposição, conforme se nota pela letra, se transforma numa competição musical. O
mais interessante, no entanto, - e é justamente nesse aspecto que reside a ironia
– é que ocorre uma inversão dos valores “bem” e “mal”.
Desse modo, na primeira estrofe, ainda não observamos tal inversão, uma
vez que as palavras
underground
”, “inferno” e “anjos decaídos” nos remetem
devido à forte influência da nossa cultura – a um campo semântico marcadamente
negativo e, pois, relacionado ao “mal”.
A partir da segunda estrofe, mais especificamente dos versos “de repente
os santos falam ‘toca Deus um som maneiro’” , e “Deus fala ‘agüenta vou rolar um
som pesado’”, é possível observar o início da inversão; na verdade, as pessoas, de
forma geral, motivadas pelos símbolos culturais que nos são transmitidos, não
tendem a associar a idéia de Deus a um “som maneiro” ou a um “som pesado”.
Aliás, é interessante perceber que, se o primeiro verso corresponde à fala
dos santos o que seria “estranho” o segundo verso corresponde à fala de
Deus. A inversão nesse segundo verso é, pois, mais forte, porque a imagem de
Deus imposta por nossa cultura se associa, invariavelmente, à idéia de paz,
calmaria, harmonia e equilíbrio; sendo assim, imaginar que esse Deus, motivado
pelos santos, tenha dito “agüenta vou rolar um som pesado”, chega a ser divertido
e essa sensação provém justamente de uma quebra de expectativas ou de uma
inversão no plano semântico.
No sentido em que encaminhamos a análise, a terceira estrofe é
surpreendente:
a banda
cover
do diabo acho que já tá por fora
52
o mercado tá de olho é no som que Deus criou
com trombetas distorcidas e harpas envenenadas
mundo inteiro vai pirar com o
heavy
metal do Senhor.
Nela, Deus desbanca o Diabo utilizando em sua banda “trombetas
distorcidas” e “harpas envenenadas”. Aqui, a inversão é ainda mais explícita,
que a esses instrumentos musicais trombetas e harpas geralmente são
associadas as idéias de paz e de tranqüilidade. No caso da letra de Zeca Baleiro,
todavia, as trombetas são “distorcidas” e as harpas, “envenenadas”, o que sugere
um som diferente, especial e alterado.
Logo, se no início da disputa entre esses paradigmas do Bem e do Mal, o
Diabo leva a melhor “tocando
cover
das canções celestiais” (primeira estrofe), a
partir da segunda estrofe, Deus vence a disputa, fazendo uso das “técnicas” mais
associadas à idéia que se faz do Diabo.
Como se vê, há uma forte inversão semântica que se dá já a partir do título
da canção, bastante significativo, nesse sentido:
Heavy
metal do senhor”.
Portanto, o que ocorre é, de fato, uma espécie de “cruzamento” de valores: a
figura do Diabo assume os valores de seu opositor, digamos assim, e o
estereótipo do Bem – Deus – toma para si características atribuídas normalmente
à idéia do “Mal”.
Obviamente, todo esse contraste semântico pode conduzir o leitor a uma
ou a várias possibilidades de julgamento, e, nesse sentido, teríamos também
presente nessa composição a segunda função da ironia aqui estudada: aquela que
designamos pragmática ou avaliadora. Entretanto, mesmo assim, é preciso ficar
claro que existe uma ênfase maior na função contrastante da ironia, como
tentamos demonstrar.
Portanto, é pertinente dizer, sobre as funções mais importantes da ironia
aqui examinadas, que há, como vimos, uma interdependência entre elas e que,
53
geralmente, a função semântica contrastante conduz à função pragmática
avaliadora. Todavia, em determinados discursos, de acordo com a
intencionalidade de seus produtores, salienta-se mais uma das duas funções.
Assim, no caso do excerto de Memórias póstumas de Brás Cubas, o
“projeto” daquele narrador naquele instante específico era antes de tudo
denegrir a imagem daquela personagem; na composição de Zeca Baleiro,
percebe-se a intenção primeira de inverter, de misturar valores. Isso nos
autoriza concluir, por exemplo, que seu autor pretendeu dizer que a “boa música”,
a fim de agradar a todos, deve ser resultado da “contaminaçãoou do diálogo
entre todos os ritmos e tendências musicais, ainda que sejam opostos. Logo, no
excerto de Machado, predomina a função avaliadora da ironia e, na canção de
Zeca Baleiro, a função contrastante.
Para além das funções semântica contrastiva e pragmática avaliadora,
existem outras também muito importantes e que, de certo modo, derivam das
duas primeiras funções apontadas nesse trabalho. Queremos dizer justamente
que as funções que serão comentadas agora todas elas se encaixam num
desses dois grandes grupos: ou tendem mais para a ironia de característica
semântica contrastiva, ou para a função pragmática avaliadora da ironia.
É importante dizer ainda que o estudo dessas funções específicas da ironia
se justifica na medida em que nos aproxima muito de uma definição mais exata
sobre o conceito de ironia. Assim, Linda Hutcheon, em
Teoria e política da ironia
,
alista nove funções para a ironia, partindo daquela que possui uma carga afetiva
mínima e caminhando para a função em que se expressa carga afetiva máxima.
Faz-se interessante notar também que Hutcheon comenta duas
interpretações opostas provenientes do uso de cada função. Em outras palavras,
na opinião dessa estudiosa, a opção por uma ou por outra função da ironia sempre
possibilita, no mínimo, duas interpretações, que se manifestarão de acordo com o
interpretador.
54
Seguindo esse raciocínio, partimos analisando a primeira função da ironia:
reforçadora
. Nesse caso, ela serve para salientar algo, por exemplo, na
conversação cotidiana, para enfatizar um enunciado, tornando-o mais preciso.
Como foi dito, a posição desaprovadora nessa mesma função, ou seja, a
interpretação que contradiz a primeira, o faz porque acredita que essa ironia
reforçadora é puramente decorativa e subsidiária.
A próxima função é a
complicadora
, aquela que insere os discursos irônicos
no rol dos discursos verdadeiramente artísticos, caracterizados por uma
ambigüidade controlada e avaliada, que nos chama para a reflexão e
conseqüentemente para a sua interpretação. As conotações negativas acerca
dessa função não faltam, uma vez que muitos acreditam ser essa complexidade
da ironia desnecessária. Segundo, Hutcheon, na opinião desses interpretadores:
[...] a ambigüidade pode gerar incompreensão, confusão ou
simplesmente imprecisão e falta de claridade na comunicação. E
isso, realmente, é o que provoca a irritação daqueles que sentem
ou são levados a sentir que “perderam” ironias. (2000, p. 78)
Como se vê, nem todos são atraídos pela beleza dos discursos ambíguos e
incongruentes. A outra função da ironia é a função
lúdica
. Ela pode ser entendida
como caracterizadora de uma ironia afetuosa de provocação benevolente,
podendo estar associada também ao humor. As inferências contrárias também
marcam esse tipo de manifestação irônica: essa função faz da ironia um tipo de
discurso irresponsável, vazio e tolo, que não oferece, portanto, nada importante
e, além disso, “banaliza a seriedade essencial da arte”. (2000, p. 70)
A função
distanciadora
da ironia é a próxima que merece o nosso
comentário. A ironia, quando assume essa função, permite que o ironista e mesmo
o interpretador da ironia se afastem, se distanciem de uma dada situação a fim
de olhá-la sob uma nova perspectiva. As interpretações mais pejorativas
55
relacionadas a essa função é que ela instaura a indiferença e, conseqüentemente,
uma ar de superioridade naqueles que fazem uso desse tipo de ironia.
Na verdade, como foi visto no início deste trabalho, perceber
incongruências e ambigüidades e olhar os fatos que nos rodeiam sob uma ótica
nova apenas alargam de forma impressionante a visão, permitindo que o sujeito
recuse a tirania dos discursos monológicos e dos julgamentos explícitos.
A quinta função da ironia é a
autoprotetora
. Nesse caso, a ironia pode ser
interpretada como uma espécie de “mecanismo de defesa”. Até mesmo a
autodepreciação pode nessas situações ser fingida, resultando em uma forma de
autopromoção. Logo, a autodepreciação pode ser interpretada como uma jogada
defensiva também. Segundo Hutcheon,
[...] para o ironista, a ironia significa nunca ter de se desculpar.
Você pode sempre se proteger e argumentar (de uma perspectiva
de intenção) que você estava apenas sendo irônico. Você pode até
mesmo transformar um erro numa piada com a mesma declaração;
você com certeza pode usá-la para sair de qualquer situação
embaraçosa. Usar ou mesmo atribuir ironia dessa maneira é
recorrer à sua função de “veste protetora”. (20000, p. 81)
A sexta função, muito interessante, é a
provisória
. A ironia que se
manifesta tendo em vista essa função desmistifica verdades absolutas solapando,
conseqüentemente, quaisquer dogmatismos. As investidas desaprovadoras aqui se
baseiam na interpretação de que essa função da ironia instaura a possibilidade da
evasão, da hipocrisia, da duplicidade e do logro.
Hutcheon, remetendo-se aos significados de ironia fornecidos pelo
Oxford
English Dictionary
, encontra as seguintes definições: “um ato deliberadamente
enganador que sugere uma conclusão oposta à real” e “ironia significa enganar
pessoas comuns que entendem de maneira comum.” (Apud HUTCHEON, 2000, p.
81). Hutcheon, citando Chevalier, afirma:
56
É esse caráter provisório indeciso que configura a ironia como a
atitude de alguém que, quando confrontado com a escolha de duas
coisas que são mutuamente exclusivas, escolhe ambas. O que é uma
outra maneira de dizer que ele não escolhe nenhuma delas. Ele não
consegue desistir de uma pela outra e ele desiste de ambas. Mas
ele se reserva o direito de obter de ambas o máximo de prazer
passivo possível. E esse prazer é a ironia. (Chevalier, 1932, p. 79.
Apud HUTCHEON, 2000, p. 82)
As interpretações positivas acerca dessa função valorizam a duplicidade
da ironia, vista como uma maneira de neutralizar quaisquer tendências a assumir
um posicionamento rígido ou categórico de “verdade”. Mais uma vez, para Linda
Hutcheon:
Esse é um funcionamento da ironia que não rejeita ou refuta ou
vira de cabeça para baixo: não é evasão ou falta de coragem ou
convicção, mas uma admissão de que ocasiões em que não
conseguimos ter certeza, não tanto porque não sabemos o
suficiente quanto porque a incerteza é intrínseca, essencial.
(2000, p. 82)
Portanto, como se pôde perceber, posicionamentos opostos relacionados ao
mesmo “objeto”: a função provisória da ironia.
A próxima função é a função de
oposição
da ironia. Por meio dela, a ironia é
vista e interpretada, por um lado, como transgressora e subversiva e, por outro,
como insultante e ofensiva. Aqui, mais uma vez, nos aproximamos do
interpretador da ironia, pois aquilo que alguns aprovam como transgressor, pode
simplesmente ser insultante e ofensivo para outros.
Linda Hutcheon designa a próxima função de
atacante
. Segundo Hutcheon,
A carga negativa aqui chega ao máximo quando uma invectiva
corrosiva e um ataque destrutivo tornam-se as finalidades
inferidas e sentidas da ironia. Em muitas discussões sobre a
ironia, essa parece ser a única função que se leva em conta,
57
especialmente quando a questão é de apropriabilidade ou,
principalmente, de excesso no seu uso. (2000, p. 83)
Hutcheon chama a atenção, todavia, para o fato de que a ironia possui
também, como foi comentado neste trabalho, uma função corretiva, sobretudo
quando ela é utilizada pela sátira. Assim, quando a ironia assume a função
atacante, haveria, então, uma “motivação positiva” (HUTCHEON, 2000, p. 84)
para que uma crítica tão agressiva fosse realizada: a finalidade de corrigir os
vícios e as loucuras da humanidade.
Há, como nas outras funções, juízos pejorativos relacionados a essa
“função atacante”. Aqui, a ironia é desaprovada na medida em que é vista como
um meio de humilhação agressiva e como uma necessidade de registrar desprezo
e zombaria. Para os críticos que pensam dessa maneira, o desejo de desprezar e
humilhar estaria muito acima do de corrigir.
Finalmente, a última função da ironia: a
agregadora
. Nesse tipo de
manifestação, a ironia motiva também interpretações contraditórias: num
sentido positivo, cria “comunidades amigáveis” entre ironista e interpretador; por
outro lado, exclui aqueles que não a compreendem ou, como disse Hutcheon
(2000, p. 86), que não a “pegam”, impedindo-os de participarem dessas
comunidades. De acordo com essa estudiosa:
Num sentido negativo, diz-se que a ironia joga para grupos
fechados que podem ser elitistas e excludentes. A ironia
claramente diferencia e assim potencialmente exclui [...] Alguns
teóricos sentiram que qualquer distanciamento irônico implica o
dualismo superioridade / inferioridade. [...] Essa idéia da ironia
funcionando de uma maneira obviamente elitista envolve uma
inferência sobre ambos o ironista (que se sente superior) e o
interpretador (que “pega” a ironia) e assim sente-se parte de
uma sociedade pequena, seleta e secreta. Como isso sugere, no
entanto, a ironia que exclui também inclui, criando aquelas
“comunidades amigáveis” [...] e, dessa forma, relembrando os
prazeres da colaboração [...] (2000, p. 86, grifos nossos)
58
Para Hutcheon, essa função expressa carga crítica e emotiva máxima, já
que é a função da ironia que mais obviamente favorece a arrogância e a
insensibilidade, envolvendo-se de modo íntimo com as questões de poder e de
autoridade.
Conforme tentamos demonstrar, a ironia, além de se originar a partir da
sobreposição de vozes antagônicas, provoca sensações também contraditórias a
partir do momento em que ocorre. Logo, o acontecimento da ironia se não
apenas no momento em que é localizada a dissonância inerente a um discurso; a
ironia permanece reverberando nos efeitos tão díspares que provoca naqueles
que a desvendam.
59
Capítulo 3. Paródia
As meninas
, de Joel-Peter Witkin
“Através da paródia, o escritor quebra com os padrões estabelecidos e nos força a
reconhecer a persistência de uma outra forma de ficção. Na tensão entre a ficção passada e a
nova, sobressai o poder de renovação do homem, que insiste em não se deixar dominar por
nenhuma Força.”
(Maria Lucia P. de Aragão)
A paródia, definida etimologicamente como “canto paralelo”, embora se
faça bastante presente nos textos literários da modernidade, também coroou
momentos literários cronologicamente distantes. A estudiosa Maria Lucia P. de
Aragão, a fim de chegar a uma definição mais precisa do conceito de paródia,
faz uma reflexão muito interessante sobre o papel da arte literária.
De acordo com ela, uma estrutura ideológica que, por meio da
discursividade, inverte o real tomando o seu lugar, ou seja, fazendo-se passar
por ele. Assim, para Aragão,
Se considerarmos o fato de que a ideologia, como é comumente
definida, consiste na representação de uma estrutura de relações
históricas, num período social, economicamente dado, veremos
que, num primeiro momento, esta visão epocal, historiográfica e
periodizada imagina-se proprietária da verdade e busca ampliar o
seu ilusório domínio por todo o acontecimento histórico. A
ideologia, pois, nesse sentido, é uma falsa consciência da História,
60
porque se situa nos limites de uma verdade parcial, e a verdade é
dinâmica no seu processar-se. (1980, p.18-19)
Lucia Helena (1980, p. 73-74), crítica e ensaísta, também aborda de
maneira muito interessante essa questão:
Primeiramente o modelo maniqueísta, com que operam as normas
sociais em nossa cultura, apreende a realidade a partir de
esquemas mentais inconciliáveis e bipolarizados. Eis aí um terreno
fértil para a ideologia da seriedade que, colocando-se “acima”,
como figuração do espaço do poder, determina o válido, o
permitido, o belo, assim como condena e exorciza o que lhe é
marginal ou contestador. A ideologia da seriedade opera por um
tratamento sisudo e bem comportado, além de selecionar um
repertório nobre [...] De tal modo que o cotidiano, a impureza, o
vício estão longe de seu interesse e freqüentam uma espécie de
‘index probi’. [...] Se a ideologia da seriedade faz uso do riso, é um
uso previsto, intencionalmente catártico e regulador do sistema.
[...] É uma apropriação nostálgica do riso, que perde sua função
corrosiva e crítica, por ser consumido de modo anestésico.
Como se pode perceber, enquanto uma ideologia manipuladora
disfarçada em realidade que manipula até mesmo o riso conforme seja
conveniente o discurso literário existe justamente para subverter esse estado
de coisas: ele realiza com a estrutura ideológica o que esta realizou com o real.
Em outras palavras, o discurso literário inverte a estrutura ideológica, rompendo
modelos socialmente impostos e provocando, pois, o questionamento. Também
para Maria Lucia Aragão,
A obra literária, por ser uma inversão dos códigos estabelecidos,
por questionar a ideologia do modo como ela se apresenta, por ser
menos setorial, faz aparecer o que se esquivou no conceito
superficial. O literário, por ser um fenômeno, ilumina o que a
ideologia, por si mesma, não tem condições de mostrar. Ele opera
uma variação sobre a realidade. Reconstrói um outro sistema, a
partir de uma ruptura com o sistema ideológico vigente,
provocando o questionamento. (1980, p. 19)
61
De maneira semelhante, a paródia, segundo essa estudiosa, também tem a
função de problematizar, inverter e questionar até mesmo o modelo literário
sobre o qual se estabelece uma vez que, se se tornou um “modelo literário”,
não deixa de ser também uma estrutura ideológica.
Seguindo esse raciocínio, o parodiador é aquele que percebe a necessidade
de novas “verdades” em seu meio cultural; sente, pois, que os moldes seguidos em
sua época precisam ser questionados e, posteriormente, substituídos. Esse
momento de percepção da carência de algo novo e de certeza de que os modelos
literários e ideológicos atingiram seu limite de saturação é justamente o
momento da paródia. Para Maria Lucia Aragão,
Nesta recusa em aceitar os modelos literários vigentes ou os
mitos, ou os procedimentos, ou melhor, tudo aquilo que compõe o
acervo cultural de sua época, o parodiador está denunciando a sua
preocupação com os elementos que servem a esta estrutura
esgotada, que é preciso esvaziar, para poder preencher com algo
novo. Por vezes a paródia fica camuflada sob certos tipos de
disfarces, nos quais não percebemos, de imediato, a intenção do
autor. Geralmente, o recurso de falar de outras épocas, de
culturas ultrapassadas, é empregado como crítica à ideologia
vigente em sua própria época. (1980, p.19)
Uma vez que se está apresentando a paródia como espécie de recusa, faz-
se importante notar que ela não se trata de um tipo de discurso niilista,
caracterizado por uma crítica vazia, desconstrucionista e cética. O parodiador,
muito ao contrário, preocupa-se com a sua época, enxerga-lhe as lacunas e
sugere novas idéias por meio de um “canto paralelo” – paralelo exatamente
porque deslocado da já então gasta ideologia vigente.
Outro traço bastante expressivo da paródia é que, constituindo-se como
discurso artístico uma vez que não é restrita ao âmbito literário - não traz
respostas prontas aos seus questionamentos. Na verdade, constitui-se como
pretensão significativa de um texto paródico após a pretensão primeira, que é
62
ser reconhecido como paródico convidar o leitor à reflexão, provocando um
crescimento ilimitado, na medida em que coloca o modelo em aberto. Na opinião
de Aragão,
Parodiar é recusar e esvaziar, é dessacralizar sem descrer, pois
só se discute e se leva em consideração aquilo em que se acredita.
A paródia possui um caráter positivo, pois mata para fazer brotar
novamente a criação. Recusa e esvazia o modelo original para
recriar e preencher um modelo que lhe é próprio. (1980, p. 20)
A ligação estreita entre paródia e carnavalização necessita também de
ser mencionada. Para Bakhtin, o procedimento paródico é uma das formas de
carnavalização. Fica fácil entender tal relação quando se pensa na visão
carnavalesca do mundo enquanto oposição absoluta ao sério, ao monológico e ao
dogmático, que de acordo com Lucia (1980, p.20) são o sério, o monológico e o
dogmático “engendrados pelo medo, inimigo do vir a ser e das mudanças, e
responsável pela tendência à absolutização do estado de existência das coisas e
da ordem social.”
Em
Problemas da poética de Dostoievski
, Bakhtin para quem a paródia é
um elemento inseparável dos gêneros carnavalizados afirma, sobre a
carnavalização:
A carnavalização não é um esquema externo e estático que se
sobrepõe a um conteúdo acabado, mas uma forma insolitamente
flexível de visão artística, uma espécie de princípio heurístico que
permite descobrir o novo e inédito. Ao tornar relativo todo o
exteriormente estável, constituído e acabado, a carnavalização,
com sua ênfase das sucessões e da renovação, permite penetrar
nas camadas profundas do homem e das relações humanas. (1981,
p. 144-5)
No entanto, é preciso atentar para o fato de que nem sempre a simples
presença da paródia garanta a carnavalização, uma vez que a cosmovisão
63
carnavalesca tem sempre um sentido desmistificador traço facultativo para a
irrupção da paródia. Para Maria Elena Pinheiro Maia,
(A visão carnavalesca) subverte os valores tradicionais e propõe-
nos uma visão mais crítica do mundo, questionando as verdades
impostas para convencer e conduzir o próprio homem. A
carnavalização nos proporcionará a possibilidade de estudar a
dialética da própria vida. E essa visão dupla nos parece muito mais
verdadeira do que aquela visão autoritária que conhecemos
através da história oficial. O carnaval representa, assim, a
intertextualidade de ideologias oficiais e não oficiais. (1999, p.19)
Para M. Bakhtin, “a paródia carnavalesca é a paródia dialógica e não uma
simples negação pobre do parodiado.” (1981, p. 109). Vista dessa maneira, a
paródia é ambivalente, joga com diferentes imagens que se parodiam umas às
outras de diversas maneiras e sob diferentes pontos de vista. Observaremos
tais efeitos de sentido em
O cavaleiro inexistente
, de Ítalo Calvino.
Logo, constituindo-se a paródia, na visão bakhtiniana, como uma das
formas de carnavalização, torna-se evidente a relação entre essas categorias:
ambas desafiam e subvertem os dogmas e os discursos oficiais, propondo “vozes
culturais” diferentes, polifônicas.
Como se sabe, a teoria proposta por Bakhtin divide os discursos em
monológicos e dialógicos. Os primeiros seriam aqueles transmissores de formas
de expressão oficiais ou sérias; os segundos seriam “manifestações mais rudes,
carnaval ou farsa, em geral ignoradas ou desprezadas pelos críticos e pelos
pesquisadores.” (HAYMAN, 1980, p. 30) O carnaval e a paródia configuram-se,
por conseguinte, como formas dialógicas.
Maria Lucia Aragão compara a paródia a um tipo de visão especular na qual
a imagem original se encontra invertida, ampliada ou reduzida, de acordo com a
lente utilizada, ou seja, conforme as intenções do parodiador. Graças a esse jogo
64
de espelhos, o sentido em um texto paródico nunca é definitivo, uma vez que
apresenta diversas possibilidades de leitura. De acordo com essa estudiosa,
A narrativa paródica não é construída mecanicamente, como se
sua função fosse a de descrever o velho sistema, num reflexo
paralelo. Através de um jogo de espelhos inclinados, que produz
imagens sob vários ângulos, é revelado um novo e significativo
mundo. O escritor usa de artifícios que possibilitam a retomada
de uma narrativa como uma dissimulação, ou melhor, através do
projeto de uma estilização paródica da ideologia de uma
determinada época, reconduz o texto a uma crítica dessa
ideologia. Fala do velho para falar do novo. Recua no tempo para
deixar o tempo avançar. (1980, p. 22)
Desse modo, a paródia, tencionando a fuga do lugar-comum, põe em
confronto uma multiplicidade de visões, uma vez que, como escrita da ruptura,
objetiva um corte com os modelos anteriores, retomando-os de maneira
invertida, destruindo para construir. Assim, a paródia reproduz um choque e
deve, pois, ser fruto de uma diferença de postura entre dois planos. Tal choque,
como foi dito no início deste trabalho, deve ser percebido pelo leitor,
elemento central desse tipo de texto literário.
Outro aspecto interessante da paródia é que, contendo outro texto em si,
ela geralmente fala sobre o que esse outro texto deixou de dizer e salienta o
fato de não ter sido dito. Para Flávio Kothe (1980, p. 98), portanto,
A paródia é um texto duplo, pois contém o texto parodiado e, ao
mesmo tempo, a negação dele. Ela é, portanto, a síntese de uma
contradição, dando prioridade para a antítese, em detrimento da
tese proposta pelo texto parodiado.
Bella Jozef (1980, p. 69) chega a algumas conclusões relacionadas ao
conceito de paródia:
65
1. a paródia dilata o alcance do signo literário, produzindo um novo corte
semântico do signo para além da superfície manifesta do texto que a produz e
que ela, simultaneamente, reproduz.
2. é uma escrita transgressora, que revela na obra um segundo plano
discordante.
3. esclarece o funcionamento intertextual, ao atuar como reflexão
crítica sobre o processo de composição.
4. estabelece os princípios dinâmicos fundamentais do texto,
aprofundando seu mecanismo.
5. representa a subversão de toda temática e sua essência revela-se na
escrita e pela escrita.
6. a paródia apresenta o processo de produção do texto.
Entre as conclusões a que chega a estudiosa Bella Jozef, a relação que
fica sugerida entre a paródia e a ironia romântica nos itens terceiro e sexto é,
sem dúvida, o que mais chama atenção. Voltaremos a essa queso tão
importante para a presente pesquisa no capítulo 5, onde trataremos justamente
das relações entre ironia, paródia e riso.
É preciso comentar, por ora, que alguns autores realizam uma distinção
entre a paródia e o que se convencionou chamar estilização. Entre eles, Flávio
Kothe, em uma análise de certo modo radical, situa a primeira numa escala
inferior em relação à segunda. Ele diz o seguinte:
[...] a paródia existe completamente à sombra daquilo a que ela
parodia, enquanto que a estilização segue um caminho próprio que
a independiza. A paródia existe apenas como antítese e como
negação determinada; a estilização constitui uma síntese que
supera aquilo a que ela nega e preserva modificadamente. uma
diferença qualificativa entre ambas: a paródia tende a cair num
nível arstico mais ou menos baixo, enquanto que a estilização
procura galgar o topo da pirâmide artística. Por isso mesmo,
66
uma diferença quantitativa entre as duas: as paródias são muito
mais freqüentes e fáceis dos que as estilizações. A estilização é
uma paródia que deu certo como arte maior. (1980, p. 99-100)
Na verdade, se a paródia se define pela tensão que expressa entre o que
diz e o texto parodiado, não parece coerente falar em independência da paródia
em relação ao texto primeiro. Seguindo esse raciocínio, a paródia nem poderia,
como a estilização, “seguir um caminho próprio”, pois se caracteriza justamente
pelo diálogo que trava com o texto parodiado, não havendo razões, portanto,
para tornar-se independente dele.
Segundo Hutcheon, “a paródia precisa de quem a defenda, pois tem sido
designada de parasitária e derivativa.” (1985, p. 14) Ao que parece, não somente
Flávio Kothe tem colocado a modalidade aqui analisada em uma posição inferior
em relação às outras artes. Esses ataques à paródia revelam aversão e desprezo
direcionados a um gênero que permeia toda a arte com intenções explícitas
de denegri-lo.
As idéias de Linda Hutcheon vêm ao encontro daquelas defendidas por
este trabalho; não como negar que, por meio de investidas desse tipo, esses
críticos acusam os parodistas de serem inimigos da originalidade. Para essa
estudiosa, “o que se torna claro com esse tipo de ataques é a força subsistente
de uma estética romântica que aprecia o gênero, a originalidade e a
individualidade.” (1985, p.14)
Todavia, é preciso considerar que escritores românticos de renome como
Camilo Castelo Branco, em Portugal, e Álvares de Azevedo, no Brasil, criaram
textos paródicos e nem por isso deixaram de ser considerados “gêniosou se
viram desprovidos de sua originalidade. Além disso, conforme foi dito
anteriormente, a ironia romântica que mantém relações estreitas com a
paródia, como se estudará mais adiante esteve muito presente em textos
67
literários dos séculos XVIII e XIX. Essas constatações nos autorizam concluir
que os próprios românticos não tinham tanta aversão assim à paródia.
Odil de Oliveira Filho propõe uma definição mais interessante, visto que
define essas categorias a paródia e a estilização sem se preocupar em
sobrepô-las:
O caráter conciliador da estilização não subsiste na paródia. Aqui,
a segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em
hostilidade com seu agente primitivo e o obriga a servir a fins
diametralmente opostos, e o discurso se converte em palco de
luta de duas vozes. Por isso diz Bakhtin ser impossível a fusão de
vozes na paródia, como o é possível na estilização, pois nela as
vozes não são apenas isoladas, separadas pela distância, mas
estão em oposição hostil. (1993, p. 48)
Como é possível notar, Odil não prioriza a estilização em relação à paródia,
todavia, sugere a “oposição de vozes” como marca inerente apenas à paródia.
Linda Hutcheon alarga, entretanto, o conceito da categoria aqui estudada. De
acordo com ela, a raiz etimológica do termo vem do substantivo grego
parodia
,
que não quer dizer apenas “contra-canto”, como se afirma entre a maioria dos
teóricos. O elemento
odos
da palavra significa canto, no entanto, o prefixo
para
tem dois sentidos em grego: um, mais comum, que é o de “contra” ou “oposição” e
o outro, que é o sentido menos citado, de “ao longo de”. Essa segunda
significação sugere, como se vê, um acordo ou intimidade ao invés de um
contraste. Logo, no entender de Linda Hutcheon,
Mesmo em relação à estrutura formal, o caráter duplo da raiz
sugere a necessidade de termos mais neutros para a discussão.
Nada existe em
parodia
que necessite da inclusão de um conceito
de ridículo, como existe, por exemplo, na piada, ou burla, do
burlesco. A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização”
e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma
distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a
68
nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela
ironia. (1985, p. 48)
A não necessidade de um contraste ou oposição entre as vozes do texto
parodiado e as do “segundo texto é, de fato, uma característica pouco
considerada entre os críticos. Essa questão será aprofundada mais adiante no
próximo item desse capítulo.
Como foi possível perceber, definir a paródia não é uma tarefa muito
simples, que se trata de uma modalidade bastante complexa. Tentamos
mostrar também que muitos críticos se debruçaram sobre essa intrigante
categoria literária, porém, poucos realizaram com pertinácia seu intuito. Sendo
assim, buscando explicações mais apropriadas sobre a paródia, realizaremos a
seguir, primeiro, o estudo da paródia como “canto paralelo” em oposição ao
conceito de “contra-canto” - e, posteriormente, no capítulo 5, faremos paralelos
entre essa categoria a paródia e outras, cujos “mecanismos de construção”
são semelhantes.
69
3.1 O paradoxo da paródia
Como foi dito anteriormente, a paródia não deve ser vista sempre como
uma categoria que visa à desconstrução e à ridicularização de discursos
anteriores. Na verdade, segundo a estudiosa Linda Hutcheon, a paródia se
caracteriza por uma “voz” que se propõe a repetir de forma crítica, assinalando,
desse modo, um discurso que marca a diferença em vez da semelhança. Assim, a
crítica não tem de estar necessariamente presente na forma de riso
ridicularizador para que um texto seja considerado paródia.
Seguindo, pois, uma definição mais abrangente e menos comum, a paródia –
distanciada da visão tradicional de “canto ridicularizador” funciona, ao
contrário, como uma inscrição de continuidade histórico-literária, atuando na
revisão crítica de discursos anteriores. Segundo Linda Hutcheon, “talvez os
parodistas não façam mais do que apressar um processo natural: a alteração das
formas estéticas através do tempo.” (1985, p. 51) Ainda para essa estudiosa,
A paródia é, pois, tanto um ato pessoal de suplantação, como uma
inscrição de continuidade histórico-literária. Daí surgiu a teoria
dos formalistas acerca do papel da paródia na evolução ou
mudança das formas literárias. A paródia era vista como uma
substituição dialética de elementos formais cujas funções se
tornaram mecanizadas ou automáticas. Neste ponto, os elementos
são ‘refuncionalizados’ [...] Uma nova forma desenvolve-se a partir
da antiga, sem na realidade a destruir; apenas a função é
alterada. [...] A paródia torna-se, pois, um princípio construtivo na
história literária. (1985, p. 52)
Uma vez considerada a paródia como uma categoria que possibilita a
revisão crítica de discursos históricos e literários, promovendo,
conseqüentemente, a manutenção desses mesmos discursos, chega-se a uma
70
interessante contradição: a paródia, ao mesmo tempo que “põe em xeque” alguns
modelos, transgredindo-os, acaba reforçando, legitimando tais modelos.
Faz-se interessante aqui, mais uma vez, retomar a idéia de carnaval
proposta por Bakhtin. Ao explicar esse conceito, o estudioso citado esbarra em
um princípio caracterizador de todo discurso paródico: o paradoxo da
transgressão autorizada das normas.
Assim, o carnaval, que caracteriza as festas populares de maneira geral e
marcou também as famosas festas gregas, embora aconteça por meio da
subversão de todas as regras consagradas pela tradição sejam elas oficiais,
religiosas ou políticas confirma, paradoxalmente, essas mesmas regras.
Conforme Minois explica,
(As festas) asseguram a perpetuação da ordem humana,
renovando o contato com o mundo divino; e o símbolo do contato
estabelecido com o divino é o riso, que, como vislumbrado pelos
mitos, é um estado de origem e de iniciativa divina, comparável,
em certos casos, ao transe. (2003, p. 30)
Por conseguinte, é possível afirmar que o riso festivo, visto dessa forma,
seja uma maneira de manifestar um contato com o mundo divino, uma vez que ele
(o riso) simula o retorno ao caos original que precedia a criação do mundo
ordenado. Minois ilustra esse raciocínio:
A inversão segue o mesmo rumo. Durante a festa Krônia, os
escravos desfrutavam grande liberdade, podiam até fazer-se
servir pelos senhores, que eles repreendiam. Bem no meio dos
risos, zombarias e brincadeiras obscenas. O caos é indispensável
para representar, em seguida, a criação da ordem. Durante essas
desordens em que o riso é livre, escolhe-se um personagem que
preside e encarna esse caos, um prisioneiro ou um escravo que vai
ser sacrificado no fim da festa, para um ato fundador da regra,
da norma, da ordem. [...] Depois de sua morte, tudo retornava à
ordem, o riso livre desaparecia. (2003, p. 31)
71
Logo, a anarquia e o caos plenos, que questionam com veemência a
legitimidade de algumas convenções impostas pela sociedade, colaboram,
contraditoriamente, para a recriação do mundo ordenado e para o reforço
periódico da regra. Trata-se, pois, no caso dessas festas gregas, do avesso do
cotidiano, da ruptura com as atividades sociais e do abandono de quaisquer
convenções – traços inerentes ao carnaval bakhtiniano, que instituem, de maneira
paradoxal, a ordem. Ocorre algo bastante semelhante com a paródia:
As transgressões da paródia permanecem, em última análise,
autorizadas autorizadas pela própria norma que procura
subverter. Mesmo ao escarnecer, a paródia reforça; em termos
formais, inscreve as convenções escarnecidas em si mesma,
garantindo, conseqüentemente, a sua existência continuada. É
neste sentido que a paródia é o guardião do legado artístico,
definindo não só onde está a arte, mas de onde ela veio. Ser um
guardião, todavia, [...] pode ser uma posição revolucionária; a
questão é que não precisa de o ser. (HUTCHEON, 1985, p. 97)
Como se percebe, a paródia não deixa de ser, nesse sentido, um tipo de
discurso carnavalesco, na medida em que, subvertendo modelos confirmados pela
tradição, acaba por reforçá-los. Ainda de acordo com Linda Hutcheon,
O reconhecimento do mundo invertido exige ainda um
conhecimento da ordem do mundo que inverte e, em certo
sentido, incorpora. A motivação e a forma do carnavalesco
derivam ambas da autoridade: a segunda vida do carnaval tem
sentido em relação com a primeira vida oficial. (1985, p. 95)
Assim também ocorre com a paródia: o texto que parodia apenas tem
sentido se o leitor encontra em seu cerne vestígios do texto parodiado.
Seguindo esse raciocínio, a paródia colabora para revalorização dos textos que
parodia. Está justamente o seu paradoxo: o ato de parodiar caracterizado
pela análise crítica de discursos anteriores e, muitas vezes, por uma atitude de
72
escárnio por parte do parodiador reveste esses discursos parodiados de
importância, estabelecendo, pois, a sua continuidade. Para Hutcheon, mais uma
vez:
Este paradoxo da subversão legalizada, embora não oficial, é
característica de todo discurso paródico na medida em que a
paródia postula, como pré-requisito para a sua própria existência,
uma certa institucionalização estética que acarreta a aceitação
de formas e convenções estáveis e reconhecíveis. Estas
funcionam como normas ou regras que podem ser e logo,
evidentemente, serão quebradas. Ao texto paródico é
concedida uma licença especial para transgredir os limites da
convenção, mas, tal como no carnaval, pode fazê-lo
temporariamente e apenas dentro dos limites autorizados pelo
texto parodiado quer isto dizer, muito simplesmente, dentro
dos limites ditados pela reconhecibilidade. (1985, p. 96)
Por conseguinte, como se pôde notar, o texto parodiado sempre é
valorizado e perpetuado, mesmo quando está presente uma atitude notadamente
trocista por parte do parodiador. Isso ocorre porque, como se sabe, a intenção
de questionar, atacar ou denegrir o que quer que seja oculta, na verdade, o valor
e a importância conferidos pelo crítico aos “objetos” de sua crítica. A paródia
caminha, pois, da crítica contundente e por vezes escarnecedora à valorização
implícita dos conteúdos parodiados.
73
Capítulo 4: O riso
Monalisa
, Da Vinci
“O riso é a sabedoria, e filosofar é aprender a rir.”
“Sem a liberdade de rir, de caçoar e fazer humor, não há progresso da razão.”
Georges Minois
O presente capítulo debruça-se sobre um ato humano extremamente vago
e fugidio: o riso. Entre as suas inúmeras e variadas análises que foram realizadas
por pensadores e teóricos análises estas que percorreram todos os séculos
desde a Antigüidade escolhemos aquela que consideramos mais abrangente e
clara, além de vir ao encontro dos propósitos que interessam a esta pesquisa: o
riso como uma possibilidade de alargar o conhecimento, propondo novas formas
de se olhar para o mundo.
Nesse sentido, temos o riso como um ato ligado ao perímetro “não-oficial”
da sociedade, ou seja, ao âmbito dos discursos ou atitudes que de algum modo
fogem do padrão e do regrado. Seguindo esse raciocínio, explica Verena Alberti:
O riso revelaria assim que o não-normativo, o desvio e o indizível
fazem parte da existência. [...] São inúmeros os textos que
tratam o riso no contexto de uma oposição entre a ordem e o
desvio, com a conseqüente valorização do não-oficial e do não-
sério, que abarcariam uma realidade mais essencial do que a
limitada pelo sério. (1999, p. 12)
74
Portanto, como foi dito na introdução deste trabalho, o riso será tratado
aqui sobretudo como um tipo de discurso que instaura, ao invés da certeza, a
possibilidade; em lugar do uníssono, o ambivalente; em vez do maniqueísmo, a
tensão e o elemento instável.
Outro aspecto relevante é a proximidade entre as manifestações do riso,
da paródia e da ironia, modalidades que compartilham, quase sempre, a função de
questionar as certezas, as verdades absolutas, as rígidas divisões entre certo e
errado enfim, de questionar o modelo maniqueísta, seja ele qual for. Resulta
daí a presença de tensão ou de elementos dissonantes tanto no riso, quanto na
paródia e ironia.
Como dissemos, existem análises as mais variadas a respeito do riso, o que
nos obriga a apresentar aqui um rápido esboço desses estudos, procurando
seguir uma ordem cronológica. Após esse breve passeio por diferentes teorias,
voltaremos a falar do riso em seu caráter contraditório e incongruente,
visitando com mais vagar estudiosos cujas teorias contemplam as indagações
mais importantes para nossa investigação.
4.1 De Aristóteles a Schopenhauer
É possível encontrar a busca de uma definição do riso nas teorias da
Antigüidade, em obras como
Filebo
e
A República
, ambas de Platão e na
Poética
,
de Aristóteles. Em Platão, o risível é definido como um vício que se opõe à
sugestão do oráculo de Delfos, que afirma: “conhece-te a ti mesmo.” Assim,
aquele que desconhece a si mesmo, acreditando, por exemplo, ser mais do que,
de fato, é torna-se risível.
Além disso, a segunda “condição” do risível, para Platão, é que o indivíduo
que não se conhece seja também fraco. Conforme Verena Alberti comenta,
75
“Poder-se-ia falar aqui de uma dimensão política da teoria de Platão: os fortes e
os poderosos que se acham mais sábios, mais belos ou mais ricos do que na
verdade são não se tornam objeto do riso.” (1999, p. 42)
Logo, é possível entrever em Platão, a condenação moral daquele que é o
objeto do riso, e não : aquele que ri, segundo o filósofo, experimenta um
prazer que tem como causa o sentimento da inveja. O julgamento moral não se
dirige apenas ao risível “em si”, mas também àquele que ri. Ainda para Verena
Alberti,
Combinando as observações de A República e de Filebo, podemos
concluir que o conceito negativo que Platão faz do riso e do risível
é determinado, em última análise, por sua concepção da filosofia
como prazer puro e única forma de apreensão da verdade, em
oposição à ilusão característica das paixões. O riso e o risível
seriam prazeres falsos, experimentados pela multidão medíocre
de homens privados da razão. Entretanto, ambos devem ser
condenados mais por nos afastarem da verdade do que por
constituírem um comportamento medíocre. (1999, p. 44-45)
em Aristóteles, o que nos restou de sua obra sobre o riso corresponde
apenas a algumas passagens dispersas em seus textos. O livro II da
Poética
, que
tratava especificamente da comédia, perdeu-se e esse fato foi inclusive tema do
romance
O nome da rosa
, de Umberto Eco. Mesmo assim, a influência desse
filósofo em relação aos estudos posteriores sobre o riso foi bem significativa.
De acordo com Verena Alberti,
A influência de Aristóteles talvez seja a mais marcante na
história do pensamento sobre o riso, principalmente no que
concerne à consagração de sua definição do cômico como uma
deformidade que não implica dor nem destruição. Essa definição,
que se acha na Poética, estabelece-se como característica
primeira do cômico já na Antigüidade e atravessa os séculos
seguintes com soberania. Outra concepção corrente que remonta
a Aristóteles é sua definição do riso como especificidade humana.
(1999, p. 45)
76
Distanciando-se das idéias de Platão no que diz respeito ao caráter nocivo
do riso, Aristóteles associa o acontecimento do riso ao agradável, ou seja, àquilo
que produz prazer, à calma, à amizade, enfim, ao natural.
Marcus Tullius Cícero, célebre orador e político latino, também se dedicou
ao assunto, provavelmente porque “teria querido legitimar o uso que ele mesmo
fazia do cômico em seus discursos”. (ALBERTI, 1999, p. 57). Sua teoria acerca
do riso encontrada em
De oratore
, escrito em 55 a.C. também colabora de
modo assaz significativo para ampliar a significação do fenômeno. O aspecto
mais interessante comentado por Cícero é a utilização do riso com finalidade
retórica.
Seguindo esse raciocínio, esse filósofo lista uma série de vantagens
conquistadas pelo orador que faz uso do riso. Verena Alberti as explica:
o emprego do risível no discurso torna o ouvinte benevolente,
produz uma agradável surpresa, abate e enfraquece o adversário,
mostra que o orador é homem culto e urbano, mitiga a severidade
e a tristeza, e dissipa acusações desagradáveis. (1999, p. 58)
Esses efeitos do uso do riso aventados por Cícero são muito pertinentes.
De fato, qualquer um que provoque o riso com seu discurso é agraciado a
simpatia e a admiração daqueles que o ouvem. Assim, Cícero propõe o uso do
risível, porém, para o alcance de objetivos sérios. E salienta a necessidade de se
observar o contexto, percebendo a conveniência ou não do riso, ou seja,
adaptando sua utilização às determinadas situações.
Objetivando sempre enfatizar a seriedade do risível, Cícero ainda
compara as atividades de um orador e de um bufão. De acordo com ele, “o bom
orador tem sempre uma razão para empregar o risível, enquanto os bufões e
mimos fazem troça o dia todo e sem razão.” (Apud ALBERTI, 1999, p. 59) Não
dúvida, portanto, de que Cícero enfatiza o emprego do riso visando à
satisfação do orador em relação ao seu discurso. O riso acrescentaria, pois, aos
77
discursos um tom amigável e descontraído, que estreitaria os laços entre o
orador e seu público, tornando-se mecanismos significativos para se atingir o
convencimento e a persuasão.
A teoria de Quintiliano, embora bastante próxima à teoria de Cícero,
merece ser mencionada, uma vez que acrescenta novidades, ampliando, pois, o
conceito do riso. A obra de Quintiliano que aborda a questão é
Institutio
oratória
, escrita em 92 e 94 d.C. Nela, é possível perceber o parentesco com a
teoria de Cícero no que se refere à finalidade retórica do riso. Quintiliano, no
entanto, vai além: para ele, o riso pode ser conseqüência de uma ingenuidade
fingida e, também nesse aspecto, o riso seria um procedimento calculado com
vistas a se atingir um fim determinado. Verena Alberti explica a teoria de
Quintiliano:
O mesmo ocorre quando se tem o ar de não compreender o que se
compreende muito bem. Segundo Quintiliano, a ingenuidade
fingida torna-se claramente um caso de risível localizado “em nós”
ou seja, nas pessoas prudentes que deixam escapar o dito
espirituoso deliberadamente. Isso explica a observação de
Quintiliano sobre as asneiras: elas são asneiras quando as
deixamos escapar por imprudência, mas são elegantes se são um
fingimento. (1999, p. 64)
A questão do fingimento associado ao riso remete-nos certamente à
própria ironia, que também irrompe, muitas vezes, de uma ingenuidade fingida.
As concepções de Cícero e de Quintiliano possuem muitos pontos de
intersecção, o que inclusive é perceptível em suas designações do bufão que
Quintiliano considera ser aquele que – ao contrário de um orador – deixa escapar
asneiras sem aperceber-se disso.
Não podemos deixar de mencionar Demócrito de Abdera, o “filósofo que
ri”, de quem é contada uma história bastante interessante na segunda metade do
século I a. C. em um texto intitulado
Carta de Hipócrates a Damagetus
:
78
A história revela uma curiosa relação entre o riso, a sabedoria e a
loucura. Conta a Carta que Hipócrates teria sido chamado pelos
cidadãos de Abdera, cidade natal de Demócrito [situada na
Trácia], porque o filósofo estaria gravemente enfermo,
acometido de loucura ria de qualquer coisa. Ao ouvi-lo e vê-lo,
contudo, Hipócrates teria se convencido do contrário: Demócrito
estaria mais sábio do que nunca. [...] Ao ser levado pelos
abderianos ao local de moradia de Demócrito, Hipócrates avista,
do alto de uma colina, o filósofo sentado sob uma árvore baixa e
encorpada, grosseiramente vestido, cercado de cadáveres de
animais, ora escrevendo compulsivamente, ora parando para
pensar, levantando-se em seguida para examinar as vísceras dos
animais. Dois dos cidadãos de Abdera que acompanham
ansiosamente o médico começam a chorar para testar o filósofo.
Um deles chora como uma mulher cujo filho houvesse morrido;
outro, imitando um viajante que teria perdido a bagagem. Segue-
se a isso a prova da loucura do filósofo: ao ouvi-los, Demócrito
põe-se a rir copiosamente. Hipócrates resolve então descer a
colina para ver e ouvir pessoalmente os propósitos do filósofo,
deixando os cidadãos de Abdera à espera. Demócrito mostra-se
extremamente cortês e satisfeito ao conhecer a identidade do
visitante e, perguntando sobre o que escrevia, revela tratar-se de
um livro sobre a loucura: sobre o que é, sobre como se engendra
no homem e sobre como dele pode ser retirada. Por isso dissecara
os animais à sua volta: para descobrir, neles, a natureza e a sede
da bílis negra
1
. (ALBERTI, 1999, p. 74)
Resumindo um pouco mais a história, Hipócrates, o médico, fica
impressionado com a agudeza de raciocínio de Demócrito, valorizando a
oportunidade de estar ali, ao lado daquele homem considerado por todos um
insano. E, conversando com Demócrito, Hipócrates lamenta que ele próprio não
possa estar envolvido em tal pesquisa, uma vez que se ocupa de questões
relacionadas à sua profissão: problemas domésticos, crianças, doenças, mortes...
Tal comentário de Hipócrates provoca em Demócrito um riso
extremamente forte e os abderianos, que observavam de longe, ficam ainda mais
receosos. Então, Hipócrates, intrigado, quer saber a razão pela qual Demócrito
1
Aristóteles, em sua obra
O homem de gênio e a melancolia O problema XXX
, fornece uma explicação
minuciosa sobre a bílis negra. O filósofo a define como o humor da melancolia.
79
ri quando deveria apiedar-se, já que o médico havia mencionado doenças e
mortes. O filósofo responde:
Eu rio do homem cheio de loucura e vazio de toda ação direita,
que [...] se comporta puerilmente, [...] que vai até o fim do mundo
procurando ouro e prata, trabalhando sempre para adquirir mais
bens [...] Eu rio também do homem que cava as entranhas e veias
da terra, para as minas, enquanto se podia contentar com aquilo
que a terra, mãe de todos, produz suficientemente para o
sustento dos homens. os que querem ser grandes senhores e
comandar muitos; há os que não conseguem comandar a si mesmos.
Eles se casam com mulheres que logo repudiam. Eles amam, depois
odeiam. Eles são muito desejosos de ter filhos, e quando eles
estão grandes, os mandam para longe [...] Vivendo em excessos,
eles não têm nenhuma preocupação com a indigência de seus
amigos e de sua pátria. Eles perseguem coisas indignas [...]. Além
disso, têm apetite por coisas penosas, porque aquele que mora em
terra firme quereria estar no mar, e aquele que nele está
quereria estar em terra firme. (Apud ALBERTI, 1999, p. 75-76)
Hipócrates, incomodado, tenta refutar as idéias de Demócrito,
argumentando que as ocupações da vida geram essas necessidades, que o homem
não foi feito para ser ocioso e que muitos deles são bons e sérios. Hipócrates
afirma, ainda, que muitos homens são bem intencionados e que não poderiam
prever o futuro de desgraças ou infelicidade. Seguindo esse raciocínio, o médico
indaga finalmente: “Como, pois, você pode rir do que seja bem intencionado?”
(Apud ALBERTI, 1999, p. 76). Mais uma vez, Demócrito responde, revelando a
essência de seu saber:
Se os homens fizessem as coisas prudentemente, [...] me
poupariam o riso. Mas, ao contrário, eles, como se as coisas
fossem firmes e estáveis nesse mundo, vangloriam-se loucamente,
sem poder reter sua impetuosidade, por faltar-lhes a boa razão, o
discernimento, o julgamento. Porque esse único aviso lhes
bastaria: de que todas as coisas têm seu turno, o qual advém por
mudanças súbitas [...]. Eles, como se a coisa fosse firme e
perdurável e esquecendo os acidentes que ocorrem
ordinariamente, se envolvem com várias calamidades. Se cada um
80
pensasse fazer todas as coisas de acordo com seu poder,
certamente se sustentaria em uma vida certa e tranqüila,
conhecer-se-ia a si mesmo, [...] contentando-se com as riquezas
da natureza. [...] Eis o que me matéria de riso. Ó homens
insensatos, vocês são bem punidos de sua loucura, avarice,
insaciabilidade, [...] e de fazerem do vício virtude. (Apud
ALBERTI, 1999, p. 76)
Após o discurso de Demócrito, Hipócrates se convence de que o filósofo
não era apenas muito sábio, mas o mais sábio de todos, “o único que pode tornar
sábios todos os homens do mundo.” (Apud ALBERTI, 1999, p. 75).
Logo, em Demócrito o riso é fruto da insensatez humana. O filósofo, como
pudemos observar, ri do homem, que se julga mais sábio do que, de fato, é.
Nesse sentido, seu riso se aproxima do que Platão já expressou no
Filebo
:
“conhece-te a ti mesmo”, prescreve o oráculo de Delfos. É preciso observar,
ainda, que, se em Demócrito o riso é conseqüência dos “defeitos” e “vícios”
humanos, esse filósofo (Demócrito) se aproxima também da caracterização do
cômico para Aristóteles. Na opinião de Georges Minois,
O riso de Demócrito aplica-se, portanto, à vaidade das ocupações
e inquietudes humanas. Mas ele vai mais longe. Esse riso também
é uma crítica radical do conhecimento, a expressão de um
ceticismo absoluto. [...] Demócrito, o homem que ri de tudo, é a
encarnação extrema de um ceticismo niilista que se encontra, em
germe, nos pensadores céticos [...]. (2003, p. 61-62)
Dessa forma, Minois entende que em Demócrito o riso é fruto de uma
constatação: a incapacidade extrema do homem de se conhecer e de conhecer o
mundo. Desse modo, trata-se de um riso radicalmente cético; afinal, tal
percepção a respeito do homem apenas pode nos conduzir à idéia de que nada
deve ser levado a sério, uma vez que sem o autoconhecimento e o conhecimento
do mundo, o ser humano mergulhado em profunda cegueira está imerso na
ilusão, aparência e vaidade. É exatamente disso que Demócrito ri. Pigeaud
observa:
81
O riso de Demócrito pode significar um solipsismo patológico,
porque é um riso de desinteresse pelas coisas da vida, mas
também o recolhimento filosófico, requisito para a sabedoria mais
profunda. (Apud ALBERTI, 1999, p. 77)
Legitima-se, portanto, a ambigüidade relacionada à questão do riso em
Demócrito: seria ele fruto da loucura ou da sabedoria daquele que ri de todas as
coisas? Verena Alberti comenta:
Como louco, ele não tem a medida do bem e do mal; como sábio,
está acima do bem e do mal e conclama os homens à sensatez, ao
mesmo tempo em que receita o riso como remédio para todos os
males, inclusive o da loucura. (1999, p. 77)
Nota-se que existem interpretações diferentes relacionadas à questão do
riso em Demócrito: de um lado, ele pode estar imbuído de uma visão cética e
niilista em relação ao ser humano, de outro, seu riso pode ser entendido como um
instrumento para “conclama[r] os homens à sensatez”, como na citação acima.
Se passarmos agora para a Idade Média, vemos que o riso foi, em geral,
veementemente condenado, a começar pelo “fato” de que Jesus nunca teria rido
(MINOIS, 2003, p. 120-121). Esse mito é responsável por uma conseqüência
drástica na vida dos cristãos: como é dito que Jesus jamais riu, os cristãos,
devendo imitá-lo, também não deveriam rir.
Georges Minois comenta que o riso aparece, na história cristã, quando o
pecado original é cometido e, conseqüentemente, tudo se desequilibra:
O riso é ligado à imperfeição, à corrupção, ao fato de que as
criaturas sejam decaídas, que não coincidam com o seu modelo,
com sua essência ideal. É esse hiato entre a existência e a
essência que provoca o riso, essa defasagem permanente entre o
que somos e o que deveríamos ser. O riso brota quando vemos
esse buraco intransponível, aberto sobre o nada e quando
tomamos consciência dele. É a desforra do diabo, que revela ao
homem que ele não é nada, que não deve seu ser a si mesmo, que é
82
dependente e que não pode nada, que é grotesco em um universo
grotesco. (2003, p. 112, grifos nossos.)
Assim, o riso é, também aqui, fruto de uma oposição profunda: entre o que
de fato somos e o que almejamos ser. Essa verificação levaria ao riso um riso
trágico, ao que parece.
Ainda para o estudioso Minois, “ninguém contribuiu mais para demonizar o
riso que os pais da igreja.” (2003, p. 126) Desse modo, nomes de pessoas
insignes, conhecidos de muitos graças à sua devoção ao Cristianismo,
colaboraram com o processo de desautorização do riso. Assim, Basílio de
Cesaréia (Apud Minois, 1999, p.126) escreve que “não é permitido rir, em
qualquer circunstância, por causa da multidão que ofende a Deus, desprezando
sua lei. O Senhor condenou aqueles que riem nesta vida.”
De modo análogo, n’
Os três livros contra os acadêmicos
, Santo Agostinho
(Apud Minois, 1999, p. 127) considera que o riso é sempre desprezível, ainda que
seja uma faculdade humana:
certos atos que parecem estranhos aos animais, mas que não
são o que de mais elevado no homem, como a brincadeira e o
riso; e qualquer um que julgue a natureza humana estima que, se
esses atos são do homem, são o que há de mais ínfimo nele.
É legítimo afirmar, portanto, que o riso está sob grande vigilância na
Idade Média, período caracterizado pelo absolutismo da igreja católica. Uma vez
que carrega em sua essência um caráter questionador, é banido com veemência.
Saltando para o final do século XVI, encontramos Laurent Joubert e o seu
Tratado do riso
, obra publicada em Paris no ano de 1579. Um pouco depois, a
partir do culo XVII, é possível perceber uma propensão a desarmar o riso
ou exilá-lo para longe dos assuntos centrais ou “sérios” da sociedade. Mas tal
atitude não é nova: basta lembrarmos das teorias de Platão e de Aristóteles. Em
83
Aristóteles, inclusive, a comédia é relegada a um espaço marginal em relação à
tragédia. E, na Idade Média, como foi comentado, os bufões e todos aqueles que
riam não eram bem vistos e deviam, pois, ser evitados, uma vez que não
procuravam imitar Jesus Cristo...
Verena Alberti comenta:
Na Renascença, [...] o riso teria um profundo valor de concepção
do mundo, enquanto, na idade clássica, teria sido domesticado,
limitando-se aos vícios dos indivíduos e da sociedade. [...] no
século XVII, o que era essencial ou importante não podia mais
ser cômico: o riso tornara-se um divertimento leve, ou ainda
uma espécie de castigo útil. (1999, p. 82, grifos nossos.)
Assim, no século XVII, percebe-se uma tendência a associar o riso ao não-
sério, às tolices. O risível considerado dessa maneira foi desnudado de sua
função de “revelar uma verdade oculta”, encontrada apenas além dos limites do
sério, do convencional. Muito distante disso, o riso estaria fadado a “tratar”
apenas das situações medíocres. Para Joubert, “a coisa risível é vã, leve, frívola
e sem qualquer importância [...].” (Apud ALBERTI, 1999, p. 87)
Embora pareça exatamente o oposto, é interessante observar que o
Tratado de Joubert
eslonge de qualquer condenação ética do riso. Ainda que
o objeto do riso para o século XVII e para esse filósofo sejam as coisas torpes
e indecentes, a paixão que ele suscita não es associada à inveja, como
vislumbramos em Platão. Ao contrário, na opinião de Joubert, “ele [o riso] é uma
das mais admiráveis ações do homem, ainda mais por ser próprio ao mais
admirável dos animais.” (Apud ALBERTI, 1999, p. 85)
Devemos ressaltar, aqui, que Joubert atribui ao riso um caráter positivo,
e esse seu ponto de vista talvez seja um dos traços mais importantes de seu
Tratado
. De acordo com Verena Alberti,
84
[...] entre os feitos risíveis, há aqueles que fazemos de propósito,
como rasgar a roupa de alguém ou jogar-lhe água, atitudes que
não são condenadas, pois o riso de Joubert caracteriza-se pela
ausência de remorso: podemos rir e podemos produzir feitos
risíveis propositadamente. Contudo, é preciso que não haja dano
ou mal que importe muito e que a piedade não se misture à coisa
risível. O riso de Joubert não é eticamente condenado porque não
ultrapassa esse limite. (1999, p. 115, grifos nossos.)
Nesse sentido, Joubert permite que se ria da deformidade, do
comportamento do outro, de sua tolice e ingenuidade, sem a presença sufocante
da condenação ética do riso. Assim, em razão de estar sempre associado às
atitudes frívolas e sem importância, não prejuízos para o objeto do riso. Sem
graves danos, também ficam de fora os sentimentos de piedade ou remorso.
O
Tratado de Joubert
sugere, ainda, uma atividade cognitiva associada ao
riso. Joubert argumenta que se os recém-nascidos e os animais não riem é
porque lhes falta o pensamento ou a cogitação. Desse modo, conforme explica
Joubert, “é preciso mais do que a faculdade vegetativa para ser comovido pela
coisa risível: é preciso conhecer ou conceber a matéria que entra na alma.” (Apud
ALBERTI, 1999, p. 104)
De acordo com Verena Alberti, é importante perceber que as idéias
acerca do riso não se desenvolveram de um modo cronológico, obedecendo a uma
seqüência linear, pois “o riso não constituía objeto de inquisição bem ordenada; o
que havia era um pensamento disperso, que se expressava através de polêmicas e
debates.” (ALBERTI, 1999, p. 119)
Isso levou o estudioso a afunilar sua análise do fenômeno do riso em duas
correntes básicas, muito recorrentes nos séculos XVII e XVIII. A primeira
delas, baseada sobretudo no
Tratado de Joubert
, é a que acredita que o objeto
do riso se opõe ao normativo e à verdade. É o que se chama de “riso clássico”, e
teria
como cerne a crítica dos vícios e das deformidades. A segunda linha de
85
estudos entende o riso ou como manifestação de superioridade, ou como
contraste ou incongruência.
Verena Alberti chama a atenção para as relações entre a teoria da
superioridade e a idéia do riso malevolente, bem como entre a teoria do
contraste e a idéia do riso benevolente. Conforme sua explanação, a partir do
século XVIII, a concepção de riso benevolente começa a se destacar em relação
à idéia de que o riso estaria associado sempre à deformidade e ao desvio.
O representante da teoria da superioridade do riso e a idéia do riso
malevolente é Thomas Hobbes. Segundo ele, o riso está sempre associado ao
orgulho que experimentamos no momento em que nos percebemos mais capazes
do que alguém e, portanto, superiores. Desse modo, na opinião de Hobbes,
O entusiasmo súbito é a paixão que provoca aqueles trejeitos a
que se chama riso. Este é provocado ou por um ato repentino de
nós mesmos que nos diverte, ou pela visão de alguma coisa
deformada em outra pessoa, devido à comparação com a qual
subitamente nos aplaudimos a nós mesmos. Isto acontece mais
com aqueles que têm consciência de menor capacidade em si
mesmos, e são obrigados a reparar nas imperfeições dos outros
para poderem continuar sendo a favor de si próprios. Portanto,
um excesso de riso perante os defeitos dos outros é sinal de
pusilanimidade. Porque o que é próprio dos grandes espíritos é
ajudar os outros a evitar o escárnio, e comparar-se apenas com os
mais capazes. (1979, p. 36)
Como se pode perceber, há, nas palavras de Hobbes, a condenação ética
do riso. O riso figura aqui como manifestação grosseira da superioridade de
quem ri, tornando-se, por conseguinte, um instrumento de poder. Assim, na
opinião de Thomas Hobbes que nasceu seis anos após a morte de Laurent
Joubert, em 1588 – o riso constrange, uma vez que estabelece, sempre, a
supremacia de um – aquele que ri – em relação à deformidade de outro – o objeto
do riso. Segundo Verena Alberti,
86
Como em Joubert, o riso de Hobbes também é um riso das coisas
torpes, indecentes e frívolas necessariamente novas e
inesperadas. Mas, à diferença de Joubert, esse riso não é
legitimado pela ausência de remorso, porque seu objeto não é
limitado pela ausência de piedade; o riso sempre será
acompanhado de ofensa e de vanglória. Além disso, o estado de
alma em que nos colocam as coisas risíveis é um falso prazer: uma
falsa superioridade, uma falsa honra, uma falsa concepção de
poder futuro. (1999, p. 132, grifos nossos.)
Como se nota, embora quase contemporâneos, Hobbes e Joubert pensaram
sobre o riso de modos diferentes. Se a teoria de Joubert autoriza o riso e o
prescreve como uma espécie de “colaborador” da saúde, a de Hobbes confina o
riso a uma determinada classe de homens: os desprovidos de elevação e nobreza.
Na opinião de Minois, “o riso é, portanto, relegado à oposição. Reduzido à função
crítica, de escárnio, de derrisão, de zombaria, ele se torna ácido.” (2003, p.
363).
No início do século XVIII, não se pode perder de vista a célebre figura de
Anthony Ashley Cooper, conde de Shaftesbury. O objetivo principal a que ele se
dedica é integrar riso e religião. Conforme comenta Minois, “Shaftesbury
acredita que o bom humor está na raiz da fé, e esta, se for autêntica, deve
manifestar-se no riso.” (2003, p. 448).
Na verdade, Shaftesbury conhecia a dificuldade de realização de sua
proposta, afinal, se tinha propagado nesse momento, como vimos
anteriormente, a idéia de um riso agressivo e orgulhoso, defendida por Hobbes.
Ciente disso, o conde reconhece, então, duas espécies de riso: a
jocositas
, que
seria justamente o escárnio agressivo, descontrolado, marca de superioridade, e
a
hilaritas
, tipo de riso moderado, que se deixa controlar.
A idéia de Shaftesbury era ver transformado esse riso vulgar,
exorbitante e assustador num riso que se caracterizasse pelo equilíbrio e pela
razão. A insegurança dos religiosos e tradicionais em relação à análise de
87
Shaftesbury baseava-se, no entanto, no fato de esses dois tipos de riso
fazerem parte da natureza humana. Ou seja, “liberar” a manifestação do riso
“bom” não seria permitir que o “outro” se extravasasse? Minois, em sua obra
História do riso e do escárnio
, reproduz esse receio, citando alguns desses
pensamentos conservadores:
o riso vai erodir a autoridade civil e religiosa, dissolver as
tradições, os ritos e as instituições, colocar em perigo todo o
corpo social. [...] Traumatizados pelas zombarias de Tindal, Collins
ou Toland, os membros do clérigo anglicano têm medo de rir [...].
(2003, p. 450)
Shaftesbury, todavia, insiste em seu projeto e amplia o debate. Para ele, a
ausência do riso na religião é a causa principal da produção de entusiastas
fanáticos. Logo, o conde defende a junção das duas formas de manifestação do
riso: o humor e o espírito (
wit
). O humor, mais sentimental, nos faria perceber
que qualquer forma de coincidência perfeita do ser consigo mesmo e, depois,
com o outro nada mais é do que estupidez e fanatismo. O
wit
, mais intelectual,
seria a expressão do desenvolvimento de um espírito crítico: para Shaftesbury
(Apud Minois, 2003, p, 451), “é necessária a reflexão do riso diante do
espetáculo do fanatismo.”
Nas reflexões do conde de Shaftesbury o riso é visto, pois, como uma
“arma de combate” às verdades pré-estabelecidas. O riso é um instrumento
sério de questionamento e deve ser utilizado de modo racional e equilibrado.
Esse filósofo defende a liberdade de exposição de nossas críticas como caminho
para o progresso. Segundo Verena Alberti (1999, p. 135),
O modelo de liberdade em que se baseia Shaftesbury é sem
dúvida o da Antigüidade, onde vai procurar argumentos para
corroborar a defesa da liberdade de um ridículo à inglesa, um
ridículo fino e livre, em oposição à bufonaria determinada pela
tirania.
88
Assim, a teoria de Shaftesbury sobre o riso é, de certo modo, um
manifesto em favor da liberdade. E trata-se de uma liberdade específica: a de
usar o “ridículo” livremente, como uma maneira de desmascarar imposturas e
superstições. Ouçamos o próprio conde sobre a capacidade de emitir juízos, que
nos é inerente:
é impossível ao coração manter-se neutro e não participar
constantemente, de um modo ou de outro. Por mais falsidade ou
corrupção que albergue em seu íntimo, ele descobre a diferença
que, no tocante à beleza e à elegância, existe entre um coração e
outro, um gesto de afeição, um comportamento, um sentimento e
um outro; e assim, em todos os casos em que o interesse próprio
não esteja envolvido, deverá aprovar em maior ou menor grau o
que é natural e honesto, e reprovar o que é desonesto e corrupto.
(BUTLER, 1996, p. 19).
No entender de Minois, Shaftesbury enuncia, em 1711, por meio de sua
teoria sobre o riso, o que seria o espírito das Luzes. Apenas para finalizar,
Shaftesbury defende a liberdade de zombar, a liberdade de
questionar tudo, em uma linguagem decente, e a permissão de
esclarecer e refutar qualquer argumento, sem ofender o
interlocutor [...] Sem a liberdade de rir, de caçoar e fazer humor,
não há progresso da razão. (MINOIS, 2003, p. 451).
Fica aqui assinalada uma característica própria do riso: a liberdade de rir
como forma de propor uma discussão sobre verdades pré-estabelecidas,
engendrando, dessa maneira, novas possibilidades de pensamento. O riso seria,
assim, um meio de propiciar a mudança e, de acordo com a situação, o progresso
da razão.
No final do século XVIII encontramos ainda uma figura importante: Kant,
cujo estudo acerca do riso baseia-se nas diferenças entre a razão e a sensação.
O belo estaria associado à razão, ao geral e ao prazer desinteressado: para
Kant, o belo apraz e sempre impõe um julgamento. Em contrapartida, a sensação
89
estaria sempre relacionada ao agradável, ao pessoal e ao interesse,
aproximando-se, pois, do prazer e da alegria. Para Kant, o que é agradável
regozija. Logo,
Entre o que apraz simplesmente no ajuizamento e o que deleita
(apraz na sensação) há, como o mostramos freqüentemente, uma
diferença essencial. O último é algo que não se pode imputar a
qualquer um do mesmo modo como o primeiro. O deleite (por mais
que sua causa possa encontrar-se também em idéias) parece
consistir sempre num sentimento de promoção da vida inteira do
homem, por conseguinte também do bem-estar corporal, isto é,
da saúde; de modo que Epicuro, que fazia todo deleite passar
basicamente por sensação corporal, sob este aspecto talvez não
deixasse de ter razão [...] (KANT, 2005, p. 175)
Em conformidade com a teoria do riso de Kant, o julgamento do belo
prende-se à razão e, quando experimentamos qualquer sensação agradável ou
desagradável, não julgamento, mas apenas sentimento. Como conclui Verena
Alberti, “nesse sentido, nem a matéria do riso nem a música têm a ver com a
razão; elas só suscitam sensações agradáveis.” (1999, p. 163). Assim,
a música e a matéria para o riso são duas espécies de jogo com
idéias estéticas ou também com representações do entendimento,
pelas quais enfim nada é pensado e as quais podem deleitar
pela sua alternância, e contudo vivamente. [...] a vivificação em
ambas é simplesmente corporal, embora elas sejam suscitadas por
idéias do ânimo, e que o sentimento de saúde constitui por um
movimento das vísceras correspondente àquele jogo o todo de
uma sociedade despertada para um deleite tão fino e espirituoso.
(KANT, 2005, p. 177)
Seguindo esse raciocínio, o prazer do risível advém de um relaxamento
súbito do entendimento, quando ele não encontra o que esperava. Nas palavras
de Minois, comentando Kant, “o riso é um efeito resultante da maneira como a
tensão da espera é reduzida a nada.” (2003, p. 420)
90
Em Kant o riso é fruto de uma contradição, não obstante resulte de um
excedente de entendimento. Para o filósofo alemão, o riso surge da
impossibilidade de permanecer pensando:
É digno de nota que em todos esses casos o riso tem de conter
sempre algo que num momento pode enganar; daí que se a
aparência termina em nada, o ânimo rememora-o para tentá-lo
ainda uma vez e assim, através de uma rápida sucessão de tensão
e distensão, ricocheteia de um lado a outro e é posto em
oscilação. [...] de modo que o pulmão expele o ar a intervalos
rapidamente sucessivos e assim efetua um movimento favorável à
saúde [...]. (KANT, 2005, p. 179)
Para Kant, o prazer proporcionado pelo riso não é um prazer do
julgamento, uma vez que o risível não faz parte das artes agradáveis e a
sensação provocada por ele não estaria, pois, associada à razão. De forma
semelhante, o prazer do risível também não pode ser um prazer do
entendimento, já que o entendimento frustra-se quando não encontra o que
esperava: é a expectativa reduzida a nada.
Depois de Kant, merecem destaque as idéias de Jean Paul, Baudelaire e
Schopenhauer, ambientadas no século XIX. A teoria desses pensadores mostrou
tamanha afinidade com os objetivos da presente pesquisa, que o próximo item
deste capítulo será dedicado a elas. Por isso, iremos nos deslocar diretamente
para o final do século XIX e começo do XX, encontrando as teorias de Bergson e
Freud.
Bergson publica seus artigos sobre o riso em 1900, abordando o risível em
relação à sua função na sociedade. Ele coloca sob a lupa o significado
necessariamente social do riso, afastando-se, pois, de uma abordagem estética
ou filosófica do risível. Desse modo,
O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma espécie de gesto
social. Pelo medo que inspira, o riso reprime as excentricidades,
91
mantém constantemente vigilantes e em contato recíproco certas
atividades de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se
e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode restar de rigidez
mecânica na superfície do corpo social. (BERGSON, 2001, p. 15)
Por meio dessas palavras, percebemos que o riso funciona também como
uma espécie de força repressora de quaisquer comportamentos não previstos
pela “ordem”. Dito de outra forma, tudo o que não é julgado normal,
convencional, seria corrigido por meio do riso.
Em contrapartida, em vários momentos, Bergson fala de um mecanismo
sobreposto à vida, de pessoas negando sua espontaneidade para assumir
comportamentos pré-determinados pelo meio social em que estão inseridas.
Dessa forma, o riso pode representar uma reação a esse tipo de comportamento
maquinal do ser humano. Vejamos:
A própria forma compassada de todo cerimonial nos sugere uma
imagem desse tipo. Assim que esquecemos a seriedade do objeto
de uma solenidade ou de uma cerimônia, os que tomam parte dela
produzem em nós efeito de marionetes. Sua mobilidade se regra
pela imobilidade de uma fórmula. É automatismo. (BERGSON,
2001, p. 34)
Chegamos a um impasse: ou Bergson tentou, sem muita clareza, enfatizar
o caráter contraditório do riso – que atua como força que nega, ao mesmo tempo,
as excentricidades e os convencionalismos ou a sua teoria acerca do riso é
contraditória. A primeira citação revela que o riso é controlador: coloca as
pessoas excêntricas no seu “devido” lugar, que significa justamente o seu lugar
social, agindo como outros agiriam, negando sua individualidade. Em outras
palavras, ri-se do diferente a fim de que ele se torne igual e deixe de perturbar
a harmonia da sociedade. Em contrapartida, na segunda passagem citada acima,
92
também são objetos do riso aqueles que estão desempenhando seu papel social,
uma vez que eles se tornam robóticos, maquinais e previsíveis.
Acerca desses trechos citados perguntamo-nos: qual é, enfim, o papel do
riso na sociedade, para Bergson? Verena Alberti também não parece satisfeito e
faz o seguinte comentário a respeito da teoria de Bergson: “seu ensaio esconde,
por trás de uma aparência de coerência, a impossibilidade de se conferir um
sentido ao riso.” (1999, p. 196)
E quanto a Freud? Podemos dizer que, em linhas gerais, Freud o riso
causando um prazer que resulta do alívio psíquico decorrente da economia de
esforço intelectual. Notamos nisso uma perspectiva que entende serem
incompatíveis o riso e o pensamento sério. Minois explica o riso em Freud:
o principal obstáculo a um efeito cômico é a existência de um
afeto penoso: dor ou qualquer mal, psíquico ou moral. [...] O humor
impede o desencadeamento do afeto penoso, permite-nos
economizar um desgaste afetivo, e é nisso que reside o prazer
que ele propicia. [...] Nosso humor cotidiano, na maior parte das
vezes, é desse tipo: ele nos economiza a cólera. (2003, p. 526)
Logo, Freud analisa o riso como resultado da vitória do eu, que consegue
se impor diante das vicissitudes da existência. Verena Alberti comenta que
“esse riso tem razões psíquicas: é a expressão de um prazer original
reencontrado, ao qual tivemos de renunciar quando a razão nos impôs o sentido.”
(1999, p. 19) Mais uma vez, as palavras de Minois sobre o risível em Freud:
O humor é, assim, um processo de defesa que impede a eclosão do
desprazer. Ao contrário do processo de recalque, ele não procura
subtrair da consciência o elemento penoso, mas transforma em
prazer a energia acumulada para enfrentar a dor. (2003, p.
526-527)
93
4.2 O riso e a liberdade criadora do sujeito
Ainda no culo XVIII e caminhando para o século XIX, apesar de tantas
investidas contra o riso, ele resiste, sobretudo como um meio de combate. De
acordo com Verena Alberti (1999, p. 159), o riso entra agora no domínio do
saber, como meio de seu alargamento. Poderíamos objetar, afirmando que não
novidade alguma nisso, uma vez que o riso havia entrado nos domínios do
pensamento. Entretanto, estaríamos de certo modo enganados. Observemos a
explicação de Verena Alberti:
Essa inserção do riso no terreno do entendimento não
corresponde evidentemente ao desafio enfrentado por Joubert,
que era pensar o riso como objeto passível de ser apreendido pelo
entendimento. Agora, trata-se de pensá-lo como vinculado à
atividade do entendimento. Isso fica mais claro em contraste com
os ensaios de Shaftesbury, nos quais a relação entre o riso e o
pensamento sobressaía, mas para denunciar a falsidade. Entre
o “ridículo” e a “verdade” havia, para Shaftesbury, uma relação de
exclusão; agora o risível será capaz de alargar o
conhecimento, como se não fosse mais incompatível com a
verdade. (1999, p. 159-160, grifos nossos)
Como se vê, embora o riso tenha sido associado por Joubert ao
entendimento, isso ocorreu apenas no sentido de que é necessária certa
atividade cognitiva para perceber a situação risível, que é sempre leve e sem
importância, como vimos. Dito de outra maneira, o pensamento é ativado somente
para que se localize o risível: ou seja, o ato cognitivo ocorre no sujeito para que
ele diferencie o sério do não-sério. Feito isso, o sujeito assimila o objeto do riso,
que está nos domínios do não-sério. O entendimento, ou ato cognitivo ou
pensamento
antecedem
o risível, de modo que não ocorre a inserção do riso no
terreno do entendimento. O riso e o entendimento são distintos e separados.
94
Conforme comenta Verena Alberti, havia realmente uma relação entre o
riso e o pensamento em Shaftesbury. Nesse caso, porém, o riso associado ao
entendimento acontece “apenas” para denunciar o erro. Ainda que essa utilização
do riso seja interessante e por isso as aspas em
apenas
o caminho apontado
pelos estudiosos do riso nos séculos XVIII e XIX contribuiu com maior peso
para nossa pesquisa. O caminho por eles trilhado nos mostra que conciliação
entre o riso e a verdade e que, por conseguinte, o riso se constitui como
possibilidade de ampliação do conhecimento.
Os grandes representantes dessa interpretação do fenômeno do riso são
Jean Paul, Schopenhauer e Baudelaire. Johann Friedrich Richter, mais conhecido
pelo pseudônimo de Jean Paul (1763-1825), não pode ser mencionado sem
levarmos em consideração o contexto histórico e sobretudo literário no qual
está inserido. Toda a sua obra está imbuída de humor grotesco, que a Alemanha
desse período havia herdado do intenso “Sturm und Drang” (1767-1786),
movimento literário que deu ensejo ao “mal do século” romântico, com
significativa propensão ao humor negro. Conforme comenta Minois,
a tensão é fonte de grotesco e de situações ridículas, até mesmo
burlescas, poderíamos dizer, pela permanente defasagem entre o
nobre e o trivial. [...] é o que Jean Paul chama de “humor
assassino”, que não se aplica a este ou àquele aspecto da
realidade, mas à realidade inteira. É a ridicularização do mundo
inteiro. [...] Esse riso não visa nem a denunciar nem a expiar; ele
resulta do espetáculo de inanidade universal, do sublime
invertido. (2003, p. 530)
Trata-se de um riso que nasce da percepção de um abismo entre o sujeito
e o mundo em que ele vive:
O riso romântico é o consolo do homem prisioneiro de um mundo
que ele ama, apesar de tudo. O mundo é miséria, sofrimento, caos
do qual não se pode escapar. Então, o riso protege contra a
angústia, ao mesmo tempo que a expressa. Ele é alegria e
95
protesto. O grande mistério é o da morte, que nos espreita
zombando com suas órbitas vazias e um sorriso de desafio. O que
fazer? Rir ou perder a face. (MINOIS, 2003, p. 540)
Verena Alberti (1999, p. 165), por sua vez, procura analisar o riso em Jean
Paul de uma perspectiva mais técnica. Para ele, o ponto mais interessante dos
estudos de Jean Paul muito citados pela literatura contemporânea – é a
preeminência do sujeito. Assim, segundo a teoria de Jean Paul, o cômico não se
localiza no objeto, mas sim no sujeito. Nesse sentido,
a sensação suscitada pelo risível [...] pode ser despertada se o
risível for percebido enquanto representação. Um equívoco ou
uma ignorância não são risíveis em si. Para que provoquem o
riso, é preciso que se tornem manifestos através de uma ação; a
ação e a situação devem ser “igualmente contempláveis” para que
sua contradição chegue à altura do cômico. (Apud ALBERTI,
1999, p. 167-168, grifos nossos.)
Logo, o objeto nunca apresenta características próprias que o tornem
cômico
a priori
. É somente porque temos a faculdade de ver a situação “em
espetáculo”, que ela passa a ser cômica. Fica legitimada, pois, a primazia do
sujeito, que produz o cômico no momento em que empresta seu saber a uma
situação específica. Verena Alberti ainda argumenta que
O empréstimo da opinião do sujeito ao ser cômico é ainda
confirmado pelo fato de nós mesmos jamais nos considerarmos
cômicos no momento da ação, mas somente depois, quando um
“segundo eu” julga o primeiro. (1999, p. 168)
Por conseguinte, a teoria de Jean Paul vem ao encontro do pensamento que
o riso não como algo que se opõe ao sério, mas sim como um acontecimento
que pode ampliar o conhecimento e até revelar o sério ou a verdade. Além disso,
o ponto essencial dessa teoria acerca do riso é a supremacia do sujeito; dele
96
depende esse movimento de ampliação do conhecimento ou de descoberta de
verdades.
É interessante perceber que a valorização do sujeito em Jean Paul está
intimamente conectada ao seu momento histórico. Jean Paul viveu à época da
Revolução Francesa, evento que marcou a tomada do poder pelo sujeito
empreendedor. Além disso, embora o autor não tenha participado do movimento
romântico alemão (integrado por figuras como Friedrich Schlegel, Novalis,
Eichendorff e E. T. A. Hoffmann), foi contemporâneo dessa estética que
notoriamente defende a supremacia do sujeito sobre a obra. É digno de nota que
Friedrich Schlegel tenha sido o grande teórico da chamada ironia romântica,
categoria de interesse para o presente trabalho. E a ironia romântica
caracteriza-se justamente por ser um meio de o sujeito criador refletir dentro
da obra criada sua perspectiva crítica. Trata-se de um importante meio para
esse sujeito explicar e comentar aspectos diversos, realizar reflexões sobre o
próprio ato criativo, enfim, marcar a sua presença.
A teoria de Jean Paul acerca do riso enfatiza o movimento livre do
entendimento, sem o qual não qualquer possibilidade de criação. Vejamos as
suas palavras:
Quando o espírito se faz inteiramente livre [...] quando há, com
efeito, um caos, mas acima dele um espírito santo (
heliger Geist
),
que paira, ou, antes, um espírito capaz de infusão, o qual,
entretanto, é muito bem formado e continua a se formar e a se
gerar quando, nessa dissolução geral, estrelas caem, homens
ressuscitam e tudo se mistura entre si para formar algo novo
quando esse ditirambo do chiste preenche o homem mais com luz
do que com formas, então lhe é aberto, através da igualdade geral
e da liberdade, o caminho para as liberdades e as invenções
poética e filosófica. (Jean Paul, Apud ALBERTI, 1999, p. 172.)
97
Compreender esse trecho é imprescindível. Dele podemos inferir que as
idéias de Jean Paul sobre o riso abarcam muito mais do que o estritamente
risível. Elas evocam, na verdade, uma discussão sobre a própria criação artística.
Aproximando-se das idéias de Jean Paul encontramos Charles Baudelaire.
Também para esse poeta, o cômico se localiza no sujeito e não no objeto.
Vejamos:
A força do riso está em quem ri e não no objeto do riso. Nada é
cômico em si mesmo. É a intenção maldosa do ridente que o
cômico; aquele que ri não é o homem que cai, a não ser que este
tenha adquirido a força de se desdobrar rapidamente e assistir
como espectador desinteressado aos fenômenos de seu eu. Mas
isso é raro. (BAUDELAIRE, Apud MINOIS, 2003, p. 534)
Assim, segundo Baudelaire, não existe o cômico em si mesmo. Como Jean
Paul, Baudelaire acredita que deve haver um movimento do sujeito no sentido de
considerar ou não um objeto, uma situação ou até uma pessoa como cômicos. Na
visão de Baudelaire, não risos desprovidos de intenção ou risos inocentes.
Indagado sobre o riso das crianças que seria aparentemente ingênuo
Baudelaire retruca: “Para isso seria preciso provar que as crianças são seres
inocentes. Olhai-as: são projetos de homens, isto é, satãs em embrião.” (Apud
MINOIS, 2003, p. 534) Sua afirmação é deveras engraçada, uma vez que se
contrapõe à idéia que em geral fazemos sobre as crianças: seres angelicais e
ingênuos. Essa contradição causadora do riso nos remete ao filósofo Arthur
Schopenhauer.
A teoria do riso de Schopenhauer que se relaciona intimamente com a
teoria da incongruência encontra-se em sua principal obra,
O mundo como
vontade e representação
. Como em Jean Paul, percebemos em Schopenhauer uma
reflexão filosófica e artística que vai além da questão do riso. Segundo Verena
Alberti,
98
A explicação do riso tem um lugar preciso: rimos da incongruência
entre as duas formas de representação pelas quais apreendemos
o mundo, ou, mais especificamente, pelas quais o mundo é, que
ele só existe para o sujeito. (1999, p. 172)
Por meio desse comentário acerca da teoria de Schopenhauer, faz-se
clara uma reflexão que, como dissemos, excede os domínios do risível. Na
verdade, a fim de compreender suas idéias acerca do riso, precisamos, antes,
enveredar pelos caminhos da filosofia e entender o sentido das duas formas de
representação pelas quais, segundo Schopenhauer, assimilamos o mundo.
O título de sua principal obra anuncia que, de acordo com esse filósofo,
“fora a vontade e a representação nada nos é conhecido, nem passível de ser
pensado.” (Apud ALBERTI, 1999, p. 173). Para ele, todo tipo de manifestação
existente no mundo é
representação
realizada por um
sujeito
. Fica evidente o
ponto de contato com Jean Paul e Baudelaire.
As duas formas de representação por meio das quais o sujeito apreende o
mundo são a representação intuitiva ou concreta e a representação abstrata.
Elas correspondem, respectivamente, ao entendimento e à razão. Verena Alberti
explica:
Às duas classes de representação correspondem duas faculdades
de conhecimento: o entendimento (
Verstand
), que concebe
diretamente as manifestações do mundo e conhece as causas
através dos efeitos, e a razão (
Vernunft
), que pode saber. O
que o entendimento conhece de modo concreto chama-se de
realidade, isto é, a passagem correta do efeito, no objeto, a suas
causas. O que a razão conhece de modo correto chama-se de
verdade, isto é, um julgamento abstrato que tem fundamentos
suficientes. Quando o entendimento se engana, tem-se a
aparência (
Schein
), e quando a razão se engana, o erro (
Irrtum
).
(1999, p. 173)
A teoria de Schopenhauer é complexa e não nos compete entrar aqui em
detalhes. No entanto, é importante notarmos que ela nos explica a existência de
99
uma forma concreta e de uma forma abstrata de assimilarmos o mundo. Ao modo
concreto ou intuitivo liga-se o entendimento, que pode conhecer as causas
apenas por meio de seus efeitos; talvez seja interessante pensar nos efeitos
como espécies de “concretizações” ou “acontecimentos” conseqüentes de causas
anteriores. Assim, podemos compreender por que essa representação a
intuitiva ou concreta – só conhece os efeitos. À representação abstrata liga-se a
razão, que apenas pode saber, ou seja, não há aqui “comprovações” ou “efeitos”.
Schopenhauer chama de “realidade” àquilo que o entendimento conhece de
modo concreto e de “verdade” o que a razão conhece de modo abstrato. Dito de
outra maneira, se, como vimos, o entendimento está relacionado à representação
concreta, aquilo que entendemos corresponde àquilo que vemos, que é concreto,
ou seja, considerado por nós “realidade”. Em contrapartida, o que a
representação abstrata ou a razão conhece de modo correto chama-se
“verdade”, uma vez que esse é o nível dos conceitos.
Em sua teoria, Schopenhauer salienta a necessidade de correspondência
entre essas duas formas de apreendermos o mundo. Verena Alberti comenta:
Enquanto o entendimento tem por função o conhecimento direto
de efeito e causa, a razão tem por função a formação de
conceitos. Estes últimos devem contudo ter por fundamento o
conhecimento intuitivo [...]: todo pensamento abstrato que não
tem uma semente concreta é pobre, e é por isso que todo
conceito deve poder ser demonstrado através das formas de
representação direta do mundo. (1999, p. 173)
Por se que a representação intuitiva ou concreta tem prioridade em
relação ao pensamento abstrato. Segundo Schopenhauer, um conhecimento novo
existe apenas se partimos do concreto, examinando diretamente as coisas, para
então transpor esse conhecimento concreto em conceitos:
100
De imediato se mostra a incongruência do conceito com a
realidade, mostra-se como o primeiro nunca desce ao particular e
como sua universalidade e rígida determinidade não combinam
com as finas nuances e modificações variadas da efetividade. O
pedante, por conseguinte, com suas máximas universais, quase
sempre é apanhado de surpresa na vida, mostra-se imprudente,
destituído de gosto, incompetente; na arte, para a qual o conceito
é infrutífero, produz abortos maneiristas, rígidos e sem vida.
(2005, p. 111)
A razão é, muitas vezes, incapaz de apreender todas as minúcias que a
representação intuitiva percebe. Assim, segundo Schopenhauer, a razão, isolada,
não aumenta o conhecimento: “ela lhe confere uma nova forma, porque
transforma em conceito abstrato o que era conhecido intuitivamente.” (Apud
ALBERTI, 1999, p. 173). Todavia, Verena Alberti salienta ainda um outro
aspecto da teoria de Schopenhauer:
Necessita-se, porém, da representação abstrata para fixar
resultados e difundi-los. É possível, por exemplo, construir uma
máquina com um conhecimento unicamente intuitivo se o inventor
a faz sozinho, mas se várias pessoas a constroem em momentos
diferentes, é necessário desenvolver um plano de construção
in
abstracto
, para o qual deve-se recorrer à razão. (1999, p. 173)
Mesmo assim, Schopenhauer explica (conforme lemos em: ALBERTI, 1999,
p. 173) que casos em que o conhecimento intuitivo deve realmente coordenar
as ações, como por exemplo, em alguns jogos, para afinar instrumentos musicais
ou, ainda, para cantar.
A partir dessa rápida exposição das duas formas de representação pelas
quais assimilamos o mundo de acordo com a visão de Schopenhauer, temos as
bases para acompanhar o pensamento desse filósofo sobre o fenômeno do riso.
Conforme explica Schopenhauer, o risível é fruto da incongruência entre os
conhecimentos abstrato e intuitivo:
101
Ora, é exatamente a incongruência entre o conhecimento intuitivo
e o abstrato, em virtude da qual este está para aquele como um
trabalho de mosaico está para a pintura, o fundamento de um
fenômeno notável que, tanto quanto a razão, é exclusividade da
natureza humana, não tendo recebido até agora, apesar de
renovadas tentativas, nenhuma explicação aceitável. Trata-se do
riso. [...] De fato, o riso se origina sempre e sem exceção da
incongruência subitamente percebida entre um conceito e os
objetos reais que foram por ele pensados em algum tipo de
relação, sendo o riso ele mesmo exatamente a expressão de
semelhante incongruência. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 109,
grifos nossos.)
Desse trecho é possível inferir que, segundo o filósofo em questão, o riso
acontece quando a submissão paradoxal e inesperada de um objeto a um
conceito que não lhe diz respeito. Conforme explica Verena Alberti, “o objeto se
deixa pensar pelo conceito, mas não tem nada a ver com ele e se diferencia
claramente de tudo o que pode ser pensado pelo conceito.” (1999, p. 174). Dessa
forma, para Schopenhauer,
Quanto mais correta, de um lado, é a subsunção de tais
realidades ao conceito e, de outro, quanto maior e mais flagrante
é a sua inadequação com ele, tanto mais vigoroso é o efeito do
risível que se origina dessa oposição. Todo riso, portanto, nasce
na ocasião de uma subsunção paradoxal e, por conseguinte,
inesperada: sendo indiferente se é expressa por palavras ou atos.
Essa é, resumidamente, a explanação correta do risível. (2005, p.
109)
Schopenhauer ainda comenta o estado prazeroso provocado pelo riso:
A percepção da incongruência do pensado (
Gedachten
) com o
contemplado (
Wirklichkeit
), nos portanto alegria, e nós nos
entregamos de bom grado à comoção convulsiva suscitada por
essa percepção. [...] A causa desse prazer é a vitória da
representação intuitiva sobre a abstrata, do entendimento sobre
a razão: percebemos que a razão, com seus conceitos abstratos,
não é capaz de descer à infinita diversidade e às nuanças do
concreto, isto é, da forma de conhecimento primeira. (Apud
ALBERTI, 1999, p. 175)
102
Schopenhauer explica, portanto, que o riso próprio do homem, que é um
ser racional acontece no momento em que se conclui que o pensamento
abstrato não pode ir além dele mesmo: “rimos porque a incongruência entre o
pensado e a realidade nos mostra as limitações do pensamento.” (ALBERTI,
1999, p. 176)
Finalmente, ainda é digno de nota o fato de sua teoria também apresentar
uma definição do contrário do riso. Seguindo o raciocínio desenvolvido por
Schopenhauer, se o risível origina-se de uma ausência de conformidade entre o
pensamento e a realidade, o sério é conseência da harmonia entre o conceito e
a concretização ou realidade. Assim, “o sério está convencido de que pensa as
coisas como elas são e de que elas são como ele as pensa.” (ALBERTI, 1999, p.
176).
Todavia, para o filósofo alemão, não existe concordância plena entre as
duas formas de representação, ou seja, entre o concreto ou intuitivo e o
abstrato. Minois ainda acrescenta que, para Schopenhauer,
as pessoas sérias sabem rir: quanto mais um homem for capaz
de uma inteira gravidade, mais franco seseu riso. [...] Para rir
bem, é preciso ser um homem de convicção, acreditar
firmemente em alguma coisa e constatar, de repente, que se
estava enganado. (MINOIS, 2003, p. 516, grifos nossos.)
Como se vê, Schopenhauer de fato não acredita na identidade perfeita
entre pensamento e realidade:
Quanto mais a congruência parece perfeita, mais facilmente pode
ser revogada por uma incongruência inesperada, e é por isso que a
passagem do sério ao riso é tão fácil. Ou seja, no limite, o sério
é, para Schopenhauer, a aparência de uma congruência que
não existe. A passagem fácil do sério para o riso pelo advento de
uma incongruência inesperada revela o caráter virtualmente
enganador de todo acordo entre a realidade e o pensado.
(ALBERTI, 1999, p. 176, grifos nossos.)
103
Legitima-se, portanto, a profundidade e relevância dos estudos realizados
por Schopenhauer acerca do riso. Sua teoria vai muito além do risível, nos
convidando para refletir filosoficamente sobre o conhecimento, sobre o conceito
de realidade e, enfim, sobre a nossa própria condição de “estar no mundo”.
104
4.3 Um sorriso irônico para a razão humana superada
Esperamos que tenha ficado claro o nosso interesse pela idéia do risível
como fruto de uma incongruência, pois esse riso, além de propiciar o estudo de
relações fundamentais com a ironia e a paródia, é um riso que, unido a essas
modalidades, convida o sujeito a refletir filosoficamente. Vimos que as idéias
mais importantes acerca desse “riso sério” nos chegam a partir de
Schopenhauer, que enfatiza o riso como fruto de uma contradição, de Jean Paul,
que defende a teoria do riso como “construção” de um “sujeito criador”, e, ainda,
de Baudelaire, que faz um acréscimo importante: salienta a intenção inerente ao
acontecimento do riso. As palavras de Verena Alberti vêm ao encontro de nosso
pensamento:
[...] o riso seria simultaneamente um conceito histórico um
objeto a ser apreendido pelo pensamento e um conceito
filosófico um conceito em relação ao qual o próprio pensamento
é pensado. Podemos acrescentar as teorias de Jean Paul e de
Schopenhauer a esse conjunto, porque, para eles, a significação
do riso (o resultado de sua apreensão enquanto objeto do
pensamento) é dada pelo fato de ele se situar em um espaço além
do pensamento sério, necessário ao próprio pensamento. Essa
simultaneidade marca o pensamento moderno sobre o riso, já que,
até esse momento, apreender o significado do riso não era
declarar sua relação com um fundamental não-sério; até esse
momento, o não-sério não era fundamental. (1999, p. 199)
É preciso perceber que, nesse trecho, Verena Alberti se refere ao “sério”
como um conceito pré-estabelecido pela ordem. É nesse sentido que devemos
entender o riso desses filósofos, como um movimento que nos mostra um espaço
além dos limites da convenção ou um espaço que transcende o “sério” e que,
portanto, é necessário conhecer. O riso proposto por Schopenhauer, Jean Paul e
105
Baudelaire é um riso sério, desta vez sem aspas, pois corresponde, de fato, a um
caminho para o “novo”, para o impensado.
Nesse sentido, queremos nos debruçar agora sobre a maneira como esse
riso acontece na prática. Para Umberto Eco, “temos aquilo que Pirandello chama
de cômico quando nasce a ‘percepção do contrário’.” (2006, p. 72) Debruçando-se
sobre o cômico em Pirandello, Eco toma-lhe emprestado um exemplo para
elucidar a idéia de contraste:
Pirandello o exemplo de uma velha, decadente, que se cobre
de cosméticos, se veste como uma mocinha e tinge os cabelos. Ele
diz: “Intuo que aquela velha senhora é o contrário daquilo que uma
velha senhora respeitável deveria ser.” Eis o incidente, a ruptura
das expectativas normais, o senso de superioridade com o qual eu
(que compreendo o erro do outro) rio. (2006, p. 73)
Se, deparados com essa cena, ríssemos, certamente nosso riso seria a
conseqüência da percepção de um disparate, de uma contradição: teríamos nos
dado conta da oposição, da distância mesmo entre a juventude e a velhice. Vale
dizer que a expressão da dúvida em “se ... ríssemos” deve sempre ser mantida,
pois, como vimos, o cômico está no sujeito; não existe nada risível em si mesmo:
existem, sim, situações “aguardando” a ação cognitiva de um sujeito.
Conforme vimos anteriormente, segundo Schopenhauer, é exatamente a
falta de congruência entre a nossa razão e a realidade a causadora do efeito
risível. Assim, o riso irrompe no momento em que nos certificamos do abismo
existente entre aquilo que pensamos ou os nossos conceitos e os fatos
concretos, tal como se afiguram na realidade.
O exemplo de Pirandello, citado por Umberto Eco, certamente contempla
a teoria do riso em Schopenhauer. No entanto, o filósofo para quem o riso é
fruto de uma incongruência ampliaria o comentário final acerca do episódio da
velhinha, questionando, talvez, a questão da superioridade relacionada àquele que
106
ri. Para Schopenhauer, o riso nasce principalmente da percepção de
meu
erro, de
meus
conceitos frente à realidade. Logo, não haveria a sensação de
superioridade do sujeito que ri. Ao contrário disso, seu riso seria justamente a
expressão de sua precariedade racional diante de toda a gama de variações
propostas pela realidade concreta.
Como a explicação do riso deixada por Schopenhauer é bastante filosófica
e abstrata, acabamos sentindo a necessidade de observá-la “funcionando” na
prática. Sendo assim, descreveremos e depois comentaremos dois esquetes
disponíveis na internet, que são encenados na cidade de São Paulo; caracterizam-
se como exemplos extra-literários, dada a própria natureza do tipo de ironia e
de riso analisados. O primeiro deles está inserido num
show
intitulado “Os
melhores do mundo”. Trata-se de um assalto que acabara de acontecer. A cena é
a seguinte: dois policiais, um deles tenente, conversam com o assaltante,
procurando convencê-lo a libertar os reféns.
Toda a conversação se faz muito engraçada quando, logo no início da cena,
percebemos que quem está no comando da situação é o assaltante ainda que os
policiais fiquem repetindo que eles são a autoridade e que existe entre eles
policiais e assaltante uma hierarquia. Na verdade, essa fala, tão
exaustivamente repetida, causa o riso, pois está em contraste com a situação
“real”, caracterizada justamente pela inflexibilidade do assaltante.
Então, como os policiais cometessem muitos erros de português todos
eles explicados com muita propriedade pelo assaltante este decide: para cada
erro de português um refém será assassinado. Os policiais ficam desesperados e
a cena se torna muito mica, porque, agora, eles precisam vigiar a sua fala. Um
deles, considerando a gravidade da situação, decide telefonar para uma
autoridade – e nesse momento, “cai por terra” o teórico poder da polícia. Sugere
um telefonema para o presidente da república, e o outro conclui: “- Melhor não.
Será uma chacina!”
107
No final, o assaltante acaba incorrendo em um erro de português e
comete o suicídio com um tiro. Um dos policiais conclui, para fechar a cena “com
chave de ouro”: “- Ele se auto suicidou-se a si mesmo!” O riso é geral.
O outro esquete que descreveremos é intitulado “Como educar seu filho
na favela” e está inserido no
show
“Terça insana”. É encenado por outros atores,
também excelentes “preparadores” do riso. Aqui, uma líder comunitária lança um
livro cujo título é justamente “Como educar seu filho na favela”. Essa
personagem entra em cena explicando que, na verdade, quem escreveu o livro
foi sua filha, pois ela a líder comunitária é semi-analfabeta. Salienta, porém,
que “ditou tudo direitinho”.
Por meio de um vocabulário todo errado, a personagem da líder
comunitária “dicas” sobre como educar uma criança na favela. Entre tais
sugestões, temos as seguintes: esconder uma comida, botar num lugar mais alto,
pois, segundo a personagem, “um pão que você esconde já é o café do dia
seguinte; uma farinha que você bota a mais pra poder engrossar o feijão; um
açúcar que você deixa de botar num chá [...]”.
A personagem comenta, ainda, situações recorrentes que agravam ainda
mais seu sofrimento, por exemplo, sua filha que começou a comer pasta de
dentes... Outra questão tratada, obviamente pelo viés do humor, é o “problema
da paralisia”; a líder pergunta ao público: “- qual é a dona de casa que nunca se
sentiu uma aleijada no supermercado, sem poder ‘pegar’ aquele produto bom???”
E a cena se desenrola dessa maneira até o final.
Como se vê, nos dois esquetes descritos, encontramos uma forma
interessante de construção do humor, forma esta que dialoga com as teorias
propostas pelos filósofos Schopenhauer, Jean Paul e Baudelaire acerca do riso.
No primeiro caso, o que põe em cena o encontro entre dois policiais e um
assaltante, é possível encontrar uma crítica bastante séria sob a encenação
jocosa dos atores.
108
Para começar, já existe uma oposição entre os nossos conceitos e a
realidade efetiva quando percebemos que quem comanda toda a negociação é o
assaltante. Ou seja, esperamos que a polícia seja sinônimo de ordem e de
segurança, mas somos confrontados com o despreparo completo dos policiais
diante daquela situação. Temos aqui, sem dúvida, a incongruência entre a razão e
a efetividade colocando em cena o riso.
Esse contraste entre os modos abstrato e concreto de assimilarmos o
mundo é cada vez mais acentuado no desenrolar da cena. Assim, quanto mais os
policiais repetem que eles dão as ordens e que, portanto, devem ser respeitados,
mais são vilipendiados pelo assaltante. Os policiais cometem erros de português
e são corrigidos pelo assaltante, que conhece todas as regras gramaticais. Logo,
também somos surpreendidos pela figura do assaltante: nossa razão parece não
conceber a imagem de um “assaltante culto”, no entanto, nós nos deparamos com
ela em cena. Eis outra incongruência, ou um motivo a mais para rirmos.
No segundo esquete o da líder comunitária que lança um livro
encontramos também uma incongruência principal promovendo o riso: a platéia
consulta a sua razão e seleciona alguns assuntos passíveis de ser tratados num
livre intitulado “Como educar seu filho na favela”; é, todavia, “traída”. Ao nos
depararmos com esse título, pensamos (todos, provavelmente) em questões
relacionadas à educação escolar, ao desenvolvimento ético desses cidadãos, na
possibilidade de envolvimento com drogas, tão freqüente em todas as camadas
sociais, entre outros “temas”. O assunto do livro é, no entanto, especificamente,
alimentação. O riso não advém unicamente dessa oposição, contudo. Essa
incongruência desdobra-se em uma outra.
Assim, quando percebemos que o grande tema do livro é “alimentação”, da
mesma forma, criamos expectativas, que são, novamente, negadas. Pensamos,
talvez, na qualidade dos alimentos e ficamos “chocados” no momento em que a
líder comunitária começa a listar as dicas relacionadas à educação de seu filho,
109
entre elas, esconder alimentos, colocá-los em lugares mais altos para as crianças
não comerem tudo, etc. Aqui, sim, o riso irrompe, como resultado de um embate
entre a razão e a realidade concreta.
Trata-se, mais uma vez, do risível como produto da incongruência entre os
nossos conceitos e aquilo que Schopenhauer designou “modo concreto ou
intuitivo” de apreensão do mundo. Não podemos esquecer, ainda, que esse riso é
também fruto da percepção de um sujeito e que, como um riso sério, tem um
propósito. alguns aspectos interessantes que merecem comentário. Se
analisado superficialmente, o esquete “Como educar seu filho na favela”
aparenta insensibilidade e indiferença em relação aos problemas enfrentados
pelos menos favorecidos socialmente.
De fato, é curioso observar a reação das pessoas diante dessa peça.
sempre um grupo que não razão alguma para rir, associando o esquete a uma
espécie de “humor negro”. Na verdade, para alguns estudiosos, não nada que
atrapalhe mais o acontecimento do risível do que o sentimentalismo. Henri
Bergson nos socorre nesse momento. Segundo ele, “o riso não tem maior inimigo
que a emoção” (2001, p. 03). Ele ainda continua:
Numa sociedade de puras inteligências não mais se choraria, mas
talvez ainda se risse; ao passo que almas invariavelmente
sensíveis, harmonizadas em uníssono com a vida, nas quais
qualquer acontecimento se prolongasse em ressonância
sentimental, não conheceriam nem compreenderiam o riso. (2001,
p. 03)
Trata-se de uma discussão extremamente interessante sob vários
aspectos. Em primeiro lugar, Bergson sugere uma curiosa associação entre riso e
inteligência ou, usando um vocábulo de conotação mais neutra, entre riso e razão
e entre choro, lágrimas e emoção. De fato, homens menos sensíveis e mais
110
racionais tendem a rir mais das situações, ainda que sejam marcadas por certa
tragédia.
Desse modo, o riso só acontece se, diante de tal espetáculo, pudermos nos
livrar momentaneamente da emoção a fim de enxergarmos “com olhos mais
livres”. Assim, perceberemos que
sob
a “piada” existe uma intenção séria, uma
preocupação em denunciar a situação drástica vivida por inúmeras famílias
brasileiras. Na verdade, talvez estejamos expressando a idéia errada de que o
riso se contraponha ao sério, como fizeram alguns estudiosos comentados
anteriormente.
Buscando uma forma mais adequada de expressão, a “intenção séria” que
acabamos de mencionar não parece estar
sob
o risível: na realidade, o riso nos
conduz
a essa intenção mais grave de denúncia. Como vimos, é justamente a
quebra de expectativa entre o que esperamos que aconteça e o que de fato se dá
a causadora do riso. O que ocorre de especial no caso do esquete “Como educar
seu filho na favela” é que aquilo que efetivamente “se dá” deve ser também
interpretado pelo viés da ironia.
Dito de outra maneira, a platéia deve perceber uma primeira
incongruência entre o “pensado” e o “efetivo”, todavia, caso a ação cognitiva do
sujeito seja interrompida nesse momento, o que teríamos seria, de fato, ou a
ausência do riso nos mais emotivos, ou um riso de indiferença em relação à
situação apresentada. O sujeito deve, pois, “superar” esse primeiro choque o
que significa deixar a emoção e o julgamento de lado para perceber a crítica
realizada entre as malhas da ironia.
Por conseguinte, temos, no plano que Schopenhauer chama de “realidade
concreta”, uma mãe ensinando outras a “educar” seus filhos escondendo deles os
alimentos; essa declaração é risível, pois, como dissemos, quebra a nossa
expectativa de que algo “sério” fosse retratado. Na verdade, trata-se, sim, de
um assunto sério, contudo, colocado ou construído ironicamente. Logo, se num
111
primeiro momento rimos das declarações “absurdas” da líder comunitária, somos
convidados, posteriormente a refletir sobre o trágico de sua situação. Fica
legitimada, mais uma vez, a necessidade veemente da participação do sujeito na
construção do sentido de textos cuja estrutura é marcada pelo embate de vozes
ou pela dissonância.
Enquanto no primeiro esquete comentado o dos policiais parece haver
apenas uma incongruência entre o conceito que normalmente se tem sobre os
policiais e o que eles, realmente, são, no caso do segundo esquete, a construção
do riso é mais complexa, ao que parece. É claro que a percepção do sujeito sobre
a contradição entre o que
acreditamos ser
a matéria do livro, no segundo
esquete, e o que de fato
é
o assunto do livro é suficiente para ocasionar o
riso, como afirmamos anteriormente. Todavia, aquele riso mais sério, que
Umberto Eco chama de “humorismo culto” (2006, p. 81), este só é possível, nesse
caso, por meio da revelação da ironia.
Assim, merecem comentário alguns aspectos interessantes em relação à
construção do humor. O primeiro deles, já tão citado, é justamente o riso
proposto por Schopenhauer, que é o riso como conseqüência de um contraste
entre nossos conceitos e a realidade concreta. O que nos faz rir é, sem dúvida, a
junção de imagens que têm idéias adicionais contrárias.
Como, após tantas considerações, podemos inferir que a incongruência
apontada no parágrafo anterior é condição essencial para o acontecimento do
riso, seria possível supor que quanto maior for o senso do “belo” no sujeito, mais
ele seria capaz de perceber o “ridículo”. É importante salientar, entretanto, que
essa idéia não deve nos conduzir à imagem de um riso que se opõe ao “sério”, ao
“oficial”. Na verdade, estamos mais próximos da teoria de Schopenhauer quando
compreendemos que o “ridículo” ou o “absurdo” não estão na realidade concreta,
mas, sim, no sujeito, que acredita que sua razão pode dar conta de prever todas
as nuances do mundo efetivo. Conforme explica Verena Alberti,
112
Em Schopenhauer é a razão (a gravidade, o sério) que se torna
ridícula: ela tem a aparência de verdade, porque não é capaz de
alcançar a realidade. Os conceitos pelos quais a razão “pensa” a
realidade estão sempre sujeitos a um desnudamento que revele
sua falsidade, e esse desnudamento nada mais é do que o
objeto do riso. (1999, p. 196, grifos nossos.)
Seguindo esse raciocínio, quanto mais “pensante” e racional for o sujeito,
quanto mais formador de teorias e conceitos, mais suscetível estará ao
acontecimento do riso, pois maior será o choque entre a sua razão e a
efetividade. O momento desse embate o instante de irrupção do riso
corresponde exatamente à oportunidade de alargar a percepção do sujeito que,
buscando compreender o contraste, conclui sobre a necessidade de revisão de
seus conceitos puramente abstratos. Para Verena Alberti,
O estatuto do riso como redentor do pensamento não poderia ser
mais evidente. O riso e o cômico são literalmente indispensáveis
para o conhecimento do mundo e para a apreensão da realidade
plena. Sua positivação é clara: o nada ao qual o riso nos acesso
encerra uma verdade infinita e profunda, em oposição ao mundo
racional e finito da ordem estabelecida. (1999, p. 12)
Estamos, pois, diante do “cômico de contraste”, aquele que se presta à
ampliação do conhecimento, uma vez que é caracterizado pela presença da razão.
O pré-requisito essencial para o acontecimento desse riso é, ao que parece, o
uso da razão: apenas por meio de uma ação cognitiva o sujeito se conta da
distância entre o que pensa e o que, de fato, é. Paradoxalmente, a mesma razão
que se malograda em presença da realidade concreta, conclui sobre a
necessidade de revisão e de alargamento dos conceitos do sujeito.
Após esse riso, nosso conhecimento é maior, uma vez que extrapolamos o
universo das idéias pré-concebidas para acessar outras possibilidades de
113
“verdade”. O riso do contraste promove, portanto, o questionamento e a queda
de algumas convenções, colaborando, assim, com o progresso da razão.
Outro aspecto que nos interessa muito é a relação entre a ironia e o
humor. Semelhante ao que acontece no esquete “Como educar seu filho na
favela”, há muitos casos de construção do riso nos quais a ironia e o cômico estão
tão ligados, que é uma tarefa difícil analisá-los separadamente.
Umberto Eco (2006, p. 63-66) nos fornece um rico exemplo do assunto em
questão em
Entre a mentira e a ironia
. Há nesse livro um estudo acerca do humor
na produção literária do escritor Campanile, e é ele justamente o autor do “caso”
que comentaremos.
Eco cita, então, a obra
Os aspargos e a imortalidade da alma
, de
Campanile, mais especificamente, o pequeno capítulo intitulado “Paganini não
repete”. O capítulo conta a história de um músico chamado Paganini, que acabara
de concluir uma apresentação no salão do “real palácio de Lucca”, e está diante
de um auditório muitíssimo entusiasmado com a sua performance. Então,
Acalmado o fragor dos consensos e enquanto começavam a
circular os refrescos e de todo canto elevava-se um gorjeio
admirativo, a marquesa Zanoni, sentada na primeira fila e de toda
transbordante de rendas venezianas ao redor da peruca
amarelada, disse com a voz cavernosa, fixando o concertista com
um sorriso que se queria sedutor entre as mil rugas de sua velha
pele: “Bis”! Enrolado no fraque, com as madeixas dos cabelos
sobre os olhos, Paganini inclinou-se galantemente, sorriu para a
velha e gentil dama e murmurou à flor dos lábios: “Sinto muito
marquesa, não poder satisfazê-la. A senhora ignora, talvez, que
eu, para defender-me dos pedidos de bis que não acabariam
nunca, tenho uma máxima à qual jamais renunciei nem renunciarei:
Paganini não repete.” (CAMPANILE, Apud ECO, 2006, p. 64)
Apesar da explicação tão educada e clara, a senhora velha e surda
não o ouve. Então, muito efusiva, continua a bater as mãos e a gritar bis “com o
pescoço esticado de uma tartaruga”. (Apud ECO, 2006, p. 64) O músico, com
114
firmeza, diz: “Paganini não repete”. A marquesa não compreende e, percebendo
que Paganini se preparava para colocar o instrumento em sua caixa, grita, aflita:
“Como? E o bis?” Para encurtar a história, o músico é obrigado a repetir no
mínimo mais cinco vezes, gritando, que “Paganini não repete”.
Fica fácil perceber a fina ironia que permeia todo esse episódio: ao
afirmar tantas vezes que “Paganini não repete”, o músico, sem perceber, faz
justamente o contrário do que afirma, ou seja, ele repete uma, duas, três,
inúmeras vezes. Ao mesmo tempo em que o riso acontece, quando ocorre no
leitor a percepção do contrário, temos, também, sem dúvida alguma, a presença
de uma refinada ironia: Paganini, o próprio autor da fala, não percebe a
incongruência; trata-se de uma “ironia de situação”, como tivemos a
oportunidade de estudar. Logo, temos, retratada nessa cena, a espécie de riso
que nos interessa, a saber, o riso como possibilidade de reflexão. Segundo Eco:
É duvidoso, porém, se rimos das contradições entre linguagem e
metalinguagem com que o texto lida, exibindo a própria falência,
ou do fato de que no equívoco do texto vemos o nosso próprio
equívoco de usuários de uma linguagem que nunca consegue
esclarecer se é “meta” ou não. Com Paganini, Campanile está
colocando em cena a história de nós próprios, enredados nas
tramas da linguagem de que somos falantes. Não percebemos, mas
rimos (ou sorrimos) de nós mesmos. (2006, p. 72)
Sobre a obra de Campanile, Umberto Eco conclui que, nesse escritor,
sobressai-se o “cômico como estranhamento”. É interessante perceber que a
inferência de Eco em relação à construção do riso no autor objeto de sua análise
está bastante próxima da teoria da incongruência proposta por Schopenhauer.
A fim de explicar essa idéia de “cômico como estranhamento”, Eco
comenta a visão que Campanile expressa sobre a morte:
115
Campanile extrai da idéia da morte ocasiões para inquietos
sorrisos. A começar por aquele seu personagem juvenil que à
pergunta “Como vai?”, em vez de “Vai-se vivendo”, responde: “Vai-
se morrendo”, e depois explica lucidamente o porquê [...] (2006, p.
108)
Conforme explica Umberto Eco, somos os únicos seres a ter conhecimento
de nossa finitude: “[...] somos a única espécie que, não sendo imortal, sabe que
não o é.” (2006, p. 108). Por incrível que pareça, no entender de Eco, Campanile
extrai o riso dessa “consciência” humana do fim de
seu
fim. Para começar,
temos “consciência racional da morte, todavia, no momento em que nos
deparamos com sua “presença concreta”, agimos de modo insensato, para
Campanile. Assim, segundo este:
Quem vai ao funeral de um amigo ou de um parente tem, no fundo,
a idéia de que está tratando de uma coisa que não lhe diz respeito
pessoalmente. [...] Vêem-se pessoas estupefatas, como se tivesse
acontecido algum fato estranhíssimo que, desde que o mundo é
mundo, nunca antes se produzira. [...] Os visitantes pronunciam
frases que, mesmo vistas com benevolência, é inevitável que
sejam definidas como insensatas. [...] Quanto aos parentes,
repetem frases desprovidas de sentido comum: “Não devia
morrer”; “Quem poderia imaginar?”, e outras, admissíveis
somente se o fenômeno da morte estivesse se apresentando pela
primeira vez no mundo. (Apud ECO, 2006, p. 109)
Logo, se temos consciência de nosso fim, por que nos surpreendemos?
Para Eco, “a surpresa seria lógica se, em vez da notícia de que o amigo morreu,
tivessem recebido como um raio em céu sereno a notícia de que o amigo não
morrerá jamais, por toda a eternidade.” (2006, p. 109-110) Sabedores de que
alguém viveria eternamente, então sim somente nesse contexto as frases
convencionais “Não poderia imaginar!”, “Quem poderia pensar?” ou “Ainda não
posso acreditar!” seriam apropriadas.
116
Por conseguinte, o riso “brota” desse fragmento da obra de Campanile
justamente porque esse escritor estaria nos mostrando o “choque”, a “tensão”
entre os nossos conceitos e a realidade concreta. Analisando o fragmento citado
por Eco, percebemos que o escritor “joga” com o conceito equivocado de morte
que insistimos em manter aceso em nossas mentes a morte como algo “novo”,
“desconhecido” – e a “realidade” sobre esse assunto, que é exatamente o fato de
a morte se caracterizar como um acontecimento que, mal ou bem, faz parte de
nosso cotidiano.
Assim, em face da morte, o homem não deveria se assustar, porém, se
assusta. Não se trata, pois, de um assunto que ele domina apenas no âmbito da
razão e se choca ao perceber seu “conceito de morte” negado pelas várias
nuances da realidade concreta. Absolutamente, não. O homem assimila a idéia de
morte todos os dias, racional e efetivamente. A realidade previamente
conhecida não deveria, portanto, chocá-lo e, contudo, choca. Essa situação é
irônica e tal contraste é risível.
O riso que se sobressai desse trecho de Campanile indo, sem dúvida, ao
encontro de Schopenhauer é, para Eco, “[...] o mais fino, ambíguo e irônico de
nossos sorrisos.” (2006, p. 115). É um riso que caminha ao encontro de
Schopenhauer, pois nos coloca frente a frente com o nosso engano. É, também,
com certeza, um riso irônico, uma vez que, na realidade, não estamos enganados,
não há equívoco algum: conhecemos a morte, apenas não aceitamos a nossa
finitude.
Devemos, ainda, a ambigüidade desse riso ao fato de ser ele, obviamente,
trágico. Não há dúvida de que existe um esgar de tristeza em todos os risos que
buscamos para exemplificar, sobretudo, a teoria de Schopenhauer. Nos esquetes
analisados, tanto os policiais incompetentes, quanto a líder comunitária ou, ainda,
a velhinha personagem de Pirandello que, decrépita, se veste como uma
117
mocinha, todas essas cenas provocam risos que expressam a nossa precariedade
e impotência diante de problemas que sabemos reais.
Minois cita um trecho muito esclarecedor da obra
O mundo como vontade
e representação
. Por meio desse fragmento, é possível entrever a face triste
que parece estar sempre atrelada ao riso sério de Schopenhauer:
Com certeza, esse riso é amargo: o que chamamos de gargalhada
zombeteira parece mostrar triunfalmente ao adversário vencido
quanto os conceitos que ele acalentara estavam em contradição
com a realidade que agora se revela a ele. O riso amargo que nos
escapa, sem querer, quando descobrimos uma realidade que
destrói nossas esperanças mais profundas é a expressão viva do
desacordo que percebemos, nesse momento, entre os
pensamentos que nos inspiraram uma tola confiança nos homens e
na fortuna e a realidade que agora está diante de nós. Aquele que
não leva nada a sério, que não crê em nada e que ri de tudo é um
patife vulgar, cujo riso não tem sentido. De qualquer forma, só
dois tipos de riso: o tolo e o triste. (SCHOPENHAUER, Apud
MINOIS, 2003, p. 516)
Portanto, o riso que procuramos valorizar no decorrer de nossa
investigação o riso de Schopenhauer ou o “cômico sério” de Umberto Eco
pressupõe, sempre, uma atitude filosófica. Ele está, sem dúvida, ligado aos
caminhos tortuosos buscados pelo homem para explicar o mundo. Esse riso
possibilita, por conseguinte, que o homem reconheça, veja e apreenda uma
“realidade outra”, que a “razão ria” aquela instituída pela ordem” não
atinge. Logo, é um riso que torna factível a passagem do “pensado”, “imposto”,
“convencionado” ao impensado e ao novo, alargando o saber do sujeito e
permitindo, conseqüentemente, que ele goze de um pouco mais de liberdade.
Finalizemos com Minois:
O riso tem um poder revolucionário. Melhor: é um verdadeiro
demiurgo, uma potência criativa capaz de ressuscitar os mortos
[...]. É o riso de alívio que arruína os esforços terroristas da
118
pastoral oficial; é a divina surpresa, o relaxamento brutal de
tensão, no qual os analistas vêem uma das principais fontes do
riso. Ele exorciza o medo, sem negar a existência do inferno.
Teologicamente, poder-se-ia dizer que esse castigo por inversão
não é pequeno. Mas o que o torna imperdoável é que ele é
apresentado pelo riso. É em torno do riso que a divisão e o
confronto se efetuam. [...] O riso aparece como uma arma
suprema para superar o medo. Quem ri do inferno pode rir de
tudo. O riso – eis o inimigo – para aqueles que levam tudo a
“sério”. (2003, p. 275)
119
Capítulo 5: Conclusão teórica
Como afirmamos no decorrer do presente trabalho, as modalidades em
questão ironia, paródia e riso nos interessam, sobretudo, no que se refere à
sua capacidade de desencadear o processo de reflexão no sujeito.
Ainda quando, por meio da interpretação da ironia, o sujeito encontra uma
“verdade” próxima ao senso comum, ele chega a isso de maneira diversa. Ou seja,
se tal “verdade” foi assimilada após a revelação da ironia, significa que o sujeito
precisou pôr em ação o seu saber, raciocinando sobre aquele acontecimento.
Portanto, as modalidades estudadas se constituem, sempre, como uma
oportunidade de ampliação do conhecimento, uma vez que motivam o sujeito ao
uso da razão.
No caso específico da ironia e da paródia manifestações que se
singularizam pela preocupação com a palavra examinamos os procedimentos
literários, os efeitos de sentido ocasionados pelo embate de vozes no texto e,
ainda, as formas de edificação dos discursos paródicos e irônicos em textos
estritamente literários.
O riso é, nesse aspecto, um acontecimento ímpar, justamente por não se
tratar de uma “categoria literária”, como ocorre com a paródia e com a ironia,
embora essas modalidades (a paródia e a ironia) não estejam restritas ao âmbito
da literatura. A configuração do riso é diferente. Para Umberto Eco (2006, p.
66): “[...] o cômico pertence à esfera dos sentimentos (ou, se quiserem, à
psicologia e à fisiologia), portanto, falar dele como de categoria literária é um
caso de ‘antimetódica construção doutrinal’”.
Em razão disso, remontamos à Antigüidade clássica e percorremos os
séculos em busca daqueles que estudaram o risível, e encontramos críticos
literários e cientistas, mas, sobretudo, filósofos. Deparamo-nos com teorias as
mais variadas, conforme mostramos nos capítulos anteriores. Após esse
120
percurso de estudo sobre o riso, a paródia e a ironia, é interessante perceber os
pontos de contato entre essas modalidades e, ainda, os aspectos, que, ao
contrário, individualizam essas ocorrências.
A primeira semelhança que comentaremos diz respeito ao fato de que
esses três “acontecimentos” foram e continuam sendo muito temidos. Hegel,
para citar apenas um opositor, considerou a ironia insuportável. Para ele, “o
irônico rebaixa tudo, destrói tudo e não tem caráter: o irônico, como
individualidade genial, consiste no auto-aniquilamento de tudo o que é soberano,
grande e nobre.” (Apud MINOIS, 2003, p. 512)
Em seu julgamento sobre a ironia, Hegel salienta, pois, o pedantismo e o
sentimento de superioridade, supostamente presentes no ironista. Ele reforça,
ainda, a ironia como um tipo de atitude de negação plena, como um discurso
essencialmente niilista. George Minois cita, ainda, outra passagem da obra
Curso
de estética
, de Hegel:
[...] essa é a significação geral da divina e genial ironia, dessa
concentração em si mesmo de um EU para quem todos os elos se
romperam e que pode viver nas delícias do regozijo de si. A
invenção dessa ironia deve-se ao senhor Friedrich von Schlegel e
a muitos outros que, na seqüência, retomaram a tagarelice e ainda
hoje a repisam em nosso ouvidos. (Apud MINOIS, 2003, p. 512)
Como se vê, Hegel tinha aversão à ironia. Conforme estudamos
anteriormente, o riso também ganhou adversários ferrenhos, desde a
Antigüidade até os dias atuais. De acordo com Minois (2003, p. 117),
No período mais arcaico o riso é, antes de tudo, uma expressão
agressiva de zombaria e de triunfo sobre os inimigos. A zombaria
faz parte das invectivas rituais; é uma arma, uma ameaça, eficaz
e temerosa, usada pelos bons e pelos maus. Os livros históricos
fervilham de exemplos: “tu serás a risada dos povos”, “a risada
dos vizinhos”, “a risada dos insensatos” [...].
121
Não podemos perder de vista que, já no século XVIII, encontramos
Thomas Hobbes, que no riso, sempre, a manifestação da superioridade e do
orgulho daquele que ri. Logo, a proximidade entre o riso e a ironia nesse aspecto
é legítima: o ironista e aquele que ri foram considerados e ainda o são
exibidos, vaidosos, diabólicos, indivíduos prontos para escarnecer e humilhar
qualquer um que cruze seu caminho. Segundo Minois:
O diabo é ironista porque é um grande ilusionista, o grande
mágico. Nada existe verdadeiramente, nada é realmente sério,
tudo se presta ao riso. O ironista termina por flutuar entre o real
e o irreal, entre o autêntico e o virtual. Ele esvazia o conteúdo
objetivo e reduz o mundo a palavras. (2003, p. 436, grifos
nossos.)
François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire (1694-1778),
exerceu, em sua época, sem dúvida, esse papel de gênio satírico e, pois, temido
e de inimigo implacável de todas as formas de manifestação dos dogmatismos.
Na obra
Contos e novelas: Voltaire
, encontramos o seguinte a respeito desse
filósofo:
Foi o brilhante vulgarizador das idéias inglesas nas suas
Cartas
filosóficas
. E o mais impiedoso demolidor dos abusos do antigo
regime, dos dogmas da religião revelada no seu dicionário portátil.
É aí, na polêmica, que se depara o verdadeiro gênio de Voltaire;
ele brinca, se irrita, faz prodígios de espírito. Pode-se não
apreciar as suas idéias, pode-se mesmo detestá-las, mas é
impossível não se inclinar diante de sua arte endiabrada e
fremente. (2005, p. 69)
Segundo Minois, “aos olhos de Voltaire, a zombaria é a melhor aliada da
razão, o grande meio de diminuir o número de maníacos, fanáticos, entusiastas,
sectários: ele os mata pelo ridículo.” (2003, p. 430) Estamos, com certeza,
diante de um riso crítico, de negação às verdades absolutas, de um riso de
122
deboche às idéias pré-concebidas. Podemos compreender, pois, as causas que
explicam tanto temor e ódio dirigidos a esse filósofo. Ainda em
Contos e novelas:
Voltaire
, lemos:
Fez, com efeito, de seu riso não mais a leve espuma de que fala
em uma de suas cartas, e que ferve na taça erguida, mas a
máquina infernal que se colocou no velho mundo de antes de 1789
como uma carga de dinamite e o fez saltar pelos ares. E isso, mais
seguramente por certo do que Rousseau com toda a sua
eloqüência proletária e sua dialética feroz. (2005, p. 70)
É compreensível, pois, que aos discursos caracterizados pela ironia e pelo
riso tenha-se associado a idéia de orgulho e vaidade, e que os autores que dela
lançaram mão, como Voltaire, tenham sido odiados e temidos. Entretanto, o que
nos interessa é justamente validar essas modalidades como procedimentos
sérios, capazes de ampliar o conhecimento, propondo novas significações para o
mundo, por meio do uso da razão.
A paródia, por sua vez, também não se manteve nem um pouco distante
das críticas. Como dissemos no capítulo em que tratamos dessa modalidade, os
parodistas foram acusados de não serem originais, e de produzirem uma arte
parasitária e derivativa. Tanta afetação dirigida à paródia pode ter um
motivo: ela é uma espécie de recusa, como o riso e a ironia.
Não podemos esquecer, contudo, que, recusando, a paródia reafirma;
negando, prolonga a vida do texto parodiado: e essa é sua maior ironia. Sobre ser
a paródia uma modalidade tão temida quanto a ironia e o riso, basta dizer que o
próprio Voltaire paladino da zombaria não suportou ser parodiado.
Aproveitou-se de sua influência e conseguiu proibir paródias de algumas de suas
peças, pois o filósofo as considerava “sátiras odiosas”. (MINOIS, 2003, p. 432)
A relevância do sujeito em textos ou situações caracterizados pela ironia,
paródia ou pelo riso é, com certeza, o ponto de contato mais importante entre
essas modalidades. Tais textos, marcados por uma natureza dissonante e
123
contraditória, clamam pela participação do leitor/receptor na construção do
sentido e essa é, indubitavelmente, uma forte semelhança entre essas
modalidades.
Pensemos, em primeiro lugar, nos textos paródicos e irônicos. É curioso
constatar que, neles, quase sempre, o leitor não é apenas convidado a participar
da construção do sentido, mas sim, convocado. Como vimos, caso o sujeito não
colabore na estruturão do significado, não acessará o “sentido pleno” proposto
– e implicitado – por essas categorias.
Tanto a ironia quanto a paródia são caracterizadas por apresentarem uma
duplicidade em sua estrutura. Assim, o receptor desses textos deverá estar
atento a fim de perceber esses “discursos” que se encontram em tensão, caso
contrário, o “sentido maior” não se estabelecerá. Para Linda Hutcheon,
A ironia é, por assim dizer, uma forma sofisticada de expressão.
A paródia é igualmente um gênero sofisticado nas exigências que
faz aos seus praticantes e intérpretes. O codificador e, depois, o
descodificador, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de
textos que incorpore o antigo no novo. A paródia é uma síntese
bitextual, ao contrário de formas mais monotextuais, como o
pastiche, que acentuam a semelhança e não a diferença. (1985, p.
50)
Desse modo, ironia e paródia apresentam uma “voz” explícita, superficial,
e outra implícita, que aparece como plano de fundo. Em relação a essa segunda
voz implícita, o sentido provém do contexto, no caso da ironia, e do próprio
texto, no caso da paródia. No entender de Hutcheon, “O sentido final da ironia
ou da paródia reside no reconhecimento da sobreposição desses níveis.” (1985, p.
51)
Para que se entendam melhor as semelhanças entre ironia e paródia, faz-
se necesrio retomar algumas palavras ditas anteriormente acerca da ironia.
124
Assim, foi comentado que essa categoria possui duas importantes funções: uma
semântica contrastante, e outra, pragmática avaliadora.
A primeira deve ser entendida como um assinalar de diferenças de
sentido; desse modo, essa função (a semântica contrastante) se origina na
sobreposição de contextos semânticos o que é afirmado e o que é intencionado
pelo produtor daquele discurso. A segunda função, geralmente esquecida,
segundo Hutcheon, - por parecer óbvia demais é, no entanto, extremamente
importante, pois estabelece a avaliação, o julgamento, propriedades inerentes a
quase todas as manifestações irônicas.
Como vimos no capítulo 2, não se pode perder de vista que essas funções,
na maioria dos casos, se complementam: é comum, pois, que o ironista parta da
oposição semântica e chegue à atitude avaliadora pretendida. Entretanto, de
acordo com as intenções do produtor do texto, uma dessas funções pode ser
trabalhada de maneira a se tornar mais saliente do que a outra. Os dois casos
comentados aqui estão exemplificados no capítulo desse trabalho sobre as
funções da ironia.
Dito isso, é possível estabelecer uma semelhança essencial entre a paródia
e a ironia, que está relacionada à importância do sujeito como “receptor ativo”:
ambas marcam a diferença por meio da sobreposição de contextos. De acordo
com Hutcheon:
Dada a estrutura formal da paródia, [...] a ironia pode ser vista
em operação a um nível microcósmico (semântico) da mesma
maneira que a paródia a um nível macrocósmico (textual), porque
também a paródia é um assinalar da diferença, e igualmente por
meio de sobreposição (desta vez de contextos textuais, em vez
de semânticos). (1985, p. 74)
Logo, ambas ironia e paródia sinalizam o discurso sub-reptício em
detrimento do discurso mostrado, explícito, fornecido “tranqüilamente” ao
125
leitor; isso significa que o receptor de qualquer mensagem sentirá mais
facilidade em apreender um sentido ou uma voz que esteja na superfície do
texto, o que não é o caso da paródia e da ironia.
No caso de textos irônicos e paródicos e essa é a principal semelhança
entre essas categorias – o leitor precisa decifrar as marcas deixadas pelo
produtor na “superfície” desses textos a fim de acessar um sentido “oculto”,
velado, que, muitas vezes, tende a negar o sentido superficial.
Umberto Eco, em seu livro intitulado
Entre a mentira e a ironia
, também
salienta a importância da participação do receptor na edificação do significado.
Ele faz o seguinte comentário acerca do escritor Campanile, objeto de seu
estudo nessa obra: “Hoje se compreende melhor a natureza do cômico
campaniliano, à luz de tantos estudos de pragmática da comunicação, como uma
estratégia fundada sobre o implícito que exige mútua cooperação dos falantes
[...]” (2006, p. 78, grifos nossos)
Umberto Eco cita, ainda, um diálogo presente na obra
Tragedie
, de
Campanile, a fim de exemplificar o que comentamos anteriormente: “- Com
licença, eu sou Pericle Fischetti. E o senhor?” “- Eu, não”. (Apud ECO, 2006, p.
78) Como se vê, trata-se de um ótimo exemplo de cooperação ausente, que acaba
ocasionando o riso.
No caso da ironia, vimos que a estudiosa Linda Hutcheon (2000, p. 28)
chega mesmo a questionar a nomeação do “ironista”: não seria ele o
receptor/interpretador da ironia? Afinal, o receptor de um texto é justamente
aquele que irá - ou não desvendar a sua estrutura dicotômica e lhe atribuir um
sentido irônico. Segundo Hutcheon, “[...] esse processo produtivo, ativo, de
atribuição e interpretação, envolve ele mesmo um ato intencional, de inferência.”
(2000, p. 28). É preciso supor, inclusive, alguns interpretadores considerando um
texto irônico “ao pé-da-letra”, ou seja, lendo-o em seu sentido literal, sem se
dar conta de sua ambivalência.
126
Conforme comentamos, em relação à paródia, o leitor não tem menos
trabalho. Ele deve perceber a duplicidade que sustenta o texto paródico, caso
contrário, perderá parte relevante de sua significação. Logo, também não é
possível pensar em paródia sem a participação essencial do leitor, que empresta
seu saber ao texto e aciona seu conhecimento de mundo a fim de localizar a
dissonância subjacente àquele discurso.
Seguindo esse raciocínio, fica explicada a razão em que se baseia
Hutcheon quando afirma que textos paródicos e irônicos assinalam a diferença
a ironia, uma diferença semântica, e a paródia, textual. Sendo assim, a paródia
se aproxima da ironia sobretudo graças à função semântica contrastante, que se
faz sempre presente na ironia, e que pode aparecer também na paródia.
Conforme a mesma estudiosa,
Devido a essa semelhança estrutural, [...] a paródia pode servir-
se, fácil e naturalmente, da ironia como mecanismo retórico
preferido e até privilegiado. A patente recusa pela ironia da
univocalidade semântica equipara-se à recusa pela paródia da
unitextualidade estrutural. (1985, p. 74-5, grifos nossos.)
Por conseguinte, a proximidade estrutural entre paródia e ironia é tanta,
como se pôde observar, que, não raro, a paródia utiliza a ironia para cumprir seus
propósitos de acordo com o contexto. Isso poderá ser observado no capítulo de
análise das obras. Ainda para Hutcheon:
Trata-se de um resultado da dupla estrutura de sobreposição
comum da paródia e da ironia, que não obstante, assinala
paradoxalmente diferença em termos semânticos ou textuais.
Esta dependência diferencial, ou mistura de duplicação e
diferenciação, quer dizer que a paródia funciona
intertextualmente como a ironia funciona intratextualmente:
ambas ecoam para marcar mais diferença que semelhança.
(HUTCHEON, 1985, p. 84)
127
A semelhança que notamos entre ironia e paródia a relevância da
participação do sujeito na criação do sentido – também se verifica em relação ao
riso. Assim, o tipo de riso valorizado pelo presente trabalho, aquele marcado
pela contradição, ambigüidade e incongruência, também convoca a participação
do receptor. Ora, uma vez constituído pela tensão, pelo elemento dual e eis
aqui mais uma semelhança com a ironia e a paródia esse riso carece de um
sujeito que atualize suas “feições opostas”, reconhecendo a pluralidade
motivadora do sentido. Para Ângela Maria Dias, estudiosa a que já nos referimos
anteriormente, “[...] talvez pudéssemos sugerir que a percepção da diferença,
que o reconhecimento do plural, do turbulento, do desigual, implícitos numa
espécie de conciliação, configuram o clima propício à instauração do humor.”
(1981, p. 38, grifos nossos)
Não podemos deixar de citar aqui, mais uma vez, a teoria do riso proposta
por Jean Paul, estudioso alemão do culo XVIII, para quem o cômico não se
localiza no objeto, mas sim, no sujeito. Jean Paul salienta, por conseguinte, a
ação do sujeito, que direciona seu conhecimento a uma situação específica,
produzindo o cômico.
Estudamos também Baudelaire e vimos que, além de valorizar o sujeito
como “produtor” do riso, para ele, esse “acontecimento” o riso jamais é
desprovido de intenção. Desse modo, assim como não se “faz” ironias e paródias
à toa, o riso também é marcado, sempre, para Baudelaire, por um propósito. Ora,
parece que salientar a ação cognitiva do sujeito pressupõe, de fato, uma
intenção.
Como foi dito antes, essa discussão acerca da importância do sujeito nos
remete, sem dúvida alguma, à problemática da ironia romântica. Pensando de
maneira prática nas teorias de Jean Paul e de Baudelaire acerca do riso, temos o
seguinte: do primeiro, como tivemos a oportunidade de saber, nos chega o
legado da supremacia do sujeito, e do segundo, aprendemos, sobretudo, que esse
128
sujeito valorizado como “produtor do riso” sempre que põe seu saber em
movimento, o faz visando atingir um objetivo específico.
Bem, o que é a ironia romântica senão conforme estudamos no capítulo
2.1 a primazia do indivíduo (criador) em relação à sua obra (objeto criado)? A
ironia romântica se caracteriza, sempre, por um sujeito “intrometido” na
seqüência dos fatos narrados, promovendo a ruptura da narrativa, a fim de
colocar em prática a sua intenção. Trata-se, pois, segundo Volobuef (1999, p. 90-
91), da “ascendência do autor em relação à obra”. O acontecimento do riso em
Jean Paul e Baudelaire se configura de modo muito semelhante: é marcado pela
supremacia do sujeito em relação ao objeto do riso. Logo, no entender desses
filósofos, uma situação jamais é risível em si mesma: ela aguarda a ação cognitiva
de um sujeito.
É válido reiterar que Jean Paul vive o intenso “Sturm und Drang”,
movimento pré-romântico alemão, cuja marca fundamental é justamente a
ênfase na força criadora do indivíduo livre. Por conseguinte, é até mesmo natural
que esse momento literário se caracterize por inúmeras ocorrências de ironia
romântica e, ainda, que no âmbito filosófico se sobressaia a teoria do riso que
acabamos de comentar.
É legítima, portanto, a proximidade entre o riso de Jean Paul e Baudelaire
e certamente de Schopenhauer e a ironia romântica. Quando retomamos a
teoria de Schopenhauer, então, as semelhanças se tornam ainda mais evidentes.
Basta que recordemos que esse filósofo propõe o entendimento do riso como
fruto de uma incongruência. Ora, a ironia romântica, ela mesma, não toma parte
em um jogo sempre interessante de contrastes? Entre o que o leitor supõe
encontrar na obra literária – verossimilhança, ilusão, ficção – e as manifestações
de um sujeito que “quebra” por assim dizer essa expectativa não uma
incongruência?
129
Dito de outra maneira, as intervenções dessa voz que interrompe o fio
narrativo para tecer comentários que muitas vezes não parecem se relacionar
com a história narrada nunca são completamente previstas pelo leitor. Nesse
sentido, é evidente que em tais momentos momentos de ironia romântica
ocorre um choque ou uma quebra entre o que o leitor imaginava encontrar e o
que ele, de fato, encontra. Em face da ironia romântica, não é raro que riamos.
Esse riso que provém da tensão fermentada pela ironia romântica é,
indubitavelmente, o riso de Schopenhauer, inclusive porque nos possibilita a
ampliação do conhecimento, como discutiremos no final desse capítulo.
A necessidade de se analisar mais a ironia romântica surge, ainda, de uma
semelhança entre esta e a paródia. Como percebemos, ao falar de ironia, riso
e paródia, nos situamos no terreno da ambigüidade e, nesse sentido, essas
categorias sempre se aproximam.
Conforme dissemos, tanto a ironia em seu sentido mais comum, ou
seja, de um significante para dois significados como a paródia atuam em dois
níveis: um primeiro, superficial, e um segundo, implícito. Em textos irônicos e
também em textos paródicos, o sentido final é, pois, resultado do
reconhecimento da sobreposição desses dois níveis. Pensando nisso, é pertinente
concluir, ao que parece, que todo texto paródico é também irônico, que o
reconhecimento do embate de dois discursos ou seja, o reconhecimento da
ironia – nos leva à paródia. Portanto, a paródia se mostra por meio da ironia.
Se a ironia romântica constitui-se como uma das inúmeras possibilidades
de manifestação da ironia em seu sentido mais amplo um significante para dois
significados qual é, de fato, a relação entre a paródia e a ironia romântica? Na
verdade, quando o narrador se mostra, abandonando sua posição inicial de
“manipulador distante” de suas personagens, estabelece a duplicidade em seu
relato.
130
Isso se porque o leitor, no momento em que o narrador projeta sua
face, se encontra diante de duas vozes a de um narrador “objetivo” e a de um
legítimo “contador de histórias”. Tal é, sem dúvida, a oposição comentada
anteriormente: de um lado, o que o leitor presume encontrar (um narrador
objetivo) e, de outro, aquilo com que o leitor, de fato, se depara (um legítimo
contador de histórias). Não é, de fato, irônico – e risível que, em meio a tantas
tentativas de se instaurar a verossimilhança no relato, surja essa “voz estranha”
que, em se mostrando, de certa forma, contribui para desnudar o caráter
ficcional da narrativa?
Quando um escritor reflete sobre o processo de construção de seu texto
e revela o fazer literário ao leitor, por meio de narradores interventivos -
realizando, pois, a ironia romântica - ele não estará parodiando uma estética
literária mais “fechada”, mais “clássica”, que não prevê esse tipo de intromiso
do narrador em seu relato? Parece ser esse um interessante ponto de contato
entre a paródia e a ironia romântica. Há, ainda, outro.
De acordo com Hutcheon “a ironia romântica, evidentemente, serviu
menos para subverter a ilusão do que para criar uma nova ilusão. [...] Esta mesma
espécie de ironia torna-se um dos mais importantes meios de criar novos níveis
de ilusão.” (1985, p. 45) Assim, paradoxalmente, ao apontar para fora da
narração, o narrador está reforçando, tornando mais autêntica e, pois, mais
verossímil a própria ficção que edifica.
Seguindo esse raciocínio, conforme foi comentado no capítulo 2.1, a ironia
romântica conduz o leitor a efeitos de sentido contraditórios: se, por um lado,
manifestando-se, o narrador quebra o compromisso de criar a ilusão da realidade
ou, em outras palavras, diminui a verossimilhança, por outro, trazendo, muitas
vezes, informações do exterior (culturais, históricas, entre outras), para o
interior da obra, o narrador cria certa “ilusão de veracidade”.
131
Vimos no capítulo 3.1 algo muito semelhante em relação à paródia. Essa
modalidade, como a ironia romântica, também põe em cena efeitos de sentido
dissonantes, porque, ao mesmo tempo, nega e valoriza o conteúdo parodiado.
Portanto, é legítimo inferir que a ironia romântica e também a paródia nos
conduzem à uma ironia mais profunda. No caso da paródia, as modalidades que
estamos estudando estão mesmo emaranhadas: como dissemos, a identificação
da ironia nos direciona à paródia e, a compreensão mais minuciosa da paródia nos
leva, novamente, a uma ironia.
Ainda segundo Linda Hutcheon (1985, p. 32), a ironia romântica pode ser
considerada um tipo de paródia. Se entendemos a ironia romântica como uma
espécie de oportunidade de reflexão e de questionamento sobre o conceito que
se tinha de “obra literária”, ela se configura como um tipo de paródia. Em outras
palavras, se, ao fazer uso das intromissões no relato, o “narrador-autor” põe em
cheque o conceito mais clássico de “obra literária”, marcado sobretudo pela
objetividade ou pela “ausência” do narrador, estamos diante de uma paródia. E,
como paródia, cria um efeito de sentido irônico: o questionamento e a
legitimação do conceito clássico de “obra literária”.
Bella Jozef, comentando a obra
O jogo da amarelinha
, de Cortázar, onde
se expressa a problemática da ironia romântica, afirma o seguinte:
O problema do narrar é discutido no próprio processo de
realização do conto, como uma tomada de consciência e
questionamento, no nível estrutural, do processo de enunciação. O
narrador-autor faz uma reflexão sobre o fazer literário, sobre a
escrita ficcional, sobre este espaço criador que permite a
irrealidade também em segundo grau de modo a fazer
coexistirem vários planos da ficção e romper a empatia entre o
mundo do livro e o mundo do leitor. O exterior inscreve-se no
espaço do texto. A partir desse espaço intertextual, os livros se
lêem e se escrevem, deixando lugar a um texto real que seria a
explicação do mundo [...] (1980, p. 63, grifos nossos.)
132
Como se vê, a ironia romântica, realmente, promove a quebra entre o que o
leitor supunha encontrar, por meio de sua razão, e o que ele, efetivamente,
encontra. Conforme dissemos, essa quebra de expectativa nos conduz, quase
sempre, ao riso: fomos surpreendidos. Ainda que o leitor pressuponha uma
intervenção, movido pelo estilo de um determinado escritor, ele o leitor
nunca poderá prever exatamente o teor da intromissão, ou seja, o assunto
abordado por ela. Uma vez que é esse um “riso culto” ou um riso aos moldes de
Jean Paul, Baudelaire e Schopenhauer, ele nos leva a uma reflexão que varia
muito, conforme os objetivos do autor.
Em relação ao que acabamos de comentar, pode ser uma reflexão sobre o
próprio conceito de “obra literária”. Se pensarmos em
O Arco de Sant’Ana
, cujos
fragmentos foram citados no capítulo 2.1, a voz que se expressa por meio da
ironia romântica, como vimos, tece críticas pesadas ao seu momento histórico, à
burguesia e até mesmo ao acontecimento da Revolução francesa. Trata-se da voz
de um
eu
que não pode se calar, que necessita emitir os
seus
juízos, as
suas
dores diante de
sua
sociedade. Nessa obra, a ironia romântica revela, pois, os
anseios do sujeito histórico da segunda metade do século XVIII, e,
conseqüentemente, cria um novo conceito de “obra de arte”, marcada agora pela
preeminência do
eu
.
Portanto, teoricamente, deparado com algo que o surpreende, o sujeito,
por meio de uma ação cognitiva, tentará compreender as razões dessa surpresa,
os propósitos de tal intervenção do narrador no relato ou, ainda, em que medida
o discurso desse “narrador intrometido” se relaciona com a história narrada.
Obviamente, em busca de tantas considerações, ocorre a ampliação do
conhecimento, instaurada, sem dúvida, pelo indivíduo que “enxerga”, nessa
ordem, a ironia, a paródia e, conseqüentemente, experimenta o risível.
Após todas essas reflexões, nos resta inferir que discursos irônicos,
paródicos ou marcados pelo riso são, de fato, exigentes. Tão exigentes que não
133
podemos concebê-los sem o sujeito, que é o “agente catalisador” do riso, da
paródia e da ironia. Podemos dizer que, sem a ação cognitiva do sujeito, tais
discursos perdem a supremacia, descem à categoria dos discursos simples,
objetivos e inofensivos. Pior ainda, na verdade: se a ironia, a paródia e o riso
carregam em sua essência um embate de vozes, uma tensão implícita, e estes não
são descobertos pelo sujeito, tais discursos não são sequer inofensivos,
simplesmente porque é como se não existissem.
Isso sem contar que, para participar da construção do sentido, o sujeito
precisa acionar seu repertório ou seu conhecimento de mundo. Tal condição vale
para as três modalidades, mas principalmente para a paródia: como reconhecer
que se está diante de uma paródia se o texto parodiado não faz parte do
repertório do sujeito? Impossível.
Logo, a experiência da literatura exige um texto, um leitor e as
inferências a que chega esse receptor de acordo com os sinais deixados pelo
produtor daquele texto. Para que possamos compreender o quanto a paródia é
exigente nesse aspecto, pensemos também na intertextualidade. Linda Hutcheon
argumenta que, no caso da intertextualidade, o leitor é livre para realizar
associações entre os textos, mais ou menos ao acaso.
Na paródia, o procedimento é um pouco diferente, uma vez que essas
aproximações entre textos diferentes ou distantes temporalmente costumam
ser controladas. Hutcheon explica:
[...] no caso da paródia, esses agrupamentos são cuidadosamente
controlados, orientando “passos inferenciais”. Como leitores ou
espectadores ou ouvintes que descodificam estruturas paródicas,
atuamos também como decodificadores da intenção codificada.
(1985, p. 35)
Desse modo, enquanto na intertextualidade o leitor associa textos
livremente, limitado apenas pelo seu conhecimento de mundo, um texto paródico
134
requer desse leitor uma leitura mais condicionada e, conseqüentemente, mais
controlada. Por conseguinte, a paródia se constitui como um tipo de discurso
extremo nesse sentido, pois as suas imposições são deliberadas e inclusive
fundamentais para o seu entendimento. Para Hutcheon,
[...] a paródia exige que a competência semiótica e a
intencionalidade de um codificador inferido sejam pressupostas.
Dessa forma, embora a minha teoria da paródia seja intertextual
na sua conclusão tanto do descodificador como do texto, o seu
contexto enunciativo é ainda mais vasto: tanto a codificação como
o compartilhar de códigos entre produtor e receptor são centrais
[...] (1985, p. 54)
Assim, se defrontado com uma ocorrência de intertextualidade, o leitor é
livre que a intertextualidade não deixa de ser um ato de descodificação de
textos à luz de outros textos; a paródia é, nesse sentido, mais exigente: deixa
propositalmente pistas, marcas, sinais, que devem necessariamente ser seguidos
pelo leitor a fim de que o “sentido essencial” seja edificado. A intertextualidade
é, pois, mais aberta; a paródia, mais fechada e exigente.
Como dissemos antes, a paródia se mostra pela ironia. Sendo assim, antes
de chegar à paródia, o sujeito precisa perceber o jogo irônico entre o texto mais
explícito e o “subtexto”, ou seja, ele precisa desvelar o que está mascarado pela
ironia. Logo, entre as “pistas”, “marcas” e “sinais” deixados pelo escritor de uma
paródia está, certamente, a ironia, que aguarda ser revelada.
Pensando dessa forma, parece pertinente dizer que a ironia é também,
como a paródia, uma modalidade bastante exigente e controladora. Ora, nesses
casos, se o sujeito não desvenda a ironia debaixo de seus olhos, não pode
compreender que se encontra diante de um texto paródico.
Assim, embora Hutcheon (2000, p. 41) explique, conforme comentamos no
capítulo 2.3, que a ironia não cria comunidades, mas sim, que as comunidades é
135
que existem previamente, possibilitando o acontecimento da ironia, devemos
avaliar melhor essa questão. Afinal, no caso da ironia que nos conduz à paródia,
será inevitável a formação de dois grupos: o dos que decodificaram a ironia e
acessaram a paródia, e o grupo que não se deu conta da dissonância subjacente
àquele texto. O passo seguinte pode ser, sem dúvida, a instituição de
hierarquias. Esse procedimento pode valer também para os casos em que apenas
a ironia esteja envolvida.
Outros tipos de discursos como a imitação, a citação e até a alusão são
também confundidos com a paródia. Hutcheon explica que todas essas formas
são, entretanto, limitadas se comparadas à paródia. Deve ficar claro, porém, que
o reconhecimento da paródia começa também com o reconhecimento de uma
intertextualidade:
Ao contrário da imitação, da citação ou até da alusão, a paródia
exige distância irônica e crítica. É verdade que, se o
descodificador não reparar ou não conseguir identificar uma
alusão ou citação intencionais, limitar-se-á a naturalizá-la,
adaptando-a ao contexto da obra no seu todo. Na forma mais
alargada da paródia que temos vindo a considerar, esta
naturalização eliminaria uma parte significativa tanto da forma,
como do conteúdo do texto. A identidade estrutural do texto
como paródia depende, portanto, da coincidência, ao nível da
estratégia, da descodificação (reconhecimento e interpretação) e
da codificação. (1985, p. 50-1, grifos nossos.)
Portanto, diante de um texto paródico, o leitor deve estar atento a todos
os sinais. Conforme explicou Hutcheon, a construção da paródia e,
conseqüentemente, o acesso à “verdade” que o codificador pretendeu transmitir
se inicia com a percepção desses pequenos “passos inferenciais”, que podem se
expressar por meio de intertextualidades, e, principalmente, pela revelação da
ironia. Para Wolfgang Iser,
136
Os modelos textuais descrevem apenas um pólo da situação
comunicativa. Pois o repertório e as estratégias textuais se
limitam a esboçar e a pré-estruturar o potencial do texto; caberá
ao leitor atualizá-lo para construir o objeto estético. A
estrutura do texto e a estrutura do ato constituem portanto os
dois pólos da situação comunicativa; esta se cumpre à medida que
o texto se faz presente no leitor como correlato da consciência.
Tal transferência do texto para a consciência do leitor é
freqüentemente vista como algo produzido somente pelo texto.
Não dúvida de que o texto inicia sua própria transferência,
mas esta só será bem sucedida se o texto conseguir ativar certas
disposições da consciência – a capacidade de apreensão e de
processamento. Referindo-se a normas e valores, como por
exemplo o comportamento social de seus possíveis leitores, o
texto estimula os atos que originam sua compreensão. Se o texto
se completa quando o seu sentido é constituído pelo leitor, ele
indica o que deve ser produzido; em conseqüência, ele próprio não
pode ser o resultado. [...] Por esta razão, é preciso descrever o
processo da leitura como interação dinâmica entre texto e leitor.
(1999, p. 9-10, grifos nossos.)
O fragmento citado acima se refere aos textos de uma maneira geral, ou
seja, a qualquer ato comunicativo que aguarda, por assim dizer, a chegada de um
leitor que irá atualizá-lo. Bem, se todo “modelo textual”, como descreveu
Wolfgang Iser, depende da ação cognitiva de um sujeito, uma vez que a situação
comunicativa “se cumpre à medida que o texto se faz presente no leitor como
correlato da consciência”, o que dizer de textos marcados por uma ambigüidade
intencionalmente contraditória? É pertinente afirmar, como o fizemos, que
tais textos são muito mais insistentes em relação ao convite para a participação
de um sujeito na construção do sentido.
Embora saibamos que o leitor, fazendo uso de sua razão, confere
significado aos textos que lhe chegam, não se caracterizando, pois, como um
mero decodificador, textos irônicos e paródicos são, como vimos, mais
controladores. A ironia, sobretudo, é mais exigente, pois está na “base” da
paródia, afinal, vimos que a paródia se mostra pela ironia. Assim, aparentemente,
137
diante de um “acontecimento” irônico, devemos optar ou pelo literal ou pela “voz”
subjacente a esse texto literal.
Sabemos, contudo, que a ironia é sempre um embate de vozes. Assim, cabe
ao seu receptor caracterizar-se, ou não, como um “receptor ideal”, que é,
justamente, aquele capaz de perceber a duplicidade do texto com o qual se
depara. Esse receptor deverá reconhecer, ainda, que o “sentido final”
pretendido é resultado desse choque entre o literal e o implícito. Desse modo,
diante de um texto cuja estrutura é dicotômica, não parece que precisamos
simplesmente optar por “isso” ou por “aquilo”. Na verdade, a ironia não
corresponde ao “sentido velado”, mas sim, ao embate entre aquilo que nos chega
literalmente e esse sentido implícito. Isso significa que o “literal” nos conduz ao
“velado” e, então, assimilamos a dissonância. Sabemos que essa “condução”
carece, sempre, de um contexto. Exatamente nisso reside a ironia.
Desse modo, ainda que diante de um enunciado irônico o sujeito não tenha
necessariamente de optar entre “isso” – o sentido literal – ou “aquilo” – o sentido
implícito ele terá de notar a tensão inerente a esse discurso. Logo, se a ironia
não impõe ao sujeito optar pelo “óbvioou pelo “sub-reptício”, não deixa, mesmo
assim, de ser rigorosa, uma vez que impõe o reconhecimento da contradição
entre esses dois sentidos. Conforme dissemos, o que possibilita tal percepção é
sempre o contexto. É natural que, em muitos casos, a ironia leve ao riso o “riso
sério”, tão mencionado neste capítulo, sempre fruto de uma incongruência.
Portanto, a ironia parece realmente ser o princípio dos “fenômenos” do
riso e da paródia. Assim, as modalidades
riso
e
paródia
guardam, sempre, em seu
cerne, uma pitada significativa de ironia e, por essa razão, é legítimo afirmar que
esta se constitui como um fator de estímulo importante para a irrupção do riso e
da paródia.
É fundamental pensar, ainda, que na origem dessas três categorias não
temos apenas um contraste. Poderíamos citar inúmeras ocorrências, literárias ou
138
não, marcadas por uma estrutura dissonante, mas que, de fato, não se
constituem como enunciados irônicos. Bem, seguindo o nosso raciocínio, se não há
ironia, provavelmente não haverá paródia ou riso. Se nem toda oposição se
configura como uma ironia, o que especificaria um contraste irônico? Que
espécie de característica, associada a idéias dissonantes, produziria a ironia?
Olhamos para uma parede e percebemos que metade dela foi pintada de
branco e a outra metade, de preto: não se trata, obviamente, de uma ironia.
Numa discussão acirrada sobre um tema polêmico, vemos pessoas diferentes
defendendo, ao mesmo tempo, opiniões contrárias e isso, definitivamente, não se
constitui como uma ironia. Supondo que o tema da discussão, por ser polêmico,
nos levasse principalmente a duas possibilidades opostas de “solução”; seria
possível, ainda, que uma mesma pessoa, mais diplomática, apontasse aspectos
positivos inerentes às duas possibilidades contraditórias entre si: isso também
não seria necessariamente um caso de ironia.
Entretanto, se essa pessoa diplomática, conhecida justamente por sua
reserva e discrição em assuntos controversos, defender de modo obstinado uma
das possíveis soluções, atacando com veemência a outra possibilidade, então sim,
podemos estar diante de uma ironia. Ou, pelo contrário, se um sujeito sempre
acostumado a tomar partido, a posicionar-se claramente, age de modo a ficar
“em cima do muro”, também aqui é provável que estejamos observando uma
situação irônica. O que parece, pois, tornar singular o contraste irônico é
justamente a quebra da expectativa, a surpresa.
Portanto, refletindo sobre tais indagações, chegamos a uma possibilidade
de resposta, que, de fato, vem ao encontro das idéias principais estudadas na
presente pesquisa. Realmente, o “surpreender-se” parece ser também o “ato”
que une as três modalidades objetos de nosso estudo. Admiramo-nos diante da
ironia “situacional”, como vimos, e também frente à ironia “verbal”: é sempre
curioso “ver”, na fala ou na escrita, um sentido oculto aparecer subitamente.
139
Sensação semelhante nos toma quando estamos frente a frente com uma paródia
ou com uma ocorrência de ironia romântica: nos sentimos agradavelmente
espantados. E o que dizer do riso? Ainda que possua seu viés trágico, o
sentimento do contraste é tão prazeroso que explodimos em um movimento que
nos chacoalha as entranhas.
Bem, a sensação de “assombro”, o admirar-se, o surpreender-se efeitos
provenientes do reconhecimento da ironia, da paródia e do riso estão
certamente associados à função estética da literatura. Como sabemos, a
literatura se opõe a qualquer tipo de “acontecimento” caracterizado por uma
função utilitária ou imediatista, que visaria, por exemplo, “explicar”, “ordenar”,
“informar”, entre outras. Ao contrário, os textos literários devem ser
valorizados por ocasionarem o prazer estético, que é, em linhas gerais, o prazer
de acessar uma realidade que não nos chega de modo habitual ou direto, mas sim,
artisticamente, por meio da ficcionalidade, plurissignificação e subjetividade.
Compreendida essa realidade que, por não “chegarde modo imediatista,
exige esforço intelectual do sujeito, chegamos a outra função interessante da
literatura: a catártica. Ela está associada à função estética, uma vez que
corresponde à purificação, ao alívio proporcionados pela arte, de um modo geral.
Georges Minois fala sobre a presença do riso catártico nas comédias latinas.
Para ele, tal riso produzia um alívio coletivo: “a segunda ilustração da função
catártica do riso na comédia latina é a contestação do poder despótico do
pater
famílias
, zombado, ridicularizado no papel de velhos avarentos e lúbricos que
monopolizam o dinheiro e as mulheres.” (2003, p. 101) Trata-se, assim, de um
riso de transgressão e, conseqüentemente, de alívio.
Como se vê, as funções estética e catártica atribuídas à literatura podem
ser também concedidas às nossas modalidades de estudo. Conforme repetimos
exaustivamente, a ironia, a paródia e o riso convidam o sujeito a participar da
construção do sentido. Ao se entregar à atividade de desvendar tais discursos, o
140
sujeito será bem sucedido, caso perceba a estrutura irônica desses textos. A
surpresa sentida pelo indivíduo que chega à ironia inerente a alguns enunciados
se aproxima muito da significação do prazer estético e da catarse funções da
própria literatura.
A fim de percebermos o quão interessante é essa ligação, reflitamos
sobre o que comenta Luiz Costa Lima em sua obra
Desafio ao pensamento
,
publicada no ano de 2000. Esse estudioso fala sobre o “engano” da arte. Segundo
ele, dois sentimentos contraditórios invadem aquele que se propõe assistir a uma
peça teatral, por exemplo. Assim, para se experimentar uma sensação de
piedade é necessário que se tenha a impressão de que sucede uma ação que é
dolorosa ou destrutiva; entretanto, como se sabe, no palco trágico, nada é
destruído. O receptor sente, assim, por um lado, a dor da piedade pelos
sofrimentos do protagonista e, por outro, o prazer catártico por sentir uma dor
que, no plano da realidade, não existe. A
mímesis
entendida como
representação artística supõe, portanto, a experiência de um equívoco
profundo.
Ora, por tudo que discutimos, é coerente afirmar que, no momento em que
se defronta com enunciados irônicos, paródicos ou marcados pela estrutura
incongruente do “riso sério”, o sujeito também experimenta a sensação de um
equívoco profundo. Logo, a problemática da contradição está inserida também no
próprio conceito de
mímesis
, afinal, nos entregamos à catarse apesar da
consciência de que estamos diante da ficção.
Portanto, é legítimo afirmar que a ironia, a paródia e o riso podem ser
pensados como o meio que a arte encontra para se auto-representar. Nesse
sentido, as características e funções da literatura se ajustam perfeitamente às
categorias analisadas. Podemos afirmar inclusive que a ironia, a paródia e o riso
se constituem como “micro-
mímesis
”, ou seja, representações artísticas menores
141
inseridas na “
mímesis
maior”, que seria a própria obra literária. Segundo Antonio
Cândido,
A criação literária traz como condição necessária uma carga de
liberdade que a torna independente sob muitos aspectos, de tal
maneira que a explicação dos seus produtos é encontrada
sobretudo neles mesmos. Como conjunto de obras de arte a
literatura se caracteriza por essa liberdade extraordinária
que transcende as nossas servidões. Mas na medida em que é um
sistema de produtos que são também instrumentos de
comunicação entre os homens, possui tantas ligações com a vida
social, que vale a pena estudar a correspondência e a interação
entre ambas. (2000, p. 163, grifos nossos.)
Por conseguinte, a literatura ou o conjunto de obras literárias se constitui
como uma possibilidade de redenção do pensamento quase sempre aprisionado
nos limites da convenção. Se pensarmos na ironia, na paródia e no riso como
“micro-
mímesis
”, encontramos exatamente aquilo que temos repetido no
decorrer de todo o presente trabalho: essas modalidades contribuem para
alargar o conhecimento, uma vez que nos permitem enveredar por caminhos não
previstos pela ordem estabelecida, vislumbrando novas possibilidades de
verdade. Conforme explica Aristóteles,
“Porquanto a aprendizagem e o maravilhar-se são agradáveis,
segue-se que coisas tais como os atos de imitação devem ser
agradáveis – por exemplo, a pintura, a escultura, a poesia – e cada
produto de imitação habilidosa; essa última, mesmo se o objeto
imitado não seja em si agradável; pois não é o próprio objeto que
aqui produz deleite; o espectador faz inferências (‘isso é assim
e assim’) e desta maneira apreende algo novo.” (Aristóteles,
Retórica
, grifos nossos.)
As palavras de Aristóteles vêm ao encontro de nossas idéias. No entender
desse filósofo, o sujeito experimenta uma sensação prazerosa quando,
exercitando a sua razão, assimila algo novo. Sente-se, então, muito bem, afinal,
142
algo dependeu exclusivamente de sua ação cognitiva para existir. Ainda que não
chegue a uma “verdade” inédita, movimentou seu saber, legitimando sua condição
de “ser” humano, de “ser” racional. Ele o sujeito é o criador, e agora diante
de sua criação – é tomado por certa vaidade. Esse é justamente o prazer
estético que comentamos.
Assim, a sensação de deleite e de “surpresa agradável” pode ser fruto do
entendimento da obra literária em toda a sua amplitude, ou pode, ainda,
acontecer, gradualmente, nos momentos em que o sujeito se depara com a ironia,
a paródia ou o riso. Nesse caso, a assimilação daquilo que chamamos “micro-
mímesis
ou “micro-representações” conduzirá o leitor ao sentido mais essencial
de toda a obra.
Tais categorias, a saber, a ironia, a paródia e o riso, se configuram, pois,
como as “vias” por meio das quais a arte representa a si mesma. De fato,
desvendar esses artifícios de que a literatura faz uso constitui uma experiência
de acesso ao impensado, ou seja, àquilo que se afasta das concepções impostas e
aceitas irracionalmente. Em relação ao riso, por exemplo, Verena Alberti afirma
algo que vale, sem dúvida, para a ironia, paródia e, conforme o raciocínio que
estamos tecendo, vale também para a própria literatura: “saber rir [...] é tornar-
se Deus, experimentar o impensável, ou ainda sair da finitude da existência.”
(1999, p. 23)
Portanto, como insistimos no decorrer de todo esse capítulo, ironia,
paródia e riso, entendidos, agora, como representações da própria arte literária,
são modalidades que viabilizam o crescimento intelectual do indivíduo. Afinal,
oriunda de um “ser histórico”, a literatura está sempre calcada na realidade e,
desse modo, atua na formação do homem. Esse avanço em direção ao
entendimento de nossa “natureza humana” é alcançado, vale a pena reiterar, por
meio da transgressão. Riso, paródia e ironia vistos como representações da
143
própria literatura são categorias, portanto, que nos convidam a transcender
nossa realidade chata – porque previsível – conhecendo realidades diversas.
Segundo Verena Alberti, “tal concepção é [...] importante, porque
estabelece o caráter indispensável desse movimento livre do entendimento, sem
o qual nada é criado. Ou melhor, sem o qual não filosofia nem poesia.” (1999,
p. 171-172, grifos nossos.) Nesse sentido, tanto o riso, como a ironia e também a
paródia são tipos de discursos que se singularizam justamente por sua força
criadora e por sua capacidade de engendrar o novo.
Seguindo esse raciocínio, quando dissemos que essas categorias são
exigentes, não pretendemos confirmar a idéia errônea de que as modalidades a
que nos dedicamos se especificam por estabelecer, preceituar, sempre, uma
única “verdade”, de modo autoritário. Tal constatação dissolveria, por assim
dizer, a inferência de que as categorias estudadas ampliam o entendimento, até
porque se caracterizam como “micro-representações” da literatura.
Obviamente, como todo ato de comunicação – falada ou escrita – a ironia, a
paródia e o riso veiculam, sempre, um ponto de vista. Todavia, a “verdade”
proposta por esses discursos, como vimos, sempre surpreende. Em primeiro lugar
porque representam a própria arte e nesse sentido são organizados de modo
controlado para quebrar as nossas expectativas, lançando-nos longe do trivial.
Assim, caracterizados como as vias por meio das quais a literatura se auto-
representa, a ironia, a paródia e o riso tendem a gerar o novo.
Mesmo que a mensagem “arquitetada” por essas categorias não seja
completamente inédita até porque isso não parece ser possível –, ainda assim,
por se tratarem de discursos artísticos, pedem a colaboração do sujeito na
organização do sentido; então, como a razão foi acionada, é possível entrever
uma possibilidade de crescimento.
É certo que essas modalidades, sobretudo a “ironia pura”, podem ser
usadas de modo autoritário; nesse caso, porém, a ironia seria arbitrária como
144
qualquer ato comunicativo pode ser. O importante é perceber que, de fato, não é
um traço peculiar a essas modalidades serem identificadas aos discursos
autoritários. Na realidade, a própria estrutura dicotômica marca essencial
desses textos parece criar mais de uma possibilidade de leitura. Portanto,
como arte, o riso, a paródia e a ironia transcendem a “ordem natural” da
existência, estimulando o sujeito à reflexão.
Se uma espécie de imposição que une e especifica esses discursos, ela
diz respeito unicamente à convocação obstinada ao sujeito para que participe
ativamente da construção do sentido. Conforme dissemos, o sujeito é o “agente
catalisador” dessas modalidades. Logo, parece ser procedente dizer, como
afirmamos, que sem o empréstimo do saber do sujeito não irrupção da ironia,
da paródia ou do riso.
Tais modalidades, estimulando o indivíduo a raciocinar para contribuir com
o “surgimento” do significado, reforçam, portanto, o potencial do sujeito como
força criadora. Esse é, sem vida, o aspecto que torna ainda mais estreito o
laço entre a paródia, a ironia e o riso. Além disso, esses discursos, ao
enfatizarem a capacidade criadora do sujeito, se aproximam da própria função
da literatura, tornando-se, como vimos, caminhos privilegiados por meio dos
quais a arte literária se auto representa.
Nesse sentido, a ação cognitiva do sujeito é decisiva. A oportunidade de
ampliação do conhecimento criada pela literatura e pelas modalidades em
questão é, sem dúvida, maravilhosa. A paródia, a ironia e o riso, como
construções edificadas artisticamente, podem ser vistas, inclusive, como
motivadoras de uma teoria do conhecimento.
Contudo, o sujeito... Tão valorizado e, quase sempre, pouco disposto ao
exercício da razão. Inserido numa sociedade imediatista, é coagido a aceitar e a
reproduzir idéias prontas, desprovidas de qualquer fundamento racional. Como
teremos a oportunidade de ver em
O cavaleiro inexistente
, de Ítalo Calvino, o
145
homem atual é exaustivamente convidado a dissolver-se na grande “massa”,
desistindo daquelas características que o individualizam em meio ao todo.
O sujeito que somos não parece estar consciente dos caminhos que levam
ao conhecimento. Em sua mente, não há harmonia entre os saberes; tudo é
tragicamente compartimentado: de um lado, a “experiência”, do outro, o “saber
intelectual” e, de outro, ainda, o “auto-conhecimento”. Esse indivíduo não sabe
que a arte o representa: desconhece, portanto, que através desse “saber
intelectual”, pode encontrar a si mesmo, pode deparar-se, em qualquer “página”,
com a sua essência perdida.
Do passo seguinte, então, ele está bem distante: a sua mudança e a
conseqüente mudança de sua experiência concreta. Sim, porque ao contrário do
que se pensa, não são os dogmas religiosos indiscutíveis e inquestionáveis os
causadores da reforma. Não, absolutamente. A construção de indivíduos éticos e
conhecedores da realidade ao seu redor é possível por meio da razão e não se
faz “da noite para o dia”. Além de nossa sociedade ser imediatista, a razão não
está em alta.
É preciso, pois, ser ousado para fazer uso da razão, ainda hoje. A razão
desmistifica, esclarece, desvenda, revela, ilumina o que não se podia enxergar
pela ausência de luz. A razão e somente ela permite que olhemos para o
mundo, para as pessoas e para nós mesmos como se fosse a primeira vez.
Enveredando por esse caminho, apreendemos o sentido primeiro das coisas e nos
tornamos mais livres. Pelo menos acreditamos nisso, até a chegada sorrateira
daquele “riso irônico”, conseqüência do fracasso de nossa razão. Ele costuma ser
o indício de que é preciso rever, investigar, transformar-(se) novamente. Esse é
o movimento sinalizador da presença de vida. Nascer não é, de fato, suficiente.
Para pôr em prática a nossa condição de seres humanos, necessitamos,
pois, pensar. E a literatura – representada em nossa pesquisa pela ironia, paródia
146
e riso se constitui como um excelente caminho, pois reivindicando o exercício
da razão – estimula o desenvolvimento intelectual e ético do sujeito.
Se a literatura anda na contramão de uma sociedade “engessada”, nós os
sujeitos de hoje – estamos na contramão do conhecimento. Carecemos, portanto,
da ousadia que nos fará transcender o universo das coisas prontas e encontrar o
novo. É necessário, todavia, antes de mais nada, vontade. Finalizemos com as
palavras interessantes, porém um pouco radicais, de Georges Minois:
Com certeza, o riso dos filósofos não transformou o Antigo
Regime. No domínio das mentalidades, o efeito da derrisão é, às
vezes, desesperadamente nulo. Mas será que o riso sozinho
consegue derrubar um preconceito, uma superstição, uma
bobagem, uma crença estúpida? Séculos de zombaria não
eliminaram nem a astrologia nem os fundamentalismos religiosos.
É porque é preciso um mínimo de espírito para apreciar o
espírito, e aqueles que o têm já são convertidos; para os outros, o
muro da estupidez constitui uma blindagem impermeável à ironia.
Portanto, a ironia é para uso interno; ela mantém o bom humor,
permite suportar a estupidez e absorver os golpes baixos da
existência. “A vida é uma tragédia para aqueles que sentem e uma
comédia para aqueles que pensam”, diz bem a propósito, Horace
Walpole. (2003, p. 435, grifos nossos.)
147
Capítulo 6: Dissonâncias literárias
Reinvenção
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... – mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só – no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só – na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
- Cecília Meireles -
148
6.1
O Duplo
, de Dostoievski e o emaranhado de vozes
desarmônicas
“Se tu viesses a olvidar-me
Eu jamais te olvidaria!
Venha lá o que vier,
Deves também recordar-me.”
(DOSTOIÉVSKI, 1963, p. 330)
O duplo
, de Dostoievski, traz a história do senhor Goliádkin, um modesto
empregado de repartição pública que, possivelmente no dia mais fatídico de sua
vida, encontra uma pessoa que é a sua cópia perfeita. Esse acontecimento
desencadeia uma série de neuroses que culminam na loucura e conseqüente
internação do doente em um manicômio.
Durante a leitura que, ao invés de causar deleite, inquieta – o leitor tem,
então, acesso à aflitiva mania de perseguição do sr. Goliádkin, que acredita estar
sempre rodeado de inimigos dispostos a prejudicá-lo. Provavelmente, a intenção
de Dostoievski tenha sido transpor para a técnica da ficção literária as novas
concepções da psicologia patológica que começavam naquela época a desenvolver-
se em toda a Europa. Resulta daí, portanto, a
dissonância
, marcada pelo embate
constante entre a subconsciência e a consciência, entre a lógica e o absurdo e,
conseqüentemente, entre a realidade e o sonho, ambigüidades que caracterizam
esta curiosa narrativa do início ao fim.
Como vimos, o exame da
ironia
exige do estudioso uma atenção redobrada,
uma vez que a ironia não pode jamais ser vista como algo pontual, mas sim, como
uma figura de texto que deve ser analisada do ponto de vista de sua
reverberação em toda a narrativa. Assim, defini-la como recurso lingüístico,
figura de linguagem ou ainda procedimento irônico não basta, que a ironia é
também um procedimento narrativo-discursivo, o que implica em dizer que ela
149
não se limita, isoladamente, a nenhum dos níveis lingüístico, retórico ou
discursivo.
É possível perceber duas tendências relacionadas à ironia, como foi visto
no capítulo 2: ou a ironia se apresenta mais enquanto
situação irônica
e sua
análise, nesse caso, envolve o enredo, as personagens e a própria estrutura da
obra, ou ela se constitui por meio do
refinamento de linguagem
e, então, analisá-
la envolve sobretudo o narrador.
Conforme foi estudado no capítulo 2, diante da “ironia observável” (ou
situacional) tem-se uma situação ou uma cena que devem ser percebidas pelo
observador e julgadas irônicas, não existindo, assim, “alguém sendo irônico”. Já
na “ironia verbal” ou “instrumental”, uma atitude irônica expressa por um
sujeito, que faz uso de uma inversão semântica para transmitir sua mensagem.
Logo, na ironia verbal, a linguagem é o instrumento.
Essa “divisão” da ironia em dois grandes blocos não deve, porém, ser muito
rígida, afinal, quando se está nos domínios da literatura, haverá sempre o
trabalho com a linguagem. Assim, embora o caso do duplo, por exemplo, incline-se
mais para um tipo de ironia situacional um personagem depara-se com uma
cópia de si mesmo perambulando “por aí” foi necessário, para a construção
dessa situação, em literatura, que a linguagem fosse tratada e manipulada para
esse fim.
Portanto, seguindo o mesmo raciocínio, se o objetivo é a análise de uma
obra literária, não parece ser coerente falar em “ironia sem ironista”, pois, se
trabalho com a linguagem, há ironista.
Em suma, quando se pretende estudar a ironia na literatura, faz-se
necessário perceber se ela se inclina mais para o refinamento da linguagem ou se
tende mais para uma ocorrência de situação irônica, devendo-se salientar
sempre que, em ambos os casos, ocorre a “preparação” da linguagem. No que diz
150
respeito à novela
O duplo
é possível encontrar a ironia nessas duas
performances
.
Também no capítulo 2 do presente trabalho, vimos que o traço básico de
toda ironia é o contraste entre aparência e realidade, e que essa característica
marca tanto a ironia verbal quanto a ironia observável, uma vez que, nos dois
casos, se constata uma incompatibilidade ou incongruência.
Seguindo esse raciocínio, em primeiro lugar, é importante observar a
seguinte contradição – ou incompatibilidade, ou incongruência – presente no
texto: de um lado, o leitor é convidado a acreditar que o narrador é em certa
medida conivente com as atitudes do senhor Goliádkin, mas, por outro, uma
análise mais acurada revela indícios que apontam justamente no sentido
contrário. Dentre esses indícios, tomemos como exemplo um momento em que o
sr. Goliádkin fica enfurecido porque, ao acordar pela manhã, o encontra seu
criado Pietruchka:
Diabos o levem! – disse o senhor Goliádkin pensando no criado.
Este animal, preguiçoso como é, põe uma pessoa fora de si. Onde
terá ele ido agora? Indignado e com toda a razão entrou no
compartimento vizinho [...]” (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 288, grifos
nossos).
Como se percebe, o narrador parece considerar justa a indignação do
senhor Goliádkin, todavia, se levarmos em conta o contexto que nos chega pelo
próprio narrador inferimos que a personagem principal está cometendo uma
grande injustiça com Pietruchka, uma vez que este havia organizado tudo: o
côche já estava esperando; o banho, os objetos de barba e as botas que o patrão
tinha pedido também já o aguardavam.
Ou seja, não havia, de fato, quaisquer motivos para aquela explosão de
raiva do senhor Goliádkin e este, mesmo tendo visto as suas exigências
151
cumpridas, trata muito mal a Pietruchka, utilizando-se, para qualificá-lo, de
expressões grosseiras como “animal” e “idiota” o tempo todo.
Em uma outra passagem, o senhor Goliádkin encontra dois jovens que
trabalham com ele na repartição e, como sempre, fica muito incomodado.
Conforme descreve o narrador, “Instantaneamente e com ar receoso, encafuou-
se no lugar mais escondido da carruagem.” (1963, p. 290). Goliádkin sente
constantemente que está sendo perseguido por seus “inimigos”, pois, em sua
visão completamente distorcida da realidade, todos almejam humilhá-lo. Afirma,
então, o narrador:
É que tinha acabado de passar por dois colegas, dois jovens
funcionários da repartição em que trabalhava. Por seu lado, eles
o senhor Goliádkin bem o vira ficaram também muito
admirados em encontrar o colega em semelhante côche. Um deles
havia mesmo apontado o dedo em direção ao senhor Goliádkin.
(DOSTOIEVSKI, 1963, p. 290, grifos nossos).
Considerando as circunstâncias, pode-se concluir que o narrador, ao
contrário do que sugere, não compactua com o comportamento doentio do senhor
Goliádkin. Pelo contrário, critica por meio de uma refinada ironia as atitudes de
sua personagem principal, conforme demonstra o seguinte trecho, sobre
Goliádkin:
Abriu a boca, espreguiçou-se e, finalmente, acabou por abrir os
olhos. Durante dois minutos continuou deitado sem fazer um
movimento, como alguém que não sabe bem se ainda dorme ou se
já está acordado, se já está rodeado do mundo real ou se continua
a sonhar. (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 287)
Nesta passagem, o narrador demonstra, de modo bastante claro, que o
senhor Goliádkin era realmente um homem atormentado, caso contrário, como
152
alguém, em consciência, poderia acordar e ficar em dúvida se está mesmo
acordado? Logo, temos de concluir: primeiro, que este homem inclina-se a
distorcer toda a realidade a sua volta; segundo, que o narrador não apenas sabe
disso, como inclusive nos sugere a situação de sua personagem por meio dos
fatos que narra, vivenciados por Goliádkin.
Portanto, no momento em que afirma, na penúltima citação, que a
personagem principal “vira
muito bem
que estava sendo observada com
admiração”, o narrador é, sem dúvida, inico.
Em outra circunstância, o senhor Goliádkin decide ir ao baile de
comemoração do aniversário de Klara Olsúfievna, muito embora não tenha sido
convidado para a festa. Depois de muito refletir “Entro... ou não entro? Devo
entrar... ou não?... Vou... Por que não hei de ir? O audacioso encontra sempre
maneira de atingir o que deseja...” (1963, p.308) o senhor Goliádkin, que se
encontrava em frente à casa de Klara, decide “participar” da festa:
Todavia, depois de ter tomado esta resolução, o senhor Goliádkin
avança rapidamente, como movido por uma mola. É um instante
enquanto entra na copa, tira o casaco e o chapéu, e os atira à
pressa para um canto. Compõe-se um pouco e entra na sala de
jantar. Daí passa para a outra sala, sem que quase ninguém dê por
ele, tão entretidos estão os jogadores. Então... então... o senhor
Goliádkin esquece tudo o que acaba de passar-se e, sem mais
demoras, cai como uma bomba na sala de baile. (DOSTOIEVSKI,
1963, p. 308)
Obviamente, no momento em que as pessoas notam a presença indesejada
de Goliádkin, ficam incomodadas a ponto de agruparem-se, todas, em volta dele,
como se esperassem uma explicação. Goliádkin, por sua vez, fica tão aturdido que
perde a capacidade de ver e de ouvir.
Passa-se algum tempo e todos, sobretudo Klara, a aniversariante,
continuam dando mostras de que aquele intruso não é nem um pouco bem-vindo
naquele recinto. A situação torna-se cada vez pior e o narrador, abruptamente,
153
afirma: “É evidente que o senhor Goliádkin começa a sentir-se mais adaptado à
situação.” (1963, p. 310).
Ora, considerando o estado agônico em que se encontra este homem, esta
asserção do narrador apenas pode ser entendida pelo viés da ironia. É
importante perceber, ainda, que em todos os casos comentados até aqui, temos a
atitude de “alguém sendo irônico”, o que nos permite concluir que estamos diante
de ironias verbais ou instrumentais.
Convém salientar que esse episódio o da comemoração do aniversário de
Klara - colaborou de forma assaz significativa para o colapso final de Goliádkin,
pois, logo após esse acontecimento desastroso, ele encontra seu duplo e, a partir
disso, sua situação psicológica e emocional piora muito.
Outros inúmeros exemplos que apontam para uma contradição
marcante entre os fatos vivenciados por Goliádkin e os comentários do narrador
acerca desses mesmos fatos. Muitas vezes, são curtas observações, porém,
significativas, se analisadas sob o olhar da dissonância.
A seguinte passagem, em que Goliádkin se sente culpado por estar
faltando ao trabalho, demonstra essa característica. Ele está, como sempre, com
os pensamentos extremamente conturbados; idéias opostas lhe invadem a mente
em segundos. Então, para aliviar sua consciência, cria argumentos utópicos e
irreais. Comenta o narrador:
“Desta maneira, o senhor Goliádkin tranqüiliza sua consciência e
antecipadamente justifica perante si próprio a censura que
Andriéi lhe fará pela sua negligência ao serviço. Não era a
primeira vez que ele encontrava razões irrefutáveis para acalmar
escrúpulos da mesma natureza. Ficou assim mais uma vez com a
consciência serena.” (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 319, grifo nosso).
Ora, de novo, levado em conta o contexto, sabemos perfeitamente que
todas as afirmações e as “razões” desse homem desequilibrado psicologicamente
154
são passíveis de contestação. Uma a uma, portanto, as passagens do texto vão
deixando transparecer seu sentido irônico.
Fica demonstrado, pois, um curioso caso de dissonância no nível narrativo-
discursivo. O que torna esse “evento” tão interessante é o fato de ele não ser
percebido isoladamente, mas apenas dentro do contexto dessa narrativa,
contemplada por uma personagem em desequilíbrio e por um narrador que
sempre pauta o seu fazer narrativo pelos caminhos da ironia.
Em alguns momentos, o narrador utiliza o
discurso indireto livre
, o que lhe
permite dissimular, agora por meio de outros recursos, sua voz no interior da
narrativa. Um exemplo disso está na mesma passagem a que nos referimos
anteriormente, em que o senhor Goliádkin encontra pela rua dois rapazes com os
quais trabalha na repartição:
Um deles havia mesmo apontado o dedo em direção ao senhor
Goliádkin. Este se convenceu também que o outro o chamava em
voz alta pelo seu nome. Ora isto em plena rua era
deselegante... O senhor Goliádkin fez de conta que nada viu e
não respondeu. (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 290, grifos nossos)
A primeira impressão causada pelo trecho salientado (“Ora isto em plena
rua era deselegante..
.
”) é de uma manifestação solta, aparentemente de ninguém.
E isso ocorre, uma vez que, graças ao uso do discurso indireto livre, não sabemos
se se trata da voz do narrador ou da voz da personagem principal.
Considerando o contexto, no entanto, é possível inferir que esta
afirmação só pode ser atribuída ao senhor Goliádkin, que, por vivenciar um
momento de intensa perturbação psicológica, acredita veementemente estar
sendo perseguido por todos os seus “inimigos”.
Tanto isso é verdade que, se atentarmos melhor para a passagem acima,
perceberemos que o senhor Goliádkin não ouviu ninguém gritando o seu nome,
mas sim
se convenceu
de que o chamavam em voz alta. Quem nos diz isso é o
155
narrador e, portanto, a afirmação de que “isto é deselegante” não pode ser sua,
pois, muito provavelmente, ninguém teria chamado pelo senhor Goliádkin.
Portanto, novamente o narrador faz uso de uma estratégia que disfarce a
sua “voz” no interior da narrativa. Na verdade,
voz
apareceu entre aspas porque
não se trata propriamente de uma voz, mas, sim, de indícios da verdadeira
opinião do narrador. Em outras palavras, o narrador tenta velar o seu ponto de
vista sobre Goliádkin não apenas apagando da narrativa as marcas que poderiam
evidenciar sua opinião, mas também tencionando confundir o leitor ora por
meio da ironia, ora por meio do discurso indireto livre.
Como foi dito anteriormente, a ironia pode tender mais para uma
situação
irônica
ou para um
refinamento de linguagem
. Nos casos até aqui apresentados,
poderíamos concluir que a ironia se volta mais para o lado da situação irônica,
uma vez que temos um narrador cuja voz é, em muitos momentos, dissonante em
relação ao próprio relato que nos chega por meio dele mesmo. Entretanto,
embora exista essa incompatibilidade mostrada pelos trechos citados e,
portanto,
observável
, não se pode desconsiderar o fato de que temos também
um narrador ironizando o seu próprio relato, ou seja, uma
atitude irônica
.
Por conseguinte, seria um descuido optar por qualquer uma das duas
classificações, excluindo a outra. Em primeiro lugar, porque, como foi dito,
estamos diante de um texto literário e, portanto, existe o trabalho com a
linguagem. Em segundo lugar, porque há, com certeza, uma ironia observável
entre o que o narrador narra e os comentários desse mesmo narrador; no
entanto, existe também indubitavelmente a intenção narrativa de fundar uma
desarmonia entre os fatos relatados e os comentários do narrador, que destoam
das “verdades” contadas por ele próprio.
Logo, temos nesse texto a ambigüidade legitimada tanto pela ironia verbal
ou instrumental quanto pela ironia situacional ou observável. Pode-se inclusive ir
um pouco mais longe e dizer que em “O Duplo” temos uma ironia observável
156
graças ao descompasso entre o narrado e o comentado e, ainda, uma ironia
instrumental que contribui para sinalizar a situação irônica.
Nesse sentido, voltemos ao episódio do aniversário de Klara Olsúfievna,
para o qual o senhor Goliádkin não fora convidado. Nesse ponto da narrativa, a
voz do narrador torna-se extremamente sarcástica, beirando, em muitos
momentos, o escárnio. Se, no início desse episódio, o narrador apresenta com
naturalidade os detalhes da comemoração, logo seu discurso começa a ser
pautado por uma inconfundível mordacidade, conforme podemos notar
claramente nos seguintes trechos:
outros bailes no mesmo gênero, mas são raros. Trata-se mais
de festas de família do que de bailes. Para isso, é preciso haver
uma casa como a do conselheiro de Estado Bieriendiéiev. E isso
mesmo ainda não chega: julgo que nem todos os conselheiros de
Estado podem dar bailes semelhantes. Se eu fosse poeta como
Homero ou Puchkin talento menor do que o deles não bastava
desejaria pintar, oh leitores! com cores brilhantes e um hábil
pincel, este dia triunfal. Seria pelo jantar que haveria de
começar o meu poema. Procuraria fixar sobretudo o instante
único e solene em que se ergue a primeira taça à saúde da dona
da rainha da festa. Falar-vos-ia do silêncio grave dos convivas,
dessa atitude de espera que se parece mais com a eloqüência de
Demóstenes do que com o silêncio. [...] Confesso, porém,
humildemente que não seria capaz de exprimir a solenidade do
instante em que a própria rainha da festa, Klara, corada como
uma rosa primaveril, corada de alegria e de pudor, vencida pela
emoção, cai nos braços de sua mãe e esta se põe a chorar, e o
próprio pai soluça também. Simpático velho, o conselheiro de
Estado. Tinha trabalhado muito. Estava paralítico das pernas,
mas a sorte tinha compensado o seu esforço. Possuía uma certa
fortuna, uma casa, bens de raiz. [...]
Não seria capaz de vos descrever os instantes que se seguiram.
Ninguém dizia que naquela ocasião solene Andriéi Filípovitch era
o chefe de repartição que todos conheciam. Parecia outra
pessoa. Oh, que pena não possuir eu os segredos dum grande
estilo para poder descrever estes instantes de beleza e
satisfação moral. Instantes destes são a prova cabal de que
muitas vezes a virtude triunfa sobre o vício e a inveja! [...]
157
Tudo neste instante solene parece dizer: “Eis onde o culto das
virtudes pode conduzir o homem”. Não vos direi que Anton
Antonovitch, velho amigo da casa e padrinho de Klara, um
velhinho de cabeça prateada, por sua vez, propôs também um
brinde, cacarejou como um galo e recitou versos muito
engraçados. Durante um momento, esqueceram-se as
conveniências! Todos os presentes riram a mais não poder. A
própria Klara, por sugestão dos pais, veio beijá-lo, felicitando-o
pela sua boa disposição e talento.
Os convidados, que depois de um tal jantar se sentiam todos
como se fossem parentes e irmãos, acabaram por levantar-se da
mesa. [...] Passaram depois a outra sala e, sem perderem um
tempo que era precioso, dividiram-se em grupos (conservando a
noção de sua dignidade), e foram sentar-se diante das mesas de
jogos. As senhoras instalaram-se na sala e tornaram-se
muitíssimo amáveis. Conversam umas com as outras sobre as
coisas mais variadas e, por fim, o próprio dono da casa, que tinha
perdido em serviço o uso das pernas e obtido as compensações
que já dissemos, vem passear por entre os seus convidados,
apoiado nas muletas [...]. Tocado pela amabilidade dos que o
rodeiam, decide-se a improvisar um pequeno baile, não obstante
as despesas que isso lhe acarretará. [...]
A minha pena não basta para pintar como devia o baile que a
extraordinária gentileza do velho dono da casa improvisou. Como
poderia eu, aliás modesto narrador das aventuras do senhor
Goliádkin – curiosas no seu gênero, lá isso é certo! – como
poderia eu exprimir esta amálgama surpreendente de beleza, de
brilho, de elegância, de alegria, de amabilidade e de júbilo; e os
risos e passatempos de todas essas esposas de funcionários...
Parecem mais fadas do que mulheres, com os ombros rosados, as
figuras angélicas e os pezinhos encantadores a aparecerem-lhes
debaixo dos vestidos. Como descrever-vos, por fim, estes
funcionários transformados agora em brilhantes homens de
salão, estes jovens alegres e bem constituídos, contentes e
sonhadores, que, numa salinha retirada, onde as paredes são
todas pintadas de verde, fumam cachimbo entre duas danças... e
os cavalheiros que ocupam altos cargos e usam nomes muito
sonoros, cavalheiros profundamente compenetrados de seus
deveres de elegância e que, na maior parte, falam francês com
as senhoras. Se falam russo é para proferirem cumprimentos
e frases profundas em tom distinto.
Unicamente na sala de fumar se permitem alguns deslizes de
linguagem, frases familiares, no gênero desta “Olá, Piétienhka,
dançaste esta polca como um artista.” Mas oh leitor! tive
ocasião de dizer que a minha pena não é capaz de um tal esforço,
158
por isso vou parar. Voltemos antes ao senhor Goliádkin, o único
herói desta novela verídica. (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 304-307)
Embora o trecho seja bastante longo, optamos por reproduzi-lo uma vez
que ele reúne diversas marcas essenciais ao estudo da ironia. Ao leitor mais
ingênuo e desavisado, bem poderia parecer que o narrador objetivou, apenas,
elogiar a grande festa realizada em comemoração ao aniversário de Klara.
Mesmo assim, um mínimo de atenção levaria ao estranhamento frente ao
excesso de elogios conferidos a tudo: à festa, à aniversariante, às pessoas, à
casa, etc. Já do ponto de vista de um leitor um pouco mais perspicaz e crítico,
um outro aspecto curioso se tornaria visível: a insistente modéstia por meio da
qual o narrador tece seus comentários.
Essa modéstia transparece em muitos momentos, quando ele faz
asserções do tipo: “Se eu fosse poeta como Homero [...] desejaria pintar com
cores brilhantes este dia triunfal” ou “Confesso, porém, humildemente, que não
seria capaz...” ou ainda “A minha pena não basta para pintar como devia o baile...”
(1963, p. 304-307), entre outras.
Ora, não obstante a pena desse limitado narrador seja apresentada como
insuficiente para descrever a festa, o evento é inquestionavelmente bem
descrito. Dito de outra forma, o narrador considera-se incapaz de nos relatar os
instantes de rara beleza compartilhados pelos convivas, todavia, pinta a ocasião
com tamanha sutileza e detalhamento plástico que o leitor efetivamente “vêo
brinde realizado pelos convidados, o pai paralítico de Klara, os versos recitados
(ou cacarejados?) pelo padrinho da aniversariante, as pessoas elegantes
dançando, entre outras cenas.
A riqueza de detalhes e a maestria do arranjo não se coadunam, portanto,
com a suposta incapacidade de que se acusou o narrador. É visível, pois, a
dissonância entre a auto-avaliação do narrador e as provas em contrário. Desta
159
vez, porém, não se trata de uma contradição no nível da estrutura discursiva da
narrativa, como a que analisamos anteriormente, ou seja, quando fatos vividos
por Goliádkin (relatados pelo narrador onisciente) eram incoerentes com a
opinião do narrador sobre esses mesmos acontecimentos.
Ao contrário disso, a contradição que agora verificamos (autodepreciação
x excelência demonstrada) dá-se em um nível mais lingüístico. Assim, entre o que
o narrador diz e a mensagem que ele pretende transmitir há uma distância
considerável.
Do mesmo modo, o acúmulo de elogios à festa torna patente não a
aprovação inconteste, mas a crítica corrosiva àquela comemoração. O que
poderia ser um troféu à elegância e bom-gosto nada mais é do que o
desnudamento da futilidade. Ao recorrer à ironia, o narrador abandona as “vias
normais” para movimentar-se nas entrelinhas, onde pode dar passos mais ligeiros
e maliciosos.
E esse entusiasmado narrador não pára por aí: em sua opinião, as pessoas
convidadas para aquela festa não são apenas fúteis, mas também hipócritas e
desprovidas de qualquer escrúpulo. O pai de Klara não andava, mas acreditava
que “a sorte tinha compensado seu esforço”, pois era rico. O padrinho da
aniversariante recitou versos para ela, mas a moça apenas foi agradecer-lhe por
sugestão dos pais. De modo geral, as pessoas eram superficiais e nada
espontâneas, porque ali, naquele recinto, segundo o narrador, estavam
irreconhecíveis, ciosas apenas de seus “deveres de elegância”.
O narrador, portanto, deprecia ao elogiar e desaprova por intermédio da
aprovação. E, como dissemos anteriormente, sua crítica aproxima-se, algumas
vezes, do escárnio: o padrinho de Klara não recita, “cacareja como um galo”, seu
pai, apoiado nas muletas, decide improvisar um pequeno baile... Não é preciso
dizer mais nada...
160
Assim, terminamos aqui a análise de exemplo muito rico e sutil de ironia.
Diferentemente dos primeiros casos analisados, esse último trecho é marcado
por uma ironia que se manifesta exclusivamente sob a forma de um refinamento
da linguagem. Isso não exclui, obviamente, que essa modalidade de ironia não
tenha também um certo viés situacional uma vez que não podemos
desconsiderar o contexto em que foi produzida.
É imprescindível salientar a importância do leitor na decodificação desse
texto. Conforme enfatizamos no decorrer de toda a pesquisa, o leitor se
configura como elemento central dessa categoria de texto literário, que deve
localizar os aspectos que se encontram, implicitamente, em tensão.
Assim, esse tipo de discurso ambíguo, paradoxal, contraditório e
incongruente caracterizador da narrativa analisada aqui, espera do leitor a
responsabilidade de tomar parte na construção do sentido. Um leitor que não se
comprometa a isso, permanecendo impassível diante dos fatos narrados, jamais
poderá acessar o sentido irônico, uma vez que passariam despercebidas as
“notas dissonantes” espalhadas no decorrer do texto pelo narrador.
É curioso observar que, por mais atormentado que possa parecer, o senhor
Goliádkin é tratado pelo narrador como herói, do início ao fim da narrativa.
Assim, na última linha da citação anterior, a personagem principal é considerada
“o único herói desta novela verídica”. Em outras ocasiões, Goliádkin recebe as
seguintes designações: “o nosso herói” (1963, p. 310), “nosso desditoso herói”
(1963, p. 316), “este era o próprio senhor Goliádkin, não o antigo, não o herói
desta novela, mas o outro Goliádkin, o novo senhor Goliádkin (1963, p.343),
“nosso herói” (1963, p. 354), “nosso amigo” (1963, p. 359), “nosso desgraçado
herói” (1963, p. 374), entre outras inúmeras ocorrências semelhantes.
Ora, que fato motivara o narrador a julgar Goliádkin como um herói?
Trata-se, certamente, de mais um caso de dissonância criado por esse narrador,
que orienta seu relato pelos caminhos sinuosos da ironia. Além disso, é válido
161
pensar inclusive que Dostoiévski esteja ironizando o próprio gênero, o modelo de
herói de uma novela, por meio da atribuição desse título a Goliádkin, um homem
qualquer, sem grandes saliências.
Goliádkin é julgado maluco por todos que o rodeiam e, inclusive, pelo leitor.
Todavia, em muitos momentos, por mais curioso e irônico que isto possa
parecer, o leitor se identifica com essa personagem. Assim como o senhor
Goliádkin, também somos acometidos, vez ou outra, por um estranho sentimento
de medo. Ditos populares como “Está muito bom para ser verdade” confirmam a
presença de maus pressentimentos inseridos no ser humano pressentimentos
estes que nos aproximam, em certa medida, do senhor Goliádkin. A seguinte
passagem revela o desequilíbrio dessa personagem no sentido de acreditar que,
sempre, algo acontecerá como não devia, ocasionando prejuízos e danos:
Seria bem desagradável disse baixinho para si próprio seria
bem desagradável se hoje qualquer coisa corresse mal, se me
aparecesse, por exemplo, um furúnculo ou qualquer outra coisa
aborrecida. Felizmente, por enquanto tudo está correndo bem,
muito bem até... (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 287)
No decorrer de nossa existência, também procuramos e encontramos
assim como o senhor Goliádkin, razões “irrefutáveis” que justifiquem as nossas
falhas mais graves e, como se não bastasse, também, muitas vezes, projetamos
esses erros no
Outro
e o consideramos inimigo. De forma parecida, o ser humano
fica, muitas vezes, inseguro em relação à sua profissão e tem receio de que
“tomem o seu lugar”, como aconteceu com Goliádkin na repartição onde
trabalhava.
E, provavelmente, a nossa maior semelhança com essa destemperada
personagem seja o reconhecimento do Estranho em nós mesmos. Muitas vezes,
por razões diversas, ocorre a eclosão daquilo que tão insistentemente
162
recalcamos, ou seja, aquilo que nos é esquisito e que gostaríamos de esconder
retorna, quebra a moldura e escapa ao nosso controle.
Seria possível continuar citando outras inúmeras questões análogas entre
nós, leitores, e o disparatado senhor Goliádkin, entretanto, não é o que interessa
aqui. Importa, sim, dizer que o narrador conferiu, ironicamente, a este indivíduo
desnorteado a designação de herói e que provavelmente seja mais irônico ainda o
fato de que este “desditoso herói” não seja simplesmente um tresloucado, mas
apenas humano.
O erro de Goliádkin talvez tenha sido salientar demais o
Outro
em si
mesmo, a ponto de concretizá-lo, conferindo-lhe vida. Isto também não deixa de
ser estranhamente dissonante: tendências desconhecidas incrustadas no
interior do próprio indivíduo...
Esperamos que tenha ficado claro que esta narrativa é fundamentada na
problemática da ironia. Assim, seja ela fruto de um primoroso trabalho com a
linguagem, ou esteja ela mais próxima de uma situação irônica propriamente dita,
falamos, constantemente de ironia.
É possível inferir que o narrador de
“O duplo”
tenha se servido da ironia
de forma tão intensa, como se observou, a fim de alterar o horizonte de
expectativas do leitor. Desse modo, que se constitui esta novela como um
elogio à contradição, o leitor é convidado pelo narrador, a todo momento, a
pensar ou concluir algo diferente do que concluíra antes.
Por conseguinte, se, num primeiro instante, o leitor acredita que o
narrador é conivente com as atitudes do senhor Goliádkin, percebemos, após uma
leitura mais pormenorizada, que ele critica o comportamento dessa personagem,
nas entrelinhas. Porém, se por um lado existem os julgamentos do narrador, em
contrapartida, também uma voz que revela ao leitor sua semelhança com as
esquisitices do desnorteado Goliádkin.
163
Sem dúvida alguma, estamos à frente de um texto polifônico que, como
tal, expõe o leitor a várias possibilidades de leitura. Em
“O duplo”
não nos
deparamos, pois, com um narrador cuja característica seja impor ao leitor o seu
ponto de vista em relação aos fatos narrados. Muito pelo contrário, esse
narrador deixa para o leitor a tarefa de julgar.
Não pretendemos dizer que ele (o narrador) se abstém dessa
“responsabilidade”: aquele por meio do qual a história nos chega em
“O duplo”
avalia sim, tece julgamentos muitas vezes sagazes sobre os acontecimentos
relatados. Suas apreciações, porém, nunca encerram a análise dos fatos. Isso se
porque, em primeiro lugar, tais apreciações, como vimos, são irônicas e, nesse
sentido, apontam para duas possibilidades de interpretação e, em segundo
lugar, porque tais julgamentos são, muitas vezes, contraditórios, ampliando,
assim, as possibilidades de leitura.
Dessa maneira, se, por um lado, o narrador critica sutilmente sua
personagem, por outro, se compadece explicitamente do senhor Goliádkin, dando
a entender ao leitor que está ao lado dessa personagem e que entende muito
bem a dor sentida por aquele homem. As seguintes passagens ilustram o que se
está a dizer aqui:
Sentia-se o pior possível. Dentro de si tudo era um caos. Andou
muito tempo de um lado para o outro, perturbadíssimo. Depois,
já sentado, pousou a cabeça nas mãos e, esforçando-se por
refletir, procurou uma saída para a situação em que se
encontrava. (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 304)
[...] depois, de repente, um salto como se estivesse louco, e
põe-se a correr, a correr, sem se voltar, parece fugir diante de
um inimigo, diante do infortúnio... pois a sua situação é terrível.
(DOSTOIEVSKI, 1963, p. 313)
Empurrada pelo vento, a água caía em jorros quase horizontais,
tal como sai das mangueiras dos bombeiros. Batia e chicoteava o
164
rosto do infeliz senhor Goliádkin, como se fossem agulhas e
alfinetes aos milhares. (DOSTOIEVSKI, 1963, p. 312)
Deparamo-nos, portanto, com um texto que se caracteriza principalmente
por reunir vozes dissonantes. Nisso reside, pois, a perspicácia desse narrador
sobre quem tanto falamos: colocar nas mãos do leitor a tarefa de absolver ou
condenar Goliádkin. E, ao final dessa instigante leitura, embora reconheçamos as
graves falhas cometidas por esse homem, sentimos pena ao “vê-lo” se afastar
rumo ao manicômio, dentro daquele côche.
A ironia atua nessa narrativa, portanto, justamente no sentido de instalar
a desarmonia, a discrepância entre dois discursos. Temos em “O duplo”, como
vimos, uma voz que condena o senhor Goliádkin, mas também percebemos a
presença de um “grito” – talvez mais abafado - que se apieda desse homem, e se
apieda porque se sente próximo a ele. Logo, nesse texto como em outros, a ironia
contribui indubitavelmente para a derrocada do maniqueísmo, na medida em que,
por meio da ambigüidade, nega as nossas certezas sobre o senhor Goliádkin,
sobre nós mesmos...
Apesar de tantos disparates cometidos por Goliádkin e, na verdade, por
causa exatamente desses disparates nos achamos ironicamente semelhantes a
esse herói idiotizado de idéias estranhas e obsessivas, a esse homem cujos
pensamentos são compulsivos e indomáveis, a esse homem tão “estranhamente”
distante do equilíbrio, a esse homem... humano.
165
6.2:
O homem duplicado
, de José Saramago: a dissonância
aparente
Essa narrativa peculiar conta a história de Tertuliano Máximo Afonso, um
professor de História que, em uma noite tumultuada, depara-se com alguém
cujas características são absolutamente idênticas às suas. Sua cópia fiel
aparece em um filme a que Tertuliano assistia: era um ator secundário. O título
do filme era
Quem porfia mata a caça
.
Essa constatação incomoda muito Tertuliano, que decide, no decorrer da
narrativa, marcar um encontro com o ator, cujo nome é Antonio Claro. Eles se
encontram e, devido a uma reviravolta, acabam invertendo os papéis: Tertuliano
veste as roupas de Antonio Claro e este se traveste de Tertuliano.
Um acidente de carro acontece e Antonio Claro acaba sendo vítima fatal.
Entretanto, como estava com as vestimentas de Tertuliano, para todos os
efeitos, quem morrera foi o professor de história. Tertuliano para não ser
considerado louco - assume, pois, a vida do ator, incluindo sua esposa a única
pessoa que sabe dos duplos.
Em
O homem duplicado
, de José Saramago, existe aparentemente um
discurso legitimador da polifonia, que defende, pois, a liberdade de opinião e a
existência de vozes portadoras de diferentes verdades inseridas no relato. É
interessante perceber, contudo, que enquanto esse discurso polifônico existe
nas camadas mais superficiais do texto, existe uma outra voz esta menos
explícita, situada nos “subterrâneos” do texto que justamente satiriza a
possibilidade de polifonia discursiva.
É no embate entre essas duas vozes opostas apenas aparentemente
que sobressai o caráter irônico dessa “mensagem” transmitida pelo narrador,
que, na verdade, faz uso de estratégias diversas a fim de manipular o leitor.
166
Entre os dispositivos utilizados pelo narrador está a ironia romântica.
Logo, é precisamente nos momentos em que a narrativa entendida como
seqüência dos fatos narrados pára, que o narrador aproveita para intrometer-
se, tecendo comentários variados. Tais intromissões são caracterizadas ora por
discussões metalingüísticas, ora por trazerem à baila assuntos que se encontram
fora do espaço ficcional, ora, ainda, para persuadir o leitor a aceitar um
determinado ponto de vista. Em todos esses casos, está presente a ironia
romântica. Convém, portanto, examinar esses momentos de intervenção do
narrador para apreender suas intenções e também para conhecer os
procedimentos de construção de sentido utilizados pela instância narrativa.
Assim, observemos o fragmento abaixo, onde o narrador propõe
questionamentos que apontam para o interior da narrativa, realizando uma
reflexão sobre o próprio fazer literário por meio do recurso à ironia romântica:
[...] desde que se divorciou Máximo Afonso, servimo-nos aqui da
versão abreviada do nome porque à nossa vista a autorizou
aquele que é seu único senhor e dono, mas principalmente porque
a palavra Tertuliano, estando tão próxima, apenas duas linhas
atrás, viria desservir gravemente a fluência da narrativa.
(Saramago, 2002, p. 12)
Temos, nele, a discussão explícita do fazer literário, que aponta, ao que
parece num primeiro momento, para dois caminhos opostos: a ficção e a
realidade. O narrador parece explicar sua decisão de não reproduzir o nome
inteiro da personagem apoiando-se, primeiramente, na ficção, uma vez que
afirma ter o próprio Tertuliano permitido que ele (o narrador) assim procedesse.
Depois, no entanto, a instância narrativa se vale de um argumento relacionado ao
ato literário em si mesmo ao trabalho com as palavras e, nesse momento, não
faz, aparentemente, uso do ficcional, mas sim, da realidade referente ao ato de
escrever.
167
Logo, nessa passagem, o narrador parte do ficcional, dando a entender,
contudo, que está nos domínios da realidade, quando, de fato, trata-se sempre
de uma estratégia de reforço do ficcional. Esse jogo entre ficção e “realidade”
se faz presente em toda a narrativa. Leiamos outro fragmento:
Um parêntesis indispensável. Há alturas da narração, e esta,
como se vai ver, foi justamente uma delas, em que qualquer
manifestação paralela de idéias e de sentimentos por parte do
narrador à margem do que estivessem a sentir ou a pensar nesse
momento as personagens deveria ser expressamente proibida
pelas leis do bem escrever. A infração, por imprudência ou
ausência de respeito humano, a tais cláusulas limitativas, que, a
existirem, seriam provavelmente de acatamento não obrigatório,
pode levar a que a personagem, em lugar de seguir uma linha
autônoma de pensamentos e emoções coerente com o estatuto
que lhe foi conferido, como é seu direito inalienável, se veja
assaltada de modo arbitrário por expressões mentais ou
psíquicas que, vindas de quem vem, é certo que nunca lhe seriam
de todo alheias, mas que num instante dado podem revelar-se no
mínimo inoportunas, e em algum caso desastrosas. Foi
precisamente o que sucedeu a Tertuliano Máximo Afonso.
Olhava-se ao espelho como quem se olha ao espelho apenas para
avaliar os estragos de uma noite mal dormida, nisso pensava e em
nada mais, quando, de súbito, a desafortunada reflexão do
narrador sobre os seus traços físicos e a problemática
eventualidade de que em um dia futuro, auxiliados pela
demonstração de talento suficiente, poderiam ser postos ao
serviço da arte teatral ou da arte cinematográfica,
desencadeou nele uma reação que não seexagero classificar
de terrível. (2002, p. 34-5, grifos nossos.)
Em primeiro lugar, a presença de uma ironia corrosiva no momento em
que o narrador afirma que “os traços físicos de Tertuliano, aliados à
demonstração de talento suficiente, levariam essa personagem, no futuro, ao
trabalho com a arte teatral ou com a arte cinematográfica.”
Na verdade, o leitor não sabe, ainda, nessa altura da narrativa, que é
justamente isso o que ocorrerá com Tertuliano Máximo Afonso. Nas últimas
168
páginas do romance, graças a uma fatalidade, ele toma o lugar do ator Antonio
Claro. Como foi dito no início dessa análise em “Um breve prelúdio” os duplos
trocam de papéis, devido, sobretudo, à imbecilidade de Tertuliano, que,
chantageado por Antonio, seu duplo, insiste em não contar nada sobre os duplos
a Maria da Paz.
O resultado da teimosia de Tertuliano e da ira de Antonio Claro, que,
sentindo-se perseguido, decide agora também perseguir, é o seguinte: o ator
quer que Tertuliano conte tudo a Maria da Paz e o professor de História se nega
até as últimas conseqüências, permitindo que Antonio Claro vista as suas roupas
e vá, em seu lugar, encontrar Maria. Vestido como Tertuliano, o ator dirige-se
até Maria da Paz, enquanto Tertuliano decide ir encontrar-se com Helena, a
esposa do ator.
Por “ironia do destino”, Antonio Claro e a namorada de Tertuliano sofrem
um acidente de carro e morrem. Porém, para todos os efeitos, quem morrera
fora Tertuliano. E este, acaba, portanto, assumindo a vida do ator.
Logo, o que fez com que o professor de História se transformasse, no
futuro, em ator, foi uma seqüência de erros, ocasionados pela incapacidade de
Tertuliano de se relacionar francamente com as pessoas. Afinal de contas, ele
permitiu que o ator fosse, em seu lugar, ao encontro de Maria da Paz apenas
para não contar a ela, sua “companheira”, toda a verdade.
Em outras palavras, não foi por uma “demonstração de talento suficiente”
que Tertuliano se transformou em ator, como o narrador ironicamente afirma na
passagem analisada. Ao contrário disso, a passagem de Tertuliano de professor
de História a ator de cinema se deve à sua incompetência e inabilidade.
Como se vê, o leitor deve participar ativamente da construção do sentido
e isso vale – e muito - para essa obra de Saramago. Objetivamos fazer entender,
por meio da passagem acima, que o papel do leitor é fundamental, uma vez que,
apenas no final do romance, pode compreender o sentido irônico desse
169
fragmento. Fica legitimada também além da importância do leitor, que deve
“decifrar” as pistas jogadas por esse narrador no decorrer do texto a
importância do contexto. Na verdade, falar do contexto é apontar para o
leitor, na medida em que é justamente ele quem deve estar atento para
perceber e apreender esse contexto.
Além disso, é interessante notar que ocorre no trecho anterior o reforço
do ficcional, uma vez que na passagem “a problemática eventualidade de que em
um dia futuro [...] poderiam ser postos ao serviço da arte teatral” fica patente
que não se trata de uma “eventualidade”. O narrador sabe o que ocorrerá com
Tertuliano no futuro: isso já fora calculado, sendo, pois, ficção.
Se, de um lado, o narrador parece conferir “vida” à sua personagem no
momento em que afirma que Tertuliano se incomoda com os pensamentos do
narrador, que são inseridos em sua mente, de outro, a instância narrativa
também parece sugerir exatamente o contrário: um “ser de papel”, um
“fantoche” (no caso, Tertuliano) completamente manipulado pelo narrador, que
olhado dessa maneira, detém todo o relato.
Parece haver no trecho anterior, portanto, uma intenção do narrador de
legitimar o ficcional, afirmando que seus personagens não têm vida e tampouco
autonomia, mas, sim, que se contentam em receber os pensamentos que o
narrador lhes impõe. A seguinte passagem é também bastante expressiva quanto
a esses pontos que estamos analisando:
Para o relator, ou narrador, na mais do que provável hipótese de
se preferir uma figura beneficiada com o sinete da aprovação
acadêmica, o mais fácil, chegado a este ponto, seria escrever que
o percurso do professor de História através da cidade, e até
entrar em casa, não teve história. Como uma máquina
manipuladora do tempo, mormente no caso de o escrúpulo
profissional não ter permitido a invenção de uma zaragata de
rua ou de um acidente de trânsito com a única finalidade de
encher os vazios da intriga, aquelas três palavras, Não Teve
170
História, empregam-se quando urgência em passar ao episódio
seguinte ou quando, por exemplo, não se sabe muito bem que
fazer com os pensamentos que a personagem está a ter por
sua própria conta, sobretudo se não têm qualquer relação com as
circunstâncias vivenciais em cujo quadro supostamente se
determina e atua. Ora, nesta exata situação se encontrava o
professor e novel amador de vídeos Tertuliano Máximo Afonso
enquanto ia guiando o seu carro. É verdade que pensava, e muito,
e com intensidade, mas os pensamentos dele eram a tal extremo
alheios ao que nas últimas vinte e quatro horas tinha andado a
viver, que se resolvêssemos tomá-los em consideração e os
trasladássemos a este relato, a história que nos havíamos
proposto contar teria de ser inevitavelmente substituída por
outra. É certo que poderia valer a pena, melhor ainda, uma vez
que conhecemos tudo sobre os pensamentos de Tertuliano
Máximo Afonso, sabemos que valeria a pena, mas isso
representaria aceitar como baldados e nulos os duros esforços
até agora cometidos, estas quarenta compactas e trabalhosas
páginas já vencidas, e voltar ao princípio, à irônica e insolente
primeira folha, desaproveitando todo um honesto trabalho
realizado para assumir os riscos de uma aventura, não nova e
diferente, mas também altamente perigosa, que, não temos
dúvidas, a tanto os pensamentos de Tertuliano Máximo Afonso
nos arrastariam. Fiquemos portanto com este pássaro na mão em
vez da decepção de ver dois a voar. Além disso, não tempo
para mais. (Saramago, 2002, p. 52-3, grifos nossos.)
Ao contrário do que vimos no trecho citado acima, agora o narrador
afirma que pululam pensamentos na mente de Tertuliano Máximo Afonso e que,
no entanto, o melhor mesmo é desconsiderá-los, uma vez que tais pensamentos
desvirtuariam o percurso narrativo. Logo, se, por um lado, mais uma vez, o
narrador insinua ser seu personagem principal “autônomo”, por outro, deixa claro
que irá ignorar as reflexões de Tertuliano, confirmando seu “autoritarismo” na
condução do relato.
Apenas aparentemente o narrador finge concordar com a idéia de que
seus personagens possam se conduzir sozinhos, expressando juízos que não
sejam arbitrários ou que não reproduzam unilateralmente os pensamentos do
autor. Ao contrário disso, na verdade, Saramago parece satirizar os estudos
171
literários que defendem a possibilidade e a manutenção de discursos polifônicos.
Isso fica muito claro quando o narrador afirma que “o escrúpulo profissional” não
teria permitido a invenção de uma zaragata de rua, e ainda quando diz que ele
até poderia aceitar reproduzir os pensamentos de Tertuliano, mas isso desviaria
muito o rumo da história, anulando o seu “serviço”.
Percebemos que tais considerações do narrador podem ser
consideradas pelo vs da ironia. É possível inclusive pensarmos numa espécie de
paródia dos discursos polifônicos quando o narrador afirma que o “escrúpulo
profissional” não permite que ele invente nada, ou quando diz, ironicamente, que
nós “sabemos que valeria a pena” ouvir a “voz” de Tertuliano, muito embora
saibamos que, na verdade, esse personagem é uma criatura extremamente
desinteressante...
Como se percebe, valendo-se de diversas estratégias, o narrador cria um
jogo entre a realidade e a ficção. No início da passagem citada, ele afirma que “o
percurso do professor de História através da cidade, e até entrar em casa, não
teve história”, e que isso é um fato. Aventa a possibilidade de poder inventar
algo como “um acidente de trânsito com a única finalidade de encher os vazios da
intriga”, o que se contrapõe a seu suposto “escrúpulo profissional” que o
impediria de tal interferência.
Dessa forma, a instância narrativa parece instigar o leitor a acreditar que
esse narrador nada inventa, relatando apenas aquilo que verdadeiramente
aconteceu. Todavia, se de fato o narrador nada tem a criar porque o seu
“escrúpulo profissional” não consente nisso dispondo-se somente a transpor
fatos para o papel, como um mero “relator”, por que haveria de negar-se a
reproduzir os “reais” pensamentos de Tertuliano? Essa negação em si
desmente esse narrador, uma vez que revela seu pleno controle da narrativa.
Ora, seria impossível chegar a um sentido satisfatório para o trecho
analisado se não o examinarmos, mais uma vez, pelo viés da ironia. Ocorre que o
172
narrador afirma que nada inventa e que seus personagens têm pensamentos
próprios, contudo, como vimos, ele se desmente. Mas é óbvio que estamos diante
de uma estratégia: o narrador não faz mais do que mostrar, ironicamente, que
comanda o fazer literário, reforçando, pois, o ficcional e manipulando o leitor
segundo lhe apraz.
Todas essas considerações apontam para a constatação de que o narrador
reconhece o quão penoso é o trabalho literário, caso contrário, ele não titubearia
em listar os pensamentos “de Tertuliano”, abandonando o fio narrativo, segundo
ele, arduamente construído. A expressão “de Tertuliano” foi colocada entre
aspas justamente para que se perceba que, na opinião desse narrador, não
existem realmente pensamentos que possam ser atribuídos aos personagens:
eles não têm autonomia, estão sob os domínios de um narrador manipulador.
Logo, se estamos falando em “trabalho literário”, isso exclui qualquer
“registro mecânico” de fatos para o papel, conforme propõe ironicamente o
narrador. É também de forma irônica que a instância narrativa tenta propagar a
opinião de que nada “inventa” consideração esta que não deixa de contribuir
com a verossimilhança. Na verdade, portanto, ocorre nesse trecho uma ênfase
aos caminhos escarpados do fazer literário.
Essa tensão entre vozes aparentemente adversas e irônicas é, sem dúvida
alguma, proposital. Está inserida no trecho analisado, como em outros do
romance, a fim de provocar no leitor uma interessante reflexão sobre o ato
criativo literário. Por conseguinte, o narrador parece nos propor, de maneira
instigante, uma meditação sobre a criação literária e, mais pontualmente, sobre
a origem do fazer literário: seria a fantasia ou a realidade o “terreno fértil” de
onde brotaria a literatura?
As três passagens abaixo expressarão de maneira assaz reveladora a
tensão a que nos referimos até aqui. Todas se referem a Tertuliano:
173
Se do próprio responsável da idéia não podemos, neste momento,
esperar que nos ilumine os caminhos, sem nenhuma dúvida
tortuosos, por onde vagamente estará imaginando que alcançará
os seus objetivos, não se conte conosco, simples transcritores de
pensamentos alheios e fiéis copistas das suas ações, para que
antecipemos os passos seguintes de uma procissão que ainda
agora vai no adro. (Saramago, 2002, p. 188, grifos nossos.)
No entanto, o privilégio de que gozamos, este de saber tudo
quanto haverá de suceder até à última página deste relato,
com exceção do que ainda vai ser preciso inventar no futuro
[...] (2002, p. 244, grifos nossos.)
Tal como parece que da natureza se diz, também a narrativa tem
horror ao vazio, por isso, não tendo Tertuliano Máximo Afonso,
neste intervalo, feito alguma coisa que valesse a pena relatar, não
tivemos outro remédio que improvisar um chumaço de recheio que
mais ou menos acomodasse o tempo à situação. Agora que ele se
resolveu a tirar a cassete da caixa e a introduziu no leitor,
poderemos descansar. (2002, p. 88, grifos nossos.)
Nesses trechos, mais uma vez, o leitor precisa de atenção redobrada para
não interpretá-los literalmente. Se assim procedemos, somos obrigados a
constatar uma simples oposição, ou um jogo do narrador, que ora conduz o leitor
para a esfera do ficcional, ora para a esfera do “real”, ao discutir sobre as
adversidades do fazer literário. Tal postura reduziria muito a análise.
Esses trechos exigem que lancemos sobre eles um olhar irônico, pois este
foi com certeza o olhar do narrador. Quando ele se diz “simples transcritor de
pensamentos alheios e fiel copista de suas ações”, novamente é lícito
entendermos que estamos perante uma sátira ao discurso que defende a idéia de
que uma narrativa deve se conduzir por si mesma, sem a manipulação do
narrador. Portanto, a independência das personagens e a isenção do narrador são
apenas aparentes. O narrador desse romance manipula, cria, utiliza-se de
estratégias de convencimento e enfatiza ironicamente o caráter ficcional da
narrativa.
174
É interessante chamar a atenção para o fato de que esse narrador sempre
sugere, insinua, aventa possibilidades sem comprometer-se com nenhum
afirmação explícita. Conforme temos insistido no decorrer deste trabalho, cabe
ao leitor aceitar ou não o convite bastante sutil desse narrador para que ele
(o leitor) decifre esse texto caracterizado por tantas mensagens sub-reptícias.
O receptor dessa obra de Saramago deve, pois, estar atento para
perceber as pistas deixadas pelo narrador e, concomitantemente, participar da
construção do sentido. A própria instância narrativa, por meio de uma
interessante digressão, chama a atenção do leitor para a importância de se
decifrar os discursos subliminares, nomeados por ele de “subgestos”:
[...] aproveitemos para desenvolver um pouco, pouquíssimo para o
que a complexidade da matéria necessitaria, a questão dos
subgestos, que aqui, pelo menos tanto quanto é do nosso
conhecimento, pela primeira vez se levanta. É costume dizer-se,
por exemplo, que Fulano, Beltrano ou Sicrano, numa determinada
situação, fizeram um gesto disso, ou daquilo, ou daqueloutro,
dizemo-lo assim, simplesmente, como se o isto, ou o aquilo, ou o
aqueloutro, dúvida, manifestação de apoio ou aviso de cautela,
fossem expressões forjadas de uma peça, a dúvida, sempre
metódica, o apoio, sempre incondicional, o aviso, sempre
desinteressado, quando a verdade inteira, se realmente a
quisermos conhecer, se não nos contentarmos com as letras
gordas da comunicação, reclama que estejamos atentos à
cintilação múltipla dos subgestos que vão atrás do gesto como
a poeira cósmica vai atrás da cauda do cometa, porque esses
subgestos, para recorrermos a uma comparação ao alcance de
todas as idades e compreensões, são como as letrinhas
pequenas do contrato, que dão trabalho a decifrar, mas estão
. (Saramago, 2002, p. 46-7, grifos nossos.)
Fica evidente aqui que o narrador faz realmente um convite ao leitor para
que este importância às palavras ditas de maneira indireta, pois elas
correspondem, de acordo com ele, à “verdade inteira”. A instância narrativa
refere-se, conforme é possível inferir, à própria narrativa que edifica,
175
caracterizada, portanto, pela sugestão, pela insinuação ou ainda pelos
“subgestos”.
Além disso, o romance ainda apresenta casos diferentes de ironia
romântica, passagens realmente significativas por proporcionarem uma reflexão
que, de fato, extrapola os limites do ficcional. Examinemos o seguinte
fragmento:
É de todos conhecido, porém, que a enorme carga de tradição,
hábitos e costumes que ocupa a maior parte do nosso cérebro
lastra sem piedade as idéias mais brilhantes e inovadoras de que
a parte restante ainda é capaz, e se é verdade que em alguns
casos essa carga consegue equilibrar desgovernos e desmandos
de imaginação que Deus sabe aonde nos levariam se fossem
deixados à solta, também não é menos verdade que ela tem, com
freqüência, artes de submeter sutilmente a tropismos
inconscientes o que críamos ser a nossa liberdade de atuar, como
uma planta que não sabe por que terá sempre de inclinar-se para o
lado de onde lhe vem a luz. (2002, p. 86)
Como se vê, a instância narrativa tece um comentário bastante crítico que
abrange muito mais do que apenas Tertuliano Máximo Afonso e a sua dificuldade
em administrar bem a sua vida em todos os setores (amoroso, profissional,
pessoal)... Na verdade, por meio dessa intervenção assim chamada porque
interrompe o fio narrativo o narrador desenvolve reflexões que apontam para
fora da história, aqui entendida como série de fatos narrados.
Tais reflexões dirigem-se, portanto, ao próprio ser humano e à sua
irracional tendência a pôr de lado todo seu “brilhantismo” e seus planos reais de
vida em nome das convenções sociais e da “enorme carga de tradição”, como
afirma esse narrador no trecho acima. Valendo-se dessa instância narrativa,
Saramago nos convida a pensar um pouco sobre o nosso direito à liberdade. É
curioso notar que, mais uma vez, o convite não se faz às claras: é sugerido.
176
Ao contrário dos trechos de ironia romântica examinados anteriormente –
que contribuíam com o reforço do ficcional –, essa passagem, embora parta do
ficcional (da vida sem sentido de Tertuliano) joga o leitor abruptamente para
fora da narrativa, impelindo-o a refletir sobre sua vida “real” e sobre a sua
própria condição no mundo. Afinal, o narrador parece perguntar ao leitor a qual
das duas esferas ele pertence: a daqueles submetidos completamente aos
hábitos e tradições sociais, responsáveis por nos cercear, ou à categoria
daqueles que, libertos, vêem com mais facilidade as tentativas de manipulação
que os rodeiam.
Vejamos outras duas passagens:
Afinal estará a dormir quando a mulher entrar na sala, mas o
efeito não se perdeu por completo, ela julgou que ele se tinha
levantado para estudar o papel, algumas pessoas assim,
gente a quem um apurado sentido da responsabilidade mantém
permanentemente inquietas, como se em cada momento
estivessem a faltar a um dever e disso se acusassem.
(Saramago, 2002, p. 233, grifos nossos.)
A alma humana é uma caixa donde sempre pode saltar um palhaço
a fazer caretas e a deitar-nos a língua de fora, mas ocasiões
em que esse mesmo palhaço se limita a olhar-nos por cima da
borda da caixa, e se que, por acidente, estamos procedendo
segundo o que é justo e honesto, acena aprovadoramente com a
cabeça e desaparece a pensar que ainda não somos um caso
perdido. (2002, p. 293)
Em ambos os fragmentos temos um narrador que toma a ficção como
ponto de partida para a sua análise do Homem, atraindo, depois, o leitor consigo
para fora do ficcional, para a sua realidade, para a sua existência como ser
humano no mundo. A reflexão acerca da vida, acerca do “estar no mundo” e seus
entraves inicia-se, pois, na ficção e se completa na “realidade”, quando o leitor
177
consegue aplicar tais raciocínios ao seu cotidiano, avaliando as necessidades de
mudança – ou não.
É fundamental salientar ainda a sensibilidade desse narrador, que se faz
presente no decorrer de toda a narrativa. Trata-se de passagens dignas de um
poeta, tendência também patente na passagem a seguir, na qual o escritor se
utiliza com maestria de uma linguagem toda figurada para nos falar do homem e
do professor limitado e sem vitalidade que é Tertuliano Máximo Afonso:
A História que Tertuliano Máximo Afonso tem a missão de
ensinar é como um bonsai a que de vez em quando se aparam as
raízes para que não cresça, uma miniatura infantil da gigantesca
árvore dos lugares e do tempo, e de quanto neles vai sucedendo,
olhamos, vemos a desigualdade de tamanho e por nos deixamos
ficar, passamos por alto outras diferenças não menos notáveis,
por exemplo, nenhuma ave, nenhum pássaro, nem sequer o
diminuto beija-flor, conseguiria fazer ninho nos ramos de um
bonsai [...] (2002, p. 15)
Encontramos aqui, mais uma vez, o diálogo entre a ficção e a realidade
presente em “O homem duplicado”, de José Saramago. Como foi visto, por meio
de estratégias discursivas diferentes, a intenção subjacente a esse texto é
constante: evocar a discussão sobre a arte literária e suas funções.
Assim, seja através do recurso à ironia romântica que reforça o ficcional,
seja por meio da ironia romântica que nos envia para fora do texto ficcional, as
mesmas indagações são sempre recorrentes: quais são os limites da literatura?
Quais são as suas origens e os seus motivos? De onde ela vem e para onde ela
vai?
Nós, leitores, somos constantemente orientados por esse narrador a não
buscar respostas pontuais para esses questionamentos. Na verdade, embora o
narrador enfatize o ficcional, ironicamente, nas primeiras passagens analisadas,
baseados nos últimos excertos observados, podemos afirmar que, para
178
Saramago, o fazer literário não é “ficção” ou apenas “realidade”, não se inicia
com a fantasia e termina com a verdade e nem parte da verdade e caminha
para a ficção.
Observemos o seguinte trecho do romance:
A vida real sempre nos tem parecido mais parca em coincidências
que o romance e as outras ficções, salvo se admitíssemos que o
princípio da coincidência é o verdadeiro e único regedor do
mundo, e nesse caso tanto deveria valer aquilo que se vive como
aquilo que se escreve, e vice-versa. (Saramago, 2002, p. 170-1)
Essa passagem é extremamente significativa, na medida em que elucida
justamente a discussão realizada até o momento. Ora, o narrador tece o
seguinte raciocínio: a “vida real” é pobre em coincidências em relação à ficção;
entretanto, “o princípio da coincidência é o verdadeiro e único regedor do
mundo”. A instância narrativa insinua, mais uma vez, pois, a necessidade de
amalgamar realidade e ficção, colocando essas duas “categorias” no mesmo
patamar, conferindo a elas, por conseguinte, a mesma importância. “Ouçamos” as
palavras do estudioso Antonio Cândido:
A fantasia quase nunca é pura. Ela se refere constantemente a
alguma realidade: fenômeno natural, paisagem, sentimento, fato,
desejo de explicação, costumes, problemas humanos, etc. Eis
porque surge a indagação sobre o vínculo entre fantasia e
realidade, que pode servir de entrada para pensar na função da
literatura. (2000, p. 130)
Logo, o fazer literário é “feito” de realidade e de ficção, sempre. Como
explica o estudioso acima, a literatura parte, muitas vezes do real, transpondo
“marcas de realidade” para a ficção que se edifica. Porém, tais marcas serão
apreendidas – ou não – pelo leitor, que as conduzirá novamente para a sua
realidade.
179
Portanto, uma vez que parte do real, a literatura carrega consigo certa
dose de “verdade” e é justamente por isso que tem também o papel tão
importante de possibilitar a transformação do ser humano e, conseqüentemente,
de seu mundo. Trata-se, por conseguinte, de um maravilhoso e infinito processo;
“maravilhoso” e “infinito” porque instaura, perpetuamente, a possibilidade de
mudança.
Convém que nos perguntemos, finalmente, sobre a escolha das profissões
de Tertuliano Máximo Afonso e de Antonio Claro. Quais razões determinam que
o primeiro seja um professor de História e o segundo, um ator? O historiador
lida com fatos
reais
que sucederam, enquanto o ator trabalha em geral com a
ficção
, ou seja, com fatos que poderiam ter acontecido.
Tertuliano Máximo Afonso, em sua condição de professor de História
aliás, um mau professor na opinião do narrador consegue enxergar apenas o
palpável, o real. Ele não tem nenhum conhecimento sobre o
outro
e parece não se
importar com isso. Falta-lhe, pois, autoconhecimento, uma vez que o exercício da
alteridade não lhe é costumeiro.
Dito de outra maneira, Tertuliano não valoriza o convívio com as outras
pessoas. O professor de História não sente simpatia e muito menos amizade por
ninguém em seu ambiente profissional. A única pessoa com quem mantém um
relacionamento é Maria da Paz, a quem ele constantemente magoa, porque não a
reconhece enquanto companheira:
Tertuliano Máximo Afonso marcou o número do telefone de Maria
da Paz, provavelmente atende-lo-ia a mãe, e o breve diálogo seria
mais uma pequena comédia de fingimentos, grotesca e com um
ligeiro toque de patético, A Maria da Paz está, perguntaria, Quem
quer falar com ela, Um amigo, Como é o seu nome, Diga-lhe que é
um amigo, ela saberá de quem se trata [...] Ao longo de seis meses
de sua relação com Maria da Paz não foram muitas as vezes que
Tertuliano precisou de telefonar-lhe [...] (2002, p. 122)
180
Tertuliano não entende, pois, nada do ser humano e muito menos de si,
vivendo centrado em si mesmo e, por isso, não conseguindo resolver seus
conflitos interiores.
Antonio Claro, em contrapartida, é ator. Sua profissão é, de certa forma,
oposta a de Tertuliano, uma vez que o êxito de seu trabalho está justamente em
se colocar “na pele” dos outros, vivenciando experiências diferentes. Antonio
Claro é um fingidor; precisa imitar a dor e os prazeres alheios e, para ser
convincente, necessita se aproximar e entender o
outro
.
Bem, José Saramago, ao que parece, está tentando dizer algo por meio de
toda essa representação. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer uma refinada
ironia na finalização dessa narrativa: o professor de História é, na verdade,
quem morre, uma vez que terá que esquecer sua própria vida e encarnar a figura
do ator. Assim, o ator morreu e, entretanto, continuará vivo na pele de
Tertuliano Máximo Afonso. Trata-se de uma profunda ironia: o professor de
História está vivo, mas, na “realidade”, morreu, e o ator, por sua vez, morreu,
mas, “de fato”, está vivo.
Seguindo esse raciocínio, é possível imaginar que a personagem do ator é
uma metáfora da própria obra literária. Tertuliano, o professor de História,
parece estar destinado a encontrar o ator, seu duplo. Tudo leva a Antonio Claro,
e Tertuliano não consegue mais evitar o encontro, pois sente necessidade dele.
Nicole Fernandez Bravo (2000, p. 273) referindo-se a um personagem de
Hoffmann, que vive um conflito muito parecido com o de Tertuliano, afirma:
“Somente pela aceitação final de sua identidade na solidão e na religião
(substitutas da arte, que, noutros textos, é o meio de transcender a existência
humana fadada ao dilaceramento) é que ele assumirá sua identidade.”
O contato com a arte literária representada pelo ator permitirá que
Tertuliano inicie uma viagem para dentro de si mesmo, rumo ao
181
autoconhecimento. É curioso perceber que Tertuliano não apenas “entrou em
contato” com o ator, mas inclusive tomou o seu lugar.
Isso significa que é justamente por meio da aproximação e da
identificação com o texto ou com personagens literários ou com a arte de
maneira geral que se conhece a si mesmo. Agora, na pele do ator, o professor
de História será obrigado a praticar o exercício da alteridade e, gradualmente,
tornar-se-á uma pessoa melhor. Ocorre, portanto, a morte simbólica do
professor de História a fim de que um outro, mais humano e mais sensível,
chegue a nascer.
Saramago realizou com maestria uma metaficção, que utilizou uma obra
de arte literária para refletir justamente sobre a importância fundamental da
arte na construção da identidade. “O homem duplicado” é, sem dúvida, uma
narrativa que contempla um interessante processo de auto-reflexão, uma vez
que tematiza o próprio processo da escrita literária.
Logo, Saramago entende que a literatura atua na formação do homem.
Para tanto, ênfase à profunda relação que existe entre o real e o ficcional.
Antonio Cândido, em seu texto “A literatura e a formação do homem”, afirma
que o laço entre a imaginação literária e a realidade concreta do mundo é o que
caracteriza a literatura como uma “força” integradora e transformadora do ser
humano.
O autor de
O homem duplicado
representou de maneira incisiva a
importância da arte literária: colocou um historiador (representante do
real
, do
concreto) em uma busca obsessiva pelo ator, seu duplo (representante da
ficção
). O contato entre esses dois grandes personagens permitirá ou não
(porque muitos e muito diferentes são os Tertulianos...) o início da busca de si
mesmo.
Como fecho da presente análise vale lembrar que “A metaficção revela sua
condição de artifício e explora a problemática relação entre vida e ficção.
182
Simultaneamente se cria uma ficção e é constatada a invenção da mesma.”
(WAUGH, 1990, p. 34).
183
6.3 As refrações da ironia, em
O Cavaleiro inexistente
, de
Calvino
Consideramos
O cavaleiro inexistente
, de Ítalo Calvino, uma obra
fundamental para nossa investigação, uma vez que, além de contemplar a
problemática da ironia, paródia e riso, convida o leitor a participar ativamente da
construção do sentido. E isso se dá já desde o fato de que a história –
entendida como seqüência de fatos narrados não parece ser a primeira
preocupação do narrador. Na verdade, a essência do texto está não na
superfície exposta, mas nas suas lacunas, nas entrelinhas, ou seja, naquele
espaço que parece extrapolar a narrativa propriamente dita. Essa essência
precisa ser destilada do texto, chegando-nos, assim, de modo indireto. Uma vez
vislumbrada, ela revela uma substância envolvida pela complexa trama da ironia,
do riso e da paródia.
Como paródia das novelas de cavalaria medievais, a obra está estruturada
por uma série de oposições. A primeira delas é justamente a contradição entre
os cavaleiros de Carlos Magno e Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos
Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriori e Fez, ou
simplesmente o “cavaleiro inexistente”.
É interessante notar que a própria figura de Carlos Magno poderoso
imperador franco que brilha com destaque na História européia, estando na raiz
dos atuais países França, Alemanha e Itália é igualmente parte da trama
irônica e risível construída pelo narrador. Paródia do herói medieval e da própria
concepção de monarquia, Carlos Magno nos é mostrado em meio a seus cavaleiros
e em oposição ao cavaleiro Agilulfo, compondo um quadro que justamente mostra
seu lado menos fotogênico. Assim, na primeira página da narrativa, lemos o
seguinte:
184
Finalmente, vislumbraram-no avançando no fundo, Carlos
Magno, num cavalo que parecia maior que o natural, com a barba
no peito, as mãos no arção da sela. Reina e guerreia, guerreia e
reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido, desde a
última vez que aqueles guerreiros o tinham visto. (Calvino, 2005,
p. 7, grifos nossos.)
Percebemos, sobretudo pelos trechos salientados, o objetivo do narrador
de desmistificar as imagens de “belo” e “eterno” associadas a Carlos Magno. Na
verdade, seu cavalo “parecia maior que o natural”, ou seja, já temos aí sutilmente
criticada a questão da aparência de grandeza e virtude, empregada também em
relação ao cavalo. Quando o narrador afirma que Carlos Magno “parecia um tanto
envelhecido”, demonstra sua intenção, também implícita, de “humanizar” a figura
de Carlos Magno, despindo-a das auréolas de “belo”, “eterno, “grandioso” e
outras de mesmo quilate.
O narrador satiriza, ainda, o automatismo do rei, que se comporta como
um robô, entrevistando os cavaleiros:
e seguia adiante: - E-quem-é-você, paladino da França? repetia,
sempre com a mesma cadência: “Tata-tatatai-tata-tata-tatata...
[...] Todas coisas que, ditas pelo rei, dão prazer, mas eram sempre
as mesmas frases, há tantos anos. (2005, p. 8)
O fato de ser Agilulfo um cavaleiro que não existe mas que pode ser
visto não parece incomodar o rei, que o entrevista sem dar grande importância
a isso. O narrador não deixa que esse ponto passe despercebido: “[o rei] girou o
cavalo e afastou-se rumo ao acampamento real. Já velho, tendia a eliminar da
mente as questões complicadas.” (2005, p. 10)
No que diz respeito aos cavaleiros, a instância narrativa age de mesma
maneira:
Todo o resto, a perpétua confusão do exército em guerra, o
formigueiro diurno no qual o imprevisto pode se manifestar como
185
a fúria de um cavalo, agora silencia, pois o sono venceu a todos:
guerreiros e quadrúpedes da cristandade, estes enfileirados e em
pé, às vezes esfregando um casco no chão ou emitindo um breve
relincho ou zurrando, aqueles finalmente livres dos elmos e das
couraças, satisfeitos por se tornarem seres humanos distintos
e inconfundíveis, ali estão todos roncando em uníssono. [...] Em
nenhum lugar se dorme tão bem como no exército. (2005, p. 12,
grifos nossos.)
Aqui, os comentários tecidos pelo narrador acerca dos cavaleiros e dos
animais são, propositalmente, confusos. Homens e cavalos são nivelados, pois
“roncam em uníssono”. Porém, o narrador, irônico, afirma que os cavaleiros estão
“satisfeitos por se tornarem seres humanos distintos e inconfundíveis”.
Inconfundíveis? Ora, a ironia do narrador não poderia ser mais pungente. É
interessante perceber, ainda, que a designação “quadrúpedes da cristandade” é
carregada de malícia e, em contrapartida à desumanização ou desindividualização
dos homens, confere traços humanos aos animais.
Em muitas outras passagens, os cavaleiros são correlacionados aos animais
por meio das descrições do narrador: “e entre corcovear e dar cotoveladas, seus
escudos prateados erguiam-se e abaixavam-se como guelras de um peixe. O
exército se parecia com um peixe comprido repleto de escamas: uma enguia.”
(2005, p. 23) Em vários momentos, o narrador flagra os cavaleiros se
alimentando e, então, nos deparamos com cenas freqüentemente dantescas:
Os pratos são os habituais no exército: peru recheado, pato no
espeto, carne de vaca na brasa, leitão, enguias, dourado. Os
valetes mal chegam a depositar as bandejas e os paladinos se
atiram em cima, pegam com as mãos, despedaçam com os dentes,
engorduram as couraças, espirram molho por todos os lados. Há
mais confusão que no combate: sopeiras que são viradas, frangos
assados que voam, e os valetes que levam as bandejas antes que
um insaciável as esvazie em sua tigela. (Calvino, 2005, p. 62-63)
Como se vê, existe realmente uma intenção do narrador de ridicularizar
esses cavaleiros e isso inclui a figura de Carlos Magno. O trecho que acabamos
186
de citar descreve um “banquete dos paladinos”, e durante esse jantar, ocorre
uma revelação importante sobre Agilulfo: a castidade da dama salva por ele é
questionável. Ora, foi justamente por ter defendido a pureza de uma pobre
virgem que Agilulfo tinha se tornado cavaleiro do rei, de modo que seu posto
poderia ser colocado em xeque. Toda essa discussão acontece durante páginas
entre os cavaleiros e não ouvimos a voz do rei. Por fim o narrador apenas
acrescenta: “Carlos Magno, que até então mantivera rosto e barba inclinados
sobre um prato de camarões de rio, julgou que chegara a hora de levantar o
olhar.” (2005, p. 67) Assim, a crítica aos cavaleiros não poupa o rei Carlos
Magno.
as descrições de Agilulfo têm caráter bem distinto. Vejamos a
primeira delas:
Agilulfo deu alguns passos para misturar-se a um daqueles
abrigos, depois sem motivo foi para outro, mas não se ambientou
e ninguém ligou para ele. Permaneceu um pouco indeciso às costas
de um e de outro, sem participar dos diálogos, depois colocou-se à
parte. [...] A armadura branca despontava isolada em meio ao
prado. [...] Agilulfo era certamente um modelo de soldado; porém,
antipático a todos. (2005, p. 10-11)
Por ser extremamente correto, esse personagem era odiado por todos os
demais cavaleiros. Seu perfeccionismo não lhe permitia aceitar qualquer
negligência no serviço dos colegas: “chamava-os um por um, retirando-os das
doces conversas ociosas da noitada, e contestava com discrição e firme exatidão
as faltas deles [...]” (2005, p. 11).
Portanto, Agilulfo se opõe a esses cavaleiros, sobretudo em relação à sua
conduta: enquanto os cavaleiros são fúteis, irracionais e ociosos, o cavaleiro
inexistente é trabalhador, responsável e, acima de tudo, ainda que não exista,
Agilulfo pensa. Observemos a seguinte passagem:
187
Em nenhum lugar se dorme tão bem como no exército. Somente
Agilulfo não conseguia esse alívio. Na armadura branca,
completamente equipada, no interior de sua tenda, uma das mais
ordenadas e confortáveis do acampamento cristão, tentava
manter-se deitado e continuava pensando: não os pensamentos
ociosos e divagantes de quem está para pegar no sono, mas
sempre raciocínios determinados e exatos. [...] Como era
possível aquele fechar de olhos, aquela perda de consciência de si
próprio, aquele afundar num vazio das próprias horas e depois, ao
despertar, descobrir-se igual a antes, juntando os fios da própria
vida, Agilulfo não conseguia saber, e sua inveja da faculdade de
dormir característica das pessoas existentes era uma inveja
vaga, como de algo que não se pode nem mesmo conceber.
(Calvino, 2005, p. 12-13, grifos nossos.)
Agilulfo nutre, pois, sensações ambíguas em relação aos “homens que
existem”. Sente raiva de seus erros e nojo de seus hábitos por exemplo,
roncar e babar enquanto dormem –, no entanto, inveja sua capacidade de fechar
os olhos e se desligar da vida por algumas horas.
Um personagem que contribui muito com a caracterização que estamos
apresentando dos cavaleiros e de Agilulfo é Rambaldo de Rossiglione, um
aspirante a cavaleiro. Seu único desejo é vingar a morte de seu pai, morto como
herói na guerra, pelas mãos do pagão emir Isoarre. Rambaldo é ingênuo, pois
na guerra um meio de justiça e enxerga os cavaleiros como personificações da
honra. No entanto, à medida que convive com a cavalaria de Carlos Magno,
decepciona-se:
Rambaldo gostaria de ter se misturado com aquela multidão que
pouco a pouco tomava a forma de pelotões e companhias
incorporadas, mas tinha a impressão de que aquele bater de
ferros era como um vibrar de élitros de insetos, um crepitar
de invólucros secos. Muitos dos guerreiros estavam fechados no
elmo e na couraça até a cintura, e sob os flancos e os protetores
dos rins despontavam as pernas com calças e meias porque
deixavam para colocar coxotes, perneiras e joelheiras quando
estivessem montados. As pernas, sob aquele rax de aço,
pareciam mais finas, como patas de grilo; e a maneira como
se moviam, falando, as cabeças redondas e sem olhos, e
188
também o modo de manter dobrados os braços pesados de
cubitais e manoplas parecia coisa de grilo ou de formiga; e
assim toda aquela azáfama lembrava um zumbido indistinto de
insetos. No meio deles, os olhos de Rambaldo procuravam algo:
era a armadura branca de Agilulfo que ele esperava reencontrar,
talvez porque sua aparição teria tornado mais concreto o
resto do exército, ou então porque a presença mais sólida
com que ele se deparara havia sido justamente a do cavaleiro
inexistente. (2005, p. 19-20, grifos nossos.)
Como se vê, Rambaldo, que desejava ser sagrado cavaleiro e que acabara
de chegar ao exército, espera encontrar um cavaleiro idealizado: grandioso,
forte, honesto e justo. Ao se deparar com a cavalaria de Carlos Magno,
entretanto, experimenta uma frustração não apenas quanto ao caráter dos
cavaleiros, mas também ao porte físico daqueles homens, cujas pernas eram
finas “como patas de grilo”. A magreza e fragilidade dos cavaleiros eram
disfarçadas pela armadura... Ironicamente, Rambaldo busca Agilulfo, o cavaleiro
inexistente, “porque sua aparição teria tornado mais concreto o resto do
exército.”
Logo, é possível inferir que, de fato, existe uma oposição bastante
significativa entre Agilulfo e o exército do imperador Carlos Magno. Não
dúvida de que se trata de um contraste irônico, uma vez que o cavaleiro em
questão não existe e, mesmo assim, ele é justamente a “presença mais sólida”
entre os “paladinos da França”. Num outro momento, o narrador ainda afirma:
“Rambaldo gostaria de trocar confidências com o cavaleiro da armadura branca,
como se fosse o único capaz de compreendê-lo, nem ele mesmo saberia dizer por
quê.” (Calvino, 2005, p. 43)
Certamente, estamos diante da contradição irônica que sustenta a paródia
criada por Ítalo Calvino. Como dissemos, a obra em questão pode ser lida como
uma paródia das novelas de cavalaria medievais. Nesse sentido, temos, pois,
Agilulfo, de um lado, representando o cavaleiro ideal, bondoso, casto, honrado e
189
cristão. De outro, temos os cavaleiros tais como eles são: irracionais,
preguiçosos, desajeitados, feios e maliciosos. Esse contraste é irônico, pois não
nos chega diretamente: o leitor é convidado a colaborar na edificação desse
texto, fazendo a ponte entre a referência antiga (História) e a realização nova
(obra do c. XX); entre a retomada de um ideal (que enobrece a figura
abstraída do passado) e a mesquinhez do cotidiano humano (que afeta a todos
ontem e hoje); entre arte e observação da realidade. A crítica e ironia de
Calvino recai, assim, igualmente sobre Carlos Magno e seus cavaleiros.
Ao mesmo tempo que rebaixa o imperador e sua cavalaria, a narrativa põe
em cena a figura de Agilulfo, um modelo de cavaleiro, o representante do
“cavaleiro medieval” que, não obstante, é um “cavaleiro inexistente”. Sua falta
de materialidade aponta para seu caráter tanto ideal quanto ficcional.
Em seu artigo
O cavaleiro inexistente e o homem sem sombra ou de
quando não se a imagem no espelho
, publicado na revista
Mirabilia
, Maria da
Penha Casado Alves entende que
Ítalo Calvino com seu romance
O cavaleiro inexistente
polemiza
com toda a tradição dos romances de cavalaria e dialogicamente
ri de todo esse universo idealizado, apresentando-nos a
decadência, senilidade e finitude dos personagens magníficos que
povoavam os romances de cavalaria medievais, particularmente de
Carlos Magno e seus paladinos. (
Mirabilia
, Revista eletrônica de
história antiga e medieval.)
Segundo esse ponto de vista, estamos diante de um texto que parodia
justamente a visão do cavaleiro medieval como um “herói imaculado”. Na
verdade, a História nos atesta que o cavaleiro que participava das Cruzadas não
estava absolutamente interessado em “levar a aos povos bárbaros”, mas sim,
em pôr em prática quaisquer expedientes a fim de alcançar benefícios, como o
lucro, a conquista de poder e
status
social. Não é sem razão que o historiador
Leo Hubermann (1986, p. 18) chama as cruzadas de “expedições de saque”.
190
Massaud Moisés, ao comentar
A
Demanda do Santo Graal
, traz à baila questões
que são também pertinentes para
O cavaleiro inexistente
:
A Demanda corresponde precisamente à reação da Igreja
Católica contra o desvirtuamento da Cavalaria. Os cavaleiros
andantes feudais não raro acabaram por se transformar em
indivíduos desocupados, quando não em autênticos bandoleiros,
vivendo ao sabor do acaso, amedrontando, pilhando, assaltando. A
fim de trazê-los à civilização, reconvertendo-os aos bons
costumes, o Concílio de Clermont, em 1095, decidiu a organização
da primeira Cruzada e a correspondente formação de uma
cavalaria cristã. Inicia-se uma vasta pregação de ideais de
altruísmo e respeito às instituições. A Demanda, cristianizando a
lenda pagã do Santo Graal, colabora intimamente com o processo
restaurador da Cavalaria andante: caracteriza-se por ser uma
novela mística, em que se contém uma especial noção de herói
antifeudal, qualificado por seu estoicismo inquebrantável e sua
total ânsia de perfeição. Novela a serviço do movimento
renovador do espírito cavaleiresco, em que o herói também está a
serviço, não mais do senhor feudal, mas de sua salvação
sobrenatural, uma brisa de teologismo varre-a de ponta a ponta, o
que não impede, porém, a existência de circunstâncias jactos
líricos e eróticos, nem algumas gotas de fantástico ou mágico, em
que o real e o imaginário se cruzam de modo surpreendente.
(1999, p. 29)
Agilulfo representa certamente esse cavaleiro paradigmático buscado
pela Igreja [Igreja = instituição; igreja = prédio] para melhorar a imagem dos
cavaleiros, que tinham fama de bandoleiros e saqueadores. Logo, em
O cavaleiro
inexistente
, encontramos, de um lado, Agilulfo, representando o ideal de
perfeição e, de outro, Carlos Magno e seu exército corporificando a nua e crua
realidade acerca dos cavaleiros.
Um personagem que colabora muito para a legitimação dessa crítica à
cavalaria é Torrismundo, um dos cavaleiros de Carlos Magno. Ele é o causador do
conflito vivido por Agilulfo, pois declara que Sofnia justamente a moça que
teve sua castidade salva por Agilulfo - é sua mãe (de Torrismundo). Ora, se
191
Sofrônia era mãe de Torrismundo, Agilulfo não preservou sua virgindade e,
desse modo, não deveria fazer jus ao título que lhe fora conferido, à época
desse acontecimento, de “cavaleiro de Carlos Magno”. Agilulfo corre, então, o
mundo em busca de Sofrônia a fim de provar sua castidade.
Ao final, ficamos sabendo que tudo não passara de um engano, uma vez que
Torrismundo e Sofrônia não tinham, na verdade, nenhum parentesco de sangue.
Sofrônia ainda era imaculada quando foi encontrada por Torrismundo, e vivia a
sua primeira experiência amorosa. Ambos são surpreendidos após a consumação
do ato sexual e, antes que tudo fosse explicado, Agilulfo some com seu cavalo,
acreditando que os dois eram mesmo mãe e filho e que, portanto, ele não salvara
a honra de Sofrônia no passado. Apenas a armadura de Agilulfo é encontrada,
vazia; dele, não se teve mais notícias.
Ao montar esse enredo, no mínimo confuso, o narrador parece fazer uma
crítica às convenções: primeiro porque, se Sofrônia não fosse virgem, não
mereceria ser protegida por Agilulfo; segundo, porque Agilulfo poderia ser
considerado um “cavaleiro nobre e ímpio” se tivesse salvado uma dama casta,
caso contrário, deveria perder o posto de cavaleiro. A vida de Sofrônia e as
qualidades de Agilulfo se constituem, realmente, como preocupações
secundárias.
Como dissemos, enquanto Agilulfo sai em busca de Sofrônia, Torrismundo,
acreditando ainda ser filho dela, antes que todo esse mistério fosse
desvendado, passa a procurar por seu pai, que, segundo ele, é a “Sagrada Ordem
dos Cavaleiros do Santo Graal”! Nesse ponto, o tom crítico da narrativa atinge
seu auge. Vejamos o momento em que Torrismundo explica as circunstâncias de
sua concepção ao rei Carlos Magno e aos cavaleiros:
- Meu pai não é um homem.
- E quem seria? Belzebu?
- Não, sire – disse calmamente Torrismundo.
192
- Quem então?
Torrismundo avançou até o meio da sala, pôs um joelho no chão,
ergueu os olhos para o céu e disse:
- É a Sagrada Ordem dos Cavaleiros do Santo Graal.
Um murmúrio percorreu o banquete. Alguns dos paladinos se
benzeram.
- Minha mãe era uma menina ousada explicou Torrismundo e
corria sempre para o mais profundo dos bosques que circundavam
o castelo. Certo dia, no fundo da floresta, deparou-se com os
cavaleiros do Santo Graal, acampados para fortificar seu
espírito no isolamento do mundo. A menina começou a brincar com
aqueles guerreiros e a partir daquele dia, sempre que possível,
enganava a vigilância familiar e alcançava o acampamento. Mas em
pouco tempo, com aquelas brincadeiras de criança, acabou
grávida. (Calvino, 2005, p. 70)
Carlos Magno, sem grande susto, afirma:
[...] Se você conseguir chegar até os cavaleiros do Santo Graal e
fazer-se reconhecer como filho de toda a ordem, considerada
coletivamente, seus direitos militares, dadas as prerrogativas da
ordem, não seriam diferentes daqueles que tinha como filho de
uma família nobre. (2005, p. 70)
A ironia que percorre esses trechos é muito interessante, conduzindo-nos,
sem dúvida alguma, ao riso. O leitor que participa da construção do sentido
percebe que fatos, no mínimo hediondos, são narrados com uma impressionante
naturalidade. Antes de tudo, Sofrônia é tratada por “menina” porque tinha
apenas treze anos, quando se acreditava que ela teria engravidado. Então, o
narrador, por meio de uma ironia sutil, afirma que Sofrônia, graças àquelas
“brincadeiras de criança” com os guerreiros da “santa ordem”, acabou grávida.
E pior: não se podia atribuir a paternidade a um único guerreiro.
Torrismundo explica: “- Minha mãe nunca me falou de um cavaleiro em particular,
mas me educou para respeitar como pai a sagrada ordem em seu conjunto.”
(Calvino, 2005, p. 70) Bem, ao que tudo indica, Sofrônia, aos treze anos, manteve
relações sexuais com todos os cavaleiros da “Sagrada Ordem dos Cavaleiros do
193
Santo Graal”, de modo que acabou grávida e, nada mais “natural” do que afirmar
que todos eles, considerados coletivamente, são “os pais” de Torrismundo!
Rimos da incongruência entre a gravidade desse acontecimento e a
aparente e calculada “espontaneidade” por meio da qual esse fato é narrado.
Depois de algumas páginas, o leitor fica sabendo que não foi nada disso: Sofrônia
ainda era intocada até encontrar-se com Torrismundo, que não era seu filho...
Mas que diferença faz? Isso não torna a “Sagrada Ordem” menos culpada, uma
vez que o que interessa à instância narrativa é justamente insinuar a
possibilidade de tamanho delito.
Essa possibilidade se faz legítima graças à tranqüilidade por meio da qual
é narrada e, ainda, pela aceitação pacífica de Carlos Magno. Portanto, para Ítalo
Calvino, o que importa não parece ser, de fato, a “história em si mesma”, até
porque ela é muito confusa e, não raro, completamente inverossímil. Esse autor
se interessa, sim, em criticar, refletir, propor, insinuar idéias e pensamentos de
modo irônico; tais “propostas de reflexão” se encontram, pois,
sob
essa trama
confusa. A história se configura como um mero pretexto, portanto.
Como dissemos, Torrismundo vai ao encontro dos cavaleiros do Graal e
se surpreende com o que encontra:
[...] Outros cavaleiros seguravam tochas acesas e ateavam fogo
nos tetos, nos depósitos de feno, nas estrebarias, nos celeiros
miseráveis, até que as aldeias ficassem reduzidas a fogueiras que
eram gritos e prantos. Torrismundo, arrastado pela corrida
dos cavaleiros, estava transtornado. Alguém me diga por quê?
gritava para o ancião, indo atrás dele, como se fosse o único que
podia ouvi-lo. Então não é verdade que estejam cheios de amor
pelo todo! Ei! Atenção, estão atacando aquela velha! Como têm
coragem de investir sobre restos humanos? Socorro, as chamas
atingem aquele berço! Mas o que estão fazendo? - Não queira
interferir nos desígnios do Graal, noviço! advertiu o ancião.
Não somos nós quem faz isso; é o Graal, que está em nós, que nos
move! Entregue-se ao seu amor furioso! (Calvino, 2005, p. 102)
194
Portanto, não dúvida de que estamos diante de um texto paródico.
Calvino demole um a um os ideais associados aos cavaleiros medievais. Tais
homens são criminosos, porque saqueiam, porque roubam, porque investem contra
as mulheres e as crianças e porque matam. Essas atitudes são ironicamente
criticadas por Ítalo Calvino. Falta a esses cavaleiros nobreza de caráter e
respeito pelos semelhantes e, pelo viés da ironia, da paródia e do riso, o autor de
O cavaleiro inexistente
denuncia essa índole perversa.
Conforme dissemos, o cavaleiro Agilulfo está no lado oposto: é íntegro,
responsável, racional, trabalhador, entretanto, não existe, não passa de uma
armadura impecável e vazia. Talvez esteja aqui a maior ironia da obra, pois que o
ideal – representado por Agilulfo – não existe. Sua existência como ideal torna-o
algo que não se concretizou nunca e não se pode concretizar jamais.
Logo, Ítalo Calvino parece ter encontrado a estratégia mais eficaz e mais
brilhante para expressar a sua mensagem: personificou o paradigma do cavaleiro
nobre e perfeito em um personagem que não existe, edificando pelos caminhos
da ironia e da paródia uma verdadeira obra de arte. Pois é, assim como Galahaad
também poderia existir em uma obra literária, ficcional. Afinal, ele
concretiza um ideal de retidão, abstinência e devoção que nenhum ser humano de
carne e osso conseguiria igualar.
O riso tem também um lugar especial nessa narrativa. Entendido como
resultado de uma incongruência entre a razão e a realidade concreta, ele
percorre, como não podia deixar de ser, todas as páginas de
O cavaleiro
inexistente
. A própria condição do cavaleiro Agilulfo, que existe sem existir é
risível. Como vimos na parte teórica desse trabalho, estamos falando de um riso
que nos convida a refletir: afinal, se rimos da situação de “existência” de
Agilulfo, nos surpreendemos ainda mais quando nos aproximamos dos possíveis
motivos pelos quais Ítalo Calvino cria esse personagem, constituído dessa
maneira.
195
Afora toda a organização estrutural da narrativa que é, sem dúvida
irônica e que cria conseqüentemente a oportunidade para o evento do riso,
um personagem que colabora muito para a irrupção do risível: Gurdulu, um
andarilho encontrado pelo exército de Carlos Magno. Ele tem uma
especificidade, que é a de transformar-se, sem o perceber, nas pessoas, nos
objetos ou ainda nos animais com que se depara. Tal como a inexistência de
Agilulfo, tal fato não é verossímil. Mas a verdade é que Gurdulu em vários
momentos tem o papel fundamental de servir à estratégia ficcional de criar a
ironia segundo os parâmetros de Schopenhauer e reforçar a postura crítica.
Vejamos antes de mais nada alguns momentos em que aparece Gurdulu:
Em meio às aves, havia um homem, mas não dava para entender o
que fazia: andava de cócoras, com as mãos atrás das costas,
levantando os pés de pato como um palmípede, com o pescoço
duro e dizendo: “Quá... quá... quá...”. Os patos não ligavam para ele,
como se o reconhecessem enquanto um deles. [...] Os paladinos
acercaram-se do pântano. Não se via Gurdulu. Os patos,
atravessado o espelho d’água, haviam retomado o caminho entre o
capim com seus passos palmípedes. Ao redor da água, do meio das
avencas, subia um coro de rãs. O homem tirou a cabeça da água
de repente, como se lembrasse que devia respirar naquele
momento. Viu-se perdido, como se não entendesse o que era
aquele contorno de avencas dentro d’água a um palmo de seu
nariz. Em cada folha, sentava-se um animalzinho verde, liso liso,
que o examinava e coaxava com toda a força: “Gra! Gra! Gra!”.
Gra! Gra! Gra! respondeu Gurdulu, contente e, ao som de sua
voz, de todas as avencas, era um tal de pular na água, e, da
água, rãs saltando para a margem, e Gurdulu gritando: - Gra! – deu
um pulo ele também, foi para a margem, ensopado e enlameado da
cabeça aos pés, encolheu-se feito uma e lançou um “Gra!” tão
forte que com um barulho de caniços e capins tornou a cair no
pântano. (Calvino, 2005, p. 24-25)
Num outro momento, ainda, o exército se depara mais uma vez com a
figura de Gurdulu:
196
A cavalgada ladeava um pomar de pereiras. Os frutos estavam
maduros. Com as lanças os guerreiros espetavam pêras, fazendo-
as desaparecer no bico dos elmos, depois cuspiam o que sobrava.
Enfileirado entre as pereiras, quem se vê? Gurdulu. Mantinha os
braços para cima, torcidos feito ramos, e nas mãos, na boca, na
cabeça e nos rasgões da roupa carregava pêras.
- Olhem, ele está bancando uma pereira! exclamava Carlos
Magno, risonho.
- Já vou sacudi-lo! – disse Orlando, e deu-lhe uma pancada.
Gurdulu deixou cair ao mesmo tempo todas as pêras, que rolaram
pelo prado em declive, e ao vê-las descer não pôde fazer outra
coisa senão rolar também ele feito pêra no relvado e assim
desapareceu da vista de todos. (2005, p. 26)
Em vários momentos da narrativa, temos a oportunidade de ver Gurdulu
confundindo-se com as coisas ao seu redor e são, realmente, cenas muito
engraçadas. Não se trata, porém, do riso sério” fruto de uma contradição,
estudado no capítulo 4, mas sim, de um riso que é fruto da constatação de um
erro ou defeito no outro. O riso que nos interessa mais, o riso de Schopenhauer,
acontece na cena seguinte, que narra o encontro entre Gurdulu e o rei Carlos
Magno:
Dois paladinos iam na frente arrastando Gurdulu com todo o seu
peso como se fosse um saco. Aos empurrões, colocaram-no em
diante de Carlos Magno.
- Tire o chapéu, sua besta! Não vê que está diante do rei?
O rosto de Gurdulu iluminou-se, era uma carantonha encalorada
em que se misturavam caracteres francos e mourescos [...]
Começou a desfazer-se em reverências e a falar sem parar.
Aqueles nobres senhores, que até então haviam escutado de
sua boca vozes de animais, ficaram espantados. [...] Entre
palavras ininteligíveis e despropósitos, seu discurso era mais ou
menos este:
- Toco o nariz com a terra, caio em nos vossos joelhos,
declaro-me augusto servidor de Vossa Humilíssima Majestade,
comandem-se e me obedecerei! Brandiu uma colher que trazia
presa na cintura. -... E quando a Majestade Vossa diz: “Ordeno
comando e quero”, e faz assim com o cetro, assim com o cetro
como eu faço, estão vendo?, e grita como eu: “Ordenooo
comandooo e querooo!”, vocês, todos súditos cães, têm de me
197
obedecer senão mando empalar todos e, em primeiro lugar, você
aí com essa barba e cara de velho decrépito!
- Devo cortar-lhe a cabeça de um golpe só, sire? perguntou
Orlando, e já desembainhava.
- Rogo graça para ele, Majestade apressou-se o hortelão. Foi
um de seus descuidos habituais: falando com o rei, confundiu-se e
não se lembrou mais se o rei era ele ou aquele com quem falava.
(Calvino, 2005, p. 27-28)
Como se vê, todos os momentos anteriores de confusão de Gurdulu que
foram narrados parecem preparar o terreno para esse encontro e,
conseqüentemente, para o instante, antecipado pelo leitor, em que Gurdulu se
confundisse com o rei Carlos Magno. Se observarmos bem a cena, percebemos
que a confusão não se dá imediatamente: aos poucos Gurdulu vai assimilando a
figura de Carlos Magno e revelando, também gradualmente, a tirania e a
estupidez do rei.
É interessante perceber, ainda, que, antes de a “confusão” completar-se,
quando Gurdulu ainda tem a noção exata de quem era ele e de quem era o rei,
aí, a crítica a Carlos Magno se faz presente. A recusa ao rei apenas se
intensifica à proporção que a transposição ocorre, e chega ao cúmulo quando
Gurdulu se dirige ao rei como “um velho decrépito”. Portanto, não resta dúvida
de que a figura de Gurdulu serve como um expediente interessante de que o
narrador faz uso para, ironicamente, atacar o despotismo de Carlos Magno.
Obviamente, rimos, e esse riso é conseqüência de uma incongruência: em
primeiro lugar, o leitor não espera essa atitude tão “lúcida” de Gurdulu, julgado
um louco. Depois, o leitor se dá conta da ironia: entre as confusões anteriores de
Gurdulu e essa última a confusão com Carlos Magno uma grande distância.
Se, nos momentos anteriores, consideramos Gurdulu simplesmente um insano,
agora, entendemos que sua percepção é, de certo modo, crítica e inteligente. Por
meio de Gurdulu, a instância narrativa tece, portanto, uma crítica muito
pertinente ao rei Carlos Magno. Aquele que ri dessa última “peripécia” de
198
Gurdulu, compreende a tensão, assimila o contraste, empresta seu saber para a
construção do sentido e, desse modo, alarga seu conhecimento.
O cavaleiro inexistente
é, como se vê, uma obra muito complexa e
multifacetada, de modo que jamais poderíamos tratar nesta tese de todos os
seus aspectos. Só a figura do narrador, por exemplo, daria um rico trabalho, uma
vez que é apenas ao final da história, que o leitor percebe que a história é
narrada por Bradamante, uma mulher que integra o exército de Carlos Magno,
sendo desejada por todos os cavaleiros, mas está disposta a relacionar-se
apenas com Agilulfo. Bradamante é apaixonada pelo cavaleiro inexistente e o seu
papel de narradora certamente mereceria ser investigado em outro trabalho.
O que nos interessa por ora, entretanto, é justamente legitimar a
estrutura dissonante da narrativa, marcada de modo significativo pela ironia,
que acaba propiciando também a presença da paródia e do riso. Conforme
pudemos observar, para Ítalo Calvino não importa muito a lógica racional ou a
realidade concreta, mas sim, o convite endereçado ao leitor para olhar o
mundo de um modo diferente e, quem sabe assim, entendê-lo um pouco melhor.
Em contato com personagens de certo modo, tão absurdos, como Agilulfo e
Gurdulu –, o leitor é chamado a libertar-se de uma visão padronizada e racional e
enxergar algo além das idéias pré-concebidas. Para tanto, deve transcender a
mímesis
ingênua e por vezes bastante inverossímil e desvelar as mensagens sub-
reptícias e irônicas.
199
Considerações finais
A ironia, o riso e a paródia podem ser descritos como discursos
tentadores. Lançam no texto sua estrutura ambivalente e aguardam com
ansiedade que o sujeito se dê conta de seu traço dual. Essas modalidades
sinalizam, acenam, provocam obstinadamente todo aquele que se aventura a
encará-las frente a frente em sua complexidade. Desafiam sutilmente a razão
do sujeito que, agora, em face desses artifícios minuciosamente arranjados,
está fadado a desnudar a incongruência inesperada. Ou não. Essas categorias são
assimétricas, privilegiam a sugestão, o silêncio, o não dito.
Por se caracterizarem desse modo peculiar, o riso, a paródia e a ironia
despertam em seus receptores sensações adversas. Os que desvelam a sua
cilada experimentam o céu, deleitam-se, acham-se mais capazes
intelectualmente: provocados, sentem que corresponderam ao desafio. Em
contrapartida, uma sensação de embaraço nos invade sempre que, chamados, não
estivemos atentos ao convite dessa espécie de textos, seja por distração, seja
por não compartilhar um determinado repertório. Na verdade, sabemos que não
deveria ser assim, no entanto, também estamos cientes de nossas vaidades...
Reiteramos no decorrer de toda a investigação que o sujeito é o
elemento central dos textos que contemplam a ironia, a paródia e o riso.
Somente ele pode fazer acontecer esses discursos. O receptor dessas
modalidades de estudo deve comportar-se como alguém que investiga um caso
muito intrigante, repleto de provas controversas, desafios e propostas
tentadoras. Ele o sujeito deverá sinalizar, com base nos “fatos” do texto, a
“verdade” e a manipulação.
Nesse sentido, o sujeito experimenta a sensação desconfortável de se
localizar no limiar entre o implícito e o explícito, entre o sub-reptício e o literal,
entre os subterrâneos e a superfície do texto. Constitui-se como tarefa do
200
receptor dessas estruturas ambíguas assinalar uma possibilidade do “certo” e do
duvidoso para um contexto determinado. Para tanto, deve exercitar sua razão,
perscrutando os labirintos de seu saber, a fim de despojar as mensagens de sua
roupagem irônica, revelando-as, colocando-as, pois, à vista.
Vimos que o desafio proposto ao sujeito pelo riso, pela ironia e pela
paródia está muito próximo da provocação com que somos confrontados pela
própria arte no caso, a literária. Logo, a admiração e a surpresa sensações
comuns àquele que se depara com as categorias aqui estudadas e que as
decodifica estão relacionadas intimamente com a literatura, sobretudo no que
se refere às funções estética e catártica, inerentes à arte de um modo geral.
Pensando nisso, de modo semelhante ao que se com a literatura, os
discursos investigados ao longo da presente pesquisa propiciam ao sujeito
quando descobertos a experiência do prazer estético e da purificação ou
catarse. Conforme comentamos no capítulo 5, é pertinente concluir, após tais
considerações, que a paródia, a ironia e o riso podem ser pensados como “micro-
mímesis
ou “micro-representações inseridas na
mímesis
-maior”, que seria a
própria obra literária.
A literatura representada em nosso trabalho pelas categorias do riso,
da paródia e da ironia desperta no sujeito o desejo e a possibilidade de
transcender a sua realidade previsível e mergulhar no impensado, no imprevisto.
Assim, por meio da razão condição necessária para todo esse processo o
indivíduo é estimulado a lançar um olhar mais genuíno e espontâneo para a
realidade, tornando factível a idéia de alargar o seu saber.
Portanto, essas categorias de linguagem tão complexas e fascinadoras
facilitam o contato do ser humano consigo mesmo: com o seu saber e, ainda, com
o seu não-saber. São discursos que perturbam o sujeito, uma vez que o incitam a
lançar um olhar atento sobre si mesmo, em busca de seu repertório. E isso
mesmo nas ocasiões em que esbarramos em nossa limitação racional e não
201
conseguimos compreender os sinuosos caminhos da ironia. Ainda quando
engolfados pelas suas refrações traiçoeiras, somos capazes de chegar à maior
das verdades da existência, que é a necessidade de alargamento do saber.
Logo, mesmo que a ironia, a paródia ou o riso não surtam o efeito desejado
por seus primeiros criadores, o convite para desvendá-los perpetua-se e, com
ele, o ensejo de ampliação da percepção crítica. Tal projeção não é utópica, uma
vez que, tentando desmascarar os discursos marcados pela ironia, paródia ou
riso, desmascaramos, ao que parece, a nós mesmos.
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